ARTETEORIA SÉRIE II Nº 20 capa fac-símile cedido pela Câmara Municipal de Vila do Conde. ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved.

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PROPRIEDADE DO TÍTULO

C I E B A _ CENTRO DE INVESTIVAÇÃO E DE ESTUDOS EM BELAS ARTES SECÇÃO DE CIÊNCIAS DA ARTE E DO PATRIMÓNIO — FRANCISCO DE HOLANDA

FACULDADE DE BELAS-ARTES, LARGO DA ACADEMIA NACIONAL DE BELAS ARTES, 1247-058, LISBOA TELEFONE 213 252 100

FUNDADOR C A P A founder cover

José Fernandes Pereira Fernando Estevens

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José Carlos Pereira Fernando Estevens FBAUL

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CONSELHO CIENTÍFICO advisory board

Luisa Arruda Rosangela Maria Cherem Universidade de Lisboa Universidade do Estado de Santa Catarina

Cristina Azevedo Tavares Domingo Hernandez Universidade de Lisboa Universidad de Salamanca

Fernando António Baptista Pereira Pedro Duarte Universidade de Lisboa Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro João Paulo Queiroz Universidade de Lisboa Afonso de Medeiros Universidade Federal do Pará Ilídio Salteiro Universidade de Lisboa Bernardo Pinto de Almeida Universidade do Vítor dos Reis Universidade de Lisboa António Pedro Pita Universidade de Eduardo Duarte Universidade de Lisboa Francisco de Almeida Dias Università degli Studi della Tuscia Pedro Cabral Santo Universidade do Salvato Teles de Menezes Fundação D. Luis I Carlos Bizarro Morais Universidade Católica Portuguesa Sabina de Cavi Universidad de Córdoba Rodrigo Sobral Cunha Universidade Europeia-IADE Anna Maria Guasch Universitat de Barcelona Sylvie Deswartes-Rosa Institut d’histoire des représentations et Annemarie Jordan des idées dans les modernités Universidade Nova de Lisboa

Margarida Acciaiuoli António Braz Teixeira Universidade Nova de Lisboa Academia das Ciências de Lisboa

Lúcia Rosas Samuel Dimas Universidade do Porto Universidade Católica Portuguesa

Daniela Kern Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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6 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº18/19 _ 2017 © 2017 by ARTETEORIA, All rights reserved.

ÍNDICE GERAL

P. 9 EDITORIAL II _ NOTAS DE INVESTIGAÇÃO José Carlos Pereira António Vargas

P. 153 A EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE PARIS DE 1878 I _ ARTIGOS CONTADA POR RAMALHO ORTIGÃO Alice Nogueira Alves

P. 15 P. 175 PRESENÇA DA FILOSOFIA NA PRESENÇA SAUDAÇÃO RÍTMICA NA OBRA DE CARLOS QUEIROZ António Braz Teixeira Rodrigo Sobral Cunha

P. 23 P. 187 O MISTÉRIO DA POESIA NA ESTÉTICA DA UMA CARTA DE RAUL LEAL (HENOCH) PARA JOÃO INSPIRAÇÃO E DA EXPRESSÃO DE JOÃO GASPAR GASPAR SIMÕES SIMÕES Zetho Cunha Gonçalves Samuel Dimas

P. 199 P. 41 CARTAS DE RAUL LEAL (HENOCH) PARA JOSÉ RÉGIO O HIPERESTETA – DA VERTIGEM À PRESENÇA Rui Lopo PASSANDO PELO FUTURISMO Rui Lopo P. 229 UMA VIAGEM AO PRINCÍPIO P. 73 CUMPLICIDADES ARTÍSTICAS JOSÉ RÉGIO: O ESTETA E O ARTISTA (À VOLTA DE JOSÉ RÉGIO E JULIO UM MANUSCRITO INÉDITO DO POETA) Rui Maia Isabel Cadete Novais

P. 241 P. 89 FILMOGRAFIA E PRESENCISMO “TIPOGRAFIA VIVA”: EXPERIMENTAÇÃO E José de Matos-Cruz EXPRESSÃO TIPOGRÁFICAS NA REVISTA PRESENÇA Sofia Rodrigues P. 253 AD EXTRA P. 109 A Direcção PRESENÇA: UMA REVISTA TIPOGRAFADA AO RITMO DO MODERNISMO Cristiana Serejo _ Jorge dos Reis

P. 139 COMENTÁRIO SOBRE OS MUNDOS “INTERNO” E “EXTERNO” À PRESENÇA Carlos Vidal

7 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20Nº18/19 _ 2017 _ 2017 © 20182017 by ARTETEORIA, All rights reserved.

8 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Pereira, José Carlos _ Vargas, António _”Editorial”, 2018, pp. 9-12.

EDITORIAL

José Carlos Pereira António Vargas

Com este número dedicado aos 90 anos da revista Presença, folha de arte e crítica, cujo perfil revela traços do simbolismo coimbrão, do futurismo e do paulismo lisboetas, e mesmo do saudosismo portuense, fechamos o primeiro ano da Série II da Revista Arteteoria. Conhecida a tese acerca do carácter mais ou menos contra-revolucionário do movimento presencista, consagramos o seu legado nos campos da poesia, da ficção, do design editorial, da filosofia, da doutrinação crítica e estética, do cinema — seja pelo seu precoce reconhecimento como arte seja pela ligação privilegiada de Manoel de Oliveira ao universo ficcional e estético de José Régio —, da música, através de Lopes Graça, sendo que a figura de Julio, igualmente poeta sob o pseudónimo de Saúl Dias, se destacou no panorama dos artistas que nela colaboraram: Mário Eloy, Almada, Diogo de Macedo, Paulo Ferreira, ou Arlindo Vicente, entre outros. Se a Presença se afirma como contraponto à “ausência”, sobre que assentava esteticamente o movimento da Renascença Portuguesa sob a égide do Saudosismo, é, por outro lado, o movimento que se aproxima de uma estética da expressão, tema ao qual Fidelino de Figueiredo, Leonardo Coimbra ou José Régio dedicaram particular atenção. Além disso, e ape- sar das várias sensibilidades e posições doutrinárias e estéticas que a caracterizam, a Presença, segundo juízo de João Gaspar Simões, assumiu-se como “pendant literário e artístico do Orpheu”, acolhendo colaboração dos primeiros modernistas, sendo apresen- tada por alguns dos seus colaboradores como a pedra de fecho do arco do modernismo em , pela sequência que deu aos valores artísticos afirmados em publicações como Portugal Futurista, Exílio, Centauro, ou Contemporânea, entre outras. Como dou- trinador da Presença, José Régio procura, num primeiro momento, compatibilizar clas- sicismo e individualismo, sem deixar de assinalar o que há de “romântico”, seja por evo- lução ou por reacção, no Dadaísmo, no Futurismo ou no Expressionismo, vanguardas cuja “exagerada exaltação emocional” conduziu ao “exaspero estético niilista”, de Dada, à recusa futurista de “toda a sentimentalidade e toda a estesia”, e à “excentricidade no seu sonho anti-realista” da estética expressionista. Num segundo momento, Régio procura conciliar Classicismo e Modernismo, afir- mando que este último não se constituiu a partir da soma das vanguardas que o com- põem, mas da tentativa, tanto na expressão como no expresso, de valorizar o novo e o actual, face às formas e às substâncias esgotadas. Apenas possível de analisar na singu- laridade da obra de cada artista, o modernismo superior e verdadeiro, aquele que Régio reputa de clássico, alberga o que há de mais pessoal, sincero e vivo em cada criador, e

9 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Pereira, José Carlos _ Vargas, António _”Editorial”, 2018, pp. 9-12.

que determina a sua personalidade artística. É por esta razão que, no caso da poesia, o autor de Cântico Negro se opõe à estética do fingimento de Fernando Pessoa, prefe- rindo a poesia de Pascoaes quando “escuta o seu génio”, embora recuse o Saudosismo, seja pela referida dimensão de “ausência”, que o caracteriza, seja pelo facto de, em sua opinião, se constituir uma “escola” que impede o desenvolvimento da individualidade artística. Quanto à génese da obra de arte, é ainda a emoção, ou a paixão — como es- creveu —, que consubstancia, consciente ou inconscientemente, a finalidade estética, e a arte apenas como arte se realiza quando mergulha as suas raízes na humanidade, de que o artista é, enquanto Homem, parte integrante. No que toca à finalidade e à natu- reza da obra de arte, defende que os seus meios são a linha, a mancha, a cor, no caso da pintura, e os recursos da linguagem, e a sua própria plasticidade, no caso da literatura, respondendo deste modo aos que, à época, exigiam da arte correctivos sociais e ideoló- gicos. Para Régio, antes ou depois da expressão, não existe obra de arte, pois que esta apenas existe onde há “intenção profunda e jogo, imitação aparente e transfiguração do real”, distinguindo ainda outros dois tipos de expressão: a expressão vital, insuficiente para atingir a expressão artística, e a expressão mística, que exorbita a esfera da arte. Para além de uma Teoria da Crítica, que cedo propõe, parte de uma inicial filosofia da arte, na qual se destaca uma teoria estética da expressão, e culmina numa gnoseo- logia, como podemos, de modo lapidar, observar no poema "Redenção". Para além dos vários colaboradores da Presença, na teorização estética e crítica relevam também Adolfo Casais Monteiro e João Gaspar Simões. A teorização especulativa do autor de Clareza e Mistério da Crítica assenta também nos valores do “individualismo” e numa concepção da arte como “expressão”, embora considere que a oposição do romantismo ao classicismo não foi suficiente para uma efectiva autonomização da obra de arte, e do eu criador. Na verdade, o especulativo defende que, em alternativa aos clássicos con- ceitos de “belo” e de “razão”, os românticos criaram um outro formalismo, através das oposições “sinceridade-mentira”, “verdadeiro-falso” e “autenticidade-artifício”, dicoto- mias que Casais Monteiro se propõe ultrapassar por via da defesa de uma “arte viva”, baseada no modelo criacionista do continuum entre sujeito e realidade. Com a defesa intransigente da autonomização da estética face à filosofia, Casais Monteiro manifesta a preocupação epistemológica adjacente ao seu pensamento, atribuindo à permanência do platonismo e do neoplatonismo na cultura ocidental a causa maior da resistência a uma estética ancorada na experiência criadora, de que a Poética de Aristóteles se constitui precursora tentativa. É neste sentido que, no artigo intitulado “Estética”, pertencente ao seu espólio, depositado na Biblioteca Nacional1, Casais Monteiro re-equaciona o papel da razão na estética da criação, opondo-se a Schelling e a Hegel quando defendem “a unificação pela intuição intelectual do espírito e da sensibilidade”. Ao defender a especi- ficidade do “estético” contra a predominância dos modelos narrativos e historiográficos

1 BNP, Espólio de Adolfo Casais Monteiro, E15/cx.28.

10 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Pereira, José Carlos _ Vargas, António _”Editorial”, 2018, pp. 9-12.

da imitação, que serviram, ao longo da História, de critério para os juízos sobre arte, o autor de Uma Tese e Algumas Notas sobre a Arte Moderna manifesta uma dupla oposi- ção ao formalismo: em sentido clássico, a partir da negação da forma prévia enquanto molde no qual o artista “funde” a sua obra; em consonância com a concepção da arte que resulta do acordo entre “a nossa maneira de ser e a nossa maneira de nos sentirmos ser” (sublinhado do autor), isto é, na assunção do artista como “voz transfigurada” duma totalidade que excede qualquer parcela, insurge-se contra a “forma” como ele- mento autónomo, como acontecera no cubismo, movimento que impedira, a seu ver, a originalidade e a sinceridade, bases de uma “criação artística viva” (sublinhado nosso). Será, aliás, a partir da necessidade de uma aprendizagem do “ver”, que Casais Monteiro teoriza a autonomia da Crítica de Arte, devendo esta, para ser autêntica, constituir-se também numa área de expressão do que é especificamente artístico, ou seja, do que, enquanto obra de arte, repousa na “ambiguidade daquilo que para perdurar deixa de ser vida, mas que só perdura porque continua vivo”. À semelhança de Régio, João Gaspar Simões manifesta especial apreço pelas artes plásticas, e toma-as como termo de analogia da crítica e teorização literária e poética, manifestando a sua preferência pelos artistas que considera “neo-românticos”, nos quais a intuição se sobrepõe à inteligência, como Miró e os surrealistas em geral, sendo que vê também na “originalidade” e na “autenticidade” os atributos fundamentais da verda- deira arte. Aproximando-se da filosofia bergsónica, o que originou uma polémica com o neo-racionalista António Sérgio, Gaspar Simões defende que “a arte é a evidenciação do espírito (de uma certa qualidade de espírito) em qualquer matéria, duma maneira voluntária e intencional”, confirmando, à semelhança do autor de A Evolução Criadora, a natureza criacionista das relações entre sujeito e natureza. Um dos primeiros defenso- res em Portugal da arte abstracta, e em oposição frontal quer ao realismo estético quer à campanha nacionalista que o Saudosismo e o promoveram, Gaspar Simões afirma que o processo artístico assenta numa transposição formal do mundo interior, a partir das noções que teoriza de “deformação do real” e de “ingenui- dade”, como génese do processo artístico, que concilia com a vontade e a intencionali- dade do artista, o que não deixa de acentuar a complexidade da teorização presencista. Neste número evocativo do movimento da Presença, António Braz Teixeira faz o levantamento e a análise da reflexão filosófica na publicação nascida em Coimbra, a que se segue a problematização da proposta crítica e estética de João Gaspar Simões, por parte de Samuel Dimas, a partir do intuicionismo de Henry Bergson, e do con- traponto entre razão poética e razão filosófica. Rui Lopo apresenta o Vertiginismo de Raul Leal, estética que deverá necessariamente ser invocada para melhor se entender o Interseccionismo como culto multímodo da sensação, como Fernando Pessoa o des- creveu em carta a um editor inglês. A “incerteza substancial”, que Raul Leal reivindica como base do Vertiginismo, é também a base do anúncio profético do Hiperesteta, e da

11 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Pereira, José Carlos _ Vargas, António _”Editorial”, 2018, pp. 9-12.

sua doutrina teometafísica, a qual deverá ser colocada em paralelo com o anúncio do Supra-Camões de Fernando Pessoa nas páginas de A Águia, a que se pode juntar, em- bora num outro plano, a teorização do Homem-Artista, por parte de Régio, de que pu- blicamos, na transcrição de Isabel Cadete Novais, um seu inédito. Como se depreende do artigo de Rui Lopo, complementado com a transcrição de um conjunto igualmente inédito de cartas do autor de Sodoma Divinizada para José Régio, a cumplicidade dos dois poetas órficos parece estender-se à teorização estética que nos deixaram, a qual, doravante, deverá ser compulsada em paralelo. Como referido, Isabel Cadete Novais apresenta um inédito de José Régio, e as contradições que, dilacerando a personalidade do autor de Poemas de Deus e do Diabo, na sua obra se espelham de modo sincero, como sejam o Bem e o Mal, a Verdade e a Mentira, ou o Grotesco e o Sublime, demonstrando a almejada coerência que o poeta buscou entre a sua doutrinação e produção estéticas. As propostas inovadoras no campo tipográfico e editorial, de que Régio e o seu Irmão Julio se ocuparam com regularidade, são objecto da análise de Sofia Leal Rodrigues, Cristiana Serejo e Jorge dos Reis, respectivamente. Da relação entre o presencismo e o neo-realismo (este último já apelidado de terceiro modernismo português), trata Carlos Vidal, através da invocação de “exemplares” polémicas entre alguns dos seus corifeus, alertando para a complexidade do conceito de realismo, e para a especificidade das propostas estéticas e políticas dos dois movimentos. Nas Notas de Investigação, apre- sentam-se o estudo de Rui Maia acerca dos primórdios da relação criativa entre Régio e o seu irmão Julio, o relato feito por Ramalho Ortigão da Exposição Universal de Paris de 1878, uma saudação mais do que rítmica na obra de Carlos Queiroz, pois que a meditação de Rodrigo Sobral Cunha faz o desenho das relações do poeta com uma constelação de autores e valores que deram corpo ao primeiro e segundo modernismos em Portugal, a transcrição e apresentação, por Zetho Cunha Gonçalves, de uma carta inédita de Raul Leal a João Gaspar Simões, assim como o levantamento, da autoria de José de Matos-Cruz, das obras e dos factos que relacionam o presencismo com o cine- ma, lembrando o papel pioneiro da revista na crítica cinematográfica. Por fim, publica- -se uma recensão, da responsabilidade da Direcção, da obra Arte Portuguesa no Século XX: Uma História Crítica, da autoria de Bernardo Pinto de Almeida. Uma palavra de gratidão é devida a todos os colaboradores, à Área de Ciências da Arte, da FBAUL, na pessoa da sua coordenadora, Profª. Doutora Cristina Azevedo Tavares, ao Presidente da FBAUL, Prof. Doutor Vitor dos Reis, à Secção de Ciências da Arte e do Património — Francisco de Holanda, na pessoa da sua Coordenadora, Profª. Doutora Luisa Arruda, ao Presidente do CIEBA, Prof. Doutor João Paulo Queiroz, ao El Corte Inglés, Grandes Armazéns, na pessoa da Doutora Susana Santos, à Dra. Elisa Ferraz, Presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, e à Presidente da Direcção do Centro de Estudos Regianos, Doutora Isabel Cadete Novais, pelo apoio prestado.

12 ARTETEORIAARTETEORIA __ ISSNISSN 1646-396X1646-396X __ SÉRIESÉRIE IIII __ Nº20Nº18/19 _ 2017 _ 2017 © 20182017 by ARTETEORIA, All rights reserved.

I_ARTIGOS

P. 15 PRESENÇA DA FILOSOFIA NA PRESENÇA António Braz Teixeira

P. 23 O MISTÉRIO DA POESIA NA ESTÉTICA DA INSPIRAÇÃO E DA EXPRESSÃO DE JOÃO GASPAR SIMÕES Samuel Dimas

P. 41 O HIPERESTETA – DA VERTIGEM À PRESENÇA PASSANDO PELO FUTURISMO Rui Lopo

P. 73 JOSÉ RÉGIO: O ESTETA E O ARTISTA (À VOLTA DE UM MANUSCRITO INÉDITO DO POETA) Isabel Cadete Novais

P. 89 “TIPOGRAFIA VIVA”: EXPERIMENTAÇÃO E EXPRESSÃO TIPOGRÁFICAS NA REVISTA PRESENÇA Sofia Leal Rodrigues

P. 109 PRESENÇA: UMA REVISTA TIPOGRAFADA AO RITMO DO MODERNISMO Cristiana Serejo _ Jorge dos Reis

P. 139 COMENTÁRIO SOBRE OS MUNDOS “INTERNO” E “EXTERNO” À PRESENÇA Carlos Vidal

13 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20Nº18/19 _ 2017 _ 2017 © 20182017 by ARTETEORIA, All rights reserved.

14 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Teixeira, António Braz _”Presença da Filosofia na ”Presença”, 2018, pp. 15-22.

PRESENÇA DA FILOSOFIA NA PRESENÇA

António Braz Teixeira

1. Apesar de a “folha de arte e crítica” que se publicou em Coimbra, de 1927 a 1938, e terminaria a sua vida, em Lisboa, dois anos depois, haver dado lugar largamente predo- minante à poesia, à ficção narrativa e à doutrina e crítica literárias e, numa posição relati- vamente secundária, às artes plásticas, ao teatro e ao cinema, não deixou, no entanto, de atribuir o merecido relevo à reflexão e ao ensaísmo filosóficos e de abrir as suas páginas a alguns dos mais dotados pensadores da geração nascida na primeira década do séc. XX. Com efeito, a partir do seu quarto ano, a presença passou a inserir colaboração de an- tigos colegas de Adolfo Casais Monteiro (1908-1972) na Faculdade de Letras do Porto ou seus companheiros no movimento da Renovação Democrática1, como José Marinho (1904-1975), Delfim Santos (1907-1966) e Manuel Maia Pinto, a que veio juntar- -se António Lobo Vilela (1902-1966) que, para evitar ou tornear a censura, assinava Eduardo Lobo, e que, nos finais da revista, as suas páginas se franquearam à colaboração de José Bacelar (1900-1960), autor cujos dois volumes de Revisão. Anotações à margem da vida quotidiana (1935 e 1936) haviam sido entusiasticamente saudados por José Régio2 e cujo opúsculo Duas frentes: pedagogismo e universalismo (1938) seria objecto, no ano seguinte, de uma atenta e compreensiva recensão por parte de José Marinho3. Poderá, talvez, estranhar-se que entre os colaboradores portuenses da revista coim- brã se não achem Álvaro Ribeiro nem Sant’Anna Dionísio, atentas as fortes relações de amizade do primeiro com Casais Monteiro, seu activo companheiro na Renovação Democrática, e com José Régio, a quem dedicaria um dos seus mais significativos tra- tados filosóficos4 e a cuja obra consagraria todo um volume5, e tendo em conta o alto apreço que o autor de Cepticismos sempre manifestou pelo admirável poeta de As encru- zilhadas de Deus.

1 Cf. A. Braz Teixeira, Conceito e formas de democracia em Portugal e outros estudos de história das ideias, Lisboa, Sílabo, 2008, pp. 27-66. 2 Nº 49, Junho 1937, pp. 14-15. 3 Nº 53-54, Novembro 1938, pp. 25-26. 4 A arte de filosofar, Lisboa, 1955. 5 A literatura de José Régio, Lisboa, 1969.

15 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Teixeira, António Braz _”Presença da Filosofia na ”Presença”, 2018, pp. 15-22.

Quanto a Álvaro Ribeiro, o não ter chegado a colaborar na presença6 poderá, talvez, explicar-se pelo longo e silencioso processo de revisão e aprofundamento por que passou o seu pensamento após a dissolução do movimento Renovação Democrática, em 1934, havendo-se a sua atenção reflexiva concentrado, nesse período, no demorado estudo da filosofia de Aristóteles, Hegel e Sampaio Bruno. Relativamente a Sant’Anna Dionísio, empenhado, até 1932, na direcção da última sé- rie de A Águia, a sua ausência do corpo de colaboradores, ainda que acidentais, da revista coimbrã poderá explicar-se pelo relativo isolamento intelectual a que o condenaram as tarefas de professor liceal em bisonhas e melancólicas cidades da província e, acima de tudo, por não compartilhar as orientações estéticas modernistas acolhidas pela presen- ça, revista que, note-se, nenhuma atenção dedicou às obras ensaísticas ou de intenção reflexiva editadas ao longo dos quatorze anos da sua publicação, mesmo de autores que nela colaboraram ou dela se encontravam próximos, como seria o caso, entre outros, do vol. III dos Ensaios, de António Sérgio, O amor místico, de Sílvio Lima, Da filosofia, de Delfim Santos, Tangentes, de Sant’Anna Dionísio, A religião grega, de Agostinho da Silva e Menoridade da inteligência ou O dever dos intelectuais, de Fidelino de Figueiredo.

2. Dos cinco especulativos acima mencionados7, foi José Marinho, devido, decerto, à forte amizade intelectual que o ligava a José Régio e a outros directores da presença, o que mais constante e duradoura colaboração deu à revista, pois, enquanto Delfim Santos8 e Manuel Maria Pinto9 nela publicaram apenas um artigo e A. Lobo Vilela dois ensaios10, o futuro autor da Teoria do Ser e da Verdade, durante uma década, aí viu editados cinco longos ensaios11, um diálogo filosófico12 e um significativo conjunto de reflexões e aforismos13.

6 No espólio da Casa José Régio, em Vila do Conde, encontra-se um manuscrito de Álvaro Ribeiro, sem título, presumivelmente de 1939 ou 1940, destinado à revista presença, onde, no entanto, não chegou a ser publicado, texto incluído, hoje, no vol. 1, pp. 189-191 dos Dispersos e Inéditos do filósofo portuense, Lisboa, INCM, 2004. 7 Haveria ainda que referir Jaime Macedo Santos, autor de um breve artigo “Sobre Hegel e Croce”, publi- cado no nº 18, Janeiro 1929, p. 13. 8 “Dialéctica totalista”, nº 39, Julho 1993, pp. 8-9 e 12. 9 “Introdução a uma estética pragmatista”, nº 43, Dezembro 1934, pp. 7-10. 10 “Infinitismo”, nº 34, Novembro 1931 – Fevereiro 1932, pp 10-13; “Metafísica infinitista”, nº 37, Fe- vereiro 1933, pp. 9-11. 11 “O equívoco chestoviano”, nº 29, Novembro-Dezembro 1930, pp. 5-7 e 15; “Aforismo e discurso”, nº 43, Dezembro 1934, pp. 4-6; “Reflexões sobre religião, Deus e mandamento”, nº 46, Outubro 1935, pp. 4-6; “O homem, suas possibilidades e valores no pensamento de Leonardo Coimbra”, nº 50, Dezembro 1937, pp. 2-4; “Razão e irracional”, 2ª série, nº 1, Novembro, 1939, pp. 44-46. 12 “Diálogo sobre a imortalidade”, nº 37, Fevereiro 1933, pp. 4-6. 13 “Reflexões e aforismos”, nº 31-32, Março-Junho 1931, pp. 2-4.

16 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Teixeira, António Braz _”Presença da Filosofia na ”Presença”, 2018, pp. 15-22.

Mas a colaboração reflexiva de José Marinho na presença não se destaca apenas pelo seu número, extensão e regularidade, sendo, igualmente, de todas, a de maior rigor e profundidade especulativa, revelando já algumas das características mais singularizado- ras do seu modo de pensar e os seus invulgares dotes de admirável escritor de ideias. Afigura-se, desde logo, muito significativo que a colaboração que o então jovem pensador portuense deu à revista coimbrã, embora haja revestido maioritariamente a forma ensaística, não tenha deixado, também, de recorrer ao diálogo filosófico e à expressão aforística. Cabe lembrar aqui que a forma aforística, de muito escassa presença no nosso pensa- mento anterior à geração de 1930, encontrou nela um conjunto expressivo de cultores, em que, ao lado de José Marinho, avultam Sant’Anna Dionísio, José Bacelar, Augusto Saraiva (1900-1983) e Agostinho da Silva (1906-1994), não sendo, decerto, ousado afirmar que, se o autor de Revisão retoma, de algum modo, a esquecida e ainda hoje mal compreendida lição de Matias Aires, os restantes haurem a sua mais visível e directa inspiração no Pacoaes do Verbo escuro e de O bailado e no que há de oracular na prosa inspirada de Junqueiro, Brandão e Leonardo.

3. De todos eles foi, no entanto, Marinho o que não só mais constante e abundan- temente recorreu à expressão aforística como o que dedicou mais demorada atenção reflexiva ao significado e valor do aforismo como forma de expressão de ideias con- traposta à forma discursiva, em dois luminosos e modelares ensaios publicados na presença, em 1930 e 1934. Aí, o jovem autor dos, até há pouco, inéditos Aforismos sobre o que mais importa ob- servava que o aforismo representa “na expressão das ideias o máximo de descontinui- dade”, o que não significa, porém, “ausência de interior discursividade”, implicando, pelo contrário, “uma discursividade realizada em planos diversos de intelecção: uma discursividade da qual o pensamento tem a inequívoca presença, mas não se realiza com uma face votada para a luz e outra para a sombra”. É que, como argutamente notava Marinho, o recurso à forma aforística tanto pode representar uma maneira acidental de expressão de um pensador que se não encontra na posse dos seus melhores dons como decorrer de uma incapacidade não já acidental do homem “para traduzir certas intuições instantâneas, certas obscuras experiências, que pela sua mesma superioridade são remo- tas, fugazes”, pelo que em vão se pretenderia desenvolvê-las discursivamente. Com efeito, advertia o moço filósofo, “se houvesse no espírito do homem pura, perfei- ta continuidade, o pensamento aforístico seria apenas transitório, e sinal da incompleta posse que um certo pensamento toma de si mesmo”. Dado que, no entanto, nele não existe tal continuidade e que, constantemente, salta para realizar em si “resíduos ou antecipações insolvidas”, forçoso será reconhecer que o pensamento aforístico, com sua intrínseca descontinuidade, se apresenta mais de acordo com a condição do homem e

17 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Teixeira, António Braz _”Presença da Filosofia na ”Presença”, 2018, pp. 15-22.

a sua real realidade do que o pensamento discursivo, o qual exprime o que no “homem tende a ser e não é ainda”. Deste modo, o aforismo, revelando “o ser do homem no qual a vigília, que é o pen- samento, é tecida ainda de sonho e a continuidade é ainda prenhe de descontinuidade, revela também, na sua vigília entrecortada, na sua descontinuidade resignada, o ser que é pura vigília, continuidade perfeita”14.

4. O entendimento do pensador portuense acerca da superior verdade humana do pensamento aforístico e a sua maior capacidade para abrir o homem para o seu próprio mistério e para o mistério divino, assim como se encontrava exemplarmente ilustrado no conjunto de Reflexões e aforismos que publicara na revista coimbrã três anos antes, articulava-se, coerentemente, com um tema essencial da sua reflexão, o das incindíveis relações entre razão e irracional, que viria a constituir o objecto do último texto seu inserido na presença. Sustentava aí o subtil e exigente filósofo que a razão não é princípio nem fim da acti- vidade do espírito, mas apenas processo, é algo que se situa entre a inteligência intuente e o existir sensual, mas que possibilita que uma e outro consistam e possam subsistir, pois, se é a intuição que permite ao homem aceder, instantaneamente, à verdade, num conhecimento imediato e pleno, a que depois virá a chamar visão unívoca, ela, sem a razão, seria constantemente retomada e perdida, tal como a representação sensível seria constantemente evanescente. Isto significaria, então, que, no homem, a razão não é razão absoluta nem razão pura, mas é sempre razão correlativa com o irracional, no qual se desenvolve o seu processo ou a razão como processo, pelo que o irracional não é só “o vasto e profundo seio no qual a razão procede” mas é presente à razão em si mesma. A razão, sendo processo, é algo que incessantemente se dissolve e se refaz e que, por isso, só existe na relação com o diverso de si, o irracional. Razão e irracional implicam-se, pois, mutuamente e é desta relação substantiva entre ambos, que os transmuda, que provêm a sensação, o desejo e a ideia. Deste modo, a razão, se, por um lado, porque ligada à intuição fulgurante e instantânea da verdade, aponta, incessantemente, para o ser, para o uno ou para a suprema unidade, por outro, porque ligada, igualmente, pela sensação, à diversidade e à variedade da vida e do existir, é levada a reconhecer as múltiplas possibilidades de ser15.

14 “O equívoco chestoviano” e “Aforismo e discurso”. Cfr. Maria Luísa Couto Soares, “Aforismo e filoso- fia. José Marinho na Presença”, nas Actas do Congresso Internacional Pensadores Portuenses Contemporâneos (1850-1950), vol. III, Lisboa, 2002, pp. 159-165. 15 “Razão e irracional”. Cfr. A. Braz Teixeira, “O primeiro estádio no caminho filosófico de José Marinho”, em Deus, o mal e a saudade, Lisboa, 1993, pp. 179-197.

18 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Teixeira, António Braz _”Presença da Filosofia na ”Presença”, 2018, pp. 15-22.

5. Foi este modo de conceber as relações entre razão e irracional, muito próximo do seu mestre Leonardo Coimbra e do de outros seus antigos companheiros na, entre- tanto extinta, Faculdade de Letras do Porto, como Sant´Anna Dionísio ou Agostinho da Silva, que constituiu o fulcro da polémica do jovem pensador com António Sérgio (1883-1969), nas páginas da Seara Nova, em meados da década de 30, de que resultou fecharem-se, daí para diante, as portas dessa revista à sua colaboração. Nela objectará Marinho ao racionalismo crítico do autor dos Ensaios que “da mesma maneira que o verdadeiro bem se não encontra pela exclusão do mal (…), assim também o pensamento verdadeiro se não encontra pela exclusão do sensível, do imaginífico, do afectivo, pela exclusão do real estranho ao pensamento, mas pela aceitação dele”16. Advirta-se que a compreensão que Marinho tinha das relações entre a razão e o irra- cional não o conduzia a nenhuma forma de anti-logicismo, antes a sua funda exigência de razão e o seu agudo sentido do logos o levavam a sustentar, em expressa crítica a Chestov, que nenhum pensador pode deixar de pensar logicamente, cumprindo, con- tudo, não confundir a lógica inerente ao processo de todo o pensar com as plurais e diversas formas pelas quais o pensamento se explicita, do mesmo modo que o conduzia a considerar desprovida de sentido e de valor a oposição entre obscuridade e clareza na expressão do pensamento ou no próprio pensamento17.

6. A colaboração de José Marinho na presença versou, igualmente, sobre interroga- ções metafísicas de grande significado, como o problema da imortalidade e o proble- ma de Deus. No tratamento do primeiro, em que é claramente reconhecível a lição leonardina, recorreu o jovem filósofo à forma dialogal, como o fizera o mestre numa das três obras em que se ocupou do mesmo problema18, forma filosófica que viriam a usar, igual- mente, outros dois destacados membros da “Escola portuense”, Agostinho da Silva19 e Sant’Anna Dionísio20. O pensamento expresso por Marinho no seu Diálogo sobre a imortalidade (1933), através da figura de Jaime, é o de que, enquanto a vida, em todos os momentos do ser, é possível e real, só são possíveis casos particulares de morte. Há, todavia, uma mor- te implícita no nosso ser, pois somos, morrendo, do mesmo modo que lembramos, esquecendo, amamos, preferindo e pensamos, excluindo. No entanto, geralmente

16 “Resposta a um idealista de um amigo de pensar inclassificado”, na Seara Nova. 17 “O equívoco chestoviano”. 18 A morte, 1913, A luta pela imortalidade, 1918 e Do amor e da morte, 1924. 19 Conversação com Diotima, 1944 e Policlés, 1944. 20 Diálogo do jardim, 1959.

19 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Teixeira, António Braz _”Presença da Filosofia na ”Presença”, 2018, pp. 15-22.

considera-se a imortalidade completa em si, perfeita e acabada e não o processo de imortalização em que o ser consiste, pelo que, visto desta perspectiva, o problema da mortalidade física desaparece. Na verdade, notava o pensador, o problema real é o de saber se alguma coisa ou algum ser poderia ser, se não fosse imortal, uma vez que ou nascemos com uma possibilidade de ser ou não nascemos. Mas se não nos é possível ser, como somos? E se deixamos de ser, como é possível termos sido? Assim, para Marinho, o problema da imortalidade reconduz-se ou subsume-se no pro- blema de conhecer e ser, pois pensar na imortalidade é pensar ainda na morte e a verda- deira especulação metafísica supõe a evidência interna das possibilidades infinitas de ser.21

7. Quanto ao problema de Deus, que comparece, amiúde, nos aforismos que Marinho publicou na revista coimbrã em 1931, será ainda objecto do longo artigo intitulado Reflexões sobre religião, Deus e mandamento, dado à estampa em 1935, e cuja segunda parte, redigida possivelmente três anos mais tarde, o filósofo nunca chegou a publicar22. Aí sustentava o pensador que tudo quanto de Deus sabemos radica na nossa possibili- dade divina, sendo tanto mais perfeito quanto realizarmos em nós a possibilidade de nos aproximarmos da divindade. No entanto, os homens, levados pela ambição de conceber Deus, “qualificam-no copiosamente”. Mas Deus é o ser, a nua unidade, a simples verda- de, o único necessário, pelo que, quanto mais se qualifica, menos se alcança. Assim, Deus, tal como não julga – porquanto o juízo não é fim mas processo para a compreensão do ser – também não conhece nem ama, embora possa ser objecto de incompleto conhecimento e imperfeito amor. Deste modo, para Marinho, o Deus das religiões, aquele que a nossa ambição de conceber leva a qualificar por atributos, não é mais do que uma divindade da zona intermédia do ser, existente mas não subsistente, entre o homem e o puro divino. Este, assim como não se define por atributos, por ser a extrema simplicidade e o concreto por excelência, também não se exprime por manda- mentos, tal como o homem, no que tem de mais íntimo, não se exprime em norma, lei ou decreto ou deles pode ser objecto. A ideia de mandamento, para o jovem especulativo portuense, radica no divino transitório, naquele a quem mantém o deficiente amor e o deficiente pensamento do homem. Pela mesma razão não pode atribuir-se a Deus a actividade ou juízo final, sendo, precisamente, o atribuir-lhe tal actividade ou tal juízo a fonte de que promanam o politeísmo e a idolatria, assim como é um estádio inferior de pensamento ou de vida religiosa aquele em que Deus se nos revela ainda e apenas como um demiurgo ou como um ser que julga, se compadece ou ama23.

21 “Diálogo sobre a imortalidade”. 22 Cfr. Jorge Croce Rivera, “Reflexões de José Marinho sobre o Cristianismo (1932-1938) ”, em Arquipé- lago, série Filosofia, nºs 2-3, 1991-92, pp. 187-243. 23 Cfr. A. Braz Teixeira, “Filosofia e religião no pensamento português contemporâneo”, em Ética, filosofia e religião, Évora, Pendor, 1997, pp. 66-73.

20 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Teixeira, António Braz _”Presença da Filosofia na ”Presença”, 2018, pp. 15-22.

8. Ao lado da de José Marinho, as mais importantes colaborações filosóficas com que contou a presença foram, sem dúvida, as de José Bacelar e de Delfim Santos. A do médico-filósofo insere-se na directa continuidade dos dois breves e densos vo- lumes de Revisão. Anotações à margem da vida quotidina, cuja publicação, pela pena de Régio, a revista coimbrã saudara com evidente admiração, realçando a invulgar intuição psicológica e a capacidade reflexiva que neles se revelavam. A primeira das colaborações de José Bacelar retomava o subtítulo dos seus volumes de estreia, intitulando-se, precisamente, 72 anotações à margem da vida quotidiana24, aparecendo as duas restantes, de bem menor extensão e significado, sob a designação de Aquário25, e sendo constituídas as três por aforismos ou breves reflexões sobre os mes- mos temas que haviam atraído a lúcida e penetrante observação psicológica do céptico e exigente moralista de Revisão, que, durante a segunda metade dos anos 30, redigiu um interessante conjunto de opúsculos e ensaios sobre algumas “questões disputadas” da época, em larga medida levantadas pela presença. Inscrevem-se aqui o problema da via- bilidade do romance português, o do significado e valor da polémica e do pedagogismo cultural, ou a questão das relações entre arte e política, temas e problemas que Bacelar abordou com serena lucidez e a mesma independência de espírito que caracterizava a sua obra aforística26.

9. A colaboração de Delfim Santos, que precedeu de um lustro a do futuro autor de Razão e absoluto, se anuncia já alguns dos rumos que definirão o rigoroso pensamento metafísico e antropológico do notável filósofo e forçado pedagogista, não deixa, tam- bém, de conter marcas de campanha democratista em que se empenhara, ao lado de Álvaro Ribeiro, Casais Monteiro, Pedro Veiga, Rodrigues de Freitas, António Alvim, Lobo Vilela, Domingos Monteiro, Joaquim Magalhães e outros mais da mesma geração. Partindo das concepções antropológicas fundadas na nova ontologia pluralista, o jo- vem e sério ensaísta, no texto Dialéctica totalista (1933) reflecte, criticamente, sobre as noções de liberdade e de igualdade. Assim, quanto à primeira, sustenta não ser ela algo de substancial ou de substantivo, que possa ser entendido ontologicamente e como realidade exterior ao homem, pois é dinamismo e esforço, acção total ou espírito, é uma conquista mais do que uma aquisição definitiva, pelo que o próprio espírito deve ser entendido mais como acto dinâmico do que como realidade estática. Daí que, por exemplo, como refere o pensador, liberdade de pensamento se lhe afigure expressão in- correcta e sem sentido, pois pensamento é afirmação de liberdade e nunca de qualquer coisa a que a liberdade seja exterior e mero veículo de formulação.

24 Nº 52, Julho 1938, pp. 5-8. 25 2ª série, nº 1, Novembro 1939, pp. 54-56 e nº2 Fevereiro 1940, pp. 125-126. 26 Realidade, nebulosidade e falsificação, 1937, Duas frentes: pedagogismo e universalismo, 1938, Polémica e abstenção, 1939, Da viabilidade do romance português de interesse universal, 1939 e Arte, política e liberdade (1939), 1941.

21 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Teixeira, António Braz _”Presença da Filosofia na ”Presença”, 2018, pp. 15-22.

Por seu turno, a noção de igualdade, em que se funda o conceito de indivíduo, não é mais do que o resultado da aplicação da lógica dos mecanismos ao mundo do homem, sendo absolutamente contraditória com os valores humanos. Com efeito, não há igual- dade essencial entre os homens, pelo que a democracia deveria entender-se não como o regime da igualdade mas como o da diversidade, no qual todos os homens têm igual- mente a liberdade de serem desiguais. Assim, em nome de uma nova concepção do homem liberta de cientismo oitocen- tista, defendia Delfim Santos a necessidade de aproximar a política da religião e não da ciência, de abandonar a lógica atomista e mecanicista que a ela presidiu durante largo período, e de atribuir ao novo democratismo uma missão cultural e espiritual, pondo a acção política ao serviço dos valores que definem o homem, a liberdade, a consciência, o espírito27.

10. Também no pensamento expresso na Introdução a uma estética pragmatista (1934), com que Manuel Maia Pinto colaborou na presença, é possível encontrar eco ou sinais de uma nova posição relativamente ao homem e às suas criações espirituais. No seu ensaio, sustentava Maia Pinto que, diversamente do que, em geral, se pensa, a arte ou o artista não busca o belo ou a emoção que se dão na natureza, nas suas formas ou manifestações, mas, pelo contrário, visa, unicamente, o que designa por uma “comunicação não-inteli- gível”, de carácter subjectivo ou consciencional, que permita tornar conscientes, sociais e colectivos, através de valores de comunicação, de símbolos, palavras e formas com conteúdo subjectivo, sentimentos que, até então, não hajam encontrado ainda maneira de exprimir-se ou cuja comunicação se apresentava muito difícil ou muito imprecisa.

11. Mais ambiciosa do que a de Maia Pinto era a intenção especulativa de António Eduardo Lobo Vilela, oculto sob os seus segundo nome e primeiro apelido, ao propor- -se construir uma “metafísica infinitista” ou um novo sistema filosófico, oInfinitismo, assente na afirmação de uma pretendida superioridade cognitiva da imaginação sobre a razão, a inteligência e demais faculdades humanas, apresentando-se como uma filosofia ultramoderna, cujo objectivo era “a assimilação plena da Verdade integral, absoluta mas humana, liberta de quaisquer dogmas da verdade divina e revelada”. A tentativa filosófica do moço ensaísta, se bem que inegavelmente interessante e en- genhosa, não deixava, contudo, de sacrificar demasiado ao paradoxo e a uma evidente vontade de ser (ou parecer) original e diferente, dificilmente conciliável com as mais sérias exigências da razão especulativa, a que se afirmava nos textos de José Marinho, Delfim Santos ou José Bacelar, figuras maiores da reflexão filosófica acolhida nas páginas da presença, como a obra posterior de cada um deles veio mostrar.

27 Cf. A. Braz Teixeira, Conceito e formas de democracia, op. cit., pp. 55-66.

22 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Dimas, Samuel _”O mistério da poesia na estética da inspiração e da expressão de João Gaspar Simões”, 2018, pp. 23-39.

O MISTÉRIO DA POESIA NA ESTÉTICA DA INSPIRAÇÃO E DA EXPRESSÃO DE JOÃO GASPAR SIMÕES

Samuel Dimas

RESUMO

A estética da inspiração e da expressão de João Gaspar Simões fundamenta-se na teoria do conhecimento intuitivo de Henry Bergson. O ensaísta português apresenta a distin- ção entre a poesia lírica pura e a poesia lírica intelectual. A primeira corresponde a uma expressão do estado de alma não motivado ou previsto. A segunda corresponde à procura consciente e voluntária de um ideal de beleza pré-concebido. A arte da poesia lírica pura é expressão inconsciente da emoção estética momentânea e revela a essência íntima e vital da pessoa, que é anterior às convenções culturais.

PALAVRAS CHAVE intuição, inspiração, expressão, poesia, emoção estética

ABSTRACT

The aesthetics of João Gaspar Simões is based on Henry Bergson’s theory of intuitive knowledge. The Portuguese essayist presents the distinction between pure lyric poetry and intellectual lyric poetry. The first corresponds to an expression of the unmotivated or predicted state of mind. The second corresponds to the conscious and voluntary search for an ideal of preconceived beauty. The art of pure lyric poetry is an unconscious expression of momentary aesthetic emotion and reveals the person’s inner and vital es- sence, which predates cultural conventions.

KEYWORDS

intuition, inspiration, expression, poetry, aesthetic emotion

23 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Dimas, Samuel _”O mistério da poesia na estética da inspiração e da expressão de João Gaspar Simões”, 2018, pp. 23-39.

INTRODUÇÃO: OPOSIÇÃO OU CONCILIAÇÃO ENTRE POESIA E FILOSOFIA, EMOÇÃO E RAZÃO?

Com este breve estudo pretendemos compreender o sentido da reflexão estética de João Gaspar Simões (1903-1987), fundador da revista Tríptico (1924-1925) com Branquinho da Fonseca e Vitorino Nemésio, em que colaboraram autores como Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, José Régio, Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, e fundador da revista Presença (1927-1940) que, dirigida por si e pelos companheiros fundadores da Tríptico a que mais tarde se juntaria Adolfo Casais Monteiro, desenvolveria um espírito de au- tonomia ideológica e pluralidade cultural que ia desde a arte, com Diogo de Macedo, José Régio e Casais Monteiro, à filosofia, com José Marinho, Eudoro de Sousa e Delfim Santos, desde o cinema, com Manuel de Oliveira e Casais Monteiro, à música, com Fernando Lopes Graça. Esta revista, definida comoFolha de arte e crítica, oferece uma vasta síntese literária que resulta das colaborações de autores oriundos do simbolismo coimbrão, do saudosismo portuense e do paulismo e futurismo lisboetas, com destaque para os nomes de António Nobre, António Patrício, Fernando Pessoa, João de Deus, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, António Botto, Camilo Pessanha, Carlos Queirós, Fernando Namora, Irene Lisboa, Jorge de Sena, Miguel Torga ou Raul Leal. No prefácio da obra O Mistério da Poesia, o ensaísta João Gaspar Simões afirma que o objetivo da sua obra é apresentar a génese ou o motivo da criação poética (Simões, 1931: VII-VIII). Como mote da sua pesquisa faz uma citação do Cardeal Newman que apresenta a distinção entre as ideias vivas e o puro raciocínio (Simões, 1931: X), remeten- do-nos para o clássico diferendo de Platão entre a arte inspirada e religiosa dos poetas e o labor racional e científico dos filósofos (Platão, 1987: 475). Diferendo também invocado na Presença por Adolfo Casais Monteiro que estabelece a contraposição entre a racionalidade, associada à filosofia, e a irracionalidade associada à criação artística (Monteiro, 1940: 112). Mas como ilustra o texto fundador da ontologia Ocidental, O Poema de Parménides, a poesia surge inicialmente relacionada ao Sagrado, como resultado de uma inspiração que funda toda a sabedoria e conhecimento do homem, desde o teogónico e cosmogónico, no encantamento mágico do vidente, ao teológico, na celebração religiosa do profeta, e ao histórico e científico no labor racional do sábio. Esta unidade do conhecimento na figura do poeta-profeta-sábio da tradição helénica é reclamada pelo filósofo no comum reconhecimento de que a poesia tem o poder de transformação da alma. Mas se no Fedro a poesia ainda é descrita como um dom divino que excede qualquer saber na formação do homem (Platão, 2009: 59), no Górgias e na República, Platão des- valoriza a verdade da mimésis poética, concebendo-a como ilusório processo irracional de imitação das aparências que obscurece a razão e perverte a hierarquia das potências da alma, impedindo a libertação das emoções e o acesso à verdade (Platão, 1987: 451-477).

24 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Dimas, Samuel _”O mistério da poesia na estética da inspiração e da expressão de João Gaspar Simões”, 2018, pp. 23-39.

No entanto, reconhecendo que a própria inteligibilidade dos textos platónicos se dá na dialética racional com recurso ao mito poético, Aristóteles recupera a noção de mi- mésis, já não como cópia ou reprodução do real natural, mas como apresentação do processo vivo e criativo (physis). A poesia é tematizada como arte ou techné que tem por objetivo a produção de uma obra distinta de quem a produz e, por isso, com um estatu- to ontológico inferior ao da práxis, cuja atividade é imanente ao sujeito, e ao da theoria, concebida como contemplação pura (Aristóteles, 1998: 13-16). Mas por outro lado, Aristóteles considera que na mimésis criadora, a poesia passa a ser considerada como o ato humano por excelência que transcende a subjetividade e, por isso, passa a ser mais filosófica e universal do que a História (Aristóteles, 1990: 115- 116). Pela narrativa o poeta tem a capacidade de viver e fazer viver o narrado, residindo aí a sua capacidade catártica que ao induzir o terror e a piedade purifica as paixões pela libertação dos impulsos e proporciona uma terapia dos conflitos psíquicos (Aristóteles, 1990: 121-122). Será com Plotino que a poiésis ascende a um estatuto ontológico superior, constituin- do-se como idêntica à pura interioridade da teoria (Plotino, 1985: 242-244) e será com Dante que assume verdadeira dignidade teológica e filosófica, constituindo-se como inspiração divina do Amor. Nesta linha, autores contemporâneos como Heidegger, Paul Ricoeur, Karl Rahner e José Enes apresentam o discurso analógico e metafórico da poe- sia como a linguagem que pertence ao plano trans-conceptual e transpredicativo da experiência humana e, por isso, a mais adequada para nomear o Sagrado e para dizer o Mistério do Ser que se revela e oculta na prévia experiência da verdade atemática ou antepredicativa (Enes,1990:130). Importa pois perguntar: em que termos concebe João Gaspar Simões a génese do pensar poético? No sentido de oposição entre racionalidade lógico-analítica e emoção vital intuitiva, como em Henri Bremond pela noção de poesia pura ou em Miguel de Unamuno pela noção de vitalismo (Unamuno,1945, p. 69), ou no sentido conciliador de racionalidade poética ou de lirismo metafísico, como em Leonardo Coimbra (Coimbra, 2009: 291) e em certos críticos de Gaspar Simões como o racionalista António Sérgio que defende a inter-relação entre atividade intelectual e sentimento? Podemos falar de uma poesia filosófica, como em Domingos Tarrozo (Tarrozo, 1883), ou de uma ra- zão poética como em G. Chiavacci (Chiavacci, 1947) e em Manuel Ferreira Patrício (Patrício, 1991: 220)?

O CARÁTER MISTÉRICO DA POESIA

No capítulo «O Mistério da Poesia» podemos encontrar as primeiras respostas de João Gaspar Simões para esta questão, quando procura explicar em que sentido se supõe que a poesia se realiza e se recebe misteriosamente. Recusando a perspetiva de que a razão se

25 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Dimas, Samuel _”O mistério da poesia na estética da inspiração e da expressão de João Gaspar Simões”, 2018, pp. 23-39.

basta a si mesma porque compreende tudo (Simões, 1931:4), o autor cita Paul Valéry para se referir aos limites da razão e ao fundo essencialmente misterioso da realidade que tudo antecede e se manifesta na poesia lírica: «O essencial é inacessível à vontade, domina a razão, sobrepõe-se-lhe, antecede-a. Sem um fundo essencial não intelectual nada seríamos mesmo» (Simões, 1931:5-6). Nesta resposta identificamos uma clara distinção entre as tendências vitais e instin- tivas, por um lado, e a racionalidade intelectual por outro, associando-se ao primeiro nível o fundo estrutural poético ou lírico do homem (Simões, 1931:6). Parece, pois, privilegiar o sentimento na origem do ato poético com aproximação deste à experiência mística. Mas poderemos nós conceber um interesse vital puro sem razão ou irredutível a esta, como também propõe Adolfo Casais Monteiro quando apresenta a essência da arte como irracionalidade acessível pela intuição, por contraposição com a racionalidade fi- losófica que se detém apenas na inteligibilidade da aparência ou da casca dessa realidade essencial não inteligível? A esta pergunta não podemos deixar de convocar para o diálogo António Braz Teixeira que, na linha do lirismo metafísico de Leonardo Coimbra, recusa a ideia de sensação pura e de razão pura e afirma que a razão não se garante a si mesma como órgão de conhecimento, mas pressupõe um ato prévio de crença na relação com o irracional de si mesma por excesso em suas formas de sensação, intuição, imaginação, sentimento, memória, crença e mistério (Teixeira, 2009: 86). Em distinção, por um lado, com o ra- cionalismo positivista e, por outro lado, com o intuicionismo de Bergson, que defendia a capacidade de um conhecimento adequado e perfeito da própria essência de Deus, desenvolve-se uma via intermédia de conciliação entre o pensar e o sentir, assente na correlação entre a apreensão intuitiva e a compreensão racional, pela ascensão ao discur- so analógico e simbólico. Ora parece ser a esta conclusão que chega João Gaspar Simões quando defende a necessidade de se criar um lirismo crítico que faça a unidade entre a força misteriosa fe- cundante e a reflexão sobre a origem e desenvolvimento dessa força vital, na procura de superação da dicotomia entre a adesão cega à atitude poética e a recusa acrítica da poesia por ser considerada de pura irracionalidade (Simões, 1931:8). Não basta dizer que a poesia é um mistério, mas é preciso compreender o porquê da sua existência e, nesse sentido, o autor descreve o itinerário da leitura do poema como a ascensão dialética de uma inicial tranquilidade racional, na convicção de uma compreensão do sentido lógico do pensamento inscrito nas suas orações sintaticamente perfeitas, para uma inquietante infelicidade racional pela falta de clareza e nitidez e pela ausência de um pensamento coerente e perfeito, exigindo a elevação da região familiar da realidade das ideias claras e distintas do mundo objetivo para a existência mais íntima da subjetividade pessoal no mundo irreal dos sonhos e do mistério: «Volto a ser eu, embora muito longe da feli- cidade quotidiana da minha razão. Experimento uma felicidade diferente: a felicidade

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dos sonhos, dos desmaios, dos grandes e fugazes momentos em que não analiso, não raciocino, não exijo lógica» (Simões, 1931:10).

A NECESSIDADE DE UMA RAZÃO POÉTICA PARA SE ACEDER AO ESTADO INOCENTE DA ALMA E À DIMENSÃO ESPIRITUAL DA REALIDADE

Esta felicidade diferente que só a poesia é capaz de proporcionar não é dada pela luz meridiana da razão diurna, mas sim pela luz crepuscular e auroral da razão noturna. Não deixa de ser uma experiência de valor gnosiológico e de encontro de sentido, mas a realidade que nos é dada conhecer não é a que se mostra de forma lógica e analítica, é a que se mostra de forma analógica e metafórica. Neste âmbito, Jesué Pinharanda Gomes, na mesma linha de Teixeira de Pascoaes e de Álvaro Ribeiro, associa ao primeiro plano a reflexão filosófica, que mediante a conceptualização e os juízos se constitui como a arte de conhecer a verdade, e associa ao segundo plano a poesia, que mediante a conceção simbólica e metafórica das proto-palavras se constitui como a arte de conhecer o belo e de criar o verosímil (Gomes, 2003: 255). Teixeira de Pascoaes afirma esta diferença de conhecimentos, considerando que a fi- losofia é escrava do rigor judicativo, da necessidade demonstrativa e da análise lógica, ao passo que a poesia é uma «ciência liberta» que apenas tem de obedecer ao pulsar vital da intuição (Pascoaes, 1993, 93). Mas Álvaro Ribeiro, sem anular a diferença entre o discurso poético e o discurso filosófico, defende a convergência sapiencial e existencial destes dois discursos, partilhando a perspetiva criacionista de que a filoso- fia não só se pode exprimir em discurso poético como este é o meio necessário para falar da realidade espiritual e amorosa de Deus que se imanentiza e se revela na uni- dade plural humana de corpo, ânima, espírito, imaginação, sentimento e razão, não se reduzindo nem à vida instintiva ou biológica nem à vida intelectiva e judicativa (Ribeiro, 1957: 251). Esta necessidade da poesia para que se possa conhecer o plano espiritual da realida- de que constitui a verdadeira essência do homem está presente na filosofia poética de Leonardo Coimbra e na poesia filosófica de Teixeira de Pascoaes, como está presente no lirismo crítico de João Gaspar Simões ao reconhecer que a leitura do poema revela a im- potência da inteligência racional para apreender o sentido íntimo do que é lido, exigindo uma outra inteligência de ordem sentimental que constitua a experiência vital de uma simpatia cósmica. Este arrebatamento proporcionado pela linguagem poética permite acedermos a uma região rara da nossa personalidade em que nos sentimos fecundos e originais em felicidade total pela compreensão da vida que anteriormente nos era vedada. O autor considera que nessa experiência poética, que não resulta de análise, de indução, de dedução ou de abstração, nos sentimos instintivamente como pura força da natureza

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e cada realidade aparece-nos numa forma que anteriormente era invisível: «A certeza científica, o conhecimento racional, afiguram-se nos frágeis, aparentes. Alguma coi- sa de inacessível há na vida que essas formas de conhecimento não nos transmitem. Experimentamos uma espécie de virgindade, de inocência» (Simões, 1931:12). Na sua reflexão sobre a atividade artística João Gaspar Simões fala da noção de ingenuidade es- tética, no sentido de virgindade espiritual ou estado edénico. Assim, afirma que o artista é ingénuo na medida em que age sem premeditação e sem preconceito na escuta natural da sua voz interior e na exclusiva submissão ao sentimento. Neste sentido, cita a obra Le Rire de Henry Bergson para reforçar a sua tese de que o artista é aquele que consegue libertar-se da vida convencional do quotidiano com desprendimento natural na procura dessa individualidade ainda não corrupta em estado de pureza ou inocência, que não é apenas técnica, mas também moral (Simões, 1929: 32-33). O filósofo francês defende que para se aceder ao estado íntimo e pessoal da alma, no que tem de individualidade e originalmente vivido, é necessário um afastamento da lin- guagem que fixa os sentimentos de forma impessoal. E adverte que não se trata do des- prendimento ou desinteresse que resulta do labor deliberado da reflexão filosófica, mas sim do desprendimento natural e inato na estrutura da consciência, o qual se manifesta através de uma maneira virginal de ver, ouvir e pensar (Bergson, 1991:100). Ignorando o sentido da futura noção hermenêutica de Gadamer acerca da inevitabilidade dos pre- conceitos legítimos inerentes à nossa condição cultural, o filósofo francês defende a necessidade da libertação dos preconceitos sociais que se interpõem entre o sentimento da alma pura e a realidade das coisas, cabendo à arte esse papel de visar a individualida- de do estado pessoal da alma: «Assim, seja pintura, escultura, poesia ou música, a arte não tem outro objetivo senão afastar os símbolos praticamente úteis, as generalidades convencional e socialmente aceites, por fim tudo o que nos marca a realidade, para nos pôr frente a frente com a própria realidade» (Bergson, 1991:101). Também Vergílio Ferreira, nesta linha, apresenta a necessidade da arte, por con- traposição com a filosofia e a ciência, para que seja possível a experiência do Ser no seu Excesso (Ferreira, 2013:92), que não se restringe à sua manifestação fenoménica, passível de objetivação, medição e quantificação, mas que contém algo de espiritual e indeterminado que é transcendente ao domínio físico e material do mundo aparente. O caráter mistérico da arte poética deve-se ao facto de ter a capacidade de presentifi- car na imanência do sujeito, através de um sentimento de desconcertante liberdade, o inesgotável e transcendente mistério da própria realidade (Ferreira, 2013:102), que Leonardo Coimbra também carateriza de Excesso, por considerar que é presença do Amor e manifestação da Vida infinita de Deus (Coimbra, 2012: 69). É nesta capacidade de inato desinteresse em receber as coisas na sua pureza original que reside a sinceridade do artista, no esforço por afastar o véu que existe entre o ho- mem e a sua própria consciência, entre a alma e a verdadeira realidade. Não é possível

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um afastamento total e um acesso absoluto à individualidade e pura originalidade dos seres, mas em relação ao senso comum, o véu do artista e do poeta é mais leve e quase transparente (Bergson, 1991: 98). Mas João Gaspar Simões considera que no caso do artista a sinceridade é um mistério, porque só o é na ignorância de o ser, ou seja, situa-se no plano do inconsciente porque não se procura nem se descobre por um simples ato de vontade, mas impõe-se e insinua-se (Simões, 1930 a: 2).

A ARTE DA POESIA LÍRICA COMO EXPRESSÃO DA INSPIRAÇÃO DA EMOÇÃO ESTÉTICA QUE SE DÁ DE FORMA IMPREVISTA E MOMENTÂNEA

João Gaspar Simões recebe de Goethe a ideia da poesia lírica como poesia da cir- cunstância enquanto indefinível anímico no sentido de momentâneo e imprevisto, por contraposição com o premeditado, preconcebido e preexistente da poesia lírica do in- definível intelectual de Mallarmé, para quem o poema era uma realização premeditada de formas verbais que sugeriam o estado indefinível da inteligência (Simões, 1931: 36). A primeira poesia corresponde a uma expressão do estado de alma ou momento cósmico que nos possui, que não motivámos, não quisemos nem previmos, enquanto a segunda corresponde a uma expressão de um estado intelectual ou circunstância cerebral prevista e motivada:

No circunstancial emocional o poema revela sensações e emoções, cuja correspondência se obtinha pela forma mais simples e espontânea. No circunstancial intelectual, essa cor- respondência obtém-se pelo emprego de palavras — hieróglifos, chama-lhes Mallarmé — susceptíveis de precipitar silêncios, vazios, «o não dito», tudo o que está na inteligência e não são ideias nem sensações nem representações, mas o seu movimento indefinível. (Simões, 1931: 36)

Assim, define a noção de circunstância de Goethe como «instante inacessível na sua realidade interior» (Simões,1931:25) para dizer que o poema desponta no aquém da conceção quando se libertam na alma do poeta, pelo acaso da sua circunstância incon- cebível, as forças instintivas da sua personalidade. Nesse momento de revelação incons- ciente daquilo que de mais íntimo existe na sua alma, o poeta está entregue a forças cósmicas e, embora a sua arte possa ser valorizada de forma acidental de acordo com conceitos filosóficos e enquadramentos culturais, a verdadeira admiração está diante dessa força vital ou essência íntima indefinível que é nova e única (Simões, 1931: 28). O ensaísta usa o termo «comoção estética» para caraterizar este instante de inspiração que tem raiz num estremecimento existencial e que só é transmissível ou comunicável nas obras dos homens que são artistas, isto é, que são capazes de transmitir de forma

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sincera aquilo que há neles de essencialmente vivo (Simões, 1931: 29). Esta associação entre o essencial indefinível e a realidade vital oculta, que se revela no discurso poético da linguagem do paradoxo e do excesso e que se oculta no discurso lógico-racional da linguagem abstrata da conceptualização, domina o pensamento hermenêutico-fe- nomenológico contemporâneo de autores como Heidegger, Merleau-Ponty (Ferreira, 1978: 11; 2012: 54), Michel Henry e Vergílio Ferreira, para quem o sagrado e a arte pertencem à invisibilidade da realidade interior e afetiva da vida e não à visibilidade da realidade exterior do mundo (Ferreira, 2012: 57). De modo distinto da forma lógica que se preocupa com a universalidade das rela- ções, a arte é uma forma intuitiva de conhecimento que pertence à própria indivi- dualidade do artista. Tem como objetivo exprimir a emoção estética, que significa a recriação do mundo a partir da própria individualidade, constituindo-se como uma transposição da vida, isto é, das sensações, emoções e inteligência que o artista tem dela (Guimarães, 2002: 15-16). Por distinção com a poesia simbolista de Mallarmé, que Gaspar Simões associa à metafísica alemã de Hegel, a terminologia crítica usada pelo ensaísta português recorre a categorias da filosofia existencial e fenomenológica posterior para situar a génese da poesia nesse momento prévio e instantâneo da ex- periência atemática e antepredicativa do mistério do Ser em que «reside a verdadeira essência da Vida» (Simões, 1931: 37). Para esta filosofia da vida, o sagrado não se opõe diante de nós como um objeto visível do mundo, mas manifesta-se como essência fenomenal, como imanência invisível ou afetividade, a qual não pode ser dita pelo pensamento científico que procura a obje- tividade das coisas, mas pode de ser dita na emoção e expressa na arte, permanecendo oculta na sua própria revelação, porque não há conceitos ou representações intelectuais que a possam definir e circunscrever (Henry, 2003: 552). Da mesma maneira, também a realidade mais essencial do homem que pertence a esse plano misterioso e divino da realidade não se desvela na representação categorial da inteligência, mas sim nessa expe- riência primordial vital que se dá no plano da afetividade e que, como defende Vergílio Ferreira, tem na arte o meio mais adequado para a exprimir: «A relação do homem com a Vida é primordialmente uma relação afetiva, e a arte é a realização ou presentificação no objeto artístico dessa afectividade» (Ferreira, 2011: 205). Numa certa influência do freudismo e por distinção com o Modernismo, a poesia da Presença parece dar mais importância à inspiração da emoção poética naquele que escreve do que à expressão dessa emoção na alteridade da obra ou do texto. A inspira- ção, enquanto estado emotivo de íntima e misteriosa iluminação, leva a que o artista apreenda o seu objeto de forma imprecisa, mas plena. Dada de forma gratuita, esta intuição estética precede a criação, mas é um momento exultante que tem continui- dade nesse trabalho em que pelos recursos se procura consciencializar essa originária intuição ainda brumosa. Assim, em rigor, a inspiração já encerra uma vontade de

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expressão, constituindo-se como um conhecimento implícito que precede a explicita- ção do verbo. Mas a criação, que por um lado valoriza a experiência da inspiração, por outro lado, também fica sempre como tentativa insatisfeita de expressar o inefável que foi intuído sem análise conceptual. Por isso, a análise da criação artística aponta para uma preferência do eu e do sujeito em relação à obra, o que levará José Régio a dar particular atenção à expressão, distin- guindo a expressão artística da expressão vital ou das pequenas emoções que não são ainda arte (Ferreira, 2011:17). Mas esta atitude tem justificação, porque ao contrário das teorizações materialistas, como aquelas que se vão desenvolver a parir dos anos 40 com o neo-realismo de influência marxista, Régio defende que não é possível admitir a independência dos termos expresso e expressão, conteúdo e forma, ideia e estilo, inspiração e técnica, sendo falsa toda a arte que não seja expressão da individualidade vital e original do artista (Ferreira, 2011: 18). De forma análoga, Gaspar Simões também identifica na poesia lírica do essencial indefinível uma maior valorização da inspiração em relação à expressão, porque é na alma do poeta que acontece o momento de conjugação das forças ocultas subjetivas que provocam a comoção estética e é dela que parte a transposição ou realização ex- pressiva dessa essência anímica naquilo que o autor acredita ser uma fusão indissolúvel entre o expresso e a expressão, o simbolizado e o símbolo: «Antes de cristalizar, o fluxo de essências desprendido da alma do poeta já existia na tensão cristalizável, de tal modo que o poema vence o temporal – é eterno. A sua existência antecede-o e prece- de-o – na subconsciência do poeta» (Simões, 1931:31). A adjetivação do poema como realidade eterna na alma, parece pressupor uma conceção divina e eterna dessa mesma alma e isso explica a importância dada ao momento da inspiração ou comoção estética e poética, pois o poema na sua forma é apenas uma expressão material imperfeita e limitada dessa realidade vital essencial. No ato de improvisação parecem confundir-se inspiração e criação, pelo que Gaspar Simões atribui a este momento a primazia tão presente na espontaneidade da arte infantil e popular e na espontaneidade romântica da poesia lírica pura. Através da valorização da intuição, é dada uma grande importância à recondução do leitor ao momento da criação ou emoção primordial do poeta. O ritmo, a rima, a sin- taxe e a lógica do poema são meios para exprimirem estados ou movimentos espirituais e imagens sensoriais da individualidade psicológica num estado de virgindade e inocên- cia. Antes de se converterem no verbo e na lógica das palavras e das orações do poema, há uma individualidade psicológica que experimenta essas sensações, ideias, represen- tações, lembranças emoções e volições em movimentos espirituais, estados psicológicos e imagens sensoriais. No poema dá-se a cristalização destes estados e o que era fluído passou a sólido, permanecendo latente nos cristais das palavras e aguardando a aproxi- mação do calor da força espiritual do leitor para que derretam.

