1 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES

DANTE XXI DO OU O “METAL EXTREMO” AO MEIO- DIA1

Ravel Giordano Paz2 Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS

Resumo: O trabalho discute a releitura do poema A Divina Comédia, de , no álbum Dante XXI, da banda de rock Sepultura, sublinhando os conteúdos polêmicos desse diálogo e a tentativa da banda de erigir, por meio dele, uma espécie de “filosofia de vida” própria. No âmbito dessa “filosofia de vida”, revela-se uma reformulação dos padrões identitários do chamado “metal extremo”, reformulação esta na qual as imagens “infernais” cedem espaço a elementos existencialmente reflexivos e mesmo propositivos.

Palavras-chave: Sepultura (banda); Dante Alighieri; Rock e Literatura; Estudos Literomusicais.

De tempos e totens

Como muitos objetos da cultura contemporânea, Dante XXI, álbum de 2006 da banda de Sepultura, é um trabalho que, antes mesmo de se oferecer à fruição, suscita uma interrogação: como encará-lo? Como encarar sua sugestão de um olhar para os tempos – estes tempos – com os olhos de ninguém menos que os do autor d’A Divina Comédia3? Nos extremos, as alternativas seriam duas: ou estamos diante de um tipo de enfrentamento radical, que toma muito a sério esse desafio, ou de mais uma expressão do espírito relapso com que tantas obras canônicas – inclusive a de Dante – são apropriadas pela Indústria Cultural. No entanto, é preciso já de entrada – e ainda sem adentrar em questões qualitativas, que têm sua complexidade própria – diferenciar Dante XXI de produtos como o filme Dante’s Peak ou o videogame Dante’s , cada um deles, certamente, com seu interesse próprio, mas cujos supostos diálogos com a obra de Dante constituem muito mais aproveitamentos oportunistas

