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Dossiê Temático: Religião e estudos internacionais - Apresentação...... 2 Thematic Dossier: Religion and international studies – Introduction Dossier temático: Religión y relaciones internacionales – Presentación Fernando Neves da Costa Maia Tiago Rossi Marques

O olhar do Papa Francisco para o Sul Global: uma análise sobre o diálogo entre o Vaticano e a República Popular da China...... 7 The ’ view to Global South: an analysis about the dialogue between Vatican and Republic of China La mirada del Papa Francisco para el Sur Global: un análisis sobre el diálogo entre el Vaticano y la República Popular China Ana Beatriz da Costa Mangueira

A relação Estado-Igreja e o papel da religião nas relações internacionais da Rússia...... 15 The Church-State relations and the role of religion in Russia’s international relations La relación Estado-Iglesia y el papel de la religión en las relaciones internacionales de Rusia Luiz Felipe Dias Pereira

A Faith Diplomacy de Xi Jinping: as implicações político-religiosas do acordo provisório sobre a nomeação dos bispos católicos na China...... 24 Xi Jinping’s Faith Diplomacy: The Political-Religious Implications of the Interim Agreement on the Appointment of Catholic Bishops in China La diplomacia de fe de Xi Jinping: las implicaciones político-religiosas del acuerdo provisional sobre el nombramiento de los obispos católicos en China Anna Carletti

Guerra justa insuficiente: a ideia da paz justa na construção da paz pós-guerra no cristianismo...... 34 Insufficient just war: the idea of a just peace in post-conflict peacebuilding in Christianity Guerra justa insuficiente: la idea de una paz justa en la construcción de la paz posguerra en el cristianismo Joyce Kelly Costa Silva

Relações Internacionais e Religião: Frei Betto, a crítica do ateísmo do socialismo internacional e a construção da laicidade do socialismo cubano...... 42 International Relations and Religion: Frei Betto, criticizing the atheism of international socialism and building the secularism of Cuban socialism Relaciones internacionales y religión: Frei Betto, la crítica del ateísmo del socialismo internacional y la construcción de la laicidad del socialismo cubano Fábio Régio Bento 2 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.2 - 6, dez. 2019 2 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.2 - 6, dez. 2019 Apresentação

Dossiê Temático: Religião e estudos internacionais - Apresentação Thematic Dossier: Religion and international studies – Introduction

Dossier temático: Religión y relaciones internacionales – Presentación

Fernando Neves da Costa Maia1 Tiago Rossi Marques2

Recebido em: 20 de abril de 2020 Aceito em: 20 de abril de 2020 DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p2

O presente dossiê Religião e os estudos in- (TOFT; PHILPOTT; SHAH, 2011; COHEN ternacionais busca contribuir não apenas para a e LABORDE, 2016), da tolerância religiosa consolidação, mas também para o aprofunda- (STEPAN e TAYLOR, 2014), dos efeitos para mento do estudo sobre as conexões - e suas múl- pensarmos a ordem global (ESPOSITO e WA- tiplas ambivalências - entre religião e o fenô- TSON, 2000), dentre outros. A revista acadê- meno das relações internacionais. É importante mica Millennium: Journal of International Stu- notar que o campo de Relações Internacionais dies dedicou o número 3 do volume 29 do ano vem dedicando mais atenção a este objeto de 2000 inteiramente ao tema numa tentativa de estudo na esteira de um processo mais amplo ampliar as fronteiras do campo nesse sentido de incremento da influência política da religião como anotaram os editores Petito e Hatzopou- que pode ser percebido mais intensamente nos los (2000) na introdução do referido número. últimos cinquenta anos (TOFT; PHILPO- Enfim, as Relações Internacionais vem dando TT, SHAH, 2011). Uma pesquisa rápida nas provas do renovado interesse por esse estudo. livrarias virtuais dá conta da multiplicação de É possível, contudo, analisar o ressurgi- estudos que incorporam, por exemplo, pon- mento da influência política religiosa de uma tos de vista da economia política internacional outra perspectiva. Não se trata de negar tal (DREHER; SMITH, 2016), das liberdades fenômeno, mas considerar, assim como Toft, religiosas e minorias (HURD, 2015), da inter- Philpott e Shah (2011), que - em certa, mas seção entre religião, democracia e secularismo decisiva medida - ele acontece secundado pelos

1 Professor de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Rio de Janeiro, Brasil. Con- tato: [email protected]. ORCID: 0000-0002-8457-5332. 2 Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Belo Horizonte, Brasil. Contato: [email protected]. ORCID: 0000-0001-5179-4689. 3 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.2 - 6, dez. 2019 elementos que teóricos da secularização toma- Hurd tem um argumento a esse respeito que ram como causas do seu declínio. A democra- merece ser mencionado à guisa de ampliação tização social, o aumento do fluxo de pessoas do escopo dessa apresentação: e de informações, progressos tecnológicos, so- (…) somente com a ascensão da religião como bretudo nos meios de comunicação (TOFT; uma categoria genérica após a Reforma Pro- PHILPOTT, SHAH, 2011) são amostras dos testante que ela se tornou legalmente dispo- nível como uma categoria autônoma, domés- elementos tidos como limitadores do fenôme- tica e internacionalmente. [A] religião nunca no religioso e sua participação na esfera pública “deixou” a política ou as relações internacio- reivindicados pela tese da secularização. Toft, nais, mas assumiu diferentes formas e ocupou Philpott e Shah (2011) nos convidam a repen- diferentes espaços sob os modernos regimes de governança que são frequentemente tidos sar essa questão de um ponto de vista em que como seculares. Nem as religiões nem os ato- esses elementos, ao invés de limitar e diminuir res religiosos são agentes autônomos que po- a influência da religião no mundo político, dem ser analisados, quantificados , engajados, criaram justamente as condições para que ela se celebrados ou condenados - e divididos entre o bem e o mal. (HURD, 2015, p.19). manifestasse. Por essa tese, é possível sustentar, por exemplo, que a democracia formou uma Temos como associar a presença da reli- “(…) arena aberta onde nacionalistas hindus, gião com a presença de atores religiosos nos muçulmanos turcos e os religiosos cristãos de mais diferentes espaços da vida social. A reli- direita nos Estados Unidos podem comunicar gião não está fora da história e das instituições seus entendimentos e competir por poder.” sócio-políticas; não pode, portanto, ser isolada (TOFT; PHILPOTT, SHAH, 2011, p.7). da experiência humana (HURD, 2015). No Na esteira dos estudos de Peter Berger, entendimento de Toft, Philpott e Shah (2011), Toft, Philpott e Shah (2011) defendem a tese de um ator religioso é qualquer “(…) indivíduo, que a religião provavelmente continuará sendo grupo ou organização que adota crenças reli- (…) um modelador vital - e por vezes furio- giosas e que articula uma mensagem razoavel- so - da guerra, da paz, do terrorismo, da de- mente consistente e coerente sobre a relação mocracia, da teocracia, do autoritarismo, das entre religião e política.” (TOFT; PHILPOTT; identidades nacionais, do crescimento econô- mico e do desenvolvimento, da produtivida- SHAH, 2011, p.23). Nessa linha argumentati- de, do destino dos direitos humanos, das Na- va, é possível afirmar que a experiência humana ções Unidas, do aumento e diminuição das - repita-se: mesmo para quem trabalha com a populações, dos valores culturais com relação tese secular - acontece com base em algum con- à sexualidade, casamento, família, papel das mulheres, lealdade à nação e ao regime [polí- junto de ideias que determinada comunidade tico] e o caráter da educação (TOFT; PHIL- religiosa tem sobre autoridade política e justiça; POTT; SHAH, 2011, pp.7-8). ela acontece, portanto, a partir de uma teologia Quer concordemos, quer discordemos da política (TOFT; PHILPOTT; SHAH, 2011). tese lançada acima, o fato é que ela acena para Em termos mais precisos, teologia política é a noção de que a religião - mesmo quando se “(…) o conjunto de ideias que um ator religio- trabalha com a herança secular - é um elemen- so tem sobre o que é uma autoridade política to social generalizado e mais estabelecido do legítima.” (TOFT; PHILPOTT; SHAH, 2011, que geralmente supomos. Elizabeth Shakman p.27). Com base nisso é que se pode entender 4 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.2 - 6, dez. 2019 melhor as concepções seculares e pós-seculares não sem percalços, como apontado acima. Isto de mundo que orientam a comunidade política incluiria o sul global para além dos limites do há, pelo menos, alguns séculos. Ademais, esse “ocidente”, como aponta-nos Graham (2014, conceito nos permite pensar os diversos enqua- p. 237), em que países “como Brasil, China ou dramentos dos trabalhos deste dossiê. Índia, a religião continua a crescer sendo parte No processo de separação entre a esfera significativa na vida pública”. Este fenômeno Religiosa e a esfera Política, até a passagem do religioso, na medida em que pode vir a desem- século XIX para o século XX, constatou-se uma penhar alguma influência no esforço analítico forte tendência em se crer que o fenômeno re- produzido no campo dos Estudos Internacio- ligioso estaria fadado a um definitivo declínio nais, nos leva a indagar “se” e “de quais ma- social e público, influenciados por uma onda neiras”, seja direta ou indiretamente, colabora de secularização que legava a este fenômeno, para a formação teórica, paradigmática e ana- uma atuação minguada e exclusiva à esfera pri- lítica dentro dos Estudos Internacionais, num vada e particular, sem grandes incidências so- período marcado por aquilo que Scott M. Tho- bre a cultura e a vida pública. mas (2014) chamou de “virada religiosa”. Indo na contramão das predições advin- São nesses termos que buscamos aqui fo- das de teorias secularistas dos séculos passados mentar o debate em torno da Religião e das (TAYLOR, 2010), mas sem afirmar um reavi- Relações Internacionais, buscando levantar as vamento religioso em escala global, observou- formas e os meios, caso ocorram, pelos quais -se no “ocidente” o surgimento de um novo este “fenômeno” se tornaria partícipe do cam- fenômeno, num período intitulado de “Pós- po, seja em sua construção teórica, analítica ou -secular”, em que a religião demonstrou res- praxiológica. O número e a distinção de atores, surgimento, mas não sem declínio, mutação e abordagens, teorias e religiões envolvidas no resistência, retornando, porém, ao centro dos debate, convidam as mais diversas abordagens debates públicos, políticos e sociais, seja em para contribuir com a construção de conheci- âmbito nacional ou internacional (GRAHAM, mento sobre este tema. Os artigos que com- 2013). Nesse sentido, os estudos contempo- põem este dossiê cobrem amplo espectro de râneos das Ciências Humanas e Sociais, têm discussão a partir deste prisma, o qual intenta apontado para o retorno da religião ao centro lançar luz sobre questões que se depreendem dos debates acadêmicos e teóricos, ganhando das possíveis relações entre o “Político” e o “Re- cada vez mais “proeminência pública como um ligioso” no âmbito internacional. fator significante nas políticas globais e na so- Nesse sentido, o texto Relações Internacio- ciedade civil” (GRAHAM, 2014, p. 235). nais e Religião: Frei Betto, a crítica do ateísmo do Será neste debate Pós-Secularista, também socialismo internacional e a construção da laici- presente nos estudos das Relações Internacio- dade do socialismo cubano, busca apresentar o nais (PETITO; MAVELLI, 2014; WILSON movimento contestante de Frei Betto, partin- 2012), que está alocado a tese de que, seja em do de sua “militância internacional” estabelecia âmbito local, nacional ou global, a religião pode pelas vias do engajamento político e literário, vir a ser partícipe do desenvolvimento humano da associação entre o socialismo e o ateísmo ti- e de suas mais diversas organizações sociais – picamente vinculados ao arranjo dos “Estados 5 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.2 - 6, dez. 2019

Socialistas confessionais” em um “ateísmo de participação na nomeação episcopal dos bispos Estado”. Tem-se em vista o esforço de Frei Be- chineses, mesmo diante da histórica postura tto em favor da construção de um “paradigma contrária praticada pela China desde a procla- político de um socialismo pós-ateísta, laico”, mação da República e 1949, e da ruptura de em que se intenta demonstrar a não incompati- suas relações diplomáticas com o Vaticano em bilidade entre o aspecto religioso da experiência 1951. A análise feita aponta para um movimen- humana e o pensamento socialista e marxiano to de interesses que visam a criação de condições internacional. Para tanto, o argumento se de- mais favoráveis para a ampliação da colaboração senvolve a partir da atuação e da permeabilidade bilateral entre Santa Sé e Pequim, de maneira a de Betto em Cuba, bem como de seus esforços promover (I) a unidade da comunidade católica não tão exitosos nas demais partes do mundo na China e a legitimidade da Igreja Oficial, (II) socialista, perpassando sua trajetória desde os abrindo caminho para que os católicos chineses anos de 1980 até meados dos anos 2010. possam aderir aos projetos nacionalistas e labu- Em O olhar do Papa Francisco para o Sul tarem em prol do ressurgimento do país, (III) Global: uma análise sobre o diálogo entre o Va- além de proporcionar uma maior abertura para ticano e a República Popular da China, promo- a participação crítica dos cidadãos católicos na veu-se uma análise das ações e atuações do Papa construção da sociedade chinesa. Francisco em direção a uma intensificação do Por seu turno, o artigo Guerra justa insufi- diálogo entre o Vaticano e o governo da China. ciente: A ideia de paz justa na construção da paz Argumenta-se aqui que o olhar e as ações diplo- pós-guerra no cristianismo, ao concentrar no máticas do atual papado, dirigidos ao Sul Glo- campo de estudos intitulado de “construção bal, tem promovido um cenário de relações mais da paz religiosa”, propõe a exposição da “nova favoráveis naquela direção, em que se trafega de abordagem da paz justa” em contraposição um maior quadro de ruptura entre as partes, ao conceito de “guerra justa”, tendo em vista para aquele caracterizado por uma condição de a ideia de construção da paz pós-conflito em maior reconciliação. Isto seria possível mediante associação ao pensamento cristão. Para tanto, o estabelecimento do “Acordo Provisório Santa parte-se da ideia de que a religião, com enfo- Sé-China”, capaz de promover maiores movi- que no cristianismo, pode ser assimilada tanto mentos cooperativos na relação sino-vaticano, o como uma variável capaz de exercer influên- que demonstraria a capacidade do “Religioso” cia sobre as ações dos indivíduo, quanto tam- de exercer e desempenhar notório papel global bém de seu papel decisório nas dinâmicas de de influência nas dinâmicas do internacional. conflitos internacionais, especificamente, me- Seguindo na esteira da relação entre a San- diante a tarefa reconciliatória e de promoção ta Sé e o atual governo chinês, o artigo A Faith da paz pós-conflito em sociedades no cenário Diplomacy de Xi Jinping: as implicações político- global. A análise em questão intenta com isto -religiosas do acordo provisório sobre a nomeação demonstrar o potencial do aspecto “Religioso” dos bispos católicos na China visa identificar, a no internacional como um instrumento de partir de uma análise de Política Externa, as ra- paz, desafiando as abordagens que mobilizam zões pelas quais o governo de Pequim concedeu a variável religiosa a partir da ótica exclusiva ao Vaticano, mediante acordo, a permissão de da violência. 6 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.2 - 6, dez. 2019

Rumando em direção ao desfecho do pre- Referências sente dossiê, A relação Estado-Igreja e o papel da COHEN, Jean; LABORDE, Cécile (eds.). Religion, secular- religião nas relações internacionais da Rússia nos ism & constitutional democracy. New York: Columbia Uni- apresenta um pleito em favor do papel político versity Press, 2016. da religião, representada neste contexto pela Igre- DREHER, Sabine; SMITH, Peter (eds.). Religious activism ja Cristã Ortodoxa Russa, para com as análises de in the global economy: promoting, reforming or resisting neoliberal globalization?. London: Rowman & Littlefield, política externa e doméstica da Rússia contem- 2016. porânea, de maneira a não ser possível ignorá- ESPOSITO, John; WATSON, Michael (eds.). Religion and -la. A partir de uma revisão bibliográfica sobre o global order. Cardiff: University of Wales Press, 2000. tema, buscou-se a contextualização histórica no GRAHAM, Elaine. Between a Rock and a Hard Place: Pub- lic Theology in a Post-Secular Age. London: SCM Press, 2013. tocante a consolidação do cristianismo ortodo- GRAHAM, Elaine. Between a Rock and a Hard Place: Pub- xo como uma instituição politicamente ativa e lic Theology in a Post-Secular Age. Practical Theology, Vol. 7, adjunta do estado russo. Ademais, seria ela tam- No. 4, pp. 235-251, December 2014. bém expressiva em sua projeção de influência re- HURD, Elizabeth Shakman. Beyond religious freedom: the new global politics of religion. Princeton: Princeton University ligiosa mediante as relações estabelecidas entre o Press, 2015. Patriarcado de Moscou e os demais patriarcados PETITO, Fabio; HATZOPOULOS, Pavlos. “Silete Theologi difundidos por toda a Europa. Diferindo-se do in Munere Alieno: An Introduction”. Millennium, 29(3), iii– iv, 2000. contexto religioso ocidental em que se identifica PETITO, Fabio; MAVELLI, Luca (eds.). Towards a Postsecu- uma separação entre religião e a política pelas vias lar International Politics: New Forms of Community, Identi- dos processos típicos de “secularização”, e na me- ty, and Power. Basingstoke: Palgrave, 2014. dida em que ambas estabelecem interconexões na STEPAN, Alfred; TAYLOR, Charles (eds.). Boundaries of toleration. New York: Columbia University Press, 2014. sociedade russa e além fronteira, haveria aqui im- TAYLOR, Charles. Uma Era Secular. São Leopoldo: Unisi- portantes implicações para com a própria análise nos. 1 ed., 10 de outubro, 2010. da dinâmica mais abrangente entre o “Religioso” THOMAS, Scott M. The Religious Turn in the Study of In- e o “Político” no campo das Relações Internacio- ternational Relations. The Review of Faith & International Affairs, 12:4, pp.76-82, DOI:10.1080/15570274.2014.9760 nais. Nesse sentido, há de se averiguar também 90, 2014. os possíveis desdobramentos destas análises e im- TOFT, Monica Duffy; PHILPOTT, Daniel; SHAH, Samu- plicações sobre o “internacional”, incluindo aqui el. God’s century: resurgent religion and global politics. New York: W.W. Norton & Co., 2011. o entendimento sobre a própria natureza da po- WILSON, Erin K. After Secularism: Rethinking Religion in lítica internacional para além daquelas desenvol- Global Politics. New York: Palgrave Macmillan, 2012. vidas em associação com a ideia de “Ocidente”. Nossa leitura seria a de que não somente haveria aqui proficuidade na contribuição para com a produção acadêmica em torno da pro- posta e da temática apresentada neste ­dossiê, como também se abre, a partir disto, novos ca- minhos e possibilidades que nos levam a pros- seguir indagando quanto as instâncias, o cami- nho, o lugar e a importância do “Político” e do “Religioso” nos Estudos Internacionais. 7 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019 7 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019 Artigo

O olhar do Papa Francisco para o Sul Global: uma análise sobre o diálogo entre o Vaticano e a República Popular da China The Pope Francis’ view to Global South: an analysis about the dialogue between Vatican and Republic of China

La mirada del Papa Francisco para el Sur Global: un análisis sobre el diálogo entre el Vaticano y la República Popular China

Ana Beatriz da Costa Mangueira1

DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p7 Recebido em: 24 de agosto de 2018 Aceito em: 09 de junho de 2019

Resumo Este artigo analisa a atuação do Papa Francisco no diálogo entre o Vaticano e a Repú- blica Popular da China nos últimos dois anos do atual pontificado. Observa-se que o olhar do pontífice para o Sul Global colabora com esse diálogo, que sofreu ruptura na década de 1950. Palavras-chave: Papa Francisco. Vaticano. República Popular da China.

Abstract This paper aims to analyze the Pope Francis influence on the dialogue between the Vatican and the People’s Republic of China in the last two years. It is observed that the Pope’s view to Global South cooperates with this dialogue, which has been interrupted since 1950s. Keywords: Pope Francis. Vatican. Republic of China.

Resumen Este artículo examina la actuación del Papa Francisco en el diálogo entre el Vaticano y la República Popular China en los últimos dos años del pontificado actual. Se observa que la mirada del pontífice para el Sur Global contribuye para este diálogo, que sufrió una ruptura en la década de 1950. Palabras-clave: Papa Francisco. Vaticano. República Popular China.

