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PARTEPA P a A r FAZ FAZFA F i TO e NTO N f - MENTO a t x SUPLE SU E e TE é o novo álbum é o novo de uma banda omnipresente Hoje, agora, agora, Hoje, no as cores têm horizonte um nome, Impala Tame Rush The Slow S ESTE E

003c6ff9-9d7f-4712-9020-bc25c6eabfb7 Há uma festa na cabeça dele e estamos todos convidados De um local improvável e de forma improvável, , anulando barreiras estéticas e cronológicas, transformou os seus em banda farol do nosso tempo. , um dos álbuns mais aguardados do ano, é editado esta sexta-feira. Mário Lopes NEIL KRUG

2 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 interior de uma casa invadida pela areia do de- defini-los claramente), cronológicas (não existe presente serto. Um cenário misterioso, irreal, com o ver- e passado, existem todos os tempos a chocarem entre si) melho quente do interior a contrastar com os e éticas (a batalha mainstream vs independente, comer- padrões desenhados no monte arenoso do de- cial vs artístico, é hoje um penoso anacronismo) parecem serto que tomou conta daquele espaço outrora ter sido abolidas. O íntimo. A foto foi tirada em Kolmaskop pelo fo- Foi com o terceiro álbum, Currents, que os Tame Im- tógrafo americano Neil Krug. Trata-se de uma cidade pala se tornaram toda uma outra entidade. Não é banda namibiana que acolheu uma comunidade que vivia da rock, mas alimenta-se do seu legado e dos seus códigos. The Slow extracção de diamantes. Desaparecidas as pedras pre- Não é obra de um produtor de música electrónica, mas Rush ciosas, definhou e foi abandonada nos anos 1950. Restam essa influência é notória e os seus métodos de trabalho Tame Impala as memórias do que foi, as casas e os recheios deixados são componente no seu som. Não é , nem R&B, Fiction; distri. intactos quando a população se mudou em busca de mas é impossível compreendê-los sem ter como pano de Caroline Portugal novas fileiras de diamantes. Lentamente, o deserto re- fundo o impacto massivo que ambas as linguagens têm clamou novamente o seu espaço, moldando-se à cidade na música contemporânea. Não é trabalho de um com- mmmmm agora fantasma. positor que emprega todo o seu labor na forma como as A foto faz a capa do quarto álbum dos Tame Impala, melodias se casam com as palavras, mas Parker confessa The Slow Rush, editado esta sexta-feira. São banda de um que, sem as palavras, se sente incapaz de criar música homem só, Kevin Parker, uma criação solitária que trans- significativa. Tame Impala é tudo isso ao mesmo tempo formou misantropia em manifestação de comunidade. e toca em pontos sensíveis, responsáveis pela empatia Parker que, incapaz de criar o que quer que seja na com- que gera. Há algo de terapêutico na sua música, um re- panhia de outro ser humano, tornou a sua música ubí- gresso a um idílio perdido — e isso só pode ser bem-vindo qua, uma presença real ou fantasmática nos festivais que nestes tempos de tumulto e incerteza: “If there was trou- pululam mundo fora, nas playlists pessoais ou institu- ble, we didn’t know”, diz um dos primeiros versos do novo cionais, no som de bandas rock a fazer o seu caminho álbum. Neste sentido, a capa de The Slow Rush assenta ou de produtores de música electrónica, nas canções de bem a esta música: uma solidão intensa, mas incrivel- estrelas do hip e do r&b, nos créditos de de Kanye mente apelativa, uma sensação de irrealidade eivada de West, de Rihanna, de . estranha familiaridade, uma fantasia escapista, mas mar- The Slow Rush demorou longos cinco anos a ser criado. cada por uma indefinível sensação de perda. De Solitude Foi anunciado para meados de 2019, mas o perfeccionista is bliss, uma das melhores canções de , guar- Parker decidiu que ainda precisava de ser melhorado. Em dámos uma frase: “there’s a party in my head and no one’s Novembro do ano anterior, sofrera um contratempo com invited”. A festa na cabeça de Parker continua, mas está o dramatismo ideal para incluir na mitologia da banda. agora preenchidíssima (e fomos todos convidados). Os gigantescos incêndios na Califórnia a aproximarem-se da casa que alugara em Malibu para gravações e ele a Todas as tintas do pintor acordar, ainda ressacado da noite anterior (a marijuana “O que virá a seguir é, basicamente, uma tela em branco”, e o álcool fazem parte do processo criativo — é a forma de dizia Kevin Parker à imprensa neo-zelandesa em 2016, se libertar de inibições, argumenta). Com fumo intenso um ano depois de Currents. Não era uma negação do seu na paisagem e avisos de evacuação no telemóvel, só teve passado “psych” e rock’n’roller, antes a afirmação de uma tempo de pegar no computador e no baixo Hofner com criatividade que se assumia mais vasta. Foi em Currents que gravou todos os álbuns de Tame Impala e de fugir para que as paisagens sonhadoras e expansivas que sempre longe dali, deixando para trás equipamento no valor de foram características da sua música ganharam novos con- 27 mil euros que acabaria consumido pelas chamas. tornos, emolduradas em sintético, à , em The Slow Rush é álbum de um músico que, desde um subtexto house e R&B inserido em canção confessional, lugar improvável, , extremo ocidental da Austrália, em planar psicadélico pairando sobre dolente mar soft- e de uma forma igualmente improvável — recorde-se que rock. Foi esse álbum que lhe deu o passaporte para o Innerspeaker, o primeiro álbum, editado em 2010, era mundo cintilante do estrelato: Rihanna a gravar uma ver- “apenas” obra-prima de rock psicadélico —, se transfor- são de New person, same old mistakes no álbum Anti, Lady mou numa das mais influentes figuras da actualidade, Gaga, , e Mos Def a convocá-lo no arquétipo de um novo ser em forma de estrela, na como parceiro de composição. “O que virá a seguir é, representação perfeita (pelo alcance da criação e pela basicamente, uma tela em branco”, dizia então. Não se forma como essa criação se alojou no topo do mundo) tratava de bloqueio criativo. “Uma tela em branco no bom de um mundo em que as fronteiras estéticas (a profusão sentido”, clarificava. “Tenho todas as tintas”. The Slow de novos géneros é apenas sintoma da dificuldade em Rush mostra a profusão de cores que utilizou. e

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 3 The Slow Rush é um prodígio de produção e é concretização de uma visão em que nada é negado e tudo é passível de utilização PAULO PIMENTA PAULO

The Slow Rush é álbum de um músico que, desde um lugar improvável, Perth, no da Austrália, e de uma forma igualmente improvável, se transformou numa das m e mais influentes figuras da actualidade, no arquétipo de um novo ser em forma

4 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 e Introduz-nos em The Slow Rush uma voz robótica edita R&B progressista enquanto . Este úl- envolvida em mancha de sintetizador e uma batida que timo, contou mais tarde Ronson, passou o tempo a elogiar poderia ser dos Chemical Brothers, caso estes fossem da- Parker: “Quando editaste aquele [Currents, 2015], PAULO PIMENTA PAULO dos à contemplação. E depois há pianada resgatada à transformaste a cultura”, ou seja, dizia o canadiano Abel house, há percussões em fundo, há aquela voz frágil a que o australiano Parker provocara uma mudança de pa- transmitir conforto e esperança. Estamos em One more radigma na expressão artística que partilham, a música. year, a primeira canção. Aquilo que impressiona, daí para Tame Impala, a banda nascida em Perth, cidade iso- a frente, é a assombrosa habilidade de Parker para o sin- lada no sudoeste australiano, a quatro mil quilómetros cretismo. Coexistem aqui groove funk sintético, entre de Sidney, foi primeiro celebrada e influentíssima lumi- Prince e Herbie Hancock, com acordes solares no piano e nária do neo-psicadelismo rock que marcou a primeira fraseado R&B na forma como os versos cantados se fazem metade da década de 2010 — eram os tempos do álbum também eles componente rítmica (Breathe deeper). Ouvi- de estreia, Innerspeaker. Foram depois, quando chegou mos Tomorrow’s dust e é uma guitarra acústica a guiar o (2012), banda de êxito transversal, alicerçado caminho entre delicadezas soul-folk, qual Lou Bond ati- no stomp rock’n’roll polvilhado de glam do single Elephant rado para o futuro, com ritmo a encorpar-se e Mellotron e num som que se expandiu, integrando sintetizadores a acentuar o travo nostálgico, terapêutico, de uma canção- esvoaçantes e sensibilidade pop apurada. preciosidade. Ao longo de 50 minutos, há viagens prog Tudo continuava a ser criado por um tímido incorri- que compactam quatro décadas em seis minutos — Phos- gível fechado num quarto-estúdio em Perth, a saltar da tumous forgiveness atravessa os anos 1970 e sobrevoa o bateria para o baixo, a pegar na guitarra e a baixar os psicadelismo french touch dos Air até chegar ao século dedos sobre os teclados. Ali ficava, a gravar em fita, à XXI —, há pulsação criada com instrumentos acús- antiga, e a passar as gravações para o computador, ma- ticos, com Moog a levitar no ritmo (Is it true). Há um piscar nipulando o som como mago da electrónica. Só saía do de olho ao rock progressivo convertido em canção dos isolamento para reunir os amigos de adolescência que Supertramp (), que desagua em batida to- formam a sua banda de palco. Quanto à sua música, con- nitruante com sintetizadores irados como sirenes. The Slow tinuava a expandir-se. Não falamos agora da abrangência Rush é um prodígio de produção e é concretização de uma estética, mas dos ouvidos a que chegava. , visão em que nada é negado e tudo é passível de utilização o produtor de Amy Winehouse ou Adele, o autor de Up- (Instant destiny tem nos alicerces uma balada R&B de town Funk, tornou-se fã número 1, e alguns dos actores Bruno Mars; One more hour, a despedida, é um épico prog- mais criativos do hip hop mostraram-se atentos: Tyler, rock com canção confessional no seu âmago; Lost in yes- The Creator gritou aos quatro ventos que Lonerism era terday é a ideia de psicadelismo maravilhosamente apli- obra de génio, Kendrick Lamar e A$ap Rocky samplaram cada a rebuçado pop para rádios e pistas de dança). Feels like we only go backwards. Parafraseando Alex Tur- Em Slow Rush procura-se um equilíbrio, por natureza ner, estava a formar-se uma tempestade perfeita em instável, que nem sempre é conseguido — On track tem forma de Tame Impala e Kevin Parker era o seu manda- ares de electrónica lounge genérica, muito anos 1990, a chuva. Foi isso que nos disse Currents, o terceiro álbum, vender-nos conselhos de auto-ajuda. Impressiona, po- é isso que nos tem mostrado o longo tempo de espera rém, como durante a maior parte do tempo, o quarto até à chegada de The Slow Rush. álbum dos Tame Impala nos convence da visão do seu Estudante de engenharia na Universidade, curso que criador, melhor, como nos faz acreditar nela e fruí-la sem trocaria pelo de Astronomia, que não concluiu, e filho nos determos na dissecação de cada um dos elementos de um casal de imigrantes (o pai, a quem dedica no novo que a compõem. A música surge-nos inteira o que, tendo álbum Phostumous forgiveness e que morreu quando a em conta a sua natureza, é notável. carreira do filho arrancava, vindo do Zimbabué, a mãe nascida na África do Sul) que se separou e que, depois Ele controla o tempo de refazer a vida, decidiu voltar ao ponto de partida (os No Verão de 2013, no palco principal do Open’er Festival, pais voltaram a juntar-se e voltaram a divorciar-se pouco em Gdynia, Polónia, , dos , depois), Kevin foi desde a adolescência tímido incorrigí- improvisou versos soltos dedicados à banda que os ante- vel. Refugiava-se na música e nos amigos vindos da in- cedera. “There’s a storm brewing/ In the form of Tame Im- fância, que seriam também aqueles que formaram o pala”, entoou antes da proclamação definitiva: “Kevin núcleo de rock psicadélico de Perth de onde saíram Tame Parker controls the weather system”. Alguns anos depois, Impala ou os óptimos Pond. O crescimento nessa bolha na intimidade de um estúdio onde estavam o tal homem criativa revelar-se-ia fundamental. “Estávamos tão longe que controla o tempo, o produtor-estrela e compositor de tudo que não aderíamos a nenhumas regras, nem Mark Ronson e Abel Makkonen Tesfaye, o músico que sentíamos que tivéssemos de o fazer”, dizia há se- e no extremo ocidental s maiores ma de estrela

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 5 Os Tame Impala são banda de um homem só, Kevin Parker, uma criação solitária que transformou misantropia em manifestação de comunidade. Parker que, incapaz de criar o que quer que seja na companhia de outro ser humano, tornou a sua música ubíqua no som de bandas rock a fazer o seu caminho ou de produtores de música electrónica, nas canções de estrelas do hip e do r&b

e manas a manager de Parker, Jodie Regan, vinda ainda desses tempos fundadores. “Não havia qualquer hipótese MATT SAV MATT de alguém ligado à indústria aparecer num concerto, por- tanto toda a gente podia fazer o que quisesse, testando o que resultava ou não”. Passado todo este tempo, esse espírito independente continua a ser uma marca de Parker. Quando questionado acerca da carta branca que lhe é dada pela sua editora, que não o pressiona em qualquer matéria musical, confirma que assim é, mas sugere uma razão prosaica: o orçamento para a gravações dos seus álbuns, dizia à Billboard, é pró- ximo do zero. Parker só consegue gravar em estúdios ca- seiros, com o seu equipamento e não conseguiria tolerar apoio de tévnicos para ajudar no processo. Na contagem decrescente para The Slow Rush, vimos Kevin em capas da Billboard, da Esquire e da GQ, vimo-lo alvo de artigos na New York Times ou na , vi- mo-lo dissecado na imprensa e enfiado em produções de moda. Assistimos à sua entronização enquanto figura do estrelato americano, quando os Tame Impala subiram ao palco de Coachella como cabeças-de-cartaz do mais im- portante festival daquelas paragens. “Quando me tornei adolescente, fui afectado de forma bastante aguda pela questão da timidez. Foi necessário muito para me libertar dela”, disse à Esquire. “Isto vai soar a uma forma pretensiosa de pôr as coisas, mas, no meu caso, foi necessário o sucesso internacional para o conse- guir”. No início de carreira, os Tame Impala tocavam para uma centena de pessoas e Kevin mantinha-se impassível, cabelo comprido a ocultar o rosto enquanto mirava os sa- patos. Agora que a timidez foi vencida, mas não a sensação de solidão, sobe a palco para actuar perante dezenas de milhar e não se esconde. “Percebi que existe valor em ser um extrovertido, ou um exibicionista, em palco. Percebi que isso tem menos a ver comigo que com toda a gente no público”, explicava ao New York Times. “Além disso, há qualquer coisa especial em ter 10 mil pessoas juntas a gritar letras sobre ‘Porque sou um solitário?’”, acrescentou. Slow Rush é editado hoje. Seguir-se-á, a partir de Março, uma digressão que passará pela América do Norte e Cen- tral, pela Austrália e pela Europa (há datas marcadas até Agosto, mas Portugal, onde os Tame Impala já actuaram cinco vezes, não aparece nelas). Noite após noite, uma banda que é a ideia de um homem subirá a palco para partilhar a sua visão com o mundo. Irá falar-nos do tempo que passou com música feita de todos os tempos. Com voz frágil em tom sonhador, convocar-nos-á para a festa na sua cabeça. Aguardam-nos salões amplos e arejados, ce- nários irreais construídos de mil elementos familiares. As areias do deserto podem estar a acumular-se algures, mas ainda estão longe. “I never wanted any other way to spend our lives”, ecoa uma voz na nossa cabeça. Estamos todos sozinhos e dançamos juntos. Há algo de terapêutico na música dos Tame Impala, um eterno regresso a um idílio perdido — e isso só pode ser bem-vindo nestes tempos de tumulto e incerteza