1 Trabalho apresentado no GT Mídia, música e processos identitários do VI MUSICOM – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música, realizado de 05 a 07 de agosto de 2015, na Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES. 2 Doutor em Letras Clássicas e Vernáculas, professor efetivo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, pesquisa atualmente os álbuns de canções como obras literomusicais; e-mail: [email protected]. 3 A tradução d’A Divina Comédia utilizada neste trabalho foi a da edição bilíngue da Ed. 34 (ALIGHIERI, 1999). Sobre a Commedia como representação da realidade histórica e social de Dante, cf. MOMIGLIANO (1948, p. 36), sobretudo as passagens em que ele fala do papel de uma Florença “soberba, invejosa e avara”, repleta de “adventícios e novos ricos rebeldes à autoridade imperial”, na visão do poeta das “depravações do mundo contemporâneo [a ele]”. 2 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES do que qualquer outra coisa. A proposta de Dante XXI é marcada por um respeito fundamental para com a obra de Dante – algo que precisa ser sublinhado, insistimos, antes de se abordar qualquer questão qualitativa e mesmo a da consumação do projeto. É, enfim, a própria consciência da deferência que precisa ser sublinhada; e não apenas para atestar “boas intenções” como para reconhecer o valor de um reconhecimento. Ao denominar Dante XXI seu álbum mais marcadamente conceitual – bem mais, inclusive, que o posterior A-Lex (2009), “baseado” no filme e no livro Laranja Mecânica, mas que não se estrutura tanto, da capa à divisão do álbum, de forma tão rigorosa numa relação com seu “modelo” –, o Sepultura erige a Commedia a uma posição quase totêmica no âmbito das influências da estética thrash, do “metal extremo” e mesmo do metal em geral, correntes das quais a banda obviamente se pretende – e é – uma grande representante. O mero fato de recorrer a Dante num momento de impasse criativo, se foi mesmo assim que as coisas se passaram – “Você chega a um ponto de escrever sem escrever, fica sem sentido”, declarou o guitarrista , justificando a busca de inspiração na Commedia (em entrevista a RÉ, 2014) –, atesta essa intenção reverencial. É o sentido do trabalho – ou seja, da arte – da banda que está em jogo aí: o sentido de seu ser ou estar-no-mundo, a questão da possibilidade de ainda falar do mundo e tocar as pessoas de forma digna. A pequena aflição confessada na fala de Kisser ajuda a entender como a recorrência ao “monstro sagrado” Dante Alighieri guarda algo do sumo íntimo das atitudes reverenciais. Talvez isso soe excessivo, e, como logo veremos, haverá muito o que problematizar e dialetizar aqui. Mesmo problemática, no entanto, a noção de reverência merece ser sublinhada; lembrando, inclusive, que o diálogo, consciente ou inconsciente, com culturas onde a reverencialidade ancestral é um valor de fato constitui um dos traços identitários do “metal extremo”, e o Fig. 1 Sepultura não foge à regra. O álbum Roots é sem dúvida o caso mais explícito, mas há outros. A capa de Against, por exemplo, é constituída por duas figuras totêmicas representando demônios (se em sentido propriamente cristão ou não, não cabe discutir aqui), enquanto na do anterior Arise (1991) vêem-se vários pequenos totens, pelo menos um deles igualmente “demoníaco”. No próprio Dante XXI a soturna efígie do 3 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES fiorentino na capa (fig. 1), não obstante fixada em linhas modernas4, tem algo de totêmica, e, somada à ausência quase completa – a única exceção é o próprio símbolo da banda – de elementos intensificadores da negatividade implícita no título (um olhar efetivo de Dante sobre o século XXI não seria, certamente, coisa das mais positivas) e mesmo, afinal, na associação Dante & Sepultura – a quase ausência de marcas intensificadoras de tudo isso, dizíamos, parece sugerir que a mera imagem do poeta condensa e dispensa todo o resto ausente. É claro que uma leitura inversa também é possível: por já não dizer tanto sobre as mazelas dos tempos (os de Dante não conheceram, por exemplo, o Nazismo e o horror nuclear) é que o poeta figuraria sozinho, num desenho algo “soft”, na capa do disco; mas se é bem possível que essa ideia diminutiva participe de alguma forma da concepção da capa e mesmo do álbum, provavelmente isso não se dá de forma consciente, e a intenção reverencial sobressai amplamente, pelo menos num primeiro plano dessa concepção. Pode-se dizer, afinal, que é uma espécie de “lugar de origem” que o Sepultura intenta alcançar em Dante XXI: “origem”, de certa forma, da tradição literomusical do próprio “metal extremo”. “Origem” esta, naturalmente, não absoluta, mas uma entre outras, embora das mais fundamentais. Raízes – lembrando Roots, é claro – é uma palavra mais justa. E esse mergulho em raízes tão fundamentais – anteriores, por exemplo, a Milton, Blake e Baudelaire – para a estética da negatividade extrema5 à qual o “metal extremo” se filia ou, pelo menos, da qual ele deriva é certamente um gesto ousado, de reivindicação ou demarcação de um lugar totêmico para a própria banda. Uma oportunidade, portanto, para afirmar suas próprias “grandes verdades”, a respeito de seu próprio tempo. Ainda, portanto, que a empresa danteana do Sepultura não seja um trabalho grandioso, mesmo no âmbito da produção da banda, não se trata de um trabalho de espírito relapso ou leviano.

Uma viagem polêmica

Um ponto que deve ser fixado ao empreendermos nossa leitura-audição de Dante XXI é a impossibilidade de comparar sua poesia, em termos de força imagética e engenho construtivo, com a da Commedia de Dante. Esse postulado não deve ser tomado como um

