UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI ILCA MARIA MOYA DE OLIVEIRA

O EROTISMO EM JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE: INTERDIÇÃO E TRANSGRESSÃO NOS FILMES: “O PADRE E A MOÇA” E “VEREDA TROPICAL”.

São Paulo 2011

ILCA MARIA MOYA DE OLIVEIRA

O EROTISMO EM JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE: INTERDIÇÃO E TRANSGRESSÃO NOS FILMES: “O PADRE E A MOÇA” E “VEREDA TROPICAL”.

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, área de concentração em Análise em Imagem e Som da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico.

São Paulo 2011

ILCA MARIA MOYA DE OLIVEIRA

O EROTISMO EM JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE: INTERDIÇÃO E TRANSGRESSÃO NOS FILMES: “O PADRE E A MOÇA” E “VEREDA TROPICAL”.

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação área de concentração em Análise de Imagem e Som da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico.

Aprovado em

Nome do orientador/titulação/IES

Nome do convidado/ titulação/IES

Nome do convidado/IES

AGRADECIMENTOS

Muitos contribuíram para o desenvolvimento desse trabalho. Gostaria de prestar meus sinceros agradecimentos:

À Universidade Anhembi Morumbi que por meio da área de Gestão de Pessoas busca o contínuo aperfeiçoamento de seu corpo de colaboradores e, portanto, de si própria.

Aos professores do mestrado de Comunicação da Universidade que transformam o trabalho árduo da pesquisa numa conversa de botequim divertida, particularmente na pessoa da Profª Drª Bernadette Lyra.

A minha irmã Iara Moya, presença firme em qualquer tempo.

Aos meus filhos, João Vicente e Pedro Henrique, frutos da paixão pelo erotismo e pela vida.

Ao meu orientador Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico, pela paciência, compreensão e pela capacidade de mostrar sempre mais uma possibilidade.

Aos colegas do curso e a todos que não mencionei, mas que, de algum modo, contribuíram para a realização desse estudo,

Muito obrigada.

RESUMO

Palavras-chave: Cinema erótico. Interdição e transgressão. Denúncia social. .

Neste estudo se investiga o aspecto interdito e transgressor do erotismo na obra do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, por meio de estudo comparativo de dois filmes sob sua direção. O primeiro, O padre e a moça , um longa-metragem de 1965, a partir de poema de Carlos Drummond de Andrade; o segundo, Vereda Tropical , episódio do longa-metragem de 1977, Contos Eróticos que tem como base conto premiado para o concurso da revista Status. Voltado para a pesquisa de análises em imagem e som, o estudo tem como objetivo o erotismo como a condição transgressora frente à realidade vivida no nível do sagrado, representado no filme O padre e a moça ; no nível da apropriação individual do corpo, situação do episódio Vereda Tropical . São referências conceituais: os estudos sobre cinema de Ismail Xavier; o discurso do erotismo de Georges Bataille. O estudo visa embasar-se também na análise fílmica dessas produções que tem por objetivo demonstrar sua singularidade nos aspectos que esse estudo propõe: a interdição e a transgressão como meio de denúncia social.

ABSTRACT

Keywords : Erotic movie. Interdict and transgression. Social complaint. Cinema Novo.

This study investigates the interdict and transgression of eroticism in the films of director Joaquim Pedro de Andrade, through comparative study of two films under his direction. The first, O padre e a moça, a feature film of 1965 from poem by Carlos Drummond de Andrade; the second, Vereda Tropical, episode of the feature film from 1977, erotic stories based on award-winning tale for the contest of the journal Status. Targeted research analyses the image and sound, the study aims at eroticism as transgressive condition against reality sacred level, represented in the film O padre e a moça ; at the level of individual ownership of the body, the episode Vereda Tropical situation. The conceptual references are the studies on cinema of Ismail Xavier and the speech of Georges Bataille's eroticism. The study aims to develop also in analysing these filmic productions aims to demonstrate your uniqueness in this study proposes: the interdiction and transgression as a means of social denunciation.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

1. CINEMA E EROTISMO 13

1.1 A AURA DO CINEMA 13

1.2 CINEMA E EROTISMO 21

1.3 GÊNEROS CINEMATOGRÁFICOS 32

2. JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE 39

2.1 O DIRETOR E SUA OBRA 39

2.2 TEMPO HISTÓRICO E PRODUÇÃO DE FILMES 44

2.3 JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE E O CINEMA NOVO 54

2.4 ESTÉTICA E TRANSGRESSÃO: EROTISMO DO SAGRADO 59

EROTISMO DOS CORPOS 66

3. O PADRE E A MOÇA 68

4. VEREDA TROPICAL 92

5. CONCLUSÃO 107

6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 110

7. ANEXOS 114

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INTRODUÇÃO

O trabalho aqui proposto se pretende incluir na linha de pesquisa de ANÁLISES EM IMAGEM E SOM e tem como objetivo o estudo do erotismo como aspecto interdito e transgressor na obra do cineasta brasileiro Joaquim Pedro de Andrade, por meio de estudo comparativo de dois filmes sob sua direção: O padre e a moça , um longa-metragem de 1965, e Vereda Tropical , um curta-metragem de 1977, ambos por ele roteirizados. A análise dos filmes escolhidos foca o erotismo como a condição transgressora frente à realidade vivida, o mecanismo de ruptura do proibido, o desejo como a condição de liberdade em relação ao modelo social vigente, seja no nível do sagrado, aquilo que deve ser venerado, representado no filme O padre e a moça ; seja no nível da apropriação individual do corpo, a escolha pessoal da obtenção do prazer, situação do episódio Vereda Tropical . O padre e a moça é um longa-metragem de 1965, adaptado pelo cineasta a partir de poema de Carlos Drummond de Andrade; Vereda Tropical , é episódio do longa-metragem de 1977, Contos Eróticos, com direção de vários diretores , e tem como base o conto premiado de Pedro Maia Soares para o concurso da revista Status. Joaquim Pedro de Andrade é um dos fundadores do grupo do Cinema Novo, movimento que reuniu jovens cineastas brasileiros nos anos de 1960 e que estabeleceu uma nova linguagem para o cinema nacional. Considerando suas origens de cineasta comprometido com o posicionamento político de esquerda, o sentido do interdito e da transgressão que se busca analisar nesse trabalho por meio dos filmes escolhidos se mantém em toda a obra de Joaquim Pedro de Andrade. Diferentemente dos demais cineastas do movimento cinemanovista, Joaquim Pedro não rompe com suas origens de burguesia intelectual aristocrática nas obras que realiza; não há o sertão, o árido, a fome denunciada; ao contrário, é no cotidiano urbano ou periférico das grandes concentrações humanas que ele vai pinçando os aspectos mais doentes e doídos do contexto social brasileiro, de tal forma que a

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imagem é a mensagem, num paralelismo à clássica frase de Marshall McLuhan, o meio é a mensagem 1. Filho de Rodrigo Melo Franco de Andrade, fundador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – conviveu de maneira muito próxima com os maiores intelectuais da época, os amigos de seu pai. Criado em tal ambiente familiar, a cultura literária foi parte integrante de sua formação. Na área de cinema Joaquim Pedro de Andrade é considerado diretor de adaptações literárias 2, mas delas não se serve sem colocar sua marca. A narrativa de base literária é desconstruída no referencial imagético que utiliza de forma transgressora e crítica, desvelando obscenidades de um cotidiano cruel em suas desigualdades sociais. Os filmes escolhidos para o estudo não trazem obrigatoriamente o conceito de erotismo como representação do prazer; Não é a apresentação imagética da sensualidade do corpo humano transformada em objeto desejante para o outro que é o foco desse trabalho. Busca-se aqui analisar nos filmes escolhidos, o erotismo como a condição transgressora frente à realidade vivida, o mecanismo de ruptura do proibido, o desejo como a condição de liberdade em relação ao modelo social vigente. O erotismo no cinema e seu significado, base desse trabalho de pesquisa, surgiu a partir dos estudos sobre os gêneros cinematográficos. Em suas várias categorizações - drama, comédia, horror, sexo, sagrado - o referencial erótico é parte constante da representação fílmica desde o início do próprio cinema, o primeiro cinema, conforme apontado por Cesarino Costa 3 em sua obra O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação, tornando-se elemento de narrativa presente em todos os gêneros e suas variações. Como aponta Ismail Xavier 4 em sua obra O cinema no Século, o cinema apresenta dois movimentos: a representação realista e paradoxalmente, “um sentido de irrealidade” Assim, desde seus primórdios, o cinema fez uso de conteúdo erótico, manipulando-o em conformidade com as regras do comportamento social exigido por uma sociedade que se apropriava rapidamente do conceito de moderno.:

1 MCLUHAN, Herbert Marshall. Meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix, 1993. 2 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno . São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 60. 3 COSTA, Cesarino Flávia. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação . Rio de Janeiro: Azougue, 2005. 4 XAVIER, Ismail. O Cinema no Século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.26

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Para Bataille 5, pensador e escritor francês, em seu livro O Erotismo: o proibido e a transgressão , o erotismo enquanto sentimento de prazer produzido pelo homem é necessidade psicológica, uma vez que está dissociado da atividade sexual como instinto de reprodução e procriação. Para ele, o homem evoluiu a partir da religião e do trabalho sujeitando-se às interdições estabelecidas por uma e outro. O autor considera o erotismo e a violência uma dimensão do sagrado das religiões primitivas, análogo ao divino das religiões atuais. As interdições estão ligadas às transgressões e, de maneira contraditória, elas só existem à medida que é possível transgredi-las. A história do cinema pode comprovar o quanto ele foi capaz disso. O erotismo esteve presente no cinema desde o seu início. O erotismo é palavra adjetivada do nome do deus grego do amor Eros, termo que Freud tomou emprestado para denominar o que conceituou como pulsão sexual ou instintos de vida. O interdito e a transgressão estão postos no mundo cinematográfico e, conforme Bataille 6 “não há proibição que não possa ser transgredida”. Estudar Joaquim Pedro de Andrade a partir dos conceitos apresentados é trabalhar o avesso da realidade, ou seja, para o cinema desse diretor o erotismo é o meio transgressor de denúncia da desigualdade social; do poder autoritário com qual o país foi construído, dos códigos morais e religiosos mascarados por uma lascívia nacional. O cineasta eleva seu cinema à proposição do conhecido cineasta russo Dziga Vertov 7, usando a câmera como um estandarte; não há momento algum em sua obra que ele faça concessões ao poder instituído, ao contrário, confronta-o, usando histórias e imagens da cena brasileira. O trabalho tem como base de referências conceituais estudos sobre cinema tendo como apoio maior os livros de Ismail Xavier; sobre o discurso do erotismo a escolha é Georges Bataille e sobre Joaquim Pedro de Andrade, a referência principal é a tese de doutorado sobre o cineasta "Joaquim Pedro de Andrade: Primeiros Tempos" de Luciana Sá Leitão Correa de Araujo, além do site da Filmes

5 BATAILLE, Georges. O Erotismo: O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980. 6 Idem. p. 56 7 XAVIER, Ismail (org.) A experiência do cinema : antologia. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.

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do Serro 8, empresa fundada pelo cineasta em 1965 e que hoje responde pela gestão e recuperação da obra do diretor. A partir da literatura específica do assunto em questão, levantamento bibliográfico e documental sobre o cineasta e sua obra, concentrando-se nos filmes propostos, o estudo visa embasar-se também na análise fílmica dessas produções. A análise fílmica tem por objetivo demonstrar sua singularidade nos aspectos que esse estudo propõe: a interdição e a transgressão como meio de denúncia social. Com base nos recursos narrativos, cênicos, visuais e sonoros três aspectos são estabelecidos para a análise fílmica, conforme estudos de diversos autores: Wilson Gomes, 2010, professor da Universidade Federal da Bahia e Xavier, 2008 9; primeiro, o aspecto conceitual: o tipo de composição fílmica, o que ela diz, em que tempo e para quem; a narrativa proposta para o espectador. Segundo, o aspecto sensorial: os elementos contidos no filme tais como cor, luz, ritmo, trilha sonora, dispostos de forma a produzir sensações esperadas no espectador. Terceiro, o aspecto emocional: a experiência emocional gerada pelo filme no espectador. Tal análise também considera que a obra fílmica é um conjunto de vários elementos, materiais e efeitos, ordenados de forma singular para sua composição e utilizados de maneiras diferentes conforme o gênero cinematográfico representado. Há a preocupação no trabalho de evidenciar tal singularidade, utilizando-a como elemento integrante nas obras fílmicas analisadas, uma vez que os dois filmes escolhidos são de gêneros diferentes, um drama e uma comédia pornô-erótica; são de duração diferente, um longa e um curta; apresentam também estéticas diferentes, preto e branco e colorido. O trabalho tem como base metodológica o levantamento bibliográfico e documental sobre o cineasta e sua obra, concentrando-se nos filmes propostos. É com esse referencial que se vai relacionar o impacto transgressor do cinema de Joaquim Pedro de Andrade, a partir dos filmes indicados, frente às interdições criadas pela sociedade de seu tempo. O primeiro capítulo, Cinema e Erotismo, apresenta a relação histórica entre ambos e a presença expandida do erotismo nos gêneros cinematográficos até a década de 1960, perpassando em todos eles.

8 www.filmesdoserro.com.br 9 GOMES,Wilson..Texto da internet citado na bibliografia; XAVIER, Ismail, livros citados na bibliografia.

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Discute-se os três tipos de erotismo propostos por Bataille 10 : erotismo dos corpos; erotismo do coração e erotismo do sagrado e o modelo de projeção- identificação-transferência proposto por Morin 11 , sociólogo e filósofo francês, um dos principais pensadores da atualidade. O segundo capítulo, Joaquim Pedro de Andrade, apresenta o diretor e sua obra, o tempo histórico onde ela é produzida, sua relação com o movimento do Cinema Novo, a estética cinematográfica utilizada pelo cineasta e a relação de transgressão existente nos filmes estudados. O terceiro e quarto capítulo é a análise fílmica das obras e as considerações a respeito do recorte erótico e transgressor apresentado pelo cineasta, ou seja demonstrar a singularidade nos aspectos propostos pelo estudo: a interdição e a transgressão do erotismo como meio de denúncia social. O último capítulo apresenta as reflexões elaboradas para conclusão.

10 BATAILLE, Georges. O Erotismo: O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980.p. 17 11 MORIN, Edgar. A alma do cinema. In: XAVIER, Ismail. (org.) A experiência do cinema : Antologia. 4ed. Rio de Janeiro: Graal: Embrafilmes, 2008.

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1. CINEMA E EROTISMO

1.1 A “aura” do cinema

O interesse pelo erotismo no cinema e seu significado, base desse trabalho, surgiu a partir dos estudos sobre os gêneros cinematográficos. Em suas várias categorizações - drama, comédia, horror, sexo, sagrado - o referencial erótico é parte constante da representação fílmica desde o início do próprio cinema, o primeiro cinema, tornando-se elemento de narrativa presente em todos os gêneros e suas variações. Os primeiros filmes (1895) que usavam o teatro de variedades traziam conotações eróticas, conforme Flavia Cesarino 12 . Tom Gunning 13 conta que Máximo Gorki em 1896 ao assistir as fotografias em movimento produzidas pelos irmãos Lumière, num “café chantant” francês excursionando pela Rússia, previu que o cinema logo se adaptaria a um ambiente de licenciosidade . Como aponta Ismail Xavier 14 , o cinema apresenta dois movimentos: a representação realista e paradoxalmente, “um sentido de irrealidade”. Assim, desde seus primórdios, o cinema fez uso de conteúdo erótico, manipulando-o em conformidade com as regras do comportamento social exigido por uma sociedade que se apropriava rapidamente do conceito de moderno, de tal forma que por meio de inovações tecnológicas contínuas criou-se uma nova estética, a estética da imagem, a estética da beleza produzida pelo aparato mecânico, voltada para o olhar do espectador que apoiado na representação realista, entrega-se à irrealidade daquilo que vê. Segundo Béla Balász 15 , escritor húngaro que com o advento do cinema mudo tornou-se um de seus grandes teóricos, a descoberta da imprensa impôs a cultura da palavra que cristalizou nossa alma e escondeu nossos corpos em roupas. Para ele, a arte do cinema possibilita que o indivíduo redescubra seu próprio corpo, tornando-o visível.

12 COSTA, Cesarino Flávia. O primeiro cinema : espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. 13 GUNNING, Tom. “Fotografias Animadas”, contos do esquecido futuro do cinema. In XAVIER, Ismail . O Cinema no Século . Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 21-22. 14 XAVIER, Ismail. O Cinema no Século . Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 25 15 BALÁSZ, Béla. O homem Visível In XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema . 4ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p.77-99.

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Em suas palavras:

o mercado cinematográfico permite apenas a existência de gestos e expressões faciais universalmente compreensíveis, sendo que cada nuança deve ser entendida da mesma forma, tanto por uma princesa de Smyrna, quanto por uma operária em São Francisco16 .

Para ele, o cinema torna inexistente o distanciamento entre observador e obra de arte, uma vez que elimina “gradualmente da consciência do espectador” a distância existente entre ele e a obra fílmica, em suas palavras “a câmera carrega o espectador para dentro mesmo do filme” 17 . Assim, o espectador se apropria do olhar do personagem tornando-o seu, sem em nenhum momento lembrar que de fato, o que ele vê é o olho da câmera. Elemento de discussão desde o desenvolvimento da fotografia, a interrelação entre olho e câmera e sua metáfora de ocupação do mesmo espaço, geraram teorias que se contrapunham em relação à forma simbólica e ideológica da câmera: a representação fílmica da realidade, conforme Aumont e Marie 18 . Por meio da câmera-olho o espectador se percebe sujeito de uma história que não é dele, mas dela se apropria e incorpora, vivendo-a intensamente por meio do que vê na tela. Para Balász 19 é este fato que consolida o que a psicologia vai chamar de identificação. Edgar Morin 20 , estabelece a identificação cinema/espectador como a “alma do cinema” uma vez que para esse pensador, o indivíduo absorve o que ocorre no filme, identificando-se com algum de seus elementos. Considerando a projeção como o ato de atribuir a outra pessoa, animal ou objeto as qualidades, sentimentos ou intenções que se originam no próprio indivíduo, para este autor o espectador ao identificar-se com o que vê no filme, transfere esses significados para si mesmo.

16 BALÁSZ, Béla. O homem Visível In XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema . 4ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p.82. 17 BALÁSZ, Béla. Nós estamos no filme. In XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema . 4ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 84. 18 AUMONT, Jacques. MARIE Michel. Dicionário Teórico e Crítico do Cinema . Lisboa: Texto & Grafia, 2009. p. 43. 19 BALÁSZ, Béla. Nós estamos no filme. In XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema . 4ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p.85. 20 MORIN, Edgar. A alma do cinema In XAVIER, I. A experiência do cinema . Rio de Janeiro: Graal, 1983, p.145.

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Esta relação complexa, inerente ao humano, é denominada pelo autor como complexo de projeção-identificação-transferência, e é responsável pelo comando dos chamados fenômenos psicológicos subjetivos, ou seja, os que "traem ou deformam a realidade objetiva das coisas, ou então se situam, deliberadamente, fora dessa realidade" 21 . O pensador frances considera o sonho o espaço de encontro da subjetividade e da magia, uma vez que para ele, a essência do sonho e a subjetividade e sua existência é magia real até o acordar e completa: “o estado subjetivo e a coisa mágica são dois momentos da projeção/identificação”. 22 Ainda, a evolução do homem “desmagificou” o universo e interiorizou a magia, transformando-a em sentimento; o duplo (projeção-identificação) foi corporificado, tornou-se alma. É por meio do cinema que a participação subjetiva (por meio do “sonho” assistido) se reconstitui em objetiva (a magia se torna a “realidade vivida”). Walter Benjamin 23 em seu texto clássico, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, aponta o culto sagrado como a forma mais primitiva de arte, de início ritualístico, mágico e depois religioso quando o objeto de santo, representado no ritual, era incorporado ao conteúdo sagrado. Os objetos sagrados na sociedade primitiva eram mantidos secretos pelo sacerdote. Sua sacralidade não estava em serem vistos, mas na certeza de existirem. O filósofo considera que a aura da obra de arte se perde no momento em que é reproduzida tantas vezes quanto se deseja e o cinema é o limite extremo desse processo, uma vez que como produto industrial seu foco é a distribuição massiva ao mesmo tempo que, para o espectador, restabelece sua relação com o universo da magia. No cinema o espectador reencontra sua própria humanidade por meio da mostrabilidade inerente à técnica cinematográfica; enquanto que a figura do ator torna-o senhor novamente de sua vida e de sua história, velando a alienação constitutiva do seu cotidiano. Poder-se-ia argumentar audaciosamente, em contraposição ao filósofo, que o sagrado permanece no sentimento do indivíduo, subjetivado, uma vez que a aura é confirmada, não mais porque sabe-se da existência do sagrado que ela invoca, mas

21 MORIN, Edgar. A alma do cinema In XAVIER, I. A experiência do cinema . Rio de Janeiro: Graal, 1983, p.147 22 Idem. . pg. 145 23 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In : BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas I. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 171-174.

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porque dele se apropria o indivíduo no processo de identificação-transferência, o que o torna, tantas vezes quanto a mostrabilidade cinematográfica ocorrer, parte desse sagrado. Horkheimer e Adorno 24 (MATTOS, 2001) são incisivos em relação ao mecanismo do cinema como a técnica inspiradora da alienação social. Para eles a alienação está diretamente relacionada ao processo fílmico, uma vez que, conforme definido por Benjamin (1996) uma nova percepção centrada na ótica e na agilidade da identificação de informações e não da reflexão sobre elas, determina o pensar do espectador. Para eles, o aspecto erótico e sua satisfação estão representados em sua negação, na exposição contínua do objeto de desejo sem poder alcançá-lo. Morin 25 no seu clássico estudo sobre Hollywood, As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema, apresenta o cinema como o altar onde “semi-divindades, criaturas de sonho [ ] seres humanos e divinos, [ ] heróis mitológicos [ ] deuses do Olimpo” 26 são cultuados tal qual os antigos deuses primitivos, num resgate mitológico e mágico uma vez que não há intermediação entre a sacralidade desses novos deuses e seus adoradores. A explicação para este pensador está diretamente vinculada à evolução sócio-histórica da sociedade burguesa e na condição do cinema como produto da economia capitalista e seu sistema produtivo ao incorporar, no início do século XX, o modelo das indústrias produtivas em ascensão. Para os trabalhadores, massa humana produzida pela modernidade, a sala escura do cinema era o momento onde os processos psico-afetivos de projeção-identificação se vivificavam nas imagens/narrativas da tela por meio de atores e atrizes, proto-agonistas de seu cotidiano. Assim, o cinema como representação efetiva da industrialização da cultura na sociedade moderna, produto de contínua inovação tecnológica e industrial é contraditoriamente, aonde a magia se re-estabelece. A base de análise para esse trabalho vem da definição de erotismo proposta por Georges Bataille 27 , escritor francês que tem sua obra voltada para os temas do erotismo, da transgressão e do sagrado. As referencias apresentadas a seguir tem

24 MATTOS, Olgária Chain F. A Escola de Frankfurt. Luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. 25 MORIN, Edgar. As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. 26 Idem. Op.cit. Prefácio à 3ª edição francesa, p.x. 27 BATAILLE, Georges. O Erotismo : O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980.

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base nesse autor. Em seu dizer, o erotismo está ligado ao homem, ao trabalho e à religião. Na fala do autor:

... Penso que o erotismo tem para os homens um sentido que a atitude científica não pode captar. O erotismo só pode ser encarado se, ao encará-lo, estivermos a encarar o homem. Sobretudo, não pode ser encarado independentemente da história do trabalho, não pode ser encarado independentemente da história das religiões 28 .

Para ele, o estudo desse recorte do comportamento humano envolve a história do homem, as relações que se estabelecem entre eles, sua vinculação aos dogmas religiosos e ao modelo de trabalho e sua sujeição a todas variáveis, perpassadas pelo sentimento erótico, seja esse sentimento de “volúpia ou de santidade”. Só o homem transformou a atividade sexual em atividade erótica, é sentimento de prazer produzido pelo homem, é necessidade psicológica, é de cada um. Essa individualidade única não é satisfatória porque a ela está vinculada a finitude do ser, sua descontinuidade por meio da violência da morte. Por ser descontínuo, para o homem a morte é a única certeza. Em sua experiência de viver, o indivíduo nasce e morre sozinho; nascer como morrer é próprio de cada um e a morte é a violência que rompe o desejo humano de continuidade. É na união com o outro que se encontra a continuidade, o desejo de permanência, tornando-o desejante para o fim desejado, ainda que haja a violência de superar a própria descontinuidade e a violação dela mesma no outro. Assim, a reprodução gera seres que denomina como descontínuos, distintos entre si e daqueles que lhes deram origem; “cada ser é distinto de todos os outros”. Para ele: Somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura ininteligível, mas que têm a nostalgia da continuidade perdida. Suportamos mal a situação que nos amarra à individualidade que somos. E ao mesmo tempo que conhecemos o angustioso desejo de duração dessa precariedade, temos a obsessão duma continuidade primarcial, que ao ser geralmente nos una.29

28 BATAILLE, Georges. O Erotismo : O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980. p. 10-16 passim. 29 Idem. p.16.