1 Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI-UEPB). João Pessoa/Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3246-0058. 8 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019

Considerações Iniciais mundo”, para a “periferia” (CARLETTI, 2015, p. 218). A visão global do Papa Francisco, bem Durante parte significativa da evolução como suas origens e suas experiências como dos estudos sobre relações internacionais, acre- clérigo influenciam o modo como conduz a di- ditou-se que com o advento do secularismo a plomacia da Santa Sé. Para Almeida (2013, p. religião perdeu a sua atuação política no mun- 299), o atual Papa tem como propósito estabe- do. Para a visão secular, a influência global lecer a comunicação global. Assim, o pontífice da Igreja Católica, por exemplo, se extinguiu pode contribuir para transformações de tópicos (HAYNES, 2016, p. 28). Mas ao observar as mundiais que envolvem a Igreja Católica, so- atuações dessa instituição e do seu líder no bretudo os que são considerados mais delica- cenário internacional, se verifica justamente dos para a instituição, como o que se refere aos o oposto, pois esses atores continuam man- dissensos entre a República Popular da China tendo diálogos com outros, inclusive com os (RPC) e o Vaticano. Estados. Além disso, para Graham (2013, p. As raízes da ruptura do diálogo entre a 32), as últimas décadas foram marcadas pelo China e o Vaticano remetem à década de 1940, “ressurgimento do ativismo religioso” que vem quando o Partido Comunista Chinês (PCC) acontecendo no mundo todo, especialmente chegou ao poder, e “o papado, pelas suas estrei- no Sul Global, o que se opõe à previsão secu- tas ligações com o Ocidente, e pela declarada lar de que a religião vinha perdendo impacto oposição ao comunismo, foi considerado como público e político. Turzi (2013, p. 19) entende uma ameaça para a soberania chinesa” (CAR- ser necessário considerar a relevância dos atores LETTI, 2008, p. 12). Com efeito, a Igreja Ca- religiosos, marginalizados pela ciência com o tólica na China foi dividida em Igreja patrióti- surgimento da secularização. Omitir a religião ca e Igreja clandestina: a primeira se declarou a dos debates de Política Internacional pode pre- favor do Estado, aceitando ser controlada por judicar a compreensão de questões importantes ele; e a segunda continuou ao lado do Vaticano para a área, como as atuações do Papa, relevan- e do Ocidente, rejeitando as condições impos- te para a condução da diplomacia do Vaticano tas pelo governo comunista chinês (TSE-HEI no cenário mundial. LEE, 2007, p. 279). Essa divisão ainda per- Desde a chegada do Papa Francisco ao dura, sendo uma problemática no sentido do pontificado no ano 2013, se observa que a di- reconhecimento pelo Vaticano de bispos no- plomacia do Vaticano experimenta significa- meados pela China, mas que são considerados tivas transformações. O mundo tem testemu- ilegítimos para a Igreja. nhado a aproximação da Santa Sé com países Nos últimos dois anos do atual pontifica- que antes não dialogavam com essa entidade, do, o diálogo sino-vaticano é alvo de discussões especialmente aqueles do Oriente Médio e da dentro da arena de religião e de relações inter- Ásia (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 70). Argumen- nacionais. Desde 2013 os laços entre o Vaticano ta-se que o posicionamento do atual pontífi- e a China começaram a se estreitar. Nesse ano, ce influencia essas modificações, uma vez que Papa Francisco “entrou em contato com a Chi- escolheu alterar o foco das relações do Vatica- na trocando notas de congratulações com o Se- no, antes voltado ao Ocidente e ao “centro do cretário Geral do PCC, Xi Jinping em sua pos- 9 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019 se” (LEUNG; WANG, 2016, p. 14). De acordo ra política chinesa (CARLETTI, 2008, p. 14). com Leung e Wang (2016), embora em 2015 Na década de 1940, quando o PCC chegou ao o governo chinês tenha endurecido o controle poder, o governo chinês expressou desconfian- sobre as religiões2, notou-se uma abertura para ça com representantes da Igreja Católica no negociações entre o Papa Francisco e o governo país. Para Carletti (2008, p. 11), essa descon- no ano seguinte sobre a questão que constan- fiança é fruto das circunstâncias do período co- temente inflamou o relacionamento da China lonial europeu na China, quando as potências com a Igreja Católica: a nomeação de bispos. ocidentais desrespeitaram a soberania chinesa. Para Faggioli (2018, s/p), as atuais “negociações Ademais, a forma como a doutrina cristã ca- do Vaticano com a China representam o esforço tólica era colocada em prática desconsiderava diplomático mais importante da Santa Sé em a cultura e os costumes chineses (CARLETTI, décadas”. Logo, questiona-se como o olhar do 2008, p. 12). Com esses acontecimentos, “to- Papa Francisco, voltado para o Sul Global, con- dos os estrangeiros tornaram-se, aos olhos dos tribui para as relações sino-vaticanas. chineses, automaticamente inimigos, incluindo Para nortear a discussão, o artigo está es- os missionários” (CARLETTI, 2008, p. 12). truturado em duas seções: a primeira parte con- Nessa acepção, o Estado chinês passou a exi- textualiza a ruptura de relações entre a China e gir que os católicos participassem de atividades o Vaticano, compreendendo que o advento do religiosas apenas em igrejas reconhecidas pelo go- PCC representa uma das variáveis causais para verno (YIK- YI CHU, 2012, p. 107). O Vaticano a interrupção dessas relações; a segunda parte se sempre foi contra a política chinesa de interfe- debruça sobre a figura do Papa Francisco, en- rência em assuntos religiosos (LEUNG; WANG, tendendo o seu olhar direcionado ao Sul Global 2016, p. 5), uma das motivações para que o rela- como via de transformação em questões que en- cionamento da Igreja Católica com a RPC fosse volve a Igreja Católica no cenário internacional. marcado por perseguições, resistência e ruptura. Por fim, realiza-se uma reflexão sobre os esforços A posição anticomunista da Santa Sé resultou em do Papa Francisco e do governo chinês no esta- expulsões de clérigos contrários às diretrizes e prá- belecimento de um acordo sobre os bispos na ticas comunistas na região (CARLETTI, 2008, p. China, e sobre a posição do Papa nesse cenário. 83). Com efeito, na década de 1950 foi criada a Associação Patriótica Católica Chinesa (APCC), A Igreja Católica e a RPC: representando o primeiro traço da divisão da contextos e perspectivas Igreja Católica na China. A proposta da APCC era a de continuar seguindo os preceitos da Igreja A presença do cristianismo na China é se- Católica, composta por clérigos, mas também a cular e chama a atenção pelo modo como os de apoiar o governo comunista, que era contra princípios cristãos e ocidentais agitaram a esfe- a hegemonia ocidental (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 75). Por sua vez, os católicos e o clero que diver-

2 As religiões na China são reguladas pelo PCC, cujo principal giam da Igreja Patriótica foram considerados pelo objetivo consiste em manter o poder político (KUAN, 2012, governo um movimento clandestino, constituin- p. 158). Uma das exigências do Partido para que uma religião do a “Igreja Católica Clandestina na China”, liga- seja reconhecida pelo Estado é o desempenho dela na vida pública (KUAN, 2012, p. 158). da ao Vaticano (TURZI, 2013, p. 24). 10 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019

A divisão da Igreja na China provocou dis- considerado um desrespeito à soberania do Va- sensos em questões que para o Vaticano deve- ticano (TURZI, 2013, p. 24). Por isso a Igreja riam ser somente de sua responsabilidade, como Católica na China ainda continua dividida, e os a nomeação de bispos, tarefa exclusiva dessa en- laços entre o Vaticano e a RPC rompidos desde tidade, mas que passou a ser executada pelo PCC 1951. Essas relações sofrem atualmente trans- (LEUNG; WANG, 2016, p. 5). Apesar das di- formações desde quando Papa Francisco chegou vergências entre o Vaticano e a RPC, no governo ao papado, mas em especial nos últimos dois de Deng Xiaoping surgiu a possibilidade de mu- anos, contexto em que o governo chinês se mos- danças em relação à Igreja Católica na China, trou mais aberto ao diálogo com o Vaticano. pois nesse período o país experimentava trans- Argumenta-se que Papa Francisco repre- formações sociais. A política de “portas abertas”, senta o principal elo entre o Vaticano e a China. implementada no governo de Deng Xiaoping, Segundo Turzi (2013), por ser jesuíta, na condu- possibilitou, na década de 1970, a reabertura de ção do diálogo sino-vaticano o pontífice é tanto Igrejas Católicas na China que se encontravam simbólico quanto significativo, tendo em vista fechadas (CARLETTI, 2008, p. 127). Nes- que os jesuítas possuem uma história longa com se contexto, a Santa Sé visava se aproximar da a China. Para esse autor, “o carisma jesuíta busca Igreja Católica na RPC, tentativa que fracassou construir pontes, adaptar e trabalhar com a rea- (LEUNG; WANG, 2016). Como consequência lidade, em vez de se impor contra ela” (TURZI, desse insucesso, a Santa Sé buscou dialogar com 2013, p. 24). Observa-se que Papa Francisco os católicos de Taiwan e Hong Kong (LEUNG; busca justamente construir uma ponte entre o WANG, 2016, p. 8), aproximação vista com Vaticano e a China com o principal objetivo de desconfiança pelas autoridades chinesas. unir a Igreja no país, dividida há mais de cinco O primeiro obstáculo para as relações décadas (SUMMARY OF BULLETIN, 2018). diplomáticas entre a Santa Sé e a RPC reside As negociações entre Papa Francisco e a Chi- justamente no fato dessa entidade reconhecer na têm provocado divergências na Instituição ca- Taiwan, questão relevante para a RPC, devi- tólica, tendo em vista o histórico de perseguições do ao seu histórico conflituoso com Taiwan3 a clérigos da Igreja e a nomeação de bispos fei- (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 75). Por isso, pode-se ta pelo PCC (CARLETTI, 2008). A “oposição afirmar que Taiwan representa “um elemento significativa do hemisfério ocidental” à abertura que influencia diretamente as prolongadas ne- do pontífice para um diálogo com a RPC não gociações sino-vaticanas” (LEUNG; WANG, impediu que o Papa se mantivesse firme na bus- 2016, p. 15). Outro obstáculo ao reatamento ca pelo objetivo pastoral de unir a Igreja naquele de laços entre China e Vaticano consiste na in- país (FAGGIOLI, 2016). O primeiro passo para tenção de Pequim em designar bispos, o que é uma reconciliação pode ser atribuído a assinatura do Acordo Santa Sé-China de 2018 atinente à 3 Durante a Revolução chinesa na década de 1940, o conflito questão dos bispos. Na mensagem aos católicos entre Partido Nacionalista e Partido Comunista levou Chiang Kai-shek fugir para Taiwan junto com seus aliados quando o chineses divulgada em 28 de setembro de 2018, PCC chegou ao poder (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 75). Nesse o pontífice declarou que esse é um momento período, Taiwan se declarou um país e Kai-Shek se tornou o significativo para a vida da Igreja, especialmen- seu líder, obtendo o reconhecimento de alguns atores inter- nacionais, como a Santa Sé (CARLETTI, 2008, p. 10). te porque a presença da instituição na China é 11 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019 marcada por tensões (FAGGIOLI, 2016). Nessa 2016), condição possível de ser executada por mensagem, Papa Francisco expressou o seu res- diálogos, por exemplo, com outros atores in- peito pela cultura chinesa, afirmando que o povo ternacionais. As mensagens, decisões e ações do chinês resistiu as adversidades, abraçou as dife- Papa representam três elementos que podem renças e se demonstrou receptivo a mensagem gerar impactos significativos em matérias que cristã (SUMMARY OF BULLETIN, 2018). envolvam a Igreja Católica no cenário interna- O fator religioso se encontra presente não cional. Portanto, entende-se que o soft power somente na mensagem do Papa enviada aos chi- exercido pelo pontífice sucede por meio desses neses, mas também no seu olhar estratégico para três elementos, já que ele é considerado líder o Sul Global com o intuito de estabelecer um religioso influente nas relações internacionais. equilíbrio entre “centro” e “periferia” no quadro Desde sua chegada ao pontificado, Papa de relações do Vaticano (CARLETTI, 2015, p. Francisco busca gradativamente aproximar o 218). Essa é um sinal de que a religião está ativa Vaticano com outras regiões do mundo que não na vida pública e política, seja em nível local, na- sejam parte apenas do Ocidente. Ao conferir cional e/ou global (GRAHAM, 2013). A prefe- maior importância à periferia (TURZI, 2013, rência do pontífice é por um mundo multipolar p. 21), o pontífice promove discussões sobre as “onde as diferenças ao invés de dividir podem desigualdades sociais e, ainda, facilita a aproxi- acrescentar”, rumo a um mundo menos desigual mação do Vaticano com países não-ocidentais. (CARLETTI, 2015, p. 233). Tendo isso em vis- A conduta do Papa Francisco na mu- ta, a seção subsequente se dedica à reflexão sobre dança de foco do mundo ocidental e europeu o papel do Papa Francisco na construção de uma para a “periferia do mundo” pode ser associa- ponte que aproxime a RPC e o Vaticano. da ao fato de ser o primeiro Papa não euro- peu (CARLETTI, 2015). É possível observar Papa Francisco e seu projeto que o comportamento e as experiências do global: construindo pontes Papa Francisco, durante a sua trajetória de vida até chegar ao pontificado, traduzem algumas O líder da Igreja Católica, o Papa, é consi- características particulares de sua pessoa como derado um importante ator por vários motivos, indivíduo e como clérigo: faz parte da comu- um deles relacionado ao fato desse indivíduo nidade jesuíta e sempre possuiu contato diário representar tanto o condutor da Instituição com o povo (TURZI, 2013). Esses fatores in- Católica, quanto o chefe do “Poder Executivo fluenciam a forma como o pontífice busca con- do Estado do Vaticano” (TURZI, 2013, p. 30). duzir as decisões do Vaticano. Conforme Car- Graças a sua liderança e a sua posição como ator letti (2015, p. 233), “as experiências de vida do religioso nas relações internacionais, o Papa Papa Francisco como um cidadão da periferia pode exercer o chamado soft power4 (HAYNES, do mundo colaboram com sua visão da perife- ria para o centro, e não o contrário como foi

4 Soft power, para Joseph Nye Jr. (1990, p. 166), consiste em feito com os outros papas”. um poder que um ator exerce, fazendo com que outros atores A antiga política do Vaticano, de manter concordem com determinada ação ou política. Segundo Car- relacionamentos mais estreitos com o Ocidente letti (2015, p. 221), a Igreja Católica age com o soft power por meio de várias igrejas que se encontram pelo mundo. e com o “centro do mundo”, é alterada à me- 12 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019 dida que o deslocamento ideológico do Papa constantemente representou um ponto delica- Francisco se volta “mais às periferias do planeta do, especialmente por causa da divisão da Igre- que aos centros tradicionais de poder” (CAR- ja Católica no país declaradamente comunista, LETTI, 2015, p. 233). Isso pôde ser notado e, portanto, pelo não reconhecimento da Igreja na cúria romana5, quando ao invés de priorizar Patriótica pelo Vaticano. cardeais de origem europeia, Papa Francisco As nomeações de bispos são de significati- escolheu cardeais de outros continentes, como va importância para a Igreja Católica, uma vez África, Ásia, América Central e América do Sul que está ligada à política da instituição de man- (CARLETTI, 2015, p. 231). ter hierarquias e doutrinas (FAGGIOLI, 2018). A reflexão sobre as características do Papa Após a Segunda Guerra Mundial, “as nomea- Francisco, e sobre sua extensão global mais di- ções dos bispos foram consideradas uma ques- recionada à periferia do planeta e ao Oriente, tão importante para as relações diplomáticas condiciona a discussão do seu importante papel entre o Vaticano e os países sob o domínio co- na resolução de algumas divergências da Igreja, munista” (FAGGIOLI, 2018, s/p). Na China, como a que se refere à divisão da Igreja na Chi- por exemplo, os bispos escolhidos pelo gover- na. De acordo com Turzi (2013, p. 24), a maior no não eram reconhecidos pela Igreja. Por esse fronteira ainda hoje da Igreja Católica é com a motivo, Vukićević (2015, p. 76) entende que a China. Apesar disso, acredita-se que o pontífice questão da ordenação dos bispos na China ain- é capaz de influenciar o cenário de ruptura en- da segue como um dos tópicos mais sensíveis tre o Vaticano e a RPC. Para tanto, Vukićević no diálogo entre o Vaticano e esse país. Esse é (2015, p. 73) acredita que “a diplomacia papal um tema que está no centro do hodierno de- precisa ser complexa e equilibrada para atingir bate sobre as relações sino-vaticanas, tendo em seus objetivos”, buscando melhorar também a vista que as negociações acerca das nomeações imagem da Igreja Católica em todo o mundo. de bispos, que não eram certificadas pela Igreja, Segundo Turzi (2013, p. 23), Papa Fran- vêm progredindo. Para Pequim, o reconheci- cisco busca fazer jus ao próprio sentido da pa- mento dos bispos pelo Vaticano que foram es- lavra ‘pontífice’, criando pontes entre pastores e colhidos pelo governo representaria um passo fiéis, entre credos e entre países. Argumenta-se, significativo para o reatamento de laços entre a aqui, que esse é o principal objetivo do líder ca- China e o Vaticano (LEUNG; WANG, p. 9). tólico em relação à RPC: criar uma ponte entre A temática que envolve o Vaticano e a o Vaticano e o país, bem como entre a Igreja RPC chama a atenção daqueles que conhecem que se encontra dividida na China. As variá- a história do relacionamento desses dois ato- veis que influenciaram a ruptura de relações do res, caracterizado por dissensos. Argumenta-se Vaticano com a China são históricas, como foi que o basilar projeto global do Papa Francisco possível entender na seção anterior. No que diz de construir pontes é significativo para o fim respeito a essas relações, a nomeação de bispos das tensões entre o país e a entidade. Faggioli (2018) afirma que 5 A cúria romana diz respeito ao corpo da Igreja que ajuda o Aqueles que acreditam neste possível avanço papa na administração da instituição. Nesse contexto, o pon- entre o Vaticano e a China hoje sabem que tífice decide sobre a nomeação e a substituição dos indivíduos já há uma longa história do cristianismo na que poderão fazer parte desse corpo (VATICAN, on-line). 13 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019

China, com a qual a Igreja Católica global também sempre esteve presente. A unidade precisa estar mais diretamente em contato. da Igreja na China parece se aproximar cada Esta é uma parte integrante da visão do Papa Francisco para uma Igreja Católica verdadei- vez mais com a presença do Papa Francisco no ramente global, a serviço de toda a humanida- diálogo entre a RPC e o Vaticano. O pontífi- de e da paz mundial (FAGGIOLI, 2018, s/p). ce, que opta pelo deslocamento ideológico do O olhar do Papa Francisco voltado ao Sul centro para as “periferias do mundo político e Global transforma a diplomacia do Vaticano e eclesial” (CARLETTI, 2015, p. 236), atua po- possibilita o deslocamento de um cenário de liticamente seguindo a sua religiosidade. Por- ruptura com a China para um cenário de re- tanto, a visão secular sobre a separação entre conciliação. O diálogo, que vinha acontecendo política e religião perde espaço, aqui, para a de forma lenta e gradual, avança com o Acordo perspectiva pós-secular, que considera a impor- Provisório Santa Sé-China, assinado em setem- tância da religião na vida pública e nas relações bro de 2018 (SICSI, 2018). Após a assinatura internacionais (GRAHAM, 2013). desse acordo, Papa Francisco afirmou ser ne- Na mensagem conduzida aos católicos cessária a boa vontade de ambas as partes para chineses e à Igreja Universal em setembro de que o referido acordo tenha êxito (SUMMARY 2018, após a assinatura do Acordo Provisório OF BULLETIN, 2018). O pontífice ressaltou Santa Sé-China, Papa Francisco afirmou estar que o Acordo Provisório pode contribuir na convencido de que a reaproximação “só pode escritura de um “novo capítulo da Igreja Cató- ser autêntica e frutífera se ocorrer através da lica na China”, pois, pela primeira vez durante prática do diálogo para construir um futuro a trajetória do diálogo sino-vaticano, pôde se comum de harmonia sublime” (SUMMARY estabelecer uma cooperação (SUMMARY OF OF BULLETIN, 2018, s/p). O pontífice acon- BULLETIN, 2018, s/p). selhou os católicos chineses a serem bons ci- dadãos, amarem sua pátria e servirem seu país Considerações Finais com honestidade, demonstrando o seu respeito ao povo chinês, à sua história e cultura. Segun- A religião exerce influência global e pode do o Papa, os objetivos da Igreja com esse acor- definir o relacionamento entre atores interna- do são ‘espirituais e pastorais’, buscando contri- cionais, como é o caso do diálogo entre China buir para a unidade da Igreja na China, que foi e Vaticano (GRAHAM, 2013). A ruptura dos dividida no passado (SUMMARY OF BULLE- laços sino-vaticanos possui caráter político e TIN, 2018). Para atingir esses objetivos, o pon- religioso, e foi com a fundação da APCC que tífice entende ser necessário tratar de assuntos as “divergências entre uma parte da Igreja Ca- concernentes a nomeação de bispos, uma das tólica chinesa e o Vaticano” foram oficializadas principais questões que impedia a reaproxima- (CARLETTI, 2008, p. 90). Para Tse-Hei Lee ção entre a China e o Vaticano. Por isso, um (2007, p. 291), a trajetória da divisão da Igre- acordo entre o Papa e Pequim sobre esse tópico ja Católica nesse país sempre foi um período parecia ser difícil de acontecer (TURZI, 2013, doloroso para os chineses que possuem sua “fé p. 25), mas o Acordo Provisório Santa Sé-Chi- expressa de duas maneiras diferentes”. Segundo na demonstra que a reconciliação é possível. o autor, a esperança de futuras reconciliações Papa Francisco, que é autoridade máxima da 14 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019

