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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES

DIFERENTES SONS DO TROVÃO: Uma perspectiva comparativa entre os deuses , e Horagalles

JOÃO PESSOA, PB 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES

DIFERENTES SONS DO TROVÃO: Uma perspectiva comparativa entre os deuses Thor, Ukko e Horagalles

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal da Paraíba como requisito parcial para a admissão ao curso de Mestrado em Ciências das Religiões. Linha de Pesquisa: Abordagens filosóficas, históricas e fenomenológicas das religiões.

JOÃO PESSOA, PB 2019

AGRADECIMENTOS

Agradecer nunca é tarefa fácil. Sempre acreditamos estar esquecendo de alguém ou tememos não fazer justiça ao verdadeiro significado que têm mesmo aqueles que mencionamos. A tentativa de agradecer, contudo, se faz incontornável, pois nesse momento nos reconectamos à todos aqueles que ressoam dentro de nós e a eles nos sentimos gratos e conectados. Começo agradecendo à minha mãe, Melanie – que foi e é, além de mãe, amiga, companheira e pai – e aos meus irmãos Luiz Guilherme, Bruna e Luis Eduardo, com os quais eu tenho a imensurável felicidade de compartilhar, para além de meu sangue, as memórias, a minha constituição enquanto sujeito e a minha vida em sua completude. Aos meus avós João e Deise que, desde que sou criança, me apóiam e incentivam muito afavelmente dentro de meus peculiares interesses (e aqui se inclui a mitologia). À minha madrinha Bianca, meu tio Leonardo, minha tia Camile e meus primos Caíque, Beatriz e Filipe, sempre muito próximos e presentes da maneira como conseguem. À Susan, que se aventurou no mesmo programa de mestrado e também encarou os desafios de morar tão longe de onde se viveu e de mudar de uma área do conhecimento para outra. Cada uma das inúmeras conversas que tivemos, os momentos, desabafos - a sua constante presença, enfim - me foram essenciais e muito queridos. Obrigado pela proximidade, pelo carinho, pela paciência, por tudo. Aos meus amigos Túlio e Luiz Paulo, irmãos que a vida me trouxe e que, mesmo trabalhando e se dedicando a coisas pertencentes a um universo radicalmente diferente do meu, me ouvem falar empolgado do que estudo, ou ainda, com quem eu me encontro sempre que as circustâncias permitem para poder conversar sobre as mais diversas coisas e “distrair a cabeça” indo às roças de nossa sempre saudosa Minas Gerais. Também irmão e amigo de infância, agradeço ao Guilherme, que compartilha comigo o interesse pela carreira acadêmica – algo sobre o qual frequentemente conversamos e desabafamos – e que também sempre se faz presente. Nunca vou esquecer ter sido ele o responsável por me apresentar as anos atrás, algo que fez com muita naturalidade, mas que criou um divisor de águas em minha vida; tanto é que elas se tornaram hoje, um de meus objetos de estudo. À Karen, amiga que também se aventura pela vida acadêmica, e à Melissa, amiga que a cidade de João Pessoa me trouxe. Aos meus inesquecíveis e queridíssimos amigos João Paulo, Raíssa e Maria Eliza. Lembro sempre com carinho de todos vocês e agradeço o apoio incondicional, as conversas, a união e a autenticidade na relação. Trilhamos cada um o seu caminho com a Psicologia após a graduação, mas é sempre com felicidade e orgulho que contemplo o que estamos nos tornando dentro de nossas possibilidades e potencialidades individuais. Ao Prof. Dr. Johnni Langer, primeiramente por ter me aceitado como orientando e acreditado no meu potencial e, em segundo lugar, por ter me proporcionado um aprendizado tão grande, tanto a nível de seu conhecimento - por dominar o assunto com tanta propriedade e seriedade - quanto por se mostrar uma pessoa humilde, acessível, disponível, humana, enfim. Muito obrigado pela oportunidade. Nunca esquecerei. À Profª. Drª. Luciana Campos, que desde o começo fez com que eu me sentisse muito acolhido e bem recebido em João Pessoa, além de ter me apresentado seus trabalhos com o living history e a arqueologia experimental, tão inovadores e pioneiros. À banca da minha defesa, as Profas. Drª. Luciana Campos e Drª. Maria Lucia Abaurre, que aceitaram gentilmente o convite e oferecerão suas contribuições e apontamentos para que eu possa melhorar meu trabalho. Obrigado. Ao grupo NEVE (Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos), do qual faço parte. Agradeço aos membros pela ajuda constante com indicações bibliográficas, troca de materiais e pelo apoio moral. À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por fomentar minha pesquisa, permitindo que eu me dedicasse, integral e exclusivamente, ao mestrado. À todos os autores citados e suas respectivas pesquisas e estudos, sem os quais minha própria pesquisa não teria sido viável.

À minha avó, minha segunda mãe, que também escuta de seu modo o chamado por mundos, possibilidades e dimensões outras.

DIFERENTES SONS DO TROVÃO: Uma perspectiva comparativa entre os deuses Thor, Ukko e Horagalles

Resumo: Thor, Ukko e Horagalles são, respectivamente, as divindades nórdica, finlandesa e sámi do trovão. O presente estudo visa investigar as principais fontes primárias que mencionem esses deuses ou apresentem quaisquer tipos de narrativa mitológica a seu respeito, evidenciando os principais atributos e traços mais elementares a eles conferidos em tais fontes. Numa tentativa de captar as dimensões mitológicas, simbólicas e culturais dessas divindades, analisaremos suas figuras em obras literárias inseridas em seus contextos culturais e históricos específicos, oferecendo antecipadamente as críticas e contextualizações necessárias desses materiais. Feito isso, elencaremos quais convergências e divergências foram observadas entre essas três figuras divinas no que diz respeito aos atributos e descrições que as englobam. Elegemos a perspectiva do comparativismo conforme proposta por Schjødt. Mais especificamente, e segundo o próprio autor, executaremos o chamado comparativismo de terceiro nível: compararemos os nórdicos com outros povos politeístas com quem estes estiveram em contato. Também faremos uso do conceito de centros semânticos como ferramenta auxiliar para percebermos as categorias de identificação atribuídas a esses deuses dentro de seus respectivos discursos míticos.

Palavras-Chave: Mitologia Comparada; Deuses do trovão; Thor; Escandinávia; Fino- Úgricos.

DIFFERENT THUNDER SOUNDS: A comparative perspective regarding the gods Thor, Ukko and Horagalles

Abstract: Thor, Ukko and Horagalles are, respectively, the Norse, Finnic and Saami thunder gods. The present study aims to investigate some of the main primary sources which mention those gods or that present any kind of mythological narrative concerning them, evidencing the most elementary traits and attributes given to them in such sources. In an attempt to capture the mythological, symbolical and cultural dimensions of these divinities, we are going to analyse their insertion in literary works belonging to their specific historical and cultural contexts, offering beforehand the necessary contextualization and critics of such materials. Secondly, we are going to present the convergences and divergences observed once these three gods, their descriptions and attributes are put in a comparative perspective. In order to do so, the comparative methodology as proposed by Schjødt will be adopted. More specifically, and according to the author, we are going to execute the so-called third level comparativism: when a comparison is done between the Norsemen and other polytheistic peoples with whom they have historically been connected. The notion of semantic centres will also be used as a tool to help us identify the identification categories given to these gods within the respective mythical discourses they belong to.

Key-words: Comparative Mythology; Thunder gods; Thor; Scandinavia; Finno-Ugrics.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Mapa da Península Escandinava e países próximos..……...... ….……..……..….…..….…..…...... 23

Figura 2: Mapa da área englobada pela noção de Sápmi. …..……..………...…..…...…...…………..…..……..…...... 24

Figura 3: Mapa das principais rotas de navegação dos vikings...... 47

Figura 4: Estátua de Thor encontrada em Eyrarland. Frente e costas...... 49

Figura 5: “Martelo de Thor” encontrado em Mandermake, na Dinamarca. ……………………………………...………………………………………………...... …61

Figura 6: Reconstituição de um culto a Horagales, deus sámi do trovão...... 86

Figura 7: Pedra de Hørdum...... 102

Figura 8: Detalhes da pedra de Altuna...... 102

Figura 9: Ilustração de um tambor sámi segundo Thomas von Westen...... 106

Figura 10: Ilustração de um tambor sámi, segundo Knud Leem...... 107

Figura 11: Ilustração de Horagalles conforme consta em tambor sámi encontrado na Noruega...... 110

Figura 12: Pingente no formato do martelo de Thor encontrado em Östergotländ...... 156

Figura 13: Ilustração feita por Rheen de um lugar onde, segundo ele, eram feitos sacrifícios sámi ao deus do trovão...... 164

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 12 Apresentação...... 12 Fontes primárias sobre Thor, Ukko e Horagalles...... 17 Os nórdicos, os sámi, os finlandeses...... 21 Interações entre nórdicos, sámi e finlandeses...... 26 Considerações teórico-metodológicas sobre o comparativismo...... 31 CAPÍTULO I: THOR, O DEUS NÓRDICO DO TROVÃO...... 37 1.1 O deus Thor...... 37 1.2 O martelo de Thor...... 55 1.3 A em Prosa...... 65 1.3.1 O Gylfaginning...... 68 1.3.2 O Skáldskaparmál...... 78 1.4 A Edda Poética...... 88 1.4.1 Þrymskviða...... 91 1.4.2 Hárbarðsljóð...... 97 1.4.3 Hymiskviða...... 99 CAPÍTULO II: UKKO E HORAGALLES, OS DEUSES FINO-ÚGRICOS DO TROVÃO...... 105 2.1 Horagalles, o deus sámi do trovão...... 105 2.2 Johannes Schefferus e sua obra...... 110 2.3 Horagalles na obra de Schefferus...... 115 2.4 Ukko, o deus finlandês do trovão...... 124 2.5 Mikael Agricola e sua obra...... 126 2.6 Ukko nos escritos de Agricola...... 129 2.7 Elias Lönnrot e a Kalevala...... 135 2.8 Ukko na Kalevala...... 139 CAPÍTULO III: UM OLHAR COMPARATIVO...... 150 3.1 Breve panorama do intercâmbio mitológico-religioso entre nórdicos, sámi e finlandeses na tradição acadêmica...... 150 3.2 O martelo das divindades do trovão...... 155 3.3 Papéis, poderes e atributos dos deuses: convergências e divergências...... 180 CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 204 REFERÊNCIAS...... 210

INTRODUÇÃO

Apresentação

O contexto de nascimento da presente dissertação se deu como consequência de leituras realizadas ainda durante a época de escrita da minha monografia em psicologia que, na ocasião, propôs realizar um estudo simbólico e arquetípico do material mitológico contido na Edda em Prosa. Um de seus subcapítulos era dedicado à análise do deus Thor, popular divindade do trovão na mitologia e religião escandinava pré-cristã. Na época, esse subcapítulo da monografia acabou sendo apresentado no 4º Seminário Integrado de Monografias, Dissertações e Teses e, em seguida, tornou-se um resumo completo publicado nos anais do evento (cf. ALVES, 2016). Conforme prosseguia com as minhas leituras envolvendo a figura de Thor, me pareceram surpreendentes tanto seu papel como matador de gigantes – e, portanto, de mantenedor da ordem cósmica e eliminador das forças do caos- quanto sua proximidade com os seres humanos expressa, entre outros fatores, em seu constante companheiro de aventuras Thjálfi, mero homem mortal (LINDOW, 2001, p. 287-288). Continuando a investigação dos atributos do deus, acabei por me deparar com afirmações de que Thor possuiria seus correspondentes nas culturas próximas, ou seja, de que vários povos por toda a Eurásia possuíam suas divindades do trovão, obviamente que representadas sempre com suas particularidades de acordo com área geográfica, período histórico e contexto sócio-cultural-: na mitologia celta, seriam os deuses Taranis1 e Dagda; na área báltica e lituana, Perkunos; em território russo, Perunos; na área finlandesa habitada pelos sámi, Horagalles (LANGER, 2015, p. 496). Tantas ocorrências de deuses do trovão entre esses povos que mantinham relações e intercâmbios uns com os outros despertaram meu interesse para que eu realizasse uma investigação comparativa entre elas. Contudo, o material sobre o assunto ainda é escasso e, em território brasileiro, praticamente inexistente. Devido à natureza da pesquisa que desenvolvia na graduação em psicologia, foi inevitável entrar em contato com as obras de Eliade. O autor afirmava que a sacralidade se revela ao homem religioso por meio das próprias estruturas do mundo. Portanto, segundo Eliade (2013, p. 100), o “sobrenatural”, categoria de revelação, estaria indissoluvelmente

1 Apesar de serem ambos considerados deuses “celtas”, Taranis pertencia aos cultos e mitos da religião gaulesa pré-cristã, ao passo que Dagda era especificamente do panteão irlandês (MARKALE, 1999, p. 83). 12

ligado ao “natural”, de onde podemos concluir que a natureza sempre exprime, para o homem religioso algo que a transcende, que aponta para além de si mesma. Partindo deste princípio, a simples contemplação da abóbada celeste poderia já ser o suficiente para desencadear toda uma experiência religiosa no indivíduo crente, pois a transcendência se revelaria conforme o homem religioso toma consciência da altura infinita. Assim, as regiões superiores, inacessíveis ao homem, adquiriram ao longo da história o prestígio do transcendente, da realidade absoluta e da eternidade; são vistas espontaneamente, enfim, como um atributo exclusivo das divindades. Os deuses teriam manifestado as diferentes modalidades do sagrado na própria estrutura do Mundo, como por exemplo no Cosmos - a obra exemplar dos deuses per se -, cuja construção se deu de tal maneira que a própria existência do céu incita, no homem, o sentimento religioso da transcendência divina. E, já que o céu existe irrefutavelmente e de maneira absoluta, não é surpresa que um grande número de deuses supremos de diversas populações primitivas sejam chamados por nomes que designam a altura, a abóbada celeste ou os fenômenos meteorológicos (ELIADE, 2013, p. 101). Por mais que se trate de uma perspectiva interessante e muito válida dentro de propostas investigativas específicas, o viés essencialista de Eliade não responde a uma série de perguntas que são levantadas quanto às manifestações precisamente históricas, diacrônicas, culturais e sociais destes deuses do trovão em seus respectivos contextos mitológicos e religiosos. Trata-se de uma impossibilidade metodológica graças à sua visão de religião e, consequentemente, do modo como o pesquisador das religiões deve se aproximar delas: a autonomia plena da religião alegada por Eliade impossibilita que a mesma seja analisada em termos de fenômenos e representações culturais ancoradas na História, tornando de certa forma dispensável, portanto, o uso de ferramentas históricas e culturais para compreensão da religião (STRENSKI, 1993, p.23). Nesse ponto, acredito que a fenomenologia das religiões e seu essencialismo - manifesto, principalmente, em Eliade – mostram suas limitações epistemológicas e conceituais, falhando ao lidar com a historicidade das manifestações religiosas. Portanto, a adoção de uma nova perspectiva, esta historicizada e culturalista, me parecia necessária para responder as questões por mim levantadas. Enquanto colhia material para escrita de minha monografia, acabei por me deparar também com a perspectiva simbolista, cuja principal alegação seria a de que os raios especificamente representariam, nas mitologias, o comando supremo que passou da terra para o céu; ou seja, constituiriam um intermédio entre o divino e o humano. O raio pode operar

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enquanto um desregramento da ordem cósmica, manifestado pela cólera dos elementos, por exemplo. Sendo assim, é recorrente que se encontre, nas mitologias, certa noção de responsabilidade humana direta no desencadeamento do trovão e do raio (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 912). Trata-se, então, de outro elemento que aponta para uma proximidade e conexão entre as divindades do trovão e o ser humano. Ainda assim, questões relacionadas às particularidades dessas divindades do trovão encarnadas em seus devidos cenários e contextos históricos ainda me inquietavam. Por ser definitivamente um deus do trovão conhecido e popularizado em maior escala, e sem dúvidas a figura da mitologia escandinava mais popular até os nossos dias (LANGER, 2015, p. 496), Thor é encontrado em alguns estudos brasileiros, embora ainda não de maneira consolidada. Contudo, estudos de cunho comparativo envolvendo o deus ainda não foram desenvolvidos em pesquisas brasileiras. Por sua vez, o deus do trovão entre os povos sámi2, Horagalles (conhecido em algumas regiões por Aijeke ou Tiermes) foi alvo de algumas breves menções na pesquisa em solo brasileiro, no campo de estudos da mitologia e religião escandinava pré-cristã. Identificou-se que algumas de suas estátuas para fins cultuais eram muito semelhantes às de Thor, retratando Horagalles com um martelo que atravessava seu corpo e com pregos cravados em sua cabeça (LANGER, 2015, p.175-176). Contudo, o deus ainda não foi submetido a nenhuma análise enquanto principal objeto de estudo. Já Ukko, divindade do trovão cultuada pelos finlandeses, encontra-se completamente ausente de estudos e pesquisas em nosso país. Este problema não atinge somente o Brasil: na questão religiosa e mitológica, são ainda relativamente poucos os estudos sobre os sámi e finlandeses antigos, ou então as

2 O viés comparativo de nosso trabalho elegerá os deuses de três povos como matéria de estudo: dos nórdicos, sámis e finlandeses. Por nórdicos, entendemos os povos indo-europeus que habitavam os territórios das atuais Noruega, Suécia, Dinamarca e, posteriormente, Islândia, aos quais costumeiramente emprega-se o termo . Já os sámis e os finlandeses são de origem fino-úgrica, e não indo-europeia, apesar de também habitarem o norte e extremo norte europeus. As principais teorias trabalham com a hipótese de que esses dois povos teriam sido, antes, uma mesma unidade linguística/genética que, ao começarem a migrar para regiões distintas no norte da Europa, passaram a desenvolver práticas sociais e culturais cada vez mais diferentes uma da outra, além de sofrerem influências cada uma de povos específicos. Em certo momento teria havido, então, um desmembramento que teria gerado os proto-fínicos e os proto-sámis enquanto identidades, idiomas e culturas distintas. Evitaremos o uso da palavra escandinavos, pois ela pode, em certa medida, mais complicar do que esclarecer. Em tese, o termo remete a qualquer habitante situado geograficamente na Península Escandinava, que engloba os países da Noruega, Suécia e Finlândia. Portanto, este se trata de um critério exclusivamente geográfico de identificação que pode gerar confusões em relação às diferentes etnias e línguas dos povos habitantes da Península Escandinava, já que é insuficiente para diferenciá-los. Por exemplo: todo nórdico é escandinavo, mas nem todos os escandinavos são nórdicos. Um finlandês é, dentro desse critério, um escandinavo, mas não um nórdico (que seriam indo-europeus de origem germânica). Explicaremos e contextualizaremos de modo mais minucioso essas diferenças em alguns subcapítulos presentes mais adiante, nessa própria parte da Introdução. 14

pesquisas que abordem as interações e intercâmbios de elementos mitológicos/religiosos entre estes povos e os nórdicos durante a Idade Média. Tamanha escassez de pesquisas é surpreendente, visto que toda a região das atuais Noruega, Suécia, Finlândia e a Península de Kola, no Norte da Rússia eram palco de extrema interação entre esses diferentes povos e sistemas culturais-religiosos, fazendo dela o lugar mais ativo e dinâmico da região Circumpolar Norte. Essas interações são essenciais para entendermos as influências dessas várias culturas sobre a cultura escandinava e também a formação de povos indígenas, como os sámi. Visto isso, é necessário abandonar teorias antiquadas que se embasam somente em grandes migrações para explicar a origem e cultura desses povos nativos, que conquistaram sua própria história e constituição cultural-religiosa após anos de adaptações ambientais, tecnológicas e culturais (BROADBENT, 2010, p. 1). A fim de contribuir com os estudos na área, nossa proposta é quebrar essa barreira e iniciar os estudos sobre religiosidade sámi-finlandesa no Brasil, na esperança de que surjam também outros trabalhos a respeito. Analisaremos as figuras destas três divindades do trovão, dentro de seus contextos culturais-históricos e com as devidas atribuições mitológicas, simbólicas e cultuais que recebiam de seus povos, o que constitui um objeto de interesse para as Ciências das Religiões. Com isso, estamos explorando um tema ainda inédito em língua portuguesa ao propormos um estudo de mitologia comparada da área escandinava-sámi- finlandesa. Nosso estudo propõe responder as seguintes perguntas: 1) Como esses deuses foram caracterizados em suas respectivas mitologias? 2) Segundo cada uma dessas fontes, quais são os traços definidores de cada deus? 3) Quais são as semelhanças e diferenças surgidas após compararmos as descrições e atributos dessas divindades? 4) Qual a importância e o papel, nessas fontes literárias, das armas que estas divindades portam?

Visando atender aos objetivos e questões levantadas de maneira organizada, dividimos o trabalho em três partes, constituindo cada uma delas um capítulo. O primeiro capítulo tratará do único deus indo-europeu do trovão que trouxemos para este estudo, Thor. Faremos uma recapitulação dos principais estudos e discussões envolvendo sua figura, principalmente aqueles que analisam seus atributos. Em seguida, contextualizaremos histórica e culturalmente as fontes primárias sobre Thor, apontando as críticas que existem a esse

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respeito para que possamos, por fim, investigar essas fontes e delinear quais e como são as descrições que elas oferecem sobre o deus. Por sua vez, o segundo capítulo tratará dos dois deuses fino-úgricos do trovão: Ukko e Horagalles. Será seguida a mesma estrutura que o capítulo sobre Thor, ou seja, primeiro será feita uma revisão bibliográfica de estudos sobre as divindades, seguida pela contextualização e crítica das fontes primárias, terminando por explicitar como essas duas divindades são descritas em suas respectivas fontes. O terceiro capítulo será a análise comparativa propriamente dita, onde aplicaremos o método proposto por Schjødt (2017). Serão levados em conta os dados levantados nos capítulos I e II para, então, os colocarmos em justaposição e realizar as comparações, com objetivo de tornar claras e evidentes tanto as semelhanças e convergências quanto as discrepâncias e divergências no que diz respeito às descrições feitas sobre esses deuses. Utilizando esta metodologia, nosso intuito é o de revigorar os estudos em mitologia por meio da perspectiva comparativa, que recentemente voltou a receber a atenção de vários pesquisadores na área de mitologia nórdica3, principalmente quando o assunto é demonstrar suas influências nas mitologias sámi, finlandesa, báltica, ou então as influências por ela recebidas. O exemplo máximo disso talvez seja a recente coletânea Old : comparative perspectives, que propôs demonstrar as mais atuais tendências do comparativismo na área nórdica (LANGER, 2018b, p.252)4. A perspectiva metodológica adotada é de natureza qualitativa. Sendo assim, o material que será submetido à análise é, em sua totalidade, composto por fontes escritas cujo conteúdo não será sistematizado numérica ou estatisticamente. Nos debruçaremos sobre essas fontes buscando a semântica presente nelas ao mencionarem os deuses do trovão, observando e

3 Alguns desses estudos são: Nordic Religions in the Viking Age, (DuBois, 1999), Sacred to the touch (DuBois, 2018); Circum-Baltic mythology? The strange case of the thunder theft instrument (Frog, 2011); The notions of Model, Discourse, and Semantic Center as Tools for the (Re)Construction of (Schjødt, 2013); Pre-Christian Religions of the North and the Need for Comparativism: Reflections on Why, How, and with What We Can Compare (Schjødt, 2017); Understanding diversity in Old Norse religion: taking Þórr as a case study (Taggart, 2015); Scandinavian-Saami Religious Connections in the History of Research (Rydving, 1990); Myths and symbols in pagan Europe (Davidson, 1988); The askr and embla myth in a comparative perspective (Hultgård, 2006); O céu dos vikings (Langer, 2013); Where does Old Norse Religion end? (Bertell, 2006). 4“Além dos estudos teóricos, o livro se concentra em três grupos de análises temáticas (entre genéticas e tipológicas): os que envolvem investigações concentradas em fontes nativas de um ponto de vista internalista (comparando deuses nórdicos, como, por exemplo, o capítulo de Tery Gunnell sobre os Vanes); os que analisam os mitos nórdicos em relação com os mitos da região circumpolar e báltica (portanto, tradições vizinhas, a exemplo de Thomas DuBois, John Lindow e Olof Sundqvist); comparação dos mitos nórdicos com tradições eurasiáticas, mas algumas distantes da Escandinávia (Richard Cole analisando Snorri e os judeus; Joseph Nag comparando o mundo nórdico com os irlandeses e persas; Michael Witzel refletindo o mito de com a China e a Índia)” (LANGER, 2018, p. 252). 16

evidenciando os dados qualitativos contidos nessas afirmações. Nossa análise envolverá, também, o próprio contexto histórico e social em que essas obras foram escritas, constituindo uma tentativa de enxergamos os fatores históricos envolvidos no surgimento de cada uma das obras. Consequentemente, nos esforçaremos o tempo todo para externar o fato de que essas divindades eram unidades presentes em complexos sistemas mítico-religiosos que apresentavam manifestações concretas e encarnadas no devir histórico e diacrônico.

Fontes primárias sobre Thor, Ukko e Horagalles

Thor, Ukko e Horagalles são, respectivamente, as divindades nórdica, finlandesa e sámi do trovão. As principais fontes primárias que tratam dos mitos de Thor são a Edda em Prosa, manual de poesia escáldica e de mitologia escrito pelo historiador, político e monge islandês por volta do ano de 1220 (BOULHOSA, 2004, p.15); e alguns poemas específicos da Edda Poética - esta de autoria anônima -, como Thrymskvida; Hárbardsljód; Hymiskvida; Völuspá; Alvíssmál; Lokasenna e Grímnismál (LANGER, 2015, p. 497). É importante ressaltar, conforme aponta Langer (2015, p. 144), que, apesar de não apresentar os mitos de maneira pura, neutra e original, Snorri Sturluson foi a primeira pessoa a tratar a mitologia nórdica de uma perspectiva acadêmica, selecionando e reunindo o material que nela seria disposto. Ao abordarmos a questão do deus Thor na Escandinávia pré-cristã, o primeiro problema surge na dificuldade de tomarmos todas as formas de paganismo da região por uma única religião que, consideradas suas variações geográficas, regionais, cronológicas e de organização e estruturação social, não era de forma alguma uniforme e homogênea (NORDBERG, 2012, p.121). Ainda assim, segundo Brink (2014, p.125), o culto a Thor, o deus do trovão, era compartilhado por todo território nórdico, conforme apontam estudos toponímicos e de cultura material. Trata-se de uma das mais importantes e presentes divindades para o paganismo nórdico. Todas as origens e etimologias de seu nome são palavras que designam e significam trovão (LANGER, 2015, p.496). Apesar dessa imagem de Thor enquanto deus do trovão ter sido a que se perpetuou mais fortemente até os dias de hoje, há um estudo recente questionando tal concepção. Após exame detalhado das principais fontes primárias (literárias) que retratam o deus, Taggart (2015) demonstrou que, nas narrativas mitológicas de Thor, apesar da sua força descomunal ser um conteúdo representativo que o caracteriza quase que em sua totalidade, sua relação com os raios e o trovão, pelo contrário, não o são. Levando em conta principalmente as fontes 17

escritas provenientes da Islândia medieval, Taggart (2015) defende que, nelas, as figuras de linguagem, descrições e epítetos referentes a Thor estão muito mais relacionadas a fenômenos como terremotos e vulcanismos do que a raios e trovões. Certamente que tal afirmação caminha na direção oposta de todo um campo de estudos envolvendo Thor: Hilda Ellis Davidson afirma que, em seus mitos, “Ele [Thor] é associado às tempestades e ao vento, mas acima de tudo aos raios e trovões” (DAVIDSON, 1994, p.80); para Johnni Langer, Thor é o “Deus germânico do trovão, o mais forte dos deuses ases e deidade matadora de gigantes” (LANGER, 2015, p. 496); Turville-Petre se refere ao deus como “Thor, o trovoador” (TURVILLE-PETRE, 1975, p.75); Dumézil escreve que a própria palavra empregada no nórdico antigo para designar trovão serviu também para dar o nome de Thor (DUMÉZIL, 1973, p.66). Contudo, Taggart (2015, p.69) afirma que, no corpus da mitologia nórdica, ligações entre Thor e os trovões não vão muito além da etimologia do nome do deus e alguns kenningar5 utilizados para descrevê-lo. Abordaremos mais profundamente essa questão no Capítulo I. Nos mitos apresentados por Snorri Sturluson, Thor é sem dúvidas um dos deuses que mais se destacam. Suas narrativas acontecem, na grande maioria das vezes, enquanto progride pelos reinos dos deuses, homens e gigantes, derrotando continuamente estes últimos, seus adversários, utilizando seu martelo Mjöllnir (DAVIDSON, 2004, p. 61-62). Seus mitos geralmente enfatizam seus poderes sobre o mundo natural, ou então suas disputas e lutas contra adversários sobrenaturais, sendo por meio dessas narrativas que o deus conquista a posição de protetor dos deuses e homens, matando os gigantes (DAVIDSON, 1984, p. 80). Sobre Horagalles, divindade sámi do trovão, questiona-se que o deus seja fruto de intercâmbios interculturais entre os povos sámi e os vikings noruegueses/suecos: o deus teria assimilado os atributos de Thor. Derivaria daí seu nome, Horagalles, que teria vindo de Thor karl, cujo significado é “amigo de Thor” (TOLLEY, 2009, p. 275). É provável que os sámi também tenham adotado um modo de representar seu deus do trovão similar ao nórdico, pois em várias localidades são encontradas estátuas representando Horagalles com pregos cravados em sua cabeça, assim como suecos e noruegueses faziam nas representações de Thor (SIBLEY, 2009, p. 254). Conforme aponta Karsten (1955, p. 24), Horagalles também é

5 Figura de linguagem empregada pelos poetas escaldos que consistia na utilização de circunlóquios utilizados para descrever sobretudo os deuses de maneira metafórica. Na tradição poética da Escandinávia medieval, os poetas não nomeavam os seres e coisas pelos seus nomes próprios, mas por essas metáforas (kenningar) ou sinônimos (). Esses sinônimos e metáforas traziam temas relacionados ao corpus da própria mitologia nórdica, narrados em grande parte no capítulo Gylfaginning da obra de Snorri Sturluson, a Edda em Prosa. O segundo capítulo da obra, o Skáldskaparmál, ilustra e elucida precisamente esses aspectos da arte poética escandinava, exemplificando vários heiti e kenningar (BOULHOSA, 2004, p. 16). 18

relatado portando uma arma semelhante a uma clava ou martelo, além de caçar trolls – estes não muito diferentes dos gigantes-. Encontramos, dessa forma, prováveis indícios de que o deus teria surgido na lapônia como resultado de um empréstimo dos vizinhos nórdicos. Contudo, argumenta-se que estes são apenas dados periféricos acerca de Horagalles e eles não permitem que se negue tratar-se de um deus genuinamente sámi. Além disso, ao contrário de Thor, que é visto como um amigo próximo que os homens devem ter por perto, na cultura indígena dos sámi Horagalles, apesar de ajudar os homens, deve ser sempre “tratado com espanto e reverência” (RYDVING, 1990, p.366). Localizamos Horagalles no livro Lapponia, escrito por Johannes Schefferus por volta de 1673. Apesar de ser um tratado relativamente completo sobre religiosidade da Lapônia, abordando questões como o xamanismo e os rituais pagãos, o olhar fortemente cristão e missionário do autor acabou por obviamente influenciar sua neutralidade enquanto observador (KISNLEY, 1995, p. 110-111). Ukko é descrito em uma lista de divindades da Carélia e Häme escrita por Mikael Agricola em sua tradução finlandesa do Salmo de Davi, em 1551. Na ocasião, além de citar os deuses da religião finlandesa pré-cristã, o autor logo em seguida os sujeita à censura cristã. Apesar disso, Agricola foi o primeiro sistematizador e teórico da religião finlandesa antiga (SALO, 2014, p. 92). O deus também é personagem mítico na Kalevala, epopeia finlandesa compilada por Elias Lönnrot durante os anos de 1828 – 1844, onde inclusive recebe o papel de deus supremo (HONKO, 1990, p. 9). Descrito pela primeira vez nos escritos do linguista Mikael Agricola (Häkkinen, 2016, p.31), Ukko - conhecido também por Ukkonen, era o deus do trovão presente na antiga religião finlandesa. Seu nome significa “homem velho” ou “velho amigo”, o que acaba por ressaltar seu relacionamento com os humanos, como no caso de Thor. Seu domínio seria o das nuvens; é também dito que o deus é capaz de fazer o vento surgir e os raios caírem, além de controlar o clima, principalmente no que diz respeito a tempestades com trovões. Ukko também era invocado para aumentar a fertilidade em termos agrícolas e sexuais. Encontram-se, neste aspecto, características muito semelhantes às de Thor, englobando atuações sobre os fenômenos naturais e da fertilidade. Apesar da recente tese de Taggart6 (2015) que questiona a relação de Thor com os trovões, toda uma tradição mitográfica

6 “(...) the wide range of sources that have been consulted have shown that thunder and lightning could not have played a more than superficial role in the transmission of Þórr and narratives about Þórr in Iceland or outside of it” (TAGGART, 2015, p.199). 19

defende a relação do deus com os raios, os trovões e a fertilidade7. Outra semelhança é o fato de que Ukko também é descrito portando armas semelhantes às do deus nórdico, como clavas e martelos (SALO, 2014, p. 106-107). Pentikäinen (1999, p. 138) afirma que na epopeia finlandesa compilada por Elias Lönnrot, a Kalevala, Ukko é a deidade suprema. Posicionando o deus na narrativa de criação do universo, Lönnrot fez de Ukko o deus soberano de todo o cosmos, uma propriedade que, no caso nórdico, não costuma ser conferida a Thor. Ukko, enfim, compartilha com Thor muitas semelhanças, mostrando-se também estar relacionado à chuva e à fertilidade. Além disso, a influência escandinava na área finlandesa é percebida pela presença de artefatos tipicamente nórdicos e pela adoção, naquela região, de casas e sepulturas também tipicamente escandinavas. Dessa forma, não há porque negar uma possível influência deste povo também na sociedade e religião finlandesas (SALO, 2014, p. 158 – 159). Considerando-se o contato entre as populações a proximidade geográfica das áreas onde existiram deuses com atributos tão semelhantes, cogitam-se as influências entre os povos. A ideia mais antiga seria a de que os nórdicos foram os grandes responsáveis por influenciar a religiosidade da área sámi e finlandesa. No entanto, esta constatação advém de um olhar julgador que tomaria a cultura sámi como inferior, visto suas raízes indígenas (fino-úgricas) e não indo-europeias. Ressalta Rydving (1990, p. 359) que é este o costume desde o fim do século XIX, quando ressurgiu o interesse pela religião escandinava antiga: notando-se suas semelhanças com a religião e mitologia sámi, concluiu-se instantaneamente que estes segundos só poderiam ser os que haviam absorvido os traços da religião nórdica, superior por natureza. Desde então, todas as semelhanças entre as duas religiões eram explicadas como reflexo da religião nórdica. Para Bertell (2013, p. 47), mesmo ao regressarmos na linha cronológica é difícil definir qual destes povos, em plena Escandinávia da Idade de Ferro, teria influenciado os outros, mas com certeza este tema nunca deve ser abordado unilateralmente. É inverossímil assumir que, em meio a um choque cultural, apenas uma cultura tenha sido capaz de influenciar a outra. Leva-se em conta o fato de que, quaisquer sejam tais acontecimentos e intercâmbios, suas marcas permaneceram nas fontes escritas. Embora sejam retratados cada um por suas respectivas fontes primárias, são inegáveis os paralelos que existem entre os três deuses. Sejam nas suas atribuições e poderes, nas armas

7 As relações entre o deus Thor e os trovões, as questões climáticas e a fertilidade foram evidenciadas por diversos autores, entre eles: Davidson (2004; 1988; 1984); Langer (2015); Dúmezil (1973); Turville-Petre (1975); Perkins (2001); Johanson (2005); Motz (1997). 20

que usam ou na relação que suas mitologias e religiões estabelecem entre eles e os humanos, Thor, Ukko e Horagalles possuem vários pontos convergentes – bem como alguns divergentes, certamente - que merecem ser sistematizados e analisados.

Os nórdicos, os sámi e os finlandeses

Os nórdicos são vários povos de origem indo-europeia que habitavam a região da Dinamarca e da Península Escandinava8. Do século VIII ao XI, esses povos aparecem nas fontes ocidentais sendo descritos como colonizadores, invasores, saqueadores e conquistadores. Eles chegaram a saquear extensivamente as Ilhas Britânicas e o Império Franco, chegando até lugares como a Península Ibérica e o norte da África. Os povos que se depararam com os nórdicos conferiram a eles diversos nomes: os francos os chamavam de daneses ou homens do norte; os ingleses, de daneses ou pagãos; até o século IX os irlandeses se referiam a eles como pagãos e depois passaram a chamá-los simplesmente de estrangeiros; no leste europeu eram conhecidos como Rus, nome surgido de uma palavra finlandesa para nomear os Svear (nórdicos da parte sueca) que posteriormente desceram até o rio Volga, na Rússia. Somente os ingleses utilizavam a palavra viking9 para se referir aos nórdicos, termo que, nos dias de hoje, possui uma abrangência muito maior (SAWYER, 1997, p.2). A palavra viking (em nórdico antigo, víkingr) propriamente dita não consta em nenhuma fonte escrita em nórdico antigo até fim do século X, o que na verdade não é surpreendente, visto que existem pouquíssimas fontes escritas anteriores a essa data. Sua primeira aparição é em inglês antigo do século VIII, onde é empregada para se referir a nórdicos envolvidos em saques ou comércios na Inglaterra. A etimologia da palavra é incerta e as teorias são várias. Segundo Holman (2003, p. 277), existem duas principais teorias. A primeira delas alega que o termo poderia ter se originado da palavra vík, que, em nórdico antigo era usada para se referir aos fiordes. A outra teoria defende que ela teria se originado do inglês antigo wic, que significa “campo” ou “forte”. Ao acrescentar o sufixo –ing, atribui- se a ideia de pertencimento a algum grupo ou categoria. Dessa forma, viking poderia significar “aqueles que vêm dos fiordes” ou “aqueles que acampam”. No entanto, Eldar Heide (2005) discorda dessas afirmações, que são, segundo ele,

8 Península ao norte da Europa que engloba os territórios das atuais Noruega, Suécia e a parte mais ao norte da Finlândia. 9 Discussões sobre a etimologia e o significado do termo são um tanto quanto polêmicos. Basicamente, a palavra é empregada com duas conotações: étnica, para se referir a qualquer habitante da Escandinávia durante a Era Viking; ou ocupacional, se referindo a ações náuticas específicas efetuadas por alguns nórdicos (LANGER, 2018, p.706). 21

insatisfatórias. Para ele, já que vários outros povos também, ao atracarem seus barcos, preferiam dormir em abrigos temporários (cabanas/barracas) do que na baía, esse fator dificilmente caracterizaria os vikings como diferentes dos outros a ponto de conferir a eles um nome embasado nessa atividade. O autor defende que a palavra viking tenha surgido ainda no Período das Migrações, quando as embarcações dos nórdicos ainda não possuíam a tecnologia das velas e deveriam contar, portanto, somente com a força braçal que mexia os remos. Nesse período, ele explica, a única forma de propulsão eram os remos. Durante as longas viagens era necessário que houvesse turnos para que os remadores revezassem entre si, substituíndo aqueles que estavam exauridos por um remador descansado. Os nórdicos enxergavam esses turnos e alternações, então, como uma própria medida náutica que indicava a distância e a duração de um percurso marítimo: quanto mais turnos e trocas fossem necessários, obviamente maior era a viagem (HEIDE, 2005, p.49). Nesse contexto, a palavra viking teria sido derivada de víka, que significa “a distância percorrida entre um turno e outro”. Este verbo originalmente significava, em sentido literal, “ir para o lado, mover-se para o lado”, que era exatamente como a troca de turnos costumava ser feita. Como essa alternância deveria ser feita sem que se parasse de remar, aquele que estivesse descansado se posicionava ao lado do remador prestes a trocar; este deslizaria para o lado enquanto o outro assumia seu posto. Por conta disso o verbo víka teria passado, aos poucos, a significar “trocar”10, e vikings teria sido derivada desse verbo para se referir àqueles que, na época, locomomiviam-se em seus barcos fazendo trocas de turno (HEIDE, 2005, p.50- 51). Com o tempo, os nórdicos do oeste emigraram para fazer seus assentamentos nas Ilhas Britânicas, nas Ilhas Faroé e na Islândia, bem como em algumas ilhas inabitadas espalhadas pelo Atlântico. Próximo ao fim do século X, os nórdicos começaram a colonização da Groenlândia e exploraram a América do Norte (atual território canadense), mas sem estabelecer assentamentos definitivos nestes últimos. O ápice dessas invasões foi no século XI, quando ocorreram grandes conquistas dinamarquesas sobre o reino inglês. Já os Svear, nórdicos localizados sobretudo ao leste da Suécia, foram em direção ao leste Europeu. Lá, acumularam grandes riquezas fazendo comércio de escravos e de peles, cobrando tributos ou simplesmente tomando cidades à força (SAWYER, 1997, p.1).

10 Em original, conforme consta no artigo do autor, “to shift”. 22

Figura 1: Mapa da Península Escandinava e os países mais próximos. Como vemos, sua posição geográfica favorece o contato com os povos das Ilhas Britânicas, do Báltico e do Norte da Rússia. Fonte: http://twixar.me/wlMK. Acesso em 09/10/2018.

Diferentemente dos nórdicos, os povos sámi são de origem fino-úgrica, e não indo- europeia. Atualmente, eles são o único grupo étnico europeu reconhecido oficialmente como aborígenes. Os sámi nunca tiveram um território ou nação própria, tendo vivido em pequenos grupos e comunidades (siidas) espalhados pelo norte da Europa desde antes da Idade Média. O termo sámi não designa um único povo, ele é utilizado para se referir a várias etnias que possuem traços genéticos, linguísticos e culturais em comum11. Além disso, o nome sámi (sápmelaš, conforme um de seus dialetos) é um elemento de auto-identificação entre os próprios sámi, identificando-os e diferenciando-os etnicamente de etnias e culturas vizinhas, colonizadoras e dominantes em vários aspectos. Já que se encontram dispersos por vários territórios, criou-se o termo Sápmi12 para se referir aos territórios por eles habitados (LEHTOLA, 2004, p.10). Visto que os sámi não possuíam um sistema de escrita, os registros históricos que encontramos sobre eles foram feitos por estrangeiros. Obviamente que a visão desses autores sobre os sámi era fortemente influenciada pelos seus respectivos contextos culturais, sociais,

11 Existem, ainda hoje, ao menos nove etnias sámi. Cada uma possui seu próprio dialeto e suas particularidades. As etnias sámi mais conhecidas são: Sámi do Sul, Ume Sámi, Pite Sámi, Lule Sámi, Sámi do Norte, Skolt Sámi, Kildin Sámi e Ter Sámi, mas existem outras (LEHTOLA, 2004, pp. 10-11). 12 Também chamada de Lapônia. Esse nome não remete a uma nação com territórios demarcados, mas conceitua as áreas onde os diversos povos de etnia sámi habitam, englobando quatro países: Noruega, Suécia, Finlândia e a Península de Kola no norte da Rússia (KENT, 2014, p.3). 23

históricos e religiosos. Aliás, muitas das fontes tardias de que dispomos sobre a religião sámi pré-cristã foram escritas por cristãos com olhares missionários e proselitistas, como Olaus Magnus (1.500 d.C) e Johannes Schefferus (1673 d.C). Nessas obras e em outras que as precederam, os sámi eram chamados de lapões13 e as terras que habitavam, ao extremo norte, de Lapônia. Essas obras descreviam os sámi visando satisfazer um público e uma tradição oriundos do sul da Europa: dessa forma, os sámi foram ora descritos como selvagens pagãos que necessitavam aprender os costumes do homem cristão civilizado, ora como remanescentes exóticos da forma mais primitiva e primordial do ser humano (LEHTOLA, 2004, p.16). O termo Lapp, no começo, se referia a essas pessoas que viviam nas periferias de grandes centros e rotas de comércio nórdicos. Vivendo em regiões marginais, esses povos que não praticavam uma agricultura fixa não eram, portanto, civilizados. É exatamente o caso dos sámi, que viviam ao extremo norte da Noruega e Suécia, por exemplo, e praticavam o nomadismo. O mesmo termo também passou a ser utilizado no século XII para nomear pessoas que praticassem atividades econômicas tidas por “lapônicas”, como a caça, a pesca e o pastoreio de renas. Em fontes mais antigas, as palavras fenni e finn também eram utilizadas em muitas ocasiões para denominar povos sámi (LEHTOLA, 2004, p.10). Vale lembrar que em várias fontes, principalmente nas de origem escandinava, os sámi eram confundidos com os finlandeses e, muitas vezes, empregavam-se os mesmos termos para se referir a ambos os povos sem distinção.

Figura 2: Mapa da área englobada pela noção de Sápmi. Um olhar para o mapa rapidamente evidencia que os sámi habitavam principalmente a área costal da Noruega e seu extremo norte, bem como o norte da Suécia e da Finlândia, além de uma Península, atualmente pertencente à Rússia, chamada Murmansk. Fonte: http://twixar.me/9lMK. Acesso em 09/10/2018.

13 Laps ou Lapps. Hoje em dia, o termo é considerado pejorativo. 24

Definir a identidade sámi não é tarefa fácil. Por muito tempo foram utilizados somente critérios linguísticos e genéticos, negligenciando uma série de outros fatores que pareciam importantes como critérios de identificação segundo os próprios nativos. Apesar de ainda existirem controvérsias nesse campo, Broadbent (2010, p.3) elenca diversos aspectos constituintes da identidade sámi, embora ele próprio afirme que eles não estão terminados ou completos. Reunindo diversos outros estudos sobre a questão o autor chegou à conclusão de que, além das questões genéticas e linguísticas, outros fatores servem não somente para os sámi, quanto para separá-los dos nórdicos: economia (pastoreio, caça e nomadismo seriam sámi, enquanto que a prática da agricultura seria tipicamente escandinava); expressões da religiosidade, como práticas funerárias e morfologia das sepulturas, sítios de oferenda e outros tipos de locais sagrados; cultura material (artefatos, ferramentas, vestimentas); organização social, principalmente no caso das siidas14; tipos de habitações, como as kåta ou as goahte15; e, por fim, os territórios habitados. Por sua vez, os fínicos (ou finlandeses) são povos também de origem fino-úgrica. Suas origens remontam, provavelmente, ao período da Cultura do Pente em Cerâmica II16 (3.300- 2.800 a.C), visto que, segundo a teoria mais aceita, essa cultura é que teria trazido o idioma proto-urálico17 até a Finlândia. Assim, a Cultura do Pente em Cerâmica teria se espalhado por todo o território finlandês e da Carélia russa, subindo até a região do Círculo Ártico, bem como na Estônia, na Livônia e na área litorânea do Golfo da Finlândia. Teria ocorrido posteriormente um encontro destes com a Cultura da Cerâmica Cordada (2.500-2.000 a.C)18, constituída por povos que haviam migrado do sul para a região. Costuma-se afirmar que estes sejam indo-europeus e haviam trazido, com eles, algumas formas de agricultura, apesar de que os registros mais antigos que se tenham sobre agricultura na região da Finlândia seja de 2.000 a.C (TOLLEY, 2009, p.32). A Cultura da Cerâmica Cordada teria então se fundido à Cultura do Pente em Cerâmica, originando a cultura Kiukainen, predominante no sudoeste da Finlândia. Os povos da cultura Kiukainen receberam paralelamente influências do sul da Escandinávia e da Estônia, bem como o oposto: foram encontrados vestígios materiais desse povo em lugares nórdicos como

14Siidas são os nomes dados, em próprio dialeto sámi, às pequenas comunidades e assentamentos dos povos sámi, que podem estar localizados em regiões costeiras e litorâneas, em montanhas ou em densas florestas rumo ao interior. 15Kåta em sueco, ou goahte/goahti em sámi, é o nome dado às cabanas usadas como moradia pelos sámi. Basicamente, havia três tipos distintos de acordo com o material do qual elas eram feitas, podendo ser de madeira, tecido ou barro de turfa. 16 No original, Comb Ceramic Culture II. 17 Idioma que teria dado origem às línguas fínicas. 18 No original, Corded Ware Culture. 25

Hälsingland e Gotland, indicando possíveis assentamentos Kiukainen em território nórdico. Durante a Idade do Bronze (1.500 a.C), os povos da Finlândia estavam divididos entre os agricultores na área costeira e os caçadores no interior: há fortes evidências de contato dos finlandeses com povos do leste e do oeste neste período, dentre eles, os nórdicos. Muito provavelmente havia nórdicos vivendo entre os finlandeses neste período, principalmente como comerciantes. Seu objetivo deveria ser o de procurar produtos valiosos como peles, por exemplo, os quais eles poderiam comercializar em troca de metais vindos da Europa Central para alimentar a indústria escandinava do bronze (TOLLEY, 2009, p. 33). Também dizendo respeito às questões de identidade, é importante apontarmos como elas se davam no contexto medieval e da antiguidade, ainda que brevemente. Conforme dito anteriormente, muitos povos fino-úgricos não eram caracterizados de acordo com suas identidades étnico-culturais e, dessa forma, por muito tempo tomou-se os sámi por fínicos e vice-versa. Temos a ocorrência, em fontes gregas e latinas, das palavras Fenni e Finni (como na obra de Tácito19, o primeiro a chama-los pelo termo Fenni); em inglês antigo, Finnas e Finne; em nórdico antigo, Finnar, mas nenhuma dessas palavras era utilizada para se referir aos fínicos, e sim aos sámi. Em nórdico antigo, as fontes que temos (basicamente, sagas20) se referem continuamente aos sámi por meio da palavra Finnar, enquanto que os fínicos eram chamados de Kvæner21. É possível que os suecos, durante a Idade Média Tardia, fizessem uso da palavra *Fennoz para denominarem tanto fínicos quanto os sámi, tendo posteriormente acrescentado um composto que resultou em *Skriðiffinoz (“sámi esquiadores”) para se referirem especificamente aos sámi (TOLLEY, 2009, p.40).

Interações entre nórdicos, sámi e finlandeses

Davidson (2004, p.126) já havia levantado a hipótese de que haveria um intercâmbio cultural entre a Escandinávia e o leste sámi/finlandês. Analisando traços xamânicos e de êxtase na figura de , a autora alega a possibilidade. Sua hipótese era de que alguns

19A menção a esses povos encontra-se em sua obra Germania. 20As são um tipo de narrativa literária onde são descritas a história de uma família ou a linhagem histórica da Islândia Medieval, em especial os feitos guerreiros acontecidos entre os anos de 874-1.300 d.C. O termo foi originado do verbo em islandês antigo segja, que significa recontar, dizer. As sagas são uma exclusividade desta região e do período medieval e dividem-se em vários subtipos de acordo com a temática: sagas lendárias (fornaldarsögur); sagas de reis (konungasögur); sagas de família (íslendingasögur); sagas dos bispos (biskupasögur); sagas de cavalaria traduzidas (riddarasögur) e sagas de cavalaria nativas (lygisögur) (LANGER, 2015, p.442). 21 Na de , há a ocorrência dos termos Kirjálar e Kylfingar para se referir a tribos fínicas da região da Carélia. Tal fato pode sugerir que, até meados do século XIII, não havia um termo para se referir aos fínicos de forma generalizada (TOLLEY, 2009, p.40). 26

elementos da mitologia nórdica, como - o cavalo de oito patas de Odin – seriam produtos da influência da religião sámi, xamânica por excelência22, sobre os nórdicos. Hultkrantz (1996, p.5), também ressaltou alguns aspectos dessa influência: a ocorrência, na Escandinávia, do culto a um pilar do mundo – o veraldarnagli – teria surgido graças à influência Sámi, povo esse que cultuava um pilar do mundo e temia que ele caísse. Nas áreas costais de Helgeland, norte da Noruega, o apogeu das interações entre nórdicos e sámi foi em algum ponto entre os anos de 300-600 d.C.. Vestígios arqueológicos apontam que assentamentos vikings espalharam-se brandamente pela região conforme a agricultura ia tornando-se viável e o comércio, mais lucrativo e conveniente. Paralelamente, os sámi da costa retiraram-se rumo aos fiordes do interior, principalmente os menores, na região de Tysfjord. Esse fato garantiu grande proximidade e interação entre eles e os nórdicos, criando um ambiente fértil para que ocorressem diversas simbioses culturais, linguísticas e religiosas. Com isso, os sámi da costa passaram a servir também como intermediários entre os nórdicos e outros povos sámi, do interior, havendo até mesmo relatos de casamentos entre os dois povos (KENT, 2014, p.22). Durante a Era Viking, o mundo nórdico foi cenário de intensos encontros, interações, intercâmbios e influências mútuas entre nórdicos, finlandeses, sámi, bálticos e até mesmo eslavos. Quando nos propomos a analisar todo o contexto da Fennoscandia23 durante a Era Viking, precisamos enxergar as tradições religiosas desses diversos povos que a habitam não

22 Nesse aspecto, a religião sámi pré-cristã possuía uma série de características xamânicas que não são detectadas no caso dos nórdicos, ou que então demonstram ser, na primeira, muito mais recorrentes e marcantes. Ao contrário das sociedades nórdicas, as comunidades sámi contavam com uma figura de alta relevância social e espiritual, que seria a do xamã. Chamados de noaidi ou noaide, os xamãs eram os especialistas religiosos, conhecidos por possuir as técnicas e o conhecimento necessários para se comunicarem com outros mundos e seres. Os noaidi, então, eram capazes de entrar em estado de transe enquanto entoavam suas preces ou sacrifícios, acessando os planos espirituais. Uma vez imersos nesse estado, os xamãs eram capazes de trazer mensagens, advertências e presságios em prol de ajudar na sobrevivência da comunidade. Também acreditava-se que fossem capazes de mudar sua aparência e forma, transformando-se em animais (ursos, lobos, renas, peixes) ou então assumindo formas de manifestação da natureza, como rajadas de vento. Sendo assim, as práticas mágicas e ritualísticas, bem como as cerimônias coletivas, eram lideradas pelo xamã (noaidi). Segundo as fontes primárias, o xamã também era responsável por passar adiante e coletivizar o conhecimento de toda a tradição religiosa e visão cosmológica dos sámi, atuando como uma espécie de poeta mitológico e guardião da tradição oral. Também eram tarefas do xamã o diagnóstico e a cura de enfermidades, a adivinhação do tempo mais propício para a caça e pesca e o resgate de objetos importantes que foss em perdidos. Tudo isso tornava-se acessível ao noaidi graças à sua comunicação com os deuses, animais e seres do outro mundo, por meio da experiência do transe. Visando atingir esse transe, o xamã entoava canções específicas, denominadas de joik ou yoik. Apesar das palavras serem importantes, nesse tipo de canção o ritmo detinha maior importância, apresentando predominância de uma melodia monótona que, junto das batidas de tambores, o induziam ao transe. As três principais fontes primárias que oferecem detalhes e descrições sobre o xamanismo entre os povos sámi são as obras de Olaus Magnus (Historia de gentibus septentrionalibus, 1555 d.C); Johannes Schefferus (Lapponia, 1673 d.C); e, por fim, Lars Levi Laestadius (Fragments of Lappish Mythology, escrito entre 1838- 1845 d.C, mas publicado somente em 1997 d.C). 23Fennoscandia é o nome utilizado para designar a região que engloba a Península Escandinava, a Finlândia, a Carélia e a Península de Kola, no norte da Rússia. 27

como unidades isoladas, mas, pelo contrário, como elementos abrangentes divididos entre esses diversos povos que, por meio de interações econômicas, ecológico-ambientais e culturais, estiveram em regulares intercâmbios. É necessário nos esquivarmos de estudos que foquem no fenômeno religioso apenas dentro de uma única família linguística ou cultural, num viés, por exemplo, Germânico-Escandinavo, Indo-Europeu ou Fino-Úgrico. É necessário explorarmos as interações geográficas que, certamente, não obedecem a esses enquadramentos (DUBOIS, 1999, p.7). Somente ao levarmos em conta o contexto do norte da Europa como palco de intensas trocas e processos interculturais é que abandonaremos progressivamente a falsa concepção de que a transmissão de ideias religiosas acontece de maneira estritamente linear, de uma geração de crentes para a próxima. Segundo DuBois (1999, p. 7-8), para entendermos o modo como a transmissão de ideias religiosas funciona, é preciso examinar as inter-relações entre os diversos povos que compartilhavam o território nórdico durante a Era Viking. Para o autor, compreender a transmissão de conceitos trans-culturais (como, por exemplo, elementos míticos e religiosos, como deuses e rituais) é abandonar análises que agrupem e separem os povos do norte da Europa apenas em termos linguísticos, já que a transmissão destes elementos não conhece barreiras linguísticas ou genéticas. Ao contrário do que a tradição de estudos sobre o assunto tem feito, separando esses povos de acordo com afinidades linguísticas (indo-europeus, fino-úgricos, germânico-escandinavos, etc.), talvez seja mais interessante pensar uma perspectiva geográfica que possibilite visualizarmos a maneira como todos esses povos dividam o Norte durante a Era Viking (DUBOIS, 1999, p.9)24. Não só durante o momento de expansionismo nórdico da Era Viking, mas também em meados da época de conversão ao Cristianismo (estamos nos referindo, então a um período que engloba do século XII ao XVII), todos esses povos habitando a área nórdica mantiveram contato e exerceram influências mútuas por meio de laços e trocas econômicas, maritais e religiosas. Os vikings nórdicos comerciantes, especialmente oriundos da Suécia, Dinamarca e Gotland, viajaram frequentemente rumo ao leste, até a Finlândia, os países bálticos e a Rússia, mantendo contato frequente com esses povos. Nórdicos e povos Fino-Bálticos competiam entre si pelo acesso ao comércio de peles e outros produtos do extremo norte, apontando para um sistema de comércio na região que era altamente descentralizado. Assim, é possível que

24“By looking at the interrelations between the various peoples who shared the Viking-Age North, we can perceive broad commonalities of worldview that served as conceptual bases for the comparison and exchange of more specific religious ideas: underlying views of death, for instance, which facilitated the shift from cremation to inhumation burial among Nordic pagans well before the actual adoption of Christianity, the ultimate source of the new custom itself” (DUBOIS, 1999, p.9). 28

Nórdicos, Fino-Bálticos e provavelmente também Eslavos, circulassem entre a área das siidas sámi, buscando comércio ou então modos de extorsão (DUBOIS, 1999, p.25). O contato entre finlandeses e nórdicos começou ainda na Idade do Ferro (1.200 a.C). Certos achados datados deste período demonstram forte influência germânica sobre os povos fínicos, o que pode ser um indício de chefes locais se beneficiando de comércios e trocas com os nórdicos e atuando, quando podiam, como intermediários entre estes e os fínicos do interior. Os intercâmbios entre estes povos continuaram sem cessar até atingirem novo ápice durante o período Merovíngio (600-800 d.C), quando ocorreram novamente vários assentamentos nórdicos e rotas de comércio em território finlandês. Já dos anos 800 a 875 d.C a cidade sueca de Birka tornou-se um grande centro de comércio, recebendo até produtos da China e moedas árabes. Costuma-se atribuir o sucesso comercial da cidade às rotas de comércio que a ligavam aos búlgaros do rio Volga, pois quando esta rota foi fechada Birka pereceu. O fato que nos é interessa é que em Birka foram encontradas várias peças de cerâmica finlandesas, indicando presença destes povos na região ou, ao menos, intensas relações de trocas e comércio entre eles e os nórdicos (TOLLEY, 2009, p.33). Ainda segundo Tolley (2009, p.34), uma rota comercial utilizada pelos vikings rumo ao leste passava pelo Golfo da Finlândia, onde muitas moedas escandinavas foram encontradas, principalmente na costa sul, e em menos quantidade no norte da região. Como foram encontradas, nesses locais, poucos vestígios da presença finlandesa, a principal hipótese é a de que os povos fínicos do interior se dirigiam esporadicamente até a costa para negociar com os nórdicos, mas não possuíam assentamentos definitivos na região Em meio a este cenário torna-se possível a hipótese de que Ukko tenha sido adorado no oeste da Finlândia até os finlandeses terem encontrado os nórdicos, que traziam também seu deus do trovão: tais encontros fizeram com que Ukko e Thor se tornassem cada vez mais similares. Isso explicaria a facilidade com que um dos deuses poderia ser aceito na comunidade onde estava chegando. Parece que Ukko permaneceu um deus violento a quem os finlandeses antigos rezavam para ajudar em questões práticas como cultivo de plantações, ajuda na caça, benção de nascimentos e garantia de fertilidade, já Thor, fortemente adorado pelos camponeses, tinha algumas de suas histórias modificadas para que fossem contadas para reis em grandes salões pelos poetas escaldos. Por meio desses entremeios envolvendo as divindades, provavelmente houve uma influência recíproca entre os dois deuses, já similares. Contudo, Ukko seria mais parecido com Thor cultuado pelos camponeses suecos para fins pragmáticos, e não com o Thor das sagas, de feitos heroicos cujas peripécias entretinham a

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elite (SALO, 2014, p. 167). Lembremos igualmente que, durante a Era Viking, grande parte da Península Escandinava era habitada não só pelos nórdicos, mas também pelos sámi, principalmente a área central da Península e o norte da Noruega. Segundo Zachrisson (2008, p. 34), algumas fontes nórdicas antigas descrevem que os sámi eram vistos pelos noruegueses como parte natural de sua sociedade e que as fronteiras entre os dois povos não eram muito bem delimitadas. Aparentemente, apesar de não considerarem os sámi como seus iguais, os noruegueses sabiam que dividiam seu país e seu território com outro povo. DuBois (1999, p.23) menciona os achados na área de Härjedalen, região fronteiriça entre Noruega e Suécia, onde encontraram-se peças de tecido em lã, anéis e broches25 tipicamente nórdicos em túmulos sámi apontando para relações frequentes de comércio entre esses povos. Lembrando que os povos sámi têm vivido na região escandinava desde a pré-história, o contato destes com os próprios nórdicos data, certamente, de um período muito antigo. Os vestígios são dos mais diversos tipos. Há túmulos entre as áreas de Norrland e Värmland, dos primeiros séculos depois de Cristo, onde são detectáveis traços de costumes funerários tanto dos sámi, quanto dos nórdicos, indicando uma possível adoção, por parte dessas duas culturas, de influências da cultura germânica (ou até mesmo afinidades étnicas). Existe também um sítio arqueológico identificado ao norte de Trømso, na Noruega, que contém vários objetos sámi (como, por exemplo, pontas de flechas feitas de ossos), mas também mobílias nórdicas, indicando que poderia se tratar de um assentamento de noruegueses que por algum motivo haviam adotado um estilo de vida sámi (TOLLEY, 2009, p. 34). Considerada essa coexistência, por muito tempo diversos autores trabalharam com a ideia de que Horagalles teria sido um deus sámi importado dos noruegueses26. Contudo, Karsten (1955, p. 26–27) recusa a crença de que os sámi teriam importado dos nórdicos a sua

25 Considerando esses diversos achados que, conforme descrito, eram compostos por pedaços de tecido, broches e outras jóias, e pensando o intercâmbio intenso e frequente entre os noruegueses e os povos sámi (especialmente no extremo norte da Noruega), é relevante ter em mente que estas peças podem ter sido as precursoras da vestimenta chamada Gákti, hoje tida por símbolo da identidade Sámi. Um atual grupo chamado Noereh (https://www.facebook.com/noereh/) trabalha com o resgate dessa indumentária tradicional enquanto símbolo de identidade e resiliência cultural dos Sámi. Se os achados em questão teriam sido, de fato, uma espécie de “proto- gákti”, ainda é algo que certamente carece de intensas análises e discussões, mas que sem dúvidas desperta o interesse e a possibilidade de novas pesquisas. 26 Por muito tempo, as pesquisas comparativas envolvendo os nórdicos e os sámi preocupavam-se em detectar uma suposta origem de certas divindades ou conceitos. Não raro, conforme vimos, um etnocentrismo pró - nórdico insistia em portar os sámis e os elementos de suas religiões como grandes imp ortadores de elementos originalmente nórdicos, conforme discutido por Rydving (1990). Não nos preocuparemos, no presente trabalho, em apontar ou tentar traçar a suposta origem de uma divindade dos trovões a partir da qual as outras teriam sido geradas. Preocupamo-nos, na verdade, em compreender e elucidar de que modo e com quais atributos semânticos essa ideia de deus do trovão circulava entre os povos nórdicos, sámis e finlandeses, buscando por semelhanças e divergências no trânsito de tais deuses enquanto conceitos presentes nas vidas desses povos. 30

divindade do trovão. O autor defende que a necessidade dos povos antigos em cultuar deuses relacionados a questões pragmáticas e fenômenos naturais é praticamente inerente; não haveria necessidade de importar um deus do trovão vindo de outra cultura e religião. Pensar que os povos sámi, vivendo em um território de intensos e frequentes trovões, não possuíam a própria divindade do trovão parece inverossímil. Ademais, os sámi manifestavam a crença de que o deus do trovão era, também, o deus dos céus ou a deidade suprema, algo que não é encontrado nos nórdicos em relação a Thor. Rydving (1990, p. 364) recorda que o injusto preceito de que a religião indígena sámi só poderia ser inferior e mais “primitiva”, vigorou por muito tempo, e assim, todas as semelhanças descobertas entre ela e a nórdica eram logo tidas por empréstimos providos pela segunda. Durante muito tempo a cultura sámi foi utilizada para clarificar elementos na cultura nórdica, como se fossem evidentemente idênticas. Era comum que se explicassem certos atributos de Thor por meio dos materiais obtidos acerca de Horagalles, assumindo-se que eram a mesma divindade. Segundo Strömbäck (1935, p. 197), citado por Rydving (1990, p. 365), chegou-se ao ponto de se perguntar se realmente haveria qualquer traço original na religião sámi. Conforme os estudos na área avançaram começou-se a pensar no oposto, buscando-se desvendar quais aspectos da cultura sámi teriam influenciado os nórdicos. Após trilhado esse caminho, começaram-se a descobrir na cultura nórdica alguns traços do xamanismo sámi, principalmente na figura do deus Odin e nos rituais mágicos do seidr (RYDVING, 1990, p. 365). Enfim, caminhou-se muito desde que começaram os estudos comparativos entre as religiões nórdica, sámi e finlandesa, o que felizmente culminou na abertura acadêmica à possibilidade de que os intercâmbios e influências entre elas tenham sido, acima de qualquer coisa, mútuas e recíprocas.

