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Maria Theresa Da Costa Barros-Tese-Pretextuais

Maria Theresa Da Costa Barros-Tese-Pretextuais

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro Biomédico

Instituto de Medicina Social

Maria Theresa da Costa Barros

O despertar do budismo no ocidente no século XXI: contribuição ao debate

Rio de Janeiro 2002

Maria Theresa da Costa Barros

O despertar do budismo no ocidente no século XXI: contribuição ao debate

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Jurandir Sebastião Freire Costa

Rio de Janeiro 2002

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CB/C

B277 Barros, Maria Theresa da Costa. O despertar do budismo no ocidente no século XXI: contribuição ao debate / Maria Theresa da Costa Barros. – 2002. 116 f. : il.

Orientador: Jurandir Sebastião Freire Costa. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social.

1. Budismo – Ocidente – Século XXI - Teses. 2. Buda - Teses. 3. Filosofia indiana – Teses. 4. Individualidade – Teses. 5. Ascetismo – Teses. I. Costa, Jurandir Sebastião Freire. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Título.

CDU 294.38

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Maria Theresa da Costa Barros

O despertar do budismo no ocidente no século XXI: contribuição ao debate

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 26 de julho de 2002. Banca Examinadora: ______Prof. Dr. Jurandir Freire Costa (Orientador) Instituto de Medicina Social da UERJ

______Prof. Dr. Benilton Carlos Bezerra Júnior Instituto de Medicina Social da UERJ

______Prof.ª Dra. Madel Therezinha Luz Instituto de Medicina Social da UERJ

______Prof.ª Dra. Mirian Terezinha Fonseca de Carvalho Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ

______Prof. Dr. Rubem César Fernandes Museu Nacional da UFRJ

Rio de Janeiro 2002

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho, carinhosamente, A Fabrício e Henrique, meus filhos E, à memória de meu sobrinho, Guilherme.

AGRADECIMENTOS

Ao professor Jurandir Freire Costa, meu orientador, pelos momentos firmes, mas também pelos momentos de afeto, incentivo, carinho e por sua capacidade, sempre renovada de abrir novos caminhos de conhecimento para todos.

A todos os professores do Instituto de Medicina Social pelo saber transmitido e, em especial a professora Madel Luz, professores Benilton Bezerra e Carlos Alberto Plastino, uma presença constante nos caminhos do Budismo.

A todos os funcionários da Universidade, em especial do Instituto de Medicina Social, Márcia, Silvia, Marcos Paulo, Marcos e outros, pela sua dedicação contínua sem a qual não haveria as condições necessárias e indispensáveis para que tudo isso seja possível Ao professor e amigo Aurèlio Guerra, que pelos caminhos de Buddha foi uma presença constante durante toda essa jornada

Ao querido Padma Samten, pelos ensinamentos, pelas práticas e pela presença benéfica em minha casa e junto aos meus filhos.

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro que apoiou e forneceu as condições materiais para que esse trabalho pudesse ser realizado. As amigas Maria Clara, Denise Jabour, Ana Lilá, Zulma , Marília, aos amigos Liu, Messias, Alexandre e Guilherme pelo seu carinho e apoio nos caminhos da vida e do Buddha.

Aos amigos do Instituto de Medicina Social com quem compartilhei esses anos de estudo e amizade, em especial a Ana Elizabeth, Romero, Luciana, Fânia, Pedro, Gabriela, Nando, Eduardo, Clara, Leônia, Gustavo, Alexandre, Cláudia, Marcelo e muitos outros.

Aos amigos do Viva Rio, Mônica, Rubem, Alberto, Jorge, Laira, Marlene, Adriana, Fábio, André, Pedro, Yuri, Carlinhos e todos os que colaboraram e apoiaram o trabalho junto aos jovens e as crianças, permitindo levar uma mensagem de esperança, calor e afetividade.

Aos amigos do consultório e do Círculo Psicanalítico, Alba, Halina, Márcia, Simone, Rosana, Elizabeth, Marinho, Edson, e todos os outros que sempre me incentivaram e deram apoio aos meus projetos e iniciativas.

Aos meus clientes pela compreensão com as minhas ausências, pela solidariedade e carinho.

A toda a minha família, aos presentes e ausentes, em especial aos meus filhos, que são uma fonte incessante de estímulo e sentido para os caminhos que escolho na vida Nossa realidade pode se abrir para um reino onde tempo, espaço e conhecimento são indivisíveis, sem começo nem fim

A Todos Meu Carinho e Muito Obrigado.

RESUMO

BARROS, Maria Theresa da Costa. O despertar do budismo no ocidente no século XXI: contrbuição ao debate. 2002. 116 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.

Esta tese apresenta como um dos seus aspectos fundamentais a compreensão de outra cultura, outra versão, outro conjunto de valores: o pensamento indiano, berço da Ahamkãra – a consciência individual, o eu – e das práticas ascéticas de origem pré-ariana e autóctone. No interior dessa tradição, foram escolhidos os ensinamentos do Buddha Shãkyamuni, por sua absoluta originalidade na concepção da individualidade, transformando radicalmente as concepções de subjetividade existentes em sua época. O intuito, ao buscar uma tradição em tudo diferente da nossa, é, por dirigir o foco para o mais contrastante, iluminar nossa própria tradição, enriquecer o campo de discussão das novas matrizes de subjetivação em nossa sociedade ocidental pós-moderna e globalizada. Com essa abordagem objetiva-se contribuir para o debate em torno do despertar do budismo ocidental, no séc. XXI, lançando algumas linhas de reflexão que auxiliem, por um lado, a contextualizar esse acontecimento, e, por outro, a ampliar o debate sobre as questões relativas à noção de “sujeito”, utilizada pelos teóricos da psicanálise, através da apresentação de uma outra versão, a do eu budista. A comparação entre uma forma de individualidade oriunda de uma sociedade tradicional e holista e a forma da individualidade contemporânea, oriunda de uma sociedade secularizada e individualista, é possível através do que Harpham denomina “imperativo ascético”, uma força estruturante primária e transcultural. Nesse sentido visualiza-se uma relação entre as práticas ascéticas e a construção do eu. Segundo Mauss, o eu também é uma categoria universal, presente em todas as culturas. Assim como se encontram variações sobre o repertório das práticas ascéticas disponíveis em diferentes culturas, encontram-se variações na forma da subjetividade, de acordo com o seu solo cultural e sua paisagem mental. Fizemos uma conexão entre as práticas ascéticas indianas e o que denominamos de “identificação mística”, a partir da qual foi possível inferir essa imbricação entre ascetismo, construção e sacralização do eu nos primórdios da civilização indiana. Com o budismo ocorre uma espécie de descentramento, a sacralização é estendida a todo o cosmo, as práticas de meditação sintonizam com todos os seres, com todos os animais, para eliminar as causas do sofrimento. O budismo nasce com uma vocação universalista e leva para fora das fronteiras da Índia esse eu construído a partir dos conceitos da Ãhimsa , a não-violência, e da noção de ausência de existência inerente, inscritos no pensamento budista há dois mil e quinhentos anos, despertando o interesse do ocidente após um longo período de obscurecimento.

Palavras-chave: Budismo. Século XXI. Filosofia indiana. Ocidente. Ascetismo.

ABSTRACT

This thesis presents, as a fundamental aspect, the understanding of another culture, another version, another framework of values: of Indian thought, the foundation of Ahamkãra — the individual consciousness, the Self — and of the ascetic practices of pre-Arian and autochthonous origin. Our choice within this tradition fell upon the teachings of Buddha Shãkyamuni, due to the absolute originality of their conception of individuality, radically transforming the extant conceptions of subjectivity of the time. The aim of this search within a tradition that differs from ours in all respects, as we focus on that contrast, is to shed light in our own tradition, adding to the discussion about new subjectivity matrixes in our post- modern, global wessern society. This inquiry aims at contributing to the debate on the emergence of Wessern in the 21 st. century, by essablishing some lines of reflection that should help us to contextualise this phenomenon, on the one hand, and on the other, to widen the debate on issues that relate to the notion of ‘subject’ as theoretical psychoanalysts use it, through the presentation of the Buddhist Self as another version. A transcultural, primary structuring force, which Harpham calls “ascetic imperative”, shall allow for the comparison between one form of individuality which comes from a traditional and holistic society, and the form of contemporary individuality, which comes from a secularised and individualist society. Along these lines, we see a relationship between the ascetic practices and the construction of the Self. According to Mauss, the Self also is a universal category, which all cultures present. Much as there are variations on the inventory of ascetic practices available in various cultures, there are variations on the form of subjectivity, in accordance with its cultural ground and its mental landscape. We essablish a connection between Indian ascetic practices and what we call ‘mystic identification’, and this allows us to infer the interrelation between asceticism and the construction and sacralisation of the Self in the primeval ages of Indian civilisation. A kind of de-centring occurs with Buddhism: sacralisation spreads through all the Cosmos, meditation practices syntonize with all beings, all animals, in order to eliminate the causes of suffering. Buddhism has risen with an universalist vocation, and took beyond the borders of India this Self built upon the concepts of Ãhimsa, of non-violence, and the notion of absence of inherent existence, which have been intrinsic to Buddhist thought for twenty-five hundred years, and calls the attention of the West after a long period of concealment.

Keywords: Buddhism. Century XXI. Indian Philosophy. West. Asceticism.

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 – O rosto do Buddha ...... 28 Figura 02 – O Buddha Sannyãssin ...... 60 Figura 03 – Os Buddha e o sagrado ...... 92 Figura 04 – O Buddha no Parinirvãna ...... 130 Figura 05 – A cadeia de produção dependente – a roda da vida ...... 204

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 10 1 A NOÇÃO DO EU: UMA CATEGORIA SAGRADA DO PENSAMENTO INDIANO ...... 29 1.1 Introdução ao pensamento indiano em Sarvepalli Radhakrishnan ...... 29 1.2 Os quatro períodos da filosofia indiana ...... 30 1.3 As atitudes da mente filosófica indiana ...... 39 1.4 As origens do eu na obra de Marcel Mau ss ...... 48 2 OUTRA PAISAGEM MENTAL, UMA OUTRA VERSÃO, OUTRO 61 CONJUNTO DE VALORES ...... 2.1 Individualismo e holism o em Louis Dumont ...... 61 2.2 Interesse pelas raízes antigas, pré -arianas, em Mircéa Eliade ...... 72 2.3 “Sagrado”, “Moral” e “Dependência” em Rudolf Otto ...... 83 3 ÃHIMSA E AMRTAM : DUAS VERSÕES DO SAGRADO NA ÍNDIA 93 ANTIGA ...... 3.1 Imperativo ascético ...... 93 3.2 Ritual do sacrifício ...... 103 3.3 Vertentes da “Não -violência” e do “Fazer o sagrado” ...... 112 3.4 Renunciante: individualização “mística”, em ruptura com a sociedade ...... 117 4 O BUDISMO, UMA OUTRA VERSÃO DA INDIVIDUALIDADE NA ÍNDIA ANTIGA ...... 131 4.1 O budismo do Buddha Shãkyamuni: “O Desperto” em Karl Jaspers ...... 131 4.2 Os três giros da Roda do em André Bareau ...... 141 4.3 A questão do eu budista: Samsãra e Nirvãna em Peter Harvey ...... 160 4.4 A originação dependente como caminho do meio em Steven Collins ...... 175 4.5 Os cinco em Chögyam Trungpa 194 5 O DESPERTAR DO BUDISMO NO OCIDENTE NO SÉCULO XXI ...... 205 5.1 Mudança de paradigma ou ponte ocidente -oriente em Colin Campbell ...... 205 5.2 Os primórdios do budismo ocident al em Heinz Bechert ...... 216 5.3 O budismo ocidental em Kulananda ...... 226 5.4 O budismo ocidental em Lama Padma Samten ...... 231 5.5 “Todos que conheçam outros tão bem quanto a si mesmos (...)” 245 6 CONSIDERAÇÕES FINAI S ...... 248 REFERÊNCIAS ...... 253

GLOSSÁRIO ...... 260

10

INTRODUÇÃO

“eu não luto contra o mundo, oh! Monges!... É o mundo que luta contra mim Aquele que proclama a verdade, oh! Monges, não ataca a ninguém no mundo” Siddhârta Gautama, o Buddha Shãkyamuni

O despertar do budismo no mundo ocidental, no século XXI, embora seja um fato indubitável, é relativamente tão recente que se torna difícil ter uma dimensão real dos efeitos desse acontecimento sobre a subjetividade ocidental. Alguns pretendem que tal fenômeno possa ser comparado ao impacto que a redescoberta da cultura grega teve sobre a Europa na época do Renascimento 1, outros ainda preferem vê-lo como uma última ironia pós-moderna 2. Não temos intenção de tomar posição no interior desse debate, mas apenas de lançar algumas linhas de reflexão que auxiliem, por um lado, a contextualizar esse acontecimento e, por outro, a ampliar o debate sobre as questões relativas à noção de “sujeito” utilizada pelos teóricos da psicanálise 3, através da apresentação de uma outra modalidade de concepção da subjetividade, oriunda de uma cultura distinta, com outras crenças, outros valores, em quase tudo diferente da nossa, mas nem por isso menos controvertida. A questão do “eu budista” aparece aqui em primeiro plano. Como justificar que em um estudo sobre a categoria do eu tenha-se ido buscar tão longe, em uma tradição tão afastada da nossa – o campo da filosofia oriental indiana e, mais ainda, no interior dessa, a tradição budista em particular? Alguns autores têm indicado esse caminho, já existindo uma tradição de estudos comparativos entre culturas, práticas religiosas, modos de subjetivação, que resultaram numa metodologia seja de uma antropologia ou sociologia comparadas, metodologia essa que permitiu pensar as relações entre subjetividade e cultura em Marcel Mauss, levantar hipóteses sobre as origens do individualismo em Louis Dumont, traçar uma perspectiva de uma história das religiões em Mircéa Eliade, ou buscar entender a complexa relação entre a estrutura institucional sócio-econômica da sociedade e sua cultura conduzindo a um esquema para classificação e análise das religiões mundiais em Max Weber, ou pensar e interpretar os contatos interculturais entre oriente e ocidente em Colin Campbell. Pode-se enumerar alguns autores que se voltaram para o estudo de outras versões da cultura, dentre eles Michel Mourre, André Bareau, Heinrich Zimmer, Joseph Campbell, Steven Collins, Peter Harvey, Edward Said etc.

1 REVEL, J.F.; RICARD, M. O monge e o filósofo: o budismo hoje . Tradução de Joana Angélica d’Ávila Mello. São Paulo, Mandarim, 1998. 2 ZIZEK, S. On Belief . Londres e Nova York: Routledge, 2001, p. 12. 3 COSTA, J.F. “O risco de cada um”. In Religião & Sociedade . Volume 21; Número 2; Ano 2001, p. 20. 11

Procurou-se desenvolver um estudo histórico sobre o budismo. Tal estudo se justifica pela questão da alteridade que o pensamento budista representa para a perspectiva ocidental, ou seja, do desconhecimento do leitor ocidental dessa temática. Não há dúvidas de que se pode definir essa “noção do eu” como o objeto central desse estudo. Porém, para apresentar este “eu budista”, houve necessidade de reconstruir, ainda que metaforicamente, a paisagem mental e o solo cultural onde se encontram suas raízes. Assim, foi-se buscar na figura do asceta indiano, o Sannyãsin , um dos elementos que possibilitam contextualizar a construção desse “eu budista”, esse eu que para alcançar o Caminho da Salvação, o Nirvãna , deve desenvolver as práticas do Caminho de Oito Passos, as práticas de meditação budista, que têm suas raízes nas mais antigas linhagens ascéticas de origens autóctones e pré-arianas do pensamento filosófico e religioso indiano. De fato, o intuito ao buscar uma tradição em quase tudo diferente da nossa é, justamente, por dirigir o foco para o mais contrastante, poder iluminar a nossa própria tradição, criar a possibilidade de olharmos para nós mesmos a partir de novos ângulos, buscando enriquecer o campo de discussão das novas matrizes de subjetivação em nossa sociedade ocidental pós-moderna 4 e globalizada. Um dos eixos que permitirão fazer essa comparação entre o “eu budista” e nossa subjetividade contemporânea é o que Harpham denomina “imperativo ascético”. Segundo Ortega, o ascetismo é visto por esse autor da seguinte maneira:

“No seu livro The Ascetic Imperative in Culture and Criticism 5, Geoffrey Harpham considera o ascetismo como um instrumento fundamental na transformação cultural e hermenêutica. Ele é o ‘elemento cultural na cultura’, que permite a comparação e a comunicação entre elas. Qualquer definição estreita do ascetismo que o identifique com um conjunto de comportamentos restritivos distintivos de períodos históricos delimitados e de áreas geográficas particulares necessariamente perde o alcance geral do fenômeno como operador de formação e transformação cultural.” 6

4 Segundo Lyotard, a palavra é usada na escrita de sociólogos e críticos do continente americano. Ela designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes, a partir do fim do século XIX. O autor pretende situar essas transformações com relação à crise das narrativas. In LYOTARD, J.F. A Condição Pós-Moderna . Tradução revista e apresentada por José Bragança de Miranda, da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 11. 5 Apud HARPHAM, G. The ascetic imperative in culture and criticism . Chicago e Londres. University of Chicago Press, 1987. In ORTEGA, F. “Da ascese à bio-ascese, ou do corpo submetido à submissão ao corpo”. In Foucault – Deleuze: O que fazemos de nós mesmos? Rio de Janeiro. D.P. & A, 2002, p. 2. 6 ORTEGA, F. (2002: 1-2). Muitas das idéias apresentadas nesse texto surgiram das discussões com os colegas Jurandir Freire Costa e Benilton Bezerra Jr., e também com os participantes do seminário sobre biopolítica, biossociabilidade e bio-ascese realizado no Instituto de medicina social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Este texto se encontra no prelo, não tendo sido ainda publicado. Cópia via e-mail . 12

Sublinha ainda Ortega que, embora o ascetismo se apresente como um “fenômeno universal”, pois em todas as culturas encontramos esse “mecanismo privilegiado de formação cultural”, ainda assim sua relação com uma determinada cultura apresenta variações na forma. 7 O próprio Harpham, ao tratar o “imperativo ascético” como uma força estruturante primária e transcultural, afirma estar seguindo as pegadas de muitos que tiveram uma intuição similar. Por exemplo, de William James, que compreendeu que o ascetismo não era um fenômeno exclusivamente religioso. Em seu livro Variedades da experiência religiosa , James reconheceu a tendência do ascetismo cristão para a extravagância e o excesso, mas enfatizou o seu espírito de heroísmo, revelado particularmente pela atitude do asceta em relação à morte. Segundo James, nesse cultivar a morte como um estado eminentemente espiritual, o asceta encarna o mistério metafísico, aquele que “quem alimenta sobre a morte alimenta os homens a se apropriarem da vida com enlevo e excelência.” 8 O próprio James ainda vê a “antiga adoração pela pobreza monacal” como “algo heróico que falará aos homens tão universalmente quanto o faz a guerra, e ainda será compatível com os seus “eus” espirituais tal como a guerra tem provado ser incompatível”. 9 Assim, o ascetismo é visto como tão universal quanto a guerra, da qual ele pode ser considerado uma versão privatizada; e ainda mais amplo do que a guerra, pois é compatível com o oposto da guerra, o anseio pela transcendência. 10 Harpham afirma que, aceitando as pressuposições de James de que o espírito do ascetismo pode ser encontrado mesmo em práticas e instituições completamente secularizadas, lançará mão do termo tanto em um sentido específico quanto em um sentido amplo. Com o primeiro quer denotar uma ideologia histórica altamente específica, e com o último, possibilitar a transposição conceitual dessa ideologia para outras culturas remotas a partir daquela original no tempo, no espaço e em tudo mais: no sentido restrito, Harpham identifica o ascetismo como um produto da primeira ética e espiritualidade cristã; no sentido amplo ele considera que o ascetismo se refere a qualquer ato de negação do eu experimentada como uma estratégia de adquirir poderes e gratificação. 11 Nesse sentido, visualiza-se no pensamento indiano uma relação entre as práticas ascéticas e a construção da categoria do eu, pois segundo Mauss essa categoria também é um

7 Idem, ibidem . 8 Apud JAMES, W. The Varieties of Religious Experience , p. 364 In: HARPHAM, G. The ascetic imperative in culture and criticism. Chicago e Londres. University of Chicago Press, 1987, Introdução, p. xi. 9 Idem, ibidem. 10 HARPHAM, G. (1987: xi). 13

fenômeno universal 12 , presente em todas as culturas. Assim como se encontram variações nas diferentes culturas em relação ao repertório das práticas ascéticas disponíveis, também são encontradas variações nas formas de subjetividade, de construção da categoria do eu, de acordo com a cultura que se apresenta como seu solo cultural e sua paisagem mental. Encontra-se uma conexão, justamente, entre as práticas ascéticas mais antigas, oriundas das linhagens ascéticas indianas, e o que foi denominado “identificação mística”, a partir da qual foi possível inferir essa imbricação entre a construção da categoria do eu e o ascetismo nos primórdios da antigüidade indiana. No pensamento indiano, antes de se tornar uma categoria conceitual, a Ahamkãra 13 – a consciência –, o eu foi construído através das milenares práticas do Yoga , por uma “identificação mística”, como uma “categoria sagrada do espírito humano”. Vê-se no “eu budista” um legítimo representante dessas linhagens ascéticas mais antigas, de origem autóctone e pré-ariana, do pensamento indiano. No entanto, com o budismo há uma espécie de descentramento dessa sacralização do eu, quando a esfera do sagrado é estendida a todo o cosmo. Por isso as práticas de meditação budista sintonizam com todos os seres, com todos os animais, com todo o cosmo, para eliminar as causas de sofrimento de todos os seres, sem discriminação de sexos, raças, credos, castas e classes sociais. Desde as suas origens o budismo aparece, também, com vocação universal, levando para fora das fronteiras da Índia esse “eu budista”, construído a partir dos conceitos do Ãhimsa , da “não-violência” e da “ausência de existência inerente” (ou “existência dependente”), inscritos no pensamento budista há dois mil e quinhentos anos. O budismo se coloca então como Holismo, ao invés de Humanismo, pois não privilegia o ser humano como centro de seu sistema ético, mas busca sintonizar com todo o Universo. O Buddha Shãkyamuny foi um asceta, e o asceta pode frente à sua cultura adotar diferentes posições: “pode desafiar a cultura, integrar-se nela, transcendê-la, viver em tensão com ela, ou transformá-la”. Segundo Ortega, essa é uma das razões pelas quais “podemos analisar o ascetismo como fenômeno geral existente em todas as culturas”, o que justamente

11 Idem, ibidem. 12 MAUSS, M. “Uma categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa, a noção do eu”. In MARCEL, M. Sociologia e Antropologia , vol.1, São Paulo: EPU, EDUSP, 1938, 1974, p. p. 209-240. 13 Ahamkãra (ahamkãra ), ego, eu-consciência, uma parte do antahkarana , o órgão interno que dá surgimento ao processo mental. Ahamkãra é o motivador do pensamento que cria a noção de que se é uma entidade única separada de tudo mais. Essa dualidade sujeito-objeto dá origem à visão ilusória através da qual vemos em brahman , o um sem um segundo, o mundo manifesto de múltiplas formas ( maya). Todas as percepções, sentimentos, desejos e atos de vontade são, natural e automaticamente, relacionados a Ahamkãra . In The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion . Buddhism. Hinduism. Taoism. . Stephan Schumacher, Gert Woerner (orgs.). Boston: Shambhala, 1989, p. 5. 14

Harpham denomina “imperativo ascético”, que no entanto só pode ser compreendido a partir das formas, motivos, contextos e comportamentos específicos nos quais aparece. 14 Esta tese tem como um de seus pontos fundamentais a compreensão dessa outra cultura, berço das tradições ascéticas e da categoria do eu, com suas práticas, seus valores e suas crenças que constituem, na tradição oriental, o pensamento indiano, e, dentro desse, a tradição budista. Na tradição dos estudos orientalistas, ocidente e oriente sempre foram vistos como dois pólos opostos. 15 Talvez o budismo se apresente, dentre as tradições do pensamento oriental, como a mais apta para fazer uma ponte entre ocidente e oriente, e esse pode ser um dos motivos do crescente interesse demonstrado no ocidente por essa tradição. Segundo declaração de Lutzenberger, quando era ministro brasileiro do Meio Ambiente, a definição da nossa sociedade ocidental como fruto da tradição ocidental carece de uma orientação mínima que impeça de se perpetuar um ciclo de destrutividade ininterrupta. Como responsável pela gestão dos recursos nesse sentido, sendo então ministro, advertiu para a necessidade premente de se fazer algo:

“A moderna sociedade industrial é uma religião fanática. Estamos derrubando, envenenando e destruindo todos os sistemas vivos do planeta. Estamos assumindo dívidas que nossos filhos não podem pagar... Agimos como se fôssemos uma última geração do planeta. Sem uma mudança radical no coração, na mente, na visão, a Terra se extinguirá como Vênus, calcinada e morta.” 16

Talvez essa vinda de uma nova tradição para o ocidente possa representar uma esperança. Tensyn Gyatzo, Sua Santidade o XIV , nos fala de sua crença na possibilidade de mudança do mundo. Só que ele percebe essa mudança vinda através de uma transformação individual – e esse é um longo caminho. O budismo vai ao encontro, intelectualmente falando, de certos avanços da física quântica, que confirmam a correlação dos conceitos budistas de interdependência. 17 De acordo com essa visão, para se ter mais paz

14 ORTEGA, F. (2002: 2). 15 SAID, E.W. Orientalismo : o Oriente como invenção do Ocidente . Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. p. 41-59. 16 Apud , S. O livro tibetano do viver e do morrer . Tradução de Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Talento e Palas Athena, 1999, p. 25 . In José Antonio Lutzenberger, citado no Sunday Times, de Londres, março de 1991. 17 “No fim do século XIX, sustentava-se que todas as interações implicavam objetos materiais. Hoje em dia, em geral, já não se considera isso uma verdade. Prefere-se pensar que se trata de uma interação de campos de energia ou de outras forças que são, basicamente, não materiais” In: REVEL J. F. e RICARD, M. O monge e o filósofo : o budismo hoje . Tradução de Joana Angélica d’ Ávila Mello. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 99. 15

e mais felicidade é preciso desenvolver um senso de responsabilidade global. Na opinião de Sua Santidade, não tem mais sentido hoje separarmos o ocidente do oriente. 18 A chegada do budismo ao ocidente, como já foi dito, é muito recente, e o objetivo deste trabalho é contribuir para o debate sobre os possíveis significados desse interesse, cada vez maior, demonstrado no ocidente pelo budismo, para uma mudança na mentalidade ocidental. Será o budismo um novo remédio que vem nos curar de nossos males, ou será ele apenas um novo fetiche para tornar essa realidade ocidental, tal como ela é, mais suportável? Para situar a discussão, será examinada um pouco da história do budismo no ocidente, mesmo que em caráter apenas introdutório e em linhas bastante gerais. Sabe-se que antes dos séculos XVII e XVIII o mundo ocidental praticamente desconhecia a tradição budista. No século XIX, o interesse pelo budismo foi despertado e cresceu consideravelmente, chegando nas últimas décadas a exercer uma influência significativa. Entretanto, apenas a partir de meados do século XX é que emerge, de forma nítida, um movimento budista ocidental. Segundo Dharmachari Subhuti, podemos distinguir, na história do budismo no ocidente, quatro estágios fundamentais: primeiro, a fase dos estudiosos do budismo; segundo, a fase das sociedades budistas; terceiro, a fase dos grupos budistas orientais; e, como quarto e último, a fase do budismo ocidental. Em sua visão, embora cada uma dessas fases tenha trazido sua contribuição, é apenas na última que começa a existir a possibilidade real de transformação para um número significativo de pessoas. 19 No entanto, a primeira fase, predominantemente de interesse teórico-conceitual, foi a mais prolongada, até o momento. Quem primeiro trouxe notícias sobre as tradições budistas foram os missionários cristãos, já no final do século XVII. A partir disso, Leibnitz e Kant, grandes filósofos germânicos, ganharam algum conhecimento da doutrina budista – Kant em particular expressou sua admiração por ela. Mas foi somente a partir do século XIX que começaram a aparecer traduções dos textos budistas, o que possibilitou a aquisição de informação mais detalhada e acurada. Schopenhauer, sem sombra de dúvida, bebeu dessas fontes, extraindo desse material grande inspiração, e é considerado um dos mais importantes pensadores ocidentais a terem sido influenciados pelo budismo. Como se sabe, os escritos de Schopenhauer, por sua vez, influenciaram Nietzsche e Freud.

18 Tensyn Gyatzo, Sua Santidade o XIV Dalai Lama. Seminário: “Valores humanos e sua prática na vida cotidiana”, realizado em Curitiba, 05-06 de abril de 1996. (Anotações de Maria Theresa da Costa Barros, como membro participante). 19 SUBHUTI, D. Buddhism for Today . A Portrait of a New Buddhist Movement . Newtown, Windhorse Publications: 1983, 1988, p. 24. 16

Entretanto, essa abordagem inicial do Dharma , de caráter predominantemente intelectual, deu margem a inúmeros equívocos, que proliferam ainda hoje nas publicações sobre o tema. Por exemplo, encontra-se nos textos de um proeminente tradutor a afirmação de que os monges praticavam a meditação apenas porque não tinham outra maneira de ocupar o seu tempo. Mas a despeito dessas primeiras distorções das informações sobre o Dharma , o interesse cresceu. A partir do final do século XIX a atração pelo oculto e o espiritual, que de certa forma sempre fascinou o imaginário ocidental, aos poucos se voltou em direção ao budismo. No entanto, quem quisesse conhecer o budismo real tinha de ir ao Tibete, Ceilão, ou Japão e tornar-se um monge. Alguns fizeram isso, escolhendo suas escolas com base em escassas informações ou de acordo com as oportunidades que se apresentavam. No entanto, muito antes disso, escolas orientais tradicionais começaram a formar grupos no ocidente, tanto com monges ocidentais que tinham retornado, quanto com professores orientais importados. Logo, sucessivamente, as tradições Theravãda , Zen e Vajrayãna Tibetana tornaram-se razoavelmente conhecidas, cada uma com um número de grupos e organizações. Com a invasão chinesa do Tibete alguns professores tibetanos se estabelecem na Europa e na América, e com isso o budismo tibetano se torna, indubitavelmente, a forma mais popular. Um fato notável, porém, é que, na opinião de Subhuti, os grupos de todas as escolas falharam em oferecer as bases para um real budismo ocidental. Apesar desses grupos cobrirem um largo espectro de diferentes abordagens, duas razões fundamentais para essa falha podem ser identificadas: primeiro que, mesmo tendo avançado em relação às sociedades, no sentido de oferecer a possibilidade de um compromisso maior e mais aprofundado, na totalidade ainda havia uma tendência a identificar esse compromisso com levar uma vida formalmente monástica; e, segundo, por outro lado, os grupos Mahayãna que reconheciam a necessidade de ser um monge para se desenvolver, falharam em trabalhar como deveria ser um modo de vida, fora da vida monástica, capaz de ajudar, genuinamente, o indivíduo em seu desenvolvimento espiritual. Tampouco os grupos budistas orientais se dedicaram de modo radical à questão de conciliar a opção por ser um budista compromissado e a vida no ocidente moderno. Nenhum se questionou qual é a real significação do compromisso e como isto deve ser trabalhado fora da vida monástica nas condições atuais. Dessa maneira, muitos procuraram um casamento nada fácil entre a cultura budista oriental e a prática social ocidental, o que resultou na ocupação de um espaço inofensivo, porém ineficaz, na paisagem existente. 17

Em relação a esse “espaço inofensivo e pouco eficaz”, que teria sido ocupado pelos grupos budistas no ocidente, nem todos parecem pensar da mesma maneira. Zizek, um pensador contemporâneo, tem uma opinião radicalmente diferente nesse sentido. Tanto assim que chegou a afirmar que, se Max Weber fosse vivo, publicaria um segundo volume suplementar para sua “Ética protestante e o espírito do capitalismo”, intitulado – “A ética taoísta e o espírito do capitalismo global”. 20 Do ponto de vista de Zizek, o “pós-modernismo” ocidental não seria senão essa situação paradoxal, a derradeira derrota da iluminação no momento mesmo de seu grande triunfo:

“Quando a dialética da iluminação alcançou seu apogeu, a sociedade pós-industrial dinâmica, desenraizada, diretamente gerou seu próprio mito. O reducionismo tecnológico dos partidários cognitivistas da Inteligência Artificial e o imaginário mítico pagão de magia, de poderes mágicos misteriosos etc. são estritamente os dois lados do mesmo fenômeno: o malogro da modernidade em seu grande triunfo.” 21

Essa é a última ironia pós-moderna e, em seu entender, revela uma estranha permuta entre Ásia e Europa, pois se ao nível da “infraestrutura econômica” há um nítido triunfo da tecnologia “européia” e do capitalismo no mundo liberal, world-wide , ao nível da “superestrutura ideológica” o legado judaico-cristão se encontra ameaçado no próprio espaço europeu por um ataque violento do New Age:

“O pensamento Asiático, o qual, em seus diferentes estilos, a partir do ‘budismo ocidental’ (hoje a contraparte para o Marxismo Ocidental, como oposto ao Marxismo-Leninismo ‘Asiático’) para diferentes ‘Taos’, está estabelecendo a ele mesmo como ideologia hegemônica do capitalismo global”. 22

Para Zizek, nisto reside a mais alta identidade especulativa dos opostos na civilização global atual. Se por um lado o “budismo ocidental” se apresenta como o remédio contra a tensão estressante da dinâmica capitalista, nos conduzindo para desligar e reter a paz interna,

20 ZIZEK, S. (2001: 13). 21 Idem, ibidem, pp. 11-12. 22 Idem, ibidem, p. 12. 18

a serenidade – “Gelassenheit”, por outro, ele atualmente funciona como seu suplemento ideológico perfeito. Ele fala do “choque do futuro”, ou seja, como as pessoas cada vez menos estão em condição de competir psicologicamente com o ritmo desconcertante do desenvolvimento tecnológico e das mudanças que o acompanham – as coisas simplesmente se movem muito rápido. Antes que a pessoa possa ter se acostumado a uma invenção, ela já foi suplantada por uma outra mais nova ainda, o que não permite manter um “mapeamento cognitivo” mesmo o mais elementar. Não resta dúvida que Zizek reconhece o recurso ao taoísmo ou ao budismo como uma alternativa possível para escapar desses apuros. Ao invés de se tentar competir com o acelerado ritmo do progresso tecnológico e das mudanças sociais, renuncia-se ao desejo de manter o controle sobre o que acontece, rejeitando isso como parte da lógica moderna de dominação. Paira-se, flutua-se, mantém-se indiferente em direção à dança louca desse acelerado processo. Uma semelhante distância se faz possível a partir do insight de que toda essa mudança drástica e tecnológica é, em última instância, uma proliferação não substancial de aparências que, realmente, não concernem ao mais recôndito do ser. Em sua opinião as instâncias meditativas do “budismo ocidental” são o modo mais eficiente de manter uma aparência de sanidade mental dentro dessa dinâmica capitalista insana. Nesse sentido, ele faz uma aproximação entre Marx e Max Weber: do primeiro ressuscita, segundo ele próprio afirma, o infame “clichê marxista” da religião como “ópio do povo”; e do segundo, diz que se fosse vivo complementaria com um novo volume seu trabalho sobre a relação entre crenças religiosas e éticas econômicas, como já foi aqui apontado. No entanto, ainda que não tenha tido tempo para escrever esse segundo volume, Weber deixou registrado seu ponto de vista quando estudou as religiões asiáticas, o qual não parece apresentar nenhuma afinidade eletiva, conceitualmente falando, com o pensamento de Zizek, muito pelo contrário. Ao definir a diferença histórica decisiva entre a religiosidade de salvação predominantemente oriental e asiática e a religiosidade de salvação ocidental Weber afirma que: “as primeiras desembocam essencialmente na contemplação e a última no ascetismo.” 23 Em relação ao hinduísmo e budismo ele afirma que, na verdade, a única “ética religiosa” que, a rigor, está em oposição à participação no modo de vida do capitalismo é a “ética contemplativa” do budismo primitivo, inicialmente denominada em suas palavras como:

23 WEBER, M. Economia y Sociedad . México, Fondo de Cultura Econômica, 1ª ed. 1922, 11ª ed. 1997, p. 435. 19

“A Ética mais extrema de negação do mundo, a mística concentração iluminista do velho budismo genuíno; não, naturalmente, das variações inteiramente transformadas que apresenta nas religiosidades populares, seja ela tibetana, chinesa e japonesa”. 24

Weber considera, assim, a denominação de “fuga do mundo” mais apropriada para essa “ética contemplativa”, 25 em contraposição à “negação do mundo”, com a qual prefere denominar a “ética de casta” do hinduísmo, por estar, em sua opinião, incluída entre as éticas religiosas especificamente econômico-intramundanas. Embora não possa concordar com a denominação weberiana de “ética mais extrema de negação do mundo” aplicada ao budismo – esse é um ponto que será explicitado nesse trabalho, mostrando que o Buddha Shãkyamuni foi, em sua época, um “revolucionário espiritual” e que o budismo é uma proposta de “revolução espiritual”, distante da idéia de “fuga do mundo” – é coerente julgar que Weber não endossaria o ponto de vista de Zizek a respeito da doutrina budista como “complemento ideológico do capitalismo”. Mais recentemente, Thurman, depois de ter completado sua formação como monge budista e ter regressado aos Estados Unidos para lecionar, declarou-se surpreso com o que constatou:

“Fiquei estarrecido quando descobri na literatura ocidental e nas mentes de meus colegas uma distorção intensa e sistemática sobre a realidade de civilizações orientais em geral e da civilização budista em particular. Essa desinformação teve sua origem em ‘autoridades’ européias, como Weber, Freud, Marx e Durkheim, e foi perpetuada tanto por escritores contemporâneos quanto por tradutores. Os preconceitos básicos que encontrei propagavam idéias de que orientais não têm individualidade; de que eles não se enxergam como indivíduos fisicamente, e muito menos

24 Idem, ibidem , p. 487. 25 Sem dúvida, afirma Weber: “todo mundo atua de alguma maneira, inclusive o místico, e minimiza sua atuação porque, longe de lhe poder dar certeza do estado de graça, pode afastá-lo de sua união com o divino. Pelo contrário, o asceta contrasta o seu estado de graça mediante a sua atuação. A oposição entre ambos os modos de conduta se torna mais clara quando se tiram as conseqüências da inteira “negação do mundo”, ou da “fuga” do mesmo. Quando o asceta quer atuar no mundo, isto é, quando se trata de ascetismo intramundano, deve ter uma espécie de incapacidade de se preocupar com qualquer questão acerca do ‘sentido’ do mundo”. Weber afirma: “Não é por acaso que o ascetismo intra-mundano tenha podido desenvolver-se melhor sobre a base do Deus calvinista, insondável, com motivações absolutamente estranhas aos padrões humanos”. Para ele, “Este tipo de asceta é, por isso, o ‘homem da vocação’, que não se faz perguntas sobre o sentido interno do mundo , do seu exercício profissional (...) basta-lhe (...) estar cumprindo a vontade de Deus, insondável para ele em seu último sentido”. In : WEBER, Max, idem, pp. 432-433. 20

intelectualmente; e de que eles basicamente acreditam que a vida não tem muito valor”. 26

Thurman testemunha, diretamente, comportamentos opostos exibidos por tibetanos no exílio. Constata que seus próprios mestres trabalham incansavelmente em prol dos outros. Testemunha – através dos vestígios modernos desse antigo estilo de vida – um movimento que começou há dois mil e quinhentos anos com a iluminação do Buddha para criar um mundo puro, cuja finalidade primordial consistia em ajudar a cada indivíduo a desenvolver seu potencial pleno. O desenvolvimento desse potencial pleno resulta na formação de um ser totalmente iluminado, um Buddha tão maravilhoso quanto foi essa figura histórica e ao mesmo tempo lendária. Antes dos ensinamentos do Buddha Shãkyamuni, nunca existiu uma filosofia tão positiva ou que valorizasse tanto o indivíduo. Na opinião de Thurman, é preciso dissipar qualquer confusão a esse respeito. E o mundo ocidental, de certa forma, reconhece, através desse interesse crescente, a importância do ensinamento contido na mensagem do Buddha Shãkyamuni. Em seu livro Uma ética para o novo milênio , Tensyn Gyatzo, Sua Santidade o XIV Dalai Lama, afirma o seguinte:

“Além do mais, precisamos aprender a reconhecer os limites da própria investigação científica. Por exemplo, mesmo sabendo há milênios que existe uma consciência humana, mesmo que essa tenha sido um constante objeto de investigação através da História e apesar de todo o esforço dos cientistas, esses ainda não compreendem o que ela é realmente, ou por que existe, como funciona ou qual vem a ser a sua natureza. A ciência não sabe dizer qual é a causa material da consciência nem quais são seus efeitos. É claro que a consciência pertence àquela categoria de fenômenos sem forma, substância ou cor. Não é passível de investigação por meios externos. O que não significa que tais fenômenos não existam, mas apenas que a ciência não pode explicá-los”. 27

Sobre essa questão da consciência e de como ela é pensada na doutrina budista, ainda nesse livro Tensyn Gyatzo faz uma importante distinção entre religião e espiritualidade. A

26 THURMAN, R. Revolução interior: vida, liberdade e a busca da verdadeira felicidade . Preâmbulo do Dalai Lama. Tradução de Ana Cristina Lopes. Rio de Janeiro: Fisus, 1998, 2000, p. p. 27-28. 27 DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio . Tradução de Maria Luiza Newlands. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, pp. 22-23. 21

religião está relacionada com a crença no direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé, crença essa que tem como um dos seus principais aspectos a aceitação de alguma forma de realidade metafísica ou sobrenatural, incluindo possivelmente uma idéia de Paraíso ou Nirvãna . A espiritualidade aparece relacionada por aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros. Não resta dúvida que podemos, se preferirmos, dispensar a religião. Não podemos, entretanto, abrir mão dessas qualidades básicas, desses valores espirituais. O ocidente está passando por uma crise de valores muito profunda. Segundo Fromm, existe já um certo acordo sobre esse aspecto, que tem sido denominado “ malaise ”, “ mal du siècle ”, o embotamento da vida, a automatização do homem, seu alheamento de si mesmo, do seu semelhante e da natureza. Em sua opinião, o homem ocidental seguiu o racionalismo até um ponto em que o racionalismo acabou se transformando em completa irracionalidade. Max Weber é outro autor que também chamou atenção para o fato de que essa mesma racionalização ocidental que forneceu os instrumentos necessários para o desenvolvimento do capitalismo enquanto sistema econômico também conduziu o sistema a produzir uma “direção de vida”, um “estilo de vida” que dentro do capitalismo porta um elemento irracional, pois faz do dinheiro o seu único e absoluto valor. 28 Assim, nesse ocidente dessacralizado, ao contrário da tradição budista preocupada em desenvolver os valores espirituais da compaixão, generosidade e paciência, a preocupação quase que exclusiva com o lucro e a ganância faz do eu uma forma de subjetividade em que predomina o espírito de competição, o autocentramento, o egoísmo e o narcisismo, em sociedades onde o individualismo ideológico está sendo levado, cada vez mais, às suas últimas conseqüências. Nesse processo, o próprio homem foi coisificado, a vida ficou subordinada à propriedade – o “ser” é dominado pelo “ter”. Diante da pergunta “por que se está vivendo?”, os indivíduos do mundo ocidental não encontram resposta. Há uma enorme perda de referências, de capacidade de construir um sentido para a própria vida e para a sua existência

28 WEBER, M. A Ética protestante e o espírito do capitalismo . Tradução de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi. 13 ed. São Paulo: Pioneira, 1999, pp. 47-48. 22

no mundo. O homem ocidental se acha num estado de incapacidade esquizóide de sentir afeto e se sente deprimido por isso. 29 Diante dessa crise de valores em nossa cultura, diante desse debate em torno do despertar do “budismo ocidental”, nosso interesse se voltou para compreender essa outra versão em tudo diferente da nossa, esse outro universo de valores a partir do qual a categoria do eu habita uma outra paisagem mental, um outro solo cultural. Assim, essa tese consiste em entender essa “outra” versão, essa “outra” cultura onde desemboca a construção da categoria do eu budista. De que maneira, em uma sociedade hierárquica e holista, como a sociedade indiana, se colocou a questão da construção dessa categoria? Que tipo de legado deixou para as futuras gerações? Que tipo de influência tem exercido sobre a história da civilização ocidental? Se hoje em dia, no ocidente, há um interesse crescente em conhecer esse outro estilo de vida, esse outro tipo de construção da subjetividade que tem suas raízes nas tradições ascéticas mais antigas do pensamento indiano, nos primórdios das origens do próprio ascetismo, do indivíduo e da categoria do eu, é nossa intenção poder colaborar com esse debate, tentando explicitar as possíveis razões de uma civilização ocidental se voltar para uma tradição tão distinta da sua. Quando vislumbramos a questão do eu budista, essa surgiu entrelaçada com duas outras: uma primeira, que diz respeito à “sacralização do ser humano”, e outra que diz respeito às “origens do ascetismo indiano”. Essas duas questões encontram-se estreitamente relacionadas e, mais do que um problema teórico, tal relação aponta para uma questão de cunho ético. A importância de se relacionar essas duas questões é mostrar que discutir a categoria do eu necessariamente implica numa discussão sobre limites éticos. No pensamento indiano, desde os primórdios, de modo geral as práticas ascéticas tinham como princípio central a noção do Ãhimsa , tradição na qual se inclui o pensamento budista, na qual a vida surge como valor que pertence à esfera do sagrado. No ocidente, o valor sagrado da vida só aparece quando adquire o estatuto de valor moral, fazendo parte da constituição da pessoa enquanto sujeito moral, tanto na forma de respeito ao próprio eu quanto ao eu dos outros, respeito esse vinculado aos diferentes processos de subjetivação, ou seja, à constituição de si como sujeito moral, desde a Antigüidade greco-latina. No pensamento ocidental, o valor de “respeito ao eu dos outros” é uma aquisição muito recente, como nos mostra Mauss. Isto não ocorre no oriente, onde essa categoria apresenta uma história milenar como “categoria sagrada do espírito humano”, e suas origens remontam às principais civilizações da Antigüidade.

29 FROMM, E. Zen-budismo e psicanálise . Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1960, p. 94. 23

Na Índia, berço dessa categoria, o eu foi construído como uma “categoria sagrada do espírito humano”, e coube à tradição budista realizar uma espécie de descentramento dessa sacralização, levando assim a concepção do eu inspirada na tradição do Ãhimsa , da não- violência, para além das fronteiras da Índia. Um dos representantes mais ilustres desse ascetismo indiano foi Ghandi, que com sua tradição de não-violência (a honra de transmitir- lhe esse conceito coube à tradição Jainista) desempenhou um papel político fundamental na independência da nação indiana da colonização inglesa. A questão da “sacralização do ser humano”, aliada à “questão do eu”, remete ao mito do eterno retorno. Toda tradição cultural tem de dar uma resposta a essa questão. A cada novo retorno, se produz nova resposta. Dependendo da resposta encontrada, milhares, milhões de vidas podem ter seus destinos assegurados ou destruídos. O conceito de Ãhimsa é uma dessas respostas, encontrada pelo pensamento indiano. Essa questão não é de forma alguma supérflua, pois diz respeito, diretamente, ao sofrimento humano. Vê-se nesse diálogo entre o ascetismo, o sagrado e a noção do eu uma das razões pelas quais a filosofia sempre procurou responder às questões existenciais básicas, que dizem respeito à dor e ao sofrimento humano. Nesse sentido, o Buddha Shãkyamuni, junto com Sócrates, Confúcio e Jesus Cristo, está incluído entre os grandes mestres que contribuíram para um desenvolvimento espiritual da humanidade. Assim foi escolhida como foco deste estudo uma abordagem sobre o budismo e a configuração de uma forma de subjetividade denominada o “eu budista”. A inspiração vem dos ensinamentos do próprio Buddha Shãkyamuni, que apontou o Caminho do Meio. Na metodologia de trabalho, seguiu-se a sugestão de Jaspers 30 de buscar nos textos aquilo que é mais central e pode, ainda que sem garantias absolutas, ser atribuído ao Buddha Shãkyamuni. A apresentação foi dividida em cinco partes. O primeiro capítulo, “A noção do eu: uma categoria sagrada do pensamento indiano”, introduz o leitor no universo de pensamento indiano, ajudando-o a construir ou desenvolver um vocabulário novo e apresenta a problemática a ser trabalhada. Esse capítulo foi dividido em quatro segmentos. Os três primeiros, “Introdução ao pensamento indiano em Sarvepalli Radhakrishnam”, “Os quatro períodos da filosofia indiana” e “As atitudes da mente filosófica indiana” são uma introdução ao pensamento filosófico indiano em Sarvepalli Radhakrishnan. O objetivo dessa introdução é conduzir o leitor ainda não familiarizado ao universo das

30 JASPERS, K. Les grands philosophes . Ceux qui ont donné la mesure de l´humain: Socrate, Bouddha, Confucius, Jésus . Traduzido do alemão por C. Floquet, J. Hersch, N. Naef, X. Tilliete. Berkshire, Cox e Wyman Ltd., 1957, 1998, p. 167. 24

crenças que compreendem alguns dos principais sistemas filosóficos indianos. Esse panorama permitirá, por um lado, compreender melhor a paisagem mental e o solo cultural no qual será construído o eu como categoria sagrada do espírito humano, a identidade Ãtman-Brahman , e o pano de fundo filosófico e espiritual a partir do qual emerge o eu budista; por outro lado, possibilita também compreender algumas das questões éticas que essa configuração do eu buscava responder em sua época. No quarto segmento, “As origens do eu na obra de Marcel Mauss”, foi examinada a questão da sacralização do ser humano. Essa questão encontra-se imbricada com a noção do eu, mais recentemente, no pensamento ocidental sob sua forma moral, e no pensamento indiano, desde o seu surgimento através das práticas ascéticas do Yoga, nos primórdios desse pensamento, na Antigüidade da Índia, anterior, em alguns milênios, à nossa Antigüidade greco-latina. Uma das perguntas feitas neste trabalho é em que sentido, dois mil e quinhentos anos depois do Buddha Shãkyamuni ter levado ao mundo o conhecimento obtido através da iluminação sob a árvore Bhodi , esse conhecimento pode ajudar a responder a questões existenciais nesse mundo pós-moderno ocidental, secularizado e globalizado do terceiro milênio. Talvez uma das chaves do segredo desse fenômeno possa estar, justamente, na modalidade de conhecimento que o Buddha trouxe, modalidade esta que difere de tudo aquilo que nós, ocidentais, costumamos denominar de conhecimento. 31 No segundo capítulo, “Uma outra paisagem mental, uma outra versão, outro conjunto de valores”, busca-se compreender um pouco mais a cultura indiana. Dividido em três segmentos, utiliza preferencialmente conceitos de autores ocidentais. O primeiro, “Individualismo e holismo em Louis Dumont”, em que além da oposição tradicional entre a sociedade ocidental e a indiana, em termos de individualismo e holismo, busca-se pensar a constituição da subjetividade do asceta indiano, que Dumont denomina de “indivíduo-fora-do- mundo” e que preferimos pensar como “indivíduo extraordinário”, “único”, “revolucionário espiritual”, pregando aos homens no mundo a transformação da sociedade. No segundo segmento, “Interesse pelas raízes antigas, pré-arianas em Mircéa Eliade”, fomos buscar as origens do ascetismo nas tradições ascéticas indianas, autóctones e pré-arianas, origem essa que ficou demonstrada a partir das escavações arqueológicas realizadas no início do século XX, que refutaram a tese tradicional, sustentada pelos estudiosos ocidentais, de que a Índia Sagrada só tinha começado depois da invasão ariana. No terceiro segmento, “ “Sagrado”, “Moral” e “Dependência” em Rudolf Otto”, buscou-se entender a noção do sagrado a partir da

31 Idem, ibidem, p. p. 173-174. 25

noção postulada por esse autor do “sentimento de criatura”, na qual ele destaca o sentimento de dependência. Procuramos, então, estabelecer uma certa comparação entre a sacralização do ser humano no pensamento ocidental e no pensamento indiano. No terceiro capítulo “Ãhimsa e Amrtam, duas versões do sagrado na Índia antiga”, circunscrevem-se duas versões do sagrado no pensamento indiano. No primeiro segmento, “Imperativo ascético”, enfoca-se a ascese na Índia Antiga, e uma forma de subjetividade ascética, construída dentro das práticas ascéticas indianas, através do que denominamos de “eu ascético”. Encontra-se como categoria central dessa forma de subjetividade o conceito de Ãhimsa , a “não-violência”. No segundo segmento, “Ritual do sacrifício”, procuramos circunscrever as práticas de “fazer o sagrado” ligadas ao ritual do sacrifício, e a forma de subjetividade construída a partir dessas crenças na religião Védica, que denominamos de “eu do ritual do sacrifício”. A categoria central dessa forma de subjetividade é o conceito de Amrtam , um longo tempo de vida feliz e seguro. No terceiro segmento, “Vertentes da “não- violência” e do “fazer o sagrado” ”, são comparados os dois sistemas éticos circunscritos por cada um desses conceitos centrais. E, finalmente em um quarto segmento, “Renunciante: individualização ‘mística’, em ruptura com a sociedade”, descreve-se a forma de subjetividade ascética indiana, particularmente na linhagem da tradição ascética Jainista, que transmitiu para todo o pensamento indiano e budista sua marca registrada, o conceito de “não- violência”. No quarto capítulo, “O budismo, uma outra versão da individualidade da Índia antiga”, circunscreve-se a tradição budista e sua nova forma de pensar a subjetividade, o “eu budista”. No primeiro segmento, “O budismo do Buddha Shãkyamuni: ‘O Desperto’ em Karl Jaspers”, retoma-se a biografia do Buddha Shãkyamuni e seu percurso em busca da iluminação. No segundo segmento, “Os três giros da Roda do Dharma, em André Bareau”, examina-se o ensinamento básico da doutrina budista, “As Quatro Nobres Verdades” e o novo Caminho de Salvação apontado pelo Buddha Shãkyamuni, o ideal do Nirvãna . No terceiro segmento, “A questão do eu budista: Samsãra e Nirvãna, em Peter Harvey”, além da oposição mencionada, busca-se situar como os estudiosos ocidentais viram a questão do eu budista. No quarto segmento, “A Originação Dependente como Caminho do Meio, em Steven Collins”, mostra-se a alternativa encontrada pelo Buddha Shãkyamuni para pensar o desenvolvimento da individualidade. Com essa concepção ele se opõe tanto ao pensamento Brahmânico, denominado por ele de Eternalismo, quanto ao Anilacionismo, que incluía as doutrinas 26

materialistas, inclusive a de um dos seus maiores opositores, Maskarin Gosãla. 32 E, finalmente, no quinto segmento, “Os Cinco em Chögyam Trungpa”, examina-se a doutrina da “Originação Dependente” a partir dos Cinco Skandhas em Trungpa, complementada pela visão da doutrina budista segundo Jaspers e por uma breve apresentação do Caminho dos Oito Passos em Lama Padma Samten. Tomando esse ponto como partida, aborda-se o percurso da subjetividade budista do princípio até o fim, ou seja, desde a mente do principiante até a do iluminado. No quinto capítulo, “O despertar do budismo no ocidente”, focaliza-se a possível interação, influência ou implantação de uma subjetividade e uma cultura budista no ocidente no século XXI. No primeiro segmento, “Mudança de paradigma ou ponte oriente-ocidente”, analisa-se a relação entre o processo denominado por Campbell de “orientalização” e “mudanças de crenças”. No segundo segmento, “Primórdios do budismo no ocidente”, traça- se um breve panorama histórico do despertar do interesse pelo budismo enquanto religião em diversos países nos quais até então havia um interesse meramente histórico e de conhecimento intelectual, procurando evidenciar a relação entre o ressurgimento do budismo no oriente e o seu despertar no ocidente, mostrando que esse fato, por si só, já denota uma aproximação entre estes dois pólos culturais. No terceiro segmento, “O budismo ocidental em Kulananda”, traça-se um panorama de como as práticas budistas vêm se inserindo no contexto da sociedade contemporânea e ocidental, destacando o princípio da condicionalidade, marca registrada do eu budista. No quarto segmento, “Budismo ocidental em Lama Padma Samten”, examina-se o ensinamento da Roda da Vida como perfeição a partir dos Doze Elos da Originação Interpendente transmitidos pelo Lama Padma Samten, primeiro Lama budista brasileiro ordenado na linhagem Nigma do budismo tibetano por Chagdud Rinpoche, em 1996. No quinto segmento, “Todos que conheçam outros tão bem quanto a si mesmos...” retomamos o pensamento de Kulananda, que nos possibilita, aonda mais, visualizar as dimensões da transformação cultural que o budismo é capaz de gerar nas civilizações com as quais entrou em contato, a começar pela própria Índia, como procurou-se evidenciar no quarto capítulo. O budismo é uma tradição e uma cultura que tem extensão e dimensões, hoje em dia não tanto localizadas geograficamente, mas por isso mesmo com a flexibilidade e maleabilidade suficientes adquiridas por dois mil e quinhentos anos de percurso histórico, que mostram que possui a estatura necessária para se contrapor a uma civilização ocidental

32 ELIADE, M. História das crenças e das idéias religiosas . De Gautama Buda ao triunfo do cristianismo . Tomo II. Das religiões da China antiga à síntese hinduísta . Vol. I. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 103. 27

vergada sobre o peso de uma de suas maiores crises de valores. Um ocidente que já não acredita mais no seu eu cultural, em uma perspectiva em que só a ganância e o lucro possam construir alguma perspectiva de futuro para a humanidade, que habita todo esse planeta, afirmam as últimas pesquisas há sete milhões de anos. Finalmente traçaremos as considerações finais, a título de provocar um debate sobre o despertar do budismo no ocidente no século XXI e contribuir para que o diálogo possa prosseguir. 28

Rosto do Buddha que os escultores da Escola Gandhara representaram de maneira realista e espiritual. Escultura em estuque: a compaixão que anuncia sua busca para o bem da humanidade torna doce o afstamento que ele atinge no Nirvãna in Victoria and Albert Museum, Londres in. Le monde du bouddhisme . Sous la direction Heinz Bechert et Richard Gombrich. Londres: Thames and Hudson Ltd., p. 24.

29

1 A NOÇÃO DO EU: UMA CATEGORIA SAGRADA DO PENSAMENTO INDIANO

“Fixando a mente na yoga, abandonando o desejo de vitória ou de derrota, execute seu trabalho sem apego ao resultado.” Bhagavad Gita, Canção do Divino Mestre 33

1.1 Introdução ao pensamento indiano em Sarvepalli Radhakrishnan

Sem dúvida, no meio das tradições filosóficas, a indiana é a que apresenta, mais do que qualquer outra, o mais longo desenvolvimento contínuo no tempo. É importante ressaltar que na Índia, filosofia e religião nunca se separaram. O hinduísmo, enquanto religião, se diferencia de outras religiões mundiais tais como o cristianismo, o islamismo e o próprio budismo, por um lado, por não possuir um fundador único, e por outro, pelo seu crescimento gradual. Esse crescimento abrange um período de muitos séculos, ao longo dos quais o hinduísmo foi absorvendo e assimilando todos os movimentos religiosos da Índia. Segundo Sen, uma das conseqüências desse movimento é que o hinduísmo não possui uma Bíblia, um Alcorão, ou um 34 aos quais dirigir-se para resolver controvérsias. Os Vedas , os Upanishads , o Gita , o Ramayana , o Mahabharata , os Puranas , os livros dos denominados

33 MAHABHÁRATA: BHAGAVAD GITA. Canção do Divino Mestre. Tradução do sânscrito, introdução e notas de Rogério Duarte. Nota introdutória Caetano Veloso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, cap. 2, v. 48, p. 57. 34 Dhammapada —em Pali Khuddaka-nikaya — “Pequenas Coleções”, quinze partes do Sutta ou -pitaka , consistindo de quinze pequenas seções: 1) Khuddaka-patha , coleção de regras e prescrições para cerimônias, etc.; 2) Dhammapada , 426 versos sobre os ensinamentos budistas básicos, gozando de tremenda popularidade nos países de budismo (dividido em 26 capitulos); 3) Udana , oitenta pequenos ditos de Buddha; 4) Itivuttaka , tratamento das questões morais atribuídas a Buddha; 5) Sutta-nipata , uma das mais antigas partes da literatura canônica; 6) Vimana-vatthu , coleção de oitenta e três lendas que mostram como se pode alcançar o renascimento como um deus ( ) através de ações virtuosas; 7) Petavatthu , sobre o renascimento como um fantasma faminto, após uma vida não virtuosa; 8) Thera -gatha , coleção de 107 canções ( gatha ) atribuídas aos monges mais velhos ( thera ), dos primeiros tempos do budismo; 9) Theri-gatha , 73 canções das mulheres mais velhas ( theri ), que se tornaram famosas por suas virtudes; 10) Jataka ; 11) Niddesa , comentário do Sutta-nipata (ver parte 5); 12) Patisambhidamagga , tratamento analítico no estilo do ; 13) Apadana , histórias sobre existências prévias de monges, monjas e santos renomados por suas ações benéficas; 14) Buddhavamsa , narrativa em versos sobre os 24 Buddhas que precederam Buddha Shakyamuni; 15) Chariya -pitaka , coleções de narrativas que retomam temas a partir do Jataka . Elas mostram como o Buddha, em suas existências anteriores, realizou as dez perfeições ( paramita ). In: The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion – Buddhism , Hinduism, Taoism, Zen Buddhism & Taoism . FISHER-SCHREIBER, I., University of Vienna; EHRHARD, F.K. . University of Hamburg; FRIEDRICHS, K.. Hinduism . German Vedanta Society; DIENER, M.S.. Zen . Boston: Tokyo Shambala, 1989, p. 181. 30

“Seis Sistemas Filosóficos” 35 , juntamente com os cantos dos movimentos Bhakti e dos místicos, possuem autoridade religiosa, porém nenhum deles a detém de forma exclusiva. 36 Ao longo desse percurso em que o pensamento hinduísta foi sendo construído, encontramos toda uma rede de influências que forma o solo cultural, religioso e espiritual da tradição filosófica e religiosa indiana. Ela é tão vasta que às vezes chega a se confundir com a própria idéia de nação indiana. Encontramos a cultura dos povos dravídicos, que precederam a chamada invasão ariana; 37 a cultura sânscrita ariana propriamente dita, a cultura das invasões posteriores; as influências das religiões inspiradas no hinduísmo como o budismo, o jainismo e o Sikhismo, bem como as influências do islamismo e do cristianismo, procedentes do exterior. Entretanto, ainda que possa parecer, isto não quer dizer que os diferentes ramos da religião hinduísta não tenham nada em comum. E uma das razões pela qual cada escola hinduísta formula diferentes respostas é que cada uma se fez diferentes perguntas. Apesar disso, uma certa unidade de supostos religiosos permaneceu, inclusive nos casos em que as idéias foram realmente distintas. Isso explica por que filosofias aparentemente contraditórias não ocasionaram conflitos violentos. Uma outra fonte de unidade é o que os filósofos indianos denominam caritra , conduta ou caráter. O hinduismo permitiu um não-conformismo nas idéias religiosas bastante considerável, sempre que houvesse um certo acordo quanto a regras de conduta e aos valores que as determinam; por isso não é muito surpreendente que muitos hindus considerem inclusive o budismo como um ramo do hinduismo.

1.2 Os quatro períodos da filosofia indiana

“Em última análise – disse ele – a verdadeira aquisição

35 O pensamento religioso indiano se expressou por meio de diversas filosofias. Do ponto de vista hindu, o estudo das filosofias do período Sutra é de um interesse considerável. Uma grande parte dessas escolas filosóficas não se formaram completamente até depois do ano 200, embora sua origem possa ser encontrada em períodos muito anteriores a essa data, como o ano de 800 a.C. Os principais sistemas filosóficos do período Sutra são: Nyaya Vaiseshika, Samkhya, Yoga, Purva-Mimamsa e Vedanta . Deste, o Nyaya y o Vaiseshika formam um grupo, o Samkhya e o Yoga têm muito em comum e o Purva -Mimamsa e o Vedanta estão relacionados entre si. In SEN, K.M.. Hinduism . Tradução de Maria Antonia Rodríguez. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1976, p. 79. 36 SEM, K.M. (1976: 7). 37 Não considerando a misteriosa civilização do Indo (3000 a 1400 a.C.), podemos identificar que três Índias clássicas se formaram lentamente: uma civilização indo-ariana, denominada védica, de 1400 a.C. até o século VII d.C; uma civilização medieval hindu, que desenvolve a precedente até o século XIII; uma civilização islamo- hindu, imposta pelo conquistador muçulmano como uma camisa de força (séculos XIII-XVIII) e cuja colonização será substituída pelo colonialismo inglês, no século XVIII. No entanto, nenhum dos grandes impérios “universais”, que essas civilizações carregarão sucessivamente às costas, chegou a abarcar o conjunto do subcontinente. In: BRAUDEL, F. Gramática das civilizações . Tradução de Antônio de Pádua Danese. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. p. 213-214. 31

é somente aquela que se encontra confirmada em nossa própria vida. O valor dos escritos de um homem depende do grau em que sua própria vida patenteia seus ensinamentos.” 38

Em seu livro A Source Book in Indian Philosophy , Sarvepalli Radhakrishnan divide a filosofia indiana 39 em quatro períodos distintos. A fase de declínio desse pensamento ocorreu muito em função da ocupação da Índia pelos invasores estrangeiros, primeiro os muçulmanos, depois os ingleses, e foi necessário que o estatuto de nação livre fosse recuperado para que a filosofia voltasse a florescer. Todavia, como a preocupação com os detalhes cronológicos não é própria do pensamento indiano, tal característica tornou inviável a tarefa de reconstrução de uma perspectiva histórica segura. Tampouco é usual uma história da filosofia em que não se conheça nada a respeito dos filósofos que criaram as doutrinas; no entanto, a mentalidade menos histórica e mais filosófica dos indianos fez com que as suas filosofias ficassem mais conhecidas do que os seus filósofos. 40 Os períodos que vamos examinar são: Védico, Épico, Sutra e Escolástico.

O Período Védico

No sentido técnico do termo, dificilmente esse período pode ser chamado de uma idade filosófica. É envolto em obscuridades 41 e está marcado pela expansão da cultura ariana, proveniente da Ásia Central. Nessa época, religião, filosofia, superstição e pensamento eram imbricados de tal maneira que os primeiros passos foram dados, mas ainda como quem está tateando. A literatura desse período conhecida como “sruti”, escrituras reveladas ou textos autorizados, se encontra nos Vedas. O significado da palavra Vedas, a partir da raiz vid , que possui em grego uma raiz equivalente, é “eu vejo”, “eu tenho visto”. Não se trata de uma doutrina baseada na fé ou na “revelação” como a doutrina cristã, mas em um elevado conhecimento alcançado mediante o processo de “ver”, no sentido de uma contemplação. Logo, os Vedas foram vistos: eles foram vistos pelos “rshi”, pelos que “viram” no começo dos tempos. Logo, por meio da tradição, sua

38 ZIMMER, H. Filosofias da Índia . Compilado por Joseph Campbell. Tradução de Nilton Almeida Silva e Cláudia Giovani Bozza; versão final Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 1951, 1986, p. 49. 39 Até mais ou menos 1700 d.C. 40 RADHAKRISHNAN, Sarvepalli. A Source Book In Indian Philosophy . New Jersey: Princeton University Press, 1957, 1973, p. p. XVII-XXXI. 41 Situa-se numa época, aproximadamente, de 2500 a 600 a.C. 32

doutrina nunca foi pensada como uma “fé”, mas, preferivelmente, como uma “Ciência Sagrada”. Segundo o autor, as questões investigadas por eles tinham um caráter filosófico:

“Que deuses devemos adorar com nossas oblações; Quem verdadeiramente sabe e quem pode aqui declarar onde ele nasceu e quando começou essa criação; Os deuses são posteriores a essa produção do mundo, quem sabe quando isso primeiro veio a ser”. 42

Existem quatro Vedas: o primeiro, o “Rgveda” – considerado o monumento filosófico e literário mais antigo de que se tem conhecimento, é composto de hinos; o segundo, o “Yajurveda” – refere-se aos ritos do sacrifício, não apresentando grande importância para propósitos filosóficos; o terceiro, o “Sãmaveda” – refere-se às melodias que, também, para propósitos filosóficos não possuem grande importância; e, finalmente o quarto, o “Atharvaveda” – descreve “palavras” com força mágica e encantamentos. Existem palavras mágicas para curar doenças, para se ter longevidade etc. Diz-se que o começo da ciência médica indiana é encontrado nesses Vedas. 43 Cada um dos Vedas está subdividido em quatro sessões. A primeira, Samhitã ou , é uma coleção de hinos, orações, bênçãos e fórmulas para realização de sacrifícios. Os hinos são criação dos poetas e marcam o início da atual filosofia indiana. Nesses poemas e canções observa-se uma evolução de um politeísmo não usual dos primeiros Vedas em direção ao monoteísmo, para sugestões de monismo, que irão culminar nas tendências monistas dos Upanishads . A segunda, Brãhmanas , compõe-se de tratados em prosa discutindo o significado dos ritos do sacrifício e das cerimônias. São essencialmente documentos religiosos, incluindo preceitos religiosos e deveres em relação ao sacrifício. Nos Brãhmanas encontra-se o ritual a ser observado pelo chefe de família, que ao alcançar uma idade bastante avançada se refugia na floresta e precisa de um substituto para o ritual que exercera até então. Na religião védica, apenas numa etapa final da vida o chefe de família fica liberado para se concentrar nas práticas que o levarão a um desenvolvimento da espiritualidade. Tais práticas ascéticas

42 RADHAKRISHNAM, Sarvepalli (1957, 1973: XVIII). 43 Mircea Eliade afirma que o Buddha, ao formular a sua doutrina das “Quatro Nobres Verdades”, aplica um método da medicina indiana que define em primeiro lugar a doença, depois descobre a causa, em seguida decide a supressão dessa causa e, finalmente, apresenta os meios suscetíveis de suprimi-la. A terapêutica elaborada por Buddha constitui, de fato, a quarta Verdade; ela prescreve os meios de curar o mal da existência. Esse método é conhecido pelo nome de “Caminho do Meio”. In: ELIADE, M. (1978,1979: 109). 33

encontram na floresta o território privilegiado para esse fim. Os Brãhmanas , por sua vez, constituem o trabalho dos sacerdotes. A terceira, os Ãranyakas , consiste dos textos da floresta, os quais são em parte incluídos nos Brãhmanas e em parte computados como independentes. Os Ãranyakas apareceram entre os Brãhmanas e os Upanishads e suprem a necessidade de encorajar a meditação para aqueles que vivem na floresta fazendo o elo de transição entre o ritual dos Brãhmanas e a filosofia dos Upanishads . A terceira e quarta sessões, os Ãranyakas e os Upanishads , constituem a parte conclusiva dos Brãhmanas , onde são discutidos problemas filosóficos. A quarta parte, os Upanishads , é um período que apresenta uma certa ambigüidade, pois, se em certo sentido são uma continuação da religião védica, noutro eles representam um forte protesto contra a religião dos Brãhmanas . É nos Upanishads que, pela primeira vez, a tendência para o monismo espiritual que caracteriza grande parte da filosofia indiana é estabelecida, e a intuição, mais do que a razão, é reconhecida como o guia, por excelência, para a verdade última cuja importância irá atravessar todo o pensamento filosófico indiano. Essa ambigüidade dos Upanishads em relação à religião védica é, também, acentuada por Mourre, que inclusive os denomina de Upanishads pós-védicos. Esse autor considera que os quatro Vedas , os Brãhmanas e os Aranyakas pertencem a esse tipo de literatura sacerdotal, ritualista e em parte mágica, própria da Idade Védica. Já os Upanishads , ao contrário, refletem, do seu ponto de vista, as transformações sociais e religiosas que comandaram os primeiros desenvolvimentos do hinduísmo: a separação entre a cidade e o campo e a rivalidade entre a casta guerreira e real dos kshatriyas e a casta dos sacerdotes, os brahmanes, pois ainda que não chegassem a se opor claramente, rivalizavam com os últimos na erudição sagrada. Os kshatriyas se opuseram à dominação dos brahmanes, e uma luta pela supremacia se estabeleceu entre as duas castas. A declaração védica “Kham Brahm” – “Tudo é Brahman”, significa que somente Brahman existe; os dois rishis , Vasishtha e Vishvãmitra, claramente refletem essa luta. Finalmente, os brahmanes ganharam o controle. Mas, Siddhãrta Gautama, o Buddha Shãkyamuni, apareceu e com seus ensinamentos superou a dominação dos brahmanes, libertando as outras castas da opressão e trazendo reformas para toda a Índia. 44 Esse é o período em que ocorre o declínio do domínio dos ritos tradicionais do sacrifício, o surgimento de novas questões, como a do Karma e a dos renascimentos; de mais

44 The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion. (1989: 44). 34

em mais, a alma indiana adquire uma nova modalidade soteriológica: a busca da salvação agora pode se dar por um novo caminho; ao invés dos sacrifícios do começo da religião védica, está aberta a via do conhecimento. 45 Por outro lado, esse mesmo caráter de ambigüidade dos Upanishads fica também assinalado quando Radhakrishnan menciona que em todo o período clássico, e mesmo em plena Idade Média, os Upanishads não cessaram de explorar e explicitar nas direções as mais diversas o conteúdo teológico e metafísico da revelação, ou seja, o que os profetas védicos viram.

O Período Épico

Caracteriza-se pela apresentação indireta das doutrinas filosóficas por meio da literatura não-sistemática e não-técnica, particularmente os grandes épicos, o Rãmãyana e o Mahabhãrata . O Bhagavad-Gitã , que faz parte do Mahãbhãrata , é considerado um dos três textos mais autorizados na literatura filosófica indiana. Segundo Radhakrishnan, é nesse período 46 que ocorre o desenvolvimento inicial das doutrinas heterodoxas ao vedismo: o budismo, o jainismo, o saivismo e o vaisnavismo. Também pertencem a esse período o começo, mesmo que um pouco posterior, das escolas ortodoxas da filosofia indiana. Alguns sistemas começaram junto com o budismo e se desenvolveram, lado a lado, durante séculos. O budismo, particularmente, trouxe reformas para toda a Índia, libertando as outras castas da opressão dos brahmanes. Após uma centena de anos perde sua força, sendo tolhido de diversas maneiras. Enquanto isso, Shankara aparece como o próximo grande reformador. Voltando-se para os profundos ensinamentos dos Vedas e Upanishads , ele dá nova vida a esses textos através dos seus comentários e escritos, seus ensinamentos, e o estabelecimento de ordens monásticas. 47 Existe uma discussão que apresenta uma certa importância para o argumento que será desenvolvido, por isso não se pode deixar de mencioná-la. Alguns autores, dentre eles Campbell, 48 Zimmer e Mourre, nos quais também nos apoiamos para desenvolver nosso argumento, referem-se às doutrinas e filosofias pré-arianas, sustentando, em contraste com a maioria dos pensadores ocidentais, um pensamento diferente sobre a antigüidade da doutrina

45 MOURRE, M. Les Religions et Les Philosophies D’Asie . Editions de La Table Ronde, Paris, 1961, 1998, pp. 81 – 82. 46 Entre 500 e 600 a.C. e 200 d.C. 47 The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion.(1989: 44). 48 CAMPBELL, J. Nota do Compilador in ZIMMER,H. (1951, 1986: 67). 35

jainista. Para esses autores, o jainismo é a mais antiga entre as tradições ascéticas não-arianas. Mahãvira, contemporâneo do Buddha, e considerado por muitos autores como o fundador histórico do jainismo, na verdade não é o primeiro, mas o último de uma longa série de mestres dessa tradição. Esse ponto de vista é defendido pela própria tradição jainista, e Zimmer, particularmente, reconhece que deve haver alguma verdade nessa tradição. 49 Assim, seu ponto de vista coincide com o dos jainistas, e, para eles, Mahãvira, mesmo tendo vivido no século seis, e sendo contemporâneo do Buddha, na verdade faz parte de uma tradição cuja linhagem remonta a tempos pré-históricos. Esse ponto apresenta relevância em relação à discussão sobre as origens do ascetismo indiano. Logo, não se trata de uma contradição entre esses autores. Na verdade, Mahãvira, apesar de ser contemporâneo do Buddha, pertence a uma linhagem que lhe antecedeu no tempo e na qual ele se insere, de onde extraiu as idéias que defende. Embora Mahãvira, Gosãla e Buddha tenham em comum serem os mestres de doutrinas heterodoxas em relação ao vedismo, na verdade apresentam uma diferença importante entre si. Enquanto os dois primeiros, como já foi dito, inserem-se em tradições que lhes antecederam, e às quais eles nada acrescentaram, o Buddha se torna o fundador histórico do budismo, tendo inaugurado uma nova linhagem no pensamento indiano. Porém, como veremos, o budismo se inscreve na linhagem das antiqüíssimas tradições ascéticas indianas, tendo incorporado dessa tradição o conceito do Ãhimsa , que ao lado da noção do Karma desempenha um papel fundamental na visada ética do pensamento indiano. Todavia, esse período épico da filosofia indiana não se circunscreve, exclusivamente, à Índia. Parece ter ocorrido, simultaneamente, em diversas partes do mundo – Grécia, China, Pérsia etc. Na Índia, nesse período, surgiram filosofias como o ceticismo, o naturalismo, o materialismo etc., juntamente com os outros sistemas heterodoxos do budismo e jainismo, e, também, o que mais tarde veio a ficar conhecido como os sistemas ortodoxos do hinduísmo. A construção dos tratados sistemáticos nessa fase possibilitou uma perspectiva mais clara sobre os sistemas não-ortodoxos do Cãrvãka , budismo, jainismo e dos sistemas ortodoxos do hinduísmo. Nesse período, muitos dos Dharmasãstras foram compilados. Compreendem tratados sistemáticos, em filosofia ética e social, que visavam criar regras para a conduta de vida entre os invasores arianos, descrevendo assim sua organização social, suas funções e obrigações éticas e religiosas. Esses tratados, como o restante dos textos filosóficos do período, foram

49 ZIMMER, H. (1951, 1986: 138). 36

classificados como smrtis , textos tradicionais, em contraste com a literatura do período védico, conhecida, como visto anteriormente, como sruti , escrituras reveladas ou textos autorizados.