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Para que se dê a fusão entre a realidade espiritual do leitor e o fluido da realidade psicológica cristalizada nas palavras do poema, é preciso que o encontro não se dê apenas com categorias intelectuais, mas que se dê também pela adesão da indivi- dualidade pessoal ao poema. De acordo com um olhar apenas intelectual o poema não passa de uma peça literária formal bem ou mal construída e, como tal, não proporcionará o encontro imediato com a realidade espiritual latente na aparência formal (Simões, 1931: 14-15). As palavras do ritmo poético têm como única função transportar o leitor das emoções quotidianas do mundo material para a realidade imaterial dessa felicidade instintiva e sentimental da vida num estado de total arre- batamento para a harmonia da simpatia cósmica.

A INTELEÇÃO COMO FORMA DE CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONCEPTUAL E LÓGICO-ANALÍTICO DA MOBILIDADE DO REAL POR CONTRAPOSIÇÃO COM A INTUIÇÃO COMO FORMA DE CONHECIMENTO METAFÍSICO TRANS-CONCEPTUAL E ANALÓGICO DO CARÁTER DINÂMICO E ESPIRITUAL DA REALIDADE VITAL EM DEVIR

Assim, somos levados a identificar este estado instintivo e essencial com o irraciona- lismo da pura visão intuitiva e divinatória de Bergson, descrito por Leonardo Coimbra como um «conhecimento por vibração simpática» (Coimbra, 2009: 47), e que se apro- xima do sentido místico neoplatónico e religioso de Schopenhauer, ao qual o filósofo criacionista opõe o sentido mistérico de visão aproximativa ou assimptótica (visão ginás- tica), porque considera não ser possível ao homem um conhecimento total e absoluto do Ser. Na crítica ao intuicionismo de Bergson, que considera impuro, por também ele exigir o esforço da inteligência intelectiva, considera que a contemplação do Mistério do Ser e da essência da alma humana por parte desse outro olhar da visão ginástica é ainda uma visão da razão intuitiva que vê na luz intelectual (Coimbra, 2004: 281) e que, de forma mistérica, para além de lógico-conceptual também é analógico-poética, comuni- cando não apenas as relações intelectivas, mas também as relações afetivas, imaginativas e espirituais ou místicas. O próprio João Gaspar Simões, em diálogo com Raul Brandão, associa a comoção estética do poeta na comunicação com a essência da sua personalidade, que é sua verdadeira vida, ao êxtase da revelação mística do homem na comunicação com Deus (Simões, 1931:19). Ao contrário da prosa que realiza de forma retrospetiva, cons- titutiva e analítica a experiência emocional, sensível ou intelectual, a poesia é uma revelação ou criação pura, porque é uma realização presente, imediata e instantânea dessas experiências e, por isso, o ensaísta considera fazer sentido aproximá-la da men- talidade primitiva que operava através de uma configuração da realidade que ignora

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as experiências pretéritas dos outros homens pelo que os seus conhecimentos não pressupõem qualquer base científica:

Como o primitivo, o poeta despreza as aparências, as causas físicas, imediatas, dum fenóme- no; tende a descobrir em tudo um princípio transcendente, místico, espiritual. Exactamente por nos seus momentos de comunicação direta com a sua mais profunda realidade, voltar a ser a criatura que vê o mundo pela primeira vez. (Simões, 1931:21)

Assim, na recusa panteísta de uma natureza cujos movimentos sejam a agitação de um deus cósmico, a realidade exterior do mundo é concebida como uma aparên- cia, por contraposição com a única realidade que é a verdade interior e subjetiva do homem. A beleza é uma expressão da vida, a qual pressupõe vontade mais ou menos rudimentar, pelo que só pode ser criada e sentida pelo homem. Por isso a beleza é con- vencional, subjetiva e dinâmica, não sendo objeto de explicação ou de justificação: «A beleza é expressão; a expressão, o afloramento na matéria de um desejo, de uma dor, de um pressentimento. Eis como a natureza não pode ser bela. Para o ser precisava de expri- mir alguma coisa de vivo» (Simões, 1932:5). Por isso, o elemento verdadeiramente belo de uma obra de arte é aquele que revela a parte incomunicável ou indizível da subjeti- vidade do artista e, como tal, é tão mais universal e profunda quanto mais diretamente e integralmente exprimir a sua individualidade única. Para que isso aconteça, o artista apenas precisa de dizer como se sente nessa maneira pessoal e original de estar. Se sente necessidade de explicar como seria útil, prático e vantajoso estar no mundo, então passa a ser moralista, economista ou político (Simões, 1932:8). O artista é aquele que deixa libertar o que tem em si de incomunicável e para essa revelação socorre-se da intuição e do amor, num inconformismo com a passividade do real que significa uma forma edénica de ver, ouvir e pensar, expressa na obra de arte. Como indica Bergson, a intuição simples é o instinto consciente que permite ao homem conhecer a realidade através da sua interioridade espiritual na libertação das condições de tempo e lugar (Bergson, 1966: 121). A arte abstrata, por oposição à arte de imitação da natureza, expressa esta emoção interior e resulta da negação da realidade exterior (Simões, 1938: 338). José Carlos Pereira identifica na estética de João Gaspar Simões esta perspetiva defendida por Bergson, na sua tese da intuição filosófica, sobre a arte como evidenciação do espírito, através de um modo original de ver, ouvir e pensar, e so- bre o olhar ingénuo e incorrupto que permite ao homem penetrar na sua interioridade e dessa maneira aproximar-se da verdadeira realidade (Pereira, 2011: 257).

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CONCLUSÃO: A POESIA COMO MANIFESTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA PRIMORDIAL DA ESSÊNCIA VITAL DO HOMEM E DO MISTÉRIO DO SER

De acordo com o analisado, podemos identificar ao longo da obra de João Gaspar Simões uma posição crítica sobre a poesia lírica que estabelece uma distinção entre duas perspetivas fundamentais: a) lirismo puro ou lirismo psicológico, que corresponde a uma criação espontânea que revela de forma inconsciente e imediata a beleza oculta da emoção estética na essência virgem e vital da alma; b) lirismo intelectual ou lirismo de estilo, que corresponde à procura consciente e voluntária de um ideal de beleza pré-con- cebido na circunstância da convenção a priori ou quotidiana. Nesta segunda tendência, o lirismo que é simultaneamente objeto de conhecimento e de sentimento produz, ao mes- mo tempo, uma sensação objetiva e subjetiva, para usarmos a linguagem de Kant, que considerava que a beleza era do estrito plano subjetivo e não se dirigia ao conhecimento (Simões, 1930 b: 9-11). A primeira tendência, identificada por João Gaspar Simões em Jean-Jacques Rosseau, Valery e em João de Deus, advém da filosofia puramente intuicionista e vitalista presente em autores como Bergson e Miguel de Unanumo, na clara oposição entre intuição e razão, sentimento e pensamento, espontaneidade e premeditação, inconsciente e cons- ciente, vida e inteleção. Nesta visão, os momentos poéticos da experiência interior que são os poemas, apresentam-se como cristais inocentes de palavras momentâneas e únicas em que a alma se deixou imobilizar quando aspirava a um qualquer ideal inconsciente de beleza. A poesia surge no passeio instintivo entre as árvores e as flores e no convívio do casual e do imprevisto. A segunda tendência, identificada pelo ensaísta em Flaubert, Leconte de Lisle e Eugénio de Castro, corresponde à estética que concebe a beleza num movimento de procura e realização consciente. Este lirismo de estilo constrói-se pela procura e pela conquista, como o labor científico de um químico no seu laboratório. A liberdade dos instantâneos momentos da alma expressos na poesia surge a posteriori pelo exercício da vontade intelectual na obediência formal às exigências do espaço e da técnica. Mas a segunda tendência desdobra-se naquilo a que podemos classificar de terceira perspetiva e que se carateriza pela genuína procura da harmonia entre o sentimento e o pensamento, o lirismo puro e o lirismo de estilo, tal como em Dostoievski, que o ensaísta considera não submeter a criação à exclusiva gratuidade de um fluxo inspirador e invo- luntário sem dar o devido valor à seleção intelectiva (Simões, 1927 a: 1), bem como em Ortega Y Gasset que recusa o vitalismo de autores como Simmel, Spencer, Unamuno e Bergson, por considerar que essa posição vitalista defende a impotência da análise ra- cional na compreensão da realidade vivente que estaria apenas acessível à pura intuição (Gasset, 2005: 717).

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Para além destes, João Gaspar Simões identifica ainda a obra de Marcel Proust nesta última tendência de relação entre o conhecimento místico intuitivo, provocado pela vibração que certos factos e aspetos da realidade comunicam na alma, e o conheci- mento intelectual, que tende a compreender a invasão incoerente dessas caraterísticas imponderáveis e fluídicas ou inefáveis. Ao conhecimento imediato e instantâneo da intuição bergsoniana, que provém de um choque involuntário, obscuro e inconsciente produzido pelo domínio metafísico da realidade, Proust acrescenta a necessidade do conhecimento de uma compreensão intelectual que procura decompor e dissociar essa harmonia insinuada no espírito (Simões, 1929: 91-93). Assim, também podemos situar nesta segunda corrente o lirismo metafísico de Leonardo Coimbra, que concilia a visão ginástica da intuição com a visão aginástica da razão, ou a inteligência senciente de Xavier Zubiri, que capta o real na singularidade do seu movimento teleológico histórico-cultural. No mesmo sentido se encontra o racio-vitalismo de Ortega no reconhecimento de que o entendimento não pode conti- nuar infinitamente o raciocínio e que ao chegar aos ingredientes últimos, a atividade lógica e analítica termina em quietude intuitiva e contemplativa de ordem irracional (Gasset, 2005: 720). A razão encontra em si mesma um fundo irracional opaco à sua luz analítica na qual se desvela o caráter individual da realidade autêntica. A razão pura lógico-abstrata e físico-matemática do racionalismo deve ser substituída, não pelo puro sentimento vital, mas por uma «razão vital», narrativa e histórica que atenda à individualidade e ao devir do real (Gasset, 2005: 720, 593). Nesta perspetiva, a vida tem valor em si mesma, não sendo preciso fundamentá-la numa realidade transcen- dente ou religiosa e parece ser esta também a posição de João Gaspar Simões quando afirma que é desnecessário falar em Deus porque a revelação mística do poeta é o ato de comunicar com a sua própria essencialidade vital (Simões, 1931: 19). Embora o ensaísta português revele uma notória simpatia pelo modelo romântico do lirismo puro, não deixa de partilhar os valores enunciados por estes filósofos que, a partir da circunstância histórico-cultural do labor critico e racional, procuram a inteligibilidade da prévia experiência atemática ou antepredicativa em que se dá o encontro com o mais íntimo da pessoa e com o mistério do Ser. Nesse sentido, por um lado, João Gaspar Simões cita Ortega Y Gasset para apresentar a necessidade de um regresso ao eu virginal de fundo insubornável (Simões, 1927 b: 7), de pura sinceridade e olhar não contaminado, que pode ser encontrado na região obscura e profunda da alma e que Pio Baroja chama de eu profundo por distinção com o eu convencional (Simões, 1927 b: 8). Mas, por outro lado, critica o próprio Ortega por esquecer Bergson e por não considerar a arte representativa de artistas que não são intelectualistas, acrescentando que esse é o problema dos filósofos quando se apro- ximam de questões que escapam às classificações intelectivas. No mais profundo de cada grande obra de arte há uma pura essência gerada na intimidade pessoal do

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artista que as vitaliza e eterniza e que não pode ser captada pela racionalidade lógica (Simões, 1929: 130). Só os homens de uma peculiar energia ou peculiar inocência poderão encontrar esse eu profundo insubornável pela criação poética que consiste num regresso em tensão da atividade quotidiana do espírito dialético e lógico para a voz obscura que existe dentro da própria lucidez cerebral. Do plano da atividade do pensamento ou do juízo reflexi- vo, que realiza o discernimento das representações interessadas (captação do objeto ou conceptualização), para o plano do sentimento das representações desinteressadas (dor ou prazer provocados por esse objeto). A poesia deixa de ser apenas um pensamento ou um jogo lógico de forças abstratas, constituindo-se como uma expressão de forças espontâneas e desinteressadas, porque algo de subjetivo, de impensado e de sentido, isto é, algo de experimentado de forma dolorosa ou satisfatória, de forma angustiada ou esperançosa, triste ou alegre, algo de particular e universal, se realizou numa forma: «“O que em mim sente está pensado” não passa afinal, da fórmula dolorosa de todo o es- pírito trabalhado pelo conhecimento, pela memória, pela ciência» (Simões, 1927 b:11). A esta poesia, que estabelece a aliança entre a razão, a intuição, o mito e o mistério, João Gaspar Simões chama de poesia filosófica, em que o homem lamenta a queda da sua inocência primitiva, do seu estado original de que não se lembra, mas que não deve ser concebido no mero sentido psicológico e freudiano, não deve ser concebido no sen- tido de um repúdio da cultura e de um regresso à pré-história da consciência humana (Simões, 1927 c:4), também não deve ser concebido no sentido mítico de um regresso ao estado edénico anterior à expulsão do paraíso, mas deve ser entendido no sentido metafísico-fenomenológico de regresso à sua condição espiritual de mistério vital, que permite ver a realidade com o espanto e admiração de quem a vê no encanto da primei- ra vez: «Seja ou não Deus, esse tom misterioso a que só o poeta ascende — é o centro mesma da vida» (Simões, 1931:102). Assim, a partir do exposto, podemos concluir que não se deve considerar uma con- traposição entre o sentimento poético vital e a racionalidade, mas sim uma unidade naquilo que podemos chamar de uma razão senciente, comovida, cordial e mistérica, capaz de apreender a realidade analógica do mistério do Ser nas suas relações parado- xais de sensível e inteligível, matéria e espírito, transcendência e imanência, finito e infinito. Por contraposição com aquilo que é perfeitamente claro e distinto em resul- tado da razão lógico-analítica, a realidade presente e imediata da Vida, que a todo o instante renasce, é mistério e só a criação poética da razão analógico-mistérica o pode manifestar (Simões, 1931:22). Entendemos, pois, que através da linguagem metafórica do paradoxo, a razão poética manifesta a experiência pré-categorial do Mistério de Ser que, na sua verdade analógica, antecede e transcendente o discurso predicativo da razão lógico-analítica do pensar con- ceptual. A visão poética, que constitui o sentido mais originário da atividade pensante,

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expressa a experiência primordial da íntima unidade de todas as formas do Ser, na teia das suas relações inexauríveis. Através da imaginação da liberdade criadora, constitutiva de novas relações simbólicas por meio da linguagem trans-conceptual (Ribeiro, 2004: 231), dá-se o testemunho da invisibilidade do Ser na sua fonte originária que excede a representação da objetividade e da subjetividade da visibilidade do Mundo. Ascendendo da mera imanência, em que se situam João Gaspar Simões e Ortega, o mistério da poesia é capaz de revelar a realidade essencial e vital do homem e com isso revelar o amor do Criador nas suas criaturas, como presença simbólica da transcendência na imanência e da eternidade na temporalidade sem que de modo panteísta se identifique com as for- mas limitadas e imperfeitas desta. A poesia é o mistério do Amor.

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O HIPERESTETA – DA VERTIGEM À PRESENÇA PASSANDO PELO FUTURISMO

Rui Lopo

Contributo para a reintegração de Raul Leal na história do pensamento estético português

Ao José Carlos Pereira

RESUMO

Neste ensaio procuramos demonstrar como, desde 1913, e a publicação de A Liberdade Transcendente, Raul Leal procura definir as escolas filosóficas e as tendências estéticas a partir daquilo que as excede, a hiperestesia, movimento de anulação da unilateralidade de cada uma e de afirmação do que a todas propicia e transcende: a ânsia tendencial. Neste suposto, procurará assumir o Futurismo nascente na sua relatividade, aceitando o seu ímpeto prospectivo e anti-passadista, mas procurando alargá-lo, complementando- -o com uma postura neo-religiosa, de tipo paracletiano, e efectuando uma demolidora crítica do especialismo, anunciando a derrocada da técnica e uma Idade Histórica trans- figuradora, em que um novo homem universal pode ser todas as coisas, assumindo-se sinónimo do Universo Inteiro, mediante a Luxúria Divina, novos cultos estéticos, uma Arte feita da fusão amplificante de todas as artes, ciências e posicionamentos filosóficos. Por fim, e na secção Notas de Investigação desta revista, examinaremos o carteio de Leal para José Régio e a sua colaboração na Presença, mostrando como aí se reiteram as suas teses estéticas essenciais.

PALAVRAS-CHAVE

Hiperestética, Futurismo, crítica da técnica, Luxúria Divina, Paracletianismo, Orpheu, Vertiginismo, Presença

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ABSTRACT

In this paper we try to show that since 1913 (edition of The Transcendent Freedom), Raul Leal intends to define Philosophical Schools and Aesthetic trends from something defined as superior and excedent: Hyperesthetics. This consists in a movement of su- ppression of the unilaterality of each school or trend and the assertion of what ables and transcends them: tendential anxiety. Thus assuming, Raul Leal will also claim Futurism in its relativity, retaining and valueing from it its struggle against the past, but seeking to enlarge it with a neo-religious proposal: the paracletianism and a paradoxical criti- cism towards technics and specialism. He announces the dawn of a New Age in which a renewed universal man will be able to assume the entire Universe in himself through divine Lust, new aesthetic cults and an art made of the sublime fusion of all the arts, sciences and philosophies. In the conclusion we explore the letters from Raul Leal to José Régio and his colaboration in the modernist journal Presença. There we will find the synthesis of all his main aesthetical thesis.

KEYWORDS

Hyperesthetics, Futurism, Technics criticism, Divine Luxury, Paracletianism, Orpheu, Vertiginism, Presença.

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I - A ESTÉTICA A PARTIR DAQUILO QUE A EXCEDE

Este estudo visa apresentar a singularidade filosófica da Obra de Raul Leal (1886-1964), colaborador das revistas associadas ao chamado modernismo, de Orpheu e Centauro ao Portugal Futurista, da Athena à Contemporânea, Sudoeste e Presença. Procurar-se-á demons- trar o peculiar posicionamento teórico de Leal, entre 1913 e 1936, no que às questões da Arte e da Estética dizem respeito, buscando preparar, antecipar e fundamentar filosofica- mente a renovação artística e literária que anunciava: O que nele nos surge como novo. Mas o que é o Novo? é fazer o novo? é fazer de novo? é repetir e aperfeiçoar? é nova a Primavera? É novo o que a Primavera traz, sem que esta seja nova? é novo fazer irromper o novo? ou apenas criar as suas condições de possibilidade? ou interromper um fluxo espontâneo e mecânico de repetição para que o novo possa surgir? o novo é o que surge quando o velho se interrompe ou é preciso aboli-lo? o novo é reciclado do velho? ou só é novo quando se desvia o rio? o novo irrompe livremente quando o velho se acaba ou é escondido, ou é algo que tem de ser criado? cada novo implica um apocalipse? há tijolos já feitos para criar o novo ou terão de ser novos os tijolos do novo? Este conjunto de questões inspira e preside à investigação que de seguida iremos dar conta. Em Liberdade Transcendente, obra publicada em 1913, anuncia Raul Leal o advento próximo do Hiperesteta. O tom messiânico com que o faz suscita-nos imediata apro- ximação à conhecida previsão efectuada por Fernando Pessoa da vinda iminente do Supra-Camões, feita nas páginas de A Águia, órgão da Renascença Portuguesa, em 1912. Os prefixos aumentativos utilizados, Hiper e Super, coincidem em mais do que num co- mum cultivo estilístico, retórico e semântico da hipérbole. Coincidem numa partilhada percepção da excepcionalidade do momento, tido como inaugural de um novo tempo, de uma renovação literária, e, a partir desta, uma renascença cultural portuguesa, ou pela cultura portuguesa propiciada e suscitada. Coincidem ainda por promanarem de autores que se colocam num lugar preditivo, anunciador, de clave profética. Coincidem, ainda, por ambos os autores parecerem estar a lançar uma profecia auto-realizável, isto é, um anúncio cuja possibilidade de concretização depende de si mesmos. Ou, melhor: os próprios preditores coincidiriam com a forma e o conteúdo da profecia. Pessoa tem sido identificado com o Supra-Camões que anuncia, e não é difícil identificar Leal com o Hiperesteta, cujo advento se propõe preparar. Coincidem ainda os dois anúncios em algo de mais fundo: é que a natureza da Superação ou Hiperação depende de o novo artista não só ultrapassar aquilo que era a concepção habitual e dominante do artista até então, mas fazê-lo rompendo e superando a definição até aí vigente de Arte, nela incluindo novos elementos filosóficos, questionando a natureza da expressão ou repre- sentação do real, propondo, assim, nova síntese entre as duas linguagens auroralmente cindidas na cultura ocidental, a poesia, e a filosofia; a Arte, excedendo e questionando cada vez mais o seu elemento de criação ou representação, e a Filosofia como progressiva

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desvelação da verdade possível numa sublimadora atitude de atenção e cultivo ao que em cada momento a excede, supera e transcende. Afirma Pessoa ser concluível (…) o próximo aparecer de um supra-Camões na nossa ter- ra. (…) Porque a corrente literária, como vimos, precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Nesse sentido, a renovação literária a que se estaria a assistir seria completa e absolutamente o princípio de uma grande corrente literária, das que precedem as grandes épocas criadoras das grandes nações de que a civilização é filha. A tese de que a li- teratura antecipa ou prepara as grandes transformações nacionais e epocais é sublinhada pelo próprio autor. Segue-se a instigação alentante: Que o mal e o pouco do presente nos não deprimam nem iludam: são eles que confirmam o nosso raciocínio.Segundo a lógica profética, os sinais de renovação confirmariam a era nova a haver, mas a ausência de sinais também. Nos limites da razão, o anúncio e o encorajamento reforçam-se:

Tenhamos a coragem de ir para aquela louca alegria que vem das bandas para onde o raciocínio nos leva! Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgi- mento assombroso. O ponto de luz até onde essa renascença nos deve levar, não se pode dizer neste breve estudo; desacompanhada de um raciocínio confirmativo, essa previsão pareceria um lúcido sonho de louco. Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal, lógica, num futuro mais glorioso do que a ima- ginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e acção, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma das nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã1.

Nesta argumentação, as glórias literárias antecipariam as grandezas nacionais e estas dariam corpo às épocas extraordinárias que erguem a civilização e o humano às suas mais impensadas e sublimes possibilidades, hoje apenas antevistas por sonhos loucos, ainda que lúcidos, por uma crença que se tornará lógica, palavras que parecem ecoar a previsão de Sampaio Bruno de que a fé será teorema. Vejamos agora em que palavras Leal acompanha este desígnio, dando conta de uma comunhão de ideias que na amizade e na produção teórica dos dois se tornará paten- te, mas nesta data tão recuada ainda não era nem havia sido assinalada2. Optámos neste estudo por apresentar citações algo longas não só pela raridade das edições e a dificuldade de encontrar os textos de Raul Leal que aqui transcrevemos, mas também pela singularidade radical da linguagem aqui usada, que estatui o exercício exegético

1 A Águia, 2ª série, nº 4. Porto, Abril, 1912. 2 Veja-se o nosso estudo dedicado às intensas colaborações e profundas convergências entre os dois autores: Rui Lopo, “Raul Leal e Fernando Pessoa, um sublimado furor diabolicamente divino”, in Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 3, Primavera 2013, pp. 1‑27.

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da paráfrase sobre texto lealino em violenta simplificação e os tentames explicativos e hermenêuticos pretensamente desocultantes em algo de impositivamente projectivo, quando não arbitrário:

Elevar a humanidade toda à espiritualidade lusitana e transcendentemente integralizar bem essa espiritualidade convulsiva, cujo integralismo, cujo transcendentalismo é ape- nas pressentido e não transcendentemente sentido pelos portugueses mais espiritualistas, elevar assim todo o Homem ao Transcendental Vertígico, à Vertigem Pura, é o destino sublime que a mim próprio impus!... E assim, prepararei o advento do Hiperesteta que a convulsão Pura, Abstracta, Transcendente se sentirá, sentindo-se então a Vertigem, pre- pararei enfim, a mais sublime morte para a Humanidade, a Morte transcendentemente Vertígica, preparando-a então, para mim!... O génio de Kant e Nietzsche transcendentalizado pelo espírito de Schumann elevado à Liberdade Pura dos portugueses animará o Futuro que se há-de abrir para a Humanidade!...3

Os conceitos de Raul Leal são árduos e a sua leitura contraria as expectativas de coerên- cia imediata e de clareza expositiva a que a tradição filosófica nos convoca. Retenhamos deste breve trecho a noção de transcendência (e seus correlatos e derivados: transcenden- tal, transcendentalizar, transcendentalismo, transcendentemente, transcendentalização), de Convulsão, de Vertigem. Propõe-se que a humanidade pode ser elevada à Vertigem, atra- vés da espiritualidade convulsiva lusitana, hoje apenas pressentida pelos portugueses mais espiritualistas. Afirma-se ainda o advento do Hiperesteta, mais adiante se anuncia esca- tologicamente a sublime Morte Vertígica, entendida como transfiguração da humanidade actual, palingenesia, mediante a acção daquele que se anuncia como seu preparador. Reencontraremos este sentido de urgência nos manifestos e ultimatos que estruturam teoricamente as apresentações públicas do modernismo e futurismo. O aparente luso- centrismo patente neste excerto – enformado por paradoxos e articulações lógicas deli- beradamente truncadas – deve ser matizado pela paradoxal evocação de Kant, Nietzsche e Schumann, apresentados como intermediários da acção portuguesa no mundo. Apesar de estas palavras visarem concluir apoteoticamente a obra inaugural Liberdade Transcendente, recuemos um pouco para a primeira ocorrência do conceito de hipereste- ta e de hiperestética, definidos negativamente, por contraste com todas as posições filo- sófico-estéticas incompletas, parcelares e por isso inaptas à revelação da Vertigem. Raul Leal tem da história da filosofia, da arte e da literatura um singular posicionamento, valorizando os momentos em que mais as teorizações se aproximam do que considera ser a infinita correlacionação, mais que dialéctica, con-fusional, entre sujeito e objecto.

3 Raul Leal, A Liberdade Transcendente, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1913, p. 130.

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Esse nexo visto como processualmente infindo, contraditório e multidimensional surge a Leal como absoluta imbricação, hibridização, consusbtanciação e servirá de critério de aferição do acerto das escolas e movimentos que a tradição nos foi legando. Assim, Leal tanto convoca, num exercício de leveza e distância (ou, nietzschianamente falando, cinismo e grandeza) os pensadores da gnoseologia, da ontologia, da política ou da estéti- ca, porque mais que um objecto, o que em seu Vertiginismo se persegue é a assumpção e intensidade daquele nexo percepcionado como Força, Actividade e Convulsão. Nesse sentido, Leibniz, pensador de paradoxos, Kant como propugnador do método transcen- dental e Hegel de uma lógica dialéctica seriam excepções a valorizar entre a geral galeria de pensadores vistos como dogmatizantes e fixistas. Leal constata como na perquirição de um transcendental por si redefinido as tradicionais soluções idealistas e espiritualistas tendem a debilitar o que designa como espírito da Força. Assim se assume como herdeiro do impulso divinizador e espiritualizador dessa Força que na filosofia transcendental estrita se teria antecipado, para, todavia, depois se abrandar. Simultaneamente, como correlato filosófico reactivo destes tentames idealistas que em cada reapresentação da Força a diminuem e refractam, surge em toda a sua enormidade impetuosa o materia- lismo moderno, que, todavia, a cada passo, se torna revivido e redefinido em tons en- redantes de pastosidade brutal, como sucede com as tendências egotistas do empirismo e hedonismo vulgares. Daí que o poderoso conceito lealino de hiperestética implique a anulação de todas estas atitudes redutoramente parcelares, a assumpção, ainda que labiríntica, do que em todas elas haja de Vertigem e uma sua superação infinitizado- ra. A desconcertante com-fusão (muito mais que conciliação) de contrários que Leal propõe passa pela adopção do espiritualismo que apontara o excesso irredutível das coisas, sem cair no deprimente misticismo, tendencialmente vicioso e humilhante, que as distancia e imobiliza, e pela simultânea vivência do materialismo e do egotismo, como condições de um outro espiritualismo mais amplo, ou pela vivência desse espiritualismo como condição de um outro egotismo superior, isto é: hiperestético. Alcançar algo é, na Liberdade Transcendente, ser esse Algo, devir esse algo ou percepcionar-se esse algo após todo o trabalho de desvelação teorética e incorporação artística total: impõe-se a Vertigem quando se é a Vertigem. Ser-se a Vertigem é percepcioná-la, percepcionar-se enquanto tal é sê-la fora de toda a percepção parcelar possível. Até porque, nos mo- mentos decisivos da argumentação, quando parece que já todas as possibilidades lógicas as mais diversas, contraditórias ou paralelas, se foram articulando e exaurindo, Leal relembra que tudo isto se passa no campo fictício em que ficticiamente me coloco. Há pois um exercício de ficcionalização da realidade ínsito mesmo à mais analítica das posturas racionais. Contrapolarmente, toda a história da filosofia é descoberta ela própria como uma narrativa ficcional, epopeia, inconclusa novela, tragédia ou drama:

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E o transcendentalismo devia apenas espiritualizar a Força, divinizá-la, fazendo-a sair da sua pastosidade brutal […] e tornando assim, absolutamente fácil, absolutamente livre a expan- são da Força, assim transcendentalizada, em lugar de a abrandar devia elevá-la ao Infinito. Todos aqueles que até hoje mais se têm aproximado do Transcendental […] todos os que se aproximam da espiritualidade das cousas como que se perdem, enfraquecendo o espírito da Força. O Transcendental é demasiadamente alto para eles, eles são uns pobres Ícaros..., é por isso que muitas vezes caem num deprimente misticismo em lugar de se elevarem a um egotis- mo superior, hiperestético. Os egotistas têm sempre um fundo materialista, brutal e só os místicos têm conseguido elevar-se ao espiritualismo mas viciosamente, humilhantemente. É tempo de nos elevarmos ao espiritualismo através do egotismo puro pois só assim a Força, a Convulsão, a verdadeira Convulsão Transcendente se poderá impor... Somos a Força, o infi- nito! Somos Deus… Toda a Ânsia Transcendente e transcendentemente labiríntica e trans- cendentemente convulsiva, vertígica está em nós! Somos a Vertigem4...

Complementarmente, num outro excerto desta obra tão importante como precoce, ocorre uma terceira conceptualização da hiperestesia, que ainda mais matiza a leitura messianizante do excerto profético que acima citámos. A nova estética que se insinua e anuncia implica a adopção íntima, simultânea, de todas as relações sensoriais, tomando, cada uma delas separadamente e todas elas combinadas, como sublimes; todas as pers- pectivas em suas possibilidades e combinações, superando qualquer relação subjectiva ou objectiva, de ordem psicológica ou moral5. A esta compreensão estética do ser como uma explosão heteronímica, a cada momento, simultaneamente reconhecida e recusada, Leal denomina como Vertigem, transcensora do definido e do indefinido:

4 Idem, pp. 86-87. 5 A teorização lealina do hiperesteta coincide fortemente com a definição de estética como vivência su- prema, apenas por raros alcançável, cujos graus inferiores consistiriam em atitudes existenciais limitadas, correlativas de posturas espirituais parcelares: a política, a religião e a vida social. Veja-se, em 5 de Abril de 1915, as páginas de O Jornal, nº2, onde assinava Fernando Pessoa a coluna Crónicas da Vida que Passa (colaboração literária abruptamente interrompida, por uma sua diatribe): Quando é que despertaremos para a justa noção de que política, religião e vida social são apenas graus inferiores e plebeus da estética – a estética dos que ainda a não podem ter? Só quando uma humanidade livre dos preconceitos da sinceridade e coerência tiver acostumado as suas sensações a viverem independentemente, se poderá conseguir qualquer coisa de beleza, elegância e serenidade na vida. Coligido em Crónicas da Vida que Passa, ed. de Pedro Sepúlveda, Lisboa, Ática-Babel, 2011 p.36. Recordemos a convergente apologia da insinceridade que Pessoa desenvolve entre muitos outros passos, por exemplo, no Ultimatum de Álvaro de Campos, publicado no Portugal Futurista, em que se abole o dogma da personalidade, da individualidade e do objectivismo concluindo-se que o mais perfeito é o mais incoerente consigo próprio.

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Tudo pode ser olhado sob as formas mais variadas que das formas mais variadas se po- dem combinar, e todas essas formas e todas essas combinações coexistem eternamente numa transcendentalização absoluta. Todo esse complicadíssimo debate transcendente tem ex- pressão, é sublime e sublime é cada aspecto que é afinal todos os aspectos, tudo! Aquele que se compenetrar intimamente de toda essa Existência Transcendente considero eu neste momento um verdadeiro esteta, ou antes, um hiperesteta, que se elevará acima de todos os sentimentos definidos como os sentimentos morais e em geral de todos os fenómenos psico- lógicos, sentindo no seu íntimo, na sua essência toda a transcendente vertigem convulsiva da Existência! Nessa Existência não há o definido nem o indefinido que seria a Inexistência, há a transcendência dum e doutro que é a Vertigem!6

Qualquer leitura apressadamente teológica dos conceitos lealinos é desmentida por um texto que se recusa a reduzir ou reconduzir todos os seus novos conceitos – Vertigem, Actividade, Transcendência, Convulsão – ao Deus tradicionalmente definido. Por outro lado, numa formulação ironicamente condicional, diviniza esses conceitos, sintetizan- do-os na sublimidade amoral só permitida ao Supremo Esteta:

Se Deus fosse uma Entidade, uma Substância e não a Existência Transcendente, o Sublime, Deus seria o Supremo Esteta que acima de todos os atributos antropomórficos estaria co- locado! Não seria bom nem mau, seria um Ser Amoral e admiraria a sua criação como Esteta, só como Esteta! Ter criado o bem e o mal para ambos serem necessários ao Sublime! Moralmente ser-lhe-iam indiferentes, um e outro, E só assim poderia permitir o mal sem se tornar imperfeito! O mal é a expressão da luta, da convulsão e a Existência não seria sublime se não fosse convulsiva.7

Leal previne-nos constantemente contra a tendência para a fixação em qualquer mo- mento objectivo ou subjectivo da descrição dos processos de conhecimento, e avaliação moral, mas também de criação ou fruição artística ou estética do mundo, conquanto ela se configure a partir de situações espácio-temporalmente circunscritas:

Assim, a admiração autodestrói-se e todo o definido e todo o extenso, tudo que não parece transcendental se autodestrói.8

6 Idem, pp. 64-65. 7 Idem, p. 78. 8 Idem, p. 79.

48 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Lopo, Rui _”O Hiperesteta – Da Vertigem à Presença passando pelo Futurismo”, 2018, pp. 41-71.

Apesar de parecer pensar o seu tempo e até prever e anunciar uma nova era, Leal recusa o historicismo, sugerindo que as próprias épocas históricas correspondem a momentos e tendências da mente humana em todos os momentos sempre-presentes. Desta forma, tanto se sugere a historicidade dos dados da consciência, como con- trapolarmente se esvazia a história, reconduzindo-a constantemente a esses mesmos dados da consciência ou atitudes mentais:

A Renascença subjectivou o helenismo barbarizando-o um pouco, o Romantismo enobre- ceu, purificou o germanismo medievo, objectivando-o! Assim, estimulado pelo neoclassicis- mo, o Romantismo purificou o passionismo um tanto viciosamente, um tanto à custa da sua subjectividade relativa!...9

Procurando aplicar os seus princípios teóricos à sua própria criação literária, em Orpheu 2, 1915, Raul Leal publica a novela vertígica "Atelier" onde descreve uma cres- cente tensão (que deve ser entendida como real e simbólica, agónica e especulativa) en- tre o pintor Luar (nome formado pela inversão das letras do seu nome) e o seu modelo. Aqui se esclarece que a Arte se dá em diversos planos de realidade, desde a Ânsia de ideal ao mesmo Ideal, tornando a vida expressão da Arte, assumindo-a como busca de um Indefinido que vertiginiza a existência e impele a criação artística ao reconhecimento da sua crescente inconclusão:

Pois bem, o indefinido a que na arte nós aspiramos, essa ânsia de ideal que mais do que o ideal para nós vale, essa ânsia, esse desejo infinito e jamais satisfeito deve encher a nossa vida que a mais alta expressão se tornará assim, da arte pura!... // É vertiginosa a Existência e espiritual, transcendente é a vertigem dela!10

Em 1916 Raul Leal publica nas páginas da revista Centauro “A Aventura dum Satyro ou a Morte de Adónis”. Trata-se de um dos seus contos reflexivos mais ambiciosos, onde se revela uma teogonia nova que visa sincretizar a mitologia grega, germânica e cristã, mostrando a história do ocidente como sua manifestação. Aí se introduz o importante conceito de dinamismo para dar conta da impossibilidade de deter e fixar o processo do real e o processo descritivo do real:

9 Idem, p. 28. 10 Orpheu 2, p 54.

49 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Lopo, Rui _”O Hiperesteta – Da Vertigem à Presença passando pelo Futurismo”, 2018, pp. 41-71.

Quando o indefinido é vertiginoso como o que se exprime no dinamismo, sem dúvida é sublime, hiperestético.11

O desejo, a mesma ânsia de ideal que em Atelier se apresentava ao pintor Luar e que na obra teórica se definira como Vertigem, ressurge aqui desdobrada em potências arquetí- picas: as épocas históricas antes referidas ressurgem como figuras mitológicas. O mesmo desejo arcaico se desenrola num dinamismo imarcescível, que já pré-continha a fusão de técnicas, tendências e modalidades conscienciais em que consistirá a arte que o presente anuncia, a arte do hiperesteta:

E é o Espírito que Walhala, que Wotan pressente!... Infinitamente poderoso, belo e sublime será Wotan, e sê-lo-á porque assim o deseja, porque a sua ânsia tendencial apenas exprime a fatal fusão futura!

É assim que concluímos que cada escola estética histórica em si considerada só adquire o seu máximo sentido quando é percepcionada (em Vertigem) a partir daquilo que a excede: a arcaica ânsia tendencial dinâmica que a suscitou ou a hiperestesia futura que a contém e compreenderá em fatal fusão. Em textos não publicados em vida, datáveis do período de Orpheu e Centauro, Pessoa parece dialogar com Leal:

O dynamismo coloca o ponto de partida da sua artificialização da sensibilidade no mundo externo, no objecto a descrever ou a cantar, seja qual for. Ora como a condição fundamental do mundo externo é a impermanência, a força em contínua acção, o Dynamismo interpreta tudo como fugitivo, de passagem.12

Noutro breve apontamento Pessoa define vertiginismo, interseccionismo e sensacionismo não como escolas, mas como modos de apresentar as várias dimensões ou aspectos do seu pensamento; seu, leiamos: o pensamento partilhado por si e por Leal:

O vertiginismo e o interseccionismo excluem todas as outras escolas e theorias. O sensacionis- mo inclui todas, mas, aceitando-as todas, só não acceita de cada uma a pretensão a ser a única. / O abstraccionismo, analyse dynamica da Realidade (…) / A Natureza (…) intra-existência de uma cousa em todas as outras, a coexistência transposta de uma cousa com as outras todas.13

11 Centauro, p. 51. 12 Teresa Rita Lopes (org.), Pessoa Inédito §136, p.261, Lisboa, Livros Horizonte, 1993. 13 Idem, Pessoa Inédito §137, p.262.

50 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Lopo, Rui _”O Hiperesteta – Da Vertigem à Presença passando pelo Futurismo”, 2018, pp. 41-71.

Recusando que os artistas de Orpheu possam ser todos conjuntamente agrupáveis numa escola, tendência, opinião ou ismo afirma que os artistas de Orpheu pertencem cada um á eschola da sua individualidade. Nesse sentido, o próprio futurismo deveria ser utilizado com extrema prudência:

O termo “futurista” que designa uma eschola litteraria e artistica possivelmente legitima, mas, em todo o caso, com normas estreitas e perfeitamente definidas, não é applicavel ao conjunc- to dos artistas de Orpheu, nem, até, a qualquer d’elles individualmente, ressalvado o caso do pintor Guilherme de Santa-Rita, e lamentáveis episódios de José de Almada-Negreiros.14

II - O FUTURISMO A PARTIR DAQUILO QUE O EXCEDE

É tema que nos continua a suscitar regresso e reinterpretação o facto de as páginas de Portugal Futurista, de 191715, acolherem quase só manifestos e ultimatos, num tom destrutivo ou reconstrutivo inseparável da hecatombe europeia em curso. Na revista surge a colagem, por Bettencourt-Rebello, de excertos traduzidos de forte pendor pro- gramático dos mestres futuristas, Boccioni, Carrá, e Marinetti, a republicação do cha- mado Manifesto dos Pintores Futuristas, de Boccioni, Carrá, Russolo, Balla e Severini, o Manifesto Music-Hall, de Marinetti, de 1913, o Manifesto Futurista da Luxúria, de Valentine de Saint-Point, o Ultimatum futurista de Almada Negreiros, o Ultimatum de Álvaro de Campos; e, de Raul Leal, O Abstraccionismo Futurista – Divagação ultra- filosófica-Vertigem a propósito da obra genial de Santa Rita Pintor, “Abstracção Congenial Intuitiva (Matéria-Força)”, suprema realização do Futurismo. Este texto radicaliza o ar- tigo inicial, de Bettencourt-Rebelo, que erige Santa-Rita de forma meridiana como o grande iniciador do movimento futurista em Portugal. Santa Rita Pintor, como Fradique Mendes, surge-nos como um heterónimo colec- tivo. Mais do que a reelaboração que dele faz Mário de Sá Carneiro, como Gervásio Vila-Nova em Confissão de Lúcio, é Bettencourt-Rebelo e Raul Leal que o estatuem como verdadeiro introdutor do futurismo em Portugal. Mais do que blague ou exage- ro quanto à importância de Santa-Rita, sublinhamos o exercício de ficcionalização de uma pessoa existente, não com vista ao seu prestígio ou à sua imortalização pessoal,

14 Idem, §138, p. 262. 15 Para enquadramento geral do tema, cf. José Carlos Pereira, “O Futurismo na Literatura portuguesa: Orpheu e Portugal Futurista”, pp. 97-110 de As artes visuais e as outras artes. As primeiras vanguardas – Actas das Conferências de Ciências da Arte, Grupo de Ciências e Teorias da Arte, Lisboa, FBAUL, 2007. Veja-se ainda, de Manuela Parreira da Silva, “Raul Leal, o filósofo “futurista” de Orpheu” in Revista Estranhar Pessoa / N.º 2, out. 2015, pp. 110-119.

51 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Lopo, Rui _”O Hiperesteta – Da Vertigem à Presença passando pelo Futurismo”, 2018, pp. 41-71.

mas como prática de despersonalização, partindo estes autores de uma concepção metafísica extrema da Arte e do Artista, nele valorizam mais a potência que a con- sumação, mais o que ele possa vir a ser do que o que ele execute, mais a sua atitude artística do que os artefactos que produza. Daí a importância da publicação da sua enorme fotografia nas páginas da revista. O manifesto tem apenas quatro parágrafos consistindo o primeiro numa mui- to breve e assertiva declaração donde a argumentação subsequente se desenrolará: Santa Rita Pintor concebeu em síntese a realização integral de toda a teoria futurista sobre a Vida! A utilização retórica do exclamativo não nos deve impedir de reconhe- cer a sua função tética e a sua alegação apodíctica. Júlio Dantas havia sido estatuído em pretexto lógico negativo da afirmação futurista por Almada Negreiros no seu manifesto inserido em Orpheu. Isto é, o desenvolvimento das posições futuristas desse autor é suscitado em reacção, resposta e contraponto a um autor circunscrito e delimitado como seu antagonista. Por seu turno, Francisco Levita16 aglutinará Dantas-Almada para demonstrar que um acto de oposição sempre participa daquilo a que se opõe, nem que seja pela situação, inscrição ou adesão a um terreno co- municacional comum. Desse modo, o ponto de partida de Levita é a afirmação de que a missão do futurismo seria dizer o Novo, denunciando e dispensando o exercício de reac- ção ou contraposição (a que Almada procedera), modos inconscientes, involuntários e frustes de dizer e proclamar o Novo por que se anseia. Aglutinar Dantas-Almada redun- da assim num pretexto neutro, numa contraposição cujos termos se anulam: porventura por isso o projecto de Levita estatui-se como aporia e manifesta-se em não se manifestar. Santa Rita é um pretexto e um ponto de partida português para a constituição de uma modulação portuguesa do futurismo ou de um futurismo autenticamente nacional. Santa Rita é autor escasso, sabemo-lo hoje e já o suspeitariam Leal, Pessoa e Sá-Carneiro, como lemos nas correspondências, mas Leal apresenta-o como um sintético que concebera a realização integral de toda a teoria futurista sobre a vida. Consideramos este denso, desconcertante texto de duas páginas, que se apresenta como uma recensão e uma interpretação do trabalho plástico de Santa-Rita, como um manifesto futurista, cuja importância cultural e filosófica ainda não foi suficiente- mente aquilatada, tendo sido grandemente ignorado nas leituras de conjunto que ao modernismo e ao Futurismo Português têm sido dedicadas. Procuraremos sublinhar a sua ambição especulativa e explicitar os seus objectivos programáticos até aqui de- satendidos. Dedicamo-nos aqui a uma tentativa de anotação de tipo exegética como

16 Cf. Rita Marnoto, “A Obra de Francisco Levita, Um Futurismo Inconcluso” in Estudos Italianos em Portugal nº51-52, de 1988-1990, pp.145-162 (há separata) e Idem, Francisco Levita – Negreiros-Dantas: Uma página para a História da Literatura Nacional, Porto, Fenda, 2009.

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momento metodologicamente indispensável ao seu aclaramento conceptual e à situa- ção hermenêutica dos seus elementos significantes17. Haveria que situá-lo no conjunto das posições futuristas, considerando-o em sua unidade e diversidade interna, mas também no plano específico das obras de Raul Leal, assinalando como alguns dos seus conteúdos fundamentais constituem originais ideias-força que antecedem e excedem o futurismo em sentido estrito, isto é, meramente entendido como movimento artís- tico e literário ou tendência estética mais ou menos grupal-geracional, prosseguindo actuantes ao longo das décadas seguintes. Após uma breve afirmação inicial, os três parágrafos que se seguem são longos e quase irrespiráveis na sua profusão de hífenes, na sua sintaxe abstrusa, na contracção das ora- ções e na pontuação dificultante. Não é absurdo supor que o estonteante ritmo formal do texto corresponde ao seu conteúdo, que afirma a ritmicidade convulsiva e vertiginosa da realidade. A escrita denota assim, em sua toada ofegante, a essência ontológica do que se pretende descrever. Um real que pudesse ser dito com ponderada, meridiana e lenta elaboração não seria o real que aqui se quer descrever. O objectivo do manifesto é desabridamente complexo, procurando explicitar uma teoria sobre o ser, apresentando-se assim como uma inesperada ontologia no contexto das discussões futuristas europeias: a relatividade pura em que tudo se dá é o fundo ontológico que possibilita a definição da vida como desenrolamento18 de puras rela- ções-distinções, entidade paradoxal em unificação sempre hifenizada. O que haverá de comum entre as noções de relação e distinção neste contexto para as hifenizar? Isto é: tanto naquilo em que as coisas se relacionam como naquilo em que se distinguem, elas promanam da mesma relatividade subjacente, palco vazio, lugar de possibilidade de todas as coisas: os contrastes não são em si: dão-se. Desenrolam-se como actividade e não como ser, como desdobramento de (uma) relatividade, a qual é inconcebível na sua onticidade embora seja artisticamente sugestionável. Há no texto três tipos de hifenização denotando três tipos de aglutinação de concei- tos ou três modos de imbricação de noções, em hífen, travessão e ligaturas inferiores: -, – ou . A função argumentativa destes três sinais não é claramente explicitada, o que aumenta a densidade do texto tornando-o críptico até ao limite da inteligibilidade, o que por sua vez desmente paradoxalmente as exigências retóricas de clareza que o género manifesto em que se insere suporia.

17 Nesse viso, apresentamos em anexo uma tentativa de tradução do texto na íntegra como contributo para afrontamento futuro deste labirinto. 18 No original, déroulement, que não nos parece poder ser traduzido como desenvolvimento ou desdobra- mento, em primeiro lugar porque desenrolamento mais sugere o cariz cíclico ou circulatório da visão lealina. Além disso, num segundo manifesto futurista de Leal de que abaixo nos ocuparemos, “A Derrocada da Técnica”, veremos como esse mesmo vocábulo português ocorre operativamente accionado.

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Já os negritos, itálicos e as maiúsculas são usados como modo de destaque de certas palavras sem que possamos compreender por completo o seu manejo. Isto permite vá- rias combinações desconcertantes (itálicos mais negrito; redondo mais negrito; hifenizado mais negrito; etc.), como que absurdizando as escolhas e destaques possíveis, próprios do estilo assertivo, argumentativo e por isso hierarquizador do real. Isto dá-se num texto que assume a impossibilidade filosófica de o fazer, assumindo um relativismo tanto mais radical quanto radica numa concepção que podemos aproximar do idealismo absoluto: isto é, como se pode afirmar a relatividade de todas as coisas, quando se designou o Universo como Eu? Por outro lado, a imobilidade sugerida pela assumida visão do cariz fictício de todas as coisas também é inviabilizada pelo próprio acto voluntarioso futurista e pelo constante apelo à realização artística. Por indiscernir conteúdo e forma, recuemos momentaneamente à análise dos aspectos formais do texto: notemos a utilização de negrito nas terminações dos verbos. Por exemplo: contrastiser. Por um lado, está-se em coerência com a filo- sofia do movimento que preside ao texto (e a todo o vertiginismo), destacando a terminação do verbo, justamente conjugado no infinitivo, modo por excelência representativo da denotação da possibilidade do movimento em geral. Por outro, não nos parece forçado assinalar que o autor está a forçar a língua francesa – em que o texto foi redigido – a revelar uma palavra portuguesa: a terminação daquele verbo é afinal o verbo ser, objecto por excelência do esforço especulativo de Leal. Esta nossa leitura reforça-se por no verbo rapporter, que vertemos por relacionar, o mesmo negrito desvelar o verbo ter. O texto é escrito em francês por impera- tivo universalista e convicção cosmopolita, mas partiu de um pretexto português e parece pretender nacionalizar o futurismo ou hibridizar, se não as suas culturas nacionais, pelo menos as línguas em que se expressa. Regressando ao título, repensemos agora a utilização de futurista como adjectivo para o abstraccionismo. Como entender o abstraccionismo futurista? É como se futurista apontasse aqui para um tipo ou modo específico de abstraccionismo subja- cente ou prévio. O subtítulo é: Divagação ultrafilosófica hifenizada com Vertigem. Ora, uma divagação é algo de a-metódico e deambulante. O exercício filosófico clássico implica o seu contrário. A continuação do sub-título encerra uma terceira antítese: “Abstracção (congenial) intuitiva. Deixemos por agora o congenial e cen- tremo-nos na abstracção que é por definição imprópria das faculdades intuitivas. Mais uma vez Leal nos coloca perante um paradoxo. Se estamos em divagação não estaríamos em terreno filosófico. Se estamos em abstracção não estaríamos em plano intuitivo, mas racional. E se o futurismo é impossível de definir como realizativo (sendo antes i-realizativo ou des-realizador do ser e das suas definições substancialistas e ontificantes habituais-vigis) como é que esse paradoxo constitui a sua suprema realização?

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O futurismo de Leal pode assim classificar-se como um paradoxismo lógico: visão diádica do ser, contraditória, dicotomizante cuja resolução não é explicitada, o que se ilustra pela aglutinação através de hifenização de conceitos dificilmente conciliáveis: como real-irreal e relações-distinções, todas estas díades se manifestam como suspensões e contrastes, os quais em última instância se desvelam como Vertigem.

Por tudo isto, permitimo-nos concluir que, neste sentido, o manifesto de Leal não decorre do futurismo prévio ou subjacente. Ele reconhece apenas o que nele haja de afim ao que já vinha propondo desde A Liberdade Transcendente. Neste sentido, por mais longe que Santa-Rita e o seu futurismo fossem, estariam ainda apenas preparando e contribuindo parcelarmente para o advento do vertiginismo:

Ele não sai desta vida, o processo relativista surge-lhe como processo Matéria-Força que no plano físico exprime bem o definir-indefinir—Vertigem do Contrástico onde se dá em não— Vertigem alguma coisa de concreto, e no entanto ele vê, sente que o que há de inexpressão, de Vazio neste processo é mesmo de um outro plano, é mesmo Abstracção em si —Vertigem que se dá então, segundo Santa Rita Pintor, através do processo todo ele físico de Matéria- Força, através do processo de relatividade física concebido pelo genial pintor no seu espirito sintético. Deste modo Santa Rita Pintor faz com que o futurismo dê o máximo que pode dar no plano que lhe é próprio, um passo mais e cairia no Vertiginismo concebendo então per- feitamente e já não um pouco viciosamente o concreto-em-abstracto—Vertigem em que não há nada de físico. Santa Rita Pintor é um futurista extremo, o seu génio é a quinta-essência do GÉNIO FUTURISTA!

Quando o futurismo é recebido por Pessoa e Leal, não é acolhido a partir do vazio, como uma escola a que se aderisse apagando ou esquecendo tudo o que o antecede. Pelo contrário, ele é reconhecido como um elemento entre outros, convergente ou integrável nas suas teorizações originais prévias como o Vertiginismo, que o excdederia. Pessoa parece classificar de Interseccionismo esta atitude, comum aos de Orpheu:

Partindo em parte do simbolismo, em parte do saudosismo português, um pouco também, sem dúvida, do cubismo e do futurismo, esta corrente consegue, porém, realizar uma novi- dade, e através das várias modalidades apresentadas pelos seus diversos poetas e prosadores, pouca relação parece ter com as correntes de que parte […] A princípio o que mais estranho parece é o modo-de-expressão dos novos poetas e prosadores portugueses, que, quebrando com todas as normas tradicionais, estão criando um novo modo-de-expressão.19

19 Texto E3 14(4)-3, Apud Fernando Cabral Martins, O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Ed. Estampa, col. Imprensa universitária, 1994, p. 156.

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Já nos textos da Nova Poesia Portuguesa, publicados na Águia, acima referidos, apon- tam-se três elementos como formadores do arcaboiço espiritual das novas expressões: O Vago, a subtileza e a complexidade. Podemos fazer corresponder estas três categorias ao simbolismo, ao saudosismo e ao cubo-futurismo. Assumindo todas os movimentos prévios como contexto e não como escolas, Pessoa distingue o que seja ocasional do que seja essencial, a letra do espírito:

Descendemos de três movimentos mais antigos – o simbolismo francês, o panteísmo trans- cendental português e a miscelânea de coisas contraditórias e sem sentido de que o futu- rismo, o cubismo e outras correntes afins são expressão ocasional, embora, para ser exacto, descendamos mais do espírito do que da letra desses movimentos20.

Ousamos sugerir que há de comum aos vários futurismos21 uma enorme revolta com alguns traços passadistas persistentes no seu tempo: uma religião que ignora e condena o homem total; um humanismo que ignora os efeitos da tecnologia; uma cultura sepa- rada da vida social; uma arte em urgente questionamento do conceito de representação. Nos manifestos e ultimatos do Portugal Futurista encontra-se uma urgência de inseparar a cisão entre vida e cultura, entre teatro e não-teatro, entre fantasia e quotidiano. Para toda a vida ser obra de arte, toda a arte tem de ser vital. Não por acaso, os que ao futu- rismo aderiram ou dele se alimentaram procuraram cultivar a arte dramática. Almada que actuou, representou e escreveu dramas escreve o seu famoso manifesto a propósito de (e contra) um dramaturgo consensual. Mas a controversa apresentação pública do futurismo, dos futurismos ou de diversos aspectos deste movimento que em momentos

20 Idem p. 156 e ss. 21 A problematização da pluralidade dos futurismos parte do reconhecimento da funda ruptura aberta, o que leva alguns a historiar o futurismo como inconcluso por parecer que, mais do que uma corrente ou es- cola, movimento ou grupo, ele se assumira como rasgão, clareira, abertura onde muito se veio a propiciar, a dar lugar, possibilitar, manifestar, representar. O surrealismo absorve partes centrais do contributo futurista e não é de apropriação que aqui se fala mas de um mesmo reconhecimento do que nela haja de aberto e futurante, para que sua nova etapa ou manifestação surreal o possa também assumir como sua. Outra histo- riação do fenómeno tem insistido no legado, nos desdobramentos e ressonâncias, aqui e ali ainda assumidas como explícitas influências, no sentido clássico do termo: Lembremos o imprescindível trabalho de Jean Pierre de Villers, de 1975, Futurism and the Arts: A Bibliography (1959-1973) que compulsa para uma quin- zena de anos cerca de duas mil entradas. Quinzena que se inicia dez lustros passados sobre a auroral procla- mação marinetiana de 1909! Veja-se ainda Zbiegniew Folejewski, Futurism and its place in the development of modern poetry. A comparative Study and Anthology, Otawa, University of Otawa Press, 1980. Este estudo insere-se numa perspectiva, que é a nossa, que assume o futurismo no seu contexto internacional, tendo um âmbito e um alcance muito maior do que habitualmente é reconhecido e forte presença no decurso do desenvolvimento da poesia do século XX, mesmo em países onde não surgira como movimento organizado.

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distintos se vão manifestando ou realçando não consiste numa mera querela de drama- turgos, mas sim de representações da realidade. Também Leal considera o teatro como ponto culminante das artes. O futurismo português pode assim ser entendido como vontade nova e como vontade de representação nova22.

III - A TÉCNICA A PARTIR DAQUILO QUE A EXCEDE

Os manifestos devem ser vistos como bases para espectáculos, conferências performa- tivas, actos de elocução gritada. Os dramas são expressão do carácter, e os textos na sua escritura podem ser vistos como resíduos e vestígios de uma espectacularidade logica- mente anterior, para que os espectáculos não se reduzam à mera performatividade do texto. Dá-se aqui aparente circularidade, mas afinal desenrolamento de uma intencio- nalidade (híper)estética, numa vanguardista fusão entre arte e história, interseccionisti- camente mesclando intervenção política, cultural e artística23. Daí que de seguida nos

22 Recordemos a importante definição de Vanguarda dada por Ernesto de Melo e Castro relativa à produ- ção textual de manifestos: As vanguardas na poesia portuguesa do séc. XX, Lisboa, ICLP-MEC, Col. Biblio- teca Breve – Série Literatura – Vol. 52, 1980: É, portanto, numa óptica de práticas textuais, sociais e políticas que aqui se encontrarão as Vanguardas do século XX conferindo-lhes aquilo que elas reivindicaram sempre para si, em oposição às estratificações literárias e filosóficas típicas do seculo XIX: o serem um conceito operacional que de facto opera; o serem uma acção que de facto age; o serem um programa que se objectiva; o serem uma teoria que, como tal, modifica as práticas. Daí que as vanguardas façam Manifestos – documentos que são em si próprios as produções que vão agir nos contextos sociais, e que a noção de obra de arte, neste caso de poema (ou de poesia) vá sendo progressivamente substituída pela de produção textual e pela de texto (p. 17). // Um manifesto futurista desempenha a função de objecto de acção, mais do que um poema romântico seria capaz. O manifesto buscou a forma adequada para agir no contexto que escolheu, do modo que escolheu, enquanto o poema se propunha mais atingir objectivos virtuais de expressão e sentimento. As intervenções de vanguarda revestem-se por isso de toda uma complexa orgânica de objectivos e meios que ultrapassa em muito o literário e o artístico, tal como elas o herdaram do fim do seculo XIX (…) Ou, noutro passo, específico sobre o Futurismo:O futuro futurista é, em Portugal, um futuro-desejo, mais que um futuro-modelo de desenvolvimento. Essa incapacidade dos futuristas portugueses (que é também uma incapacidade do momento conjuntural português da Primeira República) lança os jovens poetas nos braços do mito (de que o Ultimatum futurista de Almada é um bom exemplo) (p.45). Para Melo e Castro o Futurismo constitui a primeira manifestação de cultura marginal e contra-cultura (daí a habitual acusação de loucura aos seus partícipes). As vanguardas poriam em causa o começar e o recomeçar da cultura e da civilização, no que são confirmadas e reforçadas pela apocalíptica confrontação europeia que parece afirmar o fim dum mundo sem que outro comece (cf. p.48). Recordemos como Leal em 1913 anunciava a proximidade da Era da Morte. 23 Cf. Fernando Cabral Martins, op. cit.: o teatro, literalmente e em todos os sentidos, é o lugar de coincidência da história e do poema no Modernismo. Isto é, a dissolução dos gestos de arte na prática social. A forma do mani- festo modernista, que é sintética, é a coincidência entre o mundo, o corpo e um texto. Performativo, o manifesto é entendido como supra-individual, e muitas vezes assinado por vários. É uma voz de grupo que se ergue na cena pública. p. 175, ou, noutro passo, de mais clara ressonância lealina: O teatro é ainda uma metonímia da grande vida cosmopolita e luxuosa, por sua vez símbolo da vertigem subjectiva do eu. p.176.