Considerações teórico-metodológicas sobre o Comparativismo

Ao estudarmos as religiões antigas, o método comparativo pode ser uma ferramenta útil que nos ajuda a desnudar seus componentes e trazer à tona conteúdos e temas que aparentavam estar escondidos ou perdidos em meio ao seu material religioso (BERTELL, 2013, p. 47). Não nos esqueçamos dos primórdios dos Estudos em Religião, momento em que o método comparativo desempenhou um papel tão importante enquanto método de análise, que esse campo de estudos foi conhecido em alguns contextos e períodos como Religião Comparada. O próprio Max Müller, no século XIX, inspirou-se no então recente modelo da 31

filologia comparada para criar seu método comparativo de estudos em religião que, mais tarde, dariam surgimento à disciplina das Ciências da Religião (GRESCHAT, 2006, p.49-50). O próprio contexto de surgimento dos estudos em religião é, portanto, indissociável do comparativismo27. Aplicado de maneira crítica, o método comparativo é capaz de proporcionar o debate inter-religioso e levar-nos a uma melhor compreensão das religiões, de modo a respeitar suas particularidades sem subjugá-las a uma religião cujas categorias seriam supostamente superiores. Aliás, foi por meio do método comparativo que se evidenciou o fato de que o Cristianismo não estava acima das outras religiões, mas que, assim como elas, era fruto de um contexto religioso e histórico específico: observado esse fato, o estudo comparativo das religiões pôde mover-se para longe de verdades pregadas pelas grandes instituições religiosas, deixando de procurar por categorias da “verdade” cristã em outras religiões (STAUSBERG, 2011, p.33). Optaremos pelo método comparativo devido à sua capacidade de justapor duas ou mais religiões e evidenciar suas semelhanças e diferenças a nível tipológico, estrutural, histórico, ritualístico e mitológico. Segundo Stausberg (2011, p.33), a análise comparativa atua ao evidenciar essas categorias empíricas quando nos aproximamos das religiões que pretendemos estudar, servindo, dessa forma, como base tanto para comparações interculturais quanto transculturais; a comparação criteriosa é simultaneamente capaz de ofertar comparações ancoradas na História e também testar os postulados de teorias gerais da religião. O método comparativo, então, mostra-se de valor inestimável para construir e testar hipóteses, levando em conta justamente sua capacidade de transformar pressupostos gerais altamente disseminados acerca das religiões em hipóteses testáveis e observáveis empiricamente em religiões concretas e encarnadas no devir histórico. Aliás, muitos pesquisadores das ciências humanas fazem referência ao estudo dos mitos e às perspectivas comparativas para abordá-los, mas sem se preocuparem em fazer maiores distinções e definições do termo “comparativismo” enquanto metodologia específica. Entre

27 Ao falarmos do método comparativo no estudo das religiões, não há como evitarmos mencionar o seu papel sobretudo na Escola Italiana de História das Religiões, principalmente por meio das ideias de Raffaele Pettazzoni. Contudo, certamente que o comparativismo encontrou, na Escola Italiana, uma nova colocação instrumental, fugindo de uma comparação horizontal e estéril dos fenômenos culturais e optando por construir comparações de processos históricos relacionados às religiões. Não se tratava de uma tentativa de nivelar e reduzir fenômenos religiosos em busca de evidenciar uma essência ou autonomia da religião, como era feito outrora, mas de constituir um instrumento comparativo destinado a diferenciar e determinar as especificidades e peculiaridades de cada processo histórico, algo que somente a comparação é capaz de destacar. Assim, buscava - se a compreensão para além das “texturas fundamentais comuns” às religiões, mas evidenciar as não repetíveis – e por isso únicas – soluções criativas concretas para as religiões, historicamente realizadas (AGNOLIN, 2008, p.24). 32

esses pesquisadores, os que não se especializam nas mitologias de um povo ou período histórico específicos são os que tratam a(s) mitologia(s) como um fenômeno a ser interpretado dentro de um arcabouço comparativo. Seja como for, essas abordagens e estudos do mito são ainda dispersas e nunca se uniram em um campo disciplinar comum, o que dificulta maiores definições (FROG, 2018b, p.1). Tendo isso em mente, é importante a ressalva de que, apesar de nos tempos atuais podermos falar de um “método comparativo” e o empregarmos dessa forma, no singular, não há a existência de um único método ou modus operandi para lidar com a comparação. Quando utilizamos essa designação referimo-nos, acima de tudo, à perspectiva do comparativismo, que meramente descreve o modo como o pesquisador da religião pretende se aproximar e se debruçar sobre as religiões que constituirão seu objeto de estudo (STAUSBERG, 2011, p.34). Durante os séculos XIX e XX a perspectiva comparativa foi amplamente adotada por diversos pesquisadores da área nórdica que, basicamente, contrapunham dois sistemas mitológicos distintos e procuravam por evidências de algum padrão universal ou geral, aproximando-se de uma visão fenomenológica como a teoria dos arquétipos difundida por Carl Gustav Jung, ou a do homo religiosus, defendida por Mircea Eliade. Quem trouxe importantes mudanças para o método do comparativismo foi Angelo Brelich, que, sobre grande influência de Pettazzoni, inverteu os objetivos do método e passou a procurar não generalizações, mas individualizações. Buscava, então, constatar as funções mítico-religiosas relacionadas às realidades sociais e históricas de regiões e espaços do tempo específicos (LANGER, 2016, p.127-128). Em suma, isso significa que, visando resolver o problema colocado por nós na presente pesquisa, adotaremos essa perspectiva comparativa para evidenciar as analogias e divergências entre os deuses do trovão existentes nas mitologias nórdica, sámi e finlandesa. O passo inicial é averiguar as afinidades entre as três: encontram-se, em todas essas mitologias, materiais míticos envolvendo divindades do trovão extremamente populares e descritas como protetoras dos homens e deuses contra as forças do caos, além de relacionarem-se também à fertilidade e às questões climáticas. No caso dessas mitologias, estamos nos deparando com diferentes sociedades, povos e períodos, cada um com suas particularidades. Não seria sequer possível realizar um estudo comparativo dentro da teoria do Indo-Europeu, visto que somente os nórdicos pertencem a esse grupo étnico-linguístico; os sámi e os finlandeses não são de origem Indo-Europeia, mas Fino-Úgrica (LEHTOLA, 2005, p.10-11).

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Faremos uso do método comparativo por acreditarmos, conforme defende Schjødt (2016, p.52), ser este um método capaz de evidenciar elementos concretos nas mitologias e religiões antigas e atua como importante ferramenta para auxiliar no entendimento e na reconstrução dessas experiências antigas. Além disso, o comparativismo também é uma alternativa interessante quando precisamos lidar com fontes primárias questionáveis. Seja no caso nórdico ou nos casos finlandês e sámi, nos deparamos com dois tipos de fontes primárias: fontes “nativas”, ou seja, aquelas produzidas por pessoas que realmente viveram no período pré-cristão, e as fontes “estrangeiras”, produzidas por pessoas oriundas de outras culturas e sociedades, ou então que já escreviam de um período histórico posterior, este já cristão (SCHJØDT, 2017b, p.5-6). Tal questão problemática com as fontes nos coloca em uma posição delicada no momento de nos aproximarmos delas objetivando reconstruir o modo como as religiões antigas e seus sistemas mitológicos operavam. Segundo Schjødt (2017b, p.7), o que acontece é que temos, por um lado, essas fontes “nativas” que, além de escassas, são difíceis de serem interpretadas com segurança e sem desvirtuamentos; por outro, temos essas fontes “estrangeiras”, das quais precisamos nos aproximar sempre com um criticismo atento, pois estão repletas de olhares julgadores, etnocêntricos e guiados por um preconceito negativo. A saída para lidarmos com essas fontes fragmentadas e descobrir como elas podem ser consideras conjuntamente de modo a (re)construir a visão de mundo religiosa desses povos antigos seria o comparativismo. Para Schjødt (2017b, p.8), é por meio da comparação que se torna possível perceber as linhas existentes entre esses dois tipos de fontes, as nativas pré- cristãs e as estrangeiras, cristãs, e então conectá-las; dessa conexão entre as fontes surge a possibilidade de que criemos modelos de compreensão necessários para compreensão dessas religiões. Entenderemos como “modelo” a ferramenta cognitiva por meio da qual percebemos o mundo que nos cerca; é o modo como todo ser humano, no curso de seu contato com a realidade, cria pela sua cognição um sistema coeso de compreensão do mundo, que pode ser científico, religioso, etc. O comparativismo é, portanto, um modo de evidenciar os modelos religiosos de compreensão do mundo que estariam presentes nos praticantes das religiões antigas (SCHJØDT, 2017b, p.8). Conforme dito anteriormente, o termo comparativismo é muito amplo e não remete necessariamente a um mesmo método ou modus operandi. Nesse momento, definiremos o tipo de comparativismo que iremos adotar. Ao abordar a religião nórdica pré-cristã, Schjødt

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(2017a, p.58) classifica o seu método comparativo em quatro níveis28: (1) comparações dentro da área e das sociedades nórdicas; (2) comparações com tribos germânicas pré-Era Viking, com quem os nórdicos partilham uma afinidade linguística; (3) comparações com outros povos pagãos29 da Idade do Ferro; (4) comparações dentro da teoria do Indo-Europeu. As comparações entre nórdicos, sámis e finlandeses, como pretendemos fazer, encontra-se no terceiro nível do modelo metodológico de Schjødt, pois iremos abranger as religiões pré- cristãs desses povos. Nossa abordagem constituirá, portanto, uma comparação do tipo genético, visto que estaremos comparando a mitologia de povos que, apesar de não terem a mesma origem, estão relacionados e entrelaçados historicamente (SCHJØDT, 2017a, p.2). Considerando a região que engloba a Península Escandinava até o Mar Báltico, estamos lidando com uma área de intenso intercâmbio cultural; seria difícil, então, não trabalharmos com esse nível comparativo que propiciasse uma ferramenta com a qual comparar esses diferentes povos. Devemos levar em conta que os mitos e divindades adotados por um povo disseminam-se por novos ambientes desde que tenham alguma utilidade simbólico-religiosa- mítica para quem o recebe, independentemente da aprovação vinda de alguma autoridade formal. No corpus mitológico desses povos, notamos claros retratos das relações intercambiais e interculturais entre eles. A nível de exemplo, Väinämöinen, herói cultural proeminente na epopeia finlandesa Kalevala, muito provavelmente era, a princípio, um deus das águas e da pesca, até que o contato dos finlandeses com os nórdicos fez com que os primeiros absorvessem influências da mitologia hierarquizada dos nórdicos e, assim, Väinämöinen adquire o status de divindade suprema, chefe (DUBOIS, 2014, p.215). Certamente, isso não implica afirmar uma adoção descriteriosa de quem engloba novos mitos. Quando uma divindade recebe aceitação por parte de outro grupo, ela não é recortada e importada pura e simplesmente, mas adaptada ao sistema religioso e mítico do

28Para uma explicação sistematizada dos quatro níveis de comparativismo de Schjødt: “Ele aponta quatro níveis distintos de comparação. A primeira seria uma comparação interna, entre as fontes e os temas da Escandinávia. Por exemplo, comparando os mitos sobre o deus Thor, podemos chegar a caminhos ou temas diferentes pela mesma cultura. Os diferentes relatos da pesca da serpente por Thor seriam reflexos de versões diferentes, fases diferentes do desenvolvimento de uma mesma narrativa, ou visões de mundo diferentes nas mesmas regiões e cultura? O segundo nível será relacionado à comparação entre culturas diferentes: existiria uma grande diferença entre as similaridades entre nórdicos e lapões com as similaridades entre nórdicos e saxões, por exemplo. O terceiro nível consistiria da comparação entre povos indo-europeus de uma mesma região, por exemplo, entre islandeses e germanos do sul. Essa perspectiva é muito criticada pelo autor por utilizar material comparado de diferentes períodos e localidades que não permitiriam o acesso ao conhecimento da religiosidade nórdica antiga. Ele ainda discute outro método comparativo, envolvendo análise fenomenológica em diversas áreas pelo mundo, onde os níveis de diversidade (histórica, geográfica, social e cognitiva) devam ser levados também em conta” (LANGER, 2016, pp. 128-129, grifos do autor). 29Apesar das problemáticas que envolvem o termo, mantivemos a palavra pagão por ser a que mais se aproxima da utilizada pelo autor que, no texto, fez uso da palavra pagan. 35

mesmo. A esfera cultural da Escandinávia e da costa Báltica é um ótimo exemplo, além de uma razão em si mesma para que “se considere todas essas fontes [míticas e religiosas] como contextos uns dos outros, apesar de suas diferenças cronológicas e variações culturais” (BERTELL, 2013, p.48). Ou seja, comparar o deus do trovão e sua ocorrência nestas três sociedades é um modo de ressaltar a vivência deste símbolo religioso também por meio daquilo que ele significa para o outro. Como um mecanismo para evidenciar as funções e atributos de cada um desses deuses do trovão em suas respectivas narrativas mitológicas, utilizaremos a noção de centros semânticos. Centros semânticos nada mais são do que categorias de identificação dentro do discurso mítico para onde convergem os significados e totalidades relacionados a uma figura mítica ou ritual. São os significados que, em sua totalidade semântica, servem como caracterizadores e qualificadores de uma entidade ou prática, que então passa a ser reconhecida graças a eles. Mas, em contrapartida, esses mesmos significados que funcionam como definidores começam também a ser sempre recebidos pelo público como estando relacionados a essa figura que eles próprios caracterizam (SCHJØDT, 2013, p.12). Na caracterização dos deuses nórdicos, esses centros semânticos seriam estabelecidos e depois resistentes a mudanças, restringindo e delimitando a representatividade narrativa das divindades. Thor, por exemplo, possui a característica da força como seu elemento vigorosamente representativo. Esse atributo, então, faz parte do centro semântico relacionado ao deus (TAGGART, 2015, p.37). Explicadas essas idiossincrasias do método comparativo reiteramos, nesse momento, que o presente estudo fará uso dele para alcançar os objetivos que propõe. Analisaremos, nos materiais mitológicos e fontes primárias, os atributos e funções de cada um dos três deuses. Num segundo momento, buscaremos, a nível de complementação, vestígios cultuais que estejam embasados na arqueologia e cultura material. Para tal, utilizaremos como base os trabalhos de Lindow (1994; 2000), Rydving (1990), Salo (2014) e Langer (2016). Por meio de suas teorias, investigaremos os papeís Ukko, Horagalles e Thor em seus respectivos sistemas mitológicos, embasando-nos nos métodos de investigação do comparativismo e também, em segunda instância, da arqueologia e cultura material. Vale ressaltar que, de maneira complementar, utilizaremos da arqueologia quando possível, com o intuito de manter o diálogo entre vestígios materiais encontrados nas regiões e territórios onde nórdicos, sámi e finlandeses habitaram. Nós visamos, com isso, não perder de vista uma possível conexão entre as fontes literárias e a cultura material.

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CAPÍTULO I: THOR, O DEUS NÓRDICO DO TROVÃO

1.1 O deus Thor

Thor era o deus germânico do trovão. Dentre suas características principais figuravam sua extrema força e seu poder de controlar o clima e as manifestações meteorológicas. Era, portanto, o mais forte dentre os deuses æsir30 e, provavelmente, a divindade mais importante para o paganismo nórdico (LANGER, 2015, p. 496; LINDOW, 2002, p.290). Era filho do deus Odin com a giganta Jörð31 e esposo de , com quem teve três filhos, todos portando nomes das manifestações do poder de Thor: Módi (raiva), Magni (força) e a filha Thrúd (poderosa). Sabe-se pouco sobre Sif, exceto que era muito bela e possuía um lindo cabelo dourado. Hilda Davidson (1990, p.84) trabalha com a hipótese de que o cabelo de Sif, dourado, abundante e brilhante, seja um símbolo para a abundância e cor do milho. Ela seria, então, uma antiga deusa da fertilidade cujo casamento e união com uma divindade da trovão, como Thor, faria sentido. O raio desce dos céus, atinge a terra, traz chuvas que penetram os campos e aumentam a fertilidade, ajudando nas boas colheitas (DAVIDSON, 1990, p. 84). Nas fontes escandinavas, outros nomes utilizadas para Thor eram Vingthórr (Thor das batalhas), Hlórridi (o grande deus do temporal) e Ása-Thórr (o deus Thor) e Oku-Thorr (epíteto mais polêmico, conforme veremos adiante) (LANGER, 2015, p. 496). Em seu clássico estudo, Jan de Vries (1962, p. 618) esclarece duas possibilidades para o nome do deus em nórdico antigo, que seriam Þórr e Þunnar. Seu nome ocorre em uma série de outros idiomas em que também era utilizado para designar o trovão: em inglês antigo, Þur, Þunnor ou Þor; em finlandês, Turisas (formado por Tūr + isä, que significa pai); em antigo alto- alemão, Donar; em gaulês, Tanaros; em faroês, Tora e no latim, Tonare. A origem de seu nome seria do proto-germânico *ÞunraR (DE VRIES, 1962, p.618). É importante ressaltar que esses nomes não eram originalmente empregados para designar “aquele que faz trovejar”, ou seja, o sujeito da ação, mas apenas o substantivo “trovão”. É muito possível que o martelo de Thor esteja ligado a este ato e que quando, nas narrativas míticas, o deus é descrito arremessando seu martelo, ele está na verdade criando raios e trovões. Contudo, o martelo e seu simbolismo do trovão estão ligados também às

30 A teologia nórdica envolvia uma série de divindades, divididas entre dois grupos: os e os æsir. Neste segundo grupo estavam Thor, Odin, , Baldur e Tyr (LANGER, 2018, p.593). 31 Uma giganta/deusa que constitui uma complexa figura da mitologia nórdica. Seu nome é um sinônimo para Terra. Aparentemente, trata-se de uma deida ctônica cultuada desde antes da Era Viking, sendo uma espécie de personificação da Mãe-Terra (Maltauro, 2015, p.272). 37

questões de fertilidade que remetem ainda à Idade do Bronze. Nesse período, Thor muito provavelmente não era somente uma divindade dos raios e trovões, mas também das chuvas e ventos, o que preencheria sua função enquanto deus da fertilidade (SIMEK, 2007, p.322). Thor detinha também o título de campeão dos deuses æsir e sua força extrema sem dúvidas é tão digna de atenção quanto sua relação com os trovões. Aliás, graças a essa força é que o deus se apresenta como especialista em matar e eliminar os gigantes, principais inimigos dos deuses na mitologia nórdica. Em linhas gerais, todos os mitos de Thor envolvem de uma maneira ou outra a morte dos gigantes pelo deus. Além de defender esse ponto de vista, John Lindow (2002, p.287) faz uma pontual recapitulação de acontecimentos dessa espécie: Thor duelou contra , o mais forte da raça dos gigantes e o matou; matou o gigante Geirröd e suas duas filhas; eliminou o gigante Thrym e sua família inteira; quando vai à terra dos gigantes, acaba por matar ; assassina também o gigante que se ofereceu para construir a muralha de Ásgard; e, por fim, lembremos de sua luta com o mais poderoso dos gigantes, Jörmunganðr, a serpente do mundo. Muitas das vezes esses gigantes tentam atrair Thor desarmado para suas terras, na esperança de que assim possam vencê-lo mas, após o desenrolar da narrativa, o deus sempre acaba conseguindo recuperar seu martelo e matando seus inimigos logo em seguida. Na maior parte do tempo ele deliberadamente parte em busca desses embates, superando os gigantes sem grandes problemas, sobretudo se as situações colocarem à prova diretamente a questão de sua força (DAVIDSON, 1990, p.89). Essa quase obsessão de Thor por matar gigantes é explicada por muitos autores como sendo meramente o cumprimento de seu papel enquanto campeão e defensor dos deuses e homens. Hilda Davidson (1990, p.89) afirma que Thor era o deus chamado para proteger ou consagrar vários aspectos da vida humana e da comunidade. No que diz respeito a esse sua tarefa para com outros deuses, é por isso que muitas vezes nas narrativas mitológicas Thor “está no leste, matando trolls/gigantes” e, quando um perigo eminente surge em Ásgard o deus, abruptamente e sem mais delongas, aparece pronto para eliminar qualquer gigante que tenha penetrado no reino dos deuses indesejavelmente. Contudo, apesar de ser o protetor de Ásgard, Thor não travava essas batalhas apenas em prol dos deuses. Seus mitos enfatizam claramente sua posição de defensor dos homens (alda bergr) (DAVIDSON, 1990, p.91; 1994, p.80) e, por isso, Thor era tido pela comunidade como protetor dos homens, mantenedor da ordem e inimigo de qualquer entidade que a ameaçasse (SIMEK, 2007, 317). Nesses aspectos, é possível perceber a figura de Thor como sendo

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essencialmente uma divindade celeste e climática que, mais do que qualquer outro deus, assegura e preza pelo bem estar da comunidade, atendendo-a em todos os seus aspectos de forma a manter a lei e a ordem. Assim, segundo Langer (2015, p. 500), Thor atendia desde os fazendeiros e colonizadores que necessitavam de chuvas e fertilidade de seus campos, até marinheiros e viajantes em busca jornadas seguras e climas favoráveis. Podemos perceber sua proximidade com os humanos também no fato de que Thor é o único deus a quem, nas narrativas mitológicas, é atribuída uma frequente companhia de aventuras humana, Thjálfi. A história de como o humano veio a se tornar um fiel companheiro de Thor, o que foi fruto de uma incrompreensão humana frente a uma ordem divina, encontra- se no Gylfaginning da Edda em Prosa32. John Lindow (2002, p.285) enxerga, na ocasião em questão, uma falha humana na capacidade de executar um ritual corretamente, o que a princípio gera fúria no deus. Uma vez amedrontados, imploram pela piedade divina que é, de fato, concedida. O resultado seria, então, um relacionamento mais próximo entre homens e deuses. Para fins ilustrativos, vale destacar que, mesmo depois do conturbado acontecimento entre Thor e a família do fazendeiro, Thjálfi apresenta posteriormente um papel imprescindível em duas narrativas específicas, que seriam a jornada de Thor para Utgarða- e em seu duelo contra o gigante Hrungnir. Thor se consagra, então, como protetor último dos deuses e homens33. Segundo as fontes escritas, a moradia de Thor era Þrúðheimir ou Þrúðvangr, ambos nomes que denotam sua força e significam, em nórdico antigo, “casa do poder” (LANGER, 2015, p. 499; SIMEK, 2007, p.329) ou então, segundo Lindow (2002, p.292), respectivamente “mundo da força” e “campos da força”. O deus é relatado se locomovendo em uma carroça puxada por seus dois bodes, Tanngrísinir e Tanngnjóstr e, por isso, é chamado em algumas fontes literárias de “senhor dos bodes”, como na estrofe 20 do poema eddico Hymyskviða

32 Na ocasião, Thor viajava com Loki e os dois encontram a casa de um fazendeiro que oferece abrigo pela noite. Thor mata seus dois bodes e os cozinha, oferecendo-os para o fazendeiro e seus filhos. Thor diz para que arremessassem os ossos dos bodes dentro de suas peles, que estavam ali perto. Thjálfi, filho do fazendeiro, pega uma faca e corta um dos ossos para que conseguisse comer a medula. Na manhã seguinte, quando Thor levanta seu martelo para reviver seus bodes, um deles está manco. Como compensação ele fica com os dois filhos do fazendeiro, Thjálfi e sua irmã Röskva, que não aparece em outras narrativas. 33 “He [Thor] was struggling for mankind, and for the precarious civilization which men had wrested from a hard and chaotic world. If we see his doings in myths in this light, then they harmonize with the picture given in the prose literature of a god who supported law, helped men to build and to cultivate, to marry and bring up children, and protected them in their journeyings. He guarded not only the walls of , but the humbler homesteads of Norway and Iceland, marked out and hallowed by his sacred fire and his hammer sign; he safeguarded their oaths with one another, and invested them with the sanctity of his temple and holy place. As the sky god, he drove his chariot over the circuit of the heavens, and could at will grant the traveller desirable weather and favorable winds. In Asgard he kept the goddesses of peace and plenty safe, so that they could grant their benefits to mankind; on earth, in the stony and storm-beaten lands of the north, he battled with the monsters of cold and violence that unceasingly threatened men’s security” (DAVIDSON, 1990, p.91). 39

(LANGER, 2015, p.498). Segundo Simek (2007, p.310), os nomes dos bodes de Thor foram ambos inventados por Snorri Sturluson34 e correspondem, respectivamente, a “rangedor de dentes” e “moedor de dentes”. Thor é dono do famoso martelo , mas também de outros artefatos, estes um pouco menos explorados ao longo dos mitos. Ele possui também um cinto mágico capaz de aumentar sua força e também um par de luvas de ferro (LANGER, 2015, p.498). Conforme o próprio nome diz, megingjörð, ou “cinto da força”, é responsável por aumentar ainda mais a já sobrehumana força de Thor. Como Snorri Sturluson é o primeiro a mencionar o cinto nas fontes literárias, Simek (2007, p.210) afirma que pode se tratar de uma invenção deliberada, surgida portanto apenas do século XIII. O caso de suas luvas de ferro, as járngreipr, é semelhante: elas também aparecem mencionadas pela primeira vez na obra de Snorri. Segundo ele, é somente com a ajuda das luvas que ele seria capaz de levantar e arremessar seu martelo (SIMEK, 2007, p.178). Uma das mais clássicas abordagens sobre Thor foi feita por Georges Dúmezil. Ainda muito retomadas até hoje, como objeto de crítica e questionamento ou como argumento de validação, as hipóteses elaboradas em sua obra continuam a ressoar. Basicamente, o autor propôs que as sociedades indo-europeias (às quais os germânicos e nórdicos pertencem) teriam em suas religiões e mitologias uma divisão tripartida que seria reflexo de seu funcionamento social, logicamente também tripartido. A primeira função seria delegada à aristocracia, cujas divindades estariam relacionadas à arte, à poesia e à magia e a ela pertenceriam, portanto, os deuses soberanos. As divindades da segunda função relacionavam- se à guerra, ao militarismo e à força física. Por fim, a terceira função estava ligada à agricultura, à fertilidade e ao funcionamento das necessidades básicas da comunidade, fazendo parte dela os deuses da fertilidade (Dumézil, 1973). Dumézil (1973, p.66) começa sua descrição de Thor retomando o deus germânico *Þunraz que havia sido descrito por Tácito35 e que, na ocasião, foi comparado ao herói grego Hércules. Dumézil enxerga Thor enquanto uma continuidade de *Þunraz: sua extrema força permaneceu, bem como seu papel de exterminador de gigantes. O autor ressalta, ainda, uma série de paralelos entre o deus nórdico e Indra, como a descrição de sua força sobrenatural, seu apetite quase infindável e sua barba vermelha. Um dos maiores paralelos residiria no fato de que Thor empunha seu martelo mjölnir e Indra uma arma semelhante, a vazra. Em ambos os casos essas armas celestiais utilizadas para eliminar bestas estariam associadas ao estrondo

34 Autor a quem comumente se atribui a autoria da Edda em Prosa, dentre outras obras. 35 Germânia, escrito no século I. 40

e explosão dos raios e trovões por elas gerados, característica que teria sido a responsável por originar o próprio nome desses deuses (DUMÉZIL, 1973, p.66). O paralelo entre Thor e Indra foi perpetuado posteriormente também por Hilda Davidson, principalmente no que diz respeito às questões de representação de força, vitalidade e vigor (1990, p.73). Enquanto atribui a primeira função da tripartição ao deus Odin36, Dumézil (1973, p.69) ressalta as características bélicas e guerreiras de Thor utilizando os mitos em que o deus elimina os gigantes, visando explicar os motivos de enquadrar o deus dos trovões na segunda função. O duelo entre Thor e o gigante Hrungnir seria um dos símbolos máximos das atribuições guerreiras do deus, ressaltando também a participação de seu ajudante humano, Thjálfi. Parte da vitória seria graças a seu escudeiro, que, além de ter eliminado com as próprias mãos o parceiro de Hrungnir (uma espécie de boneco animado que havia sido construído a partir do barro) também foi o responsável por ludibriar o gigante com um falso conselho que possibilitaria que Thor o atingisse sem defesa. Além de ressaltar os atos de Thjálfi na narrativa em questão, Dumézil (1973, p.70) defende que seu ato de matar uma réplica do gigante possa ser o vestígio narrativo de um rito de iniciação guerreira. Segundo o autor, Thjálfi, que até então não carregava qualquer traço de um guerreiro (lembremos que era filho de um fazendeiro com quem Thor se encontrou) é obrigado a encarar seu primeiro inimigo que era, no contexto do mito, uma réplica do inimigo que ninguém menos que o deus guerreiro enfrentaria. Ou, ainda, defende Dumézil (1973, p.70), é possível que o próprio Thor fosse o símbolo de um rito de iniciação da classe guerreira, já que no começo da narrativa analisada Snorri Sturluson conta que “foi a primeira vez que ele [Thor] tinha tido a chance de participar de um duelo regulamentado”. Visto que Thor, sem dúvidas, já era um consolidado e inquestionável guerreiro, pode ser que o mito revelasse um rito de iniciação para adentrar outro patamar, ainda mais avançado, da classe guerreira. No que diz respeito às características agrárias e de fertilidade na figura de Thor, Dumézil (1973, p.71-72) argumentou que elas de fato abalam o centro de gravidade em volta de sua figura que, defendia, era composta por traços guerreiros. O autor, então, se esforça para explicar que se tratam de deduções sem garantias certas, construídas em cima de fatos que,

36 Dumézil defende que o poema eddico Hárbardðsljóð, em que Odin, sob disfarce, mantém uma disputa verbal com Thor, não retrata uma disputa de cultos rivais entre os adoradores de Thor e os de Odin, visando ressaltar os feitos de um deus em detrimento dos do outro. Segundo o autor, os poetas apenas utilizaram essa moldura da ‘disputa verbal’ como ferramenta eficaz para evidenciar as diferenças da natureza de cada um dos dois deuses e dos serviços peculiares que ofereciam dentro da mesma estrutura teológica. Assim, Dumézil se embasa no poema como fonte fidedigna para diferenciar o culto a Thor do culto a Odin (DUMÉZIL, 1973, p.71). 41

por outro lado, são muito bem conhecidos. Para isso, Dumézil defende que os povos sámi teriam feito empréstimos de antigos cultos agrários dos noruegueses37, importando a figura de Thor e ressignificando-a dentro dos parâmetros de sua própria religião. Objetivando ressaltar essas divergências, o autor retoma a Edda, em que Thor é descrito como um homem no auge de sua juventude, e compara com os nomes conferidos ao deus por parte dos sámis, que insistem descrevê-lo de maneira oposta, ou seja, como um velho homem barbado38. O autor defende ainda uma extensão de tal influência sámi ainda no território sul da Suécia, onde os nomes para designar Thor retomam, todos eles, um culto sámi onde o deus do trovão era tido como divindade da fertilidade. Thor, nesse caso, concederia sol ou chuvas de acordo com a necessidade do solo e em seguida protegeria as colheitas39. Por fim, Dumézil (1973, p.72) encerra sua argumentação reconhecendo que Thor aparentemente oferecia aos camponeses suecos os elementos atmosféricos necessários para que boas colheitas fossem obtidas. Tal fato, contudo, não permitiria afirmar que os aspectos de fecundidade e fertilidade são parte essencial do conceito divino que cabia a Thor no quadro sócio-mitológico daquele povo. Segundo o autor, era somente por meio das chuvas, resultados das batalhas atmosféricas vencidas graças ao seu martelo, é que Thor contribuía de alguma maneira com a agricultura, mas não por qualquer poder direto sobre a germinação. Certamente é compreensível, explica Dumézil (1973, p.73), que os sámis e camponeses pagãos da área da Uplândia40 tenham retido apenas o aspecto final e conclusivo das batalhas de Thor, que seria a fecundação, pois era esse aspecto mitológico que afetava diretamente suas vidas, estas relacionadas ao plantio e à colheita. Ainda assim, para Dumézil, nem mesmo este aspecto de Thor estaria tão relacionado à fecundidade e fertilidade como acontece entre os deuses vanir. Ainda a respeito da influência escandinava nos cultos sámi por meio da figura de Thor, outra clássica contribuição foi a de Gabriel Turville-Petre (1975). O autor afirma não ser

37 “The superstitions of modern Scandinavian folklore, survivals of old agrarian cults, and especially the fossil evidence that the Lapp loans have yielded in the skillful analysis by Axel Olrik of the ancient popular religion of the Norwegians – these have all tended to prove that in important layers of population Thor has been something more than a warrior” (DUMÉZIL, 1973, p.71-72). 38 “The names that are given him by the Lapps reproduce or translate Scandinavian names of a uniform type as little Eddic as possible: Hora Galles (i.e. Tor-Karl, ‘the Good-man Thor’, an appellation still known from popular song of the end of the Middle Ages), agja, ‘the grandfather’, adschiegads, ‘ the little father’ (name applied in the descriptions by Thomas von Westen), Toraturos bodne (a name noted by Skanke, the first word containing without doubt the name Thor and the second, ‘old man’, taken from Scandinavian bóndi ‘peasant, head of the family’) (DUMÉZIL, 1973, p.72, grifos do autor). 39 “In the South Sweden Thor, the thunder, is moreover called by the peasants go-bonden, ‘the good peasant’, korn- or åker-bonden, or korngubben, ‘the old man of grain, of the fields’” (DUMÉZIL, 1973, p.72, grifos do autor). 40 Uplândia é o nome dado a uma província histórica no território da atual Suécia. 42

surpreendente que os sámis tenham absorvido influência de seus vizinhos ao sul (os nórdicos), primeiro tendo adotado muitas figuras e entidades da mitologia e religião nórdica pré-cristãs e, em seguida, passando a desenvolvê-las e relacionarem-se com elas de acordo com sua própria religião e cultura. Porém, conforme o próprio autor observa, descrições da religião sámi são bem tardias (século XVII) e, mesmo trazendo características que remetem à sua antiga religião, as problemáticas cronológicas são inúmeras (TURVILLE-PETRE, 1975, p.98). Apesar dos obstáculos, seria possível detectar influências escandinavas na divindade sámi do trovão. Podemos mencionar o nome Hora galles que Turville-Petre (1975, p.98), em consonância com Dumézil (1973, p.72), afirma que advém de Þórr Karl, um nome alternativo para designar Thor. O autor alega que, também, alguns povos sámis o chamavam de Tor. Nessa perspectiva, Turville-Petre defende que os sámis haveriam importado Thor e outros deuses do panteão nórdico ainda na Idade do Bronze ou começo da Idade do Ferro mas que, inexplicavelmente, a divindade sámi dos trovões possui características que não" são encontradas nas fontes literárias escandinavas. Enquanto tais fontes conferem a Thor uma esposa e a nomeiam Sif, entre os sámis o deus do trovão é casado com Ravdna41 (TURVILLE- PETRE, 1975, p.98). O autor estende esse paralelo para a região da Finlândia, onde o deus do trovão Ukko era adorado. Além de seu nome também significar “homem velho”, o deus finlandês do trovão era casado com Rauni, um provável cognato do nome sámi Ravdna. Entretanto, há significativas diferenças entre o deus sámi dos trovões e o deus finlândes. Ao contrário dos casos de Thor e de Ukko, que se mostravam muito próximos aos seres humanos, Horagalles, o deus sámi do trovão, era temido e tido por perigoso. Este era representado nos tambores sámi, que eram utilizados em rituais, portando dois martelos; um em cada mão. Se o sacrifício apropriado fosse oferecido, ele enviaria os raios e trovões para longe com uma das mãos e, em seguida, com uso da outra mão, os direcionaria para os inimigos de seus adoradores. Mas a observância do sacrifício era de extrema importância para que o temido deus não fosse desagradado. Algumas fontes do século XVII indicam que uma das funções de Horagalles era matar os trolls que habitavam montanhas, pedras e lagos. Aparentemente, entre os domínios

41 Para o autor, apesar da diferença nos nomes, há paralelos do substantivo ravdna nos idiomas nórdicos. O autor elenca a possibilidade de relacionar a palavra ao norueguês raun, ao sueco rönn e ao islandês reynir (em inglês, ) todos designando uma espécie de árvore pertencente à família das rosáceas, chamada sorbeira (cujo nome científico é sorbus). Muito provavelmente, as pequenas frutas vermelhas dessas árvores eram sagradas para Ravdna. No mito de Thor contra o gigante Geirröð, o deus quase se afoga ao tentar cruzar um rio e só consegue se salvar porque se segura numa árvore desse tipo. Provavelmente a esposa de Thor teria sido em algum momento concebida na forma dessa árvore, à qual o deus se agarrava (TURVILLE-PETRE, 1975, p.98). 43

do deus constavam não apenas o trovão, mas também a saúde, a vida e a morte (TURVILLE- PETRE, 1975, p.98). Além de seus dois martelos, o deus sámi do trovão é retratado, por vezes, também com uma suástica42. Segundo Turville-Petre (1975, p.84), o símbolo em questão teria sido importado graças à influência de Thor, alegando que a suástica, juntamente dos símbolos do bode e do martelo, são os mais antigos atributos da divindade. O autor vai ainda mais além, afirmando que tais símbolos são provavelmente mais antigos que o próprio Thor e que cravações em pedras, datadas da Idade do Bronze, apresentam figuras humanas portando armas identificáveis como martelos ou machados43. Sobre os símbolos do bode e da suástica, Turville-Petre defende que bracteatas da Idade do Ferro mostram figuras humanóides montadas em bestas barbadas e com chifres; e que a suástica, cuja origem é o leste, deve ter sido introduzida no norte da Europa em tempos muito remotos, já que cravações em pedras e outros objetos da Idade do Bronze contam com a presença do símbolo (TURVILLE-PETRE, 1975, p.84). O modo como Turville-Petre e Dumézil lidam com a questão das influências de Thor sobre o deus Horagalles, ou, conforme podemos afirmar num âmbito mais geral, das influências escandinavas na religião dos povos sámis, retrata uma antigo tradição acadêmica. Esta tradição manifestava um etnocentrismo subjacente que insistia em atribuir à religião escandinava certa primazia e superioridade sobre a religião sámi, enxergada como primitiva44, ponto esse ao qual retornaremos posteriormente. Neste momento, ressaltamos que, mesmo divergindo sobre até que ponto iriam os aspectos de fertilidade de Thor, tanto Dumézil45 quanto Turville-Petre46 apontam para a relação do deus com os trovões e os fenômenos

42 Apesar de ter sido adotada como símbolo máximo do Nacional-Socialismo de Hitler, a suástica é um elemento muito mais antigo que a ascensão do nazismo e esteve presente nas mais diversas culturas do mundo, embora com um significado completamente diferente. Trata-se de um dos mais difundidos e antigos símbolos do mundo euro-asiático, tendo seu aparecimento notado desde os povos das estepes até as Ilhas Britânicas. No caso específico da Escandinávia, ela surge como variação do símbolo da espiral e conecta-se a motivos solares, ou então, cogita-se, está vinculada ao martelo do deus Thor - o formato da suástica remeteria ao martelo sendo girado – (LANGER, 2010, p. 8-9). 43 O autor enxerga no martelo e no machado símbolos de fertilidade (TURVILLE-PETRE, 1975, p.84). 44 “The religions of Scandinavians and Saamis have, for decades of scholarship, functioned as sources of analogies to explain elements in one another, For the study of Saami religion answers to questions about origins were sought in Scandinavian religion, while Saami religion has been seen by students of Scandinavian religion, as a preserver and a faithful witness of Scandinavian concepts and rites that had vanished in the times reflected in the literary sources” (RYDVING, 1990, p.58). 45 “His weapon is the hammer Mjollnir(...) it is the celestial weapon, the thunderbolt accompanying the ‘thunder’ which has furnished its name to the god”; (DUMÉZIL, 1977, p.66); “Thor appears from the sky with thund er and lightning” (DUMÉZIL, 1973, p.69). 46 “Thor, the thunderer, the most noble and powerful of the gods” (TURVILLE-PETRE, 1975, p.75). 44

meteorológicos. Turville-Petre, na questão da fertilidade47, aceita com menos relutância as informações trazidas por Adão de Bremen, admitindo que na época de escrita da obra (por volta de 1075 d.C) Thor poderia estar sendo adorado pelos suecos como um deus da fertilidade. Essa tendência foi fortemente perpetuada nas obras de Hilda Davidson (1969; 1990; 1994), que elaborou com assídua frequência descrições de Thor ressaltando seus traços de força, seu apetite e vigor, sua barba vermelha e, sempre, sua relação com os raios e trovões (1990, p.73). A autora afirma que os mitos envolvendo Thor trazem como principais temáticas seus embates contra os gigantes e a enfatização de seu poder sobre o mundo natural, o que inclusive serve para distinguir primordialmente os seus mitos daqueles de Odin48. Segundo Davidson (1994, p.81), os mitos englobando Thor apontam para o deus como estando associado aos ventos e tempestades e, acima de tudo, aos raios e trovões. Podemos perceber esse viés da autora em seu próprio capítulo sobre Thor no livro Gods and myths of northern Europe, no qual o capítulo dedicado a Thor chama-se The Thunder God. Na obra em questão o poder do deus sobre os elementos naturais é mais uma vez afirmado, com o acréscimo de que, além de exercer o controle sobre os céus, Thor cuidava do bem-estar da comunidade em vários aspectos49. Hilda Davidson também foi uma das primeiras a resgatar um importante epíteto do deus, que consta somente na Edda em Prosa; o nome Oku-Þórr. Segundo a autora, Snorri Sturluson derivou este nome do verbo aka que, em nórdico antigo, significa “conduzir”. Visto isso, o nome significaria Thor, o Condutor; e o barulho do deus cruzando os céus com sua carruagem seria um ato criador dos trovões. Esta interpretação defendida por Davidson estaria de acordo, alega, com a antiga concepção de um deus que atravessa os céus com sua carruagem e que, em muitas religiões, faz parte do conceito de um deus do sol (Davidson, 1990, p.76). Esta concepção do deus do trovão enquanto condutor de uma carruagem seria muito antiga no norte europeu. Davidson (1990, p.76) ilustra com exemplos oriundos dos povos sámi, os quais teriam emprestado dos nórdicos algumas palavras para “trovão”. Estas palavras

47 “In his description, Adam showed that, in the eyes of the Swedes of his age, it was largely Thor who brought fertility to the crops. Whatever his origin, Thor was at this time a fertility god” (TURVILLE-PETRE, 1975, p.93). 48 Whereas the myths of Odin are concerned largely with the acquisition of wisdom and the fates of rulers and kingdoms, ending with the fall of his own realm of Asgard, those associated with Thor are of a different kind. They emphazise his power over the natural world and his many contests with supernatural adversaries in his position as protector of the gods and of mankind” (DAVIDSON, 1994, p.80). 49 “(...) we shall see that his [Thor] power extended far, and that he was the supreme god not only of the stormy sky, but also over the life of the community in all its aspects” (DAVIDSON, 1990, p.75). 45

eram utilizadas para designar simultaneamente “trovão” e “veículo de rodas” 50. A autora desenvolveu um olhar mais abrangente sobre Thor e não congelou sua imagem como mero deus dos trovões: para ela, Thor teria especial controle por todo o domínio dos céus, sendo o deus responsável por regê-los. Ressaltando esse controle do deus sobre os céus e tempestades, Davidson (1990, p.78) concluiu que muito provavelmente Thor detinha um poder especial sobre as viagens e jornadas marítimas. A ele, então, os marinheiros rezariam pedindo por um clima atmosférico seguro durante a viagem e, igualmente, por ventos favoráveis51. Davidson (1969, p.57) afirma que os cultos ao deus eram praticados em densas florestas e que os carvalhos52 eram extremamente associados a Thor53, talvez por serem árvores frequentemente atingidas por raios. Um ponto relevante defendida pela autora é o de que o domínio dos céus teria pertencido primeiramente a Odin, considerando suas características enquanto deus ligado à morte, às águias, aos corvos e, em última instância, ao próprio ato de voar em si, por meio do qual o deus era capaz de olhar tudo o que acontecia em . Somente com o declínio do culto a Odin é que o deus do trovão pôde começar a absorver algumas de suas características e assumir, então, o papel mais centralizado como sendo um deus dos céus (DAVIDSON, 1969, p.56-57). Em suma, notamos que Davidson percebe Thor como um deus intimamente ligado aos raios, trovões e tempestades. Uma vez associado a todos esses fatores, nada mais lógico do que relacioná-lo, por consequência, à fertilidade das plantações: Davidson (1990, p.84) argumenta que há uma inquestionável conexão entre o deus dos trovões e a fertilidade da terra. Nessa perspectiva, os raios surgiriam como aviso da chuva que estava por vir, chuva esta que, após cair, traz mais força e vivacidade às plantações, impulsionando a colheita. A ligação entre Thor e a terra residira não somente no trovão, que parte dos céus até tocar a terra, mas também, conforme mencionado anteriormente, no próprio nome de sua mãe Jörð, cujo nome significa “terra” (DAVIDSON, 1990, p.84; LANGER, 2015, p.496). A imagem e a extensão do domínio do deus Thor metamorfosearam-se, para Hilda Davidson, de um deus dos raios e trovões para um deus responsável pelo bem-estar da comunidade e pela fertilidade. Tais atributos elevam os poderes e domínios que podemos

50 Conforme Davidson (1990, p.76), as palavras sámi para se referir ao trovão (atsa-raite, raiððe e algumas outras) teriam sido importadas do nórdico antigo reið. 51 “Thor has become a god with special dominion over the realm of the sky and over storms, had special power over sea journeys. His worshippers prayed for fair weather and favourable winds(…)” (DAVIDSON, 1990, p.78). 52 Nome científico: Quercus. 53 “As a channel through which the power of the sky god might reach down to the world of men, it is understandable that the mighty oak tree, itself a splendid symbol of age, strength and endurance, came to be considered specially sacred to the thunderer “ (DAVIDSON, 1990, p.87). 46

destacar para Thor, que se evidencia, então, como um deus dos céus responsável por ampla atuação na sociedade54. Neste aspecto, uma das mais inovadoras afirmações da autora diz respeito à barba de Thor que, segundo ela, possuía duas funções. A primeira, a respeito da descrição recorrente de sua barba enquanto vermelha, poderia estar atrelada à cor avermelhada dos céus que precedem uma tempestade de raios. A segunda seria o elo entre sua barba e a criação ou direcionamento dos ventos. Nas fontes primárias literárias, afirmações que possibilitariam essa interpretação são encontrados na Eiríks Saga Rauða, na Flóamanna Saga e no Flateyjarbók (DAVIDSON, 1990, p.85)55. Este aspecto foi posteriormente destrinchado e explorado em detalhes por Richard Perkins (2001). Perkins começa seu estudo explicitando a suma importância que o vento desempenhava nas incursões e viagens dos povos vikings, seja daqueles que viajaram por rios (principalmente no rio Dnieper), rumo ao leste da Europa, seja daqueles que se aventuraram pelos mares e chegaram à Islândia, Groenlândia, e até mesmo à América do Norte. Apesar de contarem com remos, nos barcos vikings, os drakkar, o vento era a principal força locomotiva (PERKINS, 2001, p.5).

Figura 3: Mapa das principais rotas de navegação dos vikings. Enquanto alguns acabaram por invadir as Ilhas Britânicas, outros optaram por ir rumo ao leste europeu, por meio dos grandes rios, até territórios

54 Como exemplo para ilustrar a extensão do poder de Thor e sua importância na comunidade, Davidson (1990, p.84) utiliza os usos dados a miniaturas de seu martelo, mjolnir. Este estava presente em cerimônias de nascimento, casamento, morte, funerais (enterros ou cremações), posse de armas, banquetes, viagens, jornadas, exploração e demarcação de novas terras e, por fim, o juramento feito entre homens. 55 Sobre a barba de Thor, Hilda Davidson diz: “The connexion between the red beard of Thor and the raising of the Wind appears to be emphasized [in Eiríks Saga Rauða]. Perhaps the old explanation, that the beard denoted the lightning, is nearer the truth than the popular suggestion that Thor’s beard made him the typical unshaven Viking. The colour of the beard may have been based on the red sky which foretells a storm” (DAVIDSON, 1990, p.85). 47

pertencentes às atuais Rússia e Ucrânia. Outros nórdicos terminariam por colonizar a Islândia e tentar fazer o mesmo na Groenlândia e até mesmo em Vinland, que se encontra onde atualmente é o Canadá. Fonte: http://twixar.me/7lMK. Acesso em 09/10/2018.

Durante as navegações, deve-se compreender, o vento era de extrema importância, mas simultaneamente imprevisível e nada confiável. Ele era vital nessas ocasiões e tratava-se de uma das forças naturais mais poderosas conhecidas pelo homem medieval. O vento favorável era algo altamente desejável e trazia consigo inúmeras vantagens; um vento em direção oposta, contudo, representava vários contratempos, adversidades e perigos. Provavelmente o vento era visto pelos nórdicos como uma entidade incompreensível, caprichosa, enigmática e imprevisível. Inaptos a manipular esta manifestação tão imprescindível em suas vidas e feitos, nada mais lógico do que atribuir o controle dos ventos a um deus já relacionado às tempestades, raios, trovões e outras questões climáticas (PERKINS, 2001, p.9-10). Fazendo uso de fontes literárias como a Floámanna saga, a Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum, o Landnámabók e principalmente a Rögnvalds Þáttr ok Rauðs56, Perkins demonstra a importância social e religiosa conferida ao vento nessas obras. O autor aponta como, em diferentes construções narrativas, os protagonistas acreditavam que o deus Thor de alguma maneira regia o controle sobre os ventos57, incluindo estórias com personagens supostamente cristãos58. Houve um grande esforço do autor para conectar as informações levantadas nesses materiais literários a vestígios arqueológicos, fundamentalmente a uma estátua de Thor em miniatura encontrada em Eyjafjörður, localizado em Eyrarland, território do norte da Islândia. A estátua em questão é feita de bronze e mostra uma figura humanoide, nua, sentada com as costas eretas em uma espécie de banco. Em sua cabeça, nota-se o que aparenta ser um

56 Há duas versões preservadas da Rögnvalds Þáttr ok Rauðs. Uma delas existe enquanto unidade narrativa completamente separada e isolada textualmente de outras, no manuscrito chamado AM 557. O mesmo manuscrito contém outros onze textos, também constituindo narrativas isoladas. O manuscrito foi escrito por Ólafur Loftsson em algum período entre 1420-1450. A outra versão da narrativa está fragmentada em quatro partes espalhadas pela Ólafs saga Tryggvasonar in mesta, composta por volta de 1300 (PERKINS, 2001, p. 28). 57 Em sua Gesta Hammaburgensis, Adão de Bremen descreve uma estátua do deus Thor no templo de Uppsala oferecendo, em seguida, uma lista com os principais atributos do deus. Nesse moment o, descreve que ‘Thor preside sobre o ar (...)’ (PERKINS, 2001, p. 21). Na Flóamanna saga, o herói Þorgils Þórðarson abraça o cristianismo e começa a ser perseguido por Thor, que aparece em um de seus sonhos ameaçando-o com tempestades. Ainda assim, Þorgils decide partir numa viagem marítima rumo à Groenlândia. Apesar de sair com o um vento que parecia favorável, o mesmo desaparece assim que a terra some de vista e o barco, assim, fica estagnado. O barco fica parado por mais de três meses, até que água e comida começam a faltar (PERKINS, 2001, p.18). Na Rögnvalds Þáttr ok Rauðs é descrito como Thor faz o vento surgir ao assoprar sua barba (PERKINS, 2001, p.43). 58 No Landnámabók há a ocorrência do personagem Helgi magri Eyvindarson, um cristão que, em momento s difíceis e especialmente durante viagens marítimas, recorria a Thor (PERKINS, 2001, p.24). 48

chapéu ou capacete em formato cônico59 e seus olhos, orelhas e nariz são fortemente ressaltados na representação. É possível notar um bigode cravado de forma enfática, se espalhando para as bochechas e terminando em curvas nas pontas. A boca aparenta estar aberta. No queixo notamos uma longa e densa barba descendo e dividindo-se em duas partes as quais o homem agarra cada uma com uma das mãos. Abaixo da altura de suas mãos a barba se transforma num objeto de três pontas (PERKINS, 2001, p.85).

Figura 4: A estátua de Thor encontrada em Eyrarland. Frente e costas. Percebemos que a figura humanóide ali retratada está fazendo uso de algum apetrecho de formato cônico em sua cabeça. Além disso, ela possui um longo bigode que se mescla ao instrumento cujo término está em sua boca. Pelo formato, este objeto ou trata-se de Mjolnir, o martelo de Thor, ou algum instrumento de sopro. A figura o segura com as duas mãos e está sentada em uma espécie de banco. Fonte: http://twixar.me/NlMK. Acesso em 09/10/2018.

Perkins (2001, p.126) defendeu que o autor da estátua de Eyrarland buscou representar vários dos tradicionais traços atribuídos à figura de Thor, alguns deles identificáveis, inclusive, nas fontes literárias. O nariz largo, o capacete cônico, o bigode e os olhos grandes que encaram são todos elementos que possibilitam reconhecer “prontamente” o deus na estátua. O instrumento em seu colo seria o próprio martelo mjolnir e ao ser retratado com a boca aberta Thor estaria soprando em direção à própria barba, o que seria uma representação material da frase encontrada na Rögnvalds Þáttr ok Rauðs (PERKINS, 2001, p.132). Com isso, Richard Perkins defende que há evidências literárias e materiais de que Thor seria o senhor dos ventos, responsável por criá-los ao assoprar sua barba, ou então de direcioná-los de acordo com sua vontade. Tal fato estaria atrelado, ao menos entre os

59 Na verdade, trata-se de um gorro feito de lã ou então de couro, que era arrematado com pele. 49

islandeses, à concepção de Thor como um deus dos marinheiros e a estátua em questão pode muito bem se tratar de um amuleto para trazer bons ventos (PERKINS, 2001, p. 157). Uma perspectiva mais recente, que ainda tem causado grandes reviravoltas nos estudos envolvendo o deus Thor, encontra-se disseminada nos trabalhos de Declan Taggart (2015; 2017a; 2017b). Investigando principalmente fontes literárias como os poemas eddicos, a Edda em Prosa e alguns poemas escáldicos60, principalmente o Haustlöng, Taggart faz uma polêmica e contundente afirmação: segundo o autor, Thor, ao menos nas fontes em grande parte islandesas por ele investigadas, não se encontra tão intimamente conectado aos raios e trovões a ponto de que possa ser visto como um “deus do trovão”61. Portanto, segundo Taggart, nas narrativas mitológicas envolvendo Thor, o único de seus atributos frequentemente ressaltado de maneira clara como sendo um elemento de identificação exclusivo do deus é a sua força extrema (TAGGART, 2015, p.56). O autor argumenta que a força sobrenatural de Thor permaneceu nas fontes literárias por ser um recurso narrativo muito mais flexível e interessante do que uma relação com raios e trovões. A força de Thor o possibilita ser o foco do desenrolar narrativo em diversas situações, que construíram, então, o enredo das estórias em torno da força do deus. Essa força se apresentava, nos desdobramentos de suas aventuras, como o próprio elemento chave que possibilitaria o fechamento e resolução dos conflitos. A força de Thor, portanto, suscitava a construção de tramas atraentes ao público (TAGGART, 2015, p. 55). O vínculo do deus com os raios e trovões, em contrapartida, teria se mostrado como meramente superficial nas obras em questão62. O aparecimento de raios e trovões relacionados à figura de Thor nas fontes literárias se daria apenas como expressões e manifestações de seu poder e força, e não de um domínio específico do deus sobre esses fenômenos (TAGGART, 2015, p.213; p.215).63 Contudo, o autor não descarta a possibilidade de que Thor estivesse relacionado a

60 Taggart também faz uso de fontes literárias não islandesas, como a Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum, de Adão de Bremen e a de Saxo Grammaticus. O autor também faz um estudo onomástico de Thor e seu martelo mjolnir, bem como algumas considerações sobre estudos toponímicos envolvendo o deus. Taggart também usa, embora muito pontualmente, fontes iconográficas como a Pedra de Altuna. 61 “(...) in terms of Þórr’s memory advantage in transmission, thunder was not a central prop but a superficial appendage” (TAGGART, 2015, p.212). 62 “(...) the wide range of sources that have been consulted have shown that thunder and lightning could nove have played a more than superficial role in the transmission of Þórr and narratives about Þórr in Iceland of outside of it” (TAGGART, 2015, p.199). 63 “Even the most reliable evidence for an indigenous connection to thunder and lightning, in Haustlöng, sketches it as an expression of power” (TAGGART, 2015, p.213, grifos do autor); “(…) thunder and lightning, whether used in conjunction with Þórr or not, are generally a manifes tation of power or a source of sensory pageantry, embellishing the main action, rather than acting as an impetus to narrative or inference -making” (TAGGART, 2015, p.215). 50

outros fenômenos naturais. Analisando a representatividade do deus nas fontes literárias, Taggart (2017, p.100) elenca uma série de narrativas64 em que o deus aparece como responsável direto por desencadear distúrbios cosmológicos e outros tipos de calamidades naturais. O poema escáldico Haustlöng, ao fazer uma descrição dos movimentos de Thor em sua carruagem, provavelmente descreve um embalo sísmico forte o bastante para ser identificado como terremoto ou deslizamento de terra. Taggart reconhece que no mesmo poema há de fato uma passagem fazendo alusão a trovões, mas esta seria, segundo ele, uma descrição do barulho feito pela carruagem de Thor e nada que aponte para uma manifestação direta do trovão causado pelo deus (TAGGART, 2017, p.103). Ainda buscando defender um vínculo entre Thor e outras calamidades, o autor sublinha um trecho da Þrymskviða em que sua movimentação é ilustrada tida por fazer ‘as montanhas racharem e a terra queimar em chamas’. Fica muito claro para Taggart (2017, p.110) que há uma relação entre Thor e estes outros fenômenos de calamidades naturais. Ainda assim, o pesquisador defende veementemente que não se trata de um domínio regido ou governado por Thor, mas de recursos narrativos utilizados pelos poetas propondo enfatizar para sua audiência o tamanho da força e dos poderes de Thor. Para atingir esse fim, nada melhor do que fazer uso de figuras de linguagem que seriam acessíveis a esse público por fazer parte de sua realidade; lembremos que esses poemas foram escritos na Islândia, local frequentemente assolado por terremotos e erupções vulcânicas (TAGGART, 2017a, p.117). De qualquer maneira, Taggart faz uma crítica ferrenha das fontes primárias e recusa que Thor figure nelas enquanto um deus do trovão, mostrando a fragilidade e fluidez desse vínculo. O pesquisador, contudo, não desconstrói sem deixar algo novo no lugar e lança mão da hipótese de que Thor era visto em relação com terremotos, deslizamentos de terra e erupções vulcânicas. Essa perspectiva sem dúvidas representa novos caminhos a serem explorados na temática sobre Thor e a representatividade das calamidades e fenômenos naturais na poesia nórdica medieval. Outras pesquisas atuais sobre Thor são oriundas do finlandês Frog (2018a; 2014; 2011). Frog elege uma metodologia amplamente comparativa, colocando elementos da religião nórdica pré-cristã em comparação com tradições bálticas, sámis e fínicas. Estes grupos étnicos possuiriam traços mitológicos e folclóricos em comum, podendo ser agrupados, portanto, dentro de uma definição extra-étnica, chamada “circum-baltica”. Como unidade comparativa,

64 Segundo o autor, Thor está relacionado a fenômenos naturais nos textos Haustlöng, Lokasenna, Þrimskviða e Hallmundarkviða. No poema Lokasenna, contudo, o responsável pelos terremotos é Loki (TAGGART, 2017a, p.100). 51

Frog elege as narrativas classificadas como ATU 118B (ATU= Aarne-Thompson-Uther, de acordo com as classificações sistematizadas no livro Types of International Folk Tales) (UTHER, 2004). O que essas narrativas apresentam em comum são certos padrões e motivos temáticos, que, apesar de similares, não podem ser resumidos ou reduzidos a uma única forma ideal. Algumas de suas características, conforme elencado por Frog (2014, p.123), são: os inimigos do deus do trovão são descritos como tendo medo dos trovões; um demônio (ou figura análoga) rouba, do deus do trovão, seu instrumento criador de raios/trovões (no caso de Thor, seria seu martelo mjolnir) enquanto ele dorme; o demônio leva o instrumento para os seus domínio e o tranca ou esconde; a falta de chuvas ao longo do ano ameaça o bem-estar da comunidade; o deus do trovão se disfarça e vai até as terras do demônio para recuperar sua arma; o demônio tenta tocar/fazer uso do instrumento, mas sem sucesso; ele desafia o deus do trovão a utilizar o instrumento; ele o entrega ao deus do trovão; o deus do trovão pega seu instrumento, cria trovões, elimina o demônio e todos os presentes que estejam a ele relacionados. Frog (2018a, p.138) enxerga essas narrativas como estando relacionadas à fertilidade trazida pelas chuvas e trovões e à preservação de práticas culturais internas a essas sociedades. No caso dos povos nórdicos, o ATU 11488 estaria contido no poema eddico Þrymskviða em que Thor, para recuperar seu martelo que havia sido roubado por um gigante, trasveste-se e finge ser a deusa Freya, dizendo que se casaria com o gigante para obter o martelo de volta. O autor afirma que tomar textos documentos literários como sendo equivalentes a toda uma tradição religiosa é problemático e que não podemos saber se o acontecimento retratado em Þrymskviða revela alguma prática social e religiosa altamente difundida a respeito da figura de Thor (FROG, 2018a, p.122). Frog, no entanto, termina argumentando que o poema em questão foi um produto tardio, uma narrativa burlesca tematicamente “isolada” que estaria, então, desconectada de crenças da época pré-cristã da Escandinávia e não revelaria nenhuma espécie de mito convencional65. O autor chegou a essa conclusão ao comparar esta versão nórdica do ATU 11488 com versões do mito na Finlândia, Lituânia, Letônia, Estônia, Grécia e entre povos sámis (FROG, 2014; 2011).

65 “(...) this speaks against Þrymskviða being viewed as a poem accurately representing a narrative associated with belief traditions.(…) There is no evidence of the Thor-bride reflex in any form found outside of Germanic Nordic cultures, and within Nordic cultures it is not found outside of Þrymskviða itself and later singing traditions adapted from it (…) the myth of Þrymskviða appears curiously divorced from all other evidence of the mythology, and indeed Þrymskviða’s later reception presents the possibility that it may have essentially been a popular secular song that was never seen as connected to belief traditions” (FROG, 2014, p.147). 52

A questão da transgressão de gênero (vestir-se de mulher) por parte de Thor, o protagonista da estória, não possui nenhum paralelo em nenhuma dessas outras tradições e nem mesmo dentro da própria tradição mitológica escandinava66. Esse isolamento semântico envolvendo Thor travestido pode, inclusive, ser uma influência cristã que se apropriou do substrato narrativo do ATU 11488 fundando, a partir de então, uma nova tradição. Nesse contexto, é muito provável que circulasse, na Escandinávia, alguma versão desta narrativa “circum-báltica” (já que ela é detectada em várias tradições religiosas da região) envolvendo o rapto do martelo de Thor e contando como, em seguida, o deus foi disfarçado até a terra dos gigantes para recuperar seu martelo. Em algum momento, provavelmente por volta do século XI ou XII, pode ser que elementos cristãos tenham se misturado à narrativa original, visando elaborar uma paródia que apresentasse uma versão cômica de Thor, o popular deus dos pagãos que, agora, estavam convertidos ao cristianismo. Nesse sentido se pode falar, então, de uma “nova” tradição do ATU 11488 no caso nórdico (FROG, 2011, p.91). As propriedades etnoastronômicas de Thor, por sua vez, foram analisadas por Langer (2018). Segundo o autor, a batalha de Thor contra o gigante Hrungnir e a passagem que procede, em que o deus conta à Groa sobre Aurvandil, revelam motivos astronômicos. O dedo do gigante Aurvandil, transportado por Thor em uma cesta, ficou para fora da mesma e congelou. O deus arremessa o dedo em direção ao céu, que se torna uma estrela conhecida como “o dedo de Aurvandil”. Além disso, ao batalhar contra Hrungnir, Thor termina por ficar com uma lasca de pedra, arma utilizada pelo gigante, cravada em sua cabeça. Langer (2018, p.237) recaptula as estátuas de Thor portando pregos na cabeça, noção essa que povos das áreas finlandesa, báltica e eslava também relacionavam a seus deuses do trovão. O deus do trovão com pregos na cabeça poderia estar relacionado à noção de um prego cósmico, que seria um ponto fixo no céu em torno do qual todos os outros astros circulariam. Este ponto, visível para povos do Norte do globo, trata-se da estrela Polaris. Esta estrela demonstra, nas narrativas em que é mencionada, exceder meros fins de orientação, sendo retratada com um sentido fortemente cosmológico. A Polaris relaciona-se a crenças cosmológicas dos povos da área circum-polar, que acreditavam na existência de um axis vertical sustentador do mundo: a estrela polar seria justamente o ponto fixo, elevado e central, que sustentaria essa crença (LANGER, 2018, p.236).

66 Em nenhuma narrativa mitológica de qualquer espécie, nem Thor, nem nenhum outro deus aparecem travestidos de alguma forma. O único outro exemplo detectável é o caso do herói Helgi Hundingrbane, que aparece na Saga dos Volsungos, em alguns trechos da Edda Poética e no poema Helgakviða Hundingsbana. Na ocasião, ele se disfarça de mulher para escapar de seus inimigos. 53

Sendo a Polaris percebida por esses povos como um axis, um “prego do mundo”, as estátuas de Thor com pregos na cabeça e a narrativa do deus contra o gigante Hrugnir, em que o deus termina com uma lasca de pedra cravada em sua cabeça, a tendência é que se enxerguem motivos astronômicos relacionados à figura de Thor (LANGER, 2018, p.238). Para ampliar o embasamento comparativo de sua argumentação, Langer (2018) analisa, também, a carruagem de Thor, provavelmente conectada à constelação da Ursa Maior; bem como o simbolismo da suástica, ligada ao deus e seu martelo67 e que pode representar, como atribuição cósmica, o movimento dos astros em torno do eixo sustentado pela Polaris (LANGER, 2018, p.247). Voltaremos a esses aspectos posteriormente. Esperamos ter elencado, mesmo que brevemente, alguns dos principais estudos e tradições interpretativas circundando a figura de Thor. Passeamos pelo destaque de seus atributos guerreiros e iniciáticos (Dumézil, 1973); de sua força extrema (Dumézil, 1973; LINDOW, 2002; LANGER, 2015; DAVIDSON, 1990; TAGGART, 2015; SIMEK, 2007); seus embates com os gigantes (LINDOW, 2002; LANGER, 2015; DAVIDSON); sua função como campeão e protetor dos deuses e homens (DAVIDSON, 1990; 1994; SIMEK, 2007); a etimologia de seu nome (DEVRIES, 1977, LANGER, 2015); sua relação com a fertilidade (LANGER, 2015; DAVIDSON, 1990, 1994; TURVILLE-PETRE, 1975; SIMEK, 2007); seu domínio sobre os fenômenos naturais, não só os trovões e raios, mas também chuvas, tempestades e ventos (LANGER, 2015; DAVIDSON, 1990, 1994; SIMEK, 2007, TURVILLE-PETRE, 1975; PERKINS, 2001); uma perspectiva que critica a associação entre Thor e os raios (TAGGART, 2015) sugerindo, no lugar, que em fontes literárias ele estaria relacionado aos deslizamentos de terra, terremotos e erupções vulcânicas (TAGGART, 2015, 2017); Thor e o roubo de seu martelo mjolnir no folclore e mitologia nórdicos, posto numa perspectiva comparativa circum-báltica (FROG, 2018, 2014, 2011) e, por fim, as implicações etnoastronômicas presentes em alguns de seus mitos (LANGER, 2018). A seguir, ofereceremos subcapítulos dividos de acordo com as fontes primárias que abordaremos, onde traremos os argumentos dos supracitados autores de maneira aprofundada.