O Período Sutra

Datado aproximadamente dos séculos iniciais da era cristã, caracteriza-se pela apresentação das doutrinas de cada um dos sistemas, sob a forma de grupos de aforismos, organizados sistemática e logicamente de maneira extremamente breve e algumas vezes enigmática. Eram lembretes através dos quais os iniciados podiam localizar os sistemas filosóficos aos quais eles pertenciam, cujas doutrinas completas eram conhecidas, somente, por aqueles que faziam parte do sistema. Se o período precedente testemunhou o aparecimento do pensamento filosófico e da discussão em um nível pré-crítico, nos , além da atitude sistemática, desenvolveu-se também uma atitude crítica. Os Sutras incluem não apenas os desenvolvimentos positivos, mas as polêmicas travadas contra os sistemas opositores. Neles presencia-se o desenvolvimento de um pensamento reflexivo e autoconsciente, e não mais somente a imaginação construtiva e os insights espontâneos. Os denominados “Seis Sistemas Filosóficos” hindus, apresentados na forma Sutra , como já foi mencionado anteriormente, 50 são os seguintes: Nyãya ou realismo lógico; Vaiseshika ou pluralismo realista; Sãmkhya ou dualismo evolutivo; Yoga ou meditação disciplinada; Purva-Mimãmsa ou investigações interpretativas iniciais dos Vedas , relacionados com condutas; Uttara-Mimãmsa ou investigação tardia dos Vedas , que estava relacionada com o conhecimento, também chamado Vedãnta , o “fim dos Vedas ”. 51 Segundo Kshiti Mohan Sen, o Nyãya trata especialmente de métodos lógicos e o Vaiseshika estuda principalmente a natureza do mundo, porém ambos aceitam as conclusões a que cada um deles chega por separado. O Vaiseshika usa os métodos analíticos do Nyãya e este aceita a tese de uma constituição atomista do mundo do Vaiseshika . Segundo o Nyãya , existem quatro fontes de saber: percepção ( pratyaksha ), dedução ( anumana ), analogia

50 Esses seis sistemas foram inicialmente mencionados quando fizemos referência aos denominados “Seis Sistemas Filosóficos”, n.2, p. 1. 51 A filosofia Vedãnta, em uma ou outra de suas formas, está estreitamente ligada com a religião da Índia. Enquanto o Purva Mimãmsã, de Jaimini, lida com o Karmakãnda ou as obrigações desfrutadas pelo Uttara Mimãmsã do Veda Bãdarãyana ou o Vedãnta (entre 500 e 200 a.C.) lida com as especulações religiosas e filosóficas dos Upanisads. Os dois juntos formam uma avaliação sistemática do conteúdo dos Veda. O Vedãnta 37

(upamana ) e testemunho verdadeiro ( sabda ). Essa escola aceita o princípio da causalidade, porém também dedica uma atenção considerável aos problemas que surgem de antecedentes não causais, da pluralidade das causas etc. O processo de raciocínio se explica com todo detalhe e sua análise se parece notavelmente com a análise silogística de Aristóteles. Max Muller considerou essa semelhança como uma simples coincidência, porém outros tomaram tal evidência como uma prova irrefutável de que os gregos tomaram idéias dos indianos, ou vice-versa. Não existe, entretanto, investigação histórica suficiente sobre esse tema para se chegar a alguma conclusão definitiva. 52 A escola Sãmkhya foi fundada por Kapila, por volta, provavelmente, do século VII a.C.. Esse sistema é, em certo sentido, dualista, pois reconhece duas categorias básicas no universo: purusha e prakriti . A primeira se compõe de seres ou espíritos, entidades eternas da consciência. A segunda representa a potencialidade da natureza; a base de toda existência objetiva não se compõe somente de matéria, senão que inclui todas as forças naturais, materiais e físicas. A categoria prakriti é, pois, segundo a escola Sãmkhya , a substância fundamental de onde se deriva o mundo. A evolução da categoria prakriti só é possível sob a influência de purusha e a história do mundo é a história dessa evolução. Os 555 sutras representam uma tentativa de sistematizar os ensinamentos dos Upanishads . Como esses sutras consistiam de duas ou três palavras cada, não podiam ser entendidos sem que fossem tecidos comentários. Tal fato fez com que os comentadores adquirissem grande importância, pois interpretavam os sutras à luz de suas próprias opiniões preconcebidas. 53

O Período Escolástico

Caracteriza-se, então, pela explicação dos sutras por meio de comentários escritos, sem os quais teriam se tornado praticamente ininteligíveis. Embora não possa ser datado com segurança, se localiza a partir do período Sutra , nos primeiros séculos da nossa era até, aproximadamente, o século XVII. A literatura desse período não se limita à explanação, mas inclui também as polêmicas travadas entre os opositores. Alguns comentários chegam a ser bastante confusos, porém os melhores comentadores têm um valor inestimável. Shankara, por exemplo, o escritor de um famoso comentário sobre o Sutra Vedãnta , é tido na mais alta conta

Sutra lida com o Vedãnta ou o objetivo final do Veda. Por lidar com a doutrina de Brahman, ficou conhecido como Brahma Sutra, e o Sãriraka Sutra, desde que ele lida com a corporificação do Self incondicionado. 52 SEN K. M. Hinduism . (1973, 1976: 79-80). 38

enquanto filósofo, mais do que o próprio Bãdarãyana, o profeta que escreveu o Sutra Vedãnta original, como já vimos, também chamado Brahman Sutra . Não resta dúvida de que no período Escolástico, de explicação dos sutras originais, também são encontrados debates pouco filosóficos ou de escasso valor. Pertencem a esse período, porém, alguns dos maiores filósofos indianos, 54 que em sua qualidade de grandes pensadores não podiam ficar limitados ao papel de comentadores dos antigos sistemas. Suas exposições, ainda que sejam pontos de vista relacionados aos sistemas originais, são legitimamente a criação de novos sistemas e não apenas meros comentários. Esse tradicional respeito pelo passado e o reconhecimento do valor da autoridade em filosofia nunca constituiu um obstáculo no sentido de impedir os filósofos indianos de desenvolverem livremente o seu pensamento, muito pelo contrário. Por exemplo, Shankara, Rãmãnuja e Madhva são responsáveis por três formas maiores de Vedãnta , construídos como sistemas distintos, embora todos tenham sido fruto de elaboração do Sutra Vedãnta de Bãdarãyana. A fase do declínio filosófico na Índia se deu com a tomada de poder pelos muçulmanos, e, logo a seguir, os britânicos, aproximadamente por volta do século XVI. Essa relação de domínio incidiu, diretamente, na tentativa, por parte dos primeiros, de minar a cultura ariana, e, dos últimos, de diminuir ao máximo a envergadura do pensamento indiano tradicional. A tal ponto que a marca distintiva da inteligência, para um indiano ser igualado aos ingleses e europeus, era sentir vergonha de sua própria tradição. Todavia, essa aproximação entre ingleses e indianos no campo da educação teve como efeito um renascimento, não intencional, da filosofia indiana. Os movimentos de reforma política, como o Brãhmo Sãmaj e o Ãrya Samãj , desempenharam, também, um importante papel para o renascimento da filosofia indiana. Com o início do movimento nacionalista e o restabelecimento da Índia como país livre e nação independente, dá-se um renascimento da filosofia indiana da forma mais proeminente, em diversos campos. Entretanto, durante o século XX, muito mais do que em qualquer outra época, se intensifica uma influência, recíproca e mútua, entre o pensamento ocidental e o oriental, particularmente o pensamento indiano, através dos escritos dos poetas, sábios e filósofos contemporâneos. Na opinião de Radhakrishnan, esse panorama parece prognosticar

53 Segundo Radhakrishnan, entre os principais comentadores se encontram Samkara, Rãmãnuja e Madhva. 54 Pertencem a esse período quatro dos maiores filósofos indianos, entre eles, além de Samkara, Kumãrila, Sridhara, Rãmãnyja, Madhva, Vãcaspati, Udayana, Bhãskara, Jayanta, Vijñãnabhiksu e Raghunãtta. 39

para o futuro uma abordagem mais sintética entre os pontos de vista oriental, indiano e ocidental. A partir da metade do século XX, particularmente após a invasão do Tibete (para onde o budismo havia sido levado por volta do século VIII da nossa era, após seu declínio na Índia, e onde floresceu sendo preservado pela cultura tibetana como uma tradição viva do pensamento do Buda Shãkyamuni), o budismo vai se expandir com maior penetração em direção ao ocidente. Talvez, entre as tradições orientais, o budismo surja como aquela que melhor pode fazer uma ponte entre ocidente e oriente.

1.3 As atitudes da mente filosófica indiana

“Na Índia antiga cada ramo do saber estava associado a uma arte altamente especializada e a um modo de vida consoante com esse. O saber não devia apenas ser colhido nos livros, palestras, conversas e debates, mas dominado por meio da aprendizagem ao lado de um mestre competente. Era necessário que o discípulo, dócil à autoridade do guru, se entregasse a ele de todo coração, sendo pré-requisitos básicos a obediência (susrusã) e a fé absoluta (sraddhã)” 55

Permanece ainda, porém, a seguinte indagação: qual é a marca distintiva do pensamento filosófico indiano, de que maneira ele se distingue de outras tradições filosóficas? Já não há dúvidas sobre sua complexidade e pluralidade de visões, sobre a absoluta ausência de um pensamento dogmático e sobre a riqueza com que foram investigados os múltiplos aspectos da experiência humana e da realidade, tanto interna como externa, ao longo desses quatro milênios de tradição filosófica. Por outro lado, a pluralidade de visões da filosofia indiana não significa uma pura dispersão do pensamento. Essa filosofia possui um espírito próprio que, segundo Radhakrishnan, se expressa através de atitudes típicas da sua mente filosófica. Examinar cada uma dessas atitudes descritas pelo autor pode responder à indagação sobre a maneira como esse pensamento filosófico se diferencia do pensamento de outras tradições, sem que essas diferenças impliquem em qualquer conotação valorativa.

A concentração sobre o espiritual

55 ZIMMER, H. (1951, 1986: 48). 40

O motivo espiritual é predominante na Índia, tanto na vida como na filosofia. A não ser pela escola materialista de Cãrvãka e doutrinas relacionadas, a filosofia na Índia concebe o homem como um ser cuja natureza é espiritual, interessa-se predominantemente por seu destino espiritual e o relaciona, de uma maneira ou de outra, a um universo que é, também, espiritual em seu caráter essencial. Não há um olhar voltado predominantemente sobre a natureza física, nem do homem, nem do universo, e o bem estar material nunca é reconhecido como o objetivo da vida humana, com exceção, como já foi dito, da escola materialista de Cãrvãka . Existe uma relação íntima entre filosofia e religião, porque a própria filosofia é vista como um empreendimento espiritual. A motivação, tanto na filosofia como na religião, diz respeito ao modo de vida espiritual no aqui e agora, e a uma eventual salvação espiritual do homem em relação ao universo. Desde o seu começo nos Vedas até os dias atuais, a filosofia indiana se manteve empenhada em contribuir para a reforma sócio-espiritual do país. A literatura filosófica, ao longo desse percurso, tomou muitas formas: mitológica, popular ou técnica, conforme as circunstâncias requeriam, de maneira a promover a vida espiritual. Por isso os problemas religiosos sempre trouxeram profundidade, poder e propósito à mente e ao espírito filosófico indiano.

A crença na relação íntima entre vida e filosofia

Na Índia, a filosofia não é apenas um mero exercício intelectual, mesmo que a abundância natural e a prosperidade material sempre tenham contribuído para o surgimento da especulação filosófica. A atitude de aplicação prática da filosofia na vida encontra-se presente em cada escola filosófica, e essa relação entre teoria e prática, doutrina e vida, é típica do pensamento indiano. Cada sistema filosófico indiano procura a verdade, não como um conhecimento acadêmico, mas como a verdade que torna o homem livre. Entretanto, na opinião do autor, tal atitude não se confunde com o que é chamado de atitude moderna pragmática. Ele a considera mais ampla e profunda que isto, pois não se trata da visão de que a verdade deve ser mensurada em termos de prática, mas da verdade como o único sinal possível de fornecer uma direção para a prática. Essa verdade, sozinha, tem eficácia como guia para o homem em sua procura de salvação. O ponto de partida de cada sistema maior da filosofia indiana é o problema prático e trágico da vida e a procura pela verdade como forma de resolver a angústia do homem no mundo. Assim não existe nenhum ensinamento que permaneça como meras palavras ou 41

dogmas de escolas. Cada doutrina se torna uma convicção apaixonada, desperta o coração e acelera a respiração, constituindo-se como um agente transformador da natureza pessoal. Na Índia, não basta saber a verdade, a verdade tem de ser experimentada. O objetivo da filosofia indiana não é saber, mas realizar a verdade última, tornar-se um com ela. Outro indicador dessa imbricação entre teoria e prática, entre vida e filosofia, está na exigência de purificação moral como um pré-requisito para o estudante de filosofia ou aquele que procura a verdade. A afirmação clássica de Shankara sobre essa demanda fala de um conhecimento da distinção entre eterno e não-eterno, por exemplo, uma tendência a questionar no que investiga, a subjugação de todos os desejos para os frutos da ação, seja nessa ou em outra vida, uma renúncia de todos os desejos insignificantes, motivos pessoais, e interesses práticos; uma busca da tranqüilidade, autocontrole, renúncia, paciência, paz da mente, e fé; e um desejo de realizar o supremo objetivo da vida – Moksha , cujo significado pode ser traduzido como auto-realização ou liberdade. Moksha é a realização direta da verdade que sempre esteve presente a partir da eternidade. Ao alcançar a liberdade nada acontece no mundo, o que muda é a visão dele. Moksha não é a dissolução do mundo, mas é o deslocamento de uma falsa visão, da ignorância, da cegueira – Avidyã – pela correta visão, pela sabedoria – Vidyã .

A Filosofia como Ãtmavidyã

A filosofia indiana é caracterizada por sua atitude e sua abordagem introspectiva da realidade. A filosofia é pensada como Ãtmavidya , conhecimento do eu. Em sua busca da verdade, a filosofia indiana tem sido sempre fortemente dominada pela compreensão da vida interna e do eu do homem, mais do que do mundo externo ou da natureza física. Ainda que na Idade de Ouro da cultura indiana tenha ocorrido um grande desenvolvimento das ciências físicas, esse nunca foi considerado o caminho para a verdade última. A palavra Vidyã significa, justamente, visão, sabedoria e Ãtman é sinônimo do “eu transcedental”, enquanto existência, conhecimento e felicidade, por oposição a Anãtman , “existência empírica”. Desde a perspectiva do pensamento filosófico indiano, nossa ignorância é nascida da confusão entre o sujeito transcedental – Ãtman – e a nossa existência empírica – Anãtman .56 Logo, a filosofia indiana focaliza mais a dimensão subjetiva do que objetiva da realidade. Por isso a psicologia e a ética são consideradas como os aspectos ou ramos mais

56 Sobre o significado deste termo, consultar Glossário ao final do texto. 42

importantes da filosofia, mais do que as ciências que estudam a natureza física. Entretanto, tudo isso não significa que o pensamento indiano não tenha se voltado, também, para o estudo do mundo físico. Pelo contrário, a Índia realizou aquisições relevantes no campo das ciências positivas, especialmente nas ciências matemáticas, tais como álgebra, astronomia, geometria, e também na aplicação dessas ciências básicas a numerosas áreas da atividade humana. A zoologia, a botânica, a medicina e outras ciências relacionadas também têm tido relevância no pensamento indiano. No entanto, desde os primórdios, a Índia reconheceu no espírito do homem a chave mais significativa, não só para a sua realidade, como para a realidade do universo, muito mais que as dimensões externas e físicas. Neste estudo defendemos a hipótese de que a “categoria do eu”, o self , antes de ter sido construída pelo pensamento indiano como uma categoria conceitual, foi forjada no interior das práticas ascéticas da Yoga , através de uma “identificação mística” como “uma categoria sagrada do espírito humano”, e esse é um dos legados mais preciosos que o pensamento filosófico e religioso indiano deu ao mundo. No pensamento dos Upanishads , essa categoria do eu é alçada à condição de categoria conceitual do pensamento indiano, conhecendo o ápice e o declínio de sua sacralização. O ápice da sacralização do eu ocorre com a identidade Ãtman-Braman , e com o aparecimento da tradição budista, uma das manifestações anti-Brahmânicas mais vigorosas que a Índia já conheceu, há uma espécie de descentramento da sacralização dessa categoria do eu. Porém, ao realizar esse descentramento do caráter sagrado do eu, o budismo estende a sacralização ao cosmo, ao universo, e é essa tradição, com sua vocação universalista, que levará para além das fronteiras da Índia a concepção do eu indiano, inspirada nas tradições ascéticas mais antigas da Índia, no princípio do Ãhimsa , da “não-violência”, com seus ideais altruísticos, que no budismo estão representados particularmente no ideal do .

O Idealismo Monista

A tendência da filosofia indiana, especialmente do hinduísmo, tem sido na direção de um idealismo monista. Em toda a filosofia indiana encontramos a crença de que a realidade última é espiritual. Mesmo que alguns sistemas pareçam abraçar o dualismo ou pluralismo, ainda esses não deixam de ser atravessados por um caráter profundamente monista. Se prestarmos atenção ao espírito subjacente à filosofia indiana, ao invés de nos perdermos na variedade de opiniões, iremos verificar que ele está encarnado na tendência a interpretar vida e realidade no modo de um idealismo monista. Pode-se atribuir essa atitude pouco usual a uma não rigidez do pensamento indiano e ao fato de que a atitude do idealismo monista é tão 43

plástica e dinâmica que ele pode tomar muitas formas, acabando por se expressar em doutrinas similares, e, aparentemente, conflitantes. De fato, essas doutrinas não são consideradas conflitantes, mas todas são expressões de uma convicção subjacente comum, que provê uma unidade básica para a filosofia indiana como um todo. Todo esse interesse voltado para o subjetivo não elimina o fato de que o materialismo também teve seus dias de glória na Índia. Apesar dos esforços da parte dos outros sistemas para o denunciar, a doutrina materialista aparentemente desfrutou, durante um tempo, de uma aceitação bastante difundida. Entretanto, esse materialismo acabou por não se sustentar. Seus adeptos, pouco numerosos, demonstram que na prática sua influência é nula. Todavia, a filosofia indiana não apenas não desconhece a existência do materialismo como procura ativamente provocar sua superação na direção do idealismo, a única via reconhecida como eficaz, seja qual for a forma específica que o idealismo possa vir a tomar.

O método da intuição

A filosofia indiana é caracterizada por uma dependência última da intuição. Embora nunca tenha deixado de fazer usos extensos da razão, o único método que é aceito como capaz de permitir o acesso último ao conhecimento é a intuição. A razão e o conhecimento intelectual não são suficientes para o conhecimento da realidade – na Índia é sempre necessário experimentar. Isto revela um aspecto irônico, visto que se trata de uma tradição que nunca adotou os métodos experimentais aplicados ao desenvolvimento das Ciências, como no ocidente, que para o desenvolvimento desses métodos experimentais precisou construir um outro tipo de racionalidade no campo filosófico. Contudo, isto não quer dizer que a "verdade" na filosofia indiana é apenas meramente conhecida. Muito pelo contrário, ela precisa ser, de preferência, experimentada. A palavra que melhor descreve a filosofia na Índia é Darsána , que vem da raiz verbal “ drs ”, que significa "ver". O sentido de "ver" é, o de ter uma experiência direta, intuitiva do objeto, de o realizar no sentido de se tornar um com ele. Não se considera possível haver um conhecimento completo enquanto permanecer a separação dual sujeito-objeto. É inegável que os desenvolvimentos posteriores dos sistemas iniciais da filosofia indiana, em grande parte, se devem às razões para a formulação sistemática de doutrinas e sistemas, tanto pela demonstração ou justificação racional, como por meio de conflitos polêmicos entre os diversos sistemas. Todavia, todos os sistemas, exceto o Cãrvãka , concordam que existe um meio elevado de conhecer a realidade, além da riqueza de razões, 44

nomeadamente a percepção direta da experiência da realidade última, que não pode ser conhecida pela razão, em qualquer uma de suas formas. A razão pode demonstrar a verdade, mas não pode nem descobrir, nem encontrar a verdade. Assim, a filosofia indiana reconhece a eficácia da razão e do intelecto, quando aplicados em sua capacidade limitada e em sua função própria. Embora a razão possa ser um método da filosofia em seu sentido intelectual, na filosofia indiana, a intuição é sobejamente reconhecida como o único método de compreensão da realidade última.

A aceitação da autoridade

A forma como os sistemas da filosofia indiana se relacionam com as escrituras reveladas ou textos autorizados, denominados sruti , apresenta um certo grau de variação, mas nenhum dos sistemas, seja ele ortodoxo ou heterodoxo, exceto o Cãrvãka , viola abertamente os insights intuitivos aceitos dos antigos "profetas", aqueles que "viram": seja ele o hindu que viu nos Upanishads, o Mahãvira, fundador histórico da antiga tradição jainista, cujas idéias extraiu das linhagens que lhe antecederam, ou o Buddha, que viu em sua experiência de iluminação e, após um momento de hesitação, finalmente decidiu compartilhar com todos os seres o conhecimento assim adquirido. Entretanto, em função dessa reverência pela autoridade dos profetas, os filósofos indianos sempre se consideraram "modestos" comentadores que procuravam explicar a sabedoria tradicional do passado. No entanto, como vimos anteriormente, muitos, por meio de novas descrições, na verdade criaram sistemas próprios. Logo, todo respeito pelo passado na verdade nunca constituiu um obstáculo, no sentido de impedir os filósofos de exercerem a sua criatividade, modificando, pela interpretação, as doutrinas específicas do passado sem alterar seu espírito geral e seus conceitos básicos. O principal ganho desse respeito pela autoridade foi alcançar uma unidade de espírito pela continuidade do pensamento. Com isto a filosofia conquistou um lugar de relevância na vida indiana e soube, sempre, se defender de qualquer atitude filosófica que pudesse contradizer suas características básicas de espiritualidade, subjetividade, intuição e uma crença muito forte de que a verdade é para ser experimentada, testada, e não apenas conhecida. Outra possibilidade era que todo o respeito por aqueles que "viram" transformasse a filosofia indiana num credo religioso dogmático, como freqüentemente se alega. O resultado 45

disso, entretanto, foi uma preservação da consistência do pensamento nas questões básicas. E tanto existe liberdade em relação aos sistemas tradicionais que, por exemplo, o Sãmkhya original não diz nada sobre a possível existência de Deus, embora seja enfático na doutrina da impossibilidade de demonstrar teoricamente sua existência e não o considera o criador do universo; o Mimãmsã fala de Deus, mas nega sua importância e eficácia na ordenação moral do mundo. Outro ponto de vista, ainda mais distanciado, e que não poderíamos deixar de mencionar são os sistemas budistas iniciais, que questionam a idéia de um Deus eterno e criador do universo, e os Cãrvãkas , que negam Deus sem qualquer qualificação.

A tradição sintética

Enquanto a filosofia ocidental é analítica em seu enfoque, a filosofia indiana é sintética. Essa tradição, tão antiga quanto o Rgveda , é essencial para o espírito e método da filosofia indiana. Desde o período védico, os profetas viram que a verdadeira religião compreende todas as religiões: "Deus é um, mas os homens o chamam por muitos nomes". A filosofia indiana se caracteriza, claramente, pela abordagem sintética dos vários aspectos da experiência e realidade. Religião e filosofia, conhecimento e conduta, intuição e razão, homem e natureza, noumeno e fenômeno, Deus e homem, são todos abordados pela tendência sintética do pensamento indiano. O hindu é inclinado a acreditar que mesmo a variedade dos seis sistemas, bem como todos os seus subsistemas estão em harmonia e, de fato, são complementares um do outro em uma visão total, única. Os textos básicos da filosofia indiana não tratam apenas de uma face da experiência ou realidade, mas da totalidade da esfera filosófica: metafísica, ética, religião, psicologia, epistemologia, na qual fatos e valores não são destacados um do outro, mas tratados como unidade natural, como aspectos de uma vida e experiência ou de uma compreensão singular da realidade. A tradição sintética não se revela somente ao nível intelectual ou teórico, existe também uma unidade de perspectiva no domínio prático. Tal característica apresenta diversos aspectos. Em primeiro lugar, como já foi dito, todas as filosofias na Índia: hindu, budista, jaina e Cãrvãka , têm origem nos problemas práticos que o homem enfrenta na vida, suas limitações e sofrimentos. Em cada caso, exceto no do Cãrvãka , culminam na consideração de uma liberação definitiva do sofrimento. Mas em todas, inclusive o Cãrvãka , não se encontra um interesse pela teoria pura, e sim por sua aplicação à prática. Por exemplo, mesmo no caso do Cãrvãka , considera-se que devemos viver uma vida de prazer, pois sua concepção 46

materialista necessariamente valoriza esse tipo de vida, não se encontrando justificado nenhum outro tipo, de acordo com os seus princípios. Uma das formas em que essa síntese se expressa com mais força é em relação ao objetivo de vida no hinduísmo, jainismo e budismo, que termina por ser, essencialmente, o mesmo. Moksha ou liberação é o objetivo último, tanto para o hinduísmo quanto para o jainismo; no budismo, esse objetivo último é denominado Nirvãna ,57 que apesar de não possuir exatamente o mesmo sentido, como veremos, também visa alcançar a liberação da roda da vida, e com isso de todo sofrimento no Samsãra. Assim os significados precisos da liberação variam entre as diferentes escolas, mesmo entre aquelas dentro da estrutura do budismo e hinduísmo, mas o significado básico, tanto de Moksha quanto de Nirvãna é a emancipação ou liberação de todo distúrbio e sofrimento, e liberdade de renascimento. Em algumas instâncias, o objetivo parece ser negativo, consistindo essencialmente de liberdade da dor e liberdade do renascimento, mas em realidade é a aquisição positiva de uma vida rica e completa e o alcançar de infinita sabedoria. O espírito recupera sua pureza original, algumas vezes por se tornar idêntico com o absoluto, outras por uma vida de comunhão com Deus, ou ainda, simplesmente, pela eterna existência do puro espírito em sua individualidade, mas sempre ficando livre das limitações e intrincados embaraços da vida. Na verdade, no budismo, como veremos, esses aspectos negativos e positivos dos sentidos atribuídos ao Nirvãna dão origem a dois tipos de soteriologia: uma negativa e uma positiva, respectivamente, e a discussão desses aspectos vão estar profundamente imbricados com a questão do eu budista e o seu conceito de ausência de existência inerente. Assim, as diversas escolas e sistemas da filosofia indiana se posicionam não apenas com referência ao objetivo da vida, mas também com referência à boa vida na Terra. O espírito essencial da filosofia de vida do hinduísmo, budismo e jainismo é aquele do não apego. Essa é uma atitude da mente com a qual o indivíduo preenche sua parte na vida e vive uma existência no dia-a- dia “normal”, com seus companheiros de jornada, sem ser afetado pelos resultados de suas ações. A meta é alcançar a superioridade mental e espiritual para valores universais, não se deixando ser escravizado por eles. Isto não deve ser confundido com negativismo ou fuga, pois se toma parte nas atividades do dia-a-dia de acordo com seu lugar na sociedade: vivendo e atuando sem qualquer sentido de apego para coisas desse mundo e sem qualquer tipo de egoísmo.

57 O termo não pertence, de modo algum, exclusivamente à tradição budista. A metáfora deriva da imagem da chama. Nir – vã sigifica “apagar”, “deixar de tomar ar“. Nirvana é “apagado”, ou seja: o fogo do desejo por falta de combustível, é apaziguado e extinguido. In ZIMMER, H. (1951, 1986: 193). 47

Hinduísmo, jainismo e budismo, em todos os seus ramos, também aceitam as doutrinas subjacentes de Karma e renascimento. Todas essas escolas acreditam que o homem deve ser moralmente e espiritualmente perfeito antes que possa alcançar a salvação. Também acreditam que justiça é a lei da vida moral, exatamente como causa e efeito é a lei do mundo natural. O que aqui se semeia deve-se colher. Desde que justiça e perfeição moral e espiritual não podem ser alcançadas em uma única vida, todos esses sistemas acreditam no renascimento, para assim prover a oportunidade do progresso moral e eventual perfeição. Em toda a filosofia indiana, dos primeiros Vedas aos últimos desenvolvimentos, a ordem moral do universo tem sido uma doutrina aceita de todos os pensadores indianos exceto em alguns sistemas, como por exemplo o Cãrvãka .58 Karma e renascimento são as instrumentalizações pelas quais a ordem moral do universo é trabalhada além do raio de ação da vida humana. Na perspectiva de Radhakrishnan, existe um elemento comum posterior que unifica todas as escolas de filosofia hindu no terreno prático, apesar das escolas heterodoxas, o Cãrvãka , budismo e jainismo, não terem se conformado a esse padrão. No estilo de vida adotado pelas escolas do hinduísmo, guardadas as variações metafísicas e epistemológicas, existe um sistema de divisão quádruplo da sociedade: os quatros estágios e os valores básicos da vida que o homem procura. Assim, no hinduísmo a sociedade é dividida em quatro grupos – varnas , termo freqüentemente traduzido por castas, mas que preferimos manter em sua escritura original. Esses grupos são determinados geralmente de acordo com a habilidade ocupacional: o sacerdote professor, brãhmin ; o rei ou político e líder militar, kshatriya ; o mercador, vaisya ; o trabalhador, sudra . Os três primeiros grupos são chamados "nascidos duas vezes", isto é, são considerados hindus iniciados religiosamente, enquanto os sudras não são assim aceitos. A vida dos "nascidos duas vezes" consiste de quatro estágios: o de estudantes, Brahmacãrin ; o de chefe de família, Grhastha ; o habitante da floresta, Vãnaprastha ; o monge errante, ou Sannyãsin . De acordo com esse esquema social, não se entra na vida de ascetismo antes de se ter

58 O sistema Cãrvãka assumiu várias formas de ceticismo filosófico, fatalismo lógico e indiferença religiosa. Sua origem pode ser traçada desde tão longe quanto o Rg Veda . É mencionado nos Épicos, bem como nos Diálogos de Buddha. Mesmo o Bhagavad-gitã se refere a ele. O trabalho central desse sistema, o Brhaspati Sutra (600 a.C), não é acessível, e as doutrinas do materialismo tiveram de ser reconstruídas a partir da afirmação de posições e de críticas dele, encontradas nas polêmicas de outros trabalhos. Sua doutrina é denominada Lokãyata , porque ela afirma que somente este mundo ( Loka ) existe, e nada há além dele. Não existe a vida futura. A percepção é a única fonte do conhecimento: o que não é percebido não existe. Os materialistas negam a validade da inferência, uma vez que a inferência depende da possibilidade de conexões universais, e os dados percebidos, que são particulares, não autorizam a crença nas conexões universais. A teoria materialista é uma tentativa audaciosa para desembaraçar-se da época de opressão do passado, preparando o solo para os grandes esforços construtivos de especulação. É uma das três maiores teorias heterodoxas – sendo as outras o Budismo e o 48

cumprido as suas obrigações em relação aos seus companheiros, como estudante e chefe de família, e é só nos últimos estágios da vida que vai haver uma concentração maior sobre o espiritual e sobre a procura de liberação. Os objetivos da vida que são aceitos por todos os hindus são: o primeiro, Dharma – correção ou obediência à lei moral; o segundo, Artha – saúde ou bem estar material; o terceiro, Kãma – prazer; e o quarto Moksha – emancipação. O Dharma prevalece por toda a vida, ou seja, nem prazer, nem saúde devem ser obtidos através da violação das regras de moralidade. Moksha é o objetivo último que todos os homens devem aspirar. Todos os hindus aceitam essa filosofia social sem questionamentos. Ela é apresentada na literatura dos Dharmasãstras , mas não é encontrada em qualquer elaboração ou com qualquer justificação filosófica nos textos técnicos básicos. Para o autor, esse ideal de vida comum a todos os hindus provê um espírito de unidade para a vida social e moral do país, embora budistas e jainas, que na Índia se tornaram minoria, não adotem o mesmo padrão específico de vida.

1.4 As origens do “eu” na obra de Marcel Mauss

“Quem sabe, até, se essa ‘categoria’ que todos nós aqui julgamos fundamentada há de ser sempre reconhecida como tal? Ela foi formada por nós, entre nós. Mesmo sua forma moral – o caráter sagrado da pessoa humana – está colocada em questão, não só num oriente todo que não alcançou as nossas ciências, como também nos países em que esse princípio foi encontrado. Temos grandes bens a defender, pois conosco pode desaparecer a Idéia. Mas não façamos pregação por agora” 59

Os trabalhos de Mauss, como sabemos, se inscrevem na linha de estudos da Escola Sociológica Francesa de Émile Durkheim, que tinha como um de seus objetivos traçar a história social das categorias do espírito humano, as “idéias que julgamos inatas”. 60 Esse grande projeto durkheimiano da “história social das categorias do espírito humano” não deixava de apresentar uma perspectiva um tanto cientificista, assim como uma causalidade sociológica da qual Mauss nunca chegou a renunciar por completo. Nesse sentido, como

Jainismo. Ela não esboçou as suas teorias a partir dos Vedas e dos Upanishads e não procurou justificar seus ensinamentos pelos textos ortodoxos básicos. In RADHAKRISHNAN, Sarvepalli. (1957, 1973: 227-228). 59 MAUSS, M. “Uma categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa, a noção do EU” in MARCEL, M., Sociologia e Antropologia, vol. 1, São Paulo: EPU, EDUSP, 1938, 1974, p. 209. 49

assinala Dumont, se faz necessário tomar distância em relação a Mauss. 61 Só que, se por um lado, Dumont julga necessário marcar essa distância, por outro, ele próprio reconhece que “Mauss já se afastara, discretamente, do cientificismo e do que há de hybris sociológica em Durkheim”. Por isso, ele considera que num sentido amplo, a “história social das categorias do espírito humano” está sempre na ordem do dia, só que se apresenta, infinitamente mais complexa, múltipla e difícil do que parecia aos durkheimianos do início do século passado. Nesse artigo, Mauss reconstrói o longo caminho através do qual se constitui a categoria do eu no ocidente. Sua abordagem privilegia não tanto o sentido, mas a construção dessa categoria. Sua proposta é se concentrar, exclusivamente, no estudo da categoria do eu. Ele próprio chama sua pesquisa de uma pesquisa do direito e da moral. Ainda que não deixe de reconhecer a questão lingüística, pois em sua visão não existe tribo na qual a palavra “eu- mim” não se faça presente, não é seu intuito entrar, especificamente, nesse campo de estudo. Tampouco se propõe a falar de psicologia, deixando de lado tudo que diz respeito ao “eu”, à personalidade consciente como tal. Contudo, faz questão de observar que não houve ser humano que não tenha tido o sentido do seu próprio corpo e da sua individualidade, tanto no sentido espiritual quanto corporal. E acrescenta: a categoria do “eu” nasceu e muito lentamente cresceu no curso de muitos séculos e através de muitas vicissitudes, “a ponto de, ainda hoje, ser flutuante, delicada, preciosa e estar por ser elaborada”. 62 Ao definir seu tema, Mauss prefere caracterizá-lo como pertencendo ao âmbito da história social. Ou seja, ele quer saber como no curso dos séculos, através de numerosas sociedades, elaborou-se, lentamente, não o sentido do “eu”, mas a própria noção do eu, o conceito respectivo que os homens de diversas épocas criaram. Pretende mostrar toda “a série de formas de que esse conceito se revestiu na vida dos homens em sociedade, segundo seus direitos, suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas mentalidades”. 63 Um dos seus objetivos é demonstrar quão recente são: 1) a palavra filosófica “eu”; 2) a “categoria do eu”; 3) o “culto do eu” (sua aberração); 4) o respeito do “eu”; 5) o respeito do “eu” dos outros (sua forma normal). Nessa demonstração, ele parte da noção de personagem para chegar à noção de pessoa e do “eu”. Começa chamando a nossa atenção para o fato de que a noção de persona latina é vista como normal e clássica: máscara, máscara trágica, máscara ritual e máscara de

60 MAUSS, M. (1938, 1974: 209). 61 Isto, entretanto, não invalida a sua retomada do projeto da comparação e da antropologia, tal como fora proposto por Mauss in DUMONT, L. O Individualismo. Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia moderna . Tradução de Álvaro Cabral. Rio de janeiro: Rocco, 1985, p. 15. 62 MAUSS, M. (1938, 1974: 209). 50

antepassado. Essa noção teria surgido nos primórdios da civilização latina. Assim, é o próprio Mauss que sugere uma direção na qual a história dessa categoria parece se confundir com a própria história das diferentes civilizações, com suas diferentes culturas, seus diferentes conjuntos de valores, e é nesse sentido que reside para nós o interesse pelo seu artigo, pois mostra essa imbricação do eu com a paisagem cultural que toma como seu habitat mental. E, justamente, é esse aspecto que faz com que essa noção, embora sendo um conceito pensado como universal, na medida em que é pressuposto estar presente em todas as culturas, traz sempre a marca da sua singularidade, do seu caráter particular. Segundo Mauss, o começo da construção dessa noção remonta aos últimos séculos que antecederam nossa era, como uma criação de duas das mais importantes civilizações da Antigüidade, a Índia Brahmânica e a China antiga, em suas palavras:

“Parece-me que a Índia foi a mais antiga civilização a ter a noção do indivíduo, de sua consciência, do eu, conforme digo; a ahamkãra , a fabricação do eu, é o nome da consciência individual: aham = eu (é a palavra indo-européia ego)”. 64

Assim, em sua visão, a palavra ahamkãra – cujo sentido indica tanto a fabricação do eu como da consciência individual – só pode ser uma “palavra técnica”, oriunda de alguma escola de sábios videntes. Por exemplo, o termo Shãnkhya significa composição e, a seu ver, foi essa escola filosófica indiana que, justamente por ter sustentado o caráter composto das coisas, dos espíritos e da natureza ilusória do eu, pode ser considerada como precursora do budismo. 65 Para Mauss, a suposição de que a escola do Shãnkhya seja precursora do budismo é ainda mais reforçada pela afirmação de que em uma primeira fase de sua história o budismo decretava que o eu era apenas um composto divisível, extraível de Skandha , e buscava provocar o seu aniquilamento no monge. 66

63 MAUSS, M. (1938, 1974: 211). 64 MAUSS, M. (1938, 1974: 225). 65 Por sua vez, o Sãnkhya e o Yoga estão relacionados com o sistema mecânico dos jainistas que, sabemos, pode remontar – em parte historicamente, em parte como lenda – através de uma longa série de Tirthankara até a longínqua Antigüidade aborígene, não-Védica. Os Tirthankara – como são denominados os salvadores jainistas, os “Autores da travessia do rio” – que representam o alvo próprio de todos os seres humanos, mas ainda, o objetivo de todos os seres vivos deste universo vital de mônadas reencarnantes – foram “isolados” ( kevala ) das províncias da criação, conservação e destruição, que formam o campo de ação e de interesse dos deuses. Os “Autores da travessia do rio” estão além do acontecer cósmico, assim como dos problemas biográficos: são transcendentes, livres de temporalidade, oniscientes, desprovidos de ação e estão absolutamente em paz. In ZIMMER, H. (1951, 1986: 137). 66 MAUSS, M. (1938, 1974: 225-226). 51

O ponto de partida das grandes escolas do Brahmanismo dos Upanishads é a seguinte máxima, incluída no diálogo travado entre Visnu e Arjuna, no Bhagavad Gitã , máxima essa proferida pelos “videntes” a respeito do que é a verdade: “ tat vam asi ” – “tu és isso” – “tu és o universo”. Assim, essa é a metafísica que impregna o próprio ritual védico posterior e seus comentários. Essa máxima sintetiza também o momento do ápice da “sacralização” da categoria do eu, nos Upanishads pós-védicos, através da identidade Ãtman-Brahman , que nesse pensamento simboliza o centro sagrado do universo, presente em todas as coisas, inclusive no próprio eu. Denominamos essa concepção desse eu eterno upanishádico de “eu pré-budista”, para marcar, na verdade, a oposição que o Buddha Shãkyamuni faz a essa concepção eternalista do eu. O ensinamento do Buddha Shãkyamuni sobre a questão do eu se colocava em oposição tanto ao Eternalismo, como acabamos de ver na tradição Brahmânica, quanto ao Anilacionismo, que supunha que com a morte o eu era aniquilado. O Buddha propôs, entre essas duas posições, um Caminho do Meio, conceitualmente falando, ou seja, a doutrina da Originação Dependente, cujo entendimento passa também pelos conceitos do Ãhimsa e ausência de existência inerente. Na verdade, o que o budismo condenava era o apego a essa ilusão de um eu eterno e permanente, ou então a idéia de que com a morte o eu era destruído. Nesse apego, o budismo via a causa principal de todo sofrimento humano. Outra civilização da Antigüidade que também elaborou uma concepção do eu foi a chinesa. Mauss chega a afirmar que em nenhuma outra parte o indivíduo foi mais levado em conta, particularmente o seu ser social; e, em nenhuma parte ele é mais firmemente classificado. 67 Em sua visão, encontram-se na China antiga a força e a grandeza de instituições comparáveis ao noroeste americano. Assim, é a ordem dos nascimentos, a posição e o jogo das classes sociais que fixam os nomes, a forma de vida do indivíduo, sua “aparência”. O que caracteriza sua individualidade é o seu ming , o seu nome. Embora a China tenha conservado as noções arcaicas, ao mesmo tempo tirou da individualidade todo o caráter de ser perpétuo e indecomponível. Assim, o seu nome, o ming , é um coletivo, é algo que vem de fora: o ancestral correspondente o usou, assim como será usado pelo descendente de seu portador. Segundo Mauss, quando certas filosofias tentaram dizer o que era o indivíduo, esse foi visto como um composto, de shen e de kwei (também dois coletivos) durante essa vida. No entanto, na opinião de Mauss, tanto o taoísmo quanto o budismo passaram sobre o assunto e a noção de pessoa não teria encontrado nessas tradições maior desenvolvimento.

