C Am Inhos De Um M Al-Estar De Civilização
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Capa da revista Gráfica n. 6, 1984. Caminhos de um mal-estar de civilização: de mal-estar um de Caminhos reflexõesintelectuais norte-americanas para pensara democracia e o negro no Brasil Elizabeth Cancelli Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro- fessora do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisa- dora do CNPq e da Fapesp. Autora, entre outros livros, de A cultura do crime e da lei no Brasil. Brasília: Editora da UnB, 2001. [email protected] Caminhos de um mal-estar de civilização: reflexões intelectuais norte-americanas para pensar a democracia e o negro no Brasil* Elizabeth Cancelli RESUMO ABSTRACT Este trabalho tem como objetivo bus- This article seeks to pinpoint scholarly car eixos de reflexão desenvolvidos reflections carried out in the United Sta- nos Estados Unidos e que foram im- tes which turned out to play an important portantes para repensar a questão da role for the understanding of democracy, democracia e da cultura no Brasil, es- culture and race relations in Brazil’s pecialmente no que diz respeito à in- national identity. Special attention is de- clusão social do negro e à construção voted to the heritage of slavery among US de uma identidade brasileira. Assim, Southern intellectuals in the early 20 th as releituras da herança da escravidão century. Finally, I am also concerned with verificadas no Sul norte-americano nas how the redefinition of democracy in the primeiras décadas do século XX e o United States, in addition to the cultural encorajamento para a redefinição da war that reached its apex during the cold democracia, ocorridos no auge da guer- war, had an impact on key strands of the ra fria e da cultural war , serão contem- Brazilian intellectual production. plados para a recuperação de verten- tes importantes do pensamento brasi- leiro e sua inserção nos debates em torno desse “mal-estar de civilização”. PALAVRAS -CHAVE : cultura; racismo; KEYWORDS : culture; racism; cold war. guerra fria. ℘ Em 1961, sob orientação de Florestan Fernandes (1920-1995), Fernando Henrique Cardoso (1931) doutorou-se em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Fruto de uma pesquisa que vinha sen- do desenvolvida por um conjunto maior de estudiosos, o trabalho de * Este artigo contou com fi- Cardoso somava-se ao de outro orientando de Florestan Fernandes, Otá- nanciamento do CNPq e da Fapesp. Foi Carlos Henrique vio Ianni (1926-2004), cujas teses de mestrado ( Raça e mobilidade social Romão de Siqueira, quando em Florianópolis ) e de doutorado ( O negro na sociedade de classes ) foram ainda fazia sua tese A alegoria patriarcal : escravidão, raça e defendidas em 1956 e 1961, respectivamente. Ianni e Cardoso seguiam nação nos Estados Unidos e os passos de Florestan Fernandes, que havia publicado, com Roger Bastide no Brasil, defendida na UnB (1898-1974), Brancos e negros em São Paulo , em 1958. em 2007, quem chamou mi- nha atenção para a aproxima- Os estudos de todos eles eram resultantes das pesquisas que coube ção de Gilberto Freyre com os à Universidade de São Paulo (USP) desenvolver sobre as relações raciais Agrarians, como teremos opor- tunidade de ver a seguir. A no Brasil, especificamente nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Carlos Henrique devo meus Catarina e Rio Grande do Sul. Do projeto financiado pela Organização agradecimentos. das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) em 172 Art Cultura , Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 171-187, jan.-jun. 2008 1951 e 1952 1, a fração sob a responsabilidade da USP 2 foi coordenada 1 O projeto foi idealizado por 3 Arthur Ramos, quando este justamente por Roger Bastide e Florestan Fernandes. era diretor do Departamento O trabalho de Fernando Henrique Cardoso, como já foi dito, fazia de Ciências Sociais da Unesco Artigos parte de uma série 4 que incluía o que ele desenvolvera com Otávio Ianni em 1949. Teve sua aprovação em junho de 1950, na 5. ses- (Cor e mobilidade social em Florianópolis : aspectos das relações entre ne- são da Conferência Geral da gros e brancos numa comunidade do Brasil meridional), publicado em Unesco realizada em Floren- 5 ça, que enfatizou as preocu- 1960 com prefácio que Florestan Fernandes concluíra em dezembro de pações com os problemas re- 1959. Como diria Otávio Ianni, todos eles pressupunham que “o precon- lativos à pobreza e às ques- ceito racial no Brasil é um dado fundamental das relações sociais”. 