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debrucemos sobre um Comício realizado no Chiado-Terrasse, tomando posição numa polémica travada na Sociedade Nacional de Belas Artes24. No manifestário futurista português, entendido este como acervo de todos os manifes- tos assim assumidos, consta uma peça de enorme importância, penetração e valor filosó- fico: "A Derrocada da Técnica", inicialmente lido em intervenção pública em 1921, foi depois publicado no segundo número da revista Contemporânea, em 192225. Enquanto a proclamação-manifesto colocada no Portugal Futurista se apresenta de forma críptica, como vimos, este incisivo e profundo texto é de enorme clareza na bibliografia lealina e estranhamos não ser reconhecido e compulsado como um dos textos teóricos mais importantes de reflexão modernista na cultura portuguesa; mais ainda, de reflexão me- tafísica sobre a modernidade e a era da técnica e não só na sua dimensão artística. No estilo dramático de Leal encenam-se duas concepções de arte, uma metafísica em que a arte é mescla fusional de muitas especialidades mais ou menos oficinais (escultura, pintura, arquitectura) suportada por uma dimensão filosófica, e uma outra, considerada parcelar e transacta, em que a arte se reduz apenas a essas técnicas e especialidades: é artifício e fábrica de artefactos; é oficina sem a mescla e o filosofar:

(…) os espíritos de elite não teem fronteiras parvas dentro das quaes se encurralem, procurando antes cada vez mais universalisar-se, infinitisar-se... Entre as classes, os povos e os indivíduos as comunicações espirituaes vão-se desenvolvendo consideravelmente a ponto de cada um, sem sacrificar as qualidades que lhe são proprias, a pouco e pouco absorver as qualidades dos outros. Assim as profissões estreitas, as profissões tecnicas tendem a desaparecer, procurando todos anciosamente ser o Infinito. Até aqui temos vivido uma vida objetiva, uma vida de exterior e este, não fazendo parte de nós, exige divisão de trabalho, origem da diversidade de profissões tecnicas. Não podemos decerto ter aptidão para trabalhar em tudo que está fóra de nós, em tudo que é sentido como estando fóra de nós. Mas desde que nos compenetremos com toda a alma, não apenas com a ideia, de que o mundo exterior não é mais do que um mundo de impressões nossas e pois desenroladas em nós para serem trabalhadas pelo nosso pensamento emotivo, desde que nos compenetremos de que a existencia não é objetiva mas de que se dá só relativamente a nós, só duma forma subjetiva, então poderemos ser tudo, pois tudo que antes era sentido num exterior fictício, passa a ser sentido como formando o nosso proprio eu. Se não podemos conhecer tudo que julgamos fóra de nós mas apenas uma parte, não resta duvida

24 Na Ilustração Portuguesa datada do Natal de 1921, p. 498, é apresentada uma fotografia da enorme assistência do referido Comício de Leal. Mais que reportar o facto, reproduzindo uma imagem do confe- rente, esta revista teve a argúcia de captar um instantâneo da audiência em que se concentram os máximos espantos possíveis nos esgares mais desconcertados. Trata-se assim de um documento único para a história da estética da recepção da mais radical performance filosófica futurista portuguesa (ver Fig. 1). 25 Contemporânea, n.º 2, Lisboa, Jun. 1922, pp. 60-63.

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que podemos conhecer tudo que se desenrola em nós proprios. Óra como vamos sentindo que todo o Universo passa a ser um mundo de impressões e conceções nossas, que passa a ser o nosso proprio eu, cada um poderá conhecer todo o Universo que é ele e transformal-o, trabalhal-o a seu bel-razer. O Universo será bem sentido como sendo um simples sonho da alma, e por ventura não somos senhores absolutos dos nossos sonhos?

Raul Leal permite-se cultivar uma liberdade vernacular (atacando os gágás, os burros, as fronteiras parvas) que reforça o carácter performativo público deste texto. Seja um manifesto. Se as conferências futuristas eram dramatizadas, aqui estamos perante um comício: há uma tomada de posição contra aquilo que Leal entende ser uma concepção passadista de Arte que influiria na orientação da Sociedade Nacional de Belas Artes e contra a qual os jovens se teriam insurgido. Mas esta alocução actua ainda a outros níveis. Se a comunicação entre homens, classes e povos levam à intersecção das suas qualidades, os espíritos de elite, reconhecendo-o, deixam de aceitar fronteiras, sejam elas disciplinares ou políticas. Todavia, o fim da técnica e da especialização não fará emergir um novo tipo de polimatia. Deixar de fazer uma só coisa não levará apenas a que se façam várias coisas e de vários modos, mas sim a uma procura ansiosa de ser o Infinito, ser ou sentir tudo de todas as maneiras, dirá convergentemente Pessoa. No mundo objectivo, exterior e alheio existe a divisão do trabalho. Aí nunca podemos fazer tudo, donde erra- damente concluimos que não podemos ser tudo. Trata-se assim de descobrir que somos o Universo, ou que este é feixe de impressões e concepções que nós hibridizamos. Então tudo é possível. Se tudo é sonho, sejamos senhores dos sonhos. Veja-se o exemplo do Renascimento em que as profissões surgiam destacadas umas das outras e surgiam tecnicamente, não em espírito; O que Leal propõe é que elas passem a surgir só em espirito e combinadas intimamente, essencialmente. Tal radicalização do ideal renascentista de homem total teria sido já advogado por Leal numa carta a Marinetti, fundador do Futurismo, prossegue o conferente. Isto dá conta de como Leal se apresenta publicamente como renovador e recriador deste movimento, alargando-o. Apurando a sua concepção de arte superadora da técnica, Leal prossegue:

É preciso que se acabe com o preconceito que nos leva a imaginar que um pintor, por exemplo, só pode pintar com pinceis e pintar em telas. Isso é um absurdo, meus Senhores! Se a pintura é só isso, hoje um pintor não deve pintar! A sua vida mental tem que ser tão complexa, tão proxima do Infinito que de modo algum pode caber nos estreitos limites duma tela. A unica tela admissível para um pintor moderno é o Universo inteiro!... É isso literatura? Não sei; apenas sei que assim é que deve ser. Não quero dizer com isso que se pinte só em sonho onanistico. A vida de puro sonho só será legítima quando tudo for sentido absolutamente como Sonho que terá assim a absoluta consistencia da Vida, confundindo-se com esta. Enquanto sentirmos num exterior objetivo

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rialidades distintas dos sonhos, estes serão insubsistentes, efemeros, onanisticos, não pos- suindo a consistencia da Vida por não serem para nós a realidade. Portanto, nunca hoje uma Obra deve ficar penas em sonho, devendo sempre rializar·se. Mas é sobretudo na Vida e em todo o ambiente que nós julgamos envolver-nos que essa Obra se deve rialisar, não apenas num pedaço de papel, numa tela ou num bocado de marmore e bronze. Pintar, meus senho- res, é criar uma grande cidade onde haja uma harmonia admiravel de côres admiraveis e um ritmo labyrintico de luzes e sombras atravez duma hecatombe de linhas prodigiosas cheias de beleza e de poder fascinador. O cenario feérico dessa grande cidade subordinada a um plano estetico complicadíssimo e sem formas definidas nem geometricas, eis a obra excelente que um pintor moderno deve realisar. Posso não ter habilidade nenhuma para traçar uma linha num papel ou numa tela e entretanto se souber combinar na minha casa belos tons por meio de efeitos de luz e sombra adequados, eu posso pintar. E é nessa combinação de tons, lumi- nosos ou sombrios, que eu pinto. É a propria atmosfera do meu quarto que eu estou assim pintando e nessa propria atmosfera, não numa tela parva, opaca que nada me diz. O pintor deve-se tornar um cenografo genial. E na sua obra encontram-se combinadas a pintura, a arquitectura, a escultura, a literatura, a filosofia, a musica que tambem pode ser de côres. De todas essas artes assim combinadas, a que ainda hoje deve em parte ser tecnica, é sem duvida a arquitetura posto que obras arquiteturaes não sejam só predios e monumentos, poden- do haver, por exemplo, uma arquitetura de luzes. E esses mesmos predios e monumentos podem ser de todos os modos deformados na nossa imaginação que os concebe, que os vê duma infínidade absoluta de formas, fazendo parte deles todo o ambiente, toda a atmosfera que os envolve e que os penetra e os cria segundo maneiras infinitas reconhecidas pela nossa imaginação exaltada de futuristas. A sombra ou a luz que um monumento tem, faz parte dele e parte dele faz todo o Infinito que nele se reflete e que o amolda.

Constantemente infirmando a redução do ser ao ter ou ao fazer, assim inviabilizando todas as pretensões ontológicas, ou tão só ético-políticas e existenciais do utilitarismo e pragmatismo coevos, Leal refuta que o pintor seja aquele que pinta. O pintor será um filósofo, um arquitecto de luz ou um cenógrafo, literal e metaforicamente. Esta imagi- nação infinitizadora é aqui classificada como futurista. Não se objecte, todavia, que Leal aqui advoga uma espécie de onirização da Arte como compensação de uma existência insatisfatória. Não. A arte contém um impulso realizativo e concretizador. Mas aí não se conclui nem se pode limitar. A arte vivida como sonho, afinal, só ganha todo o seu sentido, valor e expressão quando toda a vida é entendida como sonho: quando, por fim, vida e sonho desalienadamente coincidirem:

a tendencia será para uma crescente universalisação, procurando sair dos limites estreitos que outrora lhes eram impostos. (…) . O filosofo pinta do mesmo modo que o pintor pode fazer metafisica. (…) Artes plastícas? mas o que são artes plastícas? Tudo que nós quizermos que

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sejam! Elas não teem fronteiras definidas, não há fronteiras definidas para nada!! (…) Quantos não possuem naturezas universaes, são muito estreitinhos, muito pequeninos e portanto não teem o direito de sair do seu «métier». Comnosco o caso é diferente. Nós não temos «métier», a nossa alma está bem aberta a tudo!...

Leal, que anunciara a Guerra e a vivera em seus textos de forma paroxística, efectua agora o seu balanço, anunciando o novo mundo que o seu fim teria aberto:

E para que se procura valorisar tanto o espirito de profissionalismo tecnico quando é certo que a guerra foi a derrocada da tecnica e dos tecnicos?...

O especialismo, tecnicismo, profissionalismo que o futurismo exaltara ter-se-iam torna- do formas inibidoras da assumpção da complexidade do humano. Mas não só a Guerra triunfou sobre essas formas como o Artista será a máxima expressão da sua superação:

Os profissionaes teem sempre uma tal estreiteza de vida e de vistas que não podem vêr tudo, vêr o Infinito com que tudo se relaciona e de que tudo depende. A vida não se divide em caixinhas monadologicamente separadas umas das outras e assim isoladas. Tudo se comunica mutuamente, tudo depende de tudo e portanto um facto qualquer depende sempre dum infinito de circunstancias que nada teem que ver com a categoria tecnica do facto. Não são só rialmente as circunstancias tecnicas aquelas a que se deve atender. Taes circunstancias são mesmo as mais insignificantes,

Leal culmina o Comício-Teatro que estamos reproduzindo numa auto-mitificação ou auto-ficionalização que o leva a reapresentar-se como o profeta Henoch, o arrebatado. Em vez de se apresentar como descendente de uma genealogia cultural, prefere expor seus avatares ou encarnações como momentos da história da tradição sapiencial humana que conduzem ao pensamento filosófico actual. Assim como o pintor não é aquele que pinta, Leal seria o máximo conhecedor actual de Deus sem nunca ter estudado teologia. Talvez esteja assim sugerindo, mais que a morte de Deus, a morte da teologia enquanto disciplina técnica, a substituir pela Arte infinitizadora:

(…) Vivendo de reminiscencias ocultas que evocam a primeira vida que Eu vivi na Syria e no Egito antiquissimo em que tudo fui forçado a criar por determinação divina e para que depois se inspirassem em Mim, por intermedio da Kabala, os espíritos mais altos do Passado taes como Socrates, Platão e Plotino, vivendo dessas reminiscencias d’outra vida que tão violentamente sacodem hoje o Meu Espirito e todo o Meu Pensamento Altíssimo, concebo uma nova Igreja e uma nova Religião que levam o Mundo para o Reino divino dos Céus, até agora jámais concebido em toda a sua altura e profundeza espirituaes, sendo

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só Eu o anunciador dos Céus, o Anunciador da Morte. Das cousas de Deus sou pois o maior conhecedor sem que a theologia tenha jámais sido estudada por Mim. O reinado da tecnica vai desaparecer. Não mais se admitem profissionaes de oficio. Possuem eles naturezas estreitas, limitadas que não se compadecem com a progressiva uni- versalisação infinitisadora do eu. Caminhamos para um mundo de puro Espírito através de que todos os valores universais se sintetizam em cada ser.

Neste sentido, o anúncio escatológico que se reactualiza como promessa do Reino de Deus, paradoxalmente apresentado como Reino da Morte, é nomeável como mundo de puro Espírito, onde cada eu poderá então sublimar-se em universalização infinitizadora. Contrapolarmente, os valores universais sintetizam-se também em cada ser. E como via de superação do estado separativo reinante sugere-se o surgimento de uma nova religião a partir do futurismo. Mesmo nos momentos mais intensos da polémica em torno da edição de Sodoma Divinizada, em 1923, Leal mantém o tom teometafísico e a coerência funda do seu pensar, sem abdicar de o dramatizar e de se expor radicalmente, não perdendo o seu objectivo de contribuir para a redefinição da noção de arte e de estética. Assim, apre- senta agora a Luxúria e o erotismo como via consubstancializadora entre humanos ou de superação do que designa como estetismo simples, aquele que só atingiria formas determinadas e delimitadas, à maneira das técnicas artísticas especializadas que acima se descreveram. Assim, o anúncio da nova religião antes efectuado é aqui complementado ou articulado com a proposta de vários cultos estéticos, mais ou menos suscitantes da Vertigem, supremas formas de relacionamento-consubstanciação-confusão entre todos os seres e todas as coisas. Arte Vertiginosa, Religião Futurista ou Erotismo-Luxuriante Infinitizador seriam essas vias:

A emoção luxuriosa é a emoção estética convulsivamente infinitizada. O estetismo simples atinge só a beleza determinada e pois com limites a delimitá-la, ao passo que o erotismo puro vai além de todos os limites, atingindo a vertigem do Infinito (…) O erotismo e a luxuria são pois bem o paroxismo infinitamente convulsivo, vertígico do estetismo puro, não [o] contrariando. (…) Num caso temos apenas o Belo, limitado por natureza, no outro caso temos o Sublime que não conhece limites, que só conhece a loucura delirante do infinito que é Deus. E o que há é vários cultos estéticos, entre os quais alguns não chegam a ser luxurio- sos, infinitos, puros, não atingindo a vertigem sagrada da Luxúria que é pois sagrada por ser Vertigem, por ser o divino infinito26.

26 Cf. Notícia do maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal, Zetho Cunha Gonçalves (Org.), Lisboa, Letra Livre, 2014, p.92.

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IV - A PRESENÇA A PARTIR DA AUSÊNCIA

Raul Leal em carta enviada a José Régio, (de um conjunto que apresentamos em dos- siê nas páginas deste número de Arte Teoria), lamenta que na sua geração coimbrã não havia Nada, na aceção absoluta, metafísica da palavra: Nada a não ser Eu, sublinha. É a partir desta funda ausência por si sentida que Leal saúda o aparecimento da Presença. Nas páginas da Presença encontram-se cerca de dezena e meia de peças de Raul Leal, dando conta do intuito deste projecto em convocar os membros de Orpheu como seus intervenientes. Como se pode constatar, as colaborações desdobram-se em vários gé- neros. Quanto à poesia, apresentam-se excertos dos Psaumes, projecto de livro nunca editado, e de Messe Noire; apresenta-se um ensaio filosófico-político de síntese das cor- rentes políticas mais opostas – a qual enformaria a construção utópica da Astralédia –; um excerto de uma peça de teatro autobiográfica – O Incompreendido – e dois textos de crítica de Arte, um de pintura dedicado a Mário Eloy, por ocasião de uma sua exposição, e outro sobre Fernando Pessoa, pedido para o número especial da Presença de 1936, que assinala um ano da morte do Poeta. O texto sobre Pessoa consiste também num excerto de um projecto mais vasto de interpretação global, filosófica, da Obra heteronímica. Quase todas as colaborações são publicadas entre 1927, ano de começo da publicação da revista, e 1931, com excepção do aludido texto dedicado a Pessoa27. Nem todas as peças são isentas de polémica, como se pode perceber pelos comentários de Leal em carta de 1929 à má recepção pelos membros da revista de Virgem-Besta, projectado para um número de Natal, e que acabaria no entanto por ser publicado em 1931.

27 As colaborações de Leal que pudemos compulsar na Presença são as seguintes, algumas delas motivo de comentário nas cartas aludidas: “Dernier Testament. II - Messe noire. Poème sacre” (Final), Presença, n.º 4, Coimbra, 8 Maio 1927, pp. 4-5; “A creação do futuro. A organisação bolchevista pelo fascismo atravez da acção norte-americana e sob o regimen duma monarquia libertária”, n.º 8, Coimbra, 15 Dez. 1927, p. 4; “Psaume”, n.º 10, Coimbra, 15 Mar. 1928, p. 5; “Lamentations de Henoch (do poema inédito Messe Noire)”, n.º 12, Coimbra, 9 Maio 1928, p. 7; “Psaume”, n.º 13, Coimbra, 13 Jun. 1928, p. 3; “Psau- me”, Presença, n.º 14-15, Coimbra, 23 Jul. 1928, p. 11; “Mario Eloy, le grand évocateur d’incubes”, n.º 16, Coimbra, Nov. 1928, p. 6; “Psaume”, Presença, n.º 19, Coimbra, Fev., Mar. 1928, p. 3; “O incompreen- dido, peça dramática em 3 actos e 4 quadros, primeiro acto, scena VI”, n.º 23, Coimbra, Dez. 1929, p. 3 [com ligeiras alterações, saiu na revista Tempo Presente, n.º 15, Jul. 1960, pp. 81-82, como ‘Sétima cena’]; Excerto do drama metafisico em 3 atos e 4 quadros, O incompreendido, (terceiro ato, segundo quadro), Presença, n.º 25, Coimbra, Fev., Mar. 1930, pp. 9-15 [corresponde (com revisão mínima) às pp. 57 a 74 do n.º 20 de Tempo Presente, Dez. 1960]; “Messe noire, poème sacré (excêrto)”, n.º 31-32, Coimbra, Mar.-Jun. 1931, pp. 24-25; A virgem-besta, ibidem, p. 25; “Na glória de Deus, primeiro capítulo do livro em preparação Fernando Pessoa, precursor do Quinto Império”. n.º 48, Coimbra, Jul. 1936, pp. 4-5. O texto dedicado a Pessoa incluído no carteio reproduzido não corresponde a este artigo.

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Não é nosso objectivo neste trabalho contextualizar ou comentar detidamente as car- tas que ora apresentamos, mas apontar que elas podem ser lidas como corolários ou lapi- dares reformulações das ideias fundamentais que neste ensaio se procuraram apresentar. 1. Tal como pudemos ler acima, a propósito do comício A Derrocada da Técnica, tam- bém nestas cartas Leal recusa encerrar-se numa definição especializada, afirmando, na carta de 22 de Abril de 1928:

Eu creio puder-me considerar filósofo, theologo, politico, sociólogo (ou antes, psicosociólo- go), dramaturgo, poeta, critico, panfletario e jornalista. E suponho que sou forte em tudo isso.

Mas não é só em conteúdos de teor pessoal que as cartas reiteram o que já víramos. Também as teses especulativas aqui são retomadas e reapresentadas.

2. Na carta de 6 de Abril de 1928, Leal repete a tese que já o víramos afirmar em 1913, segundo a qual

dois objectos só se relacionam absolutamente quando se consubstanciam em absoluto um no outro, quando se confundem, sendo pois dessa sua confusão em que surgem como sendo um só, que surge a distinção entre eles.

Uma das vias dessa com-fusão ou consubstanciação absoluta será a luxúria divina, como vimos, outra serão os cultos estéticos animados pela Vertigem.

3. Leal propõe a Marinetti o seu vertiginismo-paracletianismo como fundamenta- ção neo-religiosa, complementar e aprofundante do ensinamento futurista, como aliás anunciara publicamente no comício futurista de 1921:

numa carta que escrevi a Marinetti, no verão de 1921, (…) longamente lhe expuz as minhas doutrinas relativas à religião futurista do Espirito Santo. A essa carta ele respondeu-me nos seguintes termos: “... J’ai reçu et lu avec plaisir votre lettre très importante (o sublinhado é dele). Je suis d’accord avec vous sur plusieurs points. Le futurisme élargit chaque jour son horizon. J’espère vous voir à Lisbonne...” (…) A carta a que ele respondeu nos têrmos refe- ridos, é a primeira síntese que fiz do paracletianismo e estudando nela a Astralédia (Carta de 5 de julho de 28).

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4. Uma das informações que mais valorizamos deste carteio, no entanto, é a se- guinte revelação:

Em 1917 (setembro) publiquei no Portugal Futurista um exquisito artigo em francez sobre Santa Rita Pintor. Não me orgulho muito da forma desse artigo (carta de 5 de Julho de 1928).

A leitura de "A Derrocada da Técnica", que considerámos ponto culminante da Obra de Leal, nomeadamente da sua reflexão estética, já nos fizera intuir, a partir mesmo da sua poderosa legibilidade e intensidade tética, que Leal renunciara ao modo críptico e deliberadamente labirintizador com que violentamente redigira o manifesto a Santa- Rita Pintor consagrado.

5. Em diálogo com Régio, as cartas não deixam de anotar a concepção teológica de Leal, que recusa a existência substancial de um Deus exterior, antes identificando adjec- tivamente o divino com o dinamismo criador humano:

Eu tambem não admito a existência dum deus estranho a nós para nos oprimir e nos es- magar. Deus atravessa-nos a alma, é o próprio essencial animismo criador do nosso espírito (carta de 6 de abril de 1928).

Leal apresenta-se assim como intérprete da recusa do sentido que a cultura dominante até então propunha e impunha: como negador do deus estranho a nós para nos oprimir, colocando-se abertamente na sua Ausência. Mas porventura porque agora percepciona- da como dinamismo criativo, é também divina essa ausência.

Em carta a um outro colaborador da Presença, Adolfo Casais Monteiro, de 24 de Março de 1936, patenteia-se de forma concisa e lapidar o que pode ser lido como um diálogo entre o ideário da Presença e o Vertiginismo lealino. O tema é a possibilidade de uma poesia filosófica, que os presencistas negariam, mas algo mais se encerra nesse debate. Vejamos:

(…) concordo absolutamente consigo quando caracteriza a poesia moderna como acentuada- mente subjectivista, ao contrário da antiga. Hoje todo o mundo exterior passa pela alma que lhe dá o seu influxo particular e o seu colorido íntimo, não passando apenas, por assim dizer, à flor da pele como outrora. E isto é sobretudo verdadeiro no que respeita à poesia portugue- sa, a partir de Antero que viveu emotivamente com toda a substância do eu o que os outros apenas profundamente pensavam. E por isso discordo no ponto em que levemente ataca a poesia filosófica, metafísica. Que obras poéticas tão grandes se têm feito com o pensamento filosófico! Os diálogos de Platão, repletos de emoção poética, os versos metafísicos e ocultos de

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Pitágoras, o justamente célebre poema didáctico de Lucrécio, De rerum natura, contém toda uma filosofia, enfim, Novalis, Antero, Pascoaes, Fernando Pessoa, nas suas melhores obras, e creio que eu! O que é necessário é viver com íntima emoção os mais altos pensamentos filosóficos, e hoje, mais do que nunca, isto se torna possível, mais do que possível, inevitá- vel. O próprio José Régio, o próprio Adolfo Casais Monteiro que não admitem em teoria a aproximação da filosofia e da poesia, em muitos, em quase todos os seus poemas fazem não obstante verdadeira filosofia. E é insuflada por esta que a poesia se torna grandiosa, divina, sem se tornar inumana.28

Nesta carta, Raul Leal reitera algumas das suas ideias fundamentais: 1) Leal não pode deixar de concordar com a análise crítica de Casais Monteiro sobre a literatura moderna quando este detecta nela o primado da subjectividade. Essa comum percepção crítica não nos deve, todavia, fazer esquecer que, para Leal, que em simples missiva não pode explanar toda a complexidade do seu pensamento, experiências como a filosofia e a poesia, ou oposições categoriais como mundo e subjectividade haviam sido já, e de dentro, implodidas pelo seu vertiginismo e pelo interseccionismo de Pessoa (e mesmo pelo saudosismo de Pascoaes)29. A justificação para a comunidade nessa percepção é, assim, só aparente. Ela justifica-se em Leal numa complexa, ainda que assistemática, fundamentação teórica sobre a processão das Idades históricas e o desenvolvimento de novos aspectos do humano no Eu e do Eu do humano: 2) Os mais representativos auto- res logram viver emocionalmente o que outros apenas pensaram e podem pensar o que outros apenas sentiram, e descrevem não a oposição mas a sua síntese, sem que nada se perca, na expressão de Leal. 3) É neste sentido que para Leal se tenha de requestionar a oposição entre filosofia e poesia: A grande poesia é reflexiva, argumentada, e gnósica, pelo que mereceria o adjectivo de filosófica. Do mesmo modo, a filosofia é criadora de mundos e de linguagem, pelo que é inerentemente poético o seu exercício (quando não, redunda ela em cousismo ou dogmatismo). 4) Poesia e filosofia culminam numa vivência emocional dos pensamentos a par de (simultânea e contrapolarmente) uma ex- periência intelectiva das emoções. 5) A assumpção superativa e transcensora desta visão espiritual conduz a uma divinização que todavia mantém a humanidade do humano: o divino já não é exclusivamente humano, mas nisso se não inumaniza.

28 “Duas cartas inéditas de Raul Leal” apresentadas por José Augusto França, Colóquio Letras, nº 95 (Jan. 1987), pp. 75-79. 29 Para uma leitura paralela destes três movimentos de ideias, cf. o nosso estudo, Rui Lopo, “Vertiginismo, Orfismo e Saudosismo: aproximação sem ismos a Raul Leal” in Actas do V Colóquio Luso-GalaicoSobre a Saudade, coordenado por António Braz Teixeira, Maria Celeste Natário e Renato Epifânio, Sintra, Zéfiro, 2017, 260-283. Incluem-se neste estudo diversos inéditos lealinos.

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Reproduzimos de seguida Poesia Perdida, de Alberto de Serpa, peça dedicada a Raul Leal, incluída em Lisboa é Longe, de 1940. O poema dialoga de forma funda e simbólica, ainda que aparentemente simples, com a novela vertígica Luar, encenando o artista em sua inexaurível ansiedade criativa, debatendo-se entre um vulto em fuga de um retrato e uma poesia oculta. Evocamos Serpa como não só por ter sido um dos poetas dinamiza- dores da Presença mas por ter coligido a mais importante colecção pública de inéditos de Raul Leal, hoje à guarda da Biblioteca Municipal Pública do Porto. Consideramos este espólio como ponto de partida obrigatório dos estudos lealinos a haver.

Toda a vila dorme e sonha sob o luar… Só no seu quarto cheio de fumo e sombras, sob o candeeiro onde uma luz de doença agoniza, o esperançoso poeta passa a mão magra pelos cabelos revoltos e olha o papel que espera uma poesia fugitiva… Mas a poesia não vem na frescura da noite nem no luar que chega ao peitoril da janela…

E o moço corre ao fundo do seu coração, revolve a sua inexperiência provinciana… Mas vê tudo banal e inútil como a sua vida simples. A poesia continua, oculta, oculta…

E ele ergue o olhar para um vulto em fuga de um retrato delido, na esperança de uma luz que rompa o fumo e as sombras. Breve, os seus olhos descem molhados de desespero sobre o papel de que a poesia se esconde, se esconde…

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FIG. 1 O Comício Intelectual no Chiado Terrasse Um aspecto da assistência durante o discurso de Raul Leal Ilustração Portuguesa, II Série – Nº 827, p. 499, 1921.

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O ABSTRACCIONISMO FUTURISTA – DIVAGAÇÃO ULTRAFILOSÓFICA- -VERTIGEM A PROPÓSITO DA OBRA GENIAL DE SANTA RITA PINTOR “ABSTRACÇÃO CONGENIAL INTUITIVA (MATÉRIA-FORÇA)”, REALIZA- ÇÃO SUPREMA DO FUTURISMO

Santa Rita Pintor concebeu sinteticamente a realização integral de toda a teoria futurista sobre a Vida! Tudo se dá relativamente e em relatividade pura, a Vida não é senão o desenrolamento de puras relações-distinções, de puros contrastes, os quais se dão uns aos outros e uns pelos outros em suspensão em si – Vertigem. Não existem coisas em si tal como as concebemos vulgarmente, não existem númenos nem verdadeiro concreto, tudo se dá puramente por relação, por relação a tudo e portanto não há senão um desenrolamento de pura relatividade toda subjectivista. Relatividade em si, em si –Vertigem! Ora, pelo próprio facto de ser em si, através do seu puro subjectivismo, existe então como es- pírito de realidade, de objectividade, de concreto e a própria concepção de relatividade nos revela isso. Se tudo se dá apenas em relação a tudo, parece que no fundo não há nada, Mas como se dá um desenrolamento de verdadeiras relações-distinções, de verdadeiros contrastes ainda que sejam completamente puros, ainda que não sejam contrastes de umas coisas com as outras, é certo que há qualquer coisa de real ainda que indecisamen- te, de vertigicamente real nessas relações puras [não existem relações puras. O relativo é por natureza impuro e impurificador], nestes puros contrastes, nesse puro contrasteser que pelo seu realismo-irrealismo é mesmo Indecisão, Indecisão – Vertigem. Há assim qualquer coisa de concreto na natureza da Abstracção Pura da Pura Relatividade. Trata-se assim de um concreto-em-abstracto – Vertigem. Ora, os contrastes dão-se, não se pode dizer que eles sejam; eles não são senão toda uma actividade que exprime um desenro- lamento de relatividade, a própria relatividade que exprime um real-irreal – Vertigem é sem dúvida um desenrolamento: realidade-irrealidade – Vertigem, é sem dúvida ac- tividade – Vertigem. Se não há senão um espírito de realidade indecisa, de realidade – Vertigem nessa actividade contrástica, nesse processo contrástico que é assim um proces- so de concreto-em-abstracto –Vertigem, há como que um vazio, vazio-inexpressão, neste espírito de realidade relativista. Ora, a relatividade é pura, é portanto em si e o facto de ser em si leva-a a impregnar-se de objectivismo puro, de puro concretismo através do seu espirito de pura subjectividade. O que é em si dobra-se tao puramente sobre si mesmo que chega a viver-se a si próprio, donde resulta um verdadeiro animismo; e o que é em si vive-se a si mesmo tao puramente que surge mesmo como um verdadeiro viver-se com- pletamente puro, um viver-se em si, em si – Vertigem o que nos leva assim a perfazer um verdadeiro círculo – Vertigem que não mostra senão o vertiginismo do em si. Se o processo do viver-se a si mesmo, processo do Anímico, é em si, em si Vertigem, não se trata então propriamente de um ser que se viva a si mesmo, e no entanto ele existe

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como o espírito desse ser. E verdadeiramente é no facto de se viver a si mesmo que se existe e, no entanto, por esse mesmo facto aniquila-se a si mesmo porque se coloca pu- ramente em relação, em relação-distinção, em contraste consigo mesmo, tão puramente que se faz surgir em tudo isso como uma pura relação (ou sobretudo um relacionar completamente puro), uma relação-distinção em si, e não propriamente uma relação de um ser consigo-mesmo ainda que exista como espírito dessa espécie de relação. Assim o Ser, pelo facto de ser em si se aniquila, aniquila-se no próprio acto de se impor infini- tamente, o que o torna todo Indecisão, todo Vertigem. Ora, há um em si, é intuitivo, e desde que nos apercebemos bem da natureza desse em si que é a Existência, que é aquilo que há, chegamos a considerar um puro viver-se, um puro Anímico, não Alma mas (com- -não – Vertigem) o espírito de Alma, Anímico que surgindo portanto sobretudo como Fantásmico, Fantásmico – Vertigem, é assim um Vazio-Alma, Vazio-Fantasma – Vertigem, o do Astral, Astral-Vertigem que tem verdadeiramente por natureza todo o espírito de um Vazio-Fantasma, de uma Inexpressão – Alma, espírito de Pesadelo-Realidade – Vertigem. No processo do viver-se a si-mesmo, no processo do Anímico há um contrastizar puro consigo mesmo cujo indecisismo de natureza, Indecisismo – Vertigem de natureza, cujo vertiginismo, verdadeiro espírito de atordoamento exprime bem um verdadeiro labirinti- zar – Vertigem, labirintizar, assim, do processo de relatividade pura do Anímico, a qual não é senão a labiríntica relatividade pura, o puro Contrástico – Vertigem completamen- te labiríntico de que já falei no início desta pequena divagação, Contrástico que é então o desenrolamento da Vida-Morte, o desenrolamento do Astral, Astral – Vertigem que é Vazio-Fantasmeser – Vertigem. E como se trata assim de um contrastista – Vertigem, um labirintizar – Vertigem, trata-se assim de uma fantasmagonia – Vertigem, na qual onde os fantasmas – Vertigem, contrastes-fantasmas – Vertigem deslizam-não – Vertigem uns nos outros (eles têm não – Vertigem um carácter completamente próprio, carácter – Vertigem) e onde há um Infinito,Infinito – Vertigem e tudo é Eternidade enquanto esse infinito e a Eternidade, Eternidade –Vertigem estejam todos vivos (sejam todos Vida), vertigicamente vivos, real-irrealmente –Vertigem. Ora, os futuristas vêem bem a relatividade-actividade de tudo, eles vêem ainda aqui- lo que há de vazio, de inexpressão nesta relatividade, donde provém a sua sensibilida- de de music-hall, e dado que ainda vêem bem aquilo que nela há de real, de objectivo, de concreto, concebem-na assim como um puro Dinâmico, um Dinâmico comple- tamente objectivo. Eles fazem ainda mais do que isso, eles mecanizam-na verdadei- ramente: o desenvolvimento da relação é, para eles, um desenvolvimento mecânico. O processo de relatividade é para os futuristas um processo de relatividade física, o que acentua aquilo que nela há de objectivo. Certamente que, e isto é vicioso, é sem- pre através dum puro espírito de subjectividade que no seio do Contrástico surge o objectivo, o concreto. Não se trata aqui, portanto, duma objectivação, completamente Exterior, da subjectividade que por causa de si própria seria o objectivo do Contrástico,

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o Contrástico—Vertigem, o objectivo do Anímico, o Anímico—Indecisão—Vertigem, o Vazio-Fantasma—Vertigem, mas sem dúvida nessa objectivação, nessa fisicização, pas- sa-se, como já o disse, um facto todo ele significativo. Ora, Santa Rita Pintor sem seguir empiricamente, como os outros futuristas, o pro- cesso de relatividade física, quer, pelo contrário, aperceber-se de toda a natureza es- sencial, de todo o espírito desse processo exprimindo-o, como síntese integral, nos seus quadros, em obras dum verdadeiro génio; então, com um supremo esforço, ele realizou completamente este sonho de artista monstruoso com a sua obra formidável, «Abstracção Congenial Intuitiva (Matéria-Força)». Através deste quadro ele vive inte- riormente, ele intuiciona a essência, a natureza própria da Vida tal como a concebem os futuristas, ele não desenrola esta Vida discursivamente como os outros artistas da sua escola, mas, pelo contrário, vive toda a sua essência, em si mesma, erguida no seu quadro a uma síntese suprema! É assim que, reconhecendo o que há de vazio, de Inexpressão, na objectividade relativista (a objectivação, a fisicização da relatividade não lhe retira a sua expressão de inexpressão, a sua expressão de vazio, vazio agora mecânico), ele procura acentuá-lo na afirmação pictural do abstracto, essência pura do vazio, do verdadeiro vazio que não é propriamente físico, objectivo, o que lhe retiraria de certa maneira o seu espírito de puro vazio, vazio autêntico, então espírito de Abstracção em si, Abstracção em si –Vertigem, ele procura então acentuá-lo nesta afirmação do abstracto, considerado como quinta-essência da Vida, vida da re- latividade mecanista, da relatividade física. Ele não sai desta vida, o processo relativista surge-lhe como processo Matéria-Força que no plano físico exprime bem o definir-in- definir—Vertigem do Contrástico onde se dá não—Vertigem alguma coisa de con- creto, e no entanto ele vê, sente que o que há de inexpressão, de Vazio neste processo é mesmo de um outro plano, é mesmo Abstracção em si —Vertigem que se dá en- tão, segundo Santa Rita Pintor, através do processo todo ele físico de Matéria-Força, através do processo de relatividade física concebido pelo genial pintor no seu espirito sintético. Deste modo Santa Rita Pintor faz com que o futurismo dê o máximo que pode dar no plano que lhe é próprio, um passo mais e cairia no Vertiginismo conce- bendo então perfeitamente e já não um pouco viciosamente o concreto-em-abstracto— Vertigem em que não há nada de físico. Santa Rita Pintor é um futurista outré, o seu génio é a quinta-essência do GÉNIO FUTURISTA!

Raul Leal Julho de 1917

(tradução de Rui Lopo)

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JOSÉ RÉGIO: O ESTETA E O ARTISTA (À VOLTA DE UM MANUSCRITO INÉDITO DO POETA)

Isabel Cadete Novais

RESUMO Este artigo discute os conceitos de Arte e Homem-Artista defendidos por José Régio, um dos mais importantes mentores da ideologia estética da revista Presença. Mas o esteta não exibe a sua marca apenas nos textos teóricos e críticos. Os seus primeiros trabalhos, publicados entre 1926 e 1936, sob o selo das Edições Presença, têm as marcas desses princípios programáticos, tanto a nível ideológico quanto formal, e revelam a estreita relação entre a ideologia da Presença e a produção literária do escritor. Neste artigo, apresentamos um manuscrito inédito de José Régio, no qual o artista, testando a sua originalidade e capacidade criativas, estabelece, através de uma linguagem poética e me- tafórica, o conceito de Homem-Artista.

PALAVRAS CHAVE José Régio. estética presencista. Homem-Artista.

ABSTRACT This article discusses the concepts of Art and Man-Artist defended by José Régio, one of the most important mentors of the aesthetic ideology of the magazine Presença. But the aesthete does not exhibit his imprint only in the theoretical and critical texts. His early works, published between 1926 and 1936, under the seal of Presença Editions have the marks of these programmatic principles, both ideological level as formal, so they show the close relationship between the ideology of Presença and the literary production of the writer. In this paper, we present an unpublished manuscript of José Régio, in which the artist, testing his originality and creative ability, sets, through a poetic and metaphorical language, the Man-Artist.

KEYWORDS José Régio. Presença aesthetic. Man-Artist.

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Em Arte, ninguém acha nada que não tenha em si. É inútil fingir possuir o que se não possui: Uma obra não sincera é um documento tão elucidativo como a obra mais sincera.

José Régio, «Esclarecimentos» [ms], Coimbra, 1927, Maio.

Quando se fala da revista Presença implica ter de falar de um novo conceito de Arte e, consequentemente, de um dos seus mais devotos teorizadores e críticos – José Régio. Durante os treze anos de duração de revista, Régio foi, inequivocamente, o mais ativo e dedicado crítico e mentor estético da fôlha de arte e crítica [sic], além de fundador e diretor (a par de Branquinho da Fonseca e de João Gaspar Simões). Mesmo depois da sua ida para Portalegre, para exercer funções docentes e já com Adolfo Casais Monteiro na direção da revista (1933), a ocupar o lugar deixado por Branquinho da Fonseca, Régio nunca abdi- cou de uma participação influente nos momentos cruciais da vida da publicação, mantida sobretudo através de uma intensa correspondência. Embora fisicamente ausente, essa in- tervenção nos desígnios da Presença nunca deixou de ser sentida, tanto mais que manteve uma colaboração assídua e diversificada com artigos teórico-críticos e produção literária. Também nunca deixou de dar pareceres sobre as colaborações recebidas e sobre o grafismo dos números que iam sendo dados à estampa. Mesmo em situações que exigiam firmeza na gestão de conflitos, no seio do grupo, era a Régio que cabia o juízo final. Logo no artigo doutrinário “Literatura Viva”, publicado no número inaugural da re- vista, José Régio afirmava:

«Em Arte é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição de uma obra viva é, pois, ter uma personalidade e obedecer-lhe.»

De acordo com este conceito globalizante de Arte, o Homem-Artista é aquele que se expressa em toda a sua individualidade e sinceridade, sendo a expressão artística, qual- quer que seja a forma – literatura, pintura, escultura, música, teatro ou cinema –, «um serviço prestado à sua humanidade», uma manifestação do que lhe importa como ho- mem. Daí a grande preocupação de Régio em ligar a personalidade criadora à criação artística, independentemente da categoria ou forma de expressão. Esta visão inovadora da Arte, contrastiva com muita da produção contemporânea e apontada por Régio no artigo “Classicismo e Modernismo” (Presença nº 2) como vazia de individualidade e ori- ginalidade, não o levava a excluir os clássicos; pelo contrário, via, em alguns deles, dignos exemplos de Arte viva intemporal. Assim, definia Arte Clássica do seguinte modo:

«Onde quer que o motivo inspirador e o meio de expressão se harmonizem numa realização de Beleza – aparece Arte Clássica.»

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E chegou mesmo a «admitir a compatibilidade do Classicismo e do Modernismo» e a considerar o Modernismo como uma corrente estética intemporal e dotada de atua- lidade, não confinada a um tempo, como tal, clássica desde que mantivesse as suas características intrínsecas:

«Eis porque o modernismo superior é individualista e clássico – tomando agora o termo individualista no melhor sentido, e considerando clássica toda a obra de Arte em que de- terminado motivo encontra o seu meio de expressão próprio, em que as características de inspiração caracterizam a realização. É assim que para ser clássico, um modernista deve ser inteira e verdadeiramente modernista.»

José Régio não se encontrava isolado nesta nova perspetiva de encarar a Arte. Outros presencistas, em especial J. Gaspar Simões, A. Casais Monteiro, Diogo de Macedo, António de Navarro, partilhavam preocupações idênticas nos seus artigos crítico-dou- trinários, em vários números da Presença, embora a fôlha de arte e crítica, com a sua configuração eclética, tivesse estado aberta a colaboradores de perfis diversos: uns mais vanguardistas, como António de Navarro, Raul Leal, Almada Negreiros; outros mais moderados e contemplativos, não tão integrados no espírito modernista, como Afonso Duarte, Francisco Bugalho ou mesmo Alberto de Serpa. Os “homens da Presença”, à semelhança dos arautos do Primeiro Modernismo, tam- bém defendiam novas formas de expressão artística genuína e original, sem constran- gimentos, ainda que, ao contrário daqueles, não estabelecessem uma rutura funda- mentalista com as gerações anteriores e com os valores tradicionais. Em vez disso, os presencistas apresentavam-se numa atitude de esclarecimento, de reflexão sobre as propostas do Primeiro Modernismo e até de divulgação sem, no entanto, rejeitarem o que verdadeiramente se tinha produzido de valor no passado. Os diretores da Presença, particularmente Régio, tomaram a seu cargo a promoção dos protagonistas da Orpheu, valorizando o que de inovador e verdadeiramente modernista possuíam. Conhecedores da situação em que se encontravam as Artes e as Letras portuguesas, nas três primeiras décadas do século XX, espartilhadas por um regime de ditadura comprometido com uma Igreja Católica conservadora e uma Academia inerte, os presencistas, fruto da sua rebeldia juvenil e com a determinação em prosseguir um novo rumo artístico, conseguiram arregimentar e lançar nas páginas da revista os mais reconhecidos artistas e pensadores nacionais. A par destes, era também dado a conhecer o que de melhor se produzia na Europa, não apenas a nível da Literatura como das restantes Artes e ainda no Brasil, no que tocava a produção literária.

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Além de mentor da nova forma de abordar a Arte, José Régio foi também, enquanto criador, um exemplo do modelo de Homem-Artista por ele sustentado, dotado de uma personalidade artística superior e íntegro na sua individualidade e originalidade, a ponto de não ceder mesmo quando as suas obras não geravam consenso ou acabavam por ser alvo de polémicas. A propósito do seu romance Jogo da Cabra Cega, Régio deixava o recado:

«Escrevo este livro procurando pôr de parte todos os pre-juízos e até todos os pudores. O que nem sempre consegui, bem sei. Entre várias questões que nêle debato, mais ou menos embrionariamente, e entre várias novidades que nêle trago (é a minha sinceridade que me obriga a reconhecê-lo) – pinto em algumas das menos efémeras destas páginas a riqueza e o cáos da vida interior sem limites ordenados. Conclusões – é ainda a minha sinceridade que me obriga a não os tirar por emquanto. Nem, ao menos por emquanto, as conclusões me parecem fatalmente necessárias a uma Obra de Arte – sobretudo tiradas pelo autor. Mas cada qual fica livre de tirar do meu livro as conclusões que puder e quizer.» [sic].

Deste comentário metalinguístico, sobressai, desde logo, a auto-reflexividade, assim como uma necessidade de se explicar, o que sugere o caráter provisório da escrita e do que é dito, prática comum nos modernistas. Além disso, é por demais evidente a in- dependência de «Só vou por onde // Me levam meus próprios passos…», do autor de «Cântico Negro», a acentuar a natureza de uma personalidade criadora sincera e origi- nal, intransigente a cedências. Esta postura afirmativa, recorrente em Régio, manifestou-se logo nas suas primeiras obras publicadas em Coimbra, nas décadas de vinte e trinta, completamente imbuídas na estética presencista. A lembrar as páginas da Presença, perpassavam nelas as marcas da irreverência modernista, desde logo nos papéis pouco convencionais utilizados, no grafismo das páginas e nas dimensões dos carateres, modelos que, fugindo à norma, con- trastavam com os que habitualmente se compunham não apenas na oficina da Atlântida mas em qualquer outra tipografia à época. Estas obras de aspeto insólito não tiveram uma boa recetividade do público, que as apontou como “coisas de louco” e pouco re- comendáveis para a moral e bons costumes. Em contrapartida, mereceram um relevado apreço da elite estudantil e de alguns intelectuais que, não receando represálias da parte dos poderes instituídos, se manifestaram favoravelmente reconhecendo nelas o efetivo valor literário. Passemos um olhar crítico sobre essas obras: Logo em 1926, um ano após a conclusão da tese de licenciatura, Régio publicou o seu primeiro volume de poesia, Poemas de Deus e do Diabo, em edição privada, impressa na Lúmen, em Coimbra [Figuras 1, 2 e 3].

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FIG. 1 FIG. 2 FIG. 3

Num primeiro contacto, destaca-se o aspeto artesanal de uma capa de papel de em- brulho de cor parda, ilustrada com um desenho de Julio, feito a linoleum. O miolo, impresso em papel manteigueiro, ostenta uma certa exuberância nas dimensões dos carateres dos títulos. Quanto aos conteúdos poéticos, sobressai uma poesia centrada no eu, afirmativa e com alguns traços de espetacularidade, resultante de uma linguagem metafórica a apelar aos sentidos. Por vezes, os seus poemas ganham uma dimensão confessional e de eleva- ção espiritual quase mística, sustentada nas dualidades maniqueístas Bem/Mal, Carne/ Espírito, Terreno/Divino, onde um eu inquieto se autoanalisa e questiona. Nos anos subsequentes, Régio continuou a produzir poesia subjugada às mesmas te- máticas, tendo em mente um projeto mais alargado com vista a uma trilogia poética cujos títulos – “Novos Poemas de Deus e do Diabo” e “Últimos Poemas de Deus e do Diabo” – dariam sequência ao seu primeiro livro. Porém, o projeto, reformulado várias vezes, acabou por não ser concretizado, sendo o material poético incluído nas obras posteriores, como foi o caso do volume As Encruzilhadas de Deus, que recolheu grande parte dos poemas daquele projeto. – O segundo livro de poesia, que recebeu o título Biografia, foi dado à estampa no pri- meiro trimestre do ano 1929, nas Edições Presença e impresso na Tipografia Atlântida, em Coimbra. A obra não passou despercebida à elite letrada, tendo sido recebida com grande regozijo no nosso meio intelectual e até parisiense [Figuras 4, 5 e 6].

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FIG. 4 FIG. 5 FIG. 6

A capa ostenta um desenho de Julio, a linoleum, impresso em papel de embrulho de cor cinzenta, demasiado compacto e grosseiro. À semelhança do volume anterior, o mio- lo também impresso em papel manteigueiro, em que se destaca o excesso dos carateres, com títulos a linoleum. Os poemas, embora contidos numa estrutura clássica – o soneto –, distinguem-se por serem marcadamente de inspiração modernista, denunciando, em certos aspectos, afinidades com a poesia de Mário de Sá-Carneiro, como o recurso à fragmentação, à captação sensorial, à indagação do eu e ainda quanto ao modo de sentir, como refere Fernando Pessoa, na carta enviada a Régio, em 17 de janeiro de 1930, comentando a comoção que a leitura de Biografia lhe causou:

«[…] É um livro admirável, porém a sua leitura, para em seu effeito ser mais admirável, faz-me saudades. Faz-me saudades do maior amigo meu, do único grande amigo que tive – o Mário de Sá-Carneiro, a quem a leitura dos seus sonetos enthusiasmaria como uma boa nova. Sonhei sem querer – em um d’aquelles sonhos retrospectivos e erróneos – que estivessemos lendo juntos os seus sonetos, e reconheço a voz d’elle e a minha no con- senso enthusiastico da apreciação. Explico. Há uma intima analogia entre o seu modo de sentir e o modo de sentir que distinguia o Sá-Carneiro. O modo de sentir o modo de sentir é que é differente, como convém a dois que são dois, e não commummente o terceiro que não é ninguém. […]» [sic].

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A 24 de janeiro de 1930, Régio responde a Pessoa nos seguintes moldes: «[…]

Quero bem ao meu livro, se êle assim lhe evocou Sá-Carneiro. Creio bem que entre Sá-Carneiro e eu haja afinidades – pois eu, mais que o admiro, o amo. E algumas das suas páginas, julgo compreendê-las com aquela cegueira ou lucidez de quem se com- preende a si próprio. Entre êle e eu há talvez, além de outras diferenças!, a de êle ser mais Artista (e quanto mais inovador!) e eu, ai de mim! mais humano… isto é: duma humanidade mais geral, que ainda é uma das razões do meu drama, por estar em con- flito com o muito que há em mim de particular. […]».

Também em alguns textos, ressoam ecos baudelairianos nas escolhas lexicais e efeitos da transfiguração da palavra, no recurso à imagética e a jogos sinestésicos, e ainda na tendência para exibir e dramatizar os conflitos íntimos, o sofrimento e as relações dico- tómicas entre o Bem e o Mal, o Grotesco e o Sublime, a Verdade e a Mentira. Estas dua- lidades antagónicas propícias à contradição e ao fingimento, caras a Régio, encontram igualmente expressão na subjetividade da poesia modernista. No final do ano de 1934, em Coimbra, surgiu o primeiro romance de José Régio, Jogo da Cabra Cega, incluído nas Edições Presença [Figuras 7 e 8].

FIG. 7 FIG. 8

Sob o ponto de vista material, não está longe das obras atrás referidas – a capa igual- mente em papel pardo, embora mais claro e de textura mais fina do que o usado até então, traz uma composição gráfica da autoria de Julio. Apesar de apresentar um aspeto mais contido, mantém o cunho do gosto presencista.

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Iniciado na década de 20, ainda em ambiente coimbrão, sabe-se que, por volta de 1927/28, o texto, que tinha sido pensado para novela, já ia ganhando forma de romance e Régio já se preocupava com o título, conforme cartas enviadas a Gaspar Simões, como a de 10 de setembro de 1927, onde faz referência às hipóteses de título do romance: «A verdade ou o seu poço»; «Compreender!»; «Cada um de nós». Na carta remetida em 8 de setembro de 1928, Régio já revela uma ideia mais clara sobre o seu trabalho, ao afirmar:

«Acho justíssimo tudo o que dizes a propósito dos dois títulos que te apresentei para o meu romance. Eu também voto pelo primeiro: Jôgo da Cabra Cega. Penso chamar assim ao livro: Jogo da Cabra Cega ou Jaime Franco, humanista indesejável».

Em agosto de 1929, saía no nº 21 da revista Presença, o primeiro fragmento do ro- mance, intitulado «Fragmento inédito do romance inédito Jôgo da Cabra Cega». Dois anos mais tarde, no nº 35, de março-maio de 1932, era publicado o segundo fragmento intitulado «Transcreve-se mais um trecho do romance inédito Jôgo da Cabra Cega». Estes excertos vieram a integrar respetivamente os capítulos X e XV da versão definitiva. Logo após a sua publicação, o romance, considerado atentatório contra a moral pública, foi apreendido pela Censura e só voltou a ser reeditado em 1963, integrado nas «Obras Completas» da Portugália Editora. No contexto das temáticas trabalhadas, o romance, a fazer lembrar A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro, pela presença de um homoerotismo subjacente, de- senvolve um complexo drama psicológico e moral vivido pelo protagonista, num am- biente semelhante àquele que o autor experienciou durante a sua vida de estudante em Coimbra. Centrado na dicotomia “Provincianismo/Modernismo” e na constante dialética auto-reflexiva do eu com o outro, este romance, posto que Régio lhe conferiu as marcas da sua mais íntima personalidade artística e da sua originalidade, poder-se-á dizer que constitui um modelo de “literatura viva” preconizada nas páginas da Presença. As Encruzilhadas de Deus, saído em 1936, é o terceiro volume de poesia regiana, com chancela das Edições Presença, Coimbra [Figuras 9, 10 e 11].

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FIG. 9 FIG. 10 FIG. 11

Com características muito próximas dos dois livros de poemas já publicados, este também apresenta uma capa de papel de embrulho de cor parda, embora de consistência menos grosseira, ilustrada com um desenho de Julio, feito a linoleum. O miolo, impres- so em papel manteigueiro, como os demais, mantém o gosto dos títulos exuberantes, ainda que usando um grafismo menos artesanal. Como variante às anteriormente publi- cadas, esta obra encontra-se enriquecida com seis desenhos de Julio a ilustrar os poemas. A nível temático, o poeta prossegue nos mesmos moldes de poesia intimista centrada na introspeção e no monólogo, ora em tom confessional ora a roçar o teatral, dum eu indagador e atormentado perante um Deus que teima a não se revelar. Nestas quatro obras publicadas em Coimbra, que podemos designar ainda de juven- tude e, acima de tudo, fortemente impregnadas dos princípios consignados no ideário estético da Presença, consideramos dignas de realce as similitudes que as aproximam tanto a nível formal como temático: por um lado, os formatos não normalizados, os ma- teriais utilizados, os grafismos e as ilustrações; por outro, os temas que, com incidência quase obsessiva, alimentam os discursos poético-dramáticos e reflexivos que perpassam estas obras. São, pois, obras identificadas com um tempo, um espaço e circunstâncias específicas que as tornam paradigmáticas de um momento específico da vida do autor e, acima de tudo, de uma geração.

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A partir de meados da década de quarenta, coincidindo com o fim da revista Presença, a produção literária de Régio abandona as marcas das Edições Presença, ganhando pro- gressivamente contornos de maturidade, ainda que a nível ideológico mantenha os mes- mos registos de conflitualidade íntima e de uma recorrente busca de autoconhecimento. Enquanto teorizador da revista, José Régio não se cansou de escrever e afirmar o seu conceito de Arte e do que ele entendia por Homem-Artista. Porém, não se ficou apenas pela produção teórico-crítica para se exprimir em termos ideológicos. Como criador, colocou a arte ao serviço da teoria da expressão, ajustando os “conteúdos” do ideário estético às “formas” do discurso literário/poético. Recorrendo à imagética, teceu com- binações metafóricas e sensoriais que conferiram dinamismo e plasticidade a quadros plenos de realismo descritivo, como pintura através das palavras, transferindo, desta forma, a subjetividade dos conceitos de génese artística para digressões meta-poéticas, cenários paradigmáticos desses mesmos conceitos. Um exemplo concreto do que acabamos de afirmar é o texto manuscrito pelo punho de Régio, que aqui divulgamos e que faz parte do arquivo documental do Centro de Estudos Regianos, de Vila do Conde. Embora o documento não apresente qualquer tipo de identificação, nem assinatura, nem título, nem data ou local de elaboração, não há dúvidas de que estamos perante um autógrafo de José Régio. A sua caligrafia inconfundível, quase desenhada, realizada a caneta de aparo e tinta preta, sobre o habitual papel comercial de quadrícula alongada, usado como suporte de rascunho desde os tempos da Presença, são suficientes para atestar a sua origem. O manuscrito é composto por cinco páginas, numeradas no canto superior direito – quatro folhas de bifólios cortados, escritas só de um lado, sendo a quinta página no verso da quarta folha. Na margem superior, anotações escritas a lápis, com as medidas: 29,3 cm e 22,3 cm. O suporte apresenta algum desgaste, vincos e sinais de manuseamento, so- bretudo no verso da última folha, que levam a concluir que as folhas foram dobradas para serem guardadas ou transportadas num bolso. Quanto à tinta preta, já esbatida e oxidada, assim como o papel amarelecido e com manchas de acidez, denunciam as marcas do tempo e da exposição à luz. Apesar do tecido da escrita apresentar alguns riscados e rasuras, estes não interferem diretamente na estrutura textual. Por esse facto e tendo em conta situações idênticas no espólio literário de Régio, conjetura-se que, apesar das rasuras, se trate de uma passagem a limpo da versão definitiva do texto. Além disso, as anotações feitas a lápis, a indicar medidas de altura e largura, são fortes indícios de se reportarem às dimensões da mancha gráfica de uma página impressa e reforçam a hipótese de se tratar de uma cópia destinada à tipografia.

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Passando ao conteúdo textual, trata-se de uma prosa poética onde através de uma arti- ficiosa metalinguagem é revelado o modelo do Homem-Artista, aliás, muito próximo do que foi exposto no artigo-manifesto intitulado “Literatura Livresca e Literatura Viva”, que o autor assinou no nº 9 da revista Presença (pp. 2 e 4), saído em fevereiro de 1928. Segundo Régio, Homem, Artista e Realidade circundante são a tricotomia perfeita para que a Arte exista na sua completude:

«O Artista é homem, e é na sua humanidade que a arte aprofunda raízes […]; A Arte é uma re-criação individual do mundo […]; Na Obra de Arte, o mundo valerá o que valer o Artista. E nela, as coisas não são o que são: são o como são. Isto é: são – o que são através do Artista […] que a vida, a natureza, a realidade, o homem – valerão na Obra de Arte o que valer a personalidade artística que os reflita.»

O texto do manuscrito não é mais do que uma reescrita poética dos conceitos pro- gramáticos plasmados nos artigos publicados nos primeiros números da Presença, o que leva a pensar que poderá ter sido escrito durante esse período, entre 1927 e 1929, sob a efervescência doutrinária e, portanto, produzido ainda em Coimbra, ou eventualmente já no Porto, durante o ano em que Régio lecionou nesta cidade. Depois da abordagem codicológica do manuscrito, não restam dúvidas de que este texto se destinava a ser publicado num periódico. Porém, a ausência de título e de data dificultam a sua localização e apesar dos esforços enveredados nesse sentido, não foi alcançado qualquer indício dessa hipotética publicação. No entanto, atentando nas dimensões anotadas a lápis, na margem superior da primeira página, deparamos com a evidência de que as mesmas coincidem com a mancha gráfica das páginas da Presença. Esse facto leva-nos a conjeturar a hipótese de o texto ter sido escrito para a revista e por mera falta de espaço nunca ter chegado a ser publicado nela, como aconteceu com tantas outras colaborações que permanecem inéditas até hoje. Ou ainda, não menos plausível, a circunstância de ter sido, por qualquer razão, rejeitada a ideia de publicação pelo próprio autor. Assim sendo, resta-nos considerar as fortes possibilidades de se tratar de um autógrafo inédito de José Régio [Figuras 12, 13, 14, 15 e 16].

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TRANSCRIÇÃO DO AUTÓGRAFO DE JOSÉ RÉGIO APRESENTADO NA PÁGINA ANTERIOR

«Com os pés enterrados e os cabelos voando a ventos do alto – assim o artista nasce. E cresce quando todo êle consegue voar como os seus cabelos. Não tem, para isso, de arrancar os pés da terra: Só tem de ter tanta força no vôo que os pés o possam seguir levando pegada a terra em que estão enterrados. Arrancar os pés da terra que os prende – se tal é possível – seria abstrair. É isso questão de filosofia, modo de conhecer diver- so do modo de conhecer que é a arte. O artista não abstrai! Por isso os filósofos são quem menos compreende os artistas, e os artistas quem menos compreende os filósofos, embora na origem tanto da filosofia como da arte esteja a mesma misteriosa intuição inicial. Uma semente rebenta, ergue a haste como quem ergue um ensaio de cântico, estende folhas como quem estende as mãos, e floresce. Venceu. Do contacto da pobre semente minúscula e do estrume da terra, nasceu êste milagre capaz de fazer chorar um poeta: uma flor! São assim grandiosos e obscuros os divertimentos de Deus. A flor não morre sem deixar a semente que a perpetua. Admitamos que a obra de arte seja a flor. Evidentemente, a flor não é a raiz nem o húmus que a nutre. Mas cortem a raiz a uma planta, a ver se ela dá flor! A arte não é os pés do artista nem o chão em que mergulham como raízes. Arte e Humanidade não são a mesma coisa. Mas arranquem o artista da terra – separem no homem-artista o artista do homem – ficará qualquer coisa menos arte. Ou, repetindo isto mesmo sob forma diversa, separem o homem do artista enter- rando o homem no solo até já se lhe não ver os cabelos que voavam a ventos do alto, – também ficará qualquer coisa menos arte. A arte é uma intimidade com o mundo, que é um dos incompreensíveis atributos de Deus. E como o homem é coisa do mundo, a arte é intimidade do homem-artista consigo próprio, como o é com todo o sensível aos nossos sentidos cógnitos ou incógnitos. O vôo do artista que leva a terra pegada nos pés – não é, pois, um vôo para cima ou para baixo: O para cima e o para baixo, o em cima e o em baixo, o alto e o fundo – é claro que não existem senão para quem está num ponto considerando outro ponto. Falei de ventos do alto, pondo-me em qualquer ponto que não existe logo que se dispense o espaço. Digamos, agora, que o vôo do ar- tista vai no sentido do íntimo, e que o íntimo é a aparência verificada ou a verdade da aparência. Ora a aparência não pode ser verificada sem um profundo contacto, pois a verdade da aparência (ou revelação do essencial) não é negação da aparência mas sim penetração dela. Que o artista, pois, tenha os pés mergulhados no chão – se o seu vôo é capaz de arrastar o próprio chão que lhe prende os pés. E que todas as aparências do mundo entrem na obra de arte – se a arte é exactamente a chave própria a abrir quantas paredes fechadas se ofereçam ao artista. Essa chave, cada criador traz a sua e todas servem. E munido dela, o artista pode dar-se a caprichos de arqui-milionário: Dentro do seu palácio, os planos que vulgarmente distinguimos como do humano e

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do divino, do rial e do fantástico, do lógico e do incöerente, do evidente e do miste- rioso, cruzam-se e entrecruzam-se sem grande respeito pela arquitectura urbana. Pelos corredores divagam anjos de libré. Mas outros de libré ou andrajos, e que não tinham modos de anjo, sobem às vezes numa fuga rectilínea que abre uma clara-boia no tecto e sulca nos ares o rastro dum cometa. Ao fundo do tanque do jardim, repousam estrelas que caíram do céu nas noites de tempestade. Ora essa mesma tempestade arrancou os arbustos e as flores do jardim: voando, os arbustos foram lançar raízes pelas profundezas do espaço. E florescem voltados cá para baixo, de modo que as suas flores trocam acenos e olhares com as estrelas caídas nos limos do lago; enquanto os sapos da margem, aco- corados, se miram na água onde a sua beleza se espelha mais rial do que a sua fealdade. Que importa que tudo isto provoque o riso, a cólera, o desprêzo, o despeito de alguns visitantes? Se entraram, foi por nesse dia a volúvel fachada do palácio ter as janelas e as portas segundo a ordem corrente; ou as não ter nessa ordem – o que sempre desperta a curiosidade dos transeuntes. Mas, “muitos serão chamados, e poucos os escolhidos”. E que importa o feitio dos instrumentos, ou a ou o metal de que são feitos, ou a altura dos tablados, ou o vestuário dos músicos, ou os quatro, cinco ou seis dedos que tenham nas mãos, – se a música penetra os que não tapem os ouvidos? Só dessa música vibram as palavras dum poema, os sons duma sinfonia, os volumes duma escultura, as linhas dum desenho… O mais é letra, não é espírito. Tudo o que a arte diz é verdade – porque expontâneamente a arte dá sentido a tudo.» [sic].