67 “Nas fontes literárias e mitológicas não existe uma associação direta da suástica com o deus Thor, apesar de ocorrerem imagens deste símbolo em pedras rúnicas e estelas da Era Viking – mas geralmente em contextos odinistas (como a estela DR 248). Mas um objeto em específico, pode ter uma relação mais estreita com Thor: um pingente de bronze em forma de machado/martelo, contendo uma suástica e datado do início da Era Viking” (LANGER, 2018, p.245-246). 54

1.2 O martelo de Thor

Mjolnir ou Mjöllnir é o martelo empunhado por Thor. Encontramos menções a ele em diversas fontes literárias: Hymiskvida 36; Thrymskvida 1-32; Gylfaginning 21, 42, 44, 53; Skáldskaparmál 17, 33; Gesta Danorum III. O martelo, nota-se, é um dos símbolos religiosos nórdicos da Era Viking que possui a maior quantidade de referências e alusões distribuídas por diversas obras literárias; o encontramos tanto nas Eddas quanto em sagas islandesas. Langer (2015, p.302) elenca os três principais tipos de significados atribuídos ao martelo ao longo desses materiais: como instrumento ritual e mágico, servindo para consagrar nascimentos, casamentos, mortes, funerais e juramentos, assegurar propriedades, consagrar terras, localizar ladrões, marcar fronteiras, propicia ressureição e fertilidade da vida e manifesta-se como símbolo fálico68; é usado como arma para defender o mundo, os deuses e homens contra as forças ameaçadoras do caos; por fim, como instrumento, protegendo contra elementos naturais que representem perigo. Encontramos tipos distintos de representações do martelo, constituindo também três casos. Primeiramente, há sua representação em esculturas onde há manifestações do mito em que Thor pesca Jörmunganðr, a serpente do mundo. Notamos a imagem do mjolnir em pedras rúnicas e, por fim, há representações do martelo em pingentes usados como adornos pessoais durante a Era Viking, geralmente encontrados em tumbas (LANGER, 2015, p. 303). Conforme narra a mitologia nórdica, o martelo foi feito pelos anões e tendo sido posteriormente levado até os deuses por Loki. Enquanto mjolnir estava em processo de forja Loki, em forma de mosca, atrapalhou Sindri, distraindo sua atenção. É por isso que o cabo do martelo é peculiarmente tão curto69. Mjolnir produz raios e trovões ao ser arremessado70, retornando para as mãos de Thor logo em seguida71. Aparentemente, Thor precisa de seu par de luvar de ferro para que consiga erguer o martelo72. Simek (2007, p.219) aponta que os atributos do martelo vão para muito além do mundo mitológico. Uma série de inscrições da Idade do Bronze manifestam figuras semelhantes a deuses portando armas parecidas com martelos ou machados. Para o autor, o martelo/machado desempenhava, então,

68 Autores como Perkins (2001, p.108) afirmam que representações fálicas mescladas ao próprio martelo de Thor eram frequentes. Descrevendo a estátua do deus encontrada em Eyrarland (ver figura 5), o autor defende que o objeto em seu colo pode ser que se trate tanto de seu martelo, segurado de cabeça pra baixo, ou então de seu falo ereto cujo término relevaria os dois testículos. Perkins defende que o objeto representado na estátua poderia se tratar simultanetamente do mjolnir, da genitália de Thor e de sua barba, sem que uma hipótese exclua a outra. 69 Skáldskaparmál, 33. 70 Skáldskaparmál, 17. 71 Skáldskaparmál, 33. 72 Gylfaginning, 20. 55

certa função consagratória e relaciona-se a cultos de fertilidade - conforme Thor mudava de sua função de deus guerreiro (segunda função dumeziliana) e da força para um deus da fertilidade (terceira função). Este papel consagratório de Thor e mjolnir explicaria por que, ao final de inscrições feitas em pedras rúnicas da Era Viking, figuraria a frase “que Thor abençoe estas runas”. Portanto, é possível que as inscrições em pedra da Idade do Bronze mostrassem o deus consagrando casamentos com seu martelo, semelhante ao que posteriormente foi descrito no poema Þrymskviða (SIMEK, 2007, p.219; LANGER, 2015, p.303). Para Davidson (1990, p.80), o símbolo do martelo nessas incrições da Idade do Bronze podem de fato estar relacionados a algum tipo de ritual de matrimônio. Contudo, a autora ressalta que há uma grande lacuna de tempo entre a Idade do Bronze e a Era Viking, tornando essenciais as descobertas de novas informações para corroborar tal hipótese. O martelo teria sido usado, já na Era Viking, para abençoar recém-nascidos, incluindo-os simbolicamente na comunidade; havia provavelmente algo uso do mesmo também em funerais, já que no mito da morte de Baldur o martelo é utilizado para abençoar o barco onde o corpo do deus está, poucos momentos antes de ser incendiado. A autora também alega que o martelo teria alguma função em sacrifícios e funerais, lembrando o momento em que Thor levanta mjolnir sobre os ossos e peles de seus bodes mortos, trazendo-os de volta à vida (DAVIDSON, 1990, p.80). A respeito dos pingentes contendo o mjolnir, Simek (2007, p.219) defende que seu surgimento, já próximo ao fim da Era Viking, seria algum tipo de respostas em oposição ao crescente cristianismo de então. O martelo de Thor teria se tornado, assim, o mais importante símbolo de resistência das crenças antigas escandinavas, o que autores como Langer (2015, p.303) e Davidson (1990, p.81) também defendem. Contudo, como evidências arqueológicas desses pingentes são escassas em territórios como, por exemplo, o sul da Noruega, essa suposição deve ser relativizada e não corresponde à recepção que o cristianismo teve por toda a Escandinávia. É possível que em alguns lugares tenham existido outros modos de protesto significativo em prol da religião pagã escandinava em oposição ao cristianismo (NORDEIDE, 2006, p.222). Inclusive, há achados arqueológicos de certos moldes de ferreiros73 apresentando tanto o formato da cruz quanto o do martelo de Thor, apontando que esses

73 O ferreiro era uma figura central e de suma importância na sociedade nórdica durante a Era Viking. Eles se encarregavam da confecção dos mais variados artefatos, como jóias, adornos, ferraduras, instrumentos (martelos, panelas, pás, serras, picaretas) e armas (machados, espadas, etc.). Trata-se de uma profissão que, ao que tudo indica, era exclusivamente masculina e cujos homens, portanto, eram iniciados e treinados na arte da forja desde crianças até que se tornassem mestres forjadores (FERREIRA, 2018, p.264-265). A importância dessa figura era tamanha que, além de deuses como Thor manifestarem traços análogos aos de um ferreiro, embora num aspecto cosmogônico, algumas narrativas mitológicas mencionam ferreiros como Völund (em Völundarkviða); Reginn (Saga dos Volsungos; Reginsmál) e o anão Alvíss (Alvíssmál). 56

artesãos estavam prontos para satisfazer qualquer inclinação religiosa (DAVIDSON, 1990, p.81; SIMEK, 2007, p.219). Traçar a etimologia de mjolnir tem se mostrado uma árdua tarefa e qualquer resposta definitiva se recusa a surgir. As teorias e hipóteses são das mais diversas. Simek (2007, p.219) afirma que a frequente hipótese de que a palavra teria sido originada do proto-nórdico *melluniaR é controversa. O autor defende que ela possa estar relacionada ao eslavo antigo mlunuji e ao russo molnija, tendo sido emprestado desses povos ou então se originado durante um passado muito remoto. Ambas as palavras significam raio e possibilitariam interpretar o nome mjolnir como “aquele que causa raios”. Outra frente de estudos o relacionam ao nórdico antigo mjöll (nova neve) e ao islandês mjalli (cor branca), e, neste caso, significaria “arma brilhante de raios”. Nos estudos mais antigos e tradicionais dessa etimologia, mjolnir havia sido conectado ao gótico malwjan e ao nórdico antigo mala, “triturar” e significaria, nesse caso “triturador” (SIMEK, 2007, p.220). Outros autores ofereceram suas contribuições para a questão do étimo. Turville-Petre (1975) enfatiza que nenhuma origem certa foi ainda revelada, mas que há caminhos promissores sobre a questão. Segundo autor, o nome de mjolnir relaciona-se a dois verbos em islandês antigo: mala (triturar) e mølva (esmagar), embora, ressalte, alguns o associem ao russo mólnija e ao galês mellt, palavras que significam “raio”. Esta segunda hipótese faria mais sentido, pois, se pensarmos em Thor enquanto divindade dos trovões, podemos cogitar que sua arma seria a responsável pela criação dos raios e, já que as narrativas mitológicas estão repletas de situações em que Thor atira seu martelo em direção aos gigantes como se fosse um raio, nenhuma evidência apontaria para outra interpretação (TURVILLE-PETRE, 1975, p.81). Estudos etimológicos mais recentes e com um viés distinto foram conduzidos por Frog (2014, p.129). O autor defende a relação da palavra com o ato de moer ou triturar, concepção dentro da qual mjolnir significaria “aquele que pulveriza”, associando-o à arma do deus Perkons74, chamada milna, ou “pedra de moinho”. Estes nomes fariam parte de uma crença detectada entre os povos e bálticos e nórdicos, de que o barulho de um moinho é semelhante ao barulho de um trovão. O autor sugere que tais fatos apontem para uma tradição antiga e em larga escala disseminada, de que os trovões seriam gerados por grandes moinhos de pedra puxados por um bode que vive com o supremo deus dos céus. A associação entre moinhos,

74 Deus do trovão entre os letãos. Tanto Perkons quanto Thor portam armas semelhantes que estão relacionadas etimologicamente (mjolnir e milna). Ambas as armas estão relacionadas a produção de trovões, e os dois deuses possuem cabras e carruagens (FROG, 2011, p.80). 57

trovões, deuses do céu e bodes têm levado a diversas conjunturas indo-europeias que possivelmente nos remetem a algum fenômeno mitológico de alta complexidade75. É no mínimo curioso que encontremos, no caso de Thor, todos esses elementos (deus dos céus/trovões, bodes) possivelmente ligados ao nome de seu martelo mjolnir que, dessa forma, significaria “pulverizador, esmagador”, análogo à função dos moinhos causadores de trovões (FROG, 2014, p.129). Conforme veremos adiante, vários desses símbolos (o bode, o moinho, os trovões e os céus) remetem possivelmente a interpretações etnoastronômicas feitas pelos vários povos da região circumpolar, como nórdicos, sámis e finlandeses, sobre a movimentação de astros em torno da estrela Polaris (LANGER, 2018). Lotte Motz (1997) aponta algumas contradições morfológicas e simbólicas sobre mjolnir, justificando a necessidade de uma análise mais precisa. Nas fontes literárias, às vezes ele é arremessado feito algum tipo de projétil e, outras vezes, é bradado como um machado. Outra indagação levantada por Motz (1997) foi a seguinte: por que vemos a figura de um deus que não é artesão e nem ferreiro sendo tão frequentemente, nessas fontes, descrito com a ferramenta símbolo de tais ocupações? A arma de Thor é repetidamente descrita pelo substantivo hammar, que corresponderia ao inglês hammer, martelo. Contudo, notamos descrições de atos envolvendo Thor e sua arma que não poderiam estar relacionados a um martelo, como quando ele decapitou (drepa höfuð) um gigante. Em outra ocasião a cabeça do gigante é estilhaçada (muðr), o que só poderia, de fato, ter sido feito por um martelo (MOTZ, 1997, p.330-331). Optando por uma saída um tanto quanto inusitada, a autora afirma que a arma de Thor era originalmente uma ferramenta rudimentar feita de pedra que teria sido posteriormente visualizada de diversas formas: como um cinzel, uma estaca de ferro, uma lança, uma maça, um martelo ou um machado. A imagem do machado teria sido realçada devido ao seu status social elevado e sua significância religiosa (MOTZ, 1997, p.331). O ato de martelar era feito, em tempos arcaicos, por meio de pedras, maças ou a ponta cega de um machado. O martelo enquanto ferramenta especializada para esses fins surge na área germânica somente no começo da era cristã, já atrelado especificamente à classe dos ferreiros. Também nas Eddas os martelos aparecem todos descritos em alguma relação com o

75 Frog (2014, p.130) observou a ocorrência, em diversas mitologias, de crenças relacionando moinhos de pedra e instrumentos de sopro ao desecandeamento do som do trovão. Tais traços foram verificados principalmente nas culturas do Mar Báltico. O problema é que essas relações entre deuses do céu, barulhos de trovões, moinhos e instrumentos de sopro não puderam ser reduzidas a nenhuma identidade específica: não é possível remeter suas origens aos povos indo-europeus ou aos fino-úgricos. Para o pesquisador, essas características devem ter sido intensivamente espalhadas e intercambeadas entre esses povos durante a Idade do Ferro. 58

trabalho de ferreiros e a única exceção à regra é justamente o martelo de Thor. É descrito como, no princípio dos tempos, os deuses criaram o martelo, as fornalhas e as bigornas76, ressaltando a importância desses utensílios no mundo nórdico77. Nenhum vestígio arqueológico ou relato mitológico, seja nas Eddas ou nas sagas, apontam para algum uso dos martelos fora da classe dos ferreiros, e muito menos em situações bélicas sendo portado como arma. Notamos o martelo, então, enquanto ferramenta exclusivamente de manufatura, não constando sequer na lista de armas de combate elaborada por Snorri Sturluson, onde constam machados, lanças, espadas e flechas. Assim, percebe-se que os martelos não eram produzidos com intuitos simbólicos ou cerimoniais (excetuando-se os pingentes de mjolnir), mas meramente para seu uso pragmático nas fornalhas (MOTZ, 1997, p.333). Acrescentemos a isso o fato de que Thor é uma figura bélica, guerreira, e que nenhum ato direto relacionado à classe ferreira é atribuído a ele nas narrativas mitológicas (MOTZ, 1997, p. 334). Sua arma é comumente descrita como sendo um instrumento constituído por um cabo, podendo se assemelhar ao martelo ou ao machado. No entanto, várias foram as percepções que os diferentes autores tiveram da arma de Thor, conforme notamos na mitografia que envolve o deus, algo que também se revela na iconografia78. Além disso, há nomes folclóricos apontando para uma relação entre Thor, bolas e pedras por eles carregadas79. Levados em conta esses dados, encontramos relatos de Thor portando clavas, martelos, pedras, machados, cetros e lanças, enquanto que nas fontes escritas apenas um substantivo é empregado. É possível que hammar apareça nessas fontes sendo um nome

76 Gylfaginning, 14. 77 Alguns centros acadêmicos de Arqueologia Experimental, como o UCD Centre for Experimental Archaeology and Material Culture, na University College Dublin (https://www.ucd.ie/archaeology/ceamc/), fazem trabalhos de reconstituição de objetos da Era Viking utilizando descrições literárias sobre os mesmos . 78 “We find Þórr’s weapon visualized as various objects and a hammer is not prominent. On a from Altuna, Uppland (eleventh century) the god holds a shafted instrument which might indeed be a hammer; it might also be a double axe, such as those of the rock drawings of the Bronze Age. On the Gosforth Stone (tenth or eleventh century) the shafted object holds a greater resemblance to an axe than to a hammer. On a stone of Ardre (ninth century) a spear is wielded against a water monster. On Thorvaldr’s Cross Slab (Isle of Man, tenth century) a male figure carries fish, dangling from a cross, and he holds a square object, a stone or a book, ready to be hurled, in his right hand. In describing Þórr’s statue in the temple of Uppsala, Adam of Bremen (IV 26) mentions a sceptre as Þórr’s attribute, and this information is repeated by Olaus Magnus (1555, 100), where Þórr is depicted with a sceptre in a woodcut. It is true that Saxo Grammaticus mentions ‘Jove’s hammers’, malleos quos Ioviales vocabant, in his Gesta Danorum (1931-57, I 350); these are, however, not weapons of the god, but cultic instruments which might imitate the sound of thunder. Þórr’s weapon, on the other hand, is a club, a clava, in his account (Saxo Grammaticus 1979-80; I 72; 1931-57, I 66). Saxo thus clearly distincts between the hammer, a cultic tool, and the clava, the mighty weapon. And the giant Geruthus is slain by a sword, chalybs (Saxo Grammaticus 1931-57, I 242)” (MOTZ, 1997, p.337). 79 “According to the folkore of Värend in Småland, thunder is a stone, thrown by Þórr or Gofar, still often found in places which were struck by thunder; such stoned is designated thorenvigg, ‘Þórr’s wedge’. A modern farmer of this area told that he had seen the god riding in his carriage; he has also been seen carrying a bolt of stone in his hand. The Swedish names thornkile, ‘Þórr’s wedge’, thorensten, ‘Þórr’s stone1, the Norwegian torelod, ‘Þórr’s ball’, indicate that the instrument was viewed as a stone, a ball or a wedge” (MOTZ, 1997, p.337). 59

abrangente sem muita especificidade de significado, usado para se referir a qualquer objeto que estivesse nas mãos de Thor (MOTZ, 1997, p.337-338). A autora aponta o fato de que os machados figuram frequentemente entre os achados arqueológicos na área germânica, datados de períodos tão remotos quanto o Neolítico80, continuando até a Idade do Bronze81, ao contrário do que acontece com os martelos. Consequentemente, poderia se indagar se o machado era originalmente a arma relacionada ao trovão, tendo depois sido substituída pelo martelo (MOTZ, 1997, p.334). A esse respeito, Motz (1997, p.335) conclui que, na tradição folclórica, na guerra e nas práticas culturais o martelo nunca chegou a substituir o machado do Neolítico. As evidências, segundo a autora, seriam as seguintes: o machado continuou a ser utilizado no campo de batalha, algo que o martelo nunca foi; do século XIII em diante, detecta-se o uso do machado na heráldica e em outros símbolos reais, contextos em que o martelo não foi retratado; machados são atirados ao chão, na véspera da terça feira (Thursday = Thor’s day) antes da páscoa para promover boas colheitas; machados ainda estão presentes em cerimônias de casamento da modernidade e são, na ocasião, depositados embaixo da cama da noiva; os machados são utilizados como amuletos contra os perigos do vento e das tempestades e são deixados em cima da mesa para que nenhum raio atinja a casa (MOTZ, 1997, p.335). Até mesmo os pingentes e amuletos comumente designados como “martelos de Thor” por toda uma tradição acadêmica, não são vistos pela autora como tal. Espalhados por todo o território nórdico, esses pingentes datam geralmente do século X, são feitos de ferro ou então algum metal precioso e acompanham uma corrente para serem colocados em volta do pescoço. Devido ao seu formato, que dispõe um curto cabo e uma terminação em haste que lembraria a cabeça de um martelo, esses amuletos tem sido relacionados a mjolnir. Com base na morfologia dos amuletos, Motz (1997, p.339) rejeita essa interpretação e alega que eles seriam muito mais semelhantes ao formato do machado. A autora afirma também que nenhum martelo, instrumento típico dos ferreiros, seria representado de maneira ornamental e estilizada, mas grosseira e simples82.

80 “The neolithic graves of Gotland contain as the most importante grave goods axes, harpoons, and arrowheads. In votive deposits, especially in the Neothilic Age, one may encounter flint and stone axes, flint chisels and blades, clay vessels as well as jewelry” (MOTZ, 1997, p.334). 81 “In the Bronze Age the blade received new and graceful forms, often bore elaborate decorations. The axe of the norsemen, hache noresche, was known in terror throughout Europe” (MOTZ, 1997, p.334). 82 “The interpretation of these objects as hammers may be questioned. They are flat, sometimes elaborately decorated and fashioned of precious metals, of minute size, and they were worn as jewels or as amulets. The blacksmith’s hammer is invariably bulky and consists of wood and iron. In most examples of the amulets there is no separation between shaft and head; sometimes the decoration proceeds unbroken from the horizontal to the vertical section. A hammer’s head is always bulkier than the shaft; in the ornaments the thinnest part is at t he 60

Ainda assim, a autora diz que esses amuletos não seriam a representação dos machados do Neolítico e da Idade do Bronze tal como eles um dia foram. Eles expressariam, na verdade, uma nova fase, um novo estágio dos machados da tradição arcaica do norte. Recordando que a chegada do cristianismo e sua simbologia da cruz exerceram grande influência nesse símbolo pagão; que vários desses amuletos apresentavam o formato que lembra o da cruz e que, a nível estilístico, miniaturas de cruz se assemelham muito às miniaturas de machados e martelo, Motz faz uma ousada afirmação de que os amuletos conhecidos como “martelos de Thor” representam nada mais do que um estágio entre o machado arcaico e a cruz cristã. Somado a esse fato, a autora vai mais adiante e diz que o verdadeiro símbolo de lealdade à fé pagã era o machado, função nunca representada pelo martelo (MOTZ, 1997, p.340).

Figura 5: “Martelo de Thor” feito em prata, encontrado em Mandermake, na Dinamarca. Liso, seu formato é muito bem delineado, simples e não apresenta inscrições ou alterações no molde que lembrem algum animal ou que tragam quaisquer símbolos, como acontece em outros exemplares. Seu topo possui um formato arredondado que afina, segue de maneira reta, engrossando aos poucos e terminando em sua ponta, que definitivamente lembra o formato de um martelo. Fonte: PERKINS, Richard. Thor the Wind-raiser and the Eyrarland image. London: Viking Society for Northern Research, 2001.

Voltando a seguir a trilha do substantivo hammar, a autora se pergunta por que esse único substantivo é utilizado nas fontes literárias islandesas para designar a grande variedade de armas que, conforme vimos, Thor é descrito portando. Motz (1997, p.341) acaba por defender que o significado do substantivo seria pedra e que, portanto, a arma original de Thor ou era uma pedra propriamente dita ou uma ferramenta feita de pedra. A palavra em islandês

bottom of the vertical section; and never at the top. The artifacts thus would represent a very stylized version of the craftsman’s tool. Hammers were, however, never manufactured in stylized form; they were not produced in miniature or in precious metal; they were never decorated and were never worn as amulets” (MOTZ, 1997, p.339). 61

antigo hammar remeteria, dentro do pressuposto de Motz, ao indo-europeu *(a)kam- e significaria “pontudo”, “afiado” e “pedra”. Relacionadas a ela, e numa perspectiva diacrônica dos significados, encontramos as palavras ásman- em sânscrito (“pedra”, “rocha”); akmuõ em lituano (“pedra”); o grego ákmσn (“bigorna”); antigo eslavo kamy (“arma de pedra”), antigo alto-alemão hamar (“martelo de pedra”) culminando, por fim, no próprio substantivo hammar do islandês antigo, que originalmente significaria “pedra”, “penhasco”, “rochedo” e, com o tempo, teria se transformado em “martelo” (MOTZ, 1997, p.341). Dentro dessa perspectiva, a ferramenta dos ferreiros, o martelo, teria sido originalmente uma pedra com a qual ele batia e “martelava” outros objetos. Esta hipótese possui seu respaldo na arqueologia, já que escavações revelaram pedras chatas sem cabos em território dinamarquês, próximas a lugares onde derretimento e fundição do ferro eram feitas pouco antes da Era Cristã. O léxico das línguas germânicas teria mantido a palavra que designava esta pedra dos ferreiros mesmo depois, quando a ela já tinham sido acrescidos cabos de madeira e uma cabeça de ferro achatado (transformando-se no que hoje conhecemos por martelo). Se aplicarmos esse conceito de “pedra” à palavra hammar e lembrarmos que o nome de Thor corresponde ao inglês thunder, veremos, então, que as palavras “martelo de Thor”, ao serem unidas, correspondem linguisticamente ao termo thunderstone, ou seja, às pedras de raio83. O mesmo acontece em outras línguas: Donnerstein em alemão, dondersteen em holandês, tordensten em dinamarquês e torestein em norueguês. Começaria neste ponto a conexão entre a arma de Thor e o conceito antigo das pedras de raio (MOTZ, 1997, p.341). Desde a pré-história as pedras de raio estavam relacionadas à proteção e ao bem-estar do homem e, portanto, não é de se surpreender que tenham existido muitas formas concretas de transformar essas pedras em amuletos. Estes eram utilizados para proteger as casas dos raios e outros perigos, até mesmo de entidades que poderiam ser perigosas. Entre as diferentes manifestações de amuleto encontramos pedras, machados, flechas, cinzéis e grandes pedras arredondadas. O único caso à parte na região germânica corresponde à Islândia, onde não são detectadas crenças relacionadas às pedras de raio. No norte da Noruega essa crença existe, mas vestígios relacionados a ela são raros. Pode ser que nessas regiões a crença tenha sido

83 As pedras de raio correspondem a uma antiga crença segundo a qual os raios e trovões eram causados por pedras que caiam dos céus. Localizamos essa crença em diversas tradições antigas e que estão, inclusive, relacionadas a artefatos pré-históricos de pedra como o cinzel e o machado de pedra. Na região germânica essa crença sobrevive até os dias de hoje por meio do folclore. Acredita-se, por exemplo, que uma pedra de raio deve ser sempre mantida dentro das casas para que se evite que sejam atingidas por raios, mas também possuem poderes auxiliadores para manter a saúde do gado e proteger os homens de criaturas estranhas como trolls (MOTZ, 1997, p.341-342). Essas pedras são instrumentos pré-históricos tomados como naturais e podem ter vários formatos, podendo ser redondas ou chatas. Segundo o folclore, elas cairiam do céu durante grandes, geralmente acompanhando os raios, e por isso possuiriam poderes a ele associados (TAGGART, 2015, p.177). 62

perdida ou se transformado em outra, ou então ela de fato nunca foi desenvolvida nesses lugares (MOTZ, 1997, p.342). Dessa maneira, segundo Motz (1997, p.343) haveria a crença, na área germânica, de que os trovões e raios eram causados por Thor, que os criava ao atirar suas pedras triangulares. Estes objetos, as pedras de raio, eram chamados de thorenvigg, “pedra triangular de Thor”. Outros nomes levantados pela autora também apontam para a relação entre o deus do trovão e essas pedras de raio84. Ela conclui, a partir dessa construção, que as crenças e o folclore dos germânicos atribuíram ao poderoso Thor a criação dos trovões, feita a partir de uma pedra em suas mãos. Contudo, é possível que tenham existido duas crenças paralelas: que as pedras de raio caíam sozinhas e por conta própria dos céus e que elas, por vezes, eram arremessadas pelo deus dos trovões. A segunda crença é especialmente importante, pois demonstra que o homem decidiu atribuir o poder destrutivo dos trovões e das grandes tempestades a um deus que além de antropomórfico era, conforme diversos autores explicitam, um grande amigo e protetor dos humanos (MOTZ, 1997, p.344). Em suma, para Motz (1997), a palavra hammar significava originalmente objetos simples, feitos de pedra, utilizados desde o Neolítico tanto na criação de armas e utensílios, quanto na manufatura de amuletos de proteção, igualmente feitos de pedra. Com o tempo a palavra passou a designar as pedras de raio, já que a arma de Thor era, originalmente, nada mais do que uma pedra triangular com a qual o deus lançava seus raios (MOTZ, 1997, p.346). John Lindow (1994) afirma que o fato da arma de Thor ser uma ferramenta é algo que de fato a faz se destacar em meio à mitologia. Contudo, Snorri Sturluson, por exemplo, não deixa dúvidas de que o martelo era empunhado enquanto arma, o que é perceptível pelo verbo por ele empregado para dizer o que mjolnir pode fazer, ljósta. O verbo em questão designa especificamente golpes que, geralmente, tenham sido dados num estado de fúria. Ele pode ser igualmente aplicado de maneira impessoal a fenômenos naturais, feito chuvas, tempestades ou a chegada da escuridão. Soma-se a essas informações que, nas narrativas, Thor de fato faz uso de seu martelo para matar os gigantes e pode-se alegar, então, que ele é a arma do deus (LINDOW, 1994, p.487). Mjolnir teria paralelamente funções não violentas. Uma vez que representa os raios, ele é tido como o grande promotor de chuvas, possibilitando o crescimento das plantações. Lindow (1994, p.489) também recapitula que ao longo da mitologia o martelo foi responsável

84 “(...) thorvigge, thornkile, thorenvigg, thornskil, thorensten (Swedish); taarenstien (Danish), torenstein, torelod, toreblyg (Norwegian)” (MOTZ, 1997, p.344). 63

por trazer os bodes do deus de volta à vida85, para consagrar a noiva86 e abençoar a pira funerária de Baldr87, ou seja, mjolnir possuía outras funções para além das bélicas. Em consonância com Motz (1997), Lindow (1994, p.491) retoma o significado da palavra hammar encontrada nas fontes literárias, mencionando que ela ora remete a “martelo” (hammer), ora remete a “pedra”. “cume”. A conexão entre as duas significações, ele explica, pode ter ocorrido por conta de que os primeiros martelos eram feitos de pedra. Seja qual for o motivo da existência dessa dupla significação, o importante é que ela possibilita que sejam feitos trocadilhos. Como sabemos, a literatura islandesa não era nada avessa às figuras de linguagem. No caso específico de Thor e a palavra hammar, pode ser que ela designasse o martelo do deus e, outras vezes, fizesse menção ao deus como sendo uma enorme parte da paisagem, como um “cume” ou “rochedo”. Neste caso, o trocadilho seria posto em uso quando fosse necessário ressaltar o tamanho e força físicas de Thor, colocando-o como adversário à altura de seus inimigos, os gigantes, cujas proporções físicas eram também enfatizadas (LINDOW, 1994, p.492). Lindow (1994, p.491) defende que, aparentemente, mjolnir conectava Thor à criação e manutenção da própria cultura. Não seria por mero acaso que o deus porta uma arma tão intrinsecamente conectada ao trabalho manual dos ferreiros, uma arma “ferramenta” em tantos aspectos pertencente ao mundo humano. O autor retoma o poema eddico Völuspá, no momento em que, depois de criar o cosmos a partir do vazio primordial, os deuses encarregam os corpos celestiais de seus respectivos postos e criam, assim, o sistema de reconhecimento do tempo, estabelecendo a contiguidade e justaposição de tempo e espaço que caracteriza esta mitologia. Uma vez criados tempo e espaço, o que faltava era aquilo pertencente ao homem, a cultura. A partir da sétima estrofe é mencionada uma forja onde começaram a ser feitos os patrimônios materiais. Os primeiros objetos manufaturados foram as grandes pinças de forja e, a seguir, outras ferramentas que, juntas, possibilitaram que tudo fosse feito a partir do ouro. Ao parafrasear este trecho da Völuspá, Snorri Sturluson cita o martelo como uma das primeiras coisas a serem feitas88. Temos o surgimento, então, da Idade de Ouro mitológica graças à criação das ferramentas de forja, dentre as quais figura o martelo. A Idade de Ouro,

85 A viagem para Útgarða-Loki, descrita no Gylfaginning. 86 No poema eddico Þrymskviða. 87 Gylfaginning. 88 “Next they made a building in which they set up forges, and there they made a hammer and tongs and anvil and from them all other tools; and next they worked metal and stone and wood, and so abundantly in that metal that is called gold, and their household implements and furninshings were of gold; and that age is called the Golden Age” (STURLUSON, 1995, p.19). 64

no entanto, foi interrompida pela chegada de três gigantas, cessando essa era que havia sido possibilitada pela existência de ferramentas de forja89 (LINDOW, 1994, p.498). Como sabemos, ao longo da mitologia nórdica Thor é um deus especializado em eliminar gigantes, principalmente gigantas. Assim, notamos Thor possuindo íntima ligação com as ferramentas de forja que, na própria criação do cosmos, foram as criadoras da cultura e da tecnologia. O fato do deus portar justamente o martelo, instrumento de forja, somado ao fato de ter sido a forja a responsável pela criação dos elementos culturais, posiciona Thor em algum vínculo com a própria cultura. Além disso, é Thor o responsável por eliminar gigantes e gigantas que, conforme narra a Völuspá, são os inimigos primeiros da cultura. Portanto, cada vez que Thor assassina um gigante (ou giganta) ele está recriando o próprio cosmos e atuando como protetor e mantenedor da cultura e tecnologia humanas (LINDOW, 1994, p.502). Assim, para Lindow (1994, p.502-503), o martelo de Thor recapitulava o próprio martelo primordial responsável pelos bens mais queridos e essenciais ao homem (sua cultura e tecnologia, conforme supracitado). Posteriormente, ao longo de outras narrativas presentes no corpus mitológico nórdico, era o martelo a arma empunhada pelo deus para manter longe os gigantes, ameaçadores primeiros destas duas esferas da vida humana. Mjolnir atuava, portanto, como instrumento criador e mantenedor da cultura, e por isso nada faria mais sentido do que ser ele a arma de Thor, deus tido como protetor dos homens.

1.3 A Edda em Prosa

Encontramos importantes narrativas sobre Thor neste material literário conhecido como Edda em Prosa, narrativas essas, inclusive, em que o deus é o protagonista. A obra em questão foi escrita em 1220 d.C, em islandês antigo, pelo poeta e historiador islandês Snorri Sturluson. Ela também é conhecida por outros nomes comumente menos utilizados como Edda Jovem, Edda de Snorri e Edda Maior. A Edda em Prosa encontra-se preservada nos manuscritos DG 11 (Codex Upsaliensis, U, datado de 1300-25 d.C), GKS 2367 4to (Codex Regius, R, de 1300-50 d.C) e AM 242 fol (Codex Worminianus, W, de 1350 d.C). A autoria é atribuída claramente a Snorri Sturluson somente no Codex Upsaliensis (LANGER, 2015, p.143). Certas tradições acadêmicas criticam o viés autoral que é conferido ao entendimento

89 John Lindow (1994, p.498) enfatiza o fato de que foram três gigantas que interromperam a Idade do Ouro. O gênero atribuído a elas nas narrativas indicaria que o âmbito das forjas seria um mundo masculino. 65

da Edda em Prosa enquanto obra. Boulhosa (2004, p.14) ressalta o fato de que a obra circulava nessas três distintas versões durante a Idade Média, constando a autoria de Snorri em apenas uma delas. Somada a essa questão há a ocorrência, também, de diferenças estruturais e de forma entre cada manuscrito. Visto isso, é necessário considerar a Edda em Prosa dentro de um contexto permeado por variabilidades e incertezas, sem que se tome a autoria de Snorri Sturluson como fixa e imutável; assim, evita-se a concepção idealizada de um “texto original”, escrito pelo punho do próprio autor, sem a intervenção de copistas desatentos ou propositalmente criativos. É essa ideia de “texto original” que levaria, no caso da Edda em Prosa, à escolha do manuscrito R para análise de conteúdo, como se fosse a versão mais “fiel” à original. A partir desse momento, estaríamos partindo do pressuposto de que há uma obra primeira, pura e ideal e, com base nela, nasce a liberdade para aceitar ou rejeitar expressões, conteúdos, formas gramaticais e até mesmo partes inteiras presentes em outros manuscritos, por serem “desvios” ou “adições do copista à obra original”. Esta concepção de uma autoria fixa e de um texto primeiro, mais original e puro do que os outros, é uma construção moderna que insiste em propor a existência de uma única Edda em Prosa (BOULHOSA, 2004, p.14).90 A Edda em Prosa é divida em três capítulos e um prólogo, considerado por muitos como apócrifo. Trata-se de uma explicação, dentro do racionalismo cristão e da tradição evemerista, de explicar as origens da religião pagã nórdica. Dentro dessa ótica, os deuses da religião pré-cristã foram definidos como antigos heróis e magos, descendentes do rei Príamo, que teriam migrado após a queda de Troia. No prólogo é explicado como, durante seu percurso rumo ao norte, esses heróis fizeram grandes feitos a ponto de passarem por um processo de apoteose e começarem a ser tidos por deuses (LANGER, 2015, p.143). Tal explicação faz parte de uma tradição cristã de integrar os deuses pagãos à história da humanidade, tornando-os mais humanos e menos divinos. Esta é uma tradição do medievo baseada na teoria de Euhemeros (316 a.C) que, obviamente dentro de seu contexto, propunha que os deuses e deusas gregos nada eram a não ser homens e mulheres deificados

90 Algumas das variações que surgem ao compararmos os manuscritos: “Na forma preservada no manuscrito R acima mencionado, a Edda em prosa seria composta de um prólogo (que não aparece entitulado como tal em nenhum dos manuscritos, mas faz parte de Gylfaginning), Gylfaginning, Skáldskparmál e Háttatal. Em W, Háttatal é separado das outras três partes e faz parte de um tratado sobre gramática e métrica, e em U está incorporado em um tratado sobre fonética e estrutura das sílabas. Além disso, o Háttatal em R contém dois poemas que não aparecem em W e U(...). No manuscrito W, o prólogo é mais longo do que em R e U, e esse material é considerado como interpolação ao ‘texto original’ por conterem alusões a tradições bíblicas. No entanto, os prólogos de R e U também contém material das tradições clássicas e bíblicas e, portanto, sua inclusão não pode ser considerada excepcional. O Skáldskaparmál e o Háttatal são substancialmente diferente nos três manuscritos, pois os manuscritos W e U estão incompletos nestas partes” (BOULHOSA, 2004, p.14, grifos da autora). 66

(BOULHOSA, 2004, p.15). O primeiro capítulo, o Gylfaginning (“O embuste de Gylfi”) consiste na apresentação de um diálogo entre o rei sueco Gylfi e os deuses nórdicos, abarcando, por meio de um jogo de perguntas e respostas, todas as questões cosmológicas, cosmogônicas e escatológicas da mitologia nórdica91 (BOULHOSA, 2004, p.15). O segundo capítulo, o Skáldskaparmál (“Dicção poética”) é também apresentado em forma de diálogo, desta vez entre e Ægir. Nesta conversa, ao contrário da que nos é apresentada no capítulo anterior, o foco não está numa descrição ou narração da mitologia, mas na elucidação de ferramentas poéticas como sinônimos e metáforas frequentemente utilizados (heiti e kenningar, respectivamente) na poesia escáldica. Por estarem, essas figuras de linguagem, relacionadas à própria mitologia, há momentos do capítulo em que se recorrem a episódios mitológicos para explicá-las. O último capítulo, o Háttatal (“Lista de métricas”), é basicamente uma lista de 102 estrofes redigidas em 100 métricas diferentes visando ilustrar a grande variedade de possibilidades metrificações na poesia (BOULHOSA, 2004, p.16). Os mitos narrados na Edda em Prosa têm suas origens nos tempos pré-cristãos dos nórdicos, mas é preciso manter um olhar crítico e atento já que, no material em questão, eles estão sendo recontados por um autor cristão de formação erudita. Grande parte dessas estórias foram embasadas em poemas tradicionais, dentre os quais alguns nos são acessíveis, como poesias escáldicas, e em outros casos é possível que tenham vindo de tradições orais descritas em prosa (em formato narrativo). Certamente que, seja de qual caso estivermos falando, o conteúdo disponível na Edda em Prosa provavelmente já teriam mudado muito, tanto em forma quanto em semântica, se comparados à maneira como circulavam nos tempos pagãos. Dada essa ressalva, é justo dizer que de maneira geral a obra de Snorri Sturluson consiste na tentativa mais sistemática e completa de se capturar a mitologia nórdica em uma espécie de compilação92 (FAULKES, 1995, p.xi). Enquanto cristão, Snorri Sturluson deixa clara a sua visão a respeito da religião pagã de seus ancestrais: ela era um apanhado racional, porém equivocado, sobre a verdade. Seu relato da mitologia nórdica consiste numa grande tentativa erudita e antiquária de registrar as

91 Snorri Sturluson embasa grande parte de seu tratado mitológico nas tradições cosmogônicas e mitológicas encontradas na Edda em Prosa e na literatura islandesa em prosa (nesta, de maneira mais dispersa). Contudo, esses materiais não apresentam um sistema mitológico único e coerente (BOULHOSA, 2004, p.15) e a tentativa de torná-la algo do tipo foi empregada justamente por Snorri Sturluson, ou a quem pertença os textos da Edda em Prosa (LANGER, 2015, p.144). 92 Para complementar o entendimento da mitologia nórdica, no sentido de conhecer as narrativas em suas fontes primárias, recorrem-se a outros materiais como a Edda Poética, a Ynglinga Saga (também por Snorri Sturluson), as sagas islandesas e a Gesta Danorum de Saxo Grammaticus (FAULKES, 1995, p.xi). 67

crenças de seus antepassados sem um olhar julgador e preconceituoso (apesar de que certamente se pode indagar até que ponto essa imparcialidade se manteve). Estas crenças, mesmo fazendo parte do que já era o passado dos povos nórdicos, ainda era relevante para que se entendesse como sua poesia antiga era feita, poesia essa que Snorri sem dúvida gostaria de ver preservada e cujos reflexos faziam reconhecidamente parte da cultura islandesa do momento. Aliás, foi do próprio interesse de preservação desse material poético e da manutenção da ars poeticae que Snorri deu razão de ser à sua obra (FAULKES, 1995, p.xviii). Portanto, é por conta dessa sistematização da mitologia nórdica e do tratamento concedido à poesia é que a Edda em Prosa pode ser vista como um material rico e único. Conforme lembra Langer (2015, p.144), devemos manter em mente que Snorri Sturluson foi ninguém menos do que a primeira pessoa a tratar a mitologia nórdica de uma perspectiva acadêmica, unindo e selecionando o material de forma sistêmica. As atitudes do autor para com os mitos trazidos não se mostram moralistas; Snorri não faz juízos de valor e evita outras atitudes típicas de sua época, como a condenação dos costumes e religião pagãos ou a equalização das divindades com demônios. A Edda em Prosa se mostra uma fonte primária inevitável para qualquer pesquisador que se proponha a estudar a mitologia ou a religião escandinava pré-cristã. Nos deparamos, neste caso, com uma obra única, original e que dá corpo ao mais denso e completo tratado sobre mitologia nórdica de toda a Idade Média, além das elucidações que traz a respeito da dicção e métrica poéticas (FAULKES, 1995, p.xviii). Certamente que isso não significa cairmos na ilusão de que a Edda em Prosa consiste num relato fiel e puro dos mitos nórdicos pré-cristãos: a obra de Snorri é acima de tudo um produto de sua época (Idade Média Central) que lança, a partir desse contexto, um olhar sobre os mitos nórdicos. Ela não representa uma fonte correta, original e completamente fidedigna das antigas narrativas, e sim uma mitologia de certa forma “nova”, de base fundada nas tradições nativas mescladas ao imaginário cristão, conhecido por Interpretatio christiana (LANGER, 2015, p.144).

1.3.1 O Gylfaginning

Ao fazer seu apanhado da mitologia nórdica, de suas principais narrativas, deuses e heróis, Snorri Sturluson indubitavelmente não poderia ter excluído o deus Thor de seus escritos. Já no primeiro capítulo, o Gylfaginning, Snorri encontra sua maneira de apresentar

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Thor, atribuindo ao protagonista Gangleri uma pergunta sobre os deuses Æsir, dizendo que gostaria de saber mais sobre eles. Ele obtém a seguinte resposta de Hárr:

Thor é o que mais se destaca entre eles; ele é conhecido como Asa-Thor [Thor dos Æsir] ou Oku-Thor [Thor, o condutor]. Ele é o mais forte de todos os deuses e homens. Sua morada é um lugar chamado Thrudvangar, e seu salão chama-se Bilskirnir (...). Thor tem dois bodes cujos nomes são Tanngniost e Tanngristnir, e uma carruagem que ele conduz, sendo que os bodes a puxam. Por isso ele é conhecido como Oku-Thor. Ele também tem três posses especiais. Uma delas é seu martelo Mjollnir, que, quando erguido, é bem conhecido pelos gigantes de gelo e gigantes das montanhas, o que não surpreende: o martelo já esmagou os crânios de muitos de seus pais e familiares. Thor detém outra posse muito valiosa, um cinto do poder, que quando ele veste, dobra sua força de Æsir. Ele possui uma terceira coisa também muito importante. É um par de luvas de ferro. Ele não pode estar sem elas ao segurar seu martelo. Mas não há ninguém sábio o bastante para recontar todos seus feitos, apesar de que eu posso contar-lhe tantas histórias sobre ele que muito tempo seria consumido antes que eu pudesse contar tudo o que sei (STURLUSON, 1995, p.23, tradução nossa)93.

No trecho supracitado, notamos que todos os apetrechos de Thor são citados, bem como o nome de sua morada e de seus dois bodes responsáveis por puxar sua carruagem. Curiosamente, não se nota nenhuma menção aos raios, trovões ou qualquer fenômeno meteorológico. Talvez como consequência, nenhum aspecto relacionado à fertilidade é trazido neste momento. Encontramos, contudo, clara menção ao terror que o deus representava para a raça dos gigantes, sendo conhecido por eliminá-los: “it smashed many a skull for their fathers and kinsmen” (STURLUSON, 1995, p.23). Por algum motivo, neste momento em que o deus Thor é introduzido na narrativa do Gylfaginning, aparecendo pela primeira vez, Snorri opta por ressaltar seus feitos bélicos e guerreiros enquanto matador de gigantes, bem como sua incrível força (“As-strength = “força de deus”, “força de um Æsir”), o que o enquadraria na descrição que Dumézil (1977) faz do deus como pertencente à segunda função,

93 “Thor is the most outstanding of them; he is known as Asa-Thor [Thor of the Æsir] or Oku-Thor [driving Thor]. He is the strongest of all the gods and men. His realm is a place called Thrudvangar, and his hall is called Bilskirnir.(…) Thor has two goats whose names are Tanngniost and Tanngristnir, and a chariot that he drives in, and the goats draw the chariot. From this he is known as Oku-Thor. He also has three special possessions. One of them is the hammer Miollnir, well known to frost-giants and mountain-giants when it is raised aloft, and that is not to be wondered at: it has smashed many a skull for their fathers and kinsmen. He has another possession that is very valuable, a girdle of might, and when he buckles it on his As -strenght is doubled. He has a third thing that is a most important possession. This is a pair of iron gloves. He must not be without these when he grips the hammer. But there is no one so wise that can recount all his exploits, though I can tell you so many stories about him that much time will be taken up before all I know is told” (STURLUSON, 1995, p.23). 69

assumidamente guerreira. Outro dado relevante é a aparição do epíteto Oku-Thor. Este nome aparece repetidamente ao longo do Gylfaginning para se referir a Thor mas não consta em nenhum outro material literário para designá-lo, seja na poesia eddica ou escáldica (TAGGART, 2015, p.72). Na ocasião, o próprio Snorri oferece uma suposta pista que, apesar de simplista, alega que o nome tenha alguma relação com o fato de Thor possuir uma carruagem. O autor opta por não entrar em maiores detalhes. Davidson (1990, p.76) defende que Snorri derivou o nome Oku-Thor do verbo aka que significa, em islandês antigo, “conduzir”. A tradução deste epíteto seria, portanto, algo como “Thor, o condutor”, criando uma provável ligação entre Thor e os trovões: o barulho do deus conduzindo sua carruagem pelos céus seria descrito, em outras fontes, como desencadeador dos mesmos. Simek, (2007, p. 317), por sua vez, relaciona a primeira parte da palavra, “oku”, ao deus finlandês do trovão, Ukko. Em ambas as hipóteses nos deparamos com a relação entre Thor e os trovões. Taggart (2015, p.72) rejeita uma conexão entre este epíteto de Thor e o deus finlandês Ukko, já que, apesar de apresentarem diversas semelhanças como o uso de martelos e uma (suposta) identificação desses deuses com os trovões, ainda assim, não há uma ligação etimológica entre os nomes: ao contrário do nome Thor, Ukko não significa “trovão”, ‘trovoador” ou algo do tipo, mas “homem velho”. A etimologia e a ligação entre as palavras não se sustenta, portanto, nem com uma breve análise semântica. Além disso, seria muito improvável que a descrição de Thor presente numa fonte islandesa medieval, como a obra de Sturluson o era, tivesse recebido influências de uma divindade do trovão tão distante, oriunda de direções tão ao leste quanto a Finlândia (TAGGART, 2015, p.72-73). Sobre a relação entre Oku-Thor, a carruagem e os trovões, Taggart (2015, p.73) afirma ser curioso o fato de que, explicando as conexões do nome, Snorri Sturluson não mencione os trovões, mas somente a carruagem. Se de fato havia alguma ligação entre este epíteto e os trovões, Snorri por algum motivo não achou tal conexão digna de ser mencionada. Isto seria um tanto quanto estranho, visto que no próprio Gylfaginning, ao apresentar os deuses Odin e , o autor faz questão de elencar clara alusão aos seus respectivos domínios e atuações. Isso nos leva à hipótese de que, ao menos na Islândia medieval, a relação entre a carruagem de Thor e os trovões não existia. Assim, não faria sentido relacionar o nome Oku-Thor a nada além da relação nitidamente estabelecida por Snorri entre ele e a carruagem dirigida pelo deus, e não ao trovão. É possível que esta relação não fosse conhecida por Snorri e seu público contemporâneo (TAGGART, 2015, p.73-74).

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A mais extensa e emblemática narrativa envolvendo Thor contida no Gylfaginning é a de sua jornada para o reino de Útgarða-Loki. A estória começa com Thor indo em direção ao leste em companhia de Loki, até que decidem passar a noite na casa de um camponês, que os hospeda prontamente. Faminto como de costume, Thor mata seus dois bodes, os esfola e começa a cozinha-los. O deus convida o camponês para também fazer a refeição e este traz sua esposa e seus dois filhos, o menino Thialfi e a garota Roskva. Thor deposita as peles dos bodes no chão e pede para que todos joguem os ossos dos animais dentro delas ao terminarem de comer. No dia seguinte, quando se levanta, Thor ergue seu martelo e abençoou as peles dos bodes, que imediatamente voltaram à vida. No entanto, um deles estava manco porque Thialfi, na noite anterior, partiu um dos ossos do bode para que pudesse comer o tutano. O deus ficou furioso e, enquanto mostrava seu olhar aterrador, pegou no cabo de seu martelo pronto para se vingar. Desesperado, o camponês chora e implora por piedade, oferecendo todas as suas posses em troca. Thor se acalma e diz que, em troca de sua benevolência, ficaria com os dois filhos do camponês como seus servos. Então, os quatro (Thor, Loki, Thialfi e Roskva) continuam sua jornada rumo à terra dos gigantes. Caminhando, chegam até uma enorme construção, onde decidem passar a noite, que já caía. Durante a noite houve um grande terremoto e toda a construção estremeceu. Assustado, Thor acordou, chamou pelos companheiros e, após buscarem por todos os cantos, nada encontraram. Ao amanhecer, Thor vai para fora e encontra um gigante dormindo próximo a eles, na floresta, roncando estrondosamente. Foi então que Thor percebeu o motivo dos barulhos durante a noite anterior. O deus coloca seu cinto da força e empunha seu martelo, mas hesita em desferir o golpe assim que o gigante acorda. Ele se identifica como Skrymir, afirma que já sabia da identidade de Thor e pergunta, em seguida, se gostariam de fazer a refeição junto dele. O gigante se inclina e pega sua luva, e foi quando Thor percebeu que ela era a própria construção onde haviam passado a noite. O gigante abre sua bolsa e começa a comer seu desjejum. Os outros fazem o mesmo. Skrymir pergunta se eles gostariam de dividir as provisões e, então, pega a comida de todos, a coloca numa bolsa, a amarra e fica com ela. Todos juntos continuam a caminhada, até que param para descansar e o gigante cai no sono. Thor se aproveita da situação para pegar a bolsa e tentar abrí-la, mas sem sucesso. Conforme tentava abrir a bolsa e não conseguia, o deus foi ficando tão frustrado que num dado momento ergueu mjolnir e desferiu um golpe na cabeça do gigante. Skrymir acordou e perguntou se alguma folha havia caído em sua cabeça. Mais tarde, enquanto Skrymir dormia novamente, Thor desfere um golpe ainda mais forte, bem no

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meio da cabeça do gigante. Ele acordou e perguntou se alguma noz havia caído em sua cabeça. Thor aguardou até que Skrymir dormisse novamente e lhe desfere um terceiro golpe na cabeça com toda a sua força. O martelo afundou na cabeça do gigante até a altura do cabo. Ele acorda e pergunta se por acaso haveriam caído fezes de passarinho em cima dele. Em seguida, Skrymir diz que havia chegado o momento de se separar de Thor, não sem antes avisar que o reino de Utgarð estava próximo e que seria melhor para Thor que ele não ousasse adentrar os domínios do rei Útgarða-Loki. Caso entrasse, seria aconselhável que mostrasse alguma humildade, pois os gigantes de lá não tolerariam qualquer atrevimento seu. Thor e seus companheiros continuaram sua aventura até chegarem ao portão de Utgarð. Nem utilizando de toda sua força Thor consegue abrí-lo. Eles se espremem e passam por entre as barras do portão. Chegando lá, são recebidos pelo rei Útgarða-Loki, que os trata com descaso, deboche e falta de hospitalidade. Antes de serem dignos de desfrutar da companhia dos gigantes, eles deveriam provar seu valor por meio de vários desafios. No primeiro desafio, Loki competiu contra um gigante chamado . A competição consistia em ficarem cada um em um canto de uma mesa que seria preenchida, que foi preenchida com carne. Eles então começaram a comer rapidamente até que se encontraram na metade da mesa. Loki havia comido todas as carnes e seus ossos, mas Logi havia comido as carnes, os ossos e a própria mesa, vencendo o desafio. A segunda disputa seria uma corrida entre Thialfi e um pequeno homem chamado Hugi. Ao total foram três corridas e em cada uma delas Thialfi perdeu por distâncias cada vez maiores. Finalmente havia chegado o momento de Thor passar pelos desafios. O próprio Útgarða-Loki deixou que o deus escolhesse quais de suas habilidades gostaria de colocar à prova. Thor desafiou que alguém disputasse contra ele numa desafio de bebida. Foi trazido um grande corno de onde deveria beber. O gigante disse que o ideal seria esvaziá-lo com apenas um gole, mas que algumas pessoas precisavam dar dois goles para finaziá-lo. Segundo ele, ninguém era fraco o bastante a ponto de precisar dar três goles. Thor dá o seu primeiro gole até ficar sem ar e o volume de líquido mal se mexe. Ele junta todo seu ar e dá um segundo gole, com resultado ainda pior do que o anterior. Por fim, extremamente irritado, o deus dá um último gole e lutou contra o líquido tanto quanto possível. Quando olhou para o corno, notou que havia dado apenas uma leve diferença. Útgarða-Loki oferece a oportunidade de outro desafio e Thor aceita. Ele diz que testaria a força de Thor: tudo o que o deus precisava fazer era levantar seu gato do chão. Ele o agarrou e fez toda a força que pôde, mas as costas do gato arqueavam e ele se mantinha rente

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ao chão. Por fim, Thor reuniu todas as suas forças para tentar levantar o gato do chão, mas tudo que ele conseguiu foi fazer com que ele levantasse apenas uma de suas patas. Útgarða- Loki debocha, dizendo que o deus era pequeno e franzino. Irado, o deus clama para que alguém viesse lutar contra ele para resolver isso da maneira mais direta possível. O gigante atende ao pedido e envia uma mulher idosa para lutar contra ele. A luta começou e, quanto mais Thor tentava atacá-la, mais firmemente ela se posicionava. Por fim, a mulher desfere um empurrão e Thor cai de joelhos. Útgarða-Loki interrompe a luta e diz que o desafio havia terminado: a vitória era de Eli, a mulher idosa. Terminados os desafios, o rei Útgarða-Loki os convida para passar a noite em seu reino e então os hospeda devidamente. Na manhã seguinte, Thor e seus companheiros preparavam-se para ir embora, quando percebem que o gigante havia preparado um grande e farto banquete para eles. No momento de irem embora, Útgarða-Loki caminha ao lado de Thor e lhe pergunta o que ele havia achado dessa jornada e se ele havia se deparado com alguém mais poderoso do que ele. Thor admite sua frustração e sentimento de derrota. Neste momento, Útgarða-Loki diz que contará a verdade a Thor. Antes, ele diz que Thor jamais deveria voltar para seu castelo e que, se ele soubesse antes o quanto Thor era poderoso, teria evitado que o deus encontrasse seu castelo, já que seu poder havia quase trazido uma desgraça para o reino de Útgarða-Loki. Ele conta que enganou Thor fazendo uso de magias ilusórias: foi com ele que Thor havia se encontrado na floresta. A bolsa de provisões que Thor não conseguiu abrir estava amarrada, na verdade, com um arame mágico que não revelaria onde o nó precisava ser desfeito. Os três golpes com o martelo, proferidos por Thor, haviam sido tão poderosos que teriam facilmente matado o gigante se ele não tivesse feito uso de magia ilusória e as marteladas tivessem o acertado de fato. Ele mostrou três grandes montanhas para Thor, que haviam sido feitas por meio das depressões que seu martelo causou no solo. Nas competições, Loki havia competido com Logi, que era nada menos do que o fogo. Por isso é que as chamas queimaram e consumiram a mesa tão rápido quanto consumiram a carne. Thialfi havia disputado três corridas com Hugi, que era o pensamento do gigante. Por isso não havia como ser mais rápido do que ele. Na competição de beber diretamente do corno, Thor não percebeu que sua boca estava conectada ao mar. Com a quantidade de água que o deus bebeu o nível do mar abaixou, e então surgiram as ondas. O gato cuja pata Thor conseguiu levantar do chão era a própria serpente do mundo, Jörmunganðr. Por fim, a luta entre Thor e a mulher idosa era na verdade uma luta contra a velhice: nunca existiu e nunca

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existirá ninguém que não sucumbirá e cairá de joelhos para a velhice. E, após revelar seus truques, Útgarða-Loki desaparece juntamente de seu castelo (STURLUSON, 1995, p.37-41). Davidson (1990, p.74) destaca as constantes humilhações e frustrações das quais Thor é alvo nessa narrativa, algo que se manifesta, para a autora, como o cerne da narrativa. Considerando o caráter tardio da obra de Snorri (1220 d.C), escrita numa época já posterior ao auge da religião pagã, provavelmente esse mito de Thor e Útgarða-Loki circulasse meramente como entretenimento e paródia, somente aceitável por ter sido elaborada num período em que o culto ao deus já não possuía grande relevância (DAVIDSON, 1990, p.74). Ainda assim, o mito não deixa de revelar importantes características de Thor, mesmo que usadas justamente como ferramentas para satirizá-lo. Encontramos o deus como constantemente humilhado por não conseguir atingir uma série de objetivos, quase todos relacionados à força94. Thor era várias coisas, menos fraco. Se nesse mito contado por Snorri nós temos algum tipo de paródia, então ela é inteira construída em torno de uma quebra de expectiva do público: espera-se que Thor seja forte. O próprio Snorri, ao apresentar o deus no Gylfaginning, ressalta seu poder e sua força (STURLUSON, 1995, p.22). Em todos os outros mitos e fontes primárias de que dispomos, não é possível dizer que a fraqueza faça parte dos discursos sobre Thor. A incrível força é parte essencial do que se espera do deus. Nesse mito contado por Snorri, a fraqueza de Thor se destaca enquanto elemento narrativo justamente porque, de acordo com toda uma tradição de discurso, espera- se dele o extremo oposto. Se a fraqueza de Thor é memorável ao longo dessa narrativa, é precisamente porque um dos elementos constituintes do núcleo semântico do deus é a força, nunca a fraqueza. Na narrativa em questão devemos, então, enxergar a fraqueza e impotência do deus sob a luz da força que ele frequentemente tem (SCHJØDT, 2013, p.13). Frog (2014, p.138) também não enxerga o mito de Thor e Útgarða-Loki como parte de uma tradição religiosa ou mítica. O autor alega que Snorri construiu uma paródia com base no mito de Thor e o gigante Geirrøðr, contudo excluindo a temática da busca por recuperar o instrumento do trovão roubado por um inimigo. Como visava a construção de uma narrativa cômica que fosse humilhante para Thor não faria sentido que, ao fim da mesma, o deus recuperasse seu martelo que havia sido roubado e então eliminasse o inimigo. Esse intuito

94 Lembremos das tarefas nas quais Thor falhou: não conseguiu abrir a bolsa de provisões do gigante Skrymir; desferiu três golpes na cabeça desse gigante, o último deles com toda sua força, e ainda assim não conseguiu matá-lo; não conseguiu abrir o portão do castelo de Útgarða-Loki, precisando passar por entre as grades; não conseguiu levantar o gato do chão e, por fim, perdeu em um duelo contra a mulher idosa. Todos esses feitos relacionam-se a demonstrações de força. O desafio de bebida do corno aponte mais, talvez, para a questão do apetite e da vigorosidade. 74

explicaria por que Snorri suprimiu o tema em questão. John Lindow foi um dos poucos pesquisadores que se propôs a analisar mais profundamente esta narrativa. Indo na direção oposta aos argumentos que há pouco citados, o autor diz que a visita de Thor a Útgarða-Loki de fato representaria uma tradição mítico- religiosa genuína (LINDOW, 2000, p.172). Já no prólogo do mito, quando Thor está na casa do camponês, há diversos elementos simbólicos presentes. Thor levanta seu martelo no momento de reviver seus bodes, essa propriedade mágico-religiosa de mjolnir possuiria paralelos em algumas outras fontes; além disso, quando volta à vida, um dos bodes está manco. Ao contar como o bode ficou manco, a narrativa o coloca em pé de igualdade com vários outros elementos da mitologia nórdica que apresentam cada um suas falhas: Odin não tem um dos olhos, Tyr não possui uma das mãos, o martelo de Thor possui o cabo muito pequeno, etc. Todas essas falhas seriam extensões e representações da falha primordial, ocorrida no momento de criação do universo. Na ocasião, Odin e seus irmãos assassinaram o gigante Ymir e de seu corpo fizeram o cosmos. Como havia sido Ymir quem gerou Odin e seus irmãos, temos o princípio de estruturação do universo relacionado à morte dentro da família, ao assassinato de um ser maternal, uma falha que possibilitou a criação do universo (LINDOW, 2000, p.174). Outro elemento importante no prólogo é que se trata de outro indício da proximidade de Thor com os humanos. O deus foi abrigado por uma família nuclear completa, contendo pai, mãe, filho e filha, e com eles Thor divide seus próprios bodes para que se alimentassem. Esta seria uma manifestação simbólica do vínculo entre Thor e a comunidade humana, da qual ele era o protetor e o assegurador do bem-estar. O erro cometido por Thialfi representaria nada mais do que uma violação da ritualística envolvendo Thor. Frente a esse erro o deus fica furioso e chega a empunhar o martelo, mas não o usa. Caso se vingasse, Thor estaria violando por completo seu próprio papel de protetor dos humanos. A evidência de que Thor era altamente estimado pelos homens é encontrado, por exemplo, nos diversos achados arqueológicos de seu martelo mjolnir, abrangentemente disseminado por território nórdico. Esse fato aponta para um desejo, muito difundido entre a comunidade humana, de se conectar com esse deus (LINDOW, 2000, p.173-174). Outros elementos na narrativa seriam representativos desta função religiosa e mítica de Thor como protetor dos homens. Ele os ajuda a cruzar um grande rio e, uma vez na terra dos gigantes, onde não há hospitalidade, é Thor quem encontra um lugar para pernoitarem, além de ficar de vigia na porta, exercendo sua função protetiva. Posteriormente, o gigante Skrymir

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nega comida a todo. Este ato deve ser lido como extrema afronta, visto que Thor era um deus provedor de comida e boas colheitas para as comunidades, fato percebido no próprio começo da narrativa, em que ele mata seus bodes para alimentar a todos. Depois que o gigante adormece, Thor tenta abrir sua bolsa de provisões e não consegue: a fúria de Thor vem, nesse momento, não como frustração frente à sua força que se mostrou impotente, mas como indignação por não conseguer prover comida aos humanos. Não é por menos que o deus, logo em sequência, desfere o primeiro golpe na cabeça do gigante (LINDOW, 2000, p.176). Também é possível que nesta narrativa nos deparemos com dimensões sociais de diferentes cultos. Segundo Lindow (2000, p.179), vale lembrar que Thor, a princípio, encontra-se com um camponês e é hospedado por ele. Thor providencia comida e é hospedado por esse fazendeiro, hospitalidade essa que significa o reconhecimento da posição de Thor, por parte do camponês, como uma poderosa e importante divindade. No entanto, após atravessar o mar e chegar ao castelo de um rei, um lugar infestado de elementos sobrenaturais, as mesmas regras não parecem se aplicar. Ao contrário do que ocorreu na casa do camponês, neste contexto Thor presumivelmente não faz ideia de como se comportar dentro do que um rei espera. Este pode ser um vestígio das dimensões sociais do culto a Thor, um deus do povo e dos camponeses, e não da realeza, como no caso de Odin. A visita a Útgarða-Loki revelaria, então, que Thor possui um relacionamento com os humanos muito mais próximo do que Odin. Digno de nota é, também, ter em mente que ao adentrar o reino da magia, tipicamente odínico, Thor demonstra sua dificuldade em se situar neste mundo mágico a ponto de parecer fraco e impotente, contudo, ele demonstra que pode reivindicar feitos neste âmbito. Os três golpes dados por Thor na cabeça do gigante Skrymir, apesar de não terem atingido diretamente seu alvo graças a magias ilusórias, acabou por criar três montanhas. Isso demonstra uma reivindicação de Thor como detentor de certas habilidades que também o permitem ser criador do cosmos (LINDOW, 2000, p.181). Curiosamente, durante todo o episódio da visita ao reino de Útgarða-Loki, não vemos Thor em relação com os trovões ou outras manifestações meteorológicas. Deparamo-nos com um mito cujos temas giram em torno de sua força (ou a falta dela), seu papel como protetor e amigo dos homens e sua habilidade para atos criativos. No Gylfaginning encontramos também uma das versões existentes sobre a expedição de Thor para pescar Jörmunganðr, a serpente do mundo. Desta vez o deus parte sozinho, disfarçando-se de jovem menino e partindo em direção à casa do gigante Hymir. Tendo uma vez conseguido a permissão e a hospitalidade do anfitrião, no dia seguinte Thor pergunta se

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poderia ir pescar junto do gigante. Quando este mandou que Thor conseguisse sua própria isca ele sai em direção ao gado de Hymir e decepa a cabeça de seu maior touro, Himinhriot, para usar como isca. Eles começaram a remar e foram até onde Hymir costumava pescar. Thor insistiu, dizendo que gostaria de ir muito mais adiante. Depois de muita insistência eles continuaram a remar, não sem antes ouvirem um alerta do gigante, dizendo do risco que sofriam de se deparar com Jörmunganðr. Quando os dois enfim pararam, Thor lança a cabeça do touro como isca e instantes depois Jörmunganðr morde o anzol. A serpente, então, começa a se debater e a puxar a linha, tentando fugir, e Thor conjura toda sua força para que ela não escape (a ponto de seus pés afundarem no barco, quebrando-o). Thor consegue erguê-la até o nível do barco e encara a serpente fixamente; esta o encara de volta enquanto cospe veneno. Vendo esta cena, o gigante Hymir entra em pânico, chegando a ficar pálido e, justo no momento em que Thor erguia seu martelo e o balançava no ar, o gigante corta a corda de pesca com sua faca. Thor chega a arremessar seu martelo na direção da serpente e alguns dizem que sua cabeça foi arrancada. Contudo, o narrador, Hárr, afirma que o contrário é que seria a verdade e que Jörmunganðr, portanto, permanece vivendo no fundo do oceano (STURLUSON, 1995, p.46-47). É curioso que no fechamento da narrativa o autor ofereça ao leitor a possibilidade de que a serpente tenha continuado viva, logo após ter afirmado que Thor teria acertado sua cabeça ao arremessar o mjolnir. No entanto, o leitor não permanece por muito tempo com as duas possibilidades coexistindo em sua mente, pois dando sequência à leitura do Gylfaginning chega o momento em que os acontecimentos do Ragnarök são narrados e a serpente reaparece para duelar uma última vez com Thor. Hilda Davidson (1990, p.89) defende que o mito de Thor pescando a serpente do mundo provavelmente circulou de maneira ampla e frequente durante a Era Viking, já que são conhecidos outros poemas, de autores diferentes e datados de antes do ano 1000, descrevendo a pesca95. Muito provavelmente, estes são os predecessores da narrativa feita por Snorri (DAVIDSON, 1990, p.90). Para Turville-Petre (1977, p.76), Sturluson se baseou nos poemas escáldicos para construir seu próprio mito da pesca da serpente, mas resolveu preservá-la para que depois ela pudesse batalhar contra Thor no momento do Ragnarök, de modo a conferir uma linearidade cronológica aos acontecimentos no Gylfaginning, que consistia uma obra coletada e sistematizada. Muito provavelmente, contudo, nas versões trazidas pela poesia escáldica é

95 Além de ser narrada por Snorri Sturluson no Gylfaginning, a pesca de Thor e a serpente do mundo aparece nos poemas escáldicos Ragnasdrapa (Bragi, século IX); Húsdrapa (Ulfr Uggarson, 985 d.C); Gnævaðarskáld (Gamli, século X) 77

provável que Thor de fato terminasse a narrativa eliminando a serpente, o que seria um desfecho comum em todas as estórias em que deuses lutam contra terríveis monstros (TURVILLE-PETRE, 1977, p.76)96. Certamente que Snorri Sturluson retirou seu relato das poesias escáldicas no que diz respeito de Thor e a pesca de Jörmunganðr. Várias versões do mito circulavam neste formato durante a Era Viking: em alguns deles a serpente terminava morta (Húsdrapa) em outros, não (Ragnardrapa). É necessário ressaltar que o mito em questão, no modo como foi (re)contado por Snorri, havia passado por uma filtragem racionalista muito maior do que os poemas eddicos vieram a passar. Por exemplo, no relato conferido por Snorri não há a menção de tremores no planeta quando a serpente fisga o anzol e é puxada por Thor, deixando de fora alguns aspectos etiológicos do mito. Acontece que a serpente, devido ao seu enorme tamanho, encontra a própria cauda com a boca, dando a volta em todo o mundo. Dentro desta perspectiva, apesar de ser um monstro ameaçador, Jörmunganðr era responsável por constituir o grande equilíbrio cósmico, concedendo estabilidade para as terras e montanhas. Quando Thor a fisga, removendo-a de seu local no fundo do oceano, esse equilíbrio cósmico é abalado, causando um tremor assustador que foi omitido do relato de Snorri, mas conta no poema Hymiskvida (LANGER, 2015, p.454-456).

1.3.2 O Skáldskaparmál

Snorri Sturluson escreveu este capítulo com o intuito de esclarecer de maneira mais direta as metáforas e figuras de linguagem que poderiam ser utilizadas na poesia. Visando atingir esse fim, o autor cria duas personagens, Bragi, deus dos poetas, e Aegir, espécie de personificação dos oceanos, e coloca ambos em uma discussão prosódica. Neste capítulo Snorri fez uso extensivo de diversos elementos mitológicos, etimológicos e, por vezes, citações diretas oriundas da poesia escáldica. Por conta disso, temos acesso a certas poesias escáldicas, citadas integralmente em sua obra, que não sobreviveram em outros materiais e que não nos seriam acessíveis nos dias de hoje se não fosse por Sturluson (LANGER, 2015, p.144). A primeira vez em que Snorri coloca Thor em questão no Skáldskparmál é para exemplificar quais heiti e kenningar podem ser utilizados para nomear o deus. Curiosamente, nenhum deles o relaciona, ao menos de maneira direta, com trovões ou fertilidade:

96 Para ilustrar seu argumento, o autor elenca os exemplos dos deuses-heróis de diversas mitologias, como Indra, Marduk e Sigurð (TURVILLE-PETRE, 1977, p.76). 78

Como devemos nos referir a Thor? Chamando-o de filho de Odin e Iord, pai de Magni e Modi e Thrud, marido de Sif, padrasto de Ull, detentor e regente de Mjollnir e do cinto do poder, e de Bilskimir, defensor de Asgard, Midgard, inimigo e matador dos gigantes e esposas de troll, assassino da serpente de Midgard, filho adotivo de Vingnir e Hlora (STURLUSON, 1995, p.72)97.

