O Delta Literário De Macau
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O DELTA LITERÁRIO DE MACAU DE LITERÁRIO O DELTA José Carlos Seabra Pereira José Carlos Seabra Pereira O DELTA LITERÁRIO DE MACAU ISBN 978-99965-2-119-5 2015 2015 O DELTA LITERÁRIO DE MACAU JOSÉ CARLOS SEABRA PEREIRA O DELTA LITERÁRIO DE MACAU 2015 Ficha tecnica_Delta Literario ISBNOR.pdf 1 13/1/2016 17:44 C M Y CM MY CY CMY K PREFÁCIO Chegaram os Portugueses a Macau, no auge do século XVI, ainda em pleno período de euforia pelo encontro com um mundo novo e desconhecido. Os sécu- los foram passando e a pequena cidade à beira do grande Delta foi-se afirmando na sua identidade de encruzilhada, a que hoje se chama encontro de culturas. Parte integrante da grande China, que nunca deixou de ser, e cais de chega- da e partida de marinheiros, soldados e comerciantes, Macau soube preservar, até agora, essa sua marca identitária. E foi essa mesma marca, qual assinatura sem dono e que o tempo não apaga, que atraiu poetas, prosadores, homens e mulheres das letras e das artes. Uns aqui floresceram, seja porque a cidade à beira China os viu nascer, seja porque aqui aportaram para por cá ficarem, outros por aqui passaram, mais fugazmente uns, mais alongadamente outros. Nenhum ficou insensível ao fascínio da cidade onde dois mundos se encon- tram e se enlaçam, sem se fundirem e sem perderem o seu rosto. Essa quase magia e a luz trémula das águas do Rio das Pérolas, que de longe vem e em mil longos braços se alonga, e as ruas estreitas entre paredes carregadas da marca dos anos e da marca da humidade e da marca de povos que à sombra delas se misturam, tudo isso foi a atracção de quantos (e tantos são) que deambularam nesse encon- tro de culturas e deixaram na palavra a memória do seu peregrinar. De Camões, se o foi, a Sena Fernandes, de Camilo Pessanha a Maria On- dina Braga, de Wenceslau de Moraes a Miguel Torga, sim, ele mesmo, e a tantos outros a quem Macau serviu de pretexto ou de fonte inspiradora ou simples- mente de local de gestação de artefactos literários, são muitos os exemplos do entrecruzar da literatura portuguesa com Macau e de Macau com a literatura portuguesa. Visitações mútuas ou percursos em um e outro sentido, de ambos os polos se faz a literatura nestas páginas visitada. O Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa, criado em 2013 pelo Instituto Politécnico de Macau para apoiar o desenvolvimento do ensino 5 o delta literário de macau do Português em Macau, na China continental e na Ásia, posto que tenha por objectivo estratégico a língua, não esquece as culturas que nela se plasmam e as literaturas que dela fazem uso e instrumento da sua realização estética. Por isso, o IPM convidou o Professor José Carlos Seabra Pereira, da Universidade de Coimbra, para passar um ano em Macau, como professor visitante e investigador no CPCLP. Entre os grandes objectivos que de comum acordo foram estabeleci- dos figurava um estudo, original e exaustivo, sobre a “literatura portuguesa em Macau” e “Macau na literatura portuguesa”. O repto era de monta e foi aceite; a missão fica nestas páginas cumprida e com qualidade invulgar. Em boa hora o convite foi feito e aceite; as expectativas foram superadas, a avaliar pelo caloroso acolhimento de alunos pela qualidade do trabalho aqui deixado. Desta forma, o Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa cum- pre-se, ele também, naquilo que é a sua essência e prossegue um dos objectivos que lhe foram traçados no acto da sua fundação. E o Instituto Politécnico de Macau cumpre-se, de igual modo, na sua nobre missão de instituição do ensino superior e soma mais uma etapa no seu percurso de excelência. Ao Professor José Carlos Seabra Pereira, o IPM e o CPCLP manifestam o seu reconhecimento por ter aceitado este desafio, pela forma como o superou, pela dedicação de que deu mostras inequívocas e pela actividade desenvolvida. Carlos Ascenso André, PhD Coordenador do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau 6 LIMIAR «medito um rio imenso feito delta cujas águas cismaram de ser mar» (Fernanda Dias, chá verde, p. 71) Situado na foz do rio da sua história e nas margens do rio da sua actualida- de, há em Macau um úbere delta cultural, que é o terreno de aluvião do campo literário, com a forma aproximadamente triangular ditada pela afluência de obras de literatura portuguesa, por um lado, e de obras de literatura chinesa, por outro lado, ao espaço dominado por diferente veiga de criação literária. Sem embargo de efeitos de interacção, para esta última criação literária con- ta menos a inserção no cânone da literatura portuguesa ou no cânone da litera- tura chinesa do que a vinculação placentária à dinâmica do campo literário ma- caense. De acordo com o conceito de Pierre Bourdieu, é portanto uma literatura “de Macau” no sentido de que é uma literatura gerada e promovida em Macau, quase sempre aí editada e apreciada criticamente, e aí tendendo a constituir o seu próprio cânone (dialecticamente fruto e penhor da sua singularidade). Essa “literatura de Macau” foi e é maioritariamente escrita em língua