UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – FAFIC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS ARÉA DE CONCENTRAÇÃO SUJEITO, SABERES E PRÁTICAS COTIDIANAS LINHA DE PESQUISA LINGUAGENS, MEMÓRIA E PRODUÇÃO DE SABERES

OS DISCURSOS DAS PROPAGANDAS PUBLICITÁRIAS COM CELEBRIDADES: A CONTEMPORANEIDADE E A REPAGINAÇÃO DA FAMA

SHEMILLA ROSSANA DE OLIVEIRA PAIVA

MOSSORÓ - RN 2016

Shemilla Rossana de Oliveira Paiva

OS DISCURSOS DAS PROPAGANDAS PUBLICITÁRIAS COM CELEBRIDADES: A CONTEMPORANEIDADE E A REPAGINAÇÃO DA FAMA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como requisito obrigatório para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais e Humanas. Orientadora: Profª. Drª. Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes.

MOSSORÓ - RN 2016

Ficha catalográfica gerada pelo Sistema Integrado de Bibliotecas e Diretoria de Informatização (DINF) - UERN, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

P142d Paiva, Shemilla Rossana de Oliveira. OS DISCURSOS DAS PROPAGANDAS PUBLICITÁRIAS COM CELEBRIDADES: A CONTEMPORANEIDADE E A REPAGINAÇÃO DA FAMA / Shemilla Rossana de Oliveira Paiva - 2016. 109 p.

Orientadora: Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes. Coorientadora: . Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas, 2016.

1. Publicidade. 2. . 3. Mídia. 4. Discurso. I. Mendes, Marcília Luzia Gomes da Costa , orient. II. Título. SHEMILLA ROSSANA DE OLIVEIRA PAIVA

OS DISCURSOS DAS PROPAGANDAS PUBLICITÁRIAS COM CELEBRIDADES: A CONTEMPORANEIDADE E A REPAGINAÇÃO DA FAMA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como requisito obrigatório para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais e Humanas. Orientadora: Profª. Drª. Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes.

BANCA EXAMINADORA

______Profª. Drª. Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes Presidente da banca

______Prof. Dr. Marcos de Camargo Von Zuben Examinador Interno

______Prof. Dr. Valdemar Siqueira Filho Examinador Externo

______Profª. Drª. Aline Gama suplente

MOSSORÓ – RN 2016

“As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão, mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão” (Carlos Drummond de Andrade).

Aos meus pais.

AGRADECIMENTOS

A minha mãe, Widenira Pereira de Oliveira Paiva, meu suporte indubitável em qualquer adversidade;

Ao meu irmão, Samuel de Oliveira Paiva, menino-homem que já nasceu pronto, guardando em si a ética, humildade e saber que tanto admiro. Meu grande companheiro nas já vividas alegrias e tristezas dessa vida;

Ao meu pai, José Liberato de Paiva Neto, um artista que se foi. Uma saudade sem fim e uma lembrança que acalenta minh’alma;

Ao meu companheiro, Lázaro Fabrício, por todo amor, apoio e planos que me dão fôlego para perseverar;

Ao meu cachorro, Kafka, que me dedica seu amor puro e gratuito, que sempre aprova minha sofrível culinária e escuta minhas agruras;

A minha querida orientadora, Marcília Gomes, pela dedicação, paciência, e leveza com a qual enxerga a vida dentro e além das leituras e escritos;

Aos professores, os personagens mais importantes desta etapa da minha vida;

Aos amigos, em especial Bárbara Marina;

Ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), por possibilitar a realização desta pesquisa;

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão de bolsa durante parte desta pesquisa;

Ao tempo, objeto de grande parte das minhas indagações.

Muitíssimo obrigada!

RESUMO

O estatuto da fama e daquilo que significa ser uma celebridade na contemporaneidade vêm passando por substanciais transformações. Neste sentido, a presente pesquisa busca analisar pelo viés teórico-metodológico da Análise do Discurso de orientação francesa e seus dispositivos os efeitos de sentidos suscitados pelos comerciais publicitários com celebridades que evidenciam pontos negativos ou indesejáveis destas para atingir o objetivo de vender um produto ou serviço de uma marca. Embora as celebridades ainda constituam figuras com poderes influenciadores e impulsionadores ao consumo e à prescrição de modos de ser e estar, elas têm tido cada vez mais dificuldade em manterem-se célebres, dada a rapidez das relações e afiliações num contexto de liquidez. Assim sendo, o espectro midiático e os próprios comerciais publicitários aparecem como preciosos dispositivos para potencializar o capital de visibilidade desses sujeitos que apenas estão famosos, vivendo na contínua ameaça de acordarem no mais absoluto ostracismo. Para que esse pesadelo não se torne real, as celebridades aceitaram ocupar uma posição não-célebre, que aparece materializada no discurso dos comerciais que aqui analisamos. O nosso percurso analítico, perpassado por um processo de descrição e interpretação dos enunciados que compõem o nosso corpus possibilitou leituras que indicam uma verdadeira simbiose entre o espectro midiático e a espetacularização da intimidade.

PALAVRAS-CHAVE: Publicidade. Celebridades. Mídia. Discurso.

ABSTRACT

The status of fame and what it means to be a celebrity nowadays have undergone substantial changes. In this sense, this research aims to analyze the theoretical and methodological bias analysis of the French orientation speech and devices the effects of meanings raised by advertising commercials with celebrities who show negative points or undesirable these to achieve the goal of selling a product or service of a trade mark. Though celebrities still constitute figures with influential powers and drivers for consumption and prescribing ways of being and living, they have been increasingly difficult to keep up famous, given the speed of relationships and affiliations a liquidity context. Thus, the media spectrum and the advertising business themselves appear as precious devices to enhance the capital visibility of these individuals who are just famous, living in continual threat to agree in absolute ostracism. So that this nightmare does not become real celebrities agreed to take a non-famous position, which appears embodied in the commercial speech which we analyze. Our analytical course, permeated by a process description and interpretation of statements that make up our corpus possible readings that indicate a true symbiosis between the media spectrum and the spectacle of intimacy.

KEYWORDS: Advertising. Celebrities. Media. Speech.

LISTA DE FIGURAS

Figura 01...... 64 Figura 02...... 65 Figura 03...... 65 Figura 04...... 66 Figura 05...... 66 Figura 06...... 67 Figura 07...... 67 Figura 08...... 68 Figura 09...... 68 Figura 10...... 69 Figura 11...... 73 Figura 12...... 74 Figura 13...... 74 Figura 14...... 75 Figura 15...... 75 Figura 16...... 76 Figura 17...... 76 Figura 18...... 77 Figura 19...... 77 Figura 20...... 78 Figura 21...... 78 Figura 22...... 79 Figura 23...... 79 Figura 24...... 82 Figura 25...... 82 Figura 26...... 83 Figura 27...... 83 Figura 28...... 84 Figura 29...... 85 Figura 30 ...... 85 Figura 31...... 86 Figura 32...... 86 Figura 33...... 87 Figura 34...... 87 Figura 35...... 90 Figura 36...... 90 Figura 37...... 91 Figura 38...... 95 Figura 39...... 95 Figura 40...... 96

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 09 1.1 PERCURSO METODOLÓGICO, OBJETIVOS E TRAJETO TEMÁTICO...... 09 1.2 UMA NECESSÁRIA TEORIZAÇÃO: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES ...... 13 1.3 MÍDIA, CELEBRIDADES E PRODUÇÃO DE SENTIDOS: UMA SIMBIOSE ...... 20 2.0 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CELEBRIDADE: EXPOSIÇÃO COMO REGRA...... 40 2.1 CELEBRIDADES E ESPETÁCULO...... 48 2.0 O CONSUMO IMPULSIONADO PELAS CELEBRIDADES...... 55 3.0 A PUBLICIDADE DA CELEBRIDADE NÃO-CÉLEBRE E SEU JOGO DISCURSIVO: UM ARREMATE...... 63 3.1 CORPUS ANALÍTICO...... 63 3.1.1 Susana Vieira para Havaianas...... 63 3.1.2 Rubinho para Vivo...... 81 3.4 Daniella Cicarelli para Nextel...... 89 3.5 Júnior Lima para Nextel...... 94 3.6 para Nextel ...... 98 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 103 REFERÊNCIAS ...... 106 APÊNDICES – CD CONTENDO AS SEIS PROPAGANDAS ANALISADAS ...... 109 9

1. INTRODUÇÃO

Um novo famoso recebe o telefone de um produtor de programa sensacionalista da emissora concorrente para combinar um flagrante. E cai. No outro dia a própria emissora divulga em off que a fulana está fazendo de tudo para aparecer. Cruel? Por que tanta gente desejaria? (Marcelo Arantes, ex-participante do reality show Big Brother Brasil, em seu livro “A antietiqueta dos novos famosos”).

1.1 PERCURSO METODOLÓGICO, OBJETIVOS E TRAJETO TEMÁTICO

A publicidade busca fisgar a atenção do maior número possível de indivíduos- consumidores, para isso, desenvolve inúmeras estratégias. A que nos interessa nesse estudo é a utilização de celebridades em comerciais de produtos e serviços apresentados na televisão aberta, o que não consistiria em nenhum ineditismo, e até poderia significar uma pesquisa repetitiva, uma vez que, na academia, o marketing e a comunicação já se debruçam há tempos sobre essa antiga tática de venda através de uma figura pública, porém, o foco desses trabalhos se dá sob a perspectiva dos marketólogos e comunicólogos e é centralizado no comportamento de compra e nos índices de venda, objetivando oferecer ao mercado uma fórmula de máximo retorno financeiro. Também se tem conhecimento da obra “O show do Eu: a intimidade como espetáculo” tese da autora Paula Sibília (SIBÍLIA, 2008), que investiga e analisa o exibicionismo das intimidades por parte dos próprios sujeitos contemporâneos, ou seja, discursos confessionais, praticados no terreno da internet no século XXI. Todavia, o recorte de Sibília se dá com os blogs, ou seja, os diários da contemporaneidade, que são abertos, com a chave na mão de todos, no clicar de um mouse. Esses sujeitos analisados pela autora são inicialmente anônimos, embora alguns possam alcançar um período de notoriedade. A autora também analisa os Reality shows. Todavia, o foco de Sibília não circunda a ressignificação do conceito de celebridade dentro do discurso da publicidade como aqui discutiremos. Nosso estudo, por sua vez, tem outras peculiaridades, ele se dá no campo interdisciplinar das ciências sociais e humanas e se ancora na perspectiva teórica da Análise do Discurso de orientação francesa (AD). Nosso objeto é o discurso dos 10 comerciais publicitários que se utilizam de celebridades e sub-celebridades de modo embaraçoso, colocando-as por vezes como motivo de riso ou de compadecimento, como mais acessíveis ou como mais críveis, justamente por desconstruir o imaginário que se tinha em torno do conceito de celebridade como um sujeito irretocável. É relevante sublinhar que não nos referimos aqui ao modo pastelão de fazer graça, pois esse sempre existiu na televisão e na publicidade, seja com famosos ou não. O que nos inquieta, e que originou o problema central da presente pesquisa, é algo muito mais sutil e específico, ou seja, a quebra do conceito de celebridade como conhecíamos até então. É no fenômeno da “descelebrização” da celebridade, ou na ressignificação do conceito de celebridade engendrado pelo discurso que ganha materialidade nesses comerciais publicitários que reside nosso objeto e de onde desponta nosso problema de pesquisa. Esses comerciais com mote na “descelebrização” da celebridade buscam vender através de atrizes, atores, modelos, ex-participantes de reality shows, esportistas e etc, mas não através da beleza, fama e conquistas dessas figuras públicas como sempre havia sido feito, ao contrário, agora a luz central é jogada em alguma fragilidade dessa celebridade, em algum evento ou gafe ocorrido com ela que tenha “vazado” para o público, como se diz no jargão da mídia de celebridades. A tentativa de venda do produto ou serviço anunciado não se relaciona ao cabelo e pele impecáveis de uma atriz ou no corpo esculpido de determinado atleta, mas, em algum passo em falso que eles tenham dado em suas carreiras, em um traço físico ou psicológico indesejado, ou até mesmo o fato de estarem relegados ao ostracismo. Essa incidência de comerciais com a idêntica forma de utilização de celebridades aqui estudada começou a surgir no Brasil já por volta do ano de 1994 através da empresa São Paulo Alpargatas, dona da marca de sandálias Havaianas, em que vários comerciais criados por sua agência de publicidade, a AlmapBBDO, passa a trazer celebridades em situações embaraçosas. No ano de 2005 a agência África lança um comercial para seu cliente Gradiente no qual uma criança chama o apresentador de televisão brasileiro Luciano Huck de “pão-duro”, em 2010 a empresa Skol faz um comercial com o cantor de lambada Beto Barbosa, o texto colocava Beto como um ícone brega que “queimaria o filme” de qualquer um no churrasco, tal qual um blazer de ombreira e uma pochete, ou seja, itens que já fizeram sucesso e que agora causam certa vergonha, dizia a peça numa clara tentativa de mostrar que o cantor de renome nos anos oitenta se tornara tão obsoleto quanto tais objetos. A campanha teve tanto sucesso que 11 mereceu uma continuação, agora Beto Barbosa estaria frente a frente com um garçom que não suportava ouvir a repetição de seus únicos clássicos “Adocica” e “Preta”. Entretanto, foi no ano de 2011 que usar celebridades de forma não célebre pareceu ter virado regra para a publicidade, a empresa Fiat lançou um comercial rindo do ator Ricardo Macchi e de sua fama de profissional ruim, o Burguer King trouxe à público uma peça publicitária onde a voz fina do lutador de artes marciais mistas Anderson Silva era motivo de graça, o Bradesco mostrava em seu anúncio de seguros automotivos um ladrão desistindo de roubar um carro para não ter que ouvir o cantor Byafra executar sua canção “sonho de Ícaro” no banco traseiro, a Volkswagen também segue pela mesma linha discursiva com o jogador Tulio Maravilha ajudando a montar um carro modelo “gol” já que não teve tempo de fazer seu milésimo gol em campo, a cantora Vanusa aparece em um comercial de pastilhas relembrando o episódio público no qual cantou errado a letra do hino brasileiro, dentre muitos outros comerciais com a mesma tônica, todos no ano de 2011. A repetição desse discurso em torno da celebridade contida nesses comerciais é um fenômeno que, embora relativamente recente, já vem suscitando interesse e curiosidade, prova disso é que diversos blogs e sites já trouxeram textos sobre o assunto. Notícias como “Famosos aceitam rir de si mesmos em comerciais”1, “Cinco famosos que riram de si mesmos em propagandas”2, “Novo comercial da Havaianas brinca com vaidade de Susana Vieira”3, “Comerciais minimizam famosos e exploram bom humor”4, “Daniella Cicarelli reaparece em comercial como a modelo que não deu certo como atriz... e sumiu”5, circulam na web. Todavia, estudos sobre esse objeto parecem não seguir a mesma frequência. Eis nossa tentativa. Por entendermos que tais questões não podem ficar à margem dos estudos acadêmicos e que tal temática é merecedora de maiores reflexões dada a sua complexidade, o presente estudo analisa seis comerciais publicitários, atentando para os seus discursos sobre o novo estatuto da fama que discutiremos adiante. Elegemos, desta forma, o nosso corpus de análise, que é composto pelas seis seguintes peças

1 Acesso em: http://www.portalvideo.blog.br/2013/10/famosos-aceitam-rir-de-si-mesmos-em.html. 2 Acesso em: http://f5.folha.uol.com.br/televisao/967758-cinco-famosos-que-riram-de-si-mesmos-em- propagandas.shtml. 3 Acesso em: http://odia.ig.com.br/diversao/2015-11-15/novo-comercial-da-havaianas-brinca-com- vaidade-de-susana-vieira.html 4 Acesso em: http://diversao.terra.com.br/gente/noticias/0,,OI3536309-EI13419,00- Comerciais+minimizam+famosos+e+exploram+bom+humor.html. 5 Acesso em: http://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2016/06/10002411-daniella-cicarelli-reaparece-em- comercial-como-a-modelo-que-nao-deu-certo-como-atriz-e-sumiu.shtml. 12 publicitárias: o comercial em formato de teaser chamado “convite” produzido pela agência de publicidade AlmapBBDO para seu cliente Havaianas, que tem como protagonista a atriz global brasileira Susana Vieira, e que foi publicizada na televisão aberta no ano de 2015. O comercial de título “Adivinho” também estrelado pela mesma atriz, no mesmo período, por igual anunciante e agência. O terceiro comercial a integrar o corpus analítico é da empresa de telefonia Vivo, nomeado “Famoso”, foi produzido pela agência África e traz o piloto brasileiro de Fórmula 1 Rubens Barrichello, aparecendo na televisão no ano de 2014. O antepenúltimo, penúltimo e o último são da empresa de telecomunicações Nextel, nomeados de “rótulos”, produzidos pela agência LDC, e trazem como respectivos protagonistas a ex-modelo brasileira Daniella Cicarelli, o músico Júnior Lima e o ator da rede Globo de televisão Bruno Gagliasso, ambos os comerciais foram lançados no corrente ano de 2016. Como já citado anteriormente, existem vários comerciais publicitários se utilizando de algum defeito ou aspecto tido como frágil da vida íntima das celebridades como estratégia para vender produtos e serviços. Esta delimitação/recorte nestes seis comerciais, entretanto, se dá principalmente pelo aparecimento de enunciados cruciais para investigar os objetivos propostos nesta pesquisa, por consistir em seis comerciais de três das maiores agências de publicidade do Brasil e por trazer celebridades em diferentes estágios de fama, o que já sinaliza para quesitos complexos e com meandros carentes de investigação. Nosso principal objetivo é analisar o modo através do qual o discurso dos comerciais publicitários ressignificam o conceito de celebridade na contemporaneidade. Interessamo-nos também por: 1) Investigar a imbrincada relação de retroalimentação entre a mídia e as celebridades que gera um novo estatuto da fama; 2) Examinar os mecanismos que possibilitaram a construção do discurso de tônica confessional proferido pelos sujeitos celebridades nestes comerciais; 3) Descrever/interpretar o engendramento discursivo que forja um sujeito celebridade cada vez menos célebre. Metodologicamente, esta pesquisa situa-se no terreno descritivo-interpretativo e segue uma abordagem eminentemente qualitativa. Essa opção metodológica vai a encontro com as particularidades do objeto de análise, tendo em vista que objetivamos descrever/interpretar os discursos sobre a ressignificação do sujeito-celebridade a partir dos comerciais publicitários veiculados pela televisão, sob o arcabouço da AD. Nessa vertente teórica, teoria e metodologia estão relacionadas intimamente, uma vez que a análise ocorre num movimento conjunto entre descrição e interpretação. Em outras 13 palavras, é sempre um meta-desafio para o analista do discurso valer-se deste para analisar um em específico. Considerando todos os aspectos até aqui descritos, tentaremos analisar os discursos produzidos pelos comerciais com celebridades partindo do questionamento e investigação em torno da recorrência deste discurso da celebridade “gente como a gente” na contemporaneidade e não outro, bem como identificar as relações de poder presentes nesses conteúdos, a fim de compreender as condições e possibilidades que favorecem o surgimento e a potencialização destes discursos confessionais por parte das celebridades, assim como os novos contornos no estatuto da fama que são denunciados nos enunciados dos comerciais estudados. O presente trabalho dissertativo tem a seguinte estrutura: capítulo inicial onde foi traçado o percurso metodológico, objetivos e trajeto temático, bem como as primeiras aproximações com o objeto. Aqui, temos como objetivos tornar claro em que consiste o objeto de pesquisa e os questionamentos suscitados por ele através de exemplos empíricos, além de estabelecer relações entre os eixos mídia, celebridades e produção de sentidos. Dentre outros autores, foi utilizado Thompson com o conceito de “quase- interação mediada”, Bauman com o conceito de “liquidez”, Giddens com o de “desencaixe” e Lipovetsky e França tratando das celebridades contemporâneas. No segundo capítulo tratou-se sobre a construção das identidades das celebridades, da exposição da intimidade e dos discursos do consumo que são impulsionados pelos porta-vozes célebres nos comerciais publicitários. Dentre outros autores, trabalhamos com o conceito de “sociedade do espetáculo” segundo Guy Debord, as noções de signos e mitos aplicados à cultura de massas segundo Roland Barthes e Edgar Morin em “Mitologias” e “cultura de massas no século XX” respectivamente. Bem como a noção de “identidade” em Hall. No último capítulo objetivamos arrematar, ao menos temporariamente, as correlações entre categorias da Análise do Discurso (AD) com as das narrativas dos comerciais publicitários com celebridades nos moldes dos aqui investigados, principalmente através de Foucault e Orlandi.

1.2 UMA NECESSÁRIA TEORIZAÇÃO: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

As celebridades circundam os mais diversos espaços sociais na contemporaneidade, seja no entretenimento, política, religião, etc. Da mesma forma, é possível que “nasça” um sujeito celebridade de qualquer área, vê-se atualmente cirurgiões, professores e 14 palestrantes que se tornam espécies de “showmans”, bem como personalidades do entretenimento que conseguem penetrar em outros campos, como o caso do humorista brasileiro Tiririca que se tornou deputado. O estatuto da fama na atualidade é muito mais fluído e metamórfico do que em outras épocas, agora é possível construir uma celebridade com o apoio de “gurus” especializados no assunto e da mídia. Nesse contexto a celebridade aparece como um sujeito diferente de outrora, não mais como alguém supostamente irretocável e inalcançável, até porque paira a sensação de que qualquer um pode vir a ser uma celebridade, desde que caia nas graças da mídia e que se empenhe performaticamente.

A partir do Renascimento, com o desenvolvimento da sociedade laica, das universidades e da imprensa, a celebridade alargou-se aos novos atores, nomeadamente os escritores, os cientistas e os artistas: entrou em cena o poder da universidade, da disseminação da palavra e da imagem. Essa nova forma de adquirir prestígio social ofuscou o caráter espetacular do carisma, tanto quanto possível associado à imagem. A partir do final do século XIX, mas em especial no século XX, dá-se o alargamento quantitativo das celebridades aos jornalistas, atores, esportistas e finalmente aos famosos sem outra ocupação [...] O final do século XX, com o icônico Big Brother, consagrou finalmente o devir histórico da celebridade. Provou em definitivo que todos os homens e mulheres comuns podem, e muitos querem, ascender à celebridade (FRANÇA, 2014, p. 72). O anunciante de cosméticos Neutrox lançou um comercial6 na televisão que é sintomático do que estamos tentando dizer. Nele aparecem três mulheres na janela de um apartamento, usando um binóculo elas acabam percebendo a atriz brasileira Flávia Alessandra tomando banho num apartamento próximo. A narrativa se inicia com umas das mulheres dizendo: “Gente! Gente! É a Flávia Alessandra! E ela também usa Neutrox!”, a segunda mulher responde “Nossa! Eu uso o mesmo condicionador que a Flávia Alessandra”, a terceira personagem então retruca firmemente: “Eu hem! É a Flávia Alessandra quem usa o mesmo condicionador que a gente!”. A celebridade, neste caso a atriz Flávia Alessandra, aparece de forma sensual tomando banho, ao final do comercial sua beleza é novamente evidenciada quando afagando seus cabelos ela diz: “Todo mundo sabe que Neutrox funciona”. É possível perceber as diferenciações de status e padrão físico que o comercial propositadamente provoca entre as três mulheres anônimas e a figura famosa, todavia, há uma quebra abrupta em certo ponto, justamente quando uma das personagens anônimas diz que Flávia é quem deveria se orgulhar de usar o mesmo cosmético que ela. Esse comercial

6 Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=BLoYb-i8iIc 15 opera quase uma meta-narrativa ou metalinguagem, pois coloca os modos como a publicidade se utilizava da celebridade antes e o modo atual, ou seja, a celebridade antes como ícone e agora como acessível.