6 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 como se tudo estivesse feito e aos significado histórico da música. Se músicos coubesse apenas a missão estão a criar música, podem tirar de aproveitar o passado e dar-lhe elementos de cinco décadas e de Um “futurista novo twist. “Ele [Parker] é puro vários continentes. Tudo flutua retro. Mas para alguém como eu nesta nuvem de som sem contexto que critica a cultura retro, é muito onde só importa o prazer.” irritante porque é tão talentoso e os O problema de um mundo “sem nostálgico” para reinar resultados costumam ser tão regras”, alerta, é que se perde “uma agradáveis que não os podes certa excitação ou energia que negar”, diz ao Ípsilon, por e-mail. existe quando uma barreira é Música agradável, mas sem perigo transgredida” — momentos como a ou desafio? “Mas quem está a ser colaboração entre os Run DMC e os nos tempos modernos perigoso ou desafiante por estes Aerosmith ou a “subversão” da dias? Não sei mesmo o que esses música de dança e do punk em termos podem significar nesta Death disco, dos Public Image Ltd, Um “novo” músico pop, “estupidamente moderno”, dizem músicos altura da história da música”, são hoje “difíceis de recriar”. “Estas contrapõe. “[Tame Impala] É um misturas de géneros não são nada que Kevin Parker inÅuenciou. Já o jornalista Simon Reynolds produto muito bem feito — não sei de especial hoje.” se tem algum conteúdo emocional, Onde Reynolds, Ferreira, Gomes vê nele um símbolo da “retromania” que tomou conta da pop. não há certamente nada que tenha e Ribeiro concordam é no chegado até mim através do lustro.” desmesurado talento de Parker, Por Pedro Rios Mas, reconhece, o lustro é de músico obsessivamente qualidade, uma “superfície perfeccionista. “Posso andar com belíssima de som”, pintada uma batida na cabeça durante uero ser um Max álbum, quando eram um prazer de mostrar “coisas a passar por “inteiramente com os arquivos da horas”, confidenciou à Rolling Martin”, disse Kevin uma minoria. “Não se mete numa gravadores de fitas e essa coisa música rock. O que é interessante — Stone. Recentemente, ao não Parker à revista/ caixa em relação aos instrumentos analógica a passar para o e característico da sensibilidade conseguir fazer uma melodia que instituição Billboard, que usa. É um dos artistas pop mais computador”, conta Guilherme actual — é que ele não parece ter correspondesse a uma progressão que lhe dedicou a impactantes nos festivais e nas Tomé Ribeiro, 29 anos. “Foi algo uma aliança particular a uma era ou de acordes, decidiu pôr esses “Qcapa da edição de tabelas, e tem músicas com que nos contagiou”, admite. “Ele a um som. Ele faz algo como [o acordes a tocar em repeat Fevereiro. Boutade? Ou todo um guitarras predominantes e consegue representar muito bem álbum] Innerspeaker, que é como os enquanto dormia, numa esperança programa? Não, o músico que se melodias de guitarra que as uma estética que estuda, sem Beatles por alturas de Paperback de que se infiltrassem nos sonhos e confunde com os Tame Impala não pessoas cantam. Se olhares para os parecer que se está a apropriar Writer/Rain, e depois passa para deles saísse a solução. Parker chegou a esse estatuto comercial hits das tabelas, isso é impensável — dela”, prossegue o músico, que faz Elephant, [canção] que é uma compõe, toca, produz e mistura ( produziu êxitos atrás as guitarras fazem apontamentos lá electrónica de dança enquanto GPU espécie de boogie imparável com quase todos os sons de Tame de êxitos, de Katy Perry a Taylor atrás. Pega em guitarras, em Panic. “Sentia-se uma intenção traços psicadélicos. E depois faz soft Impala. É “um dos Brian Wilsons Swift). Sim, Parker está destinado a batidas electrónicas , em nova, ele não queria ser um rock com It might be time ou Lost in dos tempos modernos. Consegue altíssimos voos. Aos 34 anos, o sintetizadores modernos. Toda a revivalismo dos anos 70.” yesterday, que soa um pouco como imaginar um universo sonoro músico de Perth, na Austrália, é música do mundo se junta e é Outras bandas revivalistas Alan Parsons Project ou Asia.” inteiro dentro da sua cabeça e símbolo maior das transformações passada por um filtro. Está tudo à morreram ou entraram em declínio Talvez a “retromania” seja uma depende só de si próprio em talvez da música pop-rock dos anos 2010. distância de um clique. Porque não criativo. “Parece que descobriu a inevitabilidade destes tempos em 90% dos casos”, elogia Clara A julgar pelo novo The Slow Rush, o aproveitar?” fórmula para o revivalismo e os que a Internet serve toda a música Gomes. editado hoje, continuará a sê-lo. Luís Clara Gomes, que assina outros não”, comenta Ferreira. “A de todas as eras e geografias. “É-me Francisco Ferreira acredita que Os ventos estão a seu favor. Eis como Moullinex, admite a partir do segundo disco, ouves dada toda a música do planeta ao Parker fica “contente por misturar alguém que em Innerspeaker (2010) influência dos Tame Impala na hora tudo, guitarras a ‘cliparem’ [a mesmo tempo”, aponta Francisco as várias características da música fez de febres garage de baixa de fazer Elsewhere (2015). Depois soarem distorcidas por terem sido Ferreira. “É normal que ele que ouve e juntá-las. Mas isso fidelidade matéria de sonho e fuga; das fantasias do disco de Flora, quis gravadas demasiado altas], a [Parker] tenha todas as influências tornou-se por si só um novo léxico. que em Lonerism (2012) fazer música de dança onde bateria toda comprimida, no bolso”, diz, defendendo que há, A nossa banda e muitas outras já transformou a estética psicadélica coubessem psicadelismo eléctrico e parecendo gravada em fita, contudo, “experimentação” na passaram pela fama de levar com a em plasticina quase pop, uma de sintetizadores. Nos primeiros sintetizadores modernos e antigos arte do australiano, dono de uma catalogação Tame Impala. Apesar alegria de riffs à bulha com uma voz discos de Tame Impala, Luís, hoje usados de um modo futurista, a “cabeça a explodir para todos os de girar à volta da pop e do rock, fez tão vulnerável como a de John com 36 anos, detectou amor aos passarem de um lado para o outro. lados”. “É novo porque estás com divergências gigantes com batidas Lennon, teclados luzentes, tudo Beatles, mas também interesse É um futurismo nostálgico.” tecnologias diferentes. Um hip-hop e R&B, coisas que ficam à junto numa trip garrida, numa pelos “truques” do house francês. No livro Retromania (2011), o arpejador nos anos 70 não batia tão margem e que mereceriam mais festa. Com estes dois discos de Trata-se de “aprender a forma” dos jornalista inglês Simon Reynolds, certo como o de agora, que está atenção. Está a distanciar-se de Tame Impala, Parker garantiu um géneros, de “saber as suas regras” 56 anos, cunhou, logo em título, um ‘syncado’ [sincronizado] com um géneros e criou um léxico.” lugar no roteiro indie. Mas queria para depois as quebrar, num feliz termo para uma das maiores computador e fica mais perto da “Os astros alinharam-se. Vejo mais: em Currents (2015), pousou “desrespeito pelos dogmas”. tendências actuais da criação e música electrónica. Estas [Parker] como muito do que é o as guitarras, cercou-se de Também os Salto se excitaram consumo pop: ciclos intermináveis possibilidades dão-lhe alguma músico do futuro. Já tinhas a ideia sintetizadores e investiu na carreira com a visão inicial de Parker. de nostalgia, a pop a comer-se a si novidade”, aponta Tomé Ribeiro. de que havia divas e heróis da de cientista de estúdio. The Slow Durante a feitura de Passeio das própria, aparentemente a perder guitarra. Depois, começou a haver Rush aprofunda este caminho. Virtudes (2016), deram por si a ver capacidade de gerar rupturas A pop como buæet os ídolos e os gigantes das “Sinto que este disco representa vídeos no YouTube do australiano a estéticas como fez no passado. É “Estou excitado por já não haver electrónicas — já estamos nos anos esta crença de que os géneros não regras”, declarou Parker ao Los 90 e 2000, já havia o Aphex Twin, existem”, disse à DIY. Nos últimos Angeles Times. Na playlist de faziam música sozinhos e anos, por várias vezes pisou fora da de um sub-30, os Tame Impala dominavam a sua área, eram cerca do rock: Kanye West, Lady podem surgir ao lado de pioneiros. Parker parece que foi a Gaga e Mark Ronson, entre outros, ou de um qualquer êxito trap. “Os grande criança a ser elevada da pediram-lhe emprestado o toque jovens estão cada vez mais a idolatria à figura de um novo de Midas. Em 2019, os Tame Impala navegar pela música sem qualquer músico pop, o que pode ser um foram cabeças-de-cartaz do festival interesse em investir mais numa novo músico pop. Faz tudo sozinho Coachella, como que selando a área do que noutra — toda a música em casa e quer mostrá-lo às transição total para o mainstream. contemporânea, todos os arquivos pessoas. Parece tudo muito Max Martin que se cuide. da música do passado são um simples, mas está a ser o mais “Gosto de o ver como um artista smörgåsbord [refeição tipo buffet celebrado nesse papel. Desde há estupidamente moderno”, diz servida na Suécia] intemporal muito tempo que tens software Francisco Ferreira, 28 anos, teclista gigantesco em que podem provar disponível e muita malta que dos Capitão Fausto, que, por vários pratos e empanturrarem-se”, produz música pop no quarto, mas alturas de Pesar o Sol (2014), se analisa Reynolds. “Se são ouvintes, ele foi o primeiro a subir ao pódio. habituaram a comparações aos ouvem de um espectro muito E, quando digo pódio, é um pódio Tame Impala. Segue-os desde os Nos últimos anos, por várias vezes pisou fora da cerca do rock: alargado de sons, sem saberem a nível mundial.” Com Mário tempos anteriores ao primeiro até lhe pediu emprestado o toque de Midas muito bem o contexto ou o Lopes

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 7 Há um PIMENTA DE PAULO FOTOGRAFIAS Quarto Escuro em Cedofeita que é um ponto de

encontro Os membros de Baleia Baleia Baleia, O Manipulador, Conferência Inferno e Daniel Catarino reencontraram-se todos no Porto depois de se cruzarem na estrada para criarem uma nova centralidade de no underground da cidade que escolheram para viver. músicos André Borges Vieira

odos os caminhos vão dar à naquele centro comercial da década cência. Uniu-os a música via outros Manuel Travessa de Cedofeita. Diría- de 1980 convertido há umas décadas projectos que levavam a cabo, ou na Todos os caminhos Molarinho mos o mesmo de outro ponto em salas de ensaio. área da promoção de concertos ou (baixista/ qualquer do globo se nesse Este espaço de reunião de músicos enquanto executantes no cartaz de vão dar à Travessa vocalista), sítio existisse também uma — mais recente — tem base na Baixa um dos vários festivais em que estão nascido T centralidade definida por e vai crescendo à medida que a cria- envolvidos. A cronologia deste en- de Cedofeita. Para em Lisboa, algo que justificasse a sua relevância. tividade se materializa em mais um contro começa em 2013. Situar a e Ricardo Mas para um grupo de músicos do produto acabado, iniciado numa sala acção no espaço torna-se mais com- um grupo de Cabral cenário undergound nacional, quase de ensaios que também é estúdio de plicado. (bateria), todos com muita rodagem na es- gravação, onde o limite não é defi- Vamos por partes, contando com músicos do cenário de Lamego, trada, esta primeira afirmação é uma nido pela sonoridade praticada. O a ajuda de todos os intervenientes são os verdade absoluta. ponto de encontro é feito no último que abriram as portas do Quarto Es- undergound responsáveis Para quatro bandas/projectos mu- andar de um prédio à entrada desta curo ao Ipsilon. Manuel Molarinho pelo “punk sicais todo o caminho percorrido artéria que vai dar à rua com o (baixista/vocalista), nascido em Lis- nacional, quase trintão” dos levou-os até àquela artéria do Porto mesmo nome. Chama-se Quarto Es- boa, e Ricardo Cabral (bateria), de Baleia Baleia para ali, espontaneamente, criarem curo e é a casa dos Baleia Baleia Ba- Lamego, são os responsáveis pelo todos com muita Baleia, sendo mais um dos vários núcleos musicais leia, O Manipulador, Conferência “punk trintão” dos Baleia Baleia Ba- que o primeiro espalhados pela cidade — entre ou- Inferno e Daniel Catarino. Estes no- leia, sendo que o primeiro é também rodagem na estrada, é também tros há o experimental do Carva- mes têm dois pontos em comum: O Manipulador. Além disso, o bai- O Manipulador lhido, com a Sonoscopia, e do Bon- todos sairam de outras zonas do país xista também é fundador do festival esta primeira fim, onde está, por exemplo, o bate- para escolheram o Porto como base Um ao Molhe. Já o baterista faz parte rista João Pais Filipe e outros músicos para se estabelecerem e entre 2018 da organização do ZigurFest. afirmação é uma do seu universo, o jazz em Santo Il- e 2019 lançaram discos que lhes ren- Os Conferência Inferno, inicial- defonso, com a Porta Jazz, ou o Stop deram muita estrada. mente um duo feito de sintetizadores verdade absoluta em Campanhã, onde se encontram Ao contrário de muitos músicos que caíram num caldeirão de poção todos os dias centenas de músicos estes não se conheceram na adoles- punk, são formados por Francisco

8 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 Saliva Diva: “espelho de um underground mais universal”

Nova editora do Porto, nascida no estúdio Quarto Escuro, já tem conÄrmado três lançamentos. A estreia foi com O Manipulador. Haverá ainda Conferência Inferno dia 25 e no Outono o segundo de Baleia Baleia Baleia.

ão sendo definida coerência, além de estilos ou do por estilos, todas as espaço geográfico onde se inserem. bandas que fizerem Porém, não conseguem ainda parte da Saliva Diva traduzir por palavras em que base vão poder tocar no assenta essa coerência. É algo que “Nmesmo dia sem preferem ver desvendado à medida parecer incoerente”, é assim que que o catálogo vá crescendo. Os Manuel Molarinho define a editora álbuns de outros projectos onde que fundou com Ricardo Cabral no tocam que não se enquadram ali início do ano. A estreia foi com continuarão a ser editados pelas Doppler, quarto álbum de O editoras com as quais já têm ligação, Manipulador, mas já há mais dois como é o caso dos Burgueses lançamentos confirmados para Famintos de Molarinho. 2020. “Esta editora só faz sentido existir A 25 de Fevereiro sai o segundo para cobrir um vazio que existe trabalho do selo, quando for num novo som que temos lançado em CD Bazar Esotérico, EP acompanhado de perto”, adianta o de Conferência Inferno, editado baixista, sublinhando que existindo digitalmente no ano passado pela editoras com créditos dados noutro Farra. E no Outono há segundo universo musical deixa de fazer disco de Baleia Baleia Baleia, sentido editar essas bandas. “possivelmente em vinil”, banda da Serão lançadas cem cópias de dupla que agora se arrisca nas Bazar Esotérico. De Doppler saem edições com uma equipa de mais trezentas. Ricardo Cabral diz que três pessoas. Em carteira está a condição fulcral para a escolha das possibilidade de sair mais um álbum bandas é terem uma actividade de uma banda ainda por fechar. regular em palco, sendo que é “Queremos juntar as pessoas que sobretudo depois dos concertos que habitam o universo em torno do os álbuns são vendidos Quarto Escuro e outras pessoas que directamente a quem prefere conhecemos que produzem e fazem comprar à banda e não numa loja, música, mas que depois não onde houve uma quebra na venda conseguem escoar o trabalho”, diz de discos. Ricardo Cabral, fundador do Molarinho não se intimida com os estúdio e baterista dos Baleia Baleia tempos menos auspiciosos para o Baleia, banda que divide com o suporte físico, já que está convicto Lima e Raul Mendiratta. O último baixista/vocalista Manuel de que se continua a vender, mas vem de Aveiro e o primeiro de Vila Molarinho, o nome que também se directamente. E esses números diz Real, onde criou a promotora Colec- esconde por trás de O Manipulador. nunca serem contabilizados nas tivo Farra, que também trouxe para Por força da actividade como vendas, já que só se conta o que sai o Porto. Mais recentemente juntou- músicos, os dois assistem de perto das lojas. Porém, adianta que todas se um terceiro elemento. José Miguel ao surgimento de novas bandas com as edições serão um risco Silva, também a viver no Porto, mas argumentos suficientes para não controlado, com tiragens adequadas de Lamego, assumiu os sintetizado- passarem pela música de forma ao mercado para o crescimento ser res para deixar Lima apenas concen- fugaz. Para isso acreditam ser sustentável. trado na voz. necessário criar uma força Numa primeira fase querem Sobra Daniel Catarino, cantautor aglutinadora para poder escoar o angariar fundos para daqui a dois natural de Évora que funde o rock material que nasce de horas anos poderem arriscar nalgumas com as suas raízes. O vocalista/- passadas em salas de ensaio. Não edições em que se possa “perder rista é só músico. Dizemos que é ape- querem que a editora exista apenas dinheiro”. Até lá vão trabalhando o nas músico como se isso não lhe ti- para funcionar como janela virada marketing digital e apostando rasse todo o tempo para fazer outra para o que acontece no estúdio também em eventos do selo — o coisa qualquer que não seja cantar ou onde ensaiam com outras bandas primeiro está marcado para 27 de tocar guitarra. No ano passado editou na Travessa de Cedofeita. Até Março no Hard Club, dia em que o último álbum Sangue Quente Sangue porque apesar de ter como sede o lançarão a editora publicamente Frio. Mas só entre 2006 e 2013 lançou mesmo espaço nada garante que os com as bandas que já fazem parte 15 álbuns com outras designações — álbuns das bandas que lá têm do catálogo em palco. Landfill, Long Desert Cowboy e residência sejam todos editadas Com o passar do tempo garantem Oceansea —, sempre a solo. Com as pelo selo. Da mesma forma, o que a linha da editora vai sendo bandas Uaninauei e Bicho do Mato objectivo é alargar o espectro a entendida. Por agora dizem que é também editou uma mão cheia de quem se move por outras paragens. um “espelho de um underground discos durante esse período. e O único critério de selecção será a mais universal”. A.B.V.

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 9 e Foi entre o Um ao Molhe, o Zi- e também no resto do país. Foi pre- mais cidades, o que faz com que as gurFest ou em eventos promovidos cisamente por se identificarem com distâncias se encurtem, e há mais pela Farra, em vários pontos do país, o sítio que escolheram como base espaços para tocar. que se foram conhecendo e voltando que saíram das cidades onde vi- No Porto identificam-se com “o a reencontrar. Viriam a juntar-se to- viam. espírito” e com a cena musical, “mais dos no mesmo sítio mais tarde, em Para Molarinho, que saiu de Lis- cooperativa”, onde acreditam ser alturas diferentes, no estúdio que boa em 2012, e Catarino, há menos menos complicado de serem levadas Ricardo Cabral montou em 2013 para tempo no Porto, esta mudança foi para a frente iniciativas em torno da poder encher de outros instrumen- uma opção ponderada e tomada música, que noutros locais tornam- tistas para prolongadas jams sem pelos mesmos motivos. Tanto um se “dores de cabeça”. Além disso, imposições de sonoridade ou de como o outro identificam no país estão ao mesmo tempo mais próxi- tempo. Ali não entrava relógio. uma espécie de linha que começa mos desse circuito mais alargado que Foi numa dessas jams que nasce- em Leiria. Se olham para Lisboa acreditam existir mais a norte e a um ram os Baleia Baleia Baleia, quando como centro de oportunidades para passo da Galiza, onde existe outro já todos tinham desistido de tocar, à as bandas entrarem mais rapida- mercado a explorar. excepção do baterista e Molarinho. mente num circuito com mais pro- Catarino nasceu no Cabeção, só Resultado: em 2018 lançam o álbum jecção, embora apenas reservado “a depois foi para Évora. Nunca foi fácil homónimo gravado naquele espaço uma minoria”, abaixo da capital encontrar músicos para tocar que e produzido pelo anfitrião, que lhes consideram existir várias lacunas. continuassem a longo prazo a tocar rendeu quase uma centena de con- Sobretudo no Algarve, onde dizem com ele. No Porto acredita, “talvez certos. Actualmente estão a gravar o não existir palcos além dos que es- por ser uma cidade grande”, encon- segundo para o lançar no Outono, tão reservados para um público trou mais motivação nos músicos O Manipulador usa sendo que antes de o fazerem já estão “mais turista”. Já depois dessa linha para seguir em frente. O mesmo de- a pensar num terceiro. Já têm músi- para Norte é onde encontram um tectou também nas promotoras e cas para isso. Pelo meio, o baixista foi circuito com mais oportunidades nos espaços de concertos, ao contrá- o baixo como ensaiando com O Manipulador, que em salas mais underground, mas rio de outros sítios onde ouviu várias acaba de lançar o quarto álbum Do- que lhes permitem estar na estrada vezes o mesmo: “isso parece-me instrumento total ppler, pela Saliva Diva, editora recen- durante muito mais tempo — há complicado”. temente criada pelos dois. Francisco Lima viveu quase toda Mais tarde, em Outubro de 2017, a vida em Vila Real e mais tarde em Catarino muda-se de Évora para o Aveiro, mas nasceu no Porto, onde Porto e vai também parar ao estúdio ficou até aos nove anos. Já frequen- para ensaiar em formato trio. Juntou- tava a cidade há vários anos e sentiu se a ele Molarinho e, sempre que há a necessidade de se mudar para lá Molarinho m álbum de chegada”, é como concerto marcado, junta-se o bate- por não encontrar a mesma activi- esteve cinco Molarinho apresenta Doppler, rista eborense Chinês, que faz 400 No Porto dade nos sítios onde viveu. Veio so- anos à volta ainda que este seja o seu quarto quilómetros para lá chegar. bretudo à procura de um “ambiente dos temas de trabalho como O Manipulador. Já Lá também foram parar os Confe- identificam-se diferente”, com “mais oferta cultu- Doppler, o seu não lançava uma longa-duração rência Inferno, banda que nasceu no ral”. A cena musical foi também um quarto “Udesde 2012 e esteve cerca de cinco quarto de Francisco Lima, de onde com “o espírito” dos factores que pesou. trabalho como anos à volta dos temas que saem neste primeiro saíram as demos compostas com A opção de Molarinho passou O Manipulador registo da Saliva Diva. É por isso que apesar Mendiratta, que foram entregar a e com a cena muito por poder explorar um “cir- de ter iniciado o projecto em 2010 o descreve Ricardo Cabral na esperança de que cuito underground” com extensão a desta forma. lhes produzisse o EP. Anos antes, o musical, “ outras cidades, que lhe permite an- Ao mesmo tempo é uma espécie de músico/produtor envolvido com a gariar o suficiente para “pagar as compilação. Está ali o resumo de cinco anos, não Zigur, que além de organizar o festi- mais cooperativa”, contas”. Para isso tem de estar em só da sua vida musical, como também do seu val também edita, tinha recusado constante actividade, o que para si percurso pessoal, mais reflectido nas letras, que lançar Jacketx, um projecto electró- onde acreditam ser não é um problema: “Quem gosta da remetem directamente para a altura em que nico de Lima. Desta vez não quis vida na estrada é disto que gosta”. foram escritas. recusar — os temas entraram-lhe no menos complicado Diz que o nome do trabalho surge ouvido. Em pouco tempo o EP Bazar Relação incestuosa precisamente por existir um fosso temporal largo Esotérico estava gravado e no início de serem levadas Entre estes músicos acontece muitas entre a fase de início das composições e a altura de 2019 saiu em formato digital pela vezes “roubarem-se” mutuamente. em que escreveu o último tema. Trocando por Farra. Depois disso, em menos de para a frente Ao vivo, os Baleia Baleia Baleia metem miúdos, diz que Doppler é o efeito que se ouve um ano já passaram por cerca de um pé aos Conferência Inferno para quando passa uma ambulância — “quando se trinta palcos diferentes, inclusiva- iniciativas em torno tocar Apocalipse. Por Daniel Catarino aproxima parece que está numa nota e quando mente pela última edição do Zigur- passam para “pedir emprestado” se afasta o som já é outro”. Nesse sentido, as Fest, em Lamego. da música, Adultério na igreja. O músico alente- letras reflectem o que sentia na altura em que as jano em casa também costuma tocar escreveu. “Hoje não deixaram de fazer sentido, O Porto foi uma opção que noutros locais temas de Baleia Baleia Baleia. Recen- mas olho-as de uma perspectiva diferente”, consciente temente também gravou um vídeo da explica. O último ano correu bem para todas tornam-se música Cetim dos Conferência, que Musicalmente, diz que ao contrário do que estas bandas com actividade regular lançaram há pouco tempo videoclip acontecia nos registos anteriores em que além do no cenário underground portuense “dores de cabeça” para o mesmo tema. baixo usava outra camadas que ao vivo lançava Nada de estranho para este con- com a loop station, aqui centra-se apenas no junto de músicos, que dão o exemplo Para quatro instrumento que domina, explorando com do Brasil como país onde isso é con- bandas/ pedais todas as potencialidades do mesmo. “Este siderado normal e é visto como ho- projectos é um álbum em que pego no baixo como menagem. Já em Portugal, Molarinho musicais todo instrumento total”, atira. diz existir uma “relação ego-autoral o caminho Partiu para as composições depois de lançar muito complicada” para isso poder percorrido várias questões: “Como é que com um baixo faço ser feito sem ser assumido como”um levou-os até percussão, textura, melodia ou noise?” A pecado”. uma artéria do resposta a todas estas perguntas está no O mesmo acontece de “uma forma Porto para ali, resultado de Doppler, co-produzido com Diogo saudável”, quando não se inibem de esponta- Alves Pinto, que muitos conhecerão por Gobi opinar sobre as músicas dos colegas, -neamente, Bear. A mistura também ficou a cargo do considerando ser algo de constru- criarem mais produtor/músico, escolhido pelo baixista por tivo. Quanto ao futuro, garantem que um dos vários querer ter ao seu lado um ouvido não continuarão a roubar-se. “É uma pi- núcleos comprometido com o trabalho que foi gravando rataria mais do que autorizada”, atira musicais ao longo de dois anos. Durante o processo foram Molarinho. Catarino também assume espalhados limando algumas arestas para chegar ao ser difícil não meter o bedelho em pela cidade resultado que queria: “É uma reprodução mais banda alheia: “Entre nós há uma re- ou menos fiel do que se consegue fazer só com lação quase incestuosa”. um baixo”. A.B.V.