67 Mauss declara que esses conhecimentos lhe foram transmitidos por seu amigo Marcel Granet. In MARCEL, M.(1938, 1974: 226). 52

Talvez essa opinião de Mauss reproduza uma visão distorcida sobre o pensamento asiático. Esse tipo de distorção é bastante freqüente entre pensadores ocidentais. Tal fato é decorrente de, numa primeira fase, 68 esse contato entre o pensamento do ocidente e do oriente, ter se dado, predominantemente, através de uma abordagem puramente intelectual. Foi só em meados do século XX que começou a surgir um “budismo ocidental”, particularmente após a invasão do Tibete pela China, o que provocou a vinda de muitos mestres espirituais para o ocidente. Esse movimento, conhecido como a “diáspora tibetana”, acabou facilitando que essas tradições se tornassem mais conhecidas, não apenas de forma livresca, como havia ocorrido no século XIX, mas a partir da transmissão direta dos ensinamentos por seus mestres, bem como das práticas de meditação. Todo esse contato direto acabou despertando um interesse cada vez maior por essa nova modalidade de conhecimento, inclusive um interesse sobre a questão do eu budista, a doutrina de Anãtman , comumente traduzida como “não-eu” em vários trabalhos de estudiosos ocidentais, o que também, por sua vez, acabou gerando novos equívocos. Mas, do ponto de vista de Mauss, outras nações conheceram e adotaram idéias semelhantes. Porém, em sua opinião, raras foram aquelas que fizeram da pessoa humana uma entidade completa, independente de qualquer outra, a não ser de Deus. Em sua opinião, a mais importante de todas é a civilização romana. Em sua perspectiva, foi em Roma que se formou tal noção. Esse foi um avanço ocorrido, principalmente, em função da contribuição dos estóicos, cuja moral voluntarista, pessoal, teria enriquecido tanto a noção romana de pessoa quanto o seu reflexo sobre essa noção enriquecia o próprio direito. 69 Também aqui Mauss reafirma sua visão de que foi só com a civilização ocidental que essa noção teria sido formada. Tal afirmação, no entanto, parece contraditória com o que ele mesmo, havia afirmado anteriormente. O próprio Mauss havia reconhecido que a palavra ahamkãra (= eu) é oriunda da Índia, sendo no seu entender uma palavra técnica fabricada por alguma escola de sábios videntes. Mas, de fato, em nenhum momento de seu artigo ele faz referência à temática central do pensamento filosófico indiano, uma das tradições filosóficas mais antigas da humanidade, cuja temática principal é justamente o conhecimento do eu, Ãtmavidya , da consciência individual. A presença dessa temática no pensamento indiano, que elegeu a categoria do eu

68 Particularmente no século dezenove. 69 Mauss considera que não se poderia exagerar a influência das escolas de Atenas e de Rodes no desenvolvimento do pensamento moral latino – e, inversamente, a influência dos fatos romanos e das necessidades de educação dos jovens romanos sobre os pensadores gregos. Políbio e Cícero já o testemunham, assim como Sêneca, Marco Aurélio, Epíteto e outros mais tarde. In MARCEL, M.(1938, 1974: 233). 53

como a categoria central do seu conhecimento, nos conduziu a formular a seguinte hipótese: a categoria do eu não apenas foi construída pelo pensamento indiano, como, nesse pensamento, antes de ser uma categoria conceitual, o eu é forjado pelas mais antigas tradições ascéticas do pensamento indiano, tradições essas autóctones e pré-arianas. O ascetismo indiano em sua forma inicial tinha um caráter mágico-religioso, o que nos levou a considerar a subjetividade ascética, a formação da consciência através das práticas do Yoga como apresentando o status de uma “identificação mística”. Com as especulações filosóficas dos Upanishads pós-védicos, essa categoria do eu é alçada à condição de uma categoria conceitual e sagrada do espírito humano, através da identidade Ãtman-Brahman . Todo esse status da categoria do eu no pensamento indiano não apresenta um caráter apenas teórico, mas, preferivelmente, um caráter de cunho eminentemente prático. A sabedoria sobre o eu, na Índia, é uma espécie de guia prático para a construção de um estilo de vida, de existência, uma sabedoria sobre o cuidado de si, a ascese em sua concepção mais original como prática de si, o cuidado com a existência, com o si mesmo. Nessa linhagem das tradições ascéticas, surge também a concepção do eu budista. Pensamos que a questão das origens do ascetismo, a questão do eu e a sacralização do ser humano estão imbricadas, desde os primórdios da civilização indiana. Com o budismo, não resta dúvida de que há uma espécie de descentramento da sacralização do eu; o budismo estende essa sacralização a todo o cosmo, a todo o universo, num certo sentido não deixando de se colocar de acordo com a máxima dos “videntes” – aqueles que viram a verdade, que puderam experimentá-la: “ tat vam asi ” – “tu és isso”, “tu és o universo”. Por essa máxima, qualquer tipo de dualidade fica abolida; experimentar a verdade se sentindo ser um com o outro, experiência que se encontra ligada às práticas milenares do ascetismo, do yoga e da meditação, práticas que na Índia são privilegiadas como um caminho de desenvolvimento da espiritualidade. Abolindo nosso sentimento de dualidade, de oposição entre o eu e o outro, estamos também abolindo nossos sentimentos de apego e egoísmo. Nesse sentido, essa imbricação do ascetismo, da categoria do eu e a questão da sacralização do ser humano envolve também uma questão sobre os limites éticos, relativos ao eu e ao outro. Segundo Mauss, na tradição ocidental, o termo pessoa em grego apresenta o mesmo sentido de persona – máscara, mas também pode significar o “personagem” que cada um é e deseja ser, seu “caráter”, sua verdadeira face. Essas duas palavras, freqüentemente, aparecem ligadas. A partir do século dois a.C., toma rapidamente o sentido de persona . Nesse sentido, persona , pessoa, direito, conserva ainda um sentido de imagens superpostas. Mas significa também personalidade humana, isto é, divina, tudo dependendo do contexto. Estende-se a 54

palavra grega pessoa ao indivíduo na sua natureza última, sem máscara alguma, apesar de, diante dele, conservar-se o sentido do artifício, o sentido do que é a intimidade de tal pessoa e o sentido do que é personagem. Entre os clássicos latinos e gregos da moral 70 tudo soa diferente. O termo pessoa em grego é apenas pessoa, sendo acrescentado um sentido moral ao sentido jurídico. Esse é um fato assinalado por Mauss como importantíssimo. Esse sentido moral engloba ser consciente, independente, autônomo, livre, responsável. Assim, a consciência moral introduz a consciência na concepção jurídica do direito. Logo, às funções, às honras, aos cargos, aos direitos, acrescenta-se uma pessoa moral consciente. 71 Mas todo esse empenho, todo esse esforço de num único artigo dar conta de um tema tão vasto, parece animado por uma intenção que o autor deixou explícita em uma passagem colocada ao final do texto. A sacralização da pessoa humana encontra-se sob ameaça. E, é nossa tarefa lutar para defendê-la: “Temos grandes bens a defender, pois conosco pode desaparecer a Idéia. Mas não façamos pregação agora”. 72 O que Mauss não torna explícito é a qual ameaça estaria se referindo, mas aponta um caminho, uma direção possível por onde essa luta pode ser travada, ou seja, através do aperfeiçoamento da consciência, o que num certo sentido não deixa de apresentar uma certa relação com o caminho apontado pelo Buddha Shãkyamuni, que também ensina um método de transformação da consciência, o Caminho dos Oito Passos. Mauss encerra seu artigo apontando a grande crise de valores que se instala na sociedade ocidental, ao longo do século XX. E o que ele frisou nesse artigo é que a sacralização do ser humano, sua forma moral, não deve ser tratada apenas como um fato histórico, objetivamente dado, em nossa cultura ocidental moderna. Se até aquela data, 73 esse fato ainda continuava tendo vigência, isso não podia ser tomado como garantia de que as coisas permaneceriam sempre assim. Através desse artigo, vislumbramos que o autor aponta para uma dimensão bem mais ampla dessa problemática da imbricação do eu e da questão da sacralização da pessoa humana, do valor sagrado da vida, e se pensarmos nos últimos

70 Entre os séculos IIa.C e IVa.C. In MARCEL, M.(1938, 1974: 233). 71 Mauss comenta que está sendo mais ousado, porém mais claro do que Brunschvicg que, em sua grande obra, — Le Progrès de la Conscience — tocou esses temas com freqüência (particularmente I, p. 69s). In MARCEL, M.(1938, 1974: 234). 72 MAUSS, M. (1938, 1974:.241). MAUSS, M. (1938, 1974: 211). 73 O Artigo de Mauss, “Uma categoria do Espírito Humano: A Noção de Pessoa, A Noção do Eu”, foi extraído do Journal of the Royal Anthropologial Institute, Vol, LXVIII, 1938, Londres (Huxley Memorial Lecture, 1938). In MAUSS, M. (1938, 1974: 207). 55

acontecimentos do início desse novo século, o século XXI, as palavras de Mauss acabam adquirindo um tom profético. 74 Mauss encerra sua trajetória da formação do eu: de uma simples mascarada à máscara, de um personagem a uma pessoa, a um nome, a um indivíduo, desse a um ser de valor metafísico e moral, de uma consciência moral a um ser sagrado, desse a uma forma fundamental do pensamento e da ação. Assim, a idéia de personagem é sucedida pela noção de pessoa que designa, inicialmente, um fato jurídico, depois moral e, em seguida, metafísico, antes de se constituir como fato psicológico, na categoria de eu, em que por um movimento de inversão realizado por Fichte o eu se torna condição da consciência, da ciência e da razão pura. Na conclusão dessa trajetória, Mauss levanta as seguintes indagações: “até onde chegarão os progressos do entendimento a esse respeito? Que luzes projetarão sobre esses problemas atuais a psicologia e a sociologia, já adiantadas, mas que é necessário impulsionar ainda mais?” 75 Assim, ele nos lança um desafio que ainda hoje permanece bastante afinado com nossa contemporaneidade:

“Digamos que a antropologia social, a sociologia, a história nos ensinam a acompanhar a marcha do pensamento humano (Meyerson), que, através do tempo, das sociedades, através dos contatos dessas, de suas mudanças, por caminhos aparentemente os mais vagos, lentamente consegue articular-se. Trabalhemos para mostrar como devemos nós mesmos considerar a consciência, para aperfeiçoá-la, para articulá-la de modo ainda melhor”. 76

E é o próprio Mauss quem nos indica, nessa passagem em que levanta a questão que nos é tão cara, sobre a imbricação do eu e a questão da sacralização do ser humano, um caminho possível, nesse projeto que ele próprio nos legou – de aperfeiçoamento da consciência individual – ao fazer questão de sublinhar, como um dos aspectos mais importantes dessa categoria:

“O caráter sagrado da pessoa humana, o respeito do eu, particularmente do eu dos outros (sua forma normal): ele foi formada por nós, entre nós. A sua forma moral - o caráter sagrado da pessoa humana - está colocada em

74 Por exemplo, a destruição das duas torres do World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro de 2001, através de um ataque terrorista, quando morreram dez mil pessoas. 75 MAUSS, M.(1938, 1974: 241). 56

questão, não só em todo o oriente, que não alcançou as nossas ciências, como nos países em que esse princípio foi encontrado.” 77

Ao fazer alusão ao oriente "que não alcançou as nossas ciências”, 78 Mauss não foi muito feliz, pois talvez essa observação tenha-o conduzido a cometer o equívoco de utilizar “ocidente” não apenas para se referir a uma modalidade de cultura, ou a um sistema de valores, entre tantos outros possíveis, mas como uma medida padrão, através da qual as outras realidades, distintas da nossa, devem ser valorizadas. Assim, o ocidente deixa de ser o substantivo que nomeia uma tradição cultural entre várias, para se tornar, ele próprio, um valor; valor hegemônico para aquele que o emprega, e uma espécie de filtro através do qual todas as outras tradições diferentes da nossa devem ser olhadas. Pensamos que o fato de a filosofia indiana não lançar mão dos métodos empregados pelas ciências modernas não significa que em sua abordagem dos problemas a experiência, assim como a intuição, não seja valorizada como um dos métodos a serem utilizados, e as conclusões alcançadas na posse da verdade não possam ser tão ricas em sua extensão e variedade como nas outras tradições filosóficas. Mas se por um lado ele incorre nesse tipo de equívoco, por outro nos forneceu um instrumento valioso ao criar o método de uma perspectiva antropológica social ou comparada, instrumento esse que nos possibilita ter uma visão da nossa própria cultura, ocidental e moderna, em sua unidade. Dumont sublinha ainda mais essa vantagem: “enquanto permanecemos no interior dessa cultura, parecemos condenados simultaneamente por sua riqueza e por sua forma própria a fragmentá-la de acordo com o traçado de nossas disciplinas e especialidades, e a situar-nos em um ou outro de seus compartimentos”. 79 A possibilidade de adquirir um ângulo de visão exterior, a colocação em perspectiva – e talvez só ela – permite uma visão global que não seja arbitrária. E nisto está o essencial, 80 afirma Dumont. Mauss já havia sublinhado que nossas idéias modernas possuem um caráter particular um tanto excepcional. 81 Por isso, em sua visão só se pode falar no “espírito humano” a partir do instante em que duas formas diferentes de ideologia são incluídas numa mesma fórmula, em que duas ideologias distintas se apresentam como duas variantes de uma ideologia mais

76 MAUSS, M. (1938, 1974: 241). 77 MAUSS, M. (1938, 1974: 240). 78 MAUSS, M. (1938, 1974: 241). 79 DUMONT, L. O Individualismo . Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna . Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1985, p. 20. 80 DUMONT, L. (1985: 20). 81 DUMONT, L. (1985: 14). DUMONT, L. (1985) 57

ampla, por exemplo o holismo e o individualismo. Esse movimento de inclusão, sempre a renovar, aponta o espírito humano ao mesmo tempo como seu princípio e seu limite. 82 De fato, ainda que Mauss não tenha explicitado, não nos é difícil imaginar a qual ameaça podia estar aludindo, ao escrever esse artigo no período entre guerras e, logo após a sua publicação, o nazismo ter eclodido em toda a Europa. Esse acontecimento marca, na história do ocidente, uma ruptura, um esgarçamento da tradição, pois foi essa mesma tradição, judaico-cristã, e o indivíduo constituído em seu interior enquanto ser moral, universal, com seu conjunto de valores, que revela nesse acontecimento uma das suas faces mais hediondas. Mas será que atualmente podemos afirmar que a sacralização da pessoa humana – sua forma moral – ainda está posta em questão, tanto no ocidente quanto no oriente? Pensamos que, se quisermos responder a essa pergunta, teremos também nós de procurar nos descentrar de nossa tradição cultural, para podermos olhá-la em perspectiva. Como nos ensina Hanna Arendt:

“Ela bem pode ser a região do espírito, ou antes, a trilha plainada pelo pensar, essa pequena picada de não-tempo aberta pela atividade do pensamento através do espaço-tempo de homens mortais e na qual o curso do pensamento, da recordação, e da antecipação salvam o que quer que toquem da ruína do tempo histórico e biográfico. Esse pequeno espaço intemporal no âmago mesmo do tempo, ao contrário do mundo e da cultura em que nascemos, não pode ser herdado e recebido do passado, mas apenas indicado; cada nova geração, e na verdade cada novo ser humano, inserindo-se entre um passado infinito e um futuro infinito, deve descobri-lo e, laboriosamente, pavimentá-lo de novo.” 83

Assim, não estamos mais diante de uma ameaça apenas externa, como à que Mauss parece ter feito alusão, no contexto de sua época. Pode-se dizer que ela sofreu uma espécie de “internalização”: essa ameaça surge do seio do pós-modernismo, dos próprios indivíduos constituídos enquanto seres morais, universais, mas agora transformados, desde a sua interioridade, por um século de múltiplos totalitarismos e pela vitória, no mundo ocidental, do individualismo utilitário a serviço de uma sociedade de consumo. Essa transformação faz de todos nós indivíduos pós-modernos num mundo globalizado, não apenas peças que devem ser substituídas sempre que se fizer necessário, mas também peças que por terem perdido toda a

82 DUMONT, L. O (1985: 14). 58

sua utilidade, devem, de acordo com a lógica desse tipo de individualismo, serem prontamente eliminadas, de uma forma ou de outra. Em nossa cultura ocidental, que alguns já preferem chamar pós-moderna, dominada pela ideologia individualista dos nossos tempos, é esse indivíduo cada vez mais dessacralizado que se transformou na principal ameaça da sacralização da pessoa humana. Esse é o drama para o qual somos convocados, ao mesmo tempo, como testemunhas e atores. E foi, devido a essa profunda crise de valores, que dirigimos nosso olhar em direção a outras formas de organização social, a outros conjuntos de valores e, até mesmo, a outras formas de individualismo, originados em sociedades em quase tudo diversas da nossa. Sobre esse tipo de individualismo, Dumont formulou a seguinte hipótese: “se o individualismo deve aparecer numa sociedade do tipo tradicional, holista, será em oposição à sociedade e como uma espécie de suplemento em relação a ela, ou seja, sob a forma de indivíduo-fora-do-mundo.” 84 Em relação a sua hipótese, o autor formula a seguinte pergunta: “será possível pensar que o individualismo começou desse modo no ocidente?” 85 Se, como ele admite, tanto a forma do individualismo que surge em sociedades holistas e tradicionais, como a sociedade indiana, quanto o individualismo das origens do cristianismo no ocidente podem apresentar uma origem comum – quem sabe se nos voltarmos para esse outro tipo de sociedade, com outro conjunto de valores, não poderemos melhor refletir sobre os nossos problemas contemporâneos, diante dos quais estamos sempre nos perguntando: o que fazer? Foi a partir desses pressupostos que se escolheu a sociedade indiana como universo que por seu contraste poderia, justamente, iluminar a nossa realidade, fazendo com que certos aspectos possam ser vistos de outra maneira. Aspectos esses em relação aos quais, pela força do hábito, muitas vezes acabamos perdendo a salutar sensação de estranheza que nos leva a querer refletir sobre a nossa realidade, os nossos valores e o mundo em que vivemos. Pensamos que o debate sobre o despertar do budismo no mundo Ocidental, nesse início do século XXI, pode ser articulado a essa questão levantada por Mauss nas primeiras décadas do século XX, a respeito da constituição do sujeito moral no ocidente. Talvez, a versão do budismo se apresente hoje como um grande guarda-chuva ideológico capaz de abrigar o ocidente e o oriente, talvez a tradição mais apta a fazer essa ponte. Em Rorty, encontramos justamente a possibilidade de uma utopia liberal, na qual:

83 ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro . São Paulo: Editora Perspectiva, 1954, 1997, p. 40. 84 DUMONT, L. (1985: 38-39). 59

“a solidariedade humana não fosse vista apenas como um fato que haveríamos de constatar, uma vez que tivessem sido removidos os preconceitos, mas como um objetivo a atingir (...) não pela investigação mas pela (...) capacidade imaginativa de ver em pessoas estranhas, companheiros de sofrimento.” 86

Ou, nessa imagem que encontramos em Dennet, de “incluirmos o maior número de pessoas possíveis, sob o guarda-chuva de nós.” 87 Em Rorty e Dennett, ou seja, do interior do próprio individualismo utilitário, se esboça um comprometimento com essa tradição do sujeito moral no ocidente, do respeito ao eu do outro, tão recente em nossa cultura, como afirma Mauss, mas que em outras culturas, como a indiana, apresenta uma tradição milenar. O budismo é hoje o representante da tradição do pensamento indiano que talvez esteja mais apto a difundir no ocidente essa tradição milenar com sua forma tão diferente da subjetividade constituída no ocidente – o eu budista.

85 DUMONT, L. (1985: 39). DA MATTA, R. Carnavais, Malandros e Heróis . Para Uma Sociologia do Dilema Brasileiro , Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 86 RORTY, R. Contingência, Ironia e Solidariedade , Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 18. 87 DENNET, D. Kinds of Minds, toward an understanding of consciousness . Basic Books. Nova Iorque, p. 4. 60

Originária do Noroeste da Índia, esta esquelética imagem do Buda, emaciado devido ao jejum, contrasta com as usuais representações do mestre (...). Os primeiros discípulos do Buda proibiam qualquer imagem de seu líder, representando-o por meio de símbolos (...) Estátuas e relíquias levadas por monges missionários contribuiram para disseminar o Budismo na China e no Sudoeste da Ásia in A Elevação do Espírito 600-400 a.C. A História em revista. Rio de Janeiro: Editora Ciência e Cultura, 1988, 1989, p. 64.

61

2 UMA OUTRA PAISAGEM MENTAL, OUTRA VERSÃO, OUTRO CONJUNTO DE VALORES

“Os sábios da Índia (...) nunca pretenderam que seus ensinamentos fossem populares. Na verdade, somente nos últimos anos suas palavras tornaram- se acessíveis à maioria devido à edição dos textos e às traduções em línguas vernáculas. Eles insistem em determinar se o candidato à admissão no santuário de sua filosofia possui as necessárias qualidades espirituais. Já cumpriu satisfatoriamente as disciplinas preliminares? Tem a suficiente maturidade para obter benefício do contato com o guru? Merece um lugar aos pés do mestre? Tudo isto porque as soluções dadas pelos sábios indianos aos enigmas da vida e o seu modo de afrontar o mistério do universo seguem rumos completamente diferentes daqueles que percorrem os líderes da educação e da ciência contemporânea no ocidente. Não negam nem pedem desculpas pelo fato de seus ensinamentos serem de difícil entedimento e, portanto – necessariamente –, esotéricos.” 88

2.1 Individualismo e Holismo em Louis Dumont

Em seu estudo comparativo com a sociedade indiana Dumont formula uma hipótese na qual procura esquematizar a oposição proposta por Mauss, entre observador e observado, porém na forma de uma oposição entre moderno e não-moderno. Contudo, para isso, propõe que se deixe de lado toda consideração de causa e efeito e que se dê atenção apenas às configurações de idéias e valores, às redes ideológicas, com o intuito de poder chegar às relações fundamentais que se encontram nelas subentendidas. Nessa perspectiva, apresenta a seguinte formulação de sua tese em termos aproximados, em suas próprias palavras:

“Algo do individualismo moderno está presente nos primeiros cristãos e no mundo que os cerca, mas não se trata exatamente do individualismo que nos é familiar. Na realidade, a antiga forma e a nova estão separadas por uma transformação tão radical e tão complexa que foram precisos nada menos que dezessete séculos de história cristã para completá-la, e talvez prossiga ainda em nossos dias. A religião foi o fermento essencial, primeiro, na generalização da fórmula e, em seguida, na sua evolução. Nos nossos limites cronológicos, o pedigree do individualismo moderno é, por assim

88 ZIMMER, H. (1986). 62

dizer, duplo: uma origem ou aceitação de uma certa espécie, e uma lenta transformação numa outra espécie” 89 .

Dumont pensa que, caso se queira ver a nossa cultura em sua unidade e especificidade, deve-se colocá-la em perspectiva, contrastando-a com outras culturas. Essa é a maneira através da qual pode-se tomar consciência de uma coisa que lhe parece bastante óbvia: o fundamento familiar e implícito do discurso ordinário. Em sua visão, quando se fala de “indivíduo” designam-se duas coisas ao mesmo tempo: primeiro, um objeto externo ao que fala; e, segundo, um valor. Tal comparação torna necessária uma distinção analítica entre esses dois aspectos: de um lado, o sujeito empírico que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra individual da espécie humana tal como é encontrada em todas as sociedades; do outro, o ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social, portador dos valores supremos e que se encontra em primeiro lugar na ideologia moderna do homem e da sociedade. A partir deste ponto de vista, Dumont define dois tipos de sociedade: quando o indivíduo constitui o valor supremo, fala de individualismo; no caso oposto, em que o valor se encontra na sociedade como um todo, fala de holismo. 90 Ele se formula, então, a seguinte questão: “como foi possível essa transição, como podemos conceber uma transição entre esses dois universos antitéticos, essas duas ideologias inconciliáveis?” 91 Foi a comparação com a Índia que lhe sugeriu a seguinte hipótese:

“Há mais de dois mil anos, a sociedade indiana caracteriza-se por dois traços complementares: a sociedade impõe a cada um uma interdependência estreita, a qual substitui as relações constrangedoras para o indivíduo, tal como o conhecemos; mas, por outro lado, a instituição da renúncia ao mundo permite a plena independência de quem quer que escolha esse caminho.” 92

A instituição da renúncia e as práticas ascéticas trazem para um primeiro plano a figura do Sannyãsin 93 , o “renunciante” indiano. Louis Dumont foi um autor que estabeleceu uma correlação entre o problema das origens do individualismo e a figura do asceta indiano, o qual denominou de “indivíduo-fora-do-mundo”. Para ele o renunciante, de um modo geral, não apenas basta-se a si mesmo, como também só se preocupa consigo mesmo. Nesse sentido

89 DUMONT, L. (1985: 36). 90 DUMONT, L. (1985: 36-37). 91 DUMONT, L. (1985: 37). 92 DUMONT, L. (1985, Idem). 93 Verificar sentido ao final, no Glossário. 63

achou possível fazer uma aproximação entre o pensamento do renunciante indiano e o do indivíduo moderno, porém marcando uma diferença fundamental: enquanto o indivíduo moderno se encontra inserido no mundo das relações sociais, o asceta indiano estaria fora deste mundo de relações instituídas, mas não de forma absoluta. Para Dumont, o problema das origens do individualismo está, justamente, em saber como, a partir do tipo geral das sociedades holistas, pôde se desenvolver este novo indivíduo que, fundamentalmente, vai contra a concepção comum. Ao analizar as raízes da civilização e da cultura indiana, encontra-se na figura do Yogin , protótipo do asceta indiano, uma das formas de configuração e elaboração ideológica da subjetividade forjada no interior das práticas ascéticas, o “eu ascético”, presente entre as tradições pré-arianas mais antigas. Talvez a oposição entre este renunciante (o indivíduo fora- do-mundo tal como denominado por Dumont) e uma sociedade holista indiana dividida em varnas 94 (tal como foi construída a sociedade indiana após a chegada dos invasores arianos) expresse uma oposição ainda mais radical, não só entre dois tipos de sociedade, mas entre duas formas diferentes de civilização e cultura, cuja integração terá sido a tarefa dos quatro mil anos de pensamento filosófico e religioso indiano, uma das tradições filosóficas mais antigas e de maior continuidade no tempo 95 . Assim, o renunciante, o asceta indiano, apresenta-se aos olhos da atualidade como o sobrevivente de um mundo mais antigo, uma outra cultura, com outros valores, talvez pertencentes à tradição de uma civilização autóctone indiana, que já existia muitos milênios antes da invasão da Índia pela civilização e cultura arianas. Se antes pensava-se que esta civilização autóctone existiu há três mil e quinhentos anos, os últimos achados arqueológicos a remontam a quatro mil anos antes, nove mil e quinhentos anos atrás. 96 Pode-se perguntar, então, qual terá sido a importante inferência de Dumont a respeito do renunciante e do papel por ele desempenhado em relação à sociedade indiana: qual foi a contribuição que esta elaboração ideológica do “eu empírico”, naturalmente gerado, em um “eu ascético”, trouxe para a sociedade indiana? Não resta dúvida de que este homem, o renunciante, é o responsável por todas as inovações religiosas que a Índia conheceu; contudo, em relação à própria instituição da renúncia, o que encontra este homem que, em sua busca da

94 Castas. 95 Ver Anexo: Uma Introdução ao pensamento filosófico e religioso indiano em Sarvepalli Radhakrishnam . 96 Achados na Índia traços de civilização milenar. Governo diz que vestígios submersos de 9500 anos são da mais antiga cidade já encontrada em todo mundo. Os cientistas descobriram no fundo do mar o antigo leito de um rio de nove quilômetros de extensão, ao longo do qual foram encontrados pedaços de madeira, cacos de vasos, adornos, pedaços de escultura, ossos e dentes humanos fossilizados, além de objetos que pareciam ser materiais de construção. Algumas peças datam de 7500 a.C. In Jornal Globo, 18 de janeiro de 2002, p. 33. 64

salvação, não hesita em abandonar a vida social e suas restrições para consagrar-se, exclusivamente, ao seu progresso espiritual? Dumont pensa que através dos textos antigos pode-se aceder ao seu sentido:

“Quando ele olha para trás de si, para o mundo social que abandonou, vê-o à distância, como algo desprovido de realidade, e a descoberta do Eu confunde-se, para ele, não com a salvação no sentido cristão, mas com a libertação dos entraves da vida, tal como é vivida neste mundo.” 97

Mas se, na verdade, o renunciante não pode escapar de forma absoluta a este tipo de relação complementar, Dumont se pergunta como poderia ele, a partir disto, desenvolver um pensamento independente, um pensamento de indivíduo? A resposta encontrada, por ele, é simples:

“Basta simplesmente constatar o fato, mesmo que ele signifique aquilo que os atores imaginam ser mais importante do que aquilo que o observador do exterior descreve como os acontecimentos reais, ou seja, as representações se tornam mais importantes do que o comportamento.” 98

Na verdade, Dumont considera que este tipo de objeção repousa em um mal entendido, pois abandonar a sociedade é, em verdade, renunciar ao papel concreto que ela atribui ao homem, como membro de uma dada casta, como pai de família etc., e assumir, diante desta mesma sociedade, um “outro” papel, que Dumont prefere qualificar como universal e, para o qual, a sociedade não possui equivalente; mas isto não significa deixar de manter alguma forma de relação, de fato, com seus membros. Da perspectiva do sociólogo, o renunciante está incluído na sociedade, no sentido em que é a própria sociedade que organiza suas relações com ele. Mas, ao mesmo tempo, o renunciante é um homem que abandona seu papel social para assumir um “outro” papel, ao mesmo tempo universal e pessoal e, pode-se acrescentar, “extraordinário” e “único”. Esse é o fato crucial, subjetivo e objetivo. Não se deve esquecer que, na verdade, este “abandono” leva o renunciante a estabelecer com a sociedade uma relação, em tudo, complementar. Se, por um lado, ele precisa se auto-exilar para se constituir enquanto indivíduo, por outro, nunca deixará de

97 DUMONT, L. Homo Hierarchicus: O Sistema de Castas e Suas Implicações . Tradução de Carlos Alberto da Fonseca. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1992, 2 a ed. 1997, pp. 37-38. 98 DUMONT, L. (1992, 1997: 244). 65

manter, com esta mesma sociedade, uma relação de interdependência. Ao afirmar que o renunciante abandona o seu lugar na sociedade e morre, simbolicamente, para o mundo, isto não implica que tenha se retirado completamente da sociedade. Se fosse este o caso, sua influência sobre a mesma teria sido nula, mas é justamente o contrário que se verifica na época da Índia antiga. Sua influência não só é grande como, de fato, o renunciante Indiano permanece conectado a esta mesma sociedade da qual precisou se exilar, na medida em que continua vivendo do alimento que é colocado em sua tigela e pregando aos “homens-no- mundo”. Na realidade a instituição da renúncia transformou o renunciante indiano em um “indivíduo extraordinário”, “único”, muito mais, talvez, do que um “indivíduo-fora-do- mundo”, pois em sua proposta de pregar aos homens no mundo ele acaba se tornando uma espécie de “revolucionário espiritual”, um indivíduo que afirma a sua liberdade e vontade de transformar o mundo, ao qual ele renunciou. Na Índia antiga tanto a instituição da renúncia quanto o ascetismo são formas instituídas pela sociedade para aquele que procura o caminho da salvação. É importante notar a diferença entre ver-se o renunciante como “indivíduo-fora-do-mundo” e como “indivíduo extraordinário”, “único”, um “revolucionário espiritual” que quer transformar esta mesma realidade da qual ele se separou. Mais do que uma simples diferença de denominação, talvez permita sublinhar uma das diferenças mais marcantes entre esse individualismo e suas práticas ascéticas em suas origens na Antigüidade Indiana e o individualismo utilitário e suas práticas de bioascese no Ocidente contemporâneo. Enquanto, nos primeiros, as práticas ascéticas forjavam formas de subjetividade que pretendiam fazer oposição ao mundo, transfromando sua relação com a sociedade e com os que nela viviam, no individualismo moderno e pós-moderno as práticas de bioascese se voltam para o culto do corpo e, ao invés de se caracterizarem como práticas de libertação tornaram-se práticas de assujeitamento e disciplinamento. 99 Na Índia, na época dos grandes movimentos heréticos, a ascese e a meditação, cujo sentido é alcançar Moksha ou o Nirvãna – a libertação do ciclo de renascimentos, da roda da vida, do Samsãra –, mais do que uma “negação ou fuga do mundo”, como Weber as denomina, implicam, na verdade, em uma mudança da visão de mundo. Sabemos que Sidhãrta Gautama, o Buddha Shãkyamuni, antes de inaugurar um novo caminho de salvação, o “caminho do meio”, praticou o ascetismo tendo se tornado um Sannyãssin , um asceta errante, realizando durante seis anos as práticas de mortificação.

99 ORTEGA, F. (2002: 3). 66

Chegando à conclusão de que elas não levavam à iluminação, resolveu praticar a meditação sem ascese, no sentido da mortificação do corpo. Esta nova modalidade de ascese, o Budismo, caracteriza-se por ter sido uma das manifestaçãoes anti-brahmânicas mais vigorosas que a Índia já conheceu, uma libertação não só da casta dos Kshatriyas , mas de todas as outras castas da sociedade brahmânica, instituindo reformas em toda a Índia. 100 Em sua época, a oposição dos grandes movimentos denominados heréticos em relação à religião Védica e aos ritos sangrentos do sacrifício caracterizam a idéia de uma revolução espiritual e a busca da transformação da realidade e do pensamento filosófico e religioso indiano. Tendo como ponto de partida o pensamento de Dumont sobre o renunciante é possível fazer este contraste entre a constituição do indivíduo em uma sociedade holista e hierárquica e em uma sociedade individualista e igualitária: enquanto no primeiro tipo de sociedade o indivíduo, para se constituir, renuncia ao seu mundo social e prega aos homens no mundo, propondo uma revolução espiritual e uma transformação do mundo, no segundo tipo o indivíduo se constitui como ser moral, universal, como “indivíduo-dentro-do-mundo” social, alinhado e em conformidade com o seu mundo, possuidor de uma igualdade de direitos e deveres perante os demais. Este é, no Ocidente, o resultado de dezessete séculos de transformação do individualismo dos primeiros cristãos, do “indivíduo-em-relação-com- Deus”, ao individualismo do mundo moderno dessacralizado, dominado pela ideologia do utilitarismo. Dumont enfatiza, no ensino de Marcel Mauss, uma característica essencial do ponto de vista do que acaba de ser dito – a ênfase atribuída à diferença, sob dois aspectos distintos: em primeiro lugar, num aspecto geral, Mauss recusa deter-se, à maneira de Frazer e da primeira escola antropológica inglesa, ao que as sociedades teriam em comum, negligenciando suas diferenças. Sua grande preocupação, o que ele denomina de “fato social total” é, por definição, um “complexo específico” de uma dada sociedade, impossível de se sobrepor a qualquer outro. Em seu ponto de vista não existe fato sociológico que possa ser pensado independentemente, em referência à sociedade global em questão. O segundo aspecto, ainda mais importante, é o de que, entre as diferenças, há uma que domina todas as outras, que é aquela que separa o observador, como portador das idéias e valores da sociedade moderna, daqueles a quem observa. Assim, enfatiza Dumont, na antropologia de Marcel Mauss encontra-se de imediato esse nível radical em que não se pode abstrair do observador. Quando, a propósito do estudo

100 The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion. (1989: 44). 67

da religião, Mauss chama atenção para “quem são as pessoas que crêem nisso”, ele não diz “em relação a nós, que cremos nisto”; é Dumont que acrescenta, apoiando-se em outras numerosas passagens, nas quais Mauss insiste no caráter particular, mais ou menos excepcional, das idéias ocidentais modernas. A força dessa perspectiva consiste em que, em suma, a ela se vincula a tudo o que a antropologia social ou cultural jamais fez de essencial. Ela acarreta, é verdade, com uma complicação garantida, servidões temíveis que explicam, talvez, o fato de não ter se expandido. Mencionando-se apenas duas: os jargões da sociologia institucionalizada são postos fora de circulação e, por outro lado, o universal distancia-se no horizonte: “só se pode falar do ‘espírito humano’ a partir do instante em que duas formas diferentes são incluídas numa mesma fórmula, em que duas ideologias distintas se apresentam como duas variantes de uma ideologia mais ampla.” 101 Quando se coloca esta oposição entre individualismo e holismo, entre estas duas ideologias distintas que se apresentam como variações de uma ideologia mais ampla, pode-se perguntar: por que não pensar estes dois tipos de individualismo como duas variantes dessa ideologia mais ampla, que é, justamente, o holismo? Pode-se fazer a hipótese de que a sociedade holista indiana tenha dado origem a dois tipos de individualismo: o primeiro, configurado pelo que Dumont denomina “indivíduo-fora-do-mundo”, o renunciante indiano, o Sannyãssin , que é preferível denominar de “indivíduo-extraordinário”, “único”, este que renuncia para pregar uma “revolução espiritual” aos homens no mundo, cuja prática de ascese pela automortificação se transforma, com o budismo, na prática de meditação, a “prática contemplativa” do Budismo primitivo, tal como denomina Weber; e o segundo, que se caracteriza como “indivíduo-em-relação-com-Deus”, o renunciante cristão, “onde o valor infinito do indivíduo é, ao mesmo tempo, o aviltamento, a desvalorização do mundo tal como existe: é postulado um dualismo, estabelece-se uma tensão que é constitutiva do cristianismo e atravessará toda a história.” 102 Este é o indivíduo que, após dezessete séculos de tradição judaico-cristã e de individualismo, transformou-se no utilitarista do Ocidente contemporâneo. O primeiro tipo, como sabemos, é responsável pelas grandes inovações religiosas na Índia. São os grandes movimentos heréticos da Índia Brahmânica e, entre esses hereges indianos, o Buddha Shãkyamuni será aquele que funda uma nova linhagem, abre um novo caminho de salvação. O budismo, por suas características de ser um movimento conduzido por monges errantes, completamente desapegados de qualquer tipo de estruturação fixa e rígida, sempre conseguiu sobreviver às perseguições e obstáculos que encontrou para difusão

101 Apud DUMONT, L. (1985: 14). 102 DUMONT, L. (1985: 43). 68

da mensagem do Buddha Shãkyamuni. Com isso, tornou-se a tradição indiana que acabou ultrapassando as fronteiras da Índia. O budismo conseguiu permanecer como ensinamento vivo e chegar à contemporaneidade ocidental moderna dois mil e quinhentos anos depois do Buddha ter alcançado a iluminação, na Índia. O segundo tipo de individualismo é aquele que se organiza a partir dos primeiros renunciantes cristãos, no início da era cristã, no ocidente: o “indivíduo-em-relação-com- Deus”, que após alguns séculos será pouco a pouco transformado, com a reforma de Calvino e Lutero, na ascese no mundo:

“O puritano queria trabalhar por vocação, nós somos obrigados a faze-lo. Pois quando o ascetismo foi levado das células monásticas para a vida diária e começou a dominar a moralidade terrena, ele cumpriu sua parte na construção do enorme cosmo da ordem econômica moderna e técnica ligada à produção em série através da máquina, que atualmente determina de maneira violenta o estilo de vida de todo indivíduo nascido sob esse sistema (...) e, quem sabe, o determinará até que a última tonelada de combustível tiver sido gasta. De acordo com a opinião de Baxter, preocupações pelos bens materiais somente poderiam vestir os ombros do santo como um tênue manto, do qual a toda hora se pudesse despir. O destino iria fazer com que o manto se transformasse numa prisão de ferro.” 103

