Peregrinaçam 1614

PPeregrinaçameregrinaçam 11614614 Título: 1FSFHSJOB BN, 1614

Organização: Isabel Almeida

© 2017 Centro de Estudos Clássicos Universidade de Lisboa

Paginação, impressão e acabamento: Papelmunde

Outubro de 2017

ISSN: 978-972-9376-46-7 Depósito legal: 432909/17 Peregrinaçam 1614

Organização Isabel Almeida

Índice 9 Nota Introdutória 11 Eduardo Lourenço, A Peregrinação ou a metamorfose do olhar europeu 19 Maria Alzira Seixo, As rotas narrativas da Peregrinação 43 Luís Filipe F. R. Thomaz, As religiões e a Religião na obra de Fernão Men- des Pinto 131 Vítor Serrão, Arte e Peregrinações na diáspora portuguesa no tempo de Mendes Pinto 181 Miguel Tamen, Portugueses no Estrangeiro 191 Arnaldo do Espírito Santo, Imagens do Oriente na Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto 203 José Augusto Cardoso Bernardes, A Peregrinação nas escolas de Portugal 215 João David Pinto Correia, Reler Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto: ainda o seu valor literário-documental 225 João Carlos Carvalho, A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e os limites da interpretação 231 Maria do Céu Fraga, Peregrinaçam ou Peregrinações? O valor de um título 253 Zulmira Coelho Santos, “Escrita pelo mesmo Fernão Mendes Pinto”: al- guns contributos para uma releitura do rosto da Peregrinação (1614) 277 Paulo Pereira, China ou a geografia da diferença. Idolatria e iconoclasmo na Peregrinação e em narrativas da Expansão 303 José Manuel Garcia, Fernão Mendes Pinto e a fortuna da sua Peregrinação 327 Isabel Almeida, Peregrinaçam: texto em diálogo 351 Theeraphong Inthano, Le Siam au XVIème siècle: lecture croisée de la Pérégrination de Fernão Mendes Pinto et des Chroniques royales siamoises 369 Guia Boni, Veneza e uma versão italiana quase desconhecida da Peregrinação 381 Patrícia Couto, As Viagens Maravilhosas da Peregrinaçam na República das Províncias Unidas 401 Reinaldo Silva, À pesca duma influência literária: ecos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto em The Compleat Angler de Izaak Walton 415 Marta Pacheco Pinto, De Fernão Mendes Pinto a Wenceslau de Moraes: uma tradição restaurada?

Nota Introdutória

Nos dias 11 e 12 de Junho de 2014, decorreu na Faculdade de Letras da Uni- versidade de Lisboa o congresso Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto (1614-2014), organizado, em parceria, pela Faculdade de Letras e pelo Instituto da Cultura e Língua Portuguesa, tendo o apoio do Centro de Estudos Clássicos, do Instituto Camões e do Centro Cultural de Macau. Muitos agradecimentos são devidos aos participantes, bem como aos membros do Conselho Científico (Professo- res Eduardo Lourenço, Ana Paula Laborinho, Arnaldo do Espírito Santo, João David Pinto Correia, Luís Filipe Barreto, Maria Alzira Seixo, Maria de Lourdes Abrantes Ferraz, Maria Vitalina Leal de Matos, Miguel Tamen, Vítor Serrão; P.e António Júlio Trigueiros S.I.); ao Director da FLUL, Professor António Feijó; à Directora do Instituto Confúcio, Professora Teresa Cid; e, especialmente, aos Professores Arnaldo do Espírito Santo e Maria Cristina Pimentel, que de múl- tiplas formas tornaram possível este encontro. O livro que agora se publica guarda, em parte, a memória do Congresso. “Em parte” porque nele não se achará nem o registo das intervenções breves de quatro Alunos – António Seabra, João Cruz, Pedro Ferrão e Simão Tavares, a quem igualmente importa agradecer – nem a reprodução das conferências dos Professores Maria Alzira Seixo e Eduardo Lourenço, aqui substituídas por dois textos seus, que são marcos na bibliografia sobre Mendes Pinto. O que se ouviu nos dias 11 e 12 de Junho de 2014 não ficou gravado – ou ficou, na lembrança de quem seguiu o desenrolar dos trabalhos. Sem ser um volume de actas, este livro pretende, agregando diversas propostas de leitura, contribuir para valorizar a Peregrinaçam, geralmente esquecida nas Escolas. Não faltam razões de interesse. Falamos de uma obra envolta em mistério (lemos o texto de Mendes Pinto? Ou lemos texto sujeito a intromissões?); falamos de uma obra em que ressoam outras obras – outros discursos –, ainda que pareça escapar a modelos consabidos quando oferece o relato de uma extraordinária experiência de vida cujo palco é o mundo quase