10 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 Há música clássica a ser desarrumada no Lux-Frágil É possível experienciar música clássica, para lá das etiquetas comportamentais, ao mesmo tempo que se interroga o presente sociopolítico a partir de obras canónicas? Seja no Lux-Frágil ou nas aldeias do interior, o maestro Martim Sousa Tavares acredita que sim. Vítor Belanciano (texto) Rui Gaudêncio (fotografias)

a maior parte das vezes um pequeno palco disposto, com um ouvir, o maestro Martim Sousa Tava- ouvir obras canónicas da clássica a sobe-se a escadaria do Lux- piano, rodeado por imensa gente, uns res, 29 anos, que é também o curador pessoas que normalmente não as es- Frágil, em Lisboa, e começa- sentados em cadeiras, outros no chão das sessões, fez uma pequena intro- cutam, ou deslocar aqueles que habi- se de imediato a ouvir mú- e a maioria em pé, de copo na mão, dução. E começou a ouvir-se a mú- tualmente as ouvem em contextos sica moderna de combina- mantendo-se quietos, ou andando sica. Ao princípio o ambiente foi so- mais formalizados para um outro lu- N ção electrónica. Naquela pelo espaço. Junto a um dos bares, o lene. Depois foi-se distendendo. Mas gar, proporcionando-lhes uma expe- noite percebia-se que algo diferente artista Fidel Évora criava em tempo sempre respeitoso. E todos encontra- riência diferente, que passa também acontecia. Não era só o som. Eram real, ladeado por mais pessoas, en- ram o seu lugar. por reavaliar criticamente essas também as pessoas, com um público quanto eram projectadas imagens Foi a 16 de Janeiro que ali se iniciou obras, retirando delas significações mais ecléctico do que o habitual, dis- nos dispositivos de vídeo. Sentados, o ciclo de experiências mensais à que nos ajudem a interpelar o mundo postas a ouvir a Viagem de Inverno de mais perto do cantor e pianista, pare- volta da música clássica com o nome de hoje. Em Janeiro estiveram em Franz Schubert, o ciclo de canções ciam estar aqueles que frequentam de Boca do Lobo, que continuará na destaque as migrações. Na próxima para voz e piano escritas há mais de salas de música clássica. Outros pare- próxima quinta-feira com composi- semana será a igualdade de género. dois séculos. ciam não saber muito como se posi- ções de Johanna Beyer e John Cage Em fundo estão algumas das ques- No 1.º andar do espaço, ao meio, cionar. Antes de a música se fazer pelo Drumming GP. O desafio é dar a tões do nosso tempo quando se e

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 11 banco, passando por malta com ta- tuagens até ao pescoço, ou senhores de 80 anos que nunca tinham ido ao Lux com os filhos ou netos. Essa mis- tura do público convencional da clássica com os habituais frequenta- dores do Lux,é saudável.” O que não significa, claro, que todos tivessem ficado convencidos. No final havia quem garantisse que havia sido uma noite memorável e também quem tivesse resistido, argumentando com a dispersão dos vídeos ou das pro- postas plásticas do artista Fidel Évora, criadas em tempo real e de- pois expostas no espaço. A ideia não é evidentemente o Lux substituir-se à Gulbenkian ou ao São Carlos, onde existe uma fórmula que funciona. “Isto é para quem gosta de reflectir, de pensar e de escolher, sem prescindir do respeito pelo que está a ser feito”, reflecte Martim. “É importante que as pessoas sintam que têm ali espaço para se apropria- rem deste tipo de repertório e, de- pois, porque não, na semana se- guinte, irão à Gulbenkian para ouvir a Viagem de Inverno como manda o figurino.” O que também deve ser debatido, alega, “porque é uma peça que nasceu nos salões de Viena, cheia de gente à volta a fumar, a falar, a beber e a tossir, em cima do piano”. “Não havia essa distância anacrónica entre artistas e assistência.” No Lux, os artistas tiveram de cir- cular pelo meio das pessoas e, no final, ficaram à conversa. Para eles também foi uma prova diferente. A pianista Mirka Sefa nunca tinha to- cado num cenário semelhante, mas mostrava-se satisfeita, até pelo facto de o poema poder ser reflectido de uma outra forma, acreditando que a clássica é uma arte viva que pode servir de âncora para pensar o mundo. Às vezes existe essa ideia de que a clássica é apenas contempla- ção, encontro com o belo, estetiza- ção. “O que se pretende é utilizar estas peças como alavanca para quem queira accionar o seu disposi- tivo de reflexão. A peça do Schubert O cantor e pensa em música. Nunca como dos actuais. Esse tem sido um dos em trunfo. Esse é o repto. A música é das mais centrais do nosso reper- Martijn hoje se produziu e ouviu tanta mú- desafios a que se tem entregado o clássica precisa de se despir um tório e raramente alguém se lembra Cornet e sica, graças à tecnologia digital. Mas maestro e director artístico da Or- pouco da rigidez e formalidade. Isso de a transportar para um contexto Mirka Sefa ao quando o fazemos estamos a ouvir questra Sem Fronteiras, Martim não significa desrespeito pela mú- actual — a história das migrações. É piano. algo de novo? E estamos a ouvir, no Sousa Tavares, levando essa música sica, mas sim encontrar formas da uma narrativa de errância e é frus- Oartista Fidel sentido da prática intensa, ou é ape- às aldeias da zona raiana. É dele tam- fruição. A ideia é que as pessoas pos- trante ver que, seja sobre esta peça Évora criava nas ruído de fundo para nos distrair- bém a curadoria do ciclo do Lux-Frá- sam ser donas da própria experiên- ou outras, ficamos pela mera fruição em tempo mos de nós próprios e do que nos gil, depois de o programador, e um cia”, justifica. estética, sem irmos mais além nas real, enquanto rodeia? No caso da clássica, ela con- dos actuais responsáveis pelo espaço, Curiosamente, na noite de Janeiro, nossas interrogações.” eram tinua a atrair público às salas e tea- Pedro Fradique, o ter visto discorrer a tentação da maior parte foi pegar No livro O Resto É Ruído — À Escuta projectadas tros de ópera, mas os programadores sobre algumas destas questões. nas cadeiras à disposição e colocá-las do Século XX (2007), o crítico de clás- imagens nos jogam a maior parte das vezes pelo “O projecto do Lux é uma porta em redor do piano. Como se fosse sica Alex Ross, apesar dos problemas dispositivos seguro. O público é tipificado, ou- para algo que já vinha pensando há isso que é suposto fazer. “Agiram de de renovação de públicos que abor- de vídeo vem-se quase sempre os nomes in- muito”, confessa Martim. “É parecido forma automática, formando uma dava, intuía que aquela música po- tangíveis, enquanto as novas peças com o projecto da Orquestra no sen- espécie de anfiteatro, e foi em vão deria converter-se numa opção de são tocadas poucas vezes. Na música tido em que estamos a levar reportó- que disse para circularem”, ri-se. consumo entre público mais novo e popular, apesar da abundância e das rio menos comum para um lugar es- Isso foi no início. Depois a situação mundano. O argumento? “A música grandes audiências, há cada vez mais pecífico. Esta música, nestas circuns- foi-se alterando, apesar de muitos clássica é, em muitos sentidos, hoje, fragmentação em géneros e públicos tâncias, é raro. Claro que o público do não saberem bem como se posicio- uma cultura à margem, ainda pouco sectoriais, contribuindo para que, Lux é diferente do das aldeias. Esta- nar perante a voz de Martijn Cornet explorada, ao nível da cultura de paradoxalmente, ao contrário do mos em contexto hiper-urbano, no e o piano de Mirka Sefa. “A ideia é massas, e isso pode ser interessante que se fantasia, se oiça também centro da cidade, mas muitas pessoas que as pessoas circulem, tirem fotos para quem anda à procura de novos quase sempre o mesmo. não conhecem aquela música. E, por se quiserem, mas também podem estímulos.” Da mesma forma tem Na sua relação com os públicos, o outro lado, temos público daquela não o fazer. São donas de si. Não que- havido cada vez mais tráfico de in- desafio da clássica é igual e diferente música que não vai àquele espaço.” remos é a obrigatoriedade do silên- fluências entre músicos que tanto se da pop. Trata-se de desarrumar as Na sua visão, é essa situação para- cio e das palmas no fim da peça.” sentem à vontade no campo da pop normas — não para se perder a exi- doxal, que atribui sentido ao plano. O público, esse, era diverso. “Foi como da clássica (Nils Frahm, Ólafur gência, mas para serem ultrapassadas “O Lux não é uma sala de concertos talvez a noite mais ecléctica em que Arnalds, Nico Muhly, Francesco Tris- construções sociais hierarquizadas convencional. Apresenta uma série já estive num evento de cultura. Vi tano), movimentando-se num terri- no seu consumo e inspirar significa- de obstáculos que transformamos desde um ministro a um CEO de um tório híbrido que desafia cataloga-

12 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 ções. É à clássica que alguns nomes “A condição de mulher deve tê-la nhóis, a partir de Idanha-a-Nova. museus, é raro vê-los nos concertos da pop têm ido buscar alimento es- “Pessoas da minha traído, porque era muito interes- Depois de quatro anos em Itália, a da clássica. São conversadores, piritual. Para a pop, a clássica é a sante como compositora e mais ra- estudar direcção de orquestra, a que mesmo achando-se muito moder- última fronteira a digerir. Da mesma geração, que viajam dical do que os grandes modernis- se seguiram mais dois em Chicago, nos, porque ouvem Capitão Fausto forma, a clássica talvez precise de tas.” Na sua visão, se havia alguém regressou em 2018, tendo viabili- ou Radiohead, mas acabam por se assimilar muitas das estratégias da e vão a museus, que o podia saber era Cage, que se zado o projecto com parcerias pri- manter num espaço protegido. As pop, sem perder a sua identidade. correspondia com ela. “Provavel- vadas e a Câmara de Idanha. “É uma tribos são pouco comunicantes e Não é nesse cenário que as sessões é raro vê-los mente quando ela morreu, ele quis câmara que faz parte da rede isso é dramático. Sinto que as coisas do Lux estão, embora respirem o ficar com a partitura e especulando UNESCO para a criatividade musical, não comunicam. Por isso é que a mesmo oxigénio. A 19 de Marçoes- nos concertos um pouco — não é científico e teria por causa do Boom Festival, e que experiência do Lux, ou das aldeias, tará em evidência a música do com- de ser estudado — não é difícil pen- se alavancou a partir da música e da é importante. É como se estivésse- positor John Luther Adams, com as da clássica. sar que Cage poderá ter-se inspirado cultura, por isso faz sentido ter lá a mos a mover montanhas.” questões ambientais em evidência. numa compositora que a história nossa sede.” Uma das experiências mais grati- A 16 de Abril será a vez de Erik Satie São conversadores, não consagrou.” Ali, como em Lisboa, interessa-lhe ficantes viveu-a há meses. Estava se fazer ouvir, através da pianista Uma dessas peças é Horizons, es- esbater fronteiras, que não são ape- numa aldeia, com a orquestra, Joana Gama, com o público muito mesmo achando-se crita em 1942, que segundo Martim nas geográficas. “São acima de tudo quando no final de uma sessão al- provavelmente a ser convidado a nunca foi tocada. Está há quase 80 sociais, porque há muita gente que guns homens se puseram à frente da usar uma venda nos olhos, enquanto muito modernos, anos à espera de ser estreada. “É entende que este tipo de música tem porta de saída, dizendo que os mú- a 21 de Maio será As One, ópera de obra ambiciosa. Se fosse assinada de estar é no CCB ou no Largo de São sicos não podiam ir já. “Queriam Laura Kaminsky com libreto de Mark porque ouvem pelo Cage, já teria havido milhares a Carlos. Para as aldeias vai apenas a que tocássemos mais”, recorda Mar- Campbell e Kimberly Reed, com a querer tocá-la. Mas é uma mulher, música pimba e o rancho folclórico. tim. “Disse-lhes que éramos sensí- participação do ensemble de Chicago Capitão Fausto desconhecida e ali está adormecida. Juntar jovens dos dois lados da fron- veis ao pedido, mas que tínhamos Zafa Collective. E tive quase essa coisa mística de teira é fácil. O difícil é a construção de partir, porque ainda iríamos to- Esta quinta-feira a história será ou Radiohead, sentir que eu a iria tocar. Estava só à de um público, a partir de um ecos- car nesse dia a mais três aldeias. outra. Tudo começou em Chicago, procura da oportunidade. Mas como sistema — aldeias em risco social, Acabei por desafiá-los a seguirem- onde Martim estudou. Na biblioteca mas acabam por é uma peça para orquestra de per- demográfico e cultural — onde esta nos, porque a próxima aldeia era da universidade que frequentava cussão vai ser o Drumming JP a fazê- música não tem circulação.” perto.” E assim aconteceu. teve acesso ao arquivo de John Cage. se manter num lo, porque são a melhor orquestra de A orquestra actua um pouco por “Fecharam a igreja e a aldeia em “Estava imerso naquilo, cartas, ma- percussão que temos. E, como nos todo o lado. Em igrejas, casas do peso veio atrás de nós, gerando-se nuscritos, etc., e às tantas havia uma espaço protegido.” interessa reflectir sobre esse para- povo, salões de baile ou de lares de um efeito de bola de neve. Quando pasta que tinha uma partitura doxo de uma obra tão interessante terceira idade. “Onde quer que cai- chegámos à última, na Aldeia Velha, enorme de alguém de que nunca ti- nunca ter sido tocada, vamos fazer bam 18 músicos — menos do que isto no concelho de Sabugal, a igreja já nha ouvido falar, a Johanna Beyer.” um concerto a dois, com obras tam- também já não é orquestra — toca- estava cheia, acabando por ficar Ficou curioso. Foi investigar. Per- bém para conjunto de percussão do mos nas aldeias, mas vamos adap- imensa gente cá fora, gerando-se cebeu que havia sido uma vanguar- John Cage, para se perceber o que é tando. Fizemos uma ópera em No- burburinho porque todos queriam dista da geração de Cage, muito ac- que há entre um e o outro.” vembro, por exemplo, com 50 mú- entrar. É muito engraçado imaginar tiva em Nova Iorque, tendo morrido Martim está habituado a desafios. sicos.” Nas aldeias as opções são as pessoas com essa sede e termos pobre e só, de esclerose múltipla, Há um ano que dirige a Orquestra diminutas. Em Lisboa não, mas exis- despertado isso nelas.” É isso que se em 1944, sem que o seu trabalho ti- Sem Fronteiras, trabalhando com tem também entraves. “Pessoas da deseja também fazer agora na aldeia vesse sido alvo de reconhecimento. jovens músicos portugueses e espa- minha geração, que viajam e vão a do Lux.

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 13 O sermão de Mark Twain para o século XXI Politicamente um dia de Julho de 1899, em Presidente, de Sidney Lumet) que incorrecto Londres, Mark Twain falava assina a introdução do volume Dis- para uns, da sua relação com o humor. cursos de Mark Twain, recentemente progressista Dizia que o fazia “reflectir”, publicado em Portugal pela Tinta da e anti-racista que punha “em marcha a China, citando logo depois o histo- para outros, N maquinaria do pensa- riador e ensaísta americano Bernard a sua obra mento”. Precisava: “Sempre que DeVotto sobre a literatura de Twain: parece penso na minha vida começo a per- “É uma literatura da pequena histó- encontrar eco guntar a mim próprio o que é que eu ria transmitida oralmente, cujo fito