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É o erotismo que permite ao homem superar esse sentimento de descontinuidade na relação com o outro - a continuidade desejada - ainda que ocorra dois níveis de violência: o rompimento da própria descontinuidade e a violação dela mesma no outro. Assim, para o autor, “o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação". 30 Na busca dessa continuidade o elemento masculino tem, em princípio, um papel ativo – violência - e o elemento feminino um papel passivo – a que passa pela violação. A violação/ dissolução do elemento feminino tem apenas um sentido para o masculino: o encontro de dois seres que juntos, atingem o mesmo ponto de dissolução ou la petit mort (o orgasmo), conforme Bazin 31 Assim, o ato erótico tem por princípio a destruição da estrutura do ser fechado (que se contrapõe à nudez), que é, no estado normal, um participante da ação. A busca da continuidade determina no homem três formas de erotismo: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo do sagrado, conforme Bataille. 32 O erotismo dos corpos se apresenta no desnudamento; o descontínuo (coberto, fechado) busca a possível continuidade (mostrada, aberta). Para ele:

A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, ou seja, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a procura duma possível continuidade do ser. 33

Corpos se expõem, abrem-se à continuidade, desvelando o que era até então secreto. Não há mais segredos e a ausência deles cria o sentimento de obscenidade, a individualidade se des-possui.

Esta des-possessão é tão completa que, no estado de nudez que a anuncia, que dela é sinal, a maior parte dos seres humanos se oculta, o que sucede por maioria de razão se a ação erótica, que acaba por os des-possuir, se segue à nudez.34

30 BATAILLE. Georges. O Erotismo . O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980. p.17 31 BAZIN, Andre. apud Xavier, Ismail (org.) A experiência do Cinema : Antologia. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal: Embrafilmes, 1983. p. 133. 32 BATAILLE. Georges. .Op.cit. p.17-19. passim . 33 Idem . p.18 34 Ibidem.. p.19

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Para o autor a nudez é a condição da perda da posse de si próprio, ela rompe com o segredo da individualidade do próprio indivíduo, de tal modo que ele se oculta da nudez, cobrindo-se. Para ele, ao final da ação erótica nada mais sobra ao sujeito do que se cobrir, porque despossuído de si próprio, torna-se obsceno. Obscenidade essa fruto de comportamentos secretos, uma perturbação que devolve a posse do corpo para o indivíduo, afirmando e explicitando sua individualidade quando do prazer sentido, é, portanto, um erotismo mais egoísta. O erotismo dos corações é mais livre e está no afeto correspondido dos amantes, na cumplicidade que prolonga a satisfação dos corpos. O amor é erótico, torna o indivíduo enredado no desejo de estar constantemente com o ser amado. Porém, a paixão, mesmo a mais feliz, traz nela própria o risco da perda do amado, o sofrimento ou o retorno à descontinuidade. A solução para o sofrimento é a posse do ser amado e a angústia de perdê-lo faz com que se tenha consciência desse outro.

Para o amante, o ser amado é a transparência do mundo. O que transparece no ser amado é exatamente o ser pleno, ilimitado, que a descontinuidade pessoal já não limita; é a continuidade do ser, entrevista como libertação a partir do ser amado. [ ] ...para o ser que ama, e ainda que (o que pouco importa) só para ele, o ser amado equivale à verdade do ser 35 .

O escritor considera que no erotismo dos corações a complexidade do mundo desaparece para o amante, uma vez que vê no outro, de forma simples e profunda, o ser. O erotismo do sagrado tem como base a idéia de que a continuidade do ser é manifestada pela morte através do sacrifício, relação que os cultos primitivos sempre estabeleceram. O sacrifício da vida era para os povos antigos um ato de amor em relação aos que precisavam de uma graça dos deuses. O elemento feminino do erotismo surgia como vítima e o masculino como sacrificador, uma vez que a participação no desnudamento e na morte da escolhida, via de regra uma virgem, levava ao sagrado ; na violência da morte há uma ruptura da descontinuidade e o ato sagrado restitui à vítima e aos participantes a continuidade do ser: “O sagrado é exatamente a continuidade do ser revelada àqueles que, num rito solene, fixam a sua atenção na morte de um ser descontínuo”.

35 BATAILLE. Georges. O Erotismo . O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980 .p. 20-21 .

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Para ele:

A vida é acesso ao ser: se a vida é mortal, a continuidade do ser não o é. O sentimento erótico dá ao homem o poder de abordar a morte de frente e de nela ver a abertura para a ininteligível e desconhecida continuidade que é segredo do erotismo e de que só o erotismo tem o segredo 36 .

A relação entre erotismo e religião para o autor exige uma experiência pessoal e contraditória da proibição e da transgressão. Se a interdição só pode ser observada no medo gerado pela coisa proibida, a transgressão desconsidera-a, mas não a elimina. O ato de transgredir o proibido torna consciente a experiência do pecado, desfrutando nele o que estava interdito. De maneira contraditória as interdições estão ligadas às transgressões, uma vez que só existem porque é possível transgredi-las. Para o autor, de todas as formas, “o erotismo sempre implica na dissolução das formas constituídas, [ ] das formas da vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades que somos”. 37

36 BATAILLE, Georges. O Erotismo . O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980. p .22-24. passim. 37 Idem p.19.

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1. 2. CINEMA E EROTISMO

O cinema é o espetáculo da sociedade industrial, como apontam os estudiosos do assunto, e a partir da sessão de 28 de dezembro de 1895, com o cinematógrafo de Lumière na França, ele se instala como a arte da modernidade. O uso de imagens eróticas nas fotografias em movimento já era produzido pelo Primeiro Cinema (early cinema) 38 e o erotismo no cinema pode ter como referência inicial The Kiss de 1896 (fig.1), estrelado por um casal de meia-idade, considerado obsceno por Harold Stone, editor de Chicago:

o espetáculo do seu prolongado pastar nos lábios um do outro já seria difícil de suportar em tamanho real. Aumentado para proporções gigantescas...é absolutamente repugnante. Estas coisas requerem a intervenção da polícia. (KEESEY e DUNCAN, 2005, p.27) 39 .

Figura1. O indecente beijo na “meia-idade”.

O que faz exatamente um filme ser erótico? Conforme Bataille 40 o erotismo implica sempre o quebrar dos padrões estabelecidos, [os tabus definidos pela] ordem social regulamentada... O domínio do erotismo é o domínio da transgressão desses tabus... O vício pode ser pensado como a arte de dar a si próprio a sensação de transgressão.

38 COSTA, Cesarino Flávia. O primeiro cinema - espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. p. 8 39 KEESEY Douglas. DUNCAN, Paul (Ed.).Cinema Erótico. Taschen, 2005. p. 27 40 BATAILLE, Georges. O Erotismo. O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980. p.33-35.

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Os primeiros filmes foram feitos para que voyeurs vissem "lampejos de carne tentadoramente exposta, La Puce (1897) é uma versão em filme de musical de strip- tease em que uma mulher despe todas suas peças de roupa, supostamente atrás de uma pulga" 41 . Na primeira década do século XX na França, grandes nomes do palco como Sarah Bernhardt têm suas peças filmadas e apresentadas em outros países. Em 1913, Louis Feuillade com Fantomas, cria o primeiro seriado policial. Nos Estados Unidos, inicialmente voltado para a população de imigrantes trabalhadores pobres e analfabetos, o cinema é um lazer barato. Custando um nickel, a sequência de fotos em movimento sem preocupações maiores com qualquer tipo de narrativa, torna-se rapidamente um sucesso. Os nickelodeons - grandes galpões para apresentação do cinematógrafo - serão a gênese de uma nova estrutura de trabalho que, acompanhando o processo crescente da industrialização da época, o desenvolvimento de tecnologias do período e a exigência de um público ávido por novidades, alimentaria uma nova indústria: a cinematográfica, que vai determinar novos padrões de comportamento social, político, econômico e moral na sociedade ocidental. O cinema como diversão popular apresentava filmes com conotação erótica e cenas de sexo explícito. Como os vaudevilles eram marginalizados, estes filmes não sofriam censura e eram exibidos normalmente, além do que, muitos vinham com a conotação de “científicos ou naturalistas” e eram sucesso. Em 1908, a Kinematograph Weekly apresentava a seguinte atração: “Venus Filmes – Especial para exibições para cavalheiros. Filmes e diapositivos muito picantes. Envie 6 dinheiros em selos e receberá um catálogo de 48 páginas ricamente ilustrado”. Em 1913 , Traffic in souls, curta que tratava sobre a escravidão branca com custo de US 5.700, rende US 450.000. O cartaz do filme 42 de 1913 é bastante revelador na aproximação dos corpos, no gesto de dominação masculina no braço da moça, indicativos do encaminhamento da narrativa (fig. 2).

41 KEESEY Douglas. DUNCAN, Paul (Ed.).Cinema Erótico. Alemanha: Colonia: Taschen, 2005. p. 89 42 Traffic in souls; 1913.Cartaz original do filme. Reproduzido de imdb.com. , 2009.

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Figura 2. Enquanto NY dorme

Ainda no mesmo período, coincidências no mundo literário como o poema The Vampire de Rudyard Kipling e o livro Drácula de Bram Stoker lançados nos Estados Unidos com sucesso, criou um estereótipo de mulher: a vampira. De pele sempre muito clara, olhos e cabelos negros é uma figura envolvente, sensual e pronta para levar os homens à ruína. A Fool There Was é lançado em 1915 e Theda Bara é The Vampire ( fig. 3) 43 , que ao beijar um homem “a mulher-vampiro suga a alma de seu amante” 44 (MORIN, 1989).

43 A Fool There Was; 1915. Theda Bara como the Vampire .Reproduzido de photobucket.com . 44 MORIN, Edgar. As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p.7

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Figura 3. “Devoro-te sem decifrar-me.”

O sucesso absoluto do filme transforma-a em símbolo sexual e as mulheres “sedutoras e más” passam a ser identificadas como vamps. Nos três anos seguintes, a atriz faz mais de 40 filmes com personagens como Salomé, Cleópatra (fig. 4) 45 e Carmem.

45 Figura 4 - Cleópatra ; 1917 . Theda Bara . Reproduzido de filmes.zura.com.br/fotos--theda-bara.html

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Figura 4. Uma Cleópatra que Mucha 46 teria adorado.

Em contraposição a “vamp”, Mary Pickford é a “queridinha da América", enaltecendo a pureza angelical por meio de suas personagens, conforme aponta Morin. Para ele,47 a câmera de filmar passa a ter outra função: produzir sonhos, perdendo sua função original de retratar a realidade; assim como a ecrã, que apresentando ao ser humano um espelho, oferece semideuses ao século XX: as estrelas do cinema que, aos olhos do filósofo “são seres ao mesmo tempo humanos e divinos, análogos em alguns aspectos aos heróis mitológicos ou aos deuses do Olimpo, suscitando um culto, e mesmo uma espécie de religião” 48 . O fenômeno das estrelas é definido para esse filósofo como: "simultaneamente estético-mágico-religioso, sem ser jamais, exceto num limite extremo, totalmente um ou outro [ ] mito e magia em nossas sociedades ditas racionais." 49

46 MUCHA, Alphonse, um dos principais expoentes do movimento Art Nouveau 47 MORIN. Edgar. As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. Prefácio à 3ª edição francesa p. x-xi 48 Idem.. p.x 49 Ibidem. p. xi

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Cecil B. De Mille, entre 1919 e 1923, cria a imagem feminina que passa ser o modelo hollywoodiano: “beleza-juventude-sex-appeal ”. No período do pós-guerra, dedicou-se às comédias de costumes, com temas que abordavam liberdade e prazer, moral e fidelidade, provocando críticas dos puritanos da época. Em Male & Female, de 1919, De Mille filma a indiscrição, o olhar pelo buraco de fechadura do banheiro, a invasão de privacidade do outro, explicitando em cena a questão do duplo no cinema: voyeurismo e voyeur, cinema e espectador. Durante a Grande Depressão a sensação sexual foi Mae West 50 (fig. 5).

Figura 5. Mae West, sexualidade transparente.

Ela era a representação da alegria e volúpia, em contraste com o clima do país. Em 1926, ao representar a peça Sex de sua autoria na Broadway teve um mandato de prisão por 10 dias, acusada de imoralidade. O erotismo cômico da atriz brincava com a sexualidade por meio de suas formas exuberantes e a ironia nas suas apresentações minimizava a ousadia de seus diálogos. O cinema sonoro ampliou o mis-en-cene de suas personagens: “Já estive em mais colos do que um guardanapo” (Não sou um anjo, 1933) 51 .

50 Mae West no início dos anos 1930. 51 MORIN, Edgar. As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p.9-10, passim.

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É também consequência do cinema sonoro o clima “realista” 52 que se instala a partir dos ruídos que passam a ser ouvidos no filme, a inflexão na voz dos atores, as nuances das palavras. Em 1930, com “O anjo azul” de Josef Von Sternberg, Marlene Dietrich (fig. 6) 53 interpreta Lola Lola, uma cantora de cabaré. Está criado mais um estereótipo feminino: a femme fatale. Da mesma época é Greta Garbo (fig. 7) 54 , conhecida pelo epíteto de "A Divina" devido à beleza clássica de seu rosto e ao magnetismo que irradiava; "estava além do bem e do mal," conforme Balász em citação de Morin 55 . Lindas, as mulheres querem ser elas, os homens querem tê-las. São mitos do cinema até hoje.

Figura 6. Marcou um modelo. Figura 7. É divina.

É o período onde o mundo das fofocas, “furos” sobre um novo romance mantinha 500 jornalistas em Hollywood alimentando o “star system” escreve o autor, e ainda hoje, suas “fotografias aparecem em primeiro plano, sua vida privada é pública, sua vida pública é publicitária, sua vida na tela é surreal, sua vida real é mítica" 56 . Em 1934, sobre pressão da igreja e intervenções do governo, Hollywood promove o Production Code , um conjunto de restrições aos conteúdos a que todos

52 MORIN, Edgar. As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p.9-10, passim. 53 “O anjo azul”, 1930. Marlene Dietrich . 54 Greta Garbo. Selo comemorativo100 anos de nascimento. Foto de 1932. 55 MORIN, Edgar. As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989 p. 8 56 Idem. p. xv

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os produtores de filmes tinham de obedecer se quisessem obter selo de aprovação e ver seus filmes exibidos nas sa las de cinema, levando a "30 anos de diálogos de duplo sentido e um ima ginário sexualmente sugestivo", conforme Keesey e Ducan 57 . A época das platinum blondes no cinema tem em Jean Harlow 58 a primeira atriz loira a explorar seu sex appeal . O apelo sensual/sexual está presente no corpo exuberante, na movimentação “felina”, sensual, linguagem que se mantém até os dias de hoje. O sexo no cinema aparece como uma condição da natureza, uma possibilidade de liberdade, um “pode vir a ser” e as loiras passar am a ser vistas como símbolo sexual. Para Morin 59 :

O erotismo, que é a atração sexual que se espalha por todas as partes do corpo humano [ ] é também o imaginário “mítico” que toca todo o domínio da sexualidade.

No final dos anos 1940: Rita Hayworth (fig. 9) 60 como Gilda (1946) crava no coração de todos os homens que “nunca houve mulher como Gilda ”, numa cena musical sensual, desejante, desejada. Ao tirar as longas luvas, até hoje faz o coração dos espectadores bater mais rápido imaginando um strip -tease.

Figura 8. Padrão permanente Figura 9. É Gilda!

57 KEESEY Douglas. DUNCAN, Paul (Ed.).Cinema Erótico. Alemanha: Colonia: Taschen, 2005. p. 21-22. 58 Jean Harlow em foto de 1933. 59 MORIN, Edgar. As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. op.cit. p.16. 60 Rita Hayworth como Gilda ; 1946.

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Carmen Miranda (fig.10) 61 foi para os Estados Unidos em 1939. Os jornalistas americanos criaram diferentes slogans para defini-la: a sereia da América do Sul, a labareda latina, a lança-chamas brasileira. Só essas associações seriam suficientes para demonstrar a clara interação entre cinema e erotismo. A brasilian bombshell era um sucesso onde se apresentasse; em 1946 era a artista mais bem paga de Hollywood e a mulher que mais pagava imposto de renda naquele país.

Figura 10. Inesquecível.

Era exótica, diferente, era de outro país. Representava a “morenice dos trópicos” e a “caliente” sensualidade latina. Mas Carmen Miranda só podia ser Carmen Miranda. Jamais conseguiu outro papel que não fosse de si mesma, com sua baiana e seus balangandãs cada vez mais estilizados 62 . Os anos do pós-guerra, 1950 em diante, foram os da explosão da feminilidade. O fim da guerra possibilitou à mulher um retorno ao feminino, à sofisticação e paradoxalmente, o posicionamento por um papel mais efetivo e atuante na sociedade. O mundo em turbulência acompanha a ascensão das duas potências mundiais: Estados Unidos e Rússia; o desenvolvimento tecnológico faz surgir novos produtos e o eixo do poder mundial se instala nos Estados Unidos.

61 Carmem Miranda, anos 1940. 62 CASTRO, Ruy. Carmen . São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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Em Hollywood as referências estéticas estão voltadas para a ingenuidade chique de Grace Kelly e Audrey Hepburn ou para o estilo sensual e fatal de Ava Gardner. Mas os dois grandes símbolos de beleza da década de 1950 são Marilyn Monroe e Brigitte Bardot, ambas uma mistura dos dois estilos: ingenuidade e sensualidade. As restrições do Código, desde os anos 1950, já haviam diminuído e em 1968 ele é substituído por um sistema de classificações informativo; "a nudez feminina e carícias nos seios podiam ser encontradas em filmes com classificação R; ereções e fellatio, cunnilingus e penetração tinham classificação X"63 . Essa liberalização de costumes tem pouca duração; em 1973 é delegado aos estados americanos pela Suprema Corte o poder de censura dos filmes frente aos padrões morais de cada comunidade. Marilyn Monroe transformou-se em ícone a partir da famosa cena da saia levantada pela ventilação do metrô (fig.11)64 no filme de Billy Wilder O pecado mora ao lado (1955), pois Hollywood precisava de uma arma frente à concorrência da televisão 65 .

Figura 11. Imortal

63 KEESEY Douglas. DUNCAN, Paul (Ed.).Cinema Erótico. Alemanha: Colonia: Taschen, 2005. p. 22. 64 Marilyn Monroe. O pecado mora ao lado, 1955. 65 MORIN, Edgar. As Estrelas. Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p.1xiv

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Com o filme E Deus Criou a Mulher (1956) de Roger Vadim, Brigitte Bardot ou BB (fig.12) 66 , como passou a ser chamada, numa metáfora ao comportamento sensual-ingênuo que apresentava, tem projeção internacional.

Figura 12. Perfeita

O filme de Vadim foi condenado pela Legião da Decência, organização ligada à Igreja Católica nos Estados Unidos devido ao seu conteúdo sexual, o que não o impediu de ser um sucesso. Os anos de 1960 trazem a consolidação do movimento feminista com a produção da pílula anticoncepcional, novo aspecto da realidade em mudança, temporal e cronologicamente correlato ao período das rupturas sociais. Laura Mulvey 67 (1975) com o clássico artigo “Prazer Visual e Cinema Narrativo”, busca estabelecer uma relação crítica entre a imagem fílmica feminina e o cinema mainstream, voltando sua crítica para o olhar masculino na produção cinematográfica. Mas há muito que o corpo feminino já estava des-possuído da mulher, o cinema, e toda a indústria cultural decorrente do desenvolvimento das tecnologias, dele já havia se apossado.

66 Brigitte Bardot, final dos anos 1950. 67 MULVEY, Laura. In: XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal: Embrafilmes, 1983.

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1.3. Os Gêneros Cinematográficos

O cinema aparece num mundo em transformação onde tudo estava por ser feito: as instituições estavam se organizando, o controle institucional era precário e as regras formais e morais do período também passavam por mudanças. O cinema no início de sua produção tem como prioridade as imagens em movimento e os primeiros cineastas, filmmakers, produzem entretenimento. Barato, sem legenda, as imagens variavam de documentários de viagens a imagens pornográficas; era o único lazer possível para a população pobre e imigrante. Os gêneros, ou seja, possibilidades narrativas, passam a ser produzidos como solução ao sucesso de público, constituindo-se de produções em série e muito baratas, apresentando um conjunto de características semelhantes que se repetiam. Essas características levavam os espectadores de baixa renda e analfabetos, a ter interesse pelo filme; a repetição tinha a função de trazer a familiaridade, o conhecido para o ficcional popular, tornando-o identificável para o público, facilitando seu envolvimento com o que via frente a temas da literatura popular. Edward Buscombe 68 , uma autoridade em cinema e diretor de publicação na British Film Institute , considera que não há um acordo a respeito do significado do genero ou uso do termo como elemento diferenciador das narrativas cinematográficas. Citando Aristóteles, o filósofo grego, o diretor da British Film aponta que a existência de diferentes formas de literatura, com diferentes técnicas e temas já foi alvo de estudos do pensador por meio de sua Poética , obra onde categorizou a poesia de seu tempo em tragédia, épico, lírico, etc., identificando as particularidades de cada estilo e sua distinção dos demais. Essa categorização proposta pelo pensador grego permeará a história da arte humana a partir do Renascimento, estabelecendo uma teoria literária com rígido sistema de regras presente até o século XVIII, onde o contexto de transformações e mudanças sociais tornou-a desacreditada. Para o autor, o filósofo foi descritivo ao estabelecer dois sentidos aos estilos literários de seu tempo: o primeiro sentido, voltado para padrões diferenciados que no desenvolvimento histórico resultaram em formas como o satírico, o lírico e o

68 BUSCOMBE, Edward. A idéia de gênero no cinema americano . In RAMOS, Fernão P. Teoria Contemporânea do Cinema . São Paulo: SENAC, p. 303-318.

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trágico. O segundo sentido voltado para a divisão da literatura em drama, épico e lírico, “correspondendo a diferenças capitais na relação entre artista, conteúdo e público" 69 , e para o cinema é irrelevante, ainda que os estilos cinematográficos correspondam àqueles estudados pelo filósofo, completa Buscombe. O gênero para ele se define por um conjunto de convenções visuais relacionado diretamente com o conteúdo fílmico, uma vez que ele determina a forma externa. Estas convenções visuais vão referenciar o caminho por onde a história pode ser contada e influem nela. O padrão imagético da obra fílmica deve ser reconhecido pelo publico e pela crítica e se caracteriza como referência histórica, determinada pelo interesse do público. René Wellek e Austin Warren, críticos literários citados por Buscombe 70 , consideram que a idéia de gênero no cinema baseia-se nas formas externas - estrutura específica e internas - conteúdo e público. É o que o autor vai denominar de convenções visuais (g.n.) como: (a) Cenário - locações externas ou internas relacionadas ao modelo de vida apresentado pelos personagens no filme. (b) Roupas/ Figurino - os trajes indicativos e detalhes na vestimenta indicam certas profissões, além de caracterizar o tipo psicológico do personagem. Um bom exemplo é dos filmes de gênero western, que usa detalhes no figurino dos personagens indicando sua função na trama: as gravatas de laço são para os jogadores; as luvas pretas para os pistoleiros de aluguel; juízes sempre têm um relógio de bolso. O figurino masculino é agressivo e viril, determinando o caráter do herói: taciturno, durão, auto-suficiente. Do mesmo modo, os trajes femininos determinam o nível de feminilidade apresentado na tela e a ambiguidade da personagem. (c) Ferramentas de trabalho - em razão do estilo são indicativas da função de cada personagem. (d) Animais - usados de maneiras formalmente diferenciadas. (e) Objetos variados - que sendo recorrentes acabam por assumir funções formais. Antonio Costa 71 , professor italiano, considera a questão do gênero na produção fílmica aspecto fundamental da instituição cinematográfica. Nos filmes hollywoodianos os gêneros como western, musical, gangster etc. são indicativos para o espectador da “ambientação, estilo e, dentro de certos limites, ideologia”.

69 BUSCOMBE, Edward. A idéia de gênero no cinema americano . In RAMOS, Fernão P. Teoria Contemporânea do Cinema. São Paulo: SENAC p. 303-318.passim 70 Idem.. op. cit. p. .303-318, passim. 71 COSTA, Antonio. Compreender o Cinema. Rio de Janeiro: Globo, 1987. p.94.