4 Note-se, porém, que o traço de Stephan Doitschinoff, responsável pelas ilustrações da capa e do encarte do disco, dialoga com a tradição pictórica medieval, que aliás se prolonga na cultura popular nordestina brasileira. 5 Utilizamos essa expressão como uma ampliação (ou uma “especialização”) do conceito de lírica negativa de Hugo Friedrich. 4 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES preconceito, mas como um reconhecimento de algo implícito na própria proposta do trabalho e nas ambições do Sepultura, não só no que diz respeito ao álbum em questão mas à sua trajetória como um todo. Por mais que a intenção de escrever “letras fortes” constitua a busca e a reivindicação de um valor, é óbvio que mesmo as melhores dessas letras não aspiram à condição de “grande poesia”. De um modo geral, embora alguns cancionistas reivindiquem que suas letras são poemas cantados, tal postura é rara nos estilos de rock mais pesados. Disso, naturalmente, decorre um problema metodológico: qual o sentido e a legitimidade da aproximação estética entre artefatos não só desiguais como postulantes a diferentes dignidades? Vê-se bem como é difícil adentrar em terrenos que, quando menos, se pretendem dantescos: praticamente voltamos ao nosso ponto de partida. A verdadeira questão, no entanto, agora é outra: já fixamos, afinal, a seriedade, quando menos, da proposta de Dante XXI. A questão, agora, é saber como essa seriedade pode se sustentar, ou mesmo se colocar, diante da consciência de que aquilo que, em conluio indissociável com a força das “visões” dantescas, confere o valor de uma obra-prima à Commedia – ou seja, a qualidade de sua construção literária –, é algo de as letras da banda passam longe. Naturalmente, isso só é possível assumindo – a despeito de nossas próprias posições a respeito – a condição de “meras letras” de seus poemas cantados (e gritados etc.) e buscando um suplemento para essa diferença na dimensão musical de seu trabalho. Aliás, esse suplemento é, antes que uma busca, uma demanda da própria canção enquanto forma: em sua aliança como que congênita com a música, é que a poesia cantada (e também em certo sentido, portanto, tocada) do Sepultura pode aspirar uma dignidade minimamente afim à de Dante Alighieri. Em suma, o valor estético de Dante XXI, como de qualquer trabalho literomusical, não pode ser avaliada sem se considerar ou quando menos reconhecer os dois vernáculos implicados nessa palavra, “literomusical”.6 No caso deste trabalho, não iremos muito além desse reconhecimento. Evitemos fazer dele, no entanto, apenas mais uma questão prévia, até porque são vários os momentos do disco em que o trabalho musical exige atenção à parte, muito embora um deles seja justamente a primeira faixa, “Lost (Intro)” . Não se trata propriamente de uma faixa instrumental, pois seu elemento mais marcante são as vozes quase completamente ininteligíveis que ouvimos por menos de um minuto. E não se pode dizer que as vozes, aí, figurem como instrumentos, pois, ainda que não seja possível distinguir qualquer significação precisa dos “enunciados”, esse não dizer nada ou quase nada

6 Os pontos de partida de nossos apontamentos sobre as especificidades das formas literomusicais são os trabalhos de Tatit (1994) e Oliveira (2002). 5 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES é obviamente significante, seja remetendo à confusão da “Dark wood of error” a que logo chegamos na faixa seguinte ou às confusões do próprio Inferno onde essa “floresta” vai dar. Por outro lado, é nítido que essa “confusão” é na verdade uma espécie de caos orquestrado, inclusive nos jogos de harmonia e dissonância e de ritmo e arritmia que as vozes estabelecem com o sintetizador que as acompanha. Essa “orquestração do caos” (não orquestração caótica), estranha mas preciocista, pode ser vista como uma confirmação de que é sobretudo no trabalho musical que a banda visa o rigor formal que seus letristas (o guitarrista Andreas Kisser e o vocalista ) certamente reconheceram na Commedia, ou quando menos – se leram traduções em prosa – do qual tiveram notícia. Mas esse dado revela algo no horizonte significacional do álbum também, e que pode ser enunciado como uma recusa à redução às significações “sinistras” ou “cabulosas”, ou mesmo negativas, comuns em trabalhos de metal extremo. É verdade que também o preciosismo instrumental é, a seu modo, comum no metal, inclusive em várias vertentes do metal extremo, mas quando ele se destaca excessivamente da violência da massa sonora isso indica uma aproximação com um outro gênero ou subgênero, a saber, o rock progressivo. Ao dar uma feição progressiva à introdução “sinistra” do álbum, o Sepultura de alguma forma relativiza esse caráter sinistro,7 sinalizando com uma insistência: pois não é nova – intensificando-se muito com a entrada de Derrick Green no vocal – essa aproximação da banda com o gênero de rock supostamente mais próximo da música erudita; o interessante, como veremos, é como isso ganha uma espécie de coroação em Dante XXI, e como nisso se erige ou se destila uma espécie de “filosofia de vida”. Mas é uma espécie de ilusão de vida que os primeiros segundos de “Dark wood of error” parecem tentar criar. A música começa com uma “pegada” thrash, com todos os instrumentos básicos – guitarra, baixo e bateria – acelerados, mas longe do estardalhaço “infernal” dos primeiros discos da banda e dos representantes mais extremos do metal extremo. Na verdade é nítida, aí, a manutenção de um padrão progressivo de sonoridade, o que é reforçado por um “efeito” pontual, semelhante a um “pianão” eletrônico. Logo em seguida, após uma pequena sequência de volteios instrumentais marcado por viradas de bateria e riffs ao mesmo tempo “tensos” e melódicos, a intensidade ritmica diminui, mas não a tensão: sob o compasso, digamos, de um andante soturno, ouvimos uma espécie de arfar,