LCOK/UNDERWOOD ARCHIVES/GETTY IMAGES ARCHIVES/GETTY LCOK/UNDERWOOD num tempo sou, o que é que todos nós somos e o é de dar corpo a uma personagem e em que os que é que vai ser de nós. Sempre que revelar uma verdade perene, cujo temas que ouço alguém a fazer humor, brota-me objetivo é divertir auditores e cuja tratou nos dos lábios um sermão.” origem é a vida que está mais à mão livros e nos Tinha 64 anos e há mais de 30 que de semear.” inúmeros usava o humor como filtro para reve- discursos lar as tensões e as hipocrisias que A ironia que proferiu formavam não apenas a América, Depois de Um Candidato Idóneo e de ao longo mas a natureza humana. O humor As Bençãos da Civilização (Antígona, da vida estão que nasce da reflexão e que, por sua 2018 e 2019) e de O Solilóquio do Rei sob escrutínio vez, promove a reflexão — num ciclo Leopoldo (Quetzal, 2018), surge mais vertiginoso, um delírio imparável em um volume de dispersos de um autor que o humorista se alimenta da sua que dominava como poucos a arte auto-imolação para se tornar má- do escárnio e, com ela, provocava a quina de produção de discurso. Iró- norma do seu atlas e do seu tempo. nico, político, literário, de crítica so- Como por exemplo, o discurso que cial, parodiando costumes e a própria fez em 1881, na celebração da che- vida privada, usando a biografia gada do Mayflower — o navio que como mecanismo de produção de transportou os chamados “peregri- gargalhada, mesmo nos seus episó- nos” desde Southampton, na Ingla- dios mais trágicos. terra, e que chegou em 1620 ao Novo “O melhor tipo de humor é bas- Mundo, mais precisamente ao Ro- tante sério e as suas [de Twain] pia- chedo de Playmouth, em Nova Ingla- das vãos às raízes da natureza hu- terra. “O que há de tão elogioso no mana. É um humor que não depende comportamento dessa gente, desses do seu próprio tempo. É universal.” vossos antepassados de 1620, a tribo As palavras são de Jerome Loving, do Mayflower?”, indagava, para de- professor de literatura na Universi- pois continuar: “... aqueles peregri- dade do Texas, autor de Mark Twain nos do Mayflower eram uns fulanos — The Adventures of Samuel L Clemens, duros de roer. Sabiam velar pelos publicado em 2010, quando passa- seus interesses, e não perderam ram cem anos da morte do escritor. tempo em eliminar os antepassados Passaram dez anos. Desde então, do resto das pessoas. Eu sou um ru- Twain não deixou de ser lido, publi- fião fronteiriço do estado do Mis- cado, censurado ou aclamado. Poli- souri. Sou um ianque do Connecticut ticamente incorrecto para uns, pro- por adopção. Em mim, vocês têm a gressista e anti-racista para outros, a moral do Missouri e a cultura do sua obra parece encontrar eco num Connecticut; esta, meus senhores, é tempo em que os temas que tratou a combinação do homem perfeito.” nos livros e nos inúmeros discursos Twain usa uma das suas ferramen- Pode a arte do riso de Mark Twain servir que proferiu ao longo da vida estão tas favoritas, a ironia. E insiste: “O sob escrutínio. meu primeiro antepassado ameri- este tempo? Mais de cem anos depois Racismo, colonialismo, escrava- cano, meus senhores, foi um índio tura, acesso à educação, feminismo, — um índio de uma tribo muito an- da sua morte, continua a ser lido, censurado a ideia de classe, moral, identidade, tiga. Os vossos antepassados esfola- religião, linguagem, a impossibili- ram-no vivo, e agora eis-me órfão [...] e aplaudido. Usou o humor e o vernáculo dade de cumprir o “sonho ameri- O primeiro escravo trazido de África para construir um universo literário que fala cano” cruzam uma obra que ele gos- para Nova Inglaterra pelos vossos taria que fosse à imagem de Henry progenitores era meu antepassado de tensões que persistem. Em vida, foi James, mas que seria cunhada com o — porque sou mestiço, um magnífico seu próprio nome — o pseudónimo rafeiro de mil e um cambiantes.” considerado o grande humorista. Depois de Mark Twain —, onde se destaca uma É um dos 103 discursos deste vo- morto um escritor fundador de uma literatura. prosa com o vernáculo — que Walt lume, publicados originalmente em Whitman já levara à poesia–, e muito 1910 — o ano da morte do escritor — na Agora é alvo da polarização da sociedade. marcada pela oralidade. edição da obra integral de Twain, The “Ele foi o primeiro autor ameri- Oxford Mark Twain, escritos para se- cano a escrever como os americanos rem ditos em público, em performan- falam”, nota o actor Hal Holbrook (o ces que se assemelhariam ao que hoje Isabel Lucas Garganta Funda em Os Homens do se designa por stand-up comedy. Fo- 14 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 Quando tinha quatro anos a família Para Twain, mudou-se para Hannibal, cidade portuária do rio Mississippi que lhe como para os serviria de cenário para As Aventuras de Tom Sawyer e para As Aventuras brancos que o liam, de Huckleberry Finn. O pai morreu de pneumonia quando ele tinha 12 como para Huck Finn, anos e pouco depois teve de traba- lhou emprego. Trabalhou como ti- ram muitas centenas ao longo da vida, o drama tinha pógrafo em Nova Iorque; foi piloto um trabalho que começou antes de de um navio no Mississippi depois de escrever As Aventuras de Tom Sawyer que ver com a luta saber de cor cada ponto dos 3200 (1876) e As Aventuras de Huckleberry quilómetros do rio. Foi atrás do ouro Finn (1884), e que o celebrizou como do homem branco às Minas do Nevada, soube da morte “grande humorista da América”. do irmão mais novo num dos barcos Holbrook construiu a sua versão com a sua má do Mississippi, e começou a traba- de Mark Twain e recriou-o no século lhar como jornalista. Mudou-se para XX em muitas salas de espectáculos, consciência São Francisco, foi cronista de futili- primeiro em Nova Iorque, interpre- dades, jornalista de viagens, conhe- tando “um homem capaz de infringir e “não com a do ceu Olivia Langdon, casaram, vive- todas as regras”, que “não agia como ram em Nova Inglaterra, tiveram mandavam as boas maneiras”, co- homem negro [Jim], quatro filhos e três morreram em nhecido pela exuberância da sua vida de Mark Twain. Foi com esse oratória, o charuto sempre na boca, a lutar pela sua nome que assinou o primeiro livro, que “gostava de se vestir de branco o relato humorístico de uma viagem, nos seus últimos anos de vida”. Num liberdade” como e o primeiro que o celebrizou: The dos textos deste volume, A Reforma Celebrated Jumping Frog of Calaveras da Indumentária e os Direitos de Au- salientou o escritor County, em 1965, tinha 30 anos. tor, Mark Twain justifica essa esco- Confirmava-se o grande humorista lha. “Porque é que não me pergun- Benjamin Markovitz que os trabalhos seguintes consoli- tam porque razão trago eu esta indu- daram. O riso ganhava à seriedade mentária aparentemente tão pouco da literatura e só mais tarde, bem apropriada à estação? Vou explicar- depois da sua morte, Faulkner e He- vos. Descobri que, quando um ho- mingway falaram dele como o autor mem chega à idade avançada de se- Dava depois esse discurso impresso do grande romance da América, tenta e um anos, como é o meu caso, aos jornalistas e não de impedia de Huckleberry Finn, nada mais do que a visão permanente de roupas escu- inventar durante a actuação. Daí a o livro que tem sido alvo de censura ras costuma exercer sobre ele um dificuldade de ser fiel ao original, na segunda década do século XX, efeito deprimente.” conforme nota o tradutor Paulo Fa- com o estado do Nevada, onde Twain Com que tom de voz terá dito isto? ria que nesta edição portuguesa op- começou a escrever, a aboli-lo das A pergunta esteve na base do traba- tou por cruzar várias fontes para escolhas por considerar conter “lin- lho de Holbrook. “Como soava a voz poder chegar o mais perto possível guagem inadequada”. Em concreto, dele?” Não há registos. Só “testemu- as palavras ditas por Mark Twain. palavras como injun e nigger. No fi- nhos contraditórios” e “delírios ima- Como aquelas em que discorreu so- nal de 2010, justamente no centená- ginativos”, segundo o actor. “Ele ti- bre a moral pública e a moral privada rio da sua morte, era anunciada uma nha uma voz de tenor melodiosa”, dos americanos. “Ao longo de trezen- “nova” edição de Huck Finn; nela “uma expressão facial absoluta- tos e sessenta e três dias do ano, o essas palavras eram substituídas por mente entediada”, a pronúncia do cidadão americano mantém-se fiel à indian e slave, respectivamente. Missouri, o “tom nasalado” de Nova sua moral cristã privada e conserva “Sem dúvida, o uso da palavra “ne- Inglaterra, “deambulava pelo palco impoluto o carácter da nação, alçan- gro” — certamente a palavra mais em passo gingão, às vezes de mãos do-o ao mais elevado patamar; po- incendiária na língua inglesa — faz de nos bolsos, a falar descontraida- rém, os outros dois dias do ano, ele Huckleberry Finn um romance com- mente como se estivesse em sua deixa em casa a sua moral cristã pri- plicado de ensinar. Recentemente, casa”, gostava de fumar charuto e de vada e leva a sua moral pública até à o livro tem sido repetidamente con- jogar bilhar; vestia-se de branco nos repartição de finanças e até à mesa siderado inadequado para as crian- últimos anos de vida; “adorava fazer de voto, e dá o seu melhor para pre- ças em idade escolar no sistema negaças com a pausa”. A primeira judicar e arrasar o trabalho árduo e educacional dos EUA — e pode-se vez que fez de Mark Twain — um honesto que levou a cabo durante o entender completamente os senti- Mark Twain septuagenário vestido ano inteiro. Sem querer corar de ver- mentos de raiva e humilhação que de branco — Holbrook tinha 29 anos gonha, vota num cacique venal, se muitas crianças e pais afro-america- e um único adereço, o charuto. Foi, esse cacique for o Moisés do seu par- nos sentem ao ter essa palavra repe- conta na mesma introdução, “num tido, e, com a maior desenvoltura, é tidamente pronunciada na sala de clube nocturno, em Greenwich capaz de votar contra o homem mais aula (a palavra aparece 219 vezes no Village”. “Eu podia contar as histó- honesto do mundo contanto que livro de Twain)”, escrevia Peter Mes- rias com todo o vagar, deixar que as esse pertença à lista dos seus oposi- sent nas páginas do Guardian. O au- piadas fizessem o seu efeito, brincar tores.” Disse isto em Janeiro de 1906. tor de The Cambridge Introduction of com a natureza descontraída do hu- Em Abril de 1910 morria, aos 74 anos, Mark Twain, acrescentava, todavia, mor americano. (...) Aprendi a con- depois de uma vida cheia de episó- que essa “não era razão suficiente fiar nos textos de Twain”. dios trágicos. para a substituir um por termo (cen- Twain não discursava de impro- surado) mais suave. Twain era indu- viso. “Falar em público de improviso A polémica bitavelmente anti-racista.” — eis o que eu pretendia aprender. Nasceu com o nome de Samuel Isso está presente em múltiplos Não é nada fácil. Eu costumava fazer Langhorne Clemens, a 30 de Novem- textos deste Discursos de Mark Twain. o seguinte: começava a preparar-me bro de 1835, na localidade de Florida, Messent deixa a mensagem que tal- com uma semana de antecedência, filho de um advogado autoritário e vez o livro seja mais complicado do escrevia o meu discurso improvisado de uma mãe que lhe passou o sentido que um livro para crianças, que a e decorava-o de uma ponta à outra.” de humor e o gosto pela literatura. linguagem conta, que Huck, por e

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 15 Vale a pena salientar como Twain via

BETTMANN/GETTY IMAGES BETTMANN/GETTY a literatura e ele nela. “Não conheço nada e exemplo, quando fala, é her- A isto Baldwin acrescentou, numa lher na sociedade e na política — em que prejudique tanto deiro de uma sociedade e de uma aula em Berkeley: “Não concordo de todos estes temas foi um progres- cultura e isso inclui uma linguagem todo com o embaraço moral em sista. Os textos deste recente volume a boa literatura que era a do Sul dessa época, e foi Huckleberry Finn no que se refere ao apontam nesse sentido. “O que Mark era isso que Twain quis destacar e negro Jim.” E trazia ao debate a ques- Twain tem de magnífico é o facto de como um excesso não a “desumanização” do negro. tão da perspectiva: para Twain, nos fazer sorrir mesmo quando diz Estamos perante um dos parado- como para os brancos que o liam, a verdade cristalina, mesmo quando de verdade. Os xos da sociedade que Twain esmiu- como para Huck, o drama tinha que tem um sabor amargo. E toca-nos no çou. As tensões que notou persistem. ver com a luta do homem branco mais fundo do coração. Às vezes, factos contêm uma James Baldwin, escritor, negro, acti- com a sua má consciência e “não comove-nos e faz-nos chorar. Talvez vista dos direitos civis na América com a do homem negro [Jim], a lutar seja por isto que ele sobrevive e que certa dose de trouxe luz nova a esta discussão no pela sua liberdade” como salientou as pessoas ainda querem ouvir as centenário da publicação de Huckle- O actor Hal Holbrook construiu o escritor britânico-americano Ben- suas palavras”, diz Hal Holbrook. poesia, mas não berry Finn, em 1984. Norman Mailer a sua versão de Mark Twain jamin Markovitz noutro artigo, em Vale a pena salientar como o pró- tinha dito: “Ao ler [o romance], per- em salas de espectáculos, 2015, também no Gardian. prio Twain via a literatura, e ele nela. podemos usá-lo cebe-se mais uma vez que o caso interpretando um homem É um assunto que atravessa a arte Vem neste livro. “Não sou uma da- moribundo, quase esgotado, estran- que “não agia como mandavam e em particular a literatura: o lugar quelas pessoas que, ao exprimir em quantidade gulado e cheio de ódio entre brancos as boas maneiras”, conhecido da fala, quem podem falar sobre o opiniões, se atém aos factos. Não e negros ainda é nosso grande caso pela exuberância da sua quê. Em 1884 esse não era um as- conheço nada que prejudique tanto excessiva, caso amoroso nacional, e ai de nós se ter- oratória, o charuto sempre na sunto, agora é, mas até que ponto a boa literatura como um excesso de minar em repulsa e miséria mútuas. boca, que “gostava de se vestir isso pode gerar censura ou reescrita? verdade. Os factos contêm uma certa contrário Seguindo a corrente deste romance, de branco nos seus últimos Mark Twain, morto há mais de cem dose de poesia, mas não podemos estamos de volta àquela época feliz anos de vida” anos, vê-se no centro desta discus- usá-lo em quantidade excessiva, prejudicamos em que o caso amoroso era novo e são. Como na discussão do racismo, caso contrário prejudicamos a nossa tudo parecia possível.” da moral, do humor, do lugar da mu- escrita.” a nossa escrita”

Exposição Galeria do Piso Inferior Edifício Sede Novo Jardim Gulbenkian — 12 Projetos de Arquitetura

07 fev — 30 mar 2020 Entrada Livre GULBENKIAN.PT

16 F| CípsilonG_Publ ic| oSexta-feira_257x154mm .14ind dFevereiro 1 2020 10/02/2020 16:30 Gonçalo Frota ALÍPIO PADILHA Na continuação da série Sete Anos Sete Peças, a coreógrafa estreia no São Luiz, Lisboa, Quinta-Feira — Abracadabra (em Abril será a vez dos Dias da Dança, no Porto). Reivindica o poder transformador da palavra. A palavra gera acção, lembra-nos Cláudia Dias

ponto de partida para cada darmos uma frase. Foi este o meca- Idoia dá voz a Canción total, da dupla “é que o mau uso das palavras tem a seja pelo cansaço ou pela reduzida uma das criações de Cláu- nismo de trabalho com a Idoia.” catalã Maria Arnal i Marcel Bagés. É tendência para estar inscrito num disponibilidade para a escuta. dia Dias inscritas no ciclo A partir deste gesto, as duas foram uma canção retirada do magnífico léxico reduzido e pobre, enquanto “Num tempo em que se ganha elei- Sete Anos Sete Peças é sem- alimentando uma cumplicidade — já álbum 45 Cerebros y 1 Corazón e que que as palavras com um potencial ções manobrando twitters e afins”, pre o mesmo: o zero. Ou, com antecedentes, uma vez que remete também para o potencial emancipador são mais complexas e defende a coreógrafa, às vezes o que O pelo menos, aquilo que Cláudia e Idoia tinham já trabalhado opressor das palavras. A citação sur- menos directas, têm de funcionar há a fazer é desestruturar as palavras mais se possa aproximar do zero en- juntas num projecto pedagógico — giu quando as duas criadoras traba- num conjunto articulado para passar para voltar a dizê-las com um sentido quanto ausência de ideias prévias que permitiu reforçar a ideia de que lhavam sobre improvisações, desco- uma ideia de transformação. E hoje total. Para nos lembrar do seu valor, daquilo que pode ser construído no “não tendo exactamente as mesmas brindo que implicações de fisicali- em dias as pessoas têm pouca pa- do seu real significado, daquilo que encontro com um/a outro/a artista lentes para ver o mundo”, perten- dade eram trazidas pelas palavras ciência e pouco tempo para isso.” podem exigir e de como ganham — convidado/a pela coreógrafa para cem à mesma família. Só que este que despejavam uma sobre a outra. Daí resulta que as linguagens mais uma maior nitidez quando ditas num partilhar a construção e a interpre- gesto teve consequências ainda mais Até que chegaram a um ponto em simplistas e pobres vingam, nem que sopro colectivo. tação desse novo objecto. Por isso, o profundas — no arco do ciclo de sete que experimentaram com a gaguez, ponto de partida é este: dois corpos peças, Cláudia prossegue com “um sobretudo quando Zabaleta come- frente a frente, olhos nos olhos, sem projecto pessoal escondido atrás do çou a gaguejar sempre que tentava pistas de como lidar com a situação, projecto principal” e que consiste dizer “civilização” — tal como acon- naquilo a que Cláudia Dias chama em libertar-se do controlo absoluto tece com Maria Arnal em Canción “um dispositivo de espera”. Em Se- das suas criações, e esta é a primeira total. A civilização como palavra e gunda-Feira — Atenção à Direita, es- ocasião em que assume ter prescin- como ideia que emperra, que se tor- boçou-se um confronto com Pablo dido do voto de qualidade que reser- nou indizível por se encontrar que- Fidalgo Lareo; em Terça-Feira — Tudo vou para si nas peças anteriores. Por brada, por não ter sido completada o que É Sólido Dissolve-se no Ar, en- outro lado, o recurso ao livro de ou porque a palavra passou a trair o controu um olhar comum com Luca Joana Bértholo atirou Quinta-Feira seu significado. Bellezze sobre o absurdo ditado pe- para uma exploração da palavra en- A música volta a tomar conta da las fronteiras; em Quarta-Feira — O quanto ferramenta mobilizadora e cena quando o público é chamado Tempo das Cerejas, abriu uma cratera em que esse lugar central se revela ao palco, enquanto se escutam temas com Igor Gandra para questionar o até na cenografia, ocupada por um de Bia Ferreira, Elza Soares e Bomba lugar para onde se esvai toda a res- livro gigante que vai sendo folheado Estereo — “com letras absolutamente ponsabilidade ocidental pelos con- e usado para nos confrontar o tempo espantosas e que têm tudo que ver flitos armados no resto do mundo. todo com o peso que as palavras têm com o universo que tentámos criar”, Agora, em Quinta-Feira — Abracada- nas nossas vidas. justifica Cláudia. Esse é, afinal, um bra (de 13 a 16 de Fevereiro, Teatro Cláudia Dias e Idoia Zabaleta não momento procurado desde o início, São Luiz, Lisboa, a 23 e 24 de Abril pagam pelas palavras que usam em na busca por estabelecer uma rela- no Teatro do Bolhão, Porto, no âm- cena, mas questionam o valor que ção com o espectador que possa bito dos Dias da Dança), Cláudia co- lhes está associado e dizem-nos coi- crescer mesmo desembocar numa locou-se diante da artista basca Idoia sas como “uma das palavras mais comunhão. É o sentido mais claro e Zabaleta e alimentou a espera com ricas da História é petróleo”, “uma directo desta chamada à acção e à frases retiradas de Ecologia, romance das palavras mais sangrentas é he- mobilização pela palavra que vai de Joana Bértholo. morragia e outra é dinheiro”, “uma sendo sugeridas desde o início da Ecologia, para quem não se tenha relação sexual a palavra pão estaria peça, mas que carregam consigo ainda cruzado com o livro, imagina debaixo da palavra dinheiro”. Há, uma outra dolorosa reflexão acerca (ou antecipa?) um mundo em que portanto, toda uma dimensão sim- das limitações da criação artística. tenha de se pagar pelo uso das pala- bólica associada à palavra que está “Toda a equipa do Quinta-Feira tem vras. “Como andava bastante entu- sempre a invadir o palco, mas que consciência dessas limitações”, ga- siasmada com o livro, que muito me vinca o quanto há toda uma quali- rante Cláudia, pelo que este pequeno apaixonou, juntei àquele dispositivo dade da linguagem que dota de momento de pulsação colectiva “não a possibilidade de tirarmos frases do corpo, de vida e de acção esse sim- é romantizado, mas apenas uma livro que ia escrevendo em papeli- bolismo — como na apropriação das ideia daquilo que se pode conseguir nhos, dobrava e punha num cesti- palavras por parte das mulheres, depois lá fora”. nho”, conta Cláudia Dias. “Depois, usando-as como uma “ferramenta Tal como qualquer invento cientí- de manhã, tínhamos este ritual em emancipatória” e como “mobiliza- fico, acredita Cláudia Dias, também que agarrávamos numa série de fra- dora de colectivos”. as palavras podem ter “um bom ou ses que desconhecíamos, colocáva- um mau uso”, dependendo sempre Programação mos nos bolsos e íamos fazendo o tal Esta civili-li-li-li de quem as profere, de quem as es- Coliseu Porto Ageas www.coliseu.pt encontro frente a frente, mas em que A meio de Quinta-Feira a música ir- cuta e do contexto em que são ditas. existia este gesto de oferenda, ao rompe pela primeira vez quando “Aquilo que me parece”, acrescenta.

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 17 rês anos depois da estreia Danse (explicações lá mais para a grafo treinado, consegue ver as 25 de 10000 Gestes, ainda há frente) se abater sobre Portugal por coisas diferentes que 25 bailarinos Inês Nadais quem se levante a meio da quatro noites, duas no Porto (hoje e fazem ao mesmo tempo, sobretudo peça e corra “o mais depressa amanhã no Teatro Municipal Rivoli) quando o que fazem é propositada- possível” para a saída do tea- e duas em Lisboa (dias 21 e 22 na Cul- mente fugaz; tive de aceitar gestos Boris Charmatz criou T tro. A morte é uma experiên- turgest). Um espectador a sair “o que não conheço e de que não gosto, cia dolorosa, tendencialmente insu- mais rapidamente possível” do porque não conseguiria criar sozi- o dilúvio de gestos que portável — mesmo a morte de um Théâtre des Arts, relatam uns aos nho dez mil gestos e portanto os 10000 gesto, ou de muitos milhares de ges- outros, divertidos, os funcionários bailarinos tiveram de ser co-criado- agora se abate sobre Gestes abate- tos (não há uma contabilidade oficial do bengaleiro; centenas a ficarem res; e tive de aceitar uma banda-so- o Porto e Lisboa. 10000 -se sobre os aqui: Boris Charmatz, o coreógrafo muito depois de as luzes se acende- nora [o Requiem em D menor espectadores deste “cemitério”, como lhe chama rem para bater palmas e gritar K.626 de Mozart, na versão da Filar- Gestes é o requiem todo como um com uma liberdade poética que tam- “bravo!” com as mãos em concha ao mónica de Viena dirigida por Her- inventário do bém é pragmatismo, parou de contar redor da boca (viciante, esta prática bert von Karajan] que lutei com to- cheio de speed com que vocabulário assim que a avalanche prometida de registar gestos para poder contá- das as minhas forças por expulsar.” corporal que pelo título ficou cumprida e já não los até se tornarem incontáveis)? Antes de se tornar um exercício o coreógrafo francês acumulámos podia ser acusado de violar o pacto Acontece muitas vezes, conta Char- obsessivo, o espectáculo com que quis Äxar, em pleno ao longo maratonista com que este espectá- matz ao Ípsilon: “Assistir a este es- regressa a Portugal três anos e pico de centenas culo alicia o espectador). pectáculo também é uma experiên- depois de Manger, e a convite das movimento, o espírito de milhares Aconteceu em Rouen há uma se- cia de aceitação. Tal como para mim mesmas instituições, foi uma ideia de anos mana, na última paragem de 10000 foi uma experiência de aceitação — a ideia um tanto louca, concorda, destes anos de aceleração de evolução Gestes antes de o dilúvio de propor- construí-lo: tive de aceitar que há de fazer uma peça em que absolu- digital e obsolescência enquanto ções bíblicas com que Boris Char- gestos que eu nunca verei, porque tamente nenhum gesto se repetisse espécie matz encerrou o seu Musée de la ninguém, nem mesmo um coreó- entre o princípio e o fim. “Foi uma programada.