Após dezessete séculos de história cristã o individualismo dos primeiros renunciantes cristãos se transforma na ideologia individualista utilitária de uma sociedade ocidental pós- moderna secularizada, na qual o indivíduo passa a ocupar um lugar de valor supremo e as práticas de ascese intramundana desembocam nas práticas contemporâneas da bioascese. Já o eu budista conseguiu se manter como expressão deste individualismo indiano, oriundo de uma sociedade holista e hierárquica, sem ter sofrido, pelo menos até o momento, transformações que tivessem alterado radicalmente seu caráter originário, o que evidentemente não aconteceu com o individualismo dos primeiros cristãos, do “indivíduo-em-relação-com-Deus”, que foi transformado pela ideologia do individualismo moderno e pós-moderno. De certa forma, o despertar do “budismo ocidental” no século vinte e um promove um encontro entre estes dois tipos de individualismo. Não seria esta versão do eu budista um elemento importante para a construção de uma ponte entre ocidente e oriente? Entre uma sociedade igualitária e uma

103 WEBER, M. (1999: 130-131). 69

sociedade hierárquica? Partindo da oposição entre estes dois tipos de individualismo, e ao contrário do que supõe Zizek, de que o budismo ocidental seja um complemento ideológico ao capitalismo, não caberia ao “budismo ocidental”, assim como Freud pensou ter trazido a peste junto com a psicanálise para os Estados Unidos no século vinte, trazer a peste junto com o budismo para o ocidente? Como foi que, a partir deste tipo de individualismo indiano, originado das práticas de ascetismo místico-religioso, surgiu o indivíduo como complemento de uma sociedade holista, esta forma de subjetividade, cuja elaboração social se configura no que se denomina, para efeitos de estudo, “eu ascético”. Não se pode esquecer que este “eu ascético”, se refere a um determinado tipo de construção ideológica através da qual foram apropriados os indivíduos empíricos 104 no interior das práticas ascéticas, e não a uma categoria abstratata do pensamento filosófico e religioso indiano. No entanto, embora este “eu ascético” não goze do status de uma categoria conceitual de eu, ainda assim é próprio desta elaboração ideológica apresentar as características do que, posteriormente, será construído como o conceito do eu – um conceito que, por sua onipresença nas distintas culturas, traz a marca registrada de uma universalidade e, paradoxalmente, faz com que este conceito se coloque numa dupla vertente: não pode deixar de portar, ao mesmo tempo, a sua singularidade. Foucault estuda a história da subjetividade através de uma “genealogia da ascese, uma história das diferentes manifestações do fenômeno ascético, das formas de subjetivação e das práticas de si que a garantem.” 105 Em seu estudo mostra o crescimento, no mundo helenístico e romano, de um individualismo que abria um espaço cada vez maior para os aspectos “privados” da existência, para os valores da conduta pessoal e, por fim, para o interesse que tem por si mesmo. Todavia, ao levantar esta hipótese, o próprio Foucault começa por problematizar esse individualismo, do qual, em seu entender, se lança mão com tanta freqüência para explicar, em épocas diferentes, fenômenos bem diversos. O primeiro ponto por ele levantado é que, sob tal categoria, misturam-se, muitas vezes, realidades absolutamente distintas. Assim, chama atenção para três elementos: o primeiro é a atitude individualista, caracterizada pelo valor absoluto que se atribui ao indivíduo em sua singularidade e pelo grau de independência que lhe é atribuído em relação ao grupo ao qual pertence ou às instituições das quais depende (facilmente se identifica a presença deste tipo de individualismo em relação ao renunciante indiano); a segunda é a valorização da vida privada, ou seja, a importância reconhecida às relações familiares, às formas de atividade doméstica e

104 DA MATTA, R. (1979: 171-172). 105 ORTEGA, F. (2002: 2). 70

ao campo dos interesses patrimoniais; a terceira diz respeito, finalmente, à intensidade das relações consigo mesmo, isto é, das formas nas quais o indivíduo é chamado a tomar a si próprio como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se, corrigir-se, purificar-se e promover a própria salvação. 106 É claro que tais atitudes podem mostrar-se ligadas de alguma maneira mas, finalmente, pode-se encontrar sociedades ou grupos nos quais, apesar desta relação do indivíduo consigo mesmo ter sido intensificada e desenvolvida, não se reforçam, necessariamente, os valores do individualismo ou da vida privada; segundo Foucault, o movimento ascético cristão dos primeiros séculos apresentou-se como uma acentuação extremamente forte das relações de si para consigo, mas sob a forma de uma desqualificação dos valores da vida privada; ao tomar a forma do cenobitismo 107 , manifestou uma recusa explícita daquilo que podia haver de individualismo da anacorese. Não resta dúvida de que nesse momento, observa Foucault, ainda se está longe de uma experiência dos prazeres sexuais, em que estes serão associados ao mal, em que o comportamento deverá se submeter à forma universal da lei e em que a decifração do desejo será uma condição indispensável para aceder a uma existência purificada:

“Entretanto, já se pode ver de que maneira a questão do mal começa a trabalhar o antigo tema da força, de que maneira a questão da lei começa a desviar o tema da arte e da techné, de que maneira a questão da verdade e o princípio do conhecimento de si desenvolvem-se nas práticas da ascese. Convém, entretanto, pesquisar preliminarmente, em que contexto e por quais razões a cultura de si desenvolve-se desse modo e precisamente sob essa forma que acabamos de ver.” 108

Uma possibilidade desse desenvolvimento parece ser possível a partir da análise do ascetismo como fenômeno geral existente em todas as culturas; o que foi visto, que foi denominado por Harpham de “imperativo ascético”, só é compreensível nas formas, motivos, contextos e comportamentos específicos nos quais a conduta ascética aparece. Segundo Ortega, Foucault se aproxima dessa noção quando define a “prática de si” como os “esquemas

106 FOUCAULT, M. História da Sexualidade, 3 : o cuidado de si . Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque; revisão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de janeiro: Edições Graal, 1985, pp. 48. 107 “Cenobitismo” quer dizer “vida monástica”. In BUARQUE DE HOLLANDA, A. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa . São Paulo, Editora Civilização Brasileira S.A., 11 a.ed.1969, p. 262. 108 FOUCAULT, M. (1985: 72-73). 71

que o indivíduo encontra na sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos e impostos pela sua cultura, sua sociedade e seu grupo social.” 109 Não há dúvidas de que tanto a noção de indivíduo quanto de pessoa são fundamentais na análise sociológica. Mesmo descobrindo em Dumont110 que a sociologia é uma disciplina, produto de uma formação social onde o indivíduo – junto com as noções correspondentes de individualismo e igualitarismo – é dominante como categoria e unidade filosófica, jurídica, política, social, econômica e religiosa, ainda assim esta categoria de indivíduo tem sido projetada para fora do sistema ocidental, servindo para exprimir realidades onde ela só teria existência “empírica” ou natural, sua existência como fato social sendo dada apenas em situações especiais. No Oriente, porém, como vimos com Dumont, aparece um outro tipo de subjetividade individualizada, cujo valor absoluto está relacionado ao caráter do “indivíduo extraordinário”, “único”, e da sua absoluta independência em relação ao grupo social. Assim, estamos diante de um tipo de individualismo que, ao contrário do individualismo ocidental, conduziu a uma singularização máxima do indivíduo na Índia, e não à sua uniformidade em relação aos outros. Este tipo de individualismo que surge como complemento de uma sociedade holista e hierárquica caminha no sentido oposto ao que encontramos em nossa sociedade ocidental moderna pois, no ocidente, como vimos, esta questão do indivíduo aponta primeiro para fazer deste indivíduo um ser moral, ou seja, para a “sacralização do ser humano”. Mas esta sacralização do ser humano ocorre no contexto de um individualismo já comprometido com uma ideologia individualista, de acordo com a qual todo indivíduo deve, além de se constituir como ser moral, tornar-se independente, dotado de autonomia, porém sem esquecer que, enquanto sujeito moral, deve permanecer em tudo igual a todos os demais. Assim, vemos que, no indivíduo moderno, a ênfase não recai na singularização mas, muito pelo contrário, na uniformização. Uma uniformidade que deve estar em conformidade com os outros indivíduos e em sua relação com o grupo. Desta forma, preserva-se uma universalidade, tomada aqui em

109 Apud “L’ éthique du souci de soi comme pratique de la liberté”. Dits et écrits (abreviado DE ), Paris, Gallimard, 1994, IV, p. 719. Para Foucault toda conduta moral, a maneira como o indivíduo se constitui como sujeito moral de suas ações, concernem a quatro aspectos principais: a substância ética, o modo de sujeição, a ascese e a teleologia. Ver ”L’Usage des plaisirs” (abreviado UP ), Paris, Gallimard, 1984, pp. 35-6; “À propos de la génealogie de l’ éthique: um aperçu du travail em cours”, DE , IV, pp. 383ss. O elemento ascético está presente em toda conduta moral, é um fenômeno geral existente em toda relação ética, que, no entanto, só é compreensível no contexto particular em que se apresenta. In ORTEGA, F. (2002: 2). 110 Apud DA MATTA, R. (1979: 170-175). Como tem feito DUMONT. In “The Modern Conception of the Individual , in Contributions to Indian Sociology, 1965, Vol. VIII; Homo Hierarquicus : The Caste System and its Implications . Chicago, The University of Chicago Press, 1970; Religion, Politics and History in India . Mouton & Co, 1970; From Mandeville to Marx: The Genesis and Triumph of Economic Ideology . Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1977. 72

seu caráter hegemônico, e não como um caso particular entre vários outros possíveis que, estes sim, se tomados em conjunto, poderiam circunscrever um campo do universal. O fato de o individualismo na sociedade indiana não ter conduzido à formação do “sujeito moral” não quer dizer, contudo, que na Índia não houvesse, também, desde o começo, conteúdos éticos que eram incorporados nas elaborações ideológicas dos diferentes indivíduos empíricos. Uma das tradições que nos permite verificar tal acontecimento, por exemplo, é a tradição ascética jainista, uma das mais antigas entre as tradições ascéticas indianas 111 , onde já se procura inculcar uma modelação de virtudes e defeitos no indivíduo. Todavia, estes conteúdos éticos, além de não estarem presentes de forma exclusiva, não conduziram a uma uniformização dos indivíduos enquanto sujeitos morais, porque a sociedade indiana, sendo uma sociedade holista, hierarquizante, não está apoiada nos pressupostos de igualdade e liberdade entre os seus membros como a sociedade ocidental moderna e individualista.

2.2 Interesse pelas raízes antigas, pré-arianas, em Mircea Eliade

“Nós, ocidentais modernos, finalmente estamos preparados para buscar e ouvir a voz que a Índia ouviu. Mas, como o filhote de tigre, não devemos ouvi-la do instrutor e sim do nosso próprio coração. O cristianismo atual, como os deuses revelados do penteão védico no período de deflação, tem sido depreciado. O cristão – diz Nietzsche – é um homem que se comporta como todos os outros. Nossas profissões de fé já não encontram nenhuma afinidade visível com nossa conduta pública ou com nossas esperanças mais íntimas. Em muito de nós, os sacramentos não operam sua transformação espiritual; estamos abandonados e sem saber a quem recorrer. Entrementes,

111 Segundo Zimmer, estes sistemas heterodoxos representam o pensamento dos povos não-arianos da Índia que, mesmo tendo sido dominados e desprezados pelos brâhmanes, podiam se vangloriar de possuirem tradições próprias de extrema sutileza. Esse autor sustenta a tese, em contraste com a opinião da maioria das autoridades ocidentais, de que o Jainismo representa o mais antigo dos grupos não-arianos. A maioria dos autores ocidentais, por adotarem um ponto de vista estritamente histórico, que não leva em conta os aspectos mitológicos e legendários, consideram Mahãvira, contemporâneo de Buddha, o fundador histórico dessa doutrina. Zimmer, por tomar partido pela tradição indiana Jaina, em oposição a esses pensadores, afirma que o fundador histórico do jainismo, na verdade, é o último de uma longa série de mestres da doutrina Jaina – o vigésimo quarto Tirthankara jaina . Desse modo, podemos tomar como plausível – afirma o autor – a crença jainista de que sua religião remonta a uma antiguidade longínqua, pré-ariana, do assim denominado período dravídico, dramaticamente esclarecido em tempos recentes, como já foi dito, com a descoberta de uma série de grandes cidades da época neolítica, situadas no Vale do Indo, e que datam do terceiro ou quarto milênio antes de Cristo. In ZIMMER, H. (1951, 1986: 203). 73

nossas filosofias acadêmicas e seculares importam-se mais com a informação que com a transformação redentora exigida por nossas almas. E esta é a razão pela qual uma olhadela na face da Índia pode nos ajudar a descobrir e recuperar algo de nós mesmos” 112

A hipótese de Dumont de que o individualismo como complemento em uma sociedade holista, como a sociedade indiana, tenha se originado a partir da figura do asceta indiano, do renunciante, do Sannyãssin, volta o interesse de pesquisa para as raízes antigas, pré-arianas, da civilização indiana, à semelhança do que fizeram outros autores, entre os quais, Eliade, Campbell e Mourre 113 ; este último chega a afirmar que a chave do segredo da Índia está guardada em sua pré-história. A preocupação com as migrações pré-históricas para o continente indiano, no entanto, é um fato relativamente recente na história das religiões. Por isso, até o início do século passado poucos estudiosos da Índia sonhavam em colocar em questão a seguinte tese tradicional:

“A Índia sagrada não começou senão com a invasão ariana, por volta de um milênio e meio antes de Cristo; as populações indianas anteriores eram todas selvagens, salvo alguns elementos inteligentes que tinham sabido assimilar as crenças dos vencedores.” 114

Não restam dúvidas de que esta perspectiva, adotada pelos indianistas ocidentais, provavelmente estava baseada na ignorância de um período por demais significativo da história da tradição religiosa indiana. 115 Assim, na opinião de Mourre, além de não ter sido levado em consideração este conhecimento, tal pensamento apenas favorecia a elite sacerdotal

112 ZIMMER, H. (1951, 1986: 23-24). 113 MOURRE, M. Les Religions et Les Philosophies D’Asie . Éditions de La Table Ronde, Paris, 1961, 1998, p. 60. 114 Idem, ibidem. 115 Período este que foi trazido à luz, no início do século passado, por escavações arqueológicas. Segundo Mourre, essa civilização pode ser situada historicamente entre 3250 e 2750 a.C. Já Eliade situa o seu apogeu entre 2500 ou 2000 antes de Cristo. Descobertas arqueológicas ainda mais recentes, no início do século XXI, revelam vestígios de uma civilização que existiu há 9500 anos. Foram encontrados no Mar da Arábia, ao longo da costa oeste da Índia. A descoberta, feita por arqueólogos indianos, sugere que as primeiras cidades surgiram 4000 anos antes do que se supunha. Imagens do local indicam a presença de estruturas simétricas que lembram os prédios da antiga civilização Harappan . Se comprovada, esta seria a primeira vez que se encontram estruturas tão antigas feitas pelo homem. Até agora, os arqueólogos acreditavam que as primeiras cidades teriam aparecido há cerca de 5500 anos (3500 a.C), na Suméria, atual Iraque. As mais antigas civilizações de que se tinha registro na Índia eram as de Harappan e de Mohenjodaro, que datam de 2500 a.C. In Jornal Globo, 17 de janeiro de 2002, p. 33. 74

e política da Índia, por si mesma já bastante orgulhosa de descender dos conquistadores indo- europeus, encontrando neste tipo de afirmação uma razão a mais para manter o antigo sistema de varnas 116 . Essa ignorância foi finalmente dissipada quando, no início do século vinte, através de escavações arqueológicas, foram descobertos os vestígios de uma civilização antiqüíssima, as cidades de Mohenjo-Daro e Harapa, do vale do Indo 117 . Entre os utensílios e objetos encontrados havia algumas centenas de sinetes, cujas formas lembravam mais a arte sumério-arcadiana do que poderia lembrar a arte indiana ulterior. Tal evidência demonstra, então, uma relação entre Mohenjo-Daro e o mundo contemporâneo do Oriente-Próximo, na antigüidade da Índia proto-histórica. Mohenjo-Daro, no entanto, guardava uma personalidade própria. Os traços que a aproximam de outras civilizações não indicam forçosamente uma influência direta; eles definem, apenas, uma idade da evolução humana. Segundo Glasenapp, Mohenjo-Daro nem é filha da Suméria nem é sua mãe, mas talvez uma irmã, quem sabe uma irmã mais velha, oriunda provavelmente de um ancestral comum, um elo independente desta “Civilização Internacional Universal do Terceiro Milênio.” 118 Ainda assim, essa ignorância não foi de todo dissipada; alguns pesquisadores inclusive pretendem ver nessas populações povos Indo-Europeus pertencendo a um ramo mais antigo que os arianos. É no domínio religioso, no entanto, que a contribuição das escavações do Indo mostrou ser ainda mais revolucionária. Ao lado das formas de adoração elementares, culto da árvore e dos animais, Mohenjo-Daro apresenta, efetivamente, os elementos espirituais que subsistem, até os nossos dias, no Hinduismo popular, e cuja origem não é encontrada nos textos sagrados arianos. Essencial à religião de Mohenjo-Daro e de Harapa é a noção de fecundidade que, segundo Mourre, caracteriza este estado agrícola da evolução da espécie humana. Esta noção se manifesta aqui sob dois aspectos principais: primeiro, o culto da Deusa Mãe; segundo, o culto fálico. Desses dois cultos, o segundo guarda um valor particular, porque é ele que fornece as pistas para que se possa tomar como plausível a hipótese de que o ascetismo é, muito provavelmente, uma tradição autóctone da Índia aborígene. Mourre

116 Freqüentemente, a palavra varnas é traduzida por castas, mas preferimos, na maior parte das vezes, manter a sua forma original, para evitar qualquer conotação pejorativa ou desqualificadora. 117 Essas cidades, localizadas às margens do Indo, por volta de um período entre 3250 e 2750 a.C, revelaram testemunhos de um urbanismo avançado, como por exemplo: amplas avenidas, vastos edifícios, elevados construídos sobre plataformas, pequenas cidades, estabelecimentos de banhos e sistemas de esgoto subterrâneo. Toda essa topografia já era familiar aos arqueólogos — a das grandes cidades que se erguiam no terceiro milênio antes da era cristã, no Egito e na Mesopotâmia, como Harapa e Mohenjo-Daro, em meio a planícies férteis, às margens de rios cujas inundações anuais regiam toda a existência da população. In MOURRE, M. (1961, 1998: 60). 118 MOURRE, M. (1961, 1998: 60). 75

considera, inclusive, que o culto fálico parece mais importante para a evolução futura do Hinduísmo. 119 O culto da Deusa Mãe – Neste culto está a figura de uma deusa, mais ou menos identificada com a Terra, a quem podem ter sido consagrados muitos templos de Mohenjo- Daro. Um tipo de divindade que se encontra completamente ausente entre os Vedas , mas conseguiu sobreviver na piedade indiana, e revive nas Shaktis da Índia clássica. A reencontraremos nas divindades das aldeias, as quais recebem, dos camponeses de nossos dias, as honras devidas às dispensadoras de vida e da fertilidade. O culto fálico – Em Harapa e Mohenjo-Daro foram encontrados numerosos objetos fálicos, como cones e grandes anéis de pedra, que lembram a Linga e o Yoni , símbolos sexuais, masculino e feminino, do Shivaismo. Shiva , uma das grandes forças da religião indiana, o deus multiforme, está principalmente associado às idéias de geração e fecundidade e, como sua Shakti , não aparece nos Vedas arianos. Mourre questiona se esta divindade não terá sido, em sua origem, uma divindade autóctone indiana. 120 Sabemos que Shiva é a terceira divindade na trindade Hindu – Brahmã , Vishnu e Shiva –, na qual Shiva funciona como o deus da dissolução e destruição; como o destruidor de Ãvidya , ignorância, que necessita ser superada – simbolismo que se encontra novamente no budismo, no qual é o primeiro “Elo da Cadeia dos Doze Elos da Originação Dependente” da Roda da Vida. Na tradição pré-ariana, esta deidade é rica em encorajamento e em graça; seu símbolo é a linga , e encontra-se freqüentemente representado em união com sua esposa, Shakti , cujo símbolo é o yoni. 121 O fato é que as descobertas do Indo aportaram a prova de que certos tipos de divindades, que até então eram atribuídas ao fundo ariano, na verdade já eram conhecidas a mais de mil anos, muito antes da invasão que jogaria um papel tão decisivo sobre os destinos da Índia. 122 Hoje é indubitável que muito antes da chegada dos arianos na Índia uma antiga civilização já se estendia por todo o vasto território do vale do Indo. Na opinião de Wheeler, um dos seus últimos arqueólogos, é preciso reconhecer a dimensão exata da importância que esta civilização teve naquele período: “esta civilização do Indo exemplifica o mais vasto

119 MOURRE, M. (1961, 1998: 61). 120 MOURRE, M. (1961, 1998: 61). 121 O nome de Shiva não aparece nos Vedas. Nesses textos, Rudra é o nome da mesma divindade , e Shiva , junto com Rudra, sua manifestação, desenvolvida a partir de sua forma. No Rgveda , a palavra Rudra é usada para Agni ; seus filhos são os Maruts . No Rãmãyana, Shiva é um grande deus, porém mais no sentido de um deus pessoal do que de uma divindade suprema. No Mahãbhãrata , Vishnu é o maior de todos os tempos ; em outros lugares Shiva é novamente o Grande Senhor e criador de Brahmã e Vishnu , e é adorado por todos os deuses. Mais tarde, Shiva se tornou Mahãdeva, o grande deus, o destruidor da ignorância e Senhor dos Yogins . In The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion . (1989: 325). 122 MOURRE, M.(1961, 1998: 60-61). 76

experimento político antes do advento do Império Romano.” 123 A descoberta, nessas escavações em Mohenjo-Daro, de um modelo iconográfico que pode ser considerado como a primeira representação plástica de um yogin é um dos acontecimentos mais importantes para o esclarecimento das origens da presença do ascetismo na religião indiana, desde a sua proto- história, e, portanto, anterior ao ascetismo da antigüidade greco-latina. Segundo Eliade, o próprio grande deus, que parece ser um possível protótipo de Shiva , é representado na postura especificamente de yoga e foi descrito por Marshall nos seguintes termos:

“O Deus que tem três faces, senta-se sobre um trono indiano baixo em atitude característica de yoga com as pernas cruzadas, calcanhar contra calcanhar e artelhos para baixo [...]. Sobre o tórax, um peitoral triangular ou talvez uma série de colares [...]. O falo está descoberto (urdhvamedhra), mas o que parece falo poderia ser, na realidade, a ponta de um cinto. Um par de grandes chifres coroa a sua cabeça. De cada lado do deus acham-se quatro animais; um elefante e um tigre à sua direita, um rinoceronte e um búfalo à sua esquerda. Atrás do trono há dois cervos...” 124

Segundo Zimmer, embora esta descrição de Marshall tenha tido, por um lado, a ousadia de reconhecer neste modelo iconográfico a primeira representação plástica de um yogin , por outro não parece levar em conta que o falo é um dos mais notáveis símbolos religiosos do vale do Indo, sendo até hoje o objeto mais comum, representativo da energia masculina do universo nos santuários hindus, simbolizando justamente o deus Shiva. 125 Segundo Campbell, os sinetes do Vale do Indo indicariam, neste caso, uma assimilação da tradição iogue à ordem mítica da antiga Idade do Bronze, quando alcançou o Vale do Indo. 126 Este autor apresenta a yoga como um terceiro elemento dentro deste complexo mítico indiano, definindo-a da seguinte maneira:

“Já comparamos dois elementos do complexo mítico indiano: o do antigo Vale do Indo, no qual o touro era o principal animal simbólico e onde se encontram os antecedentes das figuras tanto de Shiva quanto da Grande Deusa, e o sistema dos Vedas, onde o lugar de honra passou para o leão –

123 WHEELER, M. Early Índia and Pakistan . Frederik A. Paeger, Nova Iorque, 1959, p. 98. In CAMPBELL, J. (1962, 1994: 129). 124 ELIADE, M. Yoga: imortalidade e liberdade. Tradução Teresa de Barros Veloso; transliteração sânscrita por Lia Diskin. São Paulo. Palas Athena, 1972, 1996, pp. 291. 125 ZIMMER, H. (1951, 1986: 203). 77

que devora o touro, como o guerreiro bebe soma e o sol consome a luz da lua. Temos agora que considerar um terceiro elemento: a yoga, que, em termos de nosso estudo, pode ser definida como uma técnica para induzir à identificação mítica.” 127

Segundo Campbell, este aparecimento de figuras em postura clássica de yogin nos sinetes do Vale do Indo sugere uma relação do sistema com a antiga mitologia do ritual regicida da Idade do Bronze. Nesta mitologia o rei se identificava com a lua morta e ressuscitada. Em séculos posteriores, quando se encontra uma ligação do pensamento iogue com Shiva e a Deusa, e com a idéia de um ciclo que se repete eternamente – o mito do eterno retorno 128 –, tais associações tendem a confirmar este indício. Com relação ao sistema Indo, o termo último de identificação teria sido o deus lunar morrendo constantemente, “objeto” do destino, o sacrifício (o Rei Soma sacrificado), enquanto no sistema Ária, pelo contrário, o termo último de identificação era o “sujeito” do destino, o poder flamejante pelo qual o sacrifício era consumado. Identificado com o primeiro, o iogue ou devoto morre e retorna à maneira de fumaça, continuando no circuito, ao passo que o identificado com o último passa para a esfera da eternidade pela via da identificação mítica com o deus-sol que tudo consome,

126 Por volta de 2500 anos a.C. 127 CAMPBELL, J. As Máscaras de Deus. Mitologia Oriental . Tradução de Carmen Fisher. São Paulo. Palas Athena, 1962, 1994, p.168. 128 A doutrina segundo a qual o universo nasce e perece numa sucessão cíclica tem muitos antigos precedentes. Um deles se encontra no hinduismo, que influiu a este respeito sobre o budismo. Neste se fala em Kalpas , isto é, períodos que vão desde o nascimento até a destruição de um mundo. A duração de cada é indeterminada, porém se supõe muito grande – vários milhões de anos. O nascimento do mundo se realiza por condensação extrema; o seu final, por uma conflagração. O número de Kalpas é infinito, de modo que o processo cíclico é eterno. Sabemos que a doutrina do eterno retorno, ou sucessão cíclica, foi defendida também por muitos pensadores gregos: era comum entre eles considerar cada ciclo como um “Grande Ano”. A doutrina também estava presente em Heráclito, segundo o qual o mundo surge do fogo e retorna ao fogo, segundo ciclos fixos e por toda a eternidade. Estava presente em muitos pitagóricos e, em particular, entre os estóicos, que tomaram em parte sua cosmologia de Heráclito. O fundamento filosófico dessa doutrina reconhece, em parte, o movimento, e o limita a uma lei, ou melhor: a uma “medida”. As causas empíricas que promoveram sua adoção são, provavelmente, a observação do caráter cíclico de muitos processos naturais. Vários pensadores medievais, especialmente os árabes, expressaram idéias semelhantes. Assim, Alkindi, Avicena e Averroes admitiram o reaparecimento periódico dos acontecimentos, a evolução circular do mundo único, regido pela revolução eterna dos astros. Os autores cristãos não podiam admitir, por outro lado, a idéia de um eterno retorno: “o que passa” não volta a passar, porque é história, e até “drama”. Somente em alguns casos se concebeu o “devir” como um modo de retornar: o retorno à unidade primeira. Na época contemporânea, Nietzsche formulou a doutrina do eterno retorno, ao supor ou imaginar que num mundo com átomos indestrutíveis e finitos, as infinitas combinações dos mesmos, na eternidade do tempo, dariam um número infinito de mundos, entre os quais estaria compreendido um número infinito de momentos iguais. Logo, o homem há de viver um número infinito de vidas. Nietzsche denomina a esta doutrina “uma profecia” e exige, para se chegar a ela, “libertar-se da moral”. Nietzsche afirma que não se trata de um mecanismo, já que este acarreta um estado final e não uma infinita recorrência de casos idênticos. Por outro lado, a doutrina do eterno retorno parece ter, assim mesmo, e na opinião de alguns intérpretes sobretudo, um sentido “ético”, respondendo ao desejo que tinha Nietzsche de reconciliar o homem criador com o amor ao destino, amor fati . In Ferrater Mora, J. Dicionário de Filosofia , Madrid, Alianza Editorial, 1988, pp. 1055-1057. 78

com o deus-raio ou com o deus-fogo ou ainda com uma abstração como brahman , o sujeito puro – Ãtman – ou, conforme o budismo, a vacuidade.129 Com o deus Soma o sacrifício é apresentado como uma outra figura védica apropriada para se adaptar à idéia de um si-próprio que se verte em todas as coisas. Entretanto, em sua fragmentação é conduzido a ser consumido por Agni, no fogo do altar. Por analogia, quando o alimento é comido o fogo do estômago o digere; este fogo também é Agni, e o alimento é Soma, pois Agni o consome tanto na pira funerária quanto nos vermes. Deste modo, todo o mundo é um eterno sacrifício Soma: imortalidade incessantemente derramada no fogo do tempo. Segundo Campbell, o Buddha Shãkyamuni teria dito em seu famoso Sermão do Fogo:

“Todas as coisas, ó sacerdotes, estão acesas. [...] E com que estão ardendo? Com o fogo da paixão, digo eu, o fogo do ódio, da enfatuação, do nascimento, da velhice, da morte, do sofrimento, da lamentação, da miséria, da aflição e do desespero. [...] E percebendo isso, ó sacerdotes, o nobre e iniciado díscipulo o rejeita.” 130

Mas não era esse o espírito da visão védico-upanishádica das chamas dançantes. Assim, cita Campbell:

“Ó, maravilhoso! Ó, maravilhoso! Ó, maravilhoso! Sou alimento! Sou alimento! Sou alimento! Sou um comedor (de alimento)! Sou um comedor (de alimento)! Sou um comedor (de alimento)! Sou um fazedor de fama! Sou um fazedor de fama! Sou um fazedor de fama! Sou o primogênito da ordem do mundo (rta), Anterior aos deuses, no umbigo da imortalidade! Aquele que me oferece, na verdade me ajudou! Eu, que sou alimento, como o comedor de alimento! Eu conquistei o mundo inteiro! Aquele que sabe disso, tem uma luz fulgurante. Assim é o Upanishad místico.” 131

129 CAMPBELL, J. (1962, 1994: 169). 130 Apud Mahã-Vagga 1.21.1-2 in CAMPBELL, J. (1962, 1994: 171). 79

Neste momento o texto de Campbell aponta para o grande tema e problema do quarto elemento da visão indiana mítica da vida: os sábios da floresta do período do Buddha Shãkyamuni que rejeitam com aversão tudo o que fora afirmado anteriormente, mesmo o milagre daquela divindade do ser imaterial-transcendente que havia sido a glória da visão védica tardia. Com o Budismo, de alguma maneira esta “identificação mítica” ainda permanece, mas, em sua identificação com uma esfera absoluta, o budista só encontra o vazio, o “vazio do eu”. Contudo, a definição apresentada por Campbell, da yoga como uma técnica para induzir à “identificação mítica”, de alguma forma está presente na significação desta palavra. O termo Yoga 132 é um termo indiano derivado da raiz verbal sânscrita yuj , cujo sentido dado pelo uso pode ser relacionado aos verbos “ligar”, “juntar” ou “unir”, etimologicamente também relacionado com “emparelhar” (por exemplo, emparelhar uma canga de bois). A vinculação com o verbo “ligar” conduziu, de certa forma, a uma analogia com a palavra “religião”, do latim re-ligio – ligar de volta ou atar. Porém, a idéia do estabelecimento de uma ligação, presente em ambos os termos, na verdade apresenta sentidos completamente diferentes entre si. Enquanto pela religião o homem, a criatura, é ligada de volta a Deus, na yoga o que ocorre é uma vinculação psicológica da mente com o princípio superior, “pelo qual a mente conhece.” 133 É esta ligação que se prefere denominar não de “identificação mítica”, como em Campbell, mas de uma “identificação mística”, como em Otto 134 , para marcar a vinculação com um princípio superior, seja ele qual for – uma figura mítica, o Cosmo, a consciência cósmica, o Absoluto –, que compreendemos como circunscrevendo a esfera do Sagrado, esta esfera mítica, presente desde os primórdios da civilização indiana. É através desta “identificação mística” que se tornou possível estabelecer, no pensamento indiano, uma relação entre esta categoria do eu, que será construída no interior das práticas ascéticas, e a questão da sacralização desta categoria, que conhece seu ápice no período dos Upanishads pós-Védicos, por meio da construção da identidade Ãtman-Brahman , momento no qual, finalmente, esta tradição pré-ariana será integrada pelos brâhmanes. Tal integração favorece a incorporação do conceito do Ãhimsa, da não-violência, oriundo das tradições pré- arianas, pela tradição ariana dos upanishads pós-védicos, época que coincide com o declínio das práticas sangrentas do ritual do sacrifício.

131 Apud TAITTIRIYA UPANISHAD 3.10.6. Segundo Hume, in CAMPBELL, J. (1962, 1994: 172, 293). 132 Verificar sentido ao final, no Glossário. 133 KENA UPANISAD 1. In CAMPBELL, J. (1962, 1994: 21). 134 OTTO, R. Lo Santo. Lo Racional y lo irracional em la idea de Diós . Título Original: “Das Heiligie” . Tradutor: Fernado Vela. Alianza Editorial, S. A, Madrid, 1980, 1991, p. 34. 80

Na questão da diferença entre o uso da palavra yoga e da palavra religião, apesar da analogia que pode ser feita entre ambas, encontrase a seguinte diferença: se na religião, religio , esta vinculação é historicamente condicionada por meio de uma aliança, sacramento ou livro sagrado, na yoga o que é unido é, finalmente, o si-próprio consigo mesmo – a consciência individual com uma consciência cósmica –, pois o que parece, por meio de mãyã ser dois, na realidade não o é, ao passo que na religião o que é unido não é, por princípio, a mesma coisa – Deus e o homem. 135 Esta ênfase do aspecto psicológico de uma ligação do eu consigo mesmo através das práticas ascéticas é constitutiva da forma de subjetividade que denominamos de “eu ascético” na Índia Antiga. As práticas do yoga , da ascese e da meditação podem ser caracterizadas como uma das primeiras modalidades de intensificação da relação consigo mesmo, do cuidado de si, conhecida e, logicamente, como já vimos, anterior ao seu surgimento no mundo helenístico e romano. Só que, ao invés de conduzir cada vez mais a uma intensificação do conhecimento de si, como constitutivo do sujeito e de suas ações, como ocorreu no ocidente, no oriente as práticas ascéticas caminham em direção a uma busca de transformação da consciência, de sua ampliação em uma consciência cósmica, desembocando nas práticas contemplativas da meditação budista, que busca uma sintonização não apenas consigo mesmo, mas com todos os seres, conduzindo a uma sacralização de todo o cosmo, de todo o universo. Diferente do Humanismo ocidental, no qual o centro ético é ocupado pelo sujeito do conhecimento – o ser humano –, no oriente as práticas ascéticas culminam em um Holismo, onde há um descentramento, já que este centro é deslocado para toda a natureza, todos os animais, todo o cosmo, toda uma Consciência Cósmica. Nesse sentido entende-se que o budismo realiza uma espécie de descentramento da sacralização do eu, o que pode vir a ser um dos aspectos que tornaram esta tradição tão atraente ao olhar ocidental em pleno século vinte e um, pois encontra-se mais próxima da tradição secularizada do ocidente. Sabe-se que nas religiões populares do oriente os deuses continuam a ser adorados como se fossem exteriores a seus devotos, mas o que os sábios celebram é que este deus, ainda que adorado como algo externo, é na realidade um reflexo do mistério do si-próprio. Havia uma crença de que enquanto permanecesse a ilusão do ego também permaneceria a ilusão de uma divindade separada e vice-versa, ou seja, enquanto esta idéia de uma divindade separada for alimentada, uma ilusão do ego, relacionada com ela, seja no amor, no medo, na adoração, na separação e reconciliação também estará presente. Logo, essa ilusão de

135 CAMPBELL, J. (1962, 1994: 21). 81

dualidade é o ardil de mãyã – “Tu és o universo” (“ Tat tvam asi ”136 ) – visto como o primeiro passo na direção da sabedoria. 137 Esta frase é a senha que, quando dita, permitia a passagem através da porta do céu – a lua – e, assim, a libertação dos renascimentos. Da perspectiva de Eliade, quatro conceitos fundamentais nos introduzem, diretamente, no coração da espiritualidade indiana: Karma 138 , Mãyã 139 , Nirvãna 140 e Yoga 141 . Na sua opinião, a partir da perspectiva do pensamento ocidental, desde a época pós-védica a Índia procurou compreender, primeiro, a lei da causalidade universal que solidariza o homem com o cosmo e condena-o a transmigrar indefinidamente – ou seja, a lei do Karma ; em segundo lugar, este processo misterioso que gera e sustenta o cosmo e, desse modo, torna possível o “eterno retorno das existências” – mãyã , a ilusão cósmica, suportada pelo homem durante todo o tempo em que está cego pela ignorância, Ãvidya 142 ; em terceiro lugar, a realidade absoluta “situada” em alguma parte além da ilusão cósmica tecida por mãyã e para além da experiência condicionada pelo Karma , o Ser Puro, o Absoluto, ou qualquer nome que tenha – o si ( Ãtman ), brahman , o incondicionado, o transcendente, o imortal, o indestrutível, o Nirvãna etc; por último, as maneiras para atingir-se o si-próprio, as técnicas adequadas para adquirir a liberação – Moksha 143 , Mukti –, a soma destes meios que constitui propriamente o Yoga .144 Dumont também ressalta a importância de levar-se em conta noções que não apenas marcam a religiosidade Indiana como se encontram presentes na maioria dos movimentos religiosos e das seitas que viram a luz do dia no solo indiano. Dentre elas destaca duas, que em um primeiro plano estarão estreitamente ligadas entre si: Samsãra 145 , denominada por ele “transmigração” ou “curso das existências”, e Karma , o princípio moral que determina nas existências sucessivas a retribuição dos atos. Ele pensa que essas representações estão em relação imediata com a crença de que é possível escapar à cadeia das existências, atingindo-se a liberação – Moksha . A natureza da liberação e os caminhos e as técnicas para se chegar a ela ocupam, afirma Dumont, um lugar especial na especulação filosófica indiana. Em sua opinião, a tradição ascética, não só como via de salvação, mas como orientação geral, como

136 Apud CAMPBELL, J. (1962, 1994: 21). In CHÃNDOGYA UPANISAD, 6.11. 137 CAMPBELL, J. (1962, 1994: 21). 138 Verificar sentido ao final, no glossário. 139 Verificar sentido ao final, no Glossário. 140 Verificar sentido ao final, no Glossário. 141 Verificar sentido ao final, no Glossário. 142 Verificar sentido ao final, no Glossário. 143 Verificar sentido ao final, no Glossário. 144 ELIADE, M. (1972, 1996: 19). 145 Verificar sentido ao final, no Glossário. 82

tendência à negação do mundo, impregna profundamente o pensamento indiano. Nesse sentido, Dumont, como Weber, não vê nas práticas ascéticas dos hereges indianos, entre os quais encontra-se Siddhãrta Gautama, o Buddha Shãkyamuni, uma poderosa vontade de fugir do mundo, mas sim de transformá-lo. Na opinião de Campbell há numerosos sinais que indicam uma relação particularmente próxima com a visão do mundo e o sistema simbólico de ordem clerical do grande Ptá, de maneira que, segundo ele, poder-se-ia argumentar que o desenvolvimento indiano da yoga proveio de Mênfis. Ainda assim, o autor faz uma outra especulação: em vista do fato de que cada linha da literatura yogi evidencie uma profundidade de discernimento psicológico que supera tudo que conhecemos diretamente do Egito, e em vista do fato de não existir evidência arcaica, em nenhuma parte a oeste do Indo, da postura iogue como a das pequenas figuras daqueles sinetes, o autor considera mais sensato supor-se, ainda que de modo experimental, que a yoga seja nativa da Índia. 146 Tal hipótese não é anódina, e tem suas implicações, conduzindo a uma outra hipótese de que a yoga desenvolveu-se a partir de técnicas xamanistas locais para induzir ao transe e à possessão, podendo, nesse sentido, relacionr-se com a noção do Sagrado, aqui presente em sua forma mais primitiva, ou seja, através de um elemento mágico. Pois, segundo Eliade, a produção de “calor interno” (Tapas) pela retenção da respiração é uma técnica amplamente disseminada entre os povos primitivos, via de regra associada ao domínio do fogo, “uma façanha de faquir que deve ser considerada o elemento mais arcaico e mais amplamente disseminado da tradição mágica.” 147 Em sua opinião, a Índia nativa conheceu uma série de tradições imemoráveis sobre os meios de se atingir o calor mágico, o êxtase ou a possessão divina. A presença deste êxtase, este excesso nas práticas ascéticas, foi um dos elementos que possibilitou fazer uma relação com esta forma de subjetividade, constituída em seu interior como tendo inaugurado, neste pensamento, o eu como uma categoria sagrada do espírito humano. É este excesso de significação encontrado no uso da palavra “sagrado” nas línguas antigas que faz o “sentimento de criatura” 148 ser inacessível a uma apreensão puramente conceitual e racional, podendo, de alguma forma, estar relacionado ao êxtase provocado pelo calor mágico, um dos elementos presentes em uma forma primitiva de “identificação mística”, segundo Otto.

