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Este estudo analisa o ser histórico-temporal da pedagogia criada e organizada por Wolfgang Ratke para as regiões de língua alemã, no início do século XVII. Sua proposta de “educação para todos” e sua arte de ensinar precedem à didática de Comênio e fundam-se no pensamento burguês. A análise tem por objeto as atividades educacionais de Ratke a partir da abordagem da categoria singular/ universal. Neste sentido, o capital comercial e sua ideologia singularizam-se nas atividades de uma educação generalizada, organizada à luz da natureza, para todos os filhos da religião luterana. Entretanto, seu método de ensino, objetivo, eficiente, operacional, prático e utilitário, inscreve-se na produção material da manufatura

Palavras-Chave: Realismo Pedagógico Moderno, Escola Pública Religiosa e Pensamento Burguês, Arte de Ensinar, Educação, Categoria Singular/Universal.

This study analyzes the historical-temporal being of the pedagogy created and organized by Wolfgang Ratke at the dawn of the XVII century, for the German-language regions. His proposal for the “education for all” and his art of teaching preceded Comenio’s didactics are founded in bourgeois thinking. The objects of the analysis are Ratke’s educational activities starting from the working category of the singular/universal. In this sense, commercial capital and its ideology were singularized in a generalized education organized in the light of nature for all the sons of Lutheranism. However, his method of teaching, objective, efficient, operational, practical and utilitarian, is inscribed in the manufactured material production.

Keywords: Modern Pedagogical Realism, Religious Public Schooling and Bourgeois Thought, The Art of Teaching, Education and the Singular/Universal Category.

38 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. O Ser Histórico-Temporal da Pedagogia de Ratke Através da Categoria Singular/Universal

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Doutor, Professor da Clarear as idéias e práticas educacionais do pedagogo Universidade do Introdução Contestado (UnC) alemão Wolfgang Ratke (Ratichius), que propôs e exe- cutou seu método de ensino no início do século XVII, através dos holofotes da atualidade, tem algum signi- ficado? A resposta é afirmativa à medida que Ratke, funda- do no método de Descartes e de Bacon, foi o precursor de Comênio; à medida que ele e Comênio inauguraram uma prática educacional renovadora e tiveram suas propostas efetivadas plenamente em séculos posterio- res quando as nações se preocuparam em criar siste- mas educacionais de ensino; à medida que Ratke pre- tendeu a universalização do ensino em nome da reli- gião reformada, a luterana, e tendo os mesmos objeti- vos da Ratio Studiorum dos jesuítas da Contra-Refor- ma; e à medida que ali se encontra a origem ou utili- zação de muitos aspectos educacionais recriados em tempos neoliberais, a começar com a frase: Educação para Todos! O tema deste estudo é a atividade de Ratke entendi- da em seu ser histórico-temporal, especificamente sob o aspecto da categoria singular/universal.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. 39 A repercussão da pedagogia ra- “Todas as crianças e todos os jovens, devem tiquiana em tempos neoliberais encon- com toda a seriedade serem mantidos na esco- la. Os pastores e os professores devem esfor- tra-se nas conferências sobre o tema çar-se para que nas aldeias e nas cidades to- “Educação para Todos”, realizadas em dos aprendam a ler, escrever e contar. É obri- Jomtien, na Tailândia, em 1990, em gação do Estado e dever de toda a comunida- de” (Id., art. 16). Nova Delhi, na Índia, em 1993 em Ratke tem em vista a educação para Pernambuco, Brasil, no ano 2000; tam- todas as crianças e todos os jovens. Seus objetivos educacio- nais apontam para três dimensões ar- "... Os pastores e os professores devem esforçar-se ticuladas: as fun- para que nas aldeias e nas cidades todos aprendam ções do Estado, a organização da es- a ler, escrever e contar. É obrigação do Estado e cola e a arte de en- dever de toda a comunidade." sinar. Em relação às funções do Estado: bém na de Dakar, em 2000. Os encon- - a organização e manutenção da es- tros deram origem às diretrizes educa- cola pública, obrigatória, gratuita e cionais adotadas pelo Governo brasilei- unitária; Lutero (1517) adaptara o ro nos últimos dez anos. A mudança Estado às realidades da Reforma; constitucional nº 14/96 possibilitou o Ratke (1612) coloca a igreja e a esco- surgimento