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Gêneros como o filme noir , o musical, o western , o horror farão sempre referência à tipologia dos gêneros estabelecida na chamada época áurea de Hollywood, considerada entre o período do cinema sonoro ao advento da televisão. Arlindo Machado 72 considera a teoria do gênero de Mikhail Bakhtin 73 como a mais aberta e adequada à produção de arte audiovisual, ainda que o foco do pensador russo tenha sido o exame dos fenômenos lingüísticos e literários:

gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um modo de organizar as idéias, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras.

A definição de gênero de Bakhtin consolida a posição de Buscombe quando este afirma que a incorporação pelo público de convenções de gênero e seu reconhecimento é um prazer estético. Para este último, os gêneros são uma tradição com vida própria e precedem os grandes diretores. A estética fílmica na tela, a projeção-identificação-transferencia do espectador, o prazer na escolha do gênero são estimulações contínuas para a movimentação do erotismo em todos os gêneros. Andre Bazin 74 chama a atenção para a importância que o tema vem ocupando na literatura moderna, mas para ele só no cinema “o erotismo aparece como um projeto e um conteúdo fundamental”, considerando o erotismo cinematográfico como um “conteúdo maior, específico e talvez mesmo essencial”. Para ele é o aspecto onírico do cinema, isto é, a imagem animada que leva o espectador a se identificar com o que ocorre na tela. Este estado subjetivo, mágico, acaba por tornar a identificação com o que é visto em sonho ou como um sonho, e para o autor todo sonho, em última instância, é erótico. Mas ele também considera a censura auto-imposta pelo indivíduo como um dos monstros internos que se oculta nas sombras para não se ver. De tal forma, onírico e erótico o cinema vai construir um conjunto de símbolos capazes de camuflar para o espectador “ao [seu] próprio espírito os impossíveis enredos dos nossos sonhos”.

72 MACHADO, Arlindo. A Televisão Levada a Sério. São Paulo: SENAC, 2000. 73 Idem. p. 68 74 BAZIN, Andre . O Cinema. Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 226-229. passim.

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O crítico aponta que a analogia entre sonho e cinema deve ser levada ainda mais ao extremo, uma vez que o cinema não apresenta mais o sonho desejante que o espectador vê na tela, mas “aquilo que não se conseguiria mostrar nela”. Considera também que sonho censurado assim o é porque sua possível realidade torna-se transgressora às proibições do superego. Diferenciando a censura cinematográfica (construída nas normas e regulamentos jurídico-sociais estabelecidos) e a censura onírica (fantasias transgressoras no nível do inconsciente/subconsciente do indivíduo) para o crítico a função da censura tanto para o cinema como para o sonho é a mesma, uma vez que "dialeticamente, [é] constitutiva de ambos" e Hollywood "a capital do erotismo cinematográfico". Segundo Balázs 75 :

Hollywood inventou uma arte que [...] não apenas elimina a distância entre o espectador e a obra de arte, mas deliberadamente cria a ilusão, no espectador, de que ele está no interior da ação reproduzida no espaço ficcional do filme.

Assim como para Balázs e Morin, anteriormente citados, também para Bazin 76 o espectador participa e se identifica com o que vê num espaço imaginário, criando cumplicidade, seu segredo, na transferência da emoção apresentada. Erotismo, paixão, segredo, sagrado, palavras imagéticas que vão se envolvendo e envolvem o espectador num redemoinho de significados. Nos estados subjetivos da “alma” elas permanecem em ebulição, sussurrando possíveis aventuras, fantasiando satisfações inconfessas, guardando os mais profundos segredos. Para Nuno Abreu 77 , segredo e secreto é conteúdo presente na literatura sobre erotismo e pornografia. Para ele, não há diferenciação entre um e outro termo, já que ambos se movimentam em espaços não explícitos e, nesse sentido, segredo e secreto determinam o encobrimento do que não pode ser conhecido ou revelado, do obsceno, do que deve ficar fora da cena . A busca do desvelamento, da explicitação do encontro misterioso é o grande jogo do prazer.

75 BALÁZS, Bela , 1970, apud XAVIER, Ismail In : O discurso cinematográfico : a opacidade e a transparência. 3ed. São Paulo Paz e Terra. 2005, p. 50. 76 BAZIN, Andre. O Cinema. Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. 77 ABREU, Nuno C. Olhar Pornô. Campinas: Ed. Mundo das Letras, 1996.

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Proibido, interdito, erotismo e pornografia se interagem complementarmente. Referentes àquilo que é sexual, ambos buscam o jogo do prazer, o exercício da desobediência ao proibido, a satisfação do desejo e que só se torna possível a partir de comportamentos transgressores ou, como coloca o autor em conformidade com Bataille: “erotismo e pornografia são, cada qual a seu modo, expressões do desejo que triunfam sobre as proibições e se expressam pela transgressão” 78 . Toda proibição é passível de transgressão e é nesse movimento contraditório que uma e outra se correspondem. Para Michel Foucault 79 as relações entre poder e sexo e seu aspecto repressivo vêm acompanhadas do que chama de “benefício do locutor”. De maneira simplista, exprime-se os recortes principais de seu pensamento sobre o assunto, apontando o século XVII como referência para o discurso do sexo em função do sacramento da confissão, herança da tradição ascética e monástica que se constitui nesse período, estendendo-se para todos, cabendo ao bom cristão na confissão, discursar seus desejos sexuais na busca da absolvição. No século XVIII, o sexo vai se tornar "questão de polícia", não como repressão e desordem, mas em função do entendimento pelos governos da passagem de povo para população e suas variáveis: riqueza, mão-de-obra, capacidade de trabalho e equilíbrio entre crescimento e fontes disponíveis para tal, conforme aponta o pensador. Surge a análise das condutas sexuais, suas determinações e efeitos, ou seja, uma conduta econômica e política em relação ao comportamento sexual dos casais, pontuando a preocupação dos donos do poder com a condição do progresso e o desenvolvimento. No século XIX os discursos sobre sexo têm a chancela médica iniciada com as doenças dos nervos à etiologia das doenças mentais. Assim, para o filósofo o sexo serve como forma de pregação, disfarce da repressão pelo poder, busca da absolvição do indivíduo da natureza pecaminosa do sexo tendo em vista o grande pecado histórico. Considera ainda que "próprio das sociedades modernas [não é a condenação do sexo à obscuridade, mas ter-se] devotar-se a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo" .80

78 ABREU, Nuno C. op.cit p. 16 79 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. I. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980. 80 ABREU, Nuno C. Olhar Pornô. Campinas: Ed. Mundo das Letras, 1996. p. 36.

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Assim, com o referencial religioso, político e econômico incorporado nas subjetividades humanas, o cinema mostra a sua obscenidade. Ela está fora do espectador e não estando nele, não é prazer ou arrebatamento sensual real; ao “coisificar” o erótico está-se a salvo e se pode transgredir de forma deliberada, obedientemente sonhando com o que se vê na tela. Separar erotismo de pornografia pode ser tarefa vã, uma vez que é sexualidade que escorre dos dois conceitos. No referencial semântico o erotismo definido como amor, sentimento de amor, sensualidade, lascívia é o desejo: vontade de possuir, de gozar, anseio, aspiração, cobiça, palavras indicativas de sentimentos; enquanto que a pornografia (porno, do grego pornéia = devassidão, libertinagem; elemento comparativo do latim prostituere = prostituta, prostituição) é comportamento explícito, coloca-se de forma invasiva ante nós: degradar, corromper, desmoralizar, aviltar, desonrar, profanar são palavras indicativas de ação, de tal forma que o que deveria ser segredo, secreto porque obsceno, fora da cena , nela está e se expõe. André Rouillé 81 professor e fotógrafo, considera que a melhor figura de retórica para se falar de erotismo é a metonímia ( aquilo que designa o todo por um de seus elementos), uma vez que com ela o sexo deixa de ser um objeto visual e se torna um objeto mental; uma apresentação parcial da referência já leva o indivíduo a imaginar o todo, produzindo a expectativa do desejo: “aquela cinturinha!!.", pode exemplificar o referido por Rouillé. O erotismo é mais sutil e envolvente que a pornografia, uma vez que indica a cada momento a extrapolação dos limites; ele é o avesso daquilo que se mostra; é a construção de possibilidades, “onde qualquer palavra ou sentimento são inúteis” 82 ; é o desejo como mobilizador das aspirações mais profundas e caminho para a realização da continuidade sonhada. É nisso que o cinema tornou-se um mestre em fazer. Diferentemente do pornográfico - hard core - que se manteve na clandestinidade até os anos 70, o erotismo - soft core - foi, ao longo do tempo, incorporado à indústria cinematográfica. E, conforme já citado, para Bazin 83 "nada é

81 ABREU, Nuno C. Olhar Pornô. Campinas: Ed. Mundo das Letras, 1996. p. 17. 82 BATAILLE, Georges . O Erotismo : O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980. p. 18 83 BAZIN, Andre. O Cinema . Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 228.

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mais erótico do que o cinema de Hollywood [ ] dono de uma longa, rica e bizantina cultura de censura" capaz de criar um conjunto de mecanismos de escapes. O interdito e a transgressão estão postos e conforme Bataille 84 :

não há proibição que não possa ser transgredida. Proibição e transgressão correspondem a dois movimentos contraditórios: a proibição rejeita, mas o fascínio introduz a transgressão.

O cinema soube se apropriar muito bem dos erotismos batallianos , muitas vezes utilizando-se de mais de um dos aspectos eróticos apontados pelo escritor. A indústria da imagem trabalha hoje a erotização do corpo como objeto funcional, o erótico integrado ao símbolo que passa a ser o aspecto desejante e como já foi visto, numa sociedade de imagens, expostos e divinizados. Nessa relação obscena colocada dentro da cena humana, o erotismo é parte do segredo, porém secreto para o outro; desejo interno que busca no fascínio da proibição transgredida sua própria exterioridade desejante; jogo de contrários que se exigem inteiros, amalgamados para existirem.

84 BATAILLE, Georges. O Erotismo . O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980. p. 56.

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2. JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE

2.1 O diretor e sua obra

Joaquim Pedro de Andrade nasceu no Rio de Janeiro em 25 de maio de 1932 e morreu em 10 de setembro de 1988, aos 56 anos, vítima de um câncer pulmonar. De família intelectual, conviveu com os maiores nomes da cultura brasileira em todos os seus setores. Era filho de Rodrigo Melo Franco de Andrade, fundador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – e conviveu de maneira muito próxima com os amigos de seu pai, os maiores intelectuais da época: Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Sergio Buarque de Holanda Lucio Costa. , um dos melhores amigos da família, era seu padrinho de crisma. Criado em tal ambiente familiar, a cultura literária foi parte integrante de sua formação. Na área de cinema é considerado diretor de adaptações literárias. Conforme Xavier 85 , a narrativa de base literária é por ele desconstruída de forma transgressora e crítica no referencial imagético, desvelando obscenidades de um cotidiano cruel em suas desigualdades sociais. Formado em Física pela Faculdade Nacional de Filosofia, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, era freqüentador do cineclube da faculdade onde outros futuros cineastas também conviviam. Araujo 86 destaca os dois interesses do futuro cineasta: a graduação em Física e o cineclube recém fundado na Faculdade por Saulo Pereira de Mello e Mário Haroldo Martins. Teve como professor de Mecânica Celeste Plinio Sussekind Rocha, fundador do Chaplin Club em 1928, que buscava discutir a linguagem e a essência do cinema como arte. Ainda que Joaquim Pedro não participasse do séquito de Sussekind na Faculdade, a autora aponta que o ambiente efervescente de cinema da época gerou: “pela primeira vez a vontade de fazer filmes [despertou] na classe média, classe média alta, universitária, em grandes proporções e com motivação ideológica”.

85 XAVIER, Ismail. O Cinema brasileiro moderno . São Paulo: Paz e Terra, 2001. 86 ARAUJO, Luciana Sá L. C de. Joaquim Pedro de Andrade : Primeiros Tempos. Tese de doutorado. USP/ ECA 1999. p.19.

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Joaquim Pedro de Andrade decidiu-se pelo cinema com o custo pessoal da desaprovação do pai, ainda que sua influência permaneça na carreira do filho, com a literatura permeando a carreira de cineasta. Ruy Castro 87 descreve-o como “morador de Ipanema, formação no exterior, boa-pinta, sério e de esquerda. [ ] diretor quintessencial do Cinema Novo [ ] sua alma estava no cinema e na literatura”, como seria natural frente à convivência familiar. Em 1959 produz os seus primeiros curtas-metragens, Mestre de Apicucos com Gilberto Freyre e O poeta do Castelo, com Mário de Andrade, figuras representativas para o cineasta. No ano seguinte filma outro curta, Couro de gato, episódio do longa metragem Cinco vezes favela. Em 1961 e 1962 é bolsista de cinema do governo frances e da Fundação Rockfeller. Estagiou no IDHEC, Institute des Hautes Etudes Cinematographiques, na Cinemateca Francesa, na indústria cinematográfica francesa, na Slade School of Arts em Londres e em Nova York com Albert e David Maysles, para treinamento em técnicas de cinema 88 Joaquim Pedro de Andrade é um dos fundadores do chamado Cinema Novo, movimento de jovens cineastas brasileiros considerado pelo estudioso de cinema, Ismail Xavier 89 como o “período estética e intelectualmente mais denso do cinema brasileiro”. Para ele, “o Cinema Novo é uma manifestação estética vigorosa da consciência catastrófica do subdesenvolvimento do país” 90 . É no Neo-realismo do cinema italiano que o cineasta encontra um caminho para o cinema brasileiro: fotografar, filmar o Brasil como ele era, sem procurar deformar, embelezar, modificar, por seleção, os problemas do país. [com o filme Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos] começamos realmente a formar uma espécie de estilo que unificou um grupo, o grupo do Cinema Novo 91 ·

87 CASTRO, Ruy. Ela é carioca : uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.p. 195. 88 JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE. Filmografia . Catálogo do projeto de restauração da obra. Rio de Janeiro, 2000. p.s/nº. 89 XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. 3ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. (Coleção Leitura) p.14. 90 Idem. p.26 91 Fragmento do texto "Depoimento Especial" in: O Cinema de Joaquim Pedro de Andrade, publicado em 1º de agosto de 1976, por ocasião da retrospectiva de Joaquim Pedro organizada pelo Cineclube Macunaíma. Disponível em http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_bio.asp.

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Conforme Randal Johnson (1984, apud ARAUJO, 1999) no ensaio “Joaquim Pedro de Andrade the poet of satire ”92 , há duas fases na produção do cineasta: a primeira revela sua personalidade introvertida na concepção e realização dos filmes:

É uma fase bem caracterizada por uma preocupação com a poesia, por uma concepção de cinema como equilíbrio estético e composição. A fase do cinema como poesia ou, no caso de Garrincha, do cinema como ballet termina com O Padre e a moça. Uma concepção muito mais agressiva, mordaz, política do cinema e da sociedade, se consubstancia em Macunaíma. 93

Para Araujo 94 , diferente de Johnson, não há ruptura entre fases, mas “uma mudança de sistema de pesos” e o cinema como poesia em Joaquim Pedro é apontado por sua estudiosa como “recorrente, em comentários e críticas da época, que também utilizam sem parcimônia os termos lirismo e lírico” . A autora considera ainda que “os traços poéticos nos filmes estudados muito devem à ausência de diálogos”, o que vem a favorecer a questão da estética visual, um dos maiores cuidados do cineasta. Assim, vê-se na diegese do diretor o “exercício da estética visual, a poesia de Drummond transformada em imagens” e confirmando Metz 95 entende-se “a instância diegética (como) é o significado da narrativa” na produção de Joaquim Pedro de Andrade. A estudiosa do cineasta em seus primeiros tempos aponta que para ele, a concepção de cinema se dá por meio de uma ”cuidadosa composição da imagem”, um “equilíbrio estético e composição”, ou ainda, “revelar através da imagem a essência do que está sendo filmado” 96 , proposta esta já presente no projeto encaminhado ao Instituto Nacional do Livro para a realização do curta sobre Manuel Bandeira, seu primeiro curta:

A maior força expressiva do filme, entretanto, deve estar nas imagens, documentando a figura viva do poeta nos seus hábitos de vida cotidiana [ ] no seu modo de falar, de rir e de estar quieto [ ] ...captar no filme a personalidade espiritual de MB, provocando no espectador um desenvolvimento contínuo de emoção.

92 JOHNSON, Randal. “Joaquim Pedro de Andrade: . the poet of satire.. In ARAUJO, Luciana Sá L. C de. Joaquim Pedro de Andrade : Primeiros Tempos. Tese de doutorado. USP/ ECA 1999. p.3. 93 Traduçào livre da autora 94 ARAUJO, Luciana Sá L. C de. Joaquim Pedro de Andrade : Primeiros Tempos. Tese de doutorado. USP/ ECA 1999. p.3. 95 95 AUMONT, Jacques. MARIE Michel. Dicionário Teórico e Crítico do Cinema . Lisboa: Texto & Grafia, 2009. p. 75. 96 ARAUJO, Luciana Sá L. C de. op.cit. p.4.

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Esse recorte do documento encaminhado pelo cineasta ao INL já diz da intencionalidade do diretor, quando considera que a imagem vai além do referencial externo; ela é o meio de contato com o universo espiritual do poeta a ser filmado. Além disso, para Joaquim Pedro de Andrade a função da estética fílmica é provocar a emoção no espectador, gerando assim a projeção-identificação-transferencia no encontro entre espectador e a narrativa apresentada no ecrã. Araujo 97 identifica em Joaquim Pedro de Andrade em seus primeiros tempos, um trabalho mais acentuado no referencial emocional da cena fílmica, mas, esse recorte identificado como lírico ou poético cai por terra na produção das demais obras, quando o diretor, no domínio da linguagem cinematográfica, da mesma maneira que convivia com o discurso literário, desnuda sua real leitura imagética da realidade, que tem por base o neo-realismo e a estética cinemanovista, com o lema “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”; sem qualquer concessão, usa a ironia e a paródia e os aspectos de crueldade nelas existentes como sua marca de direção. Cinema para Joaquim Pedro era mais que uma profissão, era um jeito de viver, conforme entrevista ao jornal francês Liberation em maio de 1985 98 . Em resposta à pergunta Pourquoi filmez vous ? o diretor responde: “Cinema? De outro jeito a vida não vale a pena,[...] para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito...”. Johnson 99 considera Joaquim Pedro de Andrade “poeta em pele de cineasta” que, da mesma forma que seu padrinho Manuel Bandeira, a ele interessa o real invisível, os “ becos recantos às vezes sombrios da sociedade e dos seres que dela participam”, sua maneira de desvelar as contradições da sociedade brasileira, produtor de um cinema de desmistificação. Preocupado em ver além do que se mostra, quase um exercício erótico do olhar sobre a realidade, o cineasta opta pela pornografia obscena dela mesma, disponível para aqueles que preferem manter os olhos não velados. Usando todos os símbolos mais caros para a cultura brasileira desde a ruptura do modelo mental do ocupante e a criação dos novos ideais de referencia

97 ARAUJO, Luciana Sá L. C de. Joaquim Pedro de Andrade : Primeiros Tempos. Tese de doutorado. USP/ ECA 1999. p. 4-5. 98 www.filmes do serro.com.br.filmografia 99 idem

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representado nos curtas sobre Mario de Andrade e Gilberto Freyre, além do carnaval (Couro de Gato ), futebol, ( Garrincha, Alegria do Povo), a religião católica ( O Padre e a Moça), a malandragem e a esperteza brasileira ( Macunaíma ), o patriotismo e a luta contra os “invasores” (Os Inconfidentes ), a sensualidade brasileira como um atributo natural (Guerra Conjugal , Vereda Tropical ), ou a crítica mais ácida da sociedade brasileira ( O Homem do Pau Brasil ) Joaquim Pedro de Andrade não abre mão da condição de fazer filmes “sobre o problema de viver no Brasil, e meu entendimento desse problema gera, em épocas diferentes, muitos tipos de filmes diferentes” 100 . Diretor de seis longas–metragens, oito filmes curtos e um conjunto de roteiros não filmados, em sua última entrevista 101 à Tereza Cristina Rodrigues, reporter do jornal O Globo, julho de 1988, Joaquim Pedro fala de sua condição de saúde abalada pelo câncer descoberto três meses antes e do projeto de filmar Casa Grande e Senzala, projeto que ele vinha se dedicando há dois anos, por uma única razão: “só sei fazer cinema no Brasil, só sei falar de Brasil, só me interessa o Brasil. Por isso acho importante fazer Casa-Grande, Senzala & Cia”. Não deu, Joaquim Pedro faleceu em setembro desse mesmo ano.

100 http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_film_txt.asp . JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE: O POETA DA SÁTIRA. Randal Johnson. Publicado no livro Cinema Novo x 5: Master of Comtemporary Brazilian Film. Texas. University of Texas, 1984. 101 http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_film_txt.asp. SÓ ME INTERESSA O BRASIL Teresa Cristina Rodrigues. O Globo , 12/09/1988. Joaquim Pedro de Andrade, última entrevista.

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2. 2 Tempo histórico e produção dos filmes

O Padre e a moça

Joaquim Pedro de Andrade é parte do grupo que vai investir na cinematografia nacional num período onde o mundo e particularmente o Brasil vivia uma gama de transformações sócio-político-econômicas e culturais. É na literatura que o cineasta tanto aprecia e domina que encontra a inspiração para desenvolver o seu trabalho. Como aponta Johnson102 cinema e literatura se comunicam de maneira diferente e não há como encontrar paralelos entre os dois. Para ele:

A imagem fílmica não é como uma palavra, é mais como uma frase ou uma série de frases. Uma palavra ou sequencia de palavras comunica principalmente através de uma relação simbólica com sua referente; uma imagem, principalmente através de uma relação icônica e analógica.

Em Johnson ainda, Mitry 103 estabelece a “diferença entre a codificação de espaço e tempo no romance e no filme”. No romance, a codificação temporal é lingüística, enquanto que no filme é com imagens de ações concretas, ou seja, o tempo do filme é percebido como tempo real, uma vez que se percebe a ação e o movimento, não o tempo. Mas é na expressão temporal fílmica que se expressa uma sucessão de acontecimentos e o desenvolvimento dos personagens “dependem dele e o constroem ao mesmo tempo”, ou seja, para o teórico “o filme tende para o tempo”. Ressaltam-se os aspectos acima em função da produção do cineasta. Em um cuidadoso desconstruir, Joaquim Pedro de Andrade redescobre na obra do autor que escolhe, os interditos, os becos, ou ainda, reelabora os significantes para obter os significados que deseja, deixando claro que ainda que o cinema seja processo/produto econômico e assim se mantém, é na ação diretiva do cineasta

102 JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema . Macunaíma do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Querioz Ed., 1982. p. 28. 103 MITRY, Jean (Estetica y Psicologia del Cine, 1965) apud JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema . Macunaíma do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Querioz Ed., 1982. p. 31-32.

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que se estabelece seu referencial ideológico, neste caso um cinema revolucionário no nível estético e político. Numa entrevista a Alex Viany para a Revista Civilização Brasileira, logo após seu primeiro longa metragem, O padre e a moça , Joaquim Pedro de Andrade deixa claro seu conceito de cinema:

Acredito que uma posição ideológica definida, uma posição ideológica geral e firme, a definição de uma pessoa na relação com o mundo, uma visão crítica do mundo , orientada a partir de uma perspectiva segura e bem localizada, implica a solução imediata de alguns problemas secundários. O problema de forma, por exemplo, praticamente deixa de existir quando um cineasta assume esta posição... [mas] sou uma pessoa em constante movimento, tentando entender as coisas de modo mais completo, tentando posicionar-me diante do mundo pelas atitudes críticas que tomo ; uma pessoa à procura de seus valores, questionando permanentemente a escala de medida destes valores... Minha única certeza é que tenho o direito de duvidar de tudo e o dever de expor estas dúvidas na tentativa de superá-las, ou agindo a fim de superá-las, usando a ação como processo de conhecimento. [os destaques são meus ] (VII) (VII) Joaquim Pedro de Andrade e Alex Viany, “ O Padre e a Moça : Crítica e Auto-Crítica”, Revista Civilização Brasileira 1, n°7 , maio 1966. p 255. 104

Johnson 105 aponta que o cinema para Joaquim Pedro é aprendizagem crítica, que tem base no questionamento dos valores ideológicos socialmente estabelecidos; é também “uma forma de práxis, de ação” [frente] a esses padrões ideológicos. A escolha de seu primeiro longa-metragem O padre e a moça, com base no poema homônimo de Drummond é para o diretor uma espécie de anomalia, frente às definições políticas do Cinema Novo, não havia a intenção de fazer um filme político, como ele mesmo coloca 106 . Produzido num período onde o mundo e particularmente o Brasil vivia uma gama de transformações sócio-politico-economicas e culturais, de maneira gauche, como dizia o poeta, o filme de Joaquim Pedro de Andrade, O padre e a moça (fig.13) , reflete todas essas manifestações.

104 http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_film_txt.asp . JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE: O POETA DA SÁTIRA. Randal Johnson. Publicado no livro Cinema Novo x 5: Master of Comtemporary Brazilian Film. Texas. University of Texas, 1984. 105 Idem . 106 Ibidem.