Portanto, ou as poesias escáldicas às quais Snorri tinha acesso não apresentavam figuras de linguagem relacionando Thor a fenômenos meteorológicos e fertilidade98 ou então, por algum motivo, o autor resolveu não compila-las. Em seguida, Snorri narra o episódio da batalha entre Thor e o gigante Hrungnir. O gigante havia conseguido entrar em Asgard graças a uma aposta que havia feito com Odin. Uma vez lá dentro, exigiu que lhe dessem uma bebida, coisa que as normas de hospitalidade obrigavam os deuses a de fato fazerem. Eis que ao ficar bêbado Hrungnir começa a dizer que levaria para a terra dos gigantes, enterraria Asgard e mataria todos os deuses exceto e Sif, as quais ele levaria para sua casa. Não demorou muito para que os deuses se cansassem e invocassem Thor, que imediatamente adentrou os portões de Valhalla e, furioso, ergueu seu martelo. No entanto, como Odin havia garantido ao gigante que ele estaria seguro, não havia nada que Thor pudesse fazer, caso contrário isso figuraria uma grande desonra. O gigante, então, desafia Thor para um duelo na fronteira de Griotunagardar. Thor estava sedento pelo combate, pois ninguém havia o desafiado para um duelo formal antes. Ao voltar para sua terra e contar sobre o duelo, todos os gigantes enxergaram a situação como uma grande oportunidade. Contudo, como Hrungnir era o mais poderoso da raça dos gigantes, eles temiam que ele moresse e eles perdessem seu mais forte guerreiro. Então, eles fizeram uma enorme pessoa de argila e, para trazê-la à vida, colocaram um coração de uma égua. Hrungnir, por sua vez, possuía um coração feito de pedras sólidas e com um formato dispondo de três grandes pontas. Sua cabeça também era feita de pedra.

97 “How shall Thor be referred to? By calling him son of Odin and Iord, father of Magni and Modi and Thrud, husband of Sif, stepfather of Ull, ruler and owner of Miollnir and the girdle of might, of Bilskirnir, defender os Asgard, Midgard, enemy and slayer of giants and troll-wives, killer of Hrungnir, Geirrod, Thrivaldi, lord of Thialfi and Roskva, enemy of the Midgard serpent, foster-son of Vingnir and Hlora” (STURLUSON, 1995, p.72). 98 No mesmo trecho Snorri também cita diretamente outros kenningar e heiti utilizados por diversos poetas para se referir a Thor: Bragi, Olvir Hnufa, Eilif, Eystein Valdason, Gamli, Thorbiorn Disarskald e Ulf. Nenhum deles faz alusão a Thor como relacionado à fertilidade ou a nenhum fenômeno da natureza/meteorológico, nem sequer aos raios e trovões. O que mais se aproxima disso seria uma citação do poeta Ulf, que o chama de “gigante do vau do Vimur”. Vimur é um rio que Thor atravessou, com muita dificuldade, para chegar ao reino do gigante Geirrod. 79

No dia do duelo, Hrungnir e o homem de argila, Mokkurkalfi, esperavam por Thor. O gigante havia escolhido uma pedra de amolar para usar como arma. Ele estava com tanto medo que, ao ver Thor, molhou suas calças. Antes do duelo começar, Thialfi, ajudante de Thor, foi até o gigante e disse que ele estava montando sua guarda da maneira errada: seu escudo estava na sua frente, mas Thor pretendia atacá-lo por baixo. Hrungnir, então, colocou seu escudo no chão e ficou em cima dele e segurou a amoleira com as duas mãos. A seguir, ouviu trovões e viu grandes raios e Thor surgiu arremessando seu martelo. Em resposta, o gigante atira sua pedra, que vai de encontro ao martelo, e ambos se chocam; a pedra se partiu em duas: uma parte caiu no chão e dela foram originadas todas as pedras de amolar, e a outra se alojou na cabeça de Thor. O martelo do deus, por sua vez atingiu a cabeça do gigante e despedaçou seu crânio em vários pedaços. Voltando para Thrudvangar, Thor visita a feiticeira Groa para que ela tente remover a lasca de pedra de sua cabeça. Ela faz seus encantamentos e a pedra começa a se soltar. Quando Thor percebe o movimento da pedra, na certeza de que ela será removida, ele sente que gostaria de agradar a feiticeira em troca. Assim, o deus começa a contar sobre como ele estava em Elivagar e encontra Aurvandil, marido de Groa. Thor o coloca em uma cesta para leva-lo de volta para casa, mas um dos dedos de Aurvandil ficou para fora da cesta e congelou. Thor, então, arrancou o dedo e o arremessou aos céus, criando a estrela conhecida como “dedo de Aurvandil”. Em seguida, ele diz a Groa que não demoraria muito para que Aurvandil estivesse em casa novamente. De tão emocionada e satisfeita, a feiticeira não conseguiu mais lembrar de seus feitiços e, assim, a lasca de pedra continua cravada na cabeça de Thor (STURLUSON, 1995, p.77-80). Dumézil (1977, p.69) aponta para o fato de toda a narrativa ter acontecido com base em um duelo99, descrito como o primeiro de Thor. Esta seria uma incoerência estranha, visto a proficiência do deus na arte do combate, mas é um fato significativo. Toda a situação de formalidade de um duelo estruturado para Thor seria algo que remete a rituais de iniciação guerreira tipicamente indo-europeus. Nesses rituais é comum que o jovem guerreiro trave uma batalha, em algum momento, contra um boneco, fantoche ou réplica do verdadeiro inimigo. No duelo contra Hrungnir, os gigantes criam Mokkurkalfi, o homem de argila que faz o papel deste boneco. Para Dumézil (1977, p.69), aliás, o próprio Hrungnir detenteria traços que o remetem ao simbolismo deste boneco de batalha: seu escudo, sua arma, seu coração e sua cabeça são todos feitos de pedra, deixando fácil com que seja associado a algum tipo de

99 Snorri claramente fazia alusão aos duelos de forma estruturada e regulada, o que se nota pelo uso dos termos hólmganga, skora hólm e einvígi, que possuíam suas regras, regulamentações e especificidades (ALVES, 2018). 80

estátua. É possível que no mito em questão os gigantes tivessem criado Mokkurkalfi para que ele substituísse Hrungnir no duelo, já que a própria narrativa enfatiza o medo que eles tinham de que Hrungnir morresse, visto que era o mais poderoso de sua raça. Talvez o intuito fosse ter substituído Hrungnir por Mokkurkalfi, plano que não pôde ser concretizado porque Thor chegou muito cedo ao local de duelo. Como Thor enfrentaria o próprio gigante, o mito se encarregou de conferir, também a ele, as características de um boneco, que seriam suas partes de pedra. Dessa forma, tanto Thor, que lutou contra Hrungnir, quanto Thialfi, que lutou contra Mokkurkalfi, enfrentaram “bonecos”, “manequins”. É possível que tenhamos aqui a existência de um ritual de iniciação guerreira em Thialfi, um humano que enfrenta, ao lado de um deus, a réplica do próprio inimigo do deus (Dumézil afirma ser isto menos improvável, já que nem antes e nem depois dessa narrativa Thialfi apresenta traços guerreiros). Outra possibilidade é que o próprio iniciado seja Thor, que enfrentava um inimigo com características de um “boneco” e quem, segundo a narrativa, participava de um duelo formal pela primeira vez. Se for este o caso, trataria de um ritual não de iniciação, mas de adentramento a um novo e mais alto patamar da classe guerreira (DUMÉZIL, 1977, p.70). Segundo Dumézil (1977, p.70), esse mitologema do herói sendo iniciado ao matar ritualisticamente a réplica de um monstro possui diversos paralelos em outras mitologias indo-europeias e, inclusive, na saga de Hrolf Kraki. Além disso, o autor chama a atenção, também, para o coração de três pontas de Hrungnir que, para ele, deve ser classificado como mais uma dentre as várias manifestações tripartidas de inimigos dos deuses: o adversário de três cabeças do deus Indiano Indra e do deus iraniano Feridun; Meche, criatura de três corações, morta por Mac Cecht; os três Nechtain, adversários de Cu Chulainn, etc. O posicionamento de Dumézil frente a narrativa da batalha de Thor contra Hrungir seria, portanto, o de que ela representa algum tipo de ritual estruturado de iniciação de jovens guerreiros (DUMÉZIL, 1977, p.71). John Lindow (1996) enxerga a temática deste mito de maneira diferente. Para ele o duelo, conforme está descrito, remete à época pré-cristã da Escandinávia. Ele lembra que, no momento em que Snorri escreveu sua obra, os duelos já haviam sido proibidos e, portanto, para uma audiência medieval cristã, os duelos formalizados pertenciam claramente ao passado pagão e a seu modo intrínseco de validar resultados por meio de lutas formais. Na Islândia do século XIII, quando a Edda em Prosa foi escrita, os duelos eram muito mais um produto do imaginário a respeito de seus próprios antepassados, do que parte de uma realidade concreta.

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É possível que no mito do duelo contra Hrungnir haja uma alusão ao modo pagão de se conduzir a resolução de impasses (LINDOW, 1996, p.12). É notável o fato de que Hrungnir se equipa com um escudo mas é facilmente ludibriado por Thialfi, dizendo-o que não segure o escudo, mas coloque-o em seus pés e fique em cima dele. Quando o gigante aceita este conselho ele se mostra como portador de dupla ignorância: primeiramente, de uma ignorância cultural a respeito de como os escudos funcionavam em duelos e, em segundo, um desconhecimento sobre a mitologia e os próprios domínios do deus Thor, que sempre estiveram relacionado ao ar e à atmosfera, e não à terra e ao mundo subterrâneo, de onde Thialfi disse que o deus viria para atacar. Aliás, a ajuda conferida por Thiálfi na narrativa expressa também certo sentimento religioso de que, para o pleno sucesso dos deuses é necessária a interação destes com os humanos (LINDOW, 1996, p.14). A respeito das atribuições mitológicas conferidas a Thor neste mito, Snorri, desta vez, traz diretamente uma menção de raios e trovões, conectando-os com a fúria de Thor e o ataque de seu martelo:

Então Hrungnir cravou o escudo embaixo de seus pés e ficou em cima dele, e segurou a pedra amoleira com as duas mãos. Em seguida ele viu raios e escutou trovões. Então ele viu Thor em sua fúria divina, viajando em enorme velocidade, ele balançou seu martelo e o arremessou em Hrungnir a uma grande distância (STURLUSON, 1995, p.79, tradução nossa)100.

Segundo Lindow (1996, p.17), este mito demonstra claramente as atribuições mitológicas de Thor, outorgando a ele o domínio dos ares e dos fenômenos meteorológicos que nele acontecem, como os raios e trovões descritos por Snorri no momento em que o deus ataca Hrungnir. Há ainda outras manifestações desse aspecto, pois, ao confrontar o gigante pela primeira vez, ainda em Asgard, Thor ergue seu martelo “no ar”. Inclusive, além de Thor conduzir uma carruagem pelos céus, erguer seu martelo e lançá-lo (atos que acontecem obrigatoriamente no ar) e associar-se a chuvas, raios e trovões (fenômenos meteorológicos oriundos do ar), o deus é filho de Jörd, nome atribuído à própria terra. Talvez por isso os atos do deus repetida e marcadamente tomem lugar no âmbito dos céus e dos ares, pois uma violação da terra, sua própria mãe, seria inconcebível. Hrungnir demonstra um desconhecimento também deste aspecto, já que, do contrário, saberia que um ataque subterrâneo de Thor seria inconcebível (LINDOW, 1996, p.14).

100 “Then Hrungnir shoved the shield beneath his feet and stood on it, and held the whetstone with both hands. Next he saw lightnings and heard great thunders. Then he saw Thor in an As -rage, he was travelling at an enormous rate and swung his hammer and threw it from a great distant at Hrungnir” (STURLUSON, 1995, p.79). 82

A respeito da estrela de Aurvandil, Lindow (1996, p.16-17) ressalta a função cosmogônica de Thor101. Durante suas constantes lutas para manter a ordem e estrutura cósmicas, protegendo-as das forças do caos simbolizadas nos gigantes e gigantas, Thor acaba atuando algumas vezes como próprio criador, como no caso do dedo de Aurvandil arremessado aos céus para criar uma estrela102. A narrativa de todo esse epísodio, desde quando Odin permite a entrada do gigante Hrungnir em Asgard, passando pelo seu duelo contra Thor e terminando no relato da estrela feita do dedo de Aurvandil, simboliza uma reivindicação de Thor, direcionada a Odin, como sendo, ele também, um deus de importância criativa e cosmogônica (LINDOW, 1996, p.19). O episódio de Thor batalhando contra Hrungnir e posteriormente pedindo o auxílio da feiticeira Groa é descrito também no poema escáldico Haustlöng (“Um longo outono”). Ele é datado do século IX d.C e foi composto por Þjóðólfr de Hvinir. Dividindo-se em duas partes, o poema traz, primeiramente, um relato sobre o rapto e o resgate da deusa Idunna e, em seguida, o combate entre Thor e Hrungnir. É muito provavelmente que ele tenha sido a principal fonte na qual Snorri Sturluson se embasou para oferecer seu relato prosaico. O poema, aliás, encontra-se na Edda em Prosa, citado integralmente (em teoria) por Snorri, logo após ter conferido ele mesmo seu relato do mito em questão. O poema consta nos manuscritos R e W da Edda em Prosa, mas na versão U ele é somente mencionado (LANGER, 2018, p.224). O poema supostamente descreve cenas mitológicas pintadas num escudo que o poeta Þjóðólfr teria recebido de um certo Þorleifr, mas ele certamente somou a isso seu próprio conhecimento mitológico para expandir o que estava meramente ilustrado e, assim, confeccionar seu poema (SIMEK, 2007, p.133). A movimentação de Thor rumo ao local do duelo é descrita com muita ênfase no poema. Encontramos, então, diversos fenômenos geológicos e meteorológicos retratados como consequência dos movimentos do deus103. Este fato, para Davidson (1990, p.76), indica que a relação entre Thor e a violência das tempestades não estava de forma alguma esquecida na Islândia medieval. Contudo, apesar de reconhecer que o poema cita outros fenomênos naturais, a autora não se deteve sobre esse ponto. Declan Taggart (2015; 2017a; 2017b), ao contrário, prestou muita atenção aos

101 Lindow (1996, p.17) enfatiza até mesmo o nome de Aurvandil, cuja primeira parte componente da palavra assemelha-se ao nome de Aurgelmir, o proto-gigante citado no poema Vafþrúðnismál. 102 Inclusive, Thor se vangloria deste ato de maneira direta no poema eddico Hárbarðsljóð. 103 “The son of Iord [Thor] drove to the game of iron [battle] and the moon’s way [sky] thundered beneath him”; “All the hawk’s sanctuaries [skies] found themselves burning because of Ull’s stepfather [Thor], and the ground all low was battered with hail”; “’s brother [Thor] did not spare there the greedy enemy of men [Hrungnir]. Mountains shook and rocks smashed; heaven above burned” (STURLUSON, 1995, p.17). 83

fenômenos descritos em Haustlöng. Apesar de ser um crítico ferrenho da descrição de Thor como um “deus dos trovões”, tida por muitos estudiosos como garantida e inquestionável, Taggart afirma que neste poema escáldico há uma relação explícita entre Thor e os trovões. O poeta descreve a ocorrência de trovões devido à movimentação do deus em sua carruagem, constituindo uma das mais claras descrições de alguma conexão mais segura entre o deus e o trovão (TAGGART, 2015, p.76). Ainda assim, o movimento de Thor em sua carruagem produzir trovões não é algo que o ligue intrínseca e exclusivamente ao trovão: vários outros deuses possuem carruagens104 e pode ser que essa conexão entre elas e os trovões se dê por conta do barulho das rodas ao se locomoverem. Taggart também argumenta que possivelmente a descrição de grandes fenômenos naturais e distúrbios no ambiente podem constituir figuras de linguagem, talvez metafóricas, utilizadas pelo poeta para ressaltar as dimensões do deus e seu poder colossal105. Exemplos dessa natureza que ocorrem em outros textos e com outros seres da mitologia nórdica (TAGGART, 2015, p.78). Outro fato destacado por Taggart (2017a, p.100) seria o de que os raios e trovões produzidos por Thor no poema Haustlöng parecem ser desencadeados sem qualquer intenção consciente ou proposital do deus, mas simplesmente como fruto de seu deslocamento que, em seguida, gera ainda outras calamidades. Visto por essa ótica, seria possível que essa relação entre os trovões e as rodas da carruagem tenha se expandido e passado a englobar outros fenômenos que seriam por ela causados, como os terremotos e deslizamentos descritos por Þjóðólfr. Isso faria sentido sobretudo porque na Noruega, onde o poema escáldico foi composto, os deslizamentos e terremotos não são incomuns (TAGGART, 2017a, p.104). Taggart (2017a, p.114) defende que na literatura escandinava medieval é provável que circulasse um entendimento cultural de que o deslocamento de agentes supernaturais causasse terremotos ou, no caso da Islândia, erupções vulcânicas. Isso explicaria uma passagem em Haustlöng que descreve montanhas e chão em tremor e fogo voando aos céus, algo que sem dúvidas remete à imagem de um vulcão em erupção106. O poema se detém no detalhamento do percurso de Thor até o local de batalha tanto quanto se detém no relato da batalha em si. A violência, o abalo e o impacto de Thor no cenário atestam em prol do lado forte, poderoso e

104 Freyr, Freyja, Baldr e possivelmente Odin (TAGGART, 2015, p.77-78). 105 “Þjóðólfr’s use of thunder and lightning is fundamentally implicated into the representation of strength, as much as earthquakes and eruptions are elsewhere” (TAGGART, 2015, p.109); Rather, any powerful supernatural agent might have been thought capable of producing such noise in its travels – compare the thunder of Freyr’s horse or of Sleipnir on the bridge to , for example(…)” (TAGGART, 2015, p.78); “The movements of powerful beings in Old Norse mythology are often signalled by quaking of one kind or another” (TAGGART, 2015, p.92). 106 “Mountains shook and rocks smashed; heaven above burned” (STURLUSON, 1995, p.17). 84

heroico de Thor tanto quanto sua vitória no duelo (TAGGART, 2017a, p.114). Portanto, o fato de que no poema Haustlöng Thor causa trovões e raios tanto quanto desencadeia outros fenômenos naturais não permite alegarmos que se trate de uma alusão clara a Thor como um “deus dos trovões”, mas simplesmente uma atestação do impacto que o poder, as dimensões e a força do deus exercem sobre o ambiente (TAGGART, 2017a, p.115- 116). Ainda que houvesse tal associação no poema que, ressaltando, foi composto na Noruega durante o século IX, por algum motivo ela foi forte e presente o suficiente para que se mesclasse às descrições feitas por Snorri Sturluson acerca de Thor. Nem ao mesmo no relato da visita do deus a Utgarða-Loki, onde nos deparamos com uma série de explicações etiológicas que envolvem a reconfiguração do mundo natural (nascimento de montanhas, surgimento das ondas) os raios e trovões aparecem relacionados a Thor e não são sequer mencionados (TAGGART, 2017b, 130). Talvez isso aconteça devido ao fato de que na Islândia, onde Sturluson escreveu sua obra, as tempestades carregadas de raios e trovões são raridade, ao contrário do que acontece no restante da Escandinávia (TAGGART, 2017a, p.116). Por sua vez, Langer (2018c) trata dessa narrativa por outro viés, partindo da etnoastronomia. Para isso, o autor fez de suas fontes os relatos trazidos por Snorri Sturluson a respeito do mito no Skáldspkaparmál e também o poema Haustlöng. A parte da narrativa que trata de Aurvandil seria a que mais oferece conteúdos de correlação astronômica, apesar de que a parte que a antecede, em que Thor luta contra Hrungnir, revela motivos atmosféricos107. Pode ser que o nome Aurvandil tenha proximidade etimológica com a palavra sámi Veralden tjoelte, utilizada por esses povos para designar a estrela Polaris mas cujo significado literal seria “pilar do mundo”. Possivelmente há alguma relação também com a palavra em nórdico antigo Veraldar nagli, “prego do mundo”, um heiti empregado na Edda em Prosa para se referir a pregos em pilares com significado religioso. Muitas culturas por toda a Eurásia representam a estrela Polaris, visível no hemisfério norte, como sendo um prego no céu. Essa noção conecta-se à concepção de uma cosmologia vertical e é provável que tenhamos, na narrativa de Aurvandil e seu dedo, esse mesmo simbolismo do “prego do mundo” ou “prego do céu”. A própria adição do primeiro nome, o ctônico aurr, feita por Snorri Sturluson, revela uma intenção do autor em apresentar à sua audiência uma informação

107 Langer (2018c, p.226-227) elenca como exemplos o céu invocado de forma poética, aparecendo relacionado à passagem de Thor com sua carruagem e os relâmpagos decorrentes; o choque entre o martelo de Thor e a arma de Hrungnir (a amoladeira), o que remeteria a uma natureza atmosférica típica das divindades do trovão indo- europeias. 85

de cunho cosmogônico (LANGER, 2018c, p.230). É importante mantermos vívida a imagem de Thor durante essa parte do mito: com uma lasca de pedra cravada na cabeça, o deus procura a esposa de Aurvandil, a feiticeira Groa, para que ela consiga removê-la. Conforme afirma Langer (2018c, p.230-231), temos a ocorrência de fontes relacionando o culto a Thor com pilares que possuíam pregos na ponta, como na Öndvegissúlur e na Eyrbyggja saga 4. Esses pilares eram chamados de Regingaddi, “prego dos deuses”, e Veraldarnagli, “prego do mundo”. Pode ser que Snorri Sturluson tenha tido acesso a alguma versão da mitologia celeste de Thor, resolvendo, então, eleger para ele uma expressão popular atrelada à estrela Polaris com base em seus aspectos religiosos e cosmológicos (LANGER, 2018c, p.231).

Figura 6: Reconstituição de um culto a Horagalles, deus sámi do trovão. A estátua dá ênfase somente à cabeça do deus, notando-se que não foram representados seus braços ou pernas. Cravado em seu corpo e atravessando-o, está um martelo. Em sua cabeça há um prego cravado, que sustenta uma corrente em que está amarrada uma pedra, possivelmente uma pederneira. Fonte: PICART, Bernard. Cérémonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde, 1723.

A identificação da estrela Polaris com o genetivo veralden é possível por conta de uma tradição etimológica de associá-la com a ideia de um “prego” do mundo, “estrela” do mundo ou “centro” do mundo, algo existente somente nos idiomas do islandês antigo, finlandês e sámi. A associação entre os termos Aurvandil e Veralden é perceptível somente numa tradição popular próxima à região do Báltico, da Islândia, do Norte da Suécia e da Noruega

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(LANGER, 2018c, p.231). O fato de que, no mito, a feiticeira Groa não consegue remover a lasca de pedra alojada na cabeça de Thor é uma possível alusão ao fato de que, assim como a pedra, a estrela Polaris permanece visualmente fixa no céu. Contudo, Langer (2018c, p.234) defende uma dupla referência, feita pela narrativa, ao mesmo objeto: não só a pedra cravada na cabeça do deus, como também a própria estrela criada a partir do dedo de Aurvandil são menções diretas à Polaris. O pesquisador (LANGER, 2018c, p.234) sintetiza os acontecimentos no mito da seguinte forma: a feiticeira tenta mover a lasca da cabeça de Thor (microcosmo: simbolizado pelos pilares com pregos na extremidade), enquanto que a estrela havia sido criada durante a jornada para a casa de Groa (macrocosmo: o próprio firmamento). Podemos notar que o mito em questão não somente relaciona Aurvandil e Thor com a estrela Polaris, mas segue além, inserindo-a na narrativa com um sentimento criador e cosmológico108, e não meramente como simples estrela de orientação. As implicações advindas deste detalhe são relevantíssimas, pois revogam a antiga ideia de que um pilar que sustentava o mundo teria sido uma invenção nórdica completamente original e independente, mostrando que ela, na verdade, é uma adaptação tardia de alguma crença mais antiga e provinda de uma área muito mais ampla (LANGER, 2018c, 236-237). Há uma última narrativa na Edda em Prosa na qual Thor aparece como protagonista, dessa vez visitando a terra do gigante Geirröðr. Na ocasião, Loki havia prometido ao gigante que conseguiria levar Thor para suas terras desprovido de seu martelo, seu cinto da força e suas luvas de ferro. Por sorte, durante sua jornada para os domínios de Geirröðr, Thor pernoita na casa de uma giganta chamada Grid. Ela lhe dá conselhos sobre o inimigo que o deus enfrentará e, além disso, lhe empresta suas luvas de ferro e seu cinto da força, além de um cajado. Em seu caminho, Thor enfrenta grande dificuldade para conseguir cruzar o rio Vimur, chegando a quase se afogar. Finalmente ele repara que na nascente do rio estava Gialp, filha de Geirröðr, e ela estava fazendo o fluxo de água e correnteza aumentarem com sua urina. Ele arremessa uma grande pedra na direção da giganta, acertando-a, e então consegue cruzar o rio. Thor e Loki chegam a uma espécie de cabana e entram. Lá, se depararam com uma única cadeira, onde Thor se sentou imediatamente. Passado pouco tempo, ele percebe que a cadeira está sendo erguida veementemente em direção ao teto e logo percebe que são Gialp e Greip, filhas de Geirröðr, que estão pressionando seu assento para esmaga-lo. Thor pega o

108 Thor também está relacionado à criação de caráter cosmológico na poesia eddica Hárbarðsljóð, em que se encontra com o gigante Tiazi e, após mata-lo, transforma seus olhos em estrelas (LANGER, 2018c, p.250). 87

cajado que Grid havia lhe emprestado, coloca sua ponta no teto e faz força para pressionar no sentido contrário, para baixo, e assim ele mata ambas as gigantas ao quebrar-lhes as costas. Em seguida, o deus chega ao salão de Geirröðr. O gigante arremessa um pedaço brilhante de ferro recém-fundido na direção de Thor que, graças às luvas emprestadas por Grid, consegue pegar o pedaço de ferro e arremessar de volta, na direção do gigante. Este correu para trás de um pilar para se proteger, mas não adiantou: o deus atirou o pedaço de ferro com tanta força que ele atravessou o pilar, o próprio Geirröðr e a parede que havia depois. Nos deparamos com outro mito presente na Edda em Prosa que não faz alusão alguma a raios e trovões. Ao invés disso, notamos mais uma vez o exarcebamento da grande força e poder físicos de Thor, fosse ao matar o gigante ou ao quebrar as costas de suas filhas. Ao término dessa narrativa Snorri Sturluson menciona sua fonte, o poema Þórsdrapa109, escrito no fim do século XIII pelo escaldo Eilífr Goðrunarson. O poema de Eilífr é então reproduzido na íntegra, no qual não notamos mudanças significativas se comparado à versão em prosa do mito recontado por Snorri110 (SIMEK, 2007, p.103). Nesse mito, Thor decide fazer essa perigosa jornada sabendo que não portava seu martelo e nenhum de seus outros apetrechos mágicos. Além disso, dessa vez o deus não decide se disfarçar, como acontece no poema eddico Þrymskviða, no qual se disfarça de Freya e finge que se casará com um gigante. Uma vez adentrado o domínio do gigante, Thor é sujeito a uma série de desafios relacionados diretamente à sua força, desde sua dificuldade em atravessar o rio, passando pelo momento em que precisou evitar ser esmagado pelas gigantas, até o momento em que arremessa de volta o ferro fundido em direção ao gigante. É curioso notar que temos, nessa narrativa, grande ênfase conferida à força e poder de Thor sem a presença de seu martelo e acima de tudo sem qualquer menção a raios, trovões e chuvas. Além do mais, ao contrário do que acontece em Þrymskviða, aqui não há qualquer explicação sobre como Thor está desprovido de mjolnir (FROG, 2011, p.89). Frog (2014, p.135) trabalha com a hipótese de que nesse mito Geirröðr seria a representação da figura do ferreiro, ressaltando que é com um pedaço de metal fundido que o gigante tenta eliminar o deus. Compreender este gigante como um ferreiro seria central para o entendimento da narrativa. Antes de elaborarmos melhor esse argumento é necessária uma

109 Apesar da data de sua escrita, o poema escáldico Þórsdrapa constitui uma exaltação dos grandes feitos de Thor, inclusive sua vitória contra o terrível gigante Geirröðr e suas filhas. Formal e estruturalmente, este é tido como um dos mais complexos e espetaculares cantos escáldicos sobrevividos até os dias de hoje. O uso de certas figuras de linguagem próprias do estilo, como os kenningar, foram feitos no poema de maneira complexa e repleta de virtuosismo (LERATE, 1993, p.178). 110 A única exceção talvez seja o misterioso fato de que, ao término do mito conforme contada na Þórsdrapa, por algum motivo Thor está com seu martelo (STURLUSON, 1995, p.85). 88

recapitulação: dessa vez, não há utilização do mjolnir ou de qualquer forma dos trovões e raios por parte do Thor e a narrativa, ao contrário de tantas outras, não enfoca em um duelo nascido do contraste “entre Thor e seu inimigo, quem detém o maior poder de controlar os elementos naturais, como o raio”, dos quais o deus sempre saía vitorioso. No caso de Geirröðr, esse contraste originário do duelo se daria em outro aspecto. Ao ver o pedaço de ferro fervente vindo em sua direção, Thor é apto a agarrá-lo e arremessá-lo de volta ao gigante, matando-o no ato. É possível que esteja sendo representada, nos moldes dessa narrativa, a superioridade de Thor em sua relação com os metais e com as tecnologias para o trabalho na forja. Em outras palavras, se Geirrödr era um ferreiro, Thor provou ser um ferreiro ainda melhor e detentor, portanto, também desse domínio. Se somarmos a isso o fato de que na versão em Þórsdrapa é descrito Thor surgindo misteriosamente com seu martelo após matar o gigante, pode ser que o poeta esteja sugerindo que o resgate do martelo tenha acontecido no salão de Geirröðr. Temos, portanto, o relato de que o martelo foi obtido de um ferreiro, apontando para possibilidades etiológicas no mito (FROG, 2014, p.139-140).

1.4 A Edda Poética

Edda poética é o nome dado a uma coleção de poemas escritos em nórdico antigo, considerada pelos pesquisadores do assunto como sendo a maior fonte para o estudo da mitologia escandinava. Ela encontra-se preservada principalmente em um manuscrito conhecido como Codex Regius, descoberto em 1643 d.C numa fazenda da Islândia por Brynjólfur Sveinsson. No total constam 29 poemas no manuscrito, do qual oito folhas foram perdidas, constituindo a chamada “grande lacuna”. Algumas edições atuais apresentam a Edda Poética com 35 a 37 poemas, retirados de outros manuscritos, como o AM 748 I 4to (LANGER, 2015, p.146). Segundo Langer (2015, p.147), o Codex Regius é datado da segunda metade do século XIII, sendo tradicionalmente considerado como cópia de um manuscrito mais antigo que o antecedeu. Este teria sido redigido até aproximadamente 1220 d.C., mas foi perdido. Seguindo os passos típicos da tradição oral germânica, os poemas eddicos são anônimos e não oferecem quaisquer referências sobre as circunstâncias de sua produção ou seu autor. Grande parte das composições poéticas presentes na Edda são oriundas da Islândia, mas algumas delas foram feitas também em países como Noruega, Dinamarca, Ilhas Britânicas e de fontes germânicas continentais, fato esse que permite a elaboração da hipótese de uma conjuntura pan-indo-

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europeia. Apesar de reunidos num mesmo corpus, os poemas são individuais e não possuem relação direta entre si. Dessa forma, não encontramos no Codex Regius a constituição de uma narrativa unificada, sistematizada, cronológica e coerentemente distrubída em diversos poemas. Os conteúdos nele dispostos não obedecem a qualquer linearidade ou casualidade inter-relacional dos poemas. Também não há qualquer evidência de que, antes do surgimento do Codex Regius, esses poemas circulassem todos num mesmo material. Costuma-se atribuir a autoria original desses conteúdos aos escaldos, os poetas cortesãos frequentadores da aristocracia da Escandinávia e das partes nórdicas da Inglaterra e Irlanda. Os poemas são comumente considerados por toda uma tradição acadêmica como tendo sido compostos por pagãos para uma audiência igualmente não cristianizada, transmitidos com precisão por meio de uma complexa técnica métrica e um vocabulário altamente refinado e metafórico (LANGER, 2015, p.147). O nome Edda e sua origem são ainda muito discutidos. Já surgiram explicações tentando relacionando-a a palavra óðr, que significaria “poesia, poema”. Em algumas obras literárias islandesas, Edda aparece como nome próprio utilizado para mulheres e pode ser que signifique “bisavó”. Pode ser, assim, que ela tenha sido derivada das palavras eddumál ou eddasaga, que se traduziriam como “contos da bisavó”, algo que parece viável e se relacione à transmissão de um conhecimento antigo (LANGER, 2015, p.146; SIMEK, 2007, p.69). Contudo, durante a Idade Média essa palavra era empregada num sentido mais abstrato para se referir à “poética”, o que pode indicar o significado original de Edda como sendo, na verdade, um termo de cunho literário. Como Snorri Sturluson, escritor da Edda em Prosa, certamente tinha algum conhecimento da língua latina, é provável que ele tenha derivado edda do latim edo, cujo um dos significados possíveis é “eu componho”. Este teria sido um processo análogo ao que foi feito com a palavra em islandês antigo kredda, “credo, superstição” que teria, por exemplo, sido derivada do latim credo, “eu acredito” (FAULKES, 1995, p.xx). Simek (2007, p.69) também defende esta última hipótese como altamente possível. É importante ressaltar que diversos poemas, conteúdos, narrativas e temas mitológicos da Edda Poética circulavam amplamente desde que foram escritos/compilados. Inclusive, eles inquestionavelmente serviram de base para a Edda em Prosa de Snorri Sturluson (1220 d.C) e a Gesta Danorum de Saxo Grammaticus (1200 d.C) (LANGER, 2015, p.147).

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1.4.1 Þrymskviða

Þrymskviða (“A canção de Þrym”) é aquele que talvez seja o poema eddico mais amplamente discutido e retomado pelos acadêmicos que propõem analisar a imagem de Thor. O encontramos registrado somente no Codex Regius, mas, diferentemente de outros poemas oriundos do mesmo manuscrito, nenhum trecho do Þrymskviða é citado por Snorri Sturluson em sua Edda em Prosa e sequer é detectável alguma utilização de temáticas narrativas análogas como inspiração para o autor. Tratando-se de poesia eddica, esse é o único caso em que isso acontece. A tradição acadêmica inicialmente considerava que o poema tivesse sido composto entre os séculos IX e X e pertenceria, nesse caso, à própria Escandinávia pagã. Contudo, recentemente trabalha-se com a ideia de que esta é uma composição pós Era Viking que teria sido escrita, na verdade, entre os séculos XII e XIII (LANGER, 2015, p.503-506). A narrativa basicamente gira em torno de um dia em que Thor acorda e percebe que seu martelo havia desaparecido. Ele encabe Loki de descobrir quem o havia roubado e ele descobre que o martelo estava em posse do gigante Thrym que pede, em troca, a deusa Freyja em casamento111. Eles em seguida tentam convencer a deusa de realmente se casar com o gigante, ao que ela, obviamente furiosa, responde com recusa112. Como resolução, o deus Heimdall sugere que o próprio Thor se disfarçasse de Freyja, vestindo-se de noiva, e então recuperasse o martelo113. Os dois viajam para a terra de Thrym rumo ao suposto casamento, com Thor de fato vestindo-se de noiva. Após serem recebidos e começarem o banquete, o gigante fica surpreso com o apetite de Thor e Loki trata de oferecer explicações. Por fim, chega o momento da cerimônia e o Thrym ordena que o martelo seja trazido e colocado no colo da noiva para abençoá-la114. Assim que isso é feito, Thor pega seu martelo e mata Thrym e todos os gigantes no recinto115. Dumézil (1973, p.67-68) aponta para uma inversão narrativa no mito. Geralmente, Thor está ausente do enredo, longe, “ao leste, matando gigantes”, até que algum problema surge e coloca os deuses e/ou humanos em situação de risco. Imediatamente após ser invocado, Thor

111 “I have Hlorridi’s [Thor] hammer/eight leagues under the earth/no man will ever take it back again,/unless he brings me Freyia as my wife” (LARRINGTON, 2014, p.94). 112 “Furious then was Freyia and snorted in rage,/the whole hall of the Æsir trembled at that,/the great necklace of the Brisings fell from her:/You’ll know me to be the most man-mad of women,/of I drive with you to the land of the giants” (LARRINGTON, 2014, p.95). 113 “Then Heimdall said, the whitest of the gods-/he knows the future as do the Vanir too:/Let’s tie on Thor a bridal head-dress,/let him wear the great necklace of the Brisings” (LARRINGTON, 2014, p.95). 114 “Then said Thrym, lord of ogres:/’Bring in the hammer to sanctify the bride, lay Mjollnir on the girl’s lap,/consecrate us together by the hand of Var!” (LARRINGTON, 2014, p.97). 115 “Hlorridi’s [Thor] heart laughed in his breast,/when he, stern in courage, recognized the hammer;/first he killed Thrym, lord of ogres,/and battered all the race of giants” (LARRINGTON, 2014, p.97). 91

surge para punir os inimigos dos deuses que haviam sido os responsáveis pela situação (obviamente, os gigantes). Em Þrymskviða Thor não somente participa dessa punição e resolução finais, como também está presente no momento do risco inicial que desencadeia toda a narrativa. Essa inversão do mito, trazendo Thor ao momento em a problemática nasce, possui paralelos em outras fontes e representa um traço narrativo estranho, peculiar e único, assim como o fato de Thor se vestir de mulher. É possível que as explicações para isso transcendam a mitologia (DUMÉZIL, 1973, p.67-68). No mito em questão é ressaltado, mais uma vez, o papel de Thor como eliminador dos gigantes. Inclusive (e curiosamente), o poema enfoca especialmente na morte de uma giganta, a irmã velha de Thrym, depois que Thor já havia matado todos os outros gigantes no recinto116. John Lindow (2014, p.127-129) não crê que esse fato seja arbitrário: após ter eliminado todas as ameaças no salão e ter punido, com a morte, aquele que havia roubado seu martelo, a morte da giganta não era necessária (ao menos, nenhum elemento textual aponta para ela como ameaça). Esse fato é significativo, ainda mais se somado ao entendimento de que Thor era realmente um deus especializado em eliminar gigantes do sexo feminino e que, nesse mito, quando a deusa Freyja é pedida em casamento pelo gigante em troca da devolução do martelo, Thor de fato cogita a troca e pede a Freyja que se ofereça. Caso não tivesse se recusado, a deusa possivelmente teria sido trocada pelo martelo. Percebemos, com esses dados, que há majoritariamente um elemento feminino nos problemas e nos inimigos de Thor (LINDOW, 2014, p.129). A recusa de Freyja é duplamente ofensiva para Thor a nível de sexualidade e papel de gênero. Primeiramente, porque ao se recusar a ir e casar-se com o gigante, sobra para Thor o disfarce de noiva. Em segundo lugar, porque Freyja alega que assumir esse papel seria uma difamação e implicaria em um “apetite sexual feminino em excesso”. Frog (2014, p.88) enxerga que o cerne do mito na verdade não é a recuperação e resgate do martelo que havia sido roubado, mas a humilhação de Thor por meio de diversas transgressões de gênero que, em plena Escandinávia medieval, seriam ultrajantes para um deus tão masculino e vigoroso117. Contudo, alguns detalhes nesse mito apresentam-se como muito atípicos. Não há

116 “He killed the old sister of the giants,/she who’d asked for the gift from the bride/striking she got instead of shillings,/and hammer-blows instead of heaps of rings” (LARRINGTON, 2014, p.97). 117 Freyja se recusa a casar com o gigante e Thor é obrigado a se travestir de noiva e ir rumo à terra do gigante. Thor é obrigado a acatar a resposta de Freyja, mas não consegue que sua própria opinião seja considerada. O fato de ter perdido seu martelo enquanto dormia, acordando, depois, “impotente”, pode ser um símbolo de castração fálica e de um estupro. Depois, quando o martelo é posto no colo do desmasculinizado Thor, ele agora se regojiza de recuperar seu falo, usando-o em todo mundo (CLUNIES-ROSS, 2002, p.190). 92

nenhuma menção clara a alguma ameaça feita pelo gigante sobre destruir Asgard, eliminar os deuses ou então dizer que levaria Freyja à força caso não quisesse se casar com ele. Não há qualquer indício de que o martelo de Thor fosse temido ou cobiçado pelos gigantes, pois funcionou, aqui, como mero instrumento de câmbio. Nada no mito relaciona mjolnir aos raios e trovões, como é comum acontecer nas narrativas de vários povos que possuem estórias sobre o roubo do instrumento de fazer trovões (FROG, 2014, p.78-88). Há traços estranhos na própria figura de Thor, pois o seu ato de oferecer Freyja ao gigante é completamente o oposto de seu papel de defensor dos deuses. Vários outros aspectos não possuem paralelos em nenhuma outra fonte mitológica, como a existência de Thrym e associação entre Thor (ou seu martelo) e as noivas. Aparentemente, o único intuito do mito é fazer Thor ser humilhado e sentir-se tolo e impotente por conta da transgressão de gênero. Por isso esta constitui, provavelmente, uma narrativa tardia que não representa nenhuma forma de tradição religiosa (FROG, 2014, p.88). Turville-Petre tem uma posição de certa maneira ámbigua sobre o Þrymskviða. O autor afirma simultaneamente que o poema é uma sátira tardia objetivando uma caricatura de Thor, que foi construído, no entanto, sobre camadas de mitos mais antigos. Dessa forma, ele defende que o poema que a princípio era uma sátira acaba por apontar para questões ritualísticas em torno do mjolnir, que então não funcionaria exclusivamente como arma para fins ofensivos. Em certos contextos, o martelo enquanto símbolo de fertilidade poderia ser usado dentro de um ritual para abençoar a noiva (TURVILLE-PETRE, 1977, p.81). Davidson (1990, p.80) adota uma postura similar em relação ao poema, alegando ser de fato um indicador confiável de que o martelo de Thor era utilizado na consagração das noivas. Visando sustentar seu argumento, a autora defende que inscrições em pedra na área da Escandinávia, datadas da Idade do Bronze, mostrariam figuras em situação análoga a um ritual de casamento. Uma das figuras perceptivelmente ergue um martelo ou machado para o alto durante a cerimônia. Esse (supostamente) seria um costume antigo na Escandinávia e, no mito, Thor espera pacientemente porque sabia que chegaria o momento em que o martelo seria depositado em seu colo como parte da cerimônia, e ele então poderia reavê-lo (DAVIDSON, 1990, p.80). Não encontramos em nenhuma outra fonte o relato do rapto do martelo mjolnir. É possível que a menção ao colar de Freyja (o Brísingamen) e a utilização de alguns poucos tenham sido recursos empregados pelo poeta para dar um toque mais antigo à sua composição. O fato de que esse tema narrativo não aparece em nenhum poema escáldico e de

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que nem o próprio Snorri, profundo conhecedor da Edda em Prosa, faz qualquer menção a esse episódio, levanta a suspeita de que seja de fato uma composição tardia do fim do século XIII ou começo do XIV. Outra possibilidade é a de que o poema seja de fato antigo, mas não de origem islandesa, tendo se tornado conhecido na região somente durante a Idade Média tardia (SIMEK, 2007, p.331). Continuando nessa linha de pensamento, em outro de seus artigos Frog (2011, p.147) defende veementemente que o Þrymskviða foi uma composição tardia que começou a circular pós Era Viking. Esta composição seria muito mais uma balada folclórica medieval do que uma poesia eddica, em relação à qual ela não apresenta nenhum paralelo linguístico, estrutural, métrico e nem mesmo mitológico118. Colocando o poema numa perspectiva mais ampla, comparando-o com mitos de outros povos que também são classificados como ATU 1148B119, surgem mais incongruências. A mais discrepante delas é a completa ausência de qualquer relação entre mjolnir (ou Thor) e o trovão, algo que é tido como essencial nessas narrativas. O rapto do martelo não é em momento algum relacionado à escassez de chuva, ameçando a própria humanidade; nem mesmo quando o martelo é recuperado, sua relevância social como criados dos trovões (e, portanto, das chuvas) é mencionada. A conclusão a que Frog (2011, p.153) chega é que Þrymskviða foi muito provavelmente uma composição burlesca cuja base mitológica central foi, de fato, uma narrativa do tipo ATU 1148B. O poema teria sido uma composição tardia que já não retratava crenças religiosas em volta da narrativa e se orientava, então, para longe de tradições vernaculares desse tipo de mito. O pesquisador atribui a data de criação do Þrymskviða como sendo o século XIII, feito para uma audiência já cristã e mostrando-se como um produto de tensões e conflitos entre os discursos cristãos e as crenças antigas e vernaculares (FROG, 2011, p.153).

118 “There is no evidence of the Þórr-bride reflex in any form outside the Germanic Nordic cultures, and within Nordic cultures it is not found outside the of Þrymskviða itself and later singing traditions adapted from it. Unlike other adventures of Þórr with significant adversaries, Þrymskviða is not attested in other contemporary or earlier sources: there is no reference to the narrative, mythic events specific to it (e.g. Þórr borrowing Freyja’s necklace) and even the name of the adversary could be newly created by the Þrymskviða poet. Most remarkably, Þórr’s gender-transgression is never mentioned in insult-exchanges with other gods, in spite of the express statement within the text of the poen that it will be used by other gods to humiliate him. The ‘myth’ in Þrymskviða appears curiously divorced from all other evidence of the mythology and indeed Þrymskviða’s later reception presents the possibility that it may have essentially been a popular song that was never seen as connected to belief traditions” (FROG, 2011, p.147). 119 ATU 118B (ATU= Aarne-Thompson-Uther, de acordo com as classificações sistematizadas no livro Types of International Folk Tales). Basicamente, são as narrativas onde há o rapto do instrumento criador do trovão (geralmente um martelo, machado ou algum instrumento de sopro) por parte de alguma entidade maligna e o deus do trovão, disfarçado e acompanhado de um ajudante, vai às terras do inimigo p ara recuperá-lo. Uma vez lá, o adversário do deus tenta fazer o instrumento funcionar e não consegue, desafiando o deus (que está disfarçado) para que o faça. Nesse momento, o deus do trovão retoma a posse da arma, a faz funcionar e elimina o inimigo. Essa narrativa é encontrada em povos germânicos, fino-úgricos (finlandeses, estonianos, sámis), bálticos (lituanos, letões) e há até mesmo um caso grego (FROG, 2014, p.78). 94

Langer (2015, p.508) critica as abordagens que insistem em definir o Þrymskviða como produto tardio e não pertencente ao universo da antiga religião. O principal problema das abordagens analíticas que o mito recebe, segundo o autor, é o enfoque demasiado na questão do travestimento de Thor. Assim, o todo costuma ser explicado pela parte, ao contrário do que deve acontecer. O mito diante do qual estamos em Þrymskviða deve ser visto como uma narrativa que envolve a busca pela harmonia natural do cosmos, que havia sido rompida com o roubo do martelo, o que remete ao caos tipicamente representado pelos gigantes. A partir desse momento, toda a estória centra-se na figura de Thor se disfarçando de mulher: este acontecimento não se deu por conta de nenhuma vontade do deus, mas justamente porque o caos havia sido instalado previamente (roubo do martelo), desencadeando uma série de desordens. Dentre elas, surge a desordem de gênero, fazendo paradoxalmente com que um deus excessivamente masculinizado precise se vestir de mulher para resgatar a ordem. Notamos que apesar disso a sexualidade de Thor permanece implicitamente intocada, considerando o momento em que, na hora do banquete, ele come e bebe como um típico guerreiro viking: apenas sua troca de vestimenta denota uma identidade social feminina, mas não os marcadores sociais de seu comportamento. Assim que resgata seu martelo, Thor auxilia na volta do equilíbrio do universo. A própria artimanha da qual mjolnir foi alvo retrata intrinsecamente uma concepção pagã no relato conferido pelo Þrymskviða, que seria a de que o cosmos é instável e enigmático em suas atuações. Certamente que, além desse viés teogônico, o texto é extremamente bem-humorado e não pode ser lido com uma moral cristã de ‘desvios’ de condutas e normatizações. No cotidiano (e nas crenças) dos nórdicos medievais, os deuses estavam extremamente próximos à realidade dos homens e não seria problema algum que algum deles fosse retratado em situação humorada e inesperada, ainda mais considerando o humor lascivo tipicamente nórdico. Portanto temos, no Þrymskviða, um relato teogônico (e simultaneamente cômico) legitimamente pré-cristão (LANGER, 2015, p.508-510). Uma abordagem com viés distinto é oferecida por Taggart (2017), que enxerga, na descrição do movimento de Thor e sua carruagem, o fenômeno do vulcanismo cuja causa seria o próprio deus120. Segundo o pesquisador, o detalhamento conferido ao impacto da presença de Thor e seus bodes no ambiente claramente evoca a imagem de montanhas se rachando e expelindo lava. Rompendo com toda uma tradição acadêmica, Taggart (2017a,

120 “Quickly the goats were driven home,/hurried into the harness, they were going to gallop fast;/the mountains split asunder, the earth flamed with fire,/Odin’s son was driving to Giant-land” (LARRINGTON, 2014, p.96). 95

p.115) recusa a hipótese de que o relato das montanhas se rachando com o passar de sua carruagem esteja relacionado a raios e trovões que descem de suas rodas e atingem o chão. No poema não é detectável a menção direta a nenhum desses dois fenômenos atmosféricos e no idioma original nota-se, pelo contrário, o uso dos verbos logi e brenna que, em outros escritos islandeses, não só relacionam-se ao fogo, mas situações análogas a erupções. Contudo, o próprio pesquisador adverte que qualquer afirmação dessa espécie é permeada por incertezas. A literatura islandesa medieval era, de maneira geral, muito propensa a descrever uma série de fenômenos naturais e calamidades para ilustrar o movimento de seres poderoso, um tipo de caracterização esperada para quem, como no caso da poesia escáldica ou eddica, desejava cativar sua audiência. Além disso, pode haver paralelamente um objetivo etiológico, já que a Islândia era especialmente sujeita a vulcanismos (TAGGART, 2017a, p.117). Por fim, o estudo de Campos (2017) se deteve sobre certos simbolismos do poema que não haviam recebido atenção até então, principalmente os que envolvem a gula de Thor. Para a autora, este seria um traço fundamental da cultura e sociedade nórdicas, algo que teriam herdado dos povos germânicos. Ao demonstrar seu apetite insaciável, Thor estaria encarnando esse símbolo da gula enquanto um fator determinante de força, virilidade, vigorosidade e marcialidade, características indispensáveis a um líder. Graças à força advinda especialmente da carne, tanto homens quanto deuses fortaleciam-se e estavam aptos, dessa forma, a enfrentar seus inimigos ou adversidades impostas pela natureza ou então, como no caso de Thor, que partissem em jornadas seu objeto de poder, o martelo (CAMPOS, 2017, p.163-164). Para Campos (2017, p.167), a grande oferta de comidas (principalmente a carne de boi, que não era comumente ingerida pelos meros camponeses, muito menos em situações corriqueiras) e a fartura do banquete indicam que a terra dos gigantes também era um lugar de abundância, riquezas e poder. Thor não só devora um boi inteiro, como consome, em seguida, oito salmões. Frente a esse acontecimento, Thor não só demonstra sua gula, mas, acima de tudo, prova que sua força extrema advém da ingestão das mais variadas carnes em grande quantidade. Em pleno casamento, cerimônia que celebra novas alianças políticas, militares e o começo de uma nova família, o deus não se preocupa em esconder seu inesgotável apetite, não deixando que sobre nenhuma iguaria nem mesmo para as mulheres. Ele reforça, assim, sua força e poder frente aos inimigos que, vale lembrar, serão derrotados pelo deus nos versos seguintes. Consumindo excessivamente a carne e tendo suas forças renovadas Thor, no momento em que reavê seu martelo, mata todos os gigantes no recinto (CAMPOS, 2017, p

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169). Ao analisarmos a narrativa de Þrymskviða por esse viés notamos que, mesmo travestido de mulher e colocando-se numa posição social e sexualmente vulnerável, há indícios presentíssimos do poder e força de Thor que continuaram manifestados ainda com essa inversão inesperada de papéis. Isso nos leva a não enxergarmos esse mito como única e exclusivamente diminuidor e humilhante para Thor, forçando-nos a manter aberta a questão das possíveis recepções que ele teve para a audiência escandinava medieval (e, consequentemente, se o mito trazia um viés cristão e/ou burlesco, ou então genuinamente pagão).

1.4.2 Hárbarðsljóð

O poema Hárbarðsljóð (“Canção de Harbard”) encontra-se preservado integralmente no manuscrito Codex Regius (Gks 2365, 4to) e parcialmente no Codex Arnamagnæanus (AM 748 I, 4to). Atribui-se sua data de composição como sendo o século IX, provavelmente em território norueguês, já que a forte oposição entre nobreza e camponeses trazida pelo poema não era tão intensa na Islândia. Alguns outros pesquisadores afirmam que a versificação e outras peculiaridades linguísticas apontariam para uma data mais tardia, por volta do século XI (LANGER, 2015, p.232). Esse poema, que constitui uma espécie de balada mitológica, difere muito de outras composições da Edda, tanto em métrica quanto em conteúdo. Ele descreve um encontro entre Thor e Odin (este, disfarçado de balseiro e atendendo pelo nome de Hárbarðr). Retornando de uma jornada do leste onde estava matando gigantes, Thor pede a ajuda do balseiro para cruzar um rio, mas seu pedido é negado. O balseiro começa, então, a debochar de Thor e a diminuí-lo, fazendo-o parecer um camponês brutamontes121 sem inteligência, coragem ou masculinidade. O poema em sua totalidade foca neste duelo que, por meio de diálogos, busca estabelecer quem sai vitorioso do debate como o mais glorioso e dono de mais feitos (SIMEK, 2007, p.130). Em sua tentativa de vencer o debate mostrando-se detentor de poderosos feitos, Thor não menciona ao balseiro ser ele o governante dos ares, trovões e raios. Ou, por algum motivo, esses domínios não eram centrais ao deus Thor quando o poeta compôs sua obra, ou

121 “It doesn’t look as if you own three decent farms;/barelegged you stand, wearing your beggar’s gear/you don’t even have any breeches” (LARRINGTON, 2014, p.66). 97

então, para o debate em questão, o fato de Thor presidir esses fenômenos atmosféricos não foi visto como fato relevante para destaca-lo em detrimento de Odin. Os únicos feitos que o deus destaca estão justamente relacionados às suas demonstrações de força, principalmente ao relatar poderosos gigantes que havia eliminado122. Para o autor do poema, os feitos de Thor dignos de nota se mantinham como sendo aqueles em que o deus agia como protetor dos deuses e homens123. Odin, em seu disfarce de Hárbarðr, estava mais preocupado em ressaltar seus episódios amorosos, provavelmente destacando sua masculinidade124. Grande parte da tradição acadêmica enfoca num trecho muito específico do poema, que seria uma manifestação das diferenças de culto e de função entre Thor e Odin125. Simek (2007, p.130) alega ser esse não somente o cerne do poema, como também o apíce para onde todo o duelo verbal caminha. Lindow (1996, p.19) segue a mesma trilha e enfatiza que Hárbarðsljóð se apresenta como um poema que contrasteia e ordena os dois deuses. O recurso narrativo empregado busca conferir crédito a essa ordenação e diferenciação, colocando as palavras saindo da boca dos próprios deuses. Neste embate, Odin curiosamente se gaba de seu poder de sedução, enquanto Thor se esforça para que sua função como matador de gigantes (e gigantas) seja devidamente reconhecida (LINDOW, 2014, p.128). Ainda assim, Thor é claramente derrotado e posicionado hierarquicamente abaixo de seu pai Odin. Isso acontece não por conta de alguma desimportância de seus feitos, pois esses indubitavelmente não são pequenas coisas, mas devido ao campo em que a disputa se deu: no duelo verbal e no reino da poesia, estes sabidamente regidos por Odin (LINDOW, 2000, p.181). Dumézil (1977, p.71) não acreditava que em Hárbarðsljóð estivesse presente uma disputa entre os diferentes cultos. Para ele, o conteúdo não foi composto visando humilhar e diminuir um dos deuses enquanto o outro era glorificado em favor dos adeptos de seu culto. O diálogo no poema seria mero pano de fundo onde as diferentes naturezas divinas dos deuses eram explicadas e colocadas de maneira mais evidente, o que consistiria também num modo de elucidar quais serviços Odin e Thor poderiam oferecer dentro da estrutura teológica da religião pré-cristã dos nórdicos. Seja lido como uma descrição funcional e teológica ou um duelo de cultos às duas

122 “I killed Thiazi, the powerfu-minded giant” (LARRINGTON, 2014, p.68); “Berserk women I battled in Hlesey” (LARRINGTON, 2014, p.71). 123 “I was in the east, and I fought against giants,/malicious women, who roamed in the mountains;/great would be the giant race if they all survived:/there’d be no humans within Midgard.” (LARRINGTON, 2014, p.69). 124 “I slept with the seven sisters and I got all their hearts, and pleasure from them.” (LARRINGTON, 2014, p.68); “Mighty love-spells I used on the witches,/those whom I seduced from their men” (LARRINGTON, 2014, p.68). 125 “Odin owns the nobles who fall in battle/and Thor owns the race of thralls” (LARRINGTON, 2014, p.69). 98

divindades manifestado em poema, Thor e sua relação com os fenômenos atmosféricos não surge e não teria sido relevante para nenhum dos dois fins. O autor decidiu ressaltar os feitos do deus em relação ao extermínio de gigantes.

1.4.3 Hymiskviða

Composto entre os séculos X e XI, o poema Hymiskviða (“A balada de Hymir”) está preservado tanto no manuscrito Codex Regius quanto no AM 748 I 4to. Nos deparamos com uma narrativa extremamente semelhante ao poema eddico Þrymskviða, considerando que ambos são relativamente curtos se comparados a outras composições da Edda Poética e seu enredo é consideravelmente similar. Apesar disso, há algumas diferentes sobretudo métricas e estruturais. Hymiskviða apresenta uma grande quantidade de kennings formados por um vocabulário complexo e denso que remete a vários outros episódios e seres da mitologia nórdica, tornando sua compreensão dificultosa. O Þrymskviða apresenta uma narrativa mais fluente e memorizável (LANGER, 2015, p.259). O poema consiste essencialmente em três mitos que se interconectam; começando pela busca de Thor para obter o caldeirão do gigante Hymir, seguindo para a temática da pesca da serpente do mundo por parte do deus e, por fim, abordando o aleijamento de um de seus bodes. Snorri Sturluson claramente tinha conhecimento desse poema, pois integrou os dois últimos mitos na sua Edda em Prosa. Diferentemente do que é descrito em Hymiskviða, Snorri optou por conectar o episódio dos bodes de Thor à narrativa de sua ida para Utgárða- Loki, e não no episódio da pesca com o gigante Hymir. Além disso, a avaria causada ao bode é culpa de Loki, e não de Thialfi. Curiosamente, Snorri ou não conhecia o mito da busca pelo caldeirão ou resolveu, por algum motivo ainda obscuro, não recontá-lo (SIMEK, 2007, p.168). O poema conta sobre quando os deuses resolveram fazer uma grande festa e encabem o gigante Ægir de preparar o banquete. Ele requisita que Thor busque um enorme caldeirão126 onde poderá preparar a bebida para a festa, coisa que só pode ser obtida do gigante Hymir e obviamente mediante grande perigo. Acompanhado de Tyr, Thor parte em busca do caldeirão e, assim que se deparam com o Hymir, a narrativa logo se torna uma competição de demonstração de força, como é típico dos mitos envolvendo Thor. Um dos desafios propostos

126 “he asked Sif’s husband [Thor] to fetch him a cauldron,/’in which I can brew the ale for all of you. To the east of Elivagar/lives Hymir the very wise, a the sky’s end;/my father, the brave man, owns a cauldron./a capacious kettle, a league deep” (LARRINGTON, 2014, p.75). 99

era que Thor conseguisse isca para a pesca , ao que o deus responde trazendo a cabeça de um enorme touro127. Eles começam a remar até o gigante dizer que não ousaria ir para mais longe, mas Thor procede128. A serpente do mundo, Jörmunganðr, morde a isca e Thor a puxa para cima, no barco. Ele chega a atingí-la na cabeça com seu martelo, mas a serpente escapa129. Para Larrington (2014, p.74), o banquete que, no início do poema, é a própria razão de ser da narrativa, seria reflexo de práticas da realeza escandinava, em que o rei força sua autoridade sobre as pessoas ao ir em suas casas e exigir um banquete em sua homenagem. Langer (2015, p.260) concorda com este aspecto, lembrando que os poemas éddicos e escáldicos eram compostos por poetas, que os apresentavam ao mundo real e aristocrático. Esses poemas não eram concebidos tendo os camponeses como público alvo. Portanto, mesmo sendo esse um mito sobre Thor, deus amplamente cultuado pelos camponeses, o poema parece ser destinado essencialmente aos propósitos de manutenção política e social oriundos da aristocracia, refletindo as práticas da realeza que reforçam sua autoridade. Todo o motivo desencadeador da narrativa é a vontade manifesta dos deuses em banquetearem. Não fosse isso, Thor não sairia em busca do caldeirão de Hymir e consequentemente acabaria por não se deparar com Jörmunganðr e ter a chance de mata-la. Portanto, o mito em questão é um exemplum criado pela aristocracia que invertia seu público alvo: ele visava alcançar o homem simples, fazendeiro, dono de poucas posses e incentivá-lo a realizar suas tarefas cotidianas e de subserviência em prol de um “bem comum”, assim como Thor fez no mito quando Odin (deus dos reis e da realeza) o ordenou. Sendo Thor um deus extremamente querido e popular entre os camponeses, sua utilização como exemplo para a subordinação teria sido sem dúvidas satisfatória para a elite escandinava (LANGER, 2015, p.261). Meulengracht Sørensen (2002) enxerga no Hymskviða a nova versão de um mito que teria sido baseada em materiais mais antigos, conforme revelam a poesia escáldica e as fontes iconográficas. O único relato dessa narrativa que esteja tão completo quanto no poema em questão encontra-se no Gylfaginning de Snorri Sturluson, que com certeza se baseou numa série de relatos antigos dos mais diversos e os compilou, unificando-os em seu próprio texto. Nesse sentido, o autor provavelmente teria se embasado fortemente na poesia escáldica e em

127 “That ogre-slayer [Thor] broke off from the bull/the horn’s high meadow, tore off its head” (LARRINGTON, 2014, p.76). 128 “The lord of goats [Thor] told the ape’s offspring [Hymir]/to row the launchway-horse out further/bu the giant said, for his part,/he wasn’t eager to row further out” (LARRINGTON, 2014, p.77). 129 “Then very bravely Thor, doer of great deeds,/pulled the poison-gleaming serpente up on board./With his hammer he violently struck, from above/the hideous one, the wolf’s intimate brother’s [Jörmunganðr] head” (LARRINGTON, 2014, p.77). 100

outras versões do mito que deveriam ter circulado desde a Era Viking, pois uma série de materiais iconográficos revelam o conhecimento dessa narrativa já nessa época130. Um problema fundamental ao lidarmos com possíveis variações de um mito é assegurar que estamos de fato comparando variantes de um mesmo relato, e não de relatos em si diferentes. Para contornar esse problema, Sørensen (2002, p.126) disseca a narrativa da pesca de Thor, visando expôr seus elementos constituintes e integrais ao mito. Primeiramente, e de maneira mais óbvia, é necessário constatarmos a presença de Thor e da serpente, seu inimigo. Outro elemento imprescindível é o barco usado pelo deus no momento da pesca e, em seguida, a presença da cabeça do touro, usada de isca. Por fim, e não menos importante, é crucial a presença do gigante Hymir. Feita essa filtragem o autor logo afirma ser necessário encararmos com ceticismo as pedras de Gosforth e de Ardre131. Para ele, as pedras de Hørdum e de Altuna provavelmente eram registros do mito em questão pois, além de representarem todos esses elementos integrais do mito, também revelam o pé de Thor rompendo o fundo do barco, em consonância com o relato de Snorri sobre o acontecimento. Isso não só revelaria que tais monumentos ilustram de fato narrativas da pesca de Thor, como também apontam que Snorri teria se embasado em outras tradições do mito além da poesia escáldica (estas não contam sobre o pé do deus rompendo o fundo do barco), fontes nas quais o rompimento do barco era um detalhe estável. É possível que Snorri e o próprio autor da Hymskviða tenham se baseado nessas fontes iconográficas, algo que é possível, apesar de não ter como ser atestado (SØRENSEN, 2002, p.127). Em consonância com Langer (2015), Sørensen (2002, p.128) também enxerga uma temática de equilíbrio cósmico. No momento em que Thor fisga a serpente e a puxa para a superfície, temos diante de nós uma representação, tipicamente nórdica, da oposição universal entre os poderes do cosmos e os poderes do caos. O deus puxa Jörmunganðr para cima, tirando-a de seu reino de atuação, ela, por vez, tenta puxar Thor para baixo, tirando-o de seu reino de regência. Essa é uma forte representação verticalizada da batalha entre os diferentes elementos, diferentes forças constituintes do universo, a dramatização pela busca do equilíbrio. Quando a serpente é fisgada e puxada para a superfície ocorrem grandes tremores

130 A tradição acadêmica costuma considerar como ilustrações da pesca da serpente feita por Thor uma série de monumentos das mais variadas datações. Entre eles encontram-se a pedra de Altuna (começo do séc.XI); a pedra de Hørdum (entre os séculos VIII-XI); a pedra de Gosforth (séc.X); Ardre III (séc.VIII). Já os poemas escáldicos que traziam o relato eram o poema de Bragi, provavelmente parte integrante do Ragnarsdrápa (séc.IX) e o Húsdrápa, por Úlfr Uggason (SØRENSEN, 2002, p.123). 131 O autor encara com ceticismo esses monumentos porque não revelam com precisão todos os elementos constituintes da narrativa. Contudo, no caso da pedra de Hørdum a cabeça do touro também não está presente, o que ele cogita ser decorrência de uma erosão no monumento (SØRENSEN, 2002, p.127). 101

porque o equilíbrio cósmico havia sido rompido.

Figura 7: Pedra de Hørdum. Uma figura humanóide (possivelmente Thor) é retratada segurando uma grande linha em cuja outra extremidade está uma figura serpentiforme. Os pés de Thor parecem ter vazado o fundo do barco de tanta força para segurar a serpente que fisgou a isca, em consonância com o que a fonte escrita do mito descreve. Fonte: http://www.germanicmythology.com/works/TMThorsFishing.html. Acesso em 13/10/2018.