146 CAMPBELL, J. (1962, 1994: 168-169). 147 ELIADE, M. (1972, 1996: 99 – 103). 148 OTTO, R. (1980, 1991: 19). 83

2.3 “Sagrado”, “Moral” e “Dependência” em Rudolf Otto

Ao ingressar na instituição da renúncia, o asceta indiano rompe com o papel social que até então lhe havia sido destinado, vai para a floresta e busca encontrar uma resposta para existência no Caminho da Salvação, que foi instituído pela mesma sociedade da qual ele deve, agora, se afastar. Uma primeira pergunta que se pode formular é se é possível dissociar um discurso sobre a religião de um discurso sobre a salvação, isto é, sobre o são, o santo, o sagrado, o salvo, o indene, o imune ( sacer , sanctus , heilig , holy ) e seus supostos equivalentes em grande número de idiomas. 149 É a partir do novo papel social incorporado pelo asceta renunciante, o Sannyãsin, que a subjetividade ascética, denominada eu ascético, pode ser vista como adquirindo essa conotação religiosa, esse status de sagrado. Suzuki é um dos autores que faz referência a este caráter religioso do eu. Em suas palavras:

“A Pessoa, o individuo, o Eu e o Ego – emprego-os nesta palestra como sinônimos. A pessoa é moral ou conativa, o individuo contrasta com qualquer grupo, o ego é psicológico, e o eu, além de moral e psicológico ao mesmo tempo, tem também – uma conotação religiosa.150 ”

Prefere-se aqui denominar esta conotação religiosa ou sagrada do eu de “identificação mística”, que o asceta indiano realiza quando se torna um Sannyãsin . Na Índia, este caráter sagrado do eu, forjado pelas práticas ascéticas, aparece como a categoria conceitual do eu, dentro do pensamento filosófico e religioso dos Upanishads , na configuração da identidade Ãtman-Brahman . Entretanto, para realçar toda a importância e contribuição decisiva deste período proto-histórico da civilização indiana e das práticas ascéticas para a construção deste caráter sagrado que é incorporado pela identidade Ãtman-Brahman – denominada Eu Pré- Budista –, faz-se uma aproximação entre a forma de subjetividade apresentada na figura do “asceta indiano” e a categoria do sagrado, tal como entendida por Rudolf Otto. 151 Esta concepção do sagrado em Otto é sintetizada por Bauman, um autor contemporâneo, da seguinte maneira: primeiro, considera que se trata de uma apresentação rigorosamente fundamentada sobre a impossibilidade de “uma definição racional” da

149 DERRIDA, J. “Fé e Saber. As duas fontes da “religião” nos limites da simples razão”. In A religião: o seminário de Capri . org . Gianni Vattimo e Jacques Derrida; com a participação de Aldo Gargani, Hans Georg Gadamer et al. São Paulo. Estação Liberdade, 2000, pp. 11-12. 150 SUZUKI, D.T., FROMM, E., MARTINO, R. Zen Budismo e Psicanálise . Tradução de Octavio Mendes Cajado. Editora Cultrix, São Paulo, 1960, p. 41. 151 OTTO, R. (1980, 1991). 84

experiência religiosa. O máximo que se consegue é uma aproximação através de descrições, sem, contudo, esquecer-se que não é possível apossar-se de sua complexidade: “como todo dado absolutamente primitivo e elementar, enquanto se admite que seja discutido, não se pode estritamente definir”. As imagens dessa experiência não podem ser “ensinadas”, somente “evocadas”. Otto denomina o que aparece na experiência religiosa de mysterium tremendum : “pode irromper em súbita erupção das profundezas da alma, com espasmos e convulsões, ou levar às mais fortes excitações, ao frenesi inebriado, ao arrebatamento e ao êxtase. Tem suas formas selvagens e demoníacas, e pode cair num quase medonho terror e estremecimento.” 152 De alguma maneira, a subjetividade da elaboração ideológica do eu ascético, na sociedade indiana, pode encontrar-se relacionada com esta categoria – o asceta está para a sociedade indiana assim como o santo está para a sociedade ocidental judaico-cristã. Enquanto o asceta indiano privilegia a floresta, o eremita cristão, em uma forma diferente de ascetismo, privilegia o deserto. Encontram-se em Otto os elementos que permitem pensar este tipo de identificação, denominada por ele de “mística”. Para circunscrever o sentido do termo “sagrado” ele não se limita ao seu uso corrente na língua atual, e procura pesquisar também o uso deste termo tal como era empregado nas línguas antigas – o hebreu, o latim e o grego. Nestas línguas o que encontra é que o sentido da palavra aponta para um excedente de significação, sem implicar, necessariamente, em uma conotação moral (pelo menos não exclusivamente, como é freqüente, atualmente, em seu uso ordinário). Otto percebeu que, caso se procurasse entender por sagrado apenas aquilo que como tal se designa nos diversos usos da língua corrente, seja filosófico, ordinário ou teológico, ficaríamos com uma compreensão limitada desta categoria que, embora seja explicativa e valorativa e tenha nascido quase unicamente da esfera religiosa, mesmo permeando outras – como, por exemplo, a ética –, não procede de nenhuma delas. Tal inferência faz pensar que a questão do sagrado, da “sacralização do ser humano”, talvez possua uma dimensão mais ampla, que talvez seja a própria dimensão da subjetividdade humana, que engloba todas essas esferas, inclusive a que abriga elementos irracionais como parece querer apontar Otto, pois na medida que o sagrado envolve uma categoria complexa, entre seus diversos componentes encontramos um elemento específico, singular, que se subtrai à razão. Tal elemento o faz no sentido de que, não podendo ser apreendido por categorias exclusivamente racionais, não está incluído na categoria de um

152 BAUMAN, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade . Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Revisão técnica de Luis Carlos Fridman. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1998, p. 263. 85

objeto racional 153 . Para Otto, ao contrário, o sagrado inclui um elemento inefável, ou seja, enquanto categoria sua acessibilidade não se dá unicamente através de conceitos (como, em terreno distinto ocorre com o belo). 154 Atualmente, em seu uso corrente, o termo “sagrado” costuma aplicar-se como predicado absoluto moral, que significa a bondade perfeita, a suma bondade. Assim, Kant chama sagrada à vontade que, sem vacilar, obedece à lei moral. 155 , podendo ser denominada “vontade moral perfeita”. Quando se fala da santidade do dever ou da lei, o que está sendo expresso não é outra coisa senão a sua força prática, que é obrigatória para todos. Embora Otto 156 admita que o sentido da palavra está em seu uso nas diversas línguas, ele se apóia no uso que as línguas antigas fizeram desta palavra para apontar algo que, segundo o seu ponto de vista, excede uma pura significação. Para marcar, então, sua posição, ele criou o neologismo “numinoso” (pois se, de “omem”, forma-se “ominoso”, e de “lumen”, “luminoso”, considera lícito fazer de “numem”, “numinoso” 157 ), que se refere ao sentido de sagrado subtraído seu componente moral, e acrescenta menos ainda qualquer outro componente racional. Para Otto, o que ele procura tornar palpável no sentimento vive em todas as religiões como seu pano de fundo, sem o qual não seriam religiões. Porém, observa que se faz presente com vigor mais sublinhado nas religiões semíticas e, entre elas, de modo premente, na bíblica. Recebe, aí, um nome especial – gadosch , que corresponde a hagios e sanctus , e com maior exatidão a sacer . Contudo, nestas três línguas estas palavras compreendem também o bom, o absolutamente bom, no grau mais alto de desenvolvimento e plenitude da idéia. Dessa forma, estas palavras são traduzidas por “sagrado”. Mas, neste caso, “sagrado” não é mais do que o resultado de uma esquematização e o preenchimento de um reflexo sentimental, primeiro e característico, por conteúdos éticos, podendo ser indiferente a

153 Segundo Otto, para a idéia teísta de Deus, particularmente a cristã, é essencial que a divindade seja concebida e designada com rigorosa precisão por predicados tais como espírito, razão, vontade, onipotência, unidade de substância, sabedoria e outros semelhantes, isto é, por predicados que correspondem aos elementos pessoais e racionais que o homem possui em si mesmo, embora de forma mais limitada e restrita. Ao mesmo tempo, todos esses predicados são, na idéia do divino, pensados como absolutos, quer dizer: como perfeitos e supremos. Esses predicados são, todavia, conceitos claros e distintos, acessíveis ao pensamento, à analise e, ainda, à definição. Quando denominamos racional o objeto que pode ser pensado dessa maneira, temos de designar como racional a essência da divindade descrita em tais predicados, e, como religião racional, aquela que os reconhece e afirma. In OTTO, R.(1980, 1991: 11). 154 OTTO, R. (1980, 1991: 9-14). 155 Apud OTTO, R. (1980, 1991: 14). 156 Neste sentido, Otto lembra Wittgenstein, para quem o significado da palavra é dado pelo seu uso; o significado de um signo não é um corpo de significado, uma entidade que determina o seu uso. Um signo não adquire significado por estar associado a um objeto, mas sim por ter um uso governado por regras. In GLOCK, H.J . Dicionário Wittgenstein . Tradução de Helena Martins. Revisão técnica de Luiz Carlos Pereira. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1998, p. 359. 157 “Numinoso”: qualificativo dado, na filosofia da religião, por Rudolf Otto, ao estado religioso da alma inspirado pelas qualidades transcedentais da divindade. In BUARQUE DE HOLLANDA, A. (1969: 855). 86

eles. No início, quando esse elemento específico começa a se desenvolver, todas essas expressões significaram, sem sombra de dúvida, coisa muito distinta de “bom”. Ao tentar circunscrever este neologismo – numinoso –, apela para que o leitor atualize sua memória e procure examinar um momento de forte comoção, a mais exclusivamente religiosa que lhe for possível. Apresenta, então, uma lista de sentimentos que, com menor intensidade, fazem-se presentes em outras esferas, além da religiosa: sentimentos de gratidão, de confiança, de amor, de segurança, de submissão, de resignação, mas considera que nenhum, nem todos juntos, são capazes de expressar os traços próprios da emoção religiosa. Encontra em Schleiermacher um elemento muito notável desta emoção: o “sentimento de absoluta dependência” 158 . Otto prefere denominar este sentimento de “sentimento de criatura”, isto é, o sentimento da criatura que se funde e anula em seu próprio nada e desaparece frente àquele que está por cima de todas as criaturas. O autor prefere, no entanto, sublinhar que esta expressão não pode proporcionar um conhecimento conceitual do indefinível sentimento. Pois este não consiste, unicamente, como poderíamos acreditar, desse componente de anulação frente a qualquer prepotência, senão exclusivamente frente a essa prepotência determinada 159 . Este é o primeiro defeito encontrado por Otto na definição de Schleiermacher; o segundo é que, com ela, só se faz patente uma categoria religiosa da valoração do sujeito por si mesmo, ou melhor dito, desvalorização, se pretende com ela definir o conteúdo próprio do sentimento religioso. A seu juízo, o sentimento religioso seria imediatamente, e desde logo, um “sentimento de mim mesmo”, o sentimento de uma peculiar condição própria do indivíduo, a saber, da sua dependência. Segundo Schleiermacher, somente por conclusão lógica, referindo seu estado a uma causa exterior a si, é que o indivíduo encontra o divino. Em Otto o “sentimento de criatura” é muito mais um momento concomitante, um efeito subjetivo; por dizê-lo assim, a sombra de outro sentimento o qual, desde logo, e de modo imediato, se refere a um objeto fora do indivíduo. Otto denomina este objeto, precisamente, de numinoso. Do seu ponto de vista é um fato de experiência tão claro que, ao empreender uma análise da emoção religiosa, o psicólogo se depara com este acontecimento. Ele cita William James, em seu livro “As variedades da experiência religiosa”, para demonstrar o que ele afirma quase ingenuamente quando se refere aos deuses gregos:

158 OTTO, R. (1980, 1991: 18). 159 O termo “prepotência”, embora traduzido do espanhol, parece ser indicativo de uma potência que só pode ser logicamente anterior. 87

“Não me proponho a examinar como nasceram os deuses gregos. Porém todos os nossos exemplos conduzem à seguinte conclusão: é como se na consciência humana palpitasse a sensação de algo real, um sentimento de algo que existe objetivamente, representação mais profunda e válida que qualquer das sensações isoladas e singulares, pelas quais, segundo a opinião da psicologia contemporânea, se testemunha a realidade.” 160

Otto comenta que James, desde o seu ponto de vista pragmático e empirista, obstruiu a si mesmo o caminho que conduz a reconhecer no espírito a predisposição para certos conhecimentos e a base de certas idéias, tendo que acudir a hipóteses misteriosas para explicar tais fatos. Contudo, era suficientemente realista para admitir, claramente, o próprio fato, e não deixá-lo de lado. Porém, com relação a esse sentimento de realidade, dado primário e imediato; com relação ao sentimento de um algo numinoso, dado objetivamente, é, pois, o sentimento de dependência um efeito subseqüente, uma desestima do sujeito a respeito de si mesmo. Assim, o sentimento de sua absoluta dependência tem como suposto prévio o sentimento – se é lícita a expressão – de sua “absoluta inacessibilidade” (a inacessibilidade do numem). 161 Para Otto, todo misticismo é, em essência, identificação, ainda que realizada em graus distintos – identificação com o transcendente. No caso da Índia, prefere-se dizer “identificação com o absoluto”, porém denomina-se “identificação mística”, tal como encontra-se em Otto. Porém, ele esclarece que a simples identificação não é um fenômeno místico; tem que ser, além disso, uma identificação com esse algo superior em realidade e poder e, além disso, irracional, tal como acabou de demonstrar; ou seja, que o sujeito se valorize sentindo-se como algo que não é verdadeiramente real, que não é essencial ou que é, inclusive, completamente nulo. 162 É nesse sentido que se faz uma aproximação da forma de subjetividade constituída pelas práticas ascéticas indianas, na figura do Sannyãssin , com este lugar do sagrado, pois também o asceta, quando ingressa na instituição da renúncia, necessariamente precisa anular tudo que havia sido (ou não) até então para poder encontrar o Caminho da Salvação. Assim, para diferenciar e caracterizar o tipo de identificação que o asceta realiza quando ingressa na floresta, lugar privilegiado na tradição indiana para esse encontro místico com o absoluto – denomina-se “identificação mística” a esta identificação da consciência individual com uma

160 OTTO, R. (1980, 1991: 20). 161 OTTO, R.(1980, 1991: 20). 88

consciència cósmica, induzida através das práticas de Yoga , em uma forma de subjetividade denominada “eu ascético”. Na Índia, esta apropriação do indivíduo empírico que resultou na elaboração ideológica da subjetividade ascética, o eu ascético, talvez aponte para a questão da “sacralização do ser humano” no oriente, no pensamento Indiano. A categoria básica desta forma de sacralização, denominada “identificação mística”, é um “sentimento de dependência” – que Otto prefere denominar “sentimento de criatura” – frente a uma pré- potência, que lhe é logicamente anterior e, em tudo, superior e inacessível. No contexto indiano, esta pré-potência implica a própia dimensão do sagrado, do absoluto, do ser primordial, de uma dimensão mítica etc. Este tipo de elaboração da “sacralização do ser humano”, na Índia, está em visível contraste com a elaboração ocidental que, como vimos em Mauss, implica necessariamente um sentido moral, o que não aconteceu com o termo “sagrado” no oriente, que possuía um outro uso nas línguas antigas, como vimos em Otto. O uso deste termo, como já mencionado anteriormente, nas línguas antigas aponta mais para a presença de um excesso, que não pode ser alcançado apenas conceitualmente, na medida em que é portador de um elemento irracional. Por isso identificamos, na Índia, o aparecimento desta dimensão do sagrado junto às práticas de Yoga , da ascese (Tapas) de uma forma geral, que são uma maneira de se alcançar o calor mágico, o êxtase, os poderes mágicos ( samãdhi )163 . Além disso, o uso deste termo nas línguas antigas não implica, necessariamente ou exclusivamente, nenhum sentido moral, e é nesta conotação moral do termo no ocidente que encontramos uma significação em tudo oposta ao sentido do sagrado no oriente. Em grego, como já foi visto em Mauss, o termo “pessoa” significava apenas pessoa, tendo sido acrescentado um sentido moral ao sentido jurídico, que irá enriquecer esta noção em romano. Justamente ao sentido moral da pessoa no ocidente são acrescentados os seguintes atributos: consciência, independência, autonomia, liberdade e responsabilidade 164 , atributos que podem ser colocados em contraste com a “sacralização do ser humano” no oriente, o que encontra apoio na visão de Otto.

162 OTTO, R.(1980, 1991: 32-33). 163 A história espiritual da Índia, em que o mago sempre desempenhou um papel, senão o principal, pelo menos um papel importante, mostra-nos que essa opinião generalizada não é totalmente errônea. A Índia jamais pôde esquecer que o homem pode tornar-se, em certas circunstâncias, “homem-deus”. Ela nunca aceitou a atual condição humana, feita de sofrimento, impotência e precariedade. Sempre acreditou existirem homens-deuses, magos, porque sempre teve diante dos olhos o exemplo dos yogis. In ELÍADE, M. Yoga: imortalidade e liberdade . Tradução de Teresa de Barros Velloso. Transliteração Sânscrita de Lia Diskin. São Paulo. Palas Athena, 1996, p. 85. 164 Entre os séculos IIa.C e IVa.C. In MARCEL, M. (1938, 1974: 233). 89

Pensa-se esta “sacralização”, ao contrário daquela da pessoa moral no ocidente, enfatizando-se o “sentimento de dependência”, o “sentimento de criatura”, a “identificação mística” constitutiva da subjetividade ascética indiana. Ao se sublinharem estes aspectos do eu ascético indiano aprofunda-se um pouco mais a diferença entre uma visão do eu ascético como indivíduo extraordinário, único, e a visão do renunciante em Dumont, enquanto “indivíduo-fora-do-mundo”. Para Dumont o renunciante indiano, ao tornar-se indivíduo, torna-se independente, autônomo, abandona a sociedade propriamente dita e se torna um “indivíduo-fora-do-mundo”. Porém, é preferível enfatizar mais o seu caráter “extraordinário”, “único”, pois, ao escolher o “Caminho da Salvação” e renunciar ao mundo, este homem se anula numa “identificação mística” na qual está pressuposto um grau de dependência a uma pré-potência que lhe é anterior no tempo. Contudo, este indivíduo ainda mantém uma forma de ligação com os homens no mundo, seja estendendo a sua tigela para receber o alimento, seja pregando a eles, exercendo assim sua vontade de transformar a realidade, o mundo dos homens, ao qual há pouco se encontrava integrado e do qual ainda faz parte, ao menos pela influência exercida a partir de sua diferença e do seu contraste. Na elaboração ideológica do “eu individual”, tipicamente ocidental, de Da Matta, encontram-se os mesmos atributos de autonomia, liberdade, espaço interno. Assim, este “eu individual” ocidental torna-se capaz de pretender a liberdade e a igualdade. Ao invés de o indivíduo aceitar ou desenvolver um sentimento de dependência em relação aos demais, é a sociedade que deve se colocar ao seu serviço. 165 No caso de este sentimento de onipotência não ser confirmado, alguma coisa deve estar errada e, portanto, tem que ser corrigida. 166 No ocidente a “sacralização da pessoa humana” surge comprometida com a pessoa moral e os ideais do individualismo e racionalismo, tão essenciais à tradição ocidental. Encontramos esta confirmação em Mauss e em Dumont, autores que mostram o indivíduo ocidental construído enquanto ser moral com os atributos de ser independente, autônomo, não-social; em Da Matta encontramos que o indivíduo ocidental possui, também, os atributos de autonomia, liberdade e igualdade. No oriente, ainda que esta “sacralização da pessoa humana” apareça vinculada ao surgimento do indivíduo, este não aparece comprometido com nenhum tipo de ideologia individualista, pois aparece como complemento de uma sociedade

165 DA MATTA, R. (1979: 172). 166 É interessante observarmos que as teorias psicológicas do desenvolvimento da personalidade, da construção do Eu, da identidade, no ocidente – trabalham sempre na direção de uma superação cada vez maior de um grau de dependência — que no início é admitido como absoluto — da criança em relação à mãe, mas que , para que esta criança possa alcançar um grau razoável de normalidade psíquica, deve ser plenamente superado . Nesse aspecto , podemos certamente reconhecer a imbricação da teoria com a ideologia social mais ampla, na qual está inserida. 90

holista e tradicional, como é a sociedade indiana desde os seus primórdios até os dias atuais. Esta é a diferença, a marca mais contrastante em relação à sociedade ocidental, individualista, moderna, agora já denominada pós-moderna. Logo, no oriente, não se encontra a ênfase colocada na construção de um ser moral, universal, conduzindo a uma uniformidade dos indivíduos, e sim na singularização máxima do indivíduo, que ocupa um lugar “extrordinário”, “único” em relação à sociedade. No ocidente o indivíduo é construído como autônomo, independente porém em situação de igualdade com os demais, e tal igualdade tende a ser uniformizadora, massificadora. Na Índia, há uma grande interdependência e desigualdade entre os indivíduos devido à divisão social em varnas , ao fato de tratar-se de uma sociedade holista, mas na antiguidade indiana era deixado ao renunciante um lugar onde podia colocar-se como um indivíduo diferente em relação aos demais. Por isso este renunciante, paradoxalmente, podia apresentar uma diferença absoluta em relação ao seu grupo social. Liberto assim dos entraves da vida, este indivíduo “extraordinário”, “único”, ingressava na floresta e, pela instituição da renúncia, através de uma “identificação mística” – portadora de um elemento irracional, do “sentimento de dependência”, do “sentimento de criatura” –, buscava encontrar a libertação através das práticas da ascese, trilhando o caminho da salvação. Permita-se, a título comparativo, formular a seguinte hipótese, apoiada tanto em Mauss quanto em Dumont, a respeito desta oposição e contraste entre individualismo e holismo, como uma oposição também entre uma forma de subjetividade contemporânea e a forma de subjetividade da antiguidade indiana: será que, ao contrário do que pensa Zizek, o “budismo ocidental”, longe de vir a se tornar um complemento ideológico para uma sociedade individualista e capitalista como é a sociedade ocidental, não será um “sobrevivente” desta forma de subjetividade longínqua, constituída como complemento de uma sociedade holista, oriunda de uma linhagem sintonizada com as tradições ascéticas mais antigas da história da antigüidade indiana, que chega ao ocidente em pleno século vinte e um como uma remanescência desta “outra versão” do eu, que buscava encontrar nas práticas da ascese a sua libertação? Caso se busque estabelecer alguma relação entre o eu budista e a sociedade ocidental, é preferível pensar com Costa, que encontra os moldes desta relação estabelecidos entre o renunciante indiano, o Sannyãssin , e a sociedade indiana, ao contrário dos moldes de

Aqueles casos que não confirmam a teoria tendem a ser vistos como afastando-se do padrão de normalidade psíquica, tal como é estabelecido dentro da cultura ocidental. 91

Zizek, que Costa denomina de “técnica de relaxamento para executivos estressados de Wall Street” 167

167 COSTA, J.F. “O risco de cada um”. In Religião & Sociedade . Volume 21; Número 2; Ano 2001, p. 16.

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A peregrinação aos lugares sagrados sempre foi uma parte importante do culto Budista; freqüentemente se esculpiam enormes imagens em lugares especialmente inacessíveis (...) onde se entalhava em roca viva, como neste caso no Tibete (esquerda). Das três posturas mais freqüentes – sentado in Shearer, A Mitos Deuses Mistérios Buda Madrid: Ed. Del Prado, 1992, p. 36.

93

3 ÃHIMSA E AMRTAM: DUAS VERSÕES DO SAGRADO NA ÍNDIA ANTIGA

“O yogui é mais que o asceta, É mais do que o pensador E do que o trabalhador motivado pelo lucro. Procure então ser um yogui Em todas as circunstâncias, Árjuna de braços fortes.” 168

3.1 Imperativo ascético

Na Grécia antiga, segundo Costa, o sentido do termo ascese era o de treinamento, exercício, sendo uma expressão utilizada no contexto de treinamento de atletas. 169 Já no contexto romano o uso do termo adquire o significado de disciplina. Com o desenvolvimento da civilização ocidental o termo ascese ou seus derivados tomaram um significado particular que difere deste significado original. Não apenas adquiriu um sentido exclusivamente religioso mas, a partir do tom da fé que veio a predominar entre pessoas ocidentais, o ascetismo passou a ser vinculado com idéias de mortificação da carne e de renúncia dolorosa do mundo: veio então a representar o método que esta fé, usualmente, defendeu como o mais apropriado para alcançar a “salvação” e a reconciliação do homem, que havia sofrido a queda pelo pecado original com seu Criador. Tão cedo quanto o início do cristianismo, o nome “asceta” era aplicado aos que praticavam mortificação pela flagelação do corpo. 170 Contudo, em suas origens, o uso deste termo indica uma significação mais extensa, nas palavras de Costa:

“Assim, ao falarmos de ascetismo, na língua corrente, normalmente pensamos em regras de vida que consistem em abdicar da fruição de satisfações físicas. Ascese, no entanto, tinha, originalmente uma significação bem mais ampla. No pensamento dos filósofos gregos, romanos e cristãos dos primeiros séculos, queria dizer governo de si, cuidado de si. Os cristãos,

168 BHAGAVAD GITA: CANÇÃO DO DIVINO MESTRE. Tradução do sânscrito, introdução e notas de Rogério Duarte. Nota introdutória de Caetano Veloso. São Paulo. Companhia das Letras, 1998, p. 101. 169 COSTA, J.F. Razões Públicas, Emoções Privadas . Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 129. 170 EVOLA, J. The Doctrine of Awakening. The Attainment of Self–Mastery , According To The Earliest Buddhists Texts . Traduzido do italiano por H.E.Musson. Inner Traditions. United States, Rochester, Vernont, 1995, 1996, p.3 94

de fato, fizeram desses cuidados um equivalente da renúncia aos prazeres mundanos. Os gregos e romanos, porém, entendiam que ascese era, principalmente, um exercício de moderação, temperança, uso comedido de nossas capacidades físicas e mentais e não pura e simples renúncia ao que é prazeroso ou agradável.” 171

Nos textos dos primeiros séculos este cuidado de si traduz-se numa insistência sobre a atenção que convém ter para consigo mesmo. Segundo Foucault, passa então a haver uma ênfase na acentuação da austeridade sexual no que tange à reflexão moral, contudo esta ênfase não caminha na direção de um estreitamento do código que define os atos proibidos e, sim, na direção dessa intensificação da relação consigo pela qual o indivíduo se constitui enquanto sujeito de seus atos. 172 Segundo Harpham, pode-se analisar o ascetismo como fenômeno geral existente em todas as culturas, o que ele denomina “imperativo ascético”, mas que, no entanto, só se torna compreensível nas formas, motivos, contextos e comportamentos específicos nos quais a conduta ascética aparece. 173 Em seu artigo “ Da ascese à bio-ascese, ou do corpo submetido à submissão do corpo” Ortega se propõe a comparar as práticas ascéticas da antigüidade, enquanto práticas de liberdade, às práticas de bio-ascese contemporâneas, como práticas de assujeitamento e disciplinamento. Ele afirma que, em ambas, encontramos com freqüência as mesmas práticas, mas que, no entanto, visam objetivos contrapostos e promovem processos de subjetivação divergentes. 174 Procuramos identificar, inicialmente ispirados em Mauss e Dumont, como, do interior das práticas ascéticas no pensamento indiano – ou seja, na proto-história da Índia –, se constitui a subjetividade, a categoria do eu e, junto desta categoria, como surgiu no pensamento indiano a questão da “sacralização do ser humano.” O objeto central deste estudo é uma nova forma de conceber a individualidade na Índia Antiga, o eu budista, ou seja, uma forma de subjetividade construída na linhagem das práticas ascéticas mais antigas da história da Índia, que atravessou dois mil e quinhentos anos de história conseguindo se preservar e chegar, em pleno século vinte e um, como uma forma de subjetidade viva ao Ocidente. Pensamos contrapor este tipo de subjetividade sobrevivente, oriunda de um individualismo que surge de uma sociedade holista e tradicional como era a sociedade indiana na antiguidade

171 COSTA, J.F. (1999: 129–130). 172 FOUCAULT, M. (1985: 46-47). 173 ORTEGA, F. (2002: 2). 174 ORTEGA, F. (2002: 2-3). 95

(e, de certa forma, ainda é até os dias de hoje), à forma de subjetividade do indivíduo contemporâneo, construída por dois mil anos de tradição judaico-cristã e que agora se encontra com esta “outra versão” que lhe é anterior no tempo. Entender o encontro destas duas formas de subjetividade divergentes, embora ambas construídas a patir de práticas ascéticas, na paisagem dos dias atuais, em uma sociedade ocidental onde impera o individualismo utilitário, o consumo e a globalização, pode ser uma maneira de dar-se uma contribuição ao debate em torno do despertar do budismo no ocidente no século vinte e um. Nos primórdios da civilização e cultura indiana as práticas ascéticas também estão ligadas ao cuidado de si; na Índia as práticas ascéticas visam uma transformação da consciência em busca do caminho da salvação, são práticas que buscam uma transcendência, uma relação do eu com o si-próprio ou com um princípio superior. No contexto indiano, no idioma Indo-Aryan, o termo ascese corresponde a Tapas ou, em pãli, Tapa ou Tapo, e tem uma significação semelhante em seu uso como uma forma de exercício, de disciplina ou treinamento. Porém, no contexto indiano, um outro significado é acrescentado ao termo – a partir da “raiz Tap ”, cujo sentido é “estar quente”, “ardor”, ele também contém a idéia de uma concentração intensiva, de calor, freqüentemente de fogo. 175 Segundo Eliade, o arcaísmo religioso indo-europeu e o dos nativos fica muito claro na prática e na teoria de Tapas . Assim, Tapas , literalmente, quer dizer calor, ardor, e designa o esforço ascético em geral. A teoria de Tapas aparece no Rgveda 176 de maneira evidente, e seus poderes são ditos criadores, tanto no plano cósmico como espiritual. Na opinião do autor a Índia aborígene pode ter conhecido uma série de tradições imemoráveis a respeito dos meios de atingir o calor mágico, o êxtase ou a possessão divina. 177 Contudo, a origem do ascetismo na religião Indiana parece ainda uma questão controvertida, a ponto de um autor como Collins, por exemplo, chegar a formular três hipóteses sobre estas origens: a primeira, de ser fruto do desenvolvimento de certos aspectos das culturas religiosas trazidas para a Índia pelos invasores arianos; a segunda, de ser um fenômeno já existente entre as populações autóctones; e a terceira, como uma possível reação das classes reais ou guerreiras dentro da sociedade ariana, os Kshatriyas 178 , à dominação da religião pelos sacerdotes brâhmanes. Sobre esta última hipótese, ele lança a seguinte pergunta:

175 EVOLA, J.(1995, 1996: 3). 176 Cf., por exemplo, VIII, 59, 6; X, 136, 2; 154, 2, 4; 109, 4 etc. in ELIADE, M. (1972, 1996: 99). 177 Apud Collins, S. Op.cit., 1982, 1994, p., 169. 178 Verificar sentido ao final, no glossário. 96

por que reis ou guerreiros teriam iniciado um movimento de renúncia ao mundo, mística ou ascética? 179 Mesmo não tendo firmado uma posição sobre as possíveis origens do ascetismo indiano, Collins aponta para a influência que o ascetismo exerceu sobre o pensamento budista, da qual destaca dois aspectos: primeiro o ético e, segundo, o conceitual. Do ponto de vista ético, o budismo se situa como um “Caminho do Meio” entre dois extremos: por um lado, o extremo do gozo, da busca do prazer sensorial do homem comum e, por outro, as práticas de intensa mortificação auto-infligidas, comuns a muitos ascetas nessa época. 180 O Buddha Shãkyamuni propõe a prática da meditação, sem ascese no sentido da automortificação. Em sua visão ética, o Caminho do Meio do budismo se assemelha muito à temperança grega no cuidado de si, podendo assim ser incluído na categoria das asceses cujo sentido aparece mais vinculado ao significado original do termo, na Grécia, como já foi visto em Costa. Também na tradição do pensamento indiano, não resta dúvida, existiram muitas formas de práticas ascéticas, incluindo uma das tradições ascéticas mais antigas, a tradição ascética jainista, uma dissidência entre Mahãvira e Gosãla. Este tipo de dissidência conduziu à configuração de, pelo menos, dois tipos distintos de elaborações ideológicas: o “eu ascético” kármico de Mahãvira e o “eu ascético” determinista de Gosãla. Do ponto de vista conceitual, o ascetismo provocou dois efeitos sobre o budismo: o primeiro é uma imagem tanto de Buddha Shãkyamuni quanto dos santos budistas como sábios pacíficos, não argumentativos, cuja sabedoria silenciosa transcende a contenda filosófica, e é uma parte crucial da doutrina de Anattã 181 . Essa imagem é depreendida de textos esboçados, pertencentes a uma enorme variedade de seitas, cada uma delas com suas próprias idéias, todas argumentando entre si e advogando em nome de suas próprias visões particulares. O segundo efeito conceitual, talvez o mais importante, consiste na atitude tomada em relação às múltiplas “visões” da duração, ou seja, da existência no tempo – comumente denominadas “materialismo” ou “determinismo”. Logo, enquanto teoria, a posição adotada pelo Buddha Shãkyamuni, reflete-se tanto na prática da meditação sem o aspecto de automortificação, como era freqüente nas práticas de ascese da época do Buddha Shãkyamuni, quanto no aspecto conceitual. O budismo proporá um Caminho do Meio entre o que considera dois extremos, os dois estilos de pensamento mais freqüentes na sua época: o eternalismo e o anilacionismo.