7 Vale a pena comparar essa introdução com a de “Arise”, primeira faixa do disco homônimo de 1991, e onde o caráter sinistro é intensificado, ainda que por meio de recursos ingênuos; ingenuidade, é verdade, diante da qual avulta a estranheza da primeira introdução (“Lost”) de Dante XXI, mas no âmbito da cultura do metal, sem dúvida a “sofisticação” dessa estranheza constitui um dado atenuante. 6 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES sugerindo que a aceleração anterior mimetizava um tipo de corrida; aceleração que em seguida retorna, mais densa, logo emergindo dela uma espécie de urro ou sussurro gutural. Essa cuidadosa busca de um “clima” e mesmo uma ambientação pelos recursos sonoros pode anunciar tanto um tratamento distanciado da “realidade” sugerida por esse “clima” quanto um mergulho “visceral”, embora “sofisticado”, nela. Os versos da canção parecem confirmar as duas hipóteses; e de par com isso – ou seja, com esse meio-termo –, assim que esses versos se iniciam ela se torna um hardcore, também um estilo rápido e agressivo, mas sensivelmente menos que o thrash metal. Assim como seu título, a letra de “Dark wood of error” – referência à “selva oscura” de Dante – começa parafraseando os primeiros versos d’A Divina Comédia: “I’ve lost my way / In a dark wood of error / In a crisis, inside deep terror / With fear in my mind...”. Trata-se, como se vê – e em consonância com a Commedia –, de um discurso em primeira pessoa, versando sobre uma crise pessoal e extrema (“inside deep terror”); logo em seguida, porém, depois de o eu lírico anunciar que vê uma “luz (“...I spot a light"), surgem outros elementos, exteriores, que o impedem de chegar à claridade: They’re coming after me Can’t reach the light Three beasts blocked the way to my life The beast from UK The beast from US The UN beast was then unleashed To solve the problemas in the world But they don’t! Despise their false prophecies They have no right (SEPULTURA, 2006).