por- tuguesa; por essa razão, e em virtude também dos limites da nossa competência linguística, o que nesse delta vamos estudar é, nos seus nexos diacrónicos e sin- crónicos, o conjunto de obras de literatura em língua portuguesa (embora não deixemos de, em momento oportuno, referir produções literárias macaenses em patois e em chinês). Por exigência epistemológica e desejo de esclarecimento prévio dos leitores sobre os pressupostos e o horizonte do nosso projecto, impõe-se dupla dilucida- ção de conceitos e, consequentemente, dupla delimitação do corpus literário vi- sado: no domínio da história e da geografia literárias, que fronteiras “de Macau” 7 o delta literário de macau para a literatura a estudar? no domínio da tipologia dos discursos e da pragmática comunicacional, que fronteiras para a “literatura” de Macau a estudar? Não deixando de referir e correlacionar textos tributários de códigos de gé- nero híbridos – memórias, diário, biografia e autobiografia, narrativas de viagens e relatos históricos, reconto etnográfico e, em especial, crónica (com tantas e valiosas realizações, sobretudo entre Luís Gonzaga Gomes e Jorge Rangel, mas também nos seus predecessores e sucessores) –, consideraremos a “literatura” no sentido específico de criação imaginativa em arte verbal. Enquanto autores (Carlos Pinto Santos e Orlando Neves) da antologia por excelência que é a série monumental De Longe à China, senhores sem dúvida do mesmo princípio diferenciador, criteriosamente assinalam em subtítulo o duplo tipo discursivo associado no objecto formal da sua recolha selectiva – Macau na Historiografia e na Literatura Portuguesas –, aqui visaremos apenas o corpus tex- tual que se distinga como arte literária na autonomia ficcional da sua semântica. Será, por consequência, um conjunto aberto, não de textos de referencialidade imediata e de valor dependente da sua validade documental, mas sim de textos recepcionados como monumentos artísticos, com referencialidade mediata pas- sível de múltiplas recontextualizações. Por outro lado, esse corpus peculiar pela ficcionalidade literária será consti- tuído por obras líricas, narrativas e dramáticas de autores que se reconhecem e se realizam como escritores no espaço macaense do funcionamento institucional da literatura (produção, publicação, difusão, recepção, avaliação, canonização, etc.) e só enquanto tal costumam ser tidos em consideração tanto a Ocidente como a Oriente. Na demarcação das fronteiras da “literatura”, teremos presente que, ao con- trário do que pretendia o paradigma imanentista com base no conceito formalista de literariedade, não se trata de invocar um conjunto de predicados essenciais na constituição intrínseca do próprio texto como objecto artístico. De acordo com o relativismo pragmático e num paradigma semiótico-comunicacional, trata-se de verificar se esse texto, tendo de viver, não como como entidade significativa auto- -suficiente, mas como entidade comunicativa em interacção com a competência de leitores empíricos em múltiplos contextos, oferece condições para funcionar como literário segundo as convenções da comunicação estética (com que ope- ramos na senda de Siegfried Schmidt). Procuraremos, pois, aferir com abertura se cada texto em causa pode sustentar a sua leitura como mensagem liberta dos critérios de verificação da veracidade e da conveniência dos referentes textuais pe- rante as realidades do mundo empírico (tal como julgamos conhecê-lo); e, se, por conseguinte, pode funcionar como mensagem vocacionada para a polivalência, isto é, isenta do dever de transparência semântica e de eficácia monossémica, em favor da parcial indeterminação do seu sentido. 8 o delta literário de macau Daí decorre que, no nosso modelo biactivo de leitura, o corpus literário nunca está totalmente fixado, nem as suas fronteiras se revelam imutáveis e es- tanques, antes vão em parte variando por razões históricas e contextuais. Pode assim acontecer que um ou outro texto – desde a literatura de viagens à crónica de actualidade, passando pelos recontos de matriz etnográfica à maneira de Ana Maria Amaro, por exemplo –, que originariamente não parecera inserir-se na autonomia da ficcionalidade estética, afinal permita um protocolo de leitura que como tal o interpreta e valora. Quanto à demarcação da “literatura” como “de Macau”, fica clarificado que esssa afectação não decorre necessariamente do nascimento do escritor em Macau (e muitas vezes assim não acontece), nem da eleição de temática pecu- liarmente macaense (embora muitas vezes a inclua). A “literatura de Macau em língua portuguesa” é a criação estético-literária de aurores que em Macau se des- cobrem ou afirmam escritores em língua portuguesa, que em Macau são editados e/ou criticados, reconhecidos e avaliados como escritores – acrescendo que, não em todos os casos mas em grande parte deles, não figuram no cânone da lite- ratura portuguesa de acordo com os meios de reconhecimento, legitimação e valorização do seu funcionamento institucional (editores e críticos, professores e conferencistas, júris e associações, manuais e programas escolares, etc.).