de documentos emanados do la cristã sob o domínio do Estado: “As Ministério da Educação e do Desporto escolas devem estar organizadas à com o fim da efetivação dessas estraté- imagem do governo” (Ratke. O Trata- gias. Toda a legislação brasileira sobre do das Funções do Governante); educação na última década seguiram os - a impressão de livros didáticos; Ratke princípios do neoliberalismo. Essa reto- e seus colegas elaboraram dezenas de mada do método de ensino e da pedago- manuais didáticos, impressos pelo gia de Ratke em tempos posteriores in- Estado e distribuídos gratuitamente. clusive em tempos neoliberais já foi as- - bolsas de estudo concedidas pelos sunto de análise em outros trabalhos príncipes às crianças pobres; publicados 1. - a preocupação com a formação dos Para que o leitor possa formar-se uma professores; idéia sobre a atualidade dos temas de Essa primeira dimensão articula-se Ratke, resumiremos alguns aspectos de à organização da escola: sua pedagogia. - o compromisso com a universalização da educação exigia uma diminuição dos custos. Ratke utilizou manuais escola- res e criou um novo método a fim de 1. Teorias e Atividades obter economia de tempo e de recursos “É deverPedagógicas do pastor anunciar de Ratkedo púlpito o iní- humanos. Este “barateamento do ensi- cio das aulas e citar o nome de todas as crian- no” 2 provém da forma manufatureira ças em idade escolar” (RATKE. Regulamento de , art. 1º). de produção aplicada ao ensino : “Tam-

1 “O Compromisso com a educação: proposta de Ratke e do neoliberalismo”- ANPED, 23ª R. Anual, 2000 (CD-ROM); “O Método de Ratke: origem dos temas pedagógicos utilizados em tempos neoliberais”, XI Jornadas de Historia de la Educación, Quilmes, 1999; “A Pedagogia de Ratke: expressão da consciên- cia social, formada na manufatura”, SBPC, Reunião Anual, Porto Alegre, 1999. 2 O conceito “barateamento do ensino” foi criado por ALVES em seu estudo sobre a pedagogia de Comênio. Encontra-se no livro recém editado “A Produção da Escola Pública Contemporânea”. 40 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. bém é muito barato o fato de que os - o controle uniforme sobre a classe: rapazes sejam colocados na mesma sala, “Isso para que o preceptor não deixe ao mesmo tempo e juntos aprenderem mais sentado o aluno aprendendo por a mesma coisa” (RATKE. Regulamento si” (Id., ibid.). A administração esco- de Weimar, art. 6º); lar tem esta função de uniformizar o - o método operacional na organiza- trabalho, de acordo com a consciên- ção das escolas; cia social formada na manufatura : - a centralização racional das ativi- “Cabe ao professor ensinar para o dades escolares; conjunto de alunos e tirar um perío- As duas dimensões precedentes rela- do em que ele próprio faz a leitura, cionam-se com o método de ensino cria- mas nunca para um aluno isolado; do por Ratke: deve fazer, também, a introdução às - o método de trabalho utilizado nas lições. Nunca fazê-lo apenas para um manufaturas serviu para inspirar seu aluno; sempre para todos, de uma só método do ensino (a arte de ensinar). vez e ao mesmo tempo” (Id. Ibid.); O princípio manufatureiro 3 de sua - o reforço das lições nas sextas-fei- pedagogia reflete-se no objetivo geral ras; de Ratke: que “os moços e moças se- - os manuais escolares nas mãos de jam colocados juntos no mesmo lugar cada aluno. e ao mesmo tempo a fim de aprende- - o método intuitivo (lição das coisas) rem a mesma coisa com o mesmo e o ensino monitorial (“para-profes- professor; é mais barato” (Id. Ibid.); sores ”); - o ensino mútuo - bem antes de - a ênfase dada à forma de ensinar Lancaster e Bell - “As letras, as síla- (“arte de ensinar ”); bas, as frases e as leituras devem ser - a construção de um pensamento ensinadas em conjunto; os alunos mais único, através da educação escolar; engenhosos podem ajudar os menos - a educação profissional para os instruídos; as melhores cabeças aju- empregos. dem os que têm mais dificuldades. Os - a utilidade prática dos ensinos esco- professores devem aprontar mais ra- lares : “Was nützt es?” (Para que ser- pidamente os melhores com o intuito ve?), é a pergunta de Ratke aos con- de estes poderem ajudar os colegas. E teúdos escolares. Todo o ensino diri- com os mais atrasados os professores ge-se à utilidade 4. devem tentar uma forma de aceleração com a ajuda dos colegas mais instruídos” ..."Também é muito barato o fato de que os rapazes (Ratke. Introdu- sejam colocados na mesma sala, ao mesmo tempo e ção à Arte de En- sinar); juntos aprenderem a mesma coisa."

