A MITOLOGIA UMBANDISTA Antônio Talora DELGADO SOBRINHO *

RESUMO: Levantamento e sistematizaçâo da rica mas dispersa mitologia umbandista, procurando elementos para sua interpretação.

UNITERMOS: ; ; exu; orixá; monoteísmo; morte; varíola; Deus; diabo.

A mitologia umbandista encontra-se certas "entidades" (os Orixás) ficariam ainda dispersa e desorganizada, próximas aos homens para assisti-los e apresentando-se diluida em vários escritos orientá-los em suas necessidades. Aruan- de cunho doutrinário e muitas vezes ex­ da passou a ser assim a morada dos Ori­ posta de maneira confusa, contraditória e xás e espíritos benfazejos que assistem, até mesmo preconceituosa. protegem e ajudam os humanos; suspeita- Já se afirmou que a Umbanda é uma se que a palavra Aruanda seja uma cor­ religião Monoteísta (4:85-96), embora al­ ruptela de Luanda (cidade africana). Co­ guns estudiosos, levados por motivos que mo se nota, Olorum está distante dos ho­ não cabe discutir, tenham afirmado a mens e não requer um culto especial, nem existência de um caráter politeísta súplicas humanas, pois é aos Orixás que (7:120,124). Esses autores ou estudiosos se deve rogar. O culto deve ser dirigido na realidade deixaram-se levar por carac­ aos Orixás e não a Olorum, Zambi ou teres externos e superficiais da religião. Mawu. Um folclorista (10:129) afirma Nota-se uma conclusão falsa pela falta de que houve época em que Olorum foi con­ maior perspicácia nà análise de determi­ fundido com o Deus dos Cristãos, haven­ nados elementos intrínsecos da religião. do quem o chamasse de "Padre Eterno" Para os Toruba, Deus é Olorum, o in- ou "Deus do Céu", porém vai sendo gra- criado, o que tudo pode, identificando-se dativamente esquecido. com a abóbada celeste.** O Orixá da Criação é Obatalá, o céu, Morava então, segundo o mito, bem que casando-se com Odudua, a terra, tem próximo dos homens, observando suas dois filhos, (a terra) e lemanjá (a atitudes. Mas os homens acendiam fo­ água). Do barro modela o homem, mas gueiras à noite cuja fumaça perturbava num dia de bebedeira, cria também os Olorum, que foi obrigado a mudar sua re­ aleijados, os cegos e os albinos. Todo sidência para local ignorado e distante dos criador não faz apenas coisas boas, mas homens para não ser perturbado por es­ coisas imperfeitas também, segundo a mi­ tes. Ao se retirar, porém, determina que tologia africana (6:91).

* Departamento de Antropologia, Política e Filosofia — Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação — UNESP — 14800 — Araraquara — SP. ** Recebia outros nomes, dependendo da origem africana dos escravos, assim é o Zambe ou Nzambi dos bantos; Mawu dos jejês; Zambi-a-pungu dos congoleses. São na realidade sinônimos para a mesma divindade. Do casamento de lemanjá com Agan- se na casa de um pescador a quem ensina ju (água e terra) nasce Orungan identifica­ o segredo com a concordância de defendê- do como o Édipo africano, pois, la da ira do esposo. Há um combate entre apaixonando-se por lemanjá, sua mãe, a Xangô e o pescador, sendo Xangô derro­ persegue insistentemente. tado. Humilhado com a derrota, desapa­ Aproveitando-se da ausência paterna, rece nas entranhas da terra. Destaque-se Orungan violenta lemanjá, após ela cair ainda que em outra variante Ogum, o Ori­ de cansaço. A seguir lemanjá morre, seu xá da Guerra e dos ferreiros, rapta Iansã. corpo dilata-se e de seus seios enormes Quando em um terreiro de Candomblé brotam duas correntes de água que se reú­ surgem Iansã, Ogum e Xangô é inevitável nem mais adiante formando um grande o