Maria João & Guinga Dino Saluzzi
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18 Out 2016 Maria João & Guinga 21:00 Sala Suggia – OUTONO EM JAZZ Dino Saluzzi CICLO JAZZ a sofisticação harmónica e a inventividade melódica convive perfei‑ Guinga voz e guitarra tamente com os ritmos tradicionais e a personalidade melódica das Maria João voz formas populares brasileiras, sejam elas o choro – um dos géneros mais presentes na sua obra –, o frevo, o baião, o samba ou tantas Se a vida é a arte do encontro, como dizia Vinícius de Moraes, a outras que passam por este violão impressionista. música de Guinga é também ela recheada de encontros. Aquele O outro grande encontro que é narrado nas entrelinhas deste que hoje aqui acontece junta ‑o a uma cantora bem conhecida do concerto foi com mais um enorme letrista, que ganhou notoriedade nosso público, Maria João, a voz mais sonante do jazz cantado em nos anos 70 em parcerias com João Bosco. Falamos de Aldir Blanc, português. O disco que os dois gravaram chamou ‑se Mar Afora e um mestre das histórias que povoam canções como há poucos no está quase a fazer um ano, mas é hoje apresentado pela primeira mundo. São irresistíveis temas como “Chá de Panela”, “Catavento vez num palco português. e Girassol” e “O coco do coco”, por exemplo. O primeiro é um baião Guinga nasceu no bairro da Madureira, Rio de Janeiro, em em homenagem a Hermeto Pascoal que, como sabemos, tem o 1950. Estudou e exerceu odontologia antes de poder dedicar ‑se dom de fazer música com absolutamente tudo o que é objecto que por inteiro à música. Mas a música já estava por inteiro em Guinga, se lhe atravesse. Todos eles foram incluídos no disco Catavento e sempre esteve, desde que o dedo circulava pelo botão do rádio e Girassol de 1996, cantado por Leila Pinheiro, aquele que trouxe mais lhe fazia chegar um pouco de Ernesto Nazareth, de Pixinguinha, reconhecimento popular a um compositor já então com uma longa Jacob do Bandolim ou Garoto, de Baden Powell, das serestas anti‑ carreira e grande prestígio, mas ainda algo oculto entre o grande gas, obviamente de Villa‑Lobos, e também das canções de Tom público. “Simples e Absurdo” e “Canibaile” são outros temas da Jobim...; e desde que as primeiras melodias lhe foram ensinadas dupla que vêm um pouco mais de trás, do disco editado em parce‑ pelo tio Marco Aurélio, exímio ‘violonista’ famoso apenas entre as ria em 1991. O disco Mar Afora inclui ainda duas parcerias com os paredes do seu quarto de Jacarepaguá. Também Guinga já foi mais jovens Edu Kneip (“Via Crucis”) e Thiago Amud (“Contenda”). considerado – por um amigo gozão – o mais famoso dos músi‑ Talvez o encontro simbólico que definiu todo o percurso de cos desconhecidos. A verdade é que a enorme riqueza das suas Guinga, no fim de contas, seja afinal com alguém que cunhou a iden‑ composições é um foco de atracção para todos aqueles que procu‑ tidade da música brasileira: o compositor Heitor Villa ‑Lobos. Diz ram algo completamente novo na música popular. Guinga em entrevista à revista Trópico: «Me considero um músico A identificação do repertório de Guinga com as vozes femininas da rua, minha música vem da rua. Mas, quando eu ouvi Villa ‑Lobos, é algo que vem de há muito tempo, desde a década de 70: primeiro eu percebi que essa minha música, que é da rua, poderia também com Clara Nunes e Elis Regina, depois com Elza Soares, Nana ser música de concerto. O Villa ‑Lobos foi um homem que levou a Caymmi, Alaíde Costa, Zezé Gonzaga, Miúcha e especialmente rua para dentro da sala de concerto. Ele foi um grande exemplo Leila Pinheiro, entre outras. O primeiro encontro de Maria João com para mim. Na verdade, não só ele, mas tantos outros compositores Guinga aconteceu em 2012, no Rio de Janeiro, e no ano passado a da música erudita, que tiravam suas inspirações das coisas popu‑ cantora colaborou no disco Porto da Madama, em que Guinga faz lares, das coisas que viam em suas aldeias, suas cantorias, seus arranjos e interpreta música de outros autores (pela primeira vez bordões de rua.» É especialmente relevante pensar nesta simbiose numa carreira de quatro décadas) para quatro cantoras. entre o erudito e o popular na música de Guinga. Até porque a Muitos dos encontros inspiradores de Guinga vieram cedo, música brasileira, desde Villa ‑Lobos, desde Jobim e desde Rada‑ contava ainda 16 anos, em consequência de uma bem ‑sucedida més Gnattali, e sem dúvida até Guinga, ganhou essa capacidade classificação de uma canção sua para o Festival Internacional da impressionante de incorporar uma sofisticação que nos obriga a Canção de 1967, que seria interpretada no Maracanãzinho precisa‑ pensar a erudição e a tradição de um outro modo: «acho que essas mente no mesmo dia em que Milton Nascimento cantou “Travessia”. linguagens, a do erudito e do popular, se aproximam de acordo com Os outros encontros que importa relatar são os que formam