3 A articulação entre o método de ensino comeniano e a produção manufatureira é feita pela primeira vez por ALVES, no seu livro citado. 4 A utilidade prática do ensino manifesta-se na pedagogia ratiquiana quando os alunos, depois de terem aprendido algo, são obrigados a observar in loco a coisa aprendida ou fazer experiências práticas. Verdadeira “lição das coisas” que liga o conceito à prática e à utilidade. Ao ler uma questão do ENEM, em agosto de 2001, fiquei em dúvida se ela pertencia à avaliação do ensino fundamental ou se a estava lendo num dos textos de Ratke. A questão é a seguinte: “Como se calcula o volume de madeira contido num tronco de árvore, tanto pela forma matemática quanto pela fórmula prática dos madeireiros”. Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. 41 Este estudo considera o pensamento Lutero havia trazido uma esfera de de Ratke um pensamento enraizado na renovação, reproduzindo as obras sa- ideologia burguesa. gradas em alto alemão. O ardor pedagó- gico em língua neerlandesa não era imitado nas regiões de língua alemã, divididas e decadentes. A língua alemã ainda não possuía identidade, (V. 2. O Pensamento Burguês THIELE. Ap. Rioux, p. 224), apesar de No final do séculode Ratke XVI, Ratke embar- Lutero, Friez, Paracelso, Dührer e mui- ca para Londres a fim de completar seus tos outros terem escrito obras na lín- conhecimentos científicos e encontra as gua original. Junto com o príncipe primeiras obras publicadas por Francis Ernesto de Weimar, Ratke ajudou a fun- Bacon, cuja influência sofreu, principal- dar a “Sociedade Frutuosa”, uma enti- mente em seus “Aforismos” que se iden- dade rosa-cruz a serviço da pureza do tificam com os aforismos do “Novum alto alemão. Organum”. Na sua estada em Ratke Da Inglaterra, Ratke vai a Ams- viu um comércio colonial florescente terdam em 1603 onde ficará oito anos. a gerar riqueza; a população estava Principal cidade da mais rica das sete feliz e os sábios estrangeiros afluíam províncias protestantes confederadas a esta cidade. (Ratke. Cartas. In: ISING, depois de 1579, Amsterdam é o princi- p. 4). A cidade-nação deu-lhe a visão pal centro do comércio mundial e um de uma nação unida, protestante e pro- local de âmbito cultural nacional e in- gressista. A rica vida dos cidadãos ternacional, cujas célebres impressoras neerlandeses e seu próspero comércio divulgavam todas as novidades (V. entusiasmaram o pedagogo que, na Ale- RIOUX, 1963, p. 13). Na sua estada em manha, só via divisões de estados e Amsterdam, de 1603 a 1610, o pedagogo decadência nos negócios em seus por- compreendeu melhor a importância do tos fluviais. No ano de sua chegada a papel da língua nacional para o desen- Amsterdam, Ratke viu nascer a Com- volvimento humano porque nessa gran- panhia Holandesa das Índias Orientais, de cidade, “uma das capitais intelectu- fundada nos moldes e na concorrência ais e comerciais do mundo” (RIOUX, p. da companhia inglesa e, alguns anos 223), desenvolvia-se o cultivo da lín- depois, soube da fundação do Banco de Amsterdam. Do lado alemão, os estados encon- travam-se despe- Ratke embarca para Londres a fim de completar seus daçados politica- conhecimentos científicos e encontra as primeiras mente, divididos entre calvinistas, obras publicadas por , cuja influência protestantes e ca- sofreu, principalmente em seus “Aforismos”... tólicos, dominando gua neerlandesa com muita pureza e a poderosa Liga Católica, de um lado, e riqueza. Amsterdam tinha uma Câma- a União Protestante, de outro. A espe- ra de Línguas (Riderijskers-Kammern), rança de Lutero para a melhoria das no começo do século XVII, para defen- massas não se realizara e devia ser der a pureza da língua e difundir seu renovada. As lutas fratricidas da Ale- valor. Ratke pretendia unificar a na- manha nada tinham a ver com a “Paz ção alemã e reerguer a língua a quem Perpétua de Augsburgo” pois a Con-