Peregrinaçam, 1614 10 Nota Introdutória inteiro, do Ocidente ao Oriente; falamos de uma narrativa (afinal tão crite- riosa, na sua irregularidade e hibridismo) de viagens e contactos com longes terras e estranhas gentes – um estímulo à reflexão acerca de conceitos como diferença e semelhança, proximidade e distância, relativo e absoluto. Não por acaso, Peregrinaçam fez seu caminho, conquistou leitores além fronteiras, num processo de difusão e de recepção sempre revelador. Falamos, sem dúvida, de uma obra que obriga a pensar, a comparar, a relacionar. O labor que exige pode ser sugerido numa palavra generosa: transdisciplinaridade. Diferentes, as leituras aqui reunidas convergem numa certeza: a da força que anima a obra de Mendes Pinto. Daí que, no título do presente livro, se recorde a data da editio princeps e se grafe, como ali, Peregrinaçam. A “rude e tosca escritura” é uma herança que resiste ao tempo e que nele se renova.

Isabel Almeida A Peregrinação ou a metamorfose do olhar europeu1

Eduardo Lourenço

A corte de Portugal Vimos bem pequena ser, Depois tanto enobrecer Que não há outra igual Na cristandade, a meu ver. Garcia de Resende, Miscelânea, 1544

Entre as centenas de textos suscitados pela presença portuguesa no Oriente, desde os começos do século XVI até aos princípios do século XVII – relatos de viagens, crónicas, cartas, informações oficiais, sumas geo-políticas ou descrições de naturalistas –, um só conservou até hoje aquele misterioso dom da vida e sedução literárias que atribuímos às obras clássicas: a Peregri- nação de Fernão Mendes Pinto. Com Os Lusíadas, obra que releva de outra ordem de criação, o livro do obscuro autor-actor de uma aventura nos limites do inacreditável ocupa o centro da mitologia literária e cultural portuguesa, enquanto povo a que a expansão marítima dos séculos XV e XVI e a criação efémera do primeiro império europeu no Oriente conferiram um destino de vocação quase onírica. Desse onirismo épico, consciente da desproporção entre a realidade de um pequeno país do Ocidente e a desmedida da aventura imperial e imperialista que se desenrolava no longínquo Oriente, nasceram as estrofes exaltadas e melancólicas dos Lusíadas. Talvez porque Camões, além de poeta, era um humanista apostado em revisitar o novo império lusitano na luz, ainda não extinta, da lembrança do Império por excelência, o da antiga Roma. Caberia a um homem mais comum mover-se no meio desse mundo do Oriente, palco de sortilégios, de aventuras contínuas, cenário de sonhos mais fabulosos que os da imaginação, com a naturalidade, um pouco sonambúlica, dos sonhadores da realidade. Deste onirismo realista, desta viagem no interior de um mundo

1 Texto publicado, pela primeira vez, em Geneviève Bouchon et alii, Portugal e o Oriente. Lisboa, Quet- zal Editores e Fundação Oriente, 1994, pp. 52-66.