o o tratamento que o compositor dá a elas. A diferença está basica‑ repertório do disco em dueto e, certamente, de grande parte deste mente naquele negócio do remédio e do veneno: dependendo da concerto. Faz sentido começar pelo encontro com Paulo César dosagem, o remédio vira veneno e o veneno vira remédio. E nada Pinheiro, letrista maior da música popular brasileira. Ambos se garante que disso vá sair música de qualidade.» conheceram com 18, 19 anos, e foi este último que desafiou Guinga FERNANDO PIRES DE LIMA pela primeira vez a fazer canções para depois lhes colocar letras. A dupla criou ao longo dos anos pérolas como “Passarinhadeira”, “Senhorinha” e “Saci”. Talvez “Senhorinha” seja das canções mais conhecidas de Guinga, que a dedicou às suas filhas. Curiosamente será também uma das mais singelas no meio de um repertório onde MECENAS ORQUESTRA SINFÓNICA APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL DO PORTO CASA DA MÚSICA CASA DA MÚSICA Entretanto trabalhou com outros artistas que impregnaram Dino Saluzzi bandoneón as suas linguagens com as raízes tradicionais, tais como Gato José María Saluzzi guitarra, guitarra requinta Barbieri, Mariano Mores e a Sinfonica de Tango de Enrique Mario Félix “Cuchara” Saluzzi saxofone tenor, clarinete Francini. Em 1979 formou o primeiro Cuarteto Dino Saluzzi, que Matías Saluzzi baixo eléctrico, contrabaixo ganhou notoriedade na Europa, e foi co ‑fundador do ensemble U. T. Gandhi bateria, percussão experimental Música Creativa. A sua longa associação com a prestigiada editora ECM começou em 1983, com o álbum a solo Dino Saluzzi é uma figura ‑chave da música latino ‑americana con‑ Kultrum, criado espontaneamente no estúdio, e também ele um temporânea, com mais de 60 anos de carreira artística. Para além regresso imaginário às pequenas cidades e aldeias da sua infância. de algumas peças do repertório ainda inédito Mozart por Saluzzi, A partir da década de 1980, as colaborações com músicos de jazz apresenta neste concerto essencialmente temas do seu álbum americanos e europeus sucederam ‑se, entre os quais Charlie El Valle de la Infancia. Este é um regresso imaginário ao universo Haden, Enrico Rava, Louis Sclavis, Edward Vesala, Charlie Mariano, sonoro que povoou a sua infância na província de Salta, no Norte Al DiMeola, David Friedman, Anthony Cox e muitos outros. da Argentina, com encontros de danças e ritmos tradicionais com À revista DownBeat, Dino Saluzzi afirmou: «Não receio nada o estuário do Rio da Prata como fundo. Como escreve Leopoldo daquilo que criei porque sei que tudo é um reflexo de mim próprio “Teuco” Castilla nas notas do disco, este é um regresso às origens, e da minha cultura. Se [estiver num contexto de] jazz, toco jazz. É uma evocação das pessoas e dos lugares. Da Natureza, mas tam‑ apenas uma forma diferente de expressar os meus sentimentos.» bém «das orações oferecidas às Virgens das montanhas – a Virgem de Urcupiña entre o fumo, tambores sonoridades moribundas dos erques [instrumento de sopro tradicional] por entre a “tempestade de pó”, como dizem os nativos, onde até o Diabo dança em segredo até ao amanhecer.» O disco aborda diferentes géneros: desde dan‑ ças como a zamba (uma dança tradicional sem qualquer relação com o samba, dançada em pares que abanam os seus leques) até ao carnavalito (dança com origem no período pré ‑colonial) e à cha‑ carera (dança rápida de métrica ternária); mas também a música de Buenos Aires, passando pelo tango e pela milonga. Todas estas referências se juntam num projecto intimista, privilegiando frequen‑ temente uma organização do repertório por suites de miniaturas, como acontece em “La Fiesta Popular” (uma sequência de cinco fragmentos). O olhar espiritual de Saluzzi está presente, por exem‑ plo, em “Ruego, Procesion y Entronación!”, da Suite “Urkupiña”, com um ambiente processional que vai da contemplação à revelação. Félix Saluzzi, irmão de Dino (saxofone e clarinete), acrescenta um colorido rítmico de blues e jazz às raízes tradicionais. O trabalho delicado do seu filho, o guitarrista José Maria Saluzzi, incorpora temas como “Sombras” ou “El Labrador”. Timoteo “Dino” Saluzzi nasceu em 1935 em Campo Santo, uma pequena aldeia no distrito de Salta, no norte da Argentina, conhe‑ cida essencialmente pela sua fábrica de refinação de cana‑de- ‑açúcar, à volta da qual se move a vida local. Apesar da ausência de discos, rádio e mesmo electricidade, sempre houve música na casa onde Dino Saluzzi cresceu. O seu pai tocava guitarra, bandolim e bandoneón e ensinou os rudimentos deste último a Dino quando este tinha sete anos. Começou por tocar música tradicional neste instrumento que é uma variante diatónica do acordeão (tal como a nossa concertina), desenvolvido pelo alemão Heinrich Band. Adquiriu mais alguns conhecimentos com um tio que viajara pela Europa e, aos 14 anos, formou a sua primeira banda: o Trio Carna‑ val.