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REFERÊNCIAS

José Régio (1926), Poemas de Deus e do Diabo. Coimbra: Lúmen. - (1929), Biografia. Coimbra: Ed. Presença. - (1934), Jogo da Cabra Cega. Coimbra: Ed. Presença - (1936), As Encruzilhadas de Deus. Coimbra: Ed. Presença - (1977), Páginas de Doutrina e Crítica da «presença». Porto: Brasília Ed. - (1980), Três Ensaios sobre Arte (2ª ed.). Porto: Brasília Ed.. Lisboa, Eugénio (1984), O segundo Modernismo em Portugal (2ª ed.). Lisboa: Inst. de Cultura e Língua Portuguesa. Martines, Enrico (1998), Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da «presença». Lisboa: INCM. Monteiro, A. Casais, (1995), O que foi e o que não foi o movimento da «presença». Lisboa: INCM. presença (1993), edição fac-similada. Tomos I, II, III. Introdução de David Mourão-Ferreira. Índices Remissivos de Carlos Santarém Andrade. Lisboa: Contexto. Simões, J. Gaspar (1977), José Régio e a História do Movimento da «presença». Porto: Brasília Editora.

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“TIPOGRAFIA VIVA”: EXPERIMENTAÇÃO E EXPRESSÃO TIPOGRÁFICAS NA REVISTA PRESENÇA

Sofia Leal Rodrigues

RESUMO Este artigo tenta aferir como o conceito programático de “Literatura Viva” influenciou o design gráfico da revista Presença. Iniciadora do segundo modernismo português, a pu- blicação revela-se um exemplo isolado de experimentação e de exploração tipográficas no contexto modernista nacional. Neste artigo identificam-se as relações de proximidade e de afastamento que a Presença estabelece com certos movimentos do modernismo, como a “nova tipografia”. Dos elementos gráficos da revista, os títulos são os que mais se destacam pelo seu carác- ter experimental e exploratório. Com base na literatura nacional sobre o ofício tipográfi- co, analisou-se a forma como a publicação adoptou e subverteu os modelos vigentes, no processo de construção de uma identidade gráfica própria.

PALAVRAS CHAVE design gráfico, tipografia, experimentação, exploração, expressividade

ABSTRACT This article attempts to evaluate how the programmatic concept of “Live Literature” in- fluenced the graphic design of the Presença magazine. Initiator of the second Portuguese modernism, the publication proves to be an isolated example of experimentation and typographic exploration in the national modernist context. In this article we identify the relations of proximity and distance that the Presença establishes with certain mod- ernism movements, such as the “new typography”. Of the magazine’s graphical elements, the titles are the ones that stand out most due to their experimental and exploratory nature. Based on the national literature regarding the typographic craft, an analysis was made on the way the publication has adopted and subverted the prevailing models in the process of building its own graphic identity.

KEYWORDS graphic design, typography, experimentation, exploration, expressiveness

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O primeiro modernismo português ficaria marcado pela proliferação de publicações periódicas em formato de revista que se podem dividir, essencialmente, em dois grupos distintos: os magazines, de teor comercial, dedicados a uma vivência mundana, e as re- vistas de pendor literário. Em revistas como a Ilustração Portuguesa ou a ABC, a ânsia de estabelecer um corte com a normatividade oitocentista e a aplicação mais canónica do “modelo clássico” redunda em composições tipográficas que testam novas soluções, com fotografias e ilustrações recortadas em formas inusitadas, textos subjugados aos contor- nos da imagem e explorações de letterings e de tipografia eclética. Num extremo, como acontece com a liberdade gráfica da Civilização, o layout traduz uma noção de equilíbrio que pode equiparar-se à difícil (e perigosa) arte de “andar no arame”, como advogaria Alfred Tolmer no seu Mise en Page:

Tal como patinar ou andar no arame, a arte do layout é uma arte de equilíbrio. Não pode, to- davia, ser expressa meramente como um cálculo matemático. O funâmbulo procura o equi- líbrio com uma vara e não com o auxílio de uma fórmula. O sentido do equilíbrio; o modo certo e errado de se fazer qualquer coisa, a quantidade de ar que permite à Terra respirar; a quantidade de sono que permite a maior actividade durante o dia; o modo mais satisfatório de combinar os elementos de um palco, da página de um livro ou de um cartaz; todas estas coisas são essencialmente uma questão de sentimento. (Tolmer, 1931: s.p).1

A que se deve esta liberdade gráfica das revistas e dos magazines? Ao contrário do que acontece em diversos países europeus, como na Alemanha, com a Die Neue Typographie (1928) de Tschichold, ou em França, com o Mise en Page: The Theory and Practice of Lay-out (1931) de Tolmer, em Portugal, no princípio do século XX, a literatura dedicada às artes gráficas concentrava-se, essencialmente, em manuais ti- pográficos, como o Manual do Tipógrafo (1908) de Libânio da Silva e a Iniciação do Compositor Tipográfico (1929) de Apto de Oliveira. Embora o livro seja o objecto privilegiado da maioria dos manuais, Libânio tenta compensar esse predomínio com a criação pioneira de um capítulo dedicado aos “trabalhos comerciais e de fantasia”.

1 “Like skating or walking the tight-rope, the art of lay-out is an art of balance. It cannot however be ex- pressed merely as a mathematical calculation. The tight-rope walker steadies herself with her parasol rather than with the aid of a formula. The sense of stability; the right and the wrong way of doing anything, the amount of air that enables the earth to breathe; the amount of sleep that permits of the greatest activity during the day; the most satisfactory way of combining the elements of a theatre-set, the page of a book or a poster; all these things are essentially a matter of feeling.”

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Tal como os “caracteres de fantasia” que usualmente cumpriam fins publicitários, os “trabalhos de fantasia” abrangiam um amplo leque de artefactos (facturas, rótulos, catálogos, etc.) com objectivos idênticos. Os “trabalhos de fantasia” correspondiam, de uma forma genérica, a tudo o que não era obra de livro, embora Apto de Oliveira venha reivindicar na sua Iniciação (…) que determinados elementos estruturais do livro, “cujas exigências artísticas não podem, de modo algum, ser cabalmente satisfei- tas pelas limitadas – ainda que desenvolvidas – habilitações do compositor de cheio” (Oliveira, 1929: 120), deviam incluir-se nesta categoria. Libânio lista diversos exemplos de “trabalhos de fantasia”, embora nunca especifique o que entende por esta expressão/ conceito. Seria sobretudo Manuel Pedro, um tipógrafo do Porto, que devotaria alguma atenção ao assunto num dos seus textos dedicados às artes gráficas. Para Manuel Pedro, os trabalhos comerciais, de “fantasia” ou de “remen- dagem” (designação portuense), “estão confiados a obreiros especializados, pelo facto de nem todos os tipógrafos terem competência profissional para confeccionarem um trabalho que exija gosto e arte” (Pedro, 1947: 50). Quando compara a concepção de um livro com as exigências de um trabalho comercial, o autor é peremptório:

O tipógrafo de trabalhos comerciais, está sobejamente demonstrado, não tem, durante o trabalho, a preocupação constante do paginador ou do compositor de cheio. Ele, perante o formato a que deve obedecer as dimensões da chapa, trabalha segundo a sua intuição artís- tica. Tem plena liberdade para executar, evidentemente, procurando sempre uma finalidade. Enquanto que no tipógrafo de trabalhos comerciais tem de haver o bom gosto, nos pagina- dores, nos caixistas, há maior esforço físico e intelectual (Pedro, 1947: 50-51).

Enquanto o livro estava sujeito ao respeito pelas regras, nomeadamente, as do “modelo clássico” – utilização de manchas de texto rectangulares, perfeitamente justificadas, articuladas com títulos de alinhamento central, de modo a criar eixos de simetria na unidade da página ou do spread –, os trabalhos comerciais estavam isentos de condicionalismos. Ora, o facto das publicações periódicas (jornais, revistas, magazines, etc.) não cons- tarem das prescrições técnicas dos manuais tipográficos coloca-as num estranho limbo entre os ensinamentos advindos da produção do livro e os imperativos criativos do trabalho comercial. Nos magazines, a aproximação à esfera comercial é mais eviden- te na fisionomia da publicação; nas revistas literárias há um maior esbatimento dessa intenção. Ainda assim, será a proximidade aos “trabalhos de fantasia” que motivará a liberdade gráfica deste tipo de publicações, como a Presença, revista que dará início ao denominado, e não sem polémica, segundo modernismo em Portugal.

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PRESENÇA: DA “LITERATURA VIVA” À “TIPOGRAFIA VIVA”

A “Literatura Viva” pretendia combater a “literatura morta”, portuguesa, contemporâ- nea, feita por autores “sem personalidade própria”, que exploram uma escrita extravagante, desprovida de autenticidade e de espontaneidade, em busca de originalidade. No entender de José Régio, só uma “personalidade suficientemente rica” podia forjar um estilo e produ- zir uma obra “rica (…) de substância e de forma”. O estilo opõe-se à “maneira”, uma escri- ta superficial, “mecânica”, que vive apenas de um pretenso apuramento linguístico. Ora, os verdadeiros criadores (literários) são aqueles que desenvolvem as “formas” e os “processos” mais adequados à expressão da sua “sensibilidade”; e, quanto mais inovadores, mais autên- ticos e verdadeiros. Este processo é imutável em termos artísticos. Régio concluía:

Eis como tudo isto se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que ele produza será superior; inacessível, portanto às condições do tempo e do espaço. (Régio, 1927: 2)

A ideia da “Literatura Viva”, expressa nos artigos de Régio e secundada nos textos de outros autores, como João Gaspar Simões, marca o tom literário da revista Presença e o destino da sua orientação gráfica. A “Literatura Viva” mais não era do que um manifesto a favor da originalidade e da inovação na literatura, mas também na Arte (em caixa alta). Régio tinha a preocupação de afirmar que este género de literatura é a devida expressão da sensibilidade que a motivou. Ou seja, na “Literatura Viva” aquilo que caracteriza a individualidade artística do autor está bem expresso na sua obra. O primeiro número da revista, o mesmo que exibe na capa o artigo programático “Literatura Viva”, introduz o leitor no que doravante será a essência gráfica da publicação: a experimentação e a exploração tipográficas. João Gaspar Simões, no livro José Régio e a História do Movimento da “Presença”, testemunha como o primeiro corpo de directores e editores da revista (do qual fazia parte em conjunto com Régio e Branquinho da Fonseca) se envolveu directamente na aventura que foi a sua concepção nas oficinas da Atlântida:

Essa velha tipografia foi, realmente, o quartel-general das manobras gráficas da nossa folha. A luta que tivemos de travar contra a rotina nos primeiros tempos deu-nos, entre os tipógrafos, fama de malucos. A pouco e pouco, porém, acabaram por aceitar de boa mente as nossas «ma- luquices». A paginação, de princípio orientada por José Régio e Branquinho da Fonseca, implicava dias e dias de trabalho diante do mármore da oficina. Era a primeira vez que aquela boa gente via compor títulos sem capitais e nomes próprios sem a respeitável maiúscula. A partir de Outubro de 1927, também eu passei a tomar parte activa nesses prélios, colaborando nas audácias tipográficas que se tornaram um dos atractivos escandalosos da nossa publicação. (Simões, 1977: 160-161)

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Adolfo Casais Monteiro refere, igualmente, a originalidade das experiências da Presença e o escândalo que provocaram no meio tipográfico (Monteiro, 1972: 115). A fama que os directores da revista ganharam entre os tipógrafos da Atlântida não é surpreendente. Apesar do manual de Libânio da Silva propalar a ousadia expressa nos “trabalhos de fantasia”, a resistência a tudo o que extravasasse as regras de tipografia dos convencionais modelos de simetria, perpetuados de mestre para aprendiz, era muita e, na maioria das vezes, partia da iniciativa da própria classe. Publicada entre 1927 e 1940, a revista que assinala o início do segundo modernismo português, atravessa, em termos de movimentos gráficos europeus, a génese da “nova tipografia” e a consolidação do “Estilo Suíço”. O primeiro número da Presença vem a público cerca de quatro anos depois de László Moholy-Nagy baptizar o termo “nova tipografia”, num pequeno texto publicado no catálogo da exposição Staatliches Bauhaus in Weimar, 1919-1923, em 1923. Em termos teóricos, parte do cerne da “nova tipogra- fia” está aqui explanado. Nagy começa por afirmar que a tipografia, como ferramenta de comunicação, deve ser absolutamente clara, desde a escolha do tipo de letra até à sua composição. Assim, a legibilidade da mensagem nunca deverá sacrificar-se a uma forma pré-estabelecida como, por exemplo, um quadrado (Nagy, 1923: 21). O conteúdo guia- rá a expressão e o efeito visual da forma que o transmite. Este processo de design revela- va-se suficientemente versátil e variado, ao ponto de admitir o uso de “todos os tipos de letra, tamanhos de tipo, formas geométricas, cores, etc.”2 (Nagy, 1923: 21), sem esque- cer a exploração de disposições e orientações espaciais que ultrapassem a normatividade da grelha ortogonal. O autor antecipava, ainda, o que viria a ser o “typophoto”, ao defender a mais-valia da introdução da objectividade da fotografia no plano tipográfico. No livro Malerei Photographie Film, publicado em 1925, Nagy caracteriza o “typopho- to” como um conceito que implica, igualmente, uma libertação da tipografia da sua con- dição passiva de mediadora do texto, para se transformar num reforço criativo do conteú- do. O “typophoto”, ou a conciliação da tipografia com a fotografia, devia fazer justiça ao diálogo significante entre os elementos gráficos, numa síntese, acima de tudo, funcional. O “typophoto” exigia, assim, um novo tipógrafo: o tipo-fotógrafo (Nagy, 1925: 26). Influenciado pelo trabalho de El Lissitzky e de Moholy-Nagy, duas figuras fundamen- tais na introdução do construtivismo na Alemanha (Burke, 2007: 30), Jan Tschichold escreve, em 1925, dois textos algo redundantes sobre a “nova tipografia”: o manifesto Die Neue Typographie, na revista Kulturschau, e o Elementare Typographie, publicado na Typographische Mitteilungen. Em ambos os textos, Tschichold reitera a utilização de recursos elementares da tipografia para alcançar eficazmente um determinado objectivo comunicacional. Às ideias já enunciadas por Nagy, Tschichold acrescentava a apologia dos tipos de letra sem serifa, pela simplicidade formal, a aposta na caixa baixa, pela

2 “all typefaces, type sizes, geometric forms, colors, etc.”

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economia no uso do alfabeto, a ideia de contraste (entre formas, pesos, cores, etc.) para auxiliar a hierarquia da informação e a escolha de formatos estandardizáveis (DIN), uma ideia que aprofundará na Die Neue Typographie, de 1928. Ilustrada com diversas imagens de trabalhos do próprio Tschichold, de El Lissitzky, Moholy-Nagy, Herbert Bayer, Piet Zwart, Theo van Doesburg e Kurt Schwitters, entre outros, a derradeira Die Neue Typographie de Tschichold abre com dois objectivos es- senciais que se interrelacionam: combater a “velha tipografia” e criar uma expressão ti- pográfica (design) fruto do seu tempo. A “velha tipografia” mais não era do que o “mo- delo clássico”, aquele que vigorou desde a génese da imprensa, maioritariamente, até ao princípio do século XX. À semelhança do preconizado por Nagy, para Tschichold a “velha tipografia” pecava, essencialmente, por impor a subordinação de qualquer conteúdo a uma forma pré-determinada (a ditadura do eixo central de organização da composição), baseada em princípios que exacerbavam a estética (o equilíbrio e a har- monia visual da página) em detrimento da expressão clara da informação (Tschichold, 1928: 66). Ao concentrar-se na superfície, na aparência da forma e no seu aspecto de- corativo, a “velha tipografia” descurava o essencial: a função comunicativa. O tipógrafo alemão atribuía a Fillippo Tommaso Marinetti, o fundador do futurismo italiano, e à sua produção gráfica, um feito precursor da “nova tipografia”: “Pela primeira vez, aqui, a tipografia torna-se uma expressão funcional do seu conteúdo”3 (Tschichold, 1928: 56). Esse era, igualmente, o objectivo maior da “nova tipografia”. Tschichold opunha- -se à geometria simétrica da “velha tipografia” com uma disposição assimétrica dos elementos na página e no spread. Esta e outras regras, desenvolvidas ao longo da obra de 1928, dão corpo a um sistema que pretende subverter o “espartilho” do “modelo clássico”, através da criação de um novo “espartilho”. Na Presença, como é tradição nas revistas e nos magazines do primeiro modernismo, mantém-se uma utilização do desenho e da ilustração que, por si só, inviabiliza uma aproximação ao modelo da “nova tipografia”; a adopção de diversos tipos de letra, em oposição à norma proposta por Tschichold do uso exclusivo de tipos sem serifa, sublinha essa impossibilidade. À semelhança de algumas revistas do primeiro modernismo, a Presença mantém uma estrutura-base simples, com uma grelha de uma, duas ou três colunas, na primeira série, e de uma ou duas, na segunda. A opção pelas duas colunas é a escolha predominante ao longo de toda a publicação. A subdivisão das duas colunas em três resulta da usual incorporação de poesia nas páginas da revista, uma tipologia de texto que rareia nos dois únicos números da segunda série.

3 “For the first time typography here becomes a functional expression of its content”.

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No entanto, há alguns pormenores dignos de nota no layout da revista. A utilização de filetes para demarcar os campos da grelha é um deles. As revistas dadaístas recorriam frequentemen- te às linhas tipográficas para separar a informação ou auxiliar o leitor no caos das suas publi- cações, como acontece com a revista Mecano (1922); mas a obra que assume marcadamente a estrutura da grelha como elemento activo da página é o livro trilíngue Die Kunstismen (1925) de El Lissitzky e Hans Arp, publicado em Zurique. A inserção de um quadrado negro para fe- char um poema de Tomás de Figueiredo, no número 4, assinala, igualmente, a proximidade a alguns movimentos de vanguarda, como o suprematismo, o neoplasticismo, o construtivis- mo ou o movimento De Sijl. O quadrado negro aparece impresso na capa do primeiro núme- ro da revista Merz (1923), na marca pessoal de Piet Zwart (negro) e a sua forma elementar se- ria alvo dos estudos de Kandinsky. Em Portugal, remete para a geração de Orpheu e para o K4 Quadrado Azul de Almada Negreiros, e seria constante ao longo da Presença. A própria publicidade às edições Presença (números 22, 23 e 24), pela forma como os chavões, as molduras e as linhas tipográficas são utilizadas para hierarquizar a informa- ção, lembra os primeiros exemplos publicitários da Merz. A tentativa de banir a “literatura morta”, e insuflar metaforicamente a publicação de “Literatura Viva”, passa por banir modelos rotineiros e testar os limites da composição tipográfica. A introdução de poesia é um escape à monotonia dos planos de texto em pro- sa. À semelhança de algumas experiências já postas em prática na revista Contemporânea, a poesia dá azo a composições de texto em zig-zag (número 2); à acentuação rítmica das letras capitulares de cada estrofe (número 4); à aplicação de capitulares em linóleo, para alcançar um maior contraste e expressividade; e, por fim, a páginas com um layout marcante, vivo, pelo ecletismo das escolhas tipográficas e compositivas dos títulos, e pela exploração de diversas colunas de texto na unidade da página (número 10). A vontade de inovar e de criar um estilo próprio, original, como Régio advogava, re- verte em soluções como o texto “Camões”, com um curioso “mîse en abyme”, e outras experiências inesperadas, como os títulos que atravessam duas colunas de texto (nú- meros 14 e 15) ou o próprio spread (número 23 e número 30). Ainda assim, se há, de facto, uma correspondência entre o conceito de “Literatura Viva” e o design da revista, a expressão tipográfica dos títulos é um dos seus principais testemunhos.

ENTRE O “MODELO CLÁSSICO” E O “MODERNO”

A composição de títulos, quer nas folhas de rosto (frontispícios), quer ao longo de uma obra (títulos correntes), é uma matéria largamente tratada na literatura nacional dedicada ao ofício tipográfico, na primeira metade do século XX. Mais uma vez, o Manual do Tipógrafo de Libânio da Silva revela-se pioneiro no aprofundamento que confere ao tema. A propósito da materialização de títulos e das dificuldades que a tarefa levantava, o autor advertia:

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Harmonizar a importância dos dizeres com a boa disposição tipográfica, dar vida aos títulos que devem sobressair sem que o conjunto se torne um pastelão à vista, harmonizar claros entre tipos de corpos muito diversos e de força desigual, sendo uns complemento de outros, é tarefa escabrosa, que só a prática e o gosto ensinam a vencer. (Libânio, 1908: 198)

Libânio limitava-se a replicar, sinteticamente, o conteúdo do Guide Pratique du Compositeur et de L’Imprimeur Typographes, de Théotiste Lefèvre, sobre a realização de frontispícios. O mais original da sua obra reside na apresentação de uma série de esquemas exemplificativos de frontispícios segundo o “modelo clássico” e “moderno”. O tipógrafo punha, assim, em confronto arranjos de títulos compostos em equilíbrio simétrico, face a outros que exploram, precisamente, a assimetria dos elementos, em composições em bloco. Embora os exemplos mais modernos de Libânio estivessem muito longe da complexidade da “typographie des groupes”, de François Thibaudeau (1924), ou da “nova tipografia” de Tschichold, tiveram o mérito de não confinar a realização dos títulos à tirania do alinhamento central. Libânio defendia a utilização de tipos de peso distinto que pudessem criar contrastes de diversos valores de negro. Respeito pela hierarquia dos conteúdos, harmonia nas es- colhas tipográficas, equilíbrio na disposição de palavras e na gestão dos espaços brancos constituíam as suas prescrições essenciais. Embora as recomendações do autor sejam su- ficientemente genéricas para se poderem adaptar a qualquer espécie de título, é evidente que assentam na referencialidade do “modelo clássico”. Já Apto de Oliveira reconhecia, em 1929, que “a época das «linhas rigorosamente ao meio»” [sic] em que a composição de um frontispício podia ser ensinada “título por título, vinheta por vinheta” tinha terminado. O “modelo clássico” dera lugar ao “moderno”, um sinal de renovação e de actualização que o tipógrafo considerava promissor:

Desapareceu, felizmente, esse império da monotonia, que tornava as montras dos livreiros autênticas exposições de epitáfios. O aspecto que elas hoje nos oferecem, [sic] é incompa- ravelmente melhor, porque denuncia a ânsia de novidade que avassala artistas, editores e, verdade seja, alguns autores. (Oliveira, 1929: 112)

Manuel Pedro, que publicaria o Guia Profissional do Tipógrafo e diversos opúsculos depois do fim da Presença, em 1940, revela uma posição contrastada. À semelhança de Libânio e de Apto de Oliveira, o tipógrafo dá um destaque privilegiado à confecção dos títulos dos frontispícios “clássicos” (regulares – em forma de jarro de Médicis, irregulares – com a forma lapidária e compostos que resultam de um misto dos dois anteriores) e “anti-clássicos” ou “modernos”. Embora assuma a sua predilecção pela funcionalidade e beleza do frontispício “clássico”, Manuel Pedro não deixa de fa- zer a apologia do “estilo moderno” ao longo dos seus textos. Para o autor, o “estilo

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moderno”, na esteira da “nova tipografia”, resultava do imperativo de criar novas es- tratégias gráficas capazes de satisfazer as “necessidades actuais do comércio e da indús- tria” (Pedro, 1945: 43). O “estilo moderno” que invadira as tipografias de “todos os países”, sem esquecer as portuguesas, era assim descrito:

Distinguem as formas modernistas tipográficas, a ausência total de todo o classicismo, a liberdade completa de composição, o agrupamento de títulos em certa desordem de bom efeito, como em blocos cerrados, colocados em grandes brancos e a simplicidade de adornos dominando a linha negra, simples ou ondulada, meia negra e fina. Na actual conjuntura, é impossível numa Arte tão livre, estabelecer regras. (Pedro, 1945: 44).

ESCOLHAS TIPOGRÁFICAS

Na revista Presença os títulos e até mesmo o seu cabeçalho assumem uma neces- sidade de renovar o “modelo clássico” que não está longe do “estilo modernista”, evocado por Manuel Pedro. Uma das marcas essenciais da Presença, visível essencial- mente nos títulos (e de certa forma, por extensão, no cabeçalho), é a panóplia varia- da de tipos de letra que os compõem. Os títulos representam um autêntico mostruá- rio da oferta tipográfica que, à época, a maioria das tipografias nacionais dispunha. A composição dos títulos denota uma predominância de display-faces oitocentistas, como as Antigas, as Elzeverianas, as Normandas, as Egípcias Renascença e as usuais desmultiplicações de letra moderna, bem patentes nas Francesas, nas Inglesas e nas Compactas. A presença de outros tipos de fantasia, como os sombreados e outros de desenho mais moderno, vagamente Arte Nova, garante uma aparência profunda- mente eclética e extravagante à publicação. O lado mais subversivo e irreverente da Presença revela-se, não na escolha conven- cional de display-faces para materializar um título, mas na adopção do oposto: a caixa baixa. É assim que o seu carácter individual, espontâneo, sem deixar de ser universal, se revela. O mote para a exploração de títulos em caixa baixa é dado pelo próprio lette- ring do cabeçalho da Presença que, exceptuando os três primeiros números, apareceria sempre em minúsculas. Com a introdução da Futura no número 22, de Novembro de 1929 (Serejo, 2012: 225), o impacto dos títulos em caixa baixa acentua-se. A Futura acaba por representar o único, ténue, sinal de uma aproximação à “nova tipografia”, que não se cumpre plena- mente, porque a revista está muito aquém dos preceitos estabelecidos por Tschichold. De qualquer forma, o eco da “nova tipografia”, e das práticas tipográficas bauhausianas que a Futura encarna, alcançara finalmente Portugal. Em 1935, Luís Moita, ao reflectir sobre o espólio de letra das tipografias nacionais, isolava a Futura como a grande criação tipográfica da contemporaneidade:

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De 1900 para cá, passando a correr por esse horrível período da Arte Nova, que forneceu uns tipos detestáveis e pretensiosos, ainda hoje aqui e além subsistentes, uma única criação é digna de nota: o baton. Elemento gráfico representativo da nossa época, (de que o Futura, de Renner, é um requinte admirável), o baton é o tipo das revistas, dos impressos de reclame, o acessório de toda essa infinidade de criações tipográficas, consequência da vida intensa, da civilização dos nossos dias. (Moita, 1935: 56-7)

A letra que invadiria as revistas e os magazines nacionais no segundo quartel do no- vecentismo garantia à Presença uma certa aura de modernidade e de actualização com as vanguardas europeias. No número de estreia da Futura, a letra é apresentada em cai- xa baixa no título “les enfants terribles de Jean Cocteau”, que atinge um efeito dramá- tico pela sua dimensão e pela crueza negra e exacerbada dos caracteres. Curiosamente, os tipos de letra sem serifa, e a adopção apenas de minúsculas, são duas das exigências a cumprir no plano da “nova tipografia”. À semelhança do alfabeto Universal de Bayer, que dispõe apenas de letras minúsculas, Tschichold exigia a caixa baixa por razões de eficácia comunicativa:

para um som, por exemplo ‘a’, porquê ter dois sinais: A e a? um som, um sinal. porquê dois alfabetos para uma palavra? porquê dobrar a quantidade de sinais, quando metade alcança o mesmo fim? (Tschichold, 1925: 311)4

A propósito da intenção de suprimir a caixa alta, Manuel Pedro afirmava:

Defendamos a letra versal, este velho sinal gráfico que durante séculos foi o companheiro mais elegante da letra minúscula e que vive, presentemente, em virtude das ideias renova- doras, a hora mais perigosa da sua existência, pois os modernistas da arte tipográfica preten- dem, na melhor oportunidade, desterrá-la para sempre. (Pedro, 1947: 54)

O tipógrafo defendia a importância da letra maiúscula como regra gramatical e como figura geométrica (Pedro, 1947: 53). Para mostrar as desvantagens desta “audácia gráfi- ca”, que em Portugal não colhia grandes adeptos, Manuel Pedro ilustra os seus comen- tários com imagens de títulos compostos em caixa baixa que redundam num aspecto inacabado e pouco coeso.

4 “for one sound, for example ‘a’, why two signs: A and a? one sound, one sign. why two alphabets for one word, why double the quantity of signs, when a half achieves the same?”

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COMPOSIÇÃO

Para além das escolhas tipográficas ou da opção pela caixa baixa ou alta, a expres- são dos títulos da revista vive essencialmente da composição. Os títulos em “modelo clássico” têm uma presença muito pontual durante o período em que José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões integram a direcção e a edição da revis- ta. Até ao número 30, é possível observar versões mais canónicas deste tipo de títulos, nas “Legendas Cinematográficas” (números 4 e 7), na intencional “Redução de Deus” (número 7), ou no já citado “Les enfants terríbles (…)” (número 22). A abertura, ou melhor, o retorno paulatino aos títulos centrados ocorre, sobretudo, a partir da saída de Branquinho da Fonseca da Presença, em Junho de 1930. Com Régio a leccionar em Portalegre desde 1929, a revista perde os seus dois principais orientadores gráficos. Coincidentemente, inicia-se um processo de lento desvanecimento do experimenta- lismo tipográfico a favor de soluções mais convencionais. Assim, desde o número 29 até ao número duplo 53-54 há uma média de um título composto segundo o “mo- delo clássico” em quase todos os números. Na segunda série, essa presença é óbvia e constante. O que de certa forma suaviza e moderniza o “modelo clássico” é a escolha inusitada, e por vezes incisiva, da Futura para o materializar. A Presença privilegia, desde o primeiro número, a concepção de títulos em “estilo moderno”. Ao contrário do “modelo clássico”, o “moderno” consagrava a liberdade de executar títulos com diferentes famílias tipográficas, reforçados com traços decorativos, em composições alinhadas à esquerda, à direita ou compostas em bloco (Pedro, 1945: 29). Mais fáceis de executar, os títulos “modernos” adaptavam-se, por excelência, às exigências criativas dos “trabalhos de fantasia”. Na Presença, a preferência pelo estilo “moderno” é assinalada logo no cabeçalho com o título da revista, na marcada composição em bloco dos três primeiros números, em parte, retomada a partir do décimo sexto. Ao longo da primeira série abundam os títu- los em bloco, como se verifica, por exemplo, em “Classicismo e Modernismo” (número 2). A necessidade de dispor de linhas da mesma dimensão para a execução dos títulos em bloco é satisfeita, na maioria dos exemplos da Presença, através da manipulação do espacejamento entre caracteres e palavras. Alcançar o equilíbrio entre os espaços em branco na composição de texto era um dos maiores desafios que se impunha ao tipógrafo. Os preceitos relacionados com os espacejamentos e a justificação consti- tuíam uma temática transversal à literatura técnica sobre o oficio tipográfico, desde a Diagnosis Typografica (1804) de José Custódio de Oliveira. Ora, a criação de títulos em bloco vinha, em muitos casos, subverter a desejável harmonia entre os espaços brancos, ao forçar certas palavras e frases a adaptarem-se a uma determinada dimensão. No opúsculo A Arte na Tipografia, num subcapítulo especialmente dedicado à impor- tância dos títulos nos trabalhos tipográficos, Manuel Pedro advertia que os títulos em

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bloco causavam um “péssimo efeito”, sobretudo quando compostos em caixa baixa. Na Presença há inúmeros títulos que seguem esta lógica, como o “Carta das Termas”, do número 8. Na opinião do tipógrafo, o desenho mais geométrico dos caracteres em caixa alta ainda conseguia “dar um ar de graça artística” (Pedro, 1955: 36) a este género de títulos; é o que acontece, por exemplo, no “Centenário de Ibsen” (número 11), ou em títulos que seguem a tipologia do “Poema do Silêncio” (número 4), em que se uti- liza uma linha intermédia para isolar as proposições ou introduzir numerais. De certa forma, estes títulos, dentro do espírito “moderno”, são os que mais se aproximam da noção de equilíbrio simétrico, característica do “modelo clássico”. O autor tecia, ainda, várias críticas a soluções de títulos que a Presença mimetiza. Os títulos em bloco excessivamente monótonos e pouco contrastados, compostos sem qualquer espécie de variação de corpo e de tipo de letra, denunciavam uma condenável falta de hierarquia da informação e, por isso, deviam evitar-se. O título “Literatura Livresca e Literatura Viva” (número 9) repete um exemplo do opúsculo de Manuel Pedro que o tipógrafo classifica de “inaceitável”. O título é marcante pela sua singular originalidade. Para constranger a frase num rectângulo (bloco), partiram-se as palavras “Literatura” e “Livresca” nas suas correctas divisões silábicas, mas sem utilizar hífens, logrando também uma acentuação fonética que pretendia corresponder à ênfase que Régio coloca no título e no conteúdo do artigo. No interior da Presença é recorrente verem-se títulos com palavras partidas, com e sem hífens. O título referido dá nome a um texto de José Régio que domina o número 9, anunciado como um número-ma- nifesto. É aqui que Régio faz uma afirmação que estabeleceria a cisão entre presencistas e seareiros: “A finalidade da Obra [de Arte] será, consciente ou inconscientemente, a finalidade estética.” (Régio, 1928: 2) Régio refere, ainda, que “os grandes Artistas não se interessam senão pela revelação artística da sua individualidade” (idem: 3), de tal maneira que conclui: “Tudo depende de se ter ou não ter individualidade (to be or not to be), e, consequentemente, um processo próprio de revelação, ou um uso próprio de processos já usados.” (Idem: 4) Num artigo que aborda a “individualidade artística”, ou o “estilo”, o título, pelo desenho peculiar da display face escolhida, tenta ser o reflexo de um modo de expressão próprio. A quebra das palavras e a ausência de hífens dão continuidade à mensagem, numa estratégia de simulação de movimento e de reforço da noção de “Literatura Viva”. No entanto, o título peca por uma certa falta de legi- bilidade, devido à estrutura compositiva, ao entrelinhamento diminuto, ao excessivo espaço entre caracteres e palavras, e ao abandono das regras gramaticais. Do estilo “mo- derno”, Manuel Pedro condenava, igualmente, pelo resultado “detestável”, os títulos que eram exageradamente espacejados para atingirem a largura da página (Pedro, 1949: 51). Na Presença são incontáveis as situações em que o título é espacejado até alcançar a largura da mancha útil (“Modernismo” e “Poemas”, nos números 14 e 15, “Enervante” e “Dolência”, no número 17, entre outros). O tipógrafo portuense exigia, ainda, que

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se banisse a tendência “pouco feliz” de compor títulos na vertical, adaptados à escrita logográfica oriental e pouco legíveis na ocidental (Pedro, 1955: 40). Esta solução com- positiva é adoptada no título “Rodin” (número 5) e repetir-se-á ao longo da publicação. A introdução da Futura e o progressivo predomínio que as letras sem serifa passam a assumir nos títulos pacificam a ânsia de experimentalismo e de teste aos limites de algumas convenções tipográficas que pautam os exemplares anteriores. A dificuldade de trabalhar harmonicamente as composições de títulos não serifados, e o pendor neutro e asséptico dos seus desenhos dão uma maior estabilização ao design da publicação, por contraste com a amostra eclética da fase de arranque da revista.

A EXPRESSIVIDADE TIPOGRÁFICA E O VALOR SEMÂNTICO DOS TÍTULOS

A tentativa de converter a forma visual num complemento significante da mensagem que veicula é um objectivo que perpassa a história do design gráfico/ de comunicação, com diferentes intensidades, propósitos e expressões, sensivelmente desde a sua origem. Embora a intenção de trabalhar a forma como um elemento decisivo na interpretação semântica do conteúdo possa ser observada em obras em prosa, como sucede com o ro- mance pioneiro de Laurence Sterne The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (1759-67), é sobretudo na poesia que mais se manifesta. Jasia Reichardt encontra uma justificação para este fenómeno: “A linguagem da poesia é aquela que amplia o seu significado e que pode transmitir a mensagem com mais força e mais ternura do que outras formas de escrita. Como forma de comunicação, as suas únicas regras são as da sua própria criação.”5 (Reichardt, 1965: 9) Na entrada do século XX, apesar do exemplo dado por autores como Stéphane Mallarmé, que dispersava as palavras do poema Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard (1897) na unidade da página para potenciar vários sentidos de leitura, na opinião de Jan Tschichold, caberia a Marinetti o mérito de utilizar a tipografia não com propósitos estéticos ou decorativos, mas com o objectivo “funcional” de a converter numa expres- são visual do seu conteúdo. Com Marinetti, a poesia tornava-se “poesia-visível”, em vez da anterior “poesia-audível” (Tschichold, 1928: 56). O próprio Marinetti, no manifesto Destruição da Sintaxe, Imaginação Sem Fios, Palavras em Liberdade (1913) propunha uma “revolução tipográfica” destinada a quebrar todos os modelos gráficos vigentes, inclusive, o de Mallarmé:

5 “The language of poetry is that which amplifies its meaning and which can convey its message more forcefully and more tenderly than other forms of writing. As a form of communication, it is one for which the only rules are those of one’s own making.”

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Combato, além disso, a estética decorativa e preciosa de Mallarmé e as suas pesquisas da pa- lavra rara, do adjectivo único insubstituível, elegante, sugestivo, bizarro. Não quero sugerir uma ideia ou uma sensação com as graças ou as afecções passadistas: quero sim agarrá-las e atirá-las à cara do leitor. Combato além disso o ideal estático de Mallarmé, com esta revolução tipográfica que me permite imprimir às palavras (já livres, dinâmicas e torpedeantes) todas as velocidades, dos astros, das nuvens, dos aeroplanos, dos comboios, das ondas, dos explosivos, dos glóbulos da espuma marinha, das moléculas e dos átomos. (Marinetti, 1913: 132-33)

Apesar de Eduardo Lourenço designar a Presença de “contra-revolução do moder- nismo”, por se aproximar em termos estruturais e culturais do tempo que antecedeu a revolução modernista operada por Orpheu, João Gaspar Simões explica a homenagem implícita que o artigo “Literatura Viva” de Régio faz a esta revista:

O artigo de abertura da nova publicação denunciava a indigência das letras portuguesas nesse final da segunda década do século. O seu título — Literatura Viva — propunha um programa, já que, para falar em «literatura viva», o seu autor tinha diante dos olhos todo o panorama de uma «literatura morta». De facto, a última manifestação viva das letras portu- guesas naquelas quase três décadas do século XX datava de 1915. A publicação em Abril desse ano, do primeiro número da revista Orpheu fora o toque a reunir de uma geração dispersa que se juntava, finalmente, mercê da guerra que desde o ano anterior lavrava nos campos da Flandres. (Simões, 1977: 148)

Na Presença são constantes as referências à geração de Orpheu, sobretudo a Fernando Pessoa, a quem é dedicado postumamente o número 48, de Julho de 1936. Aliás, no artigo Da Geração Modernista, José Régio referia-se assim aos futuristas:

Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, José de Almada Negreiros, Raul Leal, Mário Saa — eis alguns nomes já familiares aos novos que se interessam pela Arte que vibra, que se renova, que se inquieta, que evolui, que vive. Os seus livros ou as revistas em que aparecem não têm ainda um grande público… Pouco importa. Seja qual for a superioridade duns sobre outros, seja qual for o valor eterno, o quanto de imortal das suas obras, é através destes que a Literatura portuguesa acompanha o movimento europeu de Arte Moderna — criando alguma coisa embora no sentido relativo do verbo criar. (Régio, 1927: 1)

A revista Orpheu aderia ao ténue eco da expressividade tipográfica futurista em poemas como a “Ode Marítima” de Álvaro de Campos ou o “Manucure” de Mário de Sá Carneiro. A Portugal Futurista (1917), apesar de enveredar por um maior experimentalismo, estava longe de alcançar o carácter revolucionário exigido por

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Marinetti. De certa forma, a Presença, pese embora o epíteto de “contra-revolução do modernismo”, acaba por explorar a herança gráfica de movimentos de vanguar- da, como o futurismo e o dadaísmo, com um grau de aprofundamento (e de despu- dor) que não se vislumbra nas publicações nacionais ditas modernistas. Na Presença, os primeiros testemunhos de uma utilização mais expressiva da tipogra- fia aparecem, mais uma vez, nos títulos, sobretudo nos de obras poéticas. A sua curta dimensão e o carácter sugestivo da linguagem que empregam converte-os no alvo ideal de um trabalho tipográfico mais arrojado. Em todos os exemplos em que é possível observar sinais de expressividade tipográfica, a forma é utilizada para dar ênfase, mesmo que subtilmente, ao sentido do título ou do texto a que o título se refere. A forma vive das escolhas tipográficas e do arranjo compositivo. Logo no número 1, o título de um poema de António Navarro, “O Braço de Arlequim”, composto com dois tipos de letra intercalados, inaugura uma tendência que se prolonga ao longo da publicação. Num poema onde “Há gritos e pinchos,/ ale- gria e folgança”, o título tenta reproduzir a sonoridade e a animação através do contras- te entre diferentes desenhos e expressões de negro das letras. A mesma estratégia é repe- tida no título “O Disco Luminoso” (número 13) e nos títulos “Bacanal” (número 5) e “Tabacaria” (número 39), com diferenças ao nível do estilo dos caracteres (regular/ itá- lico e caixa alta/ caixa baixa). Manuel Pedro opunha-se, igualmente, a este tipo de títu- los que considerava modernos, mas extravagantes e difíceis de ler. A propósito de um título de efeito muito semelhante ao alcançado por “Tabacaria”, referia: “Procura-se fa- zer Arte, mas com inovações desta natureza em vez de a enriquecermos com agradáveis aspectos, pelo contrário assassinámo-la.” (Pedro, 1955: 41) A representação da velocidade, tão cara aos futuristas, é apurada no título “Charleston” (número 6). O poema, também da autoria de António Navarro, descreve a coreografia electrizante de um corpo a dançar ao som do jazz. O título sugere a celeridade do mo- vimento no espaço da página, através de uma sequência de caracteres que desenha uma curva decrescente no meio da palavra. Em alguns casos pontuais há uma clara exploração do dinamismo, como aconte- ce em “Depois da Feira” (número 16). No título deste poema de Fernando Pessoa, os caracteres encontram-se dispersos numa linha ondulante que simula o percurso sugerido no texto: “Vão vagos pela estrada/ cantando sem razão”. Mas, os exemplos mais surpreendentes são os que apresentam uma dinâmica compositiva que resulta da intenção muito dadaísta de suscitar desafios ao nível da leitura. É o que sucede no título do poema “Quatro Poemas do Retardador” (número 5) assinado por Carlos Queiroz. Para tornar a leitura mais lenta, a palavra “retardador” foi partida em sílabas que adquirem espacejamentos cada vez maiores para dificultar a ligação visual entre os caracteres. Já no título “A Caneta e a Dúvida” (números 31-32), todo composto em Futura caixa baixa, os caracteres estão dispostos num ritmo ziguezagueante de leitura.

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O texto, da autoria de Olavo d’Eça Leal, fala da dúvida existencial em torno de uma caneta que o narrador supõe ter perdido; no título, a incerteza é reiterada pelo jogo mo- mentâneo de decifração do sentido de leitura, cuja solução reside na lógica cromática, verde e preta, que une pares de caracteres. Depois de um interregno entre o números 17 e 22, marcado pela presença de alguns títulos manuscritos, provavelmente, feitos em linóleo, a adopção da Futura marca uma nova fase na expressividade da revista. Segundo João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca foi o primeiro presencista a dedicar-se ao processo de de- senhar e gravar (Simões, 1977: 161). O desenho permitia criar títulos únicos e irrepetíveis, com uma vincada marca autoral, embora em muitos casos, difíceis de ler (por exemplo, “Mar Coalhado”, número 17; “O José Rotativo”, número 20; “Acrobatas”, número 21). No entanto, estes títulos desenhados à mão satisfazem, de forma plena, a necessidade de diferenciação e de modernização da linguagem gráfica que a Presença sempre enunciou. Como diria João Gaspar Simões, a propósito da lite- ratura, estes títulos assinalam um “estilo”: “É estilo toda a forma em que se descubra o sinal inconfundível duma personalidade” (Simões, 1927: 1), repetindo aqui um dos princípios da doutrinação estética de José Régio. A Futura, estreada alguns meses antes da saída de Branquinho da Fonseca, impunha, pela sua depuração, novos desafios ao nível da estruturação e composição dos títulos. Com a Futura, a intenção de adequar a expressão tipográfica do título ao teor da men- sagem torna-se mais evidente. Em muitos casos há uma aproximação e uma reciproci- dade plena entre a significação do conteúdo e o seu aspecto formal: o conteúdo motiva as escolhas formais e, simultaneamente, a forma opera como uma estratégia visual que acentua a essência do conteúdo. Antes da introdução da criação de Paul Renner no interior da Presença, essa tendência está patente em títulos como “Os três reinos” (nú- mero 4) ou a “Natural redução de Deus” (número 7). No primeiro, as palavras do título estão sobrepostas em três linhas distintas, alinhadas ao centro; no segundo, utiliza-se a mesma fórmula, embora reduzindo progressivamente as palavras, até alcançar a mais diminuta: “Deus”. A partir do número 22, o título é convertido numa extensão gráfica do próprio conteúdo, nos seguintes exemplos: “Homem do Mar” (número 22), no afas- tamento e proximidade entre caracteres e palavras para referenciar a agitação marítima; “Os dois” (número 23), na diminuição exagerada do espacejamento entre os caracteres da palavra “os” para aludir ao significado de “dois”; “Não se passa nada” (número 26), na subversão do sentido do título através do jogo entre caracteres de diversos tamanhos; “Cegos” (número 26), na ampliação do “G” para o aproximar da representação icónica de um olho; “O caminho do meio” (número 26), na tentativa de ilustrar a significação do título através da composição centrada do “O” e do “do”; “Elói ou romance numa cabeça” (número 27), na irregularidade e na plasticidade da palavra “Elói”, para indiciar a personalidade associada a um nome próprio; “Mais além da poesia pura” (número

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28), na forma como o título está constrangido para sugerir o que está para além dele; “Messe noire poème sacré” (números 31 e 32), na ênfase dada à “massa negra” dos elementos tipográficos; “Metafísica infinitista” (número 37), na expansão da palavra “infinitista”; “Canção frívola” (número 40), no contraste entre as fontes utilizadas para acentuar o significado de cada significante; “Transcreve-se o capítulo III.º do romance Uma História de Província” (números 41 e 42), na simulação de um cabeçalho de livro arcaico; “Literatura” (número 45), na separação silábica da palavra, numa referência às regras que regem a linguagem escrita.

CONCLUSÃO

Na revista Presença, o conceito de “Literatura Viva” lança o mote para a experimen- tação e exploração tipográficas que caracterizam a revista. Tal como a “nova tipografia” assumia um combate contra a “velha tipografia”, também nas páginas da Presença o “modelo clássico” seria frequentemente testado e subvertido. Embora a publicação dê inicio ao segundo modernismo, em termos gráficos são múltiplas as referências aos movimentos de vanguarda que pautaram a geração de Orpheu. No entanto, ao contrá- rio do que se verifica na grande maioria das revistas literárias do primeiro modernismo português, a Presença aposta, veementemente, no carácter diferenciador do seu design. Os presencistas entenderam a importância que o design gráfico da publicação pode ad- quirir na transmissão da sua ideologia. Se o programa que move a Presença é a inovação na literatura, o seu design deverá ser, igualmente, original. Em termos gráficos, a liberdade da revista é facilitada pelo carácter lacónico que a tipologia dos “trabalhos de fantasia” assume nos manuais tipográficos, e pela crescente abertura ao “modelo moderno”. Ainda assim, grande parte do experimentalismo tipo- gráfico da Presença seria condenado na literatura nacional referente ao ofício. Apesar da publicação enveredar por algumas soluções inovadoras ao nível do seu layout, é sobretu- do nos títulos que se concentra o carácter mais experimental e exploratório da revista. Num primeiro momento, os títulos são materializados com o leque usual de escolhas ti- pográficas das oficinas da época, em composições, maioritariamente, em bloco, em con- formidade com o “modelo moderno”. A adopção da Futura no número de Novembro de 1929 coincide com uma progressiva sobriedade e estabilização do design da revista. A presença da Futura, aclamada por autores nacionais como Luís Moita, seria o único elo de ligação à “nova tipografia” de Tschichold. Apesar de se observarem exemplos de expressividade tipográfica na fase de arranque da revista, a Futura, pela sua simplicidade formal e neutralidade, incentivará a exploração do valor semântico dos títulos.

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PRESENÇA: UMA REVISTA TIPOGRAFADA AO RITMO DO MODERNISMO

Cristiana Serejo Jorge dos Reis

RESUMO

A análise gráfica da revista Presença, é movida pela magnitude do modernismo, pela materialidade da vertente tipográfica das vanguardas russas. Os seus caracteres de chum- bo e de madeira dão consistência funcional e composicional à abordagem editorial. As artérias urbanas de sangue vivo, lembrando constantemente a Moscovo de Lissitzky e Rodchenko, a Milão de Marinetti, a Paris de Apollinaire, são a seiva que liga as sinergias das artes plásticas e das artes gráficas. A materialidade da arte negra assenta na forma como o grafismo organiza os conteúdos editoriais, do ponto de vista político e estético, sendo modernista pela composição tipo- gráfica, pelas díspares actividades de produção e edição da revista. Estudemos agora bem de perto a revista Presença onde parece suceder o que acontece sempre que há falta de recursos: uma planificação rigorosa do tempo para que a qualidade do produto se mantenha a um nível aceitável. Regista-se a participação de todos os seus directores no que diz respeito à composi- ção da peça gráfica, atraindo outros colaboradores de diferentes saberes e especialidades. Observam-se amostras de um trabalho de compilação de pranchas tipográficas, particu- larmente singulares, de paginação e sequência de páginas, de construção de cabeçalhos, da gravação de matrizes e gravuras, do artefacto tipografado.

PALAVRAS CHAVE

Revista Presença; Modernismo; Materialidade; Grafismo; Tipografia

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ABSTRACT

The graphical analysis of the Presença magazine is moved by the magnitude of modern- ism, by the materiality of the Russian avant-garde letterpress. Its lead and wood charac- ters give functional and compositional consistency to the editorial approach. The urban arteries of circulating blood, reminding constantly Moscow of Lissitzky and Rodchenko, the Milan of Marinetti, the Paris of Apollinaire, are the sap that links the synergies of the visual arts and graphic arts. The materiality of the black art is based on how the graphic design organizes the edito- rial content, on the political and aesthetic points of view, being modernist by typographic composition, by the disparate activities of production and issue of the magazine. Now we examine closely the Presença magazine where it seems to succeed what hap- pens whenever there is lack of resources: a rigorous planning of the time for which the quality of the product is kept to an acceptable level. There is the participation of all its directors with respect to the composition of the graphic piece, attracting other contributors from different knowledge and specialties. There are samples of a compilation of typographic boards, particularly natural, paging and following pages, construction of headers, the recording of arrays and engravings, the typographic artifact.

KEYWORDS

Presença Magazine; Modernism; Materiality; Graphism; Typography

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Há precisamente cinquenta anos, Herbert Spencer publicava Pioneers of Modern Typography, uma das obras absolutamente seminais da cultura do design gráfico na eu- ropa do pós-guerra, um guia das vanguardas da tipografia que viria a influenciar suces- sivas gerações de designers gráficos e que motivou uma filiação profissional. É também no universo longínquo dos pioneiros que se inscreve este trabalho, estabelecendo uma relação dialéctica com o imaginário de autores essenciais como Lissitzky, Werkmann e Rodchenko. A obra destes três autores, em particular, constitui a negação do provisório e do efémero; neste sentido, o design gráfico deve procurar a metáfora do infinito, da perenidade, de eternidade, que é igualmente a ambição da revista Presença.

Como qualquer outro objeto, a Presença pode ser vista de várias perspetivas. O olhar da literatura e o das artes plásticas, é o que tem conduzido a grande maioria das análises produzidas ao longo dos anos, passando ao lado da perspetiva de onde se olha a Presença como objeto tipografado, como objeto gráfico e também como testemunho da história do Design em Portugal.

Mas, se para entender os contributos literários e artísticos é necessário compreender, também, os contextos e as filosofias predominantes na época, para entender o objeto ti- pografado e gráfico é igualmente preciso aceder a essa mesma visão contextual, acrescida das condições do microssistema onde a sua criação tem lugar.

CONTEXTO HISTÓRICO, SOCIOPOLÍTICO E ARTÍSTICO-LITERÁRIO DA REVISTA PRESENÇA

José Bártolo faz um enquadramento histórico-político do design em Portugal na se- gunda e terceira décadas do século XX, onde se situa o movimento presencista, de forma resumida e cronologicamente determinada:

Os 19 anos que preenchem o arco temporal entre 1920 e 1939 são marcados, de forma de- terminante, por três distintos períodos políticos: o contexto da I República, vigente entre a implantação da República (1910) e o golpe militar de 28 de Maio de 1926; a instauração, a partir de 1926, da Ditadura Militar e, mais tarde, da (1928); e finalmente a implantação do em 1933. (Bártolo, 2015, p. 5)

João Gaspar Simões, um dos fundadores e diretores da Presença (1958, p.14) acres- centa que ‘’estávamos, realmente, em 1927. A primeira Grande-Guerra terminara nove anos antes. Em França entra-se plenamente no chamado período do após-guerra’’. A queda das monarquias em Portugal, conduz à implantação da República em 1910, com todo o clima de agitação e mudança que este facto político origina. A revolução

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industrial também traz, a nível mundial, uma enorme instabilidade económica e, com ela, a radicalização das ideias de esquerda e de direita. Em Portugal, agudiza-se a consciência do atraso de desenvolvimento do país, cons- ciência essa geradora de diferentes ideias e motivações que se digladiam num cenário de convicções políticas; no campo das artes estas ideias materializam-se em princípios estéticos e artísticos. A implantação da república incentiva uma maior liberdade de expressão e de criação, que a 1ª Guerra (1914-1918) não impede de continuar, embora com todos os problemas económicos daí decorrentes e do natural descompasso de Portugal em relação à Europa. O começo da 1ª Guerra, ao fazer regressar a Portugal muitos artistas, vem trazer tam- bém uma outra dinâmica cultural, mesmo nestes tempos conturbados. Através deles, chegam notícias a Portugal dos movimentos europeus franceses, italianos e alemães. Paralelamente, a imigração de artistas para Portugal, fugindo da Guerra, como o pintor francês Robert Delaunay (um dos mentores da arte plástica do Orphismo, nome dado por Guillaume Apollinaire a este movimento) e sua mulher Sónia Delaunay, incentiva a continuação e reforço de contactos artísticos com Santa-Rita Pintor, Emmérico Nunes, Eduardo Viana, Amadeu de Sousa Cardoso, Aquilino Ribeiro, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, entre outros. A Presença chega no período entre guerras, nos chamados Anes foles. Por esses anos, assiste-se à crise económica, à ascensão do Nazismo na Alemanha e do Estalinismo na União Soviética e ainda à guerra civil de Espanha. Internamente, à reação sangrenta contra a ditadura militar contemporânea do Estado Novo Corporativo, instaurado em 1933, o poder responde com a criação da União Nacional em 1934, a Organização Nacional da Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa em 1936. Desde o início do movimento onde se insere a Presença que se vai politicamente im- plementando um progressivo coartar de liberdades, um fecho de horizontes em termos de contactos e de criação. Consequentemente, cresce também a perceção do impacto sociocultural destas medidas. No entanto, na época do surgimento da revista, os seus editores e colaboradores ainda gozaram de uma razoável autonomia crítica e de alguma liberdade de expressão. Começou a ser alvo do visto da Comissão de Censura a partir do número 44, de Abril de 1935. Em termos artísticos, a Presença vem, como se vê, na continuidade dos movimentos vanguardistas cujo período decorre entre 1910-1920 e, cujo propósito é romper com uma tradição que desde o século XIX se limita a continuar os padrões vigentes do ro- mantismo e mais tarde do naturalismo:

Quando passámos por Coimbra, nós, os da geração de Presença, sentimos quanto éramos diferentes dos praxistas e dos boémios profissionais. O nosso grupo, o nosso escol, a elite de então, sofreu o destino de todas as elites: foi incompreendida e troçada. (Simões, 1970, p.287)

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Antes de o serem, os editores da Presença já se encontram ligados a uma intensa ati- vidade artístico-literária. O seu relacionamento começa, por volta de 1915, no círcu- lo dessa mesma atividade. De facto, é das revistas, Orpheu, Contemporânea, Portugal Futurista, Bysâncio, Tríptico e Athena que sai o núcleo duro de colaboradores e diretores da Presença.

O ano de 1925 é palco de dois importantes eventos que se revelam determinantes para a construção do núcleo central do ideário presencista: o aparecimento do Movimento Futurista de Coimbra e a apresentação da tese de licenciatura de José Maria dos Reis Pereira (José Régio).

FIG. 1 Pormenor do Coimbra Manifesto 1925 com as citações de Marinetti

Conforme Petrus (n.d.) o Movimento Futurista de Coimbra lança um manifesto in- titulado “Coimbra Manifesto 1925” que também fica conhecido por “manifesto dos quatro”, assinado por Óscar (Mário Coutinho), Pereira São-Pedro (Celestino Gomes), Tristão de Teive (Abel Almada) e Príncipe de Judá (António de Navarro). Impresso na forma de um panfleto, em ‘’papel acastanhado idêntico ao usado no comércio para embrulhos, composto em tipos vários e vários corpos e com utilização de versaletes” (Cunha, 1965, p. 150), abre com duas citações de Marinetti (Figura 1):

« Ce fut en aeroplane, assis sur cylindre à essence le ventre chauffé par la tête de l’aviateur que je sentis tout à coup l’inanité ridicule de vieille syntaxe héritée de Homère.»

« Debout sur la cime du monde, nous lançons encore une fois le défi aux étoiles.»

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No verso do manifesto, em busca da “soma-vertigem” vem Abel Almada (que assina como Tristão de Teive), “aquele que incansável construía a Teoria dos Contrários, o método de chegar à verdade oculta na simulação” (Figueiredo, 1960, p. 27), com o seu “Do sentido Geométrico”:

Subir é descer ao invez. Um sinal – suprime uma palavra, um ângulo agudo suprime um conceito = sentido. (…) Positivo + Negativo nunca é zero. Porque ficam setas, imagens feitas na abstração do não-ser. Zero é uma nulidade com sentido. (…) São três sentidos:

1º LUZ; 2ºTEMPO; 3º ESPAÇO.

FIG. 2 Do Sentido Geométrico de Tristão de Teive, no verso do Coimbra Manifesto 1925

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Por sua vez, a tese de licenciatura de José Régio debruça-se exatamente sobre As corren- tes e as individualidades na moderna poesia portuguesa, pressagiando o importante papel deste escritor, poeta e crítico literário nas letras portuguesas de todos os tempos. A esse propósito Vítor Aguiar e Silva (1995, p.157) afirma que “cronologicamente, José Régio é quem primeiro introduziu e fê-lo, deve ser sublinhado, num estudo de índole universitária, apresentado à “conspícua Faculdade de Letras de Coimbra” e “nas categorias historiográficas da literatura portuguesa” — o conceito de Modernismo”. No nº 2 da Presença, no seu artigo Classicismo e Modernismo (1927, p.2), Régio afirma:

Por modernismo entendo um certo modo de personalidade actual - mais fácil de clas- sificar que de definir. Nenhuma das principais correntes estéticas contemporâneas sin- tetiza o modernismo, porque é a personalidade modernista que as engloba a todas: Não obstante algumas dessas correntes se oporem violentamente, de todas participam as mais características individualidades de hoje. É que por evolução ou reacção, todas se originam no romantismo.

Estas observações de Régio justificam e confirmam uma das principais linhas de for- ça dos presencistas: o modernismo é um ‘abrigo’ para todas as manifestações e expres- sões literárias, poéticas e artísticas cujo traço de união é a criatividade livre, conhece- dora e autêntica.

JOSÉ RÉGIO E O IDEÁRIO DA PRESENÇA

Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos demais, (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficial- mente aparentados; por exemplo: o adjectivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... (Régio, 1927, p. 1)

Embora de forma nem sempre claramente assumida por todos (em especial por José Régio que o considera como uma discussão sem sentido), pelo ideário presencista passa a isenção ideológica e social da edição e a liberdade de credo político, religioso e moral dos seus colaboradores.

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FIG. 3 Revista Presença, nº1, p.1

De todos os responsáveis e colaboradores da Presença será dado destaque especial a José Régio, mas não só pela importância real e efetiva dos seus contributos como escritor e como ideólogo do presencismo. De facto, Régio teve também um envolvimento direto e de alta qualidade estética na reflexão, no estudo e na tomada de decisões acerca das questões gráficas e tipográficas da produção, de que deixou inúmeras e úteis evidências. Para além da sua atividade como diretor e editor, José Régio é quem mais artigos escreve na revista. Se algum movimento especificamente presencista existiu, Régio é sem dúvida um dos seus mais importantes ideólogos. Sem aprofundar as problemáticas inerentes às diversas correntes artísticas e estético-filosóficas que atravessam a revista, é importante referir, que a Presença gerou movimentos tanto de seguidores como de contestatários e que a ampla agenda crítica do ‘ideário presencista’ é bastante debatida.

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Em José Régio, há dois aspetos da sua participação que consideramos básicos: a pro- cura e admissão de colaboradores nem sempre “afinados com as suas diretrizes estéticas” e o seu profundo empenho na criação e no exercício de uma personalidade própria:

O desprezo de José Régio por modas e cartilhas era genuíno e, direi mesmo, quase especta- cular. Nada enfurecia tanto aquele homem de uma grande serenidade aparente, como ver diante de si um papagaio debitando, numa justaposição à “la page” e sem nexo, todos os “mots du jour” aceites sem crítica nem esforço interpretativo. (Sena, 1988, p.42)

Muitos consideram estes aspetos contraditórios, mas tudo leva a crer que é graças a eles que a Presença tem, não só um “carácter libérrimo”, como consegue manter, durante muito tempo, tantos colaboradores. O vínculo pessoal e artístico a autores ligados à revista Orpheu — Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro (Março a Junho de 1915) – e à Portugal Futurista — Almada Negreiros, Amadeu de Souza Cardoso e Santa Rita-Pintor (Novembro de 1917) – mos- tra, sobretudo no início, a admiração de Régio pelo projeto que sustenta ambas as revistas. Em termos conceptuais, há quem considere que a Orpheu e a Presença são duas faces do mesmo movimento que uma geração animou e que, no dizer de Pimentel (2001, p.157)

primeiro terçou armas pelo reconhecimento e pela valorização do modernismo e da litera- tura moderna em geral. Uma geração que não hesitou em reconhecer a grandeza da prece- dente; que cedo realçou a especificidade dos problemas estéticos; que libertou consciências e educou adversários; que apostou sobremaneira na instauração de uma teoria e de uma crítica sérias e regulares em Portugal. Como todos os movimentos que, desde o roman- tismo, foram ascendendo nos domínios da arte e da literatura, a Presença construiu uma imagem de marca — no seu caso, a de privilegiada continuadora de Orpheu —, e soube impô-la, valha a verdade, durante os vários anos da sua profícua liderança nos domínios da crítica literária em Portugal.

O conceito de modernismo é consequentemente assumido de forma diversa pelos vários colaboradores, apesar de muitos deles não terem, nem para si, nem para o movi- mento, uma definição própria. E embora, como atrás se viu, Régio diga que apareceu “uma Arte chamada modernista – sem que o Modernismo tenha sido definido” ele serve-se deste argumento para a denúncia de quem, levianamente, sem esforço e com a afetação do ‘’truque literário’’, se entrincheira no modernismo como se ele fosse sim- plesmente mais uma moda. Confrontado com o propósito de desenvolvimento de uma nova sensibilidade intelec- tual e artística, que pressupõe procura e estudo ‘dentro’ de uma escola, torna a referir-se ao conceito do modernismo sobretudo como atitude, pois ‘’o modernismo é antes uma

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disposição de certa sensibilidade moderna, do que uma nova conceção de Arte, e por- tanto uma nova escola artística’’ (Pereira, 1925., p. 56). Por tudo isto, é consensual atribuir-se a José Régio a figura tutelar do presencismo, seja como poeta e ficcionista, seja como crítico e pensador deste ideário. No seu tex- to “Literatura Viva – Originalidade verdadeira e originalidade falseada”, publicado no primeiro número da Presença e baseado na sua tese de licenciatura, aparecem já as prin- cipais ideias que vão sendo desenvolvidas ao longo da duração da revista: “invenção, criação e descoberta” como base do projeto artístico; “originalidade e personalidade” como seus valores fundamentais. Complementarmente, a “falta de sinceridade” é uma das razões mais vulgares para a “inexistência de uma personalidade artística”. Ao longo dos anos, com a contribuição de vários dos seus colaboradores, o ideário da Presença foi-se espalhando por textos inscritos na própria revista. Também desde o primeiro número, a base do manifesto presencista é clara no assumir da sua independência, condição fundamental para total liberdade de expressão, acérrima e acesamente defendida por Branquinho da Fonseca, Edmundo Bettencourt e Miguel Torga.