42 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. tra-Reforma pretendia modificar a car- trata de ser ambicioso e obediente. Ratke es- ta geográfica do Império e a Reforma creveu seu livro (A Doutrina da Ética nas Escolas Cristãs) vinte anos após esta experi- não podia perder seus principados. Os ência em Amsterdam. Nesse meio tempo par- príncipes católicos e protestantes lu- ticipou de trabalho reformador riquíssimo e tavam para manter seus territórios ad- fecundo nos principados alemães, em cidades grandes com forte burguesia progressista. quiridos, baseados no princípio “cujus Também participou de experiências com go- regio illius et religio” (a religião pertence a quem pertence o reino) Ratke, nas suas obras reformadoras, acrescentou que, por sua vez, foi uma das res- a seu pensamento vários exemplos que se referiam ponsáveis pelas ao fenômeno de transformação e de nova guerras religiosas (V. RIOUX, 1963, p. 17). significação do “espírito burguês”... vernos, alguns bem-intencionados, outros pre- SCHMIDT, o editor do livro “A Dou- sunçosos, tendo a influência negativa contra trina da Ética nas Escolas Cristãs” (Die si as diferentes confissões e forças espirituais SittenLehr de Cristlichen Schule), e os efeitos da Guerra dos Trinta Anos” posiciona-se no mesmo pensamento de (HOFMANN, 1974, p. 9). As condições nas cidades alemãs cons- Rioux e afirma que os neerlandeses, tituíam para ele exemplo negativo de na Europa do começo do século XVII, efeitos que necessitavam ser modifica- tinham chegado, por primeiro, ao po- dos na condução da vida material. Sua der comercial e ao auge da circulação ética firma o passo que leva a um mun- de dinheiro. Acrescenta que a totalida- do em que o homem “ fica enredado na de social, descrita na literatura cientí- malha da série causal” (Id., p. 10 ) a fica, referente à formação urbano-fede- colocar-lhe questões urgentes: rativa da cidade/Estado de Amsterdam, Como, neste mundo em que domina a torna-se visível na obra de Ratke. A necessidade mais premente, é possível construção sócio-política de uma nação um comércio ético (isto é, livre comér- sempre vem acompanhada de uma pro- cio)? Como o mundo deve atuar nesta posta de progressivo conjunto de vida rede a fim de conduzir-se no bem, agra- ético. Ratke, nas suas obras dável a Deus e alcançar a felicidade e a reformadoras, acrescentou a seu pen- graça de Deus? O que se deve fazer samento vários exemplos que se refe- para trazer à harmonia a consciência riam ao fenômeno de transformação e subjetiva na objetividade do comércio de nova significação do “espírito bur- exterior? De um lado, comportar-se guês”, a partir de seu nascimento de conforme os desígnios de Deus e, de pais “burgueses honrados” e de suas outro, executar tarefas e obrigações experiências em Amsterdam. Do pen- públicas que se desviam de concepções samento burguês surgiram as suas in- ligadas à tradição. A ética de Ratke é tenções de formação política e pedagó- uma tentativa para dar resposta solí- gica. A concepção de mundo de Ratke cita e bem fundada a estes aspectos (V. movimentou-se principalmente ao re- Id., p. 9). dor dos homens e da formação daquele Tendo devolvido o pensamento de tempo: “Enraizado profundamente na tradição Ratke a seu lugar de nascimento, é pre- luterana e inscrito na continuação do pensa- ciso verificar que as idéias burguesas mento da reforma do século XVI, viveu o desta época não eram uniformes; eram ideário calvinista da sociedade da nascente sim ambivalentes. concorrência capitalista, na qual o homem

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. 43 Renascimento e a Modernidade firma- ram o conceito do individualismo au- 3. Ambivalência e Diversidade tônomo que, na versão religiosa das seitas e do luteranismo, se expressou No texto “O Pensamento Burguês na do Pensamento Burguês em que todo indivíduo, não somente o Escola Pública Religiosa” 5 conclui-se que, sacerdote, é representante de Deus na nos séculos XIV a XVII, as idéias dos terra. homens pertencentes à alta burguesia O pensamento burguês de Lutero, estavam identificadas com as dos pen- como bom humanista, alinha-se à ideo- sadores humanistas e com a ideologia logia da alta bur- guesia; o seu cará- ter ambivalente provém do fato que Os comerciantes e os financistas não tinham que apoiou os príncipes cumprir nenhuma tarefa histórica verdadeiramente contra os campone- ses, assumindo um revolucionária porquanto queriam a prevalência da compromisso com o feudalismo. doburguesia, Estado - mas uma não união o burguesaaniquilamento pro- do feudalismo... Na Holanda, a tendência a favorecer gressista, mas também ambivalente. Os as classes possuidoras na ordem