6 tões raciais no pós-guerra. Cf. MAIO, Marcos Chor. O pro- Nessa trilha que se seguiria a fim de desmistificar a democracia jeto Unesco e a agenda das racial brasileira, o livro de Fernando Henrique, Capitalismo e escravidão Ciências Sociais no Brasil nos anos 40 e 50. Revista Brasileira no Brasil meridional : o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do de Ciências Sociais , v. 14, n. 41, Sul, procurava, como ele próprio alega, opor-se à “mistificação socioló- São Paulo, out. 1999. Dispo- gica que abrandava os efeitos negativos do patriarcalismo escravista e nível em <www.sieco/br.ph? pid>. Acesso em 13 jun. 2007. insistia na existência [...] de uma democracia racial” 7. Em outras pala- 2 Além de São Paulo, equipes vras, contrapunha-se a determinadas interpretações sobre a história, a de três outros estados reali- cultura, a evolução e as propostas de Brasil, das quais Gilberto Freyre zaram pesquisas sobre o te- (1900-1987) se tornaria o maior expoente. Teses que Freyre expunha sis- ma: Rio de Janeiro (Costa Pin- to, 1920-2002), Pernambuco tematicamente em suas obras — o maior sucesso seria Casa-grande & (Gilberto Freyre) e Bahia (Tha- senzala, lançado em 1933 e já em sua qüinquagésima edição em 2005, les de Azevedo, 1904-1995). desta vez com uma apresentação do próprio Fernando Henrique 8 — 3 Ver Pessoa e instituição — entrevista com João Baptista passaram a ser continuamente refutadas pelo grupo da USP. Borges Pereira. Revista de Os núcleos do trabalho de Fernando Henrique Cardoso — para as Antropol ogia, v. 46, n. 2, São finalidades que aqui nos interessam — podem ser assim resumidos: Paulo, 2003. Disponível em <www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em 12 jun. 2007. 1. a escravidão foi um processo que produziu dupla alienação: a 4 Distinguem-se também os de de senhores e a de escravos; Oracy Nogueira (1917-1996), 2. os padrões estruturais garantem a compreensão da assimetria Virgínia Leone Bicudo (1915- 2003) e Aniela Ginsberg 9 das posições dos grupos raciais ; (1902-1986). 3. foram relações de produção que se caracterizaram como “rela- 5 O Inep e a Capes participa- ções de violência e de alienação mantida(s) pelos efeitos da violên- ram do financiamento dessa cia” 10 que estavam presentes na escravidão; pesquisa. 4. houve “impraticabilidade de o capitalismo expandir-se além de 6 Otávio Ianni: o preconceito 11 racial no Brasil (entrevista). certos limites através da escravidão” ; Estudos Avançados , v. 18, n. 50, 5. os efeitos sobre “o comportamento do negro livre exercidos pela São Paulo, 2004. Disponível em escravidão e pelas representações dos brancos sobre os escravos (a <www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em 14 jun. 2007. socialização parcial do escravo, as expectativas assimétricas nas 7 CARDOSO, Fernando Henri- relações entre brancos e negros etc., resultando na anomia e na que. Capitalismo e escravidão no desmoralização do grupo negro)”, levaram apenas a uma espécie Brasil meridional: o negro na so- de “consciência possível” 12 do negro; ciedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: 6. a tese da democracia racial está baseada em uma reconstrução Civilização Brasileira, 2003, idílica do passado 13 ; prefácio à quinta edição, p. 10. 7. a escravidão foi um sistema autocrático pervertido, de apelo ao 8 CARDOSO, Fernando Henri- arbítrio e à força bruta 14 ; que. Apresentação: um livro pe- rene. In : FREYRE, Gilberto. 8. “a imagem do escravo como objeto e a heteronímia na ação que Casa-grande & senzala: formação os dominadores impõem aos dominados no regime escravocrata da família brasileira sob o regi- me da economia patriarcal. 50. são obtidas pela coação aberta e contínua e pela socialização do ed. São Paulo: Global, 2005. 15 escravo para suportar o exercício da violência” ; 9 Cf. CARDOSO, Fernando 9. “o escravo torna-se um ser parcial, capaz apenas de executar as Henrique, op . cit ., p. 107. formas mais rudes de trabalho” e, enquanto os senhores os repre- 10 Idem , ibidem , p. 41. sentavam apenas como instrumentos de produção, os escravos se 11 Idem , ibidem , p. 43. Art Cultura , Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 171-187, jan.-jun. 2008 173 12 Idem , ibidem , p. 44. “auto-representavam como seres incapazes de comportar-se como 13 Idem , ibidem , p. 108. homens livres” 16 ; 14 Idem , ibidem , p. 109. 10. Após a escravidão, “a massa dos ex-escravos despreparada 17 15 Idem , ibidem , p. 351. socialmente e culturalmente [...] ajustou-se passivamente” e acei- 16 Idem . tou a “existência de desigualdades sociais, expressas sob a forma de desigualdades naturais”. A maior parte dos negros ratificou essa 17 Idem , ibidem , p. 353. situação pela aceitação do “ideal de branqueamento”. Já os escra- 18 Idem , ibidem , p. 354. vos ligados ao artesanato urbano ou à escravidão doméstica que 19 Idem , ibidem , p. 332. puderam beneficiar-se de melhores condições materiais e morais 20 FERNANDES, Florestan. O de existência formularam uma “ideologia da negritude” 18 ; um “ra- negro no mundo dos brancos . São 19 Paulo: Difel, 1972, p. 7. cismo anti-racista”. 21 Idem, ibidem , p. 7 e segs. Esses pontos-chave, encontrados em Capitalismo e escravidão no 22 Em 1947, o presidente dos Estados Unidos, Truman, ins- Brasil meridional, estavam assentados nas premissas do trabalho de taurou o President’s Commi- Florestan Fernandes, que procurava fundir uma perspectiva histórica a ttee on Civil Rights, como ve- remos mais adiante.