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Figura 13. Cartaz do filme

É a negação e ruptura da ideologia do poder que objetualiza o indivíduo, tira- lhe o direito de ser livre e sujeito de seu destino. É a ruptura dos modelos sociais castradores, mantidos para privilégio autoritário e escuso da classe dominante. É a crítica irretocável de um modelo social de exploração, apropriação e exclusão, onde a ignorância e a cumplicidade religiosa são a base de sua manutenção. O filme, ao mesmo tempo que apresenta o drama dos personagens, tem a competência de imageticamente nos transportar para um espaço aberto - os entornos da Serra do Espinhaço, onde fica a cidade de São Gonçalo do Rio das Pedras (fig.14), que é apresentado na tela como um lugar sem ar, asfixiante, de um horizonte sem perspectiva, cercado de montanhas que podem dificultar o caminho, exatamente como começava a ocorrer no país com a instalação da ditadura.

Figura 14. Dias de Chumbo

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O uso do preto e branco é marcante na fotografia de Mario Carneiro. O filme, de maneira geral escuro, passa fortemente a sensação de opressão, decadência em todos os seus aspectos: econômico, moral, social. Numa representação da realidade existente são tempos de escuridão, de cuidados com o que pode vir, de medos instaurados. Mas há uma moça, Mariana (Helena Ignes) e as cenas da moça apresentam sempre luminosidade, por vezes tênue, por vezes irradiante em seu vestido branco evidenciado na paisagem seca, árida. É como se o desejo de viver da moça, desejo de um outro viver que não aquele, fosse a força iluminadora da cidade, é sua resistência a tudo aquilo que é velho e decadente que a faz brilhar. Em contraposição a essa figura de vida há a figura do padre (Paulo José) e sua representação da morte - a batina preta. Jovem, bonito é a contradição imagética imediata do lugar. Rapidamente o peso da obsolescência que a cidade transparece recai sobre seus ombros. É um jovem padre velho. Seu rebanho é permeado de pecados inconfessos, pecados silenciosos e comuns. É na relação com a moça que esse padre se reapropria de si mesmo, se transmuta em jovem novamente quando assume o desejo por ela; desejo que triunfa sobre a proibição, a transgressão do sagrado , de mundano para epifânico. O desempenho de Paulo José (o padre), Helena Ignes (a moça), Maria Lago (o coronel) e Fauzi Arap (o farmacêutico) são contidos, quase ausentes. Mario Lago é a imagem do coronel decadente, ciente de seu papel dominador e de sua fragilidade apresentada. A pobreza estrutural e em decomposição da cidade contradizem sua condição de poder e mostram o fim de seus tempos de domínio. Mas ainda há um domínio que o legitima em seu papel: ser senhor e futuro marido da moça. Fauzi Arap, o farmacêutico beberrão, é a encarnação do indivíduo que consciente de toda a realidade que o cerca não consegue com ela romper, e portanto, dela se torna objeto. A montagem de Lauro Escorel e do próprio Joaquim Pedro tem a competência de trabalhar de maneira contrastante as cenas fora da cidade – a imensidão da serra, a luz esplendorosa do dia, o brilho no vestido branco de Mariana – e as cenas da cidade – estreita, pequena, de vielas e entradas escondidas, escura.

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A música de Carlos Lyra é um complemento harmônico para toda a atmosfera do filme, orquestrada pelo quinteto Villa-Lobos passa a sensação que se está em tempos de Brasil colônia. Johnson 107 discorre sobre o filme de Joaquim Pedro apontando que não há crianças nem jovens na cidadezinha, caracterizando um derradeiro final de ciclo, a vida se acabando. Para ele, o encontro entre a morte, representada no preto da batina do padre e a vida, no branco diáfano que acompanha a moça em todas as suas movimentações na cidade – a imagem da batina preta superposta à pele branca da mulher - (Fig. 15), a metáfora central do filme e do poema, – é a chave da interpretação.

Figura 15. Negro amor de rendas brancas; a imagem que Joaquim Pedro anteviu na leitura do poema de Drummond.

O erotismo de Bataille 108 se apresenta nesse momento, quando o que está fechado vai em busca do aberto e o encontro, a continuidade do ser, envolve a tentativa de busca do paraíso ( a saída da cidade) criando a epifania com o sagrado, sua manifestação assumida. Para o autor, a transgressão é fundamental para o sacrifício e para o ato de amor, é isso que os torna em comum. Na sua fala: O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. [ ] sacrifício e comunhão erótica [ ] libertam movimentos cegos que prosseguem

107 http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_film_txt.asp. JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE: O POETA DA SÁTIRA. Randal Johnson. Publicado no livro Cinema Novo x 5: Master of Comtemporary Brazilian Film. Texas. University of Texas, 1984. 108 BATAILLE, Georges. O Erotismo . O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980. p. 83.

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para lá da vontade refletida dos amantes [ ] uma violência que a razão já não controla, anima esses órgãos, conduzindo-os ao orgasmo e a imensa alegria de ceder à força dessa tempestade.

Ceder a essa força é perder a razão, deixar que a vontade se submeta ao instinto da carne, para ele “o inimigo nato da proibição cristã”. Assim, o encontro com o divino e sua manifestação é cobrado pelos pecadores e pecadoras que dele não participaram, exigindo o sacrifício da purificação dos corpos, ainda que o amor, negro amor de rendas brancas, fosse um amor sagrado, na medida que é a verdade revelada. Para Johnson 109 O Padre e a moça é “um exercício de desmistificação”, uma explicitação clara do não aceite a qualquer tipo de ideologia repressiva por parte do cineasta e que vai muito mais além considerando que:

é uma luta pela vida entre os mortos e os que estão morrendo, uma luta contra uma pseudo-moralidade sufocante, uma luta, enfim, contra os valores antiquados e falsos de uma sociedade decadente. 110

O autor considera que nesse filme, o cineasta atinge um alto nível de abstração através da disciplina e da sensibilidade artísticas. É dele a descrição fílmica a seguir:

O filme está imbuído de uma qualidade poética quase irreal, criada por uma estrutura refinadamente serena e pelo uso de iluminação natural. Os movimentos de câmera são lentos, intencionais e equilibrados. No filme, há pouco movimento e os raros diálogos reforçam esta estagnação. A cidade exala uma atmosfera de morte desde as cenas iniciais, quando o jovem padre chega para ministrar a extrema-unção ao antecessor. Onipresentes, entretanto, são as beatas, velhas devotas cuja vigilância sinistra garante a observância da antiquada moralidade que impõem à cidade.

Usando a população local, Joaquim Pedro denuncia por meio das imagens a veracidade cruel do outro Brasil, daquele que é de becos, gauche, e que não existia para o eixo Rio - São Paulo da época.

109 http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_film_txt.asp. JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE: O POETA DA SÁTIRA. Randal Johnson. Publicado no livro Cinema Novo x 5: Master of Comtemporary Brazilian Film. Texas. University of Texas, 1984. 110 Idem op.cit.

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Para Heloisa Hollanda 111 é com esse filme de Joaquim Pedro que “há uma tomada de consciência, uma recusa de valores”. É com O padre e a moça que Joaquim Pedro apresenta uma estética nova e para ela, ainda em fase de apropriação do diretor, o que não lhe parece relevante:

A experiência de linguagem é mais de recusa do que de invenção positiva. [ ] Em O padre e a moça, o processo fica absolutamente claro. As opções se radicalizam e, a meu ver, é um filme negativo sobre a negação.

Ainda que tenham se passado 45 anos de sua realização, o filme não perde seu caráter poético e incômodo. Talvez pela contraposição entre a escolha individual e a pressão do coletivo na obediência do que sempre foi, ou pensando nos tempos atuais, no que está dado; talvez porque erotismo e sagrado, ambos e juntos, não façam parte da dimensão do indivíduo ainda que em tempos tão sexuados; talvez porque a cidade protagonize (proto-agonize) a dimensão do coletivo para o qual foi constituída.

Figura 16. Mariana (Helena Ignes) é atacada pelas beatas por causa do romance com o padre.

111 Hollanda , Heloisa Buarque de. Macunaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978

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Vereda Tropical

Vereda Tropical é episódio de longa-metragem de 1977, Contos Eróticos, com direção de outros diretores - Roberto Santos, Roberto Palmari e - e tem como base o conto premiado de Pedro Maia Soares para o concurso da revista Status, roteirizado pelo cineasta. Conforme Johnson 112 de “pouco mais que um monólogo interior”, nas mãos de Joaquim Pedro a estória torna-se contextualizada, vívida, transforma-se em um diálogo de desejos. A segunda personagem do filme, criação do cineasta, é a colega de curso que conhece a escolha sexual do colega e, sem julgá-la, busca razões para tal comportamento. . Tendo como pano de fundo a pornochanchada, alvo de sua crítica, Joaquim Pedro em Vereda Tropical desenvolve um exercício metonímico ideológico com o conjunto de figuras miméticas que o enredo possibilita: o espaço fílmico da Ilha de Paquetá, cenário do romance clássico do século XIX A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, por duas vezes filmado, a primeira em 1915, filme mudo e em preto e branco com direção de Antonio Leal; a segunda, em 1970, com direção de Glauco Laurelli 113 , produção colorida com Sonia Braga e David Cardoso, este com partes disponíveis no youtube. A presença de Carlos Galhardo remete ao período dos “anos dourados”, a fantasia de um país “em desenvolvimento”, varguista, tempo do humor escrachado das chanchadas, de Oscarito e Grande Otelo, de quem rimos, rindo de nós. Em Johnson 114 , Joaquim Pedro de Andrade explicita sua posição em entrevista de 1975, em relação à comercialização da pornochanchada: O que observamos... é o surgimento de uma espécie de hipocrisia, isto é, as pessoas em cinema estão proibidas de tratar com verdade uma série de temas. Então surge uma falsa moral, já em completa defasagem com a moral prática urbana dessa mesma classe que consome esses filmes. E este fato tira toda a vitalidade cultural, e, inclusive comercial. Se esses filmes fossem feitos com a irreverência que implica contestar valores que já estão evidentemente apodrecidos e falsificados, eles ganhariam outro tipo de vida e de interesse.

112 http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_film_txt.asp . JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE: O POETA DA SÁTIRA. Randal Johnson. Publicado no livro Cinema Novo x 5: Master of Comtemporary Brazilian Film. Texas. University of Texas, 1984. 113 Disponível em http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=ogAIwP71G08#t=99so. 114 JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema . Macunaíma do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Querioz Ed., 1982. p. 81.

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O curta colorido filmado em 35mm tem 24 minutos e é apresentado como bonus no longa metragem Guerra Conjugal, também de Joaquim Pedro de Andrade. Entrevistas com José Carlos Avelar e Cristina Aché (esposa do diretor) sobre o curta fazem parte dos Extras do mesmo DVD.

Figura 17. Cartaz do filme Contos Eróticos com o episódio Vereda Tropical de Joaquim Pedro de Andrade

O filme de Joaquim Pedro é um exercício visual de imagens eróticas não vistas; o que está presente é mais a idéia imagética do erotismo do que a representação em si. É a história de um professor que se relaciona sexualmente com melancias. A idéia ao mesmo tempo que é violentamente transgressora é apresentada de maneira contraditoriamente pueril, bucólica até, como se fosse uma diversão, o que de fato é. (fig. 18)

Figura 18. Cena do curta Vereda Tropical

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O filme se desenvolve em quatro situações: a primeira apresenta o personagem principal e sua “tara gentil”, na fala de Joaquim Pedro sobre o filme que fez. A segunda situação introduz A moça com quem o personagem princip al dividirá seus segredos de prazer e que, no entanto, não faz segredo nenhum que para ela o prazer é ele. A terceira situação apresenta a “tara gentil” que se mostra não tão gentil assim. E a quarta situação é a introdução da amiga ao prazer sexual com a s verduras ou como o personagem diz: “os hortifruti”. A apresentação do filme com desenho colorido em rosa e vermelho (fig. 19), uma estilização sofisticada do coito, apresenta os atores Claudio Cavalcanti e Cristina Aché, além do cantor Carlos Galhardo.

Figura 19. Adaptação, diálogos e direção. A voz de Gregório Barrios com o bolero Vereda Tropical acompanha o início da apresentação e da primeira cena do filme. Não há nomes para os personagens, a intencionalidade da não identificação leva a pensar que pode ser qualquer um. A primeira sequência tem Gregorio Barrios, cantor famoso dos anos de 1950, cantando o bolero Vereda Tropical como fundo musical e um aflito e ansioso professor chega ndo em casa de bicicleta com a melancia na garupa. Seu propósito: um ato de prazer com a fruta. Os cuidados com a melancia são todos aqueles de uma primeira relação: o banho, a secagem, o talco, pequenos carinh os na fruta, beijinhos e a faca como símbolo fálico dominador, aquele que rompe com o que é passivo e fechado, abrindo -o à continuidade do ser, conforme Batai lle 115

115 BATAILLE, Georges. O Erotismo. O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980.

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2. 3 Joaquim Pedro de Andrade e o Cinema Novo

Os anos de 1960 são ricos no desenvolvimento de uma cultura nacional- popular de esquerda. Os CPC’s – Centros Populares de Cultura – estão ligados à militância política universitária onde participavam os integrantes do Cinema Novo. Para Xavier, 116 ainda que houvesse uma “atmosfera ideológico-política” que movimentava os campos da cultura, de maneira abrangente a cena da dramaturgia nacional, o Cinema Novo não correspondeu a ela, uma vez que a opção foi para o cinema de autoria e “escolhas de cineastas ditadas pelas circunstancias e não atreladas a um conteúdo programático de pedagogia política”. O grupo do Cinema Novo, como ficaram conhecidos seus cineastas, especialmente os chamados fundadores do movimento como , Joaquim Pedro de Andrade, Paulo Cesar Saraceni, , e David Neves têm trajetórias semelhantes: cinéfilos, membros de cineclubes, críticos de cinema, com realização experimental de curta metragem conforme Carvalho 117 eram influenciados pela experiência de pós-guerra do cinema italiano neo-realista. Esse grupo de universitários oriundos da classe média abastada buscavam um novo cinema brasileiro voltado para a discussão do nacionalismo popular, fortemente presente naquele momento na vida do país e uma estética realista da imagem. Os cinemanovistas filmavam a realidade brasileira na expectativa que o público tomasse consciência da situação colonialista existente no país, de tal forma que analisando a história, pudesse entender seu processo histórico e apropriar-se dele, rompendo com o modelo de dominação existente, lutando pela igualdade de direitos e condições sociais para todos, ou seja, o cinema era uma prática política. Para Johnson 118 o cinema novo era parte integrante dos eventos oriundos da euforia desenvolvimentista do período JK; “parte de um processo maior de revolução cultural, um processo que teve que modificar-se com o golpe de estado de 1964” 119 . O autor estabelece a fase inicial do cinema novo no período de 1960 - 1964,

116 XAVIER, Ismail. O olhar e a cena . São Paulo: Cosac & Naify, 2003 . p. 126. 117 CARVALHO. Mª Socorro. Cinema Novo Brasileiro In: MASCARELLO, Fernando (org.) História do Cinema Mundial . Campinas, SP: Papirus, 2006 (Coleção Campo Imagético). p. 290. 118 JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema . Macunaíma do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Querioz Ed., 1982. p. 82. 119 Idem. p. 91

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período marcado pela industrialização nacional desencadeada por Juscelino Kubitschek até a deposição de João Goulart pelos militares, tempo em que Joaquim Pedro de Andrade produz Garrincha, alegria do povo (1963) e na fala do diretor, um de seus criadores, o grupo do Cinema Novo caracteriza-se pela coesão por meio de: “une conscience extrêmement forte du social, du collectif”. 120 Comprometidos com o realismo, o grupo apresenta influência do neo-realismo italiano com filmes que, no olhar de cada diretor, apresenta o modelo de subdesenvolvimento nacional, mantido por conta da exploração dos países capitalistas. O texto de Glauber Rocha sobre a “estética da fome” é um libelo desse período. A segunda fase do cinema novo conforme Johnson 121 vai de 1964 a 1968, aproximadamente, fase essa caracterizada “por uma crescente experimentação” voltada para o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica livre dos conceitos históricos do colonizador, e que se revela pessimista frente a situação política existente. É nessa fase que Joaquim Pedro realiza O Padre e a moça (1965.) O autor considera que: “apesar do sucesso internacional do Cinema Novo, o movimento não havia conseguido conquistar o mercado interno, que era, e continua sendo, dominado por filmes estrangeiros, sobretudo norte-americanos.” 122 Para Carvalho 123 , com produção rica e diversificada, os cineastas do movimento trabalham em três áreas temáticas: a escravidão, o misticismo religioso e a violência predominante na região Nordeste, temas típicos de um país continental e de característica ainda fortemente rural. O Cinema Novo dos anos 1960, conforme Ismail Xavier, 124 vai produzir uma pluralidade de estilos e idéias, uma explosão de estéticas nacionais que buscam mostrar a correlação de forças entre a expansão econômica que ocorre no país e a modernização cultural existente, por meio de uma “política de autores”, com filmes de baixo orçamento e renovação da linguagem imagética, rompendo com o cinema clássica e industrial.

120 JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema . Macunaíma do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Querioz Ed., 1982. p. 82. 121 Idem. p. 84. 122 Ibidem. p. 85. 123 CARVALHO. Mª Socorro. Cinema Novo Brasileiro In: MASCARELLO, Fernando (org) História do Cinema Mundial . Campinas, SP: Papirus, 2006 (Coleção Campo Imagético). 124 XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno . 3ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001 (Coleção Leitura). p.14/36. passim.

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Para o autor, da mesma maneira que Carvalho 125 , o Cinema Novo é um cinema de conscientização e politização, que quer mostrar as várias faces do mesmo Brasil, tornando pública a questão da identidade cultural, relacionando-se e compartilhando espaços com a literatura e a música popular, apresentando uma nova estética e alterando “substancialmente o estatuto do cineasta no interior da cultura brasileira” 126 . Bentes 127 considera o texto “Estética da fome”, de Glauber Rocha “um dos mais belos esforços de pensamento e de intervenção política do cinema moderno brasileiro”, quando o cineasta brada frente ao olhar paternalista do mundo desenvolvido para o 3º mundo. Para ela, a questão proposta por Glauber ainda está sem resposta no mundo audiovisual nacional e internacional. Conforme a autora, “a estética cinemanovista tinha como objetivo evitar a folclorização da miséria e colocava uma questão fundamental: como criar uma ética e uma estética para as imagens de dor e revolta? Para Andre Gatti 128 "não dominamos a tecnologia do cinema, dominamos a tecnologia do conteúdo, da narrativa cinematográfica”. Este domínio da narrativa cinematográfica apontado por ele tem esteio em Gian Luigi De Rosa 129 , lingüista da Universidade de Salento e estudioso de adaptações literárias para o cinema, que exemplifica com Joaquim Pedro de Andrade o exercício da tradução fílmica de obras literárias, quando do filme O padre e a moça, baseado no poema de Drummond, além de outras obras da literatura brasileira. Ao analisar a cinematografia brasileira, Gian Rosa 130 mostra a trans posição (g.n.) da obra literária e, como ele mesmo indica:

o prefixo trans focaliza a atenção na possibilidade de ir “além” do texto-fonte, cruzando-o e multiplicando suas potencialidades” e como o texto fílmico transposto “mantém uma própria identidade e uma especificidade artística independente, transformando-se em novo objeto estético.

125 CARVALHO. Mª Socorro. Cinema Novo Brasileiro In MASCARELLO, Fernando (org) História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006 (Coleção Campo Imagético). 126 XAVIER, Ismail. op. cit. p. 18. 127 BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. ALCEU - v.8 - n.15 - p. 242 a 255 - jul./dez. 2007 128 GATTI, Andre P. (org.) O novo cinema paulista [recurso eletrônico] .São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2007. 80 p. em PDF - (Cadernos de pesquisa; v. 5). 129 ROSA, Gian Luigi De. Do texto literário ao conto cinematográfico: breve excurso da transposição cinematográfica no Brasil * Ensaio traduzido por Carla Barbosa Moreira. s/d. 130 Idem.

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Para ele, o cinema autoral é o vetor dessa postura e no Brasil é o Cinema Novo e sua estética cinemanovista, que a incorpora. Joaquim Pedro de Andrade responde ao que Gian Rosa estabelece como um novo criador autor: o diretor que na transposição da obra literária cuida “da realização e da transmissão do que o autor literário queria significar e transmitir”. Posição diferente encontramos em Jean Mitry 131 uma vez que para esse estudioso de cinema a adaptação de romance em filme torna-se impossível em função dos valores significados em cada tipo de produção artística. A saída para o autor é o cineasta seguir a estória passo a passo, tentando traduzir não a significação das palavras, mas as coisas referidas pelas palavras e, portanto, deixando de ser uma obra criativa autônoma para se tornar ilustração dela. A outra idéia do pensador está na capacidade do diretor apropriar-se do conteúdo literário e construir outro desenvolvimento e outro sentido para ele. A fala de Joaquim Pedro de Andrade apresentada por Johnson 132 , explicita o caminho percorrido pelo diretor com maior aderência à segunda idéia apresentada por Mitry : “a partir d’une idéologie, trouver la forme la plus efficace et l’appliquer à la réalité envisagée, tel est pour moi le problème essentiel” 133 . O golpe militar de 1964 promove um clima geral de apreensão e medo, com prisão, perseguição e censura. Desarticulados, o grupo cinemanovista demora um tempo para se reorganizar, mas conforme nos relata Carvalho 134 ·, aos poucos retomam projetos de cunho provocador, adaptados em sua temática e estética às imposições do regime militar. Nos anos seguintes, buscando manter a coerência em seu ideário inicial produzem um conjunto criativo de filmes de temáticas e estéticas múltiplas. A Revolução de 1964 estava apenas começando. Em poucos anos o regime político de centralização de poder, fortalecimento do Executivo, controle férreo das organizações políticas e sociais - partidos políticos, sindicatos, órgãos de classe, movimentos estudantis - imporia uma lei de censura aos meios de comunicação e uma violenta repressão política contra qualquer forma de oposição.

131 JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema . Macunaíma do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Querioz Ed., 1982. p. 8 132 JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema . Macunaíma do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Querioz Ed., 1982. p. 91. 133 “A partir de uma ideologia, buscar a forma mais eficaz para aplicá-la à realidade prevista, para mim é o problema essencial”. Tradução da autora. 134 CARVALHO. Mª Socorro. Cinema Novo Brasileiro In MASCARELLO, Fernando (org) História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006 (Coleção Campo Imagético). p. 298/299.

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Em 1965, Joaquim Pedro, Glauber Rocha, Mário Carneiro, Antônio Calado, Flávio Rangel, Márcio Moreira Alves, Carlos Heitor Cony e o embaixador Jaime Rodrigues foram presos em frente ao Hotel Glória, carregando uma faixa com a frase "Abaixo a Ditadura". Eles protestavam durante recepção oferecida aos chanceleres da Organização dos Estados Americanos – OEA, que chegavam para um encontro no Rio de Janeiro. Joaquim Pedro foi solto com a ajuda de David Neves no caso que ficou conhecido como “os oito da Glória”. 135 Em 1968, com a instauração do AI -5, o fechamento do Congresso Nacional e a suspensão dos direitos políticos da população, a ditadura é explicitada no Brasil, dificultando ainda mais aos cinemanovistas de manterem seus objetivos originais. Na manhã de 20 de março de 1969, Joaquim Pedro é preso pela ditadura. No mesmo dia, o II Festival Internacional do Filme – FIF recebe Claude Lelouch como cineasta convidado. Durante uma coletiva à imprensa, Lelouch se nega a exibir seu filme La vie, l’amour, la mort (1968) na ausência de Joaquim Pedro – solto pelo DOPS na mesma noite. 136

135 http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_bio.asp 136 Id.

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2. 4 Estética e Transgressão: erotismo do sagrado, erotismo dos corpos

Erotismo do sagrado

No conjunto de pesquisas feitas sobre o cineasta , Joaquim Pedro de Andrade é visto como um diretor que adapta literatura ao cinema. Nada mais natural, dado seu histórico familiar, seu vínculo estreito com a literatura e o ideário do Cinema Novo, o qual Joaquim Pedro de Andrade não transgrediu. Dos autores estudados, apenas Ismail Xavier 137 não se refere a Joaquim Pedro de Andrade como um diretor de adaptação literária ao cinema. O crítico demonstra atenção ao diálogo do cinema com a literatura, apontando a maneira militante do Cinema Novo de se conectar com realidades da ciência social brasileira. Citando o filme O padre e a moça como um exemplo notável, o crítico aponta Joaquim Pedro de Andrade como um cineasta criativo, capaz de em produções diferentes dosar o entendimento da narrativa fílmica e a estética imagética. Ele se refere ao filme do cineasta como um "filme comportado", ligado à tradição literária, e considera que ao mesmo tempo que está distante do chamado filme popular, ou filme de bilheteria, também não se coaduna ao padrão do filme americano. Para ele:

O filme de autor trabalha sobretudo a sua integração no debate mais erudito da cultura brasileira – o cineasta assume de bom grado o novo status de sua atividade no contexto nacional – do que seu envolvimento na dinâmica da cultura de massa. [ ] Joaquim Pedro de Andrade comenta esses impasses numa entrevista de 1966, mostrando como seu filme não caminhou, como poderia, para o lado folhetinesco da estória do padre inspirada no poema de Drummond, e sim para o tom reflexivo, lento, que o interessava 138 .