econô- comerciantes à longa distância e os fi- mica tinha seu equivalente em termos nancistas – alta burguesia – não tinham ideológicos. A doutrina da predestinação que cumprir nenhuma tarefa histórica não servia ao alto patriciado, que se verdadeiramente revolucionária por- misturava com o feudalismo, e que pro- quanto queriam a prevalência da bur- curava a liberdade de indivíduos sacia- guesia, mas não o aniquilamento do feu- dos; servia-lhes, sim, frente ao povo e dalismo porque o clero e a nobreza eram para o povo de quem temiam a liberda- os grandes compradores de suas mer- de: a predestinação tinha forte conteú- cadorias e porque não intervinham na do social, de negação da liberdade. produção, mantendo o comércio como Na Inglaterra, na época da revolução condição fundamental. Logo, não tinham burguesa, os independentes combatiam programa para o futuro além de recea- a alta hierarquia eclesiástica e a rem os movimentos revolucionários do predestinação dos reacionários patrícios povo. Era a liberdade de burgueses sa- presbiterianos. Milton também comba- ciados que pouco tinha a ver com a con- teu a doutrina da predestinação que, na cepção de liberdade da pequena e média sua opinião, não servia ao capitalismo burguesia. manufatureiro. Os artesãos, camponeses, pobres e Na Holanda, no início do século XVII, membros das seitas, no entanto, não a massa da burguesia manufatureira e queriam mais viver como estavam vi- do povo aderiu ao calvinismo, mas uma vendo; principalmente, não queriam parte dela começa a adotar idéias mais produzir e reproduzir a vida ma- racionalistas próprias do direito natu- terial como estavam fazendo. Seu objeti- ral. A emancipação da religiosidade vo era revolucionar. irracionalista do calvinismo encontrou Junto ao pensamento racional – cuja seu ideólogo em Grócio, a despeito de base estava na racionalização do mer- sua origem patrícia. cado e no cálculo do comércio - o

5 O texto faz parte de vários outros que serão publicados pelo HISTEDBR. 44 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. Grócio fundou uma nova forma de XVII, o que contava eram as contínuas pensar: racionalista e burguês moder- preparações para as guerras religiosas. no. A realidade é que a burguesia O tesouro nacional estava voltado para manufatureira holandesa já havia saí- área militar. As condições materiais e do da acumulação fanática e desenvol- os recursos financeiros não estavam via a produção e o comércio de forma dirigidos à expansão do ensino. estável. Havia desaparecido o fanatis- A ambivalência do luteranismo, não mo irracional do ascetismo acumulativo. como religião mas como pensamento Um frio racionalismo o substituiu. Grócio social, a refletir o compromisso da bur- debruçou-se sobre o estudo do direito guesia com as forças feudais, atinge tam- natural secularizado, mas não conse- bém Wolgang Ratke. Em 1612, ele entra guiu democratizar em absoluto o direito em cena com sua “Arte de Ensinar”. natural pois sacrificou a idéia da sobe- Concebe e institui seu plano educacio- rania do povo à idéia da soberania do nal para a burguesia alemã compro- poder – o Estado feudal-patrício que missada com os príncipes. voltava a fortalecer-se à época. O mes- mo ocorreu a Altusius. Ambos, porém, entenderam que a doutrina da predestinação é contra a liberdade e um 4. Rupturas e Continuidades obstáculo ao racionalismo. Para se concluir o primeiro tema e Ao dosintetizar Pensamento o que se Burguêsexpressou aci- poder “freqüentar” a escola de Ratke, ma, afirmamos que há uma ruptura em 1612, têm-se, neste ano, a vigência entre o pensamento burguês próprio da do caráter patrício e gomarista no Se- alta burguesia e o da pequena burgue- nado de Amsterdam – grandes comerci- sia, visto que nos posicionamos em que antes que levavam o calvinismo a sério; a proposta da pequena burguesia era o caráter predominante de nobres no revolucionária e a da alta burguesia, Governo Geral; e o calvinismo do povo um compromisso do novo com o antigo. contra os católicos reacionários dos ini- Há que se levar em conta que se deve migos espanhóis e sua oposição ao mediar o movimento das seitas com o patriciado comercial conservador. A pensamento pequeno burguês revolu- substituição da concepção irracional por cionário. Não se pode deixar de ver o