Igreja e possui a palavra final sobre o assunto GRAHAM, Elaine. Between a Rock and a Hard Place: Public Theology in a Post-Secular Age. London: SCM Press, 2013. no Vaticano já demonstrou estar aberto para HAYNES, Jeffrey. Religião nas Relações Internacionais: Teoria um diálogo (LEUNG; WANG, 2016). e Prática. In.: CARLETTI, Anna; FERREIRA, Marcos Alan A imagem carismática do Papa Francisco S. V. (org.). Religião e Relações Internacionais: Dos Debates Teóricos ao Papel do Cristianismo e do Islã. : Juruá coloca-o em “uma boa posição para as negocia- Editora, 2016, p. 20-49. ções na diplomacia inter-civilizacional que conti- KUAN, Hsin-chi. Religion and Politics in China. Universal Rights nua a ser uma parte importante dos assuntos da in a World of Diversity: The Case of Religious Freedom. Pontifi- cal Academy of Social Sciences Santa Sé” (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 76). O atual , acta 17, p. 155-192, 2012. LEUNG, Beatrice; WANG, Marcus J. J. Sino–Vatican Ne- líder da Igreja Católica busca mudar a política do gotiations: problems in sovereign right and national security. Vaticano de manter relações apenas com o Oci- Journal of Contemporary, China, v. 25, n. 99, p. 467-482, dente para uma política de reaproximação com fev. 2016. Foreign Policy o Oriente, e “já fez muito para reparar a ima- NYE, Joseph, Jr. Soft Power. , n. 80, p. 153- 171, outono 1990. gem da Santa Sé aos olhos do mundo e torná-la SICSI, Francesco. China-Santa Sé: um acordo histórico. Revis- mais ativa e presente nas relações internacionais” ta Instituto Humanitas . 2018. On-line. Disponível (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 78). O projeto global em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/583030-china-san- ta-se-um-acordo-historico. Acesso em: 30 nov. 2018. do Papa com seu olhar voltado ao Sul do mundo SUMMARY OF BULLETIN. Message of Pope Francis to tem como principal objetivo equilibrar ‘centro’ e the Catholics of China and to the Universal Church, 26 ‘periferia’ nas questões que concernem ao Vatica- set.2018. Holy See Press Office. 2018. Disponível em: https:// press.vatican.va/content/salastampa/en/bollettino/pubbli- no (CARLETTI, 2015, p. 231). O pontífice re- co/2018/09/26/180926b.html. Acesso em: 28 nov. 2018. conhece a importância da diplomacia e do diálo- TSE-HEI LEE, Joseph. Christianity in Contemporary Chi- go como meios de transformação para a união da na: an update. Journal of Church and State, v. 49, n. 2, p. Igreja. Por sua vez, o olhar do líder católico para o 277304, abr. 2007. TURZI, Mariano. El Papa Del Tercer Mundo. Foreign Affairs Sul Global se manifesta como uma das ferramen- Latinoamérica, n. 3, v. 13, p. 19-25, set. 2013. tas necessárias para a unidade da Igreja na China VATICAN. A cúria romana. Disponível em: http://www.vati- e para a reaproximação entre o país e o Vaticano. can.va/roman_curia/index_po.htm. Acesso em: 22 de abril de 2018. VUKIĆEVIĆ, Boris. O Papa Francisco e os desafios de uma Referências diplomacia inter-civilizacional. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 58, v. 2, p. 65-79, 2015. ALMEIDA, Ronaldo de. A visita de Francisco e a abertura do YIK- YI CHU, Cindy. Chinese Society and Catholicism. In.: compasso. Estudos de Religião, v. 27, n. 2, p. 297-303, jul./ The in China: 1978 to the present. New dez. 2013. York: Palgrave Macmillan, 1 ed, 2012, p. 103-119. CARLETTI, Anna. A abertura da China ao mundo e as suas relações com o Vaticano de João Paulo II. In.: Diplomacia e Religião: encontros e desencontros nas relações entre a Santa Sé e a República Popular da China de 1949 a 2005. Brasília: Funag, 2008, cap. 1 e 3. CARLETTI, Anna. Do centro às periferias: o deslocamento ideológico da diplomacia da Santa Sé com o Papa Francisco. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Interna- cionais, v. 4, n. 7, p. 218-239, 2015. FAGGIOLI, Massimo. China-Vatican talks uphold historical legacy. Global Times, 2018. Disponível em: http://www.glo- baltimes.cn/content/1090048.shtml. Acesso em: 05 mar. 2018. 15 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019 15 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019 Artigo

A relação Estado-Igreja e o papel da religião nas relações internacionais da Rússia1 The Church-State relations and the role of religion in Russia’s international relations

La relación Estado-Iglesia y el papel de la religión en las relaciones internacionales de Rusia

Luiz Felipe Dias Pereira2

DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p15 Recebido em: 13 de maio de 2019 Aceito em: 26 de agosto de 2019

Resumo O artigo aborda a relação Estado-Igreja existente na sociedade russa. Argumenta-se que a religião não deve ser ignorada ao se analisar as políticas doméstica e externa da Rússia con- temporânea. O argumento tem como base revisão bibliográfica sobre o tópico e informações obtidas no website do Department for External Church Relations. Palavras-chave: Relações Internacionais. Rússia. Religião. Igreja Ortodoxa.

Abstract This article concerns the State-Church relationship in the Russian society. The argument is that religion should not be neglected when analysing contemporary foreign and domestic politics. The author’s argument is based on bibliographical review about the subject and information obtained on the Department for External Church Relations’ website. Keywords: International Relations. Russia. Religion. Orthodox Church.

Resumen El artículo aborda la relación estado-iglesia existente en la sociedad rusa. Se argumenta que la religión no debe ser ignorada cuando se analizan las políticas internas y externas de la Rusia contemporánea. El argumento se basa en una revisión de la literatura del tema y la información obtenida del sitio web del Department for External Church Relations. Palabras clave: Relaciones Internacionales. Rusia. Religión. Iglesia Ortodoxa.

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 2 Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PPGRI/PUC Minas). Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). E-mail: [email protected]. Belo Horizonte (MG)/Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000- 0001-5135-104 16 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019

Introdução Nesse sentido, é importante levar em conta a influência da Igreja na política externa russa no A Igreja Ortodoxa Russa – ou o Patriar- período pós-soviético. Ademais, propõe-se uma cado de Moscou - é uma instituição de grande breve análise da atuação política da Igreja na relevância política que atua na sociedade russa contemporaneidade, demonstrando, por exem- em níveis doméstico e internacional. Essa tra- plo, a articulação do Patriarcado de Moscou dição de articulação política com outras igre- com os demais patriarcados europeus, de forma jas ortodoxas pode ser observada a partir do geral. No fim, o autor argumenta que a relação pan-eslavismo e o uso da religião como instru- entre Estado e Igreja na Rússia pode representar mento geopolítico em nações regionais – prin- uma contribuição no tocante à questão dos es- cipalmente no contexto dos Bálcãs ainda sob tudos sobre religião no campo das R.I.. controle do Império Otomano (GERD, 2014). 3 A ideia de Moscou como a Terceira Roma O Cristianismo Ortodoxo na existe desde a queda do Império Bizantino; Rússia contudo, é a partir do século IXX que a Rús- sia busca se consolidar como protetora do cris- A fins de contextualização, serão apre- tianismo ortodoxo no mundo (KLIMENKO; sentados, nesta seção, um breve histórico da YURTAEV, 2018). presença do cristianismo ortodoxo na Rússia, Este estudo parte da seguinte questão: de modo a prover ao leitor uma melhor com- qual é a influência da proximidade entre Estado preensão do papel da Igreja Ortodoxa Russa e Igreja para a política externa russa contempo- (daqui em diante, abreviada como IOR) en- rânea? O autor deste trabalho sugere que o uso quanto ator político na sociedade. da religião enquanto instrumento de política O conceito de symphonia4 data desde o externa se trata de um fenômeno que pode ser Império Bizantino para definir a relação entre melhor compreendido a partir de um estudo Igreja e Estado, afirmando a ideia de que “as sobre o posicionamento da Rússia enquanto autoridades políticas e religiosas devem traba- protetora do cristianismo ortodoxo na socieda- lhar juntas em um acordo sinfônico de modo de internacional. Nesse sentido, é possível ob- a alcançar o bem estar material e espiritual dos servar que o papel político ativo da Igreja Cristã fiéis” (LEUSTEAN, 2011, p.188, tradução Ortodoxa Russa no país se trata de um elemen- nossa)5. O termo symphonia representa uma to que não deve ser ignorado em debates sobre “correlação harmoniosa interdependente entre política externa e geopolítica da Rússia. o Estado e autoridades eclesiásticas” (PROSIC, Buscar-se-á, aqui, realizar uma contextua- 2014, p.180, tradução nossa)6. As duas esferas lização histórica no que diz respeito à conso- seriam interdependentes no que diz respeito ao lidação da religião cristã ortodoxa enquanto instituição politicamente ativa, além da proxi- 4 “συμφωνία” pode ser traduzido como “acordo”. midade entre Igreja e Estado. 5 Political authorities should work together in a symphonic agreement towards achieving the material and spiritual wel- fare of the faithful. 3 A Segunda Roma seria Constantinopla, capital do Império 6 Harmonious interdependent correlation between state and Bizantino. ecclesiastical authorities. 17 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019 que o autor denomina como uma emanação do p.13, tradução nossa)9. Levando em conta a divino, isto é, um “objetivo final para ambos o proximidade entre Estado e Igreja na Rússia, imperador e a igreja” (PROSIC, 2014, p. 180, é imprescindível mencionar o movimento do tradução nossa)7. Nesse sentido, as duas insti- pan-eslavismo, considerando sua importância tuições atuariam de modo a “administrar dife- para a política externa russa. rentes necessidades”, porém, ambas as institui- ções poderiam ser vistas como sendo unânimes, A Terceira Roma uma vez que as duas compartilhavam de uma mesma origem (PROSIC, 2014, p.182, tradu- Durante os séculos XIX e XX, o principal ção nossa).8 Uma vez apresentado o conceito, a objetivo da política externa russa no Oriente Pró- próxima seção irá abordar o contexto histórico ximo consistiu na busca por uma “união do mun- da relação entre Estado e Igreja na Rússia. do Ortodoxo sob a Rússia”, sendo que essa con- cepção política neobizantina tem origem na ideia Estado e religião na Rússia de que Moscou seria considerada como a Terceira Roma (GERD, 2014, p.20, tradução nossa)10. A presença do cristianismo ortodoxo na Esse conceito remete ao casamento de Ivan III sociedade russa não é recente. Sabe-se que o pri- com a sobrinha do último imperador bizantino meiro Estado de povos eslavos teve origem em (Constantino XI Paleólogo), Sofia Paleóloga. O Kiev, capital da atual Ucrânia, sendo o Estado matrimônio celebrou a transferência da herança de Kiev viria a adotar o cristianismo ortodoxo real bizantina para Moscou e, após 1480, Ivan III como religião oficial russa, juntamente com o adota o título de tsar, fato que celebrou tanto o alfabeto cirílico, que deu origem à língua russa fim do domínio Mongol sobre a Rússia, quanto em sua forma escrita (ZIEGLER, 2009). A pro- a apropriação do legado bizantino (SHUBIN, ximidade entre Estado e Igreja tem origem nos 2004). A ideia de Moscou como a Terceira Roma primórdios da formação do governo de Kiev e passou a significar para a Rússia a restauração do da sociedade russa. Essa relação é descrita por Império Bizantino, sendo que o país passou a de- Ziegler (2009) como tendo caráter simbiótico, sejar que sua capital fosse o centro desse mundo levando em conta que o cristianismo ortodoxo (GERD, 2014). A Rússia seria, posteriormente, foi o alicerce da união cultural que ligava os vista por cristãos ortodoxos como uma salvação principados descentralizados de Kiev. da dominação Otomana (GERD, 2014). Em um primeiro momento, Estado e É importante compreender o pan- Igreja atuaram em harmonia, de modo que eslavismo para se entender a atuação da IOR na esta agia como “a consciência moral e apoia- política internacional na contemporaneidade. dora do Estado”, sendo que essa relação teria Não menos importante foi a mudança na fim no início do século XVIII, com a subor- relação entre Estado e Igreja durante o período dinação da Igreja ao Estado estabelecida por soviético. A hostilidade em relação à religião se Pedro, o Grande (PETRO apud ZIEGLER, manifestou logo após chegada dos bolcheviques

7 Ultimate goal of both the emperor and the church. 9 The moral conscience and supporter of the state. 8 Administer to different needs. 10 Union of the Orthodox world under Russia 18 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019 ao poder. Em 1928 foi estabelecido o Decreto Além disso, dentre as principais mudanças sobre a Separação de Igreja e Estado que, além que ilustram a consolidação da IOR como prin- de estabelecer a separação entre as instituições cipal ator religioso na Rússia, pode-se citar três no sistema educacional, também retirou das que foram feitas já no período de Kirill14 como igrejas o direito de possuir propriedades e seus Patriarca: o fortalecimento da reivindicação da direitos de entidade legal (WALTERS, 1986). Igreja sobre terras tomadas no período soviéti- A ideia da Rússia como Terceira Roma foi co, uma diretiva que permite o ensino religio- abandonada durante esse período, uma vez que so em escolas públicas e a terceira diz respeito a União Soviética agora tinha como objetivo aos benefícios relativos a impostos, como “tax “construir o novo sistema de relações inter- breaks” e propriedade parcial sobre firmas de nacionais com base na justiça e na paz” (KLI- energia (KISHKOVSKY apud LAMOREAUX; MENKO; YURTAEV, 2018, p. 242, tradução FLAKE, 2018; KÖLLNER apud LAMO- nossa)11. Houve também, além do abandono REAUX; FLAKE, 2018; SOLODOVNIK apud da tradição geopolítica russa, um movimento LAMOREAUX; FLAKE, 2018). Ademais, no ideológico voltado para o ateísmo que contri- contexto de uma sociedade pós-soviética, a IOR, buiu para uma deformação do conceito de Ter- visando à sua renovação e desenvolvimento, ig- ceira Roma (KLIMENKO; YURTAEV, 2018). norou o passado da secularização soviética15, as- sumindo novamente sua posição na sociedade A ressurgência da Igreja e da tendo como modelo a época em que a mesma religião na Rússia não era separada do Estado (ZORKAIA, 2014).

Lamoreaux e Flake (2018) afirmam que a ОТДЕЛ ВНЕШНИХ ЦЕРКОВНЫХ IOR teve sucesso no que se refere ao seu “resta- СВЯЗЕЙ/Department of belecimento como religião dominante na Rús- External Church Relations sia, frequentemente por meio do apoio da le- gislação” (LAMOREAUX; FLAKE, 2018, p.2, De acordo com Blitt (2011), “o Patriarca- tradução nossa)12. No início da década de 1990, do de Moscou, assim como o governo russo, é a Igreja recebeu de volta as terras que haviam ativamente preocupado em relação a desenvol- sido apreendidas pelo Estado e, não obstante, vimentos fora da Rússia e as potenciais implica- a lei de Liberdade de Consciência e Associação ções que esses desenvolvimentos possam ter no Religiosa de 1997 “permitiu uma alavancagem ambiente doméstico” (BLITT, 2011, p. 365, implícita para a Igreja ao limitar o que outras or- tradução nossa)16, sendo que essa preocupação ganizações religiosas poderiam fazer” (LAMO- 13 REAUX; FLAKE, 2018, p.2, tradução nossa) . 14 Patriarca de Moscou desde 2009. 15 Entende-se por secularização, aqui, o processo que diz res- peito à diminuição da importância da religião no cotidia- 11 To build the new system of international relations on the no em determinada sociedade. Para maiores detalhes, ver: basis of justice and peace. Rethinking Secularism, de: CALHOUN, Craig Jackson; 12 Re-establishing itself as the dominant religion in Russia, JUERGENSMEYER, Mark; VanAntwerpen. often through state supported legislation. 16 The Moscow Patriarchate, like the Russian government, is actively 13 Provided implicit leverage to the Church by limiting what concerned about developments outside of Russia and the poten- other religious organisations could do. tial implications these developments may have on the home front. 19 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019 se refere não somente aos Estados da antiga namentais, religiosas e públicas no exterior e União Soviética, mas também por todos os Es- organizações internacionais públicas (DECR, 1997-2019c, tradução nossa).18 tados nos quais cristãos ortodoxos estejam su- jeitos à sua jurisdição (BLITT, 2011). O prin- Nota-se que os assuntos externos da IOR cipal que, segundo Blitt (2011), atua como um não se limitam apenas ao contato com outras ministério estrangeiro e interage instrumento Igrejas Ortodoxas. Não obstante, também é da IOR no que se refere a questões de assuntos atividade do DECR “informar o Patriarca e o estrangeiros/internacionais é o Departamento Santo Sínodo sobre eventos e atividades fora de Relações Exteriores da Igreja (Department da Igreja Ortodoxa Russa envolvendo seus in- for External Church Relations, ou DECR) com teresses”, além da produção de documentos e instituições internacionais como a Organização decisões no que se refere questões de natureza das Nações Unidas e a União Europeia. “inter-ortodoxa, inter-cristãs, interreligiosas e Levando em conta a proposta deste traba- internacionais” (DECR, 1997-2019b, tradu- 19 lho, é digno de menção o website do DECR, ção nossa). O estatuto da IOR foi adotado que pode ser utilizado como fonte de docu- em 2000, e emendas baseadas nos Conselhos mentos que permitem observar o funciona- de Bispos foram adotadas posteriormente. Na mento da instituição. Disponível em seis idio- primeira seção do estatuto, referente às dis- mas, o site - online desde 1997 - disponibiliza posições gerais, a IOR é definida como “uma informações desde a biografia do atual patriar- igreja multinacional local autocéfala em unida- ca Kirill no que se refere à sua vida política - de doutrinal em comunhão orante e canônica como presidente do DECR, de 1989 a 2009 com outras Igrejas Ortodoxas Locais” (DECR, 20 (DECR, 1997-2019a) - assim como textos de 1997-2019c, tradução nossa). discursos como, por exemplo, discursos do pa- Também é importante mencionar os tex- triarca Kirill em encontros com o presidente tos disponíveis no site do DECR no que con- Putin (DECR, 2017). No endereço, também cerne à seção sobre conceitos sociais, mais es- é possível encontrar informações sobre relações pecificamente o tópico sobre as delimitações “interortodoxas”, “inter-cristãs” e “inter-reli- nas relações entre Estado e Igreja. De acordo giosas” da instituição. com o site, “as áreas de cooperação entre Es- De acordo com o próprio site da insti- tado e Igreja no período histórico presente” tuição, o DECR do Patriarcado de Moscou é envolvem assuntos como “peacemaking nos “uma grande instituição sinodal da Igreja Or- níveis internacional, inter-étnico e cívico, e todoxa Russa” (DECR, 1997-2019b, tradu- ção nossa).17 No que se refere às suas funções, 18 Maintains the Russian Orthodox Church’s relations with the Local Orthodox Churches, non-Orthodox Churches, o DECR Christian associations, non-Christian religious communi- Mantém as relações da Igreja Ortodoxa Rus- ties, as well as governmental, parliamentary, non-govern- sa com Igrejas Ortodoxas Locais, Igrejas não- mental institutions abroad and inter-governmental, reli- gious and public international organizations. -ortodoxas, associações cristãs e comunidades 19 Inter-Orthodox relations; inter-Christian relations;interre- religiosas não-cristãs, assim como instituições ligious relations governamentais, parlamentares, inter-gover- 20 a multinational Local Autocephalous Church in doctrinal unity and in prayerful and canonical communion with oth- 17 A major Synodal institution of the Russian Orthodox Church. er Local Orthodox Churches. 20 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019 promoção mútua da compreensão e da coo- Além disso, observa-se que a instituição peração entre povos, nações e Estados”; “diá- declara que sua jurisdição se estende a pessoas logo com órgãos governamentais de todas as de fé ortodoxa nos territórios classificados ramificações e níveis em questões importantes como canônicos, fazendo referência aos terri- para a Igreja e a sociedade, incluindo o desen- tórios de diversos países, como as ex-repúblicas volvimento de leis, estatutos, instruções e deci- soviéticas, assim como China e Japão (DECR, sões”; “trabalho da mídia de massa eclesiástica 1997-2019e). Com base nessa declaração, é e secular”; entre outros (DECR, 1997-2019d, possível associar o discurso relativo à jurisdi- tradução nossa).21 ção do Patriarcado de Moscou com a proje- Nesse sentido, pode-se dizer que influên- ção da Rússia enquanto protetora dos cristãos cia da Igreja sobre as relações internacionais da ortodoxos para além do território russo, ideia Rússia se torna relevante na medida em que a compartilhada por grande parte da população IOR “cresceu como uma força capaz de gerar de países do leste europeu e/ou das ex-repúbli- ideias e fazer lobby a favor de certos rumos cas soviéticas. da política externa russa” (LOMAGIN, 2012, Na contemporaneidade24, a IOR assume p.7, tradução nossa)22. A IOR também exerce um papel diferente daquele assumido durante influência nas esferas social, econômica e edu- o período soviético; no que concerne à políti- cacional, provendo uma base para a constitui- ca externa da Rússia pós-soviética, Lomagin ção de um aumento de influência política e (2012) afirma que a instituição participou de adquirindo a capacidade de legitimar algumas “projetos de integração no território da antiga das políticas do Kremilin (LOMAGIN, 2012). União Soviética” (LOMAGIN, 2012, p.2, tra- Para Lomagin (2012), a IOR teve êxito no que dução nossa)25. Com essa mudança, a IOR se concerne à restauração de seu poder nas últi- projeta de forma mais ativa no âmbito inter- mas décadas. A relação entre Estado e Igreja nacional, articulando politicamente com ins- na Rússia contemporânea é caracterizada pelo tituições internacionais como a Organização compartilhamento de uma ideologia naciona- das Nações Unidas e a União Europeia (LO- lista por ambas as instituições, visando à “res- MAGIN, 2012). tauração do poder russo após a desorganização Como demonstrado previamente, a Igre- que seguiu o fim da União Soviética” (LOMA- ja Ortodoxa sempre esteve presente nos con- GIN, 2012, p.14, tradução nossa)23. textos políticos (doméstico e externo) russos. Mesmo durante o período soviético, a tradição 21 The areas of church-state co-operation in the present his- de uma Igreja sujeita à autoridade do Estado torical period; peacemaking on international, inter-ethnic (que data desde o governo de Pedro, o Grande) and civic levels and promoting mutual understanding and co-operation among people, nations and states; dialogue with governmental bodies of all branches and levels on is- 24 Devido ao escopo desta pesquisa, optou-se pela utilização sues important for the Church and society, including the dos termos “contemporaneidade” (termo utilizado por Lo- development of appropriate laws, by-laws, instructions and magin (2012) em seu artigo para se referir à Rússia após o decisions; work of ecclesiastical and secular mass media; fim da URSS e a partir dos anos 1990 - e “pós-soviético” 22 Grown as a force, which was capable of generating ideas and lob- como o contexto social russo desde o fim da União Soviéti- bying in favour of certain directions of Russian foreign policy. ca até o momento no qual este artigo foi escrito. 23 Restoring Russia’s might after the disarray that followed the 25 Integration projects on the territory of the former Soviet end of the Soviet Union Union. 21 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019 foi mantida, de modo que o próprio governo ­reconstrução do império perdido (HERPEN, 29 soviético havia utilizado a Igreja como instru- 2016, p.134, tradução nossa). mento de política externa (HERPEN, 2016). Anderson (2016) argumenta que, a des- Já na primeira década do século XXI, a IOR peito de a Rússia ser, constitucionalmente, um “trabalhou duro para aperfeiçoar seu relacio- país secular, politicamente, a relação entre a namento com as primeiras administrações de IOR e Putin faz com que o país não se carac- Putin (2000-2008)” (ANDERSON, 2016, terize como tal, uma vez que a IOR se tornou p.15, tradução nossa)26. parte da coalizão conservadora de apoio cons- A cooperação entre Estado e Igreja adqui- truída pelo próprio presidente. A IOR desem- re “um novo patamar” sob o governo Vladimir penha o papel de igreja dominante no país, e Putin, razão pela qual Herpen (2016) define a Putin já chegou a afirmar que “a ortodoxia é Igreja como “um instrumento de soft power27 um elemento central da identidade civilizacio- da política externa do Kremilin” (HERPEN, nal da Rússia” (ANDERSON, 2016, p. 4, tra- 2016, p.132, tradução nossa).28 Putin assumiu dução nossa).30 publicamente sua fé no cristianismo ortodo- Desta forma, pode-se afirmar que Putin xo em 1993, sendo que seu mandato como incorporou a religião à política externa, consi- primeiro ministro e subsequentemente pre- derando a importância de indivíduos falantes sidente em exercício em 1999 seria marcado da língua russa no exterior (DEMYDOVA, por uma concatenação de motivações pessoais 2019). Ainda no que diz respeito à política e políticas. A respeito dessas motivações, Her- externa russa, Demydova (2019) o grupo de pen (2016) comenta que trabalho do Ministério Russo das Relações Ex-