As “três bestas” em questão correspondem às três feras alegóricas que Dante encontra na Commedia: uma onça, um leão e uma loba, que segundo o tradutor Italo Eugenio Mauro, representariam a incontinência, a violência e a fraude. Talvez seja possível estreitar essas relações (a associação entre os Estados Unidos e a violência e entre a ONU e a fraude, pelo menos, parece muito sugestiva), mas ainda assim a substituição do recurso alegórico pela nomeação direta das potências político-econômicas confere às “bestas” de “Dark wood of error” um grau de objetividade muito particular, que contrasta com o conteúdo subjetivo dos primeiros versos da canção – o que não chega a ocorrer na Commedia, graças não só à manutenção do registro moral-subjetivo como à adequação das alegorias animalescas à imagem igualmente alegórico-natural da floresta. É verdade que o verso seguinte aos transcritos busca reforçar o vínculo, antes 7 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES esboçado na ideia de que as bestas bloqueiam o caminho da vida do eu lírico, entre esses campos contrastantes: “I hate what they’re doing to / My life, my life!”. A construção de um vínculo efetivo, no entanto, exigiria o recurso a mediações históricas e sociológicas que não aparecem, seja por falta de habilidade do autor dos versos, no caso Andreas Kisser, ou para evitar o excessivo descolamento da imagística da Commedia, como a estranha menção às “falsas profecias” – como se as entidades nomeadas fossem religiosas, e não políticas – dá a entender. Seja como for, pouco adiante o penúltimo verso reafirma o “Detour of my way”, enquanto o último parece situar objetivamente o próprio eu lírico diante das potestades que ele invocara, como que fixando definitivamente sua “crise” nesse terreno, e não mais no campo subjetivo inicalmente delineado: “Learn I may, what they say” (SEPULTURA, 2006). E, de fato, na maioria das letras seguintes a cargo de Kisser os temas políticos serão hegemônicos, dando a impressão de que o “self” presente nelas é pouco mais que uma estratégia de adequação ao contexto enunciativo e, digamos, “existencial” da Commedia, onde o poeta-viajante não apenas narra e descreve em primeira pessoa como não raro expõe suas impressões e sentimentos diante dos horrores (e, no Paraíso, das maravilhas) que vê. No início da quinta faixa, “False”, o eu lírico se dirige diretamente a alguém que, como diz o primeiro verso, “pensa que governa tudo”: “You think you rule all / You made it all wrong / Creating more frauds / Your mask will soon fall”. Na sequência, porém, surgem elementos subjetivantes, no sentido de que destacam o self em primeira pessoa, até então irreconhecível como tal: “I will be free from / This grave where you life / Revolting my life”. Finalmente, a longa sequência de versos seguintes parece completar o movimento que reconhecemos na letra anterior, ou seja, de adequação à imagística dantesca. Surgem, então, referências aos círculos do Inferno (“the circle lows”) e personagens encontrados por Dante nele, como Judas e Cassius, além do próprio Lúcifer e de lugares como Judeca e , “end of hell”8. É nessas apropriações mais explícitas da Commedia, por exemplo em versos como “You feel you brai being crushed by teeth” (SEPULTURA, 2006), que as letras de Dante XXI mais se aproximam das antigas letras da banda. Em “Ostia”, oitava faixa e primeira e primeira da parte correspondente ao Purgatório – antecedida por uma segunda introdução (“”), onde instrumentos incomuns no repertório da banda, como celos e pianos, executam um desenho melódico algo tenso, e que terá continuidade no riff com sonoridade algo space rock do baixo de Paulo Xisto Jr. ao longo da

8 O que não é exato, já que Malebolge constitui o oitavo círculo do Inferno dantesco, e não o nono e último. Judeca sim, é um dos giros do nono círculo, onde Lúcifer mastiga Judas, Cassius e Brutus. 8 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES canção que ela introduz –, nessa canção, dizíamos, apenas a ordem e a conjugação dos fatores é diferente: como em “Dark wood of error”, ela começa com imagens extraídas da Commedia, e nas quais eu lírico se coloca diretamente, para só então emergirem referências – particularmente nos versos e expressões grifados por nós – às questões políticas que, a essas alturas, podemos indicar como a preocupação fundamental das letras de Kisser: The skies are open before me The crowd of souls in sudden flight Hoping for prayers in the world Late repentant, no stain from hell

I thought the worst had, I thought the worst past Traitors of the people, they have no face I will not trust what I can not see None will have the time to strike a blow – the final blow Hell – no stain from hell Those fools are the ones we vote for The kings and rules of negligence Taking a nation to lead in decay (SEPULTURA, 2006).