uma concepção racional na burguesia “profundo abismo que existia entre a manufatureira foi visto por Ratke na cultura humanística das classes altas e sua longa estadia em Amsterdam. Em as possibilidades culturais das classes seus escritos, ele não se refere à dou- trina da predes- tinação. A ambivalência do luteranismo, não como Com a entrada em cena de Ratke, religião mas como pensamento social, a refletir em 1612, os prin- o compromisso da burguesia com as forças feudais, cipados, condados e ducados de língua alemã estavam se atinge também Wolgang Ratke. preparando para as guerras que, poste- baixas” (KOFLER, 1971, p. 163). Sob riormente, denominaram-se “Guerra dos este ponto de vista, o caráter funda- Trinta Anos”. Nesta, a Alemanha ficou mentalmente revolucionário da ideolo- reduzida à metade de sua população e à gia das seitas tinha em comum com a pobreza. Assim, no começo do século alta burguesia apenas o racionalismo

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. 45 individualista. Mas, sua concepção de princípios e enveredou pelo direito liberdade e sua ação prática eram di- natural emancipado do religioso e versas porque o ponto prioritário diri- relativizado. Também aqui a ruptura gia-se à crítica/mudança da sociedade e de pensamento é visível, principalmen- não ao compromisso social. As seitas te quando se percebe o caminho de declararam a guerra à riqueza parasita triunfo que a manufatura plena co- dos eclesiásticos, dos nobres e dos co- meça a trilhar e quando, em meio à merciantes à longa distância; combati- vitória burguesa, a nova concepção am também a limitação da liberdade do direito natural se firmava com a pessoal e da consciência que era vista afirmação de que todos os seres hu- como um meio de exercer domínio sobre manos nascem iguais, mas os méritos os seres humanos. os diferenciam naturalmente. A constatação de uma produção dife- O pensamento de Ratke é um pensa- renciada entre a atividade dos artesãos mento burguês que se alinha com a ideo- e a da manufatura inicial não obriga a logia humanista-religiosa, configurando- pensar que o pensamento burguês, de- se racionalista, prática e utilitarista, mas monstrado pelas seitas nos séculos XIII com o mesmo efeito conservador do ca- a XVI, fosse diferente do pensamento pital comercial. expresso pelos que atuavam na manu- fatura inicial; era, sim, um pensamento de continuidade, no início do século XVII. Leva-se em consideração que os traba- A conclusãoConclusão deste estudo tenta sinte- lhadores do artesanato e os da manufa- tizar as análises feitas e organizar a tura inicial baseavam-se ambos no di- pedagogia de Ratke, enraizada em seu reito natural igualitário, na mesma cren- ser histórico-temporal, sob as categori- ça da igualdade entre os homens e luta- as do singular, particular e universal. vam contra a igreja e a nobreza; além No decurso deste estudo, fizemos incur- disso, ambos posicionavam-se contra o sões para desvelar os diversos tipos de conformismo da alta burguesia e das pensamento burguês. É hora de buscar- religiões reformadas na Inglaterra, na mos a base material que influiu na for- Holanda e na Alemanha. mação de idéias. A mediação histórica, que faz a dis- Os séculos XVII e XVIII eram o pe- tinção entre a manufatura inicial – a ríodo do comércio (V. MARX/ENGELS, do domínio da pequena burguesia, in- 1982, p. 90). O sistema colonial fez pros- cluindo-se o pensamento e a ativida- perar o comércio: “A Holanda que, pela primeira vez, desenvol- veu plenamente o siste- ma colonial, atingiu, em 1648, o apogeu de sua grandeza comercial. (...) O pensamento de Ratke é um pensamento burguês que se É a supremacia comer- cial que, no período alinha com a ideologia humanista-religiosa, configu- manufatureiro, propor- ciona o predomínio in- rando-se racionalista, prática e utilitarista, mas com dustrial” (MARX, I,2, p. 871-2). o mesmo efeito conservador do capital comercial. Marx acrescenta de das seitas – e a manufatura plena, que a Holanda foi a nação capitalista sob o domínio do capital da burguesia modelar do século XVII e que a coloni- triunfante está a indicar novo tipo de zação de Java caracteriza o sucesso do ruptura. A manufatura plena comércio holandês e expõe o sistema de rechaçou o elemento religioso de seus roubo de seres