Deste ponto, para o novo líder do Kremlin teriores e a Igreja Ortodoxa Russa, que existe a aliança com a igreja também era ditada desde 2003 e se reúne anualmente para discutir pela raison d’état, e isso por duas razões. A questões relevantes da política externa da Rús- primeira razão foi que, quando ele acedeu ao sia. Vale mencionar também que a IOR parti- poder supremo do Estado, Putin instintiva- cipa ativamente na formulação de políticas do mente seguiu a prescrição de Maquiavel de Kremlin; na política externa, a IOR também que era útil para um governante se comportar influencia em questões relacionadas à educação, como se ele fosse religioso, sem ser necessaria- à cultura e à política (DEMYDOVA, 2019). mente religioso. A segunda razão foi que ele Por fim, sugere-se algumas observações. entendeu muito bem o papel útil que Igre- ja Ortodoxa Russa poderia desempenhar na Em primeiro lugar, é possível notar que, ao

26 Worked hard to perfect its relationship with the first Putin 29 From this point, for the new Kremlin leader the alliance administrations (2000-2008). with the church was also dictated by the raison d’état, and 27 Entende-se soft power como “A habilidade de conseguir o this for two reasons. The first reason was that when he -ac que você quer por meio da atração em vez da coerção ou pa- ceded to the supreme power of the state, Putin instinctively gamento. Surge da atratividade da cultura de um país, ideais followed Machiavelli’s precept that it was useful for a ruler políticos e políticas” (NYE, 2004, p.10, tradução nossa). No to behave as if he were religious without necessarily being original: “It is the ability to get what you want through attrac- religious.The second reason was that he understood full tion rather than coercion or payments. It arises from attrac- well the useful role the Russian Orthodox Church could tiveness of a country’s culture, political ideals and policies.” play in the reconstitution of the lost empire. 28 A new high; a “soft-power” tool of the Kremlin’s foreign policy. 30 A core element of Russia’s civilizational identity. 22 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019 longo da história russa, Estado e Igreja sempre pretende-se argumentar sobre possíveis colabo- estiveram próximos (HERPEN, 2016). A re- rações deste estudo. ligião esteve arraigada na cultura russa, sendo Diferentemente do contexto religioso oci- um elemento constituidor da identidade rus- dental, no qual houve uma separação entre reli- sa, como afirmado por Putin (ANDERSON, gião e política, estas estiveram sempre interliga- 2016). Nesse sentido, o cristianismo ortodo- das na sociedade russa (HERPEN, 2016). Essa xo esteve presente tanto na política doméstica diferença pode apresentar implicações para os quanto na externa, sendo possível observar uma estudos do campo das Relações Internacionais. interseção entre tópicos como religião, política Levando em conta a origem ocidental do cam- externa (pan-eslavismo) e o modelo de relação po das R.I. - cuja origem se encontra relaciona- entre Estado e Igreja na Rússia; a IOR, como da ao pensamento Iluminista e à ideia de um ator internacional, ainda busca exercer influên- Estado secular - i.e., a não interferência da reli- cia sobre ex repúblicas soviéticas, sendo uma gião na política. Prasad (2014) afirma que uma expressão dessa atuação a ideia de uma suposta vez que a disciplina tem raízes na experiência extensão da jurisdição do Patriarcado de Mos- secular europeia ocidental, a religião se encon- cou sobre outros países (DECR, 1997-2019e). trou à margem dos estudos do campo. A relevância da religião para a sociedade Feitas essas considerações, o autor deste ar- russa não apenas foi reconhecida por Putin, tigo sugere que o caso abordado apresenta duas como também foi utilizada pelo presidente na implicações. Em primeiro lugar, ao se observar contemporaneidade como um instrumento de a sociedade russa por meio de uma perspectiva exercício do soft power. A proximidade entre Es- baseada nos termos políticos seculares existentes tado e Igreja na Rússia acaba implicando em po- nos países ocidentais, seria de se esperar que a líticas que não se configuram como estritamente religião não fosse incorporada em análises políti- seculares, considerando que a IOR possui privi- cas da Rússia. Todavia, o presente estudo buscou légios em relação a outras instituições religiosas demonstrar como a religião se apresenta como no país, ao mesmo tempo em que demonstra uma variável que não deveria ser ignorada em es- apoio ao governo Putin (ANDERSON, 2016). tudos sobre as relações internacionais da Rússia. Percebe-se que um estudo histórico que leve em Com base no argumento de Prasad conta o conceito de symphonia pode colaborar (2014), que estudos sobre contextos tais como para estudos sobre a Rússia contemporânea. a relação de symphonia entre Estado e Igreja na Rússia, que diferem da ideia ocidental de secu- Conclusões larismo intrínseco ao Estado moderno referido no campo das R.I., também requerem uma re- Buscou-se, neste trabalho, abordar a rela- flexão acerca do entendimento que se tem sobre ção entre Estado e Igreja na sociedade russa, o secularismo do campo. Nesse sentido, ao se desde a adoção do cristianismo ortodoxo na estudar casos similares, é necessária uma aná- Kievan Rus, até a ressurgência da Igreja Orto- lise que se diferencie do entendimento que se doxa Russa na contemporaneidade, de modo tem sobre a natureza da política internacional a demonstrar sua atuação como ator político no Ocidente. Além disso, uma revisão históri- de relevância em nível internacional. A seguir, ca permite a acadêmicos compreender a relação 23 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019

­Estado-Igreja a partir de uma análise da herança NAL CHURCH RELATIONS. The Russian Orthodox Church. 1997-2019a. Disponível em: Acesso em: 20 ago 2019. pode apresentar repercussões sobre o compor- GERD, Lora. Russian Policy in the Orthodox East: The tamento de líderes políticos até os dias de hoje. Patriarchate of Constantinople. Warsaw/Berlin: De Gruyter Open, 2014. HERPEN, Marcel H. van. Putin’s propaganda machine: soft Referências power and Russian foreign policy. Lanham: Rowman & Lit- tlefield, 2016. ANDERSON, John. Religion, state and ‘sovereign democ- KLIMENKO, Anna N; YURTAEV, Vladimir I. The “Moscow racy’ in Putin’s Russia. Journal of Religious and Political as the Third Rome” Concept: Its Nature and Interpretations Practice, v. 2, n. 2, p. 249-266, 1 jul. 2016. Disponível em: since the 19 th to Early 21 st Centuries. Geopolíticas, v. 9, n. 2, . pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 20 ago. 2019. Acesso em: 10 out 2019. BLITT, Robert C. Russia’s ‘Orthodox’ Foreign Policy: The LAMOREAUX, Jeremy W; FLAKE, Lincoln. The Russian Growing Influence of the Russian Orthodox Church in Shap- Orthodox Church, the Kremlin, and religious (il)liberalism in ing Russia’s Policies Abroad. SSRN Electronic Journal, v. 33, Russia. Palgrave Communications, v; 4, n. 115, p.1-4, 2018. issue 2, winter 2011. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2019. 018-0169-6>. Acesso em: 11 out. 2019. DEMYDOVA, V. Independence of the Ukrainian Church: LEUSTEAN, L. N. The concept of symphoniain contemporary How Russia is Losing its Soft Power Tool in Ukraine. Akade- European Orthodoxy. International Journal for the Study of mik Hassasiyetler, v. 6, p. 251-274, 2019. the Christian Church, v. 11, n. 2-3, p. 188–202, 2011. DEPARTMENT FOR EXTERNAL CHURCH RELA- LOMAGIN, Nikita. Interest groups in Russian foreign policy: TIONS. Background. In: DEPARTMENT FOR EXTER- The invisible hand of the Russian Orthodox Church.Interna - NAL CHURCH RELATIONS. The Russian Orthodox tional Politics, v. 49, n. 4, p. 1-19, jul. 2012. Church. 1997-2019b. Disponível em: Acesso em: 20 ago. 2019. World Politics. Nova York, Public Affairs, 208 p., 2004. DEPARTMENT FOR EXTERNAL CHURCH RELA- PRASAD, Shubha Kamala. The Marginalisation of Religion TIONS. DECR today. In: DEPARTMENT FOR EXTER- in International Relations. South Asian Survey, v. 21, n. 1-2, NAL CHURCH RELATIONS. The Russian Orthodox p. 35-50, 2014. Church. 1997-2019c. Disponível em . Acesso em: 20 ago. 2019. the contradictions of the Eastern Orthodox Christian concept DEPARTMENT FOR EXTERNAL CHURCH RELA- of symphonia. Political Theology, v. 15, n. 2, p. 175-187, TIONS. I. General provisions. In: DEPARTMENT FOR EX- 2014. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2019. Church. 1997-2019e. Disponível em . Acesso em: 20 ago. 2019. From the Earliest Years Through Tsar Ivan IV. [S. l.]: Paper- DEPARTMENT FOR EXTERNAL CHURCH RELA- back, v. 1, 240 p. 2004. TIONS. III. Church and State. In: DEPARTMENT FOR WALTERS, P. The Russian Orthodox Church and the Soviet EXTERNAL CHURCH RELATIONS. The Russian Ortho- State. American Academy of Political and Social Science, v. dox Church. 1997-2019d. Disponível em . Acesso em: 20 ago. 2019. jstor.org/stable/1045546?seq=1#page_scan_tab_contents> DEPARTMENT FOR EXTERNAL CHURCH RELA- Acesso em: 20 ago. 2019. TIONS. Speech by His Holiness Patriarch Kirill at the Meet- ZIEGLER, Charles E. The history of Russia. Westport: ing of the President of Russia Vladimir Vladimirovich Putin Greenwood Press, oct. 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2019. Orthodox Church. . In: DEPARTMENT FOR EXTERNAL CHURCH RELATIONS. The Russian Orthodox Church. ZORKAIA, Natalia. Orthodox Christianity in Post-Soviet Soci- 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2019. nível em: . Aces- DEPARTMENT FOR EXTERNAL CHURCH RELA- so em: 20 ago. 2019. TIONS. The Patriarch. In: DEPARTMENT FOR EXTER- 24 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 24 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 Artigo

A Faith Diplomacy de Xi Jinping: as implicações político-religiosas do acordo provisório sobre a nomeação dos bispos católicos na China Xi Jinping’s Faith Diplomacy: The Political-Religious Implications of the Interim Agree- ment on the Appointment of Catholic Bishops in China

La diplomacia de fe de Xi Jinping: las implicaciones político-religiosas del acuerdo provi- sional sobre el nombramiento de los obispos católicos en China

Anna Carletti1

DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p24 Recebido em: 16 de junho de 2019 Aceito em: 30 de setembro de 2019

Resumo O artigo visa identificar os motivos que levaram o atual governo de Pequim a assinar um acordo provisório com a Santa Sé aceitando sua participação na nomeação dos bispos chi- neses. A pesquisa pode ser enquadrada no âmbito das análises de Política Externa. Palavras-chave: China. Santa Sé. Diplomacia da Fé.

Abstract The article aims to identify the reasons that led the current Beijing government to sign an interim agreement with the Holy See accepting their participation in the appointment of the Chinese bishops. The research can be framed within the scope of Foreign Policy analysis. Keywords: China. Holy See. Diplomacy of the Faith.

Resumen El artículo tiene como objetivo identificar las razones que llevaron al actual gobierno de Beijing a firmar un acuerdo provisional con la Santa Sede aceptando su participación en el nombramiento de los obispos chinos. La investigación puede enmarcarse dentro del alcance del análisis de la política exterior. Palabras clave: China. Santa Sede. Diplomacia de la fe.

1 Doutora em História (2207) pela UFRGS e Pós-Doutora em Ciência Política (2011) pela mesma instituição. Professora Associada do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e Professora da Pós-Graduação de Relações Internacionais da UEPB. Residente no Brasil em Santana do Livramento (RS). https://orcid.org/0000-0002-7998-4457 25 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019