duelo dos Orixás masculinos (Ogum lago. De seu ventre entumescido, nascem com sua espada e Xangô com seu macha­ os seguintes Orixás: do de duas lâminas). Assim, o Terreiro a) Xangô (do trovão); guarda resquícios da animosidade entre b) Ogum (da guerra); Xangô e Ogum. Iansã tornou-se o Orixá c) Xapanã (da varíola); dos ventos e tempestades complementan­ d) Oxoce (dos caçadores); do as atividades do esposo, Xangô (Orixá e) Oxum (das fontes e regatos); do raio e do trovão). Há então uma per­ f) Obá (do rio Obá); feita conjunção entre ambos, embora se g) Oiá (do rio Niger). tenham separado. Isto parece reforçar a Assinale-se que há distinções quanto hipótese do roubo do "encanto" do mari­ ao nascimento (aparecimento) destes Ori­ do. xás, dependendo da via por que entraram Um outro mito com relação a Xangô no Brasil. Assim, com relação a Xangô há afirma ter sido ele rei de Oiô, capital de várias lendas sobre sua ascensão a Orixá Toruba. Com o passar do tempo, torna-se porque ele é um dos Orixás constante em um rei tirano, despótico e cruel. O povo o todos os grupos étnicos africanos que vie­ intima a deixar o poder e sair do palácio ram para o nosso país, sugerindo por isso com suas mulheres e filhos. Diante de sua certa confusão sobre ele. Seu nome é va­ recusa há uma rebelião popular que o des­ riável, sendo chamado por alguns de Dza- trona. Foge para Tapa, terra de sua mãe, cuta ou Jacutá (o atirador de pedras), pa­ acompanhado de um escravo e de uma de ra outros é Hevioso ou Kebioso (o tro­ suas esposas, Iansã, que logo a seguir o vão). abandona no meio da floresta. Xangô, Outro mito apresenta Xangô como fi­ desgostoso, enforca-se num galho, a lho de Obatalá que se casou com suas três notícia chega a Oiô e o povo vai procurá- irmãs: Oxum, Obá e Oiá (Iansã). Certo lo na floresta, nada encontrando. Ouvi­ dia Xangô obteve de seu pai um poderoso ram, porém, das profundezas da terra sua encanto que comeu juntamente com sua voz soturna. Foi erguido um templo no mulher Iansã (Oiá). No dia seguinte, ao local e muitos gritavam na volta que Xan­ falar aos chefes, Xangô provocou a fuga gô não morrera, mas tornara-se um Ori­ de todos eles, pois brotava fogo de sua xá. Diante da incredulidade da maioria, boca. Xangô manda uma violenta tempestade Xangô, convencido de que era um Ori­ sobre a capital e que faz todos crerem na xá, chama as três mulheres, bate os pés no sua nova condição. chão que se abre para recebê-los. Desde Há ainda outros mitos que o apresen­ então foi elevado à categoria de Orixá. tam como um valente guerreiro Toruba Em uma variante deste mito, Iansã que por suas qualidades pessoais vai gra- rouba o segredo do "encanto" e refugia- dativamente assumindo o. poder até tornar-se rei de fato, enquanto o verda­ a mulher de sete Exus, quando encarnada deiro rei passa a ser mera figura decorati­ foi prostituta. Apresenta-se nos terreiros va. com grande lascívia e obscenidade. Faz Muitos jovens de povos vizinhos gestos libidinosos, convida os homens pa­ dirigem-se para Toruba para aprender ra com ela irem à cama, tenta apalpá-los com Xangô as artes marciais. Ele ensina a e, quando repelida ou admoestada,diz pa­ todos de bom grado, porém, dois dentre lavrões e profere ameaças. Há necessida­ estes, pelo seu destaque, começam a riva­ de de um cambono bastante experiente lizar com Xangô em prestigio. Xangô ten­ para controlá-la durante as sessões, o ta matá-los, não consegue e sentindo-se mesmo podendo acontecer com outros desmoralizado foge para a floresta, onde Exus. Seu comportamento ainda tem mui­ a terra abre-se a sua frente e, numa nuvem to sentido num mundo cheio de tabus e de fumaça e fogo, é "devorado" pela ter­ preconceitos com relação ao sexo. Já se ra. Imediatamente há uma tempestade afirmou que Exu é Dionísio na sua luta com raios e trovões, que faz os presentes contra Apolo, aqui no caso, Quimbanda atemorizados, reverenciá-lo como Orixá. contra Umbanda, ou melhor ainda Exu Como se pode notar, ao que tudo indi­ versus Orixá (8:89). É a luta da natureza ca, Xangô é um herói mítico não só .dos contra a cultura, assumindo uma forma Toruba, mas de todos os povos africanos. de contra-cultura (8:39). Não se deve aqui Seu fetiche é a pedra de "raio" (machado considerar Exu, entidade malévola como lítico), sendo provavelmente um dos Ori­ queriam os catequistas no processo de xás mais primitivos e que pela sua impor­ conversão dos negros ao catolicismo, isto tância (o temor do raio) manteve seu culto porque, conforme já se assinalou, na Um­ aceso até os dias atuais. Por analogia é banda não há dois princípios rígidos, o chamado o Orixá da Justiça, sendo co­ bem e o mal, que se manifestam mescla­ mum justapor-se a seu nome o designati- dos e intercalados. A afirmação de que o vo "da Lei" (Xangô da Lei). Foi sincreti- Orixá faz somente o bem e o Exu somente zado com São Jerônimo do Catolicismo, o mal é algo que não condiz com a religião que é representado, nos ídolos, como um e a filosofia africanas. Exu é o brado de velho de barbas brancas, sentado numa revolta do negro dominado e oprimido e pedreira ao lado de um leão, tendo às que deseja a liberdade em todos os aspec- mãos um manuscrito. É comum também tos(8:93), enquanto que o Orixá é o negro esse manuscrito trazer grafado a palavra dominado, o animal doméstico que co¬ latina "Lex". Não se deve esquecer que nhece o seu lugar conforme a ideologia da na mitologia grega Zeus usa os raios for­ dominação. E o Pai João, preto bom, de jados por Hefaístos para fazer justiça, a alma branca, quase que uma exceção en­ "dique" de Zeus. tre os negros "boçais", "malvados" e Xangô representa acima de tudo o cul­ "feiticeiros" que viviam pelo nosso país, to litolátrico, embora por suas ligações segundo evidentemente a opinião da com Oxum (inicialmente a Vênus africa­ maioria da elite da época da escravidão. na) fosse considerado por muitos como Assim, enquanto Pai João é bom e obe­ um Orixá Fálico, característica que foi diente aos olhos do branco, porque prati­ perdendo gradativamente a partir do mo­ ca a Umbanda e não se revolta, o negro mento que Oxum e lemanjá vão se tor­ quimbandeiro é visto como mau e vingati­ nando "madonas" nos moldes católicos. vo, é enfim o quilombola, o rebelde que O falismo ou culto fálico tranferiu-se deve ser reprimido com todas as forças. quase que totalmente para Exu e Pomba- Isto parece ser suficiente para mostrar por Gira (Exu fêmea), sendo esta por tradição que a Quimbanda é perseguida e reprimi- da mesmo na atualidade. Ela pode desper­ é, toda a tradição de uma cultura africa¬ tar a consciência crítica não apenas no ne­ na, o processo de dominação escravista e gro, mas também em todos aqueles que a interferência de outros elementos cultu­ são explorados e colocados à margem da rais (cultura indígena e cultura popular sociedade da "abundância". européia). Dentro desse quadro torna-se Há um mito recolhido por Mucci mais fácil entender o que é justiça para (9:62-63) e por Bastide (3:209, 217) com Exu. relação a Exu que parece afastar qualquer Por que então o sincretismo com o possiblidade de sua identificação com o