Como se vê, mesmo quando introduz a temática política Kisser busca manter uma contextualização “dantesca”; não obstante, mas vale a pena indicar uma pequena heterodoxia em relação à Commedia – tópico que discutiremos melhor mais adiante – nesses versos, mais especificamente no que abre a segunda estrofe: a expressão “Eu pensei que o pior tivesse passado”, que é como ele pode ser traduzido, é uma afirmação da primazia do político sobre o religioso em Dante XXI: não é o fato de estarem no Purgatório que torna os “traidores do povo” menos nefandos. Se atentarmos para alguns detalhes de “False”, constataremos algo ainda mais enfático nesse sentido – ou seja, de uma heterodoxia face à religiosidade do poema dantesco –, mas deixaremos isso para mais tarde. “Nuclear seven”, a décima faixa – e a última assinada por Kisser –, busca associar a ideia dos sete pecados capitais à de “Seven nations threatening the world with a bomb”, como diz o terceiro verso; recurso semelhante, portanto, ao das “bestas” políticas em “Dark wood of error”, muito embora os próprios sete pecados capitais sejam nomeados mais adiante, uma bipartição que parece indicar a dificuldade de conjugar as temáticas políticas à imagística dantesca. Seja como for, o self aqui é mais discreto, surgindo pontualmente para clamar por um caminho (ainda no Purgatório): “Show me the way – I need to know – show me the road” (SEPULTURA, 2006). O fato de as canções de Dante XXI terem dois letristas diferentes enseja uma consideração metodológica, e, embora tenhamos deixado essa consideração para este 9 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES momento meio tardio, sua formulação prévia já havia determinado nossa decisão de abordar separadamente as letras de Kisser e Derrick. A consideração em questão é a de que, embora de um modo geral o conjunto dessas letras caminhe num entrelaçamento sólido o bastante para conferir ao álbum sua almejada unidade conceitual, há algumas diferenças significativas que merecem ser sublinhadas. De um modo geral, as letras de Green são menos aferradas à preocupação intertextual em relação à Commedia, buscando correspondências mais genéricas. Em “Fighting on”, por exemplo, apenas a expressão “Wandering in circle” parece remeter ao Inferno de Dante, e mesmo assim seu complemento, no verso seguinte, é “Motivated by fear”, o que indica o teor, digamos, ainda mais “laico” das letras do vocalista. De par com isso, como veremos, essas letras condensam ou explicitam algo fundamental naquilo que denominamos a “filosofia de vida” do álbum, e que tem relação direta com uma concepção individualista da vida – muito embora um individualismo combativo, algo provavelmente relacionado à condição de norte- americano afrodescendente de Green. Isso também se liga a outra particularidade de suas letras, e que é justamente a presença mais marcada do eu lírico. Mais ancoradas nas demandas desse self, menos indecisas entre os dilemas de seu tempo e as figurações da Commedia, de um modo geral as letras de Green apresentam uma unidade mais consistente que as de Kisser – embora, talvez, às custas de certa dissociação da unidade conceitual do álbum, visto que a maioria delas poderia perfeitamente integrar outro trabalho da banda. Em suma, tem-se a impressão de que Kisser encarou mais de frente o desafio de estabelecer um diálogo com o poema dantesco, pagando certo preço por isso. Ainda assim, como veremos, certo viés polêmico face à Commedia sela um vínculo forte das letras de Green com ela, já que seu teor mais “laico” se desdobra numa acentuação do espírito antirreligioso. A primeira letra com a assinatura de Green no álbum é na verdade a única parceria dos dois autores. Inicialmente, “Convicted in life” parece seguir um padrão semelhante ao das letras de Kisser, na medida em que começa citando um verso da Commedia, aliás, seu verso mais conhecido: o que fecha a inscrição lida pelo poeta à porta do Inferno no Canto XX. Ao longo da letra, no entanto, a ideia de condenação expressa no título mistura-se a outra: a de “ficcion of life” (grifo nosso), que, de certa forma, chama atenção para a estranheza do próprio título. Afinal, as penas do Inferno de Dante constituem condenações após a morte. Para decifrarmos esse pequeno enigma precisamos ler com atenção o começo da letra: Abandon all hope he who enter here 10 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES Eternal pain that runs among the lost It’s the fiction of life What you are is what you live It never made a fucking difference to you In the eyes you can see the truth It’s the fiction of life (SEPULTURA, 2006).