Para BRESADOLA GIANMARCO onde vão os gestos quando morrem

18 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 coisa que me ocorreu no MoMA, que o Manchester International Fes- e desdobrando o campo de pesquisa: enquanto assistia a uma versão ex- tival, outro dos co-produtores deste inventariámos gestos políticos, ges- pandida, extremamente longa, de espectáculo estreado em Setembro tos eróticos, gestos religiosos, gestos uma anterior peça minha que ali de 2017 na Volksbühne, em Berlim, sociais, gestos afectivos. E quando já apresentámos, Levée des Conflits. É cedeu ao coreógrafo francês. tínhamos esgotado tudo o que se uma peça que se resume a 25 gestos, Foram oito semanas de produção podia fazer no palco, pusemo-nos a que estão lá desde o princípio; uma coreográfica vertiginosa — e rigorosa, imaginar o que poderíamos fazer espécie de escultura viva, hipnótica. porque mais do que um pacto com com o público: com as cadeiras, os De repente, apeteceu-me fazer a o espectador 10000 Gestes é um casacos, as folhas de sala, os sacos, peça inversa, uma peça em que cada pacto do coreógrafo consigo próprio e, naturalmente, as pessoas.” gesto fosse único e irrepetível”, ex- e com os 25 bailarinos que o acom- Esmagador, 10000 Gestes abate- plica. Tinha uma paisagem na ca- panharam nesta aventura pouco se então (literalmente) sobre os es- beça, ainda que apenas para início menos do que épica. Quantos gestos pectadores como um inventário, de conversa: uma chuva de gestos ali foram gerados (e, desses, quantos certamente incompleto, do vocabu- torrencial, ininterrupta, a desabar acabaram de facto incorporados no lário corporal que acumulámos ao em cima de um palco. espectáculo) é uma enormidade im- longo de centenas de milhares de Como em grande parte das criações possível de calcular. “Quando o es- anos de evolução enquanto espécie, deste coreógrafo francês que com o pectáculo se resume a uma ideia, é abraços, masturbações e punhos tempo se constituiu também como bom que a respeitemos escrupulo- erguidos incluídos. E também das teórico de referência da dança con- samente, caso contrário não fica angústias, individuais e colectivas, temporânea, embora para isso tenha nada. Portanto sim, estava disposto que esses gestos projectam ou acti- tido de passar pelo museu — “De co- a levar a ideia dos dez mil gestos ao vam — e que a mais fúnebre das mú- reógrafos como o Jérôme Bel, o Xavier limite. Na verdade, há muito mais do sicas fúnebres, aquela que Boris Le Roy, eu, e muitos outros, dizia-se que dez mil gestos na peça. Esse nú- Charmatz tentou não usar, amplifica no meio do espectáculo que fazíamos mero corresponde a um cálculo monumentalmente. ‘não-dança’. Com essa crítica recor- aproximativo que fiz no início, su- O Requiem de Mozart, lamenta rente de que éramos pseudo-intelec- pondo que cada bailarino podia as- com um fair-play um tanto cómico, tuais (…). De repente, os museus de- similar 400 gestos…”, esclarece. é um dos poucos gestos que conse- ram um lugar à criação conceptual no Rapidamente percebeu que era guiu inscrever nesta peça colectiva domínio da dança. E aí, no museu, pouco: se cada gesto demorasse em que sabia à partida ser incapaz de GIANMARCO BRESADOLA GIANMARCO passámos a ser artistas populares, ao média dois segundos, em menos de coreografar sozinho. “Ninguém con- passo que no circuito das artes ditas 15 minutos estariam dissipados dez segue criar dez mil gestos. Muito ‘vivas’ éramos vistos como uns cha- mil gestos, e Boris Charmatz teria menos um coreógrafo que se leve a tos”, recordava há dois anos ao Libé- nos braços uma peça demasiado sério [risos]. Os coreógrafos gostam ration –, a ideia inicial era já todo um curta. Foi um alívio: “A partir daí, no máximo de cinco gestos, que pas- programa. “Esse pressuposto do gesto com os dez mil gestos garantidos, sam a vida a refazer, a trabalhar, a que não se repete aflora um mito fun- pudemos deixar de contar.” desenvolver — três, no caso da Anne dador da dança, o de que não há dois Desse trabalho preliminar de acu- Teresa de Keersmaeker [risos]! Por- gestos iguais: se executares o mesmo mulação, o elenco passou então ao tanto foram os bailarinos que fabri- gesto amanhã, já será outro gesto, por- trabalho de criação, não menos caram isto. Enfim, podíamos ter que o teu corpo transformou-se entre- exaustivo. “Começámos por acumu- usado uma ferramenta digital para tanto, envelheceu, mesmo que infini- lar gestos de nada: piscar o olho, gerar dez mil gestos automatica- tesimalmente”, diz. E, no entanto, “a franzir o sobrolho, virar o pescoço mente, mas fizemos tudo no estúdio: efemeridade que acreditamos ser o para um lado, para o outro. Em qua- o que está aqui é puro artesanato ADN da dança” é em parte uma fraude. tro segundos tínhamos centenas de coreográfico. E cada bailarino que “Eu danço há 27 anos, a Anne Teresa gestos. Depois fomos aprofundando entra, para substituir alguém que se de Keersmaeker dança o Fase há lesiona ou que tem outros compro- quantos mais? Já para não dizer que missos, traz a sua própria partitura; continuamos, um século depois, a seria impraticável pedir-lhe que de- dançar a Giselle ou a Sagração da Pri- corasse centenas e centenas de ges- mavera. De resto, com o vídeo, tudo “A torrente de tos de outro intérprete.” se alterou radicalmente: o YouTube é Enquanto os gestos cresciam e se para todos os efeitos um museu da gestos se precipita multiplicavam em cima do palco, Boris dança. A dança é definitivamente me- Charmatz e a sua assistente, Magali nos efémera do que pensamos. É pre- no palco em Caillet-Gajan, observavam o caos, de cária, mas não é efémera.” fora, não necessariamente para o or- fast-forward é aquele ganizar: “Intrigavam-me os gestos que Abraços e punhos nunca se viam. Não sabia se não se erguidos filme compactado viam porque eram pequenos ou por- Foi com tudo isto a borbulhar na sua que estavam lá atrás… Mais do que icónica cabeça ruiva, sem medo da da vida que dizem escolher gestos, dedicámo-nos então tempestade que, xamânicamente, a torná-los visíveis. O que, por incrível se dispusera a conjurar, que Boris que vemos que pareça, passou pela voz e pela Charmatz desembarcou num velho música. A dada altura, nos ensaios, os e abandonado terminal ferroviário segundos antes de gestos já me pareciam todos iguais, em Manchester. A ideia abstracta de planos, informes; foi quando pedi aos fazer um espectáculo sem repeti- morrer. E o Requiem bailarinos para gritarem enquanto se ções tornou-se concreta nesse de- moviam que comecei a vê-los mais pósito industrial “sujo e húmido” do Mozart tem claramente.” e o mesmo sentido de urgência: música para os mortos composta por um homem a morrer…” ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 19 e Foi a “parte mais problemá- A vida em fast-forward “Nesta bolha de dez mil gestos”, contemplar cada gesto sem pressas”, tica” desta construção que Char- Talvez essa intromissão não dese- diz, subitamente poético, “o espec- explica o coreógrafo, elucidando a matz imaginou inicialmente sem jada tenha mudado tudo, impondo tador sabe, quando vê alguém a dizer elasticidade do seu olhar sobre a banda-sonora. E, ao mesmo tempo, uma narrativa “existencial” a um adeus, ou a raspar o chão com as dança. Também o Musée de la Danse uma (mais uma) inevitabilidade. espectáculo que podia ter tido o im- unhas, que não vai voltar a ver esses apareceu para desaparecer, ainda “Queria fazer uma peça em silêncio: pacto estarrecedor de uma avalan- gestos”. Os gestos deste espectá- que não completamente. “O meu os gestos, a maneira como rasgam che: ininteligível e inesquecível. O culo foram produzidos para serem mandato terminou e o projecto ficou e produzem som, seriam a música. mais certo, no entanto, é que essa imediatamente abandonados, apa- adormecido — prefiro dizer adorme- Só que bizarramente, como espec- narrativa existencial já estivesse lá: gados, enterrados; são gestos que cido do que dizer morto [risos]. Há tador, isso vedava-me o acesso aos a morte assombra 10000 Gestes por- aparecem apenas para desapare- obras que devolvemos aos artistas, gestos: era como se estivesse a ver que a morte assombra a vida. E Bo- cer. Como tudo neste mundo da outras que arquivámos… Mas ainda pessoas dentro de um aquário. De- ris Charmatz, parece, já não tem aceleração digital e na obsolescência não sei o que fazer do espólio que cidi então que os bailarinos canta- tanto horror às fórmulas do programada, aliás: “No tempo desta acumulámos... Em Rennes fizemos riam todo o Requiem do Mozart a storytelling clássico: “A torrente de entrevista, eu receberei umas 30 muitas coisas no espaço público e capella – mal, evidentemente, por- gestos que durante uma hora se pre- mensagens na minha caixa de email acho que é a questão que mais me que não são cantores —, mas eles já cipita no palco em fast-forward é — e só não sou mais bombardeado interessa agora — por algum motivo tinham trabalho suficiente com os um pouco aquele filme compactado porque não tenho redes sociais… O a associação que fundei se chama gestos e era uma sobrecarga impos- da vida que dizem que vemos segun- nosso tempo é frenético e como co- Terrain. Acho que o museu da dança sível.” Nessa altura, porém, já não dos antes de morrer. E o Requiem do reógrafo só podia lidar com isso de também pode ser lá fora: uma inter- havia nada a fazer. “Tínhamos pas- Mozart tem exactamente o mesmo duas maneiras: ou fazia uma coreo- venção urbana, uma maneira de sado demasiado tempo a ensaiar ao sentido de urgência: é música para grafia da meditação, do ioga, da len- habitar a cidade”, antecipa. som do Requiem. Tentei tudo para os mortos composta por um homem tidão, ou me lançava no caos desta Três anos depois da estreia o tirar, mas não consegui.” que está a morrer…”. velocidade, tentando reflectir sobre de 10000 Gestes (e dois anos depois ele em pleno olho do furacão.” do fecho do Musée de la Danse), Bo- Além do peso da morte, 10000 ris ainda não sabe exactamente de Gestes carregou também o peso do que é que os espectadores se recor- fim de um projecto: foi a última peça dam quando saem da peça — a meio

TRISTRAM KENTON TRISTRAM que Charmatz criou enquanto direc- ou muito depois do fim. “Num de- tor do Musée de la Danse, nome com bate após uma das inúmeras apre- que rebaptizou — e revolucionou — o sentações que fizemos, a modera- Centre Corégraphique National de dora pediu aos presentes para des- Rennes quando assumiu o cargo, em creverem um gesto que tivessem 2009. Durante dez anos, fez da ins- retido. Muitos descreveram detalha- tituição um laboratório vivo onde a damente gestos que eu nem sequer experiência da dança foi levada a sabia que estavam lá. Para mim, en- consequências mais imprevisíveis do quanto coreógrafo, isso é um mate- que o habitual formato do espectá- rial fascinante. E foi uma constante culo de palco com princípio, meio e ao longo do processo. Havia momen- fim; do seu Musée de la Danse resul- tos em que a Magali se ria e eu não taram filmes, exposições, programas percebia de quê; quando começava curatoriais, ensaios, espectáculos a explicar-me, o gesto que a tinha duracionais e ocupações do espaço entusiasmado já não existia, tinha público que gigantes da arte contem- passado. E também há gestos que eu porânea como o MoMA, a Tate Mo- vejo e mais ninguém vê. Hoje o Dimi- dern e o Reina Sofía quiseram repli- tri Chamblas [o bailarino com que car. “10000 Gestes é de certa forma Boris Charmatz se estreou profissio- o fecho desse ciclo. Aliás, podia ter nalmente como coreógrafo, em 1993, sido, em vez de um espectáculo, uma no dueto À-bras-le-corps] não vai exposição em que o espectador, co- dançar, e eu sei que vou ver os gestos locado diante do intérprete, pudesse dele mesmo que não estejam lá. Vejo o que falta — e obviamente não falta Exercício nada, porque o palco está cheio de obsessivo, gestos.” o espectáculo Mais do que festejar este ou

com que KENTON TRISTRAM “Estava disposto aquele gesto — este punho fechado regressa a como só esta pessoa o fecharia, Portugal três a levar a ideia dos aquela perna flectida como só anos depois aquela pessoa a flectiria —, 10000 de Manger, foi dez mil gestos ao Gestes festeja a compulsão humana, uma ideia um e antes disso animal, para “fazer tanto louca de limite. Na verdade, ainda mais um gesto, e mais outro fazer uma ainda”, diz Boris Charmatz. “O de- peça em que há muito mais sejo, a aventura, a vontade às tantas nenhum gesto totalmente irracional de continuar, se repetisse do que dez mil espero que seja isso que as pessoas entre o retenham daqui.” princípio gestos na peça. Esse e o fim O Ípsilon viajou a convite do Teatro número corresponde Municipal do Porto e da Culturgest a um cálculo aproximativo que fiz no início, supondo que cada bailarino podia assimilar 400 gestos…”

20 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 para a artista não apenas do seu lhidos: toros e troncos de madeira tas que, segundo o curador, convo- processo de trabalho — longo, ma- com rachas e orifícios provocados cam a ideia de um certo hibridismo nual, autoral, inserido numa tradi- por insectos, ou ainda madeiras não entre a cidade e o campo. Maier fala ção bem estabelecida que radica no nobres, como o pinho, pouco habi- de algumas tendências que viu na antiquíssimo processo de autonomi- tuais na escultura que se pretendia Trienal de Arquitectura para dizer zação da escultura relativamente à de vocação eterna. que “há qualquer coisa hoje de uma arquitectura —, mas também da in- “Eu só trabalho com troncos que cidade em movimento”, e para falar terrogação sistemática sobre os mo- não são tratados. Se têm buraco do de uma transformação do que sem- dos como a modernidade e a con- caruncho, se têm rachas, isso são pre considerámos rural e urbano”. temporaneidade vêem essa mesma acidentes que incorporo no resul- De Ana Lupas e Lala Meredith-Vula escultura. Claire de Santa Coloma, tado final. O objecto final é determi- apresenta-se documentação fotográ- que nasceu em Buenos Aires e viveu nado pela própria natureza da ma- fica de várias acções feitas respecti- no Brasil e em França antes de se deira. Se há um buraquinho e eu vamente na Transilvânia e na Albân- radicar em Portugal, considera ul- passar um fio através dele, posso sus- cia — da primeira, esculturas de trapassado todo o discurso sobre a pender uma escultura, como uma forragem feitas com os habitantes possibilidade ou não de apresentar cortina. O mesmo acontece com o pó locais e da segunda medas de feno a escultura em plintos, coisa que o de grafite, que chamo o meu pó má- taambém construídas in situ. Ambas modernismo aboliu. Conta-nos gico. Muitas vezes a madeira tem as acções nos recordam séries de mesmo que já fez uma outra exposi- imensos acidentes que te deixam na Alberto Carneiro, das quais a expo- ção onde todas as esculturas estavam dúvida sobre se está sã ou não, e sição mostra ampla documentação Os actos de em cima de plintos. quando eu meto pó de grafite, de re- sobre a Operação Estética de Vilar do A existência ou não de plinto, re- pente, é como se fosse uma escultura Paraíso (1973-74), mas também uma corde-se, ligava-se a um modo de séria”, acrescenta. peça inédita, No Jardim estaremos resistência conceber a apresentação da escul- melhor (1971). O centro da galeria é tura que a obra de arte moderna rei- Entre o campo ocupado com uma enorme escultura vindicava: sem artifícios, próxima do e a cidade de Alberto Carneiro, Metáforas da de Claire chão e da escala terrena, não aurá- A exposição da 3+1 não é a única em Água ou as Naus a Haver por Mares tica. Do mesmo modo, a escultura que Claire de Santa Coloma participa Nunca Dantes Navegados, de 93-94. modernista construiu uma identi- actualmente em Lisboa. Está tam- Tal como sucede nesta escultura, de Santa dade em torno do seu carácter não bém integrada em Topografias Ru- também as duas peças que Claire de utilitário. A função estava reservada rais, uma colectiva que Tobi Maier Santa Coloma aqui mostradas são ao objecto de design, do mesmo concebeu para a Quadrum. Aqui, feitas de dois tipos diferentes de ma- Coloma modo que a função decortiva perten- junta duas esculturas suas a obras de deira, e contrastam, na sua diminuta cia ao object d’art, ou ao artesanato Alberto Carneiro, da romena Ana dimensão, com a escala quase mo- de autor, fabricado e assinado por um Lupas (n. 1940) e de Lala Meredith- numental da obra do escultor. Tobi Duas exposições crafter, para utilizar a palavra hoje na Vula (n. Sarajevo, 1966), a propósito, Maier fala de um acto de resistência, moda, que partilha com a escultura como o nome indica, de uma capta- de um modo de trabalhar a madeira em Lisboa artística o carácter único de cada ção da inspiração no meio rural. Tobi com as mãos que já muito poucos laire de Santa Coloma vai peça construída. Claire de Santa Co- Maier conta que escolheu a argentina artistas usam. De certa forma, Santa apresentam explicando o modo como se loma não apenas nega explicitamente para integrar este grupo por ter visto Coloma, como Alberto Carneiro, trabalhos da interessou pela obra de esta divisão, como constrói escultu- no seu trabalho, por um lado, afini- Lupas e Meredith Vula, partilha Brancusi (1876-1957). Ao ras, à mão, com cinzel e martelo, que dades com o processo escultórico de desta vontade de continuar a traba- escultora princípio, não gostava do parecem mesas, cadeiras, cortinados Alberto Carneiro; e, por outro, por lhar com a mão, em vez de delegar C trabalho deste modernista, — em suma, que possuem todos os este ter sido o primeiro artista por- em assistentes e operários o lado argentina, que um dos primeiros a pôr em causa os “defeitos” que em tempos a teoria tuguês que Claire conheceu, quando duro, árduo, cansativo e também princípios que definiam a escultura que fundamentou a arte modernista, estava a mudar-se para Portugal. gratificante do acto de criar. Num dialogam de desde o Renascimento. “Em 2012 fiz na senda de um Clement Greenberg, A exposição teve um primeiro mo- tempo em que o “meio” da arte dá modo muito uma exposição no Rio de Janeiro, na por exemplo, quis abolir. mento na Galeria Diferença, termi- por assegurado que a arte, é aquilo galeria Progetti; havia uma prateleira Nesta exposição há uma peça que nado há dias, onde se mostravam que o artista diz que é arte, esta ati- pessoal com a que percorria todo o espaço da sala. se assemelha a uma cadeira; há outra exclusivamente obras sobre papel de tude tem qualquer coisa de revolu- Estava cheia de objectos do meu ate- que lembra uma mesa, outra, uma Carneiro. Na Quadrum, reúne artis- cionário. tradição da lier, de restos, das cunhas que uso, cortina, outra ainda uma almofada prática de fotografias”. Claire chama-lhes no chão para suporte de um corpo. “exercícios de escultura”, que eram Todas têm títulos que não convocam escultórica. ao mesmo tempo derivações de for- estas associações, mas que indicam mas geométricas: um cubo, um cubo acções — a última que mencionámos torcido, uma esfera, um ovóide. chama-se Recline and Release, como Luísa Soares Quando faltava uma semana para a se convidasse um corpo invisível a inauguração, ainda lhe sobrava um deitar-se por cima dela. Estamos de Oliveira pedaço de madeira e perguntou-se o longe da sacralização da obra, da que iria fazer com ele. Decidiu que proibição de tocar ou mexer que “ia fazer uma escultura, uma coisa acompanha qualquer visita a um mmmmm que tenha aspecto de escultura. E museu. Mesmo a um museu de arte qual era a referência mais simples, contemporânea. Modo de Uso mais directa à escultura abstracta? Compreende-se que a artista te- De Claire de Santa Coloma Pensei em Brancusi.” nha dado o nome de “modo de usar” LISBOA. Galeria 3+1. Lg. Hintze Ribeiro, 2E-F. Com o estudo de Brancusi, dos a esta exposição, embora “a cadeira De 3ª a 6ª, das 14h às 20. Sábados, das 11h às 16. objectos que fazia e que, sem sombra em si tecnicamente não se possa Até 7 de Março. de dúvida, são esculturas, veio o usar.. O assento é muito curto.” Mas gosto pela obra do romeno. “A minha vai falando de um corpo ausente, de mmmmm pergunta essencial antes de começar um actor que poderá ter interferido a trabalhar é sempre: o que vou fa- com todas as esculturas: “as peças Topografias Rurais zer? É que as pessoas que vêem as têm uma espécie de aura; têm uma De Alberto Carneiro, Ana Lupas, minhas exposições comentam sem- voluptuosidade. A cadeira, por Lala Meredith-Vula, Claire de pre a montagem, mas nunca a escul- exemplo, pode-se identificar através Santa Coloma tura”, explica, enquanto mostra as da forma, mas parece também uma LISBOA. Galeria Quadrum. R. Alberto de peças que integram a exposição que almofada deformada por um Oliveira, 52. De 3ª a 6ª. Das 14h30 às 19h. decorre agora na galeria 3+1. O pen- corpo…”. Esta característica usada, Sábado e domingo, das 10h às 13h e das 14h às samento sobre a escultura, sobre impura se lhe quisermos chamar, 18h. Até 23 de Fevereiro. aquilo que ela é ou não é, decorre existe também nos materiais esco-