Diabo Católico? As causas são variadas, Diabo Católico que é o seguinte: embora suas raízes estejam contidas no "O Rei do Congo" tinha três filhos, processo de conversão dos negros ao Ca­ Xangô, Ogum e Exu. Este último não era tolicismo. É sabido que os jesuítas tinham exatamente um mau rapaz, mas era retar­ o hábito de chamar de demônios todas as dado e por isso mesmo turbulento, brigão divindades estrageiras (que estão fora do e lutador. Depois de sua morte, sempre panteão de Roma). Assim Jurupari, que os africanos faziam um sacrifício aos Anhangá e Exu que não são passíveis de espíritos, ou celebravam uma festa reli­ identificação com santos católicos ro­ giosa, nada dava certo; as preces dirigidas manos passam a ser pejorativamente cha­ aos Orixás não eram ouvidas; os rebanhos mados de demônios. Ora, diabo ou demô­ foram dizimados por epidemias; as co­ nio é uma entidade com características lheitas secaram sem produzir frutos, os bem definidas e estudadas. É o oposto de homens caiam doentes. Que tabu teria si­ Deus, suas obras sâo malignas, ele vive do violado? O Babalaô consultou os "o- procurando perder o homem. Enfim Dia­ bis" e estes responderam que Exu tinha bo é antítese de Deus, é a encarnação de ciúmes, querendo sua parte nos sa­ toda a maldade existente. O raciocínio ca­ crifícios. Como as calamidades não cessa­ tólico no caso assenta-se no mani- ram, continuando a assolar o pais, o povo queísmo, a existência de dois princípios voltou a consultar o "Babalaô". Mais rígidos, em luta constante: o bem e o mal. uma vez tiraram a sorte e a resposta não Deus é somente bondade, portanto não tardou a vir: "Exu quer ser servido em pode realizar obras más, enquanto que o primeiro lugar — mas quem é esse Exu?" Diabo é mau e, portanto, não pode reali­ zar obras boas. No processo de conversão — "Como? Não vos lembrais mais dele"? pretenderam os jesuítas, acima de tudo, — "Ah, sim, aquele pretinho tão amolan- transpor para o africano a dualidade (bem te". — "Exatamente esse". E foi assim versus mal) que ele desconhecia. Procu­ que dali por diante, não se pôde fazer ne­ ram mostrar aos escravos que Olorum, nhuma obrigação, nenhuma festa, ne¬ Zambi, Mawu etc ... eram nomes diferen­ nhum sacrifício sem que Exu fosse servido tes para o Deus Católico, enquanto que em primeiro lugar. Estava assim estabele­ Exu, Segba, Bara etc ... eram denomina­ cido o padê de Exu realizado tanto nos ções diferenciadas mas sinônimas para o Terreiros Umbandista quanto nos de Can­ Diabo Católico. domblé". Para reforçar o mito, segundo a tradi­ A colocação é tendenciosa e visava so­ ção Ioruba, Exu é um Orixá brincalhão, bretudo a conversão do negro ao catolicis­ algumas vezes até mentiroso, mas possui mo, embora a própria Igreja tivesse dúvi­ sobretudo um apurado sentido de justiça. das quanto a possiblidade do negro pos­ Para se entender esse "sentido" é preciso suir alma. O resultado prático desse pro­ conhecer as determinantes e variáveis que cesso de aparente conversão foi o estabe­ interferiram na formação do mesmo, isto lecimento de confusões, algumas das quais persistem até a atualidade. Assim, tas conseguiram confundir ainda mais as por exemplo, em muitos terreiros baianos coisas apontando a identificação do Exu Exu é Santo Antônio, o mesmo aconte­ com o Diabo Católico (5:40), outros cria­ cendo em alguns templos de Porto Alegre, ram uma hierarquização de diabos e, tal­ do Rio de Janeiro e até mesmo no exterior vez o que seja mais sério, procedendo a (Cuba e Haiti). Em Recife, por exemplo, uma identificação de