179 COLLINS, S. (1982, 1994: 34). 180 COLLINS, S. (1982, 1994: 34). 181 Verificar o sentido deste termo no Glossário, ao final. 97

Dentro do eternalismo encontram-se os sistemas que postulam e orientam todo o pensamento e comportamento em direção a um “eu eterno” ou “divino”, como na tradição Brahmânica, que configurou como representante deste “eu eterno” o “eu upanishádico”, através da identidade Ãtman-Brahman , que constitui o ápice da sacralização da categoria do eu no pensamento indiano. Denomina-se este “eu eterno” ou “eu upanishádico”, para efeitos de estudo, de “eu pré-budista”, sublinhando-se que o budismo se opôs à tradição brahmânica enquanto advogando o “eternalismo.” Esta oposição se expressa tanto pela sua doutrina de Anattã 182 quanto pela configuração de um “eu budista” na linhagem das tradições ascéticas mais antigas da Índia, das quais o budismo importa o conceito do Ãhimsa . De outro lado existe o anilacionismo, que inclui duas concepções francamente materialistas: uma que admite a concepção de um “eu mortal”, portanto destruído com a morte, e outra que, por assimilação a qualquer pensamento, rejeita a avaliação moral da ação – ou seja, não aceita a noção do Karma 183 (como é o caso da doutrina de Gosãla). Os exemplos desta doutrina anilacionista encontram-se englobados pela rúbrica da doutrina Ã- Jiva. Este foi um movimento que continha uma variedade de idéias, todas as quais estavam baseadas em uma forma muito estrita de determinismo. A denominação “anilacionistas” inclui, por implicação, qualquer atitude “niilista”, “cética” ou “agnóstica” em relação ao fato de que não era oferecido nenhum incentivo ou objetivo para a ação religiosa, para as práticas da disciplina de ascese como caminho de salvação. Assim, a originalidade na forma de concepção do “eu budista”, esta nova forma de entender a individualidade no pensamento indiano, apresenta-se como um “caminho do meio” entre estas duas posições filosóficas. O ensinamento do Buddha Shãkyamuni que marca esta nova posição é aquele sobre a Originação Dependente – concepção que será examinada com mais detalhe no segmento “A Originação Dependente como Caminho do Meio”, no capítulo “O Budismo, Uma Outra Versão da Individualidade na Índia Antiga.” 184 Em relação ao problema das origens do ascetismo indiano, indaga-se o seguinte: por que teria Collins deixado em aberto as três hipóteses que levantou como possibilidades de explicação? Por que não teria ele, em nenhum momento, se referido às descobertas arqueológicas, relativamente recentes, onde foram encontrados vestígios da civilização proto-

182 Verificar o sentido deste termo no Glossário, ao final. 183 COLLINS, S. (1982, 1994: 35). 184 Entre as páginas 117 e 180, e este segmento, respectivamente; próximo à p. 156. 98

histórica do Vale do Indo? 185 Estas descobertas parecem ter sido decisivas não só para a elucidação das origens do ascetismo na Índia como para um maior conhecimento das origens da Índia Sagrada e da própria Civilização Indiana que, até então, havia sido pensada pelos indianistas ocidentais como tendo se iniciado apenas após a chegada dos invasores arianos, tese que foi derrubada diante desses achados arqueológicos. 186 Ainda que um autor como Collins 187 , não tenha procurado posicionar-se claramente sobre este ponto específico 188 , outros autores, tais como Eliade, Campbell e Zimmer demonstram, de forma indubitável, que esta tradição de práticas ascéticas é oriunda do período pré-védico, sendo possivelmente uma tradição indiana pré-ariana e autóctone. Assim, a partir do interesse pelas raízes antigas, pré- arianas, da civilização indiana foi possível chegar-se à conclusão, particularmente em Campbell, de que o yoga é, muito provavelmente, uma das práticas ascéticas pertencentes às tradições mais antigas e originárias da Índia, pois se encontra presente desde sua proto- história. 189 Esta conclusão merece destaque, porque revelou tradições que remetem aos primórdios das origens da consciência individual na Índia, a Ahamkãra , o eu, que tudo indica ter sido construída a partir das práticas da yoga, “uma palavra antiga construída a partir de alguma escola de sábios videntes”, como afirma Mauss 190 , ou “uma técnica para induzir à identificação mítica” 191 , segundo Campbell. Assim, a consciência individual na Índia é construída em sintonia com essa ligação a uma consciência cósmica absoluta, que compreende o domínio do sagrado no oriente, esta dimensão do Absoluto presente em todo o pensamento filosófico e religioso indiano. Esta consciência individual, assim construída, assume a forma da elaboração ideológica do que denomina-se “eu ascético”, cuja relação com essa consciência cósmica prefere-se denominar de “identificação mística”, pois permite ressaltar mais ainda esta especificidade da “sacralização” da categoria do “eu ascético” indiano, em sua conotação mística-religiosa e pelo reconhecimento de sua “dependência” diante de um princípio que lhe é superior, que no budismo será ressaltada através da noção de

185 Esses vestígios foram encontrados em escavações feitas por Daya Ram Shani e Rakhal Das Banerii, constituindo um acontecimento de grande importância para o esclarecimento das origens do ascetismo na religião indiana. In MOURRE, M.(1961, 1998: 59). 186 Consultar pp. 72-80. 187 Collins desenvolveu um dos estudos mais recentes e extensos sobre os ensinamentos do “Não-Self ” na Tradição Theravãda . Os estudiosos dessa tradição vêm o Buddha, como tendo negado a existência do Self . In HARVEY, P. The Selfless Mind. Personality, Consciouness and Nirvana in . Curzon Press, 1995, p.7. 188 COLLINS, S. (1982, 1994: 34). 189 CAMPBELL, J. (1962, 1994: 169). 190 MAUSS, M. “Uma categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa, a noção do Eu”. In MARCEL,M.(1938, 1974: 225). 191 CAMPBELL, J. (1962, 1994:168). 99

interdependência, da absoluta ausência da existência inerente, ou seja, de um eu concebido como autônomo e independente. Este é um ponto cuja discussão permite realçar uma das contribuições deste período proto-histórico, onde identifica-se que a prática do Yoga trouxe um legado inestimável para a história das civilizações. Isto deve-se ao fato de que, na Índia, antes de se tornar uma categoria conceitual, o “eu ascético” se constituiu a partir das práticas ascéticas, enquanto “categoria sagrada do espírito humano”, com todas as características já descritas em relação à questão da “sacralização do ser humano” no oriente, ou seja, a predominância deste “sentimento de dependência”, deste “sentimento de criatura”, de um tipo de indivíduo que aparece como complemento de uma sociedade holista. Isto quer dizer que, ainda que este tipo de sociedade tenha produzido o “indivíduo”, este, em sua relação com a sociedade, se coloca a serviço do todo, diferentemente do ocidente em que, na forma de subjetividade construída também a partir das práticas ascéticas, surgiu um tipo de subjetividade divergente, cujo imaginário supõe que a sociedade tenha de estar a serviço do indivíduo, ou seja, daqueles que, na sociedade, sempre detiveram uma maior parcela do poder. Se, no ocidente, o “caráter sagrado da pessoa humana” só se pôde constituir, lentamente, como sua forma moral, privilegia-se, entre as tradições da cultura indiana, o ascetismo autóctone indiano, pré-Védico, particularmente a tradição jainista 192 que, por suas singularidades e características específicas, permite afirmar que a construção do “caráter sagrado” da pessoa humana surge como um componente presente desde as origens do eu e da individuação na Índia. Tal constatação vem ao encontro da afirmação de Suzuki, de que “o eu, além de moral e psicológico ao mesmo tempo, tem também uma conotação religiosa” 193 , já citada anteriormente, para reforçar a idéia de Mauss de que o eu se constitui como uma “categoria sagrada do espírito humano.” Todavia, no oriente, o eu se constitui como “categoria sagrada” desde os primórdios da civilização indiana, diferente do ocidente, onde esta construção da subjetividade foi muito mais lenta e, ainda hoje, está por ser construida. O “caráter sagrado da pessoa humana,” no oriente, não inclui uma conotação moral, pelo menos não exclusivamente, o que não invalida que, em algumas tradições ascéticas, como na jainista, verifique-se a incorporação de conteúdos éticos, porém nunca de forma exclusiva. Pertencem a esta tradição as primeiras teorias do Karma e o princípio da Ãhimsa, de “Não-Violência”, categorias centrais do

192 Nota : Zimmer sustenta a tese de que a tradição Jaina remonta — parte historicamente, parte pela lenda — à longínqua Antigüidade Indiana aborígene, não-Védica, através de uma longa série de Tirthankara. O número tradicional destes é vinte e quatro. In ZIMMER, H. (1951, 1986: 203). 100

pensamento indiano e da constituição do seu imaginário oriental. Por isso, entre todas as tradições ascéticas indianas, a jainista é a que mais serve aos propósitos de circunscrever uma modalidade de subjetividade denominada “eu ascético”, e evidenciar esta sacralização da categoria do eu constituído no interior das práticas ascéticas nos primórdios da sua construção no pensamento indiano. Deve-se lembrar que ressaltar todo o alcance e significado da tradição ascética, de origem pré-ariana, é também uma maneira de evitar-se a adoção um ponto de vista equivocado, como se verifica muito freqüentemente entre os indianistas ocidentais, sobre a civilização e a cultura indianas. Ao se fazer esta distinção entre os termos civilização e cultura 194 , deseja-se demarcar a seguinte diferença: por civilização, comprende-se os progressos materiais que o homem constantemente busca para adquirir um maior controle sobre a natureza e uma maior capacidade de sobrevivência no mundo; por cultura, entende-se os valores e crenças que o homem constrói para servirem de guia para a sua existência no mundo. O ascetismo, segundo Ortega, é visto justamente como uma prática cultural, ou seja, que busca preservar valores e servir de guia aos indivíduos no mundo, oferecendo práticas culturais que possibilitam a própria construção e modelação das formas de subjetividade que irão variar de acordo com cada cultura. Segundo Ortega, o ascetismo apresenta as seguintes características: A ascese implica em um processo de subjetivação : pela ascese se constitui um deslocamento de um tipo de subjetividade para outro, a ser atingido mediante a prática ascética. O asceta oscila entre uma identidade a ser recusada e outra a ser alcançada 195 . Esta

193 SUZUKI, D.T., FROMM, E., MARTINO, R. (1960: 41). 194 O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível de tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes. “Civilização”, porém, não significa a mesma coisa para diferentes nações ocidentais. Acima de tudo, é grande a diferença entre a forma como ingleses e franceses empregam a palavra, por um lado, e os alemães, por outro. Para os primeiros, o conceito resume numa única palavra o seu orgulho diante da importância de sua nação para o progresso do Ocidente e da humanidade. Já o emprego que lhe é dado pelos alemães — Zivilisation — significa algo de fato útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a aparência externa dos seres humanos, a superfície da existência humana. A palavra com a qual os alemães, mais do que qualquer outra, expressam o orgulho pelas suas próprias realizações e seu próprio ser é Kultur . Segundo Elias, enquanto o conceito de civilização inclui a função de expressar uma tendência continuamente expansionista de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a autoconsciência de uma nação que teve de buscar e constituir incessantemente as suas fronteiras, tanto no sentido político quanto espiritual, e repetidas vezes pergunta a si mesma: “Qual é, realmente, a nossa identidade?” in ELIAS, N. O processo civilizador . Tradução de Ruy Jungman. Revisão e apresentação de Renato Janine Ribeiro. 2 a ed. Rio de janeiro. Jorge Zahar Ed., 1994, pp. 23-25. 195 Segundo Ortega, o asceta não participa plenamente nem de uma subjetividade ( que deixa para trás, mas que deve ser ainda superada) nem da outra subjetividade (ainda não presente, mas que está no horizonte), porque o asceta se movimenta sempre entre a identidade desconstruída e a construída, detido pela primeira e ao mesmo tempo anelando pela segunda. Por conseguinte, ele parece estar sempre em trânsito, em processo, em 101

subjetividade a ser conquistada apresenta-se para o asceta como uma verdadeira identidade para a qual se orienta o trabalho ascético. Da perspectiva do observador o sujeito ascético aparece como figurado e construído, provocando reações positivas ou negativas segundo o grau de afinidade do observador com a prática ascética respectiva. Esta forma de subjetividade almejada (denominada por Foucault de teleologia) vai variar segundo a contextualização histórica das práticas ascéticas, podendo-se encontrar as mesmas práticas vinculadas a diferentes fins, diferentes processos de subjetivação, seja a constituição do indivíduo como sujeito moral da antiguidade greco-latina, a auto-renúncia e a pureza do cristianismo, a interioridade cristã e burguesa ou as bio-identidades contemporâneas, onde o corpo possui a auto-reflexividade que correspondia outrora à alma. Acrescenta-se a isso a “identificação-mística” do renunciante indiano, o Sannyãssin , linhagem da qual surge o eu budista, que prega aos homens do mundo a meditação, ou seja, a ascese sem mortificação, como o caminho de atingir o Nirvãna, a libertação do Samsãra , através do “Caminho dos Oito Passos”, “o caminho gradual que o Buddha Shãkyamuni ensinou para irmos da experiência de aprisionamento à obtenção do reconhecimento incessante da liberdade.” 196 Segundo Ortega, as formas de subjetividade visadas pela ascese podem diferir ou não das identidades prescritas tanto social, cultural ou politicamente. Enquanto nas asceses da antiguidade o self , o eu almejado pelas práticas de si representava freqüentemente um desafio aos modos de existência prescritos, uma forma de resistência cultural, uma vontade de demarcação, de singularização, de alteridade, encontra-se na maioria das práticas de bio-ascese uma vontade de uniformidade, de adaptação à norma e de constituição de modos de existência conformistas e egoístas, visando a procura da saúde e do corpo perfeito. 197 A ascese implica na delimitação e restruturação das relações sociais : dessa forma, desenvolve um conjunto alternativo de vínculos sociais, construindo um universo simbólico distinto. Segundo Valantasis, o rearranjo das relações sociais, implicado nas práticas ascéticas, geralmente se encontra em conflito com os arranjos sociais dominantes. 198 Segundo Ortega, essa visão deve ser modificada, já que nas modernas bio-asceses o conjunto de relações sociais encorajadas – formas de biossociabilidade – em geral não visa a

movimento, em direção a uma nova subjetividade”. VALANTASIS, R. “Constructions of Power in Ascetism”, Journal of American Academy of Religion, LXIII, 4, 1995, p. 801. In ORTEGA, F. (2002: 3). 196 SAMTEN, P. (2001: 149). 197 ORTEGA, F. (2002: 3). 198 Na Antigüidade, o ascetismo não era sempre subversivo: havia situações em que ele servia para manter a ordem social e para a auto-afirmação de uma elite social, cultural e política. Esse é o caso do “ascetismo imperial” descrito na obra do poeta Virgílio. Ver Alison Keith e Leif E. Vaage, “Imperial Ascetism: Discipline of Domination” in VAAGE, Leif E. e WIMBUSH, Vincent L. (orgs.): Ascetism and New Testament , Nova Iorque, Routledge, 1999, pp. 411-420, in ORTEGA, F. (2002: 4). 102

transformação do status quo e dos arranjos estabelecidos, mas o narcisismo conformista e o abandono do mundo. Ao invés de abadono talvez se pudesse dizer indiferença, uma modalidade de “bela indiferença” contemporânea, como a “ belle indiférrence ” das histéricas freudianas. 199 A ascese é um fenômeno social e político : o ascetismo é uma prática social. Foucault reconheceu esta dimensão sócio-política da ascese quando disse, referindo-se ao retiro dos estóicos, que “O cuidado de si (...) aparece como uma intensificação das relações sociais.” 200 Até as formas de anacorese radical sempre visam o outro, uma audiência. Os ascetas representam um papel fundamental na definição da sociedade cristã. Apesar de serem apresentados como eremitas e solitários, a maioria dependia de um suporte comunitário e tinha uma função política fundamental como mediadores, árbitros, patronos e intercessores, em uma época em que as estruturas legais e governamentais eram insatisfatórias e inadequadas. Os ascetas ressaltavam a solidariedade do grupo, tornando-se acessíveis aos valores e necessidades da comunidade. 201 A ascese está ligada à vontade: tanto nas asceses filosóficas clássicas quanto nas cristãs e, também, nas indianas, existe uma forte acentuação do elemento volitivo. É a ascese da vontade, exercício da vontade. 202 Frente ao ascetismo órfico, platônico e neoplatônico de caráter marcadamente místico-religiosos, o ascetismo cínico-estóico enfatiza mais os elementos éticos-volitivos, a ascese da vontade. Este ascetismo é importado à tradição cristã com uma função política de afastamento e de oposição ao gnosticismo (que incorpora a tradição do ascetismo órfico-platônico). Segundo Ortega a questão da unidade versus a divisão da vontade estava no núcleo dos debates teológicos. A oposição entre, de um lado, o conhecimento e, de outro, o uso correto e falso da vontade domina a prática ascética no ocidente. Através do exercício ascético, o asceta recupera o conhecimento e o uso correto da

199 ORTEGA, F. (2002: 4). 200 Apud Le souci de soi (abreviado SS ), Paris, Gallimard, 1984, p. 69. Ver L’Herméneutique du sujet . Cours au Collège de France 1981-1982 (abreviado HS ), Paris, Seuil/Gallimard, 2001, pp. 144ss in ORTEGA, F. (2002: 4). 201 Ver CLARK, Elizabeth A.: Reading renunciation: ascetism and Scripture in early Christianity , Princeton, Princeton University Press, 1999, pp. 33-37; BROWN, Peter: “The Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquity”, Society and the Holy in Late Antiquity , Berkeley, University of California Press, 1982, pp. 148-152; BROWN, P: The Making of Late Antiquity , Cambridge Mass, Harvard University Press, 1978, pp. 64-67, 80; ROUSSEAU, Philip: “Ascetics as mediators and teachers”, pp. 53-55 e RAPP, Claudia: “For the next to God you are my salvation: reflections on the rise of the holy man in late antiquity,” pp. 63-66, in HOWARD-JOHNSTON, James, e HAYWARD, Paul Antony (Orgs.): The Cult of Saints in Late Antiquity and the Middle Ages. Essays on the Contribution of Peter Brown , Oxford, Oxford University Press, 1999 in ORTEGA, F. (2002: 5). 202 Ver LOHSE, Bernard: Askese und Mönchtum in der Antike und in der alten Kirche , München, R. Oldenbourg, 1969, p. 42; CAPELLE, W.: Verbete “Ascetism (Greek)”, in HASTINGS, J. (Org.) Encyclopaedia of Religion and Ethics , vol. II, Edinburgh, T. & T. Clark, 1967, pp. 83-86. 103

vontade, a unidade da vontade, isto é, consegue retornar à situação paradisíaca do homem antes da queda: a ascese é a imitatio Christi corporal e espiritual. 203 Como será visto no nosso segmento sobre o renunciante, o ascetismo desempenha um papel crucial na construção da subjetividade e, talvez, a civilização e cultura indianas representem um dos raros exemplos de uma nação onde a abertura ao progresso não anulou ou enfraqueceu determinados valores tradicionais da sua cultura. Foi esta tradição ascética jainista que transmitiu ao jovem Ghandi seu conceito do Ãhimsa , a “não-violência.” Ghandi foi um dos maiores líderes políticos e espirituais da Índia, e representa uma expressão desta fusão entre o religioso e o político, o ascetismo e o sentido pragmático, o que faz dele um exemplo da sobrevivência dos valores mais tradicionais aliados a uma inserção na contemporaneidade, tornando-o, assim como o Buddha Shãkyamuni, exemplo desta forma de subjetividade ascética indiana. 204

3.2 Ritual do sacrifício

A civilização indiana sofreu uma mudança decisiva em sua história com a chegada dos invasores arianos. Naquele momento a Índia conheceu, pela primeira vez, a divisão social em varnas e as práticas do ritual do sacrifício da religião Védica, inovações que vieram junto com estes homens louros de olhos azuis. Quando esta invasão ocorre, povos nômades e guerreiros que não possuiam escrita encontram em território indiano,uma cultura e uma civilização já desenvolvida, urbana e até mesmo sofisticada. Os textos do vedismo, o Rg Veda, foram escritos na perspectiva destes invasores; os arianos são o sujeito do Vedismo, e seus adversários, por vezes chamados de “vitrani”, que aparecem nesses mesmos textos, são os habitantes desta misteriosa cultura e civilização dravidiana. Mohenjo-Daro e Harapa são as duas cidades, entre outras, cujos achados arqueológicos atestam a presença desta civilização indiana anterior à invasão ariana, motivo pelo qual suas crenças e tradições são denominadas pré-arianas. Na Índia Védica, de tradição ariana, a finalidade do sacrifício também era “fazer o sagrado” e, através das oblações aos deuses, obter as suas graças. Como não se encontra no Rg Veda nenhum vestígio das teorias do Karman e do Renascimento, estas crenças são, ao que tudo indica, crenças autóctones pré-arianas. Podemos supor que, muito provavelmente,

203 204 PAZ, O. Vislumbres da Índia , tradução de Olga Savary. São Paulo. Mandarim, 1996, pp. 108-109. 104

quando surge a tradição ariana há também uma nova elaboração ideológica por esta apropriação do indivíduo empírico, agora na vertente do “eu do ritual do sacrifício védico”, submetido, inicialmente, ao poder dos deuses e, depois, ao dos brahmânes. Mourre apresenta, como testemunho textual para os estágios primitivos desse processo, o corpo de textos composto pelos Vedas, Brãhmanas e Upanishads, e aponta seu caráter particular como evidência histórica. Segundo sua explicação, mais do que uma crença ou um ritual, no Vedismo trata-se de uma liturgia, isto é, no sentido forte do termo, uma “ação sagrada”. A angústia do mal moral é, por assim dizer, desconhecida dos indianos, e a preocupação ética não se manifesta senão sob dois aspectos: um, ritual, e outro, social. O que apavorava os antigos indianos não era o pecado; eles se assustavam muito mais com a “Mancha”, uma espécie de contaminação ideológica, uma nódoa independente das intenções do culpado, e contraída, por sua vez, a partir das imperícias rituais ou omissão às leis das castas. Assim, “fazer o sagrado”, na tradição ariana, também não apresenta nenhuma implicação de sentido moral. Segundo Renou, em relação às crenças, a palavra que, em sânscrito arcaico, designa isto e neste ponto traduz a mentalidade védica, é Çraddhâ . Seu sentido não é o de uma adesão a verdades sobrenaturais ou a nenhum dogma organizado; trata-se da exatidão rigorosa no rito e a confiança em sua eficácia. 205 O sacrifício é o ato religioso por excelência. Através do “fazer o sagrado”, no ritual do sacrifício, o homem se encontra realmente transformado, transferido do profano para o sagrado, vive sua identidade com o Absoluto. O ritual do sacrifício é, então, a essência mesma da realidade. Pelo sacrifício o Rta é mantido e fica restabelecida a ordem justa do mundo. O sacrifício se impôs, inclusive, aos deuses que, outrora mortais, ganharam sua imortalidade, graças aos rituais do sacrifício. O “fazer o sagrado” era olhado como exercício de um assujeitamento, de uma violência real sobre as forças sobrenaturais. Na perspectiva védica a falta maior era errar no cumprimento dos ritos. O sacrifício não era eficaz senão pelo brahmã – uma potência sagrada contida nos mantras ou fórmulas rituais que não será realmente liberada em proveito dos sacrificados senão pela sua exatidão. Esta exatidão não se circunscreve unicamente ao sentido, mas, principalmente, à articulação da fórmula. Ter penetrado o espírito das palavras reveladas não é nada. Saber os Vedas é, antes de tudo, saber dizer. A “palavra sagrada” é uma força que, por si, abre as portas para o mundo dos deuses. Trata-se menos de verdade do que de “exatidão”, trata-se de, ao pronunciar a fórmula, colocar em obra um tipo de magia vocal, cujos segredos são transmitidos pela tradição oral. Este

205 Apud MOURRE, M. (1961, 1998: 72). 105

aspecto esotérico do culto védico contribuiu para revestir os sacerdotes de um imenso prestígio, a tal ponto que o nome do sacerdote não será outro do que aquele da verdade das fórmulas sagradas – brâhmane 206 . Para o pensamento brahmânico, tempo e continuidade nunca foram categorias dadas ao homem, nem de forma simples nem por algum tipo de determinismo. Ambas requerem um esforço permanente para o prolongamento, um puxar constante para adiante da vida, suportado pelo poder mágico do sacrifício. Foi a partir destes motivos do pensamento ritual que surgiu a idéia de que somente pela atenção incessante à correta manutenção do ciclo cósmico, pela ação do sacrifício, um homem poderia produzir e ordenar uma seqüência de tempo na qual viver. É justamente nesta necessidade de intervenção da vontade humana, mediante o ritual do sacrifício, para a criação de um tempo ordenado de vida, que se vê a constituição de um dos principais elementos da elaboração ideológica do “eu do ritual do sacrifício.” 207 Assim, pode-se supor que a chegada dos invasores arianos, pouco a pouco, fez surgir esta nova configuração do eu, bastante distinta daquela do “eu ascético” das populações nativas. 208 A chegada dos arianos não apenas trouxe para a Índia uma nova religião, a Védica, mas, junto com ela, um novo elemento foi criado no seio da sociedade indiana: as varnas .209 Nesta nova forma de divisão social e hierárquica os brâhmanes sempre detiveram um lugar privilegiado no topo da escala hierárquica, acima dos reis e dos nobres. Em seu início, a religião Védica ou brahmânica tinha no ritual do sacrifício uma prática fundamental, na qual os brãhmanes ocupavam o lugar de oficiantes. Os Vedas e seus comentários, os Brâhmanas e os Upanishads, subsistiram como livros santos do hinduísmo. 210 Segundo Collins, os Vedas oferecem hinos e orações sacrificiais, os Brãhmanas certas direções e interpretações do sacrifício, enquanto os Upanishads reinterpretam o sacrifício do ponto de vista psicológico e “místico”. Por isso, alguns autores,

206 MOURRE, M.(1961, 1998: 72-73). 207 COLLINS, S. (1982, 1994: 43). 208 Segundo Mourre, a chave do segredo da Índia está guardada em sua pré-história. Seus primeiros habitantes teriam chegado das ilhas do Oceano Índico e da Oceania, Negróides ainda muito próximos de seus congêneres da África, enquanto que os homens pertencendo às raças Mônkhmer aportaram o elemento amarelo. A uma época incerta, estes primeiros ocupantes se achavam recalcados e pouco a pouco absorvidos por outros invasores, vindos do Norte: Europeus, da mesma raça sem dúvida que as populações estabelecidas antes dos Indo-Europeus sobre as margens da bacia mediterrânea, longínquos ancestrais dos homens morenos e delicados que, no Sul da Índia atual falam as línguas dravidianas. In Mourre, M. Les Religions Et Les Philosophies D´ Asie . Editions de La Table Ronde, Paris, 1961, 1998, p. 59. 209 Geralmente o termo varnas é traduzido por “castas”, mas preferimos manter a palavra, na maioria das vezes, em sua forma original. 210 MOURRE, M.(1961, 1998: 80). 106

entre eles Mourre, preferem denominá-los Upanishads Pós-Védicos, para marcar sua diferença em relação ao período inicial da religião Védica. 211 A categoria central do “eu do ritual do sacrifício” é Amrtam . Entre os homens, Amrtam significa uma vida humana completa e feliz, um longo tempo de vida, pois era justamente com a finalidade de aumentar a duração de sua vida na Terra que os homens deviam oferecer aos deuses suas oblações no ritual do sacrifício, inclusive o humano e de animais. Num momento ulterior, em que os brâhmanes tomam a si o poder anteriormente atribuído aos deuses, a situação se inverte – os brâhmanes passam a se auto-intitular deuses- humanos, portanto os próprios deuses passam a depender do sacrifício que eles oficiavam para alcançar Amrtam . Só que, neste caso, Amrtam passa a ter um significado um tanto vago, o de não morrer ou de evitar uma segunda morte, em qualquer um dos Lokas .212 É nos Brãhmanas, quando se entra em um mundo mágico de reciprocidades analógicas, que o sacrifício se transforma, então, no "mesocosmo" através do qual é possível desfrutar os níveis divinos do "macrocosmo" e os humanos do "microcosmo". Neste contexto, o sacerdote brâhmane é o ponto mediatriz no qual há a intersecção da hierarquia social e a do cosmo. Nos primórdios da civilização indiana o tempo era pensado em relação ao cosmo, tanto que, a partir do terceiro e quarto séculos antes de Cristo, foi desenvolvida a teoria das Idades Cósmicas, Yuga , que tornou ainda mais explícita uma concepção da existência na qual são pressupostos dois níveis de ordenação do universo. 213 O mito das origens narrava que na “Idade de Ouro” o homem realizava seu próprio sacrifício, atuava corretamente, seguia as regras das varnas e não havia sofrimento ou morte precoce; em suma, o dharma ideal de fato existia naquela realidade contemporânea. Enquanto isso, na idade presente, na qual transcorre o último e degenerado estágio do ciclo cósmico, o homem não age corretamente, o sistema de varnas é confuso e impuro, existe sofrimento e morte, logo o dharma ideal só existe em um plano ideal. Nos primórdios bastava ao homem agir – mediante o sacrifício –, pois era suficiente atualizar e preservar a ordem ideal; não era preciso fazer inferências cosmológicas ou éticas, como se tornou necessário no estado atual da “idade presente.” 214 Várias imagens expressam este projeto conjunto entre homens e deuses de renovação contínua do tempo: o “girar da roda” do ano com seus doze raios (mensalmente); a “morte e

211 MOURRE, M.(1961, 1998: 81). 212 COLLINS, S. (1982, 1994: 44). 213 No Budismo, essa idéia de dois níveis de ordenação do universo reaparece sob a forma de uma realidade última e relativa, como pressuposto a partir do qual o Buddha pode construir o seu sistema de pensamento. 214 COLLINS, S. (1982, 1994: 41). 107

renascimento” do sol – a cada noite ele morre sob o horizonte e desce água abaixo, onde se torna um embrião, antes de renascer com o amanhecer; o “fogo sacrificial” que deve repetir sobre a Terra a atividade do Sol, o “fogo cósmico”. Esta última imagem fornece a razão pela qual os brâhmanes renovam permanentemente o sacrifício e as oblações ao amanhecer e ao anoitecer, dois momentos cruciais na junção da seqüência dos dias e das noites. Assim, qualquer realização do sacrifício do fogo propala o tempo para adiante uma vez mais, tanto através da totalidade da sociedade como pelo sacrifício individual. O tema central, neste caso, é a regeneração periódica do cosmo, a vitória da vida sobre a morte. No sistema clássico do ritual, tal como aparece nos Brãhmanas, nos Suttas, o pivô do ritual é o Yajamãna , o benfeitor a cujas expensas e em benefício de quem o ritual se realiza. Prajãpati , o homem cósmico, simbolicamente incorpora o universo. O clímax do ritual ocorre com o seu renascimento, cujo significado expressa a regeneração do cosmo. É a partir deste conceito dinâmico, construtivo do tempo, que emerge a elaboração ideológica de um “eu do ritual do sacrifício”, que abrange, inclusive, os desenvolvimentos do pensamento escatológico, pois o conceito em torno do qual este se organiza é também o de Amrtam , a partir do qual é possível correlacionar o senso dinâmico, construtivo do tempo, e os momentos diferenciáveis do pensamento escatológico. Amrtam significa “liberdade da morte, continuação da vida”. No entanto, Collins considera digno de nota ressaltar que não devemos confundir tal sentido como se tratasse do de imortalidade, uma tradução muito encontrada para este termo mas que, em sua opinião 215 , não expressa a sua significação, na medida em que sugere a idéia de uma dicotomia entre dois lados da questão: de um lado, uma existência divina, sem tempo, sem nascer e morrer, e, de outro, a vida do homem, na qual existe o tempo, marcado pelo nascer e morrer. Porém, esta não é a diferença entre Mrtam e Amrtam , literalmente “morte” e “não-morte”. O que possibilita o entendimento desta diferença é um fio de pensamento, nos primórdios da tradição Védica e Brahmânica, que enfatiza uma eternidade, um infinito essencial (ou uma essência eterna, infinita) que precederia e, de algum modo, permaneceria subjacente ao mundo humano, ordenado no tempo. Esta eternidade é o centro imóvel da roda em movimento do tempo, o ponto quieto – Pada – além do incessante movimento de Samsãra , termo derivado da raiz “ sar ” – “correr”, “acelerar”, “fluir”, “corrente”. O famoso Hino da Criação no Rg Veda fala desta atemporalidade como um ponto “antes” de a tempo começar,

215 Outros autores, como Barreau, afirmam encontrar nos textos do Budismo antigo Amrtam como sinônimo de Nirvãna , cujo sentido seria de imortalidade. Só que essa imortalidade é atribuída por Bareau a uma interrupção 108

no qual “não existe nem morte, nem Amrtam , logo, não existe luminosidade da noite, nem do dia” 216 . Como mostram estes versos, essa atemporalidade essencial é contrastada com o tempo como seqüência de dias e noites, nos quais se inclui tanto a morte como Amrtam , “não- morrer”. Esse poema celebra mas não descreve essa essência sem tempo, além da morte e de Amrtam , que mais tarde nos Upanishads se torna o Atman-Brãhman , o eu macroscópico atemporal, eterno, que repousa por trás tanto do universo ordenado como do ser humano, este que se denomina “eu pré-budista” para marcar a oposição do Buddha Shãkyamuni tanto ao eternalismo quanto ao anilacionismo. Amrtam faz parte deste mundo ordenado do tempo, e significa, tanto para os deuses quanto para os homens, não tanto a imortalidade, mas o evitar da morte, o prolongamento da vida. Esta dependência dos deuses em relação ao ritual que os sustenta não está, de modo nenhum, confinada à religião indiana. Segundo Durkheim, é uma das formas elementares de religião em todo lugar. 217 No entanto, a importância desta dimensão, do ponto de vista de Collins, está dada pelo modo particular como a continuidade do tempo e da vida, ou seja, a eliminação da morte e o alcançar Amrtam , “não-morrer”, foi aproximada dos deuses, nos primórdios do pensamento brahmânico, ou seja, pela contínua renovação ou renascimento como resultado do sacrifício. 218 Celebrar um sacrifício é, assim, uma série infinita de nascimentos e mortes. Um sacrifício só sobrevive graças aos seus efeitos; em si mesmo, ele simplesmente desaparece. 219 Assim como os deuses, a vida do homem mostra a mesma necessidade de prolongamento através do sacrifício. Mas Amrtam , quando aplicado ao homem, adquire um sentido mais exato, já não se trata do vago não-morrer quando aplicado aos deuses. O Amrtam do homem é uma longa vida completa – Sarvam ãyus – de uma centena de anos “ter um termo completo de vida, isto é, um não-morrer do homem” – Amrtavam-Amrtavam – , “uma centena de anos, muito assim, é Amrtam ”. A demanda feita aos deuses de “nos colocar em Amrtam ” é simplesmente entendida como “manter-nos vivos.” Assim o “eu do ritual do sacrifício” tem como uma de suas preocupações obter o gozo e a continuação da vida, com todos os seus prazeres: saúde, rebanho, filhos fortes e,

no ciclo de renascimentos, mas trataremos desta discussão na terceira parte, quando estivermos tratando sobre o Budismo do Buda - “O Desperto”. 216 COLLINS, S.(1982, 1994: 43). 217 DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. O sistema totêmico na Austrália . São Paulo: Martins Fontes, 1966, p. 17. 218 É importante chamar a atenção para o fato de que, ao chegar à iluminação e ao Nirvãnna, uma das coisas que é alcançada pelo Buddha Shakyamuni é a interrupção do ciclo de renascimentos. 109

sobretudo, uma vida plena e completa. Segundo Bary, este tipo de preocupação, voltada para o prolongamento da existência no mundo, faz contraste com uma onda de pessimismo 220 que surge na ocasião do grande desenvolvimento da heterodoxia, em uma etapa posterior do pensamento indiano, a partir das tradições do jainismo e budismo. Este pensamento posterior indiano, ao invés de ter como meta estender ao máximo possível o tempo de uma vida feliz e segura no mundo, alcançando Amrtam , volta-se mais para como escapar do melancólico ciclo de nascimento, morte e renascimento, para ser atemporal em lugar desta transitória e insatisfatória existência. Esta é uma interpretação que deve ser levada em consideração, mas segundo a interpretação de outros autores, entre eles Bareau, no budismo um dos sentidos do ideal do Nirvãna , que está ligado à libertação do Samsãra , do ciclo da vida, encontra-se, justamente, vinculado à interrupção dos renascimentos, portanto da morte. Porém, o método proposto para alcançar este ideal é o “Caminho dos Oito Passos”, que é o caminho gradual, ensinado pelo Buddha Shãkyamuni, para ir-se da “experiência de aprisionamento à obtenção do reconhecimento incessante da liberdade.” 221 Talvez, em sua época, esta fosse uma perspectiva de vida menos pessimista, ao menos para aqueles que eram sacrificados nos rituais sangrentos do sacrifício da religião védica, pois, para se obter Amrtam , “Fazer o Sagrado”, era considerado legítimo sacrificar animais e até vidas humanas. Mas entre os meios de se alcançar Amrtam , através dos quais se obtém a continuidade da vida no tempo, não existe uma diferença entre os homens e os deuses. A diferença está em que, se para os deuses não há um fim previsível, para os homens haverá sempre um encontro com a morte, denominada o “finalizador”, mesmo quando é alcançada uma vida plena de uma centena de anos. Para o “eu do ritual do sacrifício” a morte é sempre um prejuízo. A existência após a morte, quando mencionada nos Vedas, nunca é um sistema claramente delineado de cosmologia e soteriologia. As razões, no entender de Collins, que tornam difícil a descrição da evolução deste sistema escatológico são as seguintes: primeiro, na história da cosmologia não se encontram “reinos” específicos de vivos e mortos; segundo, o mundo da soteriologia não se ajusta bem ao mundo da cosmologia. Isto sempre foi verdade na Índia, principalmente nos primórdios.

219 COLLINS, S. (1982, 1994: 44). 220 BARY, T. The Buddhist Tradition in India, China and Japan . New York: The Modern Library, 1969, pp. 3-4. 221 SAMTEN, P.(2001: 149). 110

Neste período aparece no sistema escatológico a palavra Loka 222 que, segundo Collins, implica em uma ambigüidade fatal. 223 Mesmo se traduzida, segundo Gonda 224 , por “mundo” ou “reino”, seu sentido ainda assim permanece vago, pois não se trata de uma localização espacial, e sim de um “estado de felicidade e estabilidade”. Seu significado primordial parece ter sido “espaço aberto, livre” ou “espaço sagrado, seguro” 225 . Sua ambigüidade está em que todos os Lokas que serão vistos são para ser alcançados na vida presente, por sucesso material ou familiar ou, mais freqüentemente, nos Brãhmanas, pelo ingresso, durante o sacrifício, em um Loka 226 , visto como a esfera sagrada da realidade ritual. Logo, o desejo de ganhar um Loka , mesmo quando transferido para uma outra vida que não esta, não significa alcançar um lugar específico, em uma extensão de destinos possíveis a serem buscados através de diferentes tipos de comportamento de prática religiosa. É, simplesmente, a continuação do desejo de prolongar a vida, mesmo depois da morte, em um estado “feliz e seguro”, definido de maneira vaga, tal como o antigo desejo de uma “vida feliz e continuada” sobre a Terra. No ritual do sacrifício a pessoa deve “morrer” para a esfera profana da existência normal e ser “renascida” através da iniciação – diksã – no sacrifício antes de retornar para este mundo na conclusão do ritual. 227 No pensamento brahmânico as mesmas estruturas de pensamento e imaginação representam tanto a seqüência temporal do ritual do sacrifício como aquelas do destino cosmológico e escatológico. No budismo, segundo Collins, a realidade sagrada do ritual será substituída pelos estados de consciência alcançados temporariamente na meditação. 228 Collins destaca que, na época do ritual do sacrifício, a personalidade psico-física ordinária é um composto de diferentes constituintes destinados e, no pensamento dos “renunciantes”, condenados, eternamente, a agrupar e reagrupar a si mesmos na “roda dos renascimentos”. No entanto, a idéia de que a pessoa humana é uma montagem de diferentes partes surge, pela primeira vez, nos Upanishads, que incorporam um motivo encontrado nos Vedas e nos Brãhmanas: a idéia de dispersão, na morte, das várias partes do corpo humano no

222 Verificar sentido ao final, no Glossário. 223 COLLINS, S. (1982, 1994: 47). 224 Apud COLLINS, S. (1982, 1994: 47). GONDA, J. Loka: World and Heaven in the Veda , Amsterdam. 1966, p. 110 e passim . 225 Essas idéias tinham especial relevância para os primeiros invasores arianos que, entre outras coisas, necessitavam, na sua vida de guerreiros, de lugares de estabilidade, como campos para a agricultura e atividades pastoris. In COLLINS, S.(1982, 1994: 45, n.18). 226 Verificar sentido no Glossário, ao final. 227 Novamente, essa idéia não se limita à Índia, sendo uma das “formas elementares” de religião, segundo Durkheim. Em toda parte, e novamente na Índia, a idéia tem uma importância particular no desenvolvimento do pensamento escatológico. In COLLINS, S. (1982, 1994: 47– 48). 228 COLLINS, S. (1982, 1994: 48). 111

universo material, e seu reagrupar em torno de elementos particulares, na construção de um ser humano vivo. Esta idéia aparece na jornada da pessoa de volta à Terra. Muitas são as passagens que mencionam o retorno das partes para seu amplo lugar no universo – por exemplo, a respiração retorna ao vento, os olhos ou a visão ao Sol, os ossos às plantas etc. Ao ser cremado, passa por dentro do fogo por meio da fala, por dentro do Sol por meio da visão, por dentro da Lua pela mente, pelos quadrantes através da audição e, pela respiração, dentro do vento. Sobre as considerações relacionadas ao tempo de recriar o corpo, para renascimento sobre a Terra, existem três doutrinas que foram agrupadas por Frauwallner 229 : a primeira, a doutrina da água; a segunda, a do ar; e a terceira, a do fogo. Entre essas, é justamente associada à doutrina do ar que surge a palavra ãtman 230 , mais tarde tão importante como o “eu essencial”, e que etimologicamente está conectada à idéia de “respiração-vida”. Esta conexão é encontrada explicitamente: “tudo que tem ãtman respira”. Nos Brãhmanas respiração é sinônimo de vida; nos Upanishads há o relato de uma competição entre as funções corporais em que vence a respiração. As especulações sobre a respiração ( prãna ) e seu significado é uma temática sempre presente no pensamento indiano, desde os primórdios e ao longo de toda a sua história. Há um outro motivo nos Upanishads, incorporado dos Vedas e Brãhmanas, que aparece também na descrição da jornada de volta para a Terra – a idéia do Sol e da Lua como barreiras entre a vida humana e a esfera absoluta ou transcendente. O Sol, o fogo macroscópico, é visto em dois sentidos: primeiro, como força da vida, no sentido amplo, por meio do contínuo renascimento da alvorada que provê um tempo no qual viver, graças à dependência do homem sobre o Sol; segundo, como morte (potencial), “aquilo que está queimando é morte; porque é morte, as criaturas deste lado dele morrem, aqueles deuses, que estão do outro lado mais distante, são não-morrendo”. A Lua também é vista de duas maneiras: primeiro, como embarcação, a qual, com o crescimento e a palidez da lua, enche a si própria de vida, dando soma líquido – este, quando ingerido, traz “imortalidade”, sendo também um símbolo da água vivificante em geral; segundo, como portão para o “Reino dos Céus” e, junto com o vento (respiração), a água, o fogo, a luminosidade e o Sol, uma das “seis

229 FRAUWALLNER, E. Geschichte der Indischen Philosophie . Salzburg, 1953, pp. 49ss: ‘Die Atem-Wasser und Feuerlehren’. (sublinha-se o suposto ksatriya, origem de algumas dessas idéias) in COLLINS, S. (1982, 1994: 49). 230 Verificar o sentido ao final, no Glossário. 112

portas de Brãhman ”. Como, a partir da doutrina da água, a vida humana é dependente desta, a Lua é uma porta fechada, uma barreira. 231 Assim, este “eu do ritual do sacrifício”, configurado a partir das práticas do ritual, de suas crenças e tradições, tinha como um dos princípios organizadores de sua consciência individual, ao contrário do “eu ascético indiano”, praticar a violência através do ato de matar para obter Amrtam . Essa identificação entre ato e violência acabou tornando-se a configuração do ato por excelência. Todavia, no interior desta tradição, tal ato não acarretava questões éticas ou morais – tais questões não tinham lugar na medida que o ato de matar estava plenamente justificado, pois apenas por seu intermédio era possível obter Amrtam .