Peregrinaçam, 1614 12 A Peregrinação ou a metamorfose do olhar europeu mais imprevisível que o da ficção e, sobretudo, de maior risco, é a Peregrinação o memorável espelho. Pouco se sabe acerca da vida real de Fernão Mendes, à parte aquilo que de si mesmo diz na Peregrinação, e não é muito, em termos de biografia íntima. Do que lhe “aconteceu”, do que viu e ouviu durante a odisseia que minuciosa mas lacunarmente rememora em fim de vida, de regresso a Portugal, fala com abun- dância. Mas é a sua aventura e a dos companheiros de fortuna ou, sobretudo, de infortúnio, que lhe interessam, e não o seu “eu”, que comparece quase sempre numa situação de reserva, como que rasurado, protegido pelo brilho excessivo do que lhe acontece como joguete das circunstâncias, ou melhor, da Providên- cia. Todavia, se não se dá a ver, em termos modernos, na sua subjectividade, ou no seu narcisismo de autor, nós vemo-lo incluído no seu texto, representamo-lo como olhar sobre os acontecimentos de que é actor, espectador e, as mais das vezes, vítima, a tal ponto que temos a impressão de o conhecer melhor do que o seria numa concertada e voluntária auto-biografia. Esse esquecimento do seu “eu” profundo no texto, esse como que apaga- mento voluntário da sua vida “pessoal”, se é um dos mistérios da Peregrinação na óptica moderna do desvendamento da interioridade, é também um dos seus encantos. O seu intuito é que nós vejamos o que ele viu e tão alarmado ou deslumbrado nos descreve, como aquilo que viveu e sofreu, mas não menos pretende que saibamos ou se saiba que ele pensa acerca da sua experiência. Sobretudo quer mostrar que exemplo e conclusão universal soube extrair da sua vivência de outros costumes, de outras leis, de outras visões do mundo, sobretudo religiosas e éticas, talvez menos para proveito próprio que para edi- ficação alheia. E é esse olhar implícito ou explícito que na superfície ou nos arcanos do texto lhe inventa, se não uma figura, ao menos uma personagem que sem se ter proposto com esse fim, adquire a nossos olhos um relevo mítico. De memorial de uma aventura particular, a Peregrinação assume a estatura de uma metamorfose ainda insciente, mas já profética, do olhar ocidental con- frontado com um outro olhar e, por fim, com um outro mundo que através do seu texto sem pretensões, mas menos ingénuo do que ele deixa crer, se incor- porará com o tempo ao nosso único mundo. A muitos títulos, este “clássico” de algo mais precioso ainda que a pereni- dade literária, é tudo menos uma obra clássica. A sua construção assimétrica, e mesmo desequilibrada, a sua cronologia, ao mesmo tempo precisa e vaga- bunda, sem preocupação de exaustividade ou coerência sequencial, obedece menos a uma trama em todos os pontos concertada do que à lógica de uma evocação lacunar, embora regida pela lembrança sempre extraordinariamente Eduardo Lourenço 13 viva de peripécias, percalços, cenas mais ou menos imprevisíveis e todas impressionantes ou espantosas. Começada como se se tratasse de uma evo- cação realmente autobiográfica e realista de um destino fora do comum, pelo quadro e risco da vida ou das vidas que nele se moveram, a maior parte da Peregrinação é dedicada à descrição de aventuras, sucessos, diligências diplo- máticas, combates, sofrimentos, prisões e resgates quase miraculosos em que o seu autor está presente, mas raro o têm a ele por centro, como seria de espe- rar numa autobiografia ou num livro de memórias. A Peregrinação é, antes, um livro de coisas memoráveis onde, quase por acaso, acontece que ele está presente, ou que com ele se relacionam. Às vezes, só como espectador omnis- ciente de uma aventura que, em todos os sentidos do termo o ultrapassa, como nos capítulos célebres consagrados a António de Faria, figura única do aven- tureiro português dessa época, inextricavelmente atroz e gloriosa. O episódio, embora capital na obra, é tão ex-centrado em relação às aventuras pessoais de Fernão Mendes Pinto que alguns exegetas aventaram a hipótese de que o famoso pirata e guerreiro não seja mais que o “duplo” impossível de assumir do próprio autor. A hipótese é soberba, mas releva de um “romanesco” que não é exactamente o