O discurso é um dos aspectos da materialidade ideológica, por isso, ele só tem sentido para um sujeito quando este o reconhece como pertencente a determinada formação discursiva. Os valores ideológicos de uma formação social estão representados no discurso por uma série de formações imaginárias, que designam o lugar que o destinador e o destinatário se atribuem mutuamente (Pêcheux, 1990, p.18). A produção de sentidos operada pelo discurso do comercial de Neutrox, aqui utilizado como ilustração, permite entrever um jogo entre aquilo que é dito com o não dito como forma de situar o espaço ao qual pertencem, de um lado, a atriz Flávia Alessandra, e de outro, as três mulheres anônimas. Só assim os receptores conseguem atribuir sentido de humor ou sarcasmo na fala da última mulher. Como o sujeito não é fundador do discursivo, mas agente de um interdiscurso, fica subtendido que ambas as partes, Flávia e as demais mulheres, são cientes de que ocupam posições diferentes no contexto social, estando investidas em formações imaginárias diferentemente valoradas. Todavia, a última personagem da peça expõe um desejo de resistir a esse processo valorativo, pois esta diz que a atriz Flávia Alessandra é quem deveria se orgulhar de usar o mesmo condicionador que ela e não o contrário. Assim sendo, o discurso desse comercial tem seu sentido interligado a outro discurso já previamente existente, o de que há pessoas mais influenciadoras do que outras, por diversos motivos que agregam um status de verdade a esse poder de influência, o que é reafirmado ao final do comercial, quando a atriz surge com o produto anunciado em mãos dizendo que “todo mundo sabe que Neutrox funciona”. Esse último enunciado reitera o discurso de diferenciação entre Flávia e as demais mulheres, bem como confere a atriz o poder de testemunho, de garantia, posto que implicitamente diz “todo mundo sabe que Neutrox funciona, e eu sou prova disso”, enquanto acaricia seus cabelos luminosos e precisamente penteados. Muito embora o discurso do comercial tenha a fala da mulher anônima que contesta o status valorativo de Flávia Alessandra, ela não aparece ao final da peça dizendo algo do tipo “todo mundo sabe que Neutrox funciona, não preciso que a Flávia Alessandra me diga isso”. Isso ocorre porque o comercial publicitário tem o intuito genuíno de vender, o que acontece mais facilmente quando se utiliza de um discurso de projeção, de alguém que 16 parte de um lugar objetivando chegar a outro, e usar determinado produto é o que lhe credenciará a atingir esse lugar de desejo. É o que a indústria publicitária faz: lança modelos que serão alcançados na medida em que se fizer uso de seus produtos e serviços, colocando-os na condição de pontes para a . Enquanto esta durar, é claro, já que suas engrenagens são incessantemente substituídas. Entretanto, continua sendo fator importante nessa formação discursiva a fala da personagem (mulher anônima) que coloca em cheque as premissas em que o discurso se erige, já que esta imprime um viés contestatório na já conhecida estratégia projetiva de venda. Outro exemplo é o do canal online de humor “Porta dos fundos”, que seguindo a mesma linha discursiva, produziu um vídeo de enorme sucesso e números de visualizações chamado “Xuxa Meneghel”7, onde a apresentadora Xuxa visita a casa de uma telespectadora chamada Jéssica. Essa visita é muito característica dos quadros de programas televisivos, onde um anônimo recebe a visita surpresa de seu ídolo e fica em verdadeiro estado de graça. Só que as coisas não ocorrem dentro do esperado, uma vez que Jéssica não consegue reconhecer a apresentadora Xuxa, se mostrando completamente entediada e confundindo-a com várias outras personalidades midiáticas. Muito embora esse vídeo não tenha o mesmo interesse do comercial de Neutrox, já que não oferece um produto específico, sendo o vídeo o produto propriamente posto a venda, a estratégia é a mesma. Assim como a mulher anônima questiona e desnaturaliza o status valorativo de Flávia Alessandra, que teoricamente seria superior a ela por ser atriz, loira, magra, funcionária da rede Globo de televisão, famosa, presente nas capas de revista etc, Jéssica faz o mesmo quando não fica efusiva ao abrir a porta de sua casa para a apresentadora Xuxa. Ambos os conteúdos, tanto do comercial publicitário quanto do vídeo do canal “Porta dos Fundos”, questionam os estatutos do que é ser famoso e do que é ser uma celebridade na atualidade, apontando para uma modificação em curso, para novas atribuições de sentidos ou ressignificações em torno das celebridades e dos conceitos a elas atribuídos numa construção histórico-discursiva. Exemplos como os acima citados leva-nos a um questionamento. Como esse discurso, que coloca a celebridade dessa forma não célebre, encontrou nos tempos recentes e atuais um terreno tão fértil para se disseminar? Em outras palavras, quais as condições que possibilitaram e/ou favoreceram o aparecimento dessa tônica discursiva? Aqui, nos importamos com o “como”, com a produção e disseminação desse discurso

7 Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=ru8zohJM65Y. 17 enquanto processo, e não como uma razão fundadora das novas posições dos sujeitos- celebridade, motivo pelo qual os “o quês” tornam-se secundários.

A análise do conteúdo, como sabemos, procura extrair sentidos dos textos, respondendo à questão: o que esse texto quer dizer? Diferentemente da análise de conteúdo, a Análise do Discurso considera que a linguagem não é transparente. Desse modo ela não procura atravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado. A questão que ela coloca é: como este texto significa? [...] A questão a ser respondida não é “o quê”, mas o “como” (ORLANDI, 2001, p. 17- 18). A publicidade, quase sempre uma intrusa com seus outdoors em nossos percursos, ou invasiva com seus anúncios quebrando nossa leitura de uma revista, sempre presente em nosso lazer com seus patrocínios e brindes, ou mesmo sorrateira com seus banners em nossos sites e blogs preferidos, tem o desafio de se reinventar constantemente. Isso é evidente, afinal, salvo para os profissionais da área, a publicidade e a propaganda agem muito mais como interrupções do que como fontes de informação ou prazer. Somado a isso, tem-se um consumidor saturado das já conhecidas formas de abordagem e persuasão, dai todo o empenho que essa indústria dedica para aguçar novamente o interesse dos possíveis consumidores, tentando mapear ao máximo as tendências e os indivíduos contemporâneos. Fato é, que independentemente do que se busca com uma campanha publicitária, uma coisa é certa, para alcançar o resultado almejado, o indivíduo-consumidor tem que se identificar e se projetar com/nela. Ele quer sentir-se parte ativa, e não mero receptor na produção dessa peça publicitária, ademais, o consumidor, na condição de um indivíduo hedônico, narcisista e que busca exclusividade, deseja se auto representar e não mais ser representado por alguém. Parece ser a reivindicação universal dos “quinze minutos de fama”. Os comerciais publicitários com celebridades “gente como a gente”, como forma de conceituar claramente, consistem em uma vertente de peças publicitárias que trazem como promotores de seus produtos, serviços ou marcas, uma celebridade ou subcelebridade, portanto, pessoas que estão no auge de suas carreiras, ou relegadas ao ostracismo, num discurso de tom confessional em torno de um defeito ou assunto embaraçoso de suas próprias vidas, ou seja, persuadindo o consumidor a comprar, paradoxalmente, através da demonstração de seus pontos frágeis. É a quebra com o sentido do arquétipo do ídolo perfeito, onde agora ele não pode mais estar superior ao público, mas igual ou aquém, para que só assim conquiste sua simpatia. 18

Assim sendo, podemos falar em dois tipos de celebridades presentes na publicidade. O que chamaremos de celebridade “tipo 1” é aquela primeira colocação da figura pública induzindo ao consumo de um bem ou serviço somente através de seu carisma, beleza e fama, num modelo de projeção, e o “tipo 2” é a utilização da celebridade na publicidade que constitui o objeto dessa pesquisa, ou seja, a que persuade ao consumo através da confissão de um ou mais pontos negativos ou frágeis da pessoa célebre. A primeira modalidade discursiva continua ocorrendo, mas a segunda, ainda pouco conhecida ou mesmo discutida, é o nosso fenômeno de interesse. Se a indústria publicitária quer alguém eficiente para vender seus produtos, é preciso que essa pessoa escolhida seja um sujeito que ainda não está totalmente realizado enquanto um ator social, mas ainda por realizar-se, portanto, imperfeito. Igual, ou inferior aos seus triviais receptores, que como qualquer ser humano é formado não só por qualidades. Hoje, o arquétipo do ícone infalível do já citado “tipo 1” parece incomodar, causa antipatia e caiu em desuso. É como se o indivíduo-consumidor afirmasse: “Eu devo ser a projeção do ídolo, e não ele a minha”. O que é curioso é justamente essa preferência por um representante falho, imperfeito, em certo ponto até risível ou digno de compadecimento. Por isso tantas peças publicitárias com ícones mostrando justamente, e não por acaso, suas características não icônicas. Na verdade, esses comerciais sinalizam para uma mudança substancial no conceito do ícone, ou do representante ideal, que agora não pode se impor como o único com direito a exercer o poder, mas sim aquele que se transfigura em um modelo, evocando uma comunidade da qual supostamente ele faz parte. A sociedade, então, parece ter passado a demandar porta-vozes humanizados, falhos, com defeitos, mas que mesmo assim estão ou já estiveram no sucesso. E a publicidade prontamente entendeu e atendeu essa demanda, oferecendo ao público essas celebridades de “tipo 2”, espécie de protagonistas mais francos, que implicitamente passam a mensagem que todo sujeito comum deseja ouvir: “Apesar das minhas limitações eu posso chegar aonde quiser”. Vê-se então que as ofertas de bens e a indução publicitária não são atos arbitrários, mas, um terreno de experiências, discursos, ressignificações e efeitos de sentido. Nessa esteira, um fato inquietante vem à mente: a sociedade brasileira nunca foi adepta das propagandas comparativas. Diferentemente da americana, que enxerga nas propagandas comparativas uma oportunidade de obter informações sobre os produtos, através da concorrência explicitamente estabelecida no embate de duas marcas, os 19 brasileiros tendem a se solidarizar com a marca desfavorecida e a não verem com bons olhos o anunciante. Alegam que para vender não se faz necessário apontar os defeitos do concorrente, tampouco debochar, achando mais construtivo que o anunciante se limite a mostrar suas próprias qualidades. Deste modo, como é possível um público rejeitar uma modalidade de propaganda pelo fato dela depreciar uma marca, e ao mesmo tempo passar a aceitar prontamente uma modalidade que deprecia um ser humano, e não um ser humano anônimo, mas, celebridades? É provável que justamente por não tratar-se de um ser humano qualquer a depreciação tenha sido aceita. Nesse caso, novos contornos são incorporados à figura do ídolo, havendo uma quebra com o seu sentido típico, ou seja, aquele que vivia num pedestal. Indubitavelmente, essas propagandas não teriam o mesmo sucesso se o protagonista fosse um ator desconhecido, muito menos se fosse apenas um produto de uma marca desmerecendo o de outra. O que gera identificação no público é o fato de a celebridade não mais forjar ser um herói, mas admitir ser um alguém imperfeito, comum, alcançável. Sob o impulso subterrâneo do trabalho da igualdade as estrelas saem de seu universo distante e sagrado [...] é o tempo das estrelas de físico “insignificante”; seduzem não mais porque são extraordinárias, mas porque são como nós. As estrelas eram modelos, tornaram-se reflexos; queremos estrelas “boa gente”, última fase da dissolução democrática das alturas acarretada pelo código da proximidade comunicacional, da descontração, do contato, do psicologismo (LIPOVETSKY, 1989, p. 217).

Em troca de uma generosa quantia em dinheiro e de um súbito e certamente rápido retorno à mídia, esses indivíduos aceitam, eles mesmos, quebrar a aura mítica que acreditavam os envolver. Os motivos pelos quais as celebridades aceitam fazer esse tipo de comercial são os mais diversos, como por exemplo, reaparecer na mídia, defender-se de algo, mostrar que não se deixou abater por algum momento nebuloso de suas carreiras, obter dinheiro, agarrar-se ao sonho da fama, ou mesmo virar meme8 e com isso reconquistar ou conseguir mais público. As razões que levam essas celebridades e subcelebridades a aceitarem protagonizar esses comerciais, onde devem necessariamente se expor naquilo que certamente desejavam manter em sigilo, estão intimamente ligadas ao modo como se

8 Significa imitação. Uma forma "viralização" de uma informação, ou seja, qualquer vídeo, imagem, frase, ideia, música e etc, que se espalhe entre vários usuários rapidamente, alcançando muita popularidade. 20 constrói o estatuto de célebre na contemporaneidade. A espetacularização da intimidade revela um discurso para a celebridade que, de certo modo, descontrói categorias que alicerçavam o discurso do famoso enquanto uma entidade eterna, irretocável e inalcançável. Essas teias que engendram discursos a sentidos e sentidos a novos discursos perpassam a mídia, que como o próprio nome explicita, media a relação entre as celebridades e os sujeitos receptores.

1.3 MÍDIA, CELEBRIDADES E PRODUÇÃO DE SENTIDOS: UMA SIMBIOSE

Dissemos que os comerciais publicitários que se utilizam de celebridades expondo suas fragilidades no intuito de vender produtos e serviços na televisão só alcançam sucesso pelo fato de que seus protagonistas são figuras públicas. Figuras essas que são fortemente construídas com o apoio midiático, que horas as enaltecem em detrimento de outras, horas as fazem sucumbir em troca de uma nova aposta, mediante o famoso que se converte na “bola da vez”. Portanto, ninguém é celebridade na contemporaneidade, no máximo, alguém está celebridade. Antes de prosseguir, é necessário apresentar aquilo que acreditamos ser a natureza da relação que esses comerciais que constituem nosso objeto, e que após um recorte configura nosso corpus de análise, trava com seus receptores. Já antecipamos que a mídia é o suporte possibilitador, mas, qual é a natureza dessa relação estabelecida entre os comerciais que expõem celebridades e os telespectadores através da mídia? Entendemos que essa relação se dá sob a forma de uma “quase- interação mediada”, posto que guarda características próprias que os diferem de uma interação face-a-face ou meramente mediada. Esclarece Thompson:

Uso o termo “quase-interação mediada para me referir às relações sociais estabelecidas pelos meios de comunicação de massa (livros, jornais, rádio, televisão, etc.). Como o precedente, este terceiro tipo de interação implica uma extensa disponibilidade de informação e conteúdo simbólico no espaço e no tempo- ou, em outras palavras, a interação quase mediada se dissemina através do espaço e do tempo. Em muitos casos ela também envolve um estreitamento do leque de deixas simbólicas, se comparada à interação face a face. Contudo há dois aspectos–chave em que as quase-interações mediadas se diferenciam dos outros dois tipos. Em primeiro lugar, os participantes de uma interação face a face ou de uma interação mediada são orientados para outros específicos, para que eles produzam ações, afirmações, etc.; mas no caso da quase-interação mediada, as formas simbólicas são produzidas para um número indefinido de receptores potenciais. Em segundo lugar, enquanto a interação face a face e a interação mediada são dialógicas, a quase-interação mediada é 21

monológica, isto é, o fluxo da comunicação é predominantemente de sentido único. O leitor de um livro, por exemplo, é principalmente o receptor de uma forma simbólica cujo remetente não exige (e geralmente não recebe) uma resposta direta e imediata (THOMPSON, 2009, p. 78). Como algo que é proveniente de uma quase-interação mediada, a relação que é travada entre os comerciais publicitários de celebridade aqui estudados e seus receptores têm caráter monológico e implica a produção de formas simbólicas para um número indefinido de receptores potenciais. Ela é uma quase interação porque não tem o grau de reciprocidade interpessoal de outras formas de interação (ou seja, as mediadas e as face a face), mas é, não obstante, uma forma de interação, mesmo que haja a impossibilidade de especificar os receptores com exatidão e de estabelecer com eles uma via de resposta imediata. Essa quase-interação mediada cria certo tipo de situação social na qual os indivíduos se ligam uns aos outros num processo de comunicação e intercâmbio simbólico, porque é uma situação onde pessoas se ocupam principalmente na produção de formas simbólicas para outras que não estão fisicamente presentes, enquanto estes recebem formas simbólicas produzidas por outros a quem eles não podem responder, mas com quem podem criar (e criam) laços emocionais de amizade, afeto, lealdade, e etc, o que só é possível no descompasso entre as categorias de tempo e espaço que ocorre na contemporaneidade, o que será discutida no decorrer do presente trabalho. Se a quase-interação mediada, forma sob a qual se dá a relação desses comerciais publicitários com os sujeitos receptores, encontra dificuldades em manter um processo dialógico, isso é recompensado através de suas duas outras características, ou seja, a intimidade à distancia e o caráter não recíproco na maneira de estabelecer essa intimidade. Esses dois pontos constituem aspectos fundamentais da quase-interação mediada para analisar a natureza dos relacionamentos pessoais (aqui o relacionamento entre celebridades e sujeitos receptores dos comerciais publicitários televisivos precisamente) que surgem através da mídia. O primeiro quesito, a intimidade à distância, ocasiona aos indivíduos usufruir de alguns bônus.

A intimidade não recíproca à distancia permite aos indivíduos desfrutar alguns dos benefícios da companhia sem as exigências típicas do contexto de interações imediatas. Dá aos indivíduos a oportunidade de explorar relações interpessoais de uma forma vicária, sem entrar na teia de compromissos recíprocos. Os outros distantes com quem se trava conhecimento em interações mediadas são figuras que podem ser encaixadas em nichos espaço-temporais da vida de 22

cada um mais ou menos ad libitum. São companheiros regulares e confiáveis que proporcionam diversão, conselhos, informações de acontecimentos importantes e remotos, tópicos para conversação, etc. – tudo de uma forma que evita exigências recíprocas e complexidades que são características de relacionamentos sustentados através das interações face a face (THOMPSON, 2009, p. 191).

Em sua proposta de uma teria social da mídia, Thompson explica que esses companheiros distantes que tanto nos divertem, informam e emocionam diariamente são encaixados por nós em nossas rotinas de forma relativamente opcional, assim sendo, temos com eles um relacionamento livre das pressões típicas daqueles que se dão num grau de reciprocidade instantâneo. Só há a parte prazerosa, sem cobranças, mas também sem maiores garantias, o que significa dizer que estabelecemos o tempo e atenção que dedicaremos a essa relação, já que ela é majoritariamente monológica, onde eu sou um receptor indefinido entre tantos outros, e a intimidade que é construída com as celebridades protagonistas naqueles comerciais publicitários televisivos será sempre à distância, o que me deixa despreocupado quanto à obrigatoriedade de ser instantaneamente recíproco. Esse molde de relacionamento é favorável aos sujeitos receptores, mas não para a celebridade, que pode ser facilmente esquecida ou trocada por outra ad libitum. É importante, porém, frisar que as relações mediadas e as quase-interação mediadas não significam que os receptores fiquem completamente a mercê dos outros distantes (a esfera produtora) e não possam exercer qualquer controle devido ao caráter não recíproco que rege esses diálogos. Muito pelo contrário, isso dá ainda mais liberdade para os receptores modelarem o tipo de relacionamento que desejam estabelecer com seus companheiros distantes. É justamente essa distância espaço- temporal que permite aos indivíduos receptores definir como querem se engajar, porque eles têm liberdade para isso. De qualquer maneira, na sociedade contemporânea, muitos indivíduos estabelecem e sustentam relações de intimidade não recíprocas com outros distantes. Atores, astros e celebridades midiáticas que se tornam familiares e íntimos, figurando nas conversas diárias da rotina das pessoas, e em alguns casos podem até assumir uma importância maior na vida de alguns, a ponto de ofuscar as interações de intimidade recíprocas no mesmo espaço-temporal. O intuito desses comerciais aqui estudados, como já citado, só alcança seu objetivo se desencastelar a celebridade, tirando-a do seu pedestal, deixando-a ao alcance do público receptor. Afinal, um desconhecido inalcançável não conta seus problemas 23 mais íntimos abertamente. Percebendo o quão cético o público tem se tornado, a publicidade inovou ao estabelecer essa forma de relação entre o famoso e os potenciais consumidores. A definição de celebridade que aparece nessas peças publicitárias é um hibridismo dos arquétipos do Cara Comum e do Bobo da corte.

O Cara Comum adora o humor com autocrítica, que afirma aos outros e a si mesmo que ele não se leva demasiado a sério. O uísque Jim Beam veiculou um anúncio com quatro rapazes conversando felizes em um bar. O anúncio dizia: “A vida de vocês daria uma ótima série humorística na tevê.” Mas então admitia que a série proposta não seria lá muito interessante: “Claro, teria de ser na TV à cabo.” De todo modo, essa atitude também destacou a verdadeira força deste arquétipo: “Amigos de verdade. Uísque de verdade.” A palavra “verdadeiro” é uma das que definem o Cara Comum. Todo artificialismo é suspeito, assim como o desejo de glamour e luxo (MARK; PEARSON, 2011, p. 175). O arquétipo do Cara Comum está presente nos comerciais publicitários com celebridades de “tipo 2”, já que a celebridade abdica da imagem imaculada que carregava até então, aparecendo na mídia sempre bela e atraente, e agora, assumindo sua falibilidade, deixando claro que como todas as outras pessoas, também têm defeitos, manias, ou passou por momentos ruins. Bobo da corte porque ele traz a proposta de, em alguns momentos, fazer rir, de escancarar seus vícios a ponto de ocasionar o humor, o relaxamento e o entretenimento, como será mostrado detalhadamente na abordagem discursiva do comercial com Rubinho Barichello e Susana Vieira.

Talvez por vivermos em uma cultura tão séria, o Bobo da corte tende a ser uma boa identificação da marca, porque quase todos nós temos sede de mais diversão. Pense no sucesso das campanhas publicitárias do leite, com pessoas famosas ostentando grandes bigodes leitosos. Se essas campanhas fossem estereotipadas, o leite seria promovido como um alimento que faz bem para a saúde. Em vez disso, as grandes campanhas reconhecem que o leite é capaz de conectar qualquer um de nós com a nossa criança interior, que ama brincadeiras e travessuras (MARK; PEARSON, 2011, p. 204). Outros dois arquétipos também aparecem nessas figuras que se autodepreciam, os “anti-heróis”, que são aquelas celebridades que estão no auge, mas que para vender demonstram características contrárias ao que costumeiramente simboliza um herói, e há também os vistos como “perdedores”, que são as subcelebridades há tempos relegadas ao ostracismo, e agora resgatadas pela publicidade para venderem através do humor ou compadecimento centrado em seus defeitos e insucesso. Esse é o arquétipo de alguém que já esteve no sucesso, mas que por incompetência ou por não ter construído algo 24 realmente sólido, não conseguiu se manter nos holofotes, residindo na mente das pessoas como personagens pitorescos. Essas propagandas denunciam alguns pontos comportamentais da própria sociedade, sendo um deles a extrema dificuldade em fazer nascer novos mitos e heróis contemporâneos, devido à rapidez e fluidez com que as relações acontecem e se desfazem. Como tudo é instantâneo, não há tempo hábil para que alguém cumpra o ciclo necessário para tornar-se ícone, podendo atingir, no máximo, o posto de celebridade. Ao ser questionado se as pessoas estão reverenciando celebridades e não heróis, Campbell responde:

Sim, e isso é muito mau. Certa vez foi feita uma pesquisa em uma escola secundária do Brooklin, que perguntava: “O que você gostaria de ser?” Dois terços dos estudantes responderam: “Uma celebridade!”. Eles não tinham noção da necessidade de dar a si próprios a fim de realizar alguma coisa. Só queriam ser conhecidos, ter fama, nome e fama, isso é muito mau. Uma sociedade precisa de heróis, ela tem necessidade de uma constelação de imagens suficientemente poderosa para reunir, sob uma mesma intenção, todas essas tendências individualistas. A nação necessita de algum modo, de uma intenção, a fim de atuar como um poder uno (CAMPBELL, 1990, p.147). Mas outros quesitos também estão embutidos aqui, como o surgimento cada vez mais acentuado de celebridades produzidas, inseridas de propósito em “escândalos” milimetricamente pensados e orquestrados por seus assessores para “estourarem” na mídia. Na contemporaneidade há uma forte competição, verdadeiro duelo para alcançar e principalmente se manter na fama, onde para ser o vencedor tudo é válido, desde que agrade ao público. Os meios de comunicação consolidam o imaginário popular em torno dessas celebridades, mitos contemporâneos de nossa cultura, que só com o apoio midiático é que se tornam nomes familiares. Contudo, mesmo com suporte midiático, as celebridades contemporâneas esbarram em um considerável entrave na sua ávida corrida pela fama. Se antes o problema da humanidade era que todo e qualquer significado estava no grupo, no coletivo, nas grandes formas anônimas, agora o extremo é outro, pois há pouco significado no grupo, tudo está centrado no próprio indivíduo, prova disso dá-se no âmbito do consumo, notado através dos produtos que são comprados, como telefone móvel, computador pessoal, Ipod... todos eles produtos de uso particular, denunciando forte tendência hedônica.