demônios bíblicos e Exu pode ser: O Diabo Católico, São Bar- medievais com inúmeros Exus. Assim Exu tolomeu, o Anjo Rebelde ou ainda São Maioral passou a Lúcifer, Exu Mor pas­ Gabriel; em alguns terreiros de Porto Ale­ sou a ser Belzebu (divindade filistéia). gre ele é São pedro (o portador da chave Exu Mangueira passou a ser Agalieraps, do Paraíso, portanto dono da Estrada), o Exu Rei das Sete Encruzilhadas passou a mesmo sincretismo aparecendo em alguns ser Astharat etc ... Criaram também um templos da Santeria Cubana (2:364-365). organograma dessas entidades mostrando Mais recentemente alguns umbandis- a funcionalidade da Corte Infernal:

1 — ORGANOGRAMA DOS EXUS SOB O COMANDO DO MAIORAL 2 — ORGANOGRAMA DOS EXUS SOB COMANDO DE OMULU

Referindo-se à palavra Exu, Fontenel- 'Candomblés', 'Cangerê' etc, posso per­ le afirma (5: 81,86): feitamente, como catedrático do assunto, "Por desconhecer completamente mostrar-lhes o que é verdadeiramente um qualquer livro ou tratado que esclarecesse EXU... ao público o que de fato existe nas diver­ ... A palavra EXU nunca veio do latim sas práticas do Espiritismo sobre as enti­ e nem tão-pouco se originou de qualquer dades do mal que com a denominação de língua africana, bantu, gegê, ameríndio 'EXUS' (nas Leis de Umbanda e Quim- etc. Essa palavra foi pronunciada por banda), representam o que os Católicos, Deus na língua Ijudice (língua dos espíri­ Protestantes etc. denoninaram de Demô­ tos) quando na ocasião da revolta havida nios ou Anjos Maus, e que na doutrina de nos paramos celestiais, entre os anjos que Kardec são chamados Espíritos do Mal faziam parte da Suprema Corte do Céu, (também conhecidos como espíritos ob- Lúcifer, o anjo belo, pretendendo a su­ cessores), invocados nos trabalhos de Ma­ premacia dos direitos que lhe outorgara o gia Negra; resolvi tornar pública mais esta Criador, como chefe de seus subordina­ obra, verdadeiramente completa, sobre dos, julgou-se no direito de ser maior que tudo quanto diz respeito a essas entida­ o próprio Deus. des... Por essa ocasião, foi-lhe imposta a ne- ... Orientado em grande parte pelos cha de 'EXUD' (que quer dizer "povo meus Guias Espirituais, pelos próprios traidor"), e, enxotado, foi condenado a Exus, e ainda aliado ao meu profundo co­ habitar as profundezas da terra, nhecimento sobre a Magia, como sacerdo­ tornando-se esse seu reinado. te que sou dos diversos cultos da Umban­ Aos demais anjos maus que acompa­ da, além de conhecedor real de todas as nharam seus chefes na revolta contra práticas que se exercem nos diversos 'ter­ Deus, foi-lhes dada, por imposição, a si­ reiros' onde se praticam os 'Batuques', tuação de permanecerem sob as ordens do próprio Lúcifer, sendo-lhes apontado co­ Exu está ligado ao reino do fogo e ao mo habitação o lado oposto do Eden (Pa­ elemento terra, presidindo acontecimen­ raíso Terrestre), situado no Oriente — tos tristes e dramáticos da vida, assumin­ ilha de Ceylão — permanecendo como do às vezes o aspecto de "nume tutelar", espírito em estado embrionário de forma­ espécie de anjo da guarda (cada médium ção. tem o seu Exu). Costumam alguns Baba- Entretanto, a designação de EXUD laôs modelar um Exu em argila e ungi-lo foi sofrendo modificações e já no original com azeite de dendê para que o adepto o Palli bem como no original Hebraico, enterre na porta de sua residência, aí per­ passou a denominar-se EXUS, com a sig­ manecendo até sua morte, quando então nificação de "Povos"... Com o apareci­ deverá ser destruído. Segundo a crença re­ mento de Adão e Eva, querendo estes