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 21 Centro de Inauguração Artes Visuais 15/02 · 18h

15/02 — 19/04/2020 Invalid Passwords ← "Unknown a.k.a. Desconocida (Terrace)", 2012. Cortesia do artista ← "Unknown a.k.a. Desconocida (Terrace)", NOÉ SENDAS

Pátio da Inquisição 10 +351 239 836 930 Terça a Domingo 3000–221 Coimbra [email protected] 14h – 19h Curadoria Ciclo Museu Ana Anacleto das Obsessões ← Cortesia do artista Project Room Unfinished Past (revisited)

HENRIQUE PAVÃO

Apoio Parceiros de Entrada Institucional Comunicação Gratuita arim Anouïz, 54 anos, natu- promessas que juraram na floresta, A Vida Invisível há uma harmonia ral de Fortaleza, Brasil, diz pelo patriarcado, a força de opressão entre corpos e paisagem. Por às tantas que houve uma familiar e social. exemplo: a sequência em que altura em que quis ser lido Neste micro-clima de violência e Guida regressa a casa, grávida, e como “cineasta queer”. Fa- sobrevivência criado com a cumpli- o vento que se ouve... A natureza Política de K zemos-lhe notar que, cada cidade de uma directora de fotogra- e os corpos são um mesmo um à sua maneira, também o espa- fia que não conhecia o Rio de Janeiro, movimento. Até na morte. Há nhol Pedro Almodóvar ou o norte- Hélène Louvart (de Feliz como Lá- uma espécie de “melodia” americano Todd Haynes começaram zaro, de Alice Rohrwacher), há uma biológica no filme. por reivindicar as margens (nos iní- outra variável atmosférica: os traços Concordo completamente. Sobre cios, nos tempos de, respectiva- com que a telenovela marcou e essa cena, filmámos num dia em que sensações mente, Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas marca o Brasil. No país que trata por a temperatura estava sempre a do Grupo, 1980, ou Veneno, 1991) e “tu” esse tipo de imaginário ficcional mudar, sol e chuva. Quando acabei foram caminhando com os corpos dominante, que pode ser esmagador, de filmar disse à produção que não A Vida Invisível valeu a Karim Anouïz o prémio Un Certain Regard transgressores em direcção ao cen- A Vida Invisível, com as suas tangen- tinha corrido bem, o clima tinha em Cannes 2019 tro: o melodrama. Injectando nele tes ao reconhecível, as aproximações mudado a meio, teria de filmar mais vários vírus, é claro. mas também as fugas ao naturalismo no dia seguinte. Tivemos sorte por- Isto vem a propósito dos reenqua- (a familiariade do registo dos acto- que o tempo estava de facto mais dramentos a que foi procedendo, de res, a sua palpabilidade, por um estável [no dia seguinte]. Mas duran- ©AINOUZ Madame Satã, 2002 (sobre uma figura lado, e o som sempre a amplificar, a te a montagem não fez sentido utilizar da marginalidade urbana do Rio dos fabricar “novas” imagens), é algo que o reshoot. Voltei às sequências que anos 30, um transformista, negro, se propõe brotar em terra queimada. filmara antes. Há um momento em pobre, homossexual) a Praia do Fu- De várias maneiras A Vida Invisível é que Guida diz “estava a chover e ago- turo, 2014 (história de amor entre ir- então um cavalo de Tróia infiltrado ra está a fazer sol”. Isso tinha sido fil- mãos, mas fundamentalmente histó- no terreno do inimigo. Aquele país mado de propósito, para salvar a cena ria de personagens em fuga das suas conservador que resultou do voto de caso não pudesse voltar a filmar. Isso narrativas). O corpo como excesso a 53 milhões de brasileiros. ajudou-me a entender que era muito transbordar do ecrã, no primeiro importante, e é bonito o que você diz, caso; depois, como peça de experiên- Definiu o filme como um essa sincronia entre o que as perso- cia, um puzzle cerebral, intrigante, “melodrama tropical”. O que é nagens estão a viver e o espaço, o que o espectador tinha de completar. um melodrama tropical? clima e a vegetação. Essas sucessivas reconfigurações de- Quando se pensa em melodrama pen- Concordo que o plano geral de ram lugar, em A Vida Invisível (o filme, sa-se em algo velho, poeirento. Queria Madame Satã é o corpo, o corpo de a partir do romance A Vida Invisível traduzir o melodrama para algo de uma personagem que não cabia no de Eurídice de Gusmão, de Martha Ba- agora e para algo de brasileiro. ecrã e que explodia para além do talha, que recebeu o prémio Un Cer- É um género que tem sido decli- quadro. Aqui é diferente, os corpos tain Regard em Cannes 2019), a algo nado de diferentes maneiras em dife- têm uma vulnerabilidade em relação que é uma superação. Vislumbra-se rentes países: melodrama mexicano, ao espaço em que estão. uma harmoniosa sensualidade dentro egípcio, libanês, espanhol, hoje ligado Fui compreendendo isso durante do espaço confinado que é o ecrã, ao Almodóvar. Pensei em “tropical” a rodagem, mais do que durante o uma sincronia entre figuras e cenário. porque é filmado no Rio de Janeiro, argumento. Ficou claro com a morte Uma melodia dos organismos vivos: uma cidade quente, com um deter- da personagem de Filomena [amiga os corpos e a natureza rimando, minado tipo de vegetação, a Mata de Guida]… acompanhando-se mutuamente, nas Atlântica, e queria utilizar o Rio não … fundamental para se sentir fulgurâncias e nos ocasos, nos nasci- apenas como cenário mas como algo essa sincronia dos corpos com a mentos e nas mortes, no fulgor e no importante para a história. Queria natureza … apodrecimento. pensar que corpos são estes que vi- … e ainda o lodo. Era importante Karim chama-lhe “melodrama vem numa cidade quente que está começar com a imagem do lodo e da tropical”. Desmultiplicará essa sín- perto do mar e da floresta e, através pedra. A preseverança do lodo na tese nesta conversa. Mas tem a ver dos códigos do melodrama, contami- pedra é uma metáfora disso, assim com a forma como forjou, com a nar o género com isso. como o momento da morte da Filo- Mata Atlântica, uma declinação local Em termos objectivos, tratava-se de mena. Para além disso, a natureza para um género. Por isso, com este trazer a presença da floresta para o está sempre presente através do filme, um cineasta apresenta-se com filme. Pensar numa cidade que foi som.Na cena que mencionou, todo Karim Anouïz chama-lhe tonalidades de historiador e de ar- construída dentro da Mata Atlântica, o som foi inventado em pós-produ- queólogo, vibrações que são trans- pensar em personagens que se movi- ção. Sendo o melodrama algo que “melodrama tropical”. Forjou, com mitidas aos corpos e gestos de per- mentam dentro de um clima quente tem a ver com o superlativo, que se a Mata Atlântica do Rio de Janeiro, sonagens, tal como o calor e a humi- e húmido. A Eurídice está sempre a constrói sobre o excesso, aquele som dade. Estas personagens e estes pensar na irmã, a recordar de quando foi muito discutido. Queria um som uma declinação para um género. gestos são o resultado de um levan- se encontravam na floresta. Por isso de vento artificial. tamento da história da vida privada há sempre plantas dentro de casa, Mostrou à equipa O Medo Come a Com A Vida Invisível, um cineasta do Rio de Janeiro. tornando o melodrama um género Alma (1974) de Fassbinder. sensualista apresenta-se com tons É esse o cenário, anos 50. Duas específico no Brasil, agora. Lembrei-me de Todd Haynes de irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Recordando um filme seu Longe do Paraíso (2003) — que de historiador e arqueólogo. Guida ( Julia Stckler), filhas de imi- anterior: Madame Satã (2001). O era mais ensaístico; a sua grantes portugueses (António Fon- corpo já era decisivo e ocupava abordagem, para utilizar as suas seca e Flávia Gusmão), são afastadas de tal maneira o ecrã, palavras, situa-se mais “entre o uma da outra, tornadas invisíveis ao transbordando até, que se fígado e o coração”. Pus-me a Vasco Câmara longo das suas vidas, amputadas das instalava uma claustrofobia. Em pensar então que A Vida Invisível

24 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 No país que trata por “tu” o imaginário ficcional da telenova, que é dominante, e que pode ser esmagador, A Vida Invisível, é algo que se propõe renascer em terra queimada. Como um Cavalo de Tróia infiltrado em terreno inimigo

“Este filme não é só uma saga de família, é uma saga do corpo feminino. Corpo que menstrua, que dá leite, que goza e que é penetrado. Não podia abster-me da experiência física”

quer equacionar a possibilidade Completamente. A própria Fernanda família. Como diapasão, a memória outras mulheres, parecidas com a política hoje do melodrama. Montenegro [Eurídice na actualida- mais forte que tinha do melodrama: minha mãe. Havia no livro coisas Vindo de um país em que a de] fez várias novelas radiofónicas. o final de Imitação da Vida (1959), muito semelhantes à experiência paisagem audiovisual está Muitas das actrizes do começo da do Douglas Sirk, a cena em que a dela. Eu sou como se fosse o Chico ocupada pela telelovela, qual o televisão na década de 70 eram actri- filha chega e a mãe já morta, com [filho da personagem Guida], e nes- espaço? zes da rádio. O problema da novela aquelas flores e tudo isso. Nunca se sentido é como se fizesse um fil- O meu interesse em trabalhar com é que é feita para ser ouvida e não vou esquecer isso. Estive sempre à me sobre a Guida. Foi imediata, este género vem deste lugar, por para ser vista: pode-se estar a passar procura de contaminar o discurso física, a minha relação com o roman- achar que enquanto nação estamos roupa e entender o que está a acon- com esse tipo de vibração emocio- ce. E depois havia coincidências: a muito familiarizados com o melodra- tecer sem acompanhar visualmente. nal. Algo de contundentemente melhor amiga da minha mãe, uma A Vida ma como coisa ruim, tosca, feita com O desafio era tornar essa tradição político através da sensação. Mas mulher ainda viva, que é uma femi- Invisível luz sórdida. Mas é um código emocio- grávida de visualidade. confesso que isso não estava no pa- nista, uma cientista, chama-se Gui- De Karim nal que conhecemos bem. Por isso A intervenção política faz-se pel e só se concretizou na monta- da; a minha mãe tem uma irmã, fui Aïnouz era importante resgatar isso a partir dando ao espectador a sensação gem. Há uma certa margem de não sempre criado com estas duas Com Julia de um lugar que … não quero empre- de familiaridade e fazendo saber como cheguei ali. Isso é que é mulheres. Eram coisas muito pes- Stockler, Carol gar a palavra “sofisticado” porque me passar a transgressão. bonito no melodrama: está sempre soais e a partir do momento em que Duarte, Flávia parece arrogante… mas uma melodia Certamente. Como construir um à frente da minha intenção. fui mergulhando no romance fui Gusmão a que estamos habituados e em rela- discurso político que não seja discur- Como se, indomável, entrevistando pessoas, porque não ção à qual utilizo outros instrumen- so mas que seja sensação? Era impor- liderasse o processo… me dei como satisfeito só com o que mmmmm tos. Ou seja: num país habituado a tante falar do patriarcado não de ... é isso. Não sei exactamente o que estava no romance. Queria saber das este género mas em registo televisivo maneira intelectual mas de maneira fiz, o filme foi ficando assim. histórias das pessoas daquela gera- baseado mais na rádio do que na concreta. Através da experiência dos Que ressonâncias teve em si o ção e tinha o privilégio de fazer um imagem, como traduzir isso de corpos, do afogamento dos corpos. livro, esta história das duas filme sobre pessoas ainda vivas. maneira cinematográfica? Porque Através de sensações. irmãs? Quando olhamos para essas pessoas ainda lidamos com o melodrama no Tenho acompanhado a forma Li o romance uma semana depois de não nos damos conta do que elas Brasil de maneira radiofónica. A como o filme comove muito as pes- ter perdido a minha mãe. E a minha passaram. matriz da telenovela brasileira é mais soas. Não tinha ideia da sua potên- mãe é uma pessoa daquela geração. O sexo em Vida Invisível tem próxima da rádio do que do teatro. cia. Fiz ali um trabalho quase de Senti que gostaria de ter feito um quase sempre humor. Há um Está mais próxima do folhetim engenheiro: como trazer o tropical, filme sobre a minha mãe. Mas achei plano inusitado: o pénis do radiofónico. como trazer o íntimo e a crónica de que era melhor fazer um filme sobre marido erecto e a reacção e

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 25 Os corpos e a natureza rimando, acompanhando-se mutuamente, nas fulgurâncias e nos ocasos, nos nascimentos e nas mortes, no fulgor e no apodrecimento

“Queria pensar que corpos são estes que vivem numa cidade quente que está perto do mar e da floresta e, através dos códigos do melodrama, contaminar o género com isso”

e de Eurídice. Inusitado até tido, tinha que ter aquele plano. O vidas privadas. E ainda com as moda chegava ao Brasil? Aquilo que porque como grande plano plano apareceu durante a roda- memórias do realizador. era a moda nos países mais ricos, nos foge à escala que gem. Fiz muita pesquisa sobre a vida priva- países do norte, ao Brasil chegava habitualmente utiliza. Eu dizia sempre que as mulheres da naquele tempo, o que se comia, dez anos depois. É importante fazer Quando comecei a escrever o argu- deste filme não podiam chorar. São como se faziam as compras, mas tam- esta escavação concreta. mento, e depois de ter falado com resilientes e encaram o que acontece bém sobre a medicina e sobre o corpo Uma das coisa maravilhosas do uma série de senhoras que me con- com humor e ironia, ou com uma da mulher. Mas isso tem a ver tam- cinema é contar as coisas que não taram a sua vida íntima, a primeira certa fortaleza bruta. Acho que o bém com memórias minhas. Fui cria- vêm nos livros de História mas que experiência, o primeiro corpo de choro veio para a plateia. Por isso era do durante a década de 70 com interessam aos historiadores. Tive homem que viram, comecei a enten- importante também que a persona- mulheres que tinham 40 anos, e mui- uma pesquisadora que foi atrás das der que não tinha como não filmar a gem de Antenor [marido de Eurí- tas das coisas ali são memória de diá- coisas para saber como é que era o experiência do sexo. O melodrama dice] fosse interpretado por um actor logos no meu contexto familiar. Mas tratamento do corpo da mulher, no passa sempre ao lado dessas coisas de comédia [Gregório Duvivier], por- há de facto trabalho sobre uma histó- sentido ginecológico. Era mais essa mas por razões conjunturais: o Fass- que é personagem patética, infantil, ria da vida privada, nas comunidades precisão que me interessava do que binder era explícito, mas o melodra- pequena, meio boba. Ou seja, falar de origem portuguesa no Brasil. a precisão em relação a cenário ou ma americano ou o melodrama de de drama através do riso. Sempre O contexto social e político é defi- cores. Por exemplo, as cortinas azuis raiz árabe sempre contornaram a criando essa fricção. É por isso que nindo pela questão da imigração. A da casa da Eurídice: aquele azul pro- questão sexual. Este filme não é só o melodrama é sempre tosco no Bra- que horas se chegava a casa, a que vavelmente só existiu na década de uma saga de família, é uma saga do sil: aquilo de que se fala é aquilo que horas a criança ia para a escola, 60, mas foi libertador, foi uma esco- corpo feminino. Corpo que mens- se vê; o que se sente é o que se fala. como se fazia o almoço? Era neces- lha dramática. Já a maneira como a trua, que dá leite, que goza e que é Era preciso trabalhar com o código sário ser preciso historicamente. Não Guida deu à luz era importante que penetrado. Não podia abster-me da da ironia e com o código da resiliên- tanto no sentido do guarda-roupa. fosse historicamente rigorosa. experiência física. cia. Não são personagens que se viti- Uma amiga figurinista disse-me: “É A elipse é uma figura que lhe é É engraçado que esse plano não mizam, são personagem sempre engraçado que o filme se passe na cara: devolve ao espectador o estava no argumento.Mas quando activas em relação ao lugar em que década de 50 porque as roupas são trabalho para se situar na comecei a filmar comecei a enten- são colocadas. da década de 40”. É exactamente narrativa. Mas se em A Praia do der que para poder estar com Eurí- O filme é então ponto de chegada isso. O que é que era usado na dé- Futuro (2015) era um trabalho dice naquele momento de choque, de um trabalho de arqueologia, cada de 50? As pessoas não compra- muito mental, desta vez há uma que é a noite de núpcias mas que é de levantamento histórico dos vam roupa todos os dias. Usavam integração sensual. Em Praia do um momento de estrupo consen- vestígios de uma cidade e das roupa que tinha sido da mãe. E que Futuro experimentou. Aqui

26 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 EXPOSIÇÃO 15 FEV A 24 MAI’20

trabalhou dentro da convenção. 53 milhões que votaram nesse mons- Na altura da Praia do Futuro eu que- tro mas ao menos com algumas das ria ser lido dentro da tradição do que votaram? Foi esse o gesto políti- cinema queer. Pensava em Jack co: usar os códigos do melodrama Smith (1932-1989), na forma como o que as pessoas reconhecem, falar de cinema Queer na década de 60, que uma maneira que não seja frontal, ao Rui Filipe não se chamava assim, era disrupti- contrário do gesto de Bacurau [Kleber vo em termos de narrativa, abalava Mendonça Filho e Juliano Dornelles, as bases da narrativa, a causalidade, Prémio do Júri em Cannes 2019]. Há EM BUSCA DO ABSOLUTO o avançar da história. Desta vez, tem uma página no instagram, “mulheres toda a razão, quis perceber como é com Bolsonaro”. Não fiz este filme que podia trazer aqueles vírus, que para falar com elas mas fiz este filme são a definição do cinema queer, para também falar com elas. para dentro de um cinema narrativo Havendo uma tipificação da mais clássico. família portuguesa imigrante, há As elipses em A Vida Invisível não espaço para que o tipo se torne estavam no papel. Foram encontra- personagem. É que se poderia das na montagem e acontecem por romper a relação com o filme conta da inquietação que já tinha perante a sensação de MUSEU DO NEO-REALISMO experimentado em Praia do Futuro. caricatura. VILA FRANCA DE XIRA Vem de Pink Flamingos ( John Waters, Fiz-me mais a pergunta sobre o imi- 1972), do Pink Narcissus (James Bid- grante e a sua cultura. Porque Por- entrada livre good, 1971), do Flaming Creatures tugal é-me familiar. É como apanhar ( Jack Smith, 1963), vem de um ci- o avião e ficar no mesmo lugar. Inte- nema que passa o tempo a recusar-se ressou-me o imigrante e as conse-