Figura 8: Detalhes da pedra de Altuna. Fonte: https://de.wikipedia.org/wiki/Runenstein_von_Altuna. Uma grande figura humanóide está representada no topo da ilustração, portando um martelo e situada em um barco. Assim como na fonte escrita, seus pés aparentemente quebraram o fundo do barco. Em sua outra mão há uma espécie de linha que segue para a parte de baixo da ilustração. Na outra extremidade, uma figura serpentiforme entrelaçada em si mesma é retratada. Acesso em 13/10/2018. 102

A pesca, no entanto, é o ápice de uma narrativa muito mais longa. Nos acontecimentos que a precedem, é necessário vislumbrarmos a presença do gigante Hymir. Thor é quem visita o gigante e adentra seu reino. Em seguida, o gigante é o responsável por transportar o deus até a água, para muito além do que ele próprio costumava remar: Hymir é quem torna a jornada máxima de Thor possível, transportando-o do mundo civilizado (Ásgard e Midgard) rumo à natureza selvagem, indomável e caótica, onde a serpente vive. O próprio gigante encarnava essa dicotomia dos espaços que terminava por descrever essa transitoriedade entre mundos, pois era fazendeiro e pescador. Enquanto as atividades de agricultura e pastoreio proporcionam as bases para a conquista do mundo civilizado, a pesca é uma atividade cultural de cara com a natureza selvagem e incontrolável para o homem, que pode até dominá-la e utilizá-la em seu favor por período determinado de tempo, período depois do qual ele se retira e retorna para a segurança de sua civilização. O gigante funciona, nesse mito, como um ajudante involuntário que media o transitar de Thor do reino dos homens e deuses (civilizado) para o dos monstros (caótico). A distância entre os dois pólos é reduzida graças à sua presença (SØRENSEN, 2002, p.129). É por meio de Hymir, então, que Thor move-se para longe do cosmos - lugar onde é regente, governante, ao qual ele pertence, enfim – para enfrentar Jörmunganðr em seu âmbito, nas profundezas do oceano que se opõem incisivamente ao domínio do deus, que é o dos céus. Faz parte dessa transição o começo do poema, em que Thor visita um fazendeiro, com quem ele deixa seus bodes e sua carruagem. Muito claramente percebemos que, para seguir adiante, Thor deve abandonar o seu modo de locomação pelos céus, abrindo mão da liberdade de movimentação atmosférica que o caracteriza. Dessa forma, temos a presença de vários elementos narrativos que vão delineando essa mudança de estados pela qual o deus precisa passar para enfrentar a serpente: dos céus para a terra e depois da terra para a longidão do oceano. Uma vez no oceano, Thor rema para além do que o próprio Hymir, um pescador, aconselharia. A intrepidez de Thor possibilita essa transição entre mundos e transposição de fronteiras necessários para que enfrentasse seu inimigo (SØRENSEN, 2002, p.129). Ainda segundo Sørensen (2002, p.132) encontramos, não só na versão desse mito conforme o Hymskviða, mas também no Gylfaginning de Snorri, na poesia escáldica Húsdrapa e em representações iconográficas como a pedra de Altuna, uma temática comum, apesar das diferenças existentes. Temos diante de nós uma tentativa empregada por Thor de dissolver a ordem e equilíbrio cósmico vigentes, tentativa essa que, ao falhar, revalida a cosmologia regente. Thor, protetor de deuses e homens viaja até os confins do oceano para

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encontrar a serpente do mundo e eliminá-la: a batalha entre os dois, com um desfecho completamente incerto, demonstra e consagra o equilíbrio cósmico que não pode ser derrubado. Hymskviða nos traz um mito portador da mensagem de que o equilíbrio cósmico pode e será repetido sempre que se fizer necessário. Notemos, por fim, que não há menção aos trovões e raios de Thor no poema, nem a qualquer impacto de sua movimentação ou presença no ambiente. Apesar da ausência dos trovões, o que pode ser seguramente afirmado é que o mito, ao menos na forma em que sobreviveu nesse poema e chegou até nós trata, essencialmente, de uma série de demonstrações da incrível força de Thor (TAGGART, 2015, p.66). A força de Thor como elemento central às narrativas do deus acontece, aliás, em vários outros mitos, como nos poemas eddicos Þrymskviða e Hárbarðsljóð, em episódios da Edda em Prosa (sua visita a Útgarða-Loki e ao gigante Geirröðr, a pesca da serpente de Midgard) e em poemas escáldicos como o Haustlöng e o Þórsdrapa.

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CAPÍTULO II: UKKO E HORAGALLES, OS DEUSES FINO-ÚGRICOS DO TROVÃO

2.1 Horagalles, o deus sámi do trovão

Estudos sobre Horagalles são ainda extremamente escassos, mesmo considerando-se o cenário internacional. É possível que isso aconteça devido às poucas fontes disponíveis sobre o assunto, além do fato de que os dados por elas conferidos são muito fragmentados, e as menções à divindade, pontuais. Há ainda um outro aspecto que contribui para que haja uma menor circulação de estudos sobre o tema: grande parte dos estudos publicados, sejam artigos ou livros, não são disponibilizados em língua inglesa, mas em idiomas como, principalmente, o norueguês, o sueco e o finlandês. Obviamente que essa barreira idiomática termina por limitar o acesso às discussões e teorias em voga nestes locais, caindo num certo regionalismo. Podemos, apesar disso, traçar alguns dos mais clássicos estudos – que, por conta desses problemas elencados, não são muitos – que se debruçaram sobre a figura de Horagalles. Bernard Picart132, em seu Ceremonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde (1723), menciona alguns rituais dos povos sámi (na época, chamados de lapões). Dentre eles, havia supostamente o culto a uma divindade dos trovões conhecida por Horagalles, representado, entre esses povos, por uma estátua com um martelo no tronco, como se o empunhasse, e um grande prego ou estaca fincado em sua cabeça133. Num manuscrito escrito pelos noruegueses Thomas von Westen e Johan Randulf134, também em 1723, são descritos diversos locais visitados pelos autores – luteranos –, que eram tidos por sagrados pelos sámi. São oferecidas, entre outras valiosas informações, ilustrações de tambores desses povos, onde são identificadas figuras humanoides portando dois martelos; possivelmente, o deus Horagalles. Por fim, outro pastor luterano, o norueguês Knud Leem, atuou como missionário entre os sámi e acabou escrevendo seus relatos numa série de obras. Em uma delas, Leem fornece a ilustração, também de um tambor sámi, em que dois martelos

132 Versado acima de tudo na arte das ilustrações, o francês Picart baseou-se em diversos relatos envolvendo os povos indígenas de várias religiões e elaborou, dos anos de 1723 a 1743, uma série 10 livros chamada Ceremonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde, em que narra, com objetividade – e, obviamente, com ricas ilustrações – rituais e crenças religiosas de vários povos do mundo. Conforme afirmam Hunt e Jacob (2009, p. 8), trata-se de uma das primeiras empreitas que visavam enxergar e narrar as religiões numa perspectiva globalizadora mais compreensível. 133 A ilustração da suposta estátua, que consta no livro de Picart, já foi reproduzida por nós na página 79. 134 Nærøymanuskriptet, o “Manuscrito de Nærøy”. 105

parecem estar cruzados. A imagem em questão recebeu atenção ao ser abordada pelo lapólogo norueguês Jens Andreas Friis, que alegou se tratar de uma representação do deus dos trovões, Horagalles. Apesar disso, a tradição acadêmica prestou pouca atenção a esses materiais.

Figura 9: Ilustração de um tambor sámi segundo Thomas von Westen. A primeira figura humanóide à esquerda, no quadrante superior, porta dois martelos e seria, supostamente, Horagalles. A divisão das ilustrações no tambor manifesta dois quadrantes bem delineados: um superior e outro inferior. A figura com os martelos encontra -se no quadrante superior, supostamente o mundo em que os deuses residem. Próxima a ele está uma rena e algum outro animal de menor porte (este, sem chifres). No quadrante inferior há a presença de inúmeras figuras humanóides, e, por isso, muito provavelmente se trate do mundo dos homens. Em seu centro há uma estrutura apontando para as quatro direções cardeais, em cujos polos estão ilustrações de pessoas com asas, fazendo possíveis alusões às viagens dos xamãs. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/N%C3%A6r%C3%B8y_manuscript

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Figura 10: Ilustração de um tambor sámi, segundo Knud Leem. Em vermelho, os dois martelos cruzados que denotariam, para Jens Andreas Friis, os martelos de Horagalles. Nesse tambor, ao menos na parte retratada, não há a presença massiva de figuras humanóides, ao contrário do exemplo visto anteriormente. Algumas delas estão na parte superior direita. Há a presença de duas renas, uma delas puxando um trenó. Próxima à suástica está uma igreja, denunciando que, de fato, trata-se de um tambor produzido já após as frequentes missões, principalmente luteranas, que já eram conduzidas há séculos visando os povos sámi. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sami_Thunder_god_as_doble_hammer_red_on_drum_Finnmark_Nor way_described_by_Knud_Leem.jpg

Recentemente, partindo da etnoastronomia, Johnni Langer (2018) retomou essas ilustrações e lhes conferiu um novo olhar. Para ele, o símbolo visto na figura 10 seria, na verdade, uma suástica, símbolo na maioria das vezes solar mas que poderia ter, entre os povos do Hemisfério Norte, uma relação com a estrela Polaris. Langer (2018, p.244) retoma a teoria de que o simbolismo da suástica, ao norte, teria sido originado pela percepção dos povos nórdicos a respeito do movimento circumpolar da constelação da Ursa Maior entorno da estrela Polaris, que é um ponto fixo no céu. A suástica seria um símbolo que denotaria essa movimentação ao redor de um centro fixo. Essa correspondência entre o símbolo da suástica e questões cosmológicas, ligadas à divindades, ocorre em diversos povos do mundo: no mundo helênico, céltico, chinês, budista, báltico e persa. Mais especificamente, a relação entre o deus Horagalles, a suástica e a Polaris seria evidenciada, então, pelos relatos de que os sámi cravariam estacas ou pregos nas estátuas representando o deus, conforme visto na ilustração de Picart. Como se sabe, por ser um ponto fixo no céu, a Polaris era associada a um pilar ou prego cósmico. Há evidência disso na Edda em Prosa, em que há a ocorrência da expressão Veraldar nagli (prego cósmico), fora a própria narrativa de Aurvandil, em que o deus do trovão Thor termina por ter uma lasca de pedra

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alojada em seu crânio, algo surpreendentemente semelhante à estátua de Horagalles com um prego em sua cabeça. Além disso, Langer (2018, p. 232-233) demonstrou como diversas culturas ao norte possuíam nomes para designar a Polaris enquanto um prego cósmico: nórdicos, finlandeses, estonianos, bielorussos, chukchis e, por fim, os próprios sámi; e, ainda, que na área finlandesa, báltica e eslava, os deuses do trovão também estão associados de alguma maneira a esse prego cósmico. Certamente que é necessário compreendermos com mais profundidade e riqueza de detalhes o modo como essas relações se manifestavam no plano dos cultos e rituais, o que não torna menos relevante a constatação de que há uma relação entre a Polaris, o prego cósmico e os deuses do trovão (LANGER, 2018, p. 250). Em História Noturna (1989), Carlo Ginzburg aborda brevemente a questão de Horagalles, chamado por ele de “um deus lapão do raio, armado de martelo ou bastão” (GINZBURG, 2012, p 151). Para o autor, o deus sámi dos trovões seria um empréstimo feito por esses povos do deus nórdico Thor, algo perceptível até mesmo em seu nome: Horagalles teria vindo de Thor. Nesse sentido, Tolley (2009, p.275) apresenta um argumento convergente, alegando com veemência, que Horagalles ou Hovrengaellis teve tanto seu nome quanto suas características derivados do nome de Thor em Nórdico Antigo, Þórr karl, cujo significado seria Thor, o homem velho. Ainda assim, Ginzburg (2012, p.151) não descarta a hipótese de que a situação do deus sámi possa ser um tanto mais complexa, embora insista que, assim como a deusa Ruto135, Horagalles muito provavelmente provém da Europa Setentrional. Embasando-se em relatos de missionários dinamarqueses em solo da então Lapônia, durante o século XVIII, o autor recapitula a descrição de um cesto feito com ramos de bétula onde eram depositados ossos de animais sacrificados que haviam sido sacrificados. O cesto era encimado por um tronco em que estava esculpida a silhueta de Horagalles portando seu martelo. O historiador italiano faz uso dessa informação para defender que, da mesma maneira que Thor, Horagalles estaria relacionado à ressureição dos animais136. Seria difícil não visualizar, nesse fato, reflexos de mitos antigos do remoto passado euroasiático, em que uma divindade, por vezes masculina, mas grande parte das vezes feminina, encarna o papel de gerar e ressuscitar os animais (GINZBURG, 2012, p.151). Turville-Petre (1975, p.84) também concorda com essa concepção, defendendo que a influência da figura de Thor sobre as populações sámi se deu em algum período entre o fim da

135 Deusa sámi associada à doença e à peste. 136 Conforme visto anteriormente, na Edda em Prosa, Thor usa seu martelo para trazer seus dois bodes de volta à vida após te-los comido. 108

Idade do Bronze e o começo da Idade do Ferro. Apesar de defender esse empréstimo feito por parte dos sámi, não só da figura de Thor, mas também de outros deuses do panteão nórdico, o autor não postula uma adoção irrestrita e total da figura do deus nórdico. Em outras palavras, não foi uma mera transposição de deuses. Uma vez incorporado, Horagalles teria começado a apresentar sua autonomia em relação à figura de Thor, já que começou a se desenvolver dentro da mitologia e dos cultos sámi de acordo com as necessidades culturais, sociais e espirituais peculiares desse povo. Como consequência, Horagalles aparentemente não era um deus tão próximo dos humanos quanto seu correspondente nórdico: apesar de encarregado da fertilidade, tratava-se de um deus terrível, perigoso e temido, a quem sacrifícios deveriam ser feitos para que se evitassem problemas. Com uma das mãos ele direcionava os raios e trovões para longe e, com a outra, os direcionava aos inimigos de seus adoradores. É provável que Horagalles também presidisse sobre questões mais amplas como a saúde, a vida e a morte, além de se encarregar de matar trolls – já nisso vemos semelhanças com Thor – (TURVILLE-PETRE, 1975, p.84). Dumézil utilizou-se do poema Hárbarðsljóð como ponto de partida para um polêmico argumento. Como se sabe, o poema trata-se de uma disputa verbal entre o deus Thor e Odin, disfarçado de balseiro. Em certo ponto, é dito que Odin mantinha para si os jarlar que morriam em batalha, enquanto que ficavam, para Thor, os þrælar, que seriam os escravos. Apoiando-se em um estudo de Jan de Vries (1954)137, quem alegou ser a palavra þrælar, no contexto desse poema eddico, uma caricatura, uma paródia sem maiores respaldos – porque, em segundo ele, em outras fontes mitológicas Thor não possui qualquer afinidade com a classe dos escravos -, a palavra correta nesse contexto seria, em oposição aos jarlar de Odin, os karlar de Thor, ou seja, os camponeses. Com esses sim Thor mantém uma série de laços em diversas das fontes, indo das Eddas às sagas, posicionando-se, sem grandes dúvidas, como patrono e protetor dessa classe. Por conta dessa possível flexibilização da leitura do Hárbarðsljóð, Dumézil também postula que o nome Horagalles remeta à raíz karl, sendo um derivado de *Kar(i)laz, mas não advoga, com isso, que o deus sámi se trate de um empréstimo de Thor como o fizeram, por exemplo, Tolley (2009), Turville-Petre (1975) e Ginzburg (2012). Pelo contrário, notando a possibilidade de atribuir a Thor o controle dos karlar e, percebendo que o mesmo substantivo em sua forma singular, karl, encontra-se na raíz do nome de Horagalles, o francês afirmou que o nome dado a Thor na mitologia sámi (DUMÉZIL, 1973 p.124). Em outras palavras há,

137 Über das Wort Jarl und Seine Verwandten, 1954. 109

aqui, a ideia de que se tratem de nomes diferentes conferidos a uma mesma divindade. Uno Holmberg, um dos pioneiros em pesquisas envolvendo os povos fino-úgricos, alega que Horagalles era cultuado especificamente entre os sámi escandinavos138, mas que eles curiosamente também chamavam seu deus do trovão de Tor ou Tora-galles, e o representavam, em seus tambores, portando um martelo em cada mão.

Figura 11: Ilustração de Horagalles conforme consta em tambor sámi encontrado na Noruega. As ilustrações foram copiadas dos tambores sámi pelo padre Thomas von Westen durante o século XVIII. A figura claramente porta dois martelos: um menor, de formato diferente na ponta, tendo uma das extremidades mais curta e fina do que a outra, e um maior, cuja ponta é uniforme. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Horagalles. Acesso em 09/10/2018.

Contudo, o pesquisador afirma que, em sua própria língua, os sámi chamavam seu deus do trovão de Tiermes e atribuíam a ele um arco (tiermaz-juks, associado ao arco-íris) e flechas como arma (HOLMBERG, 1964, p. 230-231). O pesquisador também defende que o deus era encarregado de proteger os homens contra espíritos malignos – ressaltando, de novo, esse paralelo com Thor -. Conforme veremos posteriormente, a questão dos diferentes nomes atribuídos a Horagalles constitui um problema ainda sem resolução, cujos ecos foram, inclusive, perceptíveis já na obra de Johannes Schefferus.

2.2 Johannes Schefferus e sua obra

Nascido em Estrasburgo, Johannes Schefferus (1621-1679) foi o primeiro pesquisador a conduzir um estudo denso e de cunho acadêmico sobre os povos sámi. Professor da Universade de Uppsala, Schefferus a princípio trabalhava com outras áreas do conhecimento

138 Ou seja, povos de etnia sámi que habitavam especificamente as regiões ao extremo norte da Noruega e Suécia. 110

como Direito, Retórica, História, Arqueologia e Etnografia. Como detinha uma aguçada curiosidade envolvendo os sámi, o professor acabou por ser contratado pelo reitor da supracitada Universidade, Magnus Gabriel de la Gardie, para levar a cabo um detalhado, cuidadoso e aprofundado estudo sobre a então atual situação dos povos sámi e a área por eles habitada, incluindo sua história, sua cultura e costumes – categorias essas que, certamente, abarcam também sua religião -. Os resultados viriam a ser publicados em sua obra Lapponia ainda em 1673, escrita em latim, sendo rapidamente traduzida para outros idiomas como o inglês (1674); o alemão (1675); o francês (1678) e o holandês (1682). Seu trabalho despertou prontamente o interesse da audiência européia a respeito desse “exótico” povo e sua respectiva cultura material (NORDIN; OJALA, 2017, p.6). Dentre outros aspectos, o trabalho de Schefferus trazia minuciosas discussões sobre a etnogênese dos sámi que, conforme ressaltam Nordin & Ojala (2017, p.6), não eram vistos da mesma maneira que outros povos habitantes do norte europeu. Ao contrário dos povos suecos e dinamarqueses, por exemplo, Schefferus atribuiu outra identidade e um outro berço para os sámi que, para o autor, seriam os representantes étnicos vivos de um desvio da europeidade normativa que, europeidade essa que, naquele momento, era glorificada. Portanto, já notavam-se as diferenças étnico-culturais que os sámi apresentavam em relação a seus vizinhos, algo visível em seus traços físicos, vestimentas, organização e funcionamento social e, por fim, em sua religião. Com isso, postulava-se que esses povos seriam recém-chegados ao extremo norte, tendo imigrado originalmente de alguma região do leste, provavelmente do Oriente. Se mantivermos em mente a agenda acima de tudo pró-Suécia do trabalho de Schefferus, não é difícil notar que esta constatação hipotética implicaria em validar que o território habitado pelos sámi seria, por direito, dos suecos, que haviam chegado lá há muito antes. Esse argumento viria a servir de instrumento de validação para que os suecos clamassem para si não só o controle e domínio daquelas terras e seus recursos naturais, mas também o direito de governar e subjugar os próprios povos sámi. Apesar de seu trabalho ter recebido rapidamente várias traduções e ser considerado, ainda hoje, como leitura obrigatória para qualquer um que deseje estudar os sámi, Schefferus nunca colocou de fato seus pés na então Lapônia. Contudo, provavelmente antecipando prováveis questionamentos, o autor tenta contornar essa questão ao dizer, em seu prefácio do livro, que nunca perdeu a oportunidade de conversar com pessoas de etnia sámi. Embora haja pouca evidência clara disso em seus escritos, não é de todo impossível que tais diálogos tenham ocorrido, imaginando que Schefferus possa ter tido a oportunidade de conhecer algum

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aluno da Universidade de Uppsala que fosse de ascendência sámi. A obra de Schefferus, portanto, constitui um estudo de gabinete, e não um trabalho de campo com qualquer esboço do que viria a ser chamado de etnografia. Seus escritos apresentam principalmente um grande apanhado de revisão bibliográfica com base em autores prévios, retomando por diversas vezes Olaus Magnus e seu Historia de gentibus septentrionalibus (História dos povos nórdicos), de 1555. Além disso, foi ordenado aos homens do clero que já haviam estado na Lapônia em missões clericais que dessem a Schefferus os seus relatos e descrições das mais detalhadas e sistematizadas sobre o que haviam visto e presenciado naquela terra (COLLINDER, 1949, p.221). Veremos a seguir o por quê dessas ordens de contribuição aos missionários e o modo como foi construído o cenário que as possibilitou. Ora, é necessário que mantenhamos em mente o fato de que a empreita de Schefferus havia sido requisitada pelas autoridades suecas, o que certamente implica numa rede de intenções e motivos indissociáveis do que o seu trabalho viria a representar. Seus escritos tiveram, desde sua gênese, um por quê e um para quê. A Súecia de então havia se mostrado uma super-potência ao desempenhar um papel decisivo na Guerra dos Trinta Anos (1618- 1648), despertando a atenção, tanto positiva quanto negativamente, de diversos outros países. O interesse sueco na cultura sámi advinha de duas direções: primeiramente, de uma necessidade de construir ferramentas de colonização interna, ou seja, de controlar e administrar os povos sámi e seus territórios; em segundo lugar, para fins propagandísticos internacionais. Durante e após a Guerra dos Trinta Anos, os suecos se viram com dificuldade para combater a disseminação de uma forte propaganda anti-Suécia Europa afora. Dentre outras acusações, alegava-se que Gustavus Adolphus, o rei sueco, havia recrutado soldados de etnia sámi para seu exército; estes seriam capazes de alterar as condições climáticas a favor dos suecos, ou então de assumirem outras formas, como a de animais; tratava-se, então, de uma maneira escusa e maligna de trazer a vitória para os suecos139 (BALZAMO, 2014, p.36). Assim, a Suécia encontrava-se pressionada em ambas as direções. Por um lado, essas acusações em torno do rei Gustavus aumentavam progressivamente, enfraquecendo sua publicidade internacional de maneira cada vez mais disseminada. Por outro, a nível interno, os sámi já haviam sido colonizados pelos suecos, mas ainda havia muito a ser feito nesse sentido. Para que a conversão se mantivesse a longo prazo, começou a surgir a necessidade de

139 A crença nesse aspecto pode soar como absurda ou ultrapassada considerando o cenário europeu do início da Idade Moderna. Contudo, lembremos dos relatos extravagantes que viajantes europeus como la Martinière e especialmente Loménie de Brienne fizeram de uma série de povos nativos, enfatizando uma série de características fabulosas e, outras, demoníacas. Além disso, na época a Demonologia era uma ciência crível, o que não faz com que seja surpreendente as acusações direcionadas ao rei sueco (BALZAMO, 2014, p. 36). 112

que se traduzisse o material bíblico para a língua nativa desses povos e de que se conduzissem aulas de cataquese e outras iniciativas religioso-pedagógicas que exigiriam todo um preparo e investimento (BALZAMO, 2014, p.36). Conforme resumido por Helm (2013, p.62), a Lapponia de Schefferus visava, assim, uma dupla caracterização dos povos sámi de maneira simultânea. Tratava-se, primeiramente, de defender num cenário internacional que esses povos já haviam sido cristianizados pela Igreja Sueca e eram, portanto, cristãos, e não magos. Nesse sentido, foi por isso que Schefferus identifica, em sua obra, algumas práticas mágicas e rituais como resquícios de superstição e, mesmo assim, o faz com explícita censura. O segundo aspecto, intrinsecamente relacionado ao primeiro, diz respeito a fazer uma espécie de louvor à Igreja Sueca por essa sua empreita de suposto sucesso. Tratava-se, nesse sentido, de se ressaltar o quanto já se havia progredido no quesito de conversão e catequização dos povos sámi, numa esperança também de angariar novos fundos e investimentos para que se realizassem avanços no que ainda faltava nesse aspecto – por exemplo, a tradução da bíblia para os idiomas sámi e o investimento necessário para tornar nativos em membros clericais, o que facilitaria no processo de conversão e em futuras missões -. Grande parte da obra de Schefferus é, então, produto da necessidade sueca de responder a essas múltiplas pressões. A isso soma-se o acesso privilegiado que um intelectual erudito como Schefferus pôde ter de descrições da Lapônia e dos sámi, elaboradas por membros da Igreja como Samuel Rheen, Olaus Petri Niurenius e Joannes Tornaeus. Balzamo (2014, p. 37) também enxerga, como principal objetivo na obra de Schefferus, o de rebater as propagandas anti-Suécia e as acusações das quais o país era alvo. Para isso o autor propôs descreditar, com fatos e dados empíricos oriundos de fontes confiáveis, as acusações que estavam sendo feitas a respeito dos exércitos suecos até então. Com esse fim em mente, Schefferus fez uso de uma complexa revisão bibliográfica sobre a religião e os costumes sámi e os alinhou aos já mencionados relatos de missionários que haviam pisado em território lapão. Os objetivos implícitos do trabalho encomendado a Schefferus eram: provar, por meio de dados, que os sámi estavam sobre controle sueco e devidamente cristianizados; que os sámi nunca haviam feito uso de magia em prol dos exércitos de Gustavus Adolphus e, por fim, que eles eram leais à Sua Majestade. Ao mesmo tempo, Schefferus descreve rituais e práticas mágicas desses povos, algo que, considerando seus objetivos, pode parecer contraproducente. O detalhe reside no fato de que há um notável esforço do autor para demonstrar que algumas práticas mágicas dos sámi continuavam a existir apenas enquanto vestígios de sua antiga religião que perduravam por

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teimosia e apego às superstições, o que não os tornaria necessariamente menos cristianizados; no caso em que descreve abertamente rituais xamânicos e de feitiçaria, por exemplo, Schefferus os condena com veemência, chamando-as de práticas demoníacas, talvez buscando mostrar que a Coroa Sueca não era conivente com tais práticas e, por isso, condenando-as imperativamente. Além disso, é provável que também a nível privado, individual e subjetivo o autor de fato não fosse muito simpático a tais práticas (BALZAMO, 2014, p. 37). Outro caráter que não poderia deixar de ser ressaltado no tratado de Schefferus é seu etnocentrismo, que se manifestava ora enxergando os sámi enquanto povos inferiores a serem colonizados, civilizados e convertidos, ora direcionando a eles um olhar fetichista, interessado naquilo que era exótico e representava o homem em seu estado primitivo. Sobre o assunto, Nordin & Ojala (2017, p.9) comentam que já em 1640, antes da publicação da Lapponia de Schefferus, há indícios de que colecionadores da Suécia, Noruega e Dinamarca já haviam coletado artefatos sámi para seus acervos pessoas, sendo a maioria deles composta, por exemplo, por exemplares de tambores140, obviamente tidos por esses colecionadores como objetos exóticos. Durante o começo da Idade Moderna, os sentimentos dos europeus em relação a esses tambores xamânicos – e, em última instância, em relação aos próprios sámi - eram ambivalentes. Por um lado, eles eram vistos enquanto objetos exóticos de desejo, interesse, curiosidade e atração; por outro, eram vistos com repulsa por serem pertencentes ao mundo primitivo e pagão que deveria ser superado, olhar esse que desejava, assim, destruí- los. Não foi por menos que, principalmente nos séculos XVII e XVIII, esses tambores foram símbolos centrais no processo de colonização e resistência dos povos sámi (RYDVING, 1991, p.28). Ainda hoje eles representam um símbolo de resistência e de identidade sámi, tidos por objetos poderosos e de suma importância ao se discutir a herância e resiliência cultural desses povos. Enfim, é importante mantermos em mente que Schefferus foi um homem fruto de seu tempo. Consequentemente, sua obra não deve ser lida de maneira descontextualizada ou como sendo um relato imparcial e fidedigno dos povos sámi, muito menos no que concerne sua religião que, afinal, era objeto explícito de censura por parte do autor. Tendo escrito sua obra no começo da Idade Moderna, ainda havia, no âmbito das universidades, certo resquício

140 Os tambores sámi eram importantíssimos artefatos na prática de sua religião. Indícios apontam que eles muito provavelmente eram utilizados acima de tudo – embora não exclusivamente – pelo xamã para que se entrasse em estado de transe. Esses instrumentos também eram ricos em ilustrações que continham figuras humanoides, barcos, trenós e diversos animais, além de possíveis ilustrações com alusão à abóbada celeste. O próprio Schefferus (1674, p.49-59) descreve, em detalhes, vários desses tambores em sua obra, dizendo que serviam para propiciar o estado de êxtase do xamã, além de funcionarem para fins divinatórios e na cura de diversos males, como doenças. O enfoque de Schefferus, contudo, é na atuação do tambor na cerimônia xamânica. 114

daquele imaginário fantástico herdado da Idade Média, que estava muito mais presente na obra de Olaus Magnus, precedente de Schefferus, mas que ainda não havia desaparecido. A figura do sámi, segundo esse modelo de pensamento, encarnava uma possibilidade perfeita de canalização e expressão do pensamento da época: elegê-lo enquanto matéria de estudo era ir de encontro ao passado primitivo, iletrado, a-civilizado e pagão que um dia havia pertencido a todos os escandinavos (NORDIN; OJALA, 2017, p.10). Misturado a isso temos um tipo de estudo já em moldes de certa maneira racionalistas, especulativos e que começava a tentar pregar certa neutralidade em relação aos seus objetos. Se tal neutralidade era de fato alcançada, é outra discussão. É importante também que tenhamos em mente a ideologia e a política por trás da empreita realizada por Schefferus. Conforme visto, sua obra foi encomendada pela coroa sueca e possuía um viés comprometido, a nível propagandístico, em prol da mesma. Essa demanda, de um lado, estimulava o estudioso a buscar e elaborar novas interpretações sobre esse povo; por outro, restringia o aspecto de seu trabalho, obrigando-o a buscar certos dados que se esperavam que encontrasse (a desmistificação da magia sámi, por exemplo). Não esqueçamos que, na obra de Schefferus, o sámi é reconhecido como parte da raça humana, mas como parte ainda tida como “selvagem”. Segundo afirmado por Balzamo (2014, p.41), estudar os povos sámi era, para Schefferus, tratâ-los paradoxalmente como objeto de estudos acadêmicos e ao mesmo tempo como alvos de um necessário esforço civilizatório.

2.3 Horagalles na obra de Schefferus

Não são poucas as menções que Schefferus faz ao deus dos trovões presente entre os sámi, pois, afinal, a obra de Schefferus contém uma série de capítulos destinados exclusivamente à magia e religião desse povo. Dentre eles encontram-se, por exemplo, A respeito da religião dos sámi; A respeito da segunda religião dos sámi, a cristã; Sobre alguns resquícios do paganismo na Lapônia dos dias de hoje; Sobre os deuses pagãos dos sámi e os modos de cultuá-los nos dias de hoje e Sobre as cerimônias mágicas dos sámi. É precisamento nesses capítulos em que localizamos a aparição de uma divindade dos trovões. Conforme veremos, Schefferus posiciona o deus do trovão como sendo quase que uma divindade suprema entre os povos sámi, não no sentido de um deus primordial criador do universo – esse quesito ainda é obscuro se tratando da mitologia sámi – mas como a entidade por eles mais cultuada:

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“Além de Jumala, parece que os Lapões tinham um deus que os Suecos chamavam de Thor, estes podem ser reunidos, não apenas porque no tempo presente eles adoram um Thor entre seus deuses, conforme veremos posteriormente, mas também por conta de que, entre o número de deuses que os Finlandeses Antigos adoravam, especialmente os Tavastianos, é reconhecido Turisas, o Deus da Guerra e da Vitória, que não era outro senão Thor” (SCHEFFERUS, 1674, p.22, tradução nossa, grifos do autor)141.

Ainda sobre a importância dessa divindade, o autor continua reafirmando que “Aqueles que habitam a Lapônia (...) possuem seus Deuses maiores e menores; os maiores, a quem prestam especial devoção são, Thor, Storjunkaren e o Sol” (SCHEFFERUS, 1674, p.35, tradução nossa, grifos do autor)142. Mais ainda do que o fato da divindade do trovão ser, ao que tudo indica, uma das mais fortemente adoradas, outro aspecto talvez se destaque mais. Num primeiro momento, Schefferus equipara o deus sámi dos trovões – a quem, na ocasião, o autor não confere um nome – ao Thor dos suecos e ao Turisas dos finlandeses. Nesse sentido, o autor não estava de todo errado, lembrando que o próprio Jan de Vries (1962, p. 618) defendeu haver, no deus finlandês Turisas, a mesma raíz, Tūr, somada a isä, que significa pai. Já na citação vista em sequência não se trata mais de uma equiparação. Schefferus atribui ao próprio deus sámi dos trovões, o nome e identidade do deus nórdico Thor. Aliás, o maior problema com o qual nos deparamos a respeito da divindade dos trovões na obra de Schefferus é o de seu nome e identidade, questão ainda hoje polêmica e muito incerta, principalmente ao compararmos os nomes da divindade surgidos em Lapponia com outras fontes da tradição sámi. O trecho mais extenso que encontramos envolvendo essa questão dos nomes e identidades – e que gera mais perguntas do que respostas – é o seguinte:

“(…) Havia três principais Deuses adorados pelos Lapões; o primeiro é Thor, que significa trovão, chamado no dialeto Sueco de Thordoen, pelos Lapões propriamente ditos era chamado Tiermes, ou seja, qualquer coisa que produza barulho, algo que está muito de acordo com a noção que os Romanos tinham de Júpiter, o trovoador, e o Deus Taranis, do qual tratei na História de Upsália. Esse Tiermes ou trovão, eles imaginam que, por conta de alguma virtude especial, esteja vivo nos céus; intimando, assim, aquele poder de onde os trovões procedem, ou enquanto deus dos trovões, motivo pelo qual é chamado Aijeke, que significa bisavô, ou tataravô, assim

141 “Besides Jumala, it seems the Laplanders had a God whom the Swedes call Thor, which may be gathered, not only because they worship one Thor at this present among their gods, as shall be shown hereafter, but also because in the number of Gods which the old Finlanders, especially the Tavasti adored, there was reckoned Turisas, the God of War and Victory, which was no other than Thor” (SCHEFFERUS, 1674, p.22). 142 “Those of Lapponia (…) have their greater and lesser Gods; the greater to whom they pay especial whorship are, Thor, Storjunkaren and the Sun” (SCHEFFERUS, 1674, p.35). 116

como os Romanos saudavam seu pai Júpiter, e os Seucos, seu Gunna. Esse Aijeke, quando faz trovejar, é chamado pelos Lapões de Tiermes, pelos Citas, Tarami, e pelos Suecos, Tor ou Toron. Esse Tiermes ou Aijeke, acreditam os Lapões, possui poder sobre a vida, a morte, e as doenças do homem: e também sobre os Demônios nocivos que frequentam as montanhas e rochas, quem ele frequentemente castiga e às vezes destrói com seus raios, assim como os Latinos acreditavam que seu Júpiter fazia, fim para o qual conferiam a ele um arco para que atirasse nos demônios, que eles chamavam de Aijeke dauge; eles também conferiam a ele um martelo, que chamavam de Aijeke Wetfchera, e com o qual esmagava o cérebro dos já mencionados espíritos malignos. Portanto, como os Lapões esperavam tantas bênçãos vindas de seu Tiermes, e acreditavam que ele lhes conferia vida e preservava sua saúde, e que eles não poderiam morrer a não ser que fosse essa a sua vontade, e que ele espantava os Demônios, que eram prejudiciais para a caça, o semear e a pesca, e que ele nunca os machucava a não ser que o merecessem por meio de alguma ofensa, então precisava ser adorado em primeiro lugar” (SCHEFFERUS, 1674, p.37, tradução nossa, grifos do autor)143.

Conforme nota-se no trecho acima, o deus sámi dos trovões recebia pelo menos três nomes distintos, ou, ao menos, é isso que alega Schefferus: Thor (ou Tor), Tiermes e Aijeke. Não é registrada, ao longo de toda a obra, a ocorrência do nome Horagalles, cuja existência, ainda assim, é atestada entre as populações sámi do sul (COLLINDER, 1949, p.143). É provável que, ao terem entrado em contato com os nórdicos e seu Thor, os sámi tenham prontamente o identificado com seu deus nativo dos trovões, Tiermes ou Dierbmes. Horagalles seria uma palavra de empréstimo advinda dos nórdicos, conforme afirmam pesquisadores como Collinder (1949, p.143) e Clive Tolley (2009, p.275), para quem, portanto, Horagalles nada mais seria do que uma tradução, feita pelos sámi, do deus Thor. Até que ponto isso significa um empréstimo relacionado apenas a um teônimo ou, de fato, à importação e adoção de uma divindade dos trovões, é algo ainda nebuloso. Outros autores, contudo, se debruçaram sobre essa questão de maneira mais detalhada. Håkan Rydving (1990, p.361) explica que a tradição de estudos acerca da figura de Horagalles (ou Dierpmis) já nasceu comprometida em enxergar, em sua figura, empréstimos

143 “(…) there were three principal Gods worshipped by the Laplanders; the first is Thor, signifying thunder, in the Swedish dialect called Thordoen, by the Laplanders themselves called Tiermes, that is any thing that makes a noise, agreeing very well with the notion the Romans had of Jupiter the thunderer, and the god Taranis, which I have treated of in the History of Upsal. This Tiermes or thunder they think by a special virtue in the sky to be alive; intimating thereby that power from whence thunder proceeds, or the thundering god, wherefore he is by them called Aijeke, which signifies grand, or great-grand-Father, as the Roman saluted their father Jupiter, and the Swedes their Gunna. This Aijeke when he thunders is by the Laplanders call’d Tiermes, by the Scythians, Tarami, and by the Swedes, Tor or Toron. This Tiermes or Aijeke the Laplanders suppose to have power over the life, death and sickness of man: and also over the hurtfull Demons who frequent rocks and mountains, whom he often chastises , and sometimes destroys with his lightning, as the Latins fancied their Jupiter to do, for which end they give him a bow in his hand to shoot Demons with, which they call Aijeke dauge: also they give him a mallet, which they call Aijeke Wetfchera, to bash out the brains of the said evil spirits. Wherefore because the Laplander expect so many blessings from their Tiermes, and believe he bestows life on them, and preserves their health, and that they cannot die unless it be his pleasure, and drives away the Demons, which are prejudicial to their hunting, sowing and fishing, and never hurts them but when their offenses deserve it: therefore he has to be worshipped in the first place” (SCHEFFERUS, 1674, p.37). 117

dos vizinhos nórdicos. Vale ressaltar que, segundo o autor, nem sempre isso implicou necessariamente em afirmações de que os sámi não teriam, antes de adotar a figura de Thor, o seu próprio deus nativo do trovão. Além da etimologia do epíteto Horagalles, realmente identificável com Thor (Hora = Thor), a presença de martelos nos mãos do deus sámi, quando representado em tambores, foi outro fator percebido enquanto influência do deus nórdico. As semelhanças adentram ainda outros aspectos: os sámi também conheciam um companheiro de aventuras do deus do trovão, igualmente representado em tambores. Obviamente que o identificaram ao companheiro de aventuras do deus Thor, o humano Thjálfi. Por fim, ainda mais espaço para esse tipo de conjectura se abriu ao notarem que o nome da esposa de Horagalles, Ravdna, poderia ter sido oriundo do Islandês Antigo reynir, utilizado para designar um tipo de árvore chamada sorbeira, ou então, possivelmente, a própria (RYDVYNG, 1990, p. 361). Turville-Petre (1975, p. 98) se atentou a esse aspecto, descobrindo correspondentes da deusa Ravdna para além do Islandês Antigo, encontrando também paralelos no Norueguês raun e no Sueco rönn, todos designando a sorbeira ou a árvore do mundo. As frutas vermelhas dessa árvore, diz o autor, seriam tidas como sagradas para a deusa sámi. No mito de Thor em sua jornada para enfrentar o gigante Geirröð, o deus quase se afoga ao tentar fazer a travessia de um rio, sendo capaz de se salvar somente porque se agarrou a uma sorbeira e evitou, assim, ser arrastado pela forte correnteza. Inclusive, teria surgido, a partir desse mito, uma expressão que diz “a sorbeira é a salvação de Thor” (reynir er björg Þórs). Apesar de não conseguirmos estabelecer qualquer tipo afirmação certeira, é difícil não enxergar uma mistura de concepções análogas refletidas tanto nos epítetos da deusa quanto nesses paralelos míticos. Sobre o nome Aijeke, Frog (2017a, p. 58) defende que sua raíz derive de *Ājjē (bisavô), e que seu aparecimento é identificado em diversas etnias sámi, como os Ume, os Lule, os Inari e os Kémi, fazendo-se visível, então, principalmente nas áreas dos Sámi do Norte. Seu principal paralelo é nas línguas fínicas, em que há, também com o significado de “bisavô”, a raíz Äijä. Para o autor, o *Ājjē, do idioma Proto-Sámi, teria sido carregado juntamente da linguagem enquanto modo de designar o deus do trovão. Contudo, Frog (2017, p. 58) afirma a necessidade de cautela, uma vez que, mesmo sendo atestada essa designação oriunda do Proto-Sámi para se referir ao deus do trovão, isso não diz respeito obrigatoriamente a uma idêntica disseminação na concepção per se que diferentes povos vieram a fazer de suas divindades do trovão. Em outras palavras, seria possível que o teônimo de um deus dos trovões se espalhasse de uma região para a outra sem que isso trouxesse

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modificações no modo como essas entidades eram cultuadas, percebidas e consideradas, enfim, dentro de cada sistema religioso. Apesar de o nome Aijeke conter, em sua raíz, esse significado de “ancião”, não é somente com essa identidade que tal fato aconteça. Também entre os Sámi do Sul, onde o deus é chamado Horagalles (ou Hovrengaellies), há a presença da mesma concepção. – Gaellies seria, também, uma palavra que significa “homem velho” (FROG, 2017a, p. 58). Uno Holmberg (1964, p.228) identificou entre diversos povos fino-úgricos a ocorrência de deuses do trovão concebidos como homens velhos, anciãos. Portanto, conforme visto, essa característica não só é comum entre os Sámi do Norte e os Sámi do Sul (com seu Aijeke e seu Horagalles, respectivamente), mas igualmente entre os finlandês (Ukko/Ukkonen, “avô”; Isänen, “pequeno pai”) e os estonianos (Äi, “homem velho”; Äikene, “pequeno homem velho”). Nesse aspecto, somos remetidos, muito provavelmente, a alguma antiga tradição fino-úgrica que estabeleceu a imagem de anciãos encarregados dos raios e trovões, algo que grande parte desses povos continuou a carregar em seus respectivos sistemas mítico- religiosos. Por sua vez, o nome Tiermes/Dierpmes predomina na região costal habitada pelos Sámi do Norte, onde, aparentemente, o deus mantém o status de divindade dos trovões simultaneamente ao de divindade central dos céus. Conjectura-se que o teônimo *Tiermēs, em Proto-Sámi, seja um empréstimo feito de algum idioma Paleo-Europeu. Tal aspecto indica que esse nome, cogita-se, seja um elemento de fato nativo da religião sámi, que teria se mantido até mesmo durante o período de mudanças linguísticas relacionadas à evolução do Proto-Sámi (FROG, 2017a, p.59). Como é possível encontrarmos, então, três nomes diferentes para o deus do trovão na obra de Schefferus? Lembremos que além de Tiermes e Aijeke, o autor também confere o nome Thor/Tor para a divindade: “O lugar em que eles adoram seu Thor ou Tiermes é um pedaço de terra separado para essa superstição; atrás de suas Cabanas, lá, em cima de tábuas unidas como se fosse uma mesa, eles colocam suas imagens” (SCHEFFERUS, 1674, p.38, tradução nossa, grifos do autor)144. Notamos isso, também, nas citações anteriores do autor. Dois motivos podem ter influenciado Schefferus para que conferisse o nome Thor ao deus sámi. Primeiramente, pode ser que em alguma das fontes utilizadas pelo autor, constasse não o nome Horagalles (que, conforme ressaltamos, não aparece em Lapponia), mas Thoragalles,

144 “The place where they worship their Thor or Tiermes is a piece of ground set apart for this superstition, on the backside of their Huts, above bows; there upon boards set together like a table they p lace their images” SCHEFFERUS, 1674, p.38). 119

uma das variantes desse teônimo (HOLMBERG, 1964, p.230). Uma vez deparado com esse nome, e sem conhecimento acerca de sua outra forma, Horagalles, Schefferus pode ter concluído que ele se tratava, na verdade, de uma variação do nome nórdico Thor. Outra hipótese é a de que o autor tenha realizado, premeditadamente ou não, uma operação etnocêntrica. Conforme minuciosamente apontado por Rydving (1990, p.358), fontes primárias como a de Schefferus são o embrião de uma antiga tradição acadêmica, consolidada principalmente nas análises de estudiosos do século XVIII afora, que toma a religião sámi, “primitiva por natureza”, como um reflexo daquilo que os nórdicos haviam um dia sido. Nesse movimento, para desvendar a religião pré-cristã dos nórdicos recorria-se, então, aos povos sámi, seus vizinhos “primitivos” que, em plena Idade Moderna, não haviam sido completamente cristianizados. Trata-se de enxergar a religião dos sámi enquanto um invólucro preservado e fidedigno da religião escandinava pré-cristã. A obra de Schefferus não foge desse panorama etnocentrista e já pré-evolucionista: o deus dos trovões entre os sámi, então, só poderia ser Thor, antigo deus do trovão dos povos nórdicos. Isso torna-se perceptível, ao longo de seus escritos, ao vermos que o próprio autor nomeia esse deus dos trovões como sendo Thor, mas diz que os próprios lapões o chamavam de Aijeke ou Tiermes. Thor aparece explicitamente como um nome conferido por Schefferus ao deus dos trovões, e não pelos nativos (TAGGART, 2015, p.147-148). Outra pergunta a ser respondida diz respeito, justamente, à ausência do nome Horagalles e à presença dos nomes Tiermes e Aijeke. É necessário mantermos em mente que existiam inúmeras etnias sámi e que, portanto, não há nada mais distante da realidade do que alegar uma única cultura sámi homogênea e uniforme. Pelo contrário, devemos a todo o tempo falar de culturas, etnias e identidades sámi (LEHTOLA, 2004, p.10). Nesse sentido, o regionalismo das fontes eleitas por Schefferus pode ser uma explicação cabível para a questão de presença e ausência de tais teônimos. Conforme expusemos, ambos os nomes – Aijeke e Tiermes - eram designações usadas para deuses do trovão entre os Sámi do Norte (FROG, 2017a, p.58), enquanto a ocorrência do nome Horagalles se dá entre os Sámi do Sul. Analisando as descrições que Schefferus faz dos tambores sámi, Rolf Kjellström (1991, p.111) constatou que predominam massivamente, nos escritos da Lapponia, fontes que tratam dos Sámi do Norte, cujas informações o autor na maioria das vezes extrapolou para todos esses povos, sem maiores distinções. Schefferus faz poucos e pontuais usos de fontes sobre os Sámi do Sul, como Niurenius, Lundius e Grahn. Todo o resto de seu estudo sobre a Lapônia se embasa, quase que hegemonicamente, em fontes que tratem do norte desse território. E esse

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norte, conforme vimos, era onde o nome conferido pelos sámi à divindade do trovão era Tiermes ou Aijeke. O que Schefferus fez foi não se atentar para a questão do regionalismo, tomando os dados encontrados apenas na região norte como válidos e normativos para toda a população sámi: há, em sua obra, uma universalidade cultural e étnica sámi pressuposta145. Adentrando a questão dos atributos conferidos ao deus, Schefferus elenca, acima de tudo, sua relação com os trovões, o que inclui o poder de cria-los e arremessa-los. Em seguida, no mesmo trecho, o autor cita de maneira curiosamente funcional as outras áreas de regência dessa divindade: a vida, a morte, e as doenças do homem, além de atuar na proteção contra “Demônios nocivos”, cujos crânios ele destrói por meio de seu martelo nomeado como Aijeke Wetfchera (SCHEFFERUS, 1674, p.37). A relação desse deus com os trovões, nesse material, parece muito certa e pontual, deixando pouco espaço para maiores indagações. Talvez Schefferus pudesse estar se embasando em materiais que circulavam, no início da Idade Moderna, sobre o próprio deus Thor - ainda mais considerando seu trabalho de erudição e de forte embasamento em revisão bibliográfica -. Assim, notando que outros autores evidenciavam e ressaltavam essa relação do deus nórdico com os trovões, então na mente do professor de Upsalla, Tiermes, o Tor lapão, só poderia estar, também, associado aos raios e trovões. Apesar da informação de Schefferus soar muito certa, é preciso cautela, como diz Frog (2018a, p.122), para não tomarmos documentos e textos literários como sendo necessariamente representantes de tradições religiosas. Outras características interessantes – que, infelizmente, passam pelo mesmo problema da anterior – estão no fato de que Horagalles está relacionado à morte, à vida e à doença. Ao que tudo indica, o deus estava relacionado de maneira muito próxima ao mundo humano de maneira geral, cuidando de questões do bem-estar comunitário e aos fatores que podem abalá- lo, como as supracitadas doença e a morte. Ao somarmos isso o fato de que o deus era igualmente responsável por eliminar as entidades malignas e mantê-las longe do homem, talvez encontremos, aqui, novamente a figura do deus do trovão protetor dos homens e deles muito próximo. Outras fontes além da de Schefferus atestam igualmente que Horagalles estava relacionado à proteção dos homens e de sua comunidade, e que os sámi, inclusive, costumavam bater em seus tambores e invocar o deus do trovão para pedir por proteção contra entidades potencialmente malignas (HOLMBERG, 1964, p. 231). Schefferus também atribuiu a Tiermes um martelo, o Aijeke Wetfchera. Conforme

145 Ainda assim, Schefferus, mesmo não advogando um regionalismo consciente ao olhar para a então Lapônia, diferencia os tambores sámi da região de Finnmark daqueles oriundos da Suécia, mas esse é o único momento em que há qualquer esforço de se ressaltar tais particularidades em sua obra (Zachrisson, 1991, p.86). 121

ressalta Collinder (1949, p.143), esse suposto martelo do deus sámi do trovão foi mencionado em outras fontes, como nos relatos de Rheen. Nesse aspecto, a semelhança em relação a Thor encontra-se não somente no fato desse deus portar um martelo, mas também em seu uso, que seria enquanto arma para eliminar seus inimigos; e na relação desse martelo com os raios que, ao ser arremessado, os produz. É certo que algumas diferenças são logo identificadas, como o fato de que Tiermes possui outra arma, o arco (SCHEFFERUS, 1674, p. 37; COLLINDER, 1949, p.143; HOLMBERG, 1964, p. 231); enquanto que Thor, apesar de fazer usos pontuais de outros instrumentos em contextos muito específicos, não possui, por natureza, outra arma. Outra diferença é que Mjolnir possuía outras funções além das combativas (SIMEK, 2007, p.219; LANGER, 2015, p. 303), enquanto que não há relatos de outros usos conferidos ao Wetfchera de Aijeke. Schefferus também aborda a questão da representação de Horagalles, que consistia numa espécie de estátua utilizada em rituais:

“A imagem de Thor era sempre feita de madeira (...). A partir dessa madeira, que é sempre a Bétula, eles fazem seus Ídolos conforme sua necessidade de Sacrifícios, e quando terminam eles os guardam em uma caverna próxima a alguma colina. (...) Das raízes da árvore eles fazem a cabeça, e, do tronco, o corpo da imagem: pois essas Bétulas que crescem em solos pantanosos geralmente têm suas raízes crescendo à sua volta, e delas surgem ainda outras pequenas raízes, cujo formato se encaixa facilmente nas mãos de um homem, atributo pelo qual são conhecidas. Em sua cabeça, cravam um prego de Ferro ou Aço, e um pequeno pedaço de lasca que serve para atear fogo, se essa for a vontade. Apesar de que acredito que ela tenha sido usada a princípio como um emblema do fogo, já que juntamente de Thor eles adoravam também o Sol, cuja imagem está aqui descrita” (SCHEFFERUS, 1674, p.40, tradução nossa, grifos do autor)146.

Hilda Davidson (1990, p.78) focou-se na probabilidade desse prego na cabeça da estátua ser uma lasca, uma espécie de pederneira – apesar de questionar se de fato ela teria sido usada ritualmente para fazer fogo -. Para a autora, esta pode se tratar de uma influência dos

146 “ image was always made of wood (…). Of this wood, which is always Birch, they make many Idols as they have Sacrifices, and when they have done they keep them in a cave by some hill side. (…) Of the root of the tree they make the head, and of the trunk the body of the image: for those Birches which grow in Fenny grounds have usually their roots growing round, and from them there shoot out other little roots, so that it is easily fitted to the shape of a mans hand, which is as it were his ensign by which he is known. Into his head they drive a nail of Iron or Steel, and a small piece of flint to strike fire with, if he hash a mind to it. Tho I rather s uppose it was first used to be an emblem of fire, which together with the Sun they worshipped in Thor, whose Image is here delineated” (SCHEFFERUS, 1674, p.40, grifos do autor). 122

nórdicos, representando a narrativa mítica de Thor contra o gigante Hrungnir, conforme contado por Snorri Sturluson. Haveria, então, uma conexão entre a lasca depositada na cabeça do deus durante o conflito narrado no mito em questão, e a estátua de Horagalles com uma pederneira na cabeça. Assim, para os sámi, a cabeça do deus do trovão seria utilizada enquanto fonte ritualizada do fogo. A pederneira arremessada pelo gigante, ao encontrar-se com o martelo da divindade do trovão, seria a representação da ignição do fogo, encenado, também, pelo clarão dos raios. Uma crítica a essa suposição de Davidson partiu de Declan Taggart (2015, p.147), para quem o relato de Schefferus, utilizado como base argumentativa pela autora, é passível de inúmeras problemáticas. Primeiramente, devido ao caráter etnocêntrico de sua obra e à agenda de Schefferus, somado ao fato de que seus escritos não foram produto de uma empreita etnográfica, é difícil saber até que ponto os aspectos religiosos por ele descritos representam realmente práticas nativas dos sámi, ou então elocubrações e conjecturas do próprio autor. Além disso, trata-se de uma fonte extremamente tardia, ainda mais se procurarmos nela elementos oriundos da religião nórdica, naquela altura já “extinta” havia séculos. Mesmo ignorando possíveis desvios – intencionais ou não – nas descrições de Schefferus, Taggart (2015, p.147) defende que qualquer tradição de prática religiosa nativa teria, em pleno século XVII, sofrido consideráveis alterações. Contudo, apesar do pertinente questionamento, Taggart parece não ter percebido que há, de fato, uma série de paralelos míticos presentes entre os povos nórdicos, bálticos e sámi no que diz respeito a deuses do trovão, fogo, pilares e pregos (LANGER, 2018, p. 238). Partindo da narrativa de Thor e Aurvandil, Langer (2018, p.227-238) constata que havia, no Hemisfério Norte, uma grande circulação de deuses do trovão ligados à estrela Polaris e, em última instância, às representações da axis mundi. Defendia-se, originalmente, que essa crença teria sido espalhada a partir dos germânicos antigos, e então em direção a outros povos, dentre os quais se encontram os sámi. Já hoje em dia, trabalha-se com a concepção de um grande dinamismo e conexões mútuas, especialmente na região circumpolar, abandonando-se, portanto, a idéia de que teria havido uma única origem e ponto de difusão da crença ou costume. É muito provável que a crença numa axis vertical de importância cosmológica e cujo ponto mais elevado seria a Polaris trate-se, na verdade, de um costume muito mais antigo do que os germânicos antigos, remetendo, provavelmente, ao Paleolítico. Inúmeros povos da Eurásia teriam, assim, desenvolvido suas próprias representações acerca desse ponto fixo no céu, o que, nas áreas báltica, finlandesa, eslava e sámi, assumiram a forma de um prego

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cravado na cabeça do deus do trovão. Clive Tolley (2009, p.275) não somente concorda com esse último aspecto, como também propõe que a estátua de Horagalles descrita por Schefferus pode estar associada a uma tradição finlandesa segundo a qual o fogo se originou da montanha cósmica. Nesse sentido, haveria de fato uma conexão do prego na cabeça da estátua do deus do trovão com a Polaris, representando, portanto, uma conexão da divindade com a concepção de um pilar cósmico. Esse tema, também acredita esse autor, seria recorrente em diversas áreas da Eurásia, principalmente na região circumpolar, e teria conexões com o xamanismo. Sendo assim, há indícios de um simbolismo construído em redes recíprocas de significado, na qual deuses do trovão, o pilar cósmico, o xamanismo e o fogo estão interconectados. A ocorrência tão ampla e rica desses aspectos na região auxilia para que cogitemos que, ao menos nesse aspecto, Schefferus pode realmente ter captado alguma tradição religiosa presente nos sámi da época. Os possíveis significados, simbolismos e atributos do deus sámi dos trovões permanecem, portanto, ainda com um quê de mistério. Seu próprio nome é uma manifestação desse aspecto: seria o Tiermes ou Aijeke, adorado no norte, o mesmo deus que o Horagalles ao sul? Estamos diante de diversos nomes para a mesma entidade, configurando, então, meras variações, ou são divindades de fato diferentes? Apesar disso, um perfil geral desse deus do trovão, ao menos na forma como foi descrito na obra de Schefferus, pode ser traçado. Trata-se de um deus dos trovões que preside também sobre outros aspectos da vida humana, como a morte, a vida e a saúde, e que protege os homens de entidades malignas. Além disso, ele é também portador de um martelo e de um arco, dos quais faz uso para eliminar seus inimigos – uso esse relacionado à produção de raios -. Também pudemos ressaltar que foram identificados, na obra, simbolismos desse deus do trovão que poderiam estar relacionados à estrela Polaris e a uma concepção de pilar cósmico que provavelmente é pertencente a todo um estrato euroasiático.

2.4 Ukko, o deus finlandês do trovão

Ukko ou Ukkonen – respectivamente, “avô, ancião”, “trovoador” - era o deus do trovão adorado entre os finlandeses pré-cristãos. Conforme abordamos anteriormente, entre os povos fino-úgricos parece ter sido comum representar o deus dos trovões como um homem ancião, algo atestado também entre os estonianos. Em finlandês, alguns nomes designativos também

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foram usados para se referir a essa divindade, como Pitkäinen e Pitkämoinen, derivados da raíz pitkä, que significa “longo, comprido”. Entre as principais fontes primárias de que dispomos sobre a mitologia finlandesa, o culto ao deus do trovão parece ter desempenhado um importante papel, sobretudo no quesito da fertilidade e no auxílio na vida diária dos camponeses (HOLMBERG, 1964, p.228-229). Segundo Frog (2011, p.79), Ukko é a manifestação de uma ocorrência muito comum dentro do que o autor chama de substrato circumbáltico. Entre esses povos, epítetos de cunho patriarcal ou então relacionando o deus dos trovões à figura de um velho são quase tão comuns quanto a presença de martelos ou machados enquanto armas dessas divindades nas narrativas míticas. Contudo, por algum motivo essa questão do epíteto tem sido, na tradição acadêmica, menos notada ou ressaltada. Ainda de acordo com Frog (2011, p.79) também há indícios de que Ukko fazia uso de um machado e que, inclusive, há diversos entoamentos e canções finlandesas em que são feitas referências a essa arma do deus. Em muitos de seus mitos, a carroça de Ukko é descrita como fonte dos trovões, característica que já apontamos anteriormente como estando relacionada também à carroça de Thor. Tal semelhança já chegou a fazer com que se cogitasse que um dos epítetos conferidos a Thor na Edda em Prosa, Ökkuþórr, se tratasse de uma importação ou influência das características do deus finlandês Ukko. Considerando não apenas a semelhança fonética e ortográfica entre as palavras, mas também o fato de que o referente nome é mencionado justamente quando se fala da carroça de Thor, a alegação parece fazer sentido. Apesar das duas divindades possuírem, de fato, vários paralelos, Taggart (2015, p.72) duvida de sua veracidade. Primeiramente porque, enquanto os diversos nomes conferidos a Thor significam, todos, “trovão”, o nome de Ukko, conforme vimos, significa “homem velho, ancião”. A fusão dessas duas concepções num só epíteto seria algo sem precendentes. Além disso, a única ocorrência do nome Ökkuþórr é na própria Edda em Prosa que, como se sabe, é uma fonte islandesa oriunda do século XIII. Se tivesse havido de fato uma influência de Ukko nos atributos de Thor, então qual o motivo dessa única ocorrência? Por que não encontramos, nas diversas outras fontes de diferentes períodos e regiões, qualquer outra menção a esse epíteto? Notando a ausência do nome Ökkuþórr em outros materiais, somos obrigados a conjecturar que ele tenha surgido na própria Islândia. Seria extremamente improvável supor as características de um deus estrangeiro do trovão tão ao leste, como o Ukko finlandês, tenha chegado à Islândia. O autor prefere, então, relacionar Ökkuþórr ao verbo – aka em islandês antigo, que significa “conduzir”. Ökkuþórr, então, seria “Thor, o condutor”. Isso explicaria

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também o motivo desse nome ter aparecido na obra de Sturluson no mesmo momento em que a carroça de Thor é mencionada (TAGGART, 2015, p.72-73). Turville-Petre (1975, p.98) mencionou Ukko enquanto sendo uma divindade do trovão semelhante ao Horagalles dos sámi, porém com marcantes diferenças. Para o autor, as fontes primárias da área sámi apontavam que seu deus dos trovões, apesar de encarregado da vida e da saúde dos homens, era temido e necessitava de tratamento cauteloso pois, uma vez desagradado, as consequências seriam terríveis. Já na figura do deus finlandês essa relação de medo não é detectada. Ukko, na verdade, tem seus aspectos de fertilidade mais destacados, principalmente aqueles em decorrência das chuvas e dos trovões. Interessantes apontamentos foram feitos por Maths Bertell (2013, p.48), que notou a ausência de um companheiro de peripécias nas narrativas envolvendo Ukko, ao contrário de Thor que, conforme vimos, tinha seu escudeiro ajudante. O autor também ressaltou que, na Finlândia pré-Moderna, o tietäjä, que era o especialista religioso, recebia por vezes o nome Ukon Poika “filho de Ukko” ou “amigo de Ukko”. Em certa medida, esse especialista era um reflexo da divindade e recebia, dela, armas e magias defensivas das quais poderia fazer uso. Analisando o papel do deus na Kalevala, Pentikäinen (1999, p.138) afirma que na epopeia finlandesa compilada por Elias Lönnrot, Ukko é uma espécie de deidade suprema. Posicionando o deus na narrativa de criação do universo, Lönnrot conferiu a Ukko aparições pontuais que, contudo, são permeadas por poderosas manifestações completamente cabíveis a um soberano de todo o cosmos. Curiosamente, suas intervenções são permeadas por demonstrações de controle dos fenômenos atmosféricos e climáticos.

2.5 Mikael Agricola e sua obra

A primeira menção ao deus Ukko se dá num período já tardio. Ele consta em uma lista oferecida por Mikael Agricola no momento em que fez a tradução do Salmo de Davi para o finlandês: Davidin Psalttari, em 1551. Os primeiros anos da vida de Agricola são um tanto quanto nebulosos. Sabe-se que ele nasceu na vila de Torsby, pequeno distrito rural de Pernå, e que foi filho de uma família significativamente abastada. Não se sabe qual teria sido sua língua mãe, visto que a maioria dos falantes do vilarejo falava sueco. Contudo, considerando-se o nível do finlandês erudito alcançado por Agricola, e de um de seus amigos de infância, Martinus Teit, que posteriormente foi ensinar finlandês para os membros da corte de Estocolmo, é altamente

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provável que ambos tenham recebido uma educação bilíngue, falando tanto o sueco quanto o finlandês (HÄKKINEN, 2016, p. 31-33). Agricola foi realizar seus estudos na escola de Vyborg, onde recebeu uma educação ainda embasada nos moldes da Idade Média Tardia: as disciplinas ensinadas eram o Latim, a Dialética e a Retórica. Vyborg era uma cidade agitada, multilingual e palco de intensas atividades mercantis, principalmente com o Báltico. Era possível encontrar, lá, falantes do alemão, russo, finlandês, sueco e, esporadicamente de outros idiomas. Até mesmo os mercadores com melhores condições financeiras enviam, da extinta Livônia, os seus filhos para estudarem idiomas em Vyborg. Agricola, então, recebeu uma educação erudita para os moldes da época, além de ter experienciado situações que sempre o colocaram em contato com a questão linguística, de seu nascimento e infância bilíngue em Pernå, à empreita educativa na agitada e multicultural Vyborg. Posteriormente, ele ainda viria a estudar na Universidade de Wittenberg, na Alemanha, um grande centro da tradição luterana da época (HÄKKINEN, 2016, p. 34-35). Ainda segundo Häkkinen (2016, p. 35-48), Agricola tornou-se assistente do bispo de Turku por volta de 1529. Sendo o erudito que era, não demorou muito para que recebesse progressivamente mais e mais tarefas e atribuições, ainda mais porque, nas palavras do próprio Agricola, “a grande maioria dos assistentes são homens tolos, sem qualquer conhecimento do latim ou sequer do sueco”. Em 1550, foi ordenado bispo de acordo com os moldes da tradição luterana. Como se sabe, a Reforma Luterana reivindicava um acesso às Escrituras Sagradas que estivesse na língua do povo, e não mais em idiomas como o latim, uma língua que, fora dos círculos do alto clero, já estava morta. Conforme apontado de maneira assertiva por Lavery (2006, p.40), tal exigência teve um impacto particularmente forte em línguas que, até então, não tinham uma tradição escrita ou literária, como o próprio finlandês. Foi justamente nesse aspecto que Agricola interveio e foi eleito, por unanimidade, como o “pai do finlandês literário”: o bispo se encarregou de passar a “Palavra de Deus” para o finlandês. O próprio idioma finlandês, até então, nunca tinha sido sistematizado gramaticalmente e, por mais que já houvesse se tornado o que podemos chamar de um único idioma, ainda assim havia inúmeras variações regionais. Grande parte das pessoas, lembremos, viviam em pequenos vilarejos como os da infância de Agricola, espalhados por toda a Finlândia. Seria irreal não pensarmos que esses regionalismos e diversidades não implicassem em “idiomas finlandeses”, assim mesmo, no plural. O trabalho de sistematização e normatização gramatical

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e ortográfica coube na empreita de Agricola. Ao todo, o bispo traduziu nove grandes obras bíblicas para o finlandês, dentre as quais se encontram O Salmo de Davi, O Novo Testamento, O Livro de Orações da Bíblia, dentre outros (HÄKKINEN, 2016, p. 70). Particularmente importante para nós é sua tradução d’O Salmo de Davi, o Davidin Psalttari, publicado em 1551. No material em questão, antes de partir para a tradução propriamente dita, Agricola oferece um prefácio onde supostamente elenca uma série de divindades que ainda estavam sendo veneradas nas áreas da Carélia e da Tavastia (SARMELA, 2009, p. 586). Sua lista inclui vinte e três entidades mitológicas, fora o próprio Diabo, citado por ele ao fim. Obviamente que, após elencar todas essas divindades, Agricola os rejeita à censura cristã, implorando para que abandonassem o culto a esses falsos deuses e começassem a reverenciar a Santíssima Trindade. Ao enumerar essas divindades ainda adoradas, o bispo pretendia construir uma espécie de argumento teológico que demonstrasse à elite erudita de sua própria época o quanto a Igreja Católica, que estava entre esses povos desde o século XII, havia falhado em guiar o “homem comum” para o caminho de uma vida religiosamente correta e verdadeira; tratava-se, de última instância, de reivindicar essa empreita para as mãos da Igreja Luterana. Apesar disso, o material escrito por Agricola é uma incontornável fonte para que se entenda o papel da religião popular147 na vida social dos povos dessas províncias que, apesar de já estarem, na época, convivendo com o cristianismo havia séculos, ainda ressignificavam seus deuses antigos e os traziam para seu cotidiano (ANTTONEN, 2012, p. 186-187). Ainda que com uma agenda predominantemente Luterana, Agricola não deixou de manifestar um interesse em registrar a religião popular dos finlandeses. Segundo Anttonen (2012, p.188-189), apesar da retória empregada pelo bispo para recriminar os resquícios de qualquer traço não ortodoxo cristão, certa empreita humanista é identificada no seu trabalho, no sentido de preservação dos costumes antigos de seu povo. É muito possível que tais costumes não somente dialogassem com sua infância na pequena cidade de Torsby, mas também que Agricola tenha desenvolvido certa simpatia pelos camponeses de províncias rurais durante suas muitas viagens enquanto bispo. Claro que o interesse em preservar esses agentes mitológicos ainda vivos no cotidiano dos finlandeses não poderia ver sem qualquer recriminação, ainda mais sendo Agricola um representante da Igreja Luterana. Além desse fato, o pensamento teológico alinhado ao humanismo tinha, na Idade Média Tardia e no começo da Idade Moderna, esse caráter hostil em relação às crenças e costumes populares,

147 Sabemos das possíveis complicações envolvendo o termo religião popular. Traduzimos conforme o autor o empregou no original: folk religion. 128

que ganhariam importância e reconhecimento entre as elites europeias somente nos séculos seguintes. De qualquer maneira, é necessária cautela ao nos aproximarmos das informações dispostas por Agricola. Não só por conta de seu enviesado olhar luterano frente à permanência de vestígios pagãos num povo que deveria, àquela altura, estar cristianizado – o que por si só já desperta inúmeras problemáticas -. O modo como o bispo dispõe suas informações denota que ele pressupunha uma “teologia pagã” integrada e organizada que permeava os vários mitos, divindades, tradições e práticas religiosas populares. Na verdade, o que acontece é exato oposto. Em se tratando de religião finlandesa pré-cristã, embasada completamente em tradições orais e sem nenhum corpus dogmático, diversos folcloristas, etnólogos e cientistas da religião que nunca houve um sistema integrado, coerente, homogêneo e sistematizado de uma mitologia e religião finlandesa pré-cristã. Essa suposição levou Agricola, por exemplo, a afirmar que todas as criaturas mitológicas elencadas em sua lista eram deuses e deusas quando, na verdade, muitos eram entidades menores com outros tipos de propósitos e funções, não sendo tidos, portanto, como pertencentes ao panteão divino (ANTTONEN, 2012, p.194- 196). Apesar disso, o prefácio fornecido por Agricola é o primeiro registro da religião finlandesa pré-cristã e algumas de suas divindades e entidades. Ele constitui, por isso, uma fonte primária incontornável para quem deseje abordar qualquer tema relacionado a essa mitologia e religião, conforme o faremos com o deus Ukko.