Ao mundo de ontem, no qual a cultura era um sistema de signos comandados pelas lutas simbólicas entre grupos sociais e organizava- 25

se em torno de pontos de referência sagrados, criadores de um universo estável e particular, sucede o da economia política da cultura, da produção cultural proliferante, indefinidamente renovada. Não mais o cosmo fixo da unidade, do sentido último, das classificações hierarquizadas, centro de referência. Nos tempos hipermodernos, a cultura tornou-se um mundo cuja circunferência está em toda parte e o centro em parte alguma (LIPOVETSKY, 2011, p. 8). Nesse contexto, então, é uma tarefa árdua manter-se na fama. Se essa é uma era que impossibilita o nascimento de heróis, surge uma nova relação com o ídolo, como diz Lipovetsky (2011, pag. 82), “enquanto se afirma um individualismo extremista, as escolhas dos consumidores recaem em massa sobre os produtos do star-system.” Daí surgem as hit-parades, best-selleres, recordes de vendas, listas dos mais isso ou aquilo, índices de audiência, frequência...em outras palavras, dispositivos de visibilidade criados pela mídia, buscados incessantemente pelas celebridades (ou aspirantes) e alimentados por nós enquanto receptores, consumidores e sujeitos dessas formas simbólicas. A extensão do star-system não se dá sem uma forma de banalização ou mesmo de degradação; da figura pura da estrela, trazendo consigo uma imagem de eternidade, chega-se à vedete do momento, à figura fugidia da celebridade do dia: do ícone único e insubstituível, passa-se a um jet set de pessoas conhecidas, “celebrizadas”, das quais revistas especializadas divulgam fotos, contam segredos, perseguem a intimidade. Não há mais um único jornal que não tenha sua seção “Gente”, nem mesmo um Nouvel Observateur, que não espalhe SMS e fofocas... Da glória, própria dos homens ilustres da Antiguidade e dos heróis cornelianos do Grande Século e que era como horizonte resplandecente da grande cultura clássica, passou-se às estrelas, forma ainda heroicizadas pela sublimação de que eram portadoras, depois, com a rapidez de duas ou três décadas de hipermodernidade, às pessoas célebres, às personalidades conhecidas, às “pessoas”. Deslocamento progressivo que não é mais que o sinal de um novo triunfo da forma-moda, conseguindo tornar efêmeras e consumíveis as próprias estrelas da notoriedade (LIPOVETSKY, 2011, p. 83).

Dentro desse universo, em que na falta de heróis as pessoas se voltam para as personalidades do momento, essas propagandas propõem justamente rir ou se compadecer daqueles que personificam tudo isso, ou seja, das celebridades. Lipovetsky parece acertar ao perceber que o mundo passou a se basear pelo star-system, e que esse por sua vez, é formado por uma produção ininterrupta de personalidades midiáticas fluídas. Talvez por isso a publicidade tenha desistido de continuar colocando as celebridades como modelos a serem seguidos ou personas puramente projetivas, e através desses comerciais confessionais, inovou ao apresentar uma abordagem que gera 26 mais identificação e representação do que projeção por parte do público para com essas celebridades.

A era da celebridade para todos anunciada por Warhol chegou. Com seu quinhão de vazio: ser conhecido por nada, a não ser por ser conhecido, como se descobriu na França com os primeiros participantes de um reality show chamado Loft, que se tornaram conhecidos sem nenhum talento particular, a não ser o de se tornarem conhecidos. Mas com seu quinhão de sonho também, como fazem os programas que, de Star Ac’ a Nouvelle Star, expõem claramente o jogo ao propor a seus participantes como se tornar uma estrela. Por certo, seu sucesso de audiência pode, uma vez passada a novidade da fórmula, declina um pouco, mas seu poder de atração, em particular para os jovens que se candidataram aos milhares, diz bem que aí se toca um fenômeno profundo. Se a estrelomania não pode ser separada do formidável inchaço da sociedade midiática, também não poderia ser explicada tão só por esse fator. A hipervisibilidade das pessoas revela o avanço do imaginário igualitário, o culto do sucesso e dos valores individuais, e ao mesmo tempo o poder da cultura psicológica que acompanha a dinâmica da hiperindividualização contemporânea (LIPOVETSKY, 2011, p. 86).

Ou seja, esse interesse dirigido às celebridades e às suas intimidades é um fenômeno de massa que, embora revele uma necessidade de personalização num mundo tão serializado e impessoal como é o do universo capitalista, também permite que ainda se crie laços, mesmo que seja em meio à espetacularização do que essas pessoas têm de mais privado. Assim sendo, essas celebridades ainda suscitam interesse, desde que vistas por outro viés, mais precisamente pelo menos célebre. Todavia, mesmo que os discursos desses comerciais tenham mudado ou proporcionado ao público uma nova relação com as celebridades, pois deixa de sugerir apenas admiração, mas identificação entre aquele e estas, uma coisa continua igual: o interesse pela intimidade dessas celebridades, pois assim como acontece nos reality shows, os comerciais com celebridades não célebres também insuflam isso, veja que a condição imprescindível para que obtenham sucesso é que os famosos exponham suas fraquezas íntimas abertamente. Logo, tratar sobre a contemporaneidade nos é extremamente relevante, pois temos a hipótese de que características deste período mantém íntima correlação com o que vemos nesses comerciais em questão. Sabemos que as celebridades em si não constituem um fenômeno novo, e que podem ser os heróis ou mártires de outrora repaginados, mas o percurso igualmente frenético com que alguém se torna e em seguida deixa de ser celebridade atualmente, o quanto as celebridades servem como ponto de ancoragem para a sociedade, a forma perspicaz com que a publicidade 27 percebeu e se utilizou disso, e o próprio reconhecimento de alguém enquanto celebridade no imaginário dos sujeitos são processos em aberto para pesquisas, como se propõe essa.

No Brasil, as análises da produção, da circulação e do consumo de celebridade ainda são escassas, diferentemente do que ocorre em países como Inglaterra, os Estados Unidos e a Austrália, onde os celebrity studies já constituem um campo de pesquisa bem desenvolvido. [...] Se, em variadas épocas, diferentes sociedades produziram e cultuaram seus heróis, elas não o fizeram da mesma maneira. Suas “entranhas” trazem as marcas da cultura de cada tempo; elas condensam os valores que estão em voga, que agregam a coletividade e movem a vida social. Também a relação que elas estabelecem com seu público, a maneira como elas os convocam e o seu poder de afetação são configurados pelo padrão de sociabilidade vigente. Por tudo isto, falar das novas celebridades é fazer uma leitura da cultura contemporânea (FRANÇA, 2014, p. 7-8). Para investigar tais fenômenos utilizaremos a Análise do Discurso, mais especificamente em sua matriz francesa. Esta foi fundada em 1969 por dois estudiosos, a saber, Michel Pêcheux e Jean Dubois. Estava dado desde então o entrelaçamento inconteste entre linguística, o marxismo e a psicanálise, tendo cada área suas questões mais preponderantes, sem que deixasse de haver uma transversalidade. Dessa forma, Lacan com a psicanálise buscava entender de que modo se construía a autodefinição do homem enquanto tal, qual sua relação com um espectro do inconsciente, até a concepção de que este se estruturava na linguagem. Saussure, amparado na linguística, estudava somente a estrutura da língua, até que o marxismo investiga e apresenta a teoria da opressão presente na fala, que denota uma luta de classes, estas com discursos próprios, com valorações bem diferentes de acordo com as convenções sociais e com as ideologias dominantes, sendo um marco para a AD. Nesse sentido, Pêcheux (1997, p.160), afirma que: [...] é a ideologia que, através do “hábito” e do “uso”, está designando, ao mesmo tempo, o que é e o que deve ser, e isso, às vezes, por meio de “desvios” linguisticamente marcados entre a constatação e a norma e que funcionam como um dispositivo de “retomada do jogo”. É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.

Assim sendo, a AD se preocupa com o discurso enquanto prática social, com o homem e a linguagem na história produzindo sentidos. Portanto, o analista do discurso 28 ao examinar qualquer objeto ou fenômeno precisa desnaturalizá-lo, desconfiar das condições objetivamente dadas, perseguindo as marcas do tempo em que aquilo ocorre, bem como os padrões vigentes de sociabilidade, o que faz com que a análise dessa exposição íntima das celebridades nos comerciais publicitários mediados só tenha substância se enredada aos fios da contemporaneidade, ou ainda mais precisamente, do homem e de suas práticas na contemporaneidade. Como não há transparência na linguagem e nem a língua é um sistema fechado em si mesmo, a análise dos discursos enquanto objetos sócio-históricos ideológicos é o trajeto mais indicado e também mais complexo, uma vez que tudo é representação, signos dotados de sentido que tendem a colocar como verdades absolutas as ideologias dominantes. O que para Althusser (1970) seria “[...] a abstração dos elementos comuns de qualquer ideologia concreta, a fixação teórica do mecanismo geral de qualquer ideologia” (p. 12). São as ideologias que forjam a relação que os indivíduos imaginam ter com as que efetivamente têm, interpelando-os a agir num jogo de interesses, muitas vezes difuso. Toda ideologia codifica, simplifica e esquematiza o todo, objetivando montar e oferecer um contexto conjuntural aparentemente completo e único, levando a crer que nada existe fora dela, só assim seus ideais serão propalados eficazmente. Para isso, ela também precisa se expressar diretamente sob algum suporte que lhe dê concretude, o que se dá por meio de regras, normas, máximas, leis, ou mesmo slogans e comerciais, como nosso objeto. É mister ressaltar que a AD é usada atualmente para investigar os mais diversos produtos simbólicos, se em seu início era quase que restrita aos discursos políticos, hoje alcança os mais diversos textos, como novelas, matérias jornalísticas, cinema, publicidade, etc. Sobre a análise dos produtos midiáticos através da AD, Gregolin explica:

A criação dessa ilusão de “unidade” do sentido é um recurso discursivo que fica evidente nos textos da mídia. Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta. Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio do qual é construída uma “história do presente” como um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É ela, em grande medida, que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente (GREGOLIN, 2007, p. 16). 29

Em suma, cada vez mais a mídia tem-se tornado objeto privilegiado das investigações dos analistas de discurso, já que se interessa pela produção de efeitos de sentido situados historicamente e realizados pelo homem em suas práticas sociais através da linguagem, onde a ideologia ganha corpo. Invocando outros discursos que já se encontram guardados em nossas memórias, a mídia lança os seus próprios, ou seja, opera sempre num interdiscurso como forma de potencializar os sentidos que objetiva. Deste modo, a mídia consegue alinhar identidades aos seus intuitos, trabalhando em sintonia a história, o discurso e a memória nos interdiscursos. O discurso midiático na atualidade permeia vários outros, dentre eles os de caracterização de seu tempo, visto que não há mídia a-histórica. Conceitos como hipermodernidade, modernidade tardia, capitalismo tardio, pós-modernidade e modernidade líquida, além de “contemporaneidade” (denominação mais genérica e livre), que são apenas algumas das alcunhas para a atual ordenação social, são apreendidos e articulados pela indústria da comunicação em seus processos de produção de sentidos. Dentre essa listagem, para investigar algumas das características do contexto histórico em que os comerciais que expõem celebridades estão inseridos, destacamos a noção de liquidez de Zygmunt Bauman (2007), sociólogo polonês, que afirma estarmos diante do que ele denominou de “modernidade líquida”. Para o autor, ‘líquido-moderna’ é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em rotinas e hábitos, das formas de agir e ser. A liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram de forma mútua. “A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo” (2007, p. 07). Bauman aponta para um “derretimento dos sólidos” como traço perene da modernidade, que adquire, em essência, um “novo sentido”, e, mais que tudo, é redirecionada a um novo alvo, sendo uma das precípuas consequências desse redirecionamento a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão do sistema e da ordem na agenda política.

“Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas - os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro” (BAUMAN, 2001, p. 12). 30

Em verdade, ainda alicerçado em Bauman, frente a uma redistribuição e realocação dos “poderes de derretimento” da modernidade nenhum “molde” foi “quebrado” sem sua respectiva substituição. As pessoas, segundo ele (2001, p. 13), foram libertadas de suas antigas gaiolas somente para ser censuradas e admoestadas se não conseguissem realocação, por meio de seus próprios esforços dedicados, contínuos e fidedignamente intermináveis, nos nichos pré-fabricados da nova ordem: “nas classes, as molduras que (tão intransigentemente como os estamentos já dissolvidos) encapsulavam a totalidade das condições e perspectivas de vida e determinavam o âmbito dos projetos e estratégias realistas da vida”. Encontrar novos nichos, “nichos apropriados” para adaptação e acomodação, era, destarte, tarefa dos indivíduos “livres”. A partir daí, passariam a seguir fielmente as regras e modos de conduta tidos como consonantes e corretos para tal lugar. Não obstante, são exatamente esses pontos, determinados padrões, regras e códigos aos quais podíamos nos agarrar, a fim de orientação e norteamento, que são cada vez mais exíguos. O conceito de liquidez apresentado por Bauman como traço definidor do modelo vigente de sociabilidade, onde o sólido se evapora facilmente e a mudança opera tão rapidamente que impede a firmeza dos laços, aponta para uma construção identitária fluída, onde o compromisso é evitado a fim de que não se perca possíveis oportunidades que possam aparecer em meio ao percurso de eterna escolha de modos de ser e estar, modos esses que operam alicerçados em discursos como os da publicidade, que não são só descritivos como também, e principalmente, prescritivos. David Harvey (2008, p. 45), por sua vez, oferece raciocínio análogo atestando que símbolos da “pós-modernidade” como os modismos e a promoção midiático-publicitária são partes de uma lenta transformação cultural emergente nas sociedades do ocidente, onde a ocorrência dessa metamorfose é indubitável. Para ele, num relevante setor de nossa cultura, há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas que “distingue um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e preposições de um período precedente”. Dentro das discursões acerca da agilidade e mutação dos acontecimentos na contemporaneidade, Anthony Giddens, sociólogo britânico, chama nossa atenção para um ponto que consideramos relevante. Ao se referir à contemporaneidade, Giddens denota certa predileção pela utilização de termos como “modernidade”, “modernidade alta” ou “tardia”, por acreditar que ainda estamos vivenciando, agora mais 31 explicitamente, fenômenos que se iniciaram ainda na modernidade. Por isso, evita usar a terminação “pós-modernidade”, partindo da ideia de que o próprio prefixo “pós” pressupõe um fechamento total de uma época e a estreia de outra, ponto de vista com o qual também concordamos, uma vez que, enquanto analistas do discurso julgamos inconcebível a noção de que toda a produção de sentido de uma época se encerra completamente nela. Se assim fosse, os comerciais publicitários aqui investigados, nos quais as celebridades confessam suas fragilidades, fundariam um discurso desvencilhado de qualquer outro, não continuaria a ser midiatizado pela publicidade, então, comerciais em que a celebridade se coloca como modelo a ser seguido, tampouco a indústria publicitária seguiria usando o já estereotipado “comercial de família de margarina” para vender o produto como o elixir da felicidade doméstica e familiar. As mudanças trazidas pelo período que opta nomear como “modernidade tardia”, ainda para Giddens, foram impactantes para o terreno das experiências individuais, de modo que, entre a subjetividade e o todo social haveria um entrelaçamento inconteste, inexistindo primazia de um ou outro, o que acreditamos existir entre o sucesso de aceitação e vendas das propagandas com celebridades expostas e os modos de vida dos indivíduos da contemporaneidade. Em sua “Teoria da Estruturação”, o autor vai tratar da interdependência entre os sujeitos e a estrutura em que vivem, sujeitos esses que exercem poder de agência e que realizam ações através das estruturas sociais que ocupam. Sobre a Teoria da Estruturação, Giddens explana:

A questão é como os conceitos de ação, significado e subjetividade devem ser especificados e como poderiam ser relacionados com as noções de estrutura e coerção. [...] O domínio básico de estudo das ciências sociais, de acordo com a teoria da estruturação, não é a experiência do ator individual nem a existência de qualquer forma de totalidade social, mas as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo. As atividades sociais humanas, à semelhança de alguns itens auto-reprodutores na natureza, são recursivas. Quer dizer, elas não são criadas por atores sociais, mas, continuamente recriadas por eles através dos próprios meios pelos quais eles se expressam como atores. Em suas atividades, e através destas, os agentes reproduzem as condições que tornam possíveis essas atividades (GIDDENS, 2003. p. 3). Da citação exposta acima é possível aferir que, na visão de Giddens, as estruturas não impediriam a ação humana, ou a repreenderia; do contrário, apresentariam os modos pelos quais esses indivíduos agiriam, e essas ações, por sua 32 feita, resultariam na repaginação dessas estruturas. Faz-se mister sublinhar que, na perspectiva do autor, isso só se dá porque o sujeito é capaz de uma reflexividade, a sua identidade é um projeto de sua própria autoria, ou uma “narrativa reflexiva do eu”. Assim sendo, a estrutura constrange, mas também proporciona a já citada capacidade de agência do sujeito. Ora, se as práticas sociais são eminentemente recursivas, é elementar que haja algum trabalho de reflexividade sobre elas, principalmente apoiado em sua continuidade e repetição. Existiria, então, um monitoramento exaustivo da vida social, onde o fluxo de acontecimentos não é rudimentar como se poderia pensar. Esses sujeitos, por exemplo, não naturalizam a rotina como algo simples e objetivamente dado, sendo capazes até mesmo de traduzirem num discurso, se arguidos acerca, o porquê de segui- la, de suas tarefas e obrigações. A reflexividade seria, desse modo, um dispositivo de observação e tentativa de controle da ação por parte de quem a pratica. Essa reflexividade não seria meramente prática, e se utilizaria de conhecimentos peritos, ou da confiança depositada nestes, que se dá num ambiente de desencaixe entre tempo e espaço, de globalização, e entre o poder de agência (parcial e desigual) e a angústia de uma sociedade pós-tradicional, onde a tradição se encontra em meio a um processo de ostracismo, enquanto a razão oferece um leque de escolhas e, ironicamente, de incertezas e riscos. Assim sendo, os indivíduos contemporâneos se veem claramente na posição de responsáveis por sua trajetória, seja ela vitoriosa ou fracassada. Retomando Bauman, este alerta que “uma característica da vida moderna e de seu moderno entorno se impõe, no entanto, talvez como “a diferença que faz a diferença”; como o atributo crucial que todas as demais características seguem.” (BAUMAN, 2001, p. 15). O atributo em pauta é a relação cambiante entre tempo e espaço. Relação essa também percebida por Giddens, que a nomeia “desencaixe”, e que foi decisiva para o modo como a mídia se relaciona com o público. Ou seja, agora espaço e tempo são separados da prática da vida e entre si, podendo, desta feita, serem teorizados como categorias distintas e reciprocamente independentes da estratégia e da ação;

[...] quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré- modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida, presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua “capacidade de carga”, perpetuamente em expansão – o alongamento dos trechos do espaço que unidades de 33

tempo permitem “passar”, “atravessar”, “cobrir” – ou conquistar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade humanas (BAUMAN, 2001, p. 15-16).

A própria ideia de velocidade (principalmente a de aceleração), continua Bauman (op. cit., p. 16), quando referente à relação entre tempo e espaço, supõe sua variabilidade, tendo dificilmente qualquer significado não fosse aquela uma relação verdadeiramente variável, se fosse não uma questão de inventividade e resolução humanas, mas característica, um atributo, da realidade inumana e pré-humana “e, se não se lançasse para muito além da estreita gama de variações a que as ferramentas naturais da mobilidade - as pernas humanas ou equinas - costumavam confinar os movimentos dos corpos pré-modernos”. O tempo se tornou, sobretudo, arma na conquista do espaço. A velocidade do movimento, bem como o acesso a formas mais céleres de mobilidade alcançaram o lugar de ferramenta cerne do poder e da dominação. Essa “nova” e diferente forma de modernidade deve-se mormente a duas características, afirma Bauman. A primeira diz respeito à antiga “ilusão moderna”, que enfrenta rápido declínio e gradual colapso. Ou seja,

da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo é colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro - tão completo que põe fim a toda contingência, disputa, ambivalência e consequências imprevistas das iniciativas humanas (BAUMAN, 2001, p. 37).

A segunda é pertinente à desregulamentação e a privatização dos deveres e tarefas. Trata-se de uma “individualização” de determinadas propriedades coletivas, de uma autoafirmação dos indivíduos; de uma mudança de lócus no que tange aos discursos ético e político.

O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado (“individualizado”), atribuído às vísceras e energia 34

individuais e deixado à administração dos indivíduos e seus recursos. Ainda que a ideia de aperfeiçoamento (ou de toda modernização adicional do status quo) pela ação legislativa da sociedade como um todo não tenha sido completamente abandonada, a ênfase (juntamente, o que é importante, com o peso da responsabilidade) se transladou decisivamente para a autoafirmação do indivíduo. Essa importante alteração se reflete na realocação do discurso ético/político do quadro da “sociedade justa” para o dos “direitos humanos” isto é, voltando o foco daquele discurso ao direito de os indivíduos permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado (idem, p. 38). Com a emancipação das crenças no ato de criação, revelação e condenação eternas, os seres humanos, evidencia esse autor, estão sob sua própria responsabilidade. O que o homem faz ele mesmo pode desfazer. Os limites, agora, estão relacionados aos próprios recursos, dons adquiridos ou herdados, coragem, determinação, força de vontade. Ser moderno, diz Bauman, implica o movimento constante, a incapacidade de parar, de permanecer estagnado. A impossibilidade de atingimento das satisfações encontra-se na consumação sempre futura, nos objetivos que desvanecem e perdem sua atração e potencial de satisfação no ato de sua realização. “Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num estado de constante transgressão [...]” (ibid., 37). Significa, outrossim, ter uma identidade que somente pode existir como projeto não-realizado. É justamente essa identidade enquanto um projeto necessariamente não- realizável por completo que move a indústria publicitária. A felicidade enquanto promessa, e principalmente como um empreendimento a ser conquistado pelo próprio sujeito, acaba sempre encontrando prateleiras de produtos e serviços que tornarão tal conquista possível e completa. As celebridades, por sua vez, são relevantes complementos nessa busca, modelos não só mais a serem seguidos, mas questionados e desconstruídos, como aqui defendemos. Sob a ótica de Giddens, informação, globalização, ênfase nas potencialidades individuais, estilos de vida e risco se solidificam ainda mais na contemporaneidade. As consequências desta só podem ser mensuradas se utilizarmos, como defende ele, “uma interpretação “descontinuísta” do desenvolvimento social moderno”, do contrário, é improvável que saíamos de uma definição histórico-geográfica.