Abaixo, transcreve-se a fala do cineasta a que o crítico se referiu:

O Padre e a Moça é o filme mais sofrido que já fiz. Nele eu me entreguei a um processo de tentativa de conhecimento através do cinema… Sou uma pessoa em dúvida, em movimento, tentando entender melhor as coisas, tentando situar-me e definir-me diante do mundo pelas atitudes críticas que vou tomando; uma pessoa em busca de seus valores, colocando em questão, permanentemente, a escala de medida desses valores.139

137 XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno . 3ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001 (Coleção Leitura). p..18./55 138 Idem. p. 60/61. 139 http://www.filmesdoserro.com.br/jpa_bio.asp. Biografia, 1965.

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Depois de idas e vindas à Censura Federal para sua liberação que qualificou o tema como “ousado” além de “horroroso, mal dirigido e interpretado”, o filme é liberado em fevereiro de 1966 para maiores de 18 anos e estréia no Rio de Janeiro. O lançamento em Belo Horizonte marcado para 2 de junho não acontece. Conforme Leonor Souza Pinto 140 , os jornais da época apontam que “a proibição viera do departamento de censura do Juizado de Menores de Belo Horizonte, “a pedido de autoridades eclesiásticas e de membros da tradicional família mineira”. Em crônica publicada no Correio da Manhã de 05/06/1966, Carlos Drummond de Andrade 141 defende a liberação do filme, já suspenso pela censura federal:

Vejo que o Padre e a Moça, depois de queimados vivos no interior de uma gruta, estão ameaçados de nova fogueira, esta ateada por pessoas zelosas da moral pública e dos valores da religião. E isso me entristece. Não por mim que os cantei em verso, [ ] Entristeço-me, que pena! Porque as obras de arte – e este filme é uma – continuam entre nós na dependência e à mercê de grupos ou pessoas capazes de influir em sua livre circulação [ ] Por que, agora, proibir para o Brasil aquilo que foi oferecido à Guanabara? Por que determinadas pessoas, que não assistiram ao filme, o tacham de imoral e anticlerical? [ ] Este é o problema da censura, na circunstância: prezar-se a si mesma, não cedendo a pressões descabidas. E se ceder, terá prestado um desserviço a valores culturais realmente muito mais ameaçados do que os valores ético- religiosos em cuja defesa se quer injustamente proibir um filme que foi aplaudido pelos que o viram, e agora é atacado pelos que o não viram.

Considerado “altamente ofensivo à moral, com gravíssima influência na mentalidade juvenil, [em função da] desenvoltura e a liberdade das cenas eróticas, roteiro de licenciosidade, uma exaltação ao amor livre, sem pêias, livre dos dogmas e convenções", a censura estabelece três cortes – restaurados na nova versão – e novo certificado de censura é emitido em 17 de junho, proibido a menores de 18 anos, com cortes.

140 PINTO, Leonor Souza, catálogo que acompanha o DVD do Filme O padre e a Moça s/d. 141 http://www.filmesdoserro.com.br/bio66_a.asp

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Defendendo seu filme, Joaquim Pedro de Andrade propõe que ele seja liberado a maiores de 21 anos, sem cortes; proposta aceita em 10 de agosto com o filme recebendo novo certificado. Luiz Carlos Barreto, produtor do filme, um ano depois “pede a inclusão do “Livre para Exportação” no primeiro certificado de censura, o mesmo derrubado pela recensura. Aceito o pedido, o certificado é emitido com censura a menores de 18 anos sem cortes, com a chancela “Livre para Exportação”. Além dos problemas com a censura e a pressão de grupos religiosos contra sua exibição, a obra não teve bom desempenho de bilheteria, deixando Joaquim Pedro às voltas durante anos com o pagamento das dívidas. Para Castro 142 , ainda que adaptações literárias, os filmes de Joaquim Pedro de Andrade são sempre marcantes. No caso de O padre e a moça , considera-o um “lindo exercício de estilo”, mas que não conseguiu agradar a ninguém; nem à igreja pelos motivos óbvios, nem a seus companheiros de convicções políticas, por mostrar garimpeiros conformados e inertes frente a sua situação; era “intelectualizado demais, não comunicava”. Carvalho 143 considera o filme mais voltado para os modelos de vida e comportamentos típicos das pequenas cidades interioranas do Brasil, com seu tempo atemporal, sua estagnação econômica distante utopicamente do desenvolvimento que ocorre em outras áreas do país, como se esse desenvolvimento não chegasse a atingi-la, dele ela não poderia fazer parte. Em seu livro Os Adivinhadores de Água (2005) o documentarista Eduardo Escorel 144 , montador dos filmes e amigo de Joaquim Pedro aponta o forte vínculo entre o diretor e o pai, reverenciado por meio de seus primeiros trabalhos: os curta sobre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, ambos freqüentadores da casa paterna. Tal reverência, acrescida de uma visão lírica e uma maestria formal, na fala do autor, vai se subordinando a um olhar cada vez mais irreverente. O olhar crítico do cineasta reelabora o poema de Carlos Drummond, O padre, a moça , mantendo tênue relação com o texto original.

142 CASTRO, Ruy. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.p. 196. 143 CARVALHO. Mª Socorro. Cinema Novo Brasileiro In MASCARELLO, Fernando (org) História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006 (Coleção Campo Imagético). p. 294. 144 ESCOREL, Eduardo. Adivinhadores de água. São Paulo, Cosacnaify, 2005. p. 89

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Em longo artigo na Revista da Civilização Brasileira, nº 7 145 o crítico Rocha Melo faz uma bela leitura do filme de JPA, semelhante à fala do próprio autor: “um filme enclausurado, [ ] repleto de imagens não vistas que ocultam vergonhas, mistérios e segredos, de sussurros que equivalem a berros desesperados”. A fotografia de Mário Carneiro gera uma sensação de asfixia e assim o é com as montanhas da Serra do Espinhaço ao longe. Para Rocha Melo, a dupla orientação do filme – o drama, na direção dos atores e o comentário crítico na câmera – traduz o muito de misterioso e proibido que existe em O padre e a moça que, em nenhum momento abre concessão à síntese sociológica; portanto, filme poético, mas pouco consumível para o crítico que ainda cobra a intenção libertária do cineasta não realizada, quando o casal morre num fogo purificador na gruta onde se refugiam da cólera das beatas (Fig.20).

Figura 20. “Ninguém prende aqueles dois, aquele um negro amor de rendas brancas”

Em março /abril de 1968, Rogério Sganzerla, publicava no jornal Artes, seu depoimento sobre o filme 146 , como um tributo ao trabalho de Joaquim Pedro, elogiando sua coerência aos princípios propostos pelo Cinema Novo:

145 O Padre e a Moça - http://www.contracampo.com.br/42/padremorris.htm 146 http://www.filmesdoserro.com.br/bio66_a.asp

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Joaquim Pedro de Andrade : O Padre e a Moça; ex-Negro Amor de Rendas Brancas . 25 milhões em duas semanas no Rio e mais violentos bate-bocas: "absoluto fracasso", "besteirada hermética", "chateação" e ainda, "lindo", "cem vezes superior a Antonioni!", "melhor do que o poema de Drummond" (que inspirou Joaquim). [ ] E porque são exato cinema de autor; O Padre e A Moça é o longa- metragem que o Cinema Novo vem esperando desesperadamente há quatro ou cinco anos. Como Godard, Joaquim é um cineasta difícil para os que estão por fora das novas jogadas cinematográficas e para os que querem ver na tela suas obsessões literárias.[ ] O espectador se desespera porque Joaquim filma o cotidiano terrível de uma cidade do interior de Minas. Tudo o que a gente não gosta de ver na tela: o filme é impiedoso e caracteriza-se por um sábio distanciamento diante do mundo”.

E finalmente, na tese de Luciana Sá Leitão Corrêa de Araújo 147 sobre o cineasta, um recorte que nos encaminha para o proposto pelo estudo: o erotismo e o sagrado no filme de Joaquim Pedro de Andrade:

[ ] A propósito do contraste pele/batina (que segundo Joaquim Pedro foi a primeira imagem que lhe ocorreu ao ler o poema de Drummond) e de um plano em especial – quando a câmera acompanha o padre em movimento até enquadrar o ombro nu da moça, onde ele encosta os lábios e o rosto.

A que se apontar a figura feminina do filme, secretamente dominada pelo tutor, personagem típica da economia e organização social brasileira de formação patriarcal e, ao mesmo tempo, dominante, porque senhora de sua sensualidade e de seu segredo. Na escolha de outro, que não o seu dominador, dá conta de seu próprio desejo, transgredindo o proibido, libertando-se de uma realidade não escolhida, tornando-se sujeito, ainda que temporariamente, de sua escolha, de seu próprio corpo.

147 ARAUJO, Luciana Sá L. C de. Joaquim Pedro de Andrade : Primeiros Tempos. Tese de doutorado. USP/ ECA 1999. p.4.

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E é exatamente sob este aspecto que o filme de Joaquim Pedro de Andrade se coloca como vanguarda e ruptura: ele vai mexer e questionar os valores mais sagrados da família brasileira: a religião, ou seja, o catolicismo e sua expressão - o padre, que maior poder terá quanto mais distante for a localidade onde servir; e a vida sexual da família, ou seja, o patriarcalismo brasileiro, conforme aponta Gilberto Freyre 148 , em seu tradicional estudo Casa Grande & Senzala. Viotti 149 · atualiza a fala de Freyre em sua obra Da Monarquia à República. Para a autora não se deve considerar o catolicismo desenvolvido no Brasil colônia como uma abstração. Ele é uma forma histórica concreta:

a Igreja católica no Brasil colonial tinha uma visão de mundo tradicional e um conceito hierárquico e estático de organização de classe, que enfatizavam as obrigações recíprocas bem mais do que os direitos individuais e a liberdade pessoal, além de sacramentarem as desigualdades sociais. Segundo essa visão providencial do mundo, os senhores nasciam para ser senhores e os escravos para ser escravos 150 .

Em sua descrição, nosso “burguês gentil-homem”, representante típico da elite brasileira estava convicto que uma ordem provincial católica e uma sociedade orgânica respondiam ao seu olhar “empreendedor” (o lucro como prioridade) e “aristocrático (a etiqueta, como definição social) de maneira mais efetiva 151 . Sua modernidade no investimento de terra, capital e trabalho, valores inquestionáveis para o desenvolvimento do período colonial, se transformava rapidamente em postura tradicional e conservadora nas questões “de sexo e vida familiar e em suas atitudes ante o trabalho e o lazer, a frugalidade e o luxo, o poder e a riqueza 152 ”. É em Freyre que Viotti caracteriza o comportamento social do senhor de terras colonial brasileiro, orgulhoso “de suas proezas sexuais, de suas relações extramaritais e de seus filhos ilegítimos. Os padres – eles mesmos frequentes transgressores do celibato – podiam apenas ser complacentes conselheiros. 153 .

148 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 16ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1973. 149 COSTA, Emília Viotti da . Da Monarquia à República. . 6.ed. – São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. 150 Idem . pg. 353. 151 Ibidem . pg. 356. 152 Ibidem pg. 356 153 FREYRE, 1956 (apud COSTA, 1999, p. 356.)

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Conforme Sarti 154 , o feminismo europeu e norte-americano favorecia a discussão da condição da mulher, tendo seu impacto com a publicação em 1963 do livro A mística feminina , de Betty Friedan, Esta discussão já se fazia sentir no eixo Rio-São Paulo, alavancada pelas mudanças profundas decorrentes do governo de Juscelino, marcado por intenso e acelerado crescimento econômico. È deste período que uma juventude de classe média intelectualizada discute a perspectiva de transformar a sociedade como um todo. A essas circunstâncias somavam-se mudanças efetivas na situação da mulher no Brasil a partir dos anos 1960, propiciadas pela modernização que vinha passando o país, pondo em questão as relações de poder tanto no “mundo naturalizado das relações entre homem e mulher, quanto em todos os âmbitos da sociedade, articulando as relações de gênero à estrutura de classes”155 . O filme de Joaquim Pedro de Andrade, O padre e a moça, por meio da hierofania (manifestação do sagrado através de irrupções no cotidiano) vai mostrar a transformação do momento profano, humano, cronológico num outro, sagrado, atemporal, de domínio daqueles que são capazes de assumindo-o, libertarem-se de seu cotidiano terreno, transformando-se de homens em deuses.

154 SARTI, Cynthia A. O feminino brasileiro desde os anos 70: revisitando uma trajetória. Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 264, maio-agosto/2004 155 SARTI, op.cit. p.37

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Erotismo dos corpos

O curta-metragem Vereda Tropical de Joaquim Pedro de Andrade é uma comédia porno-erótica ou uma porno-chanchada onde um professor se relaciona com uma melancia (fig.20a). Para o cineasta trata-se de:

Crônica de uma tara gentil, encontro lírico nas veredas escapistas de Paquetá, imagética verbalização e exposição vergonhosamente impudicada das fantasias eróticas, Vereda tropical contém a denúncia da vocação geniital dos legumes, a inteligência das mocinhas em flor, o gosto da vida e a suma poética de Carlos Galhardo . Educativo e libertário. 156

Do conto original de Pedro Maia Soares para a revista Status, o filme é um exercício visual de imagens eróticas não vistas. O que está presente é mais a idéia imagética do erotismo do que a representação em si. Um jovem professor em fase final da tese relaciona-se sexualmente com melancias. A segunda personagem do filme, criação do cineasta, é a colega de curso que conhece a escolha sexual do rapaz e, sem julgá-la, busca razões para tal comportamento. A primeira sequência tem Carlos Galhardo, cantor famoso nos anos de 1950, cantando Vereda Tropical como fundo musical e um aflito e ansioso professor chegando em casa de bicicleta com a melancia na garupa. Seu propósito: um ato de prazer com a fruta. Os cuidados com a melancia são todos aqueles de uma primeira relação: o banho, a secagem, o talco, pequenos carinhos na fruta, beijinhos e a faca como símbolo fálico dominador, aquele que rompe com o que é passivo e fechado, abrindo-o à continuidade do ser, conforme Bataille 157 Sobre a toalha de banho na escrivaninha de trabalho devidamente esvaziada, o jovem avisa com voz suave e fala de língua presa: O rapaz - "É só uma casquinha, não vai doer nada, nada". E vai tirando a tampa da casca de um dos lados da melancia. O rapaz - - "Não tenha medo não, não vou ferir você, viu?"

156 Apresentação do diretor para o curta-metragem presente no encarte do filme Guerra Conjugal . 157 BATAILLE, Georges. O Erotismo. O proibido e a transgressão. Lisboa: Moraes, 1980.

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Continua recortando a tampa da melancia e a imagem do vermelho da fruta remete diretamente à idéia do genital feminino se abrindo.

Figura 20a. A descoberta

O rapaz - "Agora só o branquinho. Tá doendo? Não tá doendo não!! Agora tem que abrir um pouquinho. Agora só a pélinha, esse pedaço, esse pedacinho!!" A ambiguidade da fala do personagem nos remete ao ritual do defloramento e nos anos de 1977 era a explicitação de um novo comportamento sexual da juventude, a ruptura do tabu da virgindade e o exercício do que passou a ser chamado de "sexo livre", a obscenidade posta em cena, o segredo livremente revelado. A simulação do confronto melancia e homem é criada pelo personagem, numa fantasia de luta com a melancia, instando a fruta para dele não fugir com o tom professoral do dominador: O rapaz - "Não foge, fica quietinha..." Mas a posse, que se poderia remeter diretamente ao contexto batailleano , a busca da continuidade perdida, resulta apenas neste momento, numa precoce ejaculação.

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3. O PADRE E A MOÇA

A tela negra onde se iniciam os créditos - Difilm apresenta / O padre e a moça, vem acompanhada por uma ladainha típica das pequenas cidades interioranas, com as vozes femininas cantando a vinda do Senhor. A câmera do diretor vai apresentando o cenário como se ela rapasse nas paredes de pedra do lugar. Uma panorâmica da D/E põe a mostra o caminho que o filme tomará. Num cenário de pedras e terra arenosa, com vegetação pobre, cercado pelo maciço rochoso da Serra do Espinhaço em Minas Gerais, um padre jovem e seu guia sobem em mulas o caminho tortuoso da serra. Em plano geral, padre e guia vão se desviando de uma vegetação espinhosa que teima em estar no caminho, com seus galhos apontando para o céu. A música passa a ser instrumental. A cena muda para a estrada que dá para a cidadezinha, ladeada por um muro que marca o início das casas da cidade com características de construção colonial. Ao atravessar a ponte de madeira que dá acesso à cidade não há ninguém para receber o padre. No conjunto de casas uma se destaca por tamanho e posição, está na parte mais alta e sua posição é central em relação às demais. Em zoom in um vulto claro no janelão do primeiro andar do sobrado colonial chama a atenção indicando se tratar de uma figura feminina. Os personagens centrais da história estão apresentados e o ambiente onde ela se passará também./corta. A próxima cena com panorâmica E-D e zoom in mostra o padre e o guia passando em frente a igreja, com um céu de chumbo sobre a cabeça, seguindo em direção a uma casa onde pessoas estão fora, aguardando/corta. A sala está repleta. As mulheres sentadas à mesa, alguns em pé nas paredes, outros nos bancos embaixo das janelas olham para fora. Há uma porta fechada na parede. Ouve-se uma fala off , “mas quem foi que não quis tomar o remédio? foi o sr, padre...” (presumido, porque o som não é claro) O padre entra na sala carregando uma valise e cumprimenta a todos que aparentemente estão sem ação, frente a juventude e beleza do padre. Ele pergunta por padre Antonio e uma beata pede sua benção e o encaminha para a porta fechada da parede da sala. Ouve-se a voz off “...assim o senhor não deixa ele respirar...”, “...tem que morrer como padre...”, “...o senhor quer que ele morra...”. Durante o filme identifica-se a voz de Vitorino, o farmacêutico da cidade. A beata

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bate firmemente na porta, alto e seguidamente, como a anunciar a chegada de estranho. O interior do quarto filmado mostra o padre deitado e dois homens, um mais velho e um mais moço de cada lado da cama. A batida insistente faz com que um deles se vire e abra a porta para o padre que entra sem cumprimentar. As sombras do quarto remetem ao escondido, às escuras, as falas ouvidas anteriormente em off, como se houvesse um segredo, um velar de não se sabe o que, típico desse modelo social. O homem mais velho cumprimenta o padre recém chegado e avisa que padre Antonio está muito mal, delirando; “Tava” com medo que o senhor não chegasse a tempo, ele “tá”com febre alta, delirando, ele “tá” fraco. Todos olham em direção à cama e o homem mais novo diz: - Parece que ele quer dizer alguma coisa. Sendo rudemente interrompido pelo homem mais velho que contrapõe: - Ele está delirando. O padre jovem informa: - Preciso ficar sozinho com ele. E se volta para o doente sentando na cama, colocando seu ouvido na boca do padre moribundo. Os demais saem de cena lentamente, primeiro o homem mais jovem que olha longamente para a cama, depois o homem mais velho, que o faz a contragosto, lentamente, tentando ouvir alguma coisa do que está sendo confessado. Naturalmente percebe-se a importância desses homens na cidade, são eles que estão à beira da cama do padre. O mais velho é Honorato, o proprietário da última mina de diamante da cidade; o mais novo é Vitorino, o farmacêutico do lugar, ou seja, um recorte social típico do Brasil. A cena seguinte apresenta a moça – Mariana - linda de vestido branco, sentada numa cadeira de palhinha numa sala clara, ampla, de janelas abertas, com um livro no colo. E naturalmente o espectador reconhece a moça da janela que viu o padre chegar. Honorato entra sala adentro e sem palavra percorre o espaço até a última janela quando se vira para a moça e pergunta: - O que você estava fazendo aqui? - Nada, responde Mariana. Esperando...

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- Você estava imaginado outra vez, diz Honorato. Indo em direção a outro aposento sua fala é taxativa ao acusá-la de estar na janela; ele a tinha visto da rua. Incomodada, a moça se mantém na dúvida de segui-lo./ corta. Assim, numa frase de décimos de segundo dentro de uma cena acusativa, descobre-se a fragilidade de Honorato. Estar na janela, imaginar, sair da condição por ele definida não pode. À moça cabe cumprir o que for determinado. No quarto, que repete o ambiente sombrio do quarto do padre, só que maior, repleto de desenho de santos na parede e nos móveis, Honorato tira o casaco e se defronta com Mariana que o tinha seguido. O silêncio da cena que perdura alguns segundos agudiza a tensão que permeia a relação entre ambos. Mariana tenta uma aproximação e pergunta sobre padre Antonio, ao que Honorato pergunta por que ela demorou tanto tempo para perguntar sobre ele. Entre conversas triviais a respeito da condição do padre Honorato deita-se na cama e lança o veneno que o queima: - Padre Antonio falou seu nome na confissão para o padre novo. E provoca a moça, dizendo que só ela, o padre Antonio e o padre novo sabem o que aconteceu e pergunta o que o velho padre fazia com ela no horário da aula. Negando as insinuações de Honorato em relação ao velho padre, Mariana provoca-o dizendo que num dada situação, em confissão, ele perguntou sobre “ as coisas que o senhor faz comigo”. Honorato cobra o fato dela não ter lhe dito isso à época e pergunta qual foi sua resposta, ao que ela responde que fingiu não ter entendido a pergunta. Honorato acusa-a de mentirosa, o que ela nega, mas avisa-o que só mentindo para ele nela acreditar, já que ela não mente para ele. - Você vive mentindo, encerra Honorato. Em plano americano essa sequencia vai dar o tom da narrativa que vai permear o filme, o jogo de ambivalências, já que não se sabe o quanto de verdade existe na fala de Mariana num cenário de luz (ela) e sombra. Para criar um clima de aproximação Honorato diz a Mariana que tem um presente para ela há muito guardado na arca - sobe fundo musical orquestrado - diz que não vai dar-lhe ainda, mas que ela pode vê-lo. Ao abrir a arca, Mariana pega um véu de noiva e paralisada, fica olhando para ele. Sem som, o silêncio da imagem toma a cena. Em sequencia em plano americano, o padre jovem encomenda a alma do antecessor na igreja da cidade. O recorte do altar atrás parece que amplia a

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dimensão de sua juventude e beleza, tornando-a quase sagrada, num ambiente que é o seu oposto, velho, feio, sem perspectiva. Em primeiro plano, Mariana vai até o caixão para se despedir de padre Antonio e nesse pequeno movimento o divino se manifesta na identificação do sagrado, da mesma forma que o jovem padre. Honorato a segue e cumpre o mesmo ritual. Vitorino entra pela nave da igreja visivelmente alcoolizado. Honorato organiza a saída do caixão para o cemitério, com a subida do fundo musical como um réquiem, definindo a ordem de quem o segura, sem que haja qualquer contestação frente à demonstração de autoridade. O cortejo sai da igreja em direção ao cemitério e o cenário natural compactua com o clima opressivo da cena. A câmera mostra a igreja em plano geral, demonstrando seu tamanho em contraste com o ambiente pobre e comezinho da cidade. No cemitério enquanto o jovem padre lê os ritos funerários, Vitorino em primeiro plano exclama em voz alta: - Deus levou nosso vigário quando a gente mais precisava dele. O enterro continua e Vitorino interrompe novamente: - Padre Antonio sempre dizia que a gente tem que se conformar com a vontade de Deus; mas aqui todo mundo já é conformado com tudo. Deus achou que ninguém mais aqui precisava de Padre Antonio, e ele morreu... Mas aqui não pode mudar nada. Passando entre os presentes, alguém tenta segurá-lo e ele vai direto para o novo padre. - Padre Antonio não deixava mudar nada aqui. (falando enquanto o enterro continua). Todo mundo aqui é conformado com a vontade de Deus e quer as coisas como sempre foram. Padre Antonio nunca permitiu nenhum abuso aqui.