2.6 Ukko nos escritos de Agricola

Em sua lista de divindades supostamente adoradas na Carélia e na Tavastia, Agricola descreve o deus do trovão da seguinte maneira:

“E quando o semear da primavera estava pronto/então eles bebiam da taça de Ukko/eles procuravam pela cesta de Ukko/e todos, jovens e velhos, embriagavam- se./Tantos feitos vergonhosos/eram ouvidos e vistos/quando Rauni, esposa de Ukko, começava a borrifar./Ukko trazia grandes chuvas do norte/que proporcionavam bons climas e novas colheitas” (AGRICOLA, 1551, versos 29-39, tradução nossa).148

148 “And when the spring sowing was done /then they drank Ukko’s cup/they sought Ukko’s sowing basket/and young and old, all were drunken./So many shameful deeds were done/both hearing and seeing /When Rauni, Ukko’s woman began to splash,/Ukko gave great rain from the north./Tat gave good weather and/new harvests” . Nossa tradução foi feita a partir da tradução do finlandês antigo para o inglês feita por Anttonen, 2012, p. 186- 129

A passagem que Agricola dedica a Ukko é um tanto quanto pontual e descrita de maneira surpreendentemente funcional para a época em que foi escrita. Ainda assim, mesmo com tamanha precisão, o trecho desperta uma série de questionamentos. Citando a teoria de Marti Haavio, Anttonen149 (2012, p. 205) explica que pode haver um princípio organizador muito específico nessa lista de Agricola, princípio esse que interferiu diretamente na descrição do deus do trovão. Segundo essa teoria, a chave para entender a lista de agentes mitológicos feita por Agricola é considera-la enquanto uma espécie de calendário medieval das arquidioceses. De acordo com a teoria de Haavio, Agricola teria se baseado no calendário anual tradicional, onde constam datas específicas e comemorativas para as principais atividades econômicas, como a caça, a colheita e o pastoreio. Certos agentes mitológicos dessa lista seriam santos católicos que foram patronados de modo a representar tais atividades. É possível que haja, nas entrelinhas dessa lista de divindades e suas prováveis funções, o Calendário Romano de Santos que foi originado na arquidiocese de Hamburgo-Bremen e se disseminou na região da Carélia ainda antes do período das Cruzadas (1025 – 1300 d.C) e deixou suas marcas na vida religiosa, econômica e cultural dos camponeses da região. Nesse contexto, é possível que Agricola tenha mascarado o fato de que o ritual de beber de uma taça não fosse, na verdade, relacionado a Ukko, mas a São Urbanus, patrono das videiras e dos campos semados. O nome Ukko na lista de Agricola não seria, portanto, o de uma divindade semelhante ao Thor nórdico, mas uma expressão metafórica para designar o santo que já havia sido eleito patrono do clima. O ritual descrito seria, inclusive, um minni: o ato de beber de uma taça em homenagem a um santo - em latim, in amore sanctorum bibere - (ANTTONEN, 2012, p. 205-206). Em seus estudos de mitologia fino-úgrica, Uno Holmberg (1964) chegou a outras conclusões. Tomando a lista de Agricola como fonte fiel – ainda que problemática e enviesada, no sentido de constituir um olhar cristão – dos costumes antigos dos finlandeses, o autor não enxerga a presença de Ukko como uma alegoria ou metáfora para algo que não fosse o próprio deus finlandês dos trovões. Pelo contrário, a presença dessa divindade na lista de um autor cristão já no século XVI, centenas de anos após a Finlândia ter sido cristianizada, só poderia ser um testemunho ao poder e lugar de relevância que esse deus detinha entre o povo

187. 149 Infelizmente, os estudos de Marti Haavio não são por ora acessíveis para nós, já que todos se encontram em finlandês. 130

finlandês. Ukko e o culto ao trovão seriam, portanto, de importância máxima na religião finlandesa pré-cristã, a ponto de seus ecos continuariem a ressoar ainda após a conversão desse povo ao cristianismo. Consequentemente, tendo a lista de Agricola como fonte fidedigna no que diz respeito aos atributos e regências de Ukko, ele de fato seria muito semelhante a Thor: trata-se de um deus dos trovões e das chuvas que, em última instância, acabava também por ser um deus da fertilidade dos campos (HOLMBERG, 1964, p. 228-229). Para validar certas informações dispostas por Agricola, Holmberg (1964, p.229) faz uso de outras evidências que com elas corroboram. Datada da época de publicação dessa lista (1500 d.C) há uma petição, ainda preservada e escrita em sueco por alguns camponeses do leste da Finlândia, em que é descrita uma multa que seria aplicada para quem bebesse da Thordns gilde, a taça de Thor. Considerados os regionalismos e o idioma da escrita, que era o sueco, o nome Thor pode muito bem estar sendo utilizado para se referir a Ukko, funcionando como simples equiparação. Um relato de inspeção eclesiástica escrito em 1670 menciona Ukon vakat, cestas de Ukko. Ou seja, os dois objetos que a lista de Agricola atribui ao deus, as cestas e a taça, são mencionados também em outros relatos e advogam uma provável existência material dos mesmos. Talvez isso aponte para o fato de que Agricola realmente tenha relatado costumes religiosos ainda vivos entre os camponeses de sua época, dentre os quais estava o culto a uma divindade dos trovões, das chuvas e fertilidade: Ukko. Mas a análise mais completa da figura de Ukko nos escritos do bispo ainda pertence a Unto Salo (1990). Segundo o autor, é no mínimo suspeito que o nome da esposa do deus conforme consta na lista – Rauni – não apareça em nenhuma outra fonte sobre a tradição finlandesa antiga. Ele também rejeita os argumentos que vimos previamente relacionando Rauni à sorbeira e à própria árvore cósmica, apontando que não há, na Finlândia, nenhuma conexão clara entre o deus do trovão e essa árvore. Sua proposta é um tanto quanto inusitada, defendendo que este nome é um epíteto para o deus, que deveria, então, ser lido na lista de Agricola como Rauni-Ukko (SALO, 1990, p. 111). Voltando-se para a Grécia Antiga, o autor relembra um dos epítetos de Zeus, o deus supremo encarregado também dos trovões: Keráunios, cujo significado é “trovão”, “raio”, a partir do qual teria se derivado o adjetivo keráunios, que significa “pertencente ao raio”, “atingido por um raio” ou “raio arremessado”. O latim emprestou esse nome e fez seu cerauniae (raios), palavra utilizada massivamente por humanistas e naturalistas nas literaturas científicas dos séculos XVI e XVII. É possível que ao estudar na Universidade de Wittenberg, Agricola, que estava familiarizado com o latim desde sua educação primária, tenha entrado

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em contato com a palavra cerauniae nos manuais naturalistas. Há indícios de que o autor tenha estudado obras que tratavam, por exemplo, das causas e origens das tempestadas e trovões. Além disso, Agricola muito provavelmente também entrou em contato com o epíteto Keráunios para designar Zeus, já que estudou, também em Wittenberg, o grego clássico. Seguindo essa hipótese, no contexto da universidade Agricola teria tanto notado a semelhança entre Zeus e o Ukko da tradição finlandesa, quanto a conexão entre a palavra latina cerauniae e os raios. Em seguida, Agricola possivelmente omitiu a primeira sílaba, -ce, porque ficaria foneticamente mais semelhante ao finlandês se a sílaba –rau fosse tônica e, no idioma finlandês, é sempre a primeira sílaba que deve cumprir essa função. Além disso, ele teria excluído a última sílaba –ae para que a palavra terminasse em –i, como é típico no finlandês (SALO, 1990, p. 115-116). Portanto, Rauni nunca teria existido enquanto suposta esposa de Ukko, mas como epíteto Rauni-Ukko, em que a palavra Rauni funcionaria como espécie de título. Assim, o nome Rauni-Ukko significaria algo como Ukko Trovoador ou Ukko Relampejador (SALO, 1990, p. 116-117). Por mais que etmologicamente essa hipótese seja viável, Unto Salo (1990) termina por não explicar como que acabou por existir, entre os sámi, uma esposa do deus do trovão chamada Ravdna, um paralelo interessante com Rauni (HOLMBERG, 1964, p.230). Contudo, numa série de outros aspectos Unto Salo (1990) demonstra suas convergências argumentativas com os estudos de Holmberg (1964). Para ambos seria possível que Ukko tivesse suas origens no Thor dos nórdicos, conferme atestam uma série de características em comum. Ainda que essa influência seja atestada, torna-se difícil saber até a partir de que ponto Ukko se emancipou e se consagrou como divindade dos trovões especificamente finlandesa. Que isso aconteceu é algo inegável: apesar das semelhanças que detinham a princípio, Thor foi mudando com os tempos, enquanto que Ukko manteve os traços que o deus nórdico tinha durante a Era Viking. Em outras palavras, ao longo da Idade Média e até mesmo Idade Moderna adentro, Ukko se manteve, na tradição popular, um deus relacionado aos raios, trovões e à fertilidade das terras, algo que originalmente também pertencia a Thor. Já este segundo, com o passar do tempo, foi perdendo seu vínculo com os raios, trovões e o clima para adotar, nas sagas, o perfil de um herói aristocrata quase que herculeo, preocupado em proteger os homens e deuses ao eliminar inimigos com sua força extrema (SALO, 1990, p.158). Thor, então, teria chegado do oeste por volta da Idade do Bronze. Nesse período, a cultura dos povos habitantes do litoral finlandês já recebia tantas influências dessa direção que

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os assentamentos nas regiões do Golfo da Bótnia e entre os rios Kokemäki e Aura que haviam se tornado a região finlandesa mais “nordicizada” da pré-história. Tal influência era perceptível também em outros aspectos, como na adoção de casas compridas no estilo nórdico, e o uso de pilhas funerárias feitas de pedra. É possível que até antes desse contato os povos Fino-Úgricos tivessem um deus dos céus e dos trovões que tinha o formato de uma grande águia e, portanto, foi somente com os primeiros assentamentos de nórdicos na região que os finlandeses entraram em contato com a concepção de um deus dos trovões antropomorfizado (SALO, 1990, p.159). Essa semelhança com Thor, somada ao fato de que populações do oeste finlandês estiveram em contato com os nórdicos desde tempos muito antigos e deles absorveram várias influências, fez com que Unto Salo (1990, p.160) questionasse a origem que o próprio Agricola atribiu a Ukko. Lembremos da distinção do bispo, que dividiu sua lista ente deuses da Carélia e da Tavastia. Segundo ele, Ukko pertencia à primeira dessas localizações. Teria sido improvável que o deus do trovão de finlandeses tão ao leste quanto a Carélia tivessem manifestado um deus do trovão com os traços tão semelhantes aos de Thor, e não os finlandeses do oeste, vizinhos dos nórdicos. Por fim, a evidência arqueológica também não fala a favor de Agricola: diversos machados da Idade do Bronze e pederneiras de formato elíptico da Idade do Ferro, ambos tipicamente nórdicos e relacionados a Thor, são encontradas predominantemente no Oeste finlandês, e não no leste. É altamente improvável que Ukko tenha surgido do leste Careliano, onde os vestígios arqueológicos que explicariam suas diversas similutes com Thor não são encontrados. Ukko, com o passar dos tempos, sem dúvida se espalhou pelo lado leste da Finlândia, chegando à Carélia. Não se trata de duvidarmos da existência de um culto a Ukko nessa região, mas apenas de traçar o ponto de surgimento a partir do qual a concepção desse deus se disseminou para outras regiões e, nesse sentido, as evidências linguísticas, mitológicas e arqueológicas parecem indicar uma influência a partir do deus Thor entre os finlandeses ocidentais, para uma progressão da imagem de Ukko Finlândia afora, até atingir as partes orientais da Carélia (SALO, 1990, p.160). Sendo assim, por qual motivo teria Agricola atribuído a origem de Ukko à província da Carélia? Certamente que o erro não se deu por mero acaso, ainda mais no contexto de escrita da tradução do bispo. Aparentemente, o costume de beber da taça de Ukko, ao qual Agricola prestou muita atenção e fez questão de destacar, era ainda praticado, no século XVI, muito mais fortemente na Finlândia oriental do que na ocidental: inúmeros documentos das regiões

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de Savo e Carélia indicam que o costume de beber dessa taça do deus do trovão se estendeu até pelo menos o século XVII. Em lugares como Rautalampi e Kurkijoki, por exemplo, o cotume de brindar a Ukko continuou até o século XIX. Também é possível que Agricola soubesse, de alguma maneira, que o uso da palavra ukko no sentido de “homem velho” ou “avô” não era atestada entre os distritos do sudoeste da Finlândia. Se acrescentarmos a isso o fato de que, na época do bispo, a ocorrência da palavra ukko estava em alta na Carélia, talvez isso explique os motivos de sua conjectura. Agricola muito provavelmente pensou que o nome Ukko para designar o deus do trovão só poderia ter surgido na área onde a palavra Ukko já ocorria – fortemente na Carélia e sem vestígios ao sudoeste do país -: há, portanto, um princípio racional que permeia a escolha do bispo em atribuir uma identidade careliana ao deus (SALO, 1990, p.161). Parece relativamente seguro hipotetizarmos que Ukko tenha, então, recebido influências ocidentais de Thor. Pressupor essa influência dos nórdicos sobre os finlandeses ocidentais não implica, ressaltemos, em pensar o deus finlandês dos trovões como uma mera máscara alternativa de Thor. Ukko era outro deus, finlandês por natureza e que finlandês continuou mesmo após ter feito certos empréstimos da divindade escandinava. Tais empréstimos devem ser vistos, nesse contexto, muito mais como ressignificações do que como adoções irrestritas de uma entidade estrangeira. Os finlandeses já tinham divindades dos céus e dos trovões, por vezes manifestados numa águia celestial, outras, numa serpente cujo corpo desenhava os raios (SALO, 1990, p. 167-180). Mesmo frente a esse processo de antropomorfização de seu deus dos trovões graças à influência escandinava, os finlandeses tinham outro tipo de sociedade, o que acarretou, sim, em inúmeras diferenças no modo como essa divindade do trovão seria cultuada e significada. Ilustremos a afirmação que acabou de ser feita. Ukko, ao se encontrar com o deus nórdico dos trovões, passou a se parecer cada vez mais com ele. Tais semelhanças nunca constituíram uma simbiose completa e cada deus cultivou suas peculiaridades: Ukko nunca foi relatado conduzindo uma carroça puxada por bodes, elemento fortemente presente nas narrativas de Thor. Tampouco surgiram, em torno de Ukko, tantos mitos e narrativas distintas como no caso nórdico – Thor aparece em Sagas, nas Eddas e na poesia escáldica-. A Finlândia da Idade do Ferro não era o mesmo tipo de sociedade hierarquizada como a escandinava e, por isso, eram camponeses contadores de estórias que traziam as peripécias de Ukko, ao contrário do Thor medieval, cercado por poetas escaldos e góðar150. Na boca desses

150 Líderes da comunidade que, dentre outras coisas, cuidavam também da condução de cerimônias e rituais 134

camponeses, o auxílio oferecido por Ukko era na vida pragmática: ajuda para fazer fogo; para queimar árvores e florestas, abrindo espaço para plantações; para tornar o solo fértil e propiciar boas plantações; para fazer chover quando necessário; para ajudar na caça e no momento do nascimento. Em suma, Ukko manteve-se um violento deus dos trovões mesclado ao mundo natural, controlando os fenômenos atmosféricos conforme sua vontade. Por vezes, é verdade, aparecia enquanto uma divindade celestial151 e, nesse sentido, mostrava-se mais refinado e ponderado. Nesse sentido é que sua figura distanciou-se da de Thor. Ukko era, sem dúvidas, reminiscente do Thor da Era Viking adorado pelos camponeses suecos, também providencial e essencial para ajudar com a vida campesina; porém, ele nada tem de parecido com o Thor heroico das sagas medievais ou das poesias escáldicas cantadas em grandes salões para a aristocracia (SALO, 1990, p.167). As percepções de Unto Salo (1990) a respeito do Ukko de Agricola fazem para nós muito sentido. Nas breves linhas em que o bispo escreve a seu respeito, notamos um deus mesclado ao natural, em controle das chuvas, dos trovões e encarregado por fertilizar os campos, em nome do qual os camponeses celebravam e agradeciam, fosse com a taça de Ukko, fosse por meio de seu cesto.

2.7 Elias Lönnrot e a Kalevala

Elias Lönnrot (1802-1884) foi um médico finlandês que atuou por vinte anos em distritos rurais de seu país, principalmente em Kajaani, na parte nordeste. Posteriormente, viria a ser professor de Língua e Literatura Finlandesa na Universidade de Helsinque. Falar de Lönnrot é falar das fontes e materiais que serviram de base para a Kalevala: durante onze viagens que fez para províncias do norte e do leste finlandês, entre os anos de 1828 e 1844, ele coletou uma série de poemas e cantos que circulavam em oralidade no meio campesino dessas regiões, registrando-os e unificando-os em um mesmo corpus (HONKO, 1969, p.9). Ao pretendermos analisar a Kalevala e seus conteúdos, devemos considera-la em dois aspectos essenciais. Apesar de ser o resultado de conteúdos e símbolos folclóricos que ainda estavam em vigor na época em que foram registrados, ela não deixa de ser produto de uma empreita assumidamente estética e acadêmica de Lönnrot, carregando, por outro lado, as marcas e exigências trazidas pelo Período Romântico para que fosse considerada um épico nacional. A Kalevala, então, foi concebida enquanto trabalho de história, língua e memória do religiosos. 151 Conforme veremos sobre seu papel na Kalevala. 135

povo finlandês, e seu autor não estava comprometido com um estudo e análise folclorísticos no sentido atual e academicista do termo. Talvez devamos considerar Lönnrot um estudioso também pioneiro da mitologia comparada que, na época, incluía nomes como Max Müller e Jacob Grimm (PENTIKÄINEN, 1999, p.3). O contexto de surgimento dessa obra é de suma importância para que possamos entendê-la numa perspectiva mais abrangente. O ano de 1809 foi definitivo na história da Finlândia e trouxe intensas mudanças em seu cenário. Tendo finalmente se livrado do domínio do reino sueco, que vinha se estendendo desde a Idade Média, o país agora havia se tornado um Grão-Ducado autônomo da Rússia. Seguindo as influências culturais do Iluminismo, as ondas frescas do Romantismo começaram a chegar até o território finlandês, trazendo consigo a valorização de uma identidade nacional. Assim, o interesse pela história, língua e estudo da cultura finlandesa começou a crescer exponencialmente, principalmente na Universidade de Turku, centro da cultura e economia na época. Esse interesse, contudo, não era novo: havia já um lastro dessa busca por uma identidade finlandesa desde as publicações de Agricola, que, conforme vimos, uniu os dialetos do finlandês em um só registro escrito, o que sem dúvidas contribuiu para o sentimento de pertencimento e união desse povo – mesmo que a nível embrionário -. Dissertações envolvendo o estudo do folclore finlandês e sua religião pré-cristã começaram a aflorar em Turku, e atividades voltadas para a coleta e publicação de tal material ganharam força. Dentre os líderes do movimento Romântico de Turku estava Adolf Ivar Arwidsson, que viria a ficar famoso por sua máxima “Suecos nós não somos, Russos não podemos nos tornar, que sejamos, então, Finlandeses” (PENTIKÄINEN, 1999, p.17). Ainda segundo Pentikäinen (1999, p.18), dentre os estudiosos do supracitado movimento estava a figura de Sjögren, assumido entusiasta e admirador do Romantismo Germânico. Naquela época, os alemães já haviam publicado compilações de contos e canções folclóricas oriundas de diversos povos germânicos, pois acreditavam haver nesse material o verdadeiro resquício da antiguidade e “alma” de seu povo. Ele também foi influenciado pelo trabalho de Johann Gottfried von Herder, que desejava organizar os épicos do mundo de acordo com país, período, língua e etnia. Importando esse princípio para o caso de seu país, Sjögren acreditava que as runas finlandesas152 seriam as detentoras desse conhecimento ancestral, antigo, e que nelas residira a verdadeira voz de seu povo. Foi então que esses cantos

152 No original, runo songs. Em contexto finlandês, “runa” possui um significado completamente diferente da que detém no mundo nórdico e germânico. Aqui, o termo refere-se a um tipo específico de canto com temática folclórica, entoado geralmente por acompanhamento de algum instrumento musical, como o kantele. Estilisticamente, o canto rúnico é pautado pelo paralelismo, aliteração e a métrica trocaica, esta última especialmente típica dos povos Balto-Fínicos (PENTIKÄINEN, 1999, p. 86). 136

começaram a ser coletados e registrados na Finlândia, circulando fortemente no meio acadêmico. Quando ingressou na Universidade de Turku, em 1822, foi dessa fonte que Lönnrot bebeu ao inserir-se nesse meio, herdando suas influências. Dessa forma, percebe-se que o nascimento da Kalevala deve muito ao Romantismo. A ambição de Lönnrot era a de compilar cantos folclóricos de seu povo e reuni-los de maneira a apresentar a Finlândia como sendo capaz não somente de ter sua própria poesia, mas de dar voz a um épico. Em 1840 ele já havia publicado uma compilação de baladas e poemas, chamada Kanteletar, e a segunda edição da Kalevala, a definitiva, surgiu em 1849. Para que se tenha uma noção da importância dessa obra, ela é tida, até os dias de hoje, como o épico nacional finlandês, além de que todo dia 28 de Fevereiro é celebrado o “Dia da Kalevala”, pois é a data que consta na escrita do prefácio por Lönnrot. O interessante é que, do ponto de vista Ocidental, a Kalevala é um duplo anacronismo: em primeiro lugar, porque foi escrita numa época em que “épicos” eram tidos como algo do passado, talvez pertencentes a um mundo mais arcaico do que o de Beowulf; em segundo lugar, porque na Finlândia, o principal veículo de circulação de materiais e conteúdos folclóricos era, ainda, a oralidade. Qualquer estudo sobre a Kalevala requer que ajustemos nosso escopo de acordo com a realidade peculiar da Finlândia, saindo dos padrões da Europa Central, e sempre mantendo em vista a tradição oral que a embasa e permeia (BOSLEY, 2008, p. xiv - xvii). É nos termos desse tipo de Romantismo que a Kalevala deve ser entendida. Ressaltemos a importância desse movimento para nações que ou eram jovens demais ou que, por qualquer outro motivo, necessitavam de um instrumento que desse suporte à sua própria identidade cultural. No caso específico da Finlândia, o Romantismo foi absorvido com certa avidez por essa até então “subdesenvolvida” nação que, se por um lado carecia de uma tradição literária em seu próprio idioma, por outro era rica em tradições orais de poesia. O nascimento de um épico é justamente aquilo que proporciona a transformação da poesia oral em corpus literário. Portanto, a Kalevala surge paralelamente como instrumento de registro escrito das tradições orais que ainda circulavam entre os camponeses finlandeses em pleno século XIX, mantendo-as vivas por meio do fôlego da escrita, enquanto também apresentava uma identidade e passado mítico comuns a todo o povo finlandês, atuando na emancipação identitária e nacional do país (HONKO, 1990, p. 8-10). A primeira viagem de Lönnrot foi para Häme. Uma vez lá, o médico esforçou-se para coletar tantas runas quanto possível, chegando inclusive a editá-las para publicação. Foi dessa empreita que surgiu o seu Kantele taikka Suomen kansan vanhoja sekä nykyisiä runoja

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lauluja (Runas e Canções Antigas e Contemporâneas do povo Finlandês), contendo dezessete runas inéditas e outras sete que haviam sido conectadas previamente. Conforme ia coletando mais material, Lönnrot começou a planejar um épico, algo que pode ser percebido pelas correspondências que mantinha na época com amigos e com membros da Finnish Literature Society153. Durante esse período, o autor visava editar diversos pequenos épicos centrados em figuras específicas da mitologia finlandesa – que, obviamente, apareciam nos cantos rúnicos colhidos com certa frequência e alto nível de importância narrativa – como Väinamöinen, Lemminkäinen, Ilmarinen e Kaukomieli (PENTIKÄINEN, 1999, p. 19-20). Conforme prosseguia com suas viagens para a coleta de material, Lönnrot foi adquirindo consciência do caráter Homérico de sua obra. Nesse período, o autor compilou e escreveu um denso material sobre Väinamöinen que, apesar de ter sido publicado apenas postumamente, é considerado por estudiosos atuais como uma espécie de Proto-Kalevala. Nesse período, Lönnrot também embarcou para o litoral da Carélia, onde conheceu um famoso cantor de runas da vila de Latvajärvi. Em 16 de Fevereiro de 1835, Lönnrot enviou uma carta para Keckman, dizendo que as runas já estavam todas compiladas e escritas, faltando apenas a elaboração do prefácio. Finalmente, no dia 28 do mesmo mês o autor termina seu trabalho, intitulando-o Kalevala taikka Vanhoja Karjalan runoja Suomen kansan muinaisista ajoista: Kalevala, ou poemas antigos da Carélia sobre o tempo passado do povo Finlandês (PENTIKÄINEN, 1999, p.21-22). Ainda assim, a folclorística e os estudos atuais em mitologia demonstraram que a Kalevala não deve ser lida cegamente como um relato fiel das tradições e mitos finlandeses pré-cristãos. Fora seu caráter extremamente tardio – produto do século XIX -, Frog (2014, p.384) ainda aponta para a questão das variações. A cada publicação Lönnrot revisitava seu material, fazendo cortes, acréscimos e outros tipos de alterações para depois publicá-la novamente, de modo que podemos dizer existirem, graças a tais edições, cinco Kalevalas diferentes. Frente a isso, é prudente elegermos a primeira versão como a mais fiel, não necessariamente às tradições pré-cristãs per se, mas ao que os cantores de runas de fato contaram. É necessário manter em mente que mesmo na primeira versão há a mão de Lönnrot em cada mito, cada ciclo narrativo, que fez uma espécie de trabalho de artista ao cortar e juntar diferentes versões de diferentes tipos de narrativas para que formassem um todo

153 Um exemplo relevante nesse sentido é trazido por Pentikäinen (1999, p.20). Em 17 de Agosto de 1833, Lönnrot o escreveu: “Como seria se a Sociedade [Sociedade Finlandesa de Literatura] publicasse novamente todas as runas Finlandesas, aquelas que merecem, e as ordenasse de maneira que, o que há disponível sobre Väinamöinen, Ilmarinen e outros nos mais diversos lugares pudesse ser compilado ou mesclado, colocando as variações em notas ou nas páginas finais?”. 138

consistente – ou seja, um épico do começo ao fim -. É necessário sempre comparar os elementos míticos a serem analisados na Kalevala com a sua presença e manifestação em outras fontes, como na poesia folclórica oral (FROG, 2014, p.384-385). A nível de curiosidade, gostaríamos de dizer que a primazia da Kalevala não escapou sequer aos olhos de John Ronald Reuel Tolkien, escritor de O Senhor dos Anéis, O Hobbit, entre outras inúmeras obras. Tolkien escreveu um pequeno romance baseado no personagem Kullervo da epopeia finlandesa, inspirando-se livremente na narrativa. Inclusive, o autor manteve o nome do personagem o mesmo. Há ainda o rascunho de um ensaio de Tolkien, agora publicado, em que ele define a religião presente nos escritos da Kalevala como “um animismo luxuriante, que mal pode ser separado do puramente mitológico” (TOLKIEN, 2016, p. 80). O filólogo ainda afirma, de maneira polêmica, que a Kalevala certamente não é uma epopeia nacional aos moldes gregos, mas uma “massa de material possivelmente épico (...) que perderia quase tudo que constitui seu maior deleite se fosse tratado de modo épico” (TOLKIEN, 2016, p. 70). Para Tolkien, a profundidade e exuberância desse material residiam justamente no fato de serem “uma coleção de baladas mitológicas repletas daquele substrato muito primitivo que a literatura da Europa vem aparando e reduzindo há séculos, de forma mais ou menos completa ou precoce, em diferentes povos” (TOLKIEN, 2016, p. 71). Enfim, o material de Lönnrot apresenta, sim, suas problemáticas ao ser utilizado como fonte para investigação da religião e mitologia finlandesa pré-cristãs. Apesar disso, a Kalevala constitui inegavelmente uma representação daquilo que de alguma forma foi, mesmo com interrupções estéticas e artísticas, um legado duradouro dessas tradições ainda ecoando em pleno século XIX.

2.8 Ukko na Kalevala

Curiosamente, o deus do trovão não possui papel de protagonista ao longo do material disposto na Kalevala. Ukko se manifesta em pontuais aparições, atuando de maneira breve, porém sempre eficaz: na poesia kalevalaica, ele basicamente surge apenas se tiver sido chamado por alguém - geralmente por um herói em situação crítica -, de modo que sua presença se dá basicamente por meio de uma espécie de invocação ou conjuração. Parece justo dizer que, de maneira geral, Ukko tende a não ser um personagem de forte presença narrativa ao longo da epopeia finlandesa154.

154 É um consenso afirmar que a narrativa da Kalevala gira em torno de três figuras principais: Väinamöinen, 139

Conforme aponta Frog (2014, p. 388), uma significativa parte das atuações de Ukko na Kalevala está relacionada ao herói Lemminkäinen. Nesses contextos, o dito herói está frequentemente cumprindo algum tipo de desafio para que possa finalmente conseguir uma esposa. Assim, nota-se uma mistura de temas oriundos do material mitológico pré-cristão ainda reminiscente no folclore e na poesia oral tardios da Finlândia – que, conforme vimos, embasaram a Kalevala -, juntamente com um filtro já cristão. A incessante busca pelo casamento, as provações necessárias para que se obtenha a permissão da sogra para casar-se; as perigosas idas à Terra do Norte e à Lapônia são todos temas conhecidos da poesia oral finlandesa, somados, na epopeia, à influência cristã: em momentos de desespero, nada mais resta ao herói senão apelar para uma divindade suprema, invocando-a e pedindo por intervenção e ajuda. Esse papel é cumprido justamente por Ukko, que não só atende à invocação do herói, como de fato o ajuda por meio de intervenção direta. Elencamos algumas dessas intervenções de Ukko que configuram momentos desse apelo do herói Lemminkäinen. Ao partir para as Terras do Norte (Northland) objetivando o cumprimento de um perigoso desafio, o herói sabe que suas próprias habilidades podem não ser o bastante, mas que nesse caso sabe a quem recorrer:

“Caso isso não seja o bastante/eu me lembro de outra maneira:/alto eu suspirarei/para que o Homem Velho dos céus/ele que rege as nuvens e governa os vapores./Óh Homem Velho, deus chefe/velho pai do céu/que fala por meio das nuvens/e declara quando o ar deve descer/me traga uma espada de fogo/numa bainha de fogo/com a qual irei despedaçar barreiras” (LÖNNROT, Canto XII, Estrofe 280, p. 139-140, tradução nossa)155.

Em outro desafio, que termina por se mostrar talvez o mais dificultoso e complexo pelo qual Lemminkäinen passa, é necessário que ele vá até os confins do mundo, às “terras do Demônio”, e de lá traga o alce que o pertence. Enquanto planeja seu transporte, que, por razões óbvias, deveria ser veloz e deslizar com facilidade pelo gelo, pede: “Óh, Homem Velho, deus chefe - / ou seja, pai celeste/faça para mim esquis estreitos/leves, esquerdos e direitos/com os quais eu possa esquiar/através de pântanos e travessias/esquiar através das

Lemminkainen e Ilmarinen (FROG, 2014, p.383). 155 “Should not enough come of that/I recall another way:/higher I will sigh/to that Old Man of the sky/him who keeps the clouds/governs the vapours./O Old Man, chief god/old father in heaven/who speak through the clouds/declare down the air:/bring for me a fiery sword/in a fiery sheath/with which I will shatter bars” (LÖNNROT, Canto XII, Estrofe 280, p. 139-140). 140

terras do Demônio” (LÖNNROT, Canto XIV, Estrofe 1, p. 155, tradução nossa)156. Apesar de conseguir cumprir o desafio com sucesso, Lemminkäinen ainda não obtém a permissão para casar-se e Louhi157, senhora das terras do Norte, propõe ainda outro desafio antes que o herói pudesse casar com sua filha: ele deveria o cavalo do Demônio até que conseguisse montá-lo. Depois de partir em busca do cavalo e aventurar-se por três dias, ele finalmente o avista em uma colina e, antes de qualquer coisa, pede a Ukko:

“Óh Homem Velho, deus chefe/Homem Velho, regente das nuvens/governante do vapor:/abra os céus/ponha janelas por todo o céu;/faça chover granizos de ferro/derrube baldes de gelo/nas crinas do bom cavalo/nos flancos da testa incendiada do Demônio!”, “Aquele Homem Velho, supremo criador/deus acima das nuvens/colocou os céus em fúria/o teto do céu se partiu em dois/ele choveu neve, choveu gelo/choveu granizo de ferro/menor que a cabeça de um cavalo/porém maior que a cabeça de um homem/nas crinas do bom cavalo/nos flancos da testa incendiada do Demônio” (LÖNNROT, Canto XIV, Estrofes 11-12, p.163)158.

Há ainda diversos outros momentos críticos em que Lemminkäinen pede por ajuda de Ukko159, seja por abrigo enquanto aventura-se nas Terras do Norte, seja na resolução de outros desafios. Além disso, outros personagens como o ferreiro cósmico Ilmarinen e o grande protagonista Väinamöinen também invocam Ukko pedindo por ajuda, embora com muito menos frequência do que Lemminkäinen o faz. Esses exemplos nos fazem concordar com Frog (2014, p. 388) ao defender a existência de um filtro cristão no tipo de relação que Ukko mantém com esses personagens, configurando um modelo cristão intervencionista cuja influência, considerando a datação tardia do surgimento da Kalevala, não é difícil cogitar. Contudo, certamente o cristianismo não é o único impacto “estrangeiro” que pode ser notado na figura de Ukko conforme presente nesse material tido frequentemente por uma elegia a tudo o que era “Finlandês”. Em outro estudo, Frog (2017b, p.98) explicita as

156 “O Old Man, chief god -/that is, heavenly father:/make me now straight skis/light ones, left and right/on which I may ski along/ across swamps and across lands/ ski towards the Demon’s lands” (LÖNNROT, Canto XIV, Estrofe 1, p. 155). 157 Muitas vezes descrita ao longo da Kalevala como uma versada feiticeira, Louhi é a senhora das terras e do povo de Pohjola. 158 “O Old Man, chief god/Old Man, keeper of the clouds/governor of the vapours:/open heaven up/the sky all into windows;/rain iron hailstones/drop icy coolers/on the mane of the good horse/on the Demon’s bla ze-brow’s flanks!” (…), “That Old Man, high creator/god above the clouds/rent the sky into a rage/heaven’s lid in half/he rained slush, rained ice/he rained iron hail/smaller than a horse’s head/but bigger than a man’s head/on the mane of the good horse/on the Demon’s blaze brow’s flanks.” (LÖNNROT, Canto XIV, Estrofes 11-12, p.163). 159 Posteriormente, ao abordamos outros aspectos de Ukko na Kalevala, traremos mais exemplos que acabarão pos ilustrar também essa questão da intervenção divina. 141

influências escandinavas na tradição finlandesa, da qual Ukko não escapa. Para o autor, as línguas e tradições religiosas da Carélia, Ingria e Finlândia passaram por radicais mudanças ao assimilarem aspectos ritualísticos da Escandinávia que não chegaram, por exemplo, à Estônia. Com a chegada de tais mudanças, o deus do trovão comumente conhecido nessas tradições religiosas por Ukko, o “Homem Velho”, passou a assumir as funções de uma divindade central dos céus e da atmosfera, de maneira semelhante ao Thor nórdico; enquanto que Väinamöinen deixou de ser uma divindade celestial para tornar-se o deus de traços xamânicos especialista na magia, no conhecimento, nas práticas ritualísticas e nos encantamentos, como Odin. Por fim, Ilmarinen, do Proto-Fínico Ilmari, foi dissociado da cosmologia e da esfera celestial para ter sua identidade restrita à de um ferreiro cósmico responsável pela criação do céu, sem maiores intervenções. De suas associações com os ventos e o clima, que existiam na tradição oral, nada restou a não ser escassas e pontuais referências. Essa miscinegação religiosa escandinava teria ocorrido no sudoeste finlandês em algum período entre a transição do Proto-Fínico Tardio (200 d.C) e as migrações para o leste (750 d.C). Inclusive, aspectos folclóricos e religiosos observados nas tradições finlandesa, careliana e ingriana dos séculos XIX e XX apontam que, mesmo apresentando suas variações e regionalismos nesse período, elas provavelmente evoluíram a partir sistema religioso relativamente uniforme, que além da mesma origem também sofreram, todos, com as influências escandinavas do período mencionado (FROG, 2017b, p.98). As manifestações de Ukko na Kalevala, conforme apontamos, são poucas. Uma característica sem dúvidas marcante expressiva nessas aparições é o seu poder de controle dos fenômenos atmosféricos. Se por um lado é verdade que Ukko é invocado para prestar auxílio em situações críticas, por outro ele marcadamente o faz sempre por meio do controle do clima160. O próprio Ilmarinen, artesão primordial, precisa da intervenção de Ukko nesse aspecto, ajuda essa que o deus confere: “Ele, o ferreiro Ilmarinen/o eterno artesão/reza para o Homem Velho/e cultua o Trovoador:/ ‘Homem Velho, derrube neve fresca/lance nova neve abaixo-/neve para que o trenó deslize/neve fresca para que o trenó escorregue!’/E o Homem Velho derrubou neve fresca/lançou abaixo nova neve” (LÖNNROT, Canto XVIII, Estrofe 24, p. 228, tradução nossa)161.

160 Nos exemplos que já elencamos, tais manifestações se fazem presentes. Consultar nota 144, em que o trecho citado coloca Ukko enquanto capaz de “abrir o céu ao meio”, além de fazer chover granizo e gelo; e a nota 147, em que o deus é chamado de “homem dos céus”, “governante do vapor” e “aquele que fala por meio das nuvens”, “aquele que ordena que o ar desça”. 161 “He, the Smith Ilmarinen/the everlasting craftsman/prays to the Old Man/and worships the thunderer:/’Old 142

Essa passagem é de nosso grande interesse por um motivo especial. Há registros em canções e outros materiais folclóricos da Finlândia nos quais Ilmarinen era tido como o deus dos ventos que, principalmente durante viagens, proporcionava um clima favorável para uma passagem tranquila e segura, ou trazia um mal tempo e seus consequentes infortúnios (HOLMBERG, 1964, p.232). Inclusive, também na lista disponibilizada por Mikael Agricola e por nós abordada, o deus Ilmarinen figura na lista das divindades de Häme enquanto “aquele que trazia a paz, bons tempos e protegia o viajante” (ANTTONEN, 2012, p. 186, tradução nossa)162. É no mínimo curioso, então, que nesse trecho da Kalevala, Ilmarinen não só pede o auxílio de Ukko para atuar dentro de uma manifestação climática, como o faz pedindo por ajuda para que seu trenó deslizasse, algo que poderia facilmente ser feito por meio do vento. Por que haveria essa mudança de papéis na Kalevala? Segundo Frog (2012, p. 221), o próprio processo de coleta de Elias Lönnrot para o material de sua epopeia advinha, em grande parte, de encantamentos oriundos da tradição do tietäjä163. Grosso modo, foi a tradição da tietäjä que conferiu autoridade e autenticidade folclórica a todo o material kalevalaico. Dentre os conteúdos perceptíveis nesses encantamentos encontravam-se a comunicação do conhecimento mitológico, a transmissão de modelos conceituais de conduta e de representações identitárias. Nesses conteúdos, Väinämöinen aparece como modelo cultural para o próprio especialista do religioso, cujas jornadas – repletas de elementos xamânicos - eles devem repetir. O papel de Väinämöinen nessas canções é o de demiurgo e fonte última de poder. Consequentemente, ele assume um papel principal dentro dessa tradição, que delegou a Ilmarinen um papel secundário: a ele cabe, conforme dito anteriormente, o papel de ferreiro mítico que, apesar de ter criado a abóbada celeste, não demonstra receber nenhuma outra ênfase atuando em papéis cosmológicos. E mesmo assim, são poucos e muito específicos os encantamentos de tietäjä que relegam a Ilmarinen o seu papel de artesão dos céus e, se considerarmos quantos desses lhe conferem as atriuições de um deus dos céus, são ainda

Man, drop new snow/fling down fine fresh snow-/snow for the sleigh to slide on/fresh snow for the sledge to skim!’/And the Old Man dropped new snow/flung down fine fresh snow” (LÖNNROT, Canto XVIII, Estrofe 24, p. 228). 162 “Ilmarinen brought peace and good weather/and protected the traveller” (lista de Agricola, reproduzida em ANNTONEN, 212, p. 186). 163 Na tradição finlandesa, tietäjä (“aquele que vê”), era uma figura especialista no religioso. Ela se encarregava de rituais que visavam obtenção de respostas sobre questões importantes para a comunidade – como a sorte com caça e pesca -, além de atuar na cura de doenças, na comunicação com os deuses e na retenção do conhecimento mitológico. Muitas vezes os tietäjä faziam uso do transe para obter suas respostas em contextos específicos, o que ocorria juntamente com o entoar de encantamentos (SIIKALA, 1990, p.192-196). 143

menos vestígios. Portanto, dentro da tradição tietäja que desemboca na Kalevala, o papel central do saber e do poder cósmico fica nas mãos de Väinämöinen; Ukko, por sua vez, é quem herda o papel central de divindade dos céus e atua com o suporte do que é celestial. Possivelmente, o Ukko da Kalevala, com seu papel de regente dos céus, seja um testemunho vivo do quanto Lönnrot bebeu da fonte de conhecimento mitológico retida pelos tietäjä (FROG, 2012, p. 221-222). Mas a visão de Lönnrot não conseguiu, ao que parece, fugir de uma interpretação monoteísta dos dados por ele colhidos. Em seu prefácio para a primeira versão da Kalevala, o autor alega que o paganismo de seus antepassados não era do pior tipo, e mais; ele também defendia que a religião primordial dos antigos finlandeses teria sido monoteísta e que o único e supremo deus dentro desse sistema religioso era justamente Ukko. De acordo com essa visão, a religião finlandesa antiga cultuava e reconhecia, originalmente e por natureza, apenas um deus, mesmo posteriormente, quando outras divindades surgiram. Foi por isso que Lönnrot chamou a religião de seus antepassados como um “bom paganismo”, que em seu próprio passado pré-cristão já teria sido monoteísta, o que facilitou a assimilação posterior do cristianismo (PENTIKÄINEN, 1999, p.77). Sendo assim, mesmo tendo percebido a massiva presença de Väinämöinen nas runas em que colheu e registrou, Lönnrot atribuiu, na Kalevala a verdadeira posição suprema a Ukko. Narrativamente, talvez isso não tenha feito tanta diferença: as intervenções de Ukko são breves e pontuais e ele está longe de ser um protagonista da epopeia, ao contrário de Väinämöinen, a quem dois ciclos inteiros da obra são dedicados; não encontramos, na Kalevala, um sistema de mitos sobre Ukko, ainda que implicitamente (FROG, 2012, p. 218). No entanto, se desejarmos ir para além da questão narrativa e estética, é muito provável que a representação de Ukko, da maneira como foi disposta na Kalevala por Lönnrot e seu pressuposto monoteísta, não correspondem nem representam a verdadeira tradição religiosa dos finlandeses pré-cristãos em torno do deus (PENTIKÄINEN, 1999, p.7). Nem mesmo Väinämöinen, poderoso protagonista e herói divino por excelência na obra, escapa de enviar suas súplicas ao deus do trovão:

“Homem Velho no pilar do céu/na beira das nuvens carregadas de trovão/venha aqui quando for necessário/tome seu caminho quando for chamado/para desfazer feitos malignos/leve embora os infortúnios/com uma espada de lâmina flamejante/com uma marca de faísca!” (LÖNNROT, Canto XVII, Estrofe 17, p. 207)164.

164 “Old Man at the pole of heaven/at the thundercloud’s edges/come here when you are needed/make your way 144

Isso acontece também em outros contextos narrativos. Segundo Pentikäinen (1999, p.136- 138), outro lugar em que podemos notar a hierarquia estabelecida por Lönnrot é no momento de narrar o mito cosmogônico. Basicamente, há duas versões do mito. Na primeira, publicada por Lönnrot em sua Kalevala Antiga, Väinämöinen é a divindade suprema da criação do cosmos. Ferido, o deus cai no mar primordial, onde reloca as águas e ergue rochedos, até que uma águia pousa em seu joelho e deixa um ovo. Ele então pronuncia as palavras de criação e o ovo se quebra, dando origem a toda a estrutura cósmica. Em sua nova versão da Kalevala, o épico começa com uma divindade feminina: Ilmatar, senhora dos ares, que havia sido engravidada pelo vento e pela água. Nessa versão, Ilmatar, deitada no chão, é quem performa os primeiros atos de criação cósmica, não sem implorar ao deus supremo, Ukko, por ajuda:

“Ó, Homem Velho, deus chefe/sustentador de todo o céu/venha aqui quando for preciso/venha para cá quando for chamado:/liberte uma moça de um lugar apertado/liberte uma mulher de contrações na barriga/venha rapidamente, cheg ue prontamente/imediatamente onde a necessidade está!” (LÖNNROT, Canto I, Estrofe 7, p. 5, tradução nossa)165.

Mais tarde, Ilmatar não somente acaba criando o cosmos, como também dá a luz a Väinämöinen. Temos, com esse detalhe, dois fatores que contribuem para que notemos a posição conferida a Ukko por Lönnrot: antes mesmo da criação do cosmos por parte de Ilmatar, Ukko já existia e é a ele que a deusa dos ares pede ajuda; nessa versão, também não importa o quanto Väinämöinen venha a desenvolver um papel de protagonista e de poderoso deus de grandes feitos ao longo da obra, pois antes mesmo dele nascer Ukko já existia. Ao incluir Ukko no drama narrativo da cosmogonia, Lönnrot fez dele o deus soberano de todo o cosmos. Além disso, é possível irmos além. Se Ilmatar era a deusa dos ares e Ukko, que a precedeu, era o deus dos trovões e do ar, é possível que ele fosse o pai de Ilmatar e a tenha fertilizado. Nesse caso, teríamos um mito cosmogônico que, como muitos outros, apresenta o tema mitológico de primordialidade do cosmos a partir de um incesto entre duas divindades que eram pai e filha (PENTIKÄINEN, 1999, p.138). É possível que haja outra explicação para essa soberania de Ukko na Kalevala, à parte

when you are asked/to undo the wretched deeds/take away the woes/with a sword of fiery blade/with a s parkling brand!” (LÖNNROT, Canto XVII, Estrofe 17, p. 207). 165 “O Old Man, chief god/upholder of all the sky/come here when you are needed/come this way when you are called:/free a wench from a tight spot/a woman from belly-throes;come quickly, arrive promptly/most promptly where the need is!” (LÖNNROT, Canto I, Estrofe 7, p.5). 145

das inclinações monoteístas de Lönnrot. Em seu prefácio para a Kalevala Antiga, o autor diz, a respeito do panteão divino, que “é sempre dito que havia doze deles”. Muito provavelmente ele estava seguindo os passos de Agricola, que, em sua lista de divindades, elencou doze delas supostamente pertencentes à Tavastia e à Carélia. Além disso, é possível que Lönnrot estivesse seguindo também o modelo de panteão olímpico conforme os modelos romano, grego, germânico, nórdico ou até mesmo as tribos de Israel. O autor também insiste em afirmar que todos os deuses eram irmãos – ao molde, talvez, dos filhos de Jacó -, apesar dos conteúdos das runas não fornecerem nenhuma informação que permita essa alegação. Uma vez tendo essa empreita em mente, é possível que Lönnrot tenha buscado de maneira ativa evidências que corroborassem para a existência de um “Olimpo” finlandês em que todos os deuses fossem irmãos e um deles, mais poderoso, fosse a divindade suprema, soberana. Baseado nisso, então, ele chega à conclusão de que Ukko era o grande deus supremo, enquanto que Väinämöinen, mesmo predominando nas narrativas das runas, estava mais para um herói cultural (PENTIKÄINEN, 1999, p.159). Tal empreita, certamente, não foi defendida de maneira explícita pelo autor, que defendia estar retratando a mitologia ilustrada pelos cantores de runa. Em seu prefácio da Kalevala Antiga, escreveu:

“Se, nessas runas, Väinämöinen foi algumas vezes rebaixado de seu antigo estado de divindade, obviamente não há nada que eu possa fazer a respeito. Eu tive que publicá-las [as runas] conforme as recebi, independentemente de Väinämöinen ser, nelas, considerado ou não um deus. Desde tempos imemoriais, temos sido acostumados a considera-lo um deus de nossos antepassados, uma estima que não pareciam ter por ele, enxergando-o, na verdade, como um poderoso e sábio herói. Frequentemente ele próprio reza para a divindade suprema, Ukko, pedindo por ajuda, e então reconhecendo com os próprios lábios quem era o deus.(...). Até mesmo agora, se ao povo dessas regiões em que a memória de Väinämöinen melhor vive for perguntado quem Väinämöinen era, eles imediatamente responderão como segue: ‘Ele era um herói memorável, entre os primeiros de nossos ancestrais, e um cantor famoso.’ Enquanto que, se perguntar a eles quem eles consideram ser seus deuses, responderão com frequência ser Ukko, quem criou o céu e a terra, e a quem rezam. E eu não duvido de que, antes da doutrina Cristã, nossos ancestrais tinham conhecimento de um único ‘jumala’ [deus] que se apresentava por vezes usando esse nome, outras usando o nome Ukko ou Luoja (criador), de forma que não considero ser nenhuma estupidez da parte deles que não tenham procurado por um grande panteão de deuses para eles, como o fizeram outros povos antigos” (trecho por

146

Lönnrot, disponibilizado em PENTIKÄINEN, 1999, p.159, tradução nossa)166.

O trecho destacado, conforme se percebe, começa por elencar um motivo racional de preservação e fidedignidade ao que Lönnrot havia coletado com os cantores de runa, mas termina oferecendo, nas entrelinhas, seu pressuposto monoteísta, que pode muito bem ter influenciado sua percepção de Ukko (PENTIKÄINEN, 1999, p.139). Nesse sentido, conforme aponta Pentikäinen (1999, p.160), a Kalevala deve ser vista parcialmente como a “mitologia de Lönnrot”. O autor buscou evidências para embasar sua visão monoteísta de primazia e superioridade de Ukko justamente com base em seus vínculos com o trovão e os raios. Como o deus surgia, nos materiais colhidos, enquanto divindade da esfera celestial, regente dos ares, mantenedor da abóbada celeste e, acima de tudo, governante dos raios e tempestades (ukkonen), Lönnrot viu sentido em atribuir a essa divindade celestial dominadora dos céus a posição de divindade suprema. Assim, Ukko aparece na Kalevala como o deus supremo de um Olimpo pressuposto e em torno do qual a hierarquia de todos os outros deuses foi estabelecida. É por isso que todos os outros deuses e heróis, não importando seu papel na narrativa e nem seus atos mais ou menos divinos, recorrem a Ukko, que assumiu as características de um deus otiosus que, após ter criado todo o resto, só interfere quando é invocado. Por mais que a Kalevala deva ser lida com justificada ressalva nesse sentido, é interessante notar que, mesmo Ukko tendo assumido, nela, a posição de uma divindade suprema que ele provavelmente não detinha na religião pré-cristã, seu vínculo com os fenômenos atmosféricos foi mantido. Provavelmente isso indique que, no material colhido por Lönnrot, o vínculo do deus com os raios, trovões, chuvas e outras manifestações climáticas fosse algo frequente. A tradição mítica dos tietäjä aparentemente ressaltava a relação do deus com os céus e os trovões, além de ter ricos registros de seu relacionamento hostil em relação a “demônios” (FROG, 2012, p. 218). Essa interpretação vai também de encontro ao estudo

166 “If, in these runes, Väinämöinen has sometimes been lowered from his formes stature as a deity, there is of course nothing I can do about it. I have had to publish them as I received them, without regard to whether Väinämöinen is considered a got or not. From time immemorial, we have been accostumed to considering him a god of our forefathers, an esteem in which they do not have seem to held him, viewing him, rather, as a powerful very wise hero. Often he himself prays to the supreme deity, Ukko, for help, and thus acknowledges with his own lips who was the god (…). And even now, if the folk in those regions where the memory of Väinämöinen best lives are asked who Väinämöinen was, they immediately respond as follows: ‘He was a memorable hero, among the first of our forefathers, and a famed singer.’. Whereas if you ask them whom they consider to be their gods, most often they respond that it is Ukko, who created the heavens and the earth, that they pray to. And I don’t doubt that, before Christian doctrine, our forefathers had knowledge of one sole ‘jumala’ [god] who was sometimes served using his present name, sometimes using the name Ukko or ‘Luoja’ [Creator], and I don’t consider it a great stupidity on their part if they were not so clever in searching out a great pantheon of gods for themselves, like some other ancient peoples” (Lönnrot, disponível em PENTIKÄINEN, 1999, p. 159). 147

clássico de Holmberg (1964, p.228), que já havia explicitado a relação dos finlandeses com uma divindade dos trovões na forma de um ancião, Ukko (“homem velho”) e Ukkonen (“trovoador”), a quem rezavam por campos férteis e ventos favoráveis. Ao longo da Kalevala, em quase todas suas aparições, Ukko carrega esse laivo de sua relação com os fenômenos atmosféricos, que já na obra de Agricola, em 1550, haviam aparecido167. Em uma de suas perigosas jornadas, Lemminkäinen, ciente da iminência do perigo, pede ajuda ao deus:

“Ele [Lemminkäinen] suplica ao Homem Velho:/’Óh, Homem Velho, deus chefe/ou seja, pai celeste:/levante um banco de nuvens do noroeste/outro do leste/levante um terceiro do oeste/levante um do nordeste;/empurre –os juntos lado a lado/choque-os um contra o outro;/chova neve até a altura de um bastão de esqui/arranque uma estaca de profundidade/nessas pedras vermelhas e quentes/esses rochedos flamejantes!’” (LÖNNROT, Canto XXVI, Estrofe 33, p. 372, tradução nossa)168

Ukko, atendendo aos pedidos do herói, faz chover e nevar de tal maneira que uma ponte de gelo é construída e Lemminkäinen consegue escapar ileso. Em outra situação, também se aventurando nas Terras do Norte, ele pede ao deus dos trovões por abrigo:

“Lá [nas Terras do Norte], o desenfreado Lemminkäinen/reza para o Homem Velho:/’Óh, Homem Velho, bondoso deus/cuidadoso homem dos céus/guardião das nuvens tempestuosas/e regente dos vapores:/crie um clima enevoado/e faça uma pequena nuvem/em cujo abrigo eu possa ir/e partir em direção ao lar/de volta para minha afável mãe/e em direção a meus honráveis pais!’” (LÖNNROT, Canto XXVIII, Estrofe 2, p. 393, tradução nossa)169.

Conforme podemos notar, mesmo com as ressignificações de Lönnrot, que sem dúvidas permeam a Kalevala, Ukko mantinha um vínculo tão forte com a regência atmosférica que

167 Além dos novos exemplos que elencaremos, novamente convidamos o leitor para que volte às citações anteriores, presentes nas notas de rodapé número 144, 147, 150 e 153. Apesar de termos estado, nessas situações, abordando outros aspectos do deus, já nessas notas o seu vínculo com os fenômenos atmosféricos (c huvas, granizo, nuvens, ventos, raios, trovões) é notável. 168 “He beseeches the Old Man:/’O Old Man, chief god-/that is, heavenly father:/raise a bank of cloud from the north-west/another send from the West/set a third out of the east/lift one out of the north-east/shove them edge- on together/knock them against each other;/rain a ski-stick’s depth of snow/run up a stake’s depth/on those red- hot rocks/those burning boulders!’” (LÖNNROT, Canto XXVI, Estrofe 33, p. 372). 169 “There wanton Lemminkäinen/prays to the Old Man:/’O Old Man, good god/careful man of heaven/keeper of stormclouds/and governor of vapours:/make misty weather/and create a tiny cloud/in whose shelter I may go/wend my way homeward/back to my kindly mother/towards my honoured parent!’”(LÖNNROT, Canto XXVIII, Estrofe 2, p. 393). 148

esse conteúdo permaneceu vivo ao longo da epopeia. Não é por menos que, conforme vimos, nas tradições finlandesas pré-cristãs a palavra ukkonen designava, além da divindade, o próprio fenômeno do trovão (FROG, 2017b, p.114).

149

CAPÍTULO III: UM OLHAR COMPARATIVO

3.1 Breve panorama do intercâmbio mitológico-religioso entre nórdicos, sámi e finlandeses na tradição acadêmica

As interações entre esses três povos se deram desde um período muito antigo – isso sem considerarmos seus frequentes encontros ainda com outros povos, como os bálticos (lituanos, letônios e antigos prússios) e os eslavos -. Durante a Era Viking, a Península Escandinava certamente não era ocupada apenas pelos nórdicos, no sentido estrito e étnico do termo (dinamarqueses, suecos e noruegueses). No mencionado período, essa área já abrigava uma enorme quantidade de povos Sámi, além de ser, também, uma grande zona de povos urálicos que dividiam entre si afinidades linguísticas, étnicas, religiosas, culturais e cosmológicas, dentre os quais se encontravam os fínicos. Não é sem razão que diversos materiais literários medievais em Nórdico Antigo - principalmente sagas, que também descrevem o período por nós chamado de Era Viking - se referem constantemente à área habitada pelos sámi. Eles se referiam a essa área, na época, como Finnmark, “terra dos finnar”, se referindo na verdade aos sámi, e não aos fínicos (ZACHRISSON, 2008, p.32). O termo finnar em Nórdico Antigo foi utilizado em larga escala para se referir, então, aos povos sámi, enquanto que o termo Fenni ou Finni, em latim, é que foi empregado para se referir aos fínicos, algo que só aconteceu em 1171, na bula Gravis admodum do Papa Alexandre III. Os finlandeses demoraram para que fossem percebidos como unidade populacional mais ou menos uniforme e distinta dos sámi. Na Saga de Egil, por exemplo, além de finnar, há a presença de termos como kirjálar e kylfingar para designarem especificamente os finlandeses da Carélia. De certa forma isso não é surpresa, considerada a falta de proximidade, unidade e identidade política, cultural e geográfica entre os inúmeros povos fínicos da época, que ainda levariam muito tempo para se tornarem os finlandeses no sentido que conferimos atualmente. Por outro lado, esses materiais apontam para a dificuldade dos povos nórdicos em compreenderem e identificarem os vários povos fino-úgricos que os cercavam: lembremos que os idiomas destes são radicalmente diferentes das línguas indo- européias herdadas pelos nórdicos, e que seu modo de vida semi-nômade baseado no pastoreio de renas e na caça não era capaz de proporcionar a organização em comunidades tão grandes como a de seus vizinhos. Dessa forma, os sámi e os finlandeses demoraram até que fossem percebidos como distintos entre si, ou então em termos de maiores unidades

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comunitárias, “os finlandeses”, “os sámi” (TOLLEY, 2009, p. 40-41). Talvez o maior identificativo linguístico que tenhamos advenha dos suecos, que inicialmente se referiam a ambos esses povos como *Fennōz e depois formaram o composto *Skriðfinnōz (“sámis esquiadores”) que, conforme se percebe, passou a designar especificamente os sámi, que faziam uso dos esquis como meio de transporte. Este se trata do primeiro indício de uma característica que foi percebida e passou a atuar como marcador cultural e identitário que os diferenciava dos finlandeses (TOLLEY, 2009, p.41). O que desejaríamos ressaltar é que, ao menos desde a Era Viking, sámis e fínicos – principalmente os primeiros – foram alvos de uma empreita colonizadora dos nórdicos. Conforme as próprias sagas narram, as pequenas tribos espalhadas por Finnmark eram obrigadas a pagar impostos e outras taxas para que não tivessem seus territórios invadidos ou saqueados. Certamente que esse aspecto não resume toda a interação entre eles: havia também um laço econômico- comercial que dava aos sámi a possibilidade de venderem peles de foca, presas de leão marinho e outras coisas do tipo. Essas não eram de forma alguma relações estritamente conturbadas: os noruegueses, por exemplo, sabiam que dividiam seu “país” com outro povo. Ambos os povos viviam numa espécie de simbiose que, se por vezes foi conturbada, por outras também engedrava possibilidades de comércio, trocas e até mesmo casamentos. Mas o essencial de se manter em mente é que eles nunca se viram como iguais: diversos pequenos reis noruegueses forçavam os sámi para que trabalhassem a seu serviço (ZACHRISSON, 2008, p.34). Portanto, há, desde esse passado, um etnocentrismo no modo como as relações entre nórdicos, sámi e fínicos se desenrolaram, obviamente pendendo para a superioridade desses primeiros: tal etnocentrismo, veremos, foi herdado pela tradição acadêmica da Idade Moderna e ofuscou por muito tempo o estudo honesto desse fenômeno interativo. Enfim, o que gostaríamos de argumentar com isso é que, se por um lado as sabidas e confirmadas inteirações entre esses povos nos forçam a imaginar intercâmbios culturais, religiosos, simbólicos e mitológicos, por outro é difícil saber, nesses aspectos, quem influenciou quem, ainda mais sem eleger um olhar etnocêntrico (BERTELL, 2013, p.47). A resposta certamente será qualquer coisa, menos unilateral. Como bem postulou DuBois (1999, p.7), é preciso abandonarmos antigas terias difusionistas que se embasavam na ideia de uma cultura superior se disseminando por entre outras e influenciando-as, para adotarmos um referencial comparativo que explore as interações geográficas que, certamente, não obedecem a enquadramentos étnicos.

151

O impacto desse etnocentrismo e sua ocorrência nos estudos das relações entre nórdicos, sámis e fínicos são explorados a fundo por Håkan Rydving (1990). Conforme o autor explica, uma nova fase se iniciou nos estudos Nórdicos quando outras ciências foram eleitas para auxiliar e complementar as análises filológicas dos textos em Nórdico Antigo. Nessa onda vieram a arqueologia, a toponímia e uma perspectiva comparativa empolgada por eleger os sámi como segundo objeto. O principal objetivo era preencher, por meio dessas outras áreas, as lacunas deixadas pelas fontes literárias que vinham sendo estudadas até então. Foi a partir desse momento que características da religião sámi passaram a ser utilizadas para explicar as lacunas percebidas a respeito da religião nórdica pré-cristã, em trabalhos como os de Johan Fritzner (1877) e Axel Olrik (1905)170. A partir desse ponto principal, as religiões sámi e nórdica viriam a funcionar por décadas como fontes de analogia para clarificar e explicar elementos uma da outra. Nesse contexto, a religião nórdica servia para elucidar sobre as origens da misteriosa religião sámi e esta, por sua vez, era vista pelos estudiosos da religião nórdica como unidade preservadora e fidedigna de símbolos, conceitos e rituais nórdicos pré-cristãos que, apesar de mencionados nas fontes literárias, já haviam desaparecido há muito tempo. Em décadas posteriores, a tendência era usar explicações de “empréstimos” religiosos de maneira mais e mais esparsa e cautelosa. Assim, evitando alegar influências adotadas de maneira tão passiva, os sámi e os traços na sua religião tidos por nórdicos passaram a ser explicados num contexto dos povos fino-úgricos, enquanto que elementos na religião nórdica que costumavam ser percebidos como empréstimos oriundos dos sámi começaram a ser tratados como herança de um estrato Euro-asiático em comum (RYDVING, 1990, p.358-359). Mas, para que entendamos o contexto etnocêntrico no qual esses estudos se embasaram, é necessário nos determos por um instante nas teorias de empréstimos. Quando o estudo da religião escandinava se intensificou no século XIX, as semelhanças entre ela e a religião sámi não somente alegavam uma teoria de empréstimos como veículo dessas similitudes, como concluíam que os sámi, certamente, é que haviam feito empréstimos da religião dos nórdicos, indo-europeus conquistadores e superiores por natureza. Havia também certo interesse epistemológico nessa afirmação: ao defender que os sámi emprestaram muito da religião nórdica, eles e sua religião poderiam, então, ser estudados enquanto portadores das idéias e costumes religiosos dos nórdicos pré-cristãos (RYDVING, 1990, p.359). O ápice desse tipo de interpretação talvez seja, diz Rydving (1990, p.360) o artigo de

170 Infelizmente, não conseguimos qualquer acesso aos trabalhos de nenhum dos dois autores. Ao que tudo indica, parece não haver versões digitalizadas de seus artigos. 152

Krohn (1906), cujo sintomático título é “Contribuições Lapônicas para a mitologia Germânica”. O nome do artigo já nos confere uma ideia da premissa que ali se esconde: a de que a religião sámi fez grandes empréstimos da religião germânica e, portanto, permanece hoje como mantenedora dessa identidade. O autor chega, inclusive, a considerar que a religião sámi possa servir como critério para que se julgassem os conteúdos supostamente religiosos contidos no material Eddico. Ainda em pleno ano de 1942, a opinião quase que unânime dos estudiosos da mitologia nórdica era a de que suas concepções religiosas pré-cristãs podiam ser encontradas em forma mais original nos empréstimos que as religiões sámi e finlandesa haviam dela feito – e que ainda mantinham -. As comparações mitológicas foram as que atraíram mais atenção. Assim, buscava-se identificar deuses análogos e paralelos entre os diferentes sistemas mitológicos. Thor, Frey e Njord e Odin da mitologia nórdica foram equiparados respectivamente a Horagalles, Vearalden Olmmái, Bieggaggális e Rota da mitologia sámi. Consequentemente, como era de se esperar, essas divindades sámi passaram a ser estudadas para que se obtesse maior conhecimento sobre os deuses nórdicos, como se fossem, de fato, as mesmas divindades apenas com outra roupagem. O caso do deus do trovão, que aqui é de nosso maior interesse, evidentemente não foi diferente. No começo, a divindade sámi dos trovões e suas várias facetas – Tiermes, Horagalles – eram consideradas por Fritzner (1877) um empréstimo do deus nórdico Thor, embora o autor alegasse que isso não significasse necessariamente que um deus do trovão não existisse a princípio entre os sámi. Contudo, um estudo posterior de Krohn (1906) viria a levantar a questão se, de fato, haveria um culto original e nativo ao deus do trovão entre os sámi (RYDVING, 1990, p. 360). Essa visão etnocêntrica era tudo, menos nova. Lembremos da obra de Schefferus e sua agenda que defendia, nas entrelinhas, o direito sueco de colonização interna dos sámi (BALZAMO, 2014, p.36): Schefferus, ao se deparar com afirmações de que havia cultos a uma divindade do trovão entre esses povos, a chama, antes de qualquer outro nome, de Thor (SCHEFFERUS, 1674, p. 22). Mas esse etnocentrismo conhecia também outras formas de expressão, que por vezes exaltavam a religião sámi de uma maneira fetichista, vangloriando um outro “exótico”. É o que percebemos nos escritos de Ernst Manker (1950), por exemplo, que se propôs descrever e analisar as ilustrações nos tambores sámi. Enquanto que teorias dos séculos XVII e XVIII defendiam haver nesses tambores figuras que remetiam a situações pragmáticas como a caça, a pesca e o pastoreio, Manker se esforçou para enxergar significados cúlticos e mitológicos que, nesse povo indígena, teriam que estar presentes. O

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dono de um dos tambores, conforme registra o próprio Manker, explica uma figura dizendo ser “o sol que, se brilhar, trará um bom tempo”, enquanto que o autor alega ser “a divindade dos ventos, Bieggolmai” (RYDVING, 1991, p.37). Como podemos notar, os olhares direcionados a essas religiões estiveram quase sempre enviesados de alguma maneira. Já o oposto ocorreu muito pouco. A maior expressão de uma teoria postulando um empréstimo feito pelos nórdicos e advindo dos sámi talvez seja a de Strömbäck (1935) de que o xamanismo por eles praticado teria influenciado as práticas nórdicas do seiðr. Essa concepção ainda encontra respaldo nos dias de hoje, e muitos estudiosos enxergam, na figura de Odin (LANGER, 2015, p. 345-346) traços xamânicos que poderiam depor a favor de tais influências. O problema do etnocentrismo, assim, se fez presente desde muito tempo no estudo comparativo dessas religiões. Isso sem considerarmos problemas de origem metodológica. As comparações eram feitas entre uma religião bem conhecida, já há anos estudada e rica em materiais literários (a nórdica) e uma pouca conhecida, de um povo minoritário, colonizado e a cujo respeito somente estrangeiros haviam escrito (os sámi). Muitos desses hipotéticos “empréstimos” que os sámi teriam feito de seus vizinhos não eram acompanhados de questões críticas, feito “como” e “por que” tais empréstimos haveriam sido feitos no decorrer da história e interação entre esses povos. Explicar as semelhanças entre as duas religiões dessa maneira parece uma saída fácil, mas que aos poucos revela ser traiçoeira (RYDVING, 1990, p.365). Por muitos anos, ao longo da história dessa tradição acadêmica, diversos desses pesquisadores eram originalmente estudiosos da religião nórdica pré-cristã. Isso implica em dizer que os documentos e textos em Nórdico Antigo eram analisados com muito mais escrúpulos do ponto de vista filológico do que aqueles provenientes dos sámi: esses acadêmicos grande parte das vezes não tinham o conhecimento linguístico das tradições sámi e, consequentemente, tiravam suas informações de literaturas secundárias, ou então de um número pequeno de fontes que de forma alguma poderia representar a religião desse povo como um todo. As comparações eram feitas, na melhor das hipóteses, entre elementos isolados percebidos como análogos nessas culturas, sem que se considerasse seu contexto e significado mais amplos dentro de cada sistema religioso. Graças a esse problema metodológico, muitas vezes pegaram-se elementos periféricos da religião e o tomaram por centrais, na busca de força-las a se encaixar num esquema analógico (RYDVING, 1990, p. 369-370). Elencadas essas ressalvas, o que gostaríamos de apontar é que, num trabalho como o

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nosso, de perspectiva comparativa, explicações simples e relacionadas a conjecturas de empréstimos precisam constantemente ser olhadas com certa desconfiança. O próprio histórico de estudo das interações e intercâmbios religiosos/culturais entre esses povos é permeado por etnocentrismos e desvios metodológicos que precisam ser evitados. Evitando esses dois problemas estruturais, concordamos com a máxima de Rydving:

“A história religiosa da região é, portanto, muito complexa. O encontro entre religiões na Fenno-Scandinavia pré-cristã – envolvendo Fínicos, Carelianos e Russos, bem como Escandinavos e Sámis – não era uma simples troca de empréstimos facilmente definíveis entre unidades sócio-culturais bem demarcadas, mas uma multiplicidade de diferentes processos dinâmicos. Não até que muitos desses processos tenham sido descritos a um nível micro, será possível oferecer uma síntese toleravelmente correta dessas religiões” (RYDVING, 1990, p. 371-372, tradução nossa).171

3.2 O martelo das divindades do trovão

Nesse momento, partiremos para a comparação do papel que as armas desses deuses desempenham nas fontes por nós analisadas. Conforme abordado anteriormente, Mjolnir – ou Mjöllnir -, o martelo pertencente ao deus Thor, é um dos símbolos religiosos nórdicos da Era Viking que possui a maior quantidade de referências e alusões, distribuídas por diversas obras literárias; o encontramos tanto nas Eddas quanto nas sagas islandesas. Ao longo desses diferentes materiais, o martelo se mostra um símbolo abrangente e com relativa flexibilidade simbólica, aparecendo enquanto arma utilizada para eliminar os gigantes, mas também como instrumento mágico que consagra nascimentos, casamentos, mortes, funerais e juramentos,ou então como símbolo fálico conectado à ressureição e à fertilidade da vida e dos campos e, por fim, como instrumento apotropaico que protege principalmente contra elementos danosos da natureza (LANGER, 2015, p.302). Temos inúmeros vestígios e representações do Mjolnir para além das fontes mitológicas. Em território nórdico, uma série de inscrições datadas da Idade do Bronze

171 “The religious history of the region is thus very complex. The encounter of religions in pre-Christian Fenno- Scandinavia -involving Finns, Karelians and Russians as well as Scandinavians and Saamis - was no simple interchange of easily defined loans between well demarcated socio -cultural units, but a multiplicity of different dynamic processes. Not until more of these processes have been described on the micro- level, will it be possible to provide a tolerably correct synthesis of the religion” (RYDVING, 1990, p. 371-372). 155

manifestam figuras humanóides, muito provavelmente deuses antropomórficos, portando armas parecidas com martelos ou machados. Simek (2007, p.279) defende que, nesse período e contexto, o martelo ou machado manifestava uma função consagratória e relacionava-se a prováveis cultos de fertilidade. Os vestígios arqueológicos nos revelam também pingentes feitos no formato do martelo, cujo período de surgimento poderia ser já próximo ao fim da Era Viking, fazendo frente ao cristianismo que começava a avançar. Nesse contexto, podemos pensar o martelo do deus do trovão como aquele que talvez tenha sido o mais importante símbolo de resistência e perseverança das crenças escandinavas pré-cristãs (SIMEK, 2007, p. 219; LANGER, 2015, p.303; DAVIDSON, 1990, p. 81). Além disso, considerando tamanha quantidade de achados arqueológicos dessa espécie - encontrados por toda a Escandinávia -, podemos conjecturar que Thor deveria ser uma divindade tida em alta estima pelos nórdicos da Era Viking, deus com o qual frequentemente desejavam se encontrar e se conectar ou, no mínimo, manterem-se a ele próximos (LINDOW, 2000, p.173-174).