Introdução A partir do pontificado de João XXIII, que assumiu o comando da Santa Sé em 1958, Em setembro de 2018, a Republica Popular registraram-se tentativas de diálogo instauradas da China (RPCh), sob o comando de Xi Jinping e mais por iniciativa da Santa Sé que do próprio a Santa Sé liderada pelo Papa Francisco assinaram governo chinês visando retomar as relações um acordo provisório sobre a espinhosa questão diplomáticas com a RPCh. Contudo, as de- da nomeação dos bispos chineses. Tal acordo foi mandas chinesas para que as relações fossem considerado por estudiosos da China e Santa Sé retomadas baseava-se sempre em dois pontos (SISCI, 2018; CHAMBON, 2018), como um considerados condições sine qua non para a evento histórico dentro das relações entre o gigante retomada do diálogo: a primeira que dizia res- da Ásia e o menor estado do mundo, a Cidade do peito à cessão de ingerência por parte da Santa Estado do Vaticano, base territorial da Santa Sé, Sé no que dizia respeito à nomeação dos bispos única instituição religiosa reconhecida como sujei- chineses e a segunda que a Santa Sé rompesse to internacional que mantém relações diplomáti- suas relações diplomáticas com Taiwan. cas com cerca de 180 países. A desconfiança chine- Em realidade, a repetição quase que retóri- sa em relação à prerrogativa do Papa, chefe de um ca dessas duas demandas consideradas necessári- estado estrangeiro, de nomear figuras públicas as para que se iniciasse um diálogo com a Santa atuantes no território chinês, como são os bispos Sé pareciam um pretexto por parte do governo católicos, gerou desde o início das relações entre chinês para esconder a falta de interesse por parte os dois atores estatais, discussões sobre as modali- das autoridades de Pequim em retomar relações dades dessas nomeações. A partir da proclamação diplomáticas com um estado cujo interesse na- da República Popular da China, em 1949, sob a cional é predominantemente ligado ao fator reli- liderança de Mao Zedong e da ruptura das relações gioso e que não poderia oferecer nada que fosse, diplomáticas com a Santa Sé em 1951, quando da naquele momento, de interesse do governo chinês. fuga para Taiwan do então núncio apostólico da Contudo, quando da eleição do Papa Fran- Santa Sé, Antonio Riberi, tal questão se tornou cisco contemporânea à chegada de poder de Xi uma dificuldade aparentemente insuperável pela Jinping à presidência da República Popular da convicção por parte do governo comunista de que China, pareceu que algo mudara. O novo pres- a nomeação dos bispos chineses por parte do Papa idente começou a prestar mais atenção aos ape- constituísse uma ingerência política indevida e los lançados pelo Papa Francisco para que tivesse uma violação da soberania do Estado chinês. início uma nova rodada de negociações entre os Com efeito, o governo de Pequim não dois interlocutores. As missivas da Santa Sé, pela conseguia entender porque um chefe de um primeira vez, obtiveram resposta por parte das Estado estrangeiro, a saber, o estado da Cidade autoridades de Pequim diretamente ou indireta- do Vaticano, reivindicava para si o direito de mente. O acordo provisório assinado em setembro nomear bispos chineses que operariam dentro de 2018 pode ser considerado o resultado visível do território chinês. De acordo com a visão das desta mudança por parte do governo chinês. autoridades de Pequim da época, isso poderia Frente a isso, o artigo visa identificar os mo- configurar-se como uma tentativa de interferir tivos que levaram o governo de Pequim a assinar na construção da Nova China. um acordo provisório com a Santa Sé aceitando 26 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 sua participação na nomeação dos bispos chine- seu uso por parte do governo chinês aplicando-o ses. A pesquisa pode ser enquadrada no âmbito especificamente ao estudo de caso das relações do das análises de Política Externa, onde elementos governo chinês com a Santa Sé. Na segunda parte como cultura e religião, em particular a chamada do artigo, serão evidenciados os principais avanços Faith Diplomacy emerge como um fator condi- que ocorreram nas relações entre a RPCh e a San- cionante na construção das relações de força no ta Sé a partir de 2013, sublinhando as inéditas ini- cenário internacional (LEIGHT, 2011). ciativas de aproximação tomadas pelo governo de De acordo com Zhang (2011), os ob- Pequim que pela primeira vez decidiu responder jetivos da Diplomacia da Fé chinesa incluem aos apelos da Santa Sé. A terceira e última parte promover uma compreensão internacional e do artigo será dedicada à análise das implicações aceitação das políticas religiosas da China, de- político-religiosas do acordo provisório assinado fendendo as atuações chinesas para com a re- em 22 de setembro de 2018 apresentando tam- ligião, melhorando a imagem da China no ex- pem as conclusões da pesquisa. terior, contribuindo desta forma à construção O estudo envolverá a análise qualitativa de de um mundo harmonioso. fontes primárias e secundárias quais documen- O uso da Faith Diplomacy por parte de Xi tos oficiais do governo chinês e e da Santa Sé, Jinping, desde o início de seu primeiro man- assim como estudos de intelectuais chineses e dato político, leva à pergunta principal de nos- ocidentais sobre as relações entre os dois estados. sa pesquisa: o que mudou na política externa chinesa para que Xi Jinping aceitasse assinar A Faith Diplomacy de Xi um acordo provisório com a Santa Sé para no- Jinping meação dos bispos chineses? A hipótese a ser verificada é que a Repúbli- Desde sua chegada ao poder em 2013, o ca Popular da China na sua atual busca de ex- governo de Xi Jinping diferenciou-se dos gov- troversão internacional esteja fazendo uso não ernos que o precederam, sobretudo pelo forte apenas de tradicionais instrumentos de hard sentimento nacionalista que caracterizou seus power, mas que esteja apostando no uso de soft primeiros atos políticos, principalmente no que power (ou poder suave, poder branco) em sua se refere a sua política externa. Ao lançar o lema política externa principalmente para mitigar as de seu governo “O sonho chinês” que implicaria inevitáveis perceções suscitadas em seus vizin- no Ressurgimento da China, o líder da quinta hos frente à sua expansão geopolítica e militar. geração política chinesa mostrou claramente Neste contexto, nos parece que o presidente Xi sua intenção de afastar-se da política externa de Jinping tenha identificado a Santa Sé como um baixo perfil inaugurada pelo Deng Xiaoping na sujeito internacional dotado de grande influên- década de 1980 e seguida pelos sucessivos li- cia no âmbito mundial e que poderia legitimar deres políticos até a chegada de Xi Jinping (BA- e apoiar sua busca por ocupar um lugar de TES, 2017). De acordo com Estebam (2017, destaque no atual sistema internacional. p. 3, tradução nossa) 2, ­“Assim como acontece Para testar esta hipótese, na primeira parte do 2 Al igual que sucede en otras áreas, también en política exte- artigo será analisado o conceito da Faith Diploma- rior Xi Jinping ha mostrado mayor capacidad de liderazgo cy - considerada parte do emprego do soft power - e que sus dos inmediatos predecesores (Jiang Zemin y Hu Jin- 27 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 em outras áreas, também em política externa sofisticadas e comportamento respeitável na Xi Jinping mostrou maior capacidade de lid- arena internacional também são endossadas para melhorar o poder brando de um país. erança que seus imediatos predecessores (Jiang (OSMAN, 2017, p. 6, tradução nossa)3. Zemin e Hu Jintao) proporcionando uma vira- Conforme Becard, a promoção do soft power da diplomática de uma envergadura sem prece- como meio de melhorar a imagem chinesa frente dentes desde os tempos de Deng”. à comunidade internacional foi incentivada pelo Para alcançar o objetivo de levar a China governo de Pequim desde a década de 1990, so- a reocupar um lugar de destaque dentro do bretudo após os acontecimentos da Praça Tian sistema internacional, Xi Jinping está fazendo Anmen, tendo visível aumento em 2008, após o uso tanto de instrumentos tradicionais de pod- sucesso das Olimpíadas de Pequim (2019). er conhecidos como hard power que de outros No âmbito deste esforço de implementar o meios de fortalecimento de sua imagem no que foi chamada de diplomacia cultural, encon- âmbito internacional que Joseph Nye batizou tramos também o conceito bastante recente de de soft power (ou poder suave, poder branco). Faith Diplomacy (Diplomacia da Fé). Em 2001, De acordo com Becard (2019), o conceito de o então presidente Jiang Zemin pela primeira soft power criado pelo Nye em 1990 foi intro- vez reconheceu que a religião poderia agir como duzido na China por Wang Huning que defin- força estabilizadora na sociedade e, assim, pode iu este conceito como a cultura que representa ser considerada uma força positiva para o de- o poder de um país. Com o passar do tempo, senvolvimento nacional (LEUNG, 2005). De porém, debates acadêmicos na China apon- acordo com Chu (2011, p. 53, tradução nos- taram à necessidade de traduzir o conceito de sa)4 “as religiões são consideradas um recurso soft power de Nye para um conceito de soft pow- diplomático por parte do governo chinês”. er com características chinesas. Isso resultou em Conforme Zhang (2011), na China, a uma alteração do conceito original que passou Diplomacia da Fé é um esforço conjunto de a ser chamado de Chinese Soft Power (GLA- diferentes agências governamentais coordena- SER, MURPHY, 2009). Mesmo concordando do pelo Escritório Estatal de Assuntos Religi- com a definição de Nye que sublinhava o pod- osos, O Escritório de Informação do Conselho er de atração de um país por meio da cultura, Estatal, o Ministério da Cultura, O Departa- política externa e outros valores, os acadêmicos mento do Trabalho da Frente Unida do Partido chineses defendiam uma visão mais abrangente Comunista assim como o Conselho Nacional do conceito chinês de soft power, envolvendo das Religiões. fatores como o desenvolvimento econômico da No que diz respeito às relações com o a China e o Consenso de Pequim como caracte- Santa Sé, desde que os canais de diálogos foram rística proeminente do soft power. Acadêmicos chineses enfatizam que o sucesso socioeconômico da China e sua experiência 3 Chinese academics stress that China’s socioeconomic success and its experience with development give opportunity for com o desenvolvimento dão oportunidade soft power. Sophisticated diplomatic relations and respect- para o poder brando. Relações diplomáticas able behavior in the international arena are also endorsed to improve a nation’s soft power. tao) propiciando un giro diplomático de una envergadura sin 4 “religions are considered by the Chinese government a dip- precedentes desde los tiempos de Deng. lomatic resource”. 28 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 reabertos, a saber, durante o pontificado de isto é, o super poder suave do Papado”. Xi Jin- João Paulo II, nunca foram registrados avanços ping percebeu, de acordo com a análise do Sisci significativos como ocorreu a partir de 2013, (2018), que a questão China-Santa Sé até então ano em que Xi Jinping assumiu a presidência considerado como um assunto domestico, era, da RPCh e o Papa Francisco foi eleito novo ao contrário, uma questão relacionada à política pontífice da Igreja Católica. externa. É interessante o raciocínio que o Sisci apresenta sobre a mudança da percepção chine- Os principais avanços nas sa a propósito das relações China-Santa Sé, relações China-Santa Sé Se a Santa Sé é a super potência, o pensamento (2013-2018) se torna: somos nós, chineses que devemos nos inserir nesse mundo onde o Vaticano conse- A partir do primeiro mandato dos dois gue ser tão importante. Devemos ter um senso de urgência. Em segundo lugar, chega tam- líderes, o da China, e o da Santa Sé, é possí- bém um cálculo de risco. Se o Vaticano é tão vel identificar passos importantes dados pelo poderoso, não se trata mais de gerir esses pou- governo de Pequim em direção a uma possível cos milhões de católicos chineses. Talvez eles normalização das relações com a Santa Sé, fa- possam nos ajudar, mas talvez até prejudicar zendo justamente uso deste instrumento de soft nossa posição no mundo. (SISCI, 2018, p. 3). power que é a Faith Diplomacy. A entrevista concedida pelo Papa Francis- O primeiro passo ocorreu no segundo ano co ao professor Sisci logo depois da visita aos Es- do pontificado de Francisco quando Pequim tados Unidos pareceu confirmar tal percepção. permitiu que o Papa Francisco entrasse no es- Na entrevista, o Papa demonstrou grande ad- paço aéreo chinês durante seu vôo para a Coreia miração para com a China definindo-a como do Sul. A permissão se repetiu outras duas vezes um país de grande cultura que não deveria ser durante as viagens realizadas pelo Papa na Ásia. temida mas da qual poderíamos aprender, uma Mas a virada e a aceleração na aproximação nação que poderia dar grande contribuição ao entre as duas partes foi identificada pelo profes- resto da humanidade (SISCI, 2016). sor da Renmin University de Pequim, Franc- A entrevista teve repercussões bastante esco Sisci durante a visita que os dois lideres, positivas na China sendo replicada e comen- o presidente Xi Jinping e o Papa Francisco fiz- tada por diversos jornais chineses, incluindo os eram no mesmo período aos Estados Unidos. mais próximos ao governo de Pequim como o De acordo com Sisci, na sua visita aos EUA, Jornal Global Times que comentou em grande Xi Jinping esperava receber a máxima atenção medida a entrevista (GLOBAL TIMES, 2016). dos meios de comunicação norte americanos É importante sublinhar como os jornais próx- assim como ocorrera nas visitas dos seus prede- imos ao governo de Pequim e jornais italianos cessores. Contudo, ele não havia calculado que próximos ao Vaticano contribuíram à aproxi- a visita do Papa poderia ofuscar sua presença mação das duas partes veiculando as intenções no país. Na visão de Sisci (2018, p. 2) “esse fato das respectivas partes em relação à questão. Do fez com que se entendesse de forma concreta o lado chinês, jornais próximos ao governo de que alguns, na China, já diziam há algum tem- Pequim, como o já mencionado Global Times po, mas que não era entendido pela liderança, usado pelo governo de Pequim para fazer con- 29 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 hecer suas orientações no exterior, publicou, do de história e política. O discurso de Parolin naquele ano 04 artigos5 sobre a questão, fato foi objeto de debate e aprofundamento por parte inédito que evidenciou o incremento de inter- dos acadêmicos, e considerado fundamental para esse da China em relação à questão das relações que as autoridades de Pequim aceitassem dis- com a Santa Sé. cutir um possível acordo em relação à nomeação Em agosto de 2016, pela primeira vez na dos bispos chineses. Na visão do Sisci, a questão história das relações entre China e Santa Sé, o Santa Sé-China se tornou, aos olhos chineses, presidente da RPCh respondeu à mensagem fator condicionante nas mudanças que estavam de um Papa e enviou de presente uma cópia ocorrendo no cenário internacional, principal- da Estela Cristã da cidade de Xi’an do século mente as que resultaram da eleição de Donald VII. Lembramos que no passado, vários Papas Trump à presidência dos Estados Unidos. Eles dirigiram missivas aos presidentes chineses, ma perceberam como a Santa Sé, a diferença dos nenhum obteve resposta (SISCI, 2018). tempos de João Paulo II, não se alinhara com o Outro passo importante foi o discurso poder norte-americano. O Papa Francisco esta- proferido, sempre em 2016, pelo Secretário de va seguindo seus objetivos estratégicos indepen- Estado da Santa Sé, Pietro Parolin, sobre a im- dentemente da política dos Estados Unidos e, portância do papel desenvolvido na China pelo mesmo assim, sua influencia internacional con- Cardeal Celso Costantini na década de 1920. tinuava crescendo. (SISCI, 2018, p. 8). O discurso pronunciado por um figura politi- No mês de junho de 2017, uma visita do camente importante (ele seria como o Ministro diretor do Fundo de Investimentos Culturais das Relações Exteriores de um Estado) ressoou da China ao Papa, levou à decisão de realizar positivamente em Pequim principalmente pelo uma mostra conjunta dos Museus Vaticanos fato do Secretário de Estado evidenciar a renun- em Pequim e do Museu da Cidade Proibida em cia do Costantini a ser nomeado cardeal na Chi- Roma, junto aos Museus Vaticanos. Esta inici- na para que fosse nomeado um cardeal chinês, ativa da mostra cultural conjunta foi noticiada e além disso por ser quem procurou que a Santa por parte da China batizando-a de Diploma- Sé conseguisse estreitar relações diplomáticas di- cia da Arte e foi logo comparada à diplomacia retas com a China sem ter que passar pela inter- do Ping-pong que levou à normalização das mediação da França. A mensagem que chegou relações entre China e Estados Unidos na déca- aos ouvidos de Pequim era que a Santa Sé apo- da de 1970 (DENG XIAOCI, 2017). iava o processo de sinicização da Igreja Católica Em seguida, teve a visita do Papa ao Mian- na China e que não estava ligada a nenhuma mar. Esta visita foi acompanhada com particu- potência hegemômica (SISCI, 2018). lar interesse pelo governo de Pequim porque Em 29 de outubro de 2016, realizou-se um Mianmar é um país estrategicamente impor- congresso organizado pela Universidade do Povo tante para o projeto chinês das Novas Rotas da de Pequim (Renmin University), fundada por Seda. As autoridades chinesas pareceram satis- Mao Zedong e voltada principalmente ao estu- feitas pelo apoio aberto que o Papa deu à et- nia minoritária muçulmana dos Rohingya de- 5 Cautious optimis over Sino-Vatican ties (28/12/2016); safiando os interesses econômicos do governo Between God and Caeser (25/10/2016); LitFest 2016 (10/03/2016); From Rome to Beijing (25/2/16). do Mianmar. A China, ­contrariamente­ à sua 30 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 política de não interferência nos assuntos inter- da comunidade internacional mais um chefe nos de outros países, no caso do Mianmar es- religioso que político. A polêmica questão da colheu uma política de intervenção visando re- nomeação dos bispos chineses se agravou logo duzir ao mínimo os fatores de desestabilização depois da proclamação da República Popular da que colocariam em risco seus investimentos na China em 1949. A China nacionalista e a San- região (RAMACHANDRAN, 2017). O Glob- ta Sé haviam estabelecido relações diplomáticas al Times, pela primeira vez publicou uma arti- em 1942, recebendo em suas respectivas sedes go inteiramente dedicado à visita e um grupo as credenciais de seus embaixadores (CAR- de sacerdotes chineses participaram da missa LETTI, 2008). na catedral de Yangoon exibindo a bandeira Tais relações, porém, foram interrompidas nacional da Republica Popular da China e um pelo governo comunista em 1951. Os motivos cartaz com a escrita “Venha logo Santo Padre”. que levaram o governo comunista a romper as Obviamente eles não poderiam fazer este con- relações com a Santa Sé devem ser compreendi- vite se não tivessem tido a permissão oficial dos no âmbito da antiga desconfiança chinesa do governo comunista. (POPE URGES RE- em relação a esta religião estrangeira que por SPECT... 2017) longo tempo se associara aos interesses colo- Tais avanços, consequência da decisão do nizadores do Ocidente. governo de Pequim de mudar o rumo de suas Na época sucessiva ao fim do Segundo relações com a Santa Sé, teve como resultado Conflito Mundial, o alinhamento da Santa Sé concreto a assinatura de um acordo provisório ao lado das potências ocidentais, contra o bloco sobre a nomeação dos bispos chinês. Vamos ver comunista, foi um elemento ulterior que con- na próxima seção do artigo quais as implicações venceu Mao Zedong a incluir a Igreja Católica religiões e políticas deste acordo. na lista dos inimigos da nova China. Em 1957, o governo de Pequim fundou a Associação O acordo provisório sobre Patriótica Católica Chinesa (APCC), para ex- a nomeação dos bispos: ercer a função de ligação entre o Partido Co- implicações políticas e munista da China e a Igreja Católica na China. religiosas nas relações entre Em 1958, o governo chinês, provavelmente Santa Sé e República Popular como demonstração de força, por meio da da China. APCC, decidiu consagrar dois bispos católicos independentemente da Santa Sé. Os dois can- Ao longo desses anos, numerosas visitas de didatos enviaram às pressas à Santa Sé o pedido representantes da Santa Sé na China e vice-ver- de reconhecimento da sua consagração. A Santa sa ocorreram para discutir um possível acor- Sé, porém, rejeitou as consagrações episcopais do sobre a nomeação dos bispos chineses. Tal julgando-as ilícitas. O governo chinês recebeu questão era considerada inaceitável por parte tal rejeição como uma espécie de declaração de do governo de Pequim que a interpretou como guerra por parte da Santa Sé e devolveu com a uma ingerência política por parte de um chefe mesma moeda (CARLETTI, 2008). estrangeiro, o Papa, mesmo que ele se consid- A partir daquele momento abriu-se uma erasse e fosse considerados pelos demais países fenda, não somente entre a Santa Sé e a Chi- 31 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 na, mas no âmbito da própria Igreja Católica dizia respeito a uma questão de grande relevo na China, que se encontrou dividida. Nascem para a vida da Igreja e que o acordo criaria as então, de um lado a Igreja Patriótica ou Oficial condições para uma mais ampla colaboração constituída por católicos, membros do clero e em nível bilateral (SANTA SEDE, 2018). bispos que aceitaram se registrar junto ao órgão Apesar de o acordo tratar apenas de da Associação Patriótica da Igreja Católica e, matéria religiosa, mesmo fundamental para a de outro, a Igreja Clandestina, constituída por Igreja Católica, podemos entrever, portanto, católicos, membros do clero e bispos que con- desdobramentos mais amplos que dizem res- sideravam tal registro como uma traição à co- peito também às relações institucionais entre munhão com o Papado de Roma. O governo Santa Sé e China, como a futura retomada das chinês sempre considerou os membros da Ig- relações diplomáticas entra os dois estados. reja Clandestina como adversários políticos da O jornal chinês Global Times publicou RP da China, passíveis de perseguição e prisão, dois dias depois uma matéria sobre o acordo não tanto pelo fato de ser religiosos quanto apontando que seus resultados iam muito além por se negarem a ser controlados pelo gover- da questão da nomeação dos bispos chineses. no de Pequim. Esta divisão dificultou muito as Com efeito, o acordo demonstrou que as duas negociações entre a China e Santa Sé até que partes conseguiram superar preconceitos que Bento XVI, em 2007, com uma carta dirigida impediam uma aproximação efetiva. aos católicos chineses convidou todos os mem- ao assinar o acordo provisório, os dois lados bros da Igreja Chinesa a superar esta divisão e superaram uma importante barreira cogni- se tornar uma Igreja unida sem distinções entre tiva. O Vaticano eliminou seu mal-entendi- do anterior sobre o sistema social e político Igreja Oficial e Igreja Clandestina (BENTO chinês e a comunidade católica chinesa. [...] XVI, 2007). Francisco seguiu o mesmo camin- Vaticano demonstrou muita sinceridade. ho incentivando as negociações e encorajando Por outro lado, a China também modificou sempre a Igreja chinesa a se unir. sua atitude em relação ao Vaticano. A Chi- na manterá seu princípio religioso de inde- A partir destas premissas histórico-po- pendência e auto-gestão, mas ao mesmo líticas, entende-se o porquê o comunicado tempo respeitará a prática internacional. É oficial da Santa Sé, em 22 de setembro de por isso que as negociações continuaram. (CHENYAN, 2018) 20918, anunciando a assinatura de um acordo provisório sobre a nomeação dos bispos desper- O acordo sanciona a participação conjunta tou tanto interesse na comunidade internacio- das duas partes na escolha dos bispos chineses. nal que o definiu como um fato histórico. O O lado chinês seleciona um candidato e o apre- acordo foi assinado pelo Monsenhor Antoine senta ao Papa que tem o poder de veto. O texto Camilleri, Subsecretário para as Relações da do acordo não foi publicado até o momento Santa Sé com os Estados e pelo Senhor Wang porque, por ser provisório, poderá ser reavalia- Chao, Vice- ministro dos Assuntos Exteriores do e revisado a qualquer momento. Como par- da República Popular da China, respetiva- te do acordo, o Papa Francisco reconheceu a le- mente chefes das Delegações vaticana e chinesa gitimidade de sete bispos chineses que haviam (SANTA SEDE, 2018). O comunicado evi- sido nomeados apenas pelo governo chinês. denciou que a questão da nomeação dos bispos Com este ato, acabaria, de acordo com o Car- 32 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019 deal Parolin, “a divisão até então existente en- à construção de uma sociedade chinesa que res- tre bispos legítimos e ilegítimos” (PULLELLA, peite a dignidade de cada ser humano. Isso talvez 2018). De agora em diante, todos os bispos da seja a parte que o governo de Pequim menos China estariam em comunhão com o Papa. aprecie, mas que descreve um papel que no dis- curso da Igreja Católica é irrenunciável, o de tra- Conclusões balhar para a plena realização do ser humano. Portanto, o acordo garantiu aparente- No dia 26 de setembro, Papa Francisco mente benefícios para ambas as partes. Como enviou uma mensagem aos católicos chineses o Papa Francisco afirmou é um instrumento e ao resto da Igreja Católica explicando o teor que não poderá resolver todos os problemas ex- do acordo assinado poucos dias antes (FRAN- istentes, mas certamente colocou as bases para CISCO, 2018). uma aproximação mais profícua entre o menor É importante evidenciar 03 pontos fun- estado do mundo e o gigante da Ásia. damentais dessa mensagem que podem nos ajudar a compreender as implicações mais Referências amplas deste acordo. O primeiro reitera a un- idade da comunidade católica na China, ou AZEVEDO, Dermi. Desafios estratégicos da Igreja Católica. LUANOVA, n. 60, p. 57-79, 2003. Disponível em: . Acesso em: 30 e de certa forma deslegitima o papel da Igreja set. 2018. Clandestina. Isso significaria que gradualmente BATES, Gill. China’s future under Xi Jinping: challeng- es ahead. Political Science, 2017. Disponível em: . 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Guerra justa insuficiente: a ideia da paz justa na construção da paz pós-guerra no cristianismo Insufficient just war: the idea of a just peace in post-conflict peacebuilding in Christianity

Guerra justa insuficiente: la idea de una paz justa en la construcción de la paz posguerra en el cristianismo

Joyce Kelly Costa Silva1

DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p34 Recebido em: 30 de junho de 2019 Aceito em: 01 de dezembro de 2019

Resumo A “paz justa” enfatiza a reconciliação e a justiça como paz. O objetivo do artigo é discutir como essa abordagem fornece uma alternativa à antiga tradição da guerra justa na cons- trução da paz pós-conflito no cristianismo. Palavras chave: Religião. Paz. Cristianismo.