“Modernidade” refere-se ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial, mas por enquanto deixa suas características 35

principais guardadas em segurança numa caixa preta (GIDDENS, 1991, p. 11).

É justamente as características dessa “caixa preta” que Giddens busca trabalhar. Em sua obra “As consequências da Modernidade”, ele cita as descontinuidades desta época, que trouxe consigo transformações nunca vistas antes, o que resultou no abandono de muitos dos arranjos tradicionais. A globalização, por exemplo, ocasionou profundas mudanças até em nossas relações íntimas, como também endossado por Bauman no já aqui discutido conceito de liquidez, e embora a história tenha sido sempre marcada por descontinuidades, as dos tipos tradicionais para pós-tradicionais de ordem social foram expressivas e impactantes. Ao passo que a celeridade das mudanças, o boom informacional, especialmente apoiado pela tecnologia, a interligação entre as partes do globo, e as formas sociais inéditas em outras épocas, como os Estados-nação e a mercantilização generalizada, oferecem uma maior possibilidade de agência, de resistência e do direito de escolher, propiciam também a problemática da segurança versus o perigo, da confiança versus o risco, e da dúvida. Cotidianamente nos deparamos com o multiplicar das incertezas, o que se estende das coisas mais complexas até as mais banais, como o ovo, para citar um simples exemplo, que passa de mocinho a vilão em questão de dias, em meio ao fervilhar de novidades e descobertas que o conhecimento e a tecnologia proporcionam ao discurso médico. Não resta dúvida, a mídia, tomando por base essa pequena ilustração em forma de exemplo, exerce grande peso em nossa produção de sentidos, cuja atuação se dá numa desconexão entre espaço e tempo, o que torna semelhante qualquer acontecimento em todas as partes do mundo. Nesse cenário de desencaixe entre tempo-espaço, ou seja, nesse “deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (Giddens, 2002), vê-se a mudança nos costumes e hábitos, bem como o gradual abandono das restrições colocadas pelos fatores locais. Deste modo, as relações se dão das mais diferentes formas, face-a-face, mediada, à distância, dentre outros. É perceptível, com isso, que a categoria de lugar torna-se quase uma abstração, e o calendário e a globalização criam um passado comum a todos. Esse desencaixe é composto de dois mecanismos, ambos dependentes da noção de confiança, sendo eles as fichas simbólicas e os sistemas peritos. As fichas simbólicas 36 correspondem aos “meios de intercâmbio que podem ser “circulados” sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular” (Giddens, 2002), ou seja, as fichas simbólicas independem diretamente das particularidades locais ou mesmo de quem as utiliza, elas vinculam acontecimentos dispersos no tempo e no espaço, assim como o dinheiro, por exemplo, que é um elo entre um acordo, um espaço de tempo, e seu desdobrar. Daí a confiança. Essa confiança pode se dar entre duas pessoas, a saber, vendedor e comprador, mas ela se dá mais enfaticamente no dinheiro em si. “A confiança, em suma, é uma forma de “fé” na qual a segurança adquirida em resultados prováveis expressa mais um compromisso com algo do que apenas uma compreensão cognitiva” (Giddens, 2002). Por isso o esvaziamento do tempo é visto sem desconfiança quando se faz uso do crédito, a título de ilustração, porque o dinheiro é mais confiável do que quem o utiliza, ele está acima, é quase autônomo. Os sistemas peritos, o segundo mecanismo de desencaixe, referem-se a “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje” (Giddens, 2002). Diferentemente de uma consulta eventual a um médico, ou outro especialista, fazemos uso dos sistemas peritos de forma contínua. Por exemplo, se habito com tranquilidade em minha casa é porque confio no conhecimento perito que embasou toda a estrutura que me cerca, do alicerce ao retoque final. Podemos não compartilhar do mesmo código de quem construiu parte por parte da minha casa, mas confiamos no sistema perito do qual o construtor fez uso. Tanto as fichas simbólicas como os sistemas peritos tiram as relações de um contexto espacial ou temporal definido e sincrônico, ou seja, desencaixam, garantindo as expectativas mesmo nesse intervalo anacrônico, pois há confiança, e esta é sustentada “por meio da natureza impessoal de testes aplicados para avaliar o conhecimento técnico e pela crítica pública, usado para controlar sua forma” (idem), somado a isto, existem ainda “forças reguladoras além e acima das associações profissionais, com o intuito de proteger os consumidores dos sistemas peritos” (ibidem). A confiança é diferente da crença. Sabe-se que aqueles mecanismos oferecem possíveis riscos, mas uma série de atitudes e dispositivos estão operando para que eles sejam minimizados e controlados exaustivamente, além disso, se algo inesperado ocorrer é culpa de uma escolha, e não de um fenômeno sobrenatural. A confiança nas culturas pré-modernas advinha da localidade, da família, da religião e da tradição, hoje 37 exsurgem das relações pessoais e dos sistemas abstratos, notadamente intangíveis, mas fortemente atuantes.

Diz-se com frequência que a modernidade é marcada por um apetite pelo novo, mas talvez isso não seja completamente preciso. O que é característico da modernidade não é uma adoção do novo por si só, mas a suposição da reflexividade indiscriminada – que, é claro, inclui a reflexão sobre a natureza da própria reflexão (GIDDENS, 2002, p. 49). Na contemporaneidade, as práticas não são legitimadas pela tradição pura e simplesmente, mas pelo conhecimento (embora este beba de fontes tradicionais algumas vezes), que se materializa em várias teorias, que podem ser aceitas, mas também reformuladas ou mesmo contestadas, o que modifica seu caráter e pode desmoronar o que outrora foi tomado como indubitável. É o poder legitimado pelo saber. Os riscos, nas culturas pré-modernas consubstanciavam-se nos perigos próprios da natureza e das intempéries do tempo, das disputas por espaço e das entidades divinas. Atualmente, os riscos se originam da reflexividade humana, das guerras, e da desorientação pessoal podendo até desembocar na depressão e no suicídio. O que ocorre quando a busca pela “alta performance” não se mostra prolífica, fazendo com que o indivíduo contemporâneo, projeto de si mesmo, mas orientado pela bula midiática, corra o risco de desistir de encontrar nos discursos midiatizados o alcance do que atestaria seu sucesso enquanto ator social. É justamente por isso que a esperança da felicidade absoluta deve sempre encontrar formas de se reanimar. É para evitar essa desistência dos sujeitos na busca do que se legitimou como ideal que a publicidade vem modificando a forma de apresentação das celebridades em suas campanhas. Os sujeitos famosos devem portar-se como amigos íntimos de seus receptores, como titubeantes, como igualmente aflitos, vendendo os produtos e serviços através de uma tônica de “ombro amigo” que “entende seus problemas, pois também passa exatamente pela mesma situação”. Num contexto de risco e insegurança, a busca por uma estabilidade ontológica ocupa o centro da vida dos indivíduos. Em Giddens, a identidade, que como já dito, é colocada enquanto uma “narrativa reflexiva do eu”, vê nesse “eu” fatores pessoais interligados com as influências globais. Escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade enorme de opções pode ser sedutor e crucial para a auto-identidade, mas é também inegavelmente confuso.

Ser ontologicamente seguro é ter, no nível do inconsciente e da consciência prática “respostas’ para questões existenciais fundamentais 38

que toda vida humana de certa maneira coloca. Em certo sentido, a ansiedade vem com a liberdade, com diz Kierkegaard; esta não é uma característica do individuo, mas deriva da aquisição de um entendimento ontológico da realidade exterior e da identidade pessoal. A autonomia que os homens adquirem deriva de sua capacidade de expandir o âmbito da experiência mediada: ter familiaridade com propriedades de objetos e ventos fora das situações imediatas de envolvimento sensorial. [...] A ansiedade deriva da capacidade – e, de fato, necessidade – do indivíduo de pensar para a frente, de antecipar possibilidades futuras em relação à ação presente. Mas de uma maneira mais profunda, a ansiedade (ou sua possibilidade0 vem da própria “fé’ na existência independente de pessoas e objetos em que a segurança ontológica implica (GIDDENS, 2002, pp. 49-50). Muitos são os instrumentos oferecidos e utilizados pelos sujeitos em meio a essa procura por uma segurança ontológica, tais quais os livros de auto-ajuda, as terapias e as viagens, todos eles baseados em discursos de conhecimentos peritos que são operados por profissionais de falas legitimadas socialmente num poder-saber (autor, médico, guia), mas também no indivíduo, que precisa dar sua contrapartida, permitindo-se uma nova chance, seja após o casamento fracassado, quer seja após a chegada da idade, ou qualquer outra fase mais propícia aos dilemas existenciais. Essas novas chances devem vir acompanhadas de experiências inéditas, já que para Giddens, na contemporaneidade, a realidade se converteu na intensidade da experiência, por isso o sucesso dos esportes radicais e das viagens de aventura, por exemplo. A apresentação e discursão dos conceitos e problemáticas suscitados neste capítulo apontam para um tenso jogo de interesses, onde modelos de subjetividade são produzidos como commodities, criando singularidades em larga escala através dos produtos e serviços vendidos pela publicidade. Eis um grande paradoxo existencial contemporâneo: como ser único e exclusivo e, ao mesmo tempo, ter uma identidade vista como um modelo alocado no que é estabelecido como valoroso? Enfim, como ser autêntico sem deixar de reproduzir desejáveis modelos já postos? É possível que a resposta dessas questões esteja na troca de identidades, no necessário desapego de possuir uma única. Enxergando-se com um estratégico camaleão, o indivíduo contemporâneo usa a identidade mais propícia ao objetivo do momento e, se achar-se desorientado em meio ao percurso, os discursos de alta performance estarão sempre ali, constituindo um verdadeiro arsenal de suporte. Todavia, embora a subjetividade seja produzida pelos discursos midiáticos em certa medida, é reducionista considerar isso uma regra. A estrutura midiática também é ressignificada pelos sujeitos, havendo assim pontos de fuga, resistências. Quando algum 39 modelo de agenciamento é questionado ou descontruído pelos sujeitos, como ocorreu com a colocação da celebridade enquanto ser irretocável na publicidade, uma nova abordagem desponta, ou melhor, novas negociações se iniciam.

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2 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CELEBRIDADE: EXPOSIÇÃO COMO REGRA

A reportagem de capa da revista Carta Capital do dia 23 de outubro do ano de 2013, intitulada “Como se constrói uma celebridade: a máquina de produzir famas instantâneas e faturar milhões” traz cinco páginas abordando o atual fenômeno da celebridade enquanto um produto a ser posto no mercado, como um constructo, e não como alguém portador de um talento especial que através de sua obra conquista os tão sonhados holofotes. Com o subtítulo “a engenharia da celebridade”, a matéria do jornalista Willian Vieira oferece um discurso da celebridade pensada, planejada, devidamente montada para conseguir dinheiro e penetração midiática o mais rápido possível. As identidades dessas celebridades são forjadas de acordo com a demanda de mercado, tipos como a “gostosona guerreira”, “a inocente” e “a injustiçada”, estão personificadas em personalidades públicas como a apresentadora Sabrina Sato, a atriz Grazi Massafera e a modelo Geisy Arruda. Entretanto, há por trás dessas associações vários engenheiros, um deles é Cacau Oliver, o entrevistado da reportagem da revista Carta Capital:

O que separa o anonimato da vida real e a fama na mídia “especializada”, entre a pobreza e ganho de milhões de reais por ano, nos dois casos, é o assessor Cacau Oliver, com vários cases de sucesso no currículo, ele é o homem que se contrata para virar celebridade instantânea. [...] ele fabrica criaturas em poucos dias, ao unir ingredientes simples (rostos e nádegas, sorrisos e histórias, disposição e resiliência) com fórmulas comprovadas (flagras e affaires, concursos, programas de tevê e nacos de nudez) que resultam em 15 minutos ou anos de fama, em um espectro de possibilidades que vai dos milhares aos milhões de reais (VIEIRA, 2013, pp.23-24, grifo nosso). Cacau Oliver apresenta sua receita de como tornar-se uma celebridade e denuncia a interdependência existente entre a mídia e essas pretensas personalidades “sites de fofoca existem graças às figuras ungidas por reality shows, que dependem de moças e rapazes sexualizados um dia lançados por agentes” (Vieira, 2013). É nesse alinhamento de interesses que se dá a construção das identidades das celebridades na contemporaneidade, diversos tipos podem ter aceitação, mas, independente de qual seja é preciso espetacularizar ao grau máximo suas intimidades. 41

Não é difícil entender que, com a amplitude cada vez maior das teias midiáticas, é preciso mais e mais conteúdo. Daí a absorção da “mão-de-obra das celebridades” pelo mercado. Nesse serviço de produção de conteúdo oferecido à mídia pelas celebridades, Cacau diz “a pessoa é um produto que vou gerenciar, lançar no mercado. É um projeto. Até evito lançar produtos parecidos” constatando o caráter de commodity da identidade das celebridades e o risco de haver similaridade entre tais “produtos” midiáticos. A temporalidade das identidades está presente em um de seus mais citados conceitos, o de HALL. A saber:

Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares, e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós (HALL, 2008, p. 112). Na contemporaneidade, os indivíduos são mais libertos das amarras da tradição e por isso mais autônomos na construção de suas identidades, mas, é também preciso reconhecer que os mesmos se encontram confusos diante da necessidade de serem autores de seus projetos de vida e de sua reflexividade, principalmente porque na atualidade isso se dá em meio a uma dinamicidade de informações e acontecimentos nunca vista antes, portanto, as identidades são pontos de apego a uma posição de sujeito temporária. No caso das celebridades, há de ser necessariamente mutável em sua identidade, uma vez que deve se reinventar-se a cada mudança de preferência do mercado, ofertando uma nova roupagem a depender da demanda. É nesse panorama de múltiplas escolhas, como uma espécie de prateleira de personalidades, que o indivíduo (celebridades e também o público receptor desses comerciais) se vê não com o direito, mas com o dever de escolher uma identidade, já que almeja ser notado, ser credenciado a determinados grupos de interesse e ser marcado em suas peculiaridades. Múltiplos também são os símbolos que, na contemporaneidade, representam identidades, como o carro que traria ao homem uma imagem viril, esse mesmo homem que numa moto seria aventureiro, tal qual o cigarro que anteriormente poderia significar virilidade, e que hoje, com o discurso da saúde e boa forma em voga pelos dispositivos midiáticos, o colocaria como alguém descuidado e até doente. 42

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2006, p.13). Os vários discursos disponíveis para guiar o indivíduo em sua “descoberta” revelam um fato, a identidade envolve relações de poder. Todo exercício de poder traz consigo um discurso de sustentação, e esse discurso, por sua vez, é embasado em um saber, bem como todo saber e ideologias se materializam e se constroem num discurso. Discurso esse que tem uma ordem, que não é meramente repressivo, danoso e imposto, mas muitas vezes desejado por uma vontade de verdade, que norteia e seduz. Em “A ordem do discurso”, onde Foucault realiza um metadiscurso, pois se vê no paradoxo de indagar o discurso se utilizando do mesmo, ele traz a seguinte hipótese:

Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar — ou talvez o teatro muito provisório — do trabalho que faço: suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, seleccionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função esconjurar os seus poderes e perigos, dominar o seu acontecimento aleatório, esquivar a sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 2008, p.08-09). A ordem, controle, seleção, organização e distribuição do discurso só se dá pela utilização de procedimentos de exclusão, como a interdição, do tabu em torno dos objetos, dos rituais da circunstância, e dos privilégios do emissor. Isso tudo porque “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar” (FOUCAULT, 2008). O discurso é o grande objeto de disputas, e não só um mecanismo explicativo destas. Os discursos que cercam a construção das identidades das celebridades também são controlados por vários agentes, a saber, pela mídia, pelo público e pela publicidade, que gerenciam e acenam para as tendências em voga, moldando o passo-a-passo de como tornar-se famoso, mesmo que não se tenha construído qualquer carreira ou comprovado qualquer talento específico.

Como se sabe, nosso tempo inventou uma espécie muito particular de celebridade: os famosos por tautologia. Antigamente, um imperador tornava-se célebre por suas conquistas bélicas, expansionistas. Um 43

chefe de Estado notabilizava-se por sua astúcia política, por sua capacidade de liderança e presença de espírito. Um poeta era amado por revelar a sensibilidade de seu tempo e oferecer novas formas de subjetivação, outras possibilidades de viver. Hoje, o traço definidor das celebridades de nossa sociedade do espetáculo é a fama vazia, que resulta de um mero processo de repetição, ad nauseam, da própria imagem. A imagem da celebridade reproduz-se tantas vezes na mídia que ela acaba se tornando célebre. Ela é célebre porque é vista repetidamente. Daí a tautologia: é famoso porque é famoso (BOSCO, 2010).

Os famosos por tautologia, como dito pelo jornalista Francisco Bosco na revista Cult em matéria intitulada “Celebridade e barbárie”9, são aqueles que se tornam famosos por terem seus corpos repetidos à exaustão pelo aparato midiático. Com todas as críticas feitas à mídia especializada em celebridades, colocada como ápice da cultura de massa e produto da Indústria Cultural, consumir esse conteúdo é, não raramente, hábito negado e escondido. Por mais que alguém seja fiel leitor, ouvinte e telespectador desse nicho de informação, admitir é sempre evitado, uma vez que foi estabelecido como futilidade e fofoca. O conceito de Indústria Cultural anteriormente citado tem sua origem nas análises clássicas de Adorno e Horkheimer. Estes representantes da Escola de Frankfurt postularam que a Indústria Cultural seria um processo de mercantilização das formas culturais/simbólicas nos mesmos moldes da fabricação de produtos, ou seja, com padronização, serialização, mais técnica e menos inventividade, simplificação, prevalência de um gosto médio e de um homem médio, que se encaixasse na maioria de tudo que fosse oferecido. (Adorno & Horkheimer, 1986). Adorno e Horkheimer teceram duras críticas a essa mercantilização da cultura, assunto que já é amplamente discutido academicamente, sendo tema de muitas produções. As colocações feitas a partir do conceito de Indústria Cultural continuam pertinentes, embora já superadas em alguns pontos, notadamente naqueles que coloca os receptores como massas puramente amorfas. Como se sabe, a própria cultura de massa cria seus entraves, já que despersonaliza o indivíduo por meio desse “homem médio” ao mesmo tempo em que tenta lhe vender exclusividade, em outras palavras, abre brechas para o exercício da criticidade quando mais tenta evitá-lo.

Toda a práxis da indústria cultural transfere, sem mais, a motivação do lucro às criações espirituais. A partir do momento em que essas mercadorias asseguram a vida de seus produtores no mercado, elas já estão contaminadas por essa motivação. Mas eles não almejavam o

9 Acesso em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/06/celebridade-e-barbarie/ 44

lucro senão de forma mediata, através de seu caráter autônomo. O que é novo na indústria cultural é o primado imediato e confesso do efeito, que por sua vez é precisamente calculado em seus produtos mais típicos. A autonomia das obras de arte, que, é verdade, quase nunca existiu de forma pura e que sempre foi marcada por conexões de efeito, vê-se no limite abolida pela indústria cultural. [...] A cultura que, de acordo com seu próprio sentido, não somente obedecia aos homens, mas também sempre protestava contra a condição esclerosada na qual eles vivem, e nisso lhes fazia honra; essa cultura, pôs sua assimilação total aos homens, torna-se integrada a essa condição esclerosada; assim, ela avilta os homens ainda uma vez. As produções do espírito no estilo da indústria cultural não são mais também mercadorias, mas o são integralmente. Esse deslocamento é tão grande que suscita fenômenos inteiramente novos. Afinal, a indústria cultural não é mais obrigada a visar por toda parte aos interesses de lucro cultural e às vezes se emanciparam da coação de vender as mercadorias culturais que, de qualquer maneira, devem ser absorvidas (ADORNO, 1977, p. 289).