APOIO Pormenor, Carrossel, 1960-61. Óleo sobre tela, 200 X 200 cm. a narrar em termos clássicos. Quis quências da cultura do imigrante IZAÇÃO fazer o contrário: como é que dentro para a primeira geração, para os Coleção Herdeiros de Rui Filipe (Em depósito no Museu do Neo-Realismo) de um parâmetro clássico posso criar filhos que nasceram num lugar novo ORGAN rupturas. Estamos em 2020, é muito e que têm de ser melhores, mais cor- bom proporcionar ao espectador o rectos, do que quem nasceu nesse preenchimento das lacunas. lugar. As minhas perguntas foram Curioso como em vários mais sobre uma sociedade que tem cineastas, e por aqui já passaram aliados muito machistas para o seu Todd Haynes ou Almodóvar, a conceito familiar: o pai como chefe ruptura queer desemboca no de família, a mãe no lugar invisível. “melodrama clássico”. É Portugal como lugar de passado, É verdade. Veja-se no que deu Pepi, de anacronismo. E como esse ana- Luci, Bom y otras chicas del montón cronismo entra em choque com o (1980, Pedro Almodóvar). país novo. Fiquei chocado com a reacção à Mais do que a religião, aquele pai Praia do Futuro [espectadores que tinha o desejo de pertencer ao novo abandoram as salas, uma onda de lugar a partir de uma definição de vigilantismo por causa das cenas de onde vem, que é um lugar conserva- sexo homossexual]. Dei-me conta dor. O pai [António Fonseca] vem de que apesar de estarmos em 2015 o um interior, da região do Douro, de cinema queer ainda era para um uma zona muito rural. Era olhar para público reduzido. Aqui tentei falar o Portugal de uma cultura mais rural com mais gente, sem deixar de ser e conservadora. quem sou. Porquê acabar com Amália e Curioso estar a falar nesses dois Estranha Forma de Vida? É uma BILHETES À VENDA cineastas: é uma porrada estar a fa- surpresa entregar o filme a esse zer filme gay. Ninguém vê. Mas é imaginário… muito livre fazer um filme como Nunca faço um filme sem uma can- Praia do Futuro. ção, e para este não tinha. Gosto da Estamos em 2020. Aconteceram voz humana. Comecei a ouvir, e BOCADOLOBO.LUXFRAGIL.COM outras coisas no Brasil ou se tinha que ser um fado. Curioso que LUXFRAGIL.COM INSTAGRAM.COM/LUXFRAGIL calhar são as mesmas, agora o filme em alemão se chama A sau- FACEBOOK.COM/LUXFRAGIL explícitas. Que tempo é este em dade das irmãs Gusmão. Tinha que que quer filmar para mais gente? ser um filme que tivesse no seu ADN Filmei em 2018 já dentro de uma per- a falta. Acredita que nunca tinha Ilustração: ANDRÉ CARRILHO plexidade que vivia e que estou a ouvido a canção? E quando ouvi viver: quem votou neste monstro? achei que a letra poderia ter sido •20 JOHANNA Como se conseguiu criar uma espécie escrita para a Eurídice ou pela Eurí- de coesão nacional para votar em dice. O voltar para esse lugar da sau- FEVEREIRO TACET monstros? Quem são essas pessoas? dade, da nostalgia, de uma vida não São 53 milhões. Disse a mim próprio vivida, perdida. Foi assim que ela 22H00 JOHANNA BEYER Música que tinha de dialogar com essas pes- veio à tona. É quase como se estives- JOHN CAGE soas ou então estamos todos fodidos. se a escolher um perfume em vez de DRUMMING GP Como é que posso conversar não com uma canção.

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 27 perto do meu automóvel, na noite em que desapareci, estavam dois Livros livros infantis” (p.19). Porque toda a tentação de análise da própria vida se vê inviabilizada, ora pela escassez da informação prestada, ora por via do comportamento estilístico da escrita de ATP. A simplicidade do seu Ficção registo — porventura um dos aspectos mais enganadoramente The Lady definidos, no seu trabalho — tem sido mesmo glosado em mais do que um Vanishes livro seu — “as palavras são só uma forma de chegar lá. Têm de ser Quando Ana Teresa Pereira simples e claras, e obedecer a um ritmo próprio, que inclui a “foi” Agatha Christie. Esta é a repetição”; “a linguagem, simples, encarnação de uma escritora sem uma palavra a mais” (Inverness, em fuga, uma narrativa que Relógio D’Água, 2010). De modo não se furta a ser a biografia que a muito diferente, a escrita da autora aproxima-se amiúde da vigência da ficção desconstrói e subverte. literatura policial, sem abandonar a Hugo Pinto dos Santos vizinhança dos domínios do O Atelier de Noite maravilhoso. E também aí a sua escrita tem permitido alguma Ana Teresa Pereira O ogre Willem Dafoe (nunca o vimos tão cabotino) e o mais calculisticamente submisso Robert Relógio D’Água reflexão sobre tais incidências — Pattison “Fez-me pensar numa história mmmmm infantil. Uma daquelas que têm um final terrível.”; “notas para um próprio formato da imagem, há personagens, há bonecos, a O Atelier de Noite enredo vagamente policial” (O Fim próximo do “quadrado” do tempo espécie de ogre composta por aceita um de Lizzie, Biblioteca de Editores Cinema do mudo) e um onirismo, ou Willem Dafoe (nunca o vimos tão poderoso Independentes, 2008). simbolismo, de tendência cabotino) e o mais contido e mecanismo Em O Atelier de Noite, Agatha “erotizante” (a sereia, a gaivota, o calculisticamente submisso jovem construtivo e de Christie não está confinada a um polvo gigante), que lembra mais faroleiro a cargo de Robert deslocação. Na estatuto linear, de narradora e Lars von Trier ou Jodorowsky do Pattison, e é como se o filme nunca novela que dá personagem subsidiária no seu que qualquer dos nomes acima se aproximasse deles a não ser nome ao volume próprio relato — “Que escritora seria Estreiam citados — e de resto, nada no filme para os transformar em mais — onde se inclui eu se não fosse capaz de inventar indica que Eggers nutra por eles imagens “visualmente ainda o mais breve Sete Rosas uma nova personagem para mim?” O desejo de ser alguma espécie de apreço ou impressionantes” (os grandes Vermelhas —, o percurso de uma (p.26) Enquanto presença da devoção, tal a forma como se planos do rosto contorcido de escritora em fuga é traçado através narrativa, a escritora inglesa “visualmente compraz em macaqueá-los como Dafoe são um bom exemplo). do véu incerto de uma autobiografia desdobrar-se-á, então, em múltiplas uma sobranceria quase destrutiva. Claro que será um sucesso, os em fragmentos. Ana Teresa Pereira feições, ou mesmo personae impressionante” Ah, mas não é “visualmente tempos estão de feição para estes (Agatha Christie, sob disfarce?) conflituosas (de tal forma que se impressionante”? Não, não é, objectos que se pretendem passar falará, mais de uma vez, de “um refere a si mesma na terceira Os tempos estão de feição falta-lhe a subtileza de não por “viscerais” mesmo que tudo poema em pedaços”, ao tentar pessoa). Uma dessas facetas, para estes objectos que se sublinhar o desejo de o ser a cada neles seja apenas “superfície”. Mas descrever este seu escrito. Chegará arriscaríamos, não deixará de ser pretendem passar por plano, de não transformar a já agora, e para se dar alguma coisa mesmo a defender uma espécie de uma possível emanação de Ana iluminação barroca num em troca, mencionaríamos um poética do fragmentário que, sem Teresa Pereira. De “outras “viscerais” mesmo que tudo acontecimento gratuito que chama curioso filme britânico (Bait, de grandes voos da imaginação, quase possibilidades de mim” (p.58) falará neles seja apenas a atenção sobre si própria sem Mark Jenkin), exibido no podíamos estender à demais ficção a autora (qual das duas?), a dado “superfície”. estar ao serviço de nada a não ser, IndieLisboa do ano passado mas de ATP — “Não podemos pôr nada momento. Como vimos, não é de Luís Miguel Oliveira justamente, de uma “impressão que ficou por estrear inteiro, mas no meio dos pedaços agora que ATP insere nos seus livros visual”. comercialmente em Portugal, onde temos uma visão enevoada do que brevíssimos vislumbres de O Farol A narrativa, que envolve dois a evocação fotográfica do mudo e existia antes” (p.56). Esta auto-análise do seu próprio faroleiros numa ilha isolada na dum cinema de “outro tempo” se reconstituição, pacientemente procedimento e estilo. Aqui, o The Lighthouse costa da Nova Inglaterra e tem uma cumpria com um sentido bem mais avara, na sua recusa de pormenores, processo é ainda mais subtil, porque De Robert Eggers Com Willem Dafoe, Robert Pattison remota origem numa história de sério, e bem mais vasto, do que a funciona como um espelho — tão o leitor se confronta com uma Poe, fica irremediavelmente espécie de onanismo estético com infiel quanto possível — da autora das indefinição maior entre o que mmmmm contaminada por este aparato: não que Eggers se satisfaz. duas novelas. Também Ana Teresa pertence à oficina (ao atelier?) de Pereira é, nos livros que escreveu, Agatha e de Ana Teresa. Mulher em O Farol, segunda longa-metragem como em termos da sua presença no fuga, nesta biografia recriada em de Robert Eggers, chega com um AS ESTRELAS Jorge Luís M. Vasco panorama literário, uma entidade fragmentos torturantemente rasto razoavelmente extenso de DO PÚBLICO Mourinha Oliveira Câmara mais ou menos furtiva. Mas escassos, Agatha tem de assumir-se estima crítica e auréola de filme de falávamos de um curioso outra, deve encarnar diversas “culto”. Uma vista de olhos pelo mecanismo. E não porque se lance personagens, e não parece fazê-lo que a “crítica internacional” tem mão de uma escritora, circunstância com absoluto repúdio. Como se escrito sobre ele encontra as mais Bombshell mmmmm – mmmmm habitual na ficção de ATP, mas estivesse em vias de escrever(-se) um assombrosas referências: vai de Corpus Christi: A redenção mmmmm – – porque a escolha recaiu sobre uma novo romance. Murnau a Béla Tarr, passando por autora real. A matéria-prima de O Sete Rosas Vermeclhas prolonga a A Despedida mmmmm mmmmm mmmmm Dreyer. Por alguma razão que não Atelier da Noite é uma circunstância novela epónima deste volume e cabe aqui explicar, convocatórias Diamante Bruto mmmmm mmmmm mmmmm na biografia de Agatha Christie: o seu surge como uma espécie de deste calibre têm o condão de nos O Farol mmmmm mmmmm mmmmm misterioso desaparecimento deixar mais receosos do que durante cerca de uma dúzia de dias. J’Accuse: O Oficial e o Espião – mmmmm mmmmm propriamente expectantes, é com Esse ponto de partida, também um um pé atrás que começamos a ver Jojo Rabbit mmmmm mmmmm mmmmm ponto de fuga (expressão que deverá o filme de Eggers. Rapidamente Ladrões com Arte – mmmmm – ter mais do que uma leitura), percebemos o erro: deviam ser os permite a ATP criar uma ficção 1917 mmmmm mmmmm mmmmm dois pés atrás. O Farol é um objecto narrada, ora na primeira, ora na bastante grotesco, e pouco importa Mulherzinhas mmmmm mmmmm mmmmm terceira pessoa, que nunca chega a que deliberadamente o procure A Vida Invisível mmmmm mmmmm mmmmm ser um registo autobiográfico — ser, algures entre a evocação arty “Alguns dias antes do seu Uma Vida Escondida mmmmm mmmmm mmmmm de motivos visuais de antanho (da desaparecimento, Agatha comprou fotografia a preto e branco ao a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente uma camisa de cetim branca (...)

28 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 ÁLVARO ROSENDO comentário a ela. De resto, a autora de pequenas imagens na cisterna), inglesa é mesmo explicitamente a inclusão destas fotografias ajuda referida — “Agatha Christie e o papel Exposições a situar a obra de Rosendo e a de parede com íris azuis e as mostrar o ecletismo do seu mulheres que passam uma vida trabalho, que se foi impondo como inteira num lugar porque se uma das vozes mais irrequietas da enamoraram de um jardim” (p.67). A nova fotografia portuguesa, ao lado primeira frase de ambas as novelas é de Daniel Blaufuks, Mariano exactamente a mesma: “Há um Continuam Piçarra ou Inês Gonçalves. Se parte tempo para as últimas coisas, o dessa amplitude pode ser revista útimo relógio de pulso, a última Álvaro, agora, há outra parte que só gabardian, o últmo amor, o último procurando muito se pode livro.” (pp.11, 65). Não por acaso, o regressado encontrar. Casos da participação estes são alguns dos objectos que em projectos colectivos como Pena mais amiúde compõem o universo Um gigantesco patchwork Capital (1993), onde o controlo à minimalista de ATP — e são, com distância nas grandes cidades é frequência, objecto da sua maior que nos cerca como num parodiado a partir do frenesi atenção, como se fossem rituais em abraço. Sérgio B. Gomes automóvel; O Começo da Águas miniatura, hinos a uma deliberada (1997), visão poética do mar, onde escassez. De resto, o primeiro Aos Meus Amores_2.0 Recusando ter sido “cronista de uma geração”, foi testemunha das a escala e a sequência ganham parágrafo, a seguir ao quase prólogo andanças de uma tribo em tempo de agitação criativa relevância, por um lado, e dezenas De Álvaro Rosendo da segunda novela, abre da seguinte de retratos (Amores), por outro, forma: “A rapariga usava uma mmmmq naquilo que se pode considerar um gabardina, talvez a última” (p.66). em múltiplas e estreitas relações, 1990. Mas nunca abandonou a interlúdio entre a primeira e Algures, uma personagem de ATP LISBOA. Galeria Cisterna. Até 29 de Fevereiro. esbatendo-se, e bem, as fronteiras prática fotográfica — apenas a sua segunda parte de Aos Meus declarava-se apenas favorável aos Os dois murais que ocupam por que poderiam existir entre expressão pública. Mudaram os Amores_2.0; Arte e Desporto (1991), livros de pequeno formato que estes dias as paredes da galeria universos pessoais, profissionais protagonistas, mas o seu gesto onde explora a noção de sequência coubessem no bolso de uma Cisterna (Lisboa) foram erguidos ou quaisquer outros. A esta gráfico diarístico manteve-se, a partir de outros ecrãs. Ou ainda gabardina. É como se os pormenores com mais de 600 fotografias de capacidade de nos colocar dentro como se de um combustível vital se projectos individuais (dois anos fossem distracções, dados Álvaro Rosendo. A quantidade de uma certa atmosfera social, tratasse. Podemos encontrar depois de ter dito ao mundo da garantidos. Daí que certas impressiona. Antes de se começar a cultural e emocional alargadas ligeiras oscilações entre uns e fotografia “gosto muito de vocês, particularidades tantas vezes percorrer as imagens cravadas com junta-se um extra, que é a virtude outros tempos nestas quatro mas estou cansado”) como reincidam, nos seus livros, como as mais de 2400 pregos é preciso de nos dar a sentir a textura de um décadas de fotografia (o inevitável: Tempografias (1996), micro-ficções, referidas gabardines, os vestidos, respirar fundo. Quem vem das duas tempo mais preciso, aquele a espontaneidade a pequenos momentos e quotidiano escassos agasalhos, ou quase primeiras salas (mais minimais) período de “movida” cultural conceptualizar-se, como o próprio em meia-dúzia de fotogramas (mais nenhuns, pão, pouco mais. Estas tem pistas do que poderá encontrar lisboeta que marcou o final dos admite), mas o essencial do olhar coisa menos coisa). notações são simples necessidades, e a seguir (há já um mosaico com oito anos 80 e a primeira metade dos de Rosendo (inquisitivo, sedutor, Ainda que recuse assumir-se alargá-las seria porventura uma imagens, várias sequências…), mas anos 90. afectivo), manteve-se. A prova de como “cronista de uma geração”, a demasia para a escrita como a é difícil não ficar surpreendido com Álvaro Rosendo, ligado à vida artística na fotografia que esta dimensão do que concretizou nos entende ATP. O mesmo estado o turbilhão de fotografias que ali fundação da Galeria Monumental exposição também representa 80 e 90 impelem-nos a olhá-lo pelo ritualisticamente obsessivo alarga-se encontra. Logo às primeiras filas de (1985) e à escola de fotografia pode medir-se na assunção de que menos como testemunha à galeria de personagens, expressão imagens, aquilo que se podia tornar Maumaus (1991), fazia parte de uma a sua fotografia de ontem privilegiada das andanças de uma certamente desajustada ao diminuto num sufoco, revela-se inebriante, geração que procurava apanhar os reconhece a de há 40 anos (o tribo num tempo de expectativa e palco de ATP. Desde sempre, não foi sedutor. Começando, é difícil parar. cacos dos anos turbulentos do caminho ao contrário também se de enorme agitação criativa. Por a dispersão e a diversidade que Para dar forma a Aos Meus pós-25 de Abril, tentando seguir pode fazer). Juntar papéis na outro lado, ainda que a intenção interessaram à autora — “só há duas Amores_2.0 Álvaro Rosendo em frente social, cultural e parede é fácil. Mais difícil é seja a de fugir à arqueologia de personagens, só há uma” (A Cidade (Lisboa, 1960) foi buscar fotografias intelectualmente. Parte do que está conseguir o diálogo sintónico e rostos (os retratos dos murais não Fantasma, Caminho, 1993). de 40 anos de actividade, nas paredes da Cisterna explica-se estimulante como o conseguiram são legendados), a energia que Preferências, desejos, compulsões misturando universos existenciais, porque Rosendo era um deles, Rosendo e Luís Gouveia Monteiro, conseguiu concentrar nessas são aqui praticamente sinónimos — natureza e propósito das imagens fazia parte da tribo. Mas seria o curador de Aos Meus Amores_2.0 e imagens acaba por vir ao de cima, “Via infinitamente os filmes de que num gigantesco patchwork que nos redutor (e injusto) olhar para o um dos principais responsáveis por sem que essa vibração anule as que gostava, relia os mesmos livros, cerca como num abraço. Olhando resultado de Aos Meus Amores_2.0 “obrigar” o fotógrafo a voltar às estão ao seu lado, de outros repetia as frases, as palavras, as para este segundo tomo de uma apenas através de um prisma exposições em nome próprio. tempos, de outros protagonistas imagens...” (id.) Também Sete Rosas exposição que conheceu o seu circunstancial, como alguém que Falamos quase exclusivamente menos mundanos. Vermelhas é uma história de seres primeiro momento no longínquo foi capaz de casar um elevado da pièce de résistance da exposição Mostrado num período de perseguidos por obsessões, ano de 1994, na galeria da livraria sentido de oportunidade (ser parte (que inclui também uma enorme desalento pessoal e desilusão com assombrados pelo demónio da Assírio & Alvim (Lisboa), nota-se da nata artística do momento) com paisagem de cores garridas ao o panorama artístico de meados escrita. A história de um Stalker, que o fazer fotográfico de Rosendo um apurado sentido estético. fundo da cisterna que dá nome à dos anos 90, o primeiro tomo de presença familiar para os leitores de pouco terá mudado e que a sua Álvaro Rosendo não só não fica galeria e um nicho de Aos Meus Amores (título roubado a Ana Teresa Pereira — “Eu tenho alma forma de apreender do mundo (de petrificado junto de figuras auto-retratos), mas o certo é que há uma canção dos Rádio Macau) era, de Stalker. Tenho de procurar, estar nele) inclui de forma natural consagradas (Carlos Paredes, outros recantos e salas, outras no entanto, um exercício corajoso procurar sempre.” (A Linguagem dos aparatos de registo de imagens. Amália Rodrigues…) e de estrelas imagens que ajudam a e raro na fotografia portuguesa. Pássaros, Relógio D’Água, 2001) — e Percebemos que a câmara é um seu em franca ascensão (caso dos compreender melhor a amplitude Herdeiro de A Idade da Prata que esta novela revisita de modo “apêndice” e que faz fotografia Xutos & Pontapés, Rádio Macau e criativa de um autor cujo percurso (1986), onde Mário Cabrita Gil explícito — “Não sabia o que como quem respira. E que as usa de tantos outros artistas dos mais pode ser entendido como uma somou uma galeria de mais 50 procurava. Sigo alguma coisa e esse é não só para se situar no mundo, variados universos), como metáfora do que foi (e em parte retratos de protagonistas da o meu trabalho. Stalker.” (p.73) mas sobretudo para se relacionar encontra uma sintonia, uma voz ainda é) a fotografia portuguesa, pós-modernidade portuguesa, e de Podíamos falar do escritor com as pessoas, para as conhecer, própria, para se relacionar com uma paisagem cheia de becos sem Bairro Alto e Seus Amores (1990, enquanto vampiro, do autor como para lhes expressar sentimentos (e esse mundo em ebulição criativa. saída, encruzilhadas, atalhos vários fotógrafos e escritores), que fantasma a cruzar as eras, incólume vice-versa) ou simplesmente para Nesse processo de afirmação enganadores e alguns precipícios. ensaia uma genealogia sentimental à passagem do tempo. Mas não o estar com elas, sejam do seu autoral, encontra ainda aquela que Se as sequências ao volante nos daquele que era o bairro mais faremos. Aliás, Ana Teresa Pereira já círculo mais íntimo ao mais parece a forma de expressão certa mostram um lado trendy da capital, a carta de o fez melhor do que saberíamos — alargado. Deste enleio afectivo para transmitir um tempo e um conceptualmente mais elaborado despedida de Rosendo feita na “Como um vampiro triste, como irradiam pequenos/grandes estado de espírito extático, alegre, (os carros haveriam de aparecer Assírio & Alvim tinha também uma puta melancólica.” (As Rosas impulsos, vibrações, inebriante, despreocupado — em múltiplas ocasiões e trabalhos), latente um “adeus, até mais logo”. Mortas, Relógio D’Água, 1998). Antes reverberações, sinais capazes de vemos o quotidiano de um dos da a imagem de grande escala do Passaram mais de duas décadas. falaremos daqueles lugares da nos emocionar e nos fazer sentir tribo através do encantamento incêndio no Chiado (1988) Esse exercício de mostrar aos escrita, os seus, em que os trâmites e parte das imagens e não exteriores infinito e da rebeldia da snapshot. revela-nos o pé nos jornais que outros quem somos e como nos a codificação, as normas, abdicam a elas. Há mais de duas décadas que Álvaro Rosendo sempre foi tendo, cumprimos através dos outros do seu império, e é no crepúsculo Aos Meus Amores_2.0 consegue Álvaro Rosendo não expunha embora nem sempre a fazer (família, amigos, conhecidos, entre ficção e realidade que as transmitir uma das coisas mais fotografia em nome individual. fotografia (design gráfico, desconhecidos…) não se banalizou histórias se movem e nos capturam. difíceis em fotografia: uma Cansado de tentar subsistir a partir infografia…). e continua a ter força. Pelo que Uma vez mais, Ana Teresa Pereira ambiência, que, no caso, é tão dela, deixou de mostrar a sua arte Apesar de arriscada (porque fora pode ser visto na Cisterna, valeu a fê-lo em O Atelier da Noite. simplesmente a de uma existência neste suporte em meados dos anos da lógica expositiva das centenas pena esperar.