PRESENÇA, LITERATURA, ARTES PLÁSTICAS, ARTES GRÁFICAS — SINERGIAS:

A interação (ou tentativa de reconciliação) entre as artes plásticas e a arte literária, de cuja separação foi responsável o realismo oitocentista, é um dos propósitos mais claros do modernismo presencista. Contudo, apesar de terem um espaço de expressão reservado a partir da ilustração, bem como um espaço de crítica e teorização – função a que a Presença, sobretudo José Régio, foi sensível – as artes plásticas não obtiveram a mesma atenção, nem suscitaram idêntica variedade e intensidade de polémica que teve a literatura. Mas é a partir da sua indistinção quanto à ontogénese das várias expressões artísticas que Régio defende a arte moderna, acrescentando-lhe, simultaneamente, a ‘visão’ carac- terística, implícita e diferente – de artista para artista, de expressão para expressão – mas também juntando corpo à mente, emoção à razão e consciente ao inconsciente. Por parte de muitos escritores, nomeadamente Régio, há mesmo um efetivo fascínio pela prática das artes plásticas, confessando em edição póstuma, ao referir-se ao irmão (o pintor Júlio/Saúl Dias):

um dos nossos gostos comuns era (...) desenhar ou até «pintar» (…) Tínhamos cada um a sua caixa de tintas, com bisnagas. Frequentemente trabalhávamos ao lado um do outro, ou estudávamos. Meu irmão nunca mais deixou de pintar e desenhar (...) Eu desviei-me das artes plásticas para a literatura, e fiquei um desenhista «de domingo» que quase só desenha quando não pode escrever. (Régio, 2001, p. 12)

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Esta relação tão próxima do escritor, poeta, com as artes plásticas, vai encontrar, no espaço da revista, um lugar muito especial, dando um novo sentido à noção de ilustração. Não apenas Régio, mas também Branquinho da Fonseca e Gaspar Simões, escrevem largamente sobre este assunto:

Qual o objetivo da arte? Se a realidade impressionasse directamente os nossos sentidos e a nossa consciência, se pudéssemos entrar em comunicação directa com as coisas e connosco próprios, julgo bem que a arte seria inútil, ou melhor que todos seríamos artistas, porquanto a nossa alma vibraria então continuamente em uníssono com a natureza. Os nossos olhos, ajudados pela memória seccionariam no espaço e fixariam no tempo quadros inimitáveis. Dum relance, o nosso olhar fixaria, esculpido no mármore vivo do corpo humano, fragmen- tos de estátuas tão belas como as da estatuária antiga. Ouviríamos ecoar no fundo nas nossas almas como que uma música por vezes alegre, quase sempre plangente, sempre original, a melodia ininterrupta da nossa vida interior. Tudo isto se situa à volta de nós, dentro de nós e, no entanto, nada de tudo isto é por nós distintamente percebido. Entre nós e a natureza, melhor, entre nós e a própria consciência, um véu se interpõe, véu espesso para o comum dos homens, leve véu quase transparente, para o artista e para o poeta. Que fada teceu tal véu? Foi preciso viver e a vida exige que aprendamos as coisas naquilo que elas têm de relação com as nossas necessidades. Viver é agir. Viver é só aceitar dos objetos a impressão útil e res- ponder-lhes com reacções apropriadas: as outras impressões devem esbater-se ou chegar-nos confusamente. (Simões, 1967, p.339)

FIG. 4 Nº 28 – capa: desenho de Olaio – A mulher que leva o filho

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FIG. 5 Nº 48 – capa: desenho de Almada

FIG. 6 Nº 47 – capa: desenho de Szenes

As ilustrações para obras escritas feitas por artistas plásticos reconhecidos no panora- ma artístico presencista — Almada e a sua mulher Sarah Afonso, Júlio (pintor, irmão de Régio, que como poeta usa o pseudónimo de Saul Dias), Mário Eloi ou mais tardia- mente Vieira da Silva e Szenes — foi um dos aspetos que mais contribuiu para trazer à Presença um carácter especial no que toca à gravura e às artes gráficas.

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A MATERIALIDADE GRÁFICA DA PRESENÇA – MANIFESTAÇÕES DE GRAFISMO MODERNISTA:

As questões organizativas e editoriais constituem a base de funcionamento de todas as atividades de produção e edição da revista. São elas que contribuem de modo funda- mental para a tomada de decisões levando em conta condicionantes que se podem situar a nível da política editorial ou das opções estéticas. No caso da Presença, parece suceder aquilo que acontece sempre que há falha de recur- sos, interferindo poderosamente na planificação: o tempo tem de ser de novo pondera- do, ou é a qualidade do produto que se arrisca a baixar. É Gaspar Simões quem mais informação fornece sobre as questões organizativas e edi- toriais, realçando a importante participação de todos os diretores nos aspetos de com- posição e montagem, bem como a sua capacidade, sobretudo no primeiro ano, de atrair colaboradores presencistas, revelando que “a compilação de originais, a organização dos números, a ordenação das páginas e, inclusivamente, a partir de certa altura, os cabeça- lhos e a gravação dos mesmos em linóleo, tudo era obra dos presencistas” (1958, p. 29). Os editores da Presença não só se encarregam da distribuição dos vários conteúdos pelo espaço da revista, como tratam da compra de papel, lidam com conceitos precisos de paginação, escolha de tipos e, na maioria dos casos, criam os experimentalismos gráficos e tipográficos de acordo com o sentido veiculado pelos conteúdos literários. Estão ainda ligados aos acabamentos finais e à distribuição. Tudo é feito pelos diretores e colaboradores diretos. Há inclusive uma atitude crítica em relação a diferentes opiniões entre os parceiros de edição, o que pressupõe haver um confronto de pontos de vista e a necessidade de criação de consensos em torno das decisões a tomar. João Gaspar Simões, no seu livro sobre a Presença, (1958, p. 27) refere que não par- ticipou na compra do papel em que foi impresso o primeiro número, nem na decisão “que deixou aos azares da ´Caixa` a regulamentação da tiragem”. Diz ainda que “é de mau gosto o papel dos primeiros números (...) felizmente substituído a partir do nº3”, acrescentando que “foi de péssimos resultados na organização das coleções da folha (...) a caprichosa fixação das primitivas tiragens”. No entanto, embora haja uma série de colaborações ao nível da composição, princi- palmente nos primeiros números, João Gaspar Simões é muito claro quando se refere a quem fornece as orientações:

A paginação, de princípio orientada por José Régio e Branquinho da Fonseca, implicava dias e dias de trabalho diante do mármore da Atlântida. Era a primeira vez que aquela boa gente via compor títulos sem capitais e nomes próprios sem a respeitável maiúscula inicial. A partir de 1927, também eu passei a tomar parte activa nestas campanhas, colaborando nas audácias tipográficas que se tornaram um dos atractivos escandalosos da nossa publicação. (Simões, 1958, p. 29)

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Além de José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões, Júlio também de- sempenha múltiplos papéis – de poeta (com o pseudónimo de Saúl Dias), de pintor e de artista gráfico: desenha e grava em linóleo vários cabeçalhos, e produz outros trabalhos de ilustração. Júlio é um colaborador especial, não apenas por ser irmão de Régio, mas também por ser um artista plástico que suscita um enorme interesse por parte dos outros diretores da Presença mais ligados à crítica de arte. Existem pois muitas evidências que mostram a capacidade destes artistas para traba- lhar com as ideias, as imagens e as palavras, experimentando-se, simultaneamente, como escritores, pintores, capistas, gravadores, o que também lhes permite fazer incursões no campo da publicidade, onde criam propostas que espantam os empregados da Atlântida. São de acentuar as inovações introduzidas na montagem gráfica da revista, já que por si só evidenciam a vontade de cortar com os modelos convencionais existentes. Este manifesto e concreto desejo de rompimento com o que é convencional, no âmbi- to do pensamento e da conceção artística, constitui um dos elementos primordiais de caracterização da materialidade gráfica do modernismo: sendo a base de uma atitude, é também um elemento de contextualização que permite dar sentido a tudo o resto. A par das questões de composição da revista e seu consequente layout, o que também é fundamental e representativo destas participações é a sensibilidade para as questões de ‘comunicação de massa’: materializadas em novas soluções, dão ao jornal e à revista um novo vocabulário e uma nova gramática da linguagem visual, que se enraízam nas diver- sas posturas modernistas, e permitem avaliar o significado e o impacto mais abrangente das soluções encontradas. Assim, o uso de títulos sem capitais ou de nomes próprios sem maiúscula, que como outros procedimentos mais à frente se referem, são características que, se fazem parte das opções tomadas por várias das correntes modernistas, não são soluções experimentadas apenas no campo literário. O local escolhido para a montagem e impressão de praticamente toda a Presença é o das oficinas gráficas da Atlântida. As audácias tipográficasdos mentores da folha são de tal forma “extravagantes” para a época, que os tipógrafos das Oficinas da Atlântida– “quartel-general das manobras gráficas” (Simões, 1958, p. 141) — chegam a apodá-las de dementes, pois é absolutamente inédito “compor títulos sem capitais e nomes pró- prios sem a respeitável maiúscula” (Simões, 1958, p.160). Sobre os experimentalismos gráficos da Presença, Adolfo Casais Monteiro (1995, p.115) refere que “nas suas páginas se fizeram algumas das mais originais experiências da época, com grande escândalo para os tipógrafos”. No artigo Da Geração Modernista, publicado na Presença (nº 3, Abril, 1927, p. 1) Régio refere: “as audácias de gramática e métricas ensaiadas na língua portuguesa por al- guns artistas modernos — parecem-me natural resultante destas tendências, ou doutras mais ou menos derivadas.”

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Estas afirmações fazem crer que as razões que levam Régio a retirar, dos dois últimos números, grande parte do que foi a identidade visual da Presença, não são de carácter es- tético, mas sim razões imersas no contexto da produção gráfica que, fora da bancada de mármore da Atlântida, apresentava dificuldades de concretização provavelmente muito difíceis de superar. Observa-se que, desde o início e de número para número, a Presença revela um mais apurado esmero gráfico. Por exemplo, a partir do nº 3 (8 de Abril de 1927), insere-se cor na impressão da folha, nomeadamente no título da publicação, que apresenta uma cor diferente a cada novo número. Por outro lado, evidencia-se uma notável transformação da mancha gráfica, que se torna cada vez mais excêntrica e arrojada. Em 1939, a folha coimbrã apresenta modificações mais radicais, sobretudo a nível estético: um novo formato e aumento do número de páginas, são duas das mais signi- ficativas materializações dessa mudança. Quando reaparece remodelada, numa segunda série, em Novembro de 1939, regista o abandono da designação Folha de Arte e Crítica, para passar a Revista de Arte e Crítica. O número anterior – o duplo 53-54, último da Série I – já dá conta dessas futuras transformações. A Série II (Presença reaparece) é constituída por apenas dois números: Novembro 1939 e Fevereiro 1940. Da responsabilidade de Régio, a fisionomia gráfica do novo for- mato, pelo seu conservadorismo, não agrada aos outros dois diretores que o apelidam de provinciano e desajeitado. A edição da revista Presença consta de duas séries: a primeira com cinquenta e qua- tro números (Março de 1927 a Novembro de 1938) e a segunda com dois números (Novembro de 1939 e Fevereiro de 1940). Em termos de local de impressão, podemos referir que todos os números da primeira série foram produzidos em Coimbra. No entanto, as oficinas gráficas não foram sempre as mesmas: os primeiros dezoito números foram impressos nas Oficinas da Editora ATLANTIDA; os números dezanove, vinte e vinte e um, nas oficinas da Imprensa da Universidade de Coimbra e os restantes novamente na ATLANTIDA. Sendo uma edição experimental e independente, da autoria de estudantes com poucos recursos económicos, os primeiros números foram im- pressos em papel de embrulho e os restantes em papel com maior gramagem e de melhor qualidade. O número de páginas mudou ao longo de toda a edição, sendo o mínimo de oito e o máximo de trinta e duas (na primeira série) e de setenta e duas páginas nos dois únicos números da segunda série. Verificou-se que na maior parte das revistas eram utilizadas as doze ou dezasseis páginas. Em termos cromáticos podemos afirmar que nos dois primeiros números e no nú- mero treze foi utilizada apenas uma cor (preto) e nos restantes números a impressão foi alargada a duas cores (preto e outra).

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O formato adotado para os cinquenta e quatros números da primeira série foi apro- ximadamente de 37,4 centímetros de altura por 29 centímetros de largura. A segunda série foi modificada para 27 centímetros por 20,5 centímetros com o claro objectivo de uma aproximação ao formato livro.

FIG. 7 Primeiro e segundo formato (relação de escala)

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Outro elemento gráfico importante foi a grelha de paginação, simples, mas de grande maleabilidade: Foi criado um esquema simplificado de colunas onde a mancha gráfica ocupava uma área aproximada entre os 22cm por 32cm. As margens não eram iguais, (sendo a margem exterior e inferior mais elevadas) facto que demonstra algum cuidado na compensação visual da mancha gráfica. Foram aplicadas soluções de 1, 2 e 3 colunas e a numeração de página foi colocada na margem inferior com alinhamento central.

FIG. 8 Presença: série I – grelha de 1 coluna

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FIG. 9 Presença: série I – grelha de 2 colunas

FIG. 10 Presença: série I – grelha de 3 colunas

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Apesar da simplicidade desta grelha, esse não foi um factor limitativo para a procura de soluções criativas e dinâmicas na apresentação dos diferentes conteúdos existentes. Articulavam-se estilos tipográficos, definiam-se hierarquias de texto, buscava-se uma leitura polissémica e a grelha revelava-se, então, funcional para a expressividade procurada. Em termos de formatação e hierarquia de texto, foram utilizadas fontes tipográficas serifadas e não serifadas para os títulos, subtítulos, informação de destaque e capitulares. No corpo do texto, a tipografia escolhida foi serifada. As tecnologias e processos empregues na impressão dos vários números desta revista eram utilizados processos estereográficos, mais concretamente a tipografia, xilografia, li- nóleografia e a fotogravura.

FIG. 11 Presença.

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De todas as manifestações típicas do grafismo modernista na Presença, destacam-se: a utilização do tipo Futura, o desenho de letras (lettering), os experimentalismos tipográ- ficos e o dinamismo da grelha.

a) Utilização da Futura: A Futura, reconhecida como uma das fontes geométricas mais comercializadas do sé- culo XX, é utilizada na revista Presença, reforçando o programa editorial idealizado pelos seus diretores – poetas modernistas. Desenhado por Paul Renner e disponibilizado em 1927, o tipo Futura é fruto, entre outras coisas, dos esforços deste autor para encontrar a verdadeira fonte germânica, capaz de identificar e caracterizar a identidade alemã e responder às novas necessidades e ten- dências no plano internacional. É a procura de personalidade própria que motiva José Régio e João Gaspar Simões a encontrar novas ferramentas que possibilitem a introdução de inovações na forma de visualizar o texto e uma delas é, certamente, a escolha de uma tipografia moderna: a Futura (2ª versão). Em termos de estrutura editorial, esta nova tipografia vai ganhando pouco a pouco lugar de destaque ao longo das trinta edições em que é utilizada. No seu número de estreia (nº 22) assume logo um lugar de relevo, pois é utilizada nos separadores de secção, títulos, subtítulos e capitulares. No seu segundo número (nº 23) encontramo-la na capa como capitular aplicada no corpo do texto e nos seguin- tes (nº 24 a nº 54) por toda a revista, na identificação e autoria de ilustrações e legenda- gem das mesmas, na autoria de poemas e textos, na publicidade, obituários, secções de correspondência, informações e avisos editoriais. Das poucas utilizações desta fonte em corpo de texto destaca-se uma carta de Almada Negreiros. No nº 28, ao ser utilizada na capa e mais concretamente associada ao logo, “the gra- phical representation of its title” (Zappaterra, 2007, p. 44), a Futura passa a ser assumi- da como elemento identitário da revista. Ainda que inicialmente utilizada de forma tímida e através de alguns ensaios pouco relevantes, a Futura é gradualmente explorada nas composições espaciais, recorrendo-se, para isso, à manipulação das escalas, à utilização de caixas altas e baixas, espaçamento entre caracteres, ao uso da cor e experimentalismos de impressão. Estas animações maioritariamente aplicadas a títulos dão o mote, ou o tom, para o conteúdo do corpo do texto. De facto, sendo a Futura considerada como um dos símbolos tipográficos moder- nistas, então é também um elemento fundamental de caracterização da materialidade gráfica e tipográfica da Presença, enquanto expressão do modernismo português.

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FIG. 12 Utilização da Futura na Presença.

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b) Desenho de letras (lettering): A par da Futura, também desempenha papel fundamental na definição do carácter modernista da Presença a utilização indiferenciada de tipos, tamanhos ou desenhos grá- ficos onde a letra e a palavra assumem funções não habituais. Tal como diz Armstrong (2009, p. 27) “today we have two dimensions for the word. As a sound it is a function of time, and as a representation it is a function of space”. Pretende-se assim pôr em evidên- cia a dimensão espacial dos jogos de lettering criados para a revista, na sua relação com os sons e significados correspondentes, pela apresentação de um conjunto de exemplos co- mentados de letras desenhadas, procurando evidenciar a ligação entre elas e o significado literário e simbólico dos textos a que se aplicam. Sendo representações de representações a sua riqueza também se encontra no valor estético que acrescentam às páginas. Todos estes desenhos de letras evidenciam a paridade da Presença com os modelos modernistas, fortemente ancorados no simbolismo gráfico e no conteúdo dos títulos e textos a que se aplicam. O uso de um grafismo simultaneamente pictórico e caligráfico, não só aproxima es- tas expressões de uma função de ilustração (pela aproximação morfológica das formas evocadas ao significado das palavras) como recorre a estilizações e geometrizações muito próprias do lettering modernista. A irregularidade das distâncias entre as letras, os cortes inusitados dos títulos e a aplicação das maiúsculas e das minúsculas fora das regras da ortografia oficial, também aproximam a Presença das revistas modernistas. E como já se sublinhou, Branquinho da Fonseca não só idealizou a composição gráfica dos títulos, como também os gravou em linóleo, atitude artística recorrente nos artistas modernistas. Toda a ideia de movimento que perpassa nestes títulos reforça também, para lá do ges- to do pintor, o gesto do realizador, a animação do cinema, ligada a essa outra dimensão da sonoridade da palavra, esculpida na forma gráfica que transforma o tempo do dizer, no espaço do ler. Embora só tardiamente tivesse entrado em Portugal o uso da fotografia, da colagem, do serialismo ou do fragmento, também apanágio do modernismo, a matriz de todos estes conceitos, e a sua formalização, estão já implícitos nestas soluções presencistas, tanto nas letras desenhadas, como nas composições gráficas com elas realizadas.

c) Experimentalismos tipográficos: Como acontece com outras revistas, sobretudo as do início do século, é nos títulos, e separadores, que mais se manifestam os experimentalismos que dão visualidade a uma nova imagem do texto, baseada sobretudo no movimento que a letra, a palavra e os restantes sinais gráficos protagonizam no espaço da folha. Através da sua forma plástica, numa aparente aleatoriedade (aparente apenas), é que de facto se consegue multiplicar as ligações de todos estes signos visuais, diversificando a sua funcionalidade e, sobretudo, criando uma imagem onde o ato de ler encontra

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FIG. 13 Jogos de lettering em títulos na Presença.

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múltiplas ressonâncias: ler reconhecendo signos, ler decifrando traços, ler vocalizando uma interpretação gráfica, ler enquadrando uma nova interpretação dentro de um dife- rente referencial semântico. O grafismo assume-se como intérprete integrador de todos estes fatores, sugerindo a criação de pausas, de associações entre signos, de ritmos de leitura mais lentos ou mais rá- pidos, de maior ou menor intensidade sonora, de colocação a menor ou maior distância… Esta voz da escrita revela, quase sem querer, que a dimensão literária e a dimensão pictórica, não são de facto separáveis. Que há uma pintura das letras, uma animação fílmica, fotográfica na composição de uma mancha gráfica. Som e imagem interagem e reinventam a narrativa. E aparecem novos experimentalismos em cada uma das lingua- gens artísticas, bem como novas linguagens e campos artísticos, numa dinâmica bem identificada com o modernismo e bem evidenciada nos exemplos apresentados.

FIG. 14 Experimentalismos tipográficos na Presença.

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d) Dinamismo da grelha: É na observação do dinamismo da grelha que se podem verificar os efeitos de uma maior desconstrução dos conteúdos literários no corpo básico dos textos. São vários os exemplos de escrita não linear, de textos que não obedecem à horizontalidade da leitura convencional. Tendo como ponto de partida uma opção maioritariamente a duas colunas para os textos mais literários, a duas e três colunas para os poéticos e opções muito híbridas para as restantes secções (sobretudo as dos Anúncios, Avisos e Publicidade) o desafio, em matéria composicional, é o de criar estímulos visuais, através da diversidade quer de dimensões, quer de uso diferenciado de tipos no próprio corpo do texto, quer ainda de efeitos gráficos que destacam, sublinham ou demarcam o que se pretende comunicar com cada texto. O que se procura, sobretudo na dinâmica dos espaços, é a dinâmica da leitura e dos conceitos. A diversidade dos momentos informativos e literários e a possibilida- de de inversão do sentido de leitura permitem, simultaneamente, recuperar espaço, mas também destacar uma orientação rítmica, um padrão que, embora uniforme, recorre ao espaço da página, às marcações gráficas, às vinhetas, para se individuali- zar. A dimensão do tempo, redesenhada na espacialidade da folha, redefine a maté- ria pictórica dinamizando-a. E embora, especialmente nos conteúdos ligados aos diversos artigos literários e crí- ticos, a mancha gráfica seja em grande parte baseada numa grelha convencional, esta atitude ajuda a reforçar o dinamismo das experiências estéticas do artista e gráfico no espaço da folha, imbuídas de uma noção parente da do arquiteto. De facto, há forças e intensidades que se expandem ou contraem, gerando mais ou menos espaço. Ao longo da revista, aparecem várias vezes avisos aludindo à falta de espaço. Ao mes- mo tempo, é-se confrontado com títulos por vezes quase de meia página. Esta aparente contradição apenas confirma o propósito consciente dos editores de deitar mão a todos os mecanismos necessários e fundamentais, incluindo os que se utilizam do espaço, para que o dinamismo dos títulos contagie o dinamismo da página. Torna-se, assim, eviden- te que o uso concreto e diverso do espaço em nome de uma matéria que se pretende destacar, tem uma presença-corpo-gráfica tão importante quanto o espaço concedido à ilustração do pintor ou do desenhador. E esta postura é, por natureza, modernista. Há um sentimento final de que este uso do espaço gera, pela sua dinâmica, mais es- paço: de leitura e de presença. A Presença usa e rejeita o estático, configurado, limitado e “conformado” espaço clássico da escrita, aprisionado de um modelo gráfico que torna as relações definidas pela forma literária numa regra de composição a seguir, para co- mungar do dinamismo de um espaço gerador de expressividade; para abraçar uma nova dinâmica de leitura que, se por um lado partilha da linguagem informativa jornalística, por outro, desafia os conceitos científicos da crítica e análise literária e da criatividade da narrativa do romance ou da obra literária impressa.

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Assim como se contamina o espaço urbano de novas formas e consumos, também a pintura e a literatura encontram, no espaço arquitetónico da página, essa nova ‘urba- nidade’ gráfico-tipográfica que o modernismo incentiva, promove e reflete. Para esta análise foi fundamental a noção de presença, em termos de modernidade dos sentidos e de materialidade dos espaços, dos tempos e dos instrumentos do universo dos obje- tos gráficos tipografados.

FIG. 15 Presença: série I – nº48 - pp.7 e 13 – número de homenagem a Fernando Pessoa, é um dos exemplos mais brilhantes de jogo da grelha e de composição.

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CONCLUSÃO

Em questões de arte ou pensamento, – presença não reconhece chefes, nem legisladores, nem ditadores. Se entre os seus colaboradores algum apareça em quem a força de temperamento, a capacidade afirmativa ou construtiva e as tendências autoritárias denunciem uma predesti- nação de ditador, – presença não julga, por isso, dever eliminá-lo de seu colaborador. Mas o que nele lhe interessa é o homem como homem, o pensador como pensador, o artista como artista. (Presença nº 28, Agosto-Outubro de 1930, Afirmações, p.15)

Se há marca que a Presença deixou e que a pode caracterizar com elevado grau de fidelidade, encontra-se nestas palavras, delas resultando, em síntese, a defesa da liberdade de pensamento e de expressão. Ao longo da história da Presença, observa-se que mesmo por entre o relativo caos financeiro e organizacional, as controvérsias mais acesas, o extremar de pontos de vista ou o passar do tempo, sobressai sempre uma certa marca de rebeldia, tão própria dos espíritos jovens que não se contentam em aceitar as ‘normas’ sem as interrogar. Existe, assim, uma ligação às características da materialidade gráfica do moder- nismo e à forma como as revistas literárias se apropriam de suportes e linguagens já utilizadas, tanto nos meios de comunicação de massa (como os jornais, alguns deles com suplementos literários), como na publicidade, com as inerentes novas linguagens gráficas e tipográficas que as ideias novas exigiam. A criação de um logótipo como imagem de marca ou identitária, o relevo dos tí- tulos, o uso de tipos favoráveis à caixa baixa e sem serifa, a criação de uma mancha gráfica mais assertiva e comunicativa (sobretudo no que diz respeito à publicida- de), a grelha de quatro colunas (semelhante à opção da folha jornalística), o uso de filetes separadores, a dinâmica a partir de qualidades expressivas como o bold ou o itálico, são recursos que fazem parte dessa primeira época do modernismo que encontramos nas revistas do primeiro modernismo português, diferindo apenas no maior ou menor grau de experimentalismo, e na quantidade e variedade efetiva de recursos usados. Como também acontece noutras revistas de cunho modernista, as técnicas ao serviço da impressão dos desenhos dos artistas plásticos são igualmente usadas para a criação de títulos desenhados e, em muitos casos, pela sua dimensão, funcionam como verdadeiras ilustrações que se inserem numa narrativa visual dos conceitos chave do presencismo, como os experimentalismos gráficos estão ao serviço do texto, acrescentando-lhe valor estético e semântico. O papel da Presença, na época, foi muito maior do que o que lhe possa ser atribuído no contexto da vida literária do país. Está bem “Presente!” em muitos outros aspectos culturais e, seguramente, bem “Presente!” também neste contexto

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do nascimento de uma nova imagem gráfica que reforça e amplia os seus laços modernistas com a europa, quanto às novas concepções de editor, edição e renovação gráfica e tipográfica. Está “Presente!” indiscutivelmente por tudo isto, na história do design gráfico português.

“Dêste já longo entrechocar de correntes e contra-correntes que é a nossa época (será lícito perguntar-se) – ¿o que resulta?, o que ficará? E poder-se-ia responder: Resultam as próprias Obras em que directa ou indirectamente essas correntes e contra-correntes se exprimem. Ficarão… as Obras-Primas da nossa época.” (RÉGIO, 1929, p. 1)

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FIGURAS

1 e 2 - própria - original / CER – Centro de Estudos Regianos – Câmara Municipal de Vila do Conde 3 a 14 - própria – Presença: série I e II

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COMENTÁRIO SOBRE OS MUNDOS “INTERNO” E “EXTERNO” À PRESENÇA

Carlos Vidal

RESUMO

Historiam-se os movimentos ou universos ligados à revista Presença/presença, não se procurando determinar se existiu ou não um “presencismo”. A figura do intelectual, poe- ta e crítico Adolfo Casais Monteiro serve, num primeiro tempo, de guia, vindo de Casais uma definição de “revista” ou “colectivo” (eventualmente manifesto numa revista) alter- nativa à definição proposta pelas vanguardas: onde estas falam de um “mundo novo” que se refaz de ruptura em ruptura, Casais Monteiro falará ou definirá o colectivo da Presença/ presença como uma informulável comunhão. Por fim, regressa-se à discussão, mantida nas páginas da Seara Nova, entre José Régio e Álvaro Cunhal como uma importante aporia, ela própria definidora do lugar da arte, entre forma e mundo.

PALAVRAS CHAVE

Presença, colectivo, subjectivismo, polémica, arte (definição, aporia)

ABSTRACT

The movements or universes of thinking linked to the journal Presença/presença are recorded, not trying to determine whether or not there was a “presencismo” (“presen- cism”). The figure of the intellectual, poet and critic Adolfo Casais Monteiro serves as a guide person, coming from Casais a definition of “journal” or “collective” (possibly manifested in a journal) alternative to the definition proposed by the avant-gardes: where they speak of a “new world” that is rebuilt from rupture to rupture, Casais Mon- teiro will speak or define the collective of the Presença/presença as an informable com- munion. Finally, we return to the discussion, held in the pages of Seara Nova, between José Régio and Álvaro Cunhal as an important aporia, itself defining the place of art, between form and world.

KEYWORDS

“Presença”, journal, collective, subjectivism, polemics, art (definition, aporia)

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Creio firmemente (é mesmo das mais firmes crenças que possuo!) que todos os verdadeiros artistas de todos os tempos, a este e a oeste, ao sul como ao norte, procuram exprimir uma essencial mensagem: tudo o que, sob as mais diversas formas, nas aparentemente mais opostas modalidades, o artista exprime, é, na sua origem e na sua finalidade, esforço para revelar a inquietação humana, ânsia de explicação do que o homem é, esforço do homem para tirar de si resposta às suas próprias interrogações. Este é o sentido essencial da arte, sem o qual não existe senão mera forma, mera palavra, mero som; este é o caminho único do artista. (…) Note-se bem: sendo artista não se pode dizer que um homem sirva a arte; servir subentende uma sujeição, e a criação é uma actividade livre, a que o homem se entrega e nunca à qual se submete.

ADOLFO CASAIS MONTEIRO, “O escritor e o mundo moderno”1

Como artista, o homem não é um ser de afirmação ou de negação; é, sim, um ser de expressão.

ADOLFO CASAIS MONTEIRO, “O escritor e o mundo moderno”2

1. MODERNISMO, CONTRA-MODERNISMO, COLECTIVO

Uma das propostas deste texto em torno da Presença é a de recolocar a centralidade do tema (simplificando: de José Régio para Casais Monteiro). Trata-se de conferir, portan- to, um espaço fulcral no que respeita à história desta publicação de longa história (e não só da Presença ou presença, mas ainda de uma geração, do combate, do colectivo, da sua “equipa”3 e sua desagregação) a Adolfo Casais Monteiro, autor que, por historiadores da vanguarda e das “revistas de arte e cultura” em Portugal (Clara Rocha, por exemplo, a qual faz do conflito Gaspar Simões e Casais, de novo Casais Monteiro, a razão de ser do fim da publicação, ou melhor, do termo da sua II série em 1940; Rocha, 1985: 386) sur- ge como o elemento e pensador decisivo, apesar de surgir na direcção da revista Presença

1 Monteiro (2006: 35-36). 2 Ob. cit.: 37 3 Casais Monteiro usa este termo (Monteiro, 1995: 17) para nos mostrar a estranheza de uma “equipa” ou de um colectivo artístico na (sua) actualidade. E também para demonstrar a originalidade ou pertinên- cia da Presença, pois enquanto “equipa” não se tornou uma “escola” (ob. cit.: 18).

140 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Vidal, Carlos _”Comentário sobre os mundos “interno” e “externo” à Presença”, 2018, pp. 139-150.

ou presença (e já comentaremos esta particularidade) apenas no nº 33 (julho-outubro, 1931); decisivo elemento da caracterização da revista e do seu finamento, com uma pou- co clara, ou mesmo insignificante (se a analisarmos ao detalhe) polémica, como disse, com João Gaspar Simões, este, sim, director da publicação desde o primeiro número, com Branquinho da Fonseca e José Régio, a figura tutelar de sempre do movimento “presencista” (como grafa sempre, entre aspas, Eduardo Lourenço, pois não existindo “presencismo”, existiu a Presença). Parece-me, aliás, ser Casais Monteiro a consciência crítica principal da Presença (presença), sobretudo quando, desgastado com o esteticismo e o eclectismo (Clara Rocha) da revista chama inclusivamente “reaccionário” a Gaspar Simões, Casais talvez esgotado pela anterior longa e profunda polémica Régio-Cunhal (de que falaremos melhor na última parte do ensaio), gizando assim o ponto final da publicação que começara, sem ele, em 1927. Entretanto quando, por comparação a Orpheu, Lourenço se refere à Presença como caracterizada por um insuperável “psicologismo”, atribui a consciência das suas difi- culdades a Régio, sobretudo (de novo o autor de “Europa”) se comparado a Casais Monteiro (reticente, o mais reticente do “presencismo”, mas insuficientemente reticen- te), tendo ambos, no entanto, ao longo dos anos tomado uma “consciência cada vez mais nítida das dificuldades insuperáveis dessa atitude mental” (Eduardo Lourenço, 1987: 146). É aliás através da comparação com Orpheu que Lourenço chega ao célebre título do seu ensaio sobre a Presença: “ ‘Presença’ ou a contra-revolução do modernismo português?” (ob. cit.: 143-168). Deste modo e em clarificadora citação:

Sem se darem conta disso, foi uma espécie de natural transfert aquilo que os jovens poetas críticos de “Presença” efectuaram ao reivindicar “Orpheu” [de facto, até à última série de 1939-1940 a presença publica poesia inédita de Fernando Pessoa, nomeadamente], pois esse “Orpheu” por eles invocado é, em substância, o que corresponde à experiência específica da própria criação “presencista”. O resultado disso foi o surgimento de uma topologia crítico-li- terária na qual “Orpheu” e “Presença” aparecem lado a lado, ou uma seguindo naturalmente o outro como membros da mesma família espiritual e poética. Os motivos que justificaram esta mitologia literária existem, mas pertencem à pequena história. (Lourenço, 1987: 147).

Ora, o que daqui se deduz é que, apesar de Régio, logo na primeira página do nº 2 da Presença (1927, ainda com maiúscula), invocar uma comum matriz romântica para o classicismo e modernismo, ou o seu paroxismo (do espírito romântico) nas reflexões que tece sobre o Dadaísmo “nihilista”, o Futurismo e o Expressionismo, apesar de Régio admitir a compatibilidade do classicismo e do modernismo no romantismo, Lourenço vai “descair” para um pólo a respeito da Presença, ou seja, vai – creio poder afirmá-lo – mesmo mais longe do que Álvaro Cunhal (1939, onde o intelectual político sublinha o

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solipsismo “regiano” sem o diminuir esteticamente, atente-se), revogando toda e qual- quer potencialidade inovadora ou “revolucionária” da Presença no seu todo (talvez ig- norando as particularidades de autores como José Gomes Ferreira, Cochofel, Mário Dionísio e Namorado, Gaspar Simões e Casais, ou Proust, Dostoievski, Ibsen e Joyce, que não são uma “unidade”), e vai fazê-lo deste modo, continuando o nosso raciocínio:

Segundo unânime aviso, “Orpheu” significa uma “revolução poética”. (…) Temos nós a mes- ma sensação em face dos mais célebres poemas de “Presença”? Para se ver a distância fabulosa entre um objecto poético revolucionário e outro que o não é, basta comparar a “Saudação a Walt Whitman” ou a “Ode Marítima” ao poema-tipo da audácia “presencista”: o “Cântico Negro” de Régio, tão celebrado, embora muito longe de outros poemas do autor de “Jacob e o Anjo”. A diferença de mundos, a diferença de peso ontológico e formal salta aos olhos. (ob. cit.: 152).

E é de novo a figura e o pensamento de Adolfo Casais Monteiro que aqui se impõem. Não por ser Casais o inadaptado da presença (o anti-Gaspar Simões, o autor, refiro-me a Casais, que lhe chamou “reaccionário” por causa de uns inócuos – e nesse caso bem intitulados – “Diálogos inúteis” nos dois últimos números da história da revista, em 1 e 2 da Série 2, 1939, 1940),4 não por ser Casais Monteiro aquele que supera a conciliação entre classicismo e modernismo, ou entre “novo” e “eterno”, em Régio5 e os impasses daí resultantes, não por Casais também superar as teses de Álvaro Cunhal de separação entre o “puramente literário”, o “puramente artístico” e o “dever social” do artista, mas antes porque Casais, de uma forma simples e directa, refere, no seu importante livro O que foi e o que não foi o movimento da presença (Adolfo Casais Monteiro, 1995) duas realidades: 1) que, apesar de tudo, a presença teve uma longa duração, e que 2) esse “tudo” do “ape- sar de tudo” significa um relacionamento com o facto de que na “sociedade em que vive- mos, o trabalho de equipa [ser], de facto, uma anomalia” (Casais Monteiro, 1995: 17). Para a sua história da presença, ou melhor, para a história de uma afirmação geracional literária que tem na publicação colectiva a sua “arma”, Casais vai recordar a polémica entre Antero e Feliciano de Castilho. A ideia de Casais é a de que Antero não procurou somente defender-se, mas, acima de tudo, defender uma geração (a sua) contra os “do- nos da literatura”. Portanto, a afirmação ou “esperança comum”, geracional portanto, revela-se na publicação colectiva, a qual serve o que o autor de “Europa” chama de “afir- mação colectiva” (mas veremos que algo se imporá tão importante quanto isso): “Quero eu insinuar que a necessidade de ter onde escrever não é a razão (embora possa ser uma razão entre outras) que justifica o agrupamento de alguns jovens escritores e a fundação

4 Ver VV. AA., 1993c: 56-57, 127-128. 5 Régio (1929: 1).

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de uma revista. A razão principal é, de facto, a necessidade de afirmação colectiva, que implica o reconhecimento (declarado ou tácito, consciente ou não) de algo a exprimir independentemente da ‘mensagem’ individual de cada qual (…)” (ob. cit.: 16). E aqui pode deduzir-se que desta afirmação ou definição do “grupo” a presença não foi para Casais Monteiro “a contra-revolução do modernismo português” (Lourenço), sobretudo se invocarmos Orpheu. Quer dizer, sobretudo se se pensar exclusivamente ou propriamente em Orpheu. Do que se citará, se terá de concluir que Casais suspei- tará, ou mesmo negará o Manifesto, essa instância legislativa das vanguardas. Assim sendo, pode questionar-se: e o que é um Manifesto (ou concretamente, será o texto “Literatura viva” de Régio [1927],6 abrindo a primeira página do primeiro número de Presença, um Manifesto)?

2. MANIFESTO, CAUSA OU COMUNHÃO

O que é, portanto, um Manifesto, essa condição sine qua non da vanguarda? Digamos que é, em primeiro lugar, um acto de loucura e de “vontade” de saída de esta para outra realidade, social, política e, obviamente, estética (Caws, 2001: XIX-XXXI). Formalmente, deve ser espirituoso, sarcástico, sofismático e oposicional (opõe-se sempre a algo, logo institui sempre uma confrontação entre um “nós” e determinados “outros”). Promove um elogio do momento presente como se de uma descoberta inédita se tratasse (desejoso de abolir o passado). Ele anuncia o que anuncia e anuncia-se a si mesmo de uma forma gráfica única (e aqui a presença pode ombrear com qualquer Manifesto): ele é ruidoso por oposição ao silêncio meditativo do ensaio (teríamos, neste ponto progra- mático, de averiguar se a presença é algo de natureza mais ensaística ou programática – como veremos, para Casais Monteiro, talvez nem uma nem outra, antes uma realidade “convivial”). A sua poética e política é a do Aqui e Agora. Sempre exclamativo (usa e abusa das maiúsculas – e a presença das minúsculas - e dos pontos exclamativos e orde- nados – que também são ordens - 1. 2., etc.), é megalómano, chama sempre a atenção, é excessivo e desmesurado. Pretende-se instância legislativa: quem o promove está de acordo com a lei, funda uma lei absolutamente nova! Situa-se sempre entre o realizado e o futuro potencial (existir em potência é a forma de ser do Manifesto). Barnett Newman, no seu “Sublime is now” (Newman, 1948, 1990), mostra uma apetência irrefreável por expressões como “pela primeira vez”. O Manifesto é o arbítrio da vontade. Portanto, tem uma subjectividade maximamente alicerçada num máximo nada. Nestes termos, ele ecoa a famosa ideia de Max Stirner, muito importante para Dada e que aqui cito de memória: faço minha a causa de nada.

6 Régio, “inaugurando” a Presença: “Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de uma personalidade artística. A primeira condição de uma obra de arte é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe”.

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Entretanto, o que é que existe de comum entre o “espírito” da presença e o “Manifesto do Futurismo” de Marinetti? Absolutamente nada!, nem mesmo o “grito” de José Régio no citado texto (o primeiro do primeiro número da Presença) em favor da expressão (uma sua palavra importante) do “original” ou do mais íntimo de uma “personalidade”. Leia-se Marinetti e depois a oposta “lógica” de “comunhão” convivial de Casais Monteiro para se percepcionar a distância destas realidades. Marinetti:

1. Pretendemos cantar o amor pelo perigo, o hábito forte da energia e a ausência do medo. 2. Coragem, audácia e revolta serão os elementos essenciais da nossa poesia. 3. Até ao momento a literatura exaltou uma imobilidade pensante, o Êxtase e o sono. Mas nós pretendemos a exaltação da acção agressiva, a insónia fervorosa, a ginástica e o salto mortal, a energia e o ímpeto, a bofetada e o insulto. 4. Afirmamos que a magnificência do mundo foi estabelecida por uma nova espécie de be- leza: a da velocidade. Um automóvel desportivo com a sua cobertura adornada de tubagens como serpentes de respiração explosiva. Um ruidoso automóvel como uma metralha é mais belo do que a Vitória de Samotrácia. (…) 9. Glorificamos a guerra, a única higiene do mundo: o militarismo, o patriotismo, a destrui- ção dos gestos dos fazedores de liberdade, as belas ideias que matam e o desdém da mulher. 10. Destruiremos os museus, as bibliotecas e as academias de toda a espécie, combateremos o moralismo, o feminismo e todas as oportunistas e utilitárias cobardias. (Marinetti, 2009)

Seria isto que buscava Eduardo Lourenço na presença, para, não encontrando, a con- siderar a contra-revolução do modernismo português? Se sim, não encontrará tal dinâ- mica nem na presença nem em Orpheu, como nos diz (pausadamente) Casais Monteiro:

Pode acontecer, como foi por exemplo o caso do Orpheu, que o grupo não se preocupe com declarações conjuntas. O texto de Luiz de Montalvor que lhe serve de apresentação está longe de exprimir uma aspiração que se possa ter como expressão do que de mais signifi- cativo nos daria o movimento com essa revista iniciado. Efectivamente, a “afirmação” mais importante, mesmo quando é tentada, está muito longe de se exprimir em apresentações ou manifestos. A parte da informulável comunhão [sublinhado meu] é muito mais significa- tiva do que a das tentações conscientes, e susceptíveis de se tornarem numa declaração de princípios que exprimisse verdadeiramente a vontade colectiva. De uma maneira geral, tais afirmações têm o valor sobretudo polémico de afirmar e negar o mais aparente, são mais uma arma de combate de que a expressão profunda da significação real dos movimentos literários (Casais Monteiro, 1995: 16-17).

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3. INÍCIO E UMA POLÉMICA EXEMPLAR

Recuemos entretanto ao início de toda esta temática. A Presença abre ou se abre (ou ainda melhor, irá intermediar em periodização para a qual nos remeto para José-Augusto França [1985]) entre o 2º e o 3º modernismo português, o eclectismo primou entre os seus colaboradores mais do que o “subjectivismo” (Mário de Scramento) ou o “freudis- mo” (Gaspar Simões), de certo modo prolongou Orpheu (Casais Monteiro, como citei, não desconsidera essa hipótese) e o trabalho dos seus colaboradores reuniu anarquistas e conservadores, ou Eloy, Botelho e Barradas nascidos nos finais do século XIX, e ain- da abstraccionistas, apesar de Casais, curiosamente, considerar o abstraccionismo uma “impossibilidade” (citado por França, 1985: 411), exceptuando Vieira da Silva. Como se sabe, a “fôlha de arte e crítica” surgiu em Coimbra sob ideia de Branquinho da Fonseca e nome dado pelo poeta Edmundo de Bettencourt. Em toda a sua duração (uma “longa duração”, dirá Casais, que só integrará a direcção mais tarde, no nú- mero de Julho-Outubro, 1931, anunciado numa “horizontal” cortando um texto de Régio sobre Manoel de Oliveira e Leitão de Barros, o que permite aquilatar a ousadia gráfica da publicação que tudo experimentou, o que a poderia ligar ao Manifesto, mas, como disse, apenas na forma), a Presença recebe a crítica, sobretudo a defesa intransigente, ou “em primeiro lugar”, do “génio literário e o “discernimento crítico” (Régio, 1939d: 5), a poesia e a música, o cinema e a pintura, num “longo” 1º ciclo (1927-1938) e num curtíssimo 2º ciclo (de dois números apenas, entre Novembro de 1939 e Fevereiro de 1940, período de extrema conflitualidade – aliás, em 1958, Casais dirá mesmo de Gaspar Simões que ele queria confundir-se e com ele confundir a Presença [Casais Monteiro, 1995: 39]), sempre debaixo desse impressivo nome dado por Edmundo de Bettencourt, que mereceu de Álvaro Ribeiro estas palavras no seu estudo monográfico da obra de Régio:

A palavra presença atrai logo um sinónimo temporal, ao evocar a Contemporânea [revista com 10 números, entre 1922 e 1924], revista modernista cujo título significou funda reacção contra os saudosistas e os tradicionalistas, então adversos ao cosmopolitismo gráfico e literário. Presença significa aparição, aparência, manifestação, existência, plenitude: algo que se in- corpora ou corporiza para conhecimento dos homens. Tal é efectivamente um belo título, fenomenal, fenoménico ou fenomenológico, para uma revista de estética. Ao pensador logo o assalta a pergunta oportuna: presença de quê ou de quem? A presença era portadora da doutrina da liberdade de expressão; mas acontece frequentemen- te que o defensor da liberdade própria não tarda a apresentar-se como adversário da liberdade alheia, e desce facilmente da crítica para a polémica (Ribeiro, 1969: 44).

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Sábias palavras de Álvaro Ribeiro, digamo-lo deste modo, no entanto a passagem da “crítica” para a “polémica” não é forçosamente uma “descida”, um descenso. É certo que a presença não teve mestres (“um e só um” não teve, dirá Casais Monteiro), logo não teve “escolas” nem foi uma “escola”. Curiosamente, foi pouco depois de um importante texto de Régio – onde procurava a conciliação do novo e do eterno (Régio, 1929: 1) e onde destacava a inerente conflitualidade moderna – que se dá a primeira cisão da presença, com uma “Carta a José Régio e João Gaspar Simões, directores da Presença”, assinada por Adolfo Rocha (Miguel Torga), Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca, apontando para o envelhecimento do título presença e, exageradamente, para um “arcaísmo estático das escolas” (carta que se pode ler na antologia de Gaspar Simões, História do movimento da “Presença” seguida de uma antologia [Simões, 1958: 46]).7 Mas uma cisão não é uma crítica nem uma polémica. Porque uma polémica tem de partir de uma base comum (para não culminar na “falta de linguagem”, no silêncio sem comunicação, no “diferendo” de Lyotard)8 e, curiosamente, essa base existia na última grande polémica “presencista”: entre Régio e Cunhal, que se deu na Seara Nova: núme- ros 608, 609, 611, 615, 619 e 626 – portanto, uma polémica longa e a revisitar. Cunhal vem trazer factores complexos e dinâmicos à teoria da cultura que, sem rejeitar por completo a linha de pensamento gramsciana (a referente ao “intelectual orgânico”), “desfilia” duplamente, por assim dizer, o intelectual desta “filiação” ou representação orgânica, para ele tendencialmente estática: porque para Cunhal há uma autonomia da superstrutura artística (seguindo Marx) ao mesmo tempo que se mantém a necessidade de tomar partido e de o manifestar perante as exigências da história. Como, reitero, é referido em A Arte, o Artista e a Sociedade (não era contestado o valor estético e formal da obra de Régio), Cunhal distingue entre o “puramente literário” ou “puramente artístico” e o “dever” social, criando uma aporia extremamente interessante, validando desse modo ambos os pressupostos, a função “exclusivamente” estética da obra e a participação social do artista e da sua obra no tempo e no mundo. Parece-me ser possível considerar que Álvaro Cunhal defende simultaneamente estas duas posições, pois surgiria a inoperância sem uma das duas realidades. Leia-se este excerto de A Arte, o Artista e a Sociedade, interessantíssimo:

7 Tenho de facto ao longo deste texto usado os nomes Presença e presença. Embora não sendo da responsa- bilidade ou ideia de Gaspar Simões, aqui, e a propósito deste crítico, convém mencionar que a publicação “perde” a sua maiúscula no nº 4 de 8 de Maio de 1927. Neste número a primeira página vai conter um texto de Simões assumidamente freudiano, que se tornará uma referência da “fôlha”: “Ao tipo médio, geral, explorado pelo romance naturalista, sucede o tipo superior, particular; e à poesia social de um Hugo, o lirismo puro em que o poeta, desde Rimbaud, procura aprisionar o que de mais fugitivo e pessoal em si percebe. A descoberta do inconsciente e a sua colaboração nas mais rudimentares manifestações psíquicas (…)” (presença 4, 8/5/1927; ver VV. AA., 1993a). 8 Cfr. Lyotard (1983).

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Constitui um direito à liberdade que um artista concentre exclusivamente o seu talento e a sua criatividade na busca de novos valores exclusivamente formais: o da cor, do volume, da musicalidade, da linguagem. Essa atitude tem conduzido a enriquecimentos e descobertas dando vida à obra por virtude dos novos valores formais conseguidos. Constitui também um direito à liberdade que um artista parta à descoberta de novos valores formais (da cor, do volume, da musicalidade, da linguagem) com o propósito de os tornar adequados e capazes de levar à sociedade, ao ser humano em geral, uma mensagem de ale- gria ou de tristeza, de solidariedade ou de protesto, de sofrimento ou de revolta, em qual- quer caso, como é de desejar, de optimismo e de confiança no ser humano e no seu futuro (Cunhal, 1997: 20-21).

Portanto, ambas as vias são determinantes para a história e para a história da arte em particular, só que, em determinados momentos históricos (1939, por exemplo, a famosa “encruzilhada dos homens” que verá abrir-se a gigantesca ferida da II Guerra, o tempo da polémica com Régio), parece-nos que Cunhal convida uma das atitudes a ligar-se à outra, que é a “condutora”, a invenção formal a ligar-se à decisão hegemónica na ou da “encruzilhada”. Escreveu então Cunhal a propósito das Cartas Intemporais de Régio (publicadas na Seara Nova, 608, 609 e 611):

A humanidade chegou a uma encruzilhada. O momento não é favorável a longas hesitações. Cada qual tem que escolher um caminho: para um lado ou para o outro. A história não pára e a humanidade segue. O grande problema é a direcção que ela seguirá. Aos homens cabe escolher e decidir [supostamente, aos intelectuais cabe escolher e decidir, escolhendo e decidindo e manifestando o seu poder na imperiosidade dessa escolha]. São inúteis os esforços para libertar do conflito presente certas esferas da actividade humana. O destino do mundo está em jogo. Todas as actividades humanas intervêm duma forma operante na determinação do destino do mundo. Claro que há berros, lutas e oscilações. E, como consequência, homens que se assustam ou horrorizam. Alguns desses homens afastam-se prudentemente, monologando acerca dos horrores da luta travada. Desconhecerão eles os gritos das parturientes? O clamor desorien- ta-os e leva-os a procurar a solidão. (…) Ficar só, só, só! Adorar o próprio umbigo e cantar! (Cunhal, 1939a; republicação, 2007: 51, 52).

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E por que é que Cunhal critica Régio deste modo, mantendo-lhe intocado o seu valor estético? Porque, como lemos num outro texto, defender a arte é também defender algo que não é imediatamente “Arte” participativa:

Aceitando como fundamental e elementar a diferença entre forma e conteúdo, combatendo o formalismo e defendendo uma arte de tendência [algo de que A Arte, o Artista e a Sociedade claramente se afasta, mas prossigamos], corre-se o risco de ser tido por intruso no campo sagrado da criação artística e por pessoa insensível às obras de arte. Corremos o risco e não há atestados que nos salvem. Porque, na própria acção de entrarmos no debate [e, note-se, Cunhal não “entra” no debate, pois, como artista, é parte do debate], se defendemos alguma coisa que não é apenas arte, defendemos por isso mesmo, com razão reforçada, a própria arte (Cunhal, 1954; republicação, 2008: 243).

Aparentemente é uma crítica da arte formalista, mas não o é de todo: trata-se de um reforço da própria arte. Diz-nos Cunhal que a arte é sempre mais do que ela própria, e quando o consegue ser é a força da arte que está salvaguardada: seja a obra imedia- tamente política ou não. Seja como for, ela não existe para si. Como nos diz Georges Didi-Huberman, há um pour-soi e um pour autrui na obra de arte.9 A arte reclusiva (ou académica) está no primeiro plano, a arte que se liberta para os tempos está no segundo. Como diria Régio, para os tempos intemporais do nosso tempo.

9 Cfr. Didi-Huberman (2013).

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REFERÊNCIAS

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II _ NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

P. 153 A EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE PARIS DE 1878 CONTADA POR RAMALHO ORTIGÃO Alice Nogueira Alves

P. 175 SAUDAÇÃO RÍTMICA NA OBRA DE CARLOS QUEIROZ Rodrigo Sobral Cunha

P. 187 UMA CARTA DE RAUL LEAL (HENOCH) PARA JOÃO GASPAR SIMÕES Zetho Cunha Gonçalves

P. 199 CARTAS DE RAUL LEAL (HENOCH) PARA JOSÉ RÉGIO Rui Lopo

P. 229 UMA VIAGEM AO PRINCÍPIO CUMPLICIDADES ARTÍSTICAS JOSÉ RÉGIO E JULIO Rui Maia

P. 241 FILMOGRAFIA E PRESENCISMO José de Matos-Cruz

P. 253 AD EXTRA A Direcção

151 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº18/19 _ 2017 © 2017 by ARTETEORIA, All rights reserved.

152 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Alves, Alice Nogueira _”A Exposição Universal de Paris de 1878 contada por Ramalho Ortigão”, 2018, pp. 153-174.

A EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE PARIS DE 1878 CONTADA POR RAMALHO ORTIGÃO

Alice Nogueira Alves

RESUMO

Ramalho Ortigão (1836-1915) foi um profícuo escritor português, cuja obra aborda os mais variados temas, sempre com um forte pendor pedagógico. Neste artigo, pre- tendemos relatar a sua experiência na Exposição Universal de Paris, em 1878, que foi descrevendo na correspondência para a sua mulher e num conjunto de artigos enviados para a Gazetta de Notícias do Rio de Janeiro, mais tarde publicados em volume.

PALAVRAS CHAVE

Notas de viagem, exposição universal, crítica de arte, engenho humano, Gazetta de Notícias

ABSTRACT

Ramalho Ortigão (1836-1915) was a prolific Portuguese writer whose work addressed multiple subjects, always with a strong educational character. This article aims to reflect upon his experience at the Universal Exhibition of 1878, which Ramalho described in the correspondence to his wife, as well as in several articles sent to the Brazilian newspa- per Gazetta de Notícias, from Rio de Janeiro, later published as a book.

KEYWORDS

Notas de Viagem, universal exhibition, art review, human ingenuity, Gazetta de Notícias

153 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Alves, Alice Nogueira _”A Exposição Universal de Paris de 1878 contada por Ramalho Ortigão”, 2018, pp. 153-174.

INTRODUÇÃO

A obra de Ramalho Ortigão (1836-1915) aborda os mais variados temas, sempre com um forte pendor pedagógico. Na sua produção literária contam-se muitas crónicas de viagens, em que diferentes sociedades e culturas são apresentadas ao leitor de forma informativa e didática. O seu humor constante entrelaça-se com uma escrita brilhante, descritiva e corrida, que se adapta aos tipos de crónicas que vai produzindo. Para além dos seus livros, Ramalho colaborou como correspondente em vários jornais, entre os quais se destaca a Gazetta de Notícias do Rio de Janeiro, no Brasil. Mais tarde, muitos desses textos foram reeditados em formato de livro e continuam, ainda hoje, a ter novas edições, mostrando a importância deste escritor na cultura portuguesa. De facto, ao lon- go do século XX, e já no XXI, vemos multiplicarem-se os volumes de livros e de artigos, muitos resultantes de estudos académicos, dedicados a este autor, que o abordam sob os mais variados aspetos, desde biografias, a estudos aprofundados sobre determinado tema, como o seu papel de critico de arte, de periodicista, de pedagogo, ou a sua enorme contribuição na área do Património Cultural. Ramalho é caraterizado como o “visitante letrado”, cujo objetivo se centra na partilha da informação com os leitores (Outeirinho, 1997, p. 67), ao mesmo tempo que esta- belece uma ligação pessoal com o outro (Vilela, 2011, p. 19). Em muitas viagens, esta tarefa é realizada com o financiamento do jornal brasileiro, em troca dos artigos que vai escrevendo para ali serem publicados (Zen, 2009). De entre as várias viagens que realizou ao longo da sua vida, estreando-se na exposição universal de Paris, em 1868, Ramalho foi tomando conhecimento das grandes novi- dades através da visita sistemática aos certames realizados na capital francesa até 1900. Neste artigo pretendemos relatar a sua experiência na Exposição Universal de 1878, que foi descrevendo na correspondência para a sua mulher1, bem como nos artigos enviados para o referido jornal brasileiro, satisfazendo a curiosidade a este povo, sobre as grandes inovações ali apresentadas. Em 1879 estes textos foram or- ganizados e publicados pela primeira vez no Brasil, num volume intitulado Notas de Viagem (Ortigão, 1879). Longe de uma descrição completa da exposição, interessa-nos perceber e valorizar as coisas que mais o impressionaram. Queremos retomar um discurso realizado em nome individual, sem perder o seu humor e espírito crítico, que tenta sempre usar como base para a divulgação do saber e da higiene e saúde do corpo e da alma. Esta perspetiva parece-nos essencial para percebermos os elementos que mais desper- taram a atenção de um português que, apesar de habituado a esta internacionalização, se deparou com um encontro de culturas, presente não só nos pavilhões, mas nos milhares de visitantes provenientes de todo o mundo que percorriam o recinto diariamente.

1 Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio de Ramalho Ortigão, E19.

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O nosso texto é acompanhado por gravuras ilustrando vários pavilhões, publicadas numa revista portuguesa da época – O Occidente.

A COMOÇÃO ARTÍSTICA

Fui no domingo à Exposição. Está acima de tudo quanto se pode imaginar. É uma maravilha, é um assombro. A gente perde-se na enormidade de tantas galerias, de tantos palácios, de tantos jardins cheios de flores e de relva fresquissima. Por todos / os lados se vê correr agua. Ha uma carta topographica para visitar a exposição, mas com o proprio auxilio da Carta a gente se ex- travia n’aquella complicação immensa. Visitei apenas ate hoje os salões de pintura. No primeiro dia em que vi as obras francesas tive uma commoção tao profunda que me deu quase um ataque nervoso. Desatei a chorar em soluços! Agora mesmo que escrevo tenho os olhos cheios de lagrimas. Que artistas! Que pintores!2

Ramalho Ortigão foi um grande crítico de arte. Iniciou a sua carreira jornalística no Porto, mudando-se para Lisboa em 1868. O novo grupo de literatos e artistas com quem irá conviver e o seu conhecimento sobre o que se passava no exterior, aliados a uma enorme sensibilidade estética, permitiram-lhe analisar e criticar as artes plásticas que se iam produzindo na época. Mais tarde, fará parte de várias ins- tituições ligadas à arte e ao património cultural, marcando, indelevelmente, o seu papel na área (Alves, 2013). É esta experiência que lhe dá a segurança necessária para se aventurar numa crítica ao que estava exposto no Campo de Marte, no Palácio da Indústria e na exposição retros- petiva da galeria da rua Lepelletier. Ao todo contavam-se 9 071 pinturas expostas nos espaços oficiais, provenientes de vários países de todo o mundo, para além das que se podiam ver nos espaços oficiosos.

Passando em frente de tantas e de tão diversas obras de arte, a primeira impressão que nos domina é o assombro. Depois, a presença de uma tão vasta galeria, perante a reunião de tôdas as obras- -primas do talento e do génio contemporâneo, há uma comoção única, de que a nossa alma trans- borda. O sentimento de admiração simpática que, diante de um bom quadro, nós consagramos instintivamente ao artista que o concebeu e que o executou, dilata-se aqui imensamente e abrange a humanidade. (Ortigão, [1879] 1945, p. 120)

Muito imbuído das grandes teorias da época, Ramalho analisa o conjunto da ex- posição. Neste contexto, cita Viollet-Le-Duc, que, apesar de estar envolvido na sua organização (Lopes, 2007, p. 59), não é citado pelo nosso autor nesse contexto. A sua

2 BNP, Espólio de Ramalho Ortigão, E19/295.

155 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Alves, Alice Nogueira _”A Exposição Universal de Paris de 1878 contada por Ramalho Ortigão”, 2018, pp. 153-174.

admiração por este arquiteto era profunda, e as suas referências relativas às condições necessárias ao florescimento da arte estão aqui presentes. A independência intelectual – a liberdade estética – são fundamentais para a existência da arte numa determinada sociedade. A este respeito, Ramalho tem muito a dizer, com fortes influências de Taine e dos grandes teóricos da época, discute aspetos essenciais para a compreensão do ho- mem e do seu meio envolvente, defendendo a arte como produto direto do meio social (França, 1990, p. 439). A influência de Véron também aqui se faz sentir em vários aspe- tos, como é o caso da negação do Belo absoluto (Oliveira, 1982, p. 39) De entre os muito autores ali representados, Ramalho enaltece os retratos de Bonnat, Meissonier e Cabanel. Critica o academismo de Bouguereau, e destaca Jules Breton como o “primeiro dissidente do convencionalismo académico” (Ortigão, [1879] 1945, p. 129) A arte tem de transmitir uma emoção. Gustave Moreau, Carolus Duran, Gérome, Goupil, Corot e Coubert, são nomes que exalta pela comoção que lhe provocam. Apesar de não estarem oficialmente presentes na exposição, Ramalho considera que a sua critica à pintura francesa seria extremamente incompleta se não dedicasse algumas linhas aos impressionistas. Tenta explicar porque as suas obras são mal-aceites – a no- vidade é sempre mal vista. O público não gosta do que não percebe. Estas declarações são feitas também em resultado da forte impressão que Manet tinha deixado quando o conheceu pessoalmente em Paris durante esta estadia:

Creio que Manet compreendeu o que se passava no meu espírito, porque, fitando-me por um mo- mento com a sua espirituosa fisionomia, de testa escanteada, olhos garços, a barba loura apartada em leque, o bigode torcido em grandes guias, disse-me afectuosamente, com a autoridade benévola de um mestre diante de um discípulo: ~ O facto é efectivamente êsse que aí está esboçado. É preciso convencermo-nos inteiramente de que a natureza faz as coisas de um modo muito mais simples do que os retóricos imaginam. (Ortigão, [1879] 1945, p. 29)

Outros países de destaque no campo artístico são a Inglaterra, a Itália, a Espanha, a Rússia e a Alemanha. Na Húngria destaca Munkacsy, na Áustria, Makart, na Bélgica, Steven, na Holanda, Bisschop-Swift, Israëls, H. Mesdag, Roelofs, Van Elven, na Suíça, Bocion e Stengelin. Nos Estados Unidos da América brilha Dana, apesar da qualidade estética dos artistas desta proveniência se encontrar longe da literária, segundo as suas palavras. O seu nacionalismo reflete-se na produção artística e na unidade de expressão. Da Rússia, refere Siemiradski e Repine, pois, apesar de não terem técnica, descrevem dura e cruamente a sua realidade. A cor é o que mais o espanta na pintura inglesa – crua, com uma nota poética que lhe confere um caráter antiacadémico. Os pintores Herkomer, Stone, Walker, Millais, Wells, Frith, Banard, Goodball, Girardot, Fildes, Cope, Watts, Sant, aqui se encontram também.

156 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Alves, Alice Nogueira _”A Exposição Universal de Paris de 1878 contada por Ramalho Ortigão”, 2018, pp. 153-174.