Abstract A peace “just” emphasizes reconciliation and justice as peace. The purpose of the article is to discuss how this approach provides an alternative to the ancient tradition of just war in post-conflict peacebuilding in Christianity. Keywords: Religion. Peace. Christianity.

Resumen La paz justa“enfatiza la reconciliación y la justicia como paz. El objetivo del artículo es discutir cómo este enfoque proporciona una alternativa a la antigua tradición de la guerra justa en la construcción de la paz post-conflicto en el cristianismo. Palabras clave: Religión. Paz. Cristianismo.

1 Mestra em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (2019), Bacharela em Relações Internacionais pela Uni- versidade Federal da Paraíba (2016) e Membra do Grupo de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR/ UEPB). ORCID: 0000-0002-0698-8342. 35 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019

Introdução guerra justa está associada à participação quali- ficada do cristão no serviço militar, já a guerra Os eventos do 11 de setembro e, mais ain- santa cristã representada pelas Cruzadas, está da, as reações ao 11 de setembro, convenceram associada ao domínio da Igreja sobre o mundo o mundo de que a religião é a única ou a princi- (BAINTON, 2008). pal causa dos conflitos internacionais. De fato, A paz justa representa um importante o papel da religião é especialmente evidente ponto de virada na forma de lidar com a guer- quando invocado para justificar atos de violên- ra no pensamento cristão. Além disso, esse pa- cia, como os atentados suicidas, e as execuções radigma questiona a tradição da guerra justa ritualizadas de tais atos (OMER, 2010). Toda- justamente como aquela que embora seja im- via, muitas vezes as interconexões entre religião portante na limitação e/ou regulação moral da e violência desconsideram que da mesma for- violência não contempla as questões referentes ma que a religião é um fator importante na di- ao pós-guerra ou a construção de uma paz sus- nâmica do conflito, ela pode desempenhar (por tentável (LOVE, 2018). Considerando que a meio de líderes religiosos e leigos) uma função grande maioria dos conflitos contemporâneos na construção da paz (SMOCK, 2006). Certa- envolve uma série de razões, tanto tangíveis mente, existem inúmeros exemplos de violên- quanto intangíveis, a religião pode ser uma cia religiosa em todo o mundo. Mas, afirmar variável decisiva, capaz de exercer um papel que a religião é inerentemente violenta é igno- construtivo, como mediadora e promotora da rar que a paz é um dos principais fundamentos reconciliação entre as partes (BERCOVITCH; das principais religiões do mundo. KADAYIFCI-ORELLANA, 2009). Segundo A contribuição que a religião pode dar Matyok e Flaherty (2015), não é possível ig- para a paz - como o outro lado da religião no norar a presença da religião na vida das pes- conflito - está apenas começando a ser explora- soas. Bilhões de pessoas moldam suas vidas a do e explicado. O surgimento desse novo cam- partir de crenças religiosas. Por isso, a constru- po de estudos chamado de “construção da paz ção de respostas multidisciplinares ao conflito, religiosa”2 tem como pano de fundo a revisão de não pode ignorar a presença da religião (MA- antigos paradigmas, tais como: a guerra justa, TYOK, FLAHERTY, 2015). Logo, as discus- a guerra santa, e o pacifismo. Esses paradigmas sões a respeito da prática da abordagem da “paz de forte raiz religiosa têm sido por séculos os justa” é uma oportunidade de demonstrar a principais meios em que a religião se insere nos capacidade reconciliatória do cristianismo no debates sobre violência, conflito, guerra e paz cenário internacional. 3 (HERTOG, 2010). Na ética cristã, o pacifismo Diante disso, o presente artigo tem como representa uma atitude de rejeição à guerra, a objetivo apresentar a nova abordagem da paz

2 A prática e a utilização desse termo envolve tanto o diálogo inter-religioso, pelos quais indivíduos religiosos discutem o 3 Este artigo buscou abordar o cristianismo de forma geral, papel da religião entre as nações, quanto à descrição do tra- fundamentado nos ensinamentos de Jesus Cristo a respeito balho de pacificadores cuja motivação das ações em favor de do conceito de paz justa. Todavia, é provável que em cada vítimas e a implementação da paz e da justiça derivam de uma das vertentes do cristianismo (“catolicismos” e “protes- uma compreensão particular advinda de uma tradição reli- tantismos” – em referência às várias subdivisões) existam dis- giosa (OMER, 2010). tinções sobre o significado e a aplicação da paz justa. 36 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019 justa como um contraponto à guerra justa na da paz. Os primeiros cristãos eram pacifistas construção da paz pós-conflito no pensamen- e rejeitavam qualquer participação no servi- to cristão. A guerra justa, apesar de contribuir ço militar. Segundo Bell (2005), existem pelo para as discussões sobre os limites para entrar menos duas razões que são tipicamente citadas em um conflito (jus ad bellum) e para conduzi- para explicar essa posição. A primeira é que os -lo (jus in bello), provou ser suscetível a abusos cristãos primitivos seguiram os ensinamentos políticos, além de conter um número de de- e os exemplos de Jesus Cristo e foram opostos ficiências conceituais (HOPPE, 2007). Tendo ao derramamento de sangue e à violência. Esse em vista o “retorno” da religião às Relações é um argumento bastante discutido, mas mes- Internacionais (RI), parte-se aqui do pressu- mo para os teólogos defensores da guerra justa, posto de que há uma influência dessa variável como Agostinho, há o reconhecimento de que nas ações dos indivíduos e que essas ações po- os cristãos primitivos eram mais pacíficos. A se- dem favorecer a construção da paz em socieda- gunda razão refere-se ao caráter idólatra que o des no pós-conflito. serviço militar tinha dentro de Roma. Para um cristão servir ao exército era preciso jurar leal- A tradição cristã da dade e devoção ao Imperador (BELL, 2005). guerra justa Um dos primeiros filósofos cristãos a refle- tir sobre a guerra foi Agostinho (354-430) du- A tradição da guerra justa surgiu como rante o governo de Constantino. Influenciado uma proposta de regulação dos conflitos por por filósofos romanos, ele ensinou que a guerra meio da ética. Ao longo da história humana, as limitada poderia ser um meio legítimo de de- sociedades passaram a considerar a importância fender o Império. A guerra era um mal, mas da ética na guerra. Em quase praticamente to- poderia ser considerada justa quando travada das as grandes civilizações do mundo, dos an- em prol de propósitos defensivos, por meio de tigos egípcios aos astecas, da Babilônia à Índia, uma autoridade legítima, com intenções corre- da China à Europa antiga e contemporânea, tas e com dano mínimo. Ao defenderem a paz praticamente todos defendem características e de Roma (pax romana), Agostinho argumen- crenças fixas sobre quais são as razões permiti- tava que os cristãos estavam servindo a Deus e das para ir à guerra e quais os meios aceitáveis protegendo a pureza do cristianismo contra as para lutá-la. Da mesma forma, em quase todos heresias dos povos bárbaros (DUFFEY, 2015). os principais documentos religiosos há algu- Para Agostinho a presença dos bárbaros repre- ma ponderação sobre a moralização da guerra, sentava uma ameaça à unidade e à pureza dou- a exemplo da Bíblia cristã, do Bhagavad Gita trinária da Igreja cristã, ao passo que Roma re- hindu, do Tao-te-ching do Taoísmo e do Alco- presentava o lugar de proteção para os cristãos, rão do Islã (OREND, 2013). a qual, portanto, eles deveriam defender contra No cristianismo, a determinação básica é essa ameaça. Assim, ao contrário do pacifismo, pacifista, derivada dos ensinamentos de Jesus a participação dos cristãos no serviço militar era Cristo. Jesus declarou: “Felizes os que promo- moralmente possível diante de uma realidade vem a paz” (BÍBLIA, 2016, p. 1249). Portanto, bastante problemática e que causava sofrimen- o cristão deve trabalhar como um construtor to enorme nas pessoas (AGOSTINHO, 1996). 37 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019

Apesar de a guerra justa ser uma impor- nome da religião fossem justificadas (SELEN- tante tradição no pensamento sobre a ética GUT, 2003, p. 26). Assim, como aconteceu na na guerra, ao longo dos anos essa perspectiva guerra do Afeganistão (2001) e na guerra do vem recebendo algumas críticas. De acordo Iraque (2003), os princípios da guerra justa e com Bartoli (2004), a tentativa cristã de usar os valores ditos “cristãos” foram usados para fa- o poder militar e político durante o governo zer com que as pessoas acreditassem que essas de Constantino eram no mínimo ambivalen- guerras eram necessárias e “boas”. De acordo tes, pois, por um lado, inaugurou um novo pe- com Fiala (2008), existe uma romantização em ríodo na história da Europa, por outro lado, torno da ideia de guerra justa que não permi- possibilitou intervenções violentas desastrosas te enxergar a face brutal, caótica e horrível de como as Cruzadas (BARTOLI, 2004). Scott uma guerra (FIALA, 2008). Appleby (2000, p. 34), diz que: “a existência da Diante dessas críticas, é possível consi- tradição moral da guerra justa no cristianismo derar a existência de falhas na abordagem da avança nos argumentos sobre o uso apropriado guerra justa. Além disso, como visto, o argu- da força, mas nunca a resolve”. Para o autor, mento da guerra justa cristã pode ser usado a ambivalência e o próprio pluralismo existen- como motivação ou justificativa para o uso in- te dentro das tradições religiosas estimulam o discriminado da violência. O fato é que, tanto raciocínio situacional e a liderança pragmáti- o pacifismo cristão quanto a guerra justa cristã ca (APPLEBY, 2000). Para Thomas Hoppe se desenvolveram ao longo da história e busca- (2007), embora a tradição da guerra justa con- ram à sua maneira responder às mudanças no dene a violência e coloque parâmetros para a cenário político. Nenhuma das posições repre- limitação da violência indiscriminada por parte senta um sistema fixo de afirmações teológicas do Estado, a partir do momento que ela esta- ou éticas. Ambos foram sujeitos a frequentes belece critérios morais que tornam a violência deturpações e mal usos. No entanto, muitas justificada “como um mal menor”, estas condi- vezes a ênfase na religião como fonte de con- ções ficam sujeitas a interpretação, e inerente- flito, retirou a força da religião na construção mente correm o risco de serem mal utilizadas da paz. Assim, em decorrência das mudanças (HOPPE, 2007). no cenário internacional (principalmente após De acordo com Selengut (2003), durante as Guerras Mundiais)4 e dadas às limitações da a Idade Média, a doutrina da guerra justa fun- guerra justa, várias igrejas começaram a discutir cionou eficazmente como uma “guerra santa” a respeito de uma nova abordagem que estives- para o cristianismo. O cristianismo como re- se em conformidade com os ensinamentos de ligião aceita dentro do Império Romano teve Jesus Cristo e que tivesse o compromisso para que proteger suas doutrinas de uma possível a paz e não para a guerra. Essas igrejas desen- “contaminação teológica”. Logo, o “justo” uso da força foi entendido como forma de preser- 4 Um dos aspectos fundamentais dessa mudança é com relação ao caráter dos conflitos. Antes da Guerra Fria os conflitos var a fé cristã genuína. Para o autor, a forma eram marcados por disputas ideológicas entre os Estados. universalista defendida pela fé cristã destinada Com o declínio do confronto Norte-Sul, os conflitos passam a ocorrer dentro dos Estados e na maioria das vezes derivam a oferecer à única possibilidade de salvação para de confrontos de identidade comunitária com base na raça, toda a humanidade fez com que as guerras em etnia, nacionalidade ou religião. 38 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019 volveram um novo paradigma que incorpora a ambos os documentos há o argumento de que a mudança fundamental na prática ética e am- mensagem de Cristo convida os cristãos a com- plia a estrutura de análise e critérios de ação prometer-se com o “caminho da paz justa”. Esse para a Igreja Cristã no cenário internacional. caminho é trilhado por meios de resistência Esse novo paradigma é a paz justa, como será não-violenta, de transformação de conflitos e de visto a seguir. promoção da reconciliação (BERGER, 2016). A paz justa cristã traduz a visão bíblica A paz justa e a construção da da paz em termos contemporâneos, a partir da paz no cristianismo relação interdependente entre justiça e paz. A tradução hebraica para paz, o shalom é geral- Desde o final da Segunda Guerra Mundial mente traduzido com “completude, solidez, têm surgido dentro da tradição cristã aborda- bem-estar e paz”, mas também liga a paz a con- gens referentes à construção da paz não-violen- ceitos como: justiça (mishpat), retidão (tsedeq, ta (APPLEBY, 2004). A paz justa está inserida tsedeqah) compaixão (hesed) e veracidade (emet) dentro dessa escola de pensamento. Historica- (CHURCHES, 2011). De acordo com Smyth mente, o movimento pela paz justa surgiu na (2008, p. 348), “onde há injustiça ou violência Igreja Unida de Cristo (United Church of Christ, contra os fracos, a paz de Deus é destinada ao UCC) em 1981 quando, no Sínodo Geral um exílio. A paz traz justiça, e é essa justiça que delegado trouxe uma resolução convocando a assegura que o shalom prevaleça sobre os inte- Igreja a tornar-se uma “igreja da paz” (ligada ao resses humanos e falsa paz”. Na prática, pode movimento pacifista). A resolução foi aprovada, haver divergências entre os imperativos da jus- mas ficou claro que era preciso desenvolver essa tiça e a necessidade da paz, no entanto, é den- abordagem. Sendo assim, em 1983 um grupo tro desse desacordo que a reconciliação é tra- de teólogos e estudiosos se reuniu para criar balhada para estabelecer a paz justa (SMYTH, fundamentos para essa abordagem, e em 1986, 2008). De maneira geral, a paz justa significa a membros desse grupo criaram um livro, editado prática da justiça social definida em termos de por Susan Thistlethwaite intitulado A“ Just Pea- reconciliação. Em outras palavras, a justiça se ce Church” que se tornou uma fonte primária manifesta na reconciliação, que é o meio para para a abordagem da paz justa (UCC, 2015). alcançar o fim que é a paz justa.5 Ao longo dos anos a ideia de paz justa foi As discussões sobre a paz justa no cristia- se aperfeiçoando e não ficou restrita somente a nismo dizem respeito à revisão de paradigmas Igreja da Paz. Em 2011 a Convocatória Ecumê- tradicionais ocorridas dentro do novo campo nica Internacional pela Paz (IEPC) do Conselho de estudo da “construção da paz religiosa”, que Mundial de Igrejas (CMI) produziu dois docu- enfatiza que da mesma forma que a religião mentos seminais: “Um chamado Ecumênico pode incentivar os conflitos ela pode ajudar a à paz justa” e a “Companhia da paz justa”. O resolvê-los e construir a paz (APPLEBY, 2000). primeiro documento declarou que a perspectiva e o pensamento da guerra justa são obsoletos. 5 Embora contenha componentes retributivos, a justiça bíblica é fundamentalmente sobre restauração, reparação e reconci- O segundo traz uma extensa orientação sobre liação. Para saber mais: MARSHALL, Chris. Divine justice as a implementação da teologia da paz justa. Em restorative justice. Center for Christian Ethics, p. 11-19, 2012. 39 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019

Segundo Omer (2010), a religião pode ser um mental para por fim a guerra civil em 1992 fator importante na construção da paz em pelo (HAYNES, 2009). menos três níveis: primeiro, ela motiva e inspira O caso do Sudão chama a atenção pela os indivíduos a agirem de determinada maneira promoção da reconciliação por meio do diálogo que promova a paz e a não-violência. Segun- inter-religioso. Depois das negociações de 1972 do, as infraestruturas institucionais podem ser promovidas pelo Conselho Mundial de Igrejas importantes espaços de mediação e cooperação terem alcançado sucesso ao encerrar a primeira entre redes e organizações não-governamen- guerra civil sudanesa, a dimensão religiosa do tais. Da mesma forma, o prestígio dos líderes conflito no Sudão passou a ter destaque após religiosos e atores leigos podem conferir legi- a implantação da sharia (lei islâmica) em se- timidade a processos políticos e institucionais tembro de 1983 pelo presidente Numeiry sem de reconciliação e cura pós-conflito. Terceiro, a qualquer consideração pelos não-muçulmanos religião e a tradição oferecem amplos recursos da região. Historicamente, muçulmanos e cris- para reinterpretação de definições etno-religio- tãos conviviam pacificamente, contudo, após sas de nacionalidade que resultam em práticas a implantação forçada da sharia houve um es- estatais excludentes e discriminatórias e agres- tranhamento entre eles. Todavia, isso foi essen- sões não-estatais (OMER, 2010). cial para que pessoas de diferentes religiões se Nessa perspectiva, pressupondo os ensina- unissem em vez de se dividirem para buscarem mentos da paz justa, indivíduos, comunidades soluções para que a paz fosse estabelecida no e instituições religiosas cristãs estão cada vez Sudão. O Conselho de Igrejas no Sudão do Sul mais atuantes nas tentativas de acabar com os tornou-se um espaço em que líderes cristãos e conflitos violentos e construir a paz em diver- muçulmanos passaram a discutir soluções pací- sas partes do mundo. Apesar de esse fenômeno ficas para o Sudão (LOWILLA, 2006). ter ganhado maior atenção após a Guerra Fria, O que chama a atenção nesse caso é que ele não é algo novo. Os exemplos incluem a: ao mesmo tempo em que as ações em prol da mediação realizada pelos Quakers e financiada paz são efetuadas pelo Conselho Ecumênico de pela fundação Ford na Guerra Civil da Nigé- Igrejas no Sudão do Sul, a guerra geralmente ria (1967-1970); os esforços dos Menonitas tem sido interpretada como um conflito envol- por meio do professor John Paul Lederach6 vendo o norte islâmico arabizado dominante, na Nicarágua na década de 1980; o trabalho mais desenvolvido, contra o sul africano, me- do Conselho Mundial de Igrejas na mediação nos desenvolvido e predominantemente cristão e cessação do conflito no Sudão em 1972; a e animista (LOWILLA, 2006). No entanto, mediação promovida pela comunidade leiga como explica Assefa (1990), seria simplista católica Sant’Egidio em Moçambique, funda- demais reduzir as guerras civis no Sudão ba- seada puramente nas diferenças religiosas. A divisão religiosa entre cristãos e muçulmanos 6 Lederach é um dos teóricos responsáveis pelas discussões sobre a construção da paz religiosa. Vale salientar que essas se sobrepõem a divisões profundas de raça, discussões ainda são iniciais e restritas à Universidade católica etnia e geografia. A esperança para o Sudão é norte americana de Notre Dame. Fazem parte desse campo: que o diálogo possa abrir caminhos para a re- Scott Appleby (2000), Atalia Omer (2010), Daniel Philpott (2010), entre outros. solução do conflito e diminuição da violência 40 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019

(ASSEFA, 1990). Segundo Hayward (2012), ção comum de que essa variável causa violência. em ambientes conflituosos em que existe algu- No Sudão do Sul, o diálogo relacional é usado ma divisão religiosa, o diálogo inter-religioso como plataforma para a reconciliação e mitiga- é uma maneira de construir relacionamentos ção das animosidades. É certo que isso tem sido cooperativos. O diálogo inter-religioso é capaz mais uma exceção do que uma regra. No entanto, de promover ações transformadoras em prol da isso nos desafia a reconhecer o grande potencial construção de uma paz justa após conflitos vio- inerente à religião para amenizar as paixões des- lentos (HAYWARD, 2012). trutivas e se tornar um instrumento para a paz.

Conclusão Referências

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Relações Internacionais e Religião: Frei Betto, a crítica do ateísmo do socialismo internacional e a construção da laicidade do socialismo cubano International Relations and Religion: Frei Betto, criticizing the atheism of international socialism and building the secularism of Cuban socialism

Relaciones internacionales y religión: Frei Betto, la crítica del ateísmo del socialismo internacional y la construcción de la laicidad del socialismo cubano

Fábio Régio Bento1

DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p42 Recebido em: 08 de maio de 2019 Aceito em: 01 de dezembro de 2019

Resumo Neste artigo estudaremos a experiência política-internacionalista de Frei Betto com o objetivo de identificar o papel exercido pelo brasileiro na transformação política de Cuba que trocou o ateísmo de Estado pela laicidade. Utilizamos fontes bibliográficas para a redação e participa- ção em eventos temáticos para a formulação das aproximações hermenêuticas apresentadas. Palavras-chave: Frei Betto. Cuba. Relações Internacionais.