Figura 21. O enterro do padre

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Neste momento Honorato intervém mandando dois homens retirarem Vitorino do cemitério que vai gritando: - Me larga, Padre Antonio não era nenhum santo! Me larga, padre Antonio não era santo...mas nunca tolerou pouca vergonha de velho. A cena traduz a imobilidade do povo da cidade, na voz explosiva de Vitorino, ele mesmo, imóvel frente a essa realidade. A fala do farmacêutico também aponta um jeito de viver que é imutável porque não deve ser mudado, é a vontade de Deus, ainda que o velho padre não tenha sido santo – tem a ver com Mariana?; mas a diferença de Vitorino se explicita na acusação a Honorato em relação a Mariana: pouca vergonha de velho. A cena seguinte ocorre na farmácia entre Vitorino e o padre. A farmácia é o retrato da desolação; estantes sem remédios, ou com poucos deles e no decorrer da cena saberemos que muitos são embalagens vazias; nas portas dos armários os vidros estão quebrados ou não há vidros. Vitorino bebe furtivamente antes do padre chegar . Ele vem atrás de remédio para a paroquiana muito doente, tem uma posição de distanciamento e pressa. Às suas costas, uma figura local permanece imóvel com o olhar para a câmera durante toda a cena. Vitorino ao contrário, tenta se aproximar do padre, ser útil, pedir desculpas pelo ocorrido no enterro. Em panorâmica, Vitorino anda pela farmácia atrás do remédio sabendo que não há; sua lentidão e a explicação de que são embalagens vazias vão deixando o padre exasperado. O artifício de aproximação de Vitorino não surte efeito, irritado, diz que não tem nada que possa ajudar e a próxima remessa de remédios depende das estradas melhorarem por causa da chuva, a um padre em primeiro plano contendo a decepção. Em plano geral, Honorato e o padre estão à mesa servidos por Mariana, enquanto o velho explica ao jovem a história da cidade. - A estrada nova passou longe dessas terras. Aqui não vem mais ninguém, padre, tem muita serra pra subir; descer para ir embora é mais fácil. Quem tinha vontade de mudar há muito tempo que foi embora, quem ficou, foi porque quis. A gente gosta dessa calma. Aqui não adianta padre, as coisas não mudam... Elas mudam sim. Mas tão devagar que ninguém sente. Mariana em sua atividade de servir é evidenciada pela câmera que a torna visível e luminosa em contraste com a sala de móveis escuros. A câmera em

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primeiro plano se volta para ela que observa os homens, sabendo que é dela que se refere a fala de Honorato que continua em voz off : - Tem pessoas aqui que esqueceram o resto do mundo. Tem gente que nunca viu outro lugar. A gente aqui tá protegido. Sobe o fundo musical. Corte e a cena seguinte é uma panorâmica do padre ao lado da igreja com a imensidão do céu a sua frente. De costas, aparente atitude contemplativa, o padre se volta e caminha em direção contrária à igreja, enquanto a voz off de Honorato conta: - Agora não vem mais ninguém aqui; mas no princípio eles vinham; vinham a pé e .a cavalo. Viagem de muitos meses, anos até, procurando. Eles procuravam ouro e esmeralda. Quando acharam os diamantes, foi por acaso, não deram valor. Nesse tempo, acho que toda essa serra era vazia, nunca tinha vindo alguém aqui. Em sequencia, mostra o padre numa casa vazia, ruínas do período de apogeu que Honorato se referia. Movimentando-se pelo espaço da casa vai se “enquadrando” nos espaços antes ocupados por portas e janelas. Honorato segue seu discurso em off: “ Naquele tempo havia muito diamante, Era só olhar para margem que encontrava, os diamantes foram se soltando da montanha, caindo no rio e sendo levados. A pedra é pesada. [ ] Depois foi acabando, eles garimparam tudo. Toda essa serra eles lavraram, anos e anos, não ficou nada. Hoje o que só se encontra é o que eles não quiseram, uma pedrinhas miúdas feitas cabeça de alfinete. É difícil encontrar alguma, mas a gente vendo conhece logo. Ele alumia feito uma estrela, no meio das outras pedras. Quem já achou algum, nunca mais deixa de procurar, mesmo que não encontre nunca. E ele só aparece no lugar pior, na serra, onde só tem pedra, onde não dá mais nada”. Durante a fala de Honorato, o padre se movimenta pela casa de tal forma a por em enquadre um conjunto de umbrais, como um corredor em perspectiva (fig.22). É para lá que se dirige o padre, de costas para a câmera, e ao chegar senta-se num banquinho. Cena claustrofóbica, repleta de recortes fechados, que quase faz se estar num labirinto, acompanha o discurso de apogeu e decadência de Honorato, culminando num corredor contínuo e sem saída. Poder-se-ia pensar que tal representação imagética estaria em relação com a lógica do totalitarismo do poder que naquele momento envolvia o Brasil, como as rochas da serra o faziam com a cidadezinha.

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Figura 22. O labirinto

A cena seguinte incorpora o presente dos negócios na cidade perdida na serra. Em primeiro plano, Honorato avalia uma pedra com a lente de aumento estudando seu parco valor. O armazém está repleto de bebida nas prateleiras em contraste com o armário da farmácia. O padre passeia pelo armazém ouvindo o lengalenga de Honorato, dizendo que as pedras não valem nada, que todos devem a ele, que se não fosse ele o lugar já teria morrido. O padre observa a compra da pedra de um morador para Honorato e o valor três vezes maior da dívida registrada pelo negociante, numa alusão clara ao processo de endividamento nacional a partir da industrialização. O padre provoca Honorato perguntando como ele consegue viver, já que a revenda das pedras praticamente não dá nada e ele reclama que o melhor era mudar de negócio. A resposta vem rápida: - Dá-se um jeito. Numa panorâmica elevada, que atinge os telhados da cidade e seus recortes de ruas, como uma grande pedreira pontiaguda ou uma pedra de diamante bruta, de costas para um morador que está em primeiro plano, o encaminhamento cênico vai indicando o diamante que a cidade ainda mantém.Corta. A câmera gira em torno de Vitorino que, sentado no chão, observa o casarão da cidade. Em panorâmica, moradores encostados no muro. O silencio evidencia a cena: em contraposição a imobilidade existente Mariana vem em direção à câmera em plano americano com um garrafão de vinho na mão e um embrulho na outra. O

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movimento que ocorre é por conta dela. A câmera segue a moça em travelling e panorâmicas vão sinalizando a dinâmica que movimenta a cidade, o diamante que sobrou, diamante que brilha com seu vestido branco. Mariana não corresponde aos cumprimentos recebidos pelos moradores que acompanham seu caminhar, nem o de Vitorino que se levanta quando ela se aproxima/corta. No bar, Mariana serve dois fregueses e numa panorâmica para a esquerda deixa um copo com bebida para Vitorino que já se mostra bastante alterado na mesa/corta. Em plano geral vê-se o bar na obscuridade e ao fundo, atrás do balcão Mariana se destaca como se tivesse uma aura em torno de si/ corta. Plano geral da fachada de uma casa, onde ao abrir a janela, a luz interna denuncia o tronco de Mariana. Ela aparece rapidamente no peitoril, olha à procura. A câmera dá um zoom out , identifica Vitorino que observa se é visto e enquanto a janela é fechada, ele se dirige para a casa./ corta. De mãos dadas, Mariana traz Vitorino para dentro de casa, com todo o cuidado que um encontro adúltero (?) deve ter. Na obscuridade de um cômodo, a ele se oferece e com ele nos braços busca o leito. Ele de início se envolve com a situação, a câmera em primeiro plano, mas acaba rejeitando-a e saindo. Silenciosa, escura, é uma das cenas ácidas do filme. Os jovens da cidade não conseguem se amar. A recusa de Vitorino a Mariana está pela condição de “servir” a Honorato? O longo olhar do jovem é tão magoado quanto piedoso. E Mariana de vestido claro na parede clara se auto-reflete/corta. Vitorino na mesa do bar, retomando a cena de antes. Esta cena na análise fílmica de Luciana Araujo está referida como um “flashback [ ] sem que se tenha claro de que personagem é a lembrança apresentada”. Para este estudo, entende-se que se trata da lembrança de Vitorino, atormentado de amor, desejo e arrependimento por sua fraqueza. Mariana entra em cena pela esquerda, com seu brilho pessoal passando pela lateral da igreja. Pela direita entra o padre cercado de beatas que falam juntas e ao mesmo tempo de Mariana e Honorato descendo o morro. Excluída do grupo , a moça aguarda a passagem das beatas com o padre, que permanecem ao seu redor, como a protege-lo do perigo que Mariana representa. Ele tenta olhar a moça mais no alto da colina da igreja, mas não consegue. E Mariana com a parede clara da igreja ao fundo e seu cabelo claro ao sol é um desenho de luz.

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A cena seguinte é o padre na casa de Honorato que mantém o mesmo comportamento dos encontros anteriores. Honorato de pé, fala sobre sua vida com Mariana, enquanto o padre de costas para a câmera ouve o velho. Ao ter pegado a menina aos 10 anos para criar, já gostava dela, era filha de um garimpeiro sem sorte, brigou com o vigário da cidade por causa da menina que vivia com ele e avisa o padre que vai dividir um segredo que nunca contou a ninguém, nem a padre Antonio: - Mariana vive comigo feito minha mulher.; e pede o consentimento do padre para casar-se com a moça, “nem que fosse para reparar o malfeito” A cena é quase estática, com pouquíssimo movimento por parte de Honorato no beiral da janela e entrecortada com cenas externas com sua voz em off : de Mariana em primeiro plano no caminho da igreja, duas externas indicando a formação de um temporal, e de Vitorino, em plano americano que observa o casarão. Um primeiro plano do padre de perfil na cena seguinte que se vira de lado para a câmera a partir da voz em off de Vitorino acentua uma mudança da narrativa: -Padre, você tem que me ouvir. Tenso, o padre ainda em primeiro plano, cobra do farmacêutico sua condição de alcoolizado. Vitorino insiste: - Isso não tem a menor importância, eu sei o que estou dizendo; padre, o senhor é a única pessoa que pode fazer alguma coisa. O padre se vira, evitando o olhar direto do farmacêutico e se movimenta pela sala da casa paroquial . Vitorino vai atrás e insiste dizendo que Honorato não deixa Mariana sair de casa, ela não foi servir o rancho. E cobra uma posição do padre, confrontando-o com o comportamento de padre Antonio que, enquanto vivo, não deixa Honorato fazer o que quisesse. - Padre, Honorato queria que padre Antonio morresse, ele estava esperando por isso há muito tempo, e segura o padre pelos ombros. O padre se livra de Honorato, e se movimenta como se quisesse fugir da situação. Mas Vitorino continua em primeiro plano: - Ele tinha ciumes do padre Antonio com Mariana, e era de mim que ele devia ter ciúmes, eu dormi com Mariana, eu dormi com Mariana na casa dele, na casa de seu Honorato.

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O padre está de frente para o crucifixo na parede e dirigindo-se para a porta, abre-a e informa ao farmacêutico que o velho vai se casar com Mariana, com voz conformada, sem olhar de frente para Vitorino. A sequencia de cenas dos personagens é trabalhada em plano e contra plano numa dinâmica que desmente a postura quase estática de ambos, mas demonstra o conflito instaurado entre os dois personagens: Vitorino quer que o padre rompa o status quo da cidade e confronte Honorato, situação que o farmaceutico não tem coragem de fazer; o padre, recém chegado, não quer se envolver num conflito que a solução já está determinada a priori . A sequencia das cenas é de Vitorino, em primeiro plano, que olha com incredulidade o padre, fora de cena, e desafia-o: - E o senhor vai deixar? O senhor. vai concordar com isso? A voz em off do padre responde: - Já concordei. Depois de tudo que aconteceu... Vitorino inflamado interrompe a fala e pergunta: - Como é que o Sr. sabe o que aconteceu? O Sr. não sabe de nada, o Sr só sabe o que eles contam,mas tudo o que o Sr. Honorato diz é mentira! Ele também não sabe de nada; ele não sabe de Mariana. A cena termina com os dois homens frente a frente, a câmera no padre estupefacto. As cenas seguintes são rápidas e mostram na primeira, o padre na igreja tocando órgão com as beatas cantando a mesma ladainha dos créditos iniciais, sua expressão é ausente. A segunda é ele escrevendo, e já há papeis amassados a sua volta, demonstrando a dificuldade da condição da escrita. O recorte está feito. Planos rápidos mostram um padre atormentado, inquieto e o espectador acompanha a exaustão do conflito com o padre dormindo no chão. A tensão é acumulada pelo tic-tac do relógio de parede, o único som presente nas cenas. Batidas nervosas na porta o acordam, é noite e ele sonolento vai abrir. É Mariana. O padre pede que ela volte no dia seguinte e converse com ele na igreja, mas Mariana insiste alegando que Honorato não vai deixar. Em primeiro plano ela conta que Vitorino esteve em sua casa e nega todas as falas do farmacêutico, que nunca esteve com nenhum deles; ainda que deitasse com Honorato, nunca foi mulher de ninguém.

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A câmera no padre mostra a porta de seu quarto de dormir aberta, ele vai ate ela e fecha-a de maneira pudorosa. Mariana em cena diz que saiu fugida, Honorato proibiu-a de falar com ele. Atemorizada, avisa que tem que voltar logo, com medo que ele acorde. O padre pergunta se ela quer casar com ele; ela titubeante responde que sim. Ele sugere que ela espere mais um pouco. - Esperar o que? Responde a moça. O movimento de braços para baixo do padre demonstra sua impotência frente à pergunta feita e a resposta obtida; não há o que esperar aonde eles estão. Mas Mariana deixa claro sua dúvida. O pedido de Honorato veio quando ele não havia chegado e padre Antonio estava morrendo, nenhuma nova perspectiva se impunha e isso fez com que ela se decidisse pelo casamento. Os personagens em plano e contra-plano mantém o diálogo lento, com leves movimentos de cabeça, envergonhados de estarem sozinhos à noite, na sala de pouca luz, onde a beleza e a juventude de ambos é como um lume que não ateia o fogo inteiro, mas o mantém existente, quase quieto, para o momento de se apresentar por inteiro. - Agora não sei, diz Mariana e pergunta ao padre quando ele irá embora. - Vai demorar muito tempo, responde o padre. Ela insiste: - Quanto? Ele abaixa a cabeça como se derrotado frente à situação que se impõe: - Não sei, isso não depende de mim. Mariana conta ao padre o medo que dela se apoderou , assim que ele chegou à cidade, medo que passou a ter ao pensar que ele iria embora. - Comecei a ter medo de repente, de ficar aqui sozinha com eles. Padre, eu tenho vida agora, antes eu não tinha!. Um medo novo, um medo que faz com que acorde com o coração batendo porque sonhou que ele tinha ido. Vontade de largar tudo só para vê-lo um pouquinho; a falta que sente dele o dia inteiro. Em primeiro plano, ela caminha lentamente em direção ao padre, que está fora do quadro, e de repente, se agarra às suas costas: - Pelo amor de Deus, não me deixe sozinha!! (fig.23) O padre ouviu a fala de Mariana de costas, numa representação clara de negação à fala da moça, por não aceitá-la ou por não suportá-la, como queira o

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espectador, ele mesmo, padre, solitário e dilacerado frente a uma realidade velha, inóspita e sem perspectiva.

Figura 23. Não me deixe!

O interdito está posto, o sentimento erótico é inerente àquilo que vai buscar a possibilidade da continuidade e o risco da transgressão se instala, uma vez que se há interdição, o seu contrário - a transgressão - também se apresenta. Mariana sai correndo da casa paroquial e se assusta com um vulto que espreitava a casa. O padre a chama da porta, mas ela não se volta. Em cena externa, panorâmica, sequencia com pequenos cortes, o padre ao sair da casa paroquial de manhã, pode avaliar o impacto da visita de Mariana na recusa das beatas ao seu cumprimento, nas janelas que se fecham a sua passagem, e vai a caminho da bodega de Vitorino que a fecha nas vistas do padre. É outro padre. Caminha com passos firmes, recusando a injustiça que acusa sem saber, que aponta com a certeza de imaginar. (fig.24)

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Figura 24. Te(n)são da escolha

Corte, cena breve com Vitorino, que não enfrenta o padre, mas dispersa aos brados o povo da porta da farmácia que fazem comentários, criticando neles, aquilo que não admite para si próprio: - Vão morrer de podre, seus nojentos! [ ] não respeitam ninguém, nem a moça, nem seu Honorato, se não você ele vocês já tinham apodrecido aqui, corja de maus agradecidos! Corte. O padre vai a casa de Honorato e batendo fortemente na porta, não o encontra. Grita então: - Mariana, Mariana!! A moça tenta abrir a janela, mas fecha rapidamente ao receber uma pedrada. A cena seguinte é o rio em panorâmica, o garimpo e seus vários meandros, numa alusão aos sentimentos que estão em conflito na cidade. Honorato está sentado no canto esquerdo da margem. O padre se dirige com passos determinados na direção do velho e exclama: - Seu Honorato, eu preciso falar com o senhor. Honorato já de pé, reclama que o padre está atrapalhado o serviço e que ele nada tem a falar com o jovem pároco. O padre contrapõe dizendo para todos que a culpa é de Honorato, que Mariana foi à noite à casa paroquial, porque ele a proibiu de ir a igreja, onde todos poderiam vê-la. - Mariana é minha mulher; com ou sem casamento, ela é minha mulher e o senhor não tem nada a ver com a minha vida. Em plano americano, o padre com um garimpeiro ao lado, mistura de justiça e morte, a correnteza do rio como o fluxo de emoções que vivenciam os personagens,

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o céu em movimento de grandes nuvens, como o desenho da ira de Deus, contrapõe: - Ela não é sua mulher. Externa, panorâmica e plano-sequencia, no negrume da noite, Honorato e Vitorino bêbados saem do armazém; Vitorino ajuda Honorato que cai algumas vezes até conseguir chegar a porta de casa que é aberta por Vitorino. Honorato entra. Vitorino tem expressão divertida, ri da fragilidade do poder que não enfrenta, diverte-se com o segredo dos poderosos, como se dele pudesse usufruir algum para si. Dirige-se ao lugar costumeiro onde observa o casarão e a janela de Mariana. Surpreende-se ao encontrar o padre. Primeiro plano nos personagens e Vitorino entre admirado e divertido “autoriza” o uso pelo padre do lugar que é dele, onde se observa a janela de Mariana. Torna-se camarada com o padre, identificando-o como um seu igual: - Quero fazer as pazes. A gente vem prá cá junto de noite namorar de longe a mesma moça!. O padre o empurra e ele cai no chão rindo. A cena em panorâmica e em plano sequencia quase repete com o padre o andamento da sequencia anterior com Honorato e Vitorino. O escuro da noite e as poucas luzes mal revelam o padre se movimentando, passando pelo armazém, voltando, passa pelo canto das casas e de costas para a câmera se determina: em frente à porta da casa de Honorato, que pelo fio de luz, percebe-se aberta. Entra, e de frente para a câmera avança pelo corredor. Na sala encontra Honorato dormindo no chão, embriagado Passa por ele e bate na porta do quarto de Mariana/corta. Mariana ocupa a cena de maneira recorrente; no centro é a única iluminação/iluminada. Os planos e contra-planos como que se repetem àqueles do episódio da casa paroquial. Mariana abre a porta ao padre e chama-o de louco; avisa-o que Honorato chegou dizendo que ela dormiu com ele, que vai matá-lo. De fala mansa e tranqüila ele avisa que todos estão dormindo, bêbados e que ele vai levá-la para Diamantina enquanto todos dormem. A questão central para a moça é se o padre ficará com ela, o que ele argumenta que não pode ser. A questão central para o padre é resolver o seu problema e Mariana não pode ficar na cidade, senão o problema não será resolvido.

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Mariana reluta, mas aceita a fuga e ambos – o padre e a moça – saem da cidade velados pela escuridão da noite, num conjunto de panorâmicas e zooms, tendo a moça sempre à frente puxando o padre que parece arrependido da ousadia. Numa panorâmica da estrada os dois aparecem ao longe, um pontinho claro e outro escuro, aproximando-se de frente para a câmera, o padre austero, andando firmemente, como a cumprir uma obrigação, Mariana, diáfana, com um meio sorriso de satisfação nos lábios, passeia pelas flores esquálidas, sobreviventes da terra ruim. O casal é acompanhado pela câmera em travelling que mantém o primeiro plano em ambos. A solidão de ambos e do lugar só é cortada pelo grito estridente e contínuo de uma ave. Ela provoca o padre, “por que não conversa com ela, se a acha bonita”. Ele não lhe dá uma palavra. No caminho, alguém os vê e é visto por eles, indefinível. Vai-se. Mariana vai conversando sozinha com o padre que não lhe responde sobre a situação; do povo que fala que mulher de padre vira mula-sem-cabeça, de como se sente; “ não sei se é o demônio mesmo ou se é Deus que está no meu corpo”, sua expressão leve e divertida demonstra conforto com a situação, diferente do padre tenso e silencioso. Ambos estão sobre o vale, como se pairassem acima da terra, terra pobre, seca, e ao final da estrada o telhado e a torre da igreja indicam seu domínio pelo vale. De lado, com a câmera em travelling, o padre corre em direção à igreja, como se chegasse a seu destino. A cidade está vazia, abandonada. Ele grita em desespero: - Não tem ninguém! O desespero do padre é contraposto com a calma de Mariana que sem os sapatos molha os pés no riacho, aproveitando as pequenas coisas prazerosas que a vida dá. O padre anda pela cidade desconsolado. Encontra Mariana na saída e voltam para a estrada, o padre à frente, em plano sequencia, meio de costa para a câmera que o acompanha em travelling. Em off, a voz de Mariana fora de quadro decreta: - .A gente não vai chegar em Diamantina. Por isso é que eu vim. O senhor também sabe [ ] por que o senhor não fala comigo: por que [ ] não olha para mim? A fala de Mariana é suporte para a sequencia do padre em primeiro plano que anda sem olhar para trás. A moça repete a frase final em tom alto e com veemência, entra em quadro em primeiro plano enquanto o padre mais a frente pára.

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Ele se volta lentamente e vem em direção à moça, com zoom in sobre ele, que re- truca: - Eu to olhando pra você. Tô olhando [ ] e não sinto nada, só raiva; vontade de te bater na boca [ ] até ficar calada. Você fica aí [ ] ou volta, se quiser. Vou-me embora. Uma fala em tom baixo, uma confissão contraditória com a situação ocorrida até então. Pode-se imaginar que há um jogo silencioso entremeando a fala do padre, jogo velado pelo interdito que o acompanha: to olhando e não sinto nada/ sinto tudo; só raiva/ só desejo; vontade de bater na boca até ficar calada/ vontade de te beijar até você gemer. A saída é a ruptura – fica aí/ vou embora. O padre volta as costas para a câmera e continua sua caminhada. A moça parada, incrédula com a situação vira-se do outro lado e corre em sentido contrário. Câmera no padre em primeiro plano que se volta e grita o nome da moça chamando-a, confuso, vai em direção a ela. Em panorâmica, Mariana corre pela estrada da serra ao longe, distante; é um ponto de luz (fig.25) na serra rochosa e ressecada, está alta na serra, acima do chão, como se a ele não pertencesse. Por outro lado, em primeiro plano o padre anda lento e

Figura 25 Um ponto de luz pesado na direção da moça, tendo ao fundo as paredes rochosas, quase como uma prisão. É como se invertesse o sagrado e o profano, o claro e o escuro, o leve e o pesado.

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A cena seguinte é Mariana em primeiro plano iluminada pelo sol correndo, exausta e sem fôlego se ajoelha no chão/corta. O padre em plano americano de costas para a câmera vai em sua direção e dela se aproxima mantendo-se em pé; chama-a para acompanhá-lo. A câmera enquadra ambos e em plongé acompanha o diálogo: - O Sr. vai se separar de mim. Sem o sr. não tenho ninguém [ ] nada, diz a moça. - Eu não posso pedir para uma pessoa só, responde o padre. - Não peço que viva para mim, só que me deixe viver com o sr. - Eu não posso , você não vê, responde o padre voltando-se para a moça. Ela abaixa a cabeça e o confronta: - Eu só vejo essa roupa preta. Ele a convida a acompanhá-lo e com a recusa dela avança em sua direção e segurando os braços força-a a levantar-se. A moça resiste e em plano geral tenta beijá-lo, conseguindo.(fig.26)

Figura 26. O beijo censurado

O padre empurra Mariana chamando-a de louca. A moça cai no chão e explode aos prantos: - O sr. que é louco! Você é louco! Não sou eu Essa roupa cobre você todo, não sente nada, não ve. Olha pra mim, objeto, [ ] sentir.

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A câmera em primeiro plano no padre mostra-o olhando Mariana inteiramente pela primeira vez, descobre-a e seu rosto tem o mistério da descoberta, o espanto. O fundo musical reinicia. Ele anda de um lado para o outro como a querer descobrir algo ou pensando no impacto da descoberta; o outro, vivo, real, sofredor, a quem ele causa dor, indivíduo único, diferente do rebanho que está a seus cuidados. O cenário externo de rochas e recortes pontiagudos de pedra a sua volta apresentam a sensação da dor de se perceber um ser descontínuo, finito na sua incompletude, não havendo esconderijo para essa dor, nem na batina, nem na representação do divino. Essa dor é a manifestação do sagrado. Câmera em primeiro plano, o padre se volta e de olhos para baixo, onde se presume esteja a moça, rodopia lentamente em torno dela, como em uma dança de acasalamento, e em close, ajoelha-se e roça delicadamente os lábios nos ombros desnudos de Mariana, criando o contraste da delicadeza da cena e a aspereza do cenário (fig. 27).Fim do fundo musical.