Figura 12: Pingente no formato do martelo de Thor encontrado em Östergotländ, Suécia. Ao contrário de um dos exemplos trazidos aqui anteriormente, este exemplar possui uma série de detalhes em relevo. Tanto em seu corpo quanto em sua extremidade, notamos uma série de motivos com nós e entrelaçamentos. Seu topo lembra a cabeça de um animal, possivelmente algum pássaro, pois notam-se os olhos e uma pequena protuberância que pode ser um bico. Fonte: PERKINS, Richard. Thor the Wind-raiser and the Eyrarland image. London: Viking Society for Northern Research, 2001.

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As abordagens etimológicas envolvendo o nome de Mjolnir, apesar de promissoras, oferecem mais dúvidas do que respostas definitivas. Segundo Simek (2007, p.219), uma vertente considera que seu nome estaria relacionado ao eslavo antigo mlunuji e ao russo molnija, tendo sido tomado como empréstimo pelos nórdicos. Nesse caso, ambas as palavras estão relacionadas ao trovão ou “àquele que faz trovejar”. Outra vertente interpreta o nome do martelo como possivelmente oriundo do nórdico antigo mjöll (neve fresca) ou ao islandês mjalli (cor branca), de onde o derivativo mjöllnir viria a significar “arma brilhante de raios”. É possível, ainda, que seu nome se ligue ao nórdico antigo mala, verbo que significa “triturar”, interpretação segundo a qual mjöllnir significaria “triturador”. Para Turville-Petre (1975, p. 81), é possível também uma relação com o verbo, também em nórdico antigo, mølva, “esmagar”. Esta última concepção é particularmente interessante, pois pode apontar para uma relação intrínseca, percebida até nos materiais literários e mitológicos, entre Mjolnir e o ato de moer ou triturar. Basta lembrar que grande parte dos inimigos de Thor costuma ser morta tendo a cabeça esmagada, algo que faz pleno sentido ao se adotar um martelo enquanto arma. A semântica em torno do nome de Mjolnir seria, então, algo do tipo “aquele que pulveriza”. Frog (2014, p.129) o associa etimologicamente à arma do deus báltico do trovão, Perkons, chamada milna, ou “pedra de moinho”, utilizada também para esmagar. Na Edda em Prosa, no Gylfaginning, o próprio Snorri Sturluson apresenta o martelo no mesmo momento em que introduz o deus ao leitor:

“Thor é o que mais se destaca entre eles [os deuses]. (...). Ele é o mais forte de todos os deuses e homens. (...). Ele também tem três posses especiais. Uma delas é seu martelo Mjollnir, que, quando erguido, é bem conhecido pelos gigantes de gelo e gigantes das montanhas, o que não surpreende: o martelo já esmagou os crânios de muitos de seus pais e familiares” (STURLUSON, 1995, p.23, tradução nossa)172.

Conforme se nota, no Gylfaginning de Sturluson ainda estava preservada a noção da importância do martelo de Thor, que foi mencionado e nomeado juntamente do deus. Isso indica que sua audiência, mesmo em plena Islândia cristianizada, esperava encontrar Thor portando Mjolnir como arma. Também é relevante o fato de que o uso do martelo é especificado: ali não se encontra somente a ideia de que é com Mjolnir que Thor mata os gigantes, como evidencia que ele especificamente esmaga seus crânios. Ainda no Gylfaginning é contado como, em sua jornada rumo ao reino de Utgarð,

172 “Thor is the most outstanding of them. (…). He is the strongest of all the gods and men. (…). He also has three special possessions. One of them is the hammer Miollnir, well known to frost-giants and mountain-giants when it is raised aloft, and that is not to be wondered at: it has smashed many a skull for their fathers and kinsmen” (STURLUSON, 1995, p.23). 157

Thor pára na casa do fazendeiro pai de Thialfi e Roskva para se alimentar. Faminto, o deus mata seus dois bodes, os esfola, cozinha e depois se alimenta. No dia seguinte, ao se levantar para ir embora, ele ergue seu martelo e abençoa as peles dos bodes, que imediatamente voltam à vida (STURLUSON, 1995, p.45). Trata-se de uma das poucas passagens que, nas fontes por nós analisadas, atribuem um uso não bélico ao martelo, relacionando-o à ressureição e à vida, uso esse que havia sido apontado por Langer (2015, p. 302) como uma das atribuições de mjolnir. Já na narrativa em que Thor se aventura para tentar pescar a serpente do mundo junto do gigante Hymir, seu uso mais típico volta a surgir. Ao conseguir puxar Jormunganðr para cima após a serpente ter mordido a isca, o deus arremessa o martelo em sua direção enquanto o gigante, apavorado, corta a corda. A serpente consegue se soltar e fugir, mas, segundo alguns, não a tempo de evitar que mjolnir a decepasse (STURLUSON, 1995, p.48). Em seguida, deparamo-nos com a narrativa de Thor versus o gigante Hrungnir. Num certo momento do duelo, o deus do trovão arremessa seu martelo simultaneamente ao arremesso que o gigante faz de uma grande amoleira. Os dois objetos se chocam e a durabilidade e resistência de mjolnir prevalecem; a amoleira se parte em duas – uma parte se aloja no crânio de Thor -, enquanto que o martelo terminar por atingir Hrungnir na cabeça, despedaçando-a (STURLUSON, 1995, p.79). Segundo Lindow (1996, p.16), Hrungnir e Thor estiveram desiguais desde o começo da luta, mas o autor explica esse fato com uma menção que Tácito faz em Germania (capítulo 10), em que conta de um duelo entre um campeão germânico e o membro de outra tribo que havia sido capturado. O resultado do combate seria tido como augúrio da própria guerra. No caso, cada guerreiro pôde, segundo Tácito, lutar com as armas pertencentes à sua tribo – patriis armis -, tendo o direito de escolhê-las. Importando essa propriedade para o duelo de Thor contra Hrungnir, nada mais ilustrativo do que um gigante escolher uma arma imprópria para um duelo: aos olhos dessa mitologia que narra os feitos fantásticos dos æsir, a raça de gigantes deveria parecer estúpida e desconhecedora dos mais básicos elementos culturais, como o uso específico e adequado de cada arma e ferramenta. Ainda, como mjolnir foi arremessado de encontro à amoleira, é possível que haja aqui alguma alusão ao seu arremesso sendo visto como alguma espécie de raio. Ora, um martelo, muito provavelmente feito de ferro ou pedra, ao chocar-se contra uma amoleira, sem dúvida produziria faíscas e talvez até mesmo fogo, que estão ambos relacionados aos raios. Mesmo que haja o vínculo entre mjolnir e os raios, nesse caso ele é, na melhor das hipóteses, algo

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implícito. Procuremos em outras fontes. Snorri Sturluson reconta a mesma história, mas citando um poema escáldico supostamente datado do século IX d.C, composto por Þjóðólfr de Hvinir. Ao que parece, o poema descreve cenas mitológicas pintadas num escudo que o poeta agora citado teria recebido de presente, mas autores como Simek (2007, p.133) defendem que ele certamente somou a isso seu próprio conhecimento mitológico para expandir o que estava meramente ilustrado, dando forma e conteúdo ao seu poema. Trata-se do poema Haustlöng (“Um longo outono”). No poema em questão, muita ênfase é conferida à movimentação de Thor rumo ao local do duelo. O poeta depara sua audiência com diversos fenômenos geológicos e meteorológicos retratados como consequência dos movimentos do deus, que inclusive causam trovões. Ainda assim, ao que tudo parece a ocorrência desses trovões se dá por conta da movimentação do deus em sua carruagem, cujas rodas causam estrondos nos céus. Nessa narrativa, não há nenhuma conexão mais segura entre o deus e o trovão, muito menos por intermédio de seu martelo (TAGGART, 2015, p.76). A (possível) relação de mjolnir com o raio fica limitada, então, a uma conjectura a respeito do que o seu choque contra a amoleira do gigante causaria. Também é importante ressaltarmos a segunda parte do mito que estamos tratando. Ela consiste no momento em que Thor, voltando para Thrudvangar, visita a feiticeira Groa para que ela tente remover a lasca de pedra de sua cabeça. Conforme o feitiço começa a funcionar, o deus sente-se tão grato que começa a contar sobre o marido da feiticeira, Aurvandil. Segundo ele, os dois estavam em Elivagar quando Thor colocou Aurvandil em uma cesta para leva-lo até em casa. Um de seus dedos, no entanto, ficou para fora da cesta e congelou. Thor o arranca e imediatamente o arremessa aos céus, dando surgimento à estrela conhecida como “dedo de Aurvandil” (STURLUSON, 1995, p.77-80). Ao criar uma estrela, Thor demonstra ser capaz de assumir um papel cosmogônico, podendo reivindicar para si o lugar de participante na criação do cosmos (LINDOW, 1996, p.19). Mesmo nesse momento de expressão da faculdade criativa do deus, seu martelo não é em momento algum ressaltado especificamente enquanto ferramenta que teria possibilitado a exerção de tal função criadora. Não há qualquer menção a Mjolnir nessa parte da narrativa, o que talvez obscureça seu papel de ferramenta criadora, ou então até mesmo permita revoga-lo nesse contexto. É necessário ainda falarmos sobre uma última narrativa na Edda em Prosa na qual Thor aparece sendo protagonista: sua visita às terras do gigante Geirröðr. Lembremos que, nesse mito, Loki havia prometido ao gigante que conseguiria levar Thor até suas terras

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estando desprovido de seu martelo – e, portanto, sem estar apto a se defender -. No momento em que enfrenta o gigante, Thor talvez não obtivesse sucesso se não usasse as luvas que haviam sido emprestadas por Grid, com as quais pega um pedaço de ferro e arremessa na direção do inimigo. De maneira irônica, apesar de a narrativa conferir ênfase justamente ao quanto Thor conseguia ser poderoso e forte sem seu martelo, é sua própria ausência que o torna o elemento central em torno do qual o enredo se move. Ao contrário do que acontece no poema eddico Þrymskviða, aqui não há qualquer explicação sobre como Thor está desprovido de mjolnir (FROG, 2011, p.89). Se a estória visa provar que Thor poderia ser forte e vencer seus inimigos mesmo sem mjolnir, o principal atrativo narrativo está justamente nessa quebra da expectativa; o que termina por revelar que, ao longo de outros registros e tradições da época, sabia-se justamente que mjolnir era uma grande fonte de poder para Thor, sendo esperado que, por meio do uso dessa arma, o deus vencesse – ou melhor, esmagasse – seus inimigos. Conforme vimos, o próprio Snorri Sturluson, ao apresentar o deus, apontou para o quanto mjolnir era temido – e provavelmente sua audiência islandesa ainda tinha esse entendimento a respeito do martelo, sabendo de sua fama e poder -. No conteúdo oriundo da Edda Poética, o cenário é um pouco distinto. No poema Hárbarðsljóð, ao discutir com Odin – que está disfarçado de Hárbarðr-, Thor se esforça para vencer o duelo verbal vangloriando-se de seu papel de matador de gigantes e sua incrível força. Basicamente, os únicos feitos que o deus se preocupa em destacar são dessa espécie, ao passo que Hárbarðr está mais preocupado em destacar sua masculinidade, listando seus episódios amorosos e as mulheres com as quais se deitou. Estranhamente, apesar de listar vários gigantes que combateu, como Hrungnir e Thiazi, Thor em momento algum cita seu martelo ou faz a ele alguma alusão, apesar de sabermos, com base em outros mitos, que esta costuma ser a arma usada pelo deus para mata-los. É necessário levarmos em conta, no entanto, que Hárbarðsljóð é um poema um tanto quanto peculiar se comparado ao restante do corpus eddico. Não apenas sua métrica, como também seu conteúdo – que, somados, constituem uma espécie de “balada mitológica” -, o diferem muito dos outros poemas (SIMEK, 2007, p.130). Ademais, seu provável contexto de origem pode te-lo influenciado. Tendo sido oriundo provavelmente do século IX, de solo norueguês, é possível que o poema aponte para mais do que diferenças de culto entre Odin e Thor, revelando também uma forte oposição entre nobreza e camponeses (LANGER, 2015, p.232). Adotando essa perspectiva para a interpretação do poema, é possível, então, hipotetizar que o martelo de Thor não tenha aparecido por uma questão de recorte e

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relevância, e não por desconhecimento, na época, de uma tradição envolvendo o deus e seu martelo. O foco do poema era posicionar o deus como exemplar da força bruta e matador de gigantes, em detrimento de um Odin mais esperto cujo disfarce sequer é reconhecido, preocupado em negar a travessia a Thor e em se vangloriar de suas conquistas amorosas. Trata-se de um poema que contrasteia e diferencia as duas divindades, e que não esconde o favorecimento de Odin. Assim, Thor é derrotado ao ser posicionado de certa forma hierarquicamente abaixo de Odin, o que acontece por conta daquilo que o poema elege como mais importante: a habilidade verbal-discursiva. Não é que os feitos de Thor enquanto eliminador de gigantes fossem desimportantes, mas acontece que o poema não era uma elegia a esse tipo de habilidade (LINDOW, 2000, p.181). Talvez por conta desse fato, narrar como esses gigantes foram mortos não fosse algo relevante, ainda mais porque o poema não visava engrandecer nem esse fato, nem a figura de Thor. Já em Þrymskviða o oposto prevalece. Toda a narrativa se dá em torno do sumiço de Mjolnir, e os eventos elencados se dão justamente na tentativa de recuperá-lo. Conforme abordamos anteriormente, Thor se disfarça de noiva e, junto de Loki, vão até as terras do gigante Thrym para que simulem o casamento e consigam reaver o martelo. O fim é certo: o martelo é posicionado no colo da “noiva” durante a cerimônia, momento que Thor aproveita para recuperar sua arma e com ela matar todos os gigantes no recinto. Essa centralidade temática do martelo pertencente ao deus do trovão é trabalhada numa perspectiva ampla e extra-étnica por Frog (2014, p.123), que identificou esse tipo de narrativa em toda a área circum-báltica. O critério taxonômico para classificação desse conteúdo é baseado num índice catalógico de contos folclóricos internacionais coletados por Aarne-Thompson-Uther. Dentro desse sistema, as narrativas envolvendo o roubo da ferramenta do deus do trovão são categorizadas como ATU 118B (UTHER, 2004). Apesar de não existir um formato único ou modelo ideal dessas narrativas, alguns padrões e motivos temáticos são percebidos, podendo haver variações, omissões ou acréscimos. Basicamente, essas estórias tendem a manifestar, de maneira mais ou menos geral, o seguinte enredo: os inimigos do deus do trovão são descritos como tendo medo dos trovões; um demônio (ou figura análoga) rouba, do deus do trovão, seu instrumento criador de raios/trovões (no caso de Thor, seria seu martelo mjolnir) enquanto ele dorme; o demônio leva o instrumento para os seus domínios e o tranca ou esconde; a falta de chuvas ao longo do ano ameaça o bem-estar da comunidade; o deus do trovão se disfarça e vai até as terras do demônio para recuperar sua

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arma; o demônio tenta tocar/fazer uso do instrumento, mas sem sucesso; ele desafia o deus do trovão a utilizar o instrumento; ele o entrega ao deus do trovão; o deus do trovão pega seu instrumento, cria trovões, elimina o demônio e todos os presentes que estejam a ele relacionados. De acordo com o que afirmamos, no Þrymskviða são detectadas certas peculiaridades no que diz respeito ao martelo. A estória não explica de maneira explícita que essa ferramenta era temida pelos inimigos do deus do trovão – o que talvez não fosse necessário, visto a ampla tradição paralela em sagas, poesias escáldicas e eddicas que já o deixava muito claro -; e, ao contrário da maioria de narrativas dessa espécie, ela não relaciona o sumiço de mjolnir à escassez de chuvas, ao clima desfavorável e à consequente perda de fertilidade dos campos. Aliás, não é notado, no Þrymskviða, qualquer vínculo entre o Mjolnir e os raios e trovões – ou ao clima de maneira geral -. Aparentemente, ele funciona, na narrativa, como mera ferramenta de câmbio (FROG, 2014, p.78-88). Ainda assim, próximo ao fim da estória, o martelo é prontamente utilizado para eliminar os gigantes do recinto. Outro uso relevante de Mjolnir trazido pelo poema é seu papel durante a cerimônia de casamento, algo que não escapou à percepção de Davidson (1990, p.80). Para ela, as informações elencadas constituem um indicativo confiável de que martelos eram usados ritualisticamente para a consagração de noivas. Na busca de sustentar essa hipótese, a autora defende que algumas inscrições em pedra na área da Escandinávia, datadas da Idade do Bronze, encenam figuras no que possivelmente é uma cerimônia de casamento. Uma delas ergue um martelo ou machado para o alto durante a cerimônia, supostamente para abençoar ou consagrar a cerimônia. Portanto, este seria um costume antigo na Escandinávia e, no mito em Þrymskviða , Thor espera pacientemente porque sabia que chegaria o momento em que o martelo seria depositado em seu colo como parte da cerimônia, podendo, então, recuperá-lo (DAVIDSON, 1990, p. 80). Os usos de Mjolnir nesse mito, então, são três: ferramenta de troca/câmbio; arma para eliminar os gigantes; símbolo de consagração do casal – ou talvez de fertilidade da noiva, já que é posto em seu colo -. No poema Hymiskviða, se o aparecimento de Mjolnir não é central à narrativa, ele ao menos desempenha uma função definitiva em termos de enredo. Esta nada mais é do que outra versão da pesca de Jormunganðr por Thor que, de acordo com o que vimos, encontra-se também na Edda em Prosa. Nesta versão, o deus parte de barco junto com o gigante Hymir em busca da serpente. Ele consegue fazer com que ela fisgue a isca e ele a puxa para cima, derrubando-a no barco. Thor consegue atingi-la violentamente com o martelo, mas ainda

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assim sua inimiga escapa, retornando para os confins do oceano. No entanto, antes de ir embora eles devem passar por uma série de desafios de força, e Thor obviamente consegue cumprir todos. Ao tentarem voltar para casa, Hymir envia uma horda de gigantes atrás de Thor, que os mata usando Mjolnir. Novamente, essa narrativa ressalta o uso do martelo enquanto arma para eliminar a raça dos gigantes (LINDOW, 2001, p. 189). No caso sámi, os vínculos entre o deus Horagalles/Tiermes/Aijeke e os martelos possui uma expressão muito menor. Entre pontuais vestígios arqueológicos e informações de fontes literárias, os dados que conseguimos encontrar são, ainda, poucos. O ilustrador Bernard Picart (1723), na tentativa de compilar informações sobre “todas” as religiões do mundo, termina por mencionar um suposto culto lapônico ao deus do trovão em que era feita uma grande estátua representando a divindade com um prego na cabeça e um martelo na altura de seu corpo173. Apesar da evidência meramente literária sem maiores correspondentes no campo da arqueologia, temos, na obra questão, a primeira menção a uma relação entre o deus sámi do trovão e o martelo. Os noruegueses Thomas von Westen e Johan Randulf, também no ano de 1723, reproduziram num manuscrito diversas ilustrações de tambores sámi, onde identificamos figuras humanoides portando dois martelos. Knud Leem, também pastor luterano norueguês, fornece em seu Nærøymanuskriptet a ilustração de outro tambor sámi em que dois martelos se cruzam174. Uma das fontes bibliográficas utilizadas por Johannes Schefferus, o missionário Samuel Rheen, alega igualmente a existência de cultos sacrificiais voltados a pequenas estátuas com martelos na mão. Rheen atuou como missionário na região de Kvikkjokk, na atual Suécia, onde de fato conheceu pessoalmente povos sámi sobre os quais escreveu a respeito. Uno Holmberg (1964, p. 230) exibiu em seu livro a ilustração do próprio Rheen no momento de abordar a arma do deus do trovão entre os sámi. Tratam-se, então, de vestígios materiais de alguma relação entre o deus do trovão e o martelo enquanto arma, que, segundo Holmberg (1964, p. 230-231), servia para expulsar os espíritos malignos para longe.

173 Para ver a ilustração do próprio autor, ela consta na página 79. 174 As ilustrações e suas respectivas notas explicativas encontram-se na página 100. 163

Figura 13: Ilustração feita por Rheen de um lugar onde, segundo ele, eram feitos sacrifícios sámi ao deus do trovão. Este é o único caso por nós encontrado em que há, simultaneamente e no mesmo espaço, mais de uma estátua representando a divindade do trovão. Notamos, no contexto ali representado, a existência de quatro figuras idênticas, todas com os braços abertos portando pequenos martelos (por sua vez, idênticos) em suas mãos. Entre as estátuas, verificamos a presença de chifres de rena, o que aponta para um possível contexto sacrificial. Fonte: HOLMBERG, Uno. Mythology of All Races, Finno-Ugric Siberian. 1964.

Embora a obra de Rheen seja posterior à Lapponia, alguns de seus relatos precederam a obra de Schefferus – que o cita abertamente em seus escritos - e serviram, por sua vez, para apontar e reforçar uma conexão entre a divindade sámi dos trovões e os martelos. O ápice de tal influência pode ser o que tenha levado Schefferus a afirmar a existência de um martelo chamado Aijeke Wetfchera, com o qual deus “esmagava o cérebro” dos espíritos malignos (SCHEFFERUS, 1674, p. 37). Claro que, se for esse o caso, então Aijeke usava o martelo para um fim muito semelhante ao Mjolnir de Thor: eliminar as entidades malignas que ameaçavam deuses e homens. Também é curioso que o ato em si praticado por Aijeke com o martelo é descrito da mesma maneira, especificamente “esmagar a cabeça”, algo que, conforme vimos, era recorrente nas narrativas do deus nórdico. Certamente que não podemos desconsiderar a empreita etnocêntrica de Schefferus, sendo possível que ele tenha elaborado essas afirmações tendo Thor como molde, cujas narrativas, na época de escrita da obra de Schefferus, já eram bem conhecidas no norte Europeu (TAGGART, 2015, p.147). Feita essa ressalva, também devemos levar em conta que há fontes mais antigas descrevendo uma divindade sámi dos trovões portando martelos, como nas ilustrações de tambores conferidas por ao menos três missionários que os viram pessoalmente. Holmberg (1964, p. 231) acredita na autenticidade de um deus sámi do trovão portando seu martelo. Ao

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investigar fontes como Rheen, Forbus e Kildal, percebeu que todos relataram alguma conexão do tipo. Forbus descreve pequenos martelos feitos de madeira que eram feitos em honra ao deus e depois banhados em sangue sacrificial; Rheen afirma que tais martelos eram oferecidos ao deus e Kildal diz que os mesmos eram depositados em cavernas ou grutas no pé de montanhas, onde a divindade viria busca-los. Apesar de no caso sámi não termos nem de longe o mesmo nível de segurança para defender a existência de um martelo nas mãos do deus do trovão, ainda assim a ideia não se mostra de maneira alguma descartável. Já o caso finlandês, nas fontes que pesquisamos, mostra-se o mais problemático de todos. Em sua lista de divindades da Carélia e Häme, Agricola, ao mencionar Ukko, não o relaciona a qualquer arma como o martelo ou alguma variante, como o machado. O curioso em não haver essa menção é que Agricola mostra-se preocupado em apontar os objetos que eram comumente relacionados a Ukko, pois cita diretamente sua cesta e sua taça (AGRICOLA, 1551, versos 29-39). Conforme apontamos anteriormente, Holmberg (1964, p.229) encontrou documentos como petições e relatos de inspeções eclesiásticas que datam da mesma época da lista de Agricola e citam a existência concreta de ambos os objetos. Na Kalevala, Ukko tampouco aparece relacionado a martelos. Nenhuma das intervenções do deus é feita por meio do uso dessa arma. Ainda assim, há um aspecto digno de nota. Em certa altura aparece um personagem chamado Virokannas, descrito como um Careliano, que porta uma maça. Além disso, ele também é descrito como um “homem velho”, aquele que já abordamos ser o mais antigo e famoso epíteto de Ukko (LÖNNROT, Canto XX, estrofe 3, p. 253)175. Mas as semelhanças não se resumem a isso: esse homem velho ameaça esmagar, com a maça, o crânio de seu inimigo – uma narrativa extremamente frequente entre os deuses do trovão do norte Europeu, especialmente Thor -. Poderia se alegar que esta trata-se de uma criação de Lönnrot, talvez um semideus baseado de maneira implícita na figura de Ukko. Como, em sua obra, Ukko assumiu o papel de um deus supremo e distante nos céus, é possível que Virokannas tenha surgido enquanto figura para preencher pontualmente o papel concreto do deus do trovão que se envolve com entidades malignas e as combate corpo-a-corpo com sua arma. Apesar de fazer sentido a princípio, esse não parece ser o caso. Acontece que Agricola, em sua lista, cita um deus chamado Virankannos que, assim como Ukko, era adorado entre os Carelianos176. Infelizmente, tudo o que o bispo diz sobre essa divindade é que ele encarregava-se de cuidar

175 “There came and old man, a Foreigner/Virokannas, a Karelian/and he put this into words:’Hold on, hold on, hapless ox/for I’m coming with a club/and with my rod I will thump/you, mean one, upon your skull” 176 “Virankannos raised the oats, else there were none” (AGRICOLA, 1551, verso 23). 165

do cultivo da aveia, que não surgia onde o deus não estava (ANTONNEN, 2012, p. 187). Por que um deus supostamente associado à aveia na época de Agricola – e talvez, consequentemente, à fertilidade? – tornou-se, na Kalevala, um matador de entidades malignas portando uma maça permanece um enigma não resolvido. Essas observações não nos permitem, contudo, alegar que o deus finlandês dos trovões não seria portador de uma arma como o martelo. Primeiramente porque há todo um outro corpus da tradição finlandesa que necessita ser levado em conta – e que aqui não coube por uma questão de recorte das fontes primárias a serem analisadas -, como nos cantos, lamentos, poesias folclóricas e encantamentos dos tietäjä (FROG, 2014, p. 404 ). Não podemos defender que os materiais por nós analisados representem completa e inteiramente toda uma tradição religiosa em torno dessa figura divina dos trovões. Em segundo lugar, porque nessas outras fontes o martelo de Ukko de fato aparece, como, por exemplo, nessa fórmula mágica registrada na província de Satakunta, provavelmente no século XIX, direcionada ao deus: “Um prego chegou por meio de uma nuvem,/um machado de pedra dos céus,/você que quebra os grandes pregos,/estilhaça os altos abetos/quebra as pedras e as transforma em sujeira” (SALO, 2006, p. 50, tradução nossa)177. A menção ao martelo de Ukko também é notada em diversos outros poemas que circulavam em oralidade no folclore tardio finlandês, como nessa prece de um caçador: “Ukko, rei dourado/homem velho nos céus,/pegue sua maça dourada/ou seu martelo de bronze/saia batendo pelas florestas/balançando as escuras florestas” (SALO, 2006, p.58, tradução nossa)178. Há ainda outros relatos, como um canto rúnico que narra como Ukko se armou com seu martelo para matar um porco gigante179. Negar a arma de Ukko não parece, de um ponto de vista abrangente das fontes primárias, algo prudente de se fazer. Não é por menos que autores como Unto Salo (2014) e Holmberg (1964) defendem a existência do martelo. Por algum motivo, tanto Agricola, em 1551, quanto Lönnrot, no século XIX, não deixaram explícito o vínculo entre Ukko e seu martelo. Visando explicitar de maneira mais eficiente as significações do martelo presentes entre essas divindades do trovão nos conteúdos por nós analisados, elaboramos uma tabela que disponibilizaremos nesse momento. Logo em seguida, analisaremos as informações que

177 “A pin arrived through a cloud,/a stone ax from the heaven/you who break the large pines/splinter the tall sappy spruces/break stones into dirt” (SALO, 2006, p.50). 178 “Ukko, the Golden king/the old man in heaven./take the golden club/or the bronze hammer,/go banging in the forests/swaying the dark forests” (SALO, 2006, p.58). 179 “Ukko went to slaughter it [o porco]/with a golden club/a copper hammer/a silver mallet” (BOSLEY, 1977, p. 269). 166

saltam à nossa atenção, visando caminhar rumo a algumas preliminares conclusões concernentes ao martelo.

Divindade Fonte primária Presença do martelo Significado/uso do martelo Thor Gylfaginning - Edda em Sim Ao introduzir o deus Prosa Thor, Snorri apresenta também o seu martelo Mjolnir e destaca seu papel como arma que esmaga o crânio dos gigantes. Thor Gylfaginning - Edda em Sim Propriedade Prosa (na casa de Thialfi ressuscitadora (traz seus e Roskva) bodes de volta à vida) Thor Gylfaginning - Edda em Sim Uso enquanto arma, Prosa (visita ao reino de tentando esmagar a Utgarða-Loki) cabeça do gigante ao desferir golpes. Apesar do gigante, não ter sofrido danos com os ataques de Thor, três montanhas haviam sido criadas. Trata-se de uma função criativa do martelo. Thor Gylfaginning - Edda em Sim Arremessa o martelo Prosa (Pesca da serpente contra a serpente, do mundo) usando-o enquanto arma. Thor Skáldskaparmál – Edda Sim “Dono do Martelo em Prosa (lista de heiti e Mjolnir” kenningar) Thor Skáldskaparmál – Edda Sim Arma arremessada para em Prosa (Thor vs. matar o gigante, Hrungnir) terminando por despedaçar sua cabeça. Choque contra a amoleira de Hrungnir, possível alusão ao raio.

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Thor Poema escáldico Sim Arma contra o gigante. Haustlöng (citado por Choque contra a Snorri) amoleira, sendo também cogitável uma alusão ao raio. Thor Skáldskaparmál – Edda Não Thor exerce um ato em Prosa (Thor e criativo/cosmogônico e Aurvandil) não há qualquer menção ao martelo. Thor Skáldskaparmál – Edda Sim A ausência do martelo se em Prosa (Thor vs. faz o elemento central da Geirröðr) narrativa. Seu sumiço ressalta o quanto o deus, para ser forte e vencer os inimigos, necessita de seu martelo. Thor Hárbarðsljóð - Edda Não Apesar de Thor Poética preocupar-se em listar

vários gigantes que matou, algo que costuma fazer com seu martelo, ele não é mencionado em qualquer momento. Thor Þrymskviða - Edda Sim Toda a narrativa se dá em Poética torno do sumiço de Mjolnir, e os eventos elencados se dão justamente na tentativa de recuperá-lo. Destaca-se sua importância. Há menção ao martelo, durante a cerimônia de casamento, sendo colocando no colo da noiva para abençoa-la e consagrar a cerimônia (talvez para também garantir sua fertilidade). Após reavê-lo, o deus usa o martelo como arma para matar os gigantes. Também é possível que ele esteja ligado à representações relacionadas à masculinidade de Thor.

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Thor Hymiskviða - Edda Usado como arma para Poética tentar eliminar a serpente e, depois, para matar uma horda de gigantes. Horagalles/Aijeke/Tiermes Thomas von Westen e Sim Reprodução das Johan Randulf ilustrações supostamente (Topographia actarchiæ presentes em tambores Danicæ ecclesiastica sámi, dentre as quais dividendæ in encontramos figuras Lapmarkian et humanoides portando Finmarkian) dois martelos. Horagalles/Aijeke/Tiermes Knud Leem Sim Reproduz a ilustração de (Nærøymanuskriptet) um tambor sámi em que dois martelos se cruzam. Horagalles/Aijeke/Tiermes Samuel Rheen (En kortt Sim Tendo estado em Relation om Lapparnes Kvikkjokk (Suécia), Lefwarne och Sedher, alega a existência de wijdskiepellsser, sampt i diversas estátuas de många Stycken Grofwe divindades do trovão wildfarellsser) portando pequenos martelos em suas mãos, ilustrando-as. Horagalles/Aijeke/Tiermes Johannes Schefferus Afirma que o deus do (Lapponia) trovão possuía como arma um martelo chamado Aijeke Wetfchera, com o qual esmagava o cérebro de entidades malignas. Ukko Mikael Agricola (Salmos Não - de Davi) Ukko Elias Lönnrot (Kalevala) Não - Ukko Outras fontes (folclore, Sim Relação com um prego, lamentos, cantos, tietäjä) estilhaçamento de árvores, pulverização de pedras, ajuda na caça. Tabela 1: Os usos e significados do martelo pertencente ao deus do trovão segundo as fontes primárias por nós analisadas.

O primeiro detalhe que se ressalta, apesar de mais explícito, e que merece nossa atenção diz respeito à dimensão quantitativa. Um rápido olhar para a tabela denunciará fatalmente que o deus nórdico Thor é descrito portando e fazendo uso de um martelo com muito mais frequência do que as outras duas divindades levadas em conta na comparação. Esse fator, contudo, pode estar relacionado a uma série de outras propriedades cuja interpretação não é tão simples quanto notar a discrepância relativa à diferença de quantidade das menções ao martelo. Pode ser que, de fato, o vínculo estabelecido pelos nórdicos entre o deus do trovão e seu martelo se desse de maneira mais presente, forte, evidente e frequente; e mais: é possível que esse vínculo tenha sido importado para a leitura de outros deuses, como por exemplo na

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obra de Schefferus, no momento em que descreve o deus do trovão sámi como chamando-se Tor. Se, mesmo tendo ciência do nome da divindade sámi o autor decide por vezes nomeá-lo Tor, logo percebe-se um certo critério de importação que pode muito bem ter se expandido para a relação entre o deus e o martelo. Ou seja, Schefferus pode ter se esforçado, conscientemente ou não, para ler Aijeke/Horagalles nos moldes de Thor, algo que pode ter influenciado o autor a mencionar um suposto martelo do deus. Lembremos do caráter etnocêntrico de Schefferus que, para evidenciar os sámi enquanto povos primitivos e selvagens, recorreu ao próprio passado nórdico como espécie de modelo elucidativo (BALZAMO, 2014, p. 36). Ou seja, aqui nos deparamos com o levantamento de uma questão que permanece insolucionável: se, entre os nórdicos, o vínculo entre o deus do trovão e o martelo era realmente mais intenso e, entre os povos vizinhos de outra origem étnica com quem estes mantiveram contato (sámis, finlandeses) esse traço é igualmente encontrado, porém com menos força e frequência, podemos hipotetizar que o conceito de uma divindade do trovão portando um martelo tenha sido disseminado dos nórdicos para seus vizinhos; ou então, que essas religiões fino-úgricas também representavam originalmente os seus deuses do trovão portando martelos, algo que teria vindo a se intensificar conforme se ampliou também o contato com os nórdicos. Contudo, evitaremos afirmar um aspecto ou outro, para que não perpetuemos antigas teorias difusionistas apoiadas na premissa de que um povo “superior” em algum aspecto tenha sido responsável por disseminar suas características entre outros povos, que aderiram passivamente e passaram a funcionar enquanto meros espelhos. Privilegiamos, ao invés disso, um viés geográfico que, esse sim, permite nos dizer que circulavam, na região norte habitada por esses povos, ideias comuns sobre divindades do trovão e seus martelos (DUBOIS, 1999, p.7). Outro perigo que necessitamos evitar para que não cheguemos a conclusões precipitadas é de natureza estatística. Conforme constatado na tabela, o número de menções ao martelo de Thor é muito maior se comparado aos deuses Horagalles e Ukko. Um simples olhar evidenciará que, se for calculada uma média aritmética ou se o total de menções ao martelo nas fontes analisadas fosse transformado em porcentagem, as menções ao martelo de Thor disparariam na frente das outras em termo porcentual. Lembremos, para evitar falsas impressões, que a quantidade de material analisado por nós conta com muito mais fontes nórdicas do que finlandesa e sámi. A disparidade começa já nesse aspecto: sendo analisados mais materiais sobre Thor do que dos outros deuses, é de se esperar que a chance de seu

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martelo figurar entre as menções seja probabilisticamente maior. Afinal, trazendo esse próprio fato para um contexto mais amplo, é necessário ter em mente que, entre qualquer comparação envolvendo nórdicos com sámis e finlandeses, os primeiros sempre serão mais favorecidos, pois dispomos de muito mais fontes para estudo da mitologia e religião nórdica pré-cristãs do que das demais180. Apresentadas essas ressalvas, partamos para os dados elencados na Tabela I. Notaremos que os martelos desses deuses do trovão raramente possuem vínculos claros com fenômenos atmosféricos tais quais os raios, por exemplo. Isso implica em concluir que as divindades do trovão não necessitavam do martelo enquanto ferramenta imprescindível para invocar, criar ou manipular raios, embora essa conexão apareça em alguns casos específicos. O próprio Thor é um exemplo. Quando, em sua Edda em Prosa, Snorri Sturluson encaixa o deus na narrativa pela primeira vez (já no capítulo Gylfaginning), nomeando e apresentando também o seu martelo Mjolnir, em momento nenhum pareceu importante para o autor estipular seu uso como estando relacionado aos raios. O único atributo do martelo listado nesse momento foi seu uso enquanto arma, mais especificamente para eliminar a raça dos gigantes. É essa característica do martelo que, conforme veremos, será de longe a mais predominante nas fontes que analisamos. Esse fato não só aponta para certo padrão em enxergar o martelo como a arma do deus do trovão, como explicita, por meio de sua ocorrência em diversas outras fontes, que Snorri de fato registrava em seus escritos uma tradição de conhecimentos e saberes de certo modo recorrentes no que diz respeito a Thor e Mjolnir. Ainda no Gylfaginning as propriedades bélicas de Mjolnir se repetirão quando Thor o arremessa em direção à Jörmunganðr, na tentativa de mata-la. Curiosamente, também nesse capítulo nos deparamos com uma função um tanto inusitada, quase que diametralmente oposta, do martelo – e cuja ocorrência foi, nas fontes por nós vistas, única -. Trata-se do

180 Para que se tenha uma ideia: no caso da religião/mitologia sámi, basicamente dispomos dos trabalhos de Johannes Schefferus (Lapponia, 1673 d.C); Olaus Magnus (Historia de gentibus septentrionalibus, 1555 d.C), Lars Levi Laestadius (1845 d.C) e Giuseppe Acerbi (Travels through Sweden, Finland and Lapland, to the North Cape in the years 1798 and 1799, 1802 d.C). Em sua totalidade, estes são relatos tardios, escritos por estrangeiros (alheios à religião sámi) e de cunho etnográfico: não há uma compilação dos mitos sámi, por exemplo. No caso dos finlandeses, dispomos da lista oferecida por Agricola em sua tradução d’Os Salmos de Davi (1551 d.C), da Kalevala escrita por Lönnrot no século XIX e por uma massa de poesias, cantos, lamentos e runo songs compiladas ao longo da Idade Moderna. Não há, também, um corpus contendo os mitos dos povos finlandeses. No caso nórdico, dispomos da Edda em Prosa supostamente escrita por Snorri Sturluson (1222 d.C); os poemas mitológicos e heroicos compilados e presentes na Edda Poética (século XIII), que totalizam quase 30 poemas; as poesias escáldicas que sobreviveram até os dias de hoje; as inúmeras Sagas; além de trabalhos escritos por terceiros, como Adão de Bremen (Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum, 1070 d.C) e Saxo Grammaticus (Gesta Danorum, 1216 d.C). 171

momento em que, na casa do fazendeiro e após ter oferecido os próprios bodes para serem banqueteados por todos, Thor, em seguida, ergue seu martelo e os ressuscita. Na narrativa em questão, portanto, o martelo não se mostra como instrumento que traz a morte, mas como artefato capaz de devolver a vida a quem a perdeu. Outra curiosa manifestação do simbolismo do martelo se dá quando o deus está prestes a adentrar no reino de Utgarða-Loki e depara-se com um gigante. Os primeiros envolvimentos de Thor com a criatura em questão remontam ao uso mais típico de Mjolnir: ele tenta por três vezes, aumentando gradualmente a força a cada golpe, despedaçar o crânio do gigante. No entanto, ao se sentir humilhado pelo fracasso de sua empreita e pelas palavras do gigante, Thor desiste e resolve seguir rumo a Utgarða-Loki. Ao término da narrativa, é revelado para o deus que tudo havia se tratado de uma magia ilusória; por isso o insucesso em matar o gigante. Contudo, apesar de seu inimigo não ter sofrido com as pancadas que recebeu na cabeça, cada vez que Thor investiu o martelo contra aquilo que pensou que fosse a cabeça do gigante, a força do golpe era tamanha que acabou por dar surgimento a três diferentes montanhas. Embora o intuito de Thor fosse o de ter feito uso do martelo como arma, este acabou exercendo, na verdade, uma função criadora. Este fato se faz digno de menção porque, quando Thor manifesta traços cosmogônicos e criativos em outras narrativas, como em Hárbarðsljóð, quando cria estrelas a partir dos olhos de Tiazi (LANGER, 2018c, p.250) ou então do dedo de Aurvandil, presente no próprio Gylfaginning (LANGER, 2018c, p.234), não há qualquer emprego do martelo para fazê-lo. Nesse sentido, este uso de Mjolnir para fins criativos é sem precendentes. Mais adiante, agora no Skáldskaparmál, Snorri elenca uma possibilidade de heiti ou kenningar para Thor, “o dono do martelo Mjolnir”. Esse aspecto aponta para o fato de que o vínculo entre o deus e seu martelo era evidente também na poesia escáldica, fonte que Snorri consultou de maneira incessante para elaborar sua lista de figuras de linguagem. Mais adiante, Snorri (re)conta do duelo de Thor contra o gigante Hrungnir, durante o qual Mjolnir é arremessado contra o inimigo de Thor (cumprindo, portanto, a função de arma), visando lhe atingir na cabeça. Em reação, Hrungnir atira uma pedra amoleira, que se choca no ar contra Mjolnir, produzindo intensas faíscas e quebrando, por fim, a pedra. Como o martelo havia sido arremessado, havendo, então, a ideia de traçar uma trajetória pelo ar, e tendo produzido faíscas ao chocar-se contra a pedra de Hrungnir, é possível que sua atuação faça, nesse contexto, uma alusão ao raio. Afinal, todo o episódio contra Hrungnir outorga paulatinamente a Thor o domínio sobre os ares e os fenômenos meteorológicos que nele acontecem

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(LINDOW, 1996, p.17). Dentro da narrativa em questão, uma conexão entre Mjolnir e o raio é plausível, embora também haja seu emprego claro enquanto arma. No Haustlöng, poema escáldico citado por Snorri, a estória do deus contra Hrungnir é narrada uma vez mais. Os mesmos elementos são identificados: Mjolnir atuando primeiramente enquanto arma e, em seguida, ao se chocar contra a amoleira, também produz faíscas e permite que se hipotetize alguma relação com o raio. Talvez na versão do mito disposta em Haustlöng tal vínculo seja ainda mais possível, pois, como enfatiza Taggart (2015, p.213), este é um poema que relata uma série de calamidades e ocorrências de fenômenos geológicos e atmosféricos como sendo originados pela movimentação de Thor. A diferença é que, para Taggart (2015, p.213), apesar dos vínculos do deus com os raios e trovões serem claros no material em questão, eles funcionam como meros testemunhos da autoridade e poder do Thor, e não como relatos do domínio natural de sua regência. Ainda assim, pensando especificamente nas atribuições do martelo, no Haustlöng temos outra provável conexão entre ele e os raios. Ainda no Skáldskaparmál, há a narrativa de Thor contra Geirröðr, na qual o rapto de seu martelo é o elemento central da narrativa. O fato de o deus ir até o reino do gigante para recuperar Mjolnir não somente denuncia a importância que o artefato tinha para o deus, como também evidencia, por meio de uma quebra de expectativa narrativa, o quanto o martelo é essencial para Thor no momento do combate: espera-se que o deus esteja sempre com Mjolnir no momento de combater os gigantes. A ausência do martelo se faz importante a nível de enredo justamente porque a audiência esperava que, ao enfrentar seus inimigos, Thor estivesse com seu martelo. Essa quebra de expectativa é um provável recurso mnemônico que permitia a perpetuação de uma dada narrativa por meio de elementos marcantes caraterizados justamente, por exemplo, pela falta de um elemento chave - no caso, Mjolnir – que se faz, pela ausência, ser notado (TAGGART, 2015, p.49-51). A expectativa se mantém quebrada conforme a estória é narrada e descobrimos que Thor acaba por matar Geirröðr atirando nele um pedaço de ferro, e não fazendo uso do martelo que, normalmente, cumpriria essa função. No entanto, podemos dizer que a própria ausência de Mjolnir é que confere a força e essência da narrativa, pois Thor se vê, nesse caso, obrigado a fazer uso de outra arma que não o seu martelo. A falta do martelo nessa situação acaba por advogar, de maneira irônica, em prol da sua significância como típica arma do deus do trovão e com a qual ele é capaz de eliminar a raça dos gigantes. Partindo para a Edda Poética, começamos já com a constatação de que não há a

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presença do martelo no poema Hárbarðsljóð. Aqui, ao contrário dos casos anteriores, não existem elementos que permitam pensarmos a ausência de Mjolnir como um aparato que termine por destacar sua significância. É provável que isso aconteça por ser, o poema em questão, não uma narrativa mitológica com começo, meio e fim, mas a construção de um duelo verbal entre Thor e Odin - este, disfarçado de balseiro – (SIMEK, 2007, p. 130) em que, conforme afirma Lindow (1996, p.19), os dois deuses são ordenados e constrastados. Ainda assim, em meio a essa dita disputa verbal e na tentativa de destacar seus feitos, Thor acaba por elencar diversos gigantes que matou, mas curiosamente não cita seu martelo. Também é provável que Mjolnir não tenha sido citado por Thor como a arma responsável por matar os gigantes por ser este um fato sabido – e quiçá óbvio – para a audiência da época, algo que, ao considerarmos a presença maciça do martelo em outros contextos, é perfeitamente possível. Na Hymiskviða, o martelo não apenas volta a aparecer, como resgata sua função de servir enquanto arma do deus do trovão. Ele funciona dessa maneira em dois momentos distintos da narrativa: primeiro, quando, no momento da pesca, Thor faz uso de seu martelo na tentativa de atingir Jörmunganðr; e, em seguida, elimina uma horda inteira de gigantes fazendo uso de Mjolnir. Notamos, então, que tanto na versão desse mito que consta na Hymiskviða, quanto daquela disposta por Snorri Sturluson na Edda em Prosa, a significância e as atribuições do martelo foram mantidas as mesmas. Isso nos demonstra que o conceito semântico em torno de Mjolnir – ou seja, de sua operacionalidade de arma, de ferramenta bélica - era tão forte e consolidado que se manteve preservado mesmo em variantes distintas da mesma narrativa. O simbolismo do martelo encontra seu ápice polissêmico no poema Þrymskviða. Aqui, encontramos diversos significados que envolvem diferentes perspectivas a seu respeito. O próprio fato de que toda a narrativa se desenrola por conta do sumiço do martelo de Thor e em sua jornada para recuperá-lo já afirma por si só a importância desse artefato. O próprio Thor, ao notar o sumiço de Mjolnir e tomar conhecimento de que a exigência para reavê-lo era oferecer a deusa Freyja em casamento ao gigante, não poupa tempo em pedir para que a deusa se entregue, coisa que teria acontecido caso a mesma não tivesse se recusado com veemência (LARRINGTON, 2014, p.95). Thor se traveste de noiva, visando ludibriar o gigante. Conforme a cerimônia de casamento prossegue a narrativa nos conta como, no momento de abençoar a “noiva”, o martelo é posto em seu colo para abençoa-la e para consagrar a cerimônia – talvez visando, também, garantir sua fertilidade -. É certo que, a todo o momento, Thor age como se soubesse

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que esse ato era parte indissociável do ritual e que, portanto, o martelo seria entregue a ele em alguma altura da cerimônia, podendo, dessa maneira, reavê-lo. Assumir essas conotações do martelo tal qual constam em Þrymskviða implicaria em lidar com significados que não se manifestaram em nenhuma das outras fontes aqui analisadas: trata-se de um caso único, isolado (considerando nosso corpus e recorte de pesquisa), em que Mjolnir mostra-se conectado à consagração e benção de casamentos e, também, à fertilidade. A polêmica levantada por essa questão ainda nos faz evitar qualquer conclusão mais segura. Por um lado, conforme já abordamos, Davidson (1990, p.80) retoma algumas inscrições da Idade do Bronze em que figuras humanoides erguem um martelo, parecendo estar em algum tipo de ritual matrimonial. Segundo a autora, mesmo havendo um considerável lapso temporal entre a Idade do Bronze e a Era Viking, é possível que tal prática tenha se estendido até esse período. Como, na Era Viking, há indícios do uso de um martelo para consagrar nascimentos – inserir simbolicamente o novo indivíduo na comunidade – e em funerais, não há motivos para de descartar a possibilidade de um uso similar em contextos matrimoniais. Langer (2015, p.508) também alega a existência de elementos mitológicos e religiosos genuinamente pré-cristãos no poema. Dessa forma, é possível que existissem crenças e práticas que de fato relacionassem o martelo às questões de matrimônio e fertilidade de noiva e que poderiam, então, ter perdurado e continuado a circular até o momento de escrita do poema, ainda que com menos força. Frog (2014; 2011) apresenta uma visão diametralmente distinta das anteriores, alegando a necessidade de um olhar cético para o poema em questão. Ao comparar a narrativa da Þrymskviða com estórias de temáticas similares envolvendo deuses do trovão da região circum-báltica (Letônia, Lituânia, Estônia, Finlândia, Sápmi), o autor argumenta que o poema em questão foi um produto tardio, uma narrativa burlesca tematicamente “isolada” que estaria, então, desconectada de crenças da época pré-cristã da Escandinávia e não revelaria nenhuma espécie de mito convencional. Segundo ele, deparamo-nos, em Þrymskviða, com uma composição tardia que teria começado a circular após a Era Viking, sendo muito mais uma balada folclórica medieval do que uma poesia eddica propriamente dita (FROG, 2011, p.147). Se for esse o caso, devemos examinar os atributos do martelo nesse poema com certas ressalvas, ainda mais considerando que este de fato trate-se do único contexto em que ele surja relacionado à fertilidade e à benção ritualística do matrimônio. Conforme dito anteriormente, entre os sámis e finlandeses o martelo da divindade do trovão recebe muito menos menções do que no caso nórdico. Ao que tudo indica, o deus

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Horagalles costumava ser representado nas ilustrações de tambores portando dois martelos de tamanhos diferentes, um em cada mão. Os missionários Thomas von Westen e Johan Randulf reproduziram o desenho181, mas, ainda assim, carecemos de maiores explicações. Nesse sentido, Turville-Petre (1975, p.84) defende que, segundo a crença sámi, um dos martelos serviria para criar/invocar os raios, ventos e trovões, enquanto que, com o outro, ele poderia direcioná-los para onde desejasse. Caso a explicação do autor esteja certa, trataria-se de um vínculo entre o martelo de Horagalles e os raios e outros fenômenos meteorológicos; contudo, lembremos que a ilustração do tambor não manifesta de maneira explícita nenhum desses fenômenos, que devem, portanto, permanecer uma conjectura. Knud Leem, em seu manuscrito Nærøymanuskriptet, afirma que o deus era posicionado nos tambores próximo à suástica182, que pode ser formada pela junção de dois martelos cruzados. Embora plausível, tal afirmação pode ser problemática, considerando que estas podem ser representações da suástica feitas pelos povos sámi que não tenham, necessariamente, conexões com o simbolismo do martelo pertencente ao deus do trovão, algo que, conforme vimos segundo Langer (2010, p. 8-9), é possível. Mais estudos sobre o assunto são necessários para que se entenda se essas representações da suástica estão mais ligadas ao simbolismo solar do que ao martelo do deus do trovão, por exemplo. Por fim, outro missionário, dessa vez Samuel Rheen, alega ter visto em Kvikkjokk diversas estátuas juntas, representando o deus do trovão, portando todas pequenos martelos em suas mãos183. O problema com esta e todas as outras fontes sobre os sámi que analisamos até agora, é que elas se tratam de conteúdos iconográficos, e não literários – como será em Schefferus -, deixando poucas informações dispostas e muita margem para interpretações. Contudo, o que as ilustrações trazidas por Rheen têm em comum com os outros dois relatos de missionários, é que nunca há um único martelo. Segundo Rheen, várias estátuas de Horagalles ficam juntas, cada uma portando um martelo; Knud Leem reproduz um desenho semelhante à suástica que pode ser composto por dois martelos cruzados; Thomas von Westen e Johan Randulf também reproduzem ilustrações de tambores sámi onde percebemos a divindade do trovão segurando dois martelos, um em cada mão. Trata-se de uma peculiaridade extremamente marcante que não possui paralelos entre os nórdicos e Thor. Partindo para a Lapponia de Schefferus, a fonte escrita que temos para analisar a respeito, encontramos informações um pouco mais concretas, apesar de pontuais. O autor

181 Ilustração reproduzida na página 103. 182 Ilustração reproduzida na página 103. 183 Ilustração reproduzida na página 159. 176

atribui a Horagalles o martelo chamado Aijeke Wetfchera, com o qual eliminava as entidades malignas ao esmagar seus cérebros. Por um lado, identificamos um grande paralelo com o principal uso que Thor fazia de seu martelo nas narrativas mitológicas. Por outro lado, e de modo paradoxal, essa própria semelhança com o deus nórdico, disposta de maneira tão clara e pontual, levanta suspeitas. É importante mantermos em mente que Schefferus foi um teórico de gabinete que nunca esteve presente entre os povos sámi em suas comunidades (COLLINDER, 1949, p.221); e do caráter etnocêntrico de sua obra, que enxergava, na figura dos povos sámi, o próprio passado primitivo, iletrado, a-civilizado e pagão que um dia havia pertencido a todos os escandinavos (NORDIN; OJALA, 2017, p.10). Exemplo claro disso, conforme vimos, é que por diversas vezes Schefferus chama o deus sámi dos trovões de Thor ou Tor. Para averiguarmos o quanto de verdade reside na informação do autor sobre o Aijeke Wetfchera, seria necessário um estudo comparativo envolvendo mais fontes, buscando se nelas esse artefato também existe. O caso finlandês nos fornece ainda menos informações. Agricola não atribui nenhuma arma a Ukko, mesmo mencionando outros objetos que teoricamente a ele pertencem, como a “taça de Ukko” e a “cesta de Ukko”, que de fato possuem correspondências na cultura material, conforme apontado por Holmberg (1964, p.229). O martelo também não aparece conectado a Ukko na Kalevala de Lönnrot, o que nos faz pensar se, nas runo songs coletadas pelo autor o martelo de fato não existia, ou se ele foi simplesmente omitido no momento de composição do épico. A comparação com outras fontes para o estudo da mitologia finlandesa – que não foram, no presente trabalho, analisadas ostensivamente -, como a poesia oral, os lamentos e as tietäjä, apontam para uma relação entre Ukko e os pregos, o estilhaçamento de árvores, a pulverização de pedras e a ajuda na caça, todas ações que remetem a prováveis conexões com martelo. Ainda assim, o assunto certamente merece maior desdobramento e atenção antes que se possa afirmar algo com mais segurança. No que concerne o martelo dos deuses do trovão, o que podemos afirmar em tom mais conclusivo, portanto, é que: 1) Thor aparece muito mais relacionado ao martelo de maneira explícita do que os outros deuses; 2) Dispomos, no caso dos nórdicos; de narrativas mitológicas envolvendo o martelo, enquanto que nos outros casos há meras menções aos mesmos, ainda mais confusas, fragmentadas e problemáticas; 3) No caso sámi, quando Schefferus descreve o martelo de Horagalles/Aijeke e suas

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propriedades, é possível que estivesse usando como modelo o caso nórdico de Thor sem que isso correspondesse necessariamente à realidade; no entanto, vestígios de outras fontes, como as ilustrações em tambores, apontam para a existência de um simbolismo sagrado do martelo entre esses povos; 4) Há relatos de um martelo pertencente ao deus finlandês Ukko, que sobrevivem em tradições folclóricas, mas que por algum motivo foram omitidos tanto dos escritos de Agricola quanto da epopeia de Lönnrot; 5) A principal atribuição ao martelo é, sem dúvida, o de arma com a qual o deus do trovão é responsável por eliminar seus inimigos (Lapponia; Hymiskviða; Þrymskviða; Haustlöng; Skáldskaparmál; Gylfaginning); 6) Em menor escala, também são conferidas ao martelo propriedades relacionadas à fertilidade (Þrymskviða), à ressuscitação (Gylfaginning), à consagração de casamentos (Þrymskviða), à funções criativas (Gylfaginning) e, por vezes, faz alusões ao raio (Skáldskaparmál; Haustlöng) e ao ato de pulverizar (tradições do folclore finlandês; Lapponia; Gylfaginning); 7) Por vezes, Thor executa alguns atos ligados ao item anterior, mas sem fazer qualquer uso do martelo, como quando exerce funções cosmogônico-criativas sem utilizá-lo (Skáldskaparmál); se vangloria do número de gigantes que já matou, sem mencionar tê-lo feito com a arma em questão (Hárbarðsljóð) ou quando os mata, de fato, fazendo uso explícito de outro objeto (Thor vs. Geirröðr, no Skáldskaparmál); 8) Por fim, também no caso específico de Thor, nas narrativas mitológicas em que o martelo não aparece, sua ausência é marcante e se faz tema central do enredo, o que destaca sua importância (Thor vs. Geirröðr, no Skáldskaparmál; Þrymskviða), ao contrário de Ukko, que também está presente em densas narrativas mitológicas (conforme suas aparições na Kalevala, por exemplo), mas cuja ausência completa do martelo não aponta para qualquer quebra de expectativa de uma audiência que esperasse vê-lo acompanhado de tal arma, ou seja, no caso do deus finlandês a falta de seu martelo não parece constituir nenhuma estratégia narrativa que vise destacar ou apontar seu absentismo como parte temática do enredo. As atribuições do martelo podem ser visualidas (e mensuradas, talvez), então, da seguinte forma:

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Esquema I: As funções e significações do martelo de acordo com o número de vezes em que aparecem nas fontes.

Conforme se nota, o núcleo semântico em torno do martelo está fortemente relacionado ao seu papel bélico como arma propriamente dita. Também, como era de se esperar, sua função de instrumento pulverizador – seja de criaturas vivas, seja de objetos – aparece nas fontes de maneira igualmente considerável. Outros significados são pontuais, como o emprego do martelo para consagrar o casamento, abençoar a noiva e conferi-la fertilidade (Þrymskviða); ou então permitem que se visualize certo vínculo entre ele e os raios, como nas duas diferentes versões do embate de Thor contra Hrungnir (Skáldskaparmál; Hrungnir). Mjolnir também aparece, em casos isolados, exercendo funções criativas (as montanhas nascidas a partir da pancada do martelo na suposta cabeça do gigante, no episódio de Utgarða-Loki) e ressuscitadoras (quando traz seus bodes de volta à vida no Gylfaginning).

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3.3 Papéis, poderes e atributos dos deuses: convergências e divergências

Neste subcapítulo, nosso intuito é o de evidenciar de maneira definitiva, tanto quanto possível, aquele que é o objetivo primeiro e principal da investigação por nós proposta. Apresentaremos um panorama geral envolvendo os poderes, atributos e papéis que cada uma dessas divindades recebeu em suas respectivas fontes, esmiuçando alguns de seus aspectos quando necessário. Feito isso, oferecemos uma perspectiva comparativa que seja capaz de apontar para as convergências e divergências surgidas entre esses deuses no que diz respeito aos seus centros semânticos nas obras analisadas. Primeiramente, reunimos e sintetizamos os principais e mais presentes aspectos e atributos de Thor conforme retratados pelas fontes primárias. Gostaríamos de apresentá-los de maneira sistematizada na tabela que segue, comentando-a em sequência. O objetivo é evidenciarmos os centros semânticos recorrentes a respeito de cada divindade, conforme a proposta de Schjødt (2013). Esses centros semânticos são categorias de identificação dentro do discurso mítico/religioso para onde convergem e se agrupam significados a respeito de uma unidade mitológica, como uma divindade ou um ritual. Tais significados e sentidos passam a atuar como elementos caracterizadores e qualificadores dessa unidade, que passa, dessa forma, a ser prontamente reconhecida graças a eles. Esses significados passam a ser sempre esperados pela audiência da sociedade em que os mitos em questão circulam, esperando, dessas figuras (no caso dos deuses), que elas recorrentemente manifestem quase como que imanentes as características e significados que essa própria sociedade construiu em torno deles184 (SCHJØDT, 2013, p.12).

Mito Fonte primária Atributos destacados

Descrição/Apresentação Gylfaginning (Edda em Força/Inimigo dos gigantes feita ao deus Prosa) Jornada ao reino de Gylfaginning (Edda em Força/vitalidade/vigor; Útgarða-Loki Prosa) Proximidade com os

184 Também é importante ressaltar que, na caracterização dos deuses nórdicos, uma vez estabelecidos esses centros semânticos, eles viriam depois a se tornar resistentes a mudanças. Isso implica em afirmar que, se por um lado eles atuam como elementos caracterizadores de identidade que permitem a audiência reconhecer prontamente os sentidos e qualidades de uma unidade, por outro lado os centros semânticos atuam de maneira paralela restringindo e delimitando a representatividade narrativa das divindades (TAGGART, 2015, p.37). Uma exibição de força extrema vinda de Thor seria algo perfeitamente esperado, pois tal elemento constitui grande parte dos significados que compõem seu centro semântico, mesmo motivo que não permite, por exemplo, que Thor seja reconhecido como um deus da poesia e das artes, elementos estes estranhos à composição de sentidos em torno do deus. 180

humanos; Inimigo dos gigantes (apesar de não chegar a matar nenhum deles); Papel cosmogônico Pesca de Jörmunganðr Gylfaginning (Edda em Força/coragem; Prosa) Inimigo dos gigantes (especificamente da serpente) Apresentação de Skáldskaparmál (Edda em Inimigo/eliminador dos heiti/kenningar para se referir ao Prosa) gigantes; deus Defensor dos deuses e Homens Duelo contra Hrungnir, Skáldskaparmál (Edda em Inimigo dos gigantes; seguido pelo episódio com Prosa) Função Aurvandil criativa/cosmogônica; Força; Domínio do ar e atmosfera Haustlöng Poema escáldico, mas Fenômenos presente no Skáldskaparmál (Edda meteorológico/geológicos; em Prosa) Função criativa/cosmogônica; Inimigo dos gigantes; Raios/trovões. Duelo contra Geirröðr Skáldskaparmál (Edda em Inimigo/eliminador dos Prosa) gigantes; Agente cultural (relação com o trabalho dos ferreiros); Þrymskviða Edda Poética Inimigo/eliminador dos gigantes; Gênero (travestimento); Martelo para abençoar; Vitalidade/vigorosidade; Vulcanismo Hárbarðsljóð Edda Poética Eliminador de gigantes; Força; Proximidade com os camponeses. Hymskviða Edda Poética Eliminador de gigantes; Coragem; Força. Tabela 2: Principais atributos conferidos a Thor nas fontes primárias investigadas.