Se a Indústria Cultural acaba gerando uma cultura de massa, que seria para a massa e não feita pela massa, com poder manipulador e subordinação do homem às lógicas mercantilistas, ela também propicia uma maior democratização dos conteúdos culturais, digamos que facilita o acesso sem preocupar-se com sua qualidade. Dada a delimitação da pesquisa, a Indústria Cultural e a cultura de massa foram aqui citadas não com o intuito de investigá-las a fundo, mas, como forma de situar as celebridades e os comerciais publicitários dentro dessa estrutura. A semelhança entre as celebridades é algo facilmente notável, difícil mesmo é decorar seus nomes e diferenciar seus rostos dada a ininterrupta produção de figuras públicas famosas “do momento” e da sagacidade de assessores especializados em acender anônimos ao repentino estrelato. A maior conquista, então, é fazer algo que diferencie determinada celebridade das demais, tornando-a lembrada, preferida, mesmo que não se saiba ao certo o que ela faz, “como as ‘personalidades da mídia’ como Gracyanne Barbosa, exemplo do gênero que não canta nem dança ou representa, mas tem fãs e vive na tevê” (VIEIRA, 2013). Desse modo, grandes esforços devem ser dedicados para se fixar. Daí a superexposição da intimidade, que inclui o sarcasmo e a confissão de fragilidades, o que acreditamos ocorrer nos comerciais publicitários com celebridades no papel de protagonistas que aqui discutimos. Para que a celebridade se estabeleça ela deve abdicar de ser, paradoxalmente, celebridade. “Talento não tem sentido estrito. O público, essa grande massa, quer tirar foto com a personalidade. A vida das celebridades não é tão 45 interessante. A sub deixa que você invada a casa dela, fala da vida sexual, o público quer saber” (VIEIRA, 2013). Assim como os paparazzos, os sites de fofoca e os portais de flagras, os comerciais publicitários com celebridades “gente como a gente” também produzem personas através de seus recursos discursivos, com uma peculiaridade “o discurso ainda é o das fofocas de celebridades, mas reproduzido como gente comum. Essa indústria descarta a noção de que a celebridade fez algo produtivo. O único talento exigido é permitir o voyeurismo. O público quer devassar sua intimidade. E elas, as atenções da mídia” (VIEIRA, 2013). Esse fenômeno da acessibilidade que o público exige das celebridades é uma ruptura com o modelo anteriormente posto nesse relacionamento. Os famosos são agora vedetes, experts em simular total abertura e equidade para com os receptores. Como observou Edgar Morin em sua obra “cultura de massas no século XX”:

Esse novo Olimpo é, de fato, o produto mais original do novo curso da cultura de massa. As estrelas de cinema já haviam sido anteriormente promovidas a divindades. O novo curso as humanizou. Multiplicou as relações humanas com o público [...] a vida dos olimpianos participa da vida quotidiana dos mortais, seus amores lendários participam dos destinos dos amores mortais; seus sentimentos são experimentados pela humanidade média (MORIN,1987, p. 106). Capturando as necessidades dos indivíduos, o mercado as transmuta em desejos, que nada mais são do que formas específicas de sanar as necessidades. Para isso, constrói todo um ideal eminentemente onírico em torno da realidade, “os olimpianos, por meio de sua dupla natureza, divina e humana, efetuam a circulação permanente entre o mundo da projeção e o mundo da identificação (MORIN, 1987). As celebridades contemporâneas, deste modo, incitariam ao consumo como um olimpiano que desce do Olimpo para mostra-se humano. As “histórias sobre celebridades devem prender nossa atenção, pois desagrado entediado não é admissível, e as celebridades sempre têm o que nos dizer sobre o sentido de nossas vidas” (Bauman, 2008, p. 121). Portanto, é preciso reconhecer que, embora a aura das celebridades tenha sido desconstruída, elas ainda funcionam como ponto de ancoragem para a sociedade, ainda suscitam grande interesse, ainda são agentes determinantes nos discursos de felicidade através do consumo e da busca da alta performance social. 46

Assim, o discurso em torno da identidade se materializa na representação, em determinadas ações e afiliações que demonstram ao coletivo a identidade a qual sujeito é pertencente, por isso, existe um grande investimento no desejo de encontrar uma posição de sujeito para preencher, ter como propriedade e compartilhar com os demais. O mesmo sujeito se posiciona de maneiras distintas de acordo com o código já preestabelecido de como se comportar em dada situação. A representação inclui, assim, as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meios dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. “A representação compreendida como um processo cultural estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais podem falar” (WOODWARD, 2008, p.17). A identidade não é algo dado, pronto e acabado, mas, um fruto da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem, e se ela é tão fortemente construída pelos sistemas discursivos e simbólicos, é pelo fato de que nós esquecemos o quão arbitrário é o caráter da linguagem, esta a grande responsável por materializar a representação, “a natureza da linguagem é tal que não podemos deixar de ter a ilusão de ver o signo como uma presença, isto é, de ver no signo a presença do referente (“a coisa”) ou do conceito”. (SILVA, 2008). O signo é uma representação, mas é quase impossível imaginar ele e seu referente isoladamente. Nesse ponto, é interessante adentrar na diferenciação entre identidade e subjetividade, muitas vezes utilizadas como sinônimos, ou mesmo como inseparáveis. De forma bastante clara, Silva, em seu texto “A produção social da identidade e da diferença” faz essa distinção:

Os termos “identidade” e “subjetividade” são, às vezes, utilizados de forma intercambiável. Existe, na verdade, uma considerável sobreposição entre os dois. “Subjetividade” sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. [...] Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual nós adotamos uma identidade. (SILVA, 2008, p.55)

Assim sendo, a subjetividade é tudo aquilo que julgo conhecer sobre o meu eu, mas esse eu está numa rede de interdependências e de ligações que já existia antes 47 mesmo de meu nascimento, ou seja, esse eu já está conceituado e classificado em várias categorias e divisões, através também da cultura e linguagem, desse modo, tudo aquilo que se julgava ser mais subjetivo e íntimo não o é completamente, e isso, é claro, tem reflexos diretos na identidade. Em suma, as identidades e o que elas representam são, pois, identificações e ocupações temporárias a algumas posições-de-sujeito, estas que por sua vez não foram ineditamente criadas por quem as ocupa, mas previamente construídas por práticas discursivas que se materializam na linguagem, esta de um caráter vacilante, porém, discreto e invisível aos nossos olhos desacostumados a desnaturalizar o que aparece como indubitável e objetivamente posto. Reflexão e reflexo não se separam, de modo que o trabalho de reflexividade do sujeito envolve a ativação de palavras, imagens, conceitos e sínteses, onde ele se enxerga através do espelho de seu meio social, cultural e linguístico. Sendo assim, evita-se incorporar definitivamente uma única identidade, preferindo-se trocá-la, como alguns animais trocam de pele, sempre que considerar necessário e oportuno. Os indivíduos de identidade líquida, fluida, são imediatistas, vivem intensamente o presente, para sobreviver (tanto quanto possível) e para obter o máximo de satisfação possível. A identidade é reciclável e o Just do it 10, o ser original, é pressuposto indispensável na sociedade líquida. Para Bauman (2007,p. 48), o único “cerne identitário” que abrolhará da mudança contínua, salvo, mas possivelmente reiterado, é o do homo eligens - o "homem que escolhe", “um ego permanentemente impermanente, completamente incompleto, definitivamente indefinido - e autenticamente inautêntico”. Na sociedade de consumo pós-moderna, os consumidores são primeiro e acima de tudo, complementa Bauman (1999, p. 91), acumuladores de sensações e colecionadores de coisas, são “caçadores de emoções e colecionadores de experiências [...] percebem o mundo como um alimento para a sensibilidade [...]” (ibid., pp. 102-103). Essa liquidez é uma composição de sucessivos reinícios, filosofa Bauman, e é exatamente por essa razão que os finais rápidos e sem dor, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos de maior desafio e as mais inquietantes dores de cabeça. “Entre as artes da vida líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las” (BAUMAN, 2007).

10 “Faça você mesmo”, em tradução livre. 48

A vida líquida é uma vida precária, assentada sob plataforma de incertezas constantes. As preocupações mais obstinadas e intensas que assombram esse tipo de vida são os receios de ser pego tirando uma soneca. Ou seja, não dar conta de acompanhar o ritmo com que sucedem os eventos, os vencimentos, os fenômenos, de ficar para trás, preterido pela vida, pelos próprios pares ou ainda ficar sobrecarregado de bens nem sempre desejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de senda precedendo a tomada para um caminho sem volta.

2.1 CELEBRIDADES E ESPETÁCULO

Porque nos interessamos pela intimidade das celebridades? Porque o atual discurso publicitário as expõe? A resposta desta última pergunta é a primeira. Mas, e a da primeira? Persiste, então, o questionamento. Para tentarmos investigar o fetiche pela esfera íntima invocaremos o conceito de sociedade do espetáculo. Guy Debord explica:

O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato de seus meios serem, ao mesmo tempo, seu fim. É o sol que nunca se põe no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e está indefinidamente impregnado de sua própria glória. A sociedade que se baseia na indústria moderna não é fortuita ou superficialmente espetacular, ela é essencialmente espetaculoísta. No espetáculo, a imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não deseja chegar em nada que não seja ele mesmo (DEBORD, 1997, p. 17). A subjetividade do homem-espetáculo é algo produzido, autoproduzido, tecnologizado e governado, onde os controles outrora externos e mais explícitos entram no âmbito interno, mais implícito, da alma. Menos repressão e mais convencimento, mais confissão. A constituição do indivíduo célebre ocorre em meio às relações de poder, este enquanto uma posição ocupada num jogo, interligado, onipresente, produtivo e autoprodutivo, não pronto e acabado, mas provisório, instrumento de lutas, não palpável, mas sedutor. Nesse jogo que se opera entre a malha midiática, o público e a publicidade, está o significado de celebridade sujeito às mais diversas negociações. Então, como reiterado pelo conceito acima citado de Debord, há um fim a ser perseguido pela celebridade: manter-se celebridade. Mas, não há um fim para o público, este só quer o desenrolar, o entretenimento e a troca de emoções, ou seja, são desejos que podem facilmente tornar- se conflitantes. De um lado está a celebridade buscando estabilidade nessa posição 49 social de visibilidade, de outro está o indivíduo receptor buscando tão somente sua satisfação. Justamente por isso, a celebridade deve envolver-se num invólucro necessariamente espetaculoísta. Não importa o que ela deixe de legado, ou sequer que deixe algum, mas que proporcione o espetáculo de forma crível, acessível, real ou aparentemente real, enfim, a celebridade precisa convencer e oferecer novos espetáculos indefinidamente. E para que convença ela deve despir-se, aproximar-se.

Essas celebridades são sobretudo parasitárias: vivem do desejo do outro, que lhes sustenta o narcisismo. Mas aquilo que neles deseja é para muitos inalcançável: uma aparência perfeita, visibilidade, riqueza – e é isso que torna essa relação masoquista, fundada numa permanente defasagem de si em relação ao outro admirado. O fato de o espetáculo criar formas supostamente democráticas de acesso à celebridade, como o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, revela-se apenas uma estratégia de manutenção de uma perniciosa inversão de princípios. Pois não é a fama que deve ser democrática, e sim a contribuição pela qual alguém se torna famoso. Quando a celebridade é democratizada é porque ela atingiu um estado de absoluta gratuidade, o que significa que ela não pode trazer nenhum benefício à sociedade, portanto não pode ser democrática. E enquanto os astros de ostentam seus privilégios nas revistas de fofoca e nos programas de auditório, milhares de pessoas são cotidianamente humilhadas em nome, precisamente, do que faz com que os famosos sejam famosos. Pois, na sociedade do espetáculo, a confusão entre consumir, ser visto e existir faz com que quem não tem dinheiro e não é exposto na mídia não obtenha reconhecimento social. A exclusão hoje não é apenas econômica, mas acirrada por uma distribuição da economia narcísica tão injusta quanto a financeira (uns são vistos, outros não) e agravada ainda por um individualismo exacerbado e o esvaziamento das instituições culturais que dão coesão e fortalecem o reconhecimento mútuo (BOSCO, 2010). A fala de Bosco traduz objetivamente aquilo que a publicidade entendeu e seguidamente corrigiu, ou seja, que as formas de acesso à celebridade passariam, nessa nova contextura social onde todos desejam ser famosos, a dificultar as vendas de produtos ou serviços. Em outras palavras, a abordagem feita pela figura célebre deveria ser rapidamente modificada para que a público fosse conquistado. A partir dai, como se viu, o discurso mudaria. De acordo Rojek em seu livro Celebridade, “enquanto a celebridade funciona dentro de uma estrutura geral moral que reafirma ordem suprema, a notoriedade costuma conotar transgressão, desvio e imoralidade” (ROJEK, 2008, p. 35), ou seja, uma quebra de expectativa é o que gera a “atribuição informal de distinção a um 50 indivíduo dentro de uma determinada rede de relacionamentos sociais” (ROJEK, 2008, p.14). A celebridade precisa chamar a atenção dos outros para si, o que só conseguirá se bagunçar a ordem social estabelecida, transgredindo-a. Ainda para Rojek, as celebridades podem surgir por vias de três naturezas: conferida, adquirida e atribuída. Enquanto a primeira é por descendência, como os membros da realeza, a segunda é oriunda de conquistas individuais que lhe rendem o status de celebridade, enquanto a última, a atribuída, é mediada, chamadas de “celetóides” pelo mesmo autor. É onde se encontra as celebridades aqui estudadas dentro dos comerciais publicitários. Essas celebridades atribuídas são fruto de seu empenho, mas principalmente do trabalho de “gurus” especializados e do apoio midiático. São essas as celebridades com as quais nos identificamos, cuja intimidade é espetacularizada. “O fato de celebridades parecerem habitar um mundo diferente do resto de nós parece lhes dar licença para fazer coisas com as quais nós só poderíamos sonhar” (ROJEK, 2008, p.35), portanto, esse mundo deve assemelhar-se mais e mais com o nosso, pois os sujeitos anônimos não desejam apenas sonhar com a fama, mas capturá-la para si, vivenciá-la. Ademais, os outros dois tipos são muito mais difíceis de alcançar, o primeiro é impossível na verdade, uma vez que descender de uma família de renome não é opcional, enquanto a segunda implica em construir algo relevante e único, sendo ambas mais complexas e demoradas do que a via atribuída.

A cultura da celebridade é um dos mecanismos mais importantes para mobilizar o desejo abstrato. Ela personifica o desejo num objeto animado, que admite níveis mais profundos de apego e identificação do que com mercadorias inanimadas (ROJEK, 2008, p. 201). A cultura da celebridade, como dita por Rojek, estaria a serviço do consumo. Como as marcas, produtos e serviços em si não contam histórias sedutoras, as celebridades sustentando que usam e aprovam os itens anunciados são potencialmente influenciadoras. A atividade reflexiva do indivíduo receptor daquele discurso publicitário vai lidar com novas vozes em seu processo decisório. Assim sendo, nem a prática de refletir está livre de um discurso que a encaminhe. Não há como menosprezar o entrecruzamento existente entre os domínios de saber, os tipos de normatividade e as formas de subjetivação. Refletir e se autoconhecer é um terreno ocupado não só pelo eu que reflete, mas também pelos dispositivos, principalmente os de visibilidade, como o panóptico, a posição dos alunos 51 em sala de aula ou dos operários nas fábricas, que objetivam uma melhor punição, ensino e produção, respectivamente. Os dispositivos se materializam num campo de saber e num exercício de poder, cumprindo uma função estratégica. Como brilhantemente lembrado por Jorge Larrosa, em seu texto “As tecnologias do eu e a educação”:

“Reflexão” significa também a reprodução dos objetos nas imagens oferecidas por um espelho e o processo que tem lugar entre um objeto e sua imagem tal como esta aparece em uma lâmina polida. [...] a história do eu como sujeito, como autoconsciência, como ser-para-si, é a história das tecnologias que produzem a experiência de si. E estas, por sua vez, não podem ser analisadas sem relação com um domínio de saberes e com um conjunto de práticas normativas (LARROSA, 2000, p.22).

A reflexão, portanto, também é arbitrária, pois faz uso das “metáforas esquecidas” de outrora, que no presente se estabeleceram como verdades, usam a “voz sem nome”, como Foucault definiu serem as palavras em “A ordem do Discurso”. Ou como afirma Larrosa, existe um voltar-se para dentro de si, mas carregado de reflexos, de objetos e de imagens trazidos para o espelho da autoconsciência, não pode haver um dentro e um fora, um âmbito puramente individual e um social, porque as tecnologias de si incidem no indivíduo quando ele entra na rede pela primeira vez, e depois ele mesmo as produz e faz incidir sobre os demais. Rotineiramente consegue-se imaginar, ver e tocar as tecnologias das coisas, ou ao menos no resultado delas, como uma cadeira, uma mesa ou um quadro, enquanto não nos damos conta, ou temos grande dificuldade de perceber, a imensa gama de tecnologias das pessoas, como a disciplina, a moda, a publicidade, as leis, as normas, a confissão, as carteiras em filas, os constrangimentos, o discurso terapêutico, pedagógico, dos livros de auto-ajuda, etc. Uma vez detectada, surpreendemo-nos com a sua perspicácia, eficiência e poder. Os meios de comunicação criam e fortalecem os mitos de nossa cultura, mitos esses que já não são as alegorias heroicas norteadoras de outrora, mas, o consumo, as celebridades, o espetáculo, o entretenimento e etc. Para Morin, os mitos de nossa cultura, dentre outros, é a felicidade, os olimpianos, o happy end e a juventude. Para Roland Barthes, o catch, os comerciais de saponáceos e detergentes, o rosto de Garbo, o bife com batatas fritas... Dentre todos esses novos mitos, o da celebridade é aquele que há mais tempo se mostra potente. Já “no ano da morte de William Shakespeare, em 1616, dos 25 “livros 52 noticiosos” publicados na Inglaterra, quase 30% eram dedicados a celebridades, como a rainha Isabel, comparável apenas à categoria das notícias sensacionalistas e dos assassinatos (TRAQUINA, 2001, p.192). O psicólogo Marcelo Arantes era só mais um anônimo até ser aceito na seleção do reality show da rede globo de televisão “Big Brother Brasil”. Ele não ganhou o programa, mas construiu (ou teve construído pela edição) um dos papéis mais polêmicos, protagonizando brigas, desavenças e conspirações em sua participação. Ao sair do programa, um de seus primeiros passos foi escrever e lançar seu próprio livro, intitulado “A antietiqueta dos novos famosos – Guia para uma celebridade instantânea”. O texto em formato de manual ensina o passo-a-passo de como tornar-se uma celebridade instantânea na atualidade. Na verdade, dizia principalmente o que não fazer para não atrapalhar a empreitada. Dentre as lições, uma dizia que “pouquíssimos conseguem manter-se em evidência, e para isso devem dedicar-se bravamente, dando o melhor de si rumo à perpetuação da imagem de auge” (ARANTES, 2009, p.100). O livro de Marcelo ficava nas prateleiras de “auto-ajuda” das livrarias, o que sinaliza para a fama enquanto um desejo de grande fatia da sociedade, mesmo que a intenção do autor fosse ironizar tudo isso. Outro fator que chama nossa atenção é o título do livro. “A antietiqueta dos novos famosos – Guia para uma celebridade instantânea”. Esse enunciado nos leva a crer que para tornar-se um novo famoso é preciso abdicar de se ter etiqueta. Como a palavra “etiqueta” é oriunda de “ética” significa, portanto, uma ética pequena. Mesmo essa o aspirante a famoso não pode ter, devendo ser então a-ético. Sobre o termo “enunciado” anteriormente utilizado, Foucault define: O enunciado não é a projeção direta, sobre o plano da linguagem, de uma situação determinada ou de um conjunto de representações. Não é simplesmente a utilização, por um sujeito falante, de um certo número de elementos e de regras linguísticas. De início, desde sua raiz, ele se delineia em um campo enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro eventual. Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo; ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja (FOUCAULT, 2009, p. 113-114).

O enunciado demarca um campo enunciativo, ou seja, um lugar de fala específico. Todo enunciado existe em relação a outros, portanto, a discursos anteriores, que resultará em novos, futuros. Dessa forma, o ex-participante do reality show vê-se 53 como uma espécie de autoridade no assunto do livro, posto que vivenciou uma experiência que lhe credencia a colocar-se nessa posição, investido desse saber específico. Ainda no mesmo exemplo, o ex-participante Marcelo se vê como dono de um carisma especial, pois mesmo sem ter ganhado a competição no programa, ele foi visto por muitos, não sendo mais um anônimo, ele agora se enxerga como tendo poder de influência, que será tanto mais forte quanto conseguir aparecer nos holofotes midiáticos, quanto mais espetáculo puder oferecer ao público. O carisma da celebridade contemporânea é um sucedâneo da instituição midiática. O carisma resulta de a mídia ser um “centro” cultural-ideológico da sociedade [...] A maioria das celebridades e famosos não tem carisma por si, pois, sem aparecerem na televisão, a mídia mais central, e nas publicações parasitas da televisão, deixam de exercer e exibir qualquer carisma. Tratar-se-á de um carisma simulacro (FRANÇA, 2014, p. 90). Foi citando anteriormente o que Morin e Barthes veem como componentes do moderno arsenal mítico. Este último é direto quando responde: “O que, hoje em dia, é um mito? Darei desde já uma primeira resposta, muito simples, que concorda plenamente com a etimologia: o mito é uma fala” (BARTHES, 2003, p. 199). E logo emenda, “naturalmente, não é uma fala qualquer. São necessárias condições para que a linguagem se transforme em mito”. Um desses mitos é o que Barthes denominou de “o mundo do catch”. O catch, embora não tenha uma tradução correta na língua portuguesa, corresponde ao esporte que conhecemos como “luta livre”. Barthes analisa o catch e o relacionamento do público com o esporte pela ótica do prazer no espetáculo em si, não no esporte. “Assim, a função de um lutador de catch não é ganhar, mas executar exatamente os gestos que se esperam dele” (BARTHES, 2003, p. 16). Portanto, a performance que agrade ao público é o que importa, já que “a virtude do catch é a de ser um espetáculo excessivo” no qual “cada signo do catch é, pois, dotado de uma limpidez total, visto que deve ser compreendido no próprio instante em que se realiza (BARTHES, 2003). Encontra-se características do mito do catch, já aqui colocado enquanto uma fala específica sob a forma de espetáculo, com a relação do público com as celebridades e suas intimidades. Assim como o espectador do catch não vê como primordial o resultado da luta, mas quer principalmente sentar-se confortavelmente para degustar o espetáculo, o espectador dos realities shows, dos comerciais publicitários aqui estudados ou dos sites 54 de fofoca anseiam igualmente pelo entretenimento. Da mesma forma que não há uma fidelidade ao atleta do catch, não há também à celebridade x ou y por si só, ela precisa cativar esses receptores através de sua performance espetaculoísta. As condições são colocadas da esfera receptora para a emissora, dos espectadores para as celebridades, “de baixo para cima”. Os seguidores dos telecarismáticos comprovam diariamente a sua relação amorosa para com eles. Essa reflexão acaba por pôr em causa a própria concepção do carisma partindo de “cima” para “baixo”. Isso significa que, nas sociedades democráticas e crescentemente estruturadas em torno das indústrias culturais, o carisma tem obrigatoriamente de se associar à celebridade como a definimos hoje. A celebridade é o principal carisma contemporâneo (FRANÇA, 2014, pp. 91-92).

O capital de visibilidade, então, converte-se no pote de ouro para as celebridades contemporâneas. “As celebridades manejam seu capital de visibilidade em busca de manutenção do reconhecimento”. É através desses locais visíveis que elas travam lutas pela manutenção da fama, já que “ocupando uma porção significativa do visível social, elas disponibilizam modelos de conduta baseados em valores reconhecidos socialmente – e, sobretudo, utilizam a sua própria visibilidade como valor e capital” (FRANÇA, 2014, p. 186). Nos moldes do catch, é importante que se faça aquilo que o público espera, que vai muito além de ganhar ou perder, ter ou não um talento especial, mas uma performance-espetáculo.

O indivíduo que foi marcado pelo pensamento espetacular empobrecido, mais do que qualquer outro elemento de sua formação, coloca-se de antemão a serviço da ordem estabelecida, embora sua intenção subjetiva possa ser o oposto disso. Nos pontos essenciais, ele obedecerá à linguagem do espetáculo, a única que conhece, aquela que lhe ensinaram a falar. Ele pode querer repudiar essa retórica, mas vai usar a sintaxe dessa linguagem. Eis um dos aspectos mais importantes do sucesso obtido pela dominação espetacular. O tão rápido desaparecimento do vocabulário anterior é apenas um momento dessa operação e concorre para ela. A supressão da personalidade acompanha fatalmente as condições de existência submetida às normas espetaculares – cada vez mais afastada da possibilidade de conhecer experienciais autênticas e, por isso, de descobrir preferencias individuais. Paradoxalmente, o individuo deve desdizer-se sempre, se desejar receber dessa sociedade um mínimo de consideração. Essa existência postula uma fidelidade sempre cambiante, uma série de adesões constantemente decepcionantes a produtos ilusórios (DEBORD, 1997, p. 191).

É justamente quando o mito é esquecido enquanto um que ele se torna ainda mais potente, pois não será apenas algo equivalente, mas a coisa, o significado em si. 55

“O mito é lido como um sistema fatual, quando é apenas um sistema semiológico” (BARTHES, 2003). Quando a linguagem do espetáculo passa a ser reinante, quando se sobrepõe a todas as outras, ela acende suas narrativas e modelos à posição de verdades, de única possível. Celebridades estão, portanto, numa simbiose com o espetáculo. Consubstanciadas no arsenal mítico contemporâneo, elas devem elevar ao grau máximo as formas de visibilidade para não correrem o risco de serem eclipsadas pelos vários novos protótipos célebres que estão prestes a sair da linha de produção para o mercado de consumo midiático.