que move as páginas da Peregrinação. Apesar de tudo, sem esse romanesco do mistério ou da auto-ocultação, sem mesmo os ingredientes exteriores dos futuros romances de aventuras marítimas (conflitos de senti- mentos, amores, traições, etc.), a figura de António de Faria bem pode ser tida como paradigma de todos os capitães Morgan ou Sandokans ainda por nascer. Na realidade, o que constitui a singularidade “literária” da Peregrinação é o facto de que todo esse capital de “aventuras” não releva da ficção, mas para ela aponta. Ele encontra-se no texto como relato de uma história verídica, como uma espécie de reportagem naturalmente fabulosa, mas sem mais relevo em relação a todos os outros acontecimentos que o dos inumeráveis em que o pró- prio Mendes Pinto toma uma parte mais activa. Aliás, não é menor surpresa constatar que não é o espectáculo das acções mais sensacionais, pelo seu risco objectivo ou ineditismo, que suscita o investimento imaginário mais forte do autor-actor da Peregrinação, mas a realidade-outra do contexto em que têm lugar, com o seu fascínio mudo, a sua interpelação esfíngica, e como opaca, o Oriente, em suma: cidades estranhas, monumentos, rituais, cenas domésti- cas, festas nunca vistas, banquetes originais, e sobretudo sentimentos-outros. Como se fosse nessa encenação objectiva de um outro olhar, na contemplação do não visto nem sabido do olhar europeu que Mendes Pinto encontrasse, ao menos potencialmente, o verdadeiro alimento de ficção que o ficcional óbvio não lhe desperta. 14 A Peregrinação ou a metamorfose do olhar europeu Todo o paradoxo da Peregrinação e o singular objecto “literário” em que bem longe do propósito do seu autor se converteu, reside nesta inversão que nela se cumpre, ou de que será origem, das relações entre a realidade e a ficção. Quando Mendes Pinto, de regresso do Oriente, começa a redacção das suas experiências e aventuras extraordinárias, o código que rege os escritos relati- vos à evocação dos acontecimentos reais e aos do domínio da ficção não tem nada de equívoco, embora se pressinta já a hora de Cervantes. Como todos os autores conscientes do carácter “inverosímil” de certos acontecimentos – sobretudo os que, como no caso de Mendes Pinto, têm como quadro países, gentes, costumes ainda pouco conhecidos ou desconhecidos na Europa –, Fer- não Mendes Pinto pontua o seu texto com as rituais referências de credibili- dade em relação às cenas ou peripécias “inacreditáveis” que rememora. Tanta insistência não só se voltará contra ele – como numa certa época fará figura de autor “mentiroso”, por excelência – mas era, por assim dizer, absurda para outra categoria de leitores, aqueles que, precisamente, se deleitavam com o carácter “ficcional” daquilo que lhes era servido como história verdadeira. O que eles queriam mesmo era que tudo aquilo fosse fabuloso. Ao fim e ao cabo, foi esse género de leitores aquele que, inconscientemente, fez a fortuna da Peregrinação, tomando o que Mendes Pinto lhe dava como real, por uma espécie de ficção. Em suma, e um pouco anacronicamente, extraindo o relato de aventuras tão espectaculares e incríveis do lote dos mil relatos sobre a Índia e a China – algumas admiráveis – que desde a Suma de Tomé Pires ao Livro de Duarte Barbosa haviam dado a conhecer as novas culturas do Oriente –, Fer- não Mendes Pinto vai inscrevê-lo no reino encantado do que se não chamava ainda “Literatura”, quer dizer, ficção mais real que a realidade. Na perspectiva da evocação e conhecimento desse novo continente, tão caro ao imaginário europeu, as aventuras reais ou fictícias contadas na Pere- grinação, na data tardia da sua publicação (1614), a mais de meio século dos acontecimentos, não traziam verdadeiramente novidades. As regiões descritas, os ritos, os costumes, as estranhezas de tão variados povos, as aberrações ou a sabedoria de comportamentos ou leis “exóticas”, começavam a ser conheci- dos no Ocidente e, em particular, entre a gente cultivada ou mais atenta, até por motivos de interesse, ao que se passava neste mundo que, sem ser “novo”, como o de Vespúcio, era “um outro mundo”. Por outro lado, a evocação minuciosa, no quadro mais vasto da