Abstract In this article, we will study Frei Betto’s political-internationalist experience in order to identify the role played by the Brazilian in the political transformation of Cuba, which changed state atheism by secularism. We use bibliographic sources for the writing and par- ticipation in events for the formulation of the hermeneutic approaches. Keywords: Frei Betto. Cuba. International Relations.

Resumen En este artículo, estudiaremos la experiencia político-internacionalista de Frei Betto con el objetivo de identificar el papel desempeñado por lo brasileño en la transformación política de Cuba que cambió el ateísmo del Estado por la laicidad. Utilizamos fuentes bibliográfi- cas y participar en eventos temáticos para formular los enfoques hermenéuticos presentados. Palabras clave: Frei Betto. Cuba. Relaciones Internacionales.

1 Pós-doutor junto ao Núcleo de Estudos da Religião do PPGAS da UFRGS com pesquisa sobre Religião e Revolução na América Central (2015). Doutor em Ciências Sociais pela PUC San Tommaso (Roma, 1996). Mestre em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana da PUC Lateranense (Roma, 1992). Professor associado na Universidade Federal do Pampa onde leciona Política, Re- lações Internacionais e Religião no curso de Relações Internacionais (campus Santana do Livramento-RS). Professor colaborador no mestrado em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (campus João Pessoa). Membro do CEPRIR: Centro de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião. https://orcid.org/0000-0003-3796-1799 43 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

Introdução pela professora Anna Carletti, do curso de Re- lações Internacionais da Universidade Federal No capítulo de livro intitulado Religião nas do Pampa, e pelo professor Marcos Alan Fer- Relações Internacionais, o britânico Jeffrey Hay- reira, da Universidade Federal da Paraíba, cujo nes (2016, p. 22), diretor do Centro de Estudos quinto capítulo, sobre Relações Internacionais de Religião, Conflito e Cooperação da London e Religião na América Latina é de nossa autoria. Metropolitan University (UK), destacou que O analista das Relações Internacionais que há duas categoriais de atores religiosos “ativos reconhece o poder relativo dos sujeitos coleti- atualmente nas relações internacionais”, os esta- vos confessionais transnacionais, independen- tais e os não-estatais. Entre os não-estatais estão te de concordar ou não com a atuação local e “indivíduos, movimentos religiosos transna- internacional desses movimentos, instituições cionais e instituições”, figuras como Desmond e biografias confessionais, não negligencia em Tutu, Papas como João Paulo II, Papa Francis- seus estudos a análise da influência política de co, movimentos como a Al-Qaeda e instituições tais sujeitos coletivos confessionais no cenário como a Santa Sé/Vaticano (HAYNES, p. 23). complexo das relações internacionais. A análise O caso Frei Betto se insere nas três moda- se desenvolve geralmente por meio do estudo de lidades de ator religioso não-estatal identifica- casos, dada a complexidade cognitiva dos sujei- das por Haynnes: Betto faz parte do movimen- tos e cenários e das relações entre tais sujeitos e to latino-americano da Teologia da Libertação, cenários. Nesse sentido, estudos “civilizatórios” situado na esquerda da instituição Igreja Cató- sobre religiões transnacionais e relações interna- lica, e se trata de uma biografia politicamente cionais correm o risco de se tornarem explana- relevante pela influência local e internacional ções mais apologéticas do que de pesquisa. gerada por suas obras literárias, várias delas tra- Em artigo anterior (BENTO, 2017), pro- duzidas em vários idiomas, e sua atuação políti- curamos demonstrar, por meio de pesquisa his- ca internacional, que analisaremos neste artigo tórico-bibliográfica, que o ateísmo do socialis- do ponto de vista de sua atuação internacional mo soviético não deriva de Karl Marx, que foi pela construção da laicidade de experiências ateu, mas não ateísta, mas de fonte externa ao socialistas caracterizadas pelo ateísmo devido marxismo que foi adotada por Lenin e levada à influência exercida ao longo de décadas pela por ele para dentro do socialismo soviético. E União Soviética no socialismo internacional. tal associação a nosso aviso equivocada entre Nos cursos de Relações Internacionais do ateísmo, marxismo e socialismo exerceu forte Brasil, estudar Relações Internacionais e Reli- influência nos países e movimentos socialis- gião não é regra geral, mas já há oferta da disci- tas internacionais para os quais foi exportada. plina, como obrigatória ou optativa, em alguns Mesmo após o término da União Soviética, cursos brasileiros de graduação em Relações In- essa associação produzida e difundida interna- ternacionais (CARLETTI; FERREIRA, 2018). cionalmente pelo socialismo leninista-soviético A temática já conta com a publicação de permanece como memória político-cultural de um livro específico no Brasil, intituladoReli - movimentos socialistas internacionais como se gião e Relações Internacionais, publicado em fosse tese-dogma do marxismo para movimen- 2016 pela Editora Juruá (Curitiba), organizado tos e Estados socialistas. 44 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

A contestação teórico-prática da associa- experiência política de juventude na Juventude ção leninista entre marxismo e ateísmo emerge, Estudantil Católica (JEC) e Juventude Univer- porém, em vários autores, entre eles Rosa Lu- sitária Católica (JUC) pode-se conferir o livro xemburgo (BENTO, 2017), contemporânea e História da Ação Popular, da JUC ao PCdoB, de crítica de Lenin, e também nas ações (locais- Haroldo Lima e Aldo Arantes (1984), a pesqui- -internacionais) e pensamento de Frei Betto, sa do brasilianista Scott Mainwaring, Igreja Ca- dominicano brasileiro que é ao mesmo tempo tólica e Política no Brasil, sobretudo os capítulos crente e socialista. sobre a Igreja reformista e a esquerda católica Em Frei Betto (1986a; 2006; 2015) fica (2004, p. 62-100), e a pesquisa do historiador evidente que a briga entre comunismo - que Oscar Beozzo, Cristãos na Universidade e na Po- seria ateu, por ser marxista, “materialista” - e lítica – história da JUC e da AP (1984). religiões, tratadas tout court como resquício de Nesta pesquisa, focaremos especificamente irracionalidade da humanidade pelos positivis- apenas neste recorte do pensamento político de tas burgueses e pelos positivistas socialistas, é Frei Betto: socialismo internacional e laicidade. uma história mal contada. Frei Betto contesta a confessionalidade Socialismo internacional (ateísmo) do socialismo e, no caso do socialis- e laicidade mo cubano, promoveu diretamente, como ve- remos no artigo, a desconstrução dessa confes- Em Frei Betto (1990; 2007; 2015), a sionalidade de Estado e construção da laicidade previsão positivista do declínio inelutável da do socialismo cubano, com o abandono tam- religião pelo “progresso da ciência” é biografi- bém jurídico do ateísmo de Estado no início da camente contestada, dado que se trata de um década de 1990. intelectual socialista crente, autor de dezenas Betto escreveu e publicou dezenas de li- de livros que, com o passar dos anos continua vros e centenas de artigos2. Sobre sua vida de crente, intelectual e socialista. militante e literato (uma relação de unidade O pensamento político de Frei Betto é e distinção) destacamos a recente Biografia de pensamento em ação. E a sua, mais do que mi- Frei Betto, escrita por Evanize Sydow e Américo litância partidária (nunca foi filiado a partido), Freire (2016), e seu premiado livro Batismo de é militância em movimentos de base, tipifica- Sangue (2006), que chegou também ao cinema. da não pelo basismo vulgar de quem mitifica Pode-se verificar também o posfácio do a base em si. Ao contrário, é caracterizada pela livro A Guerra dos deuses, onde Michael Löwy visão de quem considera a base como uma ex- (2000) analisa a contribuição dos intelectuais periência em autoconstrução nos processos de franceses da ordem dos dominicanos, comuni- tomada de consciência (educação popular) das dade religiosa de Betto, na formação da esquer- situações constitutivas de dominação de classe, da católica brasileira. Além disso, para a com- de raça, de gênero, e contestação dessas formas preensão do contexto histórico inicial de sua coletivas estruturais de subordinação. Dessa forma, em Frei Betto, a defesa da tese da laicidade do socialismo internacional 2 Disponível em: http://www.freibetto.org/index.php. Acesso em: 20/12/2017. ocorre nessa sua trajetória prático-teórica: ele 45 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019 viaja por países socialistas, encontra-se com convidados internacionais a grande atração era líderes políticos, contesta a tese confessional . do ateísmo de Estado diante de seus próprios Na Praça 19 de Julho, pela manhã, dia 19 sustentadores e reivindica, em tal contesto prá- de julho de 1980, Fidel discursou para 600 mil tico-dialético, a associação entre socialismo pessoas. Após o ato, o ministro das Relações e laicidade. As suas formulações teóricas são Exteriores da Nicarágua, o sacerdote sandinista construídas nesses diálogos francos e, por isso, Miguel D’Escoto deu carona a Betto até seu ho- algumas vezes tensos. tel e avisou-lhe de ficar atento ao telefone, pois queria que viesse com ele à casa de um amigo Tudo começou em Manágua naquela mesma noite. De fato, Betto foi depois levado à casa de Sérgio Ramirez, escritor nica- No dia 11 de abril de 2014, uma sexta-fei- raguense, membro da Junta de Governo. Pela ra, em entrevista que nos concedeu pela ma- mediação desse sacerdote católico revolucioná- nhã, em Manágua, na sede do Movimento Fe y rio, quando os últimos convidados se retiraram, Alegria, o sacerdote jesuíta Fernando Cardenal, por volta das 2h da madrugada, na biblioteca que foi ministro de Estado da junta revolucio- da casa de Sérgio Ramirez ocorreu o primeiro nária sandinista, nos relatou que encontro entre Betto e Fidel. O brasileiro pen- na celebração do primeiro ano da Revolu- sou que além de ser o primeiro seria também o ção Sandinista, em julho de 1980, Fidel veio único. Não sabia que dialogaria com o revolu- nos visitar. Felicitava-nos pela “aliança entre cionário cubano dezenas de outras vezes. cristãos e marxistas na luta revolucionária” quando uma freira levantou o braço e disse Naquela madrugada de julho, Frei Betto que não tinha sido bem assim. “Puxa, deixa- discorreu sobre as Comunidades Eclesiais de mos uma freira reacionária entrar na reunião Base e sobre a escolha que considerava equi- com Fidel”, pensei. Mas ela concluiu: “Aqui vocada dos partidos comunistas que adotaram não houve aliança entre cristãos e marxistas. Trabalhamos todos juntos na luta revolucio- o ateísmo como programa político. Fidel, por nária”. Não era uma freira reacionária, mas sua vez, destacou que em Cuba, às vésperas da mais revolucionária do que pensei (BENTO, Revolução de 1959, diversamente da Nicará- 2016, p. 75-77; CARDENAL, 2009). gua, o clero católico era conservador e mesmo Nessa celebração do primeiro aniversário da franquista. Depois, o diálogo entre eles tomou Revolução Sandinista, estava também Frei Bet- o seguinte rumo: to, que manteve uma conversa ousada com Fidel - Por que o Estado e o Partido Comunista de Castro, como veremos, dando início, assim, em Cuba são confessionais? – perguntou Betto. Manágua, ao processo de construção da laicida- - Como Confessionais?! – reagiu Fidel, sur- de do socialismo cubano (BETTO, 2015). preso. - Somos ateus. Para as festividades desse 1° aniversário da - O ateísmo é uma forma de confessionalida- Revolução Sandinista, o governo da Nicarágua de, assim como o teísmo, pois professa a ne- convidara, do Brasil, dom Paulo Evaristo Arns gação da existência de Deus. Uma conquista (que não pôde viajar), Luiz Inácio Lula da Sil- da modernidade é o Estado e o partido laicos. va, presidente do Partido dos Trabalhadores, e Um Estado ateu é tão confessional quanto um Estado cristão ou muçulmano. Frei Betto. Dois religiosos e um civil. Entre os 46 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

- Você tem razão – admitiu Fidel. – Estaria Questionado por um jornalista sobre disposto a nos ajudar a conseguir um bom essa passagem, em Cuba, da confessionalida- diálogo com os bispos cubanos? de (ateísmo) de partido e Estado à laicidade, o - Sim, comandante, desde que eles também es- teólogo brasileiro explicou que tejam dispostos a isso (BETTO, 2015, p. 43). O mérito desse trabalho é de Frei Betto. O que Na biblioteca da casa de Sérgio Ramirez, de fato mudou a situação foi o livro dele [do Frei Betto] Fidel e a religião [1985]. O livro em julho de 1980, começou a construção da vendeu um milhão de exemplares em Cuba. laicidade do socialismo cubano por meio da in- Agora saiu uma nova edição, outra vez com fluência exercida pelo religioso brasileiro junto uma tiragem de um milhão de exemplares. Então, o povo percebeu que não há contra- ao revolucionário cubano. dição entre cristianismo e socialismo. A partir De fato, anos depois, durante o IV Con- disso, Fidel aceitou e convidou o papa João gresso do Partido Comunista cubano, em outu- Paulo 2º, depois o papa Bento 16, e agora o bro de 1991, decidiu-se pela supressão do cará- papa Francisco, duas vezes (BOFF, 2016). ter ateu do partido, que passou a ser considerado Portanto, no meio do caminho tinha um laico. Para o Partido Comunista de Cuba, a livro, que quebrou a pedra exógena do ateísmo crença religiosa não seria mais obstáculo à filia- de Estado. Entre o encontro na biblioteca de ção. Os bispos cubanos, entretanto, dois meses Sérgio Ramirez, em 1980, e as mudanças em depois proibiram os católicos de se filiarem ao relação às conexões entre socialismo e religião partido (BETTO, 2015, p. 126). ocorridas em Cuba em 1991 e 1992, está Fidel No ano seguinte (1992), a Assembleia Na- e a Religião (BETTO, 1986b). cional modificou a Constituição e considerou Cuba como sendo um Estado laico, mesmo sem Fidel e a Religião: um caso de usar essa expressão (laicidade no conteúdo da lei): literatura militante Esta Constitución proclamada el 24 de febre- ro de 1976, contiene las reformas aprobadas Frei Betto pisou em Cuba pela primeira vez por la Asamblea Nacional del Poder Popular en el XI Período Ordinario de Sesiones de la em setembro de 1981, integrando a delegação III Legislatura celebrada los días 10, 11 y 12 brasileira do Iº Encontro de Intelectuais pela So- de julio de 1992. berania dos Povos de nossa América. Entre se- Artículo 8° - El Estado reconoce, respeta y tembro de 1981 até o início das entrevistas com garantiza la libertad religiosa. En la Repúbli- Fidel, em 1985, o religioso brasileiro retornou ca de Cuba, las instituciones religiosas están separadas del Estado. Las distintas creencias y várias vezes à ilha. A proposta de entrevistar Fidel religiones gozan de igual consideración. com o objetivo de fazer um livro sobre religião foi-lhe feita em fevereiro de 1985 - Betto fora Artículo 55° - El Estado, que reconoce, res- peta y garantiza la libertad de conciencia y convidado como jurado do prêmio literário da de religión, reconoce, respeta y garantiza a la Casa de las Americas - durante um jantar com vez la libertad de cada ciudadano de cambiar de creencias religiosas o no tener ninguna, y Fidel, que aceitou, marcando as entrevistas para a profesar, dentro del respeto a la ley, el culto maio do mesmo ano (SYDOW; FREIRE, 2016). 3 religioso de su preferencia (CUBA, 1992). O brasileiro traduziu pessoalmente o con- teúdo de 23 horas de diálogo que ocorreram 3 Constitución de la República de Cuba (1992). Disponível em: http://www.cuba.cu/gobierno/cuba.htm. Acesso em: 30/10/2017. de 23 a 28 maio de 1985. Foi a primeira vez 47 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019 que Fidel deu entrevistas especificamente sobre duzida em 32 países e 20 idiomas – passa de o tema religião, o que foi possível porque Fi- 1,3 milhão de exemplares (SYDOW; FREI- RE, 2016, p. 16). del andava já percebendo as mudanças de lugar político de algumas ideologias confessionais no Só o fato de um líder socialista internacio- terreno da luta de classes latino-americana. An- nal como Fidel Castro tratar sobre o tema reli- tes da Nicarágua, de fato, havia dialogado com gião com seriedade, considerando-o relevante, sacerdotes chilenos socialistas em novembro de e tendo como interlocutor um intelectual ao 1971. Tratara sobre o tema religião também na mesmo tempo crente e socialista, já represen- Jamaica, em outubro de 1977, dessa vez com tava em si um fato subversivo, pela contestação cristãos majoritariamente protestantes (SY- do ateísmo socialista, considerado “normal” DOW; FREIRE, 2016). nos círculos leninistas. Fidel e a Religião: conversas com Frei Bet- O livro, portanto, em si provocador, ao ser to, foi lançado no Brasil na primeira semana de lido perturbava os setores “confessionalistas” outubro de 1985, alcançando várias edições em do socialismo internacional também por seu poucos meses. Em Cuba, a primeira edição ul- conteúdo. Nele, Fidel (apud BETTO, 1986b, trapassou os 360 mil exemplares. A obra chegou p. 19) elogiou os cristãos revolucionários e cri- às livrarias de Havana no dia 02 de dezembro de ticou os marxistas que adotavam o sectarismo 1985, esgotando-se em apenas duas horas. Em em suas relações com os crentes revolucioná- Pinar del Rio, Matanzas e Isla de la Juventud, rios: “Há muitos marxistas que são doutri- os livros chegaram no dia 04 de dezembro. Em nários. E acredito que ser doutrinário neste Villa Clara, Cienfuegos, Sancti Spiritus, Ciego problema dificulta esta questão”. Fidel (apud de Avila e Camagüey, no dia 06. Em Santiago BETTO, 1986b, p. 332) afirmou também que de Cuba, Las Tunas, Holguín, Granma e Guan- a frase “a religião é o ópio do povo”, que pode tánamo, no dia 09 (SYDOW; FREIRE, 2016). ter sido “justa num determinado momento” e Fidel e a Religião foi um dos maiores fenô- valer ainda em algumas circunstâncias, menos da história editorial cubana: de nenhum modo tem ou pode ter o caráter de dogma ou de verdade absoluta. É uma verdade Muitas pessoas em Cuba deixaram de ir ao ajustada a determinadas condições históricas trabalho para conseguir comprar um exem- concretas. Creio que é absolutamente dialético plar, porque os estoques se esgotavam logo e marxista tirar esta conclusão. Em minha opi- que chegavam às livrarias. Quem deixava para nião, a religião, sob a ótica política, não é em adquirir no final do dia já não encontrava o si mesma ópio ou remédio milagroso. Pode livro disponível. Chegou ao ponto de o Mi- ser ópio ou maravilhoso remédio na medida nistério da Cultura proibir a venda de mais em que sirva para defender os opressores e os de um exemplar por pessoa, para impedir que exploradores ou os oprimidos e os explorados. se criasse um mercado clandestino. A polícia teve que ir a algumas livrarias porque o pú- As reflexões abertas de Fidel sobre a religião blico amotinado quebrava vitrines. Quem es- foram rejeitadas tanto por católicos reacionários tava nas filas para comprar dizia coisas como quanto por marxistas “ortodoxos”. Bem acolhi- “sou religiosa e estou certa que nele Fidel dis- do em Cuba, o livro, de fato, foi censurado em se coisas de grande valor”, “encontraremos no livro materiais muito esclarecedores” ou “será países do socialismo real que adotaram o ateís- uma fonte singular de ensino para o povo”. mo de Estado e partido dos velhos manuais pro- Hoje (2016), a tiragem cubana da obra – tra- duzidos e exportados pelo socialismo soviético. 48 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