2.2 O consumo impulsionado pelas celebridades O indivíduo contemporâneo em seu papel de consumidor encontra-se saturado das estratégias publicitárias, isso se deu pelo alto nível de exposição no qual vive. A indústria passa, então, por um momento de dificuldade para se reinventar, em despertar o interesse genuíno do agora cético consumidor. Graças a isso, as celebridades são contratadas para personificar as marcas e influenciar na compra dos produtos e serviços dos anunciantes. Para tal empreitada, a celebridade deve agir como um verdadeiro orador. Quem nos traduz esse orador é Meyer:

É alguém que deve ser capaz de responder às perguntas que suscitam debate e que são aquilo sobre o que negociamos. Essa capacidade é um saber específico: o médico deve poder responder às perguntas médicas, o advogado, às perguntas jurídicas, e assim por diante. Espera-se que eles respondam bem, pois estudaram para tal; quando quem se expressa não é nem médico nem advogado, mas simplesmente um ser humano, seu “saber específico” refere-se a poder responder bem enquanto homem, sua virtude já não sendo mais a de um especialista, mas a virtude em geral, um ethos compartilhado por todos, em que cada um deve poder se reconhecer e ao qual pode se identificar (MEYER, 2007, p. 34). Agora, para que a celebridade se traduza em um orador potente, sua vida deve ter sido marcada não por uma contínua aprovação social, mas por polêmicas ou novidades, enfim, por uma sucessão de acontecimentos que evidenciem seu nome e sua figura no aparato midiático. “O ethos é o orador como princípio de autoridade. A ética do orador é seu “saber específico” de homem, e esse humanismo é sua moralidade, que constitui fonte de autoridade”(MEYER, 2007, p.35). Portanto, antes essa celebridade deveria ser aquele modelo de perfeição irretocável, agora seu ethos e saber específico, que constituem sua fonte de autoridade, é a capacidade de se expor, de mostrar-se falho. 56

Cada momento da biografia de um indivíduo é superdimensionado, transformado em capítulo e consumido como um filme. Mas a valorização do biográfico é diretamente proporcional à capacidade desse indivíduo em roubar a cena, ou seja, em tornar-se uma celebridade. Aliás, as celebridades tornaram-se o pólo de identificação do consumidor-atorespectador do espetáculo contemporâneo. São elas que catalisam a atenção e preenchem o imaginário coletivo" (PENA, 2002, p. 148).

“Querendo ou não, a cultura da celebridade está conosco: envolve-nos e até nos invade. Dá forma ao nosso pensamento e conduta, estilo e modos. Afeta e é afetada não apenas por fãs engajados, mas pela população toda” (CASHMORE, 2006, p. 6). Então lançamos a pergunta: uma celebridade precisa ser “profissional” na área daquele produto que oferece? Não obrigatoriamente. Ela só precisa suscitar o interesse do público através de fatos de sua vida íntima que estão guardados na memória dos indivíduos, e que são resgatados no momento em que o comercial aparece na televisão, o que não é tão simples, visto que o mercado de celebridades produz com celeridade e padronização. O declínio da sociedade cortesã dos séculos XVII e XVIII implicou a transferência de capital cultural para homens e mulheres que venciam pelo próprio esforço. Com o desenvolvimento da sociedade moderna, as celebridades preencheram a ausência gerada pela decadência da crença popular no direito divino dos reis, e a morte de Deus" (ROJEK, 2008, p.15-16).

O poder de uma marca está interligado ao de um arquétipo, “um produto com identidade arquetípica fala diretamente à matriz psíquica profunda dentro do consumidor, ativando um senso de reconhecimento e significado” (MARK & PEARSON, 2001, p. 27) e já que o arquétipo é uma espécie de modelo ideal, inteligível, de onde tudo advém, de forma que utilizando-o é possível construir marcas extraordinárias, é válido ficar atento ao fazer as escolhas arquetípicas, que têm tido materialidade, cada vez mais, nas celebridades, pois “são elas que catalisam a atenção e preenchem o imaginário coletivo” (PENA, 2002, p. 148). Mas voltemos ao tema do consumo propriamente. Sempre que este vem à baila, inicia-se uma série de problemáticas, pois mesmo quem tenta fugir dessa visão maniqueísta acaba por indagar-se se ele é bom ou ruim no que tange o desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos, tanto individualmente quanto em sociedade. E é exatamente ai que se encontra o cerne da questão, o consumo e seus múltiplos processos não podem ser vistos unicamente como uma relação manipuladora dos meios sobre as 57 audiências indefesas, ao contrário, o que ocorre são trocas simbólicas. Em seu texto “O Consumo serve para pensar”, Canclini adentra na temática do consumo afirmando:

Uma zona propícia para comprovar que o senso comum não coincide com o bom senso é o consumo. Na linguagem corriqueira, consumir costuma ser associado a gastos inúteis e compulsões irracionais. Esta desqualificação moral e intelectual se apóia em lugares-comuns sobre a onipotência dos meios de massa, que incitariam as massas a se lançarem irrefletidamente sobre os bens (CANCLINI, 2008, p. 59).

Comungando dos posicionamentos de Canclini com relação ao consumo, mas ainda mais otimista, Colin Campbell, no texto “Eu compro, logo sei que existo: as bases metafísicas do consumo”, traça uma relação entre a metafísica e o consumo, mostrando que não são termos isolados ou opostos, mas intrinsecamente ligados. Essa afirmação do autor gera estranhamento num primeiro momento, pois o consumo ainda é visto como uma prática irrefletida, impulsionada exclusivamente pelos estímulos do mercado e da publicidade, ou seja, ainda existe aquela ideia de um indivíduo que, perdendo sua consciência por alguns minutos ou horas, consome cegamente para só depois cair em si e no arrependimento. Discordando dessa propalada visão mecanizada do consumo, que coisifica não só os produtos, mas também quem os compra, Campbell insiste na conexão entre a metafísica - princípios básicos do ser e saber- e o consumo. Para chegar a essa conclusão o autor propõe abandonar o questionamento em torno do “Por que consumimos?” que serviria apenas para reconstatar o que já se tornou óbvio, como para a satisfação de necessidades, a emulação dos outros, o prazer, defesa e o status, e convida o leitor a adotar o consumo enquanto dimensão que se imbrica com as mais profundas e definitivas questões que os seres humanos possam se fazer, com o verdadeiro propósito da existência (CAMPBELL, 2006). Porque tratar como um tema menor o fenômeno do consumo, mais especificamente o moderno, se ele ocupa espaços tão centrais na vida das pessoas e na formação de suas identidades? Entre as incontáveis ofertas e diferentes modelos de um mesmo tipo de produto que o mercado coloca nas gôndolas, o indivíduo-consumidor se vê diante de um trabalho de escolha que envolve suas memórias afetivas, cheiros, custo- benefício, relação de confiança com a marca, anseio em experimentar uma nova, identificação ou não com as campanhas dos produtos, entre tantos outros elementos, não só de ordem prática, mas como advertiu Campbell, metafísica. 58

Não é a toa que a publicidade vai além do anúncio com a apresentação do produto e seu respectivo preço, e investe fortemente em narrativas que vão desde as lúdicas até as humorísticas, se utilizando de arquétipos universais como os heróis desbravadores, a mãe carinhosa, o bobo-da-corte, etc. É também por isso que os anunciantes contratam celebridades para seus comerciais, é a tentativa de personificar a marca, de dar-lhe vida, de oferecer um ponto onde o receptor-consumidor possa se projetar e se identificar. Ou seja, a compra é muito mais orientada pelo desejo do que pela necessidade, são as razões de ordem íntima e não práticas que definem as escolhas, logo o fenômeno do consumo se dá subjetivamente e não como algo objetivamente estabelecido. É mirando nessa subjetividade que as celebridades são tão utilizadas para a venda de produtos e serviços, pois não oferecem utilidades, mas ideias.

A celebridade como um indivíduo público que participa abertamente de commodities vendáveis é um tipo poderoso de legitimação do modelo político-econômico de troca e valor — a base do capitalismo — e estende este modelo para incluir o indivíduo (MARSHALL, 1997, p. 5). O consumo contemporâneo é enraizado no self, o que impera é a emoção, o desejo, imaginação, querer, experimentar, e não apenas necessitar, nota-se então que o mercado tem suas estratégias de convencimento inegavelmente fortes, mas a demanda do consumidor também é importante, razão pela qual é tão perseguida e estudada. A ideologia individualista tão em voga reivindica exclusividade e conquista no momento da procura, compra e utilização de bens e/ou serviços. Na contemporaneidade os indivíduos se definem em termos de seus gostos porque sentem que é isso o que mais claramente sintetiza quem são, a real identidade está nas preferências, mas o verdadeiro local onde reside a identidade é nas reações aos produtos, e não nos produtos em si, porque a identidade é descoberta e não apenas comprada, assim sendo, o consumo não gera a tão propalada crise das identidades, mas ao contrário, geralmente ajuda a resolver, temporariamente, esse dilema. Para Campbell, o consumo oferece a segurança ontológica tão procurada na modernidade, o selfie moderno não seria aberto e flexível por escolha, mas justamente por padecer de uma insegurança que pode ser sanada através do consumo, e que na modernidade, onde a realidade se converte na intensidade das experiências, o consumo é quem mais pode proporcionar essa buscada segurança. 59

Vê-se então que as ofertas de bens e a indução publicitária não são atos totalmente arbitrários e, que mais do que simples exercícios de gostos, caprichos e compras impulsivas, o consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Portanto, como afirma Canclini, (2008, p. 63) “devemos admitir que no consumo se constrói parte da racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade”. As mercadorias funcionam como objetos ritualísticos e a ocorrência de um ritual exige um acordo coletivo, assim sendo, as pessoas seguem diariamente uma ritualística, que por ter se tornado corriqueira parece já ter nascido junta com elas, muito embora, o que há na verdade é um acordo dentro de uma dada cultura, onde um consenso julga como procedente aquela teia de significações. “Dando sentido ao fluxo rudimentar dos acontecimentos” (CANCLINI, 2008) os bens assumem, então, o papel de amuletos, que juntos, proporcionam um modelo organizacional.

Comprar objetos, pendurá-los ou distribuí-los pela casa, assinalar-lhes um lugar em uma ordem, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros, são os recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os demais. Consumir é tornar inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteis para a expansão do mercado e a reprodução da força do trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos comunicarmos com eles, as mercadorias servem para pensar. […] É nesse jogo entre desejos e estruturas que as mercadorias e o consumo servem também para ordenar politicamente cada sociedade. O consumo é um processo em que os desejos se transformam em demandas e em atos socialmente regulados (CANCLINI, 2008. p. 65).

De certo é perigoso ter o consumo como regulamentador preponderante de uma cultura, principalmente em um circuito transnacional, portanto, para que os consumidores ascendam à condição de cidadãos é necessário que consumir seja realmente enxergado como um ato político, onde no mercado não haja meras trocas de mercadorias, mas interações socioculturais, afinal, o valor que este mesmo mercado atribui a um objeto não “nasceu” com ele, mas sim destas interações socioculturais realizadas pelos consumidores. Consumir exige fidelidade a um grupo e um reconhecimento do seu papel dentro dele. Só usar um bem não basta, é preciso que haja a apropriação por parte do indivíduo, porém, novos desdobramentos passaram a ocorrer nos processos de consumo, tendo em vista que o cenário é cada vez mais macro e globalizado, ou seja, os signos compartilhados têm cada vez menos ligação com limites geográfico-territoriais e cada 60 vez mais com uma teia de informações unificadas. As culturas passam a ser formadas por um hibridismo entre elementos autóctones e estrangeiros, e o consumo é um fenômeno que exemplifica isso claramente.

A globalização envolve uma interação entre fatores econômicos e culturais, causando mudanças nos padrões de produção e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas. Essas novas identidades, caricaturalmente simbolizadas, às vezes, pelos jovens que comem hambúrgueres do McDonald’s e que andam pelas ruas de Walkman, formam uma grupo de “consumidores globais” que podem ser encontrados em qualquer lugar do mundo e que mal se distinguem entre si. [...] A globalização, entretanto, produz diferentes resultados em termos de identidade. A homogeneidade cultural promovida pelo mercado pode levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posições de identidade (WOODWARD, 2008, p.20-21). Entende-se o consumo como uma atividade inerente ao ser humano em todos os estágios de sua existência, como um ato político, socialmente regulado, e como um fenômeno de comunicação de significados. Todavia, o consumo constitui um corpus um tanto quanto complexo e imbricado em pontos positivos e negativos para a sociedade. Tendo mostrado que o ato de consumir não é algo puramente irrefletido e realizado por uma sociedade inerte, faz-se necessário entender melhor um segundo termo, esse não saudável, o consumismo. Em que consiste o consumismo? Quem são essas pessoas que realizam tal prática e por quê? Que tempo é esse que abriga o consumismo? Superado o modo de vida em uma economia meramente de subsistência, as pessoas passaram a conviver em um ambiente de estocagem, o que foi decisivo, segundo Bauman, para o advento da revolução consumista. É a partir desse ponto que uma série de inéditas questões passa a ocorrer na forma de vida e de consumo desses indivíduos. Agora, não mais as necessidades nortearão as escolhas, mas os desejos, não mais o uso, mas o descarte. Pela primeira vez a felicidade passará a ser mercantilizada, felicidade essa que está inserida em um tempo pontilhista, sempre “ainda por vir”. A passagem do consumo para o consumismo teria ocasionando mudanças significativas no perfil das sociedades e na identidade dos indivíduos. Na era produtora, os bens materiais tinham a função de representar o papel que as pessoas ocupavam, para isso era necessário que os bens fossem duráveis, seguros, grandes e vistosos, para assim, serem inabaláveis mesmo com as intempéries do tempo. O aspecto sólido do bem estaria atrelado à solidez do posto ou cargo social que o dono ocupava em seu entorno. 61

Logo, o desfrute de tais bens deveria ser feito em um processo lento, cauteloso, jamais imediato. Inversamente, na era do consumismo, a estabilidade não é um produto vendável, mas sim uma característica indesejada, que pode enferrujar a engrenagem- mor de um sistema que se baseia em desejos sempre crescentes, mutáveis e fluídos. O uso deve se fixar no agora, no imediato, em um tempo alinear. O planejamento deve ser evitado porque sugere o desperdício de oportunidades que teoricamente aparecerão em meio ao caminho, o tempo passa a ser cada vez mais pontilhista.

No modelo de tempo pontilhista, não há espaço para a ideia de “progresso” como o leito vazio de um rio sendo lenta, mas continuamente preenchido pelos esforços humanos. […] A ideia do “tempo da necessidade” foi substituída pelo conceito de “tempo de possibilidade’’, tempo aleatório, aberto em qualquer momento ao irromper imprevisível do novo. Uma concepção da história como processo aberto, não determinado previamente, no qual surpresas, golpes inesperados de boa sorte e oportunidades imprevistas podem surgir a qualquer instante (BAUMAN, 2008. p. 47).

Antes a demora, e agora a pressa em usufruir os bens, demarca substancialmente as diferenças entre a sociedade da era produtora e da consumidora. Bauman retrata inclusive que se passou a enxergar a “demora como o serial killer das oportunidades”. Há, portanto, prazer no descarte e na substituição. Se a pressa em usufruir os bens é o fator ocasionador de satisfação, o descarte e substituição é o indicador de poder. A publicidade, por exemplo, já se deu conta dessa avidez pela substituição, tanto que seus comerciais passam sempre a mensagem de que “não se deve chorar pelo leite derramado”, ou seja, se esse bem não te trouxe o sonhado happy end, parta para outro, se o casamento acabou compre uma viagem e respire novos ares, ou quem sabe adquira o livro “Como ser feliz após a separação” na livraria mais próxima. O consumo é um lugar propício ao pensamento e a criticidade. No entanto, é preciso entender que o individualismo que a atual sociedade busca no consumo é uma conquista, já que pressupõe exclusividade, valorização da identidade própria e uma não massificação ou atomização dos indivíduos, mas também pode desembocar em questões como o desinteresse político, a perda das riquezas simbólicas próprias do convívio coletivo e o intercâmbio de ideias. O consumo impulsionado pelas celebridades, por sua vez, é a fórmula do “sonho real”, da capacidade de dar vida ao produto, fazendo com que este deixe de ser 62 inanimado. Assim como o produto ganha autonomia seu ideal também apresenta-se como verdadeiro, bastando que o consumidor efetivamente compre e faça uso daquilo que está sendo anunciado pela celebridade amiga, íntima e igualitária, tal como é posta no atual discurso publicitário que forja as celebridades “gente como a gente”.

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3. A PUBLICIDADE DA CELEBRIDADE NÃO-CÉLEBRE E SEU JOGO DISCURSIVO: UM ARREMATE

3.1 CORPUS ANALÍTICO

3.1.1 Comerciais de sandálias Havaianas com Susana Vieira Da esfera da produção para os domínios do consumo é um longo caminho. Se há uma logística de ordem prática nesse percurso, também há, sem dúvida, uma “logística” discursiva a ser realizada pela publicidade. Os produtos, portanto, são preenchidos de diversos significados culturais mediante conselhos, incentivos, alertas, promessas e contraindicações acerca de como o indivíduo deve se posicionar e se relacionar com os outros na contextura social. Os protagonistas famosos das peças publicitárias aqui estudadas refletem aquilo que os publicitários acreditam como sendo os modos socialmente legítimos e desejáveis de ser e estar no mundo. Os bens materiais e simbólicos vendidos são aqueles valorizados no interior de uma determinada cultura, como a autenticidade, característica tão concorrida na contemporaneidade onde a fama é volúvel e padronizada. Essa busca pela autenticidade e autorepresentação fez com que, na óbvia impossibilidade de todos os indivíduos protagonizarem comerciais, bem como no interesse pela intimidade das fugidias celebridades, houvesse um reposicionamento desses protagonistas célebres e dos discursos por eles proferidos. Claro, mudam-se as condições de possibilidades discursivas, muda-se o discurso. O comercial em formato de teaser com a atriz Susana Vieira chamado “convite” é sintomático do que estamos discutindo. Na publicidade, o teaser consiste em um conteúdo que só terá efeito de sentido completo no futuro, através de outro conteúdo complementar. Portanto, ele faz certo suspense já que antecipa algo sem oferecer um desfecho, alimentando assim a curiosidade dos receptores que ficarão pensando naquele comercial até que surja o próximo que lhe explicará em completude. Foi justamente essa estratégia empregada no comercial em questão. A marca brasileira de chinelos Havaianas tem sua identidade construída principalmente através de sua publicidade e de seus já introjetados slogans, que povoam há anos a memória de muitos. De “A original do Brasil” até “Todo mundo usa. Recuse imitações” a Havaianas construiu uma identidade de genuinamente brasileira, embora exportada para o mundo 64 todo, se transmutando num verdadeiro símbolo nacional, tão característico do Brasil quanto o futebol, o samba e a caipirinha. Mas a marca sempre quis mais, além de símbolo nacional ela queria mostrar que aquele chinelo simples e de valor acessível era um item usado por todas as pessoas, por isso, tornou-se uma das marcas brasileiras que mais investe em celebridades em seus comerciais. Quando a Havaianas passa a calçar os pés de figuras públicas ela adquire um novo status que lhe confere diferencial, inclusive gerando réplicas e similares no mercado, dai porque da frase “Recuse imitações”. Já o “Todo mundo usa” tentava resolver o impasse em que a marca se encontrava, ou seja, oferecer um chinelo de baixo custo e ao mesmo tempo mostrá-lo como único e bonito, tanto que estava nos pés dos atores da rede Globo de televisão, por exemplo. A partir de então os comerciais com famosos vendendo esses chinelos tornou-se uma constante da marca. Contando com o prévio conhecimento desses fatos discursivos inerentes à história da marca na memória coletiva dos indivíduos consumidores, o comercial intitulado “Convite” protagonizado pela atriz brasileira Susana Vieira traz a seguinte narrativa:

Figura 1 Fala 1: “Vocês sabem quem vai estrear o novo comercial das havaianas? Fonte: Youtube

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Figura 2 Fala 2: A melhor atriz do Brasil. Quem? Eu, né! Fonte:Youtube

Figura 3 Fala 3: “Olha, no começo eu nem queria sabe?!” Fonte: Youtube

Corta para Susana Vieira em imagens estilo “câmera oculta” falando enquanto se maquia num camarim ou closet: 66

Figura 4 Fala 4: “Porque que vocês nunca me chamaram pra fazer anúncio das havaianas, hem?”. Fonte: Youtube

Volta para Susana Vieira na praia:

Figura 5 Fala 5: “Eu nem queria muito, porque afinal, eu sou a Susana Vieira né”. Fonte: Youtube

Corta para Susana Vieira em imagens estilo “câmera oculta” falando enquanto se maquia num camarim ou closet:

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Figura 6 Fala 6: “Vocês chamam todo mundo. Custa me chamar?”. Fonte: Youtube

Volta para Susana Vieira na praia:

Figura 7 Fala 7: “Mas eles insistiram, mas insistiram, mas insistiram muito”. Fonte: Youtube

Corta para Susana Vieira em imagens estilo “câmera oculta” falando enquanto se maquia num camarim ou closet: 68

Figura 8 Fala 8:“Me chama vai, por favor, me chama pra fazer as havaianas...”. Fonte: Youtube

Volta para Susana Vieira em plano americano numa praia:

Figura 9 Fala 9:“Acabei aceitando”. Fonte: Youtube

Entra em tela cheia o seguinte texto: 69

Figura 10 Fechamento do comercial: “A pedidos (dela mesma) vem ai o novo comercial das havaianas”. Fonte: Youtube

A linguagem publicitária, ou ao menos, o conjunto de estratégias discursivas mais visíveis e recorrentes que corriqueiramente aglutinamos sob a alcunha de “linguagem publicitária” não aparece com um selo ou rótulo identificador que ateste exatamente determinado conteúdo como sendo “linguagem publicitária”, há apenas características mais utilizadas, como a persuasão, mas mesmo esta pode, e não raramente é, encontrada também em outros campos.

A publicidade procura estabelecer uma relação de identidade entre os consumidores e os objetos industriais. O discurso publicitário dirige- se ao consumidor de forma singularizada, procurando fazer com que os objetos feitos em série sejam vistos pelo consumidor como produtos feitos especialmente para ele. Embora a sociedade capitalista de consumo seja a “mãe de todos”, cada um dos seus membros precisa tornar-se “filho único” (COELHO,2003, p.11). Como dito por Coelho, a publicidade tenta convencer que vê cada um dos indefinidos receptores de seus conteúdos mediados como único, portador de uma identidade exclusiva, especial. Nas narrativas dos comerciais publicitários essa relação de unicidade ganha materialidade com frases do tipo “você que está ai sentado”, “estamos te aguardando em nossas lojas”, “não perca tempo”, “estamos de braços abertos para lhe atender”, etc. No comercial com Suzana Vieira esta tentativa de personalização continua presente, só que agora de forma mais sutil. Se neste comercial o receptor não é diretamente interpelado pela atriz, ele é convidado a rir dela. 70

Essa abordagem que se pretende intimista e pessoal é até compreensível para a publicidade, desde que não fosse tão sedutora a ponto de fazer-nos esquecer que é forjada, que todos aqueles milhões de indivíduos com os televisores ligados ouvirão a frase exatamente da mesma maneira. Porém, deixa de ser compreensível e torna-se um risco quando essa linguagem passa a ser assimilada e utilizada por outras esferas que não a publicitária. Por exemplo, “o consumidor/eleitor escolhe um partido/candidato com base na relação de identificação com a imagem divulgada [...] As relações reais vividas pelos eleitores, a posição por eles ocupada no processo de produção influencia cada vez menos as suas opções políticas” (COELHO, 2003, p.21). Ou seja, atualmente até os candidatos se portam como produtos que resolverão os problemas não da coletividade, mas de cada indivíduo, já que interpelam estes através da mesma linguagem publicitária de produtos e serviços, tal qual a linguagem deste comercial de Havaianas. Essa construção discursiva ora analisada faz um jogo ao ativar memória e esquecimento. Quando a atriz diz que a marca chama “todo mundo” ela se refere aos vários famosos já contratados para protagonizarem comercias das Havaianas, o que a leva a questionar o porquê de não ser convidada já que não é só famosa, mas “a melhor atriz do Brasil”, segundo a própria. Ao mesmo tempo, o comercial mescla dois discursos, um que seria o atual, a saber o de Susana na praia dizendo que fará o próximo comercial da Havaianas já que insistiram muito para que ela aceitasse o convite, e um segundo discurso, o que é captado por uma espécie da “câmera oculta” já que intencionalmente a qualidade audiovisual é inferior à de Susana na praia. No segundo discurso é como se fosse um material de gravação caseira, no qual Susana implora para que a marca lhe contrate para protagonizar um comercial de Havaianas. Ou seja, no discurso dito na praia Susana estaria mentindo, já que afirma estar ali para gravar o próximo comercial da marca unicamente porque esta insistiu muito, e que só por isso ela aceitou, quando, na verdade, foi a atriz quem implorou para fazer a peça publicitária. A tônica irônica se completa com a conclusão do comercial, um texto em tela cheia que diz: “A pedidos (dela mesma) vem ai o novo comercial das havaianas”. Num nível fundamental, poderíamos dizer que esse texto trata simplesmente de um convite. Uma atriz que é convidada para fazer um comercial. O próprio título da peça é a palavra “convite”, além disso, ouvimos várias vezes no decorrer do comercial expressões similares como “me convidaram” que, no entanto, se contradiz com outras 71 que se seguem como “me convide” e “à convites (dela mesma)” dentro da mesma construção discursiva. A geração de sentidos se inicia desses fatores mais aparentes, do que se repete mais explicitamente.