Vai descrevendo os quadros que mais o impressionam, descrevendo minuciosamente as cenas e as suas personagens, com apontamentos de luz e de cor que tentam substituir a falta de reprodução das pinturas, essenciais para uma melhor perceção dos seus leitores distantes — tenta construir quadros vivos. A pintura alemã é moderna. Baur, Becker, Cornelius, Harrach, Knille, Bokelmann, Pilz Grutzner, Menzel, Richter, Gussow, Knaus, apresentam obras com um forte cunho de nacionalidade que transparece na escolha dos assuntos representados. A pintura italiana tinha estado mais bem representada em 1867. Onze anos de- pois, as obras careciam de originalidade de conceção e de estilo, mas destaca a es- cultura de Monteverde. Os espanhóis, esses sim, constituem um povo fadado para a pintura: Pradilla, Fortuny, Madrazo, Rico, Domingo, são referidos entre tantos outros.

A grande obra capital da exposição espanhola são as telas de Goya, colocadas no Trocadero. Êsses admiráveis esboços, feitos de um só arranque, são repassados do mais poderoso humorismo; riem de um riso trágico; dão a expressão tremenda de uma dissidência, de um protesto e de uma ameaça; revêem a amargura mais profunda; são como a visagem de um palhaço que morre lan- çando ao público a sua última gargalhada e o seu último suspiro; são a revelação mais incisiva e mais pungente de uma personalidade dominadora; são finalmente a obra de alguém que se não confunde na turba e que nos obriga a dizer, como diante de Beethoven, diante de Shakespeare ou diante de Vitor Hugo. - Ai está um homem! (Ortigão, [1879] 1945, p. 183)

Nos seus cadernos pessoais, que ainda hoje se podem encontrar no Espólio que está guardado na Biblioteca Nacional de Lisboa3, encontramos anotações com as descrições dos quadros que viu, em que tenta captar as emoções das pessoas representadas, seguidas de alguns comentários pessoais que não publicou. Apesar de ali escrever algumas coisas que se encontravam abaixo da sua expectativa, também tece comentários emocionados e vibrantes, anotando comparações a fazer entre quadros.

UM ENCONTRO DE CULTURAS

Mesmo depois de ter estado na exposição de 1868, nada tinha preparado Ramalho para as maravilhas que se avizinhavam. Ali, mesmo ao seu alcance, estava o expoente da raça humana. Todas as invenções, todas as experiências, até a eletricidade nas ruas!

3 BNP, Espólio de Ramalho Ortigão, E19/111, E19/150, E19/175.

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Ali passavam diariamente milhares de pessoas de todo o mundo, e ele, vindo do seu pequeno país, entrou no recinto delimitado pelo palácio do Trocadero e o palácio do Campo de Marte, assumindo a sua pequenez perante a variedade o rodeava.

Nessa imensa multidão, que formiga incessantemente salpicada de longe pelas pintas mais vivas de alguns uniformes, como são os dos árabes embuçados nos seus alburnozes com o turbante branco e as botas de marroquim encarnado, dos escoceses com o saio curto e pena no gorro, dos turcos com o seu tarbouche, dos arménios com a longa beca e a formidável bengala, um único povo, vestindo o moderno costume das cidades, se distingue da confusão inextricável desta nova Babel: o povo inglês. (Ortigão, [1879] 1945, p. 94)

Perante o cenário social desta exposição, onde mais de 16 milhões de visitantes passaram e 35 países se fizeram representar (BIE, s.d.), na maior exposição até então realizada (Levey, 1911, p. 68), Ramalho, imbuído do espirito da época, apressa-se a analisar os vários tipos e as suas sociedades de origem, distinguindo as nacionalidades pelos seus hábitos.

FIG. 1 Palácio do Trocadero. (O Occidente (16), 15/08/1878, p. 124) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

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FIG. 2 Palácio do Campo de Marte. (O Occidente (17), 01/09/1878, p. 132) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

Tudo é descrito ao mais ínfimo pormenor: o palácio do Trocadero com as suas cascatas e estátuas alegóricas; o palácio do Campo de Marte que tem um escudo onde a palavra PAX é rodeada das bandeiras de todo o mundo.

São os diferentes anexos da Exposição: o pavilhão das florestas francesas; a exposição Lepante, de re- lógios de tôrre, de faróis e de moinhos de vento; o pavilhão da engenharia civil; o da união cerâmi- ca; o da colonização africana pelos alsacianos e lorenos; a exposição de antropologia e de etnologia; o palácio persa, no qual se acha reproduzido diminutivamente o salão do Xá, cujo teto é feito de um milhão de pequenos espelhos, formando estalactites angulares, e produzindo os mais estranhos e deslumbrantes efeitos de luz; a exposição da companhia Fives Lille, em que figura o grande vagão destinado ao caminho de ferro de Pernambuco... (Ortigão, [1879] 1945, pp. 97-98)

Os chalés ingleses, totalmente mobilados, um caravansére negro e dourado chinês, um comptoir japonês, o pórtico inca cuja reprodução fora trazida pelo Peru, a mesquita ar- gelina com flora trazida desse país, os bazares tunisino e marroquino, onde tantas coisas requintadas se vendiam… Tudo isto lhe desperta a atenção e reflete a multiplicidade do certame. Tantas maravilhas nunca vistas, nem sonhadas.

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FIG. 3 Pavilhão de Inglaterra. (O Occidente (14), 15/7/1878, p. 109) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

FIG. 4 Pavilhão de Espanha. (O Occidente (18), 15/09/1878, p. 141) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

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FIG. 5 Pavilhão de Itália. (O Occidente (14), 15/07/1878, p. 109) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

FIG. 6 Pavilhão da Suíça. (O Occidente (20), 15/10/1878, p. 157) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

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FIG. 7 Pavilhão da Bélgica. (O Occidente (23), 01/12/1878, p. 184) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

FIG. 8 Pavilhão da Suécia e da Noruega. (O Occidente (21), 01/11/1878, p. 165) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

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FIG. 9 Pavilhão da Áustria-Hungria. (O Occidente (22), 15/11/1878, p. 172) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

FIG. 10 Pavilhão dos Estados Unidos. (O Occidente (20), 15/10/1878, p. 160) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

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FIG. 11 Pavilhão da Rússia. (O Occidente (19), 01/10/1878, p. 149) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

FIG. 12 Pavilhão da América Central e Meridional. (O Occidente (15), 01/08/1878, p. 120) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

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FIG. 13 Pavilhão da China. (O Occidente (14), 15/07/1878, p. 109) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

FIG. 14 Pavilhão do Japão. (O Occidente (14), 15/07/1878, p. 109) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

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E no meio de todos estes ambientes, reconstituídos em arquiteturas tão efémeras como a própria exposição, surge um edifício moderno da fundição Creusot. A magni- ficência sem escala apresentada por esta construção de ferro deslumbra-o, bem como o famoso pilão desta oficina, um martelo a vapor que foi das maiores atrações da expo- sição. A visita ao pavilhão das ambulâncias e dos hospitais de campanha resulta numa reflexão sobre a instabilidade política europeia que se vivia naquela época. Eis se não que Ramalho encontra A Liberdade. A cabeça da estátua de Bertholdi des- tinada a ser oferecida à cidade de Nova Iorque. Para se visitar o interior foi aberta uma entrada no pescoço. Ali poderiam jantar duas ou três famílias em simultâneo, tal era o seu tamanho! Relativamente à restauração, tudo se encontra. Todos os países se fazem representar pela comida da melhor qualidade. Recriam-se ambiências através da decoração dos lo- cais, dos trajes e da música. Rapidamente se viaja do bodegon espanhol, para a taberna da Holanda, passando pelos cafés ingleses e americanos. A variedade de sabores, as novas bebidas, tudo se mistura na boca e aprimora um paladar pouco habituado ao requinte destas experiências. Os espetáculos também são referidos, não só no livro Notas de Viagem, mas tam- bém na correspondência para a família, onde louva um concerto vocal dado pelos estudantes das universidades reunidas da Suécia e da Noruega4. Também nesta do- cumentação encontramos referência a uma exposição canina, que muito havia de agradar à mulher e às filhas5. Tudo o maravilha…

Ao sair do palácio do Campo de Marte guarda-se por muito tempo no espírito uma impressão de assombro e de orgulho. Aquelas imensas galerias, onde circulam duzentas mil pessoas, a população de uma cidade; aquela luz serena caída de abóbadas de vidro e irisada pelos reflexos dos estofos que forram as paredes e pelas côres de milhares de bandeiras que pendem do teto; o som dos pianos e dos grandes órgãos-orquestra; a exaltação das fontes perfumadas; o estrépito das máquinas; a confusão dos diálogos em tôdas as línguas do mundo; o movimento dos restaurantes, salpicados de aventais brancos e de bandejas, que sobrenadam acima da multidão e da vozearia, com as notas cintilantes e multicolores da cerveja, dos gelados e das sodas; os diferentes concertos musicais nos parques: tôda essa confusão confluente e refluente de coisas, de pessoas, de sons, de côres e de perfumes dá uma espécie de embriaguez febril, através da qual perpassa a recordação atropelada e confusa dos objectos expostos. (Ortigão, [1879] 1945, p. 269)

4 BNP, Espólio de Ramalho Ortigão, E19/298. 5 BNP, Espólio de Ramalho Ortigão, E19/295.

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FIG. 15 Pavilhão de Portugal. (O Occidente (13), 01-07-1878, p. 97) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

FIG. 16 Interior do pavilhão de Portugal. (O Occidente (23), 01/12/1878, p. 180) © Hemeroteca Municipal de Lisboa

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O ENGENHO HUMANO

Querida Emilía – Escrevo-te à pressa porque tenho de ir para a Exposição. A exposição é a melhor escola que ha. Adquirem-se ahi inúmeras ideias, mas é preciso frequental-a com grande assidui- dade, ir todos os dias, para se principiar verdadeiramente a ver, a discriminar umas coisas das outras, finalmente a aprender6.

No seu dia-a-dia em Lisboa, Ramalho procura a simplicidade dos hábitos, a higiene do corpo e da alma, pregando práticas e rotinas que visam combater as condições insa- lubres em que os portugueses viviam, como se pode ver nos seus artigos, monografias e traduções, publicados em Portugal e no Brasil. Para ele poder perceber as evoluções e descobertas científicas é uma oportunidade maravilhosa. Assim explicamos a sua admiração pelos poderes do adubo, conseguidos por enormes variedades de estrume, apresentadas no Pavilhão do Material e Processos das Explorações Rurais e Florestais: ou dos novos modos de incubação artificial e de engorda de aves do inventor Adile Martin, cujos aparelhos descreve minuciosamente, funcionando, imagine-se, através de um sistema que permitia que a ave se mexesse sem sair do lugar e tudo isto com a aprovação da Sociedade Protetora dos Animais! No pavi- lhão de piscicultura ensinava-se a criar “peixes mais gordos e mais saborosos” no quarto de nossa casa. No pavilhão dos vinhos franceses é realizado todo o processo de preparação do vinho, no meio de comerciantes que distribuem panfletos de publicidade com os preços incluí- dos. No das águas minerais estão todos os tipos, de todas as fontes, cujas propriedades terapêuticas curam tudo.

Estas águas reúnem, segundo os prospectos, tôdas as propriedades terapêuticas que o leitor possa imaginar. Há-as laxativas, aperitivas, diuréticas, depurativas, digestivas, alterantes, sudoríficas, reconstituintes, etc. Não há doença no pulmão, na laringe, na faringe, no estômago, no ventre, no fígado, no baço, no rim, no sangue, nos nervos, nos ossos, que resista a uma tal infinidade de específicos. (Ortigão, [1879] 1945, p. 113)

Este assunto era muito importante para Ramalho, tendo-lhe dedicado um livro ape- nas três anos antes: Banhos de caldas e aguas minerais (Ortigão, 1875). Para além do que se encontra exposto dentro do recinto da exposição, muitos acon- tecimentos e exposições decorreram noutras zonas de Paris. É este o caso do anexo das máquinas e da Exposição Operária. Ali se mostra a capacidade de engenho dos

6 BNP, Espólio de Ramalho Ortigão, E19/299.

168 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Alves, Alice Nogueira _”A Exposição Universal de Paris de 1878 contada por Ramalho Ortigão”, 2018, pp. 153-174.

franceses. Tantas máquinas, com tantas funções, cujo único objetivo é resolver os nossos problemas, e tudo isto a vapor! A máquina de ar fresco com uma torneira purgativa, invenções para a cozinha, a joeira monetária que conta moedas ou a engomadeira mecâ- nica. Todas estas maravilhas de engenho humano o espantam e o fazem refletir sobre a maneira de viver moderna e nos seus benefícios para a higiene da casa e a qualidade de vida do homem do seu tempo. Foi também à parte da grande exposição, nas conferências do Boulevard des Capucines, que teve contacto com o fonógrafo inventado por Edison. As maravilhas alcançadas por este homem são descritas minuciosamente, chegando mesmo a enviar para o Brasil uma placa gravada no processo. É a eternização do som. Neste contexto, também refere o telefone, mas sem qualquer desenvolvimento.

AS ARTES DECORATIVAS E O MOBILIÁRIO

[…] Continuo excellente, de saúde, e vou agora com regularidade à exposição porque ha lá inumeras coisas que é preciso estudar, que é preciso metter na cabeça, decorar à força de as ver. A casa do Principe de Galles a que eu vou todos os dias, por exemplo, é pela disposição e pelo gosto da mobilia, pelos arranjos todos do interior a melhor lição de gravidade, de bôa creação e do bom gosto que se pode receber. Está no mesmo caso uma cosinha hollandesa. A arte, a pintura, a esculptura, os moveis, os estofos, as faianças, são outros tantos objectos dignos de estudo mais circunspecto e mais demorado7.

Outro aspeto de grande interesse para Ramalho são as Artes Decorativas. As descrições da sua casa, bem como a sua correspondência pessoal, ou mesmo a temática de muitos artigos, demonstram esse facto. Por outro lado, a relação entre os objetos de mobiliário e a qualidade de vida é para si fundamental. Por isso, a decoração do palácio do Campo de Marte chama a atenção do nosso visi- tante. A sua variedade mostra a “enorme confusão de princípios em que se basea a vida doméstica da sociedade contemporânea” refletindo uma “acumulação inextricavelmen- te baralhada dos móveis de todos os estilos, de tôdas as épocas”. (Ortigão, [1879] 1945, p. 185). Tudo se mistura no estilo do século XIX, desde as cátedras de Carlos o Calvo, até às do primeiro Império, o que impede a criação original. Apesar disso, louva os principais atributos dos marceneiros dos vários países, referindo Henry Penon. Ramalho vai descrevendo minuciosamente todos os móveis para dar a entender a variedade presente, afirmando que juntos recriavam ambientes e faziam imaginar dife- rentes personagens ali passeando aleatoriamente.

7 BNP, Espólio de Ramalho Ortigão, E19/294.

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[…] no grupo dos personagens de meia-idade, que a gente esboça mentalmente em tôrno das mobílias expostas no Campo de Marte, intervêm as figuras estranhas, anacrónicas, inesperadas ~ do dragão do Império, com botas húngaras, galão do ouro sobre o calção branco, sabre recurvo, barretina de saco e cabelo em tranças empoadas sôbre as fontes; o abade da Regência distribuindo às damas os seus bilhetes da confissão e do baile da Ópera; o pomposo fidalgo da côrte de Versalhes avançando em passo de minuete como no Trianon; a marquise do século XVIII, jogando o besi- gue com a castelã do século XV, o incroyable oferecendo pastilhas ao paladino das cruzadas e a soubrette contemporânea de Molière, servindo chá prêto com torradas a Pedro~o~Eremita ou a Ricardo~Coração~de~Leão. (Ortigão, [1879] 1945, pp. 189-190)

A família moderna deve ter um espírito de precisão e método, e isso não se atinge na posição deitada. Só com uma mobília prática se alcançará este objetivo. Tudo o que não tem utilidade deve ser removido. A “mobília futura” é a que se adapta mais à dignidade do lar, e são os ingleses que mais se aproximam disso. Apresentam casas completas, totalmente decoradas, com livros e faianças e os quadros pendurados nas paredes. Isto reflete o povo, a sua convicção e a sua moral, tão admirada por Ramalho nesta ocasião.

A EDUCAÇÃO

Outro aspeto fundamental nos interesses do nosso escritor foi a educação. Nas muitas páginas que publicou na imprensa desde cedo, bem como na correspondência particu- lar, vemos que esta questão lhe é essencial. Apesar de não ter uma educação académica, tendo abandonado os seus estudos inicia- dos na Universidade de Coimbra, Ramalho sempre conviveu com grupos de intelectuais e artistas; teve um acesso privilegiado a muitas pessoas de grande craveira intelectual e estatuto social elevado, e acabou por se tornar ele próprio académico, não só na Real Academia de Ciências de Lisboa, onde trabalhou como oficial de secretaria mais de quarenta anos, mas também na Academia Real de Belas-Artes de Lisboa. O seu estatuto social e intelectual foi reconhecido quando se tornou o bibliotecário real em 1895. As suas viagens ao estrangeiro e o contacto com as grandes exposições universais tam- bém o alertaram para as questões relacionadas com a Arte Industrial. Já anteriormente mencionara o South Kengniston Museum, mas nas páginas dedicadas a este assunto refere as muitas cópias galvanoplásticas de peças deste museu, apresentadas pelo indus- trial Elkengton, numa secção do Campo de Marte. Esta possibilidade de a arte chegar a todos, através da sua reprodução, fascina-o. O renascimento artístico dos ingleses foi nesta exposição “o assombro do mundo” (Ortigão, [1879] 1945, p. 214). Mas será a secção da exposição de 1878 dedicada à educação e ao ensino que merecerá a sua especial atenção.

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Na exposição escolar faz uma comparação à mostra internacional de 1867, onde as escolas religiosas dominavam. Agora, o Estado tem influência na educação e o ensino público ascendeu imensamente. As condições melhoraram, desde os equipamentos aos programas. Ainda assim, continua muito inferior relativamente a outros países, como os EUA, a Bélgica, a Alemanha ou a Suíça. Os meios foram criados: instituíram-se bibliotecas, museus-escola. Mandaram os pro- fessores primários à Exposição – formam-se os mestres. A existência do Kindergarten, onde as crianças, dos 2 aos 7 anos, recebem uma educação pré-escolar é admirável. Embora tal ainda não existisse em Portugal, começava a aparecer por toda a Europa, seguindo o método de Froebel. Os russos criaram o Museu Pedagógico, com material de apoio a todas as escolas, onde nada é escondido, onde se estuda o homem e os mistérios do seu corpo. Este tema desperta-lhe tanto interesse, que chegou a assistir a um discurso do Ministro da Instrução Pública realizado na Sorbonne. Para além da visita sistemática aos pavilhões, Ramalho refere também as conferências a que vai assistindo no palácio do Trocadero. Entre os 65 congressos internacionais que se realizaram em França nessa altura, a grande maioria dos quais em Paris (Lopes & Matos, 2015), Ramalho assistiu a vários. Para ele este é o meio de disseminar o conhecimento moderno. Não há aqui a seleção elitista da Academia. Entre outros, refere os congressos das mulheres e todas as discus- sões em torno dos temas ali apresentados. No de meteorologia, apresentam-se métodos de medição e de previsão do tempo, e a sua eficácia. No congresso de estatística tudo se discute, desde a colonização americana dos índios à criminalidade francesa. No congres- so de matemática, o qual se confessa incompetente para apreciar, usam-se fórmulas para resolver problemas do dia-a-dia — os novos aparelhos de calcular fascinam-no. No de zoologia aparecem os discípulos de Darwin a fazer as suas apresentações. No congresso de navegação e engenharia, o homem mostra o seu poder sobre a natureza. O de higiene, ao contrário de satisfazer a sua expectativa sobre a cura das doenças, questão que tanto o preocupava, discutiram-se os álcoois e a sua influência na saúde, concluindo-se não existir qualquer benefício curativo na ingestão de bebidas alcoólicas. É no congresso de medicina que se apresentam as soluções, entre as quais a utilização de próteses metálicas em alumínio. Fala-se de eletrização cefálica, em que se usam pilhas como pólos nega- tivos e positivos para doentes com alienação mental. Apresentam-se novos métodos de controlar a febre com cintas refrigeradoras. A dupla consciência (ou personalidade) é encarada como sonambulismo, sem o próprio médico, que o propõe, saber o que é essa doença. Outros defendem que é um histerismo numa artéria cerebral, mas concluem que ainda não têm o conhecimento necessário para explicar este fenómeno. Fala-se de raiva, de tuberculose e de miopia. Todas as inovações são referenciadas. É evidente que o mundo está a mudar, e é ali, na Exposição, que se encontram as grandes novidades. Fora do seu recinto, em banquetes

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e reuniões mais seletas, os assuntos continuam a ser discutidos, como se a Exposição Universal irradiasse os seus conhecimentos, sendo levada para todo o mundo pelos seus milhares de visitantes. É neste contexto extraordinário que Ramalho ouve Haeckel a explicar a teoria a evolução humana de Darwin, da qual “Não é permitido duvidar.” (Ortigão, [1879] 1945, p. 259). Esta grande tendência positivista que se verifica no nosso escritor nesta altura, e que o marcará sempre, foi já referida por outros autores. Até os seus contemporâneos o fizeram nas suas críticas ao livro (Martins, 1878, p. 153).

É só pela ciência que o homem moderno se pode elevar acima do nível dos seus contemporâneos. É pela ciência que êle será na natureza o ente mais digno, na sociedade o cidadão mais forte, no trato dos seus semelhantes o homem mais honrado, e nas manifestações da arte, espelho inconsciente da sua personalidade, o artista mais completo e o mais perfeito. (Ortigão, [1879] 1945, p. 143)

O HOMEM E O SEU MEIO

O salão das missões científicas francesas presta uma homenagem à Ciência, que foi cons- truída com o sacrifício dos que partiram para o desconhecido, numa sublime abnegação, que chega ao sacrifício da própria vida. Neste campo há muitos nomes que lhe chamam a atenção e, no seu modo descritivo, vai referindo um por um, bem como as suas façanhas.

[…] A sós, em frente de um mundo estranho e hostil, no meio de vegetações fantásticas e de homens desconhecidos, caminhando na incerteza, no mistério e no perigo, como na mais frágil das pontes lançadas sôbre as trevas de um túmulo, que grandeza de ânimo não é precisa para ir avante, firme num dever a cujo desempenho assiste unicamente ~ testemunha austera e muda – a própria consciência! Para acrescentarem uma pequena pedra, um insecto morto, uma flor murcha às suas colecções geológicas ou botânicas, para ouvirem uma palavra, para copiarem uma epígrafe, para determinarem uma latitude, para observarem uma estrêla no céu, ou para interrogarem um sepulcro no fundo de uma caverna... (Ortigão, [1879] 1945, pp. 219-220)

Ainda há mais para ver. Fora do palácio do Campo de Marte está a exposição antropo- lógica. Os seus objetos, com tantos milhares de anos, permitem a cobertura da história da humanidade A dualidade entre o “Adão bíblico” e o “Adão genealógico” aparece aqui explorada a partir da teoria evolucionista, que Ramalho abraça cegamente.

Pobre Adão! Enquanto uma parte dos teus descendentes te julgam no paraíso terreal desfrutando a posse de todos os bens olímpicos na ociosidade dos deuses do Epicuro, tu vagueavas mudo e de- sarmado de caverna em caverna entre os perigos de uma natureza hostil e monstruosa. (Ortigão, [1879] 1945, p. 274)

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A evolução do homem nos últimos milhares de anos foi extraordinária, e o seu enge- nho atual não faz mais do que ir dando respostas às suas dificuldades, criando as máqui- nas que se encontram neste certame. Os homens de religião estão a tentar adaptar-se às novidades da ciência. Na secção de arqueologia pré-histórica tudo se encontra proveniente de França, mas também de outros países europeus — até a evolução do homem está representada pelos crânios de várias raças. O congresso das ciências antropológicas retomava esta exposição, complementando-a. A secção demográfica e a etnográfica também o cativaram pela sua temática variada onde as riquezas se juntam ao conjunto geral das cinco secções, deslumbrando o nosso visitante por nunca ter visto nada no género.

CONCLUSÃO

Partindo do seu espanto ao entrar no recinto da exposição francesa, pela sua imen- sidão e magnificência, Ramalho visitou sistematicamente todos os pavilhões e mostras paralelas às existentes no recinto do Campo de Marte. Teceu considerações sobre os vários espaços e suas decorações. Referiu-se às grandes inovações da ciência e do triunfo do homem sobre a natureza através do seu engenho. Assistiu a congressos e comentou as matérias discutidas. Refletiu sobre a instrução pública e sobre a arte exposta, sem esque- cer os renegados impressionistas. As teorias evolucionistas e o grande destaque dado à antropologia também o entusiasmaram muito, perdendo-se em relações descritivas dos objetos que ia encontrando. Neste relato observamos uma visão que pretende ser isenta, onde não é feita referência aprofundada a pavilhões nacionais, incluindo ao seu.

O que vimos é o triunfo supremo de tôdas as ciências que constituem a glória da civilização moderna: a mecânica, a física, a química, a higiene, a moral, a pedagogia. (Ortigão, [1879] 1945, p. 273)

173 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Alves, Alice Nogueira _”A Exposição Universal de Paris de 1878 contada por Ramalho Ortigão”, 2018, pp. 153-174.

REFERÊNCIAS

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174 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

SAUDAÇÃO RÍTMICA NA OBRA DE CARLOS QUEIROZ

Rodrigo Sobral Cunha

Quis a fortuna que o homem que escreveu numa Canção biográfica

– Nasci de madrugada E foi na primavera, Nessa hora fremente Em que Amor aparece. e que da sua nação deixou dito:

Esta é a pátria em que se está mais só; fosse agraciado com a amizade – essa “magia dos amigos”, na sua expressão, “com pro- fundo amor, com total compreensão” – de Fernando Pessoa, Almada Negreiros, José Régio e Álvaro Ribeiro, entre outros1. E da solidão colheu também frutos, ele cujo ofício era procurar

- Os versos esquecidos Que o Ritmo desencanta.

1 Uma medida do envolvimento de Carlos Queiroz na vida cultural do seu tempo e particularmente na ambiência lisbonense animada pela qualidade do rol de artistas plásticos cuja amizade congraçou, pode achar-se no seu artigo “Da Arte Moderna em Portugal” (in Variante, Lisboa, Primavera de 1942).

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Tanto na vida como no estilo, foi Carlos Queiroz amante dos “gestos naturais e pas- sos nítidos”, de “falas muito simples e sentimentos cálidos”, da limpidez misteriosa e transparente, da frescura juvenil (“a juventude dos eleitos”) e do “lúcido amor”, como assinalou por palavras e actos.2 Com amor lúcido pôde assim escrever:

Há um sorriso luminoso e mudo (Não é febre nem sonho!) Que se infiltra no ar e reverdece tudo Onde os meus olhos ponho.

Uma consideração entremostra um lampejo da sua cultura:

“… Quem saiba apenas português, como poderá fazer uma ideia clara do que seja a poesia de Homero, de Goethe, de Góngora, de Edgar Poe, de Verlaine ou de Eminescu – poetas geniais largamente traduzidos e divulgados em quase todos os idiomas em que se exprimem os povos civilizados?...”

Citava Victor Buescu as palavras de Carlos Queiroz, proferidas a 4 de Março de 1947 na Emissora Nacional em palestra consagrada a Mihail Eminescu, por ocasião da pri- meira tradução portuguesa dos carmina do vate romeno, da responsabilidade de Buescu e Queiroz, aparecida em 1950. Advertido por Mírcea Eliade em Lisboa de que “toda a obra de Eminescu só pode ser traduzida por um grande poeta”, o convite de Victor Buescu a Carlos Queiroz traria na volta a surpresa da pluralidade de aspectos (métrico, morfológico, sintáctico, rítmico, estético, etc.) atendidos, segundo ele, pela “musicalida- de discreta da língua portuguesa, orquestrada por Carlos Queiroz.” Reputava Buescu a obra translata “como que o testamento poético de Carlos Queiroz, visto confirmar que uma tradução pode ser também uma esplêndida obra de arte”3. Não obstante alçar-se no pálio testamental do poeta lisbonense a Epístola aos Vindouros, de Agosto de 1949, dois meses antes de ser ele desaparecido. Discreta, espera a sua obra visita num tempo em que, como escreve numa canção, “tudo é agora breve”.

2 Escrevemos o nome do poeta na grafia por ele preferida. Um aceno caracterológico acha-se neste seu Libera me: Livrai-me, Senhor, / De tudo o que for / Vazio de amor. // Que nunca me espere / Quem bem me não quer / (Homem ou mulher) // Livrai-me também / De quem me detém / E graça não tem, // E mais de quem não / Possui nem um grão / De imaginação. 3 Veja a edição bilingue de Mihail Eminescu, Poesias Poezii, Selecção, Tradução, Prefácio e Notas de Victor Buescu, Colaboração de Carlos Queiroz, Com um ensaio de Mírcea Eliade, Lisboa, Editorial Fernandes, 1950.

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As palavras dos amigos na sequência do eclipse parisiense de Carlos Queiroz4 oferecem, logo em 1949, perspectivas panorâmicas para o apuramento hermenêutico que parece tardar, circunscrevendo-se ainda a maior parte das leituras da sua poesia e diversificada prosa à crítica e à historiografia literárias inflexas, clivadas do aprumo da razão poética. Segundo José Régio, com “o amor do equilíbrio e da perfeição”, “a medida, o gosto, a discrição, o poder de sugestão e síntese, a graça da ironia e o calor da sensibilidade tempe- rando-se mutuamente, fazem de vários dos seus breves poemas obras densas e perfeitas”5. Lamentando a perda de um dos seus melhores amigos, Álvaro Ribeiro surpreendia o trânsito estético do poeta notando que “ao relermos os seus admiráveis ritmos sentimos a presença espiritual que, subtilmente, nos comunica a convicção de que em Carlos Queiroz o pensamento humano se tornara permeável ao pensamento divino”6. Como diapasão tem o Breve Tratado de Não-Versificaçãoem epígrafe esta palavra de Hölderlin:

Os pensamentos do Espírito universal Têm o seu calmo coroamento na alma do poeta.

Por hoje, considerando uma leitura selecta, obediente ao princípio de elegância7 pre- zado por Carlos Queiroz, gostaríamos de ajudar à devolução do pensamento emotivo do poeta a esse “cálido sentido” (que solicitava ele ao leitor desconhecido) filho do “lúcido amor”, de que seja enfim depositário fiel o pensamento vivo em língua portuguesa. Discípulo indirecto de Cesário Verde8 e de Camilo Pessanha9, como Fernando Pessoa e assumindo-se discípulo deste10, Carlos Queiroz ressaltava na caracterologia que fez no

4 Nascido a 5 de Abril de 1907, este homem de dois livros morreu no Outono de 1949, num serão na capital francesa, na intenção de convidar uma senhora para dançar. 5 José Régio, Diário Popular, 2 de Novembro de 1949, por ocasião da morte de Carlos Queiroz (in Obra Poética de Carlos Queiroz, Desaparecido. Breve Tratado de Não-Versificação, Prefácio de David Mourão-Fer- reira, Lisboa, Edições Ática, 1984, p. 217). 6 Álvaro Ribeiro, “À luz da filosofia” [in Diário Popular, 2 de Novembro de 1949, por ocasião da morte de Carlos Queiroz], Dispersos e Inéditos I, Organização e apresentação de Joaquim Domingues, Lisboa, Im- prensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 380. Para a crítica de Álvaro Ribeiro à poesia de Carlos Queiroz, veja-se também “Escola de Poesia” [in Diário Popular, 28 de Setembro de 1948], Dispersos e Inéditos I, ob. cit., pp. 341-344. 7 De acordo com a etimologia desta palavra e as considerações sucessivas. 8 De quem sabia versos de cor. 9 De Camilo Pessanha escreveu Carlos Queiroz: “Ele mesmo parece ter delineado a trajectória da sua emotividade, marginando-a de calma e de lucidez: – de tanta lucidez e tanta calma, que a sentimos deslizar, nos seus poemas, como o mais hialino e tranquilo veio de água.” Reconheceu a visualidade como a mais saliente característica do temperamento poético de Camilo Pessanha e enalteceu “a rara sobriedade do seu temperamento de lírico discreto e elegante” (Presença, Nº 20, Coimbra, Abril-Maio de 1929, p. 2). 10 Entre os pseudónimos de Carlos Queiroz acham-se Fernão de Lisboa e Américo Nogueira.

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lustro do passamento do arquipoeta a ideia (inspirada em Goethe11) de uma individua- lidade feita de um complexo de simplicidades, “mas, acima de tudo, fortíssimo poder de equilibrar em si mesmo esses poderes contrários e de exprimir, emocionalmente, o resultado desse equilíbrio.” Assinalam as palavras dedicadas aos mestres a admirativa afinidade electiva de quem seguia, entretanto, a sua estrela12. Voz rutilante dessa estrela é o ritmo. Juntamente com a índole rítmica própria e com o magistério pessoano do ritmo poético, viável é que tenha Carlos Queiroz conjuga- do o conhecimento da ritmanálise, que Álvaro Ribeiro estava em posição de facultar na correspondência directa com Lúcio Pinheiro dos Santos e as sucessivas formulações da ritmanálise, da inventividade deste condiscípulo de Leonardo Coimbra. Amigo de Camilo Pessanha foi Lúcio Pinheiro dos Santos (cumeado por Álvaro Ribeiro); assim se completando um dos arcos da espiral mágica do ritmo lusíada. “Temos a nossa fisiono- mia, a nossa medida, o nosso ritmo” – era o mote de Litoral, uma das publicações que

11 Na Carta à Memória de Fernando Pessoa: “Penso no Goethe, pensado em si: – ‘Com as diversas tendên- cias da minha natureza, não posso contentar-me com uma só maneira de pensar. As coisas do céu e da terra constituem um tão vasto reino, que não é preciso menos, para poder abraçá-las, do que todos os órgãos de todos os seres reunidos’. E penso agora em si, pensando no Goethe: – ‘Tenho o desejo de ser de todos os tempos, de todos os espaços, de todas as almas, de todas as emoções e de todos os entendimentos’; mas ‘não podendo ser a própria força universal que envolve e penetra a rotação dos seres, quero, ao menos, ser uma consciência audível dela, um brilho momentâneo no choque nocturno das coisas’.” (Presença, Nº 48, Julho de 1936). 12 “Mas ter naturais afinidades é uma coisa e ser influenciado é outra. Além disso, na Arte como na vida, há duas maneiras apenas de ser-se influenciado: ou consciente, ou inconscientemente. No primeiro caso – em ambos os casos é ser, de qualquer modo, discípulo – pode este, como tantas vezes acontece, elevar-se mais alto do que o mestre; o que no segundo é impossível, dado que a sua aprendizagem depende menos da von- tade de saber que do desejo, por si próprio inapercebido, de imitar. Mais alto do que os mestres só se elevam os discípulos quando já não lembrarem os mestres; isto é, quando já tenham conscientemente descoberto o seu caminho, o que em nenhuma Arte é tão difícil como na poesia, embora (e talvez por isso mesmo!) seja de todas aquela em que menos de mestres se carece. Daí, a natural distinção entre poetas e versificadores: aqueles, são os mestres de si próprios; estes, os involuntários e estéreis discípulos daqueles” (Presença, Nº 20, Coimbra, Abril-Maio de 1929, p. 2). Escrevia Carlos Queiroz estas linhas aos vinte e dois anos, a propósito da relação de Camilo Pessanha com Verlaine, verosimilmente ecoando o seu próprio diálogo com Fernando Pessoa. Da irradiante presença do mestre daria ele, na Carta à Memória de Fernando Pessoa, testemunho vivaz, por exemplo ao mencionar que “toda a sua vulgaríssima indumentária, desde o chapéu aos sapatos, era, não sei porquê, espantosamente diversa da de toda a gente”; e os gestos “plásticos e cheios de correcção acompanhavam sempre o ritmo do monólogo, como a quererem rimar com todas as palavras”. Recordava o discípulo ciente o conselho dado às companheiras por uma das veladoras do Marinheiro: “Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes”.

178 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

Carlos Queiroz dirigiu, mote três vezes repetido na Posição anunciada, verosimilmente concebida pulso a pulso com Álvaro Ribeiro13. Perfilando com epigramático sabor clássico a refulgência romântica em síntese “mo- dernista”, como estilo próprio, expunha Carlos Queiroz, na conferência de 1940 sobre Fernando Pessoa, uma teoria operativa da arte poética, entretanto convergente de ange- lologia e ritmo. Citemos só dois passos:

“Todos os poetas são acompanhados – às vezes, mesmo, tiranicamente perseguidos – por entes invisíveis que se exprimem numa linguagem desconhecida, de natureza mais musical que idiomática. Ouvir essas falas e, numa total concentração anímica – num estado a que ouso chamar de pura inconsciência lúcida – interpretá-las, é todo o acto da criação poética. O exemplo do poeta Rainer Maria Rilke, escutando, no castelo de Duíno, em certa manhã tempestuosa, uma voz oculta que lhe ditou, inteiro, o verso inicial das suas famosas elegias: (“Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as hierarquias dos anjos?”), transcende esse silêncio genético – só na essência rítmico – e eleva o fenómeno a uma altitude inacessível à compreensão dos mortais”14.

Dessa arte deixou o poeta indicações, por exemplo referindo-se a “O amigo”15 (dedi- cado a Fernando Pessoa):

havia outra luz, outro lado, E o mistério morava connosco.

13 “Temos a nossa fisionomia, a nossa medida, o nosso ritmo. Falta-nos, no entanto, o ‘espelho’ onde os nossos traços e gestos mais viventes e significativos se reproduzam, se revelem […] – uma consciência cul- turalmente esclarecida” (“Posição”, in Litoral, nº 1, Lisboa, Junho de 1944, pp. 5-10). Na proposição desta revista, como dissemos credivelmente desenhada lado a lado com Álvaro Ribeiro (pois ali estão os teoremas, os problemas e os semas do filósofo de razão animada), era o povo português caracterizado em dualidades depois elevadas a sínteses superiores: “Ao mesmo tempo sedentário e expansionista, provinciano e cosmopolita, rotineiro e iniciador, ob- stinado e compreensivo, rude e sensível, retraído e hospitaleiro, lírico e dinâmico, o povo português tem podido conservar intactas, através das contingências que uma tão perturbadora simultaneidade lhe acarreta, os seus caracteres dominantes e virtudes intrínsecas: – um sentido congénito de equilíbrio; uma generosa disponibilidade de ânimo; uma tolerância cristã de invulgar amplitude; uma ductilidade psicológica e uma permeabilidade de espírito fecundas e consequentes, ainda que desconcertantes e apa- rentemente ineficazes” (ibid., pp. 5-6). 14 Carlos Queiroz, Fernando Pessoa - o Poeta e os seus fantasmas, Organização, introdução, leitura e notas de Maria Bochiccio, Lisboa, Ática, 2011, p. 29. Em conformidade com esta página reproduzida em fac-símile do manuscrito de Carlos Queiroz (ibid, p. 61), introduzo os itálicos e rectifico o final do primeiro parágrafo (“o acto da criação poética”). O carácter rítmico da grafia de Carlos Queiroz é aí visível. 15 Obra Poética de Carlos Queiroz, Epístola aos Vindouros e Outros Poemas, Prefácio de David Mourão-Fer- reira, Lisboa, Edições Ática, 1989, p. 40.

179 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

Ou, em rítmica fórmula:

O pescador de essências Não quer saber de pérolas: Prefere aquele mistério Que está por baixo delas.

Por isso pôde ele contemplar a natureza com olhar luminoso, como sugere António Telmo na História Secreta de Portugal com este poema de Desaparecido:

Cantam ao longe. Anoitece. Faz frio pensar na vida. E a Natureza parece Dizer, em voz comovida, Que o homem não a merece.

Juntamente com a nostalgia de uma superior liberdade perdida16, a reflexão de Carlos Queiroz é atravessada pela articulação da experiência da rotura do homem com a sua espontânea naturalidade primeva, especialmente no cenário contrastante da barbárie civilizacional e do que designa o Homo-Traumatus. Se a Epístola aos Vindouros é docu- mento maior dessa cisão derradeira, em outras ocasiões retoma o assunto, como no texto O Mito (1943), onde alegoriza estranhamente a situação do Homo-Traumatus:

“Era a cegonha-de-vidro-industrial-em-série, misto cristalizado da pseudo-arte, da téc- nica, do turismo e da burocracia com uma perna no ar. E tinha voz. E, já pousada no crânio latejante do Mito, assim lhe falou num cicio: – O gnomo não te disse a verdade toda, amigo. […] O que interessa é saber o que aí vem. E disso percebo eu, Mito. O que aí vem não tem nome, mas é imenso e traz uma missão importantíssima a cumprir: aplainar o mundo. Compreende-se, a terra continua a ser redonda, ainda tem alguma variedade… Pois não te espanta, Mito, que o mar ainda se amolde, lânguido, às suas curvas? Não sentes que é milagre demais, tanta fantasia que per- dura? O que aí vem, tem razão, Mito! Há que tornar a terra chata, duma vez para sempre, Mito! Uma terra chata, muito chata, coberta de chatos!”17

16 Disse Carlos Queiroz de Fernando Pessoa: “Livre, admirava e estimava mais quem tinha asas para o ser.” 17 “O Mito”, in Variante, Lisboa, Inverno de 1943, p. 51.

180 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

Lê-se entre os cem versos da Epístola aos Vindouros:

Pensai que fomos nós os inventores Das lívidas colmeias sociais – Higiénicas, tristes, celulares E mais desertas d’almas que necrópoles; Que fizemos do verbo «organizar» Um instrumento para destruir O ócio, a graça, a liberdade, A solidão e o sonho. E que empalhámos em estatísticas Todas as formas vivas d’existência Desde o coito à poesia.

A degradação do povo do poeta atormenta-o:

Entre povo e massa Há esta diferença: O povo não pensa, Mas tem alma e graça; E a massa é imensa Vazia carcaça Que à deriva passa.

O sentimento de fim de ciclo civilizacional, com seus claros sinais, perpassa, pois, a obra de Carlos Queiroz. Mas também o que perdura; assim,

A ciência avança, Progridem as técnicas – Mas os violinos Não mudam de forma.

Uma das modalidades do mal da época do poeta é, com efeito, essa organização tão computada quanto arrítmica da técnica, produto da exactidão científica que restringe e destrói o livre movimento das formas da vida, parecendo estender-se a todas as coisas, em consumação antipoética. A isso contrapõe ele a rítmica vivacidade, como nos versos Em busca do nosso ritmo…

181 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

Não é nas máquinas que ele vive. – Aí, jaz!

[…]

O ritmo que procuramos Está dentro das nossas almas.

E o mais difícil:

Só falta a chave que há-de abri-las18.

Se a Epístola aos Vindouros vaticina em saudade futurante a “calma cristã dos lares” dos “felizes vindouros”, no texto Paisagem aspira o poeta a reconduzir os seus compatriotas à “intimidade da paisagem”19. Acompanhemo-lo em sobrevoo. Há uma psicomorfolo- gia da paisagem portuguesa. “Mais poética do que plástica, a paisagem dominante do continente português exala uma graça íntima que impregna a atmosfera de sorrisos e transcende, em poder atractivo, os seus encantos formais”. A surpreendente polimorfia da paisagem lusitana, da qual “grande parte dos encantos é recôndita, quase secreta”,

18 Análoga animadversão pela civilização mecânica da Europa do Norte exprimia Cesário Verde no poema Nós:

Mas isso tudo é falso, é maquinal, Sem vida, como um círculo ou um quadrado, Com essa perfeição do fabricado, Sem o ritmo do vivo e do real!

E destarte enalteceria Cesário Verde o movimento feminil, atentando em gestos como o caminhar (com firmeza e música no andar) ou o falar (tu vibras os cristais da boca musical). 19 Este texto (cujo conhecimento agradecemos à amizade de Joaquim Domingues), além de conter uma inaugural filosofia poética da paisagem lusitana, compagina-se pela riqueza de perspectivas e escala entre os textos caracteristicamente filosóficos de expressão portuguesa; achando-se originalmente incluído num livro a três mãos: Luís Reis Santos e Carlos Queiroz (fotografias de Mário Novaes), Paisagem e Monumentos de Portugal, Lisboa, Secretariado de Propaganda Nacional, 1940, pp. 7-23 (há versões francesa e inglesa das Paisagens de Portugal). O alheamento que os portugueses têm de seu próprio país, escreve Carlos Queiroz, “levou Montesquieu a dizer que os portugueses descobriram o Mundo, mas desconhecem a terra onde nasceram” (ibid., p. 7). E consigna isto: “A paisagem portuguesa parece esperar – parece esperar por nós. Há muitos séculos” (ibid., p. 8).

182 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

com suas variações florais20 e orográficas, toda ela temperada pelo Atlântico, é contor- nada pela branda irregularidade da nossa costa ocidental. “O traço predominante é a luminosa suavidade dos areais”, “as nossas praias desenvolvem-se num ritmo quase mu- sical.” “Enquadradas na euritmia da paisagem, alternam, de norte a sul, com as rochas e os lisos areais, rias, enseadas, mais estreitas embocaduras de rios e sereníssimas lagoas.” Foi o mar, assevera o poeta, “quem temperou o carácter diferenciador do complexo nacional”21. “Pensemos nos pinheiros… Quem viu, alguma vez, esses velhos exempla- res (contorcidos, torturados, mas firmes como rochedos) que sustêm à beira-mar, as areias das dunas e as primeiras investidas dos ventos mais agrestes, ficou a saber que o heroísmo não é apenas apanágio das criaturas humanas.” Ao mar devemos, consoante a rítmica observação de Carlos Queiroz, “a concepção dessa obra-prima que é o andar das varinas”22. É a dominante característica “atlântica”, segundo Hermann Lautensach, que define e determina a “personnalité géographique” de Portugal, conforme recor- da o nosso homem. “Brando e harmonioso, fulgente de Sol e refrescado por suaves brisas, o litoral português possui estâncias para todas as estações do ano, climas para todos os temperamentos, quadros e costumes para todos os gostos e curiosidades.” Diz Gilberto Freyre não ter visto em parte alguma jardins mais lindos do que os lusitanos, cujo carácter romântico e lírico acolhe equilibradamente a multímoda vegetação exótica tropical, ultrapassando o classicismo ocidental ou o geometrismo árabe em novas sínteses, notando o escritor brasileiro que “aos portugueses pode associar-se, mais do que a qualquer outro povo, o começo de nova época paisagís- tica na Europa”23. Bem além da perspectiva da vilegiatura simples, aponta Queiroz

20 Além das espécies exclusivas ao território nacional, “Graças à posição geográfica de Portugal, à sua constituição geológica e morfológica e ao seu clima, os representantes dos três grupos [fitogeográficos: o nórdico, o mediterrâneo e o macaronésico] misturam-se no seu território, o que só aqui acontece. É neste facto que está a característica fitogeográfica de Portugal e da Galiza” (Hermann Lautensach, “A individualidade geográfica de Portugal no conjunto da Península Ibérica”, in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, série 49ª, nºs 11-12, 1931). 21 “Ao mar, que tudo nos deu, é que nos damos totalmente. O que há em nós de mais íntimo, de mais puro e fecundo, pertence-lhe. Na tradição do nosso povo o mar é sagrado; e, por isso, não se lhe devem lançar coisas imundas; mas lançando-lhas, ele deita-as fora” (ibid., p. 10 e nota, remetendo para as Tradições Populares de Portugal, de José Leite de Vasconcelos). 22 “Cantadas por Cesário Verde em versos que sabemos de cor” (designadamente em Cristalizações e em O Sentimento dum Ocidental), cantante da varina também Carlos Queiroz (desta vez aos vinte e dois anos): “Ó varina, passa, / Passa tu primeiro! / Que és a flor da raça, / A mais séria graça / Do país inteiro. // O teu vulto seja / Sonora fanfarra, / Zimbório de igreja; / Que logo te veja / Quem entra na barra. // Lisboa, esquecida / Que é porto-de-mar / Sente a sua vida / Reconstituída / Pelo teu andar. // Dá-lhe a tua graça / Clássica e sadia. / Ó varina, passa! / Na noite da raça / Teu pregão faz dia. // Vê que toda a gente / Ao ver-te, sorri. / Não sabe o que sente, / Mas fica contente / De olhar para ti. // E sobre o que pensa / Quem te vê passar, / Eterna, suspensa, / Acena a imensa / Presença do mar. 23 Paisagem, ob. cit., pp 18-19 e notas.

183 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

para a vivência multissensorial e extática da paisagem24. “O perfume balsâmico dos fenos e das resinas dos pinheiros, a própria maresia – que chega a ser sensível em pontos longínquos do litoral – dão à atmosfera da paisagem portuguesa encanto ex- traordinário, talvez inigualável.” “Foi inspirado no ritmo da água que o povo criou, para ela, a elegância e a graça das bilhas e dos pucarinhos de barro.” A paisagem deu origem à lírica nacional e as palavras de Tomás Ribeiro traduzem, segundo Carlos Queiroz, “na letra e no ritmo, adorável e mal apreciada realidade”…

Jardim da Europa à beira-mar plantado De louros e de acácias olorosas, De fontes e de arroios serpeado, Rasgado por torrentes alterosas…

Resultará o voto maior do poeta no encontro da imaginação lusíada com a sua própria paisagem? Interpretemos desta maneira a seguinte sextilha dele:

É urgente descobrir Na flora da fantasia, Uma espécie de semente Que gere a pura alegria E se possa introduzir Nas almas de toda a gente.

Resta-nos, nesta breve ocasião, deixar uma indicação relativa ao tema da infância na obra do poeta lisbonense, em boa hora por caminho inabitual. No seu entendimen- to, a grande descoberta da “arte e do estilo modernos” é a infância, nisto consistindo precisamente o romantismo (interpretado como estado nascente e criador de todas as artes). Desse mundo de sensibilidade e imaginação tem o adulto secretas saudades.

24 “Ao turista preferimos, mil vezes, o forasteiro. Este, não nos incomoda ver e sentir vibrar a nosso lado, sempre que nos encontramos, sem binóculo e máquina fotográfica, perante um trecho marítimo ou bucólico da nossa paisagem.” Pois o turista “é um sujeito de gosto convencional e de vontade colec- tiva. Só irá, em rebanho, aonde o levarem ou lhe disserem que deve ir. Desprovido de sensibilidade e de imaginação, seria, por exemplo, incapaz de perder-se, de propósito, em Sintra, para gozar o prazer de descobrir vistas inéditas, jardins solitários, nascentes ocultas na espessura das encostas.” E isto mesmo consigna Carlos Queiroz numa linha áurea: – “Serra de Sintra: a mais poética do Continente, e um dos mais aprazíveis recantos naturais do Mundo.”

184 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

Arte e infância rediviva têm encontro marcado25. Recordemos, por exemplo, a Canção do mundo perdido:

Menino: o teu mundo, Também já foi meu; Tão belo e profundo, Tão perto do céu!

Ou Talvez:

O mundo exacto, o coração ritmado Ao compasso da vida […] Poria os pés no chão em que tu amas E seriam alados os meus pés. O coração seria movediço – mas Como um tapete mágico, talvez…

Ir pelos ares do mundo da infância!

– Pois incompleta ficaria uma ritmanálise criacionista da infância no seu emotivo pensamento poético que não soubesse vê-la também claramente sublimada em meta- morfose e depurada no que deixa entrever na palavra onde refere

A juventude dos eleitos.

Tendem a convergir deste modo, em ensaio vital, as metamorfoses do ser e a obra, no caso de Carlos Queiroz, em forma de realização poética do homo rhythmicus. Para tal apon- ta o gesto rítmico da saudação ligado ao seu nome neste texto destinado ao rítmico leitor. Oblíquo entre a meia profundidade e a superficialidade aparentes, o aceno em surdina de Carlos Queiroz discreteia nessa margem das coisas onde todo o homem está de pé.

25 Ocorrem a Carlos Queiroz, nesse sentido, os nomes de Picasso, Ravel, Archipenko, Cocteau, Matisse, Stravinsky, Rimbaud, Alain Fournier, Rilke, Almada Negreiros. Deste escreveu Carlos Queiroz: “Almada foi, para empregar um adjectivo em voga, o artista integral da fase revolucionária do nosso modernismo. Desenhador, conferencista, bailarino, novelista, crítico-panfletário, pintor e poeta. Em tudo e sobretudo poeta. Ele próprio, humanamente, poeta. Uma visualidade plástica afinadíssima, uma imaginação descon- certante, uma facilidade expressional quase ilimitada – e essa graça intuitiva, consciente e brilhante de quem disse uma vez que “a alegria é a coisa mais séria da vida” (“Da Arte Moderna em Portugal”, in Variante, Lisboa, Primavera de 1942, pp. 10-24).

185 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Cunha, Rodrigo Sobral _”Saudação rítmica na obra de Carlos Queiroz”, 2018, pp. 175-186.

Recorde, uma vez mais, o mote de Litoral: “Temos a nossa fisionomia, a nossa medida, o nosso ritmo.” Escreveu Goethe que “nada se pode comparar à nova vida oferecida pela contemplação de uma paisagem nova a um homem que pensa”26. Releiamos, a luz no- víssima, a afirmação de Carlos Queiroz: “A paisagem portuguesa parece esperar – parece esperar por nós. Há muitos séculos.” Enfim, perante os sinais nítidos de um cíclico desfecho nas idades do mundo, mas perto da natureza rediviva, o poeta murmura:

O mais secreto, o mais íntimo De todos os sentimentos – Tão íntimo, tão secreto, Que de nós próprios se esconde – É a saudade dos deuses.

Ou, noutros moldes, neste poema intitulado Didáctica:

Ouçam as aves E o meu aviso: – Aves são chaves Do Paraíso.

26 E continuava Goethe: “Embora seja sempre o mesmo, pareço transformado até à medula dos ossos.” Daí que nessa viagem por Itália anotasse o poeta que “uma pessoa sente-se em casa no mundo e não estranho ou exilado.”

186 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Gonçalves, Zetho Cunha _”Uma carta de Raul Leal (Henoch) para João Gaspar Simões”, 2018, pp. 187-197.

UMA CARTA DE RAUL LEAL (HENOCH) PARA JOÃO GASPAR SIMÕES

Zetho Cunha Gonçalves

Nascido em Lisboa a 1 de Setembro de 1886, cidade onde faleceu na miséria, depois de ter sido milionário, a 18 de Agosto de 1964, Raul Leal (Henoch) é o mais obscu- ro colaborador de Orpheu. Amigo de Marinetti (que o considerava «um alto valor da Europa Futurista», e a quem, em 1921, propôs a criação da igreja futuro-paracletiana – projecto futurista pelo qual Marinetti vivamente se interessou); íntimo de Pessoa (tor- nando-se o seu maior amigo, depois da morte de Mário de Sá-Carneiro), e introdutor do Futurismo em Portugal (é da sua autoria o primeiro manifesto futurista português, escrito em francês e publicado em 1917, em Portugal Futurista), Raul Leal (Henoch) é o único verdadeiro «maldito» da literatura e da cultura portuguesas do século xx. Poeta, escreveu toda a sua obra em francês, num francês muito peculiar, por entender ser esta língua a mais universal para a difusão das suas ideias. Mas Raul Leal (Henoch) é, também, ficcionista, dramaturgo, filósofo. E filósofo, com um pensamento terrivel- mente carregado de novidade e assombro, criador do «Vertiginismo», onde «o Infinito ultrapassa pois a Razão, é Ultra-razão em Vertigem», e de quem Pinharanda Gomes, seu primeiro e mais presciente estudioso, não teve pejo em afirmar:

Em Raul Leal encontrei o filósofo que se exprime por si e que usa a palavra antes da frase, o elemento antes da oração. Em Raul Leal o conjunto filosófico sintetiza-se no pormenor, o por- menor que é a irradiação atómica da sua psicologia explanada no conjunto, mas concentrada – e em todo o dinamismo significável e significante – no pormenor1. (…) temos de convir que o estilo de Raul Leal é muito estranho e prenhe de obstáculos por causa de uma sintaxe pouco regular (…) [cuja obra] se caracteriza por possuir um pensamento original, de invenção, que só é dele e de mais ninguém2.

1 Pinharanda Gomes. Raul Leal. Iniciação no seu conhecimento. Guimarães: Separata da revista Gil Vicente, 1962, p. 12. 2 Pinharanda Gomes. Filologia e Filosofia. Temas de filologia e de filosofia portuguesas. Braga: Editora Pax, 1966, p. 53.

187 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Gonçalves, Zetho Cunha _”Uma carta de Raul Leal (Henoch) para João Gaspar Simões”, 2018, pp. 187-197.

E no belíssimo e acertado retrato intelectual que dele nos deixou Mário Saa3, outro génio gloriosamente obnubilado das letras portuguesas4, pode ler-se que

Raul Leal é dos primeiros futuristas portugueses, mas é-o puramente, sem farisaísmo, e como in- felizmente não sucede à maior parte dos novos artistas. Ele não é futurista, pois que é o próprio futurismo! Seus pensamentos têm profunda raiz na sensualidade extravagantemente musical. A sua metafísica é a confusão labiríntica dos sentidos, a transcendência das paixões, o delírio da carne e da alma, o fluir e o refluir, o concentrar-se o infinito em uma gota até esta gota se volver infinito. Assim, não teme ele, nem a guerra, nem a paz, nem a fome, nem mesmo as mordeduras do senso comum… porque ele é todos, e não é nenhum, porque só ele existe… e não existe; porque ele é o centro de todo o mundo – e todos os mais são apenas fantasmas de si-mesmo!

Depois de ter colaborado, provocando quase sempre um estrondosíssimo maremoto na medieva, cinzentíssima e toleja mentalidade pátria da época (que não é assim tão diversa da turístico-toleja mentalidade de agora e de aqui, hoje mesmo), nas revistas modernistas Orpheu, Centauro, Portugal Futurista, Contemporânea e Athena, Raul Leal (Henoch) foi ainda uma das peças basilares «como o autor e provocador do maior escân- dalo erótico-social do século [XX], ao publicar [em 1923] Sodoma Divinizada, centro de uma polémica que mobilizou inteligências tão agudas como as de Pedro Theotonio Pereira, Mário Saa e Fernando Pessoa, o qual defendeu Raul Leal num vigoroso mani- festo, que foi um ponto de ordem na barafunda que já então se criara.»5 À semelhança de outros companheiros de Orpheu, como Fernando Pessoa (ortó- nimo e heterónimo) e Mário de Sá-Carneiro, teve Raul Leal (Henoch) um acolhi- mento nas páginas da revista Presença nada despiciendo, muito pelo contrário. A di- recção da revista de Coimbra − cidade em cuja universidade Raul Leal (Henoch) se formara em Direito em 1909, tendo exercido a advocacia e funções públicas ligadas à jurisprudência até 1913 − nutria pelo autor de Sodoma Divinizada uma admiração rara e um profundíssimo respeito pela sua obra e pelo seu pessoalíssimo pensamento especulativo, como facilmente o comprova a sua quase constante colaboração na

3 Mário Saa. A Invasão dos Judeus. Lisboa: Edição do autor, 1925, pp. 286-287. 4 Para além de pequenos estudos avulsos, destacam-se a antologia organizada por João Rui de Sousa para a Imprensa Nacional-Casa da Moeda (2006), e as actas (esgotadas) do congresso dedicado ao poe- ta, coordenadas por Manuel Cândido Pimentel e Teresa Dugos, publicadas pela Universidade Católica Editora (2012). 5 Pinharanda Gomes. Filologia e Filosofia. Temas de filologia e filosofia portuguesas. Braga: Editora Pax, 1966, pp. 51 e 52. Os textos que enformam a referida polémica encontram-se coligidos na sua íntegra em: Zetho Cunha Gonçalves [Org.]. Notícia do Maior Escândalo Erótico-social do Século XX em Porugal. Lisboa: Letra Livre, 2014.

188 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Gonçalves, Zetho Cunha _”Uma carta de Raul Leal (Henoch) para João Gaspar Simões”, 2018, pp. 187-197.

revista, como, ainda, a correspondência conhecida e dirigida a José Régio (que nesta revista se publica na íntegra), ou esta carta6 para João Gaspar Simões7 que agora se dá à estampa na sua íntegra. Ostracizado e perseguido quer pela inequívoca originalidade da sua obra literária (ainda hoje com a parte mais substancial dela inédita ou irremediavelmente perdida) quer pela sua homossexualidade (que jamais ocultou à farisaica moralidade do seu tempo e pela qual foi achincalhado, espancado e chegou mesmo a cumprir prisão efectiva aos 72 anos de idade), não pode estranhar, por um lado, ser a correspondência de Raul Leal (Henoch) uma soma infindável de justificações e defesas perante as in- sidiosas intrigas forjadas a partir da sua personalidade (em estado de permanente de- sassombro) e do seu carácter inquebrantável; e, por outro, pela explanação constante da sua obra, na nunca fácil tentativa de a ver divulgada, como efectivamente merece. Esta sua carta para João Gaspar Simões é disso testemunho inequívoco, a que se de- vem juntar, para além da já referida correspondência para José Régio, a Correspondência 1957-19608 com Jorge de Sena, e Cartas a Salazar & Outras Epístolas a Caeiro da Mata, John Fitzgerald Kennedy, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Aleister Crowley9, do- cumentos humanos e literários absolutamente fundamentais para um melhor conhe- cimento, não só de Raul Leal (Henoch) e da sua obra, como de um tempo histórico português terrífico, ou medievo impante.

6 Carta inédita, manuscrita, constando de oito folhas numeradas, pertencente à colecção do bibliófilo português Jorge Meireles. 7 João Gaspar Simões (1903-1987), escritor, tradutor e crítico literário português. Co-fundador das revis- tas Tríptico (1924) e Presença (1927), correspondeu-se e conviveu com Fernando Pessoa, tendo sido o seu primeiro biógrafo, e, a partir de 1942, um dos responsáveis, com Luís de Montalvor, pela edição das Obras completas de Fernando Pessoa. 8 Jorge de Sena e Raul Leal. Correspondência 1957-1960. Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2010. 9 Zetho Cunha Gonçalves [Org.]. Cartas a Salazar & outras epístolas a Caeiro da Mata, John Fitzgerald Kennedy, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Aleister Crowley. Lisboa: Guerra e Paz Editores, no prelo.

189 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Gonçalves, Zetho Cunha _”Uma carta de Raul Leal (Henoch) para João Gaspar Simões”, 2018, pp. 187-197.

190 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Gonçalves, Zetho Cunha _”Uma carta de Raul Leal (Henoch) para João Gaspar Simões”, 2018, pp. 187-197.