O terceiro verso indica o caminho de nossa interpretação: “It’s the fiction of life” (grifo nosso). É o Inferno, o lugar onde toda esperança deve ser abandonada, ou seja, a ideia da condenação eterna, a ficção em questão; ou melhor, o Inferno é uma ficcionalização de como as coisas realmente se passam na vida. O verso seguinte reforça essa ideia: somos o que vivemos, a única condenção possível é a condenação em vida; essa é a “verdade” de que fala o sexto verso. Assim, os versos que endossam o verso dantesco devem ser lidos em chave irônica; por exemplo o décimo primeiro verso: “It makes no difference with the choices I make”. Se as escolhas não fazem diferença não há espaço para a individualidade, o que, como veremos, se opõe diametralmente à “filosofia” individualista de outras letras de Green. “Don’t want to make the same mistakes”, diz o décimo-terceiro verso, enunciando uma queixa inútil que, no entanto, também pode ser vista como um protesto contra a ideia da condenação eterna. Essa interpretação é corroborada pelos últimos versos de “City of ”, a primeira assinada apenas por Green: “I can live, with myself / I have faith, in myself”. Ao contrário do que o título promete (a “Cidade de Dis” é a derradeira localidade do Inferno, sendo que “Dis” é outro nome para Lúcifer), a letra emula muito pouco o poema de Dante; ao invés disso, praticamente explicita o protesto sugerido na canção anterior; “praticamente” porque é necessária alguma sutileza para perceber a relação entre versos distantes e de sentido diametralmente opostos, como o segundo (“Punished for severed hope”) e o décimo-quinto (“Faith must be earned”) ou mesmo para a complementaridade entre o décimo-segundo verso (“Cast in the City of Dis”) e a canção anterior, já que a palavra “cast” calha perfeitamente à ideia de ficção. “City of Dis”, convém notar, é a canção imediatamente anterior a “False”, de Kisser, à qual prometemos voltar justamente para apontar elementos que caminham nesse sentido. Veja-se versos como “False life – the circle lows” e “False – no Judas cry”, que parecem pôr em xeque a realidade do Inferno. No contexto das fortes emulações da Commedia no restante da letra, porém, esses elementos soam estranhos, senão discrepantes. A letra seguinte de Green, “Fighting on”, esclarece ainda mais as ideias delineadas pelo autor anteriormente. Como já mencionamos, sua única única alusão mais ou menos 11 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES explícita ao Inferno de Dante – a canção é a última da primeira parte do álbum – é a expressão “Wandering in circles”; mas aqui a condenação eterna é substituída pela luta eterna, ou melhor, “eterna” enquanto durar a vida: We don’t stop, we keep fighting on I can promisse you I’ll (carry on) My time is now From the first birth of life Till our final last breath (SEPULTURA, 2006).

Como indicam os primeiros versos, a única “condenação” efetiva é a sina de carregar o peso do mundo – ou seja, da vida – nas costas: “Weight of the world / Each have to carry their own”. Entretanto, como afirma o verso seguinte, “Nothing’s for certain”, já que cada um lida com isso à sua maneira – e não, infere-se, como Deus ou o diabo querem, tal como ocorre no Inferno de Dante. Em “Buried words”, a primeira canção assinada pelo vocalista na parte correspondente ao Purgatório, Green de certa forma objetiviza o “peso do mundo” mencionado em “Fighting on”, ou pelo menos parte dele. Trata-se da letra mais marcada pelo self autoral no álbum, como se pode notar desde a primeira estrofe: It started with lessons with who Ishould hate Listening to everything spoken to me Now here is a chance that you were just using me Innocents turned to see your way of life It’s ripping through me everyday My head keep spinning with the shit that you said You even had me et down on my knees Praying for something that I never believed (SEPULTURA, 2006).