Primeira etapa do percurso de geração de sentido, ponto de partida da geração do texto, em que se determina o mínimo de sentido a partir de que ele se constrói - trata-se da relação de oposição ou de diferença entre dois termos, dentro de um universo semântico. Quando dizemos que um texto "fala" da morte, do amor, da liberdade etc, estamos analisando a sua camada fundamental, o mínimo de sentido sobre o qual ele é construído (GREGOLIN, 2007, p.15).

Essa oposição, no nível fundamental, entre “me convidaram” e “me convide” vai determinar a linha argumentativa do texto, desencadeando-a. Portanto, agora já “no segundo nível do percurso gerativo de sentido, onde os valores fundamentais são narrativizados a partir de um sujeito” (GREGOLIN,2007, p.16). É nesse nível narrativo que o contexto vai mostrando sua força na produção de sentido que o texto objetiva desde sua gênese, pois o sujeito ou os sujeitos ocupam diferentes lugares de fala. Nesse âmbito narrativo temos dois sujeitos, Susana Vieira e Havaianas. Quando analisamos os dois sujeitos percebemos uma inversão com o que era estabelecido até então, ou seja, não é mais a Havaianas buscando uma celebridade para vender seu produto amparado no status de fama, beleza e/ou carisma de Susana, mas esta se oferecendo para fazer comercial da marca já que deseja entrar na lista dos que fizeram publicidade das Havaianas. É Susana quem almeja ganhar visibilidade com a marca Havaianas, e não o inverso. Mais do que isso, Susana quer se credenciar ao grupo daquelas celebridades que fizeram publicidade pra Havaianas porque isso atesta alguma coisa desejável no contexto social, a saber, uma celebridade já com alguma posição mais ou menos sólida em relação às outras milhares que aparecem sem cessar. Mas, há ainda um outro nível no texto desse comercial que vai além do fundamental e do narrativo, é o discursivo.

As estruturas narrativas convertem-se em discurso quando assumidas pelo sujeito da enunciação: ele faz uma série de "escolhas", de pessoa, de espaço, de tempo e de figuras, contando a história a partir de um determinado "ponto de vista". A narrativa é, assim, "enriquecida" com essas opções do sujeito da enunciação. Esses recursos do nível discursivo têm como objetivo estabelecer a relação entre o enunciador do texto e o enunciatário, permitindo a interpretação por meio de marcas espalhadas no texto. Essas marcas conduzem o leitor a perceber a orientação argumentativa e as relações entre o texto e o contexto em que foi produzido. Entendemos, portanto, discurso como um dos patamares do percurso de geração de sentido de um texto, o 72

lugar onde se manifesta o sujeito da enunciação e onde se pode recuperar as relações entre o texto e o contexto sócio-histórico que o produziu (GREGOLIN, 2007, p. 17). O nível discursivo, ou seja, aquele que exerce a função de lupa nas discretas marcas textuais e que nos permite esboçar algumas interpretações, também proporciona um estreitamento entre texto e o contexto de produção do discurso. A narrativa do comercial em questão ri de Susana Vieira ao mostrá-la como alguém que implora por um comercial e depois mente ao público dizendo que foi bajulada para fazê-lo. Fica claro que o estatuto da celebridade não é levado a sério de forma alguma como posição inatingível ou digna de fascínio. E o comercial vai mais além. O publicitário que o escreveu e desenvolveu conta com a biografia da atriz Susana Vieira e de seu conhecimento por parte do grande público como gatilho complementar ao do comercial. Em outras palavras, características da vida íntima de Susana são alinhadas às do texto da peça publicitária. Ocorre que a atriz Susana Vieira é conhecida como alguém de personalidade forte, o que é corroborado por episódios embaraçosos ocorridos no espectro midiático e fora dele, como o dia em que deu uma entrevista ao vivo para o programa da rede Globo de televisão Vídeo Show e arrebatou o microfone das mãos da jovem repórter que fazia a matéria alegando que “não tinha paciência para quem estava começando”. Na verdade, as gafes cometidas pela atriz, propositais ou não, compõem uma lista longa, algumas de enorme destaque por semanas nos programas de celebridades, como foi com sua participação no quadro “Dança no Gelo” no programa dominical da rede Globo de televisão “Domingão do Faustão”, onde famosos dançam de patins em uma superfície de gelo e recebem notas de um júri especializado. Com pouca desenvoltura na apresentação Susana acabou sendo eliminada, o que a fez esbravejar ao vivo dizendo que fazia aquilo como ninguém, e que só estava ali porque o seu amigo e apresentador do programa Fausto Silva a convidara. Em reiteradas entrevistas Susana já disse que não se abate com as críticas, alegando que o Brasil a ama e que é uma atriz diferenciada. A mídia noticia cada um de seus novos namorados. No último Natal ela se envolveu em mais um episódio embaraçoso, foi quando protagonizou Maria no espetáculo a céu aberto “Paixão de Cristo” em Jerusalém e não acertou a sincronia de sua fala com a sonoplastia da dublagem. Irritada com a crítica da mídia, Susana disse que jamais voltaria a aceitar convites para aquele espetáculo categorizado como “sem estrutura”, segundo a atriz. 73

Ou seja, em dois episódios recentes Susana utilizou o argumento de que foi convidada e que só por isso aceitou fazer algo, no quadro do programa de Fausto Silva e no espetáculo “Paixão de Cristo”, além disso, demonstrou notável auto-estima elevada em diversas ocasiões, o que suscitou risos e chacotas por parte do público, e que certamente está implícito na construção discursiva do comercial em análise, o não por acaso denominado “convite”, que a mostra como convencida e pitoresca. Como dito, esse comercial é um teaser que anuncia um próximo, ou seja, esse comercial deixou o público aguardando pela peça publicitária da Havainas com Susana Vieira, peça essa para qual ela disse ter sido convidada, quando na verdade implorou para fazer, como provado pelo discurso do comercial. Eis que é lançado o comercial chamado “Adivinho”:

Figura 11 Fala 1- Vendedor: “Chegou verão, olha as novas havaianas”. Fonte: Youtube

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Figura 12 Fala 2 – Moça: “Moço eu queria ver essa floridinha. Número...” Fonte: Youtube

Figura 13 Fala 3 - Vendedor: “35!” Fonte: Youtube

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Figura 14 Fala 4 - Moça: “Perai, como você adivinhou meu número?” Fonte: Youtube

Figura 15 Fala 5 - Vendedor: “Só de olhar pra pessoa eu já sei quanto ela calça. Experiência. Anos vendendo havaianas”. Fonte: Youtube

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Figura 16 Fala 6 - Segunda moça: “Ah, é?! Então qual é meu número?” Fonte: Youtube

Figura 17 Fala 7 - Vendedor: “39!” Fonte: Youtube

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Figura 18 Fala 8 - Terceira moça: “E o meu?” Fonte:Youtube

Figura 19 Fala 9 - Vendedor: “39 também”. Fonte: Youtube

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Figura 20 Fala 10 – Susana Vieira:“Olá, meninas! Tudo bem?” Fonte: Youtube

Figura 21 Fala 11 – Vendedor referindo-se a Susana “Você é 37 hem?” Fonte: Youtube

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Figura 22 Fala 12 - Susana responde: “Fofo! Parece, né?” Fonte: Youtube

Vendedor faz expressão irônica e vai embora gritando com certo desdém:

Figura 23 Fala 13 – Vendedor: “Olha as novas havaianas”. Fonte: Youtube

O humor desse comercial consiste no fato de Susana Vieira ter pensado que o vendedor de Havaianas lhe deu 37 anos de idade, quando na verdade o ambulante se referia ao tamanho de seu pé. Esse desentendido não teria graça se a personagem envolvida não fosse Susana, não exatamente porque ela tem 74 anos e costuma ocultar a 80 idade, mas por ser conhecida como alguém que se auto proclama famosa, bonita e amada pelo Brasil, o que é questionado aos olhos de todo o público através do comercial, que expõe Susana como risível, atrapalhada e sedenta pela oportunidade de assinar o contrato publicitário. As marcas discursivas desses dois comerciais corroboram com as características do novo estatuto da fama que expomos durante essa pesquisa, bem como denota a relação de retroalimentação entre mídia e celebridades como indissolúveis na construção e manutenção de ambas. A mídia porque precisa das celebridades que produzam novos conteúdos a todo instante, e as celebridades que precisam do aparato midiático para ter visibilidade e poder duelar qualquer segundo a mais na posição de famosos. Isso se comprova pelo fato de que é pouquíssimo provável que Susana tenha sido contratada pela empresa Havaianas para seu comercial por seus trabalhos como atriz, mas pela persona que construiu na mídia através de eventos constrangedores, bem como de ocorrências de sua vida pessoal, como seus sempre jovens namorados que apresentava em capas de revistas e posteriormente os términos conturbados igualmente divulgados nas páginas e programas. O público formado de indivíduos anônimos, mas também desejosos por fama, gargalha do comercial enquanto se aproxima do produto, já que o famoso não foi colocado como modelo irretocável e inalcançável, mas como um semelhante.

O tema da idade é protagonista no comercial pelo fato de que a juventude é um dos principais mitos da contemporaneidade, bem como uma das promessas mais vendidas pela publicidade. Portanto, todos, assim como Susana, desejam manter-se eternamente jovens, escondendo ao máximo os sinais de envelhecimento físico, principalmente num contexto onde o corpo é tão evidenciado. O trocadilho com o número do pé de Susana com sua idade, bem como a implícita comparação entre seu corpo com os das jovens atrizes, demonstram um comparativo entre o ideal e o inevitável, até mesmo para uma celebridade que tem acesso aos mais diversos cuidados e técnicas corporais antienvelhecimento. É a clara tentativa de aproximar o público dessa celebridade “gente como a gente”, mostrando que ela também envelhece e que, ainda assim, tem autoestima a ponto de achar-se a “melhor atriz do Brasil”. O produto, o chinelo, pega “carona” nessa pretensa relação amigável entre “mulheres que se entendem”. 81

3.3 COMERCIAL DA EMPRESA VIVO COM O PILOTO RUBENS BARICHELLO

É possível dizer que a publicidade se dá através de um discurso, mas que este não foi fundado por ela, tampouco se encerra nela. Ao contrário, se imbrica em diversos outros discursos de múltiplos campos, que a utilizam para vender ideais, como se mostrou no discurso dos comerciais que expõem as celebridades, que trabalham com a memória dos receptores, fazendo-os lembrar de acontecimentos envolvendo a vida íntima dos famosos, com o imaginário que povoa o estatuto da fama na contemporaneidade, com a carência de personalização num contexto tão impessoal quanto o da serialização e da produção em larga escala dos produtos e bens culturais, com a espetacularização, com o desejo de estar numa relação de igualdade com as figuras públicas, e com o duelo pelos dispositivos de visibilidade como forma de manter-se nos fluídos holofotes. Posto que “a publicidade tem por tarefa divulgar as características deste ou daquele produto e promover-lhe a venda. Esta função ‘objetiva’ permanece em princípio sua função primordial (BAUDRILLARD, 2002, p. 174)”, mas a subjetiva também é indissociável daquela, operando não como forças concorrentes, mas reciprocamente orientadas, assim sendo, vende-se não só produtos, mas também uma miríade de ideologias. Deste modo, a publicidade tem seu discurso reconhecido como potente, e por isso é invocado por outras áreas, proferida por inúmeras vozes, o que a fez tornar-se onipresente na contemporaneidade. Retomando esses pontos, passemos ao terceiro comercial, este da empresa de telefonia Vivo com Rubens Barichello como protagonista. O piloto brasileiro de Fórmula 1 Rubens Barichello, mais conhecido como “Rubinho”, embora tenha vários títulos em sua carreira, passou a ser figura central de piadas que envolvem atrasos e situações, onde é sempre colocado como “o último a saber de algo”, isso está ligado ao fato de Rubinho não se encontrar mais em seus melhores momentos na carreira, não ocupando os privilegiados lugares nos pódios. Certamente, Rubinho é uma das personalidades mais utilizadas em memes e sátiras na internet, por exemplo, quando fazem montagens onde ele anuncia como novidade a ocorrência de um fato histórico antigo. É curioso notar também que Rubinho é visto como celebridade, embora tenha sido desde o princípio um piloto de automobilismo. Apoiados nesse discurso anterior já construído na memória coletiva, ou seja, de Rubinho enquanto alguém lento e atrasado que não consegue mais a primeira colocação 82 nas corridas, a empresa de telefonia “Vivo” lançou um comercial televisivo com o piloto e o garoto propaganda da empresa João Cortês, mais conhecido como “ruivinho da Vivo”. Na narrativa, Rubinho e o garoto propaganda se encontram casualmente na rua e têm o seguinte diálogo:

Ruivo da vivo vem andando de bicicleta na rua e encontra Rubinho

Figura 24

Fala 1 – Ruivo: “Opa, Rubinho. Posso tirar uma foto?”.

Fonte: Youtube

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Figura 25

Fala 2 – Rubinho: “Lógico”.

Fonte: Youtube

Tiram uma selfie juntos no celular do ruivo, que logo posta a foto nas redes sociais.

Figura 26

Fala 3 - Ruivo: “Aê. Pronto”.

Fonte: Youtube

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Figura 27

Fala 4 - Rubinho: “Ué, mas já postou?”.

Fonte: Youtube

Figura 28

Fala 5 - Ruivo: “Sim. É rapidinho. É Vivo Tudo, é ligação, SMS, internet é 4g”.

Fonte: Youtube

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Figura 29

Fala 6 - Rubinho: “Perai, você não é o ruivo do comercial?”.

Fonte: Youtube

Figura 30

Fala 7 - Ruivo: “Sim, sou eu”.

Fonte: Youtube

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Figura 31

Fala 8 - Rubinho: “Ah, então tira uma foto aqui comigo”.

Fonte: Youtube

Tiram foto no celular de Rubinho que demora a carregar a imagem.

Figura 32

Fala 9 - Rubinho: “Cara, essa minha internet é muito lenta”.

Fonte: Youtube

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Figura 33

Fala 10 - Ruivo: “Pra você dizer que é lenta, o negócio tá difícil, tá complicado”.

Fonte: Youtube

Figura 34

Rubinho olha bravo para o garoto-propaganda da Vivo. O comercial se encerra com o narrador dizendo: “vivo tudo, sms, ligação e agora é internet 4g. Só 6,90 por semana. É menos de um real por dia. Clique e cadastre-se grátis”.

Fonte: Youtube

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Assim como no comercial da marca Havaianas com a atriz Susana Vieira, o da Vivo com Rubinho também desenvolve o texto amparado em um interdiscurso para gerar efeitos de sentido, em outras palavras, constrói um discurso que só suscita interesse e humor porque tem seu sentido ligado a um discurso anterior já conhecido. Deste modo, compreendemos e rimos da associação feita entre a internet lenta de Rubinho e sua lentidão nas corridas, o que se torna ainda mais cômico quando o garoto- propaganda da marca diz que pra Rubinho dizer que “algo é lento é porque a coisa deve ser absurdamente lenta mesmo”, como se dissesse que “de lentidão Rubinho entende”. Mas o que realmente despertou nossa atenção e, que fez esse comercial ser escolhido para compor o corpus, foi a relação mostrada entre os dois personagens, Rubinho e o ator João Cortês, o “ruivinho da Vivo”. Foi possível perceber o quanto a repaginação da fama na contemporaneidade envolve um processo ágil na construção de sujeitos célebres, que surgem e correm o risco de desaparecerem com a mesma intensidade, já que dependem dos dispositivos de visibilidade, estes oferecidos pela grande mídia, que como já dissemos, só é fiel até surgir a “celebridade da vez”. Isso porque o texto do comercial nos diz que o ruivinho da Vivo foi quem reconheceu Rubinho primeiro, e que logo pediu para tirar uma foto com ele. Também através do texto analisa-se que o motivo dessa foto não foi o fato de Rubinho ser piloto, ou seja, sua obra não foi a causa de seu reconhecimento, uma vez que o ruivinho o considera lento, o que é incompatível para um piloto de corridas, mas, apenas o fato de ser uma figura pública que tornou-se humorística por seu insucesso profissional. Portanto, o texto nos diz que o ruivinho quis tirar uma foto com Rubinho e mostrá-la a todos os seus amigos nas redes sociais não porque queria figurar publicamente ao lado do Rubinho Piloto, mas do Rubinho meme, do Rubinho que é piada na internet. Assim como o ruivinho da Vivo, o público também se sentiu à vontade ao assistir esse comercial porque pôde rir de Rubinho, e não porque ele foi mostrado como exemplo de sucesso. Dessa forma, o serviço de telefonia oferecido no comercial pega “carona” no bom humor do ruivinho quando chama Rubinho de lento e na comicidade da situação criada que envolve a celebridade Rubens Barichello, ao mesmo tempo em que traça uma diferenciação proposital entre a rapidez da internet oferecida com a lentidão de Rubinho e do serviço de conexão móvel que usa em seu próprio celular. 89

Mas será que temos apenas uma celebridade nesse comercial? Parece que não. O discurso do texto publicitário traz, num segundo momento, Rubinho pedindo para também tirar uma foto com o garoto propaganda da Vivo e logo após a publica em suas próprias redes sociais. Ademais, Rubinho reconhece o ruivinho da Vivo mesmo que este não tenha se apresentado. A sequência “É Vivo Tudo, é ligação, SMS, internet é 4g”. tornou-se a marca registrada do ator João Cortês que surgiu na mídia no ano de 2013 quando fez o primeiro comercial da empresa Vivo, e que foi o que fez Rubinho reconhece-lo. Ou seja, no comercial ambos são celebridades. Ambos pediram para tirar fotos juntos. Mas o status de celebridade dado à João só foi utilizado no comercial porque no contexto real o mesmo ocorreu. O chamado “ruivinho da Vivo” do ano de 2013 até 2016 não parou de fazer peças publicitárias para a empresa de telefonia, o sucesso e a recepção positiva do público reside no humor e perspicácia de João no trato com os famosos nos comerciais, ele já fez graça do alto número de casamentos do cantor Fábio Júnior, já disse a atriz Grazi Massafera que sua “massa é fera”, etc. Tudo isso, somado a rapidez com que a contemporaneidade batiza sujeitos comuns como famosos, fez com que o próprio João tenha se tornado celebridade também. Prova disso é que João acabou chamando a atenção da Rede Globo de televisão, que o contratou no ano de 2014 para estrelar um episódio de uma série da emissora chamada “Os Experientes”, onde representou um ladrão de banco inexperiente ao lado da reconhecida atriz Beatriz Segall. No corrente ano de 2016, João foi escalado para atuar na novela “Sol Nascente” do horário das seis horas da Rede Globo onde faz o personagem “Peppino”, dentre trabalhos também no cinema. Ou seja, João já está celebridade, usamos “está” porque a qualquer momento ele pode ocupar o lugar dos famosos dos quais riu até hoje.

3.4 Comercial da empresa Nextel com Daniella Cicarelli

A Nextel Telecomunicações11 é uma subsidiária brasileira da NII Holdings Inc, empresa de serviços de comunicação móvel cuja matriz está sediada na cidade de Reston, Virgínia, Estados Unidos. No Brasil, o início das operações deu-se no ano de 1997. No corrente ano de 2016 a Nextel lançou uma série de três comerciais na televisão, todos falando sobre rótulos criados pela sociedade. Diferentemente dos três

11 Disponível em: http://www.nextel.com.br/nossa-historia 90 comercias anteriormente analisados, esses três próximos não são humorísticos, ao contrário, objetivam seriedade e dramaticidade. As celebridades aqui protagonistas são, no primeiro dos três a Modelo brasileira Daniella Cicarelli, no segundo o músico Júnior Lima, no último o ator Bruno Gagliasso. Neste primeiro comercial, que é envolto no formato de storytelling, temos o seguinte texto:

Figura 35

Fala 1 - Daniella Cicarelli: “A modelo que não deu certo como atriz, nem como apresentadora. Aquela que teve um casamento relâmpago com um ídolo mundial. A que ficou na geladeira, e sumiu! Rótulos não vão me definir, o que me define sou eu. Isso tá nas minhas mãos”.

Fonte: Youtube

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Figura 36

Fala 2 - Narrador: “a internet mais rápida, a melhor operadora. Melhor você ter esse celular. Ligue 1050”.

Fonte: Youtube

Figura 37

Fala 3 – Daniella: “Nextel, tá nas suas mãos”.