política económica, guerreira e marítima dos portugue- ses no espaço imperial do Oriente, de Ormuz a Malaca, de Goa a Sumatra, em meados do século XVI, já tinha o seu estatuto narrativo, “histórico”, nas grandes obras que, de Fernão Lopes de Castanheda a João de Barros e Diogo do Couto, Eduardo Lourenço 15 haviam convertido “a Índia” no grande e quase exclusivo centro de interesse da historiografia portuguesa. O próprio Mendes Pinto, referindo de passagem certos episódios da nossa história oficial nas “partes do Oriente”, remete o lei- tor para essas obras. Todavia, uma vez publicada, a Peregrinação conheceu um extraordinário sucesso. Maior fora de casa, como é comum, que dentro dela, onde a incredulidade foi maior até ao ponto de se considerar como puramente “fabulosa”. Talvez não tenha sido sem motivo que Mendes Pinto desejou que a sua obra fosse publicada postumamente. De qualquer maneira, o adiamento foi-lhe propício e, porventura, mais propício o contexto de uma nova época cada vez mais sensível à apropriação da realidade, da mais sublime à trivial, pela sub- jectividade, por um outro “eu”, com o qual, imaginariamente, a identificação se torne possível. Embora nada leve a pensar que Fernão Mendes Pinto fosse um “humanista”, ou “letrado” – como Camões, João de Barros, Couto, Góis – é claro, precisamente pelas precauções que toma para ocultar a consciência que tem de saber contar desataviadamente as suas aventuras para edificação dos seus, que é um escritor “nato”, ou antes, educado na escola da vida e de leituras. Sem isso não poderia ser tão atento como se revelou à “palavra do Outro”, a esse Outro que ele incorpora na sua narrativa com tão natural e regozijada complacência. Desta prática “des-europeização” da sua escrita que é a de um ouvido, de um olhar e de um entendimento, então únicos, do Outro, uma crítica, algo anacró- nica, por futurismo, fará um “mito”, o de precursor do “exotismo”, o de homem sensível, de maneira positiva, entenda-se, à diferença. Com um pouco mais de audácia crítica, Fernão Mendes Pinto será inscrito na alta linhagem de Mon- taigne e mesmo de Montesquieu, que, aliás, não são inventores da valorização do “exótico” mas justamente o inverso. O “exótico”, de Montaigne e, sobretudo, do autor das Cartas Persas, é o “exótico europeu”. Desta relativização do “olhar europeu”, como olhar inocente ou naturalmente universal também a Peregrina- ção seria um memorável exemplo, e por sê-lo, paradoxalmente, uma certa crítica místico-nacionalista do nosso século verá nela o paradigma supremo do famoso humanismo universalista dos portugueses. Não cremos que foi pela apreensão deste predicado que a obra de Mendes Pinto alcançou no século XVII o sucesso que foi o seu. Mas alguma coisa desse encantamento o deverá, sem dúvida, à extraordinária naturalidade com que o seu herói-narrador se move não apenas entre o mundo das conveniências e apa- rências da “diversidade” alheia, mas entre o da “diversidade” mais profunda de sentimentos, atitudes morais, bizarrias, em princípio, pouco propícias à “com- preensão” do Outro. Ainda não chegara o tempo dos Lafcádio Hearn, dos Ven- ceslau de Morais, dos Lawrence d’Arábia ou de Victor Segalen, o da obsessão 16 A Peregrinação ou a metamorfose do olhar europeu ou da tentação de uma outra identidade não-europeia. Nem a Fernão Mendes Pinto e aos homens do seu tempo isso pareceria necessário. As “diferenças” são simplesmente aceites, apreendidas como naturais e recíprocas, mas é absurdo e anti-histórico imaginar em Mendes Pinto um ecologista espiritual, fascinado pelo marginal, quando a única condição que prevalece ao longo do livro é a de cristão, quer dizer, a seus olhos, a da eminente e óbvia universalidade da visão do próximo. Foi por ter visto em Francisco Xavier, apóstolo do Oriente, a encarna- ção exemplar desse ideal, que o autor da Peregrinação o venerou e o acompanhou ao Japão nessa nova evangelização que, a seus olhos e aos dos portugueses dessa época, apareceria como uma missão heróica e não como o exemplo mesmo da contradição ocidental e da sua cultura estruturalmente perversa, como o insinua uma leitura escandalosamente preconcebida da Peregri