humanos em Celebes para 46 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. servirem de escravos na colônia (Id., p. uma proposta educacional que conser- 869). va a idéia do desenvolvimento do indiví- Se a formação de Ratke ocorreu du- duo livre, criador, versátil, multifacetado rante oito anos em Amsterdam e se e poliglota; que propõe uma vida feliz durante sua estadia lá fundou-se a Com- para todas as pessoas a viver numa panhia Holandesa das Índias e o Banco pátria alemã unificada, harmônica, sem de Amsterdam, há de se caracterizar conflitos e progressista. Em Ratke, a uni- seu pensamento burguês articulado com versalidade de cultura religiosa, a “edu- a ideologia do ca- pital comercial. Essa conclusão já foi demonstrada quando se alinhou ... qual é a realidade predominante o pensamento bur- guês do lutera- em que se singulariza a atividade pedagógica nismo àquela situa- ção ambivalente e política de Ratke? que expusemos acima. Daí, o pensamen- cação para todos” e a “enciclopédia dos to burguês vive em harmonia com o ensinos científicos” apontam para o caráter conservador do capital comer- caráter universal de uma época comer- cial, especificamente porque se refere cial em expansão e para uma pátria a sua ação de preservar a estabilidade unificada. Este é o componente burgu- da estrutura social. Por isso, a burgue- ês, universal e progressista da obra de sia comercial livre pensadora, dos sé- Ratke. culos anteriores, voltou a arrojar-se aos A formação do homem caracteriza-se braços da religião. Marx sublinhou em também pela ambivalência ideológica da vários locais o efeito conservador do alta burguesia comercial e constitui-se capital comercial. Historicamente, o co- como componente universal conserva- mércio se apodera diretamente da pro- dor, ao se dirigir para uma defesa in- dução, que ele financiou ou não, e “não transigente do Estado principesco, para consegue revolucionar o velho modo de uma ética central que orienta os indiví- produção, que conserva e mantém como duos sob um pensamento único, e para condição fundamental”. (MARX, I, v. 5, a vida comercial adequada aos ditames p. 385) religiosos. As regiões de língua alemã É preciso gerar conhecimentos em que utilizavam um espaço em que reinava o se pergunta: qual é a realidade predo- comércio nos portos fluviais e em que minante em que se singulariza a ativi- se mantinha a estrutura social, ordena- dade pedagógica e política de Ratke? A da pelo divino, que supera os conflitos e hegemonia da realização do capital co- introduz no país a estabilidade da soci- mercial possibilitou o espaço aos princí- edade. O plano de Ratke objetiva uma pios educacionais de Ratke. Estes, en- educação conservadora, de acordo com quanto configuração especificamente os preceitos dos príncipes e da confis- superestrutural, expressam o movimen- são luterana, a exigir estabilidade e to comercial que submeteu os povos harmonia da estrutura social. Este é o europeus a sua forma e que se adapta- seu ser temporal-histórico universal e va melhor a uma pátria unificada – conservador que se singulariza na pe- pretensão de Ratke - sob normas éticas, dagogia de Ratke. onde tem lugar a formação de um indi- Não há dúvida de que a arte de ensi- víduo religioso e versátil. Trata-se de nar de Ratke apresenta-se com uma

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. 47 constituição nova, especificamente pelo Este processo articula-se com a consci- seu método de ensino, racionalizado, ência social nova que se forma. O méto- operante, eficiente, objetivado e rígido, do de ensino de Ratke é uma expressão ao lado de um efetivo plano de educação em que se particulariza esta tendência profissional. O detalhamento dos ensi- da produção material. De maneira rápi- nos e sua forma de transmití-los têm a da, Ratke transforma o professor num ver com o desenvolvimento do capital “artista” multifacetado para seu ensino industrial que se instituía, ainda tênue, que segue em parte o trabalho de forma revolucionária, aos poucos manufatureiro, no sentido moderno do transformando as relações de produção termo: um método objetivo, racionaliza- do, barato, eficien- te e versátil. Além disso, introduz o ... a arte de ensinar de Ratke não teve grande êxito nas ensino profissional regiões de língua alemã