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 | 29 Acção Paralela Crónica António Guerreiro Ana Cristina Leonardo O ódio à literatura Isto anda tudo

gora, que os discursos de amor pela de Clèves. Como sabemos, em França, da retórica pós as chuvas — abençoadas chuvas! literatura já provaram que não produzem política faz parte a exaltação do valor universal das — os campos surgem manchados de qualquer efeito e já não comovem letras francesas. Sarkozy não era conhecido pela amarelo. Mal se dissipa o nevoeiro ninguém, é tempo de pensar antes no sua cultura humanista clássica. Mas La Princesse de que serpenteia entre os montes, ódio à literatura e aos seus efeitos. Há um Clèves parecia atormentá-lo. Por duas vezes se deixando adivinhar o percurso do A ódio da literatura por si própria que o referiu ele ao romance de Madame de La Fayette. A rio que nunca daqui a vista alcança modernismo cultivou com zelo e alguma Da primeira vez, foi em Fevereiro de 2006, perante embora o saibamos lá — o calor da manhã até frequência. Era uma maneira de ser crítica, crítica uma assembleia de funcionários sujeitos a há pouco submersa a impor-se na paisagem de si própria, de acordo com os mais altos desígnios concursos públicos: “No outro dia, divertia-me — —, destapam-se os caminhos de terra. da palavra literária. Mas há um ódio de outro tipo, cada um diverte-se como pode — a olhar o Avistam-se, então, os borrões de cor, dessa que vem do exterior, como se ela só se justificasse programa do concurso para funcionário mesma cor invocada pelo nosso cineasta verdadeiramente quando confrontada com os seus administrativo. Um sádico ou um imbecil tinha louco, a cor do submarino dos Beatles e inimigos. No período mais recente, o processo do posto no programa a possibilidade de interrogar os aquela que alguns afirmam ter sido a ódio contra a literatura é intentado a maior parte concorrentes sobre a Princesse de Clèves. Não sei se preferida de Van Gogh, o próprio locatário das vezes em nome da sociedade e a literatura surge já vos aconteceu perguntar à senhora do guichet o de uma casa amarela, embora aos girassóis como culpada de não ser um discurso que é que ela pensa da Princesse de Clèves! Mas os substituam no caso as mais humildes suficientemente representativo quer do corpo imaginem o espectáculo!”. Dois anos mais tarde, azedas, de seu nome científico, Oxalis social ou político no seu conjunto, quer de uma por ocasião de uma visita a um centro de férias do pes-caprae, conhecidas vulgarmente categoria particular da sociedade. E, portanto, de Loire, fez a apologia do voluntariado que, dizia ele, também por trevilho, trevo-azedo, não ter qualquer utilidade a esse nível. devia ser reconhecido pelos concursos santas-noites, praga-má, erva-canária, Curiosamente, há um processo da democracia administrativos, “porque isso vale tanto como erva-mijona… Etc. Posto isto — e saltando as contra a literatura que não é menos nefasto do que saber de cor a Princesse de Clèves”. E assim a pobre partes chatas de que falava Hitchcock —, o processo antiliterário dos regimes totalitários. Princesse de Clèves e a sua vergonhosa “confissão”, cambiado o cenário e abandonada a William Marx, um professor francês de literatura que a escola tinha abandonado, suscitaram uma botânica, leio que em Lisboa preferem o comparada, que deu recentemente a sua lição forte curiosidade nos leitores franceses, admirados verde ao yellow. inaugural no Collège de , escreveu um livro com tanto despeito por parte do Presidente. O anúncio foi feito com a pompa que a interessantíssimo que se chama precisamente La Resultado: multiplicaram-se em todo o país as circunstância merece: Lisboa Capital Verde haine de la littérature, o ódio da literatura (há mais maratonas de leitura do romance da Madame de Europeia 2020. Os ministros, garantiu de uma década tinha publicado um Adieu à la La Fayette e o número de vendas subiu sem outra António Costa a propósito, passam, durante littérature). Para Marx, os discursos hostis à justificação que não fossem as palavras de Sarkozy. este ano e já a partir de Fevereiro, a circular literatura fornecem precisamente um testemunho Por cá, também tivemos um estimável cultor do na área metropolitana — sublinhar área insubstituível, na medida em que mostram que a ódio à literatura, a quem nunca estaremos metropolitana — apenas em viaturas literatura só existe à medida de uma tensão entre a suficientemente agradecidos: Trata-se de uma eléctricas. vida e a biblioteca, entre a visão bibliófila e a visão sumidade chamada Sousa Lara, quando foi, em Chegados aqui — e ainda vamos no bibliófoba. Para este estudioso de literatura tempos recuados (já na altura o seu tempo era princípio — o devido esclarecimento que comparada, os discursos hostis à literatura recuado), subsecretário de Estado da Cultura. O segue por minha conta. Não se devem fornecem um testemunho insubstituível, na seu ódio a toda a literatura que não fosse a do confundir “viaturas eléctricas” com medida em que esses discursos contra são também cânone estritamente cristão e piedoso é eléctricos, apesar do 28, por exemplo, dar eles discursos sobre: mostram aquilo com o qual a conhecido, o que, como pudemos verificar, só acesso tanto à Presidência do Conselho de literatura está confrontada, os ataques que suscita, trouxe vantagens. Sousa Lara é a prova de que os Ministros, como à Assembleia da República, as decepções que provoca. Um exemplo que Marx políticos conseguem fazer alguma coisa pela ou ainda à Residência Oficial do não cita no seu livro, mas deu muito que falar, em literatura quando mostram publicamente que a Primeiro-Ministro, residência essa, aliás, que França, é o ataque que o ex-presidente Sarkozy fez detestam. O ódio dos políticos pela literatura devia alcançará durante 2020 a neutralidade ao romance de Madame de La Fayette, La Princesse ser considerado um bem público. carbónica, outra garantia de Costa, coisa que não deve ser assim tão difícil porque parece que ninguém lá mora. “Verde que te quiero verde”. Eis um verso Livro de recitações bem conhecido de Lorca, o poeta andaluz cujo fuzilamento pelos franquistas o “Se no século XIX o niilismo era um tema para filósofos, hoje ele caudilho tentaria branquear sem nunca lhe transformou-se na única tarefa que une cegamente — empurrada pelos dizer o nome, numa entrevista concedida a 26 de Novembro de 1937 ao diário mexicano estiletes da necessidade e da ganância — a humanidade inteira”. La Prensa, rotulando o seu assassínio de Viriato Soromenho Marques, DN, 8/02/2020 dano colateral, numa antecipação quase exacta da linguagem moderna do horror: “Se Os vírus sempre tiveram a capacidade de metáfora que Sontag analisou com pertinência ha hablado mucho en el extranjero de um significar muito mais do que aquilo que a sua e rigor. O mundo parecia então ganhar a forma escritor granadino (…) Lo cierto es que en los existência objectiva permite. Foram sempre de um anjo vingador que nos fazia recuar no primeros de la revolución en Granada, ese metáforas poderosas, capazes de configurar tempo. Agora temos outro vírus, e novamente escritor murió mezclado com los revoltosos. complexos civilizacionais. Se não fosse o vírus ele se sujeita a interpretações nada biológicas, Son los accidentes naturales de la guerra.” da tuberculose, não teríamos tido uma sobretudo por quem tem a capacidade de ver o Se das veleidades literárias de Franco não Montanha Mágica. Podemos dizer que houve aí que significa, na sua origem, e como se difunde reza a História — escreveria sob o a vitória da cultura contra a proliferação da esta doença que não precisa de provocar pseudónimo de Jaime Andrade uma novela doença. O vírus da sida, esse, foi uma sinistra devastações para espalhar o terror. histórica, medíocre e encomiástica, uma mexerufada de propaganda e melodrama de título Raza publicada em 1942 — , e se mesmo a sua admiração por Salazar vai caindo em FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON desuso contrariando os mais pessimistas (a DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO E SOFIA ESPADINHA MARTINS prova foi que o centrista Abel Matos Santos só se aguentou cinco dias após se terem E-MAIL [email protected] desenterrado os seus vivas ao colega do

30 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2020 Foi pela vontade dos críticos e dos leitores da revista Cahiers do Cinéma, que elegeram a série Twin Peaks: The Return (2017) de David Lynch como o melhor filme dos anos 2010, que fiquei intrigado com os méritos por detrás de um capricho que poderia ter sido meu também. Semanas antes tinha terminado de ver outra série de autor, Too Old to Die Young (2019) de Nicolas Winding Refn, cuja linguagem visual e sonora está tão mais próxima do cinema o ligado quando encarado como Arte, quanto mais premente é o desejo de vermos aquelas imagens e aqueles sons projectados num ecrã de tamanho que não se coaduna com a fruição audiovisual doméstica. Se tive espanhol…), pelo contrário, o autor de na sequência de outros cento e noventa e vontade de falar de um filme de 13 horas a propósito Romancero Gitano (obra de onde é retirado o nove já inaugurados…” de Too Old to Die Young, maior empatia senti com a célebre verso e que foi traduzida entre nós “O campo”, resumiu uma vez o saudoso posição assumida pelos Cahiers. pelo menos por três grandes: Eugénio de arquitecto Manuel Vicente numa entrevista Andrade, Vasco Graça Moura e José Bento) ao precocemente desaparecido arquitecto No momento em que escrevo vi 14 das 18 partes que mantém-se amado e sobretudo lido Manuel Graça Dias, “é um sítio onde paro constituem Twin Peaks: The Return. O espectador independentemente do contexto, o mais para mijar entre duas cidades”. Não que não tenha actualizado a memória das internacional dos poetas e dramaturgos encontrei até hoje melhor e mais divertida temporadas 1 e 2, que datam de 1990 e 91, bem como espanhóis. definição de Modernismo. E às legiões de do filme Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Ditadores e poetas há muitos. É verdade. amigos da Natureza, da poesia pastoril e da Palmer (1992), está acautelado. Lynch promove Diria mesmo mais, circunscrevendo-me sonolência dos pandas que imagino recuos a esses momentos quer para se referir a agora só aos poetas e parafraseando Vasco abespinhados com a preferência de Vicente personagens que continuam a fazer parte da história, Santana: Poetas há muitos, seus palermas! pelo caos urbano, recordo Cesário Verde: quer para jogar com uma certa nostalgia que se liga à Há que não ter medo das palavras, devendo “Ah! O campo não é um passatempo/ Com superfície idílica de uma América que sempre olhou temer-se embora, e muito, a má poesia. bucolismos, rouxinóis, luar”. Ou, agora em do mais elevado patamar romântico e de inocência O que me passa pela cabeça O que me passa O vocativo que acabo de grafar não é de prosa, Clara Pinto Correia no seu romance até ao subterrâneo onde se encontram as perversões pai incógnito. Palermas são os autores (e de 1985, Adeus, Princesa: “A perversidade humanas, o sangue e o crime. promotores) do sob os malmequeres, repetia mentalmente poema-mensagem-motivador (ou deveria Joaquim Peixoto. No campo não há só O maior feito de Twin Peaks: The Return é fazer-nos dizer antes, motivacional?), com o qual a vacas.” reencontrar um David Lynch por inteiro, que retoma Câmara Municipal de Lisboa visa despertar Por aqui não há sequer vacas. Tal não elementos de todo o seu trabalho em cinema e consciências. Transcrevo, porque isto não se impede, porém, que os episódios que televisão, e que apresenta a versão mais livre de si inventa: animam Lisboa cheguem revestidos de um mesmo. Os anos 1990 que testemunharam o “Precisamos dos indiferentes, dos certo estranhamento. Por exemplo. surgimento de Twin Peaks mostravam-nos com conformados e dos céticos. Ninguém, num raio de distância que eu diria regularidade versões filmadas distorcidas e adultas Precisamos dos que ligam demasiado ao bastante considerável, se preocupou em da cultura popular — basta lembrar os exemplos carro. E dos que não desligam a luz. averiguar o que seriam as “feministas americanos de Lynch, mas também o de David Precisamos dos que deixam a água a interseccionais” a que aludiu a deputada Cronenberg (canadiano), Todd Haynes, John correr. Joacine Katar, ou se sentiu sequer atingido Carpenter, Atom Egoyan (outro canadiano), Quentin E dos que se demoram no banho. quando a mesma falou de “falta de cultura Tarantino, David Fincher — que nos confrontavam Precisamos dos que atiram para o mar. térmica em Portugal”. com obsessões privadas e uma representação da E dos que lançam para o ar. À falta de “cultura térmica em Portugal” — violência sem atenuantes. Eram filmes populares e Precisamos dos pessimistas e dos seja lá isso o que for — compensa-a a cultura que obtinham (alguns) o reconhecimento dos consumistas. hermenêutica. Veja-se o caso do ex-ministro prémios. David Lynch corre o risco do efeito de maior Dos que querem palhinha. E saquinho. E Azeredo Lopes, nascido no Porto “com excentricidade, mesmo tratando-se de uma série para descartávelzinho. muito orgulhoorgulho” (daí que se entenda que nnãoão televisãotelevisão,, face ao que hoje constitui o foco do cinema Precisamos dos que reciclam desculpas e soubesse onde ficavaficava a ChamuscaChamusca).). qqueue chechegaga a todo o lado: ffilmesilmes que provêm do mais coisa nenhuma. Confrontado com a sua memorável frase, universo ddosos susuper-heróis,per-heróis, qquaseuase inteiramente Dos que não querem e dos que não creem.. “No limite, pode não ter havido furto ddigitais,igitais, e que simulam a experiência dos videojogos. Precisamos até dos que não fazem por mal.. nenhum”, retorretorquiu:quiu: “Nem queque fossefosse num QuaQuall o llugarugar ddee Twin Peaks:Peaks: TThehe ReturnReturn nnestaesta Escolhe evoluir.” sentido literal, eu não estava a dizer qqueue não cconjuntura?onjuntura? A série opera um eefeitofeito de Lida a mensagem — e Pessoa que me tinhatinha havidohavido furto”.furto”. CasoCaso semelhantesemelhante reconhecimento para as gerageraçõesções de 1960 e 70, fazfaz perdoe! — ocorre-me um episódio que um sucedeusucedeu hháá pouco com a ministra ddaa um trabalho de ffiltragemiltragem qqueue vai buscar rereferênciasferências a dia me contou o poeta Jorge Fallorca. Certo Agricultura em exercício. Confrontada,Confrontada, à ddiferentesiferentes épocas e géneros musicais e pintor português, irritado com as críticas chegada de uma feira de hortalihortaliçasças eemm cinematográficos, frustra e demolidoras ao seu trabalho, desabafou: Berlim,Berlim, com as ddeclaraçõeseclarações que lálá tinhatinha estimula a identificação “Está bem que não sou nenhum Leonardo daa proferido, Maria do Céu Albuquerque logo com as personagens e a Vinci, mas esta merda também não é a Itália correucorreu a emitir um ccomunicadoomunicado oondende lógica narrativa, e tem do Renascimento!”. Não é. É verdade. Mas lamentavalamentava “que as suas ddeclaraçõeseclarações tivessem momentos de puro caramba! “Precisamos dos que atiram para o sido mal interpretadas”. E que havia ela dito surrealismo onde a mar./ E dos que lançam para o ar”? queque nunca é demaisdemais repeti-lo?repeti-lo? Isto: “Ac“Achoho televisão se torna Mal refeitos ainda do versejar livre, queque [o coronavírus] até popodede tterer uma arte pictórica chegaram-nos notícias da inauguração de consequências bastantebastante positivas. AindaAinda abstracta extrema. um bebedouro na capital que alguns assim, não tenho dados qqueue me pepermitamrmitam David Lynch tomaram por fake news. Não eram. As fazer uma avaliação”.avaliação”. mostra-se mais fotografias comprovavam-no: presidente da Se a frase de Azeredo LopesLopes comporta,comporta, no radical do que Câmara e vereadores celebravam o limite, um fraseado a que podemos alguma vez antes, acontecimento com muitos tchim-tchim e emprestaremprestar um certo coloridocolorido sibilino,sibilino, a de não deixando de ser copos de água, apesar de toda a gente saber Maria do Céu AlbuquerqueAlbuquerque é ineinequívoca,quívoca, o mesmo Lynch de que brindar com água dá azar. Um dos 200 trigo limpo, farinha amparo. Não há cá Paul sempre. bebedouros a espalhar pela cidade, Ricœur,Ricœur, nem fufu,fufu, nem gagaitinhas!itinhas! dizem-nos, o que ainda assim não justifica o Entretanto,Entretanto, enenquantoquanto o colorido crescente ridículo. E já que parafraseei Vasco Santana,, dosdos campos anuncia a Primavera e a floraçãofloração porque não Américo de Deus Tomás? Pois foii precoce dasdas estevas prenuncia seca (tomai lláá ao passar no barranco, junto à amendoeira a “cultura térmica”!), morreu GeorgeGeorge Steiner. Por Ricardo Gross em flor, que me assaltou a imagem de Dizia ele sabiamente queque as Fernando Medina discursando, visivelmentee HumanidadesHumanidades nnãoão humhumanizam.anizam. estafado, junto ao último bebedouro da SemSem dúvida.dúvida. MaMass nãnãoo sesendondo série: “Inaugura-se em Lisboa o bebedouro istoisto a ItItáliaália do número duzentos, a que foi dado esse Renascimento,Renascimento, era pprecisoreciso

número não por acaso, mas porque ele vem evoluirmosevoluirmos tanto?tanto? ANZUONI REUTERS/MARIO 003c6ff9-9d7f-4712-9020-bc25c6eabfb7