É difícil estabelecer se o eu lírico se dirige a um professor ou a um sacerdote, já que o interlocutor implícito condensa características de ambos. O fato é que na estrofe seguinte, que sucede ao refrão (“Your words are dead; I buried them, there dead”), as ideias de promessa (“Living with promises that couldn’t be kept”) e descrença (“Now I’m standing in disbelief”) reforçam o sentido do polemismo antirreligioso, agora inserido num contexto de experiência pessoais (verídicas ou não). A princípio, a próxima canção assinada por Green, no entanto, parece desmentir isso. Ainda no contexto do Purgatório, “Repeating the horror” parece sustentar a ideia, embora em imagens um tanto vagas (“What is this sickness / That sits here down inside /.../ The dark has the power / To bring me down to the floor”), de que não há diferença substancial entre esse espaço – digamos, simbólico – e o Inferno, a não ser por um dado importante: agora o eu lírico pode clamar por redenção (“I want redemption!”). Mas que redenção é essa? A resposta 12 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES só é dada na próxima letra de Green, “Crown and Miter”, a rigor a única canção que integra a parte correspondente ao Paraíso, e cujos primeiros versos anunciam justamente que “There is a way out / There is a way out”. E os seguintes, não obstante a presença ocasional do pronome “nós” – talvez referente a uma coletividade específica: a própria banda –, praticamente retornam à “filosofia” laica e individualista do final de “City of Dis”: “It took a long time to get where we are / It wasn’t easy but it never is / Big steps keep moving on”. Entretanto, a ideia de salvação é relativizada por uma última canção – se é que essa denominação cabe aqui –, antecedida por uma última introdução, e cuja letra repete apenas “Opia-lympia”, num canto ritmado envolto por um arranjo algo hipnótico e orientalizante, antes da guitarra de Kisser se impor, de forma rascante mas melódica, enquanto Green grita o verso que também dá título à música: “Still flame”. É possível interpretar de várias formas esse pequeno conjunto literomusical (senão semiótico, até pela dança que a primeira parte da música sugere), mas nesse caso vale a pena recorrer novamente a um testemunho autoral: Em entrevista a Matthew Teutsch (2008, p. 180), anexa a seu artigo sobre Dante XXI, Derrick Green afirmou que “Opia-lympia” significa “the type of unity that happens during the Olympic games – different countries and cultures coming together not to fight but to compete out of respect for humanity”. Um tipo de pacifismo ao qual se agrega a ideia de competitividade sadia, e que obviamente, que se pretende um contraponto à religião, embora em si mesmo semelhante a um tipo de religiosidade laica; além do fato de tanto a referência indireta ao Olimpo mitológico quanto o clima “oriental” não só deslocarem o cristianismo da Commedia mas também, de certa forma, reintroduzirem um élan ou etos religioso. Já “Still flame” parece sugerir tanto a permanência da realidade infernal no mundo quanto algo como uma condição inerente ao, digamos, sentimento paradisíaco almejado, remetendo, nesse caso, à intensidade e o ardor do próprio rock.

Um parágrafo (quase) conclusivo

Tudo isso afere o quanto Dante XXI se distancia dos padrões identitários do “metal extremo” aos quais a banda se filiava no início de sua carreira. Certamente esse distanciamento foi construído progressivamente (outro marco importante é o disco Roots, no qual elementos de brasilidade e de consciência crítico-social começam a suplantar a negatividade extrema (“infernal”) dos discos anteriores), mas no diálogo com a obra de Dante ele ganha uma espécie de síntese “filosófica” (por ingênua ou excessiva que pareça essa 13 VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA “As dimensões do cotidiano na interface mídia, música e consumo” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória-ES palavra). O fato de, apesar disso, a banda manter uma considerável legião de fãs é um indício de que algo desse percurso se reflete no percurso da “tribo” que ela ajudou a construir, ou pelo menos de seus veteranos. Mas para atestar isso, naturalmente, seria preciso ampliar o enfoque deste trabalho.

Referências

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Trad. I. E. Mauro. São Paulo: Ed. 34, 1999.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Trad. M. M. Curione e D. F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

MOMIGLIANO, Attilio. História da Literatura Italiana. Trad. de L. Washington e A. D’Elia. São Paulo: Progresso Editorial, 1948.

OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Literatura e música: modulações pós-coloniais. São Paulo: Perspectiva, 2002.

RÉ, Adriana Del. A Divina Comédia ganha trilha. Disponível em: http://www.gazetadigital.com.br/conteudo/show/secao/62/materia/120522/t/A+Divina+Com%E9dia+g anha+trilha

SEPULTURA. Against. Roadrunner Records, 1998.

______. Arise. Roadrunner Records, 1991.

______. Dante XXI. SPV Records, 2006.

______. Roots. Roadrunner Records, 1996.

TATIT, Luís. Semiótica da canção: melodia e letra.São Paulo: Ed. Escuta, 1994.

TEUTSCH, Matthew. Dante in a modern context: a review of Sepultura’s Dante XXI. In: LATCH: a journal for the study of the Literature. Vol. 1, 2008. Disponível em: http://oceanlinepress.com/LATCH%20%28Vol%201,%20proof%20CR,%20Gath%208,%20IP%20ma r,%20art,%20Teutsch%29.pdf.