Fonte: Youtube

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A empresa Nextel tem a técnica do storyelling, ou seja, contar histórias reais, como marca de seus comerciais. Isso porque busca fazer um paralelo entre a realidade da empresa com a do sujeito que protagoniza a peça publicitária sempre que passa por um momento delicado no mercado, o que se dá principalmente por dois motivos, pelo fato de que a Nextel ainda é conhecida por muitos consumidores como uma fornecedora apenas de serviço de rádio, e também porque quando entrou no nicho de telefonia móvel foi duramente criticada pela qualidade de seus serviços, ficando assim com o rótulo de empresa que só sabe trabalhar com rádios comunicadores e não com celulares, o que vai de encontro às aspirações mercadológicas da empresa. A ex-modelo Daniella Cicarelli, por sua vez, teve seu primeiro trabalho na mídia em um comercial da empresa de refrigerantes Pepsi, neste ela caia de paraquedas, numa alusão ao seu meteórico aparecimento enquanto celebridade e retomando a conhecida expressão “caiu de paraquedas” que utilizamos quando queremos dizer que algo surgiu repentinamente. Após essa ocasião, Daniella que já era modelo continuou desfilando, fez alguns outros comerciais, papéis em novelas nacionais e apresentou programas no canal pago brasileiro MTV. Mas foi principalmente por dois motivos que o nome de Daniella continuou aparecendo esporadicamente na mídia mesmo após ela parar de desfilar, apresentar e atuar por consideráveis períodos. O primeiro motivo se deve ao episódio no qual Daniella Cicarelli foi filmada por um paparazzo enquanto praticava sexo em uma praia pública com o seu namorado de então, o empresário Renato Malzoni Filho. Com a repercussão da divulgação das imagens, o casal entrou na justiça para tentar impedir que sites continuassem disseminando o material, o que gerou revolta no público e na imprensa, bem como foi o assunto principal nos programas e portais de celebridades por meses. O segundo motivo foi seu casamento relâmpago com o ex-jogador de futebol Ronaldo Nazário dos Santos. Após um namoro amplamente midiatizado, com direito a fotos românticas e entrevistas nas quais faziam juras e mostravam as tatuagens com suas iniciais no pulso do jogador, veio o casamento. O relacionamento de Ronaldo e Cicarelli durou menos de um ano, entre namoro, casamento e separação. O ápice do espetáculo foi a cerimônia, a mídia pesquisava e divulgava ininterruptamente informações sobre o local do matrimônio, o castelo francês Chateau de Chantilly, complementava a informação aos telespectadores dizendo que o castelo abrigava pinturas raras como as de Rafael Sanzio e já havia sido até cenário de filme de James Bond, bem como 93 relembrava a todo instante que os convidados faziam parte de uma lista muito seleta, e que seriam disponibilizados helicópteros para o translado do Brasil até a França. Após o grande dia, a mídia começou a divulgar vastas informações sobre a cerimônia, dentre elas a ausência da mãe de Daniella, que teria uma péssima relação com a filha, que Daniella teria expulsado da festa uma modelo brasileira com quem não simpatizava e que tinha ido como acompanhante de um amigo de Ronaldo, que a noiva estava revoltada com a quantidade de penetras, etc. Menos de três meses após a celebração do casamento, seu fim foi anunciado pela assessoria do casal, que pouco tempo antes publicava comunicados negando brigas entre o casal e supostas traições de Ronaldo. Valendo ouro para a mídia, Cicarelli foi levada de helicóptero para o programa dominical da Rede Globo de televisão “Domingão do Faustão” pouco após o término da relação. Toda uma operação foi realizada, por parte do programa, para que ela falasse com exclusividade sobre as razões e rumores que o público tanto aguardava saber. Na ocasião, Daniella disse ter tido uma “lua de melda”, quando questionada sobre a lua-de- mel pelo apresentador. Tanto o passado da Nextel quanto o da ex-modelo Daniella Cicarelli ainda respingam em seus presentes, mantendo-os em rótulos socialmente tidos como indesejáveis. É nisso que o discurso do comercial se ampara para gerar sentido, por isso, a peça publicitária enfatiza trechos do texto como “rótulos não vão me definir”, “o que me define sou eu”, “isso tá nas minhas mãos” e “tá nas suas mãos”. Todavia, embora a empresa objetivasse passar a mensagem de que rótulos não definem uma reputação para sempre, não foi a sua intimidade que ela expôs em detalhes, desde sua abertura com o serviço de rádio até sua tentativa problemática com os celulares, mas se preservou e disse isso através da exposição da esfera íntima da vida de Daniella Cicarelli, que foi paga para permitir. Daniella foi quem precisou relembrar aquilo que dizem sobre ela, ou seja, “a modelo que não deu certo como atriz, nem como apresentadora. Aquela que teve um casamento relâmpago com um ídolo mundial. A que ficou na geladeira, e sumiu!”. O discurso desse comercial é, então, “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva”; conjunto este que também é “histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história”, sendo esta quem “coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos 94 modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo” (FOUCAULT, 2009, p. 132-133). Ou seja, o discurso, inclusive o dos comerciais aqui investigados, é uma porção de enunciados que se tonam mais sedimentados como um saber específico na medida em que se organizam em torno de uma mesma formação discursiva, sem descolar-se de um dado período histórico que o solidificará, e em alguns casos o transformará, originando assim uma prática discursiva, que é um “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2009, p. 133). Esse saber específico se imbui do poder de dar receitas de como ser visto e lembrado, de como se diferenciar dos demais na busca pela fama e de como fazer da intimidade um verdadeiro e rentável espetáculo. Os enunciados desses comerciais publicitários com celebridades na função de protagonistas expostos são destoantes de alguns enunciados ainda utilizados pela mesma indústria publicitária, que vende seus produtos e serviços atrelados famosos, estes apresentados como projeções do que há de mais perfeito, diferentemente da abordagem que suscitou essa pesquisa e que é nosso foco. Em suma, em meio a um amplo quadro de estratégias discursivas da publicidade com celebridades foi possível perceber essas duas regularidades diluídas na aparente desordem do discurso.

Daniella falou tudo que a empresa desejava, de certa forma ela pediu ao público que desse um voto de confiança e esquecesse os percalços de seu passado, ou seja, os erros da empresa utilizaram os de Daniella como um útil disfarce, pediram desculpas expondo a narrativa de outrem. Somado a isso, a peça publicitária mostrou Daniella plena, em postura poderosa e autônoma, como alguém que superou um momento ruim e que está pronta para mostrar a que veio, verdadeiro desejo da Nextel para si mesma.

3.5 Comercial da empresa Nextel com Júnior Lima

Com o mesmo interesse do comercial anterior, ou seja, o de convencer os consumidores de que devem confiar no serviço de telefonia celular da empresa e esquecer seu rótulo de prestadora exclusiva de rádios comunicadores, a Nextel deu sequência a sua campanha publicitária “Rótulos”. A celebridade protagonista agora é o músico e ex-cantor Júnior Lima, que logo na infância iniciou uma carreira de sucesso 95 cantando em dupla com sua irmã Sandy. Há anos Júnior enfrenta provocações por parte do público e da mídia, que questionam sua posição coadjuvante perto do protagonismo exercido pela irmã, rumores acerca de sua sexualidade, de seu talento, se gostava de sertanejo como o pai e tio, os também músicos Chitãozinho e Xoróró, ou se era algo obrigatório, etc. Baseado nisso o comercial traz o seguinte texto:

Figura 38

Fala 1 – Júnior: “A criança prodígio que cresceu e se perdeu. Eterna sombra da irmã. Aquele que nunca saiu do armário. Rótulos não vão me definir, quem me define sou eu. Isso tá nas minhas mãos”.

Fonte: Youtube

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Figura 39

Fala 2 - Narrador: “A internet mais rápida. A melhor operadora. Melhor você ter esse celular. Ligue 1050”.

Fonte: Youtube

Figura 40

Fala 3 – Júnior: “Nextel. Tá nas suas mãos”.

Fonte: Youtube

Quando a dupla Sandy e Júnior, um dos maiores cases de sucesso da indústria fonográfica brasileira anunciou sua separação, o público e a mídia passaram a esperar o 97 que aconteceria com as vidas profissionais e íntimas de ambos a partir de então. Assim como no conceito de espetáculo de Debord e no mito do Catch em Barthes, onde o resultado da luta pouco importava, mas sim o quanto ela fosse instigante, aqui o que interessava era assistir os próximos episódios da vida de Júnior após o fim da dupla com sua irmã, mesmo que fosse um insucesso. Será que os irmãos cairiam no esquecimento? Que suas carreiras solo teriam o mesmo sucesso da conjunta? Mesmo nas tentativas empreendidas por Júnior de compor uma banda de rock, depois um projeto eletrônico e por fim apresentar um programa musical online, as perguntas que lhe faziam em entrevistas eram majoritariamente de ordem íntima e referentes ao seu passado. Se estava namorando, se tinha saudades de trabalhar com a irmã ou se poderia cantar um antigo sucesso, era como se Júnior tivesse ficado cristalizado no adolescente cantor de dupla pop de outrora. Todos os seus novos planos eram vistos como incompreensíveis, uma vez que ele e a irmã sempre estiveram no topo do sucesso. Júnior havia se perdido segundo a mídia. É o que relembra o texto do comercial, ou seja, “a criança prodígio que cresceu e se perdeu”. No entanto, o mesmo comercial traz um discurso de superação, de que apesar dos rótulos e dificuldades provenientes destes, Júnior não se deixaria abater, tendo em suas próprias mãos o controle e a força para reverter esse quadro. Mas o âmbito profissional não era o único a ser espetacularizado na vida de Júnior. Questões relativas à sua suposta homossexualidade eram perseguidas pela imprensa especializada em celebridades. Mesmo quando Júnior casou com a modelo Monica Benini no ano de 2014, dúvidas quanto a sua orientação sexual não cessavam. Percebe-se que a fama de Júnior passava por um processo de reacomodação no contexto social, que a aura de infalibilidade que o envolvia começou a ser erudida pelo aparato midiático, posto que rendia conteúdo e alimentava a curiosidade do público, o que se convertia em vendas de revistas, jornais e altos índices de ibope. Na verdade, a publicidade que se utiliza de celebridades (seja na abordagem já conhecida que coloca os famosos como modelos irretocáveis, ou na que aqui investigamos, a que expõe essas celebridades e seus episódios embaraçosos) já constitui uma prática discursiva, ou seja, já dita regras para a função discursiva. Portanto, esse atual discurso da celebridade que foi construído pela publicidade é tão ordenado, situado historicamente e orientado quanto o anterior, o que mudou foi o efeito de sentido que agora deseja suscitar nos indivíduos receptores. Foi preciso uma nova forma de alimentar desejos, já que estes não são mais os mesmos. 98

A prática discursiva seria o elemento resultante de uma série de regras de caráter atestatório, delimitatório, inclusivo ou exclusivo de quem pode falar, o que, e em qual momento. Dessa forma, sujeitos e objetos não existem a priori, sendo na verdade, construídos discursivamente a partir do que se fala sobre eles, portanto, os indivíduos da contemporaneidade líquida, a mídia espetaculoísta e as celebridades fugidias são partes, mas, sobretudo, frutos de uma prática discursiva corrente que dá existência a estes no momento em que os definem como tais, definições essas que se materializam em lugares de fala estabelecidos e valorados socialmente como críveis. O analista do discurso deve buscar a regularidade dos discursos em suas aparentes dispersões, posto que são as regularidades que proporcionam uma formação discursiva. Dentre tantos comerciais publicitários com celebridades colocadas das mais diversas formas e vendendo diferentes valores, foi as regularidades que perseguimos, foi a ordenação dessa “linguagem publicitária” enquanto um discurso classificado, ordenado, hierarquizado e orientado que tentamos mapear, mostrando e problematizando as características que enxergamos como cruciais, como mais reveladoras de uma “nova” relação do público com as celebridades a partir da ressignificação do conceito de celebridade no imaginário popular, ressignificação essa que foi construída através de uma parceria entre os comerciais publicitários e todos os outros dispositivos sociais e midiáticos. No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. (FOUCAULT, 2009, p. 43). Todos os objetos, sujeitos, fenômenos e conceitos só existem de acordo com “as condições positivas de um feixe complexo de relações.” (FOUCAULT, 2009, p. 50). Relações essas que se dão entre “instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização” (FOUCAULT, 2009, p. 50). É esse feixe complexo de relações em seu ir e vir que gera a prática discursiva. Analiticamente, todo objeto investigado deve ser “relacionado ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento histórico.” (FOUCAULT, 2009, p. 53). Foi esse feixe de relações que buscamos esclarecer ao mostrar que o discurso produzido pelo comercial com celebridades expostas retoma um 99 outro discurso já construído pela mídia acerca dessas mesmas celebridades. Neste com Júnior, percebe-se as atribuições socialmente estabelecidas a partir da sexualidade e do sucesso ou declínio profissional.

3.6 COMERCIAL DA NEXTEL COM BRUNO GAGLIASSO O ator brasileiro Bruno Gagliasso, diferentemente de outros casos já aqui analisados, tem uma carreira estável e sua vida pessoal, embora seja objeto de interesse midiático, não é marcada por gafes ou acontecimentos constrangedores. Mas, por um motivo bem específico, Bruno foi convidado pela Nextel a protagonizar a sequência especial da campanha “Rótulos” para o dia dos pais. Ocorre que recentemente Bruno e sua esposa em viagem à África conheceram uma criança a qual acabaram adotando. Tal fato é o que sustenta a construção do comercial, que resgata e se ancora na referida adoção. Vejamos:

Figura 38

Fala 1 - Bruno: “Pai tem que ser sangue do mesmo sangue. Adotou porque tá na moda. Com tanta criança precisando no Brasil, porque adotou uma da África? Rótulos não define o que é ser pai. O que define um pai é o amor”.

Fonte: Youtube

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Figura 39

Fala 2 – Narrador: “A internet que você precisa, a melhor operadora. É melhor você ter esse celular”.

Fonte: Youtube

Figura 40

Fala 3 – Bruno: “Fazer um dia dos pais sem rótulos tá nas suas mãos”.

Fonte: Youtube

O enunciado “Adotou porque tá na moda” é especialmente relevante para nossa análise. Até aqui mostramos que o discurso de todos os comerciais se amparam fortemente em um discurso anterior pertencente à vida íntima da celebridade, portanto, a 101 peça publicitária deixa suas marcas e efeitos de sentido através de um interdiscurso. O mesmo ocorre ainda mais explicitamente aqui. Acontece que alguns famosos, segundo a mídia, utiliza a adoção de crianças de países pobres como a África para se promoverem e “chamarem atenção” para si. Essa suposta “tática da adoção” como forma de atrair holofotes teria sido iniciada com o casal de atores Angelina Jolie e Brad Pitt, que de seus seis filhos três são adotivos, um do Camboja, o segundo do Vietnã e o último da Etiópia. É devido à lembrança desse fato que Bruno Gagliasso recebeu inúmeras críticas pela adoção de Chissomo, uma menina Africana de três anos de idade. As pessoas enviavam perguntas e comentários em suas páginas nas redes sociais como “por que não adotou uma criança brasileira? Já sei, pra chamar atenção e ganhar dinheiro com publicidade e mídia espontânea!”. Foi nesse episódio que o ator Bruno Gagliasso expôs ainda mais sua vida pessoal ao aceitar fazer o comercial da empresa Nextel propondo o fim dos rótulos. O ator pode ter tentado usar o veneno como antídoto, já que recorreu a um comercial pago para se posicionar sobre esse episódio de sua vida íntima. No entanto, acabou materializando aquilo que a mídia e o público previam, ou seja, monetarizando essa situação, expondo-a ainda mais. Ao mesmo tempo, Bruno pode ter enxergado ali a chance de dizer o que realmente desejava. Não sendo esse o mérito que nos interessa, mas sim o que corroborou aos aspectos da construção desse discurso da celebridade como alguém comum e falho neste último comercial, foi o fato de Bruno ter usado um meio público e pago para “esclarecer” uma questão de ordem pessoal. É pertinente relembrar que o feixe de relações que culminou no discurso dos comerciais publicitários com celebridades “gente como a gente” e não mais idealizadas e inalcançáveis, dentre outros fatores, foi o ceticismo do consumidor contemporâneo, o individualismo vigente, a liquidez das relações, o interesse na intimidade, a fragilidade do estatuto da fama atrelado ao desejo em massa de ser famoso, a indução midiática que precisa das celebridades produzidas para gerar conteúdo, etc. Não fosse esse contexto histórico o objeto dessa pesquisa talvez jamais existisse. Essas relações agem como condições de aparecimento. Nas palavras de Orlandi, “homens e sentidos fazem seus percursos, mantêm a linha, se detêm junto às margens, ultrapassam limites, transbordam, refluem”. Isso acontece sobremaneira “no discurso, no movimento do simbólico, que não se fecha e que tem na língua e na história sua materialidade” (ORLANDI, 2001, p. 53). Esse percurso entre homens e sentidos, 102 formando e modificando práticas discursivas, foi condição preponderante para que a publicidade colocasse a celebridade em papel tão destoante ao que antes ocupava. Feito essas colocações, pudemos concluir que a “análise é um processo que começa pelo próprio estabelecimento do corpus e que se organiza face à natureza do material e à pergunta (ponto de vista) que o organiza” (ORLANDI, 2001, p.64). Portanto, estamos estabelecendo análises mesmo antes de aqui escrevermos uma só palavra, desde que a presente pesquisa era uma ideia, uma observação de um aspecto contido num recorte histórico-social. Seguimos os fios que enredam o discurso dos comerciais publicitários com protagonistas célebres abertamente expostos ao riso e ao compadecimento por parte do público, este ávido pela confissão das intimidades, para chegar nas análises dos comerciais que materializam o que teorizamos amparados nos autores e na AD. “As etapas de análise têm, como seu correlato, o percurso que nos faz passar do texto ao discurso, no contato com o corpus, o material empírico” (ORLANDI, 2001, p. 77). Sem esquecer o que a AD ensina no que tange ao sujeito, ou seja, este como: “linguístico- histórico, constituído pelo esquecimento e pela ideologia” (p. 91) nos debruçamos sobre o corpus se não para elucidar nossos objetivos de pesquisa, ao menos para jogar-lhes luz, se não para dar respostas, oferecer novas perguntas. Fato é que em todas as cinco peças publicitárias apresentadas, temos um acordo tácito e pecuniário entre a indústria publicitária e a celebridade que aceita protagonizar um comercial no qual algo indesejável de suas vidas será rememorado, como a idade de Susana Vieira, a má fase profissional do piloto Rubens Barichello, o ostracismo e relacionamentos polêmicos de Daniella Cicarelli, os rumores acerca da sexualidade e insucesso profissional do músico Júnior Lima e a adoção supostamente interessada feita pelo ator Bruno Gagliasso. Em nenhum dos cinco casos o famoso foi colocado como irretocável ou como modelo projetivo para o público, mas, muito mais como um sujeito passível de defeitos e problemas, o que acaba gerando um sentido de reconhecimento e identificação por parte dos indivíduos receptores. Os comerciais selecionados apontaram para a celebração, na cultura de consumo, de uma subjetividade autorreferencial, ou seja, que recusa imposições exteriores, a não ser que estas apareçam sendo emitidas sabiamente por celebridades à imagem e semelhança de seu público.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, tivemos como foco de análise os sentidos produzidos sobre as celebridades contemporâneas e da exposição de suas intimidades, especificamente, nos comerciais da marca Havaianas com a atriz Susana Vieira, da marca Vivo com Rubens Barichello e dos três comercias da marca Nextel com Daniella Cicarelli, Júnior Lima e Bruno Gagliasso. Através do nosso trajeto temático – relação mídia e celebridades, espetacularização e intimidade e o discurso de um novo estatuto da fama –, pudemos descrever e interpretar as materialidades discursivas que compunha o nosso corpus, apresentando suas condições de possibilidades sócio-históricas, os modos de ser e estar que prescrevem, e as estratégias discursivas empreendidas para tal. A relevância da temática proposta nesta pesquisa, inicialmente, consiste no fato de que o estudo das celebridades não é tido como objeto academicamente comum, sendo visto até mesmo em outros contextos como irrelevante e fútil, não merecendo grande interesse. Desta forma, defendemos e enxergamos esta temática como um importante fenômeno que tem muito a dizer sobre a contemporaneidade e seus indivíduos, já que estes favorecem o processo de transformação no conceito de fama e daquilo que significa ser celebridade como hoje está sendo posto. Sujeitos estes que não fundaram e nem foram fundados pelos discursos desses comerciais, mas que os transformam e se transformam mutuamente. Nosso trabalho objetivou desde seu princípio ir além das análises de cunho mercadológico sobre o fenômeno dos comerciais com celebridades colocadas como falhas ao invés de modelos supostamente irretocáveis como outrora. Investigando esses discursos através dos pressupostos teóricos e metodológicos da Análise do Discurso e seus dispositivos, bem como de outros importantes conceitos presentes na bibliografia, priorizamos investigar a relação que os discursos desses comerciais possui com a produção de subjetividades no contemporâneo e suas inter-relações com os espectros midiático, do consumo, da fama e das celebridades. Portanto, nunca foi nosso interesse com este trabalho oferecer ao mercado uma bula que potencializasse ainda mais o poder desses comerciais, na verdade, empenhamo-nos em investigar os valores que esses textos introjetam, forjam e disseminam aos indivíduos, estes não colocados como presas, mas, ao contrário, como 104 os primeiros a reivindicar que a indústria publicitária reformasse seu modo de enxergar as celebridades e transpusesse isso para a materialidade, para o discurso. Partimos de uma inquietação, ou seja, a nítida ruptura entre a forma convencional de a publicidade utilizar a celebridade como incentivo à venda de um produto ou serviço de “carona” em sua suposta perfeição e a nova forma que percebemos atualmente. Com isso, acabamos por esbarrar na mídia como uma das fontes dos contemporâneos dispositivos de visibilidade, tão necessários para àqueles que intentam conquistar e permanecer na fama. Deste modo, nos deparamos com um paradoxo fundamental: o interesse das celebridades em manterem-se famosas e o do público sedento por acontecimentos e novidades espetaculoístas (DEBORD,1991), num verdadeiro nomadismo de preferências, portanto, interesses que não convergem entre si, mas que convergem perfeitamente para o franco funcionamento das engrenagens da mídia e da Indústria Cultural, que faz com que ocorra o fenômeno contemporâneo dos famosos por tautologia (BOSCO, 2010) que são famosos simplesmente por serem famosos. Embora as celebridades ainda continuem suscitando certo fascínio e interesse no público, elas não perdurarão se resguardarem suas intimidades. Sabendo disso, a publicidade ressignificou o que é ser celebridade na contemporaneidade através de seus enunciados, ou seja, de seus campos enunciativos, que como dito por Foucault, carregam um lugar e um status consigo (FOUCAULT, 2009). A ideologia, no sentido do que vimos em Pêcheux (1997), é a fornecedora de evidências das posições ocupadas pelos sujeitos. Nesses comerciais, vemos o lugar ocupado pela celebridade como sendo ditado pelos enunciados das narrativas e seus processos ideológicos. O estudo da relação da mídia com as celebridades apontou para a paradoxal simbiose entre espetáculo e intimidade, o que foi preponderante para a repetição do discurso dessas celebridades cada vez menos célebres na publicidade. Amparada no passado das celebridades a mídia constrói, então, uma “história do presente” para essas figuras e seus públicos, o que só é possível porque faz uma cuidadosa combinação entre a memória e o esquecimento dos indivíduos contemporâneos, que vivem imersos no que Bauman (2007) chamou de sociedade líquido-moderna, ou seja, uma sociedade onde a rapidez das ações (afiliações, escolhas, preferências, etc) são tão rápidas que não permitem sua solidificação, evaporando antes disso. É essa rapidez que faz imperar a linguagem espetaculoísta como a única possível (DEBORD, 1997), assim, ficamos ainda mais susceptíveis ao fetiche desses comerciais 105 com celebridades aparentemente tão semelhantes a nós. A representação (GREGOLIN, 2007), elemento que fica entre a mídia e a realidade concreta, tende a se fazer imperceptível para o público que tem diante de si a oportunidade irresistível de descobrir os passos em falso das celebridades. É exatamente isso que torna o discurso proferido pelas celebridades nesses comerciais ainda mais potente, a capacidade que a representação tem de se esconder na malha discursiva. Como a AD nos ensinou, a produção de sentidos executada pelos discursos desses comerciais aqui analisados não seria a mesma se o seu tempo histórico-social fosse outro. A identidade dos sujeitos contemporâneos, celebridades ou anônimos, é nômade, verdadeiros locais de apego temporários à posições de sujeito como conceituado por Hall (2008). Na contemporaneidade, a transitoriedade é indissociável das identidades, porque estas precisam adaptar-se, repaginar-se e adequar-se se quiserem que seus atores perdurem nas posições sociais de aspiração. Essa ânsia de fixar-se no local de desejo mostrou-se ainda mais nítido entre as celebridades, que aceitaram descer de seus Olimpos (MORIN, 1987), ou seja, despir-se de determinadas vaidades e preciosismos de suas intimidades para agradar ao público, para alimentar a mídia, para elevar ao grau máximo o que os dispositivos de visibilidade têm a oferecer. Conseguimos enxergar essa lógica e seu desenvolver, mas é impossível mensurar seu ápice, já que os interesses das celebridades e do público nem sempre são harmoniosos, por vezes até contrários. Temos uma mídia que precisa da geração de conteúdos novos ininterruptamente, bem como celebridades no afã de se manterem célebres para sempre e um público desejoso de novos rostos, corpos, acontecimentos, espetáculos, intimidades e performances. Portanto, vemos um inconteste jogo de tensões que, de acordo com tudo que foi estudado e analisado, vai desaguar na flexibilidade dos interesses da celebridade, que tentará todas as negociações imagináveis com os demais pólos desse contexto de interesses para manter-se no sonhado paraíso da fama.

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