UMA CARTA DE RAUL LEAL (HENOCH) PARA JOÃO GASPAR SIMÕES

Lx., 25 de Março de 1940 S/C Rua das Salgadeiras, 40-2.º

Meu querido João Gaspar Simões

Acabo de receber a sua carta e muito agradeço as explicações que me dá assim como a diligência que tem feito para que a minha colaboração apareça na Revista do Brasil. Sobre o que lhe escrevi devo-lhe dizer em primeiro lugar que se tivesse havido exagero nos meus juízos sobre as perseguições de que constantemente me querem tornar vítima, esse exagero seria justificado pelo meu pavoroso estado de espírito actual proveniente de dificuldades de toda a ordem e muito particularmente dum facto que me caiu em cima como uma bomba de grande potência, facto que sem me ter desanimado fun- damentalmente – os meus desânimos, suceda o que suceder, são sempre passageiros, efémeros – não deixa por isso de ser terrível, obrigando-me a uma revisão completa dos meus planos de acção intelectual visto que estão por terra os que eu tinha concebido. Já a guerra me enervou poderosamente pois nessa confusão tremenda em que por en- quanto nada se vê posto que algumas conjecturas se possam fazer, não sei ainda qual o plano mais viável para a imposição violenta de ideias novas. Mas se o Marinetti existisse na ocasião própria, isto é, no próximo ano, com ele poderia talvez combinar a melhor forma de aparecer no mundo. Dá-se porém o caso, segundo informações que tenho, provenientes não só do Diário de Notícias onde veio um telegrama relativo ao facto, mas também duma conversa que tive com o António Pedro, dá-se porém o caso, repito, do Marinetti estar à morte, vendo-me eu pois isolado nas minhas aspirações e sem ver actualmente facilidade alguma em publicar em França uma obra de 700 páginas, ainda que muito sensacional em todos os campos da vida e do espírito. Tenho a certeza de que duma forma ou doutra o meu Destino há-de cumprir-se mas essa certeza não evita uma perplexidade de momento e uma grande angústia visto que por agora tudo é confuso diante de mim, resplandecendo só o meu pensamento. Por dados astrológicos e biomân- ticos (biomancia é uma ciência profética que eu descobri e tendo-me auxiliado muito nesta descoberta o nosso Fernando Pessoa), por esses dados eu sei que aos cinquenta e oito anos alcançarei, não sei de que modo, alguns bens de fortuna que me permitirão publicar as minhas obras à minha custa, o que é sempre o melhor caminho, mas ter ain- da que esperar 5 anos para ver nas livrarias do mundo a minha obra, quase concluída,

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La Création de l’Avenir, é hipótese que não me agrada absolutamente nada. Entretanto espero nos mais próximos anos grandes perseguições de toda a ordem e uma intensa luta – é também a biomancia que mo indica – e era precisamente essa obra, e não coisas mínimas, que eu queria que fosse a causa do desencadeamento duma tal tempestade na minha vida. E cada vez menos sei se assim será. Vê portanto o enervamento em que ando, propício ao exacerbamento da sensibilidade e duma imaginação macabra, para empregar a sua expressão. Mas isso que justificaria os exageros de que fala, não me levou de modo algum a supor que o João Gaspar Simões estava metido na conjura que seguramente se está movendo sempre contra mim. Nem o João Gaspar Simões nem o José Régio nem o Adolfo Casais Monteiro nem os colaboradores da «Presença» que mais caros me são, podiam meter-se em tal conjura! Da minha carta não se depreende de maneira nenhuma semelhante suposição contra vocês. Sei que muita colaboração minha e bastantes vezes perigosa têm nobremente publicado, dando-lhe o máximo relevo, e eu que tenho sido vítima das mais abjectas ingratidões, vindas de vários lados, até da minha própria família, seria incapaz de cometer a infâmia reles de ser igualmente ingrato. Você leu com certeza precipitada- mente a minha carta, escrita até com o maior cuidado para nem na aparência o poder melindrar, e foi essa precipitação na leitura que o levou a ver nela o que lá não está. Poderia ter-me mostrado levemente molestado com o que eu supunha ser a sua atitude mas apenas por você ter dado demasiado crédito ao que porventura lhe tivessem dito em meu desabono ou por não ter querido ser absolutamente franco comigo preferindo ocultar-me factos que bem melhor seria eu conhecer. Vou explicar-me melhor. Eu admitia a hipótese, bem plausível, de qualquer António Botto ou outros quejandos terem inventado infâmias tremendas a meu respeito e do João Gaspar Simões, na sua boa fé, ter acreditado, decidindo portanto afastar-se de mim em todos os sentidos, cheio de indignação pelo que eu afinal não tinha praticado. Sei que no campo sensual lhe podiam dizer muita coisa, que isso não o chocaria, mas sei lá o que poderiam inventar com respeito a outros campos! Mas eu admitia ainda uma outra hipótese e que não é tão absurda como parece à primeira vista porque um facto semelhante se deu há tempos. Supunha assim que uma multidão de assinantes, informada de que eu ia aparecer de novo na «Presença», lhe fizesse constar que não admitiria semelhante coisa e que deixaria de assinar a sua re- vista se aparecesse colaboração minha. Um facto desses deu-se na «Contemporânea», segundo me informou o Fernando Pessoa. Na verdade, depois de eu ter colaborado com grande escândalo no 2.º número, o José Pacheco por duas vezes me pediu colaboração, não tendo podido publicá-la por pressão dos assinantes. Admitia eu que o mesmo se tivesse dado com a «Presença» e como esta revista tem uma alta missão cultural a rea- lizar na vida compreendo muito bem que os interesses dela sejam superiores aos meus interesses particulares ainda que também pessoalmente eu tenha uma alta missão a

192 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Gonçalves, Zetho Cunha _”Uma carta de Raul Leal (Henoch) para João Gaspar Simões”, 2018, pp. 187-197.

cumprir, a qual porém posso cumprir sozinho sem comprometer nem prejudicar os meus amigos numa acção perigosa de que só eu quero ser responsável, acarretando com todas as perseguições e dificuldades que porventura ela gere. Nesta ordem de ideias, se há de facto pressão de assinantes contra mim peço-lhe que ponha absoluta- mente de parte a minha colaboração, pois não quero de modo algum ser o causador da ruína da «Presença». Eu posso bem sozinho com a malta que me persegue de todos os modos e que é tão reles que nem sequer tem a coragem de me atacar de frente. Com respeito à minha primeira suposição devo dizer que não seria estranhável que o João Gaspar Simões desse crédito a infâmias que outros inventassem contra mim pois você ainda não teve a oportunidade de conhecer bem toda a grandeza do meu espírito criador e do meu carácter puríssimo. Só conhece farrapos dispersos da minha alma e não poderei ser profundamente compreendido por si enquanto não tiver lido a minha obra, quase concluída, La Création de l’Avenir e o meu poema apocalíptico Dieu-Satan que eu divido em três partes, intitulando-se a primeira, já concluída, Le Prophète Sacré de la Mort-Dieu, a segunda, quase concluída, Vision Halucinée du Monde e a terceira, existente só em pensamento, La Splendeur Sinistre de la Mort, a qual terminará por um Hymne Infernal. Neste poema que tem a grandeza, digo-o afoitamente, da Tetralogia de Wagner, e na obra La Création de l’Avenir é que todo o meu poder criador, todo o meu carácter, toda a minha alma surgem esplendorosamente em clarões sinistros de Além. Abraça-o o seu muito amigo e grande admirador

Raul Leal

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FIG. 2 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a João Gaspar Simões

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FIG. 3 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a João Gaspar Simões

FIG. 4 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a João Gaspar Simões

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FIG. 5 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a João Gaspar Simões

FIG. 6 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a João Gaspar Simões

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FIG. 7 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a João Gaspar Simões

FIG. 8 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a João Gaspar Simões

197 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved.

198 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Lopo, Rui _”Cartas de Raul Leal a José Régio”, 2018, pp. 199-228.

CARTAS DE RAUL LEAL A JOSÉ RÉGIO

Rui Lopo

NOTA DE TRANSCRIÇÃO

Transcrevem-se de seguida doze cartas de Raul Leal a José Régio, e um texto so- bre Fernando Pessoa, cujos originais estão depositados nos arquivos da Câmara Municipal de Vila do Conde e cuja publicação foi gentilmente autorizada pela sua presidente, Dra. Elisa Ferraz, a quem agradecemos. Três destas missivas, de Dezembro de 1927, Março de 1929 e um postal de Janeiro de 1930 foram já transcri- tas e objecto de detido estudo contextualizador, para que remetemos, no artigo “José Régio, Raul Leal e a Presença: marcas epistolares de um diálogo modernista”, da au- toria de Enrico Martines, publicado na revista em linha de estudos pessoanos Pessoa Plural, n.º 12, Outono 2017, pp. 82-133. Para temática conexa remetemos também para outro trabalho deste autor: “Raul Leal e o Segundo Modernismo”, publicado na mesma revista, nº13, Primavera de 2018, pp 143-236. Seguimos nesta apresentação a ordem cronológica de redacção das cartas, que nem sempre corresponde à sequência das cotas dos documentos, como se pode verificar no caso do texto sobre Fernando Pessoa, posterior à morte do Poeta, em 1935, ou do postal que acompanha o envio de um excerto da peça “O Incompreendido”, de 1930. Optou-se por uma transcrição o mais possível fiel ao original sem se proceder a qual- quer actualização ortográfica. Utilizámos apenas o itálico para assumir os sublinha- dos do Autor ou para títulos de Obras e Revistas. Apesar de parecer que Leal aderira aos princípios de simplificação constantes da Reforma Ortográfica lançada logo a se- guir à implantação da República, a sua escrita mantém algumas especificidades mui- to pessoais, como a utilização de apóstrofes nas contracções de preposições com pro- nomes, como em “d’essa”, e a preferência (que presumimos etimológica) pelo “y” em “analyse”, “Martyr”, “pseudonymo” ou “hypotese”, mantendo o “h” em “theologico”. Esta manutenção é tanto mais significativa por o autor abolir, em geral, as consoantes mudas, nalguns casos até de forma provocantemente excessiva, como em “espetral” ou “sinificar”, onde elas não eram mudas. Assinale-se, por exemplo, a opção de quase nunca utilizar acentos, embora, por vezes, os aponha mesmo em palavras graves, parecendo, em vez de seguir uma regra gramatical, procurar a obtenção de um efeito fonético (ex. “óra”, “móro” ou “perdôe”, “anúo”). Estas peculiaridades ortográficas de Raul Leal, além de radicarem numa tomada de posição sobre a referida simplificação

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ortográfica e em pensadas opções de relacionamento com a língua, devem sobretudo ser aferidas a partir da atitude filosófica proposta pelo autor, o Vertiginismo, segundo a qual a linguagem, o sujeito enunciador e os seus referentes, objectivos ou subjecti- vos, se indistinguem e confundem. Neste sentido, em diferentes estados mentais não haveria razão para se adoptar a mesma ortografia. Demonstrando esta interpretação socorramo-nos, por exemplo, do parágrafo da carta de 6 de Abril de 1928 em que o Autor descreve que os antigos egypcios sentiam muito bem a incerteza substancial de tudo. Reveladoramente, esta incerteza teometafísica é tão assumida por Leal que, no mesmo parágrafo, o referente reaparece grafado com “i”, egipcios. Mais do que movi- dos por académico rigor filológico, a opção que tomámos de lealdade ao texto radica na nossa convicção de que todos os elementos da escrita de Raul Leal, da ortografia à sintaxe e à semântica, provêm de uma experiência interior complexa, assumida como convulsiva, turbilhonante, contraditória, fusionando paradoxos, visando nela também induzir o leitor, que, aliás, mais ou menos inconscientemente, sempre já aí esteve: a Vertigem.

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ct-6634 Il mo e Ex mo Senhor José Régio Dig mo Director da Presença Rua das Flores, 37 Coimbra [a lápis outra caligrafia anotou: Dezembro de 1924, que se deve a deficiente leitura da data manuscrita no cabeçalho da carta infra reproduzida] Remete: Raul Leal, Rua das Salgadeiras [inc.] Lisboa Dezembro de 1927

Meu querido José Régio Deixe-me tratá-lo assim apesar dos meus olhos o não conhecerem e visto que o meu espírito sente profundamente o seu. Como deve calcular – pois o José Régio sabe com certeza o que vale e o que valem os seus colaboradores – o seu jornal-revista Presença tem-me interessado vivamente. Por isso lhe peço que me envie os três primeiros nú- meros e o sexto que não possuo ainda, para ir tendo assim a colecção completa duma publicação que, sem dúvida, ha de marcar na história da nossa literatura. E que prazer espiritual, do mesmo modo que desgosto, me causa a sua Presença! Prazer porque vejo nitidamente que as novas gerações brilharão no Céu de Portugal e do Mundo como chamas redentoras, erguidas exaltadamente a Deus. Desgosto porque olhando para o meu passado nocturno, encontro um contraste desolador... Na minha geração coimbrã não havia Nada, na aceção absoluta, metafísica da pala- vra: Nada a não ser Eu1! Em Lisboa iam surgindo, nos meus tempos de estudante, raros espíritos de elite, irmãos do meu, que porém só tarde os poude conhecer. Em Coimbra mais não havia do que medíocres e parvos! D’ahi a grande decadência política e social em que vivemos, sendo certo que a vida do paiz está em grande parte nas mãos da minha geração coimbrã. Eu mesmo, nesse tempo, não possuindo em volta de mim um ambiente propicio ao desenvolvimento do meu espirito, era uma luz rastejante que ainda não podia triunfar nos Céus. Sentia por vezes rasgos de génio que porém depressa se desfaziam no éter das minhas emoções. E era tão mesquinho, tão pouco intelectual e artistico o meio em que eu vivia apesar de ter estado na casa do Quim Martins, espirito interessantissimo que, no fundo, pouco se mostrava por não ligar nenhuma aos rapazes da minha geração, era enfim tão medíocre, mesmo tão inferior tudo que me cercava, que tendo tamanho amor á vida tumultuosa das cidades, preferia isolar-me nos campos, não querendo sequer sentir o bulicio da vida académica a que não sabia adaptar-me, e preferindo mesmo na devassidão e no vinho viver sozinho sem companheiros de vício.

1 A palavra “Nada” e a expressão “Nada a não ser Eu” encontram-se no original manuscrito triplamente sublinhadas.

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Foi, sem dúvida, por me sentir assim mentalmente deprimido no ambiente que jámais poderia desenvolver as minhas faculdades, que estavam destinadas a desen- volver-se só por si, foi por esse motivo que apenas aos 24 anos e depois de formado, consegui fazer uma verdadeira obra de génio, o drama metafísico, O Incompreendido. Antes, só produzi esboços filosóficos e críticos que perdi quase totalmente na revo- lução de fevereiro, por ocasião do assalto ao Correio da Noite onde esses manuscritos se encontravam. E se desse drama ficam quasi intactos o primeiro e terceiro atos, o mesmo não posso dizer do segundo que tendo sofrido posteriormente grandes remo- delações, muitas mais sofrerá ainda. Mas mudemos de assunto. Envio-lhe um psalmo, em francês, feito ultimamente, e que julgo ser uma verdadeira prece paracletiana para que o José Régio o publique quan- do quiser. E aproveito a ocasião para lhe agradecer todas as suas gentilezas. Como infelizmente tenho sido forçado, por razões pouco poéticas e ainda menos metafísicas, a trabalhar em jornaes, sei bem o quanto é difícil contentar a todos, por muita consideração que haja pelos colaboradores. D’ahi o sermos muitas vezes forçados a demorar a publicação de artigos, versos, seja o que fôr, e que desejariamos fosse rapida, pronta. Portanto não se preocupe com a demora que possa haver no aparecimento da minha colaboração. Eu sei bem dar valor ás dificuldades em que se vê um diretor de jornal ou revista. Uma publicação periodica é evidentemente limitada na forma, não podendo conter tudo ao mesmo tempo. Só na essência contém muitas vezes o Infinito. É o que se dá com as nossas obras! Queira, meu querido José Régio, aceitar um abraço muito apertado do seu confrade, sincero admirador Raul Leal s/c Rua das Salgadeiras, 36, 3ºD. Lisboa P.S. Como não sei se já leu um manifesto que lancei ha anos, apropósito duma expo- sição de pintura, no qual expus sinteticamente o paracletianismo (religião do Espírito Santo ou Divino Paracleto), envio-lhe alguns exemplares para si e para os nossos amigos da Presença. Esse manifesto esclarece certos pontos obscuros da minha última colabo- ração. Desejaria oferecer-lhe as poucas obras que tenho publicado, mas não conservo delas nenhum exemplar. Logo que apareça com nova obra, é claro, lembrar-me-hei de vocês todos. Peço-lhe que me diga se recebeu, ha tempos, os sete números que publiquei do panfleto O Rebelde. Caso os não tenha recebido, mandar-lhos-hei outra vez. RLeal

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ct-6635 [?] 6 de Abril de 1928

Meu querido José Régio Eu tenho sido duma espantosa incorrecção para consigo! Nem lhe agradeci os nu- meros da Presença que tão gentilmente me enviou, nem tão pouco respondi à sua carta amabilissima e profundamente interessante. Faço-o agora muito tardiamente e perdôe- -me tamanha demora visto que só a desolação d’alma em que vivo é a constante culpada de tais desleixos e incorrecções. Num poema que estou escrevendo (“Le Prophète sacré de la Mort-Dieu») e que será, sem dúvida, uma das minhas obras mais importantes, eu digo que tenho a sensação de estar no fundo duma torre negra, metido numa masmorra espetral, tão grande é a minha opressão de espirito. Por isso já o José Régio poderá cal- cular em que estado me encontro. É deveras pavoroso o que se passa na minha alma que a vida apodreceu! É isto, esse abatimento profundo e esfrangalhador que me leva a ser descuidado com os meus próprios amigos como acabo de ser consigo. Queria-lhe mandar mais um psalmo e o princípio do poema a que me refiro, mas a preguiça é tão grande em copiar isso que só dentro d’alguns dias o farei. Também dese- java enviar-lhe os 7 números do meu panfleto O Rebelde mas a casa onde se encontram está numa tal balburdia que ainda não consegui descobri-los. Mas espero tambem breve- mente poder enviá-los. Desculpe-me enfim tantas faltas que a minha depressão d’alma constantemente está cometendo. O último número da Presença vem esplêndido e é maravilhoso o seu poema O Papão. Digo-o sinceramente. Aliás o José Régio sabe bem o que vale. Eu que sou um pro- fundo crente, sinto porém com todo o íntimo da minha alma a sua aparente irreli- giosidade. E porque encerra muitos pontos de contacto com a minha teoria teológi- ca. Eu tambem não admito a existência dum deus estranho a nós para nos oprimir e nos esmagar. Deus atravessa-nos a alma, é o próprio essencial animismo criador do nosso espírito. Se d’Ele nos mantemos alheiados e se não sentimos em nós o Seu puder imenso, é que nos alheiamos assim do nosso próprio eu, da nossa própria força anímica, desbaratando-nos num fictício exterior, perdendo-nos para sempre. O que é necessário é reconduzir o homem á sua propria essencia divina para viver todo o seu puder substancial, criador do Universo que só se dá no nosso concebêl- -o, no nosso criál-o, que é apenas um sonho da alma, como sonhos uns dos outros somos todos nós. O próprio animismo essencial que cria atravez do eu o Universo inteiro, esse nosso animismo criador que é profundamente Deus, só existe porque o concebemos, o criamos atravez do pensamento convulsionado pela exaltação do Espirito. Isto tira a rialidade de Deus? Por que motivo? Nós, força criadora, divina, criadora de si propria, criadora do proprio Deus, somos uma rialidade pura, sendo rialidades todas as nossas criações, fantasmas delirantes da alma.

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É certo que criamos Deus enquanto criador de nós, enquanto criador do Universo que nós somos e concebemos, mas criamol-O realmente a criar-nos na rialidade! Isto torna incerta a natureza de Deus e de nós próprios que aliás sendo sonhos concebidos uns pelos outros e por Deus que é também um sonho nosso, adquirimos uma rialidade confusa, contraditoria, vertigica como vertigica é pelo mesmo motivo a rialidade divi- na, mas a Vertigem que torna tudo incerto, louco, delirante, é a natureza própria das cousas essenciais e que as torna exaltadamente sublimes por isso que só no Indefinido substancial se encontra a Beleza! E todas estas verdades não nos levam de modo algum ao panteismo nem ao monismo pois que o essencial animismo criador do homem o qual é Deus, a sua essencia animica, criadora surge tão pura em nós, que surge em absoluto, em si, surge pois tão puramente concentrada, abismada em si propria que de tudo se separa, se distingue, separando-se, distinguindo-se de nós-Universo de quem aliás é a pura essência. Pertence-nos assim atravez de não nos pertencer! Entre Deus e nós há uma pura relação distintiva o que nada tem de incompreensivel visto que entre tudo surge esta mesma relação: para distinguirmos dois objectos no nosso pensamento, na nossa alma, não os pomos mentalmente em confronto, em relação, e a distinção deles não nos surge tanto mais absoluta quanto mais absoluta é a relação? Sem duvida, e dois objectos só se relacionam absolutamente quando se consubstanciam em absoluto um no outro, quando se confundem, sendo pois dessa sua confusão em que surgem como sendo um só, que surge a distinção entre eles. O mesmo se passa com Deus e connosco. Deus é tão distinto como indistinto de nós e se hoje vivemos numa desolação d’alma impotente é que só vivemos o aspeto-rialidade da distinção entre Deus e nós, sendo necessario mudarmos d’aspeto para nos sentirmos Deus essencialmente com todo o Seu puder formidável de criação, o nosso próprio puder de que voluntariamente nos separámos. E como a relação (ou indistinção) dis- tintiva que ha entre Deus e nós é a que ha entre tudo do Universo atravez de nós, desse Universo óra nos sentimos distintos óra indistintos, sentindo-nos ora distintos ora indis- tintos uns dos outros atravez da vida. Somos todos, juntamente com Deus, sonhos dessa abstracção metafisica que se chama alma, possuindo assim uma natureza meramente subjectiva, mas é a propria alma incerta de todos nós e de Deus que nos cria objectivos, puros seres, seres em si. E uma rialidade subjectiva não é uma irrealidade, é apenas uma realidade incerta, vertigica de sonho. É nessa incerteza substancial de natureza que vive- mos exaltadamente. Tudo isto surgiu admiravelmente, ainda que não duma forma intelectualmente ex- plicavel, na conceção metafisica e theologica dos egipcios. Eles sentiram muito bem a incerteza substancial de tudo e é essa a mesma incerteza que passa através da Kabala, que influiu no próprio Socrates e Platão e na formosissima Aguia de Patmos. Os egypcios ora identificavam os seres na Morte que é quando se atinge a divinisação pura, quando o homem se concentra tanto no eu, na sua essencia espiritual que se torna só Essencia,

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só Espirito, só Deus, óra identificavam os seres na Morte, digo, com o próprio Osiris ora os distinguiam d’Ele, e óra se sentiam esmagados pelos deuses consubstanciados em Amon-Ra, ora os obrigavam a rialisar todos os seus desejos, criando assim os egipcios as proprias ações divinas, criando os proprios deuses, deles criadores, e tão servos como senhores do Homem. Esta aparente anomalia indignou Porfírio, filósofo de Alexandria, que muito longe estava de compreender a teologia e a filosofia oculta dos egípcios. É essa teologia e essa filosofia que eu quero que renasça das cinzas das pyramides, erguendo o Homem-Prometeu em vertigem, de Além até à Morte, até aos Céus onde atingirá a di- vinisação pura. O paracletianismo é uma religião profunda e vertigicamente prometaica como era a religião egypcia que divinisava o eu, ainda que em incertezas vertigicas de Morte, e não o dissolvia no Todo á maneira da teosofia hindu, tão despersonalisadora, tão acabrunhante. E não é para admirar que eu faça reviver, e remodelando-a, a crença dos egypcios pois resa a Tradição que Henoch de quem Eu sou a derradeira incarnação humana para que possa anunciar o Reino do Espírito Santo de Deus que é o Reino Divino da Morte, era entre eles Hermes Trimegisto. E com essa Certeza me despeço de si, abraçando-o apertadamente como seu muito amigo e admirador Raul Leal ct 6636 [envelope] para José Régio Dig mo Director da Presença Rua das Flôres, 34 [22-4-1928] Coimbra [verso:] Remete Raul Leal Rua das Salgadeiras 36, 3ºD. Lisboa 22 de Abril de 1928

Meu querido José Régio Recebi hoje a sua gentilíssima carta e apresso-me a responder-lhe agradecendo com toda a alma as suas palavras e sobretudo a intima sinificação delas, tão lisongeira para mim. É esse um poderoso estímulo na minha vida de tormentas. Muito e muito obrigado. As cartas que lhe escrevo são inteiramente suas, faça delas o que quiser. Ao pedido, tão elogioso que me fez de autorização para publicar na Presença a minha última carta só posso responder deste modo. E muito grato lhe fico pela sua gentileza. Da milhor vontade anúo ao seu desejo. Só lhe peço um favor. É que no caso de a publicar na íntegra eu desejaria que na referência por mim feita ao poema que estou escrevendo, substituisse o título “Le Prophète sacré de la Mort-Dieu” pelo de “Le Royaume de la Mort” que é

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aquele que afinal resolvi dar-lhe. Não me recorda bem mas suponho que ha com efeito uma referencia a esse poema. Por isso lhe faço esse pedido. Envio-lhe colaboração para quatro números (cinco com a carta desde que o José Régio a deseja publicar, em parte ou no todo, conforme quiser). São dois psalmos, um trecho do poema inédito “Messe Noire” e o introito do primeiro canto do poema, em preparação, a que acima me referi e que será sem duvida uma das minhas obras mais importantes. Caso as exigencias de paginação não obriguem o José Régio a seguir outra ordem peço-lhe o favor de publi- car a referida colaboração na ordem seguinte: primeiro, “Lamentations de Henoch” da “Messe Noire”; depois o psalmo “De toute l’humanité Je suis l’incarnation”; em seguida o introito de “Le Royaume de la Mort” e por fim o outro psalmo. Envio-lhe finalmente os sete numeros que sairam, do meu panfleto “O Rebelde”. Alguns dos numeros mostram um aspeto, novo para si, do meu espirito. Eu creio pu- der-me considerar filósofo, theólogo, politico, sociólogo (ou antes, psicosociólogo), dramaturgo, poeta, critico, panfletario e jornalista. E suponho que sou forte em tudo isso. Na politica mal tenho mostrado ainda a minha força mas tornál-a-hei evidente depois dos 50 anos (tenho 41) em que desenvolverei uma intensa ação de politica reli- giosa, social e internacional, fazendo assim agir profundamente na vida os meus pen- samentos. Então é que se verá a minha perigosissima atividade. Até lá limitar-me-hei quasi a escrever os livros que servirão de base a essa acção. A escrevel-os e a lançál-os da forma mais réclamatoria possivel. Envio-lhe tambem o manifesto que lancei depois da apreensão do meu folheto “Sodoma Divinisada”, intitulado “Uma lição de moral aos estudantes de Lisboa e o descaramento da Igreja Católica”. É o unico exemplar que possúo, ficando apenas, desde que lh’o ofereço, com o manuscrito e uma cópia á máquina. Mas tenho o maior pra- zer em lh’o enviar. Tambem lhe mando o manifesto que o Fernando Pessoa escreveu a meu respeito nessa ocasião para combater uma blague infelicissima dos estudantes que muito me indignou, obrigando-me eles a ser violento e a exceder-me. Mas nem desejo referir-me circunstanciadamente a esse incidente tão desagradavel e mesmo estupido. Amortalhemos o que passou. Só quero frisar que o Fernando Pessoa por quem tenho a mais alta estima e admiração, considerando-o mesmo um irmão pela alma, me deu a mi- lhor prova de amisade que me podia dar. Sendo eu nesse momento escorraçado de toda a parte, procurando todos tratar-me vilmente aos ponta-pés, só a meu favor se ergueu a bela voz desse meu querido Amigo e altissimo Espírito que num brilhante manifesto em que não sabemos o que mais admirar, se a beleza do estilo, se a profundeza do pensa- mento, se o desassombro e elevação moral aliada á maior independencia d’alma, me fez surgir em toda a força do meu espirito salientando a integridade do meu caracter que é o meu milhor motivo de orgulho: é ou foi, já nem sei... É esse manifesto que lhe envio. Tambem, a titulo de curiosidade, pois trata-se apenas duma campanha meramente jornalistica, junto dois manifestos que lancei em 1926 contra o Provedor da Assistencia

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e que provocaram um conflito gravissimo no Café Nacional em que eu ia perdendo a vida mas em que impuz o meu brio e a minha dignidade que um biltre qualquer pro- curou atingir. Um dia lhe contarei circunstanciadamente essa aventura jornalistica pois tem um certo interesse, salientando a minha intensa combatividade. E com essa campa- nha consegui que o tal Provedor fosse corrido e que se lhe levantasse uma sindicancia. Consegui mais num assunto tão infimo do que tenho conseguido em movimentos pura- mente intelectuaes e artisticos. É triste dizer-se mas é assim mesmo! Dizia Goethe que o Génio só é da sua época e pode nela triunfar pelos seus defeitos e qualidades secundarias. É bem certo, desgraçadamente. As altissimas qualidades do génio colocam-no só no futuro e num futuro que nunca existirá! Falemos agora de si. O seu artigo sobre Ibsen é profundissimo, notando-se nele um espírito de anályse critica verdadeiramente maravilhosa. O José Régio compreende ad- miravelmente a obra de Ibsen que é d’aquelas que eu tambem mais intimamente tenho estudado e mais amo. Você analisa o alto puder de analise psicologica e sociologica de Ibsen com uma subtileza e uma profundeza dignas dos maiores louvores. E além do mais, o artigo está superiormente construido atravez dum desenvolvimento lógi- co que é rarissimo encontrar-se nos criticos mesmo superiores. É uma bela pagina. Sinceramente o felicito, agradecendo-lhe o prazer espiritual que me concedeu com a leitura que fiz do seu admiravel artigo. O José Régio, alem de poeta extraordinario, é um verdadeiro pensador. E com esses meus merecidissimos louvores, termino esta carta já demasiadamente longa. Dentro de poucos dias enviar-lhe-hei os dados bibliográficos que me pediu. Um grande abraço do seu Muito amigo e admirador Raul Leal S/C Rua das Salgadeiras, 36, 3ºD.

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ct-6637 [sobrescrito:] Il mo e Ex mo Senhor José Régio Digmo Director de A Presença Rua das Flôres, 37 Coimbra [5-7-1928] Remete Raul Leal Rua das Salgadeiras 36, 3ºD Lisboa Lx 5-7-1928

Meu querido José Régio Perdôe-me o meu silencio que só provem das amarguras da minha vida. Não pode o José Régio calcular o quanto eu sofro. Creia que não estou fazendo literatura pois é essa a triste realidade. Mas passemos adiante... A Presença, como sempre, tem vindo esplen- dida. É muito subtil e profundo o seu artigo sobre o Antonio Boto. Gostei tambem extraordinariamente d’Outro Mundo. O Fernando Pessoa disse-me que é uma admiravel descrição, emotivamente vivida, dum ataque de loucura. Sim, mas por isso mesmo, é também uma admiravel descrição da Vida, tal como ela é na rialidade. Todo esse de- senrolar labirintico de sonhos-fantasmas que somos todos nós, sonhos uns dos outros como sonho do mesmo modo espetral e com efluvios magicos, vindos da profundidade oculta do Ser, é toda a rialidade, todo esse desenrolar vertigico de alucinações astraes, tão cheias de verdade como qualquer verdade do chamado mundo exterior, objectivo, tudo isso enfim que nos entontece e nos enebria, é bem a Vida em toda a sua cataclismica Vertigem feita de Deus e de Além! Apenas nem todos a sentem com perfeição divina. Só os loucos teem d’ela um pressentimento genial. Muito mais queria dizer sobre este assunto interessantíssimo mas a grande fadiga de espirito em que me encontro, não m’o permite. Ficará para outra ocasião mais propicia. Sobre a colaboração que lhe enviei ha tempos e que tem sido publicada o que muito agradeço, desejo dizer-lhe o seguinte, caso já não seja tarde. Resolvi manter para o poe- ma que estou escrevendo e de que lhe mandei o princípio do primeiro canto, o título “Le Prophète sacré de la Mort-Dieu». «Le Royaume de la Mort» será título dum outro poema que hei de escrever mais tarde. Peço-lhe pois o favor de fazer a respetiva emenda se por ventura o numero da Presença que trouxer essa colaboração não estiver já im- presso. Também por culpa minha veio um lapso numa colaboração anterior. O trecho que veio publicado d’A Criação do Futuro que hei de traduzir em francez, veio como pertencendo a uma obra com o referido titulo e com o sub-titulo de “A organização bolchevista pelo fascismo etc.” Com efeito, na ocasião em que mandei este trecho sobre

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a Astralédia, eu pensava fazer uma só obra com o título de “A Criação do Futuro” (“La Création de l’Avenir”) e o aludido sub-título. Mas reconheci que a minha conceção era tão vasta que não podia caber num só livro a não ser que fosse demasiadamente longo o que não era nada pratico. E portanto resolvi manter o titulo d’A Cr. do Fut., não apenas para uma obra mas para uma série de sete obras mais ou menos independentes, ainda que possuidoras dessa designação geral. A primeira dessas obras é que se denominará «L’Organization Bolcheviste par le Fascisme à travers...” (é escusado mencionar todo o título que é longo de mais) e nesse caso, o trecho que veio na Presença pertencerá à quar- ta obra da série “La Cr de l’Av...” a qual se intitulará “Astralédie” (o que está feito será traduzido em francez). É claro, digo-lhe isto a título de curiosidade pois agora já não se pode evitar o lapso de que só eu fui culpado. Por vezes modifico o plano das minhas obras o que ocasiona factos como esse a que acabo de aludir. E posto isto, vou finalmente satisfazer o seu desejo, dando-lhe umas ligeiras no- tas bibliograficas. Em junho de 1909 (era eu quintanista de Direito e tinha 22 anos pois nasci a 1 de Setembro de 1886) publiquei em Coimbra (edição França Amado) um folheto de crí- tica musical, intitulado “A Apassionata de Beethoven e Viana da Mota”, atacando de certo modo este pianista. Em abril (?) de 1910 publiquei uma conferencia (“A situação do Estudante em Portugal”) rialisada na Liga Naval de Lisboa para apresentação dum relatorio da Sociedade Científica de Lisboa de que eu era presidente (gloriolas passadas por que tenho o mais absoluto desprezo), relatório feito em grande parte por mim e que foi presente ao 1º e unico Congresso Nacional, uma chuchadeira efetuada na Sociedade de Geografia e arranjada pelo Consiglieri Pedroso, Schiapa Monteiro, Cabreira, Santos Lucas, Reis Santos e outros. Por essa mesma ocasião ou pouco antes, sustentei uma pequena polemica com o Antonio Arroyo e Michel’Angelo Lambertini na revista deste ultimo, “Arte Musical” em defeza do folheto saido em Coimbra. Colaborei nesta revista com varios artigos, entre eles um estudo de filosofia artística (“Roberto Schumann e a Esthetica Musical”) que provocou grosso escandalo nos meios musicaes. Saiu esse estu- do nos fins de 1912 ou principios de 1913. No verão de 1913 publiquei o estudo filosofico “A Liberdade Transcendente” (edição da Livraria Teixeira de Lisboa) e como introdução ao livro “A Hypnologia Transcendental” do Dr. João Antunes. Tirei desse estudo uma separata tanto mais que nada tinha que vêr com o referido livro. O Leonardo Coimbra atacou-o violentamente na Aguia. Respondi- lhe numa carta particular cheia de desdem. Em junho de 1915 saiu no segundo número do Orfeu um conto meu (“Atelier”) que precisa ser revisto para merecer fazer parte da minha Obra. Nessa ocasião, um mez depois do 14 de Maio, lancei um manifesto violentissimo mas demasiadamente literario (“O Bando Sinistro”) contra o e a sua quadrilha. Eu proprio o distribui no Café Martinho. Por sinal ia apanhando uma valentissima carga de porrada pois a

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ocasião não era propicia para gestos dessa ordem. Mas foi mesmo por isso que lancei o manifesto. Em 1916 (estava eu em Espanha) veio no unico numero do Centauro o meu conto “A Aventura dum Satyro ou a Morte de Adonis”. Por sinal vinha cheio de gralhas, trazendo até um período truncado (o mais belo de todos que se tornou assim incompreensivel). Em 1917 (setembro) publiquei no Portugal Futurista um exquisito artigo em francez sobre Santa Rita Pintor. Não me orgulho muito da forma desse artigo. Nesse mesmo ano e no seguinte em que concebi definitivamente o paracletianismo, publiquei uma serie de artigos de doutrinarismo politico-religioso no Liberal. Foi tam- bem em abril de 1918 que escrevi o meu hino-poema, “Antéchrist et la Gloire du Saint- Esprit que só publiquei em Dezembro de 1920 (edição Portugália). É a primeira obra da série “Le Dernier Testament” de que fazem parte a “Messe Noire”, “Le prophète Sacré de la Mort-Dieu”, Doze “Psaumes”, “Le Royaume de la Mort” e outras (serão ao todo doze livros). Em 1922 publiquei no segundo número da Contemporânea o discurso “A derroca- da da tecnica”, lido no Chiado Terrasse no ano anterior (em Dezembro) a proposito da chamada questão dos Novos sobre a qual também escrevi um artigo no Diário de Lisboa. Ainda em 1922 levantei no Tempo e na Palavra uma campanha (“Campanha Ultranacionalista”), na qual sustentei a necessidade que ha de se facilitar, não só em Portugal como no resto da Europa, a formação de emprezas norte-americanas cuja in- fluencia psicologica, mais ainda do que economica, seria enorme e altamente favoravel. Por essa ocasião publiquei na mesma Palavra um artigo sobre as “Origens Psicologicas do Bolchevismo”, que deu lugar a uma polémica interessante com o Mario Saa a qual se debateu entre mim e ele no referido jornal. Em fevereiro de 1923 deu-se o escandalo da “Sodoma Divinisada” (edição Olissipo), folheto apreendido pela policia por imposição da Epoca, da Igreja e dum grupo de estudantes “moralistas” e católicos: Sobre esse caso publiquei em abril do mesmo ano o manifesto “Uma lição de moral aos estudantes de Lisboa e o descaramento da Igreja Catolica”. Em março de 1924 saiu o meu manifesto “A Visão de dois artistas e a luxuriosa loucura de Deus”. Em maio começo verdadeira- mente a minha atividade jornalistica que antes era demasiadamente doutrinaria. Entrei então como redator no Correio da Noite onde em 1924 e 1925 publiquei artigos vio- lentissimos (alguns deles pelo menos) a par doutros ainda doutrinarios. Levantei varias campanhas que fizeram sensação. Ainda em 1925 colaborei noutros jornaes, entre eles A Restauração que se publicava em New Bedford (?). Nessa ocasião a Athena trouxe um artigo meu “A Loucura Universal” que servirá de introdução (depois de traduzido) à minha obra “La Folie de Dieu”, primeira (minto, segunda) da serie “Lux Theologica” que constará de cinco livros. No verão do mesmo ano de 1925 colaborei na Gazeta dos Caminhos de Ferro que é por sinal dirigida pelo Fernando de Sousa, director da Epoca (hoje Voz) que tanto

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me atacou a proposito da Sodoma Divinisada. Entre outros artigos, publiquei nessa Gazeta um, interessantíssimo, sobre o Perigo Oriental. No outono saí com um sema- nario político A Reacção que foi perseguidissimo pela violencia dos meus artigos Toda a minha atividade jornalistica combativa surgirá ordenadamente numa obra em que hei de reunir todos os meus artigos de combate e intitulada “Fogo de Barragem”. Será talvez o único livro que publicarei em portuguez. No verão de 1926 levantei uma campanha contra a Provedoria da Assistencia Publica de Lisboa que consta de dois ma- nifestos e cartas saidas no Correio da Noite de que eu aliás já não era redator. Essa cam- panha deu origem a um conflito gravissimo no Café Nacional em que fiquei a escorrer em sangue visto que, sósinho, me atirei para a frente de quarenta homens armados de pistolas e bengalões e que nesse Café me aguardavam. Em 1927 (de março a junho) publiquei o meu panfleto politico e sociologico “O Rebelde”. Finalmente no mesmo ano e no atual tenho colaborado na Presença. Ahi tem o relato de todas as minhas publicações. O resto que é o milhór, está inédito. São as peças “O Incompreendido” (em tres atos e que precisa ser muito remodelada, tendo sido escrita em Outubro de 1910), “Une Bacchanale étrange” (talvez a minha milhor obra; tres atos e escrita em portugues no ano de 1913 e em francez no ano seguinte ou 1915) e “Le Royaume des Larmes” (quatro atos, 1914, carecendo de grandes transformações); o poema Messe Noire (1926) e o que estou concluindo, Le Prophète Sacré de la Mort- Dieu”; os “Psaumes” dos quaes já tenho sete, faltando cinco (comecei a escrevêl-os em dezembro do ano passado); varios estudos filosoficos antigos que foram destruidos na revolução de fevereiro, durante o assalto ao Correio da Noite; fragmentos de muitas ou- tras em preparação (das séries “La Création de l’Avenir” e “Lux Theologica”); o estudo de propaganda social, “Os tres flagelos e o Reino de Deus” que depois de romedelado será traduzido em francez; finalmente uma carta que escrevi a Marinetti, no verão de 1921, na qual longamente lhe expuz as minhas doutrinas relativas à religião futurista do Espirito Santo. A essa carta ele respondeu-me nos seguintes termos: “... J’ai reçu et lu avec plaisir votre lettre très importante (o sublinhado é dele). Je suis d’accord avec vous sur plusieurs points. Le futurisme élargit chaque jour son horizon. J’espère vous voir à Lisbonne...” Afinal nunca veio a Portugal mas mantive com ele uma larga correspon- dencia até 1923. Depois a minha vida complicou-se demasiadamente e deixei de lhe escrever. A carta a que ele respondeu nos têrmos referidos, é a primeira síntese que fiz do paracletianismo e estudando nela a Astralédia. Mas tenho-me alongado demais e isto já basta. Abraça-o o seu muito amigo e admirador Raul Leal P.S. Esquecia-me de lhe dizer que o manifesto “A Visão de dois artistas... etc” represen- tou o aparecimento oficial do paracletianismo: 15 a 17 de Março de 1924.

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ct-6638 Lx 30 de Setembro 1928

Meu querido José Régio A 6 de junho, conforme vejo pelo recibo que conservo comigo, escrevi-lhe uma longa carta que registei, apresentando-lhe os dados bibliográficos que o José Régio mostrou desejo de possuir, o que muito me orgulha. Como não tive mais noticias suas e como se deu o caso de eu registar a carta, não na estação central mas numa outra em cujas empre- gadas não confio muito, receio bastante que você a não tenha recebido o que me coloca pessimamente. Peço-lhe pois o grande favor de me dizer o que ha a esse respeito para eu tomar as devidas providencias, caso a minha receiosa suspeita tenha fundamento. E do intimo d’alma lhe agradecerei. Outro assunto. Estou tratando com o Mario Saa e o José Pacheco dumas publicações em fascículos às quaes está anexa uma pequena revista quinzenal, de oito páginas. Muito nos honraria a sua colaboração e por isso lh’a peço encarecidamente. E desde já lhe fico muito obrigado. Esperando anciosamente carta sua com uma das suas belas produções em prosa ou verso, como quizer, apertadamente o abraço como Muito seu amigo e profundo admirador Raul Leal S/C R. das Salgadeiras, 36, 3º d.

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ct-6639 De la Mort-Dieu, [sobrescrito [1-10-1928] Enfoncée pour jamais Para Il mo e Ex mo Sr José Régio Dans les profondeurs extrêmes Avenida Campos Henriques De l’Être meurtri, S/C Vila do Conde De l’Être lumineux… [no verso] Remete Raul Leal Je voulais vivre Rua das Salgadeiras, 36, 3ºd Seulement pour Toi, Lisboa Oh, Esprit Divin, Mon essence mystique, Psaume Inonde toute Ma vie Oh, Dieu de Puissance, De Ton brutal fracas Qui pour toujours À travers le tumulte sacré essentiellement animes De Ma vision extatique, Mon être profond, Par Moi eternisée Substance Pure Dans l’existence que je traîne, De l’âme exaltée Maudite et sublimée, Pour lui transmettre De Prophéte-Roi… En délire Mais, hélas, Ta grandeur sublimée, Les nuages de matière Arrache enfin Ne Me délaissent jamais, De toute Ma vie, La vie M’oblige Perdue dans la détresse, À une action infamante, La marque infamante Éloignée de l’Esprit, De la vilanie Éloignée de Dieu, Afin que Je puisse vivre Pour meurtrir Seulement pour Toi Mon âme presque divine En extases vibrants Mais dont les impuretés De pur-Au-delà… M’arrachent le pouvoir magique Je suis forcé De vaincre toutes les difficultés Par l’existence que je traîne, De la terrestre existence Et par ce qu’il y a de déchu Seulement Dans Mon âme perdue, Par la force indomptable À M’envelopper de ténèbres, De l’Esprit Divin De nuages épais, Qui nous portons en nous Émanation fétide Mais affaibli D’un marais immense Par les vils eléments Qui couvrent affreusement De notre nature pourrie La sublime vision Tout imprégnée De la splendeur sinistre De bassesses

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Tout imprégnée C’est Satan De boue… Qui de l’Au-delà C’est à cause M’arrache De ces impuretés infâmes La grandeur suprême Que Je ne peux pas vivre De Mon être déchu, Seulement l’Au-delà De Mon être vilain…! Et que Je suis obligé À être enfin Octobre, 1928 De la vie entière Raul Leal (Henoch) Un vilain forçat… Et de la matérialité ignoble De Mon existence terrestre, Polluée par le travail Pour la recherche de l’or, Par toute une action affreuse Éloignée de Dieu, S’imprègne aussi Tout Mon esprit Qui de cette forme l’oublie presque Le Royaume sacré De la divine Mort… Des préoccupations impures, Mesquines, Viles, Engendrées dans une vie de Terre Que la chair Me force à vivre, Cherchent obscurcir enfin Toute la hauteur De Mon esprit Affaiblissant Mes extases Pour M’eloigner profondément, Pour troubler la vision sublime De Dieu Et de l’Infini…

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ct-6640 Il mo e Ex mo Snr. José Régio Dig mo Diretor da Presença Rua das Flôres, 37, Coimbra s/c [13-11-1928] Remete Raul Leal Rua das Salgadeiras 36, 3ºD Lisboa

Meu querido José Régio Do intimo d’alma lhe peço que me perdôe o meu silencio. Proveio ele do muito tra- balho que tenho e em geral de toda a minha vida feita de tormentos. Ainda que tarde, profundamente lhe agradeço a sua colaboração. É muito belo o seu soneto e dentro de poucos dias vê-lo-ha na nossa revista. Muito grato lhe ficarei se continuar enviando cola- boração sua para outros números. A publicação deve ser quinzenal posto que eu duvide bastante da sua saida regular. Neste pais nunca é possivel conseguir-se isso. Envio-lhe um artigo sobre o Mario Eloy. Muito lhe agradecerei se o publicar no pro- ximo numero da Presença visto que ele vae fazer uma exposição na primeira quinzena de dezembro e vindo o artigo noutro numero perderá em grande parte a oportunidade. Escrevi-o em francez para que o Mario Eloy o possa mostrar em França e na Alemanha para onde parte em breve. Iternamente obrigado a todos os seus favores e atenções, abraça-o o seu muito amigo e profundo admirador Raul Leal P.S. Um grande Abraço do Mario Saa S/C R. das Salgadeiras, 36, 3º D. Lisboa ct-6641 26 de Dezembro de 1928

Meu querido José Régio Muito obrigado pela publicação do meu artigo sobre o Mario Eloy na Presença. Veio precisamente nas vesperas da exposição dele que portanto o poude colocar na parede da sala. Causou bastante sensação. Agradeço tambem muito a sua gentilissima carta e de novo lhe peço mais colaboração

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para a revista da Solução Editora. Oxalá que esta empreza do Mario Saa progrida e se desenvolva mas confesso que duvido bastante. Enfim, veremos. Envio-lhe um artigo para a Presença. É um tanto escandaloso mas assim mesmo é que está bem. Como trato das condições do nascimento de Cristo teria a maior oportunida- de em numero de Natal mas, é claro, já não é possivel. Se por ventura a publicação desse artigo lhe pudér trazer quaesquer sensaborias, não o publique pois eu não me ofenderei. Sou o primeiro a reconhecer que é excessivo e não desejo arrastar os meus amigos no abysmo da minha loucura que sem duvida me ha de ainda trazer mais desgraça que porém altivamente suportarei como um Anjo rebelde precipitado das Alturas. Vou para a Solução Editora escrever direções em envelopes e por isso termino, abra- çando-o profundamente como Seu muito amigo e admirador S/C R. das Salgadeiras, 36, 3ºD. Raul Leal P.S. Caso decida publicar o meu artigo peço-lhe que recomende cuidado na revisão pois o que veio sobre o M. Eloy traz algumas gralhas importantes. Desculpe-me essa insistencia.

ct-6642 Il mo e Ex mo Snr. José Régio Hotel América Central Av. Rodrigues de Freitas Porto [Carimbo de 13-3-1929] Remete Raul Leal Rua das Salgadeiras 36, 3ºD. Lisboa Lx. Março de 1929

Meu querido amigo Em resposta á sua carta devia-lhe ter escrito imediatamente para lhe desfazer por com- pleto qualquer preocupação que tenha sobre o caso do meu artigo “A Virgem-Besta”. Mas a minha vida é um iterno tormento, tão grande que até penso livrar-me dela indo para África (!!!), e por isso perdôe-me a minha falta que só deriva do estado de depressão, de abatimento em que tal vida me põe constantemente. Os meus psalmos interpretam bem a minha alma. Bem pode avaliar por eles todos os horrores que sofro. E não lhe mandei os mais intensos por serem demasiadamente longos. Então veria, assim como no poema que estou escrevendo, toda a tragedia do meu espirito e da minha vida. Mas deixemos esse assunto que não interessa.

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Primeiro que tudo quero agradecer-lhe a sua bela colaboração para a Revista da Solução Editora. Como veio um pouco tarde só poderá ser publicada no terceiro nume- ro. Apesar de eu já não ter nada com essa empreza, o Mario Saa garantiu-me que nesse numero a publicará. Recebi o ultimo numero da Presença. Lá vi a minha taboa bibliografica. Vem muito bem. Satisfazendo o seu desejo, envio-lhe um psalmo que me parece inofensivo. Agora, a sua carta. A ela vou responder. Por Deus lhe peço que nem mais um mo- mento se preocupe com o caso do meu artigo. Compreendo muito bem a vossa atitude e tanto que, ensinado pela vida, vou já tomando atitudes semelhantes. Um espirito pode ser muito independente mas antes de mais nada deve saber organisar conve- nientemente a sua independencia. Não a deve deixar á solta de forma a tornar-se uma devastação da propria existencia. Doutro modo, em vez de triunfador será um falhado. E se eu hoje sou transitoriamente um vencido, devo esse facto á desorientação em que se tem desenvolvido a minha independencia. Só tenho tido atos de impulsividade e em geral de má impulsividade. E é disso que eu tenho remorsos. Tive, ha alguns anos, todos os trunfos nas mãos e deixei-os imbecilmente perder! D’ahi o castigo tremendo que dos Céus me vem. Por isso no meu poema “Le Prophète Sacré de la Mort-Dieu”, primeira parte (já concluída) do “Royaume de la Mort” que constará de tres partes (2ª “La Vision de Hencoh”, em que estou trabalhando; 3ª “Vers l’Esprit”), nesse poema, digo, eu comparo a minha situação atual com a da Queda de Adão, declarando mesmo que a encarno por razões theometafísicas que constam do mesmo poema. A verdade, meu querido José Régio, é que quando nos propômos rialisar uma grande Obra na vida, temos, antes de mais nada, que ser uns bons estratégicos. Para impôrmos essa Obra em toda a sua amplitude precisamos de proceder com manha e cautela, sem o que está tudo perdido e os nossos altos Ideaes desfar-se-hão como pó luminoso disperso na Imensidade. E parece-me que não deve ser esta a nossa aspiração. Não devemos ser demasiadamente cautelosos por nós, pela nossa existência particular – isso é bom para os burguezes e para os moços da vida! – mas ao nosso Ideal devemos sacrificar o nosso proprio espirito aventuroso e de independencia quando Ele nos exigir esse tamanho sacrificio. Quem tem uma Grande Missão a rialisar, deve adquirir por vezes a rasteira habilidade dos politicos para que o seu alto Fim se cumpra. E virá tempo em que possa expandir livremente toda a sua independencia d’alma. Por isso eu disponho-me agora a ocultar-me nas selvas para na ocasião própria dar o salto terrivel e fincar bem as minhas garras de tigre na carne podre dessa sociedade de merda. Convem mesmo que esqueçam por algum tempo o meu espírito de rebeldia pois quando os apanhar desprevenidos e depois de ter forjado as minhas milhores armas que são algumas das minhas obras, é que então o salto mortal será dado por mim triunfalmente. Antes disso é preciso saber esperar. E portanto eu proprio fui precipitado, reconheço-o bem, enviando-lhe para publicar “A Virgem-Besta” Foi um dos tais gestos de má impulsividade. Mesmo a mim,

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neste momento não convinha esta publicação. É o que lhe tenho a dizer sobre a sua carta. Abraça-o o seu muito amigo e admirador Raul Leal P.S. Ia mandar esta carta para o correio quando recebi uma outra sua, mostrando o desejo de que lhe eu mandasse um artigo sobre cinema. Muito brevemente lh’o enviarei. E como já tinha copiado o psalmo, ahi vae do mesmo modo para qualquer altura. R.L

ct-6643 Il mo e Ex mo Snr. José Régio Pensão 21 Portalegre [sem indicação de remetente. O Carimbo indica Correio Central] S/C 9 de Dezembro de 1929

Meu querido José Régio Um grande prazer tive recebendo a sua gentilissima carta, tão cheia de conceitos sub- tis admiraveis. Ha tanto tempo que não comunicava consigo! A sordida vida que levo, tão vilmente tumultuaria, também me afasta muitas vezes do convivio profundamente delicioso dos meus amigos. Entretanto, sempre que vejo em Lisboa o Edmundo de Betencourt, pregunto por si com o mais alto interesse. Mas, é claro, ele tambem não tem visto o José Régio. Recebi a Presença que vem muito interessante. E diga-me fran- camente, peço-lhe: Adolfo Rocha não é pseudónymo seu? A poesia Baloiço é uma ver- dadeira maravilha! Satisfazendo o seu desejo, envio-lhe colaboração minha em portu- guez. É duma peça muito antiga mas que hei de remodelar e traduzir em francez sob o titulo de “Folie Transcendentale”. Tem passagens duma verdadeira grandeza dramatica. Sobretudo as cenas de loucura, do ultimo ato, são, assim creio, qualquer cousa de espan- toso. Merece bem ser aproveitada, depois de convenientes transformações. Foi para que recebesse rapidamente colaboração minha, que resolvi mandar-lhe esse trecho que sei de cór. Com mais vagár procurarei, para outra vez, cousas mais carateri- sadamente modernistas. Esse monólogo ainda é muito romantico. O trabalho dos jornaes chamou-me. Sou forçado a sujeitar-me a essa vileza. Por isso o deixo. Peço-lhe que envie sempre noticias suas. Um grande abraço do seu muito amigo e admirador Raul Leal

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ct-6633 Bilhete-Postal [Data ilegível] Remete Raul Leal R. das Salgadeiras 36, 3ºD. Lisboa

Il mo Sr. Prof. José Régio Avenida Campos Henriques Vila do Conde

Meu presado Amigo Estou acabando de copiar o segundo quadro do terceiro acto da minha peça “O In- compreendido” para lhe enviar. Peço-lhe portanto que me mande dizer se se demora em Vila do Conde ou se vae para Portalegre visto acabarem as férias. Abraça-o o seu muito Amigo, admirador e obrigado Raul Leal ct-6644 lx 1 de fevereiro de 1930

Meu querido Amigo Do intimo d’alma lhe agradeço a sua Obra magistral. E tão incontestavelmente magistral ela é que não posso deixar de me mostrar um tanto ressentido consigo visto o José Régio ter suposto a hypotese de eu não gostar dos seus Sonetos. Isto podia lá suceder! O vigor, a força interior deles é formidavel e você acentua em gritos de aflição gigantesca o que ha de horrivel – e ao mesmo tempo grandioso, digo eu – nos contrastes da alma humana, a mais genial, debatendo-se internamente nos jorros glo- riosos da Luz Espiritual atravez da lama e do pus. Você é duma brutalidade sublime na expressão vivissima desta verdade absoluta. O José Régio escreveu sem duvida uma Obra de Genio. Queria analysá-la mais detalhadamente conforme merece mas estou cançado visto que são quatro horas da noite e trabalhei muito durante o dia. Outra vez será. Só lhe quero assegurar que cada vez admiro mais profundamente a sua for- tissima Personalidade. Envio-lhe finalmente o segundo quadro do Terceiro ato da peça O Incompreendido. Se achar demasiadamente extenso poderá publicá-lo na Presença só a partir da segunda cena. Mas tem tanta unidade que é pena não aparecer inteiramente. Entretanto o José Régio resolverá o que entender. Eu pontuei as rubricas para que, é claro, a letra d’elas seja diferente da letra do texto propriamente dito. E por Deus peço o maior cuidado na revisão. Se você estiver de acordo, enviar-lhe-hei qualquer dia dois trechos do meu poema em

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preparação “Le Royaume de la Mort” em que estão sintetisados todos os fundamentos theologicos ou theometafisicos desta obra e, em geral, do Paracletianismo. Visto que a Presença tem agora mais espaço, tambem desejaria publicar nela os 7 poemas psalmicos que ainda não foram publicados, do livro “Martyr de l’Oculte”: São muito mais extensos do que aqueles que apareceram já mas como ha mais espaço seria interessante fazer-se na sua revista essa publicação. Peço-lhe que me diga o que pensa a este respeito. Muito grato lhe ficarei se puder saber se o João Gaspar Simões recebeu, ha tempos, uma carta minha, agradecendo-lhe o belo livro que me ofereceu. Não sei porquê, receio que ele a não tenha recebido. Vou tambem escrever ao Adolfo Casaes Monteiro. Não querendo mais tomar o seu tempo, findo esta carta, enviando-lhe um grande abraço de felicitações pela sua Obra genial Seu muito amigo e profundo admirador Raul Leal

ct-6645 [sobrescrito] Ilmo e Ex mo Senhor José Régio Pensão 21 Portalegre Envia Raul Leal, Rua do Alecrim, 47, 3º Lisboa Lx 27 de Junho de 1932 S/C Rua do Alecrim 47, 3º

Meu querido José Régio Deve estar furioso comigo. Mas só aparentemente tem razão. É certo que depois de tantas atenções eu devia proceder consigo e com a Presença d’uma forma mais correta. Mas creia, meu querido Amigo, que muitas vezes pensei em lhe escrever depois da mi- nha ultima e extensa colaboração que vem no ultimo numero que até hoje recebi (nunca mais me foi mandada a Presença). Se não satisfiz o desejo de comunicar consigo e agradecer-lhe tantas gentilezas é que, meu querido José Régio, cataclismos sobre cataclismos se teem dado na minha pobre existencia. Todo o meu ser sofre horrorosamente, o corpo, a alma e o espirito! Ando doentissimo, muito gravemente doente; a vida persegue-me, d’uma forma pavorosa, por todos os lados; finalmente a minha tragedia mental é tremenda! Estou atravessando o pior periodo da minha existencia, o qual ainda ha de durar infelizmente cerca de dois anos, segundo os meus calculos ocultos. Quatro provas tenho que atravessar. Estou no auge da terceira, a prova da força do eu, talvez a mais terrivel de todas. Um dia exporei

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num livro, duma forma emocionante, o que se tem de passar comigo para horrorisar o mundo e fazer sentir a Minha Grandeza de Profeta e Martyr. Só uma Força Sobrenatural Me poderia fazer resistir ao que tenho sofrido: sobretudo ultimamente! É pelas incomensuraveis amarguras da minha existencia, pelas sucessivas hecatombes que caem constantemente sobre mim, que não tenho alma para comunicar com os meus amigos, só tenho alma para trabalhar na minha Obra atravez dos maiores horrores porque isto é um dever para com Deus. Sinto uma necessidade absoluta de isolamento, preciso viver só dentro de mim. É por isso que não vejo o Fernando Pessoa ha mezes, ha muitos mezes! Não posso procurar os meus amigos. E para quê? Para lhes transmitir o estigma da Desgraça que trago na alma? Seria uma infamia! Prefiro pois não aparecer. Bem sei que em mim, da Desgraça nasce a Gloria mas a Gloria está hoje encoberta aos olhos de todos pelo muito que sofro. Por Deus lhes peço que esperem algum tempo, antes que eu de novo possa aparecer para o convivio dos meus amigos. Hoje é impos- sivel. Hoje só posso viver na minha Grande Tragedia. Perdôe esta carta com todas as suas impertinências que são porém necessárias. Tudo que lhe digo é o produto do meu enorme sofrimento. Adeus, meu querido José Régio, abraça-o com toda a alma o seu desgraçado e glorioso amigo que muito o admira Raul Leal P.S. Já não móro na Rua das Salgadeiras. Vem a minha nova direção ao cimo da carta. ct-6632

O Ser-Infinito de Fernando Pessoa

Focar inteiramente uma personalidade tão complicada e vasta como a de Fernando Pessoa num pequeno artigo é obra impossivel, por maior que seja o poder de sintese. Sem pretender esgotar um assunto tão amplo como aquele que se refere á psicologia da alma, una e multipla, e das criações geniaes do grande Artista-Pensador, estou porém escrevendo um estudo que decerto poderá marcar melhor toda a complexidade d’esse profundo, subtil e largo Ser, predestinado por Deus. O seu título é simples: Fernando Pessoa, Precursor do Quinto Império, sendo ele dividido em oito capítulos – I. Na Glória de Deus; II. Fernando Pessoa, Um dos Oito Maiores de Portugal; III. A dupla personalidade do Artista-Pensador; IV. A Legenda de Henoch; V. A Hora das Chaves; VI. Como se exprimem as relações substanciaes entre as duas personalidades de Fernando Pessoa; VII. Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Eu; VIII. Os Cinco Imperios; IX Os Fundamentos satânicos e divinos, astralmente carnais e sinistramente pomposos do Quinto Império; X. O Quinto Imperio e a Igreja Catolica, os Templarios, a Companhia de Jesus e a Ordem do Divino Paracleto. N’este artigo só quero acentuar, d’uma maneira geral, o infinitismo da alma criadora do Poeta que acaba de perecer para a vida, imortalizando-se no Além... Ou por obra da

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sua poderosa imaginação subtilmente intelectiva ou emanados da substância anímica do seu próprio ser, Fernando Pessoa concebia os mais variados e opostos pontos de vista tão absolutamente que chegava mesmo ao ponto de os personalizar, dando assim lògicamente nomes diversos aos entes fantasmicos que criava como que metapsiquica- mente para encarnarem com toda a sua alma incerta de sonho esses pontos de vista que apesar de diversos e contrários possuíam porém uma identidade substancial, ainda que só longinquamente surgida no subconsciente do Artista. Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Caeiro e ainda mais alguns outros fantasmas não são, conforme declaro no referido estudo, pseudónymos diferentes de Fernando Pessoa, mas verdadeiras personalidades saídas da personalidade múltipla e una do genial Poeta-Pensador. Mesmo quando não se comprazia em personalizar fantasmica, metapsiquicamente os vários pontos de vista contrarios, mas substancialmente harmonizáveis, que lhe surgiam no espírito, defendia com uma subtileza prodigiosa e com uma suprema arte intelectua- lista, cheia de profundeza analytica e por vezes especulativa verdadeiramente extraordi- nária, defendia, digo, as teses mais opostas, mais antagónicas, servindo-se d’uma argu- mentação poderosa, formidavelmente construída como se fosse uma obra arquitectural erguida aos Céus na fronte atlântica dum gigante Astral! Assim Fernando Pessoa percorria todo o infinito do Pensamento e da Emoção, inte- grando na sua alma e na sua inteligencia genialmente superior o Universo cataclysmico e divino do Espírito Puro!... Raul Leal (Henoch)

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FIG. 1 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a José Régio - ct-6635-1

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FIG. 2 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a José Régio - ct-6635-2

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FIG. 6 Reprodução de carta, inédita, de Raul Leal a José Régio - ct-6635-6

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UMA VIAGEM AO PRINCÍPIO: CUMPLICIDADES ARTÍSTICAS DE JOSÉ RÉGIO E JULIO

Rui Maia FCT|SFRH/BD/130008/2017

RESUMO

O corpus documental e epistolográfico existente e disponível, resultado da conjun- tura profissional de José Régio, professor em Portalegre, e de Julio, engenheiro civil em Évora, dotam a investigação, filiada no campo da História e Teoria das Artes Visuais, de anotações e referências cabais para o entendimento da relação entre palavra e imagem, permitindo, através das obras de colaboração, o acesso privilegiado a formulações e con- siderações sobre a expressão artística e sobre o processo criativo.

PALAVRAS CHAVE cartas de artista; presença; palavra e imagem, criação artística.

ABSTRACT

The existing and available epistolographic and documental corpus, is the result of José Régio being in Portalegre teaching, and Julio, working as a civil engineer in Évora, endowing the affiliated research in the field of History and Visual Arts Theories of ref- erences and annotations which determine the understanding of the traditional relation- ship between word and image, allowing through the collaborative artworks, direct and privileged access to formulations and considerations about art and the creative process.

KEYWORDS artists’ letters; periodical presença, word and image; artistic creation.

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INTRODUÇÃO

A narrativa anotada “uma viagem ao princípio” é um ingresso na infância e adoles- cência de José Régio e Julio, nos primeiros anos do século XX, tendo por cenário as três casas, que afinal eram só uma, bem alinhadas, sob a encosta do Mosteiro de Santa Clara, logo ali, à entrada de Vila do Conde, onde o nevoeiro da beira-rio se cruza com o vento forte do mar. Num ambiente familiar burguês, tendo como principal cenário a casa de família, a estória desenvolve-se em torno de duas caixas de tintas, repletas de bisnagas que, como bons irmãos, tinham dificuldade em partilhar, iniciando, quase como se de um ritual se tratasse, a prática e o gosto pelas artes, animadas pelo imaginário possível, a partir das obras literárias alinhadas na biblioteca do pai.

[…] Na sua biblioteca, além das obras de Júlio Verne, algumas de Camilo, folhetins em grandes volumes ilustrados ou as colecções romanescas no tipo Horas de Leitura, abundavam os dramas e comédias mais ou menos populares. Comecei muito novo a devorar tudo isso. Pelos folhetins com ilustrações conservo um fraco inextinguível. Melhor diria: uma verdadeira gratidão, tanto prazer me dava acompanhar pelas estampas os enredos e personagens que o texto me ia oferecendo.[…]1

As anotações, acima enumeradas, constam na Confissão de um Homem Religioso, obra de forte cariz biográfico de José Régio, e servem a intenção, na medida do possível, de traçar o enquadramento espacial e temporal de partida para uma aproximação ao primeiro periódico lançado pelos irmãos José e Julio, em colaboração com o primo António José de Sousa Pereira.