Fig. 27 Cena imaginada pelo cineasta

Close de Mariana e a descrição absolutamente silenciosa da relação entre o padre e a moça. A câmera, em close, caminha lentamente pelo corpo da moça a partir do rosto que descobre o prazer, um pedaço do seio, as costas e se volta para o rosto que num meneio de cabeça para trás atinge o orgasmo. O plano seguinte é a perna da moça nua, branca, reluzente e o preto da batina encobrindo a perna do padre : “aquele negro amor de rendas brancas.” Em close o rosto de Mariana virado em direção ao espectador apresenta uma expressão

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feliz e serena, olhos fechados, sorriso nos lábios. Em close também, com o rosto tenso afundado na terra e voltado para a direita da tela, um olho se abre assustado/corta Padre em plano geral, de costas para a câmera, o vento movimentando levemente a batina, nos altos da serra é a representação do humano sagrado/corta. As botinas do padre se misturam com a terra poeirenta e pedregosa e florzinhas que insistem em sobreviver ali./corta. Mariana em plano americano à frente do padre faz uma trança no cabelo; ao fundo, o padre de costas para a câmera./corta. Em primeiro plano o padre de costas/corta. Mariana em panorâmica caminha em direção ao padre. Essa dinâmica da câmera mostra o distanciamento dos personagens, o prazer culpado, a transgressão. Mariana se aproxima do padre que se mantém de costas para ela e pergunta para onde vão. Ele responde sem se virar: - Não sei, e começa a caminhar para frente. Mariana segue-o. Diferentes recortes externos do cenário, folhagem alta, chão de pedra, indicam que o padre anda a esmo, perdido. Mariana cobra-o: - Para onde o senhor tá indo? Isso é caminho para lugar nenhum!! A câmera no padre, a voz de Mariana em off: - O senhor. está fugindo, fugindo só, sem saber para onde. A gente pode ir para qualquer lugar, era só o senhor. querer. Ninguém conhece a gente; se o senhor quiser [ ] a gente pode viver junto como qualquer pessoa, qualquer lugar servia, se não fosse essa roupa.É só o senhor querer. A fala de Mariana é fundo para as imagens de um padre em conflito. Em plano geral ele caminha aleatoriamente num cenário árido e rochoso, duro, áspero. Ela continua: - Por que o senhor. não vai sozinho? Por que eu tenho que ir com o senhor? Pode-se na cena, recorrer a Araujo em obra citada (p.203) quando remete a cena ao episódio de Jesus no deserto sendo tentado por Satanás. Pode-se também imaginar o custo da tomada de decisão, do pecado maior que é o livre arbítrio, do assumir a sua vida – “é só o senhor. querer” – é a escolha do prazer real, presente, em contraposição ao prazer divino, futuro; a razão em oposição a fé. Ele se volta para ela, ambos em plano geral, encara-a e se vira retornando seu caminhar lento, perdido, a ausência de expressão no rosto jovem. A câmera se volta para Mariana em plano americano que em zoom in demonstra sua incredulidade gritando ao padre:

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- O senhor. está voltando. E a câmera atrás de Mariana, aponta ao longe os telhados coloniais da cidadezinha de onde tinham fugido/corta. Num recurso de elipse espacial, o padre anda no calçamento da cidade demonstrando de forma clara e visível sua chegada; por outro lado, o plano seguinte é o rosto do padre dentro da escuridão da cena, como a indicar o processo escuro e tortuoso que o corrói. Seu andar cambaleante sinaliza a sensação de perda. Em plano sequencia o padre atravessa a cidade, sua figura negra em contraste sombrio com o cenário externo, como se o dedo divino o apontasse. Abre as portas da igreja com violência escancarando-as, uma sensação de perda, de impotência, conduz a cena que ocorre em panorâmica com travelling acompanhando o padre. Chorando, único som audível na sequencia de cena, jogado no chão do altar, o padre busca refúgio (ou saída) num movimento de corpo quase fetal, como a buscar o renascimento salvador. O plano americano bem próximo à figura religiosa mostra um homem vencido, sem salvação/corta para um plano geral da igreja e seus sombreamentos, o velamento que é parte do sentido religioso, o segredo, o secreto. O padre em contraste com a toalha branca do altar é uma figura trágica; ajoelhado, mantém a cabeça para baixo, num aceite submisso. Levanta-se lentamente, dirigindo-se à saída da nave com passos trôpegos, as contas arcadas; impressiona a postura velha que adquiriu. Beatas fecham a porta da igreja, impedindo a sua saída e ele se vê preso dentro da igreja. Fora, as mulheres tentam ver o que está acontecendo ficando na ponta dos pés, olhando pelas frestas da madeira da porta, como à espera do extraordinário. O padre anda entre os bancos da igreja, entreolhando os espaços ele mesmo à espera do insólito; relinchos de mula são ouvidos/corta. Um plano da igreja em panorâmica vem acompanhado dos relinchos de mula, que vão aumentando, como a acentuar o caráter do fantástico; é Mariana, transformada em mula-sem- cabeça? Não, Mariana entra na cidade. O rosto de um negro morador em close e travelling lateral dá lugar a imagem desmanchada de Mariana que chega de olhos para baixo, frente aos moradores que a observam/corta e Honorato aparece em cena, levantando-se do chão, cambaleante, pela bebida e pelo retorno de Mariana/corta. Os moradores chamam seu nome agarrando Mariana que se debate/corta. Os moradores chamam Honorato pela janela fechada/corta e Vitorino aparece em plano americano, observando a

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casa em ruína onde Honorato está. Tudo está em ruínas, é preciso que se recomponha a situação. Honorato aguarda. É o morador que traz a solução. Ao lado de uma Mariana estática, pega o véu de noiva do chão; como se fosse possível voltar de onde se parou, apagar o acontecido, fazer de conta/corta. Imagem em Honorato, que sai da casa em ruínas. Um morador acocorado a janela meneia a cabeça concordando com a situação que virá e Vitorino observa a passagem do velho que se vai/corta. O padre dentro da igreja rompe a inércia em que estava e busca saída pela porta lateral, forçando cada um de seus lados/corta. Vitorino em cena, plano americano, na soleira da casa em ruínas completa o movimento de abertura com as mãos iniciado na cena com o padre. Em zoom out , a cena mostra Mariana de costas, de noiva, segura por moradores. O farmacêutico grita: - Não! Vem um castigo de Deus para quem tocar nessa moça. Ela é sagrada. Só o demônio mesmo... ou um santo... um santo mandado pelo demônio! Eu vi... eu fiquei na serra...o amor deles...no meio das pedras. Eu vi o amor deles. É sagrado! Em primeiro plano, Vitorino se denuncia, era a figura que estava na serra acompanhando o casal durante a fuga. Em forte declaração aponta a sacralidade do ato, a doçura do desejo; a representação de Mariana como a ruptura do existente, daquela que traz a condição de continuidade, sagrado porque nela se restabelece o sentido de humanidade; santo e demônio interrelacionados e complementares, como o erotismo e a transgressão. Senta- se apoiado na pedra onde Honorato estava, como a se colocar no lugar do velho e continua a fala em off : - Só mesmo Deus para viver com ela aqui, no meio da gente,pra todo mundo ver e contar que é pra Deus ser louvado. A câmera acompanha a cabeça com o véu de Mariana em detalhe, a moça se solta dos moradores, dirige-se à porta da casa em ruínas abrindo-a e, ao encontrar o padre, joga-se em seus braços. A gritaria das beatas inicia o final dramático do filme. Toda a dramaticidade se coloca na aceleração da imagens, no fundo musical que de suave e lírico até então, torna-se rascante e recortado, entremeado com o grito das mulheres. O casal abraçado se livra dos moradores e beatas que tentam segurá-lo, buscando abrigo na casa abandonada, mas é cercado por elas.

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A sequencia das cenas se dá em panorâmica e com a câmera em movimento zoom in e out; mulheres descabeladas, sombreadas dão o tom mítico da cena, levando o espectador à identificação com hárpias ou fúrias mitológicas. O padre e a moça correm pelo terreno acidentado em torno da cidade, tentando fugir da violência que se impôs. As beatas ensandecidas estão à caça do pagamento do pecado por meio da violência e da violação do amor apresentado. A obscenidade do amor sagrado não se põe tão livremente. O canto das beatas acompanha a fuga. Mariana vai à frente reconhecendo o terreno. O casal entra numa das várias grutas existentes no composto rochoso/corta. Em plano geral, os moradores ocupam o morro onde o casal se refugiou. Fim do fundo musical/corta A cena ocorre agora dentro da caverna. O padre e moça de costas para a câmera vão entrando nos espaços sinuosos das rochas. Ao fundo, com zoom in a câmera indica ao espectador um recorte rochoso assemelhado ao altar da igreja, um espaço sagrado/corta. Em primeiro plano, o padre observa a conformação rochosa subterrânea buscando uma saída. Ouvem-se os soluços de Mariana. Ele dirige o olhar para baixo, onde ela está, apoiada na pedra e se agacha também. Abraçados, buscam o conforto dos corpos unidos. Sobe a música lírica acompanhando o movimento afetivo do casal, Mariana rasga a batina e beija o padre no ombro/corta. A câmera em close no rosto iluminado do padre que, abraçado à Mariana afaga seu ombro. Há um esfumaçamento da cena/corta. Um plano geral externo mostra a boca da caverna com fogo e, mais atrás, os moradores que assistem a cena. Fade out e a tela, agora branca, apresenta a frase final em letras pretas o verso que originou o filme:

“NINGUÉM PRENDE AQUELES DOIS AQUELE UM NEGRO AMOR DE RENDAS BRANCAS”.

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FICHA TÉCNICA 158 35mm / P&B / 90 min / 1965

Produção - Filmes do Serro Produtores - Joaquim Pedro de Andrade; Luiz Carlos Barreto Direção de produção - Raymundo Higino Produtor associado - Luiz Carlos Barreto Assistência de produção - Flávio Werneck; Geraldo Veloso Financiamento/patrocínio - CAIC – Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica do Rio de Janeiro; BEG; BNMG Argumento/roteiro - Joaquim Pedro de Andrade Direção - Joaquim Pedro de Andrade Assistência de direção - -Eduardo Escorel Continuidade - Carlos Alberto Prates Correia Direção de fotografia - Mário Carneiro Assistência de fotografia - Fernando Duarte Câmera - Mário Carneiro Montagem - Eduardo Escorel; Joaquim Pedro de Andrade Cenografia - Mário Carneiro Direção musical - Guerra Peixe Música - Carlos Lira Conjuntos e bandas - Quinteto Villa-Lobos

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Locação - São Gonçalo dos Rios das Pedras – MG; Gruta de Maquiné ; Serra do Espinhaço, MG.

ELENCO

Helena Ignez - (Mariana) Paulo José - -(Padre) Fauzi Arap - - (Vitorino) Mário Lago- - (Honorato) Moradores de São Gonçalo do Rio das Pedras Participação especial: - - Rosa Sandrini (Beata)

PRÊMIOS

Prêmio de Melhor Direção do Festival de Teresópolis, 1966

Prêmio de Qualidade do Instituto Nacional do Cinema, 1966

Prêmio de Melhor Fotografia, Festival de Brasília, 1966

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4. VEREDA TROPICAL

Vereda Tropical, todo filmado na Ilha de Paquetá, cidade insular do Rio de Janeiro, é o curta metragem de Joaquim Pedro de Andrade que compõe um dos episódios do filme Contos Eróticos, de 1977, é apresentado como bonus no longa metragem Guerra Conjugal, também do cineasta. O filme inicia: os créditos em fundo preto: logotipo do Ministério da Cultura – Lei de Incentivo à Cultura e BR Petrobrás apresentam, numa realização da Filmes do Serro com restauração TeleImagem, Cinemateca Brasileira e Trama. A apresentação do filme com desenho colorido em rosa e vermelho, uma estilização sofisticada do coito, apresenta os atores Claudio Cavalcanti e Cristina Aché, além do cantor Carlos Galhardo.

Figura 28. Adaptação, diálogos e roteiro;

A voz de Gregório Barrios com o bolero Vereda Tropical acompanha o início da apresentação e da primeira cena do filme. Não há nomes para os personagens, a intencionalidade da não identificação leva a pensar que poderia ser qualquer um. A identificação dos personagens ficou definida como O rapaz e A moça . 1ª Sequencia: Plano Geral - porta de entrada de casa antiga, clara, com um certo ar de decadência, plantas ao redor criando um ambiente bucólico. Zoom in no O rapaz que chega de bicicleta com uma melancia presa na traseira, capanga e livros na mão/corta. Fundo sonoro: o bolero de Barrios.

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Em plano geral, ansiosamente ele abre a porta, derruba a melancia, pega-a e entra em casa. O cenário é o de uma sala de classe média, numa casa antiga com estantes cheias de livros, pastas AZ e uma mesa de trabalho, apresentando a idéia de estudo. Sem largar a melancia, O rapaz deixa os livros sobre a mesa de trabalho e coloca as chaves dentro da capanga, hábitos metódicos do cotidiano. A aparência singela do cenário interno: casa simples, antiga, cômodos ensolarados, pé direito alto, grandes janelas; e do cenário externo - sol, folhagens, um certo descuido cotidiano levam a uma aparência de tranqüilidade e modorrência. O rapaz vai para uma saleta com cabideiro de ferro, onde estão penduradas roupas - uma solução tipicamente masculina – que também pode indicar uma permanência temporal. Sem largar a melancia, ele se agacha para tirar a “porrinha” que prende as barras da calça para que não fiquem manchadas de graxa e pendura-as no cano do cabideiro, encaminhando-se para o cômodo seguinte. O rapaz tira a camisa com esforço, já que ainda continua com a melancia no braço e se vira procurando algo. Fim do fundo musical que acompanhou os primeiros 2 minutos do filme: Vereda Tropical, de Gonzalo Curiel, Interpretação de Gregório Barrios Voy Por la vereda tropical La noche plena de quietud Con su perfume de humedad.

Andando pela casa, O rapaz sem camisa com a melancia nos braços se esforça para tirar os sapatos em pé, largando-os pelo caminho. Em plano- sequencia, numa panorâmica, O rapaz carrega a melancia para a cozinha. Na pia, com ar de excitação contida abre a torneira, mas percebe que ainda está de calça; fecha a torneira, senta-se na cadeira e tira a calça, ficando de cueca, para lavar a melancia na pia da cozinha. Preocupado com a higiene da fruta, reprova o pano de prato que está à mão ao cheirá-lo e busca a toalha de banho pendurada num varal da cozinha enxugando a fruta. Em plano americano, no banheiro e de cueca azul, O rapaz pendura a toalha na grade da janela que dá para o quintal de bananeiras e entra no chuveiro com a melancia. Abrindo a torneira toda, os pingos esparsos levam-no a dar “umas batidinhas” no chuveiro (numa clara insinuação ao histórico problema de água no

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Rio de Janeiro) para aumentar a quantidade; o resultado não é muito melhor e ele entra na água com a melancia que recebe os esparsos pingos d’água e seus primeiros afagos. Aqui, aparece uma certa malícia como marca do diretor – a fragilidade do cotidiano – nada funciona de forma adequada, é preciso sempre dar-se um jeito, uma “batidinha”. Em plano americano, O rapaz segurando a melancia, pega o sabonete na saboneteira da banheira (sobre a qual o chuveiro está instalado), mas insatisfeito, joga-o fora pela janela do banheiro num ato tão natural que demonstra sua tranqüila privacidade. Um novo sabonete é retirado do armarinho e desembrulhado, iniciando-se afinal o banho da melancia carregado de afagos e beijos. Sobe o som do bolero Vereda Tropical de Barrios:

Hoy Sólo me queda recordar Mis ojos muerem de llorar y mi alma muere de esperar.

A cena do banho tem um minuto e meio de duração. É um banho para as preliminares do sexo; é uma preliminar. Ensaboando e acariciando a fruta O rapaz senta-se na banheira com ela em seu colo, e terminado o banho, ao levantar da banheira é filmado num recorte de tórax e coxas com a melancia estrategicamente segurada na genitália. O rapaz envolve a melancia na toalha e saem do aposento, fim do fundo musical. A cena seguinte em primeiro plano mostra os cuidados que a fruta merece: a escolha do talco, uma faca afiada (!), um paninho em embalagem fechada. Um passarinho com seus trinados insiste em dar uma natureza leve e singela à cena que se desenrola. De volta à sala, ansioso, joga no chão o que está sobre a mesa, buscando espaço para estender a toalha de banho aonde a melancia veio enrolada. A máquina de escrever merece um maior cuidado. Com a toalha de banho estendida sobre a mesa, a melancia no centro da toalha, O rapaz passa talco na fruta retirando o

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excesso com o paninho novo, recém tirado do plástico, acariciando e cheirando a fruta. A sala filmada é típica dos estudantes dos anos 70: a estante de blocos de concreto, o picape com a caixa de som, um mapa do Brasil antigo na parede, bonecos de argila do Nordeste e uma jangada mostrando possíveis viagens. Depois de seis minutos e 10 segundos ouve-se a voz do ator num monólogo, com voz de língua presa – surpresa - onde o duplo sentido das palavras instiga nossos sentidos para o reconhecimento do ato de defloramento. Sobre a mesa e virado para a câmera em plano americano, O rapaz e a melancia iniciam os jogos sexuais com ele cortando um dos lados da melancia redonda: - É só a casquinha, não vai doer nada, nada... é só a casquinha/corta. A cena filmada em detalhe mostra o momento do corte da fruta insinuando de maneira maliciosa o processo de introdução do penis numa vagina com hímen: - Não tenha medo não, eu não vou ferir voce, viu?!? Close n O rapaz, que continua seu ofício com a faca na melancia: - Tá doendo? Não tá doendo, né? Filmado em detalhe, a melancia sendo cortada e os dedos d O rapaz no recorte, a percepção é imediata de uma vagina sendo acariciada, despudoradamente aberta, oferecendo-se. O monólogo d O rapaz continua: - Agora tem que abrir um pouquinho. Em close, O rapaz ainda diz: - Agora só essa pelinha, só esse pedaço, esse pedacinho! (fig.29)

Figura 29. Só esse pedacinho.

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A cena é a simulação dos movimentos do ato sexual com tentativas de beijos na “boca/vagina” da melancia que “foge”; volteios do ator em torno da mesa e sobre si mesmo e o diálogo de poder que ele estabelece com a melancia: - Fica quieta, fica quieta, não foge de mim, não foge... Na cena em primeiro plano, O rapaz coloca a melancia sobre a mesa, senta- se na cadeira e com os braços estendidos “cerca” a melancia e consegue o beijo tão esperado, encaminhando para o clímax da cena. O rapaz levanta, abaixa a cueca e introduz o penis na fruta com a subida da voz de Gregório Barrios no verso Vereda Tropical/ corta. O detalhe fílmico: o tronco erguido, o genital na melancia, as mãos tensas apoiadas na mesa e a rolagem da fruta para o lado, denunciam o resultado; jogando-se na cadeira O rapaz comenta insatisfeito: - Ejaculação prematura!/ corta./ Encerrado a primeira sequencia do filme com 7 minutos e 27 segundos.

2ª Sequencia: com a Lagoa de Paquetá ao fundo, a personagem feminina é introduzida andando de bicicleta, e passa a se chamar de A moça. Ela pergunta curiosa a escolha do colega, pesquisando se há algo “errado” com a relação de pessoas. - Mais ou menos, responde O rapaz com a bicicleta ao lado da colega. A discussão passa por dinheiro, saídas com o outro, problemas, e a figura ambígua dO rapaz vai se colocando em cena. - E precisa dinheiro para namorar? pergunta A moça . A conversa gira sobre dinheiro, custo de sair, dúvidas. O rapaz responde de maneira convicta: - Melancia não, melancia é só comprar. Também não digo que me viciei, porque não é uma coisa que dá propriamente dependência, é só...bom mesmo, saudável, fresquinho, natural, gostoso... É, eu acostumei, não viciei, acostumei. Assim, o comportamento transgressor se coloca na escolha da melancia como parceira sexual porque ela é isso mesmo, uma melancia; é a negação do outro, o sentido do não compromisso, a ausência de desgaste que a relação com outro causa. A estética da imagem entra em conflito com a referencia diegética apresentada. O cenário é idílico, natural, ingênuo; não comporta uma conversa

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sobre comportamentos obscenos ao ar livre, fora da cena. Para o cineasta do avesso, comporta. Insatisfeita, a moça apresenta o cotidiano do casamento de maneira a provocar o colega: horários, silêncios horrorosos. E a resposta vem novamente de forma convicta: - Horário tem que ter mesmo, disciplina, economia doméstica, senão o dinheiro não dá. Agora, silencio não tem problema, porque quando eu quero, eu falo por elas, mudo a voz, mudo a personalidade, aí cada melancia é uma melancia diferente. E ele encerra, assumindo que já superou de forma pragmática o possível ridículo da situação. Na barca Rio-Niteroi, os jovens aparecem em primeiro plano no convés. Nesse momento os papéis sociais dos personagens são revelados: - Eu estou trabalhando demais, ó, estou escrevendo minha tese, estou dando aula para quatro turmas (faz sinal com a mão direita, juntando o dedo mindinho com o polegar indicando três, numa possível insinuação de hábitos de escotismo em voga à época nas classes abastadas) mas, o dinheirinho que resta é só para sobreviver mesmo e “prá” comprar uma melancia de vez em quando. Aqui, a situação se desnuda, ele se apresenta como um estudante de pós- graduação em fase final da tese e ela, carregando livros de literatura brasileira (uma das marcas do cineasta) indica que é sua colega, um diferencial para a classe média dos anos 70 e, particularmente para a mulher. O diálogo non sense continua. Durante toda a sequencia, o jovem tem comportamentos incompatíveis com a tara revelada: não é conversa para criança, e se afasta com a moça ao perceber a menina ao lado do casal. Num canto da balsa expõe seu conhecimento sobre a “vocação genital dos legumes”: a fruta na baixa estação, as frutas experimentadas que não funcionam. O racismo e a questão da classe social aparece com a questão do melão, quando A moça pergunta: : - Melão você já experimentou..., coisa de rico, caro, tipo mulher loura, loura é mais caro por aqui. A fala d A moça é outra estocada do cineasta que aponta o racismo subjacente que permeia as classes sociais mais abastadas, particularmente no Rio de Janeiro, que não freqüentam a praia para que a pele não escureça.

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Movimentando-se pelo barco, sobem ao terraço e O rapaz comenta: - .Eu comprei, - batendo com o punho fechado no convés num gesto de decisão e poder - ... até daquele importado... Fracasso; – batendo a mão aberta várias vezes no convés indicando decepção e impaciência - ...eu não sei se foi o tamanho, a cor, amarelo pálido... A comparação com os modelos de beleza importados é imediata. É o tempo da enxurrada cultural mercadológica americana, é imediata a comparação dos tipos físicos (tamanho – a mulher brasileira com características mignon); a cor, amarelo pálido em contraposição ao dourado da pele, fruto da miscigenação racial e também da vida praiana carioca. E ele continua: - ...eu gosto mesmo é daquelas compridonas, sabe? – abrindo os braços para mostrar o tamanho da melancia a que se refere - as rajadas, escuronas - gesticulando para A moça chegar mais próximo e arremata – cada uma delas dá várias!/corta. A sutileza no diálogo final instiga a reflexão sobre o gosto ligado à estética da fruta (compridonas, escuronas, num simulacro das jovens interioranas/ nordestinas que vinham servir de domésticas nas casas dos ricos) e também a facilitação do uso (os jovens abastados que delas “se serviam” quando a casa à noite se aquietava). Essa sequencia se encerra com 11 minutos e 20 segundos de filme..

3ª Sequencia: A cena é a relação sexual explícita entre O rapaz e a..melancia. O recorte num dos lados da fruta simula a vagina aberta para o prazer, com os dedos dO rapaz acariciando.

Figura 30 Aberta “em flor”

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Manuseia o cabinho da melancia como se acariciasse um clitóris, conversando com a “amada” num monólogo/diálogo repleto de prosopopéias metafóricas e alegóricas: - Machinha você, hem!! Não, deixa...ô sua boba, deixa...”quequié”.. “cê” tem vergonha, é? Bobagem, aqui é que é mais gostoso! levantando o cabinho da melancia simulando a atividade sexual. Mas não admite fazer “felatio” com a melancia porque afinal “ele não é desses”.

Figura 31 Machinha, quem??