3.3 Vertentes da “não-violência” e do “fazer o sagrado”

Tendo traçado o cenário da paisagem mental da construção da categoria do eu no pensamento indiano, pode-se agora destacar como foram sendo delineadas, inicialmente, duas lógicas bastante distintas e opostas nas tradições religiosas da Índia: uma tradição autóctone pré-ariana e uma tradição ariana, nascida a partir dos invasores. A cada uma destas tradições corresponde, respectivamente, uma elaboração ideológica da categoria do eu: o “eu ascético”, cuja categoria central é o princípio da Ãhimsa – “não-violência” –, e o “eu do ritual do sacrifício”, cuja categoria central é Amrtam , a prática de “fazer o sagrado”. Na religião Védica ariana, esta prática, através do ritual do sacrifício, adota como legítimo o ato de matar, o qual caracteriza o ato violento por excelência. Esta legitimidade da violência estava justificada porque somente através do sacrifício era possível obter Amrtam , um longo tempo de vida. Logo, em cada uma dessas lógicas estão implicados sistemas éticos opostos e distintos que caracterizam estas duas primeiras elaborações ideológicas do eu, através das quais foram apropriados os indivíduos empíricos nos primórdios da Índia. Pode-se analisar separadamente e comparar cada uma dessas elaborações ideológicas do eu, com suas respectivas lógicas e sistemas éticos correspondentes:

O “eu ascético” jainista : apesar de caracterizar o surgimento do indivíduo em uma sociedade holista e tradicional este indíviduo, ao ingressar na instituição da renúncia, pode viver a sua diferença sem que para isso precise estar, necessariamente, comprometido com

231 COLLINS, S. (1982, 1994: 50). 113

uma ideologia do individualismo. O renunciante coloca um acento máximo em sua singularização enquanto indivíduo e em sua independência quase absoluta em relação a seu grupo social. Porém, o valor maior continua a ser dado à sociedade como um todo. A importância desta elaboração ideológica é que, mesmo não possuindo ainda o status de uma categoria conceitual no pensamento filosófico-religioso indiano, ocupa, desde o início, o lugar de uma “categoria sagrada do espírito humano”. A questão da especificidade da “sacralização do ser humano” na Índia pode ser pensada através da “identificação mística”, que inclui entre seus componentes o “sentimento de dependência”, a anulação diante da experiência do “sentimento de criatura” frente a uma prepotência que lhe é, logicamente, anterior. Por meio da instituição da renúncia e desta “identificação mística” o indivíduo ingressa na floresta em busca do caminho da salvação. Para pensar-se esta especificidade da questão do eu como categoria sagrada do espírito humano toma-se como ponto de partida o uso do termo “sagrado” nas línguas antigas. Verifica-se, em Otto, que este uso não inclui um sentido moral, ao menos não exclusivamente, parecendo apontar mais para um excedente de significação e um elemento irracional como componente do “sentimento de dependência”, através do qual o autor busca apreender uma emoção religiosa que foi por ele denominada “sentimento de criatura” experimentado diante de uma prepotência, possivelmente ligado ao sentimento de êxtase, algo da ordem do excesso, que por isso mesmo não é apreensível, exclusivamente, através de categorias conceituais. Como assinala Bauman, em Otto a experiência religiosa não pode ser apreendida apenas através de “uma definição racional”, pois ultrapassa o campo de uma pura e simples significação conceitual. 232 O fato de o uso do termo “sagrado” nas línguas antigas não incluir um sentido moral não quer dizer que, entre as tradições ascéticas, em particular a tradição jainista (ao que tudo indica uma das mais antigas da história da Índia 233 ), não tenham sido modelados os primeiros conteúdos éticos que provavelmente foram incorporados ao “sentimento de si” do “eu ascético” jainista. Uma das principais características que se presta a esta demonstração é, justamente, que a categoria central do “eu ascético” jainista, da fabricação da sua consciência individual, a ahãmkara , é o conceito de Ahimsâ , a “não-violência”. Este conceito implica numa ética de “não-ação”, já que o ato violento é o de matar, o qual o caracteriza por excelência. Segundo esta ética, portanto, estava vedado matar ou fazer

232 BAUMAN, Z. (1998: 263). 233 Procuramos demonstrar a existência deste reconhecimento, particularmente em Zimmer. In ZIMMER,H. (1951, 1986: 138). 114

qualquer tipo de mal a qualquer criatura viva. É justamente nesta tradição que vamos encontrar uma das teorias mais primitivas do Karman , onde os atos virtuosos causam um influxo de Karman bom ou sagrado – punya-ãsrava – que torna a mônada , a ãjiva , mais branca 234 .

“O eu do ritual do sacrifício” : o sacrifício oferece ao homem a possibilidade de se transformar, de se transferir do profano para o sagrado, vivendo assim também sua “identidade mística” com o Absoluto. No “fazer o sagrado” dentro do ritual do sacrifício encontra-se a “questão sacralização do ser humano” em sua vertente na tradição ariana. A categoria central do “eu do ritual do sacrifício” é Amrtam . Uma das principais finalidades do “ritual do sacrifício” é fazer intervir a vontade humana para alcançar Amrtam , um tempo de vida longo, seguro e feliz na Terra. De acordo com esta ética, não há nenhum problema se, para alcançar Amrtam , for necessário sacrificar criaturas vivas, sejam estas seres humanos ou animais. Entre os conteúdos éticos do “eu do ritual do sacrifício” está configurada uma ética da ação que se caracteriza como prática da violência, ou seja, nesta perspectiva é reconhecido como legítimo o ato de matar e praticar a violência para poder se obter Amrtam . Esta dimensão é importante porque permite compreender como este “não-morrer”, Amrtam , foi aproximado dos deuses nos primórdios do pensamento brahmânico, ou seja, pela contínua renovação ou renascimento como resultado do sacrifício. Nesse sentido pode-se compreender por que o Buddha Shãkyamuni, ao alcançar a iluminação, tenha conseguido interromper o ciclo de renascimentos, ou seja, tornar este ritual de sacrifício brahmânico desnecessário. Em sânscrito este “esquema das coisas” que deve ser ordenado para que o homem possa construir seu tempo de viver recebe dois nomes: Rta , "o que é ordenado, moldado junto" e Dharma , "o que é para ser preservado" 235 . Ambos possuem uma ambigüidade, que se encontra presente na medida em que se refere tanto ao nível real como ideal da ordem cósmica – como o universo é ordenado e como deveria ser. Embora na mitologia Védica a tarefa de manter a ordem cósmica fosse atribuída a um deus, esta "força divina" era muito mais proveniente de um demiurgo 236 do que de um deus criador, sendo esta atividade divina sempre suplementada pelo esforço humano.

234 ZIMMER, H. (1951, 1986: 176). 235 COLLINS, S. (1982, 1994: 41). 236 “Demiurgo”: Segundo Platão, o deus que cria o universo, organizando a matéria pré-existente; criatura intermediária entre a natureza divina e a humana: “Já passou a época dos heróis, demiurgos e reis para a história humana; das catástrofes, para a geologia – hoje é o átomo aqui, e ali o infusório, acolá a vil plebe e a multidão 115

Em relação a estas duas lógicas que configuram as primeiras elaborações ideológicas do eu e seus respectivos sistemas éticos pode-se então afirmar que a primeira das duas caracteriza o “eu ascético” jainista que, particularmente dentro desta tradição, tem como seu principal conteúdo ético uma ética de “não-ação”, com seu ideal de “não-violência”, guiado pelo conceito da Ahîmsa . De acordo com este conceito estão proibidas todas as ações que possam redundar na morte de qualquer criatura viva: tanto um homem, quanto uma formiga possuem, à luz desta tradição, o mesmo valor sagrado enquanto criaturas vivas. Assim, seu principal conteúdo ético é a proibição de matar ou fazer qualquer mal a qualquer ser vivo. Foi esta tradição mostra a incorporação de conteúdos éticos na construção do “eu ascético jainista”. Embora esta tradição remeta à proto-história da Índia não-védica e suas idéias sejam antiqüíssimas, não desaparece mais da cultura indiana, e tem um acentuado destaque do resto da comunidade hindu, justamente pela importância excepcional que é dada à não-violência. O conceito de Ãhimsa não apenas foi sendo transmitido e incorporado, de tradição em tradição, chegando até a época do Buddha como, nos tempos modernos, teve a honra de transmitir ao jovem Ghandi seu ideal de “não-violência.” 237 , que desempenhou um papel político fundamental na conquista da independência da Índia. Pode-se afirmar que Ghandi representa uma forma de subjetividade histórica na qual o “eu ascético” jainista pode ser reconhecido em toda a sua força, um eu ideologicamente comprometido com algumas das tradições autóctones e milenares mais antigas de toda a Índia. Assim, na época dos primórdios da civilização indiana, além do conceito do Ãhimsa ter permanecido vinculado à tradição ascética Jainista 238 , posteriormente outras tradições ascéticas mostram idéias onde claramente este conceito havia sido incorporado. Segundo Zimmer, as ideologias tanto dos sistemas do Sãnkhya , quanto do Yoga estão relacionadas com o sistema mecânico dos jainistas 239 e, como já vimos, segundo Mauss, a escola do Sãnkhya foi precursora do budismo. 240 Contudo, essas idéias não aparecem em qualquer dos textos indianos ortodoxos até uma data relativamente tardia, ou seja, nas mais recentes

dos pequeninos que definem, explicam e governam o mundo” in Novo Dicionário Aurélio , Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1975, p. 432. 237 MOURRE, M. (1961, 1998: 216). 238 Essa tradição sobreviveu na Índia até a época do Buddha, pois Mahãvira, que é considerado seu fundador histórico pela maioria dos estudiosos ocidentais — posição da qual Zimmer diverge — foi contemporâneo de Buddha. Zimmer sustenta a seguinte tese: “Mahãvira não foi o primeiro, mas o último de uma série de Tirthankara . O número tradicional destes é de vinte e quatro, e supõe-se que a linhagem provenha, através dos séculos, de tempos pré-históricos” in ZIMMER, H. (1951, 1986: 138). 239 ZIMMER, H. (1951, 1986: 203). 240 MAUSS, M. (1938, 1974: 225-226). 116

estratificações dos Upanishads e na Bhagavad Gïtã , onde já estão mescladas e harmonizadas com as idéias capitais da filosofia védica. Tal fato apenas revela que, após uma longa história de inflexível resistência, a mentalidade brahmânica dos invasores arianos tornou-se receptiva e, finalmente, aceitou as sugestões e influências da civilização indiana nativa. A segunda lógica é diametralmente oposta à primeira – abrange o “eu do ritual do sacrifício”, cuja categoria central é Amrtam e sua ética da ação que caracteriza o ato enquanto violento, ou seja, nesta perspectiva está permitido o ato de matar e praticar a violência. De acordo com esta ética não há nenhum problema se, para alcançar Amrtam , é necessário “fazer o sagrado”, mesmo que isto implique no sacrifício de seres vivos. Assim, diferentemente do ocidente, em que a “sacralização do ser humano” está comprometida com o racionalismo ocidental, com a elaboração ideológica de seres morais, em tudo iguais perante a lei, na Índia a “sacralização do ser humano” não só não inclui exclusivamente um sentido moral como também é portadora de um elemento irracional, que em sua “identificação mística” aparece ligado ao êxtase e à dependência, ao “sentimento de criatura”, assim como à necessidade de empurrar o tempo de vida para frente, o “fazer o sagrado” no ritual do sacrifício. Na tradição pré-ariana, como foi visto, a especificidade da questão da sacralização aponta muito mais para um determinado tipo de indivíduo que surge como complemento de uma sociedade holista, representado pelo asceta indiano, onde o acento máximo é colocado na sua singularização. O indivíduo que ingressa na floresta tem um caráter extraordinário, “único” e deve, através da instituição da renúncia, buscar o caminho da salvação. Já na tradição ariana a questão da sacralização aparece vinculada a “fazer o sagrado”, ao assujeitamento do indivíduo, que deve fazer intervir a sua vontade por meio do sacrifício para construir um tempo de vida mais longo na terra, para alcançar Amrtam . Estas duas lógicas com seus respectivos sistemas éticos disputam, num certo sentido, uma hegemonia no pensamento filosófico e religioso indiano, e quando, na cultura indiana, esta “sacralização do ser humano” alcança o seu ápice através da identidade Ãtman-Brahmã , a sociedade de tradição ariana acaba por integrar este ideal da Ahimsã, configurando assim uma nova elaboração ideológica do eu – o “eu pré-budista”, o que só foi possível devido ao declínio da violência do ritual do sacrifício e à reação, do interior da própria tradição ariana, contra as práticas sangrentas do sacrifício. Um novo caminho soteriológico será então construído: ao invés da violência do ritual do sacrifício, a via apontada pelas especulações filosóficas dos Upanishads pós-védicos como caminho da salvação é a do conhecimento.

117

3.4 Renunciante: individualização “mística”, extraordinária, em ruptura com sociedade

Na Índia o desenvolvimento espiritual do indivíduo tem por tradição a renúncia ao mundo, a ruptura com todas as instituições que formam a trama da existência coletiva, o abandono da comunidade à qual se pertence durante toda a vida, o retiro para um lugar de solidão definido por sua distância em relação aos outros, à sua conduta, ao seu sistema de valores. Segundo Dumont, na Índia, o modelo de surgimento do indivíduo não se produziu pelo enquadramento da vida social; ao contrário, implica que se tenha saído dele. Deve-se sublinhar que o asceta da tradição pré-ariana é o protótipo do renunciante indiano, do “indivíduo-fora-do- mundo”, como denomina Dumont, e que, para efeito deste estudo, fez-se uma aproximação do que se denomina elaboração ideológica do “eu ascético”, do lugar dado pela sociedade indiana ao renunciante com a categoria do sagrado, tal como encontrada em Otto. Uma tal aproximação permitiu ver este indivíduo como extraordinário (“único”) em sua pregação aos homens na Terra, em sua proposta de revolução espiritual e, conseqüentemente, em ruptura com o mundo instituído da sociedade indiana tal como havia sido imposta pelos invasores arianos, uma sociedade hierárquica e dividida em varnas . Para ocupar este lugar nas origens das tradições ascéticas pré-arianas, apresenta-se esta problemática de anulação do indivíduo, pensada em Otto como uma anulação diante de uma pré-potência através da qual busca apreender a experiência religiosa como portadora de um elemento irracional. Porém, tal anulação do indivíduo pode não ocorrer apenas em função do “sentimento de dependência”, do “sentimento de criatura”, da “identificação mística”. Outros fatores podem, também, contribuir para esta anulação do indivíduo. Dumont olha para esta mesma questão a partir de um outro ângulo – aponta para um outro tipo de anulação do indivíduo determinada, no caso da Índia, por razões sociais e políticas vinculadas ao sistema de divisão social em varnas . Para ele o “asceta indiano”, o sannyãsin , é o protótipo do renunciante. Dumont foi um dos primeiros autores ocidentais a chamar a atenção para o seguinte fato: na Índia hinduísta há dois tipos de homens – os que vivem no mundo e os que renunciam ao mundo 241 . Para o primeiro, a instituição fundamental é a casta, a varna que, por ser um mundo tecido por relações, implica no fato de os homens particulares não terem substância; isto é, existem empiricamente, mas não possuem ser. O que tem substância é o “sistema”, o qual transcende o indivíduo enquanto tal, o “conjunto que forma as varnas ”, o “conjunto das castas”, que se poderia denominar, em um viés mais ligado à intersubjetividade,

241 DUMONT, L. Homo Hierarchicus. O Sistema de Castas e suas implicações . Tradução de Carlos Alberto Fonseca. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1992, 2 a ed., 1997, p. 320. 118

de “realidade trans-individual” ao invés de “sociedade holista”. Como afirma Dumont, “aqui, o indivíduo na casta, não é”. Já no segundo modelo, o do Sannyãsin , “o indivíduo é”. Assim, desta perspectiva traçada por Dumont, o asceta e renunciante indiano, ao se constituir em sua independência e singularidade através da exclusão de todos os laços sociais e se desprender da vida tal como é vivida no interior das varnas , o seu meio social, encontra um caminho para sua existência enquanto indivíduo. O seguinte problema se coloca, então, para Dumont: “como compreender de que forma pode existir uma outra coisa, isto é, um pensamento para o qual o indivíduo é”? 242 Esta afirmação do indivíduo, da construção da consciência individual nos primórdios do pensamento indiano, surge imbricada com a questão da “sacralização do ser humano.” Desde os primórdios da civilização indiana as práticas de yoga eram uma técnica através da qual se buscava alcançar uma ligação entre uma consciência individual e uma consciência cósmica, que na Índia corresponde à esfera do Absoluto, à esfera do Sagrado. Assim, pode-se supor que a questão da sacralização da categoria do eu, cronologicamente, superpõe-se ao começo da história das civilizações, na medida em que é um valor cultural presente desde os seus primórdios. No entanto, neste jogo de permanente oposição entre civilização e cultura, quando o progresso material muitas vezes acaba colocando em risco os valores tradicionais, a construção da categoria do “eu”, com seu componente religioso, místico, sagrado, pode ter sido um dos instrumentos mais poderosos para a preservação de certos valores, sem os quais uma cultura corre o risco de perder a sua “condição humana”. Parece difícil, hoje, refutar a idéia de que o aparecimento da consciência foi um salto dado dentro de uma linha evolutiva, o que pode ser realizado tanto numa direção para o melhor quanto para o pior. Com este novo instrumento o eu busca alcançar o delicado equilíbrio, tão necessário, entre o desenvolvimento material e a construção e preservação de valores e tradições, entre os quais pode estar em jogo a preservação da própria condição humana. Como ensina Mauss, não se pode deixar de estar alerta pois há grandes bens a defender; segundo sua visão, com os indivíduos modernos a idéia pode desaparecer. Entre o sétimo e o quinto século a.C., na Índia, a vida intelectual estava em efervescência. Este período, como foi apontado muitas vezes, marca um ponto de virada no desenvolvimento do mundo, pois esta foi testemunha dos primeiros filósofos na Grécia, dos grandes profetas hebreus, de Confúcio na China, e, provavelmente, de Zaratustra na Pérsia. Na Índia foi marcado, de um lado, pelo ensinamento dos sábios dos Upanishads , que

242 DUMONT, L. (1997: 323). 119

admitiram a inspiração dos Vedas e o valor relativo dos sacrifícios védicos e, de outro, pelo aparecimento de mestres menos ortodoxos, que rejeitaram os Vedas completamente. Foi neste tempo que surgiu o budismo que, junto com o jainismo, irá se tornar um dos mais bem sucedidos de um grande número de sistemas heterodoxos, cada qual baseado em um grupo de doutrinas e repousando em distintas regras de conduta para ganhar-se a salvação 243 . Embora seja difícil traçar o pano-de-fundo social deste grande desenvolvimento da heterodoxia a partir das tradições do jainismo e do budismo, é importante trazer um pouco do clima destes tempos tão auspiciosos para o desenvolvimento de valores espirituais para a humanidade. Segundo Bary a heterodoxia floresceu mais fortemente no que é, agora, o estado de Bihar e a parte ocidental de Pradesh. Aqui, a chegada tanto da civilização ariana quanto da religião brahmânica parece ter sido relativamente recente no tempo. As pessoas haviam sido, provavelmente, pouco afetadas pelo sistema ariano de divisão social em varnas , e a influência de brãhman não era, de nenhum modo, completa. O desenvolvimento de estados organizados e o avanço da cultura material foram acompanhados pela rápida difusão de novas religiões que se tornaram, rapidamente, fundamentais para todo o pensamento indiano. É notório que nos Vedas e na primeira literatura brahmânica a doutrina da transmigração não é mencionada, claramente, em nenhum lugar, portanto não há nenhuma boa razão para acreditar que os arianos dos tempos védicos a aceitavam. Ela surge, em uma forma mais primitiva, nos primeiros Upanishads, como uma rara e nova doutrina a ser divulgada como um grande mistério, por mestres-eremitas, para os seus alunos mais promissores. Na próxima camada da literatura religiosa indiana, as escrituras budistas e jainistas, a doutrina da transmigração é tomada como aceita e como verdadeira, tendo se tornado, desde então, quase universal. Bary interpreta o aparecimento da crença na transmigração como algo que pode ter ocasionado um apaixonado desejo para escapar para uma união com algo que se localiza além do “melancólico” ciclo de nascimento, morte e renascimento: para uma existência atemporal, que se tornava, assim, mais atraente do que a existência transitória, experimentada como insatisfatória. Este autor, entretanto, considera difícil avaliar quais motivos podem ter conduzido a esta rápida difusão da crença na transmigração através de todo o norte da Índia. Uma hipótese é que esta crença já existisse, desde tempos imemoriais, em alguma camada da população, no entanto só agora havia afetado às classes mais elevadas. Também diz ser

243 BARY, T. Sources of Indian Tradition . New York. Modern Library, 1958, p. 35. 120

igualmente difícil explicar o porquê do crescimento de um sentimento de insatisfação com o mundo e de um desejo de escapar dele. Várias razões foram sugeridas para avaliar esta grande onda de pessimismo, ocorrendo em uma sociedade em expansão e em uma cultura que se desenvolvia rapidamente, tanto intelectual quanto materialmente. Uma possibilidade é que esta mudança de perspectiva tenha sido devida à dissolução de velhas tribos e sua substituição por reinos onde laços étnicos e o senso de segurança que possuiam tivesse sido perdido ou enfraquecido, conduzindo, então, a um mal-estar psicológico, profundamente localizado, mas afetando todos os setores da população. Uma outra possibilidade sugerida para esta mudança de perspectiva foi uma possível revolta, por parte das pessoas mais inteligentes daqueles tempos, contra o culto estéril do sacrifício dos brâhmanes. Mas o autor considera que nenhuma dessas explicações é completamente satisfatória, sendo melhor admitir-se a atual ignorância virtual a respeito dos fatores que possam ter conduzido a esta grande mudança na direção do pensamento religioso, que ainda hoje produz efeitos na vida da Índia e de todo mundo e que acaba de chegar, em pleno século vinte e um, ao ocidente. Tanto os sábios dos Upanishads quanto os heréticos das escolas não ortodoxas pensavam o caminho do conhecimento como oposto ao caminho dos trabalhos. Seu objetivo primário era adquirir a salvação da roda de nascimento e morte e conduzir outros a alcançar o mesmo. Muitos deles sustentavam que a salvação só podia ser obtida após um longo tempo de disciplina mental, freqüentemente culminando em ascetismo extremo, mas isto ocorria, principalmente, devido aos valores que, supunha-se, conduziriam a uma completa realização das verdades fundamentais do universo. Assim, somente após ter realizado este percurso, aquele que buscava salvação era, finalmente, emancipado do ciclo das transmigrações e alcançava um estado de alegria sem fim, no qual sua personalidade fenomenal desintegrava- se, ou incorporava-se em puro ser. No entanto, as verdades básicas das várias escolas diferiam largamente. Entre as tradições ascéticas oriundas de linhagens pré-arianas encontram-se duas onde há muitas afinidades, cujos foram contemporâneos do Buddha. Na opinião de Zimmer tal afinidade deve-se a uma origem comum em alguma grande tradição da ciência natural e da psicologia pré-arianas. 244 Estas duas tradições são: primeiro, doutrina Jaina , de Mahãvira, o vigésimo quarto Tirthankara jaina, cujos discípulos ficaram conhecidos como jainistas. Mahãvira foi contemporâneo de Buddha e de Gosãla, além dos primeiros filósofos da Grécia,

244 Zimmer afirma que a interpretação de Gosãla sobre esses conhecimentos pode ser reconstruída em suas linhas principais a partir dos relatos e críticas contidos nos primeiros textos jainas budistas. ZIMMER, H. (1986:.183). 121

os pré-socráticos 245 ; segundo, a doutrina Ã-Jiva , de Maskarin Gosãla, cujos discípulos ficaram conhecidos como ãjivikas . O nome “Gosãla” significa “aquele que carrega o bastão de peregrino”. Como já foi dito, o jainismo, o budismo, o Sãnkhya e o Yoga são sistemas que não aceitam a autoridade dos Vedas, sendo por isso considerados heterodoxos, isto é, doutrinas à parte da tradição bramânica ortodoxa dos Vedas , dos Upanishads e do Vedãnta . Segundo Zimmer as doutrinas do Sãnkhya e do Yoga são uma sofisticação psicológica posterior dos princípios conservados no jainismo e prepararam o terreno para a vigorosa afirmação antibrahmânica do Buddha Shãkyamuni. O Sãnkhya e o Yoga formam, juntas, a teoria e a prática de uma mesma filosofia. 246 Mourre também chama a atenção para o seguinte fato: os brâhmanes não foram jamais os únicos intercessores espirituais da Índia antiga; tanto Mahãvira quanto Buddha, que eram considerados heréticos, opuseram ao imobilismo da religião dos brâhmanes, com seu ritual do sacrifício, uma preocupação exclusivamente voltada para a libertação. Por rejeitarem o politeísmo e os sacrifícios sangrentos, se posicionaram como hereges frente à tradição dos Vedas . Ao que tudo indica Gosãla, outro grande herético da mesma época, teria, inicialmente, colaborado com Mahãvira. Ambos foram líderes de uma mesma comunidade durante muitos anos, mas acabaram por divergir em alguns pontos essenciais da disciplina e da doutrina. Tendo se desentendido, houve a separação. Os inimigos de Gosãla, enquanto vivo, não pouparam palavras para atacá-lo. Diz-se que o próprio Buddha Shãkyamuni teria declarado que o seu ensinamento era uma das piores de todas as falsas doutrinas de seu tempo. De fato, a doutrina Ãjivika , que professava que nenhum esforço ascético é capaz de reduzir a série de renascimentos, não oferecia esperanças para quem queria libertar-se do âmbito da ignorância – Avidyã – mediante exercícios de santidade. 247 O próprio Buddha Shãkyamuni experimentou a prática do ascetismo como caminho de salvação antes de inaugurar um novo caminho de salvação, o “Caminho do Meio”. Na verdade, Mahãvira não parece ter desejado fundar uma nova religião. Contentou-se em organizar numa comunidade monástica, um espírito já antigo de independência, amplamente difundido entre os ascetas de seu tempo. Eles possuíam a crença de ter estado em relações com os Nirgranthas , homens liberados do Karma , grupo de solitários limitados às quatro obrigações: de não matar, não mentir, não roubar e de continência absoluta. Mahãvira

245 Entre eles, Tales e Anaxágoras. In ZIMMER, H.(1951, 1986: 191). 246 ZIMMER, H. ( Op.cit. Nota 24, do compilador, p. 67). 247 ZIMMER,H.(1951, 1986: 183). 122

era filho de um rajá de nome Siddhãrta, o príncipe Vardhamana, pertencendo ao clã Kshatriya dos Jñâtrikas, em uma região recentemente brahmanisada. Já casado e pai de uma pequena filha, ao completar trinta anos abandonou, subitamente, os seus e seus negócios para tornar-se um asceta mendicante. Percorreu então, completamente despido, durante doze anos, Bengala. Passou muitas horas por dia a meditar sobre a dor da existência e a procurar a via da libertação. Enfim, recebeu a iluminação e, com isso. o conhecimento salutar – Kevala –, a ciência de todos os estados de existência do universo, dos deuses, dos homens e dos demônios, de tudo o que vive. A partir de agora, era Mahãvira, “o grande herói”. Possuía as dezoito qualificações que constituem o santo, o Tîrthankara , e seus discípulos não se cansaram de enumerar suas trinta e quatro perfeições legendárias. 248 Mourre, entretanto, afirma que, apesar de todos estes atributos, a figura de Mahãvira é menos invadida pela mitologia do que a do Buddha Shãkyamuni, sendo também menos original. Mahãvira distingue-se menos que o Buddha do tipo corrente de asceta hindu. De volta entre os homens, o “vencedor” passou o fim da sua vida a difundir o seu ensinamento. Seu apostalado se estendeu por toda a Índia, do nordeste, através de Koçala, por Videha, por Angra e por Magadha. Foi nesta última província que, por volta da mesma época, apareceram os primeiros passos do budismo. Mahãvira pregou seu último sermão em Pavapuri, no distrito de Patna, que se tornou um dos grandes centros de peregrinação dos jainistas. Em relação à data de sua morte, existem dados controversos. Jacobi, por exemplo, tomando por base o grande doutor da seita, Hemacandra, a situa por volta de 468-467 a.C. Segundo a tradição jainista o fundador teria entrado no Nirvãna à idade de sessenta e dois anos, na vila de Pava, no ano de 527, o que deslocaria sua data de nascimento do ano de 540, admitido hoje por especialistas, para 599. O particular interesse dos jainistas em defenderem esta última data é claro: ela daria a Mahãvira uma anterioridade incontestável sobre o Buddha (560-480). 249 Segundo a lenda, Mahãvira é apresentado como um salvador predestinado, que foi encarnado no momento justo para salvar a humanidade da dor. Sua vinda foi preparada por vinte e três predecessores que anunciaram as mesmas verdades que ele. Os nomes destes Tîrthankaras – “santos perfeitos”, “preparadores do caminho” – foram conservados: o primeiro entre eles, Risabha, tinha nascido há oito milhões e quatrocentos mil anos, e tivera o tamanho de quinhentos arcos. Estes augustos personagens, segundo Mourre e Zimmer, são

248 MOURRE, M. (1961, 1998: 207-208). 249 MOURRE, M. (1961, 1998: 209). 123

evidentemente míticos, salvo o último entre eles, o vigésimo terceiro Tîrthankara, nomeado Pãrçvanãtha, que teria morrido duzentos e cinqüenta anos antes de Mahãvira. Alguns dos principais aspectos desta doutrina e de seu pensamento são: 1- A metafísica da libertação : por seu dualismo essencial, a filosofia jainista se opõe tanto à dos brâhmanes quanto à dos budistas. O universo se explica por dois princípios fundamentais, não criados e indestrutíveis, eternos e independentes um do outro: primeiro, jiva , o animado; segundo, ajîva , o inanimado. Este se subdivide em cinco modalidades: pugdala , a matéria; dharma , o movimento segundo as leis naturais; adharma , a inércia, o repouso; âkâça , o espaço; kala , o tempo. A matéria é composta de átomos sutis, em número infinito, que formam agregados. As almas são mônadas imateriais, sem forma, eternas, ativas, conscientes e conhecedoras. 250 Embora tais concepções pareçam se aproximar do Sãnkhya , segundo Mourre este sistema não reconhece a união verdadeira dos dois princípios constitutivos do mundo. Os jainistas ensinam, ao contrário, que as almas, mesmo sendo autônomas por essência, são, desde sempre, providas de um substrato material e encontram-se submetidas à lei do Karma e das reencarnações. A noção de Karma , comum a todo o pensamento indiano, adquire com os jainistas uma nuance particular, ingenuamente materialista. Para os jainistas, o Karma é em efeito um tipo de resíduo material que, em conseqüência da atividade terrestre, liga-se à alma, cega-a, conspurca-a e a torna cada vez menos propícia à vida espiritual. O Karma é descrito como um envelhecimento, um engorduramento da máquina à proporção de seu uso, ou ainda a acumulação de cristais de ácido úrico nas articulações, de onde resultam os sofrimentos da artrite; é também uma impotência, resultante da acumulação de resíduos deixados pelo funcionamento anterior. A mônada espiritual perde, por essa razão, a clara consciência de sua natureza específica, encontrando-se assim exilada pelo fluxo do Sãmsara . A finalidade suprema do jainismo é de liberar os homens do Karma .251 Como afirma Mourre, este pensamento obsessivo da libertação é comum, tanto ao Buddha quanto a Mahãvira mas, entre os dois, há uma diferença importante em relação ao caminho da libertação. Para o Buddha Shãkyamuni a alma individual deve ser reconhecida como ilusória, e a crença na realidade do eu é a fonte do apego, portanto do sofrimento; para o jainismo é, ao contrário, apenas tomando consciência de sua realidade transcendente e sua autonomia superior que a alma pode se libertar. No jainismo, quando liberada dos quatro invólucros materiais que a asfixiam, a alma acede ao Nirvãna que, também ao contrário do

250 Idem, ibidem . 251 MOURRE, M. (1961, 1998: 209-210). 124

budismo, não é a negação da consciência individual, mas um estado de “não-combinação”. Tendo rompido as ligações com a matéria, afastada doravante de toda contaminação, a alma subsiste em seu esplêndido isolamento. 2- A ascese Jainista : apresenta como conceito central o Ãhimsa , a “não-violência”, “desejo de não-morte”. É importante lembrar, com Mourre, que o vedismo ignorava toda essa obsessão pela libertação, difundida por toda a Índia contemporânea do Buddha e de Mahãvira. Enquanto no vedismo se prosseguiam respeitando os deuses e os ritos tradicionais e aprovando, ainda menos, a saúde além dos ritos alcançada pelo conhecimento e a ascese, os dois “heréticos”, ao contrário, prosseguiam dentro dessa verdadeira “loucura” da liberação. O ideal que inspirou o primeiro élan do Buddha Shakiamuni e de Mahãvira, o “estado de liberação-viva”, gozava, segundo o autor, de um imenso prestígio por toda a Índia, tanto que a teoria dos Ãçramas , ou “estados de existência”, pretendia que o brâhmane, após o cumprimento de suas funções sacerdotais e sociais, uma vez que seus cabelos tivessem embranquecido, pudesse tornar-se um Sannyãsin , um “renunciante”, devendo mendigar sua comida, dormir no chão e, por sua vez, dar-se, voluntariamente, à morte. As principais características da ascese jainista, através da qual o adepto de Mahãvira pode atingir a libertação por meio dos três diamantes, são as seguintes: primeiro, a verdadeira crença, que o encorajará lembrando-o que o jain triunfou sobre a ilusão; segundo, o verdadeiro conhecimento, que lhe revelará como a lei do Karma pesa sobre a existência e por que meios ele pode subtrair-se; por último, a verdadeira conduta. A maior parte das práticas jainistas podem reportar-se a um princípio fundamental, o de Ahimsã 252 , a “não-violência”, que se formula da seguinte maneira: “Não faz nenhum mal a nenhuma criatura, e não suporte nenhuma atenuação, nenhum compromisso”. No Ayâramgasutta , texto jainista do terceiro ou quarto século da era cristã, está escrito: “Todos os santos e os veneráveis do passado, do presente e do futuro, todos dizem, anunciam, proclamam e declaram: não se deve matar, nem maltratar, nem injuriar, nem atormentar, nem expulsar nenhum tipo de ser vivo, nenhuma espécie de criatura, nenhuma espécie de animal, nem nenhum ser de qualquer espécie. Eis o puro, eterno e constante preceito da religião, proclamado pelos sábios que compreendem o mundo” 253 . Assim, para o verdadeiro jainista a vida de uma formiga passando pelo caminho é tão sagrada quanto a do mais nobre dos homens, por isso ele não come carne de nenhum animal,

252 Hims significa “querer matar”, “querer prejudicar”, e ahimsã – “violência”, é a falta mais grave das dezoito faltas capitais condenadas pelo jainismo. In MOURRE, M. (1961, 1998: 211). 253 MOURRE, M. (1961, 1998: 211). 125

se nutre unicamente de frutos, de nozes, de legumes, e carrega pequenos véus diante da sua boca para afastar os insetos ou filtra a água que vai beber para não esmagar nem uma pequena mosca, traz consigo uma escova, demonstrando respeito mesmo pelos mais ínfimos seres ao tirar a poeira dos livros, dos assentos etc, mas não sem antes se preocupar em recolher os detritos. Mourre, no entanto, interpreta esta tão comovente solicitude do piedoso discípulo de Mahãvira pelo seu avesso. Ao se expor, muitas vezes, às picadas de escorpião e de serpente sem se defender a tempo do adversário, mais do que uma transbordante efervescência de piedade, o verdadeiro sentido tanto da Ahimsã quanto da compaixão budista é, antes, a ansiosa preocupação de evitar toda contaminação com o mundo. Assim, a “não-violência”, objeto de elogios exacerbados por numerosos ocidentais, não é de fato compreensível se não for em relação a uma “ética da não-ação”. Este princípio não ordena, em efeito, “ser bom, tranqüilizador para as outras criaturas”, mas “evitar fazer o mal”, porque o ato violento é, por excelência, o ato de matar, aquele que mais compromete o homem com a vida. O amor, também, se compromete, escolhe, se submete à dura lei que obriga a matar para salvar. Na opinião de Mourre, isolada da compaixão, a Ahimsã não pode ser mais que um princípio de fuga, de recusa, de abstenção diante da existência, mas sua importância e sua eficácia mística são muito grandes para que não se tente, além disso, atribuir-se-lhe as virtudes sociais e civilizadoras que desdenhariam seus verdadeiros adeptos indianos. 254 O conceito de Ahimsã, que será incorporado pelas outras tradições ascéticas incluindo o budismo, atravessa todo o pensamento indiano e chega agora, junto com o budismo ocidental, como uma das categorias centrais do “eu budista.” 3- A Cosmologia Jaina: deste ponto de vista o universo é um organismo vivo, em cujas partes circulam mônadas vitais, que constituem a própria substância deste corpo imperecível, sendo eternas como ele. Ainda que os corpos pareçam morrer e nascer, existe uma cadeia contínua, com transformações intermináveis, e tudo que se faz é mudar de um estado ao seguinte. Segundo Zimmer o modo como se dá a circulação das indestrutíveis mônadas vitais é revelado ao santo e vidente jaina através da iluminação. 255 Portanto, as mônadas vitais ascendem e descendem, passando por vários estados deste ser: como humanos, como divinos e como animais. Em seus estados superiores, os dois primeiros, as mônadas vitais possuem as seguintes características: cinco faculdades sensoriais (tato, olfato, paladar, audição e visão); uma faculdade pensante – manas ; duração de vida –

254 MOURRE, M. (1961, 1998: 211-212). 255 ZIMMER, H. (1951, 1986: 162). 126

ãyus ; força física – kãya-bala ; poder da palavra – vacana-bala ; poder de respiração – svãsocchvãsa-bala . Zimmer chama atenção para o fato de que, nas clássicas filosofias indianas – Sãnkhya , Yoga e Vedãnta –, também se encontram estas cinco faculdades dos sentidos que aparecem na fórmula jaina, mas a estas foram acrescentadas as cinco faculdades de ação: a fala – vãc – que corresponde ao vacana-bala do jainismo; o ato de segurar a mão – pãni , a mão; locomoção – pãda , os pés; evacuação – pãyu , o ânus; geração – upastha , o órgão de reprodução. A faculdade pensante, manas , é conservada, mas aparece associada a outras funções psíquicas: buddhi – a inteligência intuitiva; ahamkãra – a consciência do eu. A isto se acrescentam os cinco “alentos vitais” ou prãna 256 . Segundo Zimmer as categorias jainas representam uma descrição e uma análise da natureza humana relativamente primitiva, arcaica, embora muitos de seus detalhes tenham sido incorporados à concepção indiana clássica de origem posterior. Em contraste a essas concepções que representam a alma humana como um átomo, algo diminuto, residindo no coração, o jainismo descreve a mônada vital como se difundindo por todo o organismo, o corpo constitui a sua veste, a mônada vital é o princípio que o anima. 4- A teoria do Karma : a substância sutil da mônada vital encontra-se misturada com partículas do Karma , assim como a água no leite ou o fogo em uma bola de ferro incandescente. Esta matéria kármica é transmitida para a mônada vital através de seis tipos de cores – lesyã – as quais estão agrupadas em três pares associados a um dos três gunas : 1) lesyã jainas escuras, relacionadas ao guna tamas , escuridão – a) Preto, Krshna , b) Azul escuro, nîla ; 2) lesyã jainas fogo, relacionadas ao guna rajas – c) Cinza Chumbo, kapota , d) Vermelho Fogo, tejas ; 3) lesyã jainas claras e luminosas, na medida que correspondem a estados de relativa pureza, logo são as contrapartes jaina do clássico guna sattva : “virtude, bondade, excelência, claridade; ser ideal; o estado supremo da matéria” – e) Amarela ou rosa, padma , como lotus, f) Branca, sukla . Zimmer considera que estas seis lesyãs parecem representar algum sistema de protótipos arcaicos a partir do qual derivou-se o sistema dos elementos básicos da teoria dos gunas , que irá exercer grande influência mais tarde. O simbolismo kármico das seis lesyãs está descrito da seguinte forma: a cor é característica de pessoas impiedosas, cruéis e brutas, que ofendem e torturam outros seres; a cor azul escuro é característica das pessoas libertinas e corruptas, ambiciosas, insaciáveis, sensuais e volúveis; a cor cinza