de seu tempo (...) e só teve em vista de um mundo da contabi- sucesso quando (...) foi incorporada a outros métodos lidade, das estatís- ticas e do orçamen- eracionais destruindo de osensino limites para que servir o antigo de métodoto regular correto. da vida econômica racionali- impusera. Marx escreve a respeito: zada. A arte de ensinar – uma produção “Logo que a manufatura atinge certo não material - particulariza a produ- nível de desenvolvimento (...) cria ela ção material da arte manufatureira em para si o mercado, conquista-o com suas sala de aula 6. mercadorias. O comércio se torna então Se observarmos sua atividade de for- servidor da produção industrial” (Id., mação dirigida para formar um indiví- p. 387). Então, rompe seus limites e duo com aptidão profissional e orienta- revoluciona constantemente a produção. da para um método objetivo, racional e O conhecimento que se gera sobre a eficiente – o que consideramos a parti- arte de ensinar de Ratke tem o caráter cularização das idéias manufatureiras de uma arte que provém das fileiras - podemos perceber porque a arte de dos artífices e, desta herança, transfor- ensinar de Ratke não teve grande êxito ma-se em arte manufatureira. A manu- nas regiões de língua alemã de seu tem- fatura inicial busca os trabalhadores po, nas quais despontava a hegemonia nessas fileiras sociais e os transforma comercial, burguesa mas comprometida em indivíduos com aptidão profissional com o feudalismo, como elemento uni- versátil e com técnicas burguesas versal, e só teve sucesso quando, poste- multifacetadas. Paulatinamente, forma- riormente em épocas de manufatura se um capital industrial, como em Veneza plena e da maquinaria, foi incorporada e em outros centros europeus, a trans- a outros métodos racionais de ensino formar a manufatura incial em plena. para servir de método correto.

6 No texto “A Organização Didática de Ratke articulada com a base material”, a ser publicada pela Revista Brasileira de História da Educação, encontra-se essa articulação. 48 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 38-49, 2002. Bibliografia ALVES, G. L. A Produção da Escola Pública Contemporânea . São Paulo:Ed. Autores Associados/UFMS, 2001. ALVES, G. L. Universal e Singular: em Discussão a Abordagem Científica do Regional. Campo Grande, 1998. CONSTANT, B. Ap. BOBBIO, N. Liberalismo e Democracia . São Paulo: Ed. Brasileira, 1988. DELUMEAU, J . A Civilização do Renascimento . Lisboa: Editorial Estampa, 1994. HOFMANN, F. Das Schulcuchwerk Wolfgang Ratkes zur “Allun terweisung”. Ratingen:Aloys Henn Verlag, 1974. HOHENDORF, G. (Eingeleited von) Die neue Lehrart. Paedagogische Schriften Wolgang Ratkes . Berlin: Volk und Wissen Volkseigener Verlag, 1957. ISING, E. Wolfgang Ratkes Schriften zur deutschen Grammatik (1612 – 1630). Berlin:Akademie- Verlag, 1959. KOFLER, L. Zur Geschichte der bürgerlichen Gesellschaft . Berlin: Hermann Luchterland Verlag, 1971. LASKI, H. J O Liberalismo Europeu . São Paulo:Mestre Jou, 1973. MARX, K . O Capital I, II, III . São Paulo:Civilização Brasileira, 1980. MARX/ENGELS. A Ideologia Alemã. São Paulo:Livr. Ed. Ciências Humanas, 1982. RIOUX, G. L’Oeuvre Pedagogique de Wolfgang Ratke . Paris:J. Vrin, 1963. SCHEIBE, W. (Hrsg ). Zur Geschichte der Volksschule, I, II . Regenburg:Verlag Julius Klinkhardt, 1974. SKINNER, Q. Before Liberalism . New York, 1986. SKINNER, Q. As Fundações do Pensamento Político Moderno . São Paulo:Companhia das Letras, 1996. Os textos de Ratke usados neste trabalho: Memorial von Franckfurt-am-Main (Memorial de ) Manuskripten von Gotha. (Manuscritos de Gotha) Schprachkunst (A Arte da Linguagem) Regulamentação do horário escolar para a aplicação da nova arte de ensinar. Die Köthener Lehrordnungen zu der neuen Lehrart (Ordenamento de Ensino de Köthen para o novo Método de Ensinar) Allgemeine Anleitung in die Didacticam (A Introdução Geral à Didática ou A Arte de Ensinar) Aforismos Tratado de Administração Escolar Register aller Lehren (Registro de Todos os Ensinamentos) Anleitung in die Lehrkunst (Introdução à Arte de Ensinar) Die allgemeine Verfassung der christlichen Schulen (Concepção Geral da Escola Cristã). O Regulamento Escolar de Weimar. O Tratado sobre as Funções do Soberano.

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