O título Teoria Sociológica no criado mudo não impede a luta do jovem com a melancia numa disputa de poder: - Ah! Agora está querendo fugir é? Tá com medo, é?.. Cortando o cabo da melancia, exclama num flagrante freudiano da inveja feminina peniana gerando um duplo comportamento e uma pergunta na cabeça: afinal?... Claramente definido quem o macho na situação, recusa-se a ficar por baixo quando a melancia “sobe” sobre a genitália: - Você por cima não! E o penis penetra na melancia.

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Figura 32 A violencia da violação

Joaquim Pedro rompe a fala de Bazin que diz das duas impossibilidades do cinema: o orgasmo e a morte. Na cena supostamente filmada com uma câmera dentro da melancia e sob essa perspectiva, ele também responde aos filmes pornográficos do período com os quais não concordava. Atingido o clímax, o rapaz ataca a melancia a facadas, cortando-a, retalhando-a num festim “frutesco”, entregando-se ao prazer da morte/renascimento (la petit mort bazinniana) e, esfaqueando a “amada” literalmente come a fruta, recitando como em oração: - Bebo seu sangue, como a sua carne! Como no ato sagrado de sacrifício, o sangue bebido e a carne comida retorna à vítima na condição de infinititude, de um caráter ilimitado, pertencente a esfera do sagrado. É o desejante que cobiça o objeto desejado e ao desnudá-lo, quer penetrá- lo, dele se apropriar e despossuí-lo. São passados 14 minutos e 15 segundos do filme..

4ª Sequencia - Praça XV , saída para as barcas . Plano geral na praça com a estátua de D. João VI ao fundo. Pessoas se reúnem para ver espetáculo de artistas de rua, com primeiro plano no homem negro que come fogo (!) e no menino (6 anos??) de microfone de fio, cantando forró com a família de imigrantes nordestinos, com a mãe na zabumba, o pai no triângulo e o irmão mais velho na sanfona,

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marcando o ritmo num passo sincronizado, o que dá graça e leveza à cena, lembrando muito rapidamente ao espectador a tragédia que ali se opera.

Figura 33 O verdadeiro dr. Sylvana

A conversa dos jovens é sobre o festim “fruti-sexual” de fim de semana e as fantasias que acompanham O rapaz : o sono relaxante, a fantasia do poder do segredo de ser o esquartejador de melancias; o Dr Silvana com as características do “jovem intelectual de direita, feioso e tinhoso, daqueles meio-esnobes; aí dou umas aulas louquíssimas”. No bar, discutindo sobre a tese há a preocupação do fracasso: “O parentesco colateral entre os nordestinos emigrados na construção civil do Rio de Janeiro”; declara o rapaz de maneira pomposa e continua: - sabe aquele cara que toca piano depois de esquartejar a mulher? Pois é, só que o meu som é mais para Luiz Gonzaga, com uma conotação homosexy inevitável, uma loucura...(em tom contundente e tenso ), acho que vou acabar sendo reprovado e desrespeitado, além de tudo. A moça contrapõe a tensão do colega sugerindo uma pesquisa sobre a melancia e seu uso (dos dois jeitos!) na construção civil e pelos solitários da classe média,é best-seller, considera a amiga.

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Desqualificando a proposta da amiga o rapaz retruca que a melancia os operários comem (qualificando os operários como “eles” de maneira pejorativa), e no segundo jeito era capaz de ele ser comido. A moça faz um comentário ambíguo do colega e a fama que um livro assim traria, mas ele põe um ponto final no assunto, dizendo ser fiel à melancia, mandando ela buscar uma fruta, caso houvesse para mulher, ao invés de ficar frustrada e gorda. A cena seguinte mostra os dois na feira e descobrimos que A moça vai a busca de seu amante vegetal ideal com a ajuda do colega, um connoisseur do assunto. A moça com o livro de Literatura Brasileira nos braços vai descobrindo as várias utilizações de um tubérculo ou de uma banana (meio óbvia, considera com expressão enfadonha) analisando as contradições e disponibilidades que existem no mundo vegetal, como uma abobrinha excessivamente grande ou a cenoura que tem para todos os tipos. A cena da feira tem 3 minutos de duração. Em plano geral, com a câmera em travelling , o casal aparece de costas, andando de bicicleta nas margens da lagoa de Paquetá, ele com a melancia no bagageiro, ela com os legumes na cestinha/corta.

Figura 34. Placidez mentirosa.

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A voz de Nuno Roland sobe agradavelmente antiga na música Fim de Semana em Paquetá, com rotação mais lenta e gravação remixada, comparada com a original:

Esqueça por momentos seus cuidados E passe seu Domingo em Paquetá Aonde vão casais de namorados Buscar a paz que a natureza dá.

A moça não desiste: - Mas você acha que tem que ser solitário mesmo, quer dizer, só com uma pessoa e uma fruta ou uma pessoa e um legume? As variáveis que O rapaz apresenta não a satisfazem e ai ela radicaliza: - É... a mulher com dois legumes e o homem com uma fruta e um legume. Entre envergonhado e divertido, O rapaz rejeita a proposição feita e argumenta: - Não, nada disso, eu acho que o negócio é eu, você e os hortifrutigranjeiros. - Pode? pergunta A moça ansiosa. - Por mim, tudo bem! Diz O rapaz . - Genio! Agora, sem essa de esfaquear a melancia, tá legal?, lembra A moça. O rapaz responde rindo: - Não boba, a faca fica com você, só se precisar descartar alguma coisa. Camera em travelling com zoom out, abrindo para plano geral. - E...tem alguém te esperando em casa? pergunta ela insinuante, aproximando a bicicleta a d O rapaz. A resposta é imediata: - Tem uma melancia,... pela metade. Sobe a voz de Carlos Galhardo cantando Luar de Paquetá, composição de Freire Jr e Hermes Fontes, gravada em 1963. Panorâmica acompanhando o casal andando de bicicleta até sair de cena, que se mantém em travelling na lagoa, num lindo fim de tarde/corta.

Nessas noites olorosas quando o mar, desfeito em rosas se desfolha à lua cheia

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Figura 35. Intensidade escondida.

O filme acaba em estúdio, em plano geral, com Carlos Galhardo envolvido por “nereidas” cantando num cenário que falseia a praia da Ilha de Paquetá e o luar que dá título à música, típico das chanchadas nos anos de 1950.

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VEREDA TROPICAL

35mm / cor / 18 min / 1977

FICHA TÉCNICA

Produção- - Lynxfilm S.A.

Companhia produtora associada - -Editora Três

Produção - -César Mêmolo Júnior

Direção de produção- - Jeremias M Silva; Yara Nesti; Antônio Cristiano; Sérgio Mesquita

Argumento - -Pedro Maia Soares

Direção / roteiro / adaptação - -Joaquim Pedro de Andrade

Estória- - Baseada no conto "Vereda tropical" de Pedro Maia Soares

Direção de fotografia- - Kimihiko Kato

Montagem- - Eduardo Escorel

Figurinos / cenografia- - Pedro Nanni

Música- - Título da música: Verão em Paquetá I Intérprete: Carlos Galhardo

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ELENCO

Cláudio Cavalcanti (Professor) Cristina Aché (Aluna) Carlos Galhardo (Cantor)

PRÊMIOS

Selecionado para o Festival New Directors, New Film, NY

Selecionado para a Quinzena dos Realizadores de Cannes

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5. CONCLUSÃO

O objeto desse trabalho foi o estudo do erotismo como aspecto interdito e transgressor, recurso imagético de denúncia social presente na obra do cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Usou-se dois de seus filmes – O Padre e a Moça e Vereda Tropical , o primeiro baseado no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade e o segundo no conto premiado de Pedro Maia Soares para o concurso da revista Status. Joaquim Pedro de Andrade é um dos fundadores do Cinema Novo e representante característico da alta burguesia nacional. Privou familiarmente dos grandes nomes da cultura do país e era um apaixonado por literatura. Essa paixão ele transformou-a em filmes, desconstruindo literatura e produzindo cinema autoral a partir do referencial imagético que apresenta de forma transgressora e crítica, sua maneira eloquente de dar visibilidade às obscenidades contidas num cotidiano cruel em suas desigualdades sociais. O cinema de Joaquim Pedro de Andrade não é para principiantes, numa analogia à frase jobiniana. Comprometido com o pensamento de esquerda, é um cineasta de referências culturais e utiliza-as em seus filmes como o estandarte que, na história, precede os grandes líderes. Também não é um cineasta para a massa, sua produção fílmica é esteticamente elaborada, acentuando na cenografia referencias culturais que levam a uma identificação incômoda pelo espectador. Cineasta de seu tempo, crítico das grandes narrativas históricas, apresenta seu avesso, tornando visível a obscenidade que delas fazem parte. É um cineasta brasileiro que por meio da crítica aos símbolos da cultura nacional, desconstrói o imaginário existente. O drama O padre e a moça produzido em 1966 reflete as agitações vividas no Brasil nesse período. O verso que encanta o cineasta: “ negro amor de rendas brancas” é a imagem do contraste, dos contrários que mobilizam o cineasta. O Brasil vive a euforia do desenvolvimento – o filme se passa numa cidadezinha perdida na região de Diamantina, Minas Gerais, sobrevivente do período aurífero que assolou a região no início do século. O país está sob domínio militar com centralização de poder, repressão e censura a todos os meios de comunicação; no filme, a cidade é controlada por Honorato, dono da mina exangue,

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do armazém e do bar, com total ascendência sobre os moradores, com quem a moça se relaciona quase incestuosamente. O espaço cênico, interno e externo, de sombras e penumbras, rochas e aridez, remetem o espectador à realidade de seu tempo. No país, a classe burguesa e a elite industrial com medo do movimento grevista e reivindicatório apóiam o regime militar. No filme, Vitorino, o farmacêutico, consciente da situação, embebeda-se frente ao comportamento conformado e subserviente do povo, ele mesmo incapaz de se confrontar com o poder. No país, particularmente no sudeste, a ascensão da classe média negra é uma realidade, o que explicita a questão do racismo jamais assumido pelo ideário nacional. No filme, Joaquim Pedro trabalha com os contrastes dos personagens: a luminosidade de Mariana frente à negritude da batina, “negro amor de rendas brancas”. No país, a juventude urbana das capitais do sudeste vive o conflito de gerações, rompendo com os valores da “tradicional família brasileira”. No filme, Mariana brilha com sua beleza e juventude, recusa a fantasia da aprovação social quando se nega a casar com Honorato e explicita para o padre o desejo de tê-lo como homem que, jovem e lindo, rompe com o que apresenta – o negro, a morte, o fatalismo da vida - e representa – a recompensa divina por meio do sofrimento e da castidade, e a ela se entrega. São queimados, em sacrifico, redimindo os pecados da cidade e do país. Em 1977, 11 anos depois, em tempos de início de abertura política num país que lambe suas feridas e sua ressaca sexual fílmica, com o fim da censura e o exercício da liberdade buscada, qualquer que ela fosse, Joaquim Pedro de Andrade filma o curta porno-erótico Vereda Tropical, adaptação sua do conto premiado para a revista masculina Status. No ambiente bucólico da ilha de Paquetá um jovem professor no final de preparação da tese se relaciona sexualmente com uma melancia. Todo o filme é um arranjo perfeito para o deleite visual do espectador. O fundo musical com Gregório Barrios, Nuno Roland e Carlos Galhardo, cantores dos anos dourados, aparenta uma certa nostalgia do período. Mas, em se tratando de Joaquim Pedro, o cineasta do avesso, é só aparência. Em contradição flagrante – imagem e som – o filme reflete as mudanças no comportamento sexual da juventude de classe média, seus medos e escolhas frente

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à liberdade tão duramente conquistada; uma sexualidade transgressiva, que se coloca frente ao sujeito, ele e ela, com a qual ainda não se sabe lidar e que a sociedade torna-a interdita, porque a teme: o direito do prazer sexual sem o ônus das convenções sociais. A escolha da fruta pelo jovem professor é uma saída para o desgaste de relacionamentos. Namoradas são um problema, a definição da sexualidade também. Melancia não dá trabalho, é preciso só um pouco de imaginação. O “defloramento” da fruta no início do filme é um primoroso recorte do modelo machista que ainda permanece presente na juventude brasileira e o ataque sanguinário àquela que lhe deu prazer, além da desvalorização moral, indica o quanto o prazer é pecaminoso, “bebo seu sangue, como a sua carne”. A situação exige um exercício de poder frente à continuidade rompida e é na violência da morte que se restabelece a continuidade do ser único, ainda que descontínuo.. A figura feminina criada pelo cineasta se envolve de maneira curiosa com a possibilidade de prazer com vegetais. O cineasta, aqui, é menos severo com o feminino, apresentando-o como mais facilmente permeável ao novo. A discussão sobre o uso da melancia como adendo à tese “O parentesco colateral entre os nordestinos emigrados na construção civil do Rio de Janeiro”; é uma espetada na inteligentzia nacional, mas também uma revelação dos conflitos sexuais que vive o jovem: “ eu acabava sendo comido!”. A amiga se insinua com a possibilidade do prazer, mas quem leva a melhor é a melancia. Joaquim Pedro é um cineasta transgressor, o cotidiano é seu alimento. É o cineasta do que não está dito, o obsceno o atrai. É no rompimento de limites que constrói sua obra e a alimenta, suprimindo os limitantes imageticamente. E o que é o erotismo senão a supressão dos limites entre os seres: a busca da fusão, da continuidade? Produto de sua classe social traz a contradição dos modernistas e da esquerda nacional: há sempre um ranço aparentemente saudosista no seu trabalho. Não é. É um cineasta inconformado com o discurso existente, desconstruindo nas adaptações literárias com que trabalha, a superficialidade que iguala o que não é igual, sua práxis dialógica refaz continuamente os caminhos do Brasil, explicitando suas contradições.

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6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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7. ANEXOS

O PADRE, A MOÇA

Carlos Drummond de Andrade Lição de Coisas . Editora José Olympio, março de 1962

1. O padre furtou a moça, fugiu Pedras caem no padre, deslizam A moça grudou no padre, vira sombra, aragem matinal soprando no padre. Ninguém prende aqueles dois, Aquele um Negro amor de rendas brancas. Lá vai o padre, atravessa o Piauí, lá vai o padre, bispos correm atrás, lá vai o padre, lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre, diabo em forma de gente, sagrado.

Na capela ficou a ausência do padre E celebra a missa dentro do arcaz. Longe o padre vai celebrando vai cantando todo amor é o amor e ninguém sabe onde Deus acaba e recomeça.

2. Forças volantes atacam o padre, quem disse que exércitos vencem o padre? Patrulhas rendem-se O helicóptero desenha no ar o triângulo santíssimo, o padre recebe bênçãos animais, ternos relâmpagos douram a face da moça. E no alto da serra O padre entre as cordas da chuva o padre no arcano da moça o padre.

Vamos cercá-los, gente, em Goiás Quem sabe se em Pernambuco? Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá Pelotas em pé no caminho da BR 15 com seu rosário na mão lá vai e a moça vai dentro dele, é reza de padre.

Ai que não podemos contra vossos poderes

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guerrear ai que não ousamos contra vossos mistérios debater ai que de todo não sentimos contra vosso pecado o fecundo terror da religião.

Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos.

3. E o padre não perdoa: lá vai levando o Cristo e o Crime no alforje e deixa marcas de sola de poeira. Chagas se fecham, tocando-as, filhos resultam de ventre estéril mudos e árvores falam tudo é testemunho Só um anjo de asas secas, voando de Crateús, senta-se à beira-estrada e chora porque Deus tomou o partido do padre.

Em cem léguas de sertão é tudo estalar de joelhos no chão é tudo implorar ao padre que não leve outras meninas para seu negro destino ou que leve tão leve que ninguém lhes sinta falta, amortalhadas, dispersas na escureza da batina.

Quem tem sua filha moça padece muito vexame; contempla-se numa poça de fel em cerca de arame.

Mas se foi Deus quem mandou? Anhos imolados

não por sete alvas espadas mas por um dardo do céu: que se libere esta presa à sublime natureza de Deus com fome de moça. Padre, levai nossas filhas!

O vosso amor, padre, queima como fogo de coivara não saberia queimar.

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E o padre, sem se render ao ofertório das virgens, lá vai, coisa preta no ar.

Onde pousa o padre é Amor-de-Padre onde bebe o padre é Beijo-de-Padre onde dorme o padre é Noite-de-Padre mil lugares-padre ungem o Brasil mapa vela acesa.

4. Mas o padre entristece. Tudo engoiva em redor. Não, Deus é astúcia, e para maior pena, maior pompa. Deus é espinho. E está fincado No ponto mais suave deste amor.

Se toda a natureza vem a bodas, e os homens se prosternam, e a lei perde o sumo, o padre sabe o que não sabemos nunca, o padre esgota o amor humano.

A moça beija a febre do seu rosto. há um gládio brilhando na alta nuvem que eram só carneirinhos há um instante. – Padre, me roubaste a donzelice ou fui eu que te dei o que era dável? Não fui eu quem te amei como se ama Aquilo que é sublime e vem trazer-me, rendido, o que eu não merecia mas amava? Padre, sou teu pecado, tua angústia? Tua alma se escraviza à tua escrava? És meu prisioneiro, estás fechado em meu cofre de gozo e de extermínio, e queres liberar-te? Padre, fala! ou antes, cala. Padre, não me digas que no teu peito amor guerreia amor, e que não escolheste para sempre.

5. Que repórteres são esses entrevistando um silêncio? O Correio, Globo, Estado Manchete, France-Presse, telef otografando o invisível?

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Quem alça cabeça pensa e nas pupilas rastreia uma luz fosforescente responde não? Quem roga ao padre que pose e o padre posa e não sente que está posando entre secas oliveiras de um jardim onde não chega o retintim deste mundo? E que vale uma entrevista se o que não alcança a vista nem a razão apreende é a verdadeira notícia?

6. É meia-treva, e o Príncipe baixando entre cactos sem mover palavra fita o padre na menina-dos-olhos ensombrada. A um breve clarear, o Príncipe, em toda sua púrpura como só merecem defrontá-lo os que ousam um dia. Os dois se medem na paisagem de couro e ossos estudando-se. O que um não diz outro pressente. Nem desafio nem malícia nem arrogância ou medo encouraçado: o surdo entendimento dos poderes.

O padre já não pode ser tentado.

Há um solene torpor no tempo morto, e, para além do pecado, uma zona em que o ato é duramente ato. Em toda a sua púrpura o Príncipe desintrega-se no ar.

7. Quando lhe falta o demônio e Deus não o socorre; quando o homem é apenas homem por si mesmo limitado, em si mesmo refletido; e flutua vazio de julgamento no espaço sem raízes; e perde o eco de seu passado,

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a campainha de seu presente, a semente de seu futuro; quando está propriamente nu: e o jogo, feito até a última cartada da última jogada. Quando. Quando. Quando.

8. Ao relento, no sílex da noite, os corpos entrançados transfundidos sorvem o mesmo sono de raízes e é como se de sempre se soubessem uma unidade errante a convocar-se e a diluir-se mudamente Mas de rompante a mão do padre sente o vazio do ar onde boiava a confiada morna ondulação A moça, madrugada, não existe O padre agarra a ausência e eis que um soluço humano, desumano e longiperto trespassa a noitidão a céu aberto

A chama galopante vai cobrindo um tinido de freios mastigados e de patas ferreadas, e em sete freguesias passa e repassa a grande mula aflita. Urro de fera fúria de burrinha grito de remorso choro de criança ?

Por que Deus se diverte castigando? Por que degrada o amor sem destruí-lo? e a cabeça da mula sem cabeça ainda é o rosto de amor, onde sem sigilo a ternura defesa vai flutuando? Um rosto de besta entre as ciências do padre entre as poderosas rezas do padre nenhuma para resgatá-lo Resta deitar a febre na pedra e aguardar o terceiro canto do galo No barro vermelho da alva a mão descobre

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o dormir de moça misturado ao dormir de padre.

9. E já sem rumo prosseguem na descrença de pousar, clandestinos de navio que deitou âncora no ar

Já não se curvam fiéis vendo réprobo passar, mas antes dedos em sustos implantam a cruz no ar

A moça, o padre se fartam da própria gula de amar O amor se vinga, consome-os laranja cortada no ar.

Ao fim da rota poeirenta ouve-se a igreja cantar Mas cerraram-se-lhe as portas e o sino entristece no ar.

O senhor bispo, chamado com voz rouca de implorar, trancou-se na sua Roma de rocha, castelo de ar.

Entre pecado e pecado há muito de epilogar. Que venha o padre sozinho, o resto se esfume no ar.

Padre e moça de tão juntos não sabem se separar. Passa o tempo no destinguo entre duas nuvens no ar.

10. E de tanto fugir já fogem não dos outros mas de sua mesma fuga a distraí-los. Para mais longe, aonde não chegue a ambição de chegar: área vazia no espaço vazio sem uma linha uma coroa um D.

A gruta é grande

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e chama por todos os ecos organizados.

A gruta nem é negra de tantos negrumes que se fundem nos ângulos agudos a gruta é branca, e chama.

Entram curvos, como numa igreja feita para fiéis ajoelhados. Entram baixos terreais na posição dos mortos, quase. A gruta é funda a gruta é mais extensa do que a gruta o padre sente a gruta e o padre invade a moça a gruta se esparrama sobre o musgo, o calcário, o úmido medo à maneira católica do sono.

Primas de luz primeira despertando de uma dobra qualquer de rocha mansa. Cantar angélico subindo em meio a cega fauna cavernícola e dizendo de céus mais que cristãos sobre o musgo, o calcário, o úmido medo da condição vivente Que perdão mais solene se humaniza e chega à provação e paira em benção? Que festiva paixão lança seu carro de ouro e glória imperial para levá-los à presença de Deus feita sorriso? Que fumo de suave sacrifício lhes afaga as narinas? Que santidade súbita lhes corta a respiração, com visitá-los? Que esvair-se de males, que desfal ecimentos teresinos? Que sensação de vida triunfante no empalidecer de humano sopro contingente?

Fora ao crepitar da lenha pura e medindo das chamas o declínio, eis que perseguidores se perseguiam.

Retirado de : http://www.filmesdoserro.com.br/film_pm.asp

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CONTO VEREDA TROPICAL

Pedro Maia Soares Publicado na Revista Status , 1976 e republicado na Revista Ácaro nº2, 2003

Amo melancias. Gosto de possuí-las ao fim da tarde, quando vem chegando a penumbra, de pé, sobre a mesa da cozinha, no sofá, onde é mais aconchegante, ou deitado no tapete da sala, onde podemos rolar de um lado para o outro. Prefiro as longas, escuras, rajadas, mas são difíceis de encontrar. Por isso, quase sempre tenho uma das redondinhas comigo. Faço um orifício pouco profundo, o suficiente apenas para remover a casca. Depois penetro-as, sentindo a carne vermelha se desmanchar, deixando escorrer um líquido fresco e doce. Com as mãos, seguro o outro lado, acariciando o lugar do cabo. Bem lavadas e lustradas, elas são macias ao tato, as mãos escorregam pelo arredondado da forma. Eu pressiono mais pra dentro, sinto as sementes me envolvendo e ouço o ruído da carne que se esfacela. Com as longas é possível possuí-las dos dois lados, sempre com o mesmo resultado. Não encontro o primeiro furo, é preciso fazer tudo de novo, o prazer é total. Com as pequenas, em compensação, ao penetrar do lado oposto, o líquido escorre também pelo buraco anterior, de modo que posso senti-lo em meus dedos, úmido, frio, pegajoso. Tentei melões: são pequenos demais, pouco carnudos e pálidos. Experimentei abóboras, mas machucaram-me de tão duras. Berinjelas, mamões, abacates, sempre a mesma insatisfação. Por isso volto às minhas queridas melancias, ao velho e sempre renovado prazer. Compro-as na feira e levo-as para casa debaixo do braço, dissimulando o desejo que cresce. Sinto-me meio obsceno com meu objeto ao lado assim exposto, em contato com minhas axilas. Mal posso conter a vontade de acariciá-la. Em casa dou-lhe um banho bem cuidadoso, esfrego um pouco de talco, encosto meu rosto em sua pele macia e, quando consigo conter o desejo, fico à espera do grande momento, ao fim da tarde. Às vezes, deixo-me levar pelas perversões. Depois de fazer o orifício, não a possuo logo: mordo sua carne rubra, chupo-lhe o caldo, introduzo minha língua em movimentos circulares e vou enchendo minha boca de saliva e semente, suco e bagaço. Fico com o rosto encharcado, perco a cabeça. Atabalhoadamente monto sobre ela, forço suas entranhas e estremeço de prazer. Depois, deitado sobre o tapete, descanso um pouco. Mas sub-repticiamente escavo outra parte de seu corpo com meus dedos e fico remexendo lá dentro. É meu tônico revigorante: em breve estou pronto para amá-la de novo. Mais tarde, extenuado e nu, dou 15 facadas em meu amor, retalho-a em pedaços e como-a sofregamente, sentindo a baba escorrer pelos meus ombros abaixo.

Retirado de : http://www.filmesdoserro.com.br/film_pm.asp