Com a sua publicação, porém, Betto fi- de Fidel Castro favoráveis ao trabalho das reli- cou mais conhecido internacionalmente, tor- giosas em Cuba. Assim, conseguimos tirá-las da nando-se uma espécie de símbolo vivo da pos- clandestinidade. Agora só faltam os religiosos”. sibilidade de relações críticas e construtivas Nesse mesmo dia, Betto encontrou-se com entre marxismo, socialismo e religião. Assim, Cinolder e Mracan, membros do Comitê Cen- aumentaram os convites para visitas em países tral do Partido Comunista, com quem debateu socialistas, para onde se dirigia sozinho ou em o direito à liberdade religiosa. Queria saber delegações com outros pesquisadores-militan- também por que não permitiram a publicação tes do movimento da Teologia da Libertação. integral de Fidel e a religião na Tchecoslováquia. Dessa forma, quando chegava, sua presença já “Nossos filósofos acham que a posição de Fidel possuía o significado paradigmático citado, que diante da religião pode causar dúvidas na cabeça Betto utilizava para promover abertura à liber- de nossos militantes”, responderam (BETTO, dade religiosa, propondo direta e indiretamen- 2015, p. 376). Na noite desse mesmo dia, Frei te o reconhecimento da laicidade do socialismo Betto autografou a versão resumida de Fidel e a como forma de se efetivar a liberdade coletiva religião, com o título também modificado, ou de credo ou não-credo nesses Estados socialis- seja, com censura no conteúdo e na forma: Ca- tas confessionais (ateísmo de Estado). minhar ao lado dos pobres (Na strasse chudych). Além disso, a obra de Betto e Fidel, editada por Repercussão internacional de um organismo ecumênico, “não foi vendida ao Fidel e a Religião público, apenas distribuída gratuitamente nos círculos religiosos” (BETTO, 2015, p. 377). Quando de sua viagem a Moscou, em Na Alemanha Oriental o título do livro maio de 1986, Frei Betto (2015, p. 183) en- também foi modificado:Frei Betto: conversações controu-se com Konstantin Khartchev, e dis- noturnas. Censuraram o nome de Fidel Castro parou: “Não considero positivo o conteúdo na capa, pois poderia gerar “confusão” (SY- dos manuais soviéticos de marxismo exporta- DOW; FREIRE, 2016, p. 277). dos para a América Latina. São dogmáticos e Betto, com outros brasileiros, esteve tam- tratam a questão religiosa de modo simplista e bém na República Popular da China, em ou- preconceituoso”. tubro de 1988. Na cidade de Pequim, em diá- Na então Tchecoslováquia, onde Betto es- logo com Madame Chao Jinru, vice-presidente teve em junho de 1988, o Partido Comunista da Comissão de Assuntos Religiosos, o teólogo “não autorizou uma edição em tcheco de Fidel e brasileiro Clodovis Boff a interrogou sobre as re- a religião. Só mesmo em inglês. Alegaram que o lações entre ateísmo e marxismo, e sua resposta livro ‘é muito cubano’ e haveria o risco de que- foi a seguinte: “Nosso pensamento fundamen- rerem aplicá-lo ali...” (BETTO, 2015, p. 300). tal é o materialismo histórico e o materialismo Todavia, também na Tchecoslováquia, no dia dialético. Esta é a nossa referência de base. Se 26 de maio de 1989, monsenhor Liska (apud utilizamos o materialismo dialético, somos, por- BETTO, 2015, p. 375), bispo auxiliar de Pra- tanto, ateus. (...) Como marxistas, somos ateus, ga, revelou a Frei Betto: “Graças ao seu livro mas não podemos exigir que toda a população utilizei, junto ao governo tcheco, argumentos também o seja” (apud BETTO, 2015, p. 314). 49 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

Frei Betto a contestou citando a carta de no objetivo, também desaparecerá?”. Senhor Marx a Bolte onde ele critica a proposição de Albert respondeu que sim, pois “todos os fenô- Bakunin de impor “o ateísmo como dogma menos objetivos estão sujeitos ao ciclo de nasci- obrigatório para os membros da Internacional” mento e morte, inclusive o Partido Comunista (MARX, 1871). O religioso sustentou que o e o país” (apud BETTO, 2015, p.338). conflito com a religião deveria ser interpretado de Betto (2015, p.338) pisou no pedal da um ponto de vista histórico-político e não como provocação com uma última pergunta: “A lei uma questão de princípio. Sua tentativa, porém, da objetividade também é um fenômeno ob- foi rejeitada: “Cremos no marxismo e somos ma- jetivo. Ela também desaparecerá?”. Acuado, o terialistas; portanto, ateus”, sintetizou Chao Jin- vice-presidente do Birô de Assuntos Religiosos ru (apud BETTO, 2015, p. 315). A laicidade do pediu calma: “Sejamos pacientes e aguardemos materialismo do marxismo não estava contida no o tempo...” (apud BETTO, 2015, p.338). seu leque de possibilidades hermenêuticas. A China, portanto, acolheu Betto, mas Em Hankou, no dia 16 de outubro de não sua crítica da confessionalização do mar- 1988, encontraram-se com Wang Chu Jie, xismo e socialismo. Na América Latina, porém, presidente do Birô de Assuntos Religiosos de estava sendo diferente. toda a província de Hubei, que sustentou a tese Em janeiro de 1989, nos festejos do 30° da confessionalidade da dialética: “Nós, como aniversário da Revolução Cubana, Betto abriu militantes do Partido Comunista, somos ateus, uma mesa-redonda na Escola Superior do Par- devido ao materialismo dialético” (apud BET- tido, em Havana, analisando as relações entre TO, 2015, p. 330). E ainda: “A única coisa que cristianismo e marxismo, Igreja e Estado nos diferencia um militante do Partido e um cristão países socialistas. Na plateia, dezenas de diri- é a fé. Temos fés diferentes. Cremos no mate- gentes políticos cubanos e latino-americanos. rialismo ateu e, vocês, em Jesus Cristo” (apud Rigoberto Padilla (apud BETTO, 2015, BETTO, 2015, p. 330). p. 347), secretário-geral do Partido Comunista Em Xangai, os brasileiros encontraram-se de Honduras, interveio: com o vice-presidente do Birô de Assuntos Re- Meu primeiro impacto com os cristãos veio ligiosos, Senhor Albert. “Funcionários do Birô da leitura do documento episcopal de Me- dellín e do testemunho de sacerdotes que de- de Assuntos Religiosos nos disseram que a reli- ram a vida pelo povo. Antes, ficava-se discu- gião vai desaparecer. Vocês dizem que ela deve tindo se haveria ou não glória eterna, quando contribuir para o progresso do país. Deve-se se deveria discutir é se há ou não injustiça ter- rena e como combatê-la. Considero um ab- trabalhar para o desaparecimento da religião?”, surdo que, no passado, meu partido exigisse perguntou-lhe Frei Betto (BETTO, 2015, que seus militantes renunciassem à fé, provo- p.338). “Nós, materialistas dialéticos, afirma- cando profundos traumas psicológicos. Hoje, mos que há leis objetivas na natureza e na his- em Honduras, estão unidos os comunistas, os católicos e os luteranos. A entrevista de Fidel tória. Tudo nasce, cresce, declina e desaparece”, Castro sobre a religião foi amplamente difun- respondeu-lhe o vice-presidente do Birô chinês dida em meu país. A meu ver, não há contra- de Xangai (apud BETTO, 2015, p. 338). dição entre religião e revolução. Betto (2015, p.338) continuou questio- Nesse mesmo evento, Alvaro Monteiro nando-lhe: “E o marxismo, enquanto fenôme- (apud BETTO, 2015, p. 347), secretário-geral 50 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019 do Partido Socialista da Costa Rica, destacou Ilha aceitarem Lênin, visto como inspirador que “devemos falar de ‘revolucionários’ e não do modelo autoritário de partido único e do ateísmo como critério de firmeza ideológica. de ‘cristãos e marxistas’. Ingressar num partido marxista não torna ninguém revolucionário, a Para Frei Betto (BETTO, 2015, p. 454- não ser como ato de fé. São as atitudes concre- 455), “a Revolução Cubana, ao contrário da tas que forjam um revolucionário”. russa, não se fez contra a religião”, mas “o apoio Ainda em janeiro de 1989, em Cuba, Frei do Kremlin teve seu preço ideológico: Estado e Betto ouviu de Carlos Aldana (apud BETTO, Partido Comunista declararam-se oficialmente 2015, p. 364), então responsável pelas esferas ateus; os currículos escolares incluíram a dis- ideológica e cultural do Secretariado do Comi- ciplina ‘ateísmo científico’”. A seu aviso, “a tê Central do Partido Comunista: abertura da Revolução ao fenômeno religioso O Partido tem, hoje (1989), cerca de 500 mil deu-se graças à Revolução Sandinista e ao des- militantes e 600 mil na Juventude Comunista. moronamento do socialismo europeu” (BET- Reconhecemos que há um vazio na elabora- TO, 2015, p. 455). Dessa forma, para ele, “a ção teórica. Domingo passado, Fidel disse que queda do Muro de Berlim contribuiu para des- é preciso acabar com o ensino dogmático do marxismo. Sabemos que as escolas do Partido dogmatizar princípios fundamentais do mar- são incipientes e, por isso, estamos revendo seus xismo vulgar” (BETTO, 2015, p. 455). Não textos e métodos. Basta dizer que passamos dez representou, portanto, o fim do marxismo, mas anos sem estudar a história de Cuba como ma- libertação e recomeço. téria específica! Era parte da história geral.

Em dezembro de 1991, novamente em Papas em Cuba: depois do frei Havana, Betto dialogou com Carneado, do chegaram os papas Comitê Central, sobre as mudanças ocorridas no outubro anterior no partido comunista e Em janeiro de 1998, durante sua visita à sobre a iminente reforma da Constituição com ilha, o papa João Paulo II “evitou extremos: nem a proposta, que depois se confirmou, de des- condenou nem canonizou a Revolução”, decep- confessionalizar também o Estado cubano. Co- cionando os anticastristas de Miami e deixando mentaram que, depois da sua desconfessionali- Fidel aliviado, dado que se tratava de uma visita zação, alguns membros do partido comunista de alto risco (BETTO, 2015, p. 456-458). passaram a manifestar publicamente sua fé cris- Na reunião de avaliação da visita do papa tã, e cristãos ingressavam no partido. Carneado feita por Fidel, na qual Betto também se encon- (apud BETTO, 2015, p. 424) destacou que trava, no final de janeiro de 1998, o revolucio- foram tempos difíceis quando o ateísmo era nário cubano destacou que o país ganhara um dogma de partido, mas que “muitos que foram “expressivo aliado contra o bloqueio dos EUA a afastados do Partido, por terem se casado na Cuba”, que o papa polonês classificou como “in- Igreja, ou batizado um filho, agora reingressam justo e eticamente inaceitável” (BETTO, 2015, em nossas fileiras”. Sobre isso, Frei Betto (BE- p. 458). Fidel surpreendeu-se com a crítica do TTO, 2015, p. 424) fez a seguinte anotação: pontífice ao “capitalismo neoliberal” e ficou Pareceu-me que Carneado mostrava-se sen- agradecido “pelo modo respeitoso como o papa sível à dificuldade de os setores cristãos da tratou o povo cubano” (BETTO, 2015, p. 458). 51 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

Anos depois, em março de 2012, Betto – um legado a favor da humanidade, do arcebis- encontrava-se em Havana para acompanhar po católico de Munique, Reinhard Marx, no- também a visita de Bento XVI quando tomou meado Cardeal por Bento XVI em 2010. Por conhecimento que Ratzinger dissera, na entre- ocasião do lançamento desse livro, em 2011, vista que concedera aos jornalistas no voo que o cardeal alemão, que chamou Karl Marx de o levava à Ilha, que o marxismo “já não é mais “querido homônimo”, destacou que “Marx não útil” (BETTO, 2015, p. 506). está morto e é preciso levá-lo a sério”: “Há que Em sua resposta, Frei Betto (2015, p. 506- se confrontar com a obra de Karl Marx, que 507) lembrou que a casa de Ratzinger também nos ajuda a entender as teorias da acumulação tem telhado de vidro: capitalista e o mercantilismo. Isso não significa Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não é mais deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades útil, porque já não se justifica enviar mulheres ti- cometidas em seu nome no século XX” (apud das como bruxas à fogueira nem torturar suspei- BETTO, 2015, p. 508). tos de heresia. Ora, felizmente o catolicismo não pode ser identificado com a Inquisição, nem Em suma, uma coisa é a obra de Marx, com a pedofilia de padres e bispos. Do mes- cujo livro O Capital, segundo o cardeal alemão mo modo, o marxismo não se confunde com é um legado a favor da humanidade, outra, dife- os marxistas que o utilizaram para disseminar o rente, o uso dela pelo seu vasto, heterogêneo e medo, o terror, e sufocar a liberdade religiosa. Há que voltar a Marx para saber o que é marxis- contraditório fã clube internacional. mo; assim como há que retornar aos Evangelhos Posteriormente, em setembro de 2015, e Jesus para saber o que é cristianismo, e a Fran- quem visitará Cuba será um papa argentino, cisco de Assis para saber o que é catolicismo. com uma avaliação do capitalismo diferen- Para o religioso brasileiro, o que “já não te da que sustentou o reformismo dos pa- é útil” é o capitalismo, um sistema “intrinse- pas anteriores. No seu encontro com Fidel camente perverso” (BETTO, 2015, p. 507), Castro, em sua casa, no dia 20 de setembro com o qual “a Igreja Católica muitas vezes é de 2015, Papa Francisco recebeu das mãos conivente”, “porque este a cobre de privilégios do revolucionário cubano, de presente, o li- e lhe franqueia uma liberdade que é negada, vro subversivo de Frei Betto e Fidel Castro pela pobreza, a milhões de seres humanos” sobre religião. (BETTO, 2015, p. 508). Segundo o então porta-voz do Vaticano, Ao contrário, para Betto (BETTO, 2015, padre Federico Lombardi (2015), o revolucio- p. 508), nário cubano escreveu na dedicatória de Fidel o marxismo, ao analisar as contradições e e a Religião: “Para o papa Francisco em ocasião insuficiências do capitalismo, nos abre uma de sua visita a Cuba, com a admiração e o res- porta de esperança a uma sociedade que os peito de todo o povo cubano”. católicos, na celebração eucarística, caracte- rizam como o mundo em que todos haverão Fidel e a Religião entrou assim no Vatica- de “partilhar os bens da Terra e os frutos do no, na bagagem de um papa, como presente trabalho humano”. A isso Marx chamou de de um revolucionário cubano. Se Francisco o socialismo. leu, não sabemos, mas, de fato, emerge que há E concluiu essas suas anotações ao comen- certa sintonia política entre o frei brasileiro e o tário de Bento XVI citando o livro O capital papa argentino. 52 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

Um aliado inesperado A dramaticidade da exclusão e destruição do “solo, água, ar e todos os seres da criação” Entre João Paulo II, Bento XVI e Papa Fran- (PAPA FRANCISCO, 2015c, p. 2) indica que cisco há solução de continuidade e, também, re- o sistema precisa ser urgentemente transforma- lativa diversidade. O âmbito de atuação e refle- do caso se queira evitar o apocalipse ambiental: xão dos papas é muito amplo e em tal situação Digamo-lo sem medo: Queremos uma mu- de complexidade e amplitude existe continui- dança, uma mudança real, uma mudança de dade (tradição) e modificações hermenêuticas e estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os de atuação vinculadas às mudanças históricas e trabalhadores, não o suportam as comunida- alterações hermenêuticas em relação a tais trans- des, não o suportam os povos... E nem sequer formações contextuais. No caso do Papa Francis- o suporta a terra, a irmã Mãe Terra, como co, a questão ambiental, o risco vital-ambiental dizia São Francisco (PAPA FRANCISCO, 2015c, p. 02). produzido pela lógica do lucro a qualquer custo fez com que a crítica ao capitalismo sem freios Para ele o capitalismo precisa ser freado (effrenus), já presente no pensamento de João também pelo risco de colapso do planeta, pela Paulo II e Bento XVI, se tornasse mais radical, destruição da terra, do ar e da água, o que re- gerando, indiretamente, uma aproximação em presentaria a possibilidade de uma espécie de relação ao pensamento crítico de Frei Betto em apocalipse ambiental. relação ao capitalismo. Papa Francisco não nega Em suma, para Francisco (2015c, p. 03), a importância das reformas sociais, mas vai mais Quando o capital se torna um ídolo e dirige além do reformismo, propondo uma posição as opções dos seres humanos, quando a avidez de dinheiro domina todo o sistema socioeco- reformadora radical em relação à hegemonia nômico, arruína a sociedade, condena o ser do lucro. Ele manifestou sua posição crítica em humano, transforma-o em escravo, destrói relação ao capitalismo internacional sobretudo a fraternidade inter-humana, faz lutar povo nos seus três encontros com os movimentos po- contra povo e, até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum, a irmã e mãe terra. pulares internacionais, dois deles realizados em Roma (2014 e 2016), e um na Bolívia (2015). Ainda em 2015 ele destacou que Para Francisco, de fato, é preciso “lutar con- a causa principal da pobreza é um sistema tra as causas estruturais da pobreza”, “fazer face econômico que deslocou a pessoa do centro e ali colocou o deus dinheiro; um sistema eco- aos efeitos destruidores do império do dinheiro” nômico que exclui, exclui sempre: exclui as (PAPA FRANCISCO, 2014, p. 2). A seu aviso, crianças, os idosos, os jovens, sem trabalho... há um elo invisível que une cada uma das e que cria a cultura do descarte em que vive- exclusões. Não se encontram isoladas, estão mos (PAPA FRANCISCO, 2015a). unidas por um fio invisível. Conseguimos nós Francisco, portanto, radicaliza a já tra- reconhecê-lo? É que não se trata de questões isoladas. Pergunto-me se somos capazes de re- dicional crítica feita pela Doutrina Social conhecer que estas realidades destrutivas cor- da Igreja Católica ao capitalismo sem freios respondem a um sistema que se tornou global. sociais. Abre um capítulo diferente, mais an- Reconhecemos nós que este sistema impôs a tissistêmico na Doutrina Social da Igreja mas lógica do lucro a todo custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da nature- sempre na relação de continuidade e inovação za? (PAPA FRANCISCO, 2015c, p. 2) que a tipifica. 53 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

Sobre Francisco, Frei Betto (2016) de- Se, de um lado, a ação do religioso brasi- clarou, em setembro de 2016, na Itália, onde leiro conseguiu obter êxito em Cuba, onde de encontrava-se para o Festival Internacional de fato houve a troca do confessionalismo (ateís- Literatura de Mântua, que mo) de Estado pela laicidade, a permeabilidade em mais de 70 anos eu não tinha visto um que ocorreu em Cuba não se verificou, como milagre na Igreja, desde a eleição do Papa vimos, em outras partes do mundo socialista. João XXIII. Eu pensava que algo assim - Todavia, para além dos resultados históricos ca mais voltaria a acontecer. E outro milagre aconteceu: a eleição de Bergoglio, o Papa positivos ou menos exitosos, a atuação e pen- Francisco. samento de Betto restam como paradigma po- lítico de um socialismo pós-ateísta, laico. Betto Para o brasileiro, “Francisco é, efetivamen- propõe assim, direta e indiretamente, a liber- te, o primeiro Papa que fala das causas das injus- tação epistemológica e política do socialismo e tiças no mundo” (BETTO, 2016). Papas ante- marxismo internacionais das amarras da con- riores criticaram os efeitos do capitalismo, mas fessionalidade redutiva do ateísmo. Francisco vai além, aponta as causas. Nenhum Papa havia feito isso antes. Em sua encíclica Laudato Si’ ele aponta que a desigualdade Referências vem de um sistema que tem o capital como prioridade e não os direitos humanos. Disse BENTO, Fábio Régio. Marxismo e religião. Revolução e reli- que o problema ecológico não pode ser visto gião na América Central. Jundiaí-SP: Paco, 2016. sem levar em conta o aspecto social, porque BENTO, Fábio Régio. Sobre o ateísmo do Socialismo Soviéti- o desequilíbrio ambiental afeta, sobretudo, os co: origens exógenas, influência internacional e repercussão nas mais pobres (Ibidem). políticas públicas locais. Revista Eletrônica Correlatio, v. 16, n. 2, p. 461-488, dez. 2017. BEOZZO, José Oscar. Cristãos na Universidade e na Políti- Conclusão ca: história da JUC e da AP. Petrópolis: Vozes, 1984. BETTO, Frei. Cristianismo e marxismo. Petrópolis: Vozes, Neste artigo apresentamos a contestação 1986a. da associação entre socialismo e ateísmo por BETTO, Frei. Fidel e a religião. São Paulo: Brasiliense, 1986b. Frei Betto em sua militância internacional (po- BETTO, Frei. O socialismo morreu. Viva o Socialismo! REB, Petrópolis, vol.50, fasc.197, mar. 1990, p.173-176. lítica e literária) em prol da superação de tal BETTO, Frei. Batismo de sangue: guerrilha e morte de Car- aproximação. É verdade que o pensamento de los Marighella. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. Betto está associado ao contexto do pensamento BETTO, Frei. Calendário do poder. Rio de Janeiro: Rocco, mais amplo do movimento da Teologia da 2007. Libertação, mas é verdade, também, a nosso BETTO, Frei. Paraíso perdido: viagens ao mundo socialista. Rio de Janeiro: Rocco, 2015. aviso, que em Betto a rejeição da confessiona- BETTO, Frei. Entrevista em Mântua. Setembro 2016. Dispo- lidade (ateísmo) do socialismo se manifesta de nível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/560650-fran- uma forma peculiar que não emerge na produ- cisco-e-o-primeiro-papa-que-fala-das-causas-da-injustica-no- ção literária de outros autores desse movimento -mundo-entrevista-com-frei-betto. Acesso em: 07 dez. 2017. internacional, nem com as mesmas característi- BOFF, Leonardo. Cuba precisa de revolução da liberdade. En- trevista à DW (Deutsche Welle). 30 nov. 2016. Disponível cas prático-teóricas típicas do pensamento po- em: https://www.dw.com/pt-br/cuba-precisa-de-revolução-da- lítico do brasileiro Betto. -liberdade/a-36574574. Acesso em: 29 fev. 2020. 54 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019

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