REVISTA DE BALTAR

No verão, em período de férias grandes dos três adolescentes, na casa da avó paterna em Baltar, concelho de Penafiel, surge o primeiro e único número da Revista de Baltar2. O caderno manuscrito, de aparente entretenimento literário e plástico colectivo, é, pro- vavelmente, a primeira obra de colaboração entre José Régio e Julio, de forte pendor humorista e até mesmo anedótico, mas, simultaneamente, premonitório da genialidade artística dos intervenientes.

1 RÉGIO, José - Confissão de um Homem Religioso, Porto: Brasília Editora, 1983, p. 26. 2 MARQUES, João Francisco - “José Régio: percurso de um inédito da juventude”. Boletim Centro de Estudos Regianos. Vila do Conde: Câmara Municipal de Vila do Conde, 2002. p. 8.

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A Revista de Baltar, prevendo colossal sucesso de leitura e venda, é lançada em nú- mero único com uma tiragem de três exemplares, afirmando-se como caso singular na imprensa periódica nacional, conforme se pode ler no discurso de abertura ou modestia à parte:

[…] Sae hoje o primeiro, unico e grátis numero da «Revista de Baltar». Magnificamente impressa à mão com uma esplendida, incomparável e artistica capa de papel de embrulhos, está-lhe reservado, por certo, um triunfo sem precedentes. Os seus colaboradores são três jovens e talentosos animais racionais que toda a gente diz à boca cheia e vazia que virão a sêr as três mais estupendas mentalidades não só do meio animal como do vegetal e mineral. Não será pois de admirar que esta esplendida revista obtenha um colossal sucesso de leitura e venda; prevendo isso fizemos uma edição de 3 exemplares; como veem é um caso unico na história da imprensa portugueza. Desde já, agradecemos as provas de gentileza, com que esta revista será por todos recebida. Estamos certo que o leitor lhe dará na biblioteca do W.C. o melhor logar […]3.

PÁGINA 5 E 6, NÃO PAGINADAS

À parte do humor e sentido crítico, matriz transversal à totalidade do manuscrito, interessa, de forma particular, o espaço de colaboração de José Régio e Julio. A Julio couberam as páginas cinco e seis, não paginadas, do periódico, de publicação única, com o desenho intitulado A tristeza da rapariga de Baltar que nunca viu o mar!… e o poema O Soneto da Viagem, assinados, à data, sob o pseudónimo artístico de Julião. O desenho, a tinta-da-china sobre papel, ocupa a totalidade da página do caderno manuscrito, com limite exterior a negro, título individualizado, identificação da técnica e autoria, demonstrando noções de grafismo e layout. A composição representa, numa proposta estilizada e sem traço preparatório, uma rapariga em aparente desequilíbrio, vertigem e tontura, sobre um fundo de montanhas fortemente animadas pelas linhas que as constroem, e na qual, surge um sol hipnotizante, representado por uma simples e efectiva construção, de duas circunferências, sendo interceptada a maior por um con- junto de sete linhas.

3 PEREIRA, José Maria dos Reis; PEREIRA, Júlio Maria dos Reis; PEREIRA, PEREIRA, António José de Sousa - [Caderno Manuscrito] Revista de Baltar. s/data. Acessível na Câmara Municipal de Vila do Conde.

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FIG. 1 PEREIRA, José Maria dos Reis; PEREIRA, Júlio Maria dos Reis; PEREIRA, PEREIRA, António José de Sousa - [Caderno Manuscrito] Revista de Baltar. s/data.

Interessa, aqui, a relação proposta pelo desenho de Julio, Julião à data, provável divertimento sem grande pretensão artística, com o texto, em duas colunas, que imediatamente o antecede, da autoria de José Régio, à data Zé Massudo, intitulado Carta de Baltar:

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Meu caríssimo: Cá estou em Baltar. Escrevo-te do alto da montanha, sob um céu que faz vertigens, olhando ao longe serras e serras, a que a névoa dá um ar espectral de paisagem lunar, e que são, daqui, cheias de melancolia e grandeza como hoje devem ser as de que fala a Bíblia. Escrevo-te do alto da montanha… e com pêna de ti; pêrra em que vai uma pontinha de desdem: Como eu te sinto lá longe, como eu te sinto lá em baixo! A esta hora, 9 horas da manhã, preparas tu a tua toalhete de praia, e já deste uma dúzia de vezes o nó da gravata: Porque o teu “à vontade” é estudado, a tua indiferença é uma afectação, a tua ausência de pose é um requinte de poseur. Vês tu? Até tenho de te falar francez. Ha coisas que Portugal ainda não dominou. Felizmente. Cancioneiros e crónicas não as sonhavam. E o povo, criadôr de imagens que iluminavam e de vocábulos que recortam, desconhece-as. É natural, pois, que os manequins de figurino que importam a mercadoria im- portem igualmente os rótulos e as taboletas. Perdoa-me meu querido fútil, a parte que te cabe a carapuça. Também a mim me cabe uma parte, e não pequena. […] Vem até Baltar, caríssimo! Curarás a tua dispepsia porque sossegarás os teus nervos; realmente aprenderás a rezar porque te sentirás bem com Deus; não sofrerás de insónias porque te deitarás cansado do côrpo, leve de espírito, e abençoado sou tôda uma côrte celeste que retalha a parêde banaisinhas oleografias deliciosas. E sairás daqui melhor, com vontade de dizer, ao modo do meu santo três vezes santo: “O meu irmão Sol… minha irmã Água…” Vem até Baltar, caríssimo! […]4

As imagens, ora a libertada pelas palavras, que a risco leve se traça na nossa mente, ora a visionada de forma inequívoca, que a risco certo e incisivo do aparo sobre o papel, configuram, para nós, materialidades da percepção da realidade e da sua experimenta- ção, identificadoras de proximidades e distanciamentos na expressão, permitem identi- ficar relações de simbiose e retroalimentação entre individualidades, formas e linguagens artísticas dispares. Esta coabitação de linguagens é consciente e assumida pelos inter- venientes/ autores do caderno manuscrito, pela assinatura final da publicação através daseguinte anotação:

[…] Pedimos desculpa de qualquer errata ou quaisquer borrões que não são senão a dedada de três génios que, não sabendo já exprimir-se por palavras ou por linhas, seguem a corrente modernista buscando novos meios de expressão. Os redactores […]5.

4 Idem. 5 Idem.

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PRESENÇA - FÔLHA DE ARTE E CRÍTICA

O salto cronológico proposto, por esta narrativa, dá-se até 1927, numa geografia direccionada para sul, com paragem em Coimbra, sempre atenta aos ecos críticos da capital. Sobre o aparecimento da presença - fôlha de arte e crítica no panorama artísti- co-cultural português, nas suas inúmeras referências, detemo-nos na de João Gaspar Simões, um dos seus fundadores, aquando dos trinta anos da comemoração da revista. João Gaspar Simões dá conta do primeiro número desse pequeno jornal:

[…] impresso em papel rosado, um pouco lustroso, no gosto dos papeis em que por essa altura se embrulhavam os remédios nas farmácias da província. O cabeçalho desse caderno de oito páginas, de pequeno formato, continha poucas palavras: três linhas apenas, a primeira das quais, em velho tipo normando, era o título da publicação. Este, desobedecendo à praxe das publicações congéneres - Trovador, A Folha, Via Latina, Porta Férrea -, inculcava-se apenas por aquilo que de facto era: uma presença. PRESENÇA, em capitais, e não ainda em minúsculas […] o título desse journal de estudantes que a si próprio se considerava, na segunda linha do cabeçalho, Folha de Arte e Crítica, dando-se como sendo publicada em Coimbra a 10 de Março de 19276.

Julio lá estava, predestinado à mesma folha de papel de embrulho, um pouco lustro- so, da Revista de Baltar, reproduzido agora com a pompa e circunstância da imprensa coimbrã. Na terceira página, destinada a opiniões, emoldurado pelas citações de Marcel Proust, Florent Fels, Jean Cocteu e Vlaminck, partilhando os princípios da individua- lidade, independência, liberdade, ousadia e da manifestação contra o gosto e educação das multidões.

Bien qu’on dise avec raison, qu’il n’y a pas de progrés, pas de découvertes en art, mais seulement dans les sciences, et que chaque artiste recommençant pour son compte un effort individuel ne peut y être aidé ni entravé par les efforts de tout autre, il faut pourtant reconnaître, que dans la mesure ou l’art met en lumière certaines lois, une fois qu’une industrie les a vulgarisées l’art antérieur perd rétrospectivement un peu son originalité. Marcel Proust

6 SIMÕES, João Gaspar - História do Movimento da “Presença”. Coimbra: Atlântida, 1985. p. 11.

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Tout création d’art est une agression contre le goûte et l’éducation des foules. F. Fels.

La personnalité ne réside pas dans la répétition d’une audace, mais, au contraire, dans l’indepen- dence que l’audace permet. Jean Cocteau

En art, il n’y a que deux choses essentielles: l’instinct et le don. Vlaminck.

O desenho de Julio para a página Opiniões é sumula reveladora do repertório do artista plástico durante os anos vinte e trinta, pelo predomínio da figura do poeta, pela eterna musa, ausente mas sempre presente, pelo recortado da figura na janela aberta sobre a canónica imagem da cidade, na qual o casario se desenvolve, ora em cascata, ora em composição piramidal. Este, passado para a folha d’a presença, por recurso à zincogravu- ra, a que se seguiriam muitas outras e alguns linóleos, adquirem nova densidade plástica promovida pela técnica de reprodução, que, segundo João Gaspar Simões, parece que caíra no goto da «malta»7, assegurando que o aparecimento da nova folha académica havia sido notada em Coimbra e Lisboa. A imagem gráfica d’a presença torna-se constante ao longo dos seus números, que vão, numa regularidade bastante incerta, desde 1927 a 1940, e pela qual passaram as pro- postas plásticas de vários artistas, desde Almada Negreiros, Sarah Afonso, Mário Eloy, Arlindo Vicente, Olavo, Pedro Olaio, Abílio, Jaime Figueiredo, Arpad Szenes, Maria Helena Vieira da Silva, Ventura Porfírio, o próprio José Régio, entre outros. Mas é Julio o mais assíduo nas publicações. Tão assíduo, em número como na plasmação plástica dos princípios doutrinários do movimento presencista, que lhe viria a valer o título, póstumo à revista, de artista oficioso d’a presença. É na fôlha de arte e crítica coimbrã, desde sempre espaço de coabitação entre diferentes formas e linguagens artísticas, que a obra de Julio, na maturidade possível nos finais dos anos vinte, encontra terreno profícuo à sua independência, liberdade e expressão.

7 Idem. p. 12.

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GRAVAÇÃO A LINÓLEO

A utilização da imagem plástica na fôlha de arte e crítica é crescente, ao longo dos seus trezes anos de existência, transferida pela força do zinco, da madeira ou do linóleo adoptada, igualmente, para as diversas edições, fundamentalmente ao nível da capa dos livros, publicados pelos seus membros e colaboradores, para as quais, Julio participa de forma activa com imagens e ilustrações. A experimentação, parte de um ofício pouco disseminado, é partilhada com o irmão José Régio, conforme atesta a correspondência da época. Neste caso, não sobre a gravação do desenho de Julio para a página Opiniões, mas sobre as realizadas pela mão de José Régio, a partir de desenhos do irmão, para a edição do álbum MÚSICA, com o subtítulo descritivo — desenhos de Julio gravados a linóleo e palavras de José Régio — sob a chancela d’a presença. A correspondência, sob a assinatura de Régio dirigida a Julio, resultado do destino, que apesar de os manter sempre perto, fá-lo com a distância suficiente, que só a escrita seria capaz de remediar, dá-nos conta, entre outros assuntos, do carácter experimental destas e outras colaborações. Sobre a gravação para o álbum MÚSICA, Régio, a 15 de Novembro de 1930, escreve:

[…] Júlio, aí te mando a primeira prova, ainda por corrigir; leva ainda algumas pequenas partes por cortar, e uma série de pequenas incorrecções ou hesitações que podem ser corrigidas. Julgo que o desenho não foi alterado de maior. O meu erro capital foi cortar demais, de modo que agora, não são possíveis grandes correcções; e além disso, algumas linhas perdem em estar menos cheias do original. Muitas curvas também não estão cortadas com a segurança suficiente, mas algumas poderão ser melhoradas. Enfim, tu verás. Não estou muito descontente, por ser o primeiro: Julgo que farei melhor segundo ou terceiro. Se achares que não está suficientemente bom para o álbum, mas que não está tão mau que não possa ser publicado, poderemos publicá-lo no próximo número da Presença, numa das páginas centrais. Aproveitaremos a oportunidade para se anunciar o teu álbum, diz nesse caso como queres que o anuncie. […]8

8 RÉGIO, José - [Carta] 1930 Nov. 15, Portalegre [a] PEREIRA, Júlio Maria dos Reis [Manuscrito]. Autogr. Acessível na Câmara Municipal de Vila do Conde.

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D’A PRESENÇA AO I SALÃO DOS INDEPENDENTES

É no esboço de uma doutrina, resultado do diálogo a várias vozes entre os principais teóricos d’a presença, tendo como principal cabeça a de Régio seguido por João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, que Julio, após a experiência enquanto aluno volun- tário da Escola de Belas Artes do Porto, encontra o seu lugar de entendimento, não só pela identificação, mas também, pela capacidade, quase inata, de os incorporar e cor- porizar na sua produção plástica. É na fôlha de arte e crítica coimbrã, novidade na cena artística e cultural portuguesa, que Julio se entende e é entendido, num espaço capaz de lhe reconhecer a herança modernista dos antecessores, tão próximos que lhe eram con- temporâneos, e, simultaneamente, identificar uma originalidade tão própria, sem escola e sem filiação, por isso, tão individual. É no campo das referências, que a narrativa agora se detém, fundamentalmente nas impulsionadas pelas experiências plásticas desenvolvidas nos anos vinte e publicadas a partir dos anos trinta, pela participação no I Salão dos Independentes. Nas propostas de Julio pressente-se Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Viana e o ca- sal Delaunay. Não se sabe se por influência directa, pois o contacto entre eles nunca apa- receu referido, nem em memórias, nem em correspondência ou biografias, apesar das favoráveis geografias de 1915. Não se sabe se por interesses e preocupações, atrações e soluções próximas, que identificam numa forma, numa cor, numa expressão, um resul- tado afim, ou se o trajecto se fez, pelo caminho dos ignorados, que é estrada de muitos artistas entregues ao esquecimento e nos quais se articula, ou pode articular, a circulação das formas, assegurando um contágio indirecto, mas efectivo e repleto de referências. Neste caminho sombrio e hipotético de aproximação às propostas plásticas de Julio, feito pelos ignorados, do qual, também ele, de certa forma faz parte, encontra-se a re- ferência a Teles de Machado, assinando Alberto de Hutra com participação do poema RIMANCE, para a presença n.º7. Com este artista, poeta e pintor, também ele membro do grupo presencista, estabelece Julio uma relação próxima, aliás significativamente atestada pela representação, no seu arquivo fotográfico e colecção de pintura, de exemplares, através dos quais é possível identificar aproximações nas soluções plásticas de ambos, pela força do primitivismo proposto, pela ingenuidade das soluções de composição, pelas cores sólidas recortadas a contorno negro. É nesta proposta plástica, em nosso entender herdeira de Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Viana e do casal Delaunay testemunhada por Teles de Machado, e adoptada, transmudada e individualizada pelo génio criativo de Julio, que este se apresenta, pela primeira vez na cena artística lisboeta, no I Salão dos Independentes, cujo título tão bem se adequa à sua personalidade artística e, simultaneamente, tão bem expressa a doutrina que o acolhe.

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A mostra da nova geração é anunciada na primeira página do Diário de Noticias, a 11 de Fevereiro de 1930, com inauguração prevista para Maio do mesmo ano, e na qual se dá conta de:

«A nova geração - artistas, poetas e músicos possuidores do sentido actual da arte que formam a moderna corrente intelectual do nosso país, vai ter a sua hora, marcar a sua posição, lem- brar ao público a sua existência como factor principal de renovação da mentalidade portuguesa. Numa reunião realizada ontem, e a que assistiram os srs. Diogo de Macedo, António Ferro, Jorge Barradas, José Tagarro, Mário Eloi, António Pedro, António de Navarro, Jorge Segurado, Arlindo Vicente, Cunha Barros, Augusto Ferreira Gomes e Luís Teixeira, ficou assente a realização para breve dum grande salão «Salão de Independentes» — telas, desenhos, esculturas, livros, conferên- cias e recitais, todos os sectores de actividade dos novos que […] vão revelar ao país o nível do seu valor na classificação das tendências contemporâneas das letras, da poesia e das belas-artes […]»9.

Julio apresenta-se à colectiva de arte em duas secções: pintura e desenho, com cinco óleos: Sinfonia da tarde, Dádiva da noite, Comediantes, Música sobre a Vila, Passeio à tarde, e três desenhos: Ânsia, Os amorosos e Página de Dostoïewsky. A crítica é deveras arrasadora. Demonstrando-se presa às soluções e modelos dos finais do século XIX, sustentadas por uma burguesia melancólica, incapaz de atender e enten- der uma arte que à data era puro ensaio de uma nova geração de artistas, pintores, poetas e músicos, que tão entusiasticamente anunciara meses antes. Merecendo, por parte de Julio, o seguinte comentário:

[…] sobre os meus quadros no Salão dos Independentes dizem que eles não agradam à maioria; […] Paciência… e basta o verbo ignorar. […]10.

A presença dedica ao I Salão dois artigos, em números diferentes: n.º 26, que abre com capa de Julio e artigo de António Navarro, e a n.º 27, com capa de Olavo, dedi- cada a Diogo de Macedo, com artigo de José Régio. Sob o título A PROPÓSITO DO I - SALÃO DOS INDEPENDENTES, Navarro toma a defesa do novo, princípio dou- trinário encabeçado desde o primeiro número da fôlha de arte e crítica, com a defesa do grupo Orpheu, na denúncia da cegueira generalizada, por parte da crítica e do público,

9 Diário de Noticias, 11 de Fevereiro de 1930. p. 1. 10 PEREIRA, Júlio Maria dos Reis [Carta] 1930, Abril, Évora [a] RÉGIO, José [Manuscrito]. Autogr. Acessível no Centro de Estudos Regianos - Vila do Conde.

238 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Maia, Rui _”uma viagem ao princípio_cumplicidades artísticas _José Régio e Julio”, 2018, pp. 229-239.

presos ao olhar viciado passadista. O artigo de duas páginas é uma espécie de introito, ao comentário de José Régio, no artigo seguinte, divagação à roda do primeiro salão dos independentes, estruturado em torno do próprio conceito de independência, vertendo-o ponto a ponto, até ao quarto - Pintura e as outras artes -, dando conta, de:

[…] quási toda a gente aplaude, em teoria, certos princípios, - e como pouca gente se conforma com eles na prática. O princípio da independência nos fornece um belo exemplo: Tôda a gente (ou quási toda) aplaude este preceito de que um artista ou um crítico devem ser independentes. Mas quando essa independência rebenta na cara dos outros… os que fingiram amá-la sentem-se como que ofendidos, vexados, limitados por ela. Amavam-na, esses, sinceramente… mas em teoria: Não tinham contado com o heroísmo que exige a aceitação da sua realidade […]11.

Relativamente à participação de Julio, o olhar de Régio na referência a outros partici- pantes identifica nas suas propostas uma aproximação à poesia e à música:

[…] não, como é evidente, por aquilo em que a poesia e da música são, tecnicamente, poesia e música numa acepção restrita, mas por aquilo em que a poesia e a música são arte e são das mais puras realizações da Arte. Tecnicamente, os quadros de Julio são pintura e os seus desenhos são desenho, — embora os valores puramente pictóricos dos seus quadros e as suas extraordinárias qualidades de desenhista originalíssimo possam não saltar aos olhos de toda a gente. Esses desenhos e esses quadros marcam uma posição à parte no Salão dos Independentes. E se forçosamente lhes quisermos procurar influências, relações e parentescos, — temos de ir a Chagall, a Grosz, aos expressionistas alemães […]12.

É pela mão de José Régio, provavelmente o crítico mais capaz e atento à obra de Julio, que nos surgem as primeiras referências internacionais às figuras de Chagall e Grosz, às quais se seguiram as de Kirchner, Kokoschka, Nolde e Beckmann, resultado da reflexão empreendida pelo literato e ensaísta na explanação em torno da expres- são e do expressionismo, logo nos primeiros números d’a presença, sob os títulos Classicismo e Modernismo e Literatura Livresca e Literatura Viva, saído este último, sob o anúncio de manifesto.

11 RÉGIO, José - “divagação à roda do primeiro salão dos independentes”. Presença - fôlha de arte e crítica. Coimbra. Vol. 27 (1930), p. 6. 12 Idem, p. 8.

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240 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Matos-Cruz, José de _”Filmografia e Presencismo”, 2018, pp. 241-251.

FILMOGRAFIA E PRESENCISMO

José de Matos-Cruz

Ao longo dos anos, personalidades com influência na PRESENÇA – FOLHA DE ARTE E CRÍTICA tiveram participação ou representatividade em alcances vários do cinema português, até à actualidade, com reflexos na televisão e incidências pelo au- diovisual. Aliás, correspondendo ao interesse que alguns desses distintos presencistas – como Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa, João Gaspar Simões ou José Régio – cedo afirmaram pela sétima arte, como fenómeno artístico, cultural e sociológico, além de manifestarem uma germinal e convergente intervenção entre nós.

Quanto à perspectiva filmográfica, que orienta esta abordagem por ordem alfabéti- ca, logo sobressai a reconstituição ficcional, que privilegiou Adolfo Casais Monteiro (1908-1972) em MENSAGEM (1988 – com interpretação de Manuel Cavaco) de Luís Vidal Lopes e PORTO DA MINHA INFÂNCIA (2001 – com Jorge Loureiro) de Manoel de Oliveira. Escreveu sobre cinema na PRESENÇA, tendo colaborado em ANIMATÓGRAFO e MOVIMENTO.

Em ANIKI-BOBÓ (1942), Manoel de Oliveira recorreu à letra das canções por Alberto de Serpa (1906-1992), a quem Manuel Mozos dedicou especial alusão em A GLÓRIA DE FAZER CINEMA EM PORTUGAL (2015), assim enquadrando: «A 18 de setembro de 1929, José Régio escreve de Vila do Conde ao seu amigo Alberto de Serpa, dando-lhe conta que fundou, com Branquinho da Fonseca, João Gaspar Si- mões, Edmundo de Bettencourt, José Oliveira Neves, Fausto José e Alves Machado, o grupo Ultra, “resolvido firmemente a criar o cinema português”. Nessa mesma missiva, Régio diz saber de um amigo de Serpa que tem uma câmara de filmar»… Escreveu sobre cinema na PRESENÇA, tendo colaborado em MOVIMENTO.

Almada Negreiros (1893-1970), que fora actor de O CONDENADO (1920) de Mário Huguin e Afonso Gaio, concebeu o genérico e os dois cartazes de A CAN- ÇÃO DE LISBOA (1933) de Cottinelli Telmo. Os seus textos inspiraram O HO- MEM QUE NÃO SABE ESCREVER (1981) de Eduardo Geada, MÁSCARA DE AÇO CONTRA ABISMO AZUL (1988) de Paulo Rocha, SWK4 (1993 – com José Wallenstein) de Edgar Pêra, UM DEGRAU PODE SER O MUNDO (2009 – sobre A ENGOMADEIRA) de Daniel Lima, HOJE ESTAMOS DE OLHOS FECHA- DOS (2010 – fragmentos) de Pedro Barateiro ou O CÁGADO (2011) de Pedro Lino. As suas visões apareceram em A ARTE E A JUSTIÇA (1967) de Perdigão Queiroga

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e TAPEÇARIA – TRADIÇÃO QUE REVIVE (1967) de António-Pedro Vasconce- los; ou nas actualidades IMAGENS DE PORTUGAL – 289 (1963) de Mário Fia- lho Lopes, OBJECTIVA – CINE-JORNAL – 49 (1968) de Mário Pires e VISOR – 227 (1970) de Perdigão Queiroga. Além de ALMADA NEGREIROS, VIVO HOJE (1969) de António de Macedo, e ALMADA, UM NOME DE GUERRA (1971-77) de Ernesto de Sousa, testemunhou em ZIP ZIP (1969) na Radiotelevisão Portuguesa/ RTP, ou (arquivo) ALMADA & TUDO (2000) de Manuel Varella, e ARTE DE SER PORTUGUÊS (2002) de Rui Nunes; ou TROVAS NOVAS – ALMADA NEGREI- ROS (1986 – com Júlio César) de Dórdio Guimarães. Em 2017-18, Museu Nacional de Soares dos Reis expôs, no Porto, JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS – DESE- NHO EM MOVIMENTO (curadoria de Mariana Pinto dos Santos), sobre a impor- tância da linguagem cinematográfica na sua obra plástica.

Resgatado na PRESENÇA, Ângelo de Lima (1872-1921) tornou-se personagem teatral a interpretar pelo actor Miguel Borges, que para tal passou três semanas no Centro Hospitalar Conde de Ferreira (Porto); tal experiência foi documentada em PARA-ME DE REPENTE O PENSAMENTO (2014) de Jorge Pelicano, colhendo o título de um soneto (previamente conhecido como TÉDIO) do poeta e pintor que ali esteve internado desde 1894, com o diagnóstico de «delírio de perseguição».

António Botto (1897-1959) foi autor da letra das canções de GADO BRAVO (1934) de António Lopes Ribeiro e Max Nosseck, tendo O SEGREDO SEGUN- DO ANTÓNIO BOTTO (2012 – com Tiago Ortis) de Rita Filipe e Maria Azevedo especulado as implicações de uma relação fictícia com Fernando Pessoa. Devotado à lírica cinéfila, colaborou em MOVIMENTO e ANIMATÓGRAFO. Foi convidado a protagonizar LE PORTRAIT DE DORIAN GRAY, projecto (1929-32) não realizado de Marcel l’Herbier sobre o romance epónimo de Oscar Wilde.

Obras de Aquilino Ribeiro (1885-1963) foram transpostas nas séries O HOMEM QUE MATOU O DIABO (1979) de António Faria, O ROMANCE DA RAPOSA (1988 – animação) de Artur Correia e Ricardo Neto, e QUANDO OS LOBOS UI- VAM (2005) de João Cayatte. Figurou AQUILINO E MESTRE ZÉ (1975) de José Nascimento, ou AQUILINO RIBEIRO NAS TERRAS DO DEMO (2004) de Antó- nio Crespo, partilhando O … NOS CAMINHOS DA LITERATURA – 3 (2010) de Francisco José Viegas. Fez parte da ficção em O DIA DO REGICÍDIO (2008 – com Pedro Carmo) de Fernando Vendrell, e teve as últimas homenagens re- ferenciadas no VISOR – 54 (1963) de Perdigão Queiroga.

Arlindo Vicente (1906-1977) compareceu em CANTIGAMENTE – 4 (1976) de António H. Escudeiro, evocando , a propósito das candidaturas de ambos à Presidência da República, em 1958.

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Decorador em VER E AMAR! (1930) e O TREVO DE QUATRO FOLHAS (1936) de Chianca de Garcia, Bernardo Marques (1898-1962) foi consultor ar- tístico de RAPSÓDIA PORTUGUESA (1958) de João Mendes. IMAGENS DE PORTUGAL – 436 (1969) de Mário Fialho Lopes, PATHÉ-RIVUS − MAGAZI- NE − 11 (1973) de Baptista Rosa, VISOR – 310 (1973) de Perdigão Queiroga, ou OBJECTIVA – CINE-JORNAL – 207 (1975) de Mário Pires reportaram exposições suas, sendo-lhe dedicados os documentários BERNARDO MARQUES (1960) de Silva Brandão, BERNARDO MARQUES (1983) de Alfredo Tropa, e BERNARDO MARQUES – O AR DE UM TEMPO (1999) de Fernando Lopes. Colaborou em AR LIVRE, IMAGEM e KINO.

Entre os virtuais comparsas que assumiram A GLÓRIA DE FAZER CINEMA EM PORTUGAL (2015) de Manuel Mozos, narrativas de Branquinho da Fonseca (1905-1974) lograram adaptação nos filmes com o mesmo título: JACK (1982) de António Manuel Silva e, realizados por Edgar Pêra, RIO TURVO (2007), O BARÃO (2011) e CAMINHOS MAGNÉTICOS (2017).

A obra essencial de Carlos de Oliveira (1921-1981) foi transposta em UMA ABE- LHA NA CHUVA (1971) de Fernando Lopes, que evocou a sua sugestão poética em CINEMA (2001) e ELEGIA POR ALGUNS FOTOGRAMAS PORTUGUESES (2007 – sobre CINEMA). Renata Sancho realizou PAISAGEM (2001 – sobre FINIS- TERRA – PAISAGEM E POVOAMENTO), e João Osório acolheu-o em GRAN- DES LIVROS – 4 - UMA ABELHA NA CHUVA (2010). Coube a Margarida Gil re- construir-lhe o universo literário em SOBRE O LADO ESQUERDO – UM FILME PARA CARLOS DE OLIVEIRA (2007). Os CONTOS TRADICIONAIS POR- TUGUESES, escolhidos com José Gomes Ferreira, inspiraram VEREDAS (1977), O AMOR DAS TRÊS ROMÃS (1979), OS DOIS SOLDADOS (1979), A MÃE (1979) e SILVESTRE (1981) de João César Monteiro, A BELA E A ROSA (1983) de Lauro António e NÃO ME CORTES O CABELO QUE MEU PAI ME PENTEOU (2003) de Margarida Gil.

Aspectos particulares da vida de Carlos Queiroz (1907-1949), com envolvimento crítico sobre a manifestação poética, foram ilustrados em CARLOS QUEIROZ (1975) de João Roque. Colaborou em IMAGEM, GIRASOL (como Rui Casanova) e KINO.

Autor do texto que explanou O DESTERRADO − VIDA E OBRA DE SOARES DOS REIS (1949) de Manuel Guimarães, Diogo de Macedo (1889-1959) teve re- trospectiva da sua carreira artística patenteada em IMAGENS DE PORTUGAL − 193 (1960) de Perdigão Queiroga.

Um dos criadores no estúdio focados em O PORTO, ESCOLA DE ARTISTAS (1967) de Manuel Guimarães, Dórdio Gomes (1890-1976) motivara exposição na

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Sociedade Nacional de Belas-Artes registada em IMAGENS DE PORTUGAL − 319 (1965) de Mário Fialho Lopes, e suscitou CARTA A MESTRE DÓRDIO GOMES (1971) de Manuel Guimarães.

Edmundo de Bettencourt (1889-1973) seria revelado como uma das personalida- des de múltiplas expressões, ligadas à PRESENÇA, pelo ano de 1929 em expectativa para A GLÓRIA DE FAZER CINEMA EM PORTUGAL (2015) de Manuel Mozos. As conotações fílmicas estiveram, também, em foco pela sua obra.

O encontro com Fernando Lopes-Graça (1906-1994) persistiu, em cinema ou te- levisão, a partir dos decisivos 27 MINUTOS COM FERNANDO LOPES-GRAÇA (1969) de António-Pedro Vasconcelos; seguiram-se CANTIGAMENTE – 4 (1976 – participação) de António H. Escudeiro, FERNANDO LOPES-GRAÇA (2006) de Graça Castanheira (incluindo entrevista gravada em 1993), ou CRÓNICA PA- RISIENSE (2012) de Luís Miguel Correia (reconstituindo a relação com Béla Bar- tók). As suas composições percorreram TRILOGIA DAS BARCAS (1969) de Artur Ramos, SEVER DO VOUGA… UMA EXPERIÊNCIA (1970) de Paulo Rocha, A TERRA DE ERMELINDA − CARTA AO ARTUR (1973) de António Faria (dirigin- do o Coro da Academia de Amadores de Música), CAMILO CASTELLO BRANCO (1975) de João Roque, CANTIGAMENTE – 3 (1976) de José Álvaro Morais, PA- REDES PINTADAS DA REVOLUÇÃO PORTUGUESA (1976) de António Cam- pos, RETALHOS DA VIDA DE UM MÉDICO (1979 – série) de Artur Ramos e Jaime Silva, DIÁLOGO (1983 – sobre PÁGINA ESQUECIDA) de João Ponces de Carvalho, ARQUITECTURA DO RABELO (1993 – sobre VIAGENS NA MINHA TERRA) de Victor Bilhete e Octávio Lixa Filgueiras, SE A MEMÓRIA EXISTE (1999 – sobre REQUIEM PARA AS VÍTIMAS DO FASCISMO) de João Botelho, VITÓRIA OU MORTE − A QUEDA DA ÍNDIA PORTUGUESA (2003) de Pedro Madeira e Jorge Queiroga, ou O VELHO DO RESTELO (2014) de Manoel de Oli- veira. As escolhas/recolhas musicais integraram ARGOZELO − À PROCURA DOS RESTOS DAS COMUNIDADES JUDAICAS (1977) de Fernando Matos Silva, MÃE GENOVEVA (1983 – sobre CANÇÕES POPULARES PORTUGUESAS) de Lauro António, TARDE DEMAIS (2000) de José Nascimento. Além de MÚSICAS FESTIVAS (2014) de Sílvia Camilo (peças para piano solo de 1962-94, dedicadas aos amigos, e participação/arquivo). Um texto seu inspirou, ainda, VIANNA DA MOT- TA − CENAS PORTUGUESAS (2000) de Sandra Fanha.

A vida e a obra de Fernando Namora (1919-1989) tiveram reflexos em cinema e televisão. A partir de RETALHOS DA VIDA DUM MÉDICO (1962 – e sobre O HOMEM DISFARÇADO) de Jorge Brum do Canto, seguiram-se DOMINGO À TARDE (1965) de António de Macedo, O TRIGO E O JOIO (1965) de Ma- nuel Guimarães (adaptação e diálogos de Namora), A NOITE E A MADRUGADA (1983) de Artur Ramos e MÁSCARA (1990) de Fátima Ribeiro; a série RETALHOS

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DA VIDA DE UM MÉDICO (1979) de Artur Ramos e Jaime Silva (coordenação histórica de Namora), ou os telefilmes RESPOSTA A MATILDE (1986 – sobre ERA UM DESCONHECIDO) de Artur Ramos e O RAPAZ DO TAMBOR (1990 – série O FOSSO E O PÊNDULO) de Vítor Silva. Além dos documentários FERNAN- DO NAMORA (1969) de Manuel Guimarães, FERNANDO NAMORA – VIDA E OBRA (1975) de Sérgio Ferreira, ou da série FERNANDO NAMORA – RETA- LHOS DA VIDA DE UM ESCRITOR (1988) de Dórdio Guimarães (a partir da última entrevista de Namora).

Sobre Fernando Pessoa (1888-1935) ou heterónimos, evoluiu um extenso e vário panorama fílmico, propondo-se da produção nacional – como alusão: AQUI, POR- TUGAL (1947) de Armando de Miranda, PAINÉIS DO PORTO (1963) de António Reis, POUSADA DAS CHAGAS − UMA REPRESENTAÇÃO SOBRE O MUSEU DE ÓBIDOS (1971) de Paulo Rocha, ENTREMEZ FAMOSO SOBRE DA PESCA NO RIO MINHO (1974) de Luís Galvão Teles, ANTES A SORTE QUE TAL MOR- TE (1981) de João Matos Silva, TRAVESSIA − VIAGEM À MEMÓRIA DO TEM- PO (1983) de António H. Escudeiro, RECONSTRUÇÃO DE LISBOA (1997) de Sérgio Gomes; como recriação: MAR PORTUGUÊS (1950) de João Mendes, ODE TRIUNFAL (1961) de António de Macedo, A METAFÍSICA DO CHOCOLATE (1967 – sobre TABACARIA) de José Fonseca e Costa, O ENCOBERTO (1975) de Fernando Lopes, A PASSAGEM DAS HORAS (1976) de João Roque, O BANQUEI- RO ANARQUISTA (1981) de Eduardo Geada, AZUL, AZUL (1983 – sobre PSICO- PATIA) de José de Sá Caetano, MAR PORTUGUÊS (1988 – animação) de Francisco Lança, A MORTE DO PRÍNCIPE (1991 – e sobre DIÁLOGOS NO JARDIM DO PALÁCIO, SALOMÉ, SAKYAMUNI) de Maria de Medeiros, FAUSTO − LEITU- RA EM 20 QUADROS (1994) de Margarida Gil, A LUZ INCERTA (1994 – sobre FAUSTO e A HORA DO DIABO) de Margarida Gil, UM MINUTO DE MODER- NIDADE (1999 – sobre ULTIMATUM) de Caroline Barraud, MISTÉRIOS DE LIS- BOA – O QUE O TURISTA DEVE VER / WHAT THE TOURIST SHOULD SEE (2008) de José Fonseca e Costa, OH! LISBOA, MEU LAR (2010 – com Fernando Cabral Martins) de João Botelho, LISBON REVISITED (2014) de Edgar Pêra; como referência: O HOMEM MULTIPLICADO − FERNANDO PESSOA (1963 – com Grupo Fernando Pessoa: Isabel Ruth, César Augusto, João D’Ávila, Norberto Barroca) de Herlander Peyroteo, FERNANDO PESSOA − VIDA E OBRA (1985) de Ferrão Katzenstein, BIOGRAFAR PESSOA (1989) de José Manuel Caixeiro, FERNANDO PESSOA − O TEATRO DO SER (1994 – com Alberto Blumenschein) de Victor Be- lém e Ricardo Rezende, A IMAGINAÇÃO ACORDADA − UMA VIAGEM COM BERNARDO SOARES (1994 – com João D’Ávila) de Raul Rodriguez, PESSOA − O VIAJANTE IMÓVEL (1995 – com José Ruas) de Isabel Calpe, O GUARDADOR DE REBANHOS (1999) de Edgar Feldman, DESASSOSSEGO DE PESSOA (2001) de Zezé Gamboa, FERNANDO PESSOA (2007) de Ricardo Rezende, PESSOA, PES- SOAS (2008) de Elvis Veiguinha e Gonçalo Paixão, DIA TRIUNFAL (2009) de Rita

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Nunes, GRANDES LIVROS – 8 - LIVRO DO DESASSOSSEGO (2009) de João Osório, 28 (2009 – animação) de José Xavier, – UMA CIDADE DE FERNANDO PESSOA (2011 – com Rui Mário, Nuno Vicente, Pedro Mendonça e Ricardo Filipe) de Fernando Carrilho e António Cunha, POESIA DE SEGUNDA CA- TEGORIA (2012 – com André Gago) de Luís Santo Vaz, O SEGREDO SEGUNDO ANTÓNIO BOTTO (2012 – com Tiago Manaia) de Rita Filipe e Maria Azevedo, O LIVREIRO DE SANTIAGO (2015 – com Bruno Correia) de José Medeiros, PES- SOAS (2015 – animação) de José Xavier; como reconstituição: CONVERSA ACABA- DA − SOBRE FERNANDO PESSOA E MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1981 – com Fernando Cabral Martins e Luiz Pacheco) de João Botelho, MENSAGEM (1988 – com Filipe Ferrer) de Luís Vidal Lopes, O MISTÉRIO DA BOCA DO INFERNO (1988 – com José Mora Ramos) de José Pina, DAISY − UM FILME PARA FERNAN- DO PESSOA (1992 – com Fernando Heitor, Diogo Dória, Luís Lucas, Adriano Luz e José Wallenstein) de Margarida Gil, FILME DO DESASSOSSEGO (2010 – com Cláudio Silva) de João Botelho. Com edição em 2011 (pesquisa de Patrício Ferrari e Cláudia Fischer), ARGUMENTOS PARA FILMES reúne textos sobre cinema de Fernando Pessoa, cujas identidade múltipla e respectiva obra compósita incentivaram, ainda, diversos filmes com produção internacional.

Um texto de Irene Lisboa/João Falco (1892-1958) enquadra o genérico de MEUS AMIGOS (1974 – sobre ESTA CIDADE!) de António da Cunha Telles, sendo a sua vida e obra analisadas em IRENE LISBOA (1992) de Animática / Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa.

De viva voz, João Gaspar Simões (1903-1987) prestou depoimento em A IDEIA E A IMAGEM – 6 - 50º ANIVERSÁRIO DA REVISTA LITERÁRIA ‘PRESENÇA’ (1977) de Álvaro Manuel Machado, e em LISBOA CULTURAL – CAPITAIS EU- ROPEIAS DA CULTURA (1983) de Manoel de Oliveira, sendo um dos presencistas vocacionados para A GLÓRIA DE FAZER CINEMA EM PORTUGAL (2015) de Manuel Mozos. Escreveu sobre cinema na PRESENÇA.

Em 1935, João Rodrigues de Freitas (1908-1976) publicou na PRESENÇA o conto OS MENINOS MILIONÁRIOS – O JOGO DOS POLÍCIAS E DOS LA- DRÕES, tendo inspirado ANIKI-BOBÓ (1942) de Manoel de Oliveira, que o evoca- ria em PORTO DA MINHA INFÂNCIA (2001 – com António Costa). Colaborou na revista MOVIMENTO.

Jorge de Sena/Teles de Abreu (1919-1978) ressurgiu em SINAIS DE VIDA − BREVE SUMÁRIO DA VIDA E DA OBRA DE JORGE DE SENA (1984 – com Mécia de Sena) de Luís Filipe Rocha, além de O ESCRITOR PRODIGIOSO − JOR- GE DE SENA (2005 – com Mécia de Sena) de Joana Pontes, ou JORGE DE SENA, ESCRITOR EXILADO – ACONTECEU (2007) de António Silva; usara da palavra

246 ARTETEORIA _ ISSN 1646-396X _ SÉRIE II _ Nº20 _ 2017 © 2018 by ARTETEORIA, All rights reserved. Matos-Cruz, José de _”Filmografia e Presencismo”, 2018, pp. 241-251. em O DIA DAS COMUNIDADES (1977) da Unidade de Produção Cinematográ- fica Nº 1. A sua obra inspirou SINAIS DE FOGO (1995) de Luís Filipe Rocha, OS SALTEADORES (1993 – animação, de OS GRÃO-CAPITÃES) de Abi Feijó, e ER- ROS MEUS (1999 – sobre SUPER FLUMINA BABYLONIS) de Jorge Cramez ou, inacabado, SIA-VUMA – OS MONUMENTOS QUEREM-SE ETERNOS (1986 – sobre CAMPANGALA NÃO RESPONDE/OS GRÃO-CAPITÃES) de Lopes Bar- bosa; e também AZUL, AZUL (1983 – sobre A TORRE…) de José de Sá Caetano, e TRAVESSIA − VIAGEM À MEMÓRIA DO TEMPO (1983) de António H. Es- cudeiro. Estimado entre autores de GRANDES LIVROS – 11 - SINAIS DE FOGO (2009) de João Osório, trocou com Sophia de Mello Breyner Andresen, em 1959-78, CORRESPONDÊNCIAS (2016) de Rita Azevedo Gomes. Crítico de sétima arte em MUNDO LITERÁRIO, em 1988 foram reunidos os seus comentários SOBRE CINEMA, co-organizados por Mécia de Sena e abrangendo o período de 1946-66.

José Gomes Ferreira (1900-1985) foi autor das legendas e intérprete de VER E AMAR! (1930) de Chianca de Garcia, assistente de montagem de A CANÇÃO DE LISBOA (1933) de Cottinelli Telmo, e assistente de realização e co-adaptador de O TREVO DE QUATRO FOLHAS (1936) de Chianca de Garcia, para quem co- laborou no argumento de ALDEIA DA ROUPA BRANCA (1938). Os seus poe- mas ressoaram em PONTO FINAL PARÁGRAFO (1975 – com Rui Pedro) de João Roque, e HISTÓRIAS SELVAGENS (1978) de António Campos. Os CONTOS TRADICIONAIS PORTUGUESES, escolhidos com Carlos de Oliveira, inspiraram VEREDAS (1977), O AMOR DAS TRÊS ROMÃS (1979), OS DOIS SOLDADOS (1979), A MÃE (1979) e SILVESTRE (1981) de João César Monteiro, A BELA E A ROSA (1983) de Lauro António e NÃO ME CORTES O CABELO QUE MEU PAI ME PENTEOU (2003) de Margarida Gil; além de incentivar JOÃO SEM MEDO (2005 – sobre AS AVENTURAS DE JOÃO SEM MEDO) de Luís da Matta Almei- da. Avistado em AS ARMAS E O POVO (1975) de Colectivo dos Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, e depondo em FÉLIX RIBEIRO − DR. CELULÓIDE (1980) de Leonel Brito, ou (arquivo) em SONHAR ERA FÁCIL (2012) de António- -Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira, fundamentou JOSÉ GOMES FERREIRA − UM HOMEM DO TAMANHO DO SÉCULO (2001 – com João Mota) de António Cunha, que incluiu a sua peça para piano VALSA DAS FOLHAS SECAS CAINDO. Escreveu sobre cinema na PRESENÇA, tendo colaborado em IMAGEM (redactor), GIRASOL e KINO. Fez tradução de legendagem para filmes (como Álvaro Gomes).

Da estreita e versátil ligação entre José Régio (1901-1969) e Manoel de Oliveira, este iniciou (em 1959) UM FILME SOBRE JOSÉ RÉGIO para o multifilme PAL- CO DE UM POVO, e cujos materiais revitalizou (em 2008) com a trilogia DO- CUMENTÁRIO SOBRE RÉGIO (sobre A SANTA MORTA e O ROMANCE DE VILA DO CONDE), O POETA DOIDO, O VITRAL E A SANTA MORTA e A VIDA E A MORTE – O ROMANCE DE VILA DO CONDE. Régio foi consultor

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intelectual de O ACTO DA PRIMAVERA (1962), e desvendou AS PINTURAS DO MEU IRMÃO JÚLIO (1965) sobre Júlio Maria dos Reis Pereira/Saul Dias. Ma- noel de Oliveira transpôs ainda BENILDE OU A VIRGEM-MÃE (1974), O MEU CASO (1986), A DIVINA COMÉDIA (1991 – extractos) e O QUINTO IMPÉ- RIO – ONTEM COMO HOJE (2004 – sobre EL-REI SEBASTIÃO). Outras obras resultaram em O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO (1979) de António de Macedo, e O VESTIDO COR DE FOGO (1985) de Lauro António, além dos exercícios OS HABITANTES DE AQUELA CASA (1967 – sobre A LONGA LÁ- PIDE/FILHO DO HOMEM) de Ernesto de Oliveira, TOADA DE PORTALEGRE (1977) de David Quintans e CÂNTICO NEGRO (2008) de Hélder Magalhães, ou das evocações FADO – LISBOA 68 (1968) de António de Macedo e PORTALEGRE (1980) de Fernando F. Garcia. Prestou depoimento (arquivo) em COM QUE VOZ (2009) de Nicholas Oulman, sobre Amália Rodrigues e Alain Oulman. Escreveu so- bre cinema na PRESENÇA, tendo colaborado em MOVIMENTO. Régio lideraria, afinal, os parceiros congregados, em 1929, para A GLÓRIA DE FAZER CINEMA EM PORTUGAL (2015) de Manuel Mozos…

Sobre Júlio Maria dos Reis Pereira/Saul Dias (1902-1983), José Régio cedeu o texto e os poemas, e apresentou AS PINTURAS DO MEU IRMÃO JÚLIO (1965) de Manoel de Oliveira, animando as imagens de uma memória nostálgica, albergadas na casa onde nasceram, em Vila do Conde.

Um retrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), pelo olhar de Arpad Szenes (1897-1985), distinguiu MA FEMME CHAMADA BICHO (1976) de José Álvaro Morais. Outras visões das suas vida e obra formaram VIEIRA DA SILVA − A MEMÓRIA DO MUNDO (2005) de Alexandre Reina, assinalando o percurso por Portugal, Paris e Brasil, com VIEIRA DA SILVA (2004) de Videófono focando os dez anos da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, em Lisboa. Aspectos de exposições surgiram em OBJECTIVA – CINE-JORNAL – 57 (1969 – tapeçaria) e OBJECTIVA – CINE-JORNAL – 91 (1970) de Mário Pires, A PINTURA DE VIEIRA DA SILVA (1972 – na Fundação Calouste Gulbenkian) de Baptista Rosa, ou MAGAZINE RI- VUS-TELECINE − 2 (1980) de Telecine-Moro. Além do testemunho (arquivo) em ARTE DE SER PORTUGUÊS (2002) de Rui Nunes, AU FILS DU TEMPS – PER- CURSO FOTOBIOGRÁFICO DE MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA (2008) foi registado por Escola Superior de Teatro e Cinema/ESTC, no ano de centenário do nascimento. A personalidade e a carreira incentivaram, ainda, documentários com produção internacional.

Consagrado na PRESENÇA, Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) culminou CONVERSA ACABADA − SOBRE FERNANDO PESSOA E MÁRIO DE SÁ- -CARNEIRO (1981 – com André Gomes) de João Botelho, em vivências circunscri- tas por QUASE (1991) de Francisco Manso e O ESTRANHO CASO DO MÁRIO

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DE SÁ-CARNEIRO (2016) de Paulo Seabra. A sua escrita persistiu em O SOM DA TERRA A TREMER (1990 – extractos) de Rita Azevedo Gomes, RETRATO DE FAMÍLIA (1991 – sobre O INCESTO) de Luís Galvão Teles, PÁGINA DE UM SUICIDA (1996) de Carla Carreira, ou DOIS DIÁRIOS E UM AZULEJO (2002) de Afonso Cruz, Luís Alvoeiro e Jorge Margarido.

A pintura de Mário Eloy (1900-1951) foi divulgada nas IMAGENS DE PORTU- GAL − 133 (1958) de António Lopes Ribeiro, e revista em HISTÓRIAS AOS QUA- DRINHOS – 3 - A ILHA QUE FEZ TREMER RUBEN TERRAMOTO (2010 – com Jonas Lopes) de Lígia Ribeiro, além do destaque ELOY − O PINTOR EM FUGA (1997) de Luís Alves de Matos.

Miguel Torga/Adolfo Correia da Rocha (1907-1995) testemunhou EU, MI- GUEL TORGA (1979-87) de João Roque, e foi revisitado em MIGUEL TORGA − O MEU PORTUGAL (2007 – com José Pinto) de Luís Costa, A TERRA ANTES DO CÉU (2007 – com José Pinto) de João Botelho, O DOURO… NOS CAMI- NHOS DA LITERATURA – 7 (2010) de Francisco José Viegas, ou GRANDES LIVROS – 5 - BICHOS (2010) de João Osório. Além de O SENHOR (1959) de António Campos e A CIDADE (1968 – sobre DIÁRIO) de José Fonseca e Costa, ins- pirou O LEPROSO (1975), UM ROUBO (1975) e O MILAGRE (1978) de Sinde Filipe. Seguindo-se O VINHO (1987) de Carlos M. Vasconcellos, NICOLAU (2001 – sobre O SENHOR NICOLAU) de Maria João Clemente, REGRESSO A CASA − CONTOS DE NATAL – 1 (2006 – sobre NATAL) de João Maia, ou FRONTEIRA (2014) de António Lopes.

Olavo d’Eça Leal (1908-1976) foi assistente de montagem em A SEVERA (1931) de Leitão de Barros, e de realização em A REVOLUÇÃO DE MAIO (1937) de An- tónio Lopes Ribeiro. Fez a locução em O MOSQUITO, INIMIGO DO HOMEM (1940) de Adolfo Coelho, MONUMENTOS NACIONAIS (1942) de Lino Antó- nio, A PÓVOA DE VARZIM (1942) de Leitão de Barros e O CAMINHO DA VIDA (1943) de Arthur Duarte. Intérprete de SONHO DE AMOR (1945) de Carlos Por- fírio, e de LADRÃO, PRECISA-SE!… (1946) de Jorge Brum do Canto, participou em SINTRA, JARDIM DE PORTUGAL (1947) de Galveias Rodrigues. Produziu e realizou VIDA E MORTE DOS PORCOS (1957). Para a Radiotelevisão Portugue- sa/RTP, concebeu o argumento das séries QUANDO O SOL NASCE (1961), UM QUARTO COM VISTA PARA O MAR (1963), RELAÇÕES SOCIAIS (1965), SETE PECADOS MORTAIS (1966) ou UMA VELHA QUE TINHA UM GATO (1966); e dos telefilmes HISTÓRIA DE NATAL (1960), A TERCEIRA HISTÓ- RIA (1960), UMA NOITE DE PAZ (1960), AS TRÊS CAUSAS DIFÍCEIS (1960), TRÊS HISTÓRIAS PERIGOSAS (1961), O ANTIQUÁRIO (1962), A ARTE DI- FÍCIL DA BUROCRACIA (1962), A ESTÁTUA (1962), AS LUVAS (1962), O PEI- XE DOURADO (1962), O RELÓGIO PERDIDO (1962), A ROSA VERMELHA

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(1962), O SENHOR DOUTOR PARTIU UM BRAÇO (1962), UM CASEBRE PARA A VELHICE (1962), A VELHICE BATE-LHE À PORTA (1962), O VIZI- NHO DO SEGUNDO ANDAR (1962), O FEITOR QUE DESCEU À CIDADE (1966), FELIZ NATAL, SENHOR DOUTOR (1966), A FRONTEIRA (1966), A CASA DE SIMÃO LEONARDO (1967), O PROCESSO ARQUIVADO (1967), O SENHOR AURÉLIO (1967), O ANÚNCIO (1968), O MENSAGEIRO (1968), OS QUINTOS D’EL-REI (1968), A TERCEIRA NAVALHA (1968) ou UMA NOVA ESPERANÇA (1968). A inauguração de uma Exposição de Desenhos na Jun- ta de Turismo da Costa do Sol/Cascais surgiu em VISOR − 249 (1970) de Perdigão Queiroga. Colaborou em CINELÂNDIA, IMAGEM, GIRASOL e KINO, além de crónicas em CONTEMPORÂNEA, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, O SÉCULO, DIÁ- RIO POPULAR e DIÁRIO DE LISBOA. Fez filmes de publicidade. Da sua obra, foi transposto IRATAN E IRACEMA − OS MENINOS MAIS MALCRIADOS DO MUNDO… (1987) por seu filho Paulo-Guilherme.

Na Radiotelevisão Portuguesa/RTP, Pedro Homem de Mello (1904-1984) foi au- tor e apresentador de DANÇAS E CANTARES (Anos 1960-70), esteve em destaque nos POETAS DE HOJE E DE SEMPRE (1964) de David Mourão-Ferreira, ou no- ticiado em PEDRO HOMEM DE MELLO – SESSÃO DE AUTÓGRAFOS NA LIVRARIA PORTUGAL/LISBOA (1971) para lançamento de FANDANGUEIRO. Em grande ecrã, comentou (folclore) A GOTA DO ALTO MINHO (1962) e O MALHÃO (1962) de Justino Alves, tendo inspirado a expressão poética de PAINÉIS DO PORTO (1963) de António Reis ou, como ficção musical do fado, FECHO OS OLHOS, VEJO A NOITE (1912) de João Botelho. Prestou depoimento (arquivo) em AMÁLIA, UMA ESTRANHA FORMA DE VIDA (1995) de Bruno de Almeida, AMÁLIA, AMÁ-LA (2009) de Maria João Gama e COM QUE VOZ (2009) de Ni- cholas Oulman, sobre Amália Rodrigues (e Alain Oulman).

Sarah Afonso (1899-1983) teve o seu itinerário essencial ou criativo descrito, co- mentado e ilustrado em SARAH AFONSO: BIOGRAFIA DO CENTENÁRIO – 1899-1999 (1999) de Manuel Varella, assinalando o ano de nascimento.

Tomaz de Figueiredo (1902-1970) viu a peça A BARBA DO MENINO JESUS adaptada em telefilme (1964) de Luís Miranda, e teria o romance A TOCA DO LOBO como título do documentário (2015) em que Catarina Mourão, de quem era avô materno, abordou aspectos da relação familiar, e Lisboa ao tempo do Estado Novo.

A vida e a obra de Vitorino Nemésio (1901-1978) reflectiram-se em grande e pequeno ecrãs, cabendo destacar a série MAU TEMPO NO CANAL (1992) de José Medeiros. A sua intervenção pública surgiu em IMAGENS DE PORTUGAL − 108 (1957) de António Lopes Ribeiro, ACTUALIDADES DE ANGOLA − 40 (1959) de

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João Silva e António de Sousa, V CENTENÁRIO DE GIL VICENTE (1966) de Fa- ria de Almeida, ou PATHÉ-RIVUS – MAGAZINE – 12 (1974) de Baptista Rosa. Na Radiotelevisão Portuguesa/RTP, desenvolveu os dotes de comunicador em SE BEM ME LEMBRO… (1969-75), e foi distinguido durante IMAGENS DA POESIA EU- ROPEIA (1969-74) de David Mourão-Ferreira. A expressão criativa ficou patente em ILHA DO HEROÍSMO (1979) de Dórdio Guimarães, OS AÇORES VISTOS POR VITORINO NEMÉSIO (1985) de Carlos Machado, PEDRA DE CANTO (1991- 92) de Regina Guimarães/Corbe, ou A VOZ E O ROSTO − BREVE CRÓNICA DA ILHA DO CORVO (1995 – sobre O CORVO) de José Medeiros. Com um amplo detalhe sobre o homem e o autor em VITORINO NEMÉSIO − VIAGEM – 1901- 1978 (1997) de Maria João Rocha, logrou referência fundamental em GRANDES LIVROS – 7 - MAU TEMPO NO CANAL (2009) de João Osório.

Ainda entre os presencistas, Mário Saa (1893-1971) colaborou em CINELÂN- DIA; por 1929, Manoel de Oliveira concebeu histórias para filmes de animação, a concretizar com Ventura Porfírio (1908-1998); Afonso Duarte (1884-1958), Ale- xandre de Aragão (1903-1930), António Ramos de Almeida (1912-1961) e Del- fim Santos (1907-1966)dissertaram, ou dedicaram parte da sua actividade crítica/ analítica ao cinema; sensível ao fenómeno fílmico, Mário Dionísio (1916-1993) foi Director de Programas da Radiotelevisão Portuguesa/RTP em Dezembro de 1975, demitindo-se ao fim de alguns meses.

Em 1977, Radiotelevisão Portuguesa/RTP emitiu A IDEIA E A IMAGEM – 6 - 50º ANIVERSÁRIO DA REVISTA LITERÁRIA ‘PRESENÇA’, com autoria e apre- sentação de Álvaro Manuel Machado, e testemunho de João Gaspar Simões.

Em 2010, foi publicado POEMAS COM CINEMA (organização de Rosa Maria Martelo, Joana Matos Frias e Luís Miguel Queirós), envolvendo diversas personalida- des relacionadas com a PRESENÇA – FOLHA DE ARTE E CRÍTICA.

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BERNARDO PINTO DE ALMEIDA, ARTE PORTUGUESA NO SÉCULO XX: UMA HISTÓRIA CRÍTICA. MATOSINHOS: CORAL BOOKS, 2016. 496 PP., ISBN: 978-989-8851-08-6

A Direcção

Este livro, intitulado Arte Portuguesa no Século XX: Uma História Crítica, cons- titui-se um tentame de reflexão global, crítica e sistematizada, da arte portuguesa do século XX, tendo em conta a multímoda expressão de artistas, movimentos, estéticas e correntes doutrinárias que, a seu modo, concorrem para as formas da arte portuguesa no novecentismo. Para além dos estudos monográficos sobre vários artistas, épocas, ou movimentos (releva neste contexto a monografia de Amadeo, da autoria de José-Augusto França, publicada em 1957 pela Editorial Inquérito, e re-editada em 1972), registam-se, pelo menos, e no último meio século, cinco exames da arte do século XX em Portugal, inseridos em correspondentes Histórias da Arte; independentemente do maior ou menor desenvolvimento que dão à arte do século XX, a obra de Bernardo Pinto de Almeida beneficia do conhecimento dos modelos interpretativos vigentes e com eles tenta dialogar, muito em particular com a proposta exegética de José-Augusto França para o modernismo português, a partir de uma leitura comparativa com o modernismo afirmado além-fronteiras. Neste contexto, Bernardo Pinto de Almeida (BPA) propõe uma genealogia alter- nativa para o modernismo português, situada numa linhagem distinta daquela que de um modo modo aparentemente hegemónico vigiu nos últimos cinquenta anos , ou seja, o autor radica a matriz das vanguardas portuguesas no simbolismo, maio- ritariamente na obra de António Carneiro — que, a seu ver, faz a transição entre a modernidade e o modernismo — (p. 47), e, em parte, no legado de Aurélia de Sousa (pp. 48-58), sendo que, corrobora o ensaísta, o programa estético do moder- nismo em Portugal ficou a cargo dos órficos, e foi estatuído maioritariamente no texto “A Lei de Malthus da Sensibilidade”, de Fernando Pessoa, no qual, e através de Álvaro de Campos, defende uma absolutização da sensação.

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Enquanto fenómeno estético de dimensão internacional, o modernismo na arte portuguesa é analisado a partir das coordenadas que poderão já anunciar o surgi- mento das vanguardas em Portugal, mesmo se exíguas, como refere. Seja como for, BPA interpreta a transição do simbolismo para o modernismo em Portugal pelo conjunto de acontecimentos artísticos que ocorreram na Europa, particularmente em França, na Bélgica e nos países nórdicos, sob o signo de progressivos sinais do abandono do naturalismo e do realismo. O autor avança ainda que o que apelida de “desfiguração do real”, de que o simbolismo é um dos movimentos responsáveis, abriu caminho a uma dupla via que caracteriza o modernismo: a vida expressionis- ta e a via construtivista (p. 48). À tese de que o modernismo português engloba os artistas “modernizantes” e “modernistas”, defendida pelo autor de A Arte em Portugal no Século XX, BPA opõe a tese do “ciclo intermitente do modernismo português” (p. 58). Se esta História Crítica procura ainda legitimar-se a partir da formulação de uma coerente teoria da arte portuguesa na sua correlação com o fenómeno artístico internacional, busca, no entanto, para ela uma unidade a partir do seu desenvolvimento histórico, nele procurando detectar os traços e a originalidade que configuraram a sua feição ou especificidade (p. 20). Como hipótese de verdade, o autor coloca o simbolismo, e os seus pressupostos estéticos, como uma das causas directas da afirmação do modernismo pelos artistas nacionais, embora, à partida, a empresa ofereça dificul- dades acrescidas, se atentarmos no rumo que os artistas deram à arte portuguesa posteriormente, ou seja, logo depois dos dois gloriosos anos que medeiam entre 1915-1917, deduzindo também o ensaísta que o impulso literário terá sido deter- minante para o modernismo português, pressuposto que deverá obrigatoriamente abrir-se à dimensão filosófica que o movimento de Orpheu também possui. Num segundo momento, é possível detectar a posição epistemológica subjacente ao li- vro, que é aquela que, no limite, serve também de moldura a uma particular noção da História enquanto “saber desterritorializado”, a partir de uma dimensão inter- pretativa que implica para o autor um “caráter fictivo”, inerente à tarefa exegética dos factos artísticos, num território que se pretende soberano, e no qual também a crítica, que o autor exerceu com frequência, se inscreve, dada a sua natureza igualmente criativa. São conhecidas as diversas concepções de História, de Aristóteles a Gadamer, sen- do que, no limite, o acto criador supera a História, dado o seu valor ontológico universal, posição que BPA parece perfilhar, mesmo se não deixa de sublinhar, na inteligibilidade da tarefa hermenêutica e crítica, uma dimensão criativa. Aliás, é curiosa a articulação que o autor estabelece entre a História da Arte e a Crítica de Arte, enquanto disciplinas, reservando para esta última o espaço resultante da inter- secção do movimento da História da Arte com o movimento da Criação Artística. Assumindo o modernismo como uma “forma do tempo”, ou seja, como um pe- ríodo histórico de referências artísticas e estéticas aferíveis num tempo e num espa- ço alargados, o que constituiu uma subjectividade pré-anunciada por Baudelaire na

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“sistemas de representação”, o qual serve de âncora para a compreensão do uso dos vários media assim como da própria condição pós-medial da arte contemporânea, notando-se, contudo — e tendo em conta o que o autor tentou fazer para a arte portuguesa da primeira metade do século XX —, uma sistematização menor no que toca às relação entre as obras de artistas que surgiram, sobretudo a partir da década de 1980; na verdade, existem afinidades entre as suas obras que à primeira vista não são evidentes, afinidades, inclusive, teórico-programáticas e conceptuais entre artistas de diferentes gerações, facto que poderá levar, numa segunda edição, a uma outra arrumação crítica, historiográfica e estética deste período.

256 capa fac-símile cedido pela Câmara Municipal de Vila do Conde. ARTETEORIA SÉRIE II Nº 20