Na Edda em Prosa, obra de Snorri Sturluson, o vínculo entre Thor e os fenômenos meteorológicos sem dúvidas não é o que mais se destaca. A própria apresentação do deus, feita pelo autor no capítulo Gylfaginning, não se preocupa em evidenciar qualquer conexão entre ele e os raios ou trovões. Apesar de citar até mesmo o martelo Mjolnir e outros dos artefatos do deus, Snorri não aproveita essa oportunidade textual para apresentar à sua audiência, mesmo que de maneira sucinta, que Thor conecta-se à regência meteorológica ou 181

que se faça conhecido graças a algo nesse aspecto. E não podemos apontar essa omissão como falta de espaço ou conveniência, pois o autor aproveita para caracterizar Thor nesse momento como uma divindade de força extrema cuja principal tarefa é eliminar os gigantes com seu martelo. É possível que a caracterização elencada por Snorri esteja de fato preocupada em ressaltar ou os elementos qualificadores pelos quais Thor ainda era (re)conhecido e lembrado na Islândia do século XVII, ou em resumir, de fato, tudo o que em suas pesquisas ele havia encontrado sobre o deus, pesquisas essas que o teriam revelado o lado da força e da inimizade de Thor em relação aos gigantes. De qualquer maneira, o trovão, os raios e fenômenos afins não se mostraram importantes o bastante para Snorri a ponto de que os citasse em sua pequena introdução a Thor. Durante sua jornada a Útgarða-Loki, o deus nos propicia diversas pistas sobre outros de seus atributos. Sua proximidade para com os humanos, sustentando a posição de protetor destes, é inegável. No caminho, Thor é acolhido por um camponês e sua família, para quem esteve disposto a matar os próprios bodes para que os pudesse dar de comer a todos. E ressaltemos que, mesmo tendo sua ordem descumprida, fazendo com que um de seus bodes ficasse manco, Thor ainda assim não se vingou de maneira violenta, como é de se esperar de um deus em estado de ira. Se o fizesse, estaria violando por completo seu papel de protetor dos humanos. Posteriormente, já na companhia de Thialfi e Roskva, o grupo se depara com um gigante. Uma vez tendo ele dormido, Thor tenta abrir a bolsa de provisões do gigante, almejando pegar comida para todos, mas não consegue fazê-lo. Ele cai, então, em estado de fúria, fúria essa que de fato pode estar relacionada à percepção de que sua incrível força não foi o suficiente para abri-la, mas, por outro lado, também pode ser fruto da frustração ao constatar que havia falhado em prover comida para suas companhias humanas (LINDOW, 2000, p.176). Esta seria a outra manifestação simbólica, no episódio de Útgarða-Loki, do vínculo entre Thor e a comunidade humana, da qual ele era o protetor e o assegurador do bem-estar. Outro sentido presente em torno de Thor nessa narrativa, e que mais se destacam é sua rivalidade contra os gigantes. Ele tenta por três vezes afundar seu martelo na cabeça do primeiro gigante que encontram e, em seguida, apesar de ter sido avisado dos perigos em Útgarða-Loki, resolve mesmo assim continuar sua jornada rumo ao dito reino para provar sua superioridade frente a essa raça inimiga. Apesar de o deus não eliminar efetivamente nenhum deles nessa narrativa, há, sim, elementos indicadores dessa rivalidade que se fazem presentes.

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Há também uma curiosa função criativa exercida por Thor nesse mito, conforme destacado por Lindow (2000, p.181). Os três golpes que o deus desferiu na cabeça do gigante Skrymir, apesar de não terem atingido diretamente seu alvo graças a magias ilusórias das quais Thor foi alvo, acabaram resultando na criação de três montanhas. Talvez esse aspecto presente na jornada do deus Útgarða-Loki, por mais que o retratem como inapto para o mundo da magia, lhe conferem certa reivindicação como detentor de habilidades que também o permitem ser parcialmente criador do cosmos (LINDOW, 2000, p.181). Mas o seu atributo que mais se destaca nesse mito diz respeito à sua força e vitalidade, aspectos pelos quais o deus é tão conhecido em outras das fontes. É verdade que os acontecimentos em Útgarða-Loki tratam, grosso modo, de uma série de fracassos de Thor ao enfrentar desafios e obstáculos relacionados à força, satirização que levou autores como Frog (2014, p.138) e Davidson (1990, p.74) a defenderem que esse mito não pertencia a uma tradição verdadeiramente religiosa ou mítica. Aqui, encontramos o deus sendo constantemente humilhado por não conseguir atingir uma série de objetivos, quase todos relacionados à força. Lembremos que, ao término da narrativa, é revelado a Thor (e ao leitor) que todas as vitórias concecidas aos gigantes haviam sido atingidas por uso da mágica, âmbito ao qual Thor não pertence. Portanto, o mito não se tratava de evidenciar uma suposta fraqueza do deus no sentido físico. Aliás, não faria sentido que algo do tipo constasse na obra de Snorri, que já em sua introdução o autor alega ser Thor o mais forte e poderoso dos deuses (STURLUSON, 1995, p.22). No entanto, mesmo que o mito se trate de alguma espécie de paródia a Thor numa época em que o culto a ele não possuía mais grande relevância, é interessante notar quais foram as ferramentas escolhidas para satiriza-lo. Por que justamente a oposição força x fraqueza? Se a fraqueza de Thor é memorável – e risível - ao longo dessa narrativa, é precisamente devido ao fato de que, dos elementos constituintes do núcleo semântico do deus, é a força sobre-humana e excessiva que o caracteriza. Espera-se que Thor seja forte, pois fraqueza não é parte integrante de seu centro semântico (um breve olhar na tabela acima tornará isso explícito) e, assim, ao encontrarmos uma narrativa em que o deus é constantemente humilhado por conta de uma ausência de força e suposta fraqueza, o enredo torna-se memorável e inesperado justo por conta dessa quebra na expectativa em torno do deus. Tanto é que o próprio fim do episódio revela que somente a magia ilusória é capaz de enganar o deus, e não qualquer superioridade física de algum gigante em relação a ele: por meio de tal revelação é devolvido a Thor, então, o status de sua incrível – e ainda imbatível – força.

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Considerando o que acaba de ser exposto, não nos parece exagero afirmar que a característica mais ressaltada de Thor no episódio de Útgarða-Loki, embora de maneira negativa185, seja sua força extrema. Também há, conforme indicado, conteúdos relacionados a um pontual papel cosmogônico-criativo do deus, além de serem salientados seus laços de proteção para com a comunidade humana. Novamente, não há qualquer manifestação de um vínculo seu para com fenômenos meteorológicos. Ainda no Gylfaginning, o episódio da pesca de Jörmunganðr contribui ainda mais para que se evidencie o papel de Thor enquanto inimigo da raça dos gigantes. Seu único e principal objetivo era o de eliminá-la. Obviamente que, quase que como condição sine qua non para que tal embate ocorresse, Thor se mostra como corajoso, bravo, e faz, em seguida, uso de sua grande força para que conseguisse puxar para acima do nível d’água essa serpente cuja extensão era tamanha que, lembremos, circundava Midgard inteira. Há, mais uma vez, presença marcante de sua força extrema, desacompanhada de raios, trovões ou ventos. Movendo adiante para o segundo capítulo da Edda em Prosa, o Skáldskaparmál, Snorri concede uma lista de heiti/kenningar para se referirem a Thor. Também nessa parte constatamos que nenhuma das possíveis figuras de linguagem listadas pelo autor relaciona Thor a fenômenos atmosféricos de qualquer espécie. Ao invés disso, eles terminam por declarar uma vez mais sua função de protetor/defensor dos deuses e homens, além de inimigo e eliminador da raça dos gigantes. Nas poesias escáldicas buscadas por Snorri, ou não haviam heiti/kenningar relacionados à regência atmosférica, ou o autor, por algum motivo obscuro, resolveu não citá-los em sua lista. O mesmo acontece com sua super força, que também não foi mencionada como sendo constituinte dessas estratégias poéticas: trata-se de um dos poucos casos em que sua característica da extrema força não se faz presente. No próximo mito exposto no Skáldskaparmál, Thor duela contra Hrungnir e, em seguida, nos é narrado o episódio da estrela de Aurvandil. A própria razão-de-ser da narrativa nos revela um conhecido centro semântico do deus: seu papel como eliminador dos gigantes. John Lindow (2002, p.287) defende ser esta uma dentre tantas outras narrativas que consolidam Thor como entidade especializada em eliminar os gigantes. Além disso, Hrungnir é descrito como sendo o mais poderoso de sua raça. Ora, se Thor foi capaz de fazer frente ao gigante, enfrentá-lo e derrotá-lo 186, então logicamente que estão implícitos seu grande poder e

185 Por “maneira negativa”, referimo-nos ao fato de que sua força é evidenciada não ao atribuir narrativamente e de maneira direta a Thor feitos que exigem força sobre-humana, mas ao fazer parecer que, de maneira súbita, a força do deus aparentemente não era mais o suficiente. 186 Embora parte da vitória tenha sido graças a Thjálfi, seu escudeiro, que, além de ter eliminado com as próprias 184

força pois, do contrário, ou ele teria sido vencido pelo gigante, ou então o duelo não teria ocorrido. Ainda no contexto específico do momento do combate, pode ser que tenhamos uma alusão ao raio. Thor arremessa seu martelo, que vai de encontro à pedra amoleira arremessada pelo gigante. Do choque entre os dois objetos, faíscas são criadas. Como Mjolnir foi lançado, fez toda uma trajetória no ar e, ao chocar-se com a pedra de Hrungnir, produziu faíscas, pode ser que esta se trate de alguma concepção de raio sendo atirado por Thor. Ademais, como todo o episódio em questão se constrói outorgando ao deus, aos poucos, o domínio dos ares e da atmosfera187, é provável que realmente tenhamos aqui, de maneira mais clara e segura, o retrato de fenômenos meteorológicos regidos e controlados por Thor (LINDOW, 1996, p.17). Somada esta à segunda parte da narrativa, podemos identificar alguns motivos etnoastronômicos na figura de Thor, conforme proposto por Langer (2018, p.236-238). O dedo do gigante Aurvandil, ao ser transportado por Thor em uma cesta188, ficou para fora da mesma e congelou. O deus, em sequência, arremessa o dedo em direção ao céu, que se torna uma estrela conhecida como “o dedo de Aurvandil”. Trata-se novamente de uma reivindicação de Thor enquanto deus capaz de executar atos criativos e cosmogônicos; afinal, nessa parte da narrativa, o deus dá nascimento a nada menos que uma estrela. Além disso, é importante também frisar que Thor termina o duelo com uma lasca de pedra cravada em sua cabeça, motivo pelo qual busca a ajuda da feiticeira Groa. Se aliarmos a esse detalhe o fato de haverem estátuas de Thor retratadas com pregos na cabeça – algo que outros povos da região báltica, finlandesa e eslava também manifestavam em suas estátuas de deus do trovão -, podemos relacioná-lo à noção de prego cósmico, que seria um ponto fixo no céu, visível para povos do Norte do globo, conhecido hoje em dia por ser a estrela Polaris. mãos o parceiro de Hrungnir (uma espécie de boneco animado que havia sido construído a partir do barro) também foi o responsável por ludibriar o gigante com um falso conselho que possibilitaria que Thor o atingisse sem defesa.

187 “Então Hrungnir cravou o escudo embaixo de seus pés e ficou em cima dele, e segurou a pedra amoleira com as duas mãos. Em seguida ele viu raios e escutou trovões. Então ele viu Thor em sua fúria divina, viajando em enorme velocidade, ele balançou seu martelo e o arremessou em Hrungnir a uma grande distância” (STURLUSON, 1995, p.79, tradução nossa). 188 Gostaríamos de apontar um detalhe intrigante: em sua lista de 1555 d.C, Agricola menciona um “cesto” de Ukko que aparentemente está relacionado à fertilidade dos campos. Holmberg (1964, p.299) menciona um relato de inspeção eclesiástica escrito em 1670 que menciona Ukon vakat, ou seja, “cestas de Ukko”, levantando a hipótese de que realmente existiram essas cestas feitas visando alguma conexão ou vínculo com o deus dos trovões finlandês (provavelmente por alguma questão de fertilidade). Curiosamente, quando Thor performa um de seus atos cosmogônicos mais marcantes, a estrela criada a partir do dedo de Aurvandil, o deus o está transportando justamente dentro de uma cesta. Ou seja, se Ukko parece estar vinculado às cestas num contexto de fertilidade, Thor está conectado à cesta precisamente durante um ato criativo de sua parte. A semelhança é relevantíssima e ainda carece de estudos detalhados, visto que não encontramos nada sobre o tema – ao menos não nos idiomas a nós acessíveis -. 185

Essa estrela, conforme abordamos anteriormente, está relacionada a crenças cosmológicas dos povos da área circum-polar, que acreditavam na existência de um axis vertical sustentador do mundo: a estrela polar seria justamente o ponto fixo, elevado e central, que sustentaria essa crença. Portanto, sendo a Polaris percebida por esses povos como um axis, um “prego do mundo”, a existência das estátuas de Thor portando pregos na cabeça e a narrativa do deus contra o gigante Hrugnir - em que Thor termina com uma lasca de pedra cravada em sua cabeça – pode-se defender a existência de motivos astronômicos relacionados à figura de Thor (LANGER, 2018, p.237-238). Na versão dessa narrativa conforme o poema Haustlöng, diversos desses motivos se repetem. Também há a criação da estrela a partir do dedo de Aurvandil, revelando o papel cosmogônico de Thor; sua função de eliminar os gigantes, pois ainda trata-se de um duelo contra Hrungnir; sua aproximação com os humanos, já que está acompanhado de seu escudeiro Thjálfi; sua função de protetor dos deuses e homens e, por fim, há manifestações, ainda mais presentes do que na versão anterior do mito, de sua conexão com fenômenos atmosféricos e meteorológicos189. Embora seja inegável que diversos fenômenos meteorológicos e geológicos sejam descritos em Haustlöng (terremotos, deslizamentos de terra, trovões, erupções, chuvas de granizo), autores como Taggart (2017a) os enxergam com certo cetismo, alegando ser necessária cautela para não tirarmos conclusões precipitadas. O autor reconhece que no poema há de fato uma passagem fazendo alusão direta aos trovões, mas esta seria, segundo ele, uma descrição do barulho feito pela carruagem de Thor e nada que aponte para uma manifestação direta do trovão enquanto causado ou criado pelo deus (TAGGART, 2017a, p.103). Portanto, não se trata de negar que exista uma relação entre Thor e estes outros fenômenos ou calamidades naturais, principalmente em Haustlöng. O autor, contudo, defende veementemente que a ocorrência de tais fenômenos não os apontam enquanto pertencentes a algum domínio regido ou governado por Thor, funcionando, na verdade, como recursos narrativos utilizados pelos poetas para enfatizar à sua audiência o tamanho da força e dos poderes de Thor (TAGGART, 2017a, p.110) O fato de que no poema Haustlöng o deus Thor causa trovões, raios e desencadeia outros fenômenos naturais não permite alegarmos que se trate de uma alusão clara e segura a

189 “O filho de Iord [Thor] conduziu rumo ao jogo de ferro [batalha] e o caminho da lua [céu] trovejou abaixo dele”; “Todos os santuários de falcões [céus] começaram a queimar por conta do padrasto de [Thor] e o solo estava coberto de granizo”; “O irmão de Baldr [Thor] não poupou aquele ambicioso inimigo dos homens [Hrungnir]. Montanhas tremeram e pedras foram esmagadas; o céu, lá em cima, queimou” (STURLUSON, 1995, p.17, tradução nossa). 186

Thor como um “deus dos trovões”, mas simplesmente uma atestação do impacto que o poder, as dimensões e a força do deus exercem sobre o ambiente, algo que, inclusive, é pontualmente atribuído também à movimentação outros deuses (TAGGART, 2017a, p.115-116). Contudo, Davidson (1990, p.76) manifesta uma opinião diferente, dizendo que as manifestações de fenômenos naturais e calamidades presentes no poema indicam que a relação entre Thor e a violência das tempestades não estava de forma alguma esquecida na Islândia medieval, seja para Snorri, seja para sua audiência. Visando não descartar nenhuma das duas perspectivas, consideraremos esses aspectos no poema como estando relacionados tanto a uma relação entre Thor e os fenômenos naturais, quanto recursos ilustrativos de sua força e poder colossais. A última aparição de Thor na Edda em Prosa, seu duelo contra Geirröðr, o posiciona uma vez mais como inimigo definitivo dos gigantes – e, mais especificamente no caso dessa narrativa, também de gigantas -. Sua força também se destaca, visto que o deus acaba por vencer todos os seus inimigos, mesmo desprovido de seu martelo. O que torna essa narrativa distinta das outras é o papel de Thor como uma espécie de agente cultural conectado ao trabalho do ferreiro. Lembremos que, quando o deus vê o pedaço de ferro fervente, que havia sido arremessado pelo gigante, vindo em sua direção, ele consegue agarrá-lo e arremessá-lo de volta ao gigante, matando-o no ato. É possível que esteja sendo representada, nos moldes dessa narrativa, a superioridade de Thor no que diz respeito à sua relação com os metais e demais tecnologias necessárias para o trabalho na forja. Em outras palavras, se Geirrödr encarnava uma espécie de ferreiro, Thor provou ser um ferreiro ainda melhor e detentor, portanto, também desse domínio. Se somarmos a isso o fato de que na versão desse mito em Þórsdrapa Thor é descrito surgindo misteriosamente com seu martelo após matar o gigante, pode ser que o poeta esteja sugerindo que o resgate do martelo tenha acontecido no salão de Geirröðr. Temos, portanto, o relato de que o martelo foi obtido de um ferreiro, apontando para possibilidades etiológicas no mito (FROG, 2014, p.139-140). Trata-se, aqui, de uma provável expressão de Thor enquanto agente cultural. Partindo para os poemas eddicos, comecemos pelo polêmico Þrymskviða. Nele, o principal motivo que fornece o desenrolar da narrativa é o rapto de seu martelo Mjolnir. Certamente que este se trata de um indicativo da importância do artefato em questão para Thor, assim como em tantas outras narrativas. Simultaneamente, esse fato evidencia uma vez mais a indelével inimizade entre o deus e essa raça – cujo ápice, ao término da narrativa, é quando Thor elimina todos os gigantes no recinto -. Também há indícios do enorme vigor do deus, que, mesmo vestido de noiva, não conseguiu controlar seu apetite voraz a ponto de

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quase entregar o disfarce. O vínculo do deus com trovões ou raios não está presente em Þrymskviða, mas, curiosamente, há uma relação do deus com um fenômeno análogo ao vulcanismo190. Ainda assim, o tema de maior destaque nesse mito permanece a transgressão de gênero (vestir-se de mulher) cometida por Thor. Curiosamente, essa da transgressão por parte deus, protagonista da estória e um dos ícones máximos de masculinidade nos mitos nórdicos, não possui nenhum paralelo, seja considerando o corpus nórdico de mitos de que dispomos, seja considerando tradições pré-cristãs de povos vizinhos (fínicos, sámis, bálticos)191. Esse fato nos faz pensar que a temática de gênero possa realmente se tratar, nesse caso, de um produto tardio, uma narrativa burlesca tematicamente “isolada” que estaria desconectada de crenças da época pré- cristã da Escandinávia e não revelaria nenhuma espécie de mito convencional no que diz respeito a Thor. Assim, é possível que a principal temática de Þrymskviða sequer seja o roubo do martelo de Thor (como acontece em narrativas de povos vizinhos), mas a humilhação de Thor por meio de diversas transgressões de gênero que, em plena Escandinávia medieval, seriam ultrajantes para um deus tão masculino e vigoroso (FROG, 2014, p.88). Levaremos em conta, contudo, os conteúdos semânticos em torno do deus nesse mito: conexão com o vulcanismo; inimigo e eliminador de gigantes; vigorosidade; transgressão de gênero e questões de masculinidade. Em Hárbarðsljóð, conforme dissemos anteriormente, não existe uma narrativa mitológica propriamente dita, mas um duelo verbal entre Thor e Odin – embora este esteja disfarçado -. O interessante detalhe que a análise desse poema pode nos oferecer é iluminar o quê, exatamente, o próprio Thor (obviamente que enquanto eu-lírico de algum poeta que pretendia, para efeitos literário-narrativos, se passar pelo deus) considerava serem seus mais importantes feitos e suas características mais marcantes. Trata-se, nesse sentido, de uma oportunidade única por conta desse viés: aqui, é Thor quem comunica à sua audiência aquilo que o define. Isto considerado, não nos surpreende que o deus se esforce, no poema, para se destacar principalmente enquanto o maior eliminador de gigantes que existe, além de se vangloriar, claro, de sua extrema força e poder. Essa busca de Thor por se mostrar, acima de tudo, como matador de gigantes (LINDOW, 2014, p.128), pode estar relacionada implicitamente ao seu papel como protetor

190 “Rapidamente os bodes foram conduzidos para casa,/apressou-se o arreio, eles estavam galopando rápido;/as montanhas partiram-se, a terra incendiou-se com fogo,/o filho de Odin estava conduzindo rumo à terra dos Gigantes (LARRINGTON, 2014, p.96). 191 Considerando especificamente Thor e outros deuses do trovão. 188

dos deuses e homens, mesmo que nas entrelinhas. Desejando que esse seu aspecto seja reconhecível, o deus também está almejando ser reconhecido como campeão dos deuses e protetor da comunidade humana: enquanto o em-si-mesmado Hárbarð (Odin) está mais preocupado em elencar as mulheres que seduziu e com quem se deitou. De fato, pode haver nesse poema a retratação de diferenças cultuais (SIMEK, 2007, p.130) relacionando Odin ao mundo aristocrático e Thor a questões populares, camponesas. Notemos também que, em sua tentativa de vencer o debate e mostrar-se capaz de poderosos feitos, Thor não menciona ao balseiro ser ele o governante dos ares, trovões e raios, algo que, nesse contexto e tendo o deus esse intuito, certamente seria digno de nota. Aparentemente, para o autor do poema, os feitos de Thor que poderiam ser inseridos em seu próprio discurso visando vencer o duelo verbal foram apenas aqueles em que o deus agia como protetor dos deuses e homens – ou seja, eliminando gigantes -. Trovões e raios, portanto, não figuram aqui como suas características definidoras. Por fim, o poema Hymskviða consiste em outra grande evidência em prol da função de Thor enquanto eliminador de gigantes. Nessa versão do mito, o deus parte em busca do caldeirão requisitado por Odin, mas termina por se deparar com a oportunidade de matar Jörmunganðr, com quem decide buscar um combate. A temática central da narrativa, porém, gira em torno de uma série de desafios relacionados à força e à coragem de Thor, que os supera bravamente: o gigante Hymir desafia Thor a conseguir isca para a pesca , ao que o deus responde trazendo a cabeça de um enorme touro; mais tarde, quando já estão no barco, Hymir diz que não ousaria ir mais longe, e Thor, mesmo assim, segue remando; depois que o deus arremessa a isca e a serpente a fisga, ele consegue puxá-la para a superfície e ainda atingi-la na cabeça com Mjolnir. Apesar de haver (novamente) a total ausência de fenômenos como raios e trovões, Hymskviða agrega ainda mais informações ao corpo de evidências que nos permitem relacionar Thor primordialmente à força e à coragem. O poema trata, essencialmente, de uma série de demonstrações de força e bravura por parte de Thor (TAGGART, 2015, p.66). Portanto, no que diz respeito a Thor e as características – atributos, poderes - que permeiam seu centro semântico, podemos dispo-lo da seguinte forma:

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Esquema 2: Os centros semânticos de Thor.

Conforme notamos, apesar do recorrente epíteto de “deus do trovão”, a regência dos ares, raios e do próprio fenômeno do trovão não é de forma alguma aquele que se mostra o elemento mais caracterizador do deus. Nas fontes primárias que analisamos, o vínculo entre Thor e os raios ou trovões se mostrou relativamente fraco e pontual, tendo sido por vezes omitido por completo. Imperaram, pelo contrário, as características relacionadas à sua força extrema; à sua proximidade para com a comunidade humana e o desejo de protege-la; sua coragem e incrível vigor. Em alguns poucos e específicos casos, o deus aparece relacionado a papéis cosmogônicos e criativos e, de maneira literalmente isolada, é mencionado cumprindo a função de agente cultural relacionado às atividades do ferreiro, e outra passando por uma transgressão de gênero. Há também certa relação, embora não muito forte – mas, presente – entre Thor e o desencadeamento de fenômenos naturais como terremotos, deslizamentos de terra, chuva de granizo e prováveis vulcanismos. O elemento caracterizador do deus, contudo, permanece sua força. Em seguida, partiremos para a análise dos centros semânticos que dizem respeito a Horagalles/Tiermes/Aijeke na obra Lapponia de Johannes Schefferus. Elencamos em uma tabela os trechos em que suas significações e atributos se fazem notar:

Trecho Atributos destacados “Aqueles que habitam a Lapônia (...) possuem seus Importância/relevância (hierárquica, talvez?)

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Deuses maiores e menores; os maiores, a quem Figura entre os “maiores” deuses prestam especial devoção são, Thor, Storjunkaren e o Sol” “(…) Havia três principais Deuses adorados pelos Importância/relevância: figura entre os “principais” Lapões; o primeiro é Thor, que significa trovão, deuses; chamado no dialeto Sueco de Thordoen, pelos Lapões propriamente ditos era chamado Tiermes, ou seja, Relação com o trovão e seus barulhos; qualquer coisa que produza barulho, algo que está Equiparado com Thor e Júpiter para ressaltar sua muito de acordo com a noção que os Romanos tinham de Júpiter, o trovoador (...)” relação com os trovões

“Esse Tiermes ou trovão, eles imaginam que (...) esteja Regência e criação dos trovões (de onde eles vivo nos céus; intimando, assim, aquele poder de onde “procedem”); os trovões procedem, ou enquanto deus dos trovões” Habita os céus “ É chamado Aijeke, que significa bisavô, ou tataravô, Visto como homem velho; (...)” “Esse Aijeke, quando faz trovejar, é chamado pelos Desencadeamento dos trovões Lapões de Tiermes”

“Tiermes ou Aijeke, acreditam os Lapões, possui poder Atua em questões de vida e doença, mas também de sobre a vida, a morte, e as doenças do homem e morte; também sobre os Demônios nocivos que frequentam as montanhas e rochas, quem ele frequentemente Inimigo de entidades malignas; castiga e às vezes destrói com seus raios” Usa raios como arma “ (...)eles também conferiam a ele um martelo, que Inimigo de entidades malignas chamavam de Aijeke Wetfchera, e com o qual esmagava o cérebro dos já mencionados espíritos malignos.”

“ (...) como os Lapões esperavam tantas bênçãos Confere vida e protege a saúde, mas também está vindas de seu Tiermes, e acreditavam que ele lhes relacionado à morte dos homens, se for essa sua conferia vida e preservava sua saúde, e que eles não poderiam morrer a não ser que fosse essa a sua vontade vontade” “ (...) ele espantava os Demônios, que eram Inimigo de entidades malignas; prejudiciais para a caça, o semear e a pesca” Protetor da comunidade humana “ (...) ele nunca os machucava [os lapões]a não ser que Temido pelos homens; o merecessem por meio de alguma ofensa, então Poderia machucá-los se houvesse sido ofendido; precisava ser adorado em primeiro lugar” Necessidade de adoração “A imagem de Thor era sempre feita de madeira (...) Prego na cabeça (axis mundi?); Em sua cabeça, cravam um prego de Ferro ou Aço, e Lasca/Pederneira/Fogo um pequeno pedaço de lasca que serve para atear fogo, se essa for a vontade. Apesar de que acredito que ela tenha sido usada a princípio como um emblema do fogo”

Tabela 3: os principais atributos de Horagalles na obra de Schefferus.

Percebemos que as informações elencadas a respeito de Horagalles chegam até nós de maneira muito mais direta e explícita do que aquelas encontradas acerca de Thor. Claro que 191

tal fato se dá devido à natureza das fontes. No caso nórdico, estamos lidando com fontes medievais que, apesar de suas falhas e problemáticas, nos narram dos mitos em si, enquanto que, no caso dos sámi, somos obrigados a lidar com uma fonte mais tardia, já do início da Idade Moderna, oriunda de um acadêmico que não nos traz o corpus de narrativas míticas compiladas de alguma maneira, mas que já oferece ao leitor a sua própria interpretação, o seu próprio olhar a respeito das informações por ele colhidas. No primeiro caso, então, temos acesso aos textos, enquanto que, no segundo, temos acesso apenas à interpretação dos textos. Feita essa ressalva, partamos para os atributos de Horagalles que saltaram aos olhos de Schefferus no momeno em que o acadêmico compilava dados sobre o deus. O primeiro aspecto que logo se sobressai quando começamos a reunir os trechos relacionados a Horagalles é que aparentemente o deus era de suma importância entre os sámi. Logo nas primeiras vezes em que Schefferus o menciona, isso é feito de modo a colocar explicitamente uma suposta hierarquia de deuses entre os sámi, hierarquia dentro da qual Horagalles detinha o posto de uma das principais entidades; ou, ao que tudo indica, a principal. É interessante também como Schefferus perpetua a imagem do deus fino-úgrico dos trovões como a de um homem velho, ancião. O autor associa o nome Aijeke às palavras “bisavô” ou “tataravô”. A informação nos parece um tanto quanto precisa, lembrando os aspectos evidenciados por Holmberg (1964, p.228), que identificou entre os diversos povos fino-úgricos a ocorrência de deuses do trovão concebidos como homens de idade avançada. Essa característica não só é comum entre os Sámi do Norte e os Sámi do Sul (com seu Aijeke e seu Horagalles, respectivamente192), mas igualmente entre os finlandeses (Ukko/Ukkonen, “avô”; Isänen, “pequeno pai”) e os estonianos (Äi, “homem velho”; Äikene, “pequeno homem velho”). Nesse aspecto, somos remetidos, muito provavelmente, a alguma antiga tradição fino-úgrica que estabeleceu a imagem de anciãos encarregados dos raios e trovões, e que de alguma maneira ainda ecoava e se fazia presente no momento em que Schefferus escreveu sua obra e colheu seu material. Assim como no caso de Thor, Horagalles aparentemente era visto como inimigo de entidades malignas e atuava eliminando-as com seu martelo, ou então com raios. O fato é citado três vezes por Schefferus. Essa rivalidade para com os “demônios” (assim chamados pelo autor) está também intrinsecamente ligada ao papel de Horagalles como protetor da

192 Apesar de o nome Aijeke conter, em sua raíz, esse significado de “ancião”, não é somente com essa identidade que tal fato aconteça. Também entre os Sámi do Sul, onde o deus é chamado Horagalles (ou Hovrengaellies), há a presença da mesma concepção. –Gaellies seria, também, uma palavra que significa “homem velho” (FROG, 2017a, p. 58). 192

comunidade humana. Se não se encarregasse de espantá-los, atividades essenciais para os sámi, como a pesca, a caça e o semear estariam ameaçadas, indicando um óbvio risco de colapso para suas siidas – pequenas comunidades -. Além de proteger tais atividades e garantir seu sucesso, o deus também possuía algum vínculo e regência de atuação sobre as doenças e a saúde dos homens, embora Schefferus não se debruce mais detalhadamente sobre o assunto. Nos parece, dessa maneira, que o deus estava relacionado de maneira muito próxima ao mundo humano de maneira geral, cuidando de questões do bem-estar comunitário e aos fatores que poderiam apresentar um risco a ele, como as supracitadas doença e a morte. Ao somarmos isso o fato de que o deus era igualmente responsável por eliminar as entidades malignas e mantê-las longe do homem, talvez encontremos, aqui, novamente a figura do deus do trovão protetor dos homens, sendo a estes muito caro. Outras fontes além da de Schefferus atestam igualmente que Horagalles estava relacionado à proteção dos homens e de sua comunidade, e que os sámi, inclusive, costumavam bater em seus tambores e invocar o deus do trovão para pedir por proteção contra entidades potencialmente malignas (HOLMBERG, 1964, p. 231). Contudo, há, nesse aspecto, uma diferença incontornável entre Thor e Horagalles. Apesar de ambos atuarem em prol da comunidade humana, visando protegê-la, Thor nunca parece ser temido pelos homens, ao contrário do deus sámi. Schefferus nos disse que Horagalles, além da saúde e da vida, pode também encarregar-se das doenças e da morte dos homens, “se fosse essa sua vontade”. Ainda em outro trecho é explicitado que ele “nunca os machuca a não ser que o mereçam por meio de alguma ofensa”, ou seja, há contextos, provavelmente relacionados a erros e desvios ritualísticos, em que era aceitável para o deus do trovão machucar ou causar mal aos homens de alguma maneira. Talvez intrinsecamente conectada a esse aspecto esteja a afirmação de Schefferus alegando que Horagalles deve ser “adorado em primeiro lugar”. Portanto, embora proteja a comunidade humana e esteja dela próxima, ao que tudo indica o deus sámi dos trovões era paralelamente visto com certo receio, certo medo. Uma ofensa ritualística a Horagalles poderia trazer morte e doença à comunidade, domínios que, como vimos, também eram regidos pelo deus. Nada seria mais estranho se pensarmos na figura de Thor: lembremos do erro ritualístico cometido por Thialfi, que viria a deixar um dos bodes do deus manco. Frente a esse erro Thor fica furioso e chega a empunhar seu martelo, mas não o usa. Caso se vingasse, estaria violando por completo seu papel de protetor dos

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humanos (LINDOW, 2000, p.173-174). Agora, se considerarmos as informações dispostas por Schefferus, seria plausível pensar em uma vingança se concretizando caso o deus em questão fosse Horagalles. Trata-se de uma importante diferença entre as divindades. Na visão sámi, apesar do deus dos trovões protegê-los, era viável que ele lhes causasse também algum mal em determinadas situações. Outra diferença, ainda mais exarcebada, é a do vínculo com os trovões, com os quais Horagalles sem dúvidas se conecta muito mais intensamente. Essa concepção já se inicia no momento em que Schefferus nos diz que Aijeke está vivo nos céus, onde o deus habita. Em seguida, o autor o nomeia com todas as palavras como um “deus do trovão” e nos conta que, para os sámi, é dele que os trovões procedem, ou seja, que ele claramente era visto como o originador, o criador dos trovões. Não dispomos de qualquer informação do tipo no caso de Thor, que o caracterize de maneira tão direta, certeira e clara como a divindade dos trovões193. No próprio momento de listar os diferentes teônimos do deus, Schefferus volta a mencionar os trovões como aspecto essencial da questão, dizendo que Aijeke, quando faz trovejar, é chamado pelos sámis de Tiermes. Trata-se novamente de elencar essa causalidade entre o ato de trovejar e o deus, responsável, então, por fazê-lo. Também ao enunciar a atuação do deus contra os demônios, Schefferus afirma que é por meio de seu raio que ele os elimina, ao contrário de Thor, cujas fontes, conforme vimos, nunca afirmam diretamente que o deus está atirando ou arremessando raios em direção aos inimigos, mas deixam apenas tímidas e pontuais alusões a tal ato. O vínculo de Horagalles com os raios e trovões, portanto, é muito mais forte e presente do que no caso do deus nórdico. Outro fator curioso é a menção à estátua de Horagalles com um prego cravado em sua cabeça, sendo provavelmente algum tipo de pederneira. Em seguida, Schefferus deixa aberta a possibilidade do uso ritual do fogo nessas estátuas e a ligação emblemática, então, entre essa divindade e o fogo. Hilda Davidson (1990, p.78) defende ser esse prego na cabeça da estátua uma lasca, uma espécie de pederneira – apesar de questionar se de fato ela teria sido usada ritualmente para fazer fogo -. Para a autora, esta pode se tratar de uma influência dos nórdicos, representando a narrativa mítica de Thor contra o gigante Hrungnir, conforme contado por Snorri Sturluson. De fato, parecem haver semelhanças. Dessa maneira,

193 Com exceção, talvez, da obra de Adão de Bremen, que descreve uma estátua de Thor no Templo de Uppsala e, em seguida, lista em termos estranhamente funcionais para a época as regências de Thor, atribuindo-lhe o governo dos trovões. A obra de Adão, contudo, apresenta uma série de problemáticas: o autor nunca esteve de fato em Uppsala e se baseou em relatos oferecidos por outros missionários da Igreja que haviam estado entre os nórdicos. Além disso, são detectáveis grandes influências clássicas em sua obra, rev elando que o autor teve, muito provavelmente, o deus romano Júpiter como modelo de inspiração. A respeito dessa crítica, ver Taggart (2015, p.113-119). 194

supostamente haveria uma conexão entre a lasca depositada na cabeça de Thor durante o conflito narrado no mito em questão, e a estátua de Horagalles com uma pederneira na cabeça. Assim, para os sámi, a cabeça do deus do trovão seria utilizada enquanto fonte ritualizada do fogo. A pederneira arremessada pelo gigante, ao encontrar-se com o martelo da divindade do trovão, seria a representação da ignição do fogo, encenado, também, pelo clarão dos raios. Mas de que maneira foi estabelecida essa conexão entre a narrativa mitológica dos nórdicos e as estátuas sámi? Muito provavelmente esta não se trata de uma questão difusionista. Uma vez mais traremos o estudo de Langer (2018), que aclarou o fato de que inúmeros povos de toda a Eurásia desenvolveram suas próprias representações acerca da estrela Polaris, o ponto fixo no céu. Especificamente nas áreas báltica, finlandesa, eslava e sámi, essas representações assumiram a forma de um prego cravado na cabeça do deus do trovão (LANGER, 2018, p.227-228). Assim, havia uma série de paralelos míticos presentes entre os povos nórdicos, bálticos e sámi no que diz respeito a deuses do trovão, fogo, pilares e pregos, conectando-os à estrela Polaris e, em última instância, às representações da axis mundi (LANGER, 2018, p.227-238). Clive Tolley (2009, p.275) não somente se alinha a esse aspecto, como também propõe que a estátua de Horagalles descrita por Schefferus pode estar associada a alguma tradição finlandesa segundo a qual o fogo teria se originado da montanha cósmica. O que podemos afirmar com certo grau de segurança é que parece haver, tanto no caso de Thor quanto no de Horagalles, uma conexão com a Polaris e a crença na axis mundi. Elaboremos, então, o centro semântico de Horagalles:

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Esquema 3: Os centros semânticos de Horagalles.

Notamos que no caso de Horagalles há um equilíbrio maior entre os diferentes atributos que são nele destacados. Os únicos que são menos mencionados são seu vínculo com a axis mundi – ao descrever sua estátua – e sua caracterização como homem velho. Ainda assim, até esses aspectos foram mencionados de maneira evidente e clara. O atributo do deus que mais se sobressai é justamente seu vínculo com os raios e trovões, que, segundo Schefferus, o deus controla, cria e deles até mesmo faz uso para eliminar entidades malignas. Aliás, o papel de Horagalles como inimigo de tais entidades é também elementar ao longo dos escritos em Lapponia. O deus também é protetor dos homens e de suas atividades em prol da comunidade – caça, pesca, semeadura -, e pode protegê-los de doença e conferir-lhes saúde; porém, se não for adorado devidamente, pode trazer doença e morte. Horagalles protege a humanidade, mas também é por ela temido. Por fim, elaboramos a tabela revelando os atributos do deus finlandês Ukko:

Fonte Trecho Atributos destacados Salmos de Davi (Mikael Agricola) “E quando o semear da primavera Regência de fenômenos estava pronto/então eles bebiam da meteorológicos (especificamente taça de Ukko/eles procuravam pela das chuvas); cesta de Ukko/e todos, jovens e Proporção de clima favorável; velhos, embriagavam-se./Tantos Fertilidade dos campos feitos vergonhosos/eram ouvidos e vistos/quando Rauni, esposa de Ukko, começava a borrifar./Ukko 196

trazia grandes chuvas do norte/que proporcionavam bons climas e novas colheitas”

Kalevala “o Homem Velho dos céus/ele que Identidade de um homem rege as nuvens e governa os velho/pai; vapores./Óh Homem Velho, deus Regência de fenômenos chefe/velho pai do céu/que fala por atmosféricos (vapores, nuvens, o meio das nuvens/e declara quando ar); o ar deve descer/me traga uma Proporciona arma relacionada ao espada de fogo/numa bainha de fogo; fogo/com a qual irei despedaçar Ajuda a vencer obstáculos barreiras” Kalevala “Homem Velho, regente das Identidade de um homem velho; nuvens/governante do vapor:/abra Regência de fenômenos os céus/ponha janelas por todo o atmosféricos (controle dos céus céu;/faça chover granizos de como um todo, granizos, gelo); ferro/derrube baldes de gelo/nas Inimigo de entidades malignas crinas do bom cavalo/nos flancos (demônio) da testa incendiada do Demônio!” Kalevala “Homem Velho no pilar do céu/na Identidade de um homem velho; beira das nuvens carregadas de Relação com um pilar cósmico trovão/venha aqui quando for (axis mundi?); necessário/tome seu caminho Regência de fenômenos quando for chamado/para desfazer atmosféricos (nuvens, trovões); feitos malignos/leve embora os Proporciona uma arma novamente infortúnios/com uma espada de relacionada ao fogo (flamejante); lâmina flamejante/com uma marca Protetor contra feitos malignos e de faísca!” infortúnios Kalevala Ilmatar, deitada no chão, é quem Identidade de um homem velho; performa os primeiros atos de “Sustentador do céu” (Axis criação cósmica, não sem implorar mundi?); ao deus supremo, Ukko, por ajuda: Ajuda Ilmatar no momento em que “Ó, Homem Velho, deus a deusa dá origem ao universo chefe/sustentador de todo o céu/venha aqui quando for preciso/venha para cá quando for chamado:/liberte uma moça de um lugar apertado/liberte uma mulher de contrações na barriga/venha rapidamente, chegue prontamente/imediatamente onde a necessidade está” Kalevala “Óh, Homem Velho, deus chefe/ou Identidade de um homem seja, pai celeste:/levante um banco velho/pai; de nuvens do noroeste/outro do Regência dos fenômenos leste/levante um terceiro do atmosféricos (nuvens, neve); oeste/levante um do Relação com pedras flamejantes nordeste;/empurre –os juntos lado a lado/choque-os um contra o outro;/chova neve até a altura de um bastão de esqui/arranque uma 197

estaca de profundidade/nessas pedras vermelhas e quentes/nesses rochedos flamejantes!” Kalevala “Óh, Homem Velho, bondoso Identidade de um homem velho; deus/cuidadoso homem dos Regência de fenômenos céus/guardião das nuvens atmosféricos (vapores, nuvens); tempestuosas/e regente dos Protetor de heróis em aventuras (no vapores:/crie um clima enevoado/e caso, Lemminkäinen) faça uma pequena nuvem/em cujo abrigo eu possa ir/e partir em direção ao lar/de volta para minha afável mãe/e em direção a meus honráveis pais” Tabela 4: Os principais atributos de Ukko nas fontes investigadas.

Um aspecto que logo salta a nossos olhos é o fato de que, com exceção do material elencado por Agricola, Ukko é portado como sendo um homem velho, ancião. Todas as suas aparições na Kalevala, sem exceção, o caracterizam dessa maneira e chegam até mesmo a evitar seu teônimo propriamente dito - Ukko -. Conforme abordamos anteriormente, tal caracterização do deus do trovão parece ser algo comum a diversos povos fino-úgricos (HOLMBERG, 1964, p.228). Além disso, em acréscimo a essa atribuição de ancião, alguns trechos da mesma obra o denominam como pai. Há duas possíveis explicações para isso, não necessariamente excludentes. Em primeiro lugar, a paternalidade atribuída a Ukko na Kalevala pode estar relacionada ao fato de que é a ele que recorrem os heróis em situação de perigo, principalmente os protagonistas Väinämoinen e Lemminkäinen. Todas as manifestações do deus do trovão na epopéia se dão em contextos em que sua ajuda é requisitada, quase que invocando sua intervenção. Igualmente relevante é notar que o deus nunca os deixa sem resposta, atuando conforme o que havia sido pedido e ajudando, portanto, na superação de obstáculos e desafios. Nesse sentido, a paternalidade atribuída a Ukko pode estar relacionada a qualificá-lo como aquele que interfere em prol de quem o invoca. O outro detalhe que pode contribuir para a construção dessa imagem de pai em torno da figura de Ukko é o fato de que Lönnrot o posicionou como espécie de deus supremo, senhor de todo o cosmos (HONKO, 1990, p. 9). Inclusive, em um dos trechos destacados por nós Ukko é chamado de “pai celeste”. Ainda nesse aspecto, em uma das versões do mito cosmogônico a deusa Ilmatar performa os primeiros atos de criação cósmica, porém não sem clamar pela intervenção de Ukko. Ora, se antes mesmo da criação do cosmos por parte de Ilmatar, Ukko já existia e é a ele quem a deusa dos ares pede ajuda; então o deus antecede a própria criação do universo da maneira como conhecemos. Incluindo Ukko no drama

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narrativo da cosmogonia, Lönnrot fez dele o deus soberano de todo o cosmos. Ademais, se Ilmatar era a deusa dos ares e Ukko, que a precedeu, era o deus dos trovões e do ar, é possível que ele fosse o pai de Ilmatar e tenha mesmo assim a fertilizado. Nesse caso, teríamos um mito cosmogônico que, como muitos outros, apresenta o tema mitológico de primordialidade do cosmos a partir de um incesto entre duas divindades que eram pai e filha (PENTIKÄINEN, 1999, p.138). Daí os prováveis motivos que fizeram Ukko ser chamado de e tido por pai ao longo da Kalevala. Nem Thor e tampouco Horagalles recebem esse tipo de conotação, apesar de Thor executar atos cosmogônicos em contextos pontuais, mas nada indica uma conotação de deus supremo – no sentido de criador do cosmos - a seu respeito. O deus também atua por diversas vezes como inimigo de entidades malignas – como o próprio demônio – e, sobretudo, como um protetor dos heróis ao longo de suas jornadas, salvando-os de perigos iminentes ou ajudando-os a cumprir suas tarefas. Embora seja problemático inferir que isso o torne um “protetor dos homens”, porque Väinämoinen, que recebe sua proteção, é repleto de traços divinos -, ainda assim podemos destacar suas intervenções como estando sempre destinadas a proteger os protagonistas/heróis, sejam humanos, sejam divinos, contra mazelas que podem cair sobre eles. Nesse sentido, essa função protetiva muito se assemelha aos traços de Thor e Horagalles. Contudo, dentre os três deuses, Horagalles parece ser o único que deve, simultaneamente à sua função de protetor, ser temido. Contudo, é importante apontar que nenhum desses supracitados aspectos de Ukko constam na lista de Agricola: nela, não perdura sua imagem de ancião ou de pai, seu papel de protetor contra mazelas e entidades malignas, ou qualquer função cosmogônica. Esse comparativismo interno das fontes finlandesas nos mostra de maneira explícita que a Kalevala de Lönnrot deve sempre ser lida com cautela. Além disso, na epopéia também constam duas menções que relacionam o deus a um suposto pilar cósmico, algo também ausente na lista de Agricola (nos deteremos a esse aspecto em alguns instantes). Ao compararmos as duas fontes primárias, notamos, como semelhança, que em ambas é atribuído a Ukko um poder relacionado à regência dos fenômenos atmosféricos. No caso da lista de Agricola, precisamos levar em conta que a presença da divindade finlandesa na lista de um autor cristão já no século XVI, centenas de anos após a Finlândia ter sido cristianizada, só poderia ser um testemunho ao poder e lugar de relevância que Ukko detinha entre o povo finlandês, principalmente no que diz respeito a questões climáticas e relacionadas à fertilidade

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dos campos. Ukko e o culto ao trovão seriam, portanto, de importância máxima na religião finlandesa pré-cristã, a ponto de seus ecos continuariem a ressoar ainda após a conversão desse povo ao cristianismo, que manteve vivo o vínculo entre o deus e os fenômenos climáticos. Consequentemente, se tomarmos a lista de Agricola como fonte fidedigna no que diz respeito aos atributos e regências de Ukko, diríamos que ele de fato trata-se de um deus dos trovões e das chuvas que, em última instância, acabava também por ser um deus da fertilidade dos campos (HOLMBERG, 1964, p. 228-229). Percebemos que esse forte vínculo entre Ukko e os fenômenos atmosféricos se manteve completamente presente na Kalevala. Todas as suas ações e intervenções são permeadas por um quê de deus supremo dos céus capaz de reger todos os fenômenos que nele ocorrem. Ao repararmos na tabela acima logo notaremos que, sempre que requisitado, o deus atua controlando da maneira que deseja as nuvens, tempestades, vapores, neblinas, gelo e os próprios trovões. Não há, na epopéia, qualquer aparição de Ukko que não o elenque, direta e explicitamente, como um deus dos céus, uma divindade climática. Considerando que a conexão do deus com as manifestações atmosféricas existia de forma clara já na lista de Agricola e se manteve forte ainda na Kalevala, talvez não seja arriscado dizer que o conceito de Ukko como deus relacionado às tempestades, trovões e etc., se manteve estável durante um longo período de tempo. Se, durante as onze viagens de Lönnrot para as províncias do norte e do leste finlandês, entre os anos de 1828 e 1844, ainda circulava em oralidade no meio campesino dessas regiões a ideia de um deus dos céus relacionado às manifestações climáticas (HONKO, 1969, p.9), então muito provavelmente há algum tipo de continuum conceitual e semântico no que diz respeito a tal aspecto da divindade. Além desse controle pleno da atmosfera, o poder e as ações de Ukko – que é infalível ao atender os pedidos de ajuda e intervir da maneira que havia sido requisitado – são todos indícios favoráveis a compreendermos o deus como um soberano de todo o cosmos. Como Agricola deixou claro, se tratando de uma divindade climática, Ukko, consequentemente, era também uma deus da fertilidade dos campos. Por algum motivo, essa ideia de ligação causal entre a regência dos fenômenos atmosféricos e a fertilidade dos campos não perdurou até o período da Kalevala. Nela, a única – embora extremamente relevante – intervenção de Ukko relacionada à fertilidade se dá no episódio com Ilmatar. Ainda assim, tal fertilidade não possui a conotação de uma fertilidade relacionada aos campos e colheitas (portanto, não pertence ao mundo campesino, como na lista de Agricola), mas a atos cosmogônicos em si. Embora ambos remetam à fertilidade, eles relacionam-se a fertilidades distintas.

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Talvez, já que a epopeia possui temáticas fortemente heróicas, não havia espaço para que, nela, se tratasse do assunto da fertilidade dos campos; as intervenções de Ukko, assim, destinavam-se a ajudar de alguma forma no desenrolar da narrativa dos heróis em questão, ajudando-os a cumprir suas tarefas e desafios. Pode ser que a omissão de Lönnrot ao tratar desse aspecto da fertilidade esteja relacionada à intenção de conferir à Ukko feitos relacionados ao heroísmo; da mesma maneira, também é possível que, no século XIX, apesar de ser lembrado como deus climático, o conceito de Ukko enquanto deus da fertilidade especificamente tenha sido esquecido ou enfraquecido, até porque a sociedade finladesa do século XIX obviamente não era mais tão fortemente campesina quanto havia sido na época de escrita da lista de Agricola, em torno de 1551 d.C. Foi por esse motivo, por exemplo, que Lönnrot precisou viajar para o interior do país, onde, em distritos pequenos e rurais, encontrava os runo singers (PENTIKÄINEN, 1999, p. 19-20). Outra interessante questão é que parece haver, na Kalevala, algum vínculo mais ou menos implícito entre o deus e a atividade da forja – e, portanto, à figura do ferreiro -. Em dois diferentes trechos é pedido a Ukko que traga uma arma: primeiro, uma “espada de fogo numa bainha de fogo” e, depois, “uma espada de lâmina flamejante/com uma marca de faísca”. É curioso notar que isso seja pedido a Ukko, ainda mais considerando que existe, na Kalevala, o poderosíssimo ferreiro mítico/divino Ilmarinen194. Por que, então, pedir tais armas a Ukko? Ele não apenas as traz, como as descrições delas apontam para vínculos fortes com a atividade da forja, como o fogo, a lâmina flamejante e marcas de faísca. Talvez tenhamos aqui algo semelhante a Thor no mito contra Geirröðr: ações conectando o deus à atividade da forja e atribuindo-lhe paralelamente a ação de um agente cultural encabido de certa etiologia, ou seja, de ensinar para a humanidade a atividade do forjar (FROG, 2014, p.139-140). Por fim, duas menções na Kalevala relacionam Ukko a uma possível concepção do deus como conectado à axis mundi, o pilar cósmico195. Em uma dessas vezes, o deus é chamado de “sustentador do céu”, e, na outra, de “Homem velho no pilar do céu”. Como vimos, trata-se, então, de um conceito comum tanto entre os nórdicos quanto entre os fínicos e os sámi: a crença de que o deus dos trovões sustentava os céus e mantinha alguma conexão com a abóbada celeste e o pilar cósmico – atuando, ao que tudo indica, como o próprio pilar -. Thor,

194 Embora autores como Unto Salo (2006, p.77) defendam que Ilmarinen e Ukko eram, a princípio, a mesma divindade. 195 Em finlandês, há o registro da expressão Ukon naula (pregos de Ukko), que também reafirmam a relação do deus com a ideia de pilar cósmico (LANGER, 2018, p. 237). 201

Ukko e Horagalles manifestaram, todos, traços que tornariam essa analogia muito provável. Parece-nos que as afirmações de Langer (2018c, p. 231) procedem e que, portanto, de fato circulava no norte europeu uma concepção comum que relacionava deuses do trovão à estrela Polaris, concepção essa que transponia as fronteiras étnicas e linguísticas da religião, fazendo-se presente tanto nas crenças de povos indo-europeus, como os nórdicos, como entre os fino-úgricos (sámis e fínicos). Portanto, as concepções semânticas envolvendo Ukko podem ser esquematizadas conforme segue:

Esquema 4: Os centros semânticos de Ukko.

Notamos que Ukko está muito menos relacionado às entidades malignas do que Thor e Horagalles: ao contrário dos dois, suas intervenções contra tais entidades não são diretas no sentido de eliminá-las com as próprias mãos; quando interfere nessas questões, é muito mais para se posicionar como um protetor do herói (Lemminkainen, Väinämoinen) do que como inimigo propriamente dito de tais entidades. Em contrapartida, o deus é, de longe, o que mais se relaciona com manifestações climáticas e a regência total dos fenômenos atmosféricos, algo que figura de maneira recorrente em todas as fontes sobre ele pesquisadas, muito mais do que nos casos de Thor e Horagalles. Suas funções criativas, diferentemente das de Thor, que tem papéis pontuais nesse quesito, estão relacionadas, em um dos materiais, com a própria criação do cosmos. A imagem do deus também é fortemente associada à de um homem velho, e, às vezes, à figura de uma espécie de deus pai. Houve uma menção específica a seu papel como responsável por trazer a fertilidade dos 202

campos na época de semeadura, mas essa função não perdurou na Kalevala. Assim como Thor, há traços em Ukko de um agente cultural relacionado com a etiologia do ferreiro e sua função. O deus não é temido como Horagalles e se alinha mais a Thor nesse aspecto, sendo um protetor dos homens e de sua comunidade. Por fim, todos os três deuses mostraram estar relacionados de alguma maneira com o conceito de axis mundi, possivelmente sendo vistos como representações do mesmo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa pesquisa visou se debruçar sobre as imagens e conceitos envolvendo algumas das divindades do trovão que circulavam no norte europeu – especificamente, das religiões nórdica, sámi e finlandesa pré-cristãs -. Para isso, selecionamos as principais fontes em que tais divindades figurem como protagonistas, as “isolamos” umas das outras para, primeiro, evidenciar seus significados e sentidos dentro de seus respectivos sistemas mítico-religiosos e, em seguida, as colocamos em perspectiva comparativa, na tentativa de ressaltar suas semelhanças e diferenças. Portanto, nossos objetivos eram evidenciar quais caracterizações e atributos foram conferidos a esses deuses em cada mitologia; ordenando e sistematizando, em seguida, quais traços se mostraram mais frequentes, marcantes e definidores a respeito de cada divindade; buscamos, também, descrever as funções e os papéis de suas armas – geralmente, martelos -; e, por fim, os colocamos em quadros comparativos para que as divergências e convergências no modo como cada deus era significado, conceituado e caracterizado pudessem ser vistas. No primeiro capítulo, oferecemos um breve panorama sobre os estudos prévios acerca do deus indo-europeu Thor e seu martelo, concentrando-nos, a seguir, em analisar suas funções na Edda Poética (nos poemas Hymiskviða; Þrymskviða e Hárbarðsljóð), na Edda em Prosa (Gylfaginning, Skáldskaparmál). No segundo capítulo, analisamos o papel das divindades fino-úgricas do trovão, o deus Horagalles/Aijeke/Tiermes, dos sámi, e Ukko, dos finlandeses. Os materiais selecionados foram a obra Lapponia de Johannes Schefferus, sobre os sámi, e, no caso finlandês, a lista de deuses do bispo Agricola e a epopeia Kalevala. Sempre que possível, fizemos a contextualização sócio-histórica e trouxemos a problemática de cada uma dessas fontes primárias. Nosso intuito era de que as diferenças e semelhanças entre esses deuses fossem se tornando explícitas conforme o leitor seguisse lendo as análises presentes nos dois primeiros capítulos, conferindo certa naturalidade ao evidenciamento dos fatos comparativos. Ainda assim, separamos o terceiro capítulo para tratarmos exclusiva – e ostensivamente – da questão comparativa em si, esforçando-nos para deixar os dados pós-comparação elencados de maneira tão clara quanto possível. Ao contrário do que costuma ser perpetuado tanto dentro dos muros acadêmicos quanto em seu exterior, Thor foi o deus que mostrou possuir os vínculos mais frágeis com os

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fenômenos naturais e a regência climática: colhemos, na melhor das hipóteses, informações que constituíam alusões potenciais aos raios e trovões. Com muito mais intensidade, o deus nórdico se mostrou como estando caracterizado por uma extrema força sobre-humana; portando-se como inimigo ferrenho da raça dos gigantes, eliminando-os sempre que a oportunidade surgia e mostrando-se um deus próximo aos humanos, atuando para protegê-los e providenciar seu bem-estar. Com menor frequência, Thor aparece relacionado a funções cosmogônicas – como a criação de montanhas, das ondas do mar ou de estrelas -; à figura e função culturais do ferreiro; e ao simbolismo da axis mundi. De maneira quase que incontornável, nos alinhamos aos argumentos de Taggart (2015), segundo o qual Thor era visto muito mais como um deus poderoso e forte do que como estando relacionado aos trovões. Já o deus Horagalles possui seus vínculos com os trovões citados de maneira muito mais explícita e direta. Assim como Thor, o deus sámi também atuava em prol da comunidade humana e era a ele quem pediam por intervenções em prol de caças, semeaduras e pescas favoráveis. Em meio a isso, Horagalles também termina por ser portado enquanto inimigo de “demônios” e “entidades malignas”, sendo responsável por eliminá-las. A diferença principal reside no fato de que, se por um lado podia conferir saúde, bem-estar e auxílio nas atividades comunitárias mais essenciais, por outro, ele deveria ser termido, já que, se fosse desagradado, podia trazer a doença e a morte. Não vemos esse elemento nem em Thor, nem em Ukko. Contudo, Horagalles está igualmente relacionado a possíveis simbolismos da axis mundi. Em consonância com o outro deus fino-úgrico, Ukko, Horagalles é descrito como sendo um homem velho, algo que não se mostrou um elemento caracterizador de Thor. Ukko é recorrentemente caracterizado, assim como Horagalles, como um ancião. Talvez esse de fato seja um aspecto fino-úgrico que nunca tenha chegado a influenciar as concepções de Thor. Além disso, o deus finlandês às vezes é referido como pai. Curiosamente, esta se mostrou ser, de longe, a divindade cujos vínculos com diversos fenômenos atmosféricos – dentre os quais se encontram raios e trovões - se fizeram mais presentes, frequentes e evidentes. Mais do que no caso de Horagalles e mais ainda se comparado a Thor. Ukko sem dúvidas merece a caracterização de um “deus do trovão” de maneira relavitamente segura, apesar de outros de seus atributos se destacarem, mesmo que com menor frequência. O deus aparece relacionado ao ato cosmogônico primordial, tendo atuando, então, como espécie de divindade suprema predecessora do próprio cosmos. Em consonância com Thor, Ukko também é amigo da comunidade humana e não necessita ser

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temido ou visto com cautela. Contudo, ao contrário do deus nórdico, suas intervenções contra entidades malignas nunca são diretas (não há relato do deus eliminando-as com as próprias mãos); mas se dão por meio de auxílios que o deus presta no momento em que é invocado, trazendo, geralmente, alguma ferramenta de auxílio que o herói utilizará contra seu inimigo, ou então interferindo nas condições climáticas, manipulando-as em prol daquele que por ele rogou. Nesse sentido ele atua, também, como um ferreiro, trazendo dos céus armas flamejantes que os personagens protagonistas se mostram incapazes de conseguir de outra maneira. O deus também foi elencado na obra de Agricola como estando próximo à comunidade humana e auxiliando na fertilidade dos campos por meio das chuvas que trazia. Em seu caso também há indícios de conexões com o simbolismo da axis mundi e da sustentação da abóbada celeste. Uma de nossas conclusões nos empurra justamente contra a teoria difusionista – e etnocêntrica – que imperou por muito tempo no campo de estudos das religiões nórdica, sámi e finlandesa. Quase todos os elementos mitológicos ou religiosos comuns a essas três religiões pré-cristãs eram explicados como tendo sido importados dos nórdicos pelos sámis ou finlandeses. Mas, se Thor tivesse sido, de fato, um deus do trovão importado dos nórdicos e depois ressignificado por esses outros povos, então por que os seus vínculos com os fenômenos atmosféricos são tão mais incertos e inseguros quando comparados aos de Ukko, por exemplo? Não deveria, sendo ele o deus trovão “original”, apresentar justamente uma forte caracterização enquanto regente dos trovões e da atmosfera? Ou, ainda, se o conceito de deus do trovão tiver se disseminado dos nórdicos para esses outros, então como se explica esse processo de enfraquecimento de seu vínculo com os trovões enquanto que os de Ukko e Horagalles se fortaleceram? Não encontramos nenhum estudo sobre essa questão. O que podemos dizer é que parece ter havido no norte Europeu a ampla circulação de conceitos comuns sobre divindades do trovão que eram próximas à comunidade humana e possuíam um papel elementar na defesa desta contra entidades malignas. Essa circulação não parece obedecer a enquadramentos étnicos e linguísticos, recusando-se a se limitar às delimitações Germânico-Escandinavas, Indo-Européias ou Fino-Úgricas, fazendo-se presente, assim, entre esses três povos e pedindo por olhares e recortes mais geográficos do que étnicos (DUBOIS, 1999, p.7). Seja por conta das interações e intercâmbios frequentes entre esses povos, seja por conta de necessidades ecológicas, culturais ou sociais peculiares a cada etnia, todos eles, em pleno norte europeu, apresentavam conceitos muito similares de seus deuses do trovão, bem como modos muito parecidos de agir em relação a eles.

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Apesar disso, é necessário apontarmos algumas lacunas incontornáveis que surgiram ao longo de nosso trabalho e que remetem a questões que precisam ser analisadas e levadas em conta antes que se traçem conclusões precipitadas. Claro que, paralelamente, tais lacunas terminam por apontar novas possibilidades de pesquisa. A primeira delas diz respeito à necessidade de que seja feito, sobre cada um desses deuses, um grande comparativismo interno. Trata-se de averiguar de maneira intensa e extensiva a aparição - e construção narrativa - de cada um desses deuses dentro de todas as fontes literárias que os portem, delineando o quão estáveis ou mutáveis eles se mantiveram enquanto conceitos ao longo dessas obras. É o que Schjødt (2017a, p.58) classifica como comparativismo de primeiro nível: quando são realizadas comparações dentro da área e das sociedades nórdicas (extrapolaremos aqui o “nórdicas” e incluiremos essa ideia de comparativismo também para os outros dois povos abordados por nós nesse trabalho). No caso de Thor, por exemplo, há uma série de fontes literárias que não foram incluídas em nossa investigação por uma questão de recorte: poemas eddicos em que o deus aparece, mas não é protagonista (Vǫluspá; Grímnismál; Skírnismál; Lokasenna); em partes da Heimskringla (Sagas dos Reis), como na Ynglinga saga e na Ólafs saga Tryggvassonar; e em inúmeras Íslendingasögur (Sagas de Família), como na Eyrbyggja saga, Njáls saga, Eiríks saga rauða; e, por fim, em algumas das Fornaldarsögur (Sagas Lendárias), como na Þorsteins þáttr bæjarmagn e na , isso para mencionar apenas algumas delas. Nesse caso, conduzir um comparativismo de primeiro nível, interno, seria fazer um levantamento descritivo e analítico da figura de Thor em todos esses materiais e em seguida compará-los, averiguando o que neles se mantém como elemento caracterizador do deus, e o que varia, se modifica ou se perde. Defenderemos aqui que o mesmo deve ser feito para os outros dois deuses, Ukko e Horagalles. Analisamos Ukko no material de Agricola, escrito em 1555 d.C, e na Kalevala, pertencente já ao século XIX. Como se pode perceber, é um lapso cronológico consideravelmente grande. Do século XV ao XIX, continuavam a circular narrativas em formato de oralidade, poesias folclóricas, lamentos, canções e entoamentos mágicos na tradição dos tietäjä, conteúdos esses que agora estão compilados, registrados e, em alguns casos, traduzidos (embora o acesso seja difícil). Essas fontes não apenas clareiam o modo como Ukko e sua relação com o raio podem ter continuado até chegarem na Kalevala, como ainda são consideradas as fontes mais fidedignas e potencialmente reveladoras de aspectos pré-cristãos dos finlandeses.

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O caso dos sámi e de Horagalles é um pouco mais complicado, visto que existem basicamente unicamente relatos de terceiros sobre esse povo e seu deus. Contudo, podem ainda ser considerados os relatos de Olaus Magnus (Historia de gentibus septentrionalibus, 1555 d.C), que foi uma das fontes de Johannes Schefferus, e a obra posterior do pastor luterano Lars Levi Laestadius, em seu Fragments of Lappish Mythology (1838-1840). Outro ponto importante que também aponta para novas possibilidades de pesquisa surge da imperatividade de alinhar os dados elucidados pelas fontes literárias a achados arqueológicos de suas respectivas regiões. Para escaparmos dos riscos de estarmos entrando em constructos literários, urge a necessidade de contrastarmos as informações com a arqueologia e a cultura material, localizando paralelos e pontos de encontro entre essas materiais de naturezas distintas, mas complementares. Uma vez encontrados paralelos entre as afirmações das fontes literárias e as revelações concretas advindas da cultura material, podemos defender com maior segurança que estamos nos aproximando de reconstruir este ou aquele aspecto das religiões pré-cristãs desses povos. O encontro com a arqueologia em nosso presente trabalho foi pontual, mas esperamos ter oferecido alguns dados de análise oriundos dos materiais literários que possam ser usados, no futuro, para somar informações a pesquisas arqueológicas. Por fim, apontamos que também seria de extrema relevância expandir não só os critérios supracitados, relacionados à profundidade do escopo da pesquisa, mas também aquele relacionado à amplitude. Se mantivéssemos os deuses do trovão como unidade comparativa, seria interessante colher dados de outros povos Indo-Europeus da região, como os germânicos, os saxões e os bálticos (lituanos, letões) e de outros Fino-Úgricos, como os estonianos, os ingrios, os vépsios, os khanty, os mansi, os mari, os mordovianos, os udmurtos, os komi, etc. Assim, poderiamos verificar até que ponto essas características dos deuses do trovão conectam-se a uma questão de cunho étnico-linguístico (são típicos dos Indo- Europeus? Ou então dos Fino-Úgricos?) ou se esse critério está mais ligado a questões geográficas (são manifestações comuns a povos árticos, independente da etnia? Esses traços são encontrandos na Europa continental?). As possibilidades de pesquisa são inúmeras. Nesse momento, ressaltamos o quanto esse campo de estudos envolvendo a reconstrução de religiões pré-cristãs possui imenso potencial para crescer no Brasil (como já vem crescendo, considerando nossa bibliografia em português). Gostaríamos também de estar trazendo com este trabalho uma inauguração, ainda que tímida, de estudos brasileiros dos povos Fino-Úgricos, que até o momento não eram

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abordados em nossas pesquisas - e que, até em solo Europeu, são minorias étnicas quase que via de regra marginalizadas -. Que possamos nos dedicar também a esses povos, suas religiões pré-cristãs, mitologias e folclores como nossos objetos de estudo e investigação nos anos que seguem.

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