co­ ligiosa, ele não permitirá a entrada de pes­ nhecer justamente o outro lado do Eden, soas que estiverem mal-intencionadas cuja proibição lhes havia sido imposta pe­ com relação ao dono-da-casa. lo criador, foi que se originou o "PECA­ Ao lado do templo, em uma casinha DO ORIGINAL", pois, ao travarem co­ especialmente consagrada, está a "tron- nhecimento com o mundo dos Exus, fo­ queira" do Terreiro, local onde se encon­ ram por eles iniciados na maldade e, a se­ tra o Exu ou Exus protetores do Babalori- guir, sentindo-se envergonhados de sua xà e do templo propriamente dito, mode­ nudez, procuraram cobrir seus corpos. lados em barro com azeite de dendê, com Expulsos como foram do Paraíso, fi­ conchas marinhas, servindo de boca e caram Adão e Eva, bem como todos os olhos. Em alguns templos usa-se o sangue seus descendentes, à mercê dos Exus, e daí de animais sacrificados ritualmente para surgiram na face da terra todos os males banhar essas "imagens" ao lado das quais que atualmente nos afligem"... geralmente são encontradas velas acesas e Procurou-se reproduzir boa parte do taças com bebidas. Essas velas podem ser pensamente do autor para se ter uma idéia das seguintes cores: brancas (para purifi­ de como os próprios umbandistas se en­ cação); vermelhas (para defesa); pretas contram impregnados de idéias contradi­ (para ataque), enquanto que as bebidas tórias e sobretudo usadas como instru­ variam de acordo com a predileção de ca­ mentos para depreciar os princípios reli­ da Exu. giosos da Umbanda, acusada muitas vezes Neste caso, Exu é o "genius" ou o dejraticar a Demonolatria, conforme já "nume loci", ou seja, o guardião e defen­ se assinalou. sor do templo. Finalmente, o Exu é ainda A. Mucci, apoiando-se em Bastide, uma espécie de "nume viário" por ser o Nina Rodrigues e Arthur Ramos, afirma: dono das estradas, entradas, caminhos e nume tutelar das entradas, tem-se dito das encruzilhadas. Assim, o Exu apresenta-se aberturas e, por extensão, também das en­ em tríplice aspecto: "nume tutelar", "nu­ tradas e encruzilhadas, dos rios, enquanto me loci" e "nume viário", o que garante vias de comunicação que levam a algum o seu prestígio e conseqüentemente seu lugar, e dos cemitérios "entrada para unia culto. Com relação à entidade feminina, a outra vida". Também em relação ao cor­ Pomba-Gira, cumpre destacar que seu po humano, EXU é o senhor das "entra­ culto está intimamente ligado à prostitui­ das", dos "orifícios". A anatomia místi­ ção e ao homossexualismo, pois segundo ca atribui a ele a proteção (e as doenças) a tradição religiosa vigente, quando esta da boca, do ouvido e de todos os órgãos entidade "encosta" numa mulher pode que "têm abertura para com o exterior" torná-la sexualmente insaciável e, em ele­ (9: 62). mento do sexo masculino, torná-lo ho- mossexual, porque ela é uma entidade ti­ mento de relações sexuais eventuais, ou picamente feminina. Originariamente, melhor dizendo, ocasionais, em que o Exu Oxum, uma das esposas de Xangô, era a determina ou ordena relações entre o mé­ protetora das prostitutas, porém, na me­ dium e o consulente (se houver aquiescên­ dida em que foi se acentuando o sincretis- cia deste). mo com o Catolicismo e este Orixá passou Alguns autores constataram em estu­ a ser encarado como uma das "mado- dos sobre o Candomblé a ocorrência de nas", perdeu suas características anterio­ concubinato (2: 313, 315), templos onde res que se transferiram integralmente para várias mulheres viviam maritalmente com a Pomba-Gira, a ponto de se considerar um Babalaô, o mesmo ocorrendo nos que ela tanto pode conceder a virilidade Xangô de Recife. como pode tornar impotentes aqueles que É preciso frisar ainda que muitas des­ ousam desafiá-la. Ao que tudo indica, tais sas uniões seguem regras exogâmicas com atributos devem ser recentes e transmiti­ relação a filiação de Orixá, isto é, um fi­ dos por extensão, porque quem tinha o lho de Xangô não pode se unir ou manter "privilégio" de conceder virilidade ou relações sexuais com uma filha de Orixá, ocasionalmente impotência era Exu (ma­ porque isto é considerado como uma rela­ cho), dono de todas as entradas e saídas ção incestuosa (ambos são filhos do mes­ do corpo humano (inclusive as vias se­ mo pai, Xangô). Se, porém, um filho des­ xuais). te Orixá une-se com uma filha de Iansã ou Se o Exu (masculino) identifica o ne­ Oxum, por exemplo, ambos os eventos gro com a liberdade e lhe dá o estereótipo são favoráveis do ponto de vista religioso, de "mau" (identificação com o quilom- porque ambas as entidades foram esposas bola), Pomba-Gira (feminino) confere à de Xangô. mulher liberdade ho nível do sagrado, Uma entidade muito controversa é compensando suas frustrações, principal­ Omolu, para uns Orixá da Peste (mais es­ mente as de natureza sexual. Assim, du­ pecificamente da Varíola), para outros o rante o transe mediúnico, com a abolição "dono e senhor" do Cemitério, portanto da censura (em psicanálise dir-se-ia a anu­ um Exu. lação do super-ego), a mulher torna-se fê­ Sobre esse Orixá ou Exu, os mitos, ao mea desrecalcada e participa ativamente que tudo indica, caíram no esquecimento do jogo amoroso. devido ao sincretismo religioso, mesmo Isso tem propiciado uma espécie de antes da entrada dos escravos no Brasil, poligamia anacrônica, pois muitas Baba- devido ao que Waldemar Valente chama lorixás têm tido uma sucessão de "compa­ de Sincretismo Intertribal. Assim, ao nheiros", em grande número, sendo a adentrar o Brasil, Omolu dos Toruba já maioria bem mais jovens do que elas. É apresentava sincretismo com Sagbata dos evidente que a situação aparece escamo­ Daomés, com Xapanã e Abaluaiê. Parece teada no nível do real, uma vez que é sem­ evidente que tal sincretismo unido poste­ pre uma "entidade" que determina a "u- riormente ao Catolicismo favoreceu a nião" ou "desunião" para a Babalorixá. confusão ou duplo aspecto com relação a É bem verdade que existem casos inver­ esta "entidade". Assim, por exemplo, na sos, de Babalorixás masculinos terem tido Bahia ele pode ser São Benedito, São Ro­ várias mulheres, porém, seu número é que ou São Lázaro; no Recife é São Se­ bem menor do que os do primeiro caso bastião; em Porto Alegre é o Senhor do talvez porque é muito maior o número de Bom Fim; no Rio de Janeiro é o Santíssi­ mulheres que atingem o posto de Babalo­ mo Sacramento ou São Lázaro; no Pará é rixá. Há que se salientar ainda o apareci­ São Sebastião, o mesmo acontecendo no Maranhão (2: 364-365), no Estado de São giosa deve-se solicitar os favores dessa en­ Paulo é comumente sincretizado com São tidade ao contrário, isto é, quando se de­ Lázaro, São Roque, em alguns templos seja saúde pede-se doença e .assim por com São Bento e com grande predomi­ diante, por outro lado ainda, no Sul e Su­ nância aparece como a própria figura da deste do Brasil ele é uma entidade tipica­ morte, talvez por analogia com seu ponto mente feminina ou assexuada. riscado, onde se destaca o alfange. Quando "baixa" nos Terreiros de Um dos poucos mitos remanescentes Umbanda costuma dançar de maneira sobre este Orixá ou Exu afirma que após claudicante, executando um bailado gro­ seu nascimento foi abandonado pelos pais tesco ou, então, o que é também bastante por ser coxo (no transe mediúnico ele se comum, deita-se sobre uma esteira e ai manifesta como um velho claudicante) e permanece enquanto "incorporado" no os Orixás compadecidos concederam-lhe médium. Cobre também o rosto com um o poder de curar a varíola. Tem-se capuz ou máscara de palhas (até os om­ notícias de que em Alagoas e outras re­ bros) para ocultar o rosto tomado pelas giões do Nordeste ele ainda conserva cer­ cicatrizes da varíola. Nas sessões de tas características pirolátricas, pois benze Quimbanda è comum a colocação de um os adeptos com dois tições (1:48). Estes pedaço de carne especialmente destinado elementos parecem identificar muito este a Omolu para que, enciumado ou irado, Orixá com Hefestos ou Hefaístos da mito­ não estrague a carne dos Exus, pois, se­ logia grega, dada as verossimilhanças en­ gundo crença generalizada, quando toca a tre ambos. carne esta apodrece instantaneamente, Omoiu parece trazer em si uma grande exalando mau cheiro. antítese pois, segundo a tradição religio­ Os Nagô tinham um Orixá da morte, sa, ele espalha a varíola e outras doenças Kow porém, as epidemias de varíola, fre­ da pele, mas ao mesmo tempo é capaz de' qüentes no período colonial, provocaram curá-las. No caso da terapia pirolátrica, tantas mortandades que, provavelmente, pode-se pensar que no passado, devido ao foi se transferindo tal atribuição para o grande contágio e falta de profilaxia, sa­ Orixá da Peste (varíola), que assim passou neamento básico e hábitos de higiene, os também a simbolizar a morte. Omolu pa­ surtos variólicos atingiam proporções epi­ rece, portanto, sintetizar a idéia de relati­ dêmicas catastróficas. Para evitar maior vidade que permeia as religiões afro- contágio o corpo das vítimas muito pro­ brasileiras, de que bem e mal não são rea­ vavelmente era cremado e o ritual pirótico lidades distintas, mas interligadas, desca­ talvez revele esse evento (cremação de cor­ racterizando, portanto, o princípio mani- pos extinguindo o perigo imediato de con­ queísta da dicotomia entre bem e mal tágio). A antítese da entidade, porém, não (Deus e Diabo ou Céu e Inferno para os se detém nisso, pois segundo a crença reli­ Católicos).

DELGADO SOBRINHO, A.T. — "Umbanda" mythology. Perspectivas, Sâo Paulo, 8:201-210, 1985.

ABSTRACT: Review andsystematization oftherich "umbandista" mythology, foundali over lhe country, in books and oral tradition, searching elements for its interpretation.

KEY-WORDS: "Umbanda"; "quimbanda"; "exu"; "orixá"; monolheism, death, smallpox; ; devil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. ARAÚJO, A.M. de — Folclore nacional. 2.ed. 6. JAHN, J. — Muniu: Ias culturas neoafricanas. São Paulo, Melhoramentos, 1967. 3v. México, D.F., Fondo de Cultura Econômi­ 2. BASTIDE, R. — As religiões africanas no ca, 1963. Brasil. Sâo Paulo, Pioneira, 1971. 2v. 7. KLOPPENBURG, B. de — A umbanda no 3. BASTIDE, R. — Sociologia do folclore Brasil. Petrópolis, Vozes, 1961. brasileiro. Sâo Paulo, Ed. Anhambi, 1959. 8. LAPASSADE, G. & LUZ, M.A. — O segredo 4. DELGADO SOBRINHO, A.T. — Práticas reli­ da . Rio de Janeiro, Paz e Terra, giosas nos terreiros de umbanda de 1972. Araraquara. Sâo Paulo, Fundação Escola 9. MUCCI, A. — Acauã. São Paulo, Cultrix, de Sociologia e Política, 1973. (Tese- 1972. Mestrado). 10. RIBEIRO, J. — Brasil no folclore. Rio de Ja­ 5. FONTENELLE, A. — Exu. Rio de Janeiro, Ed. neiro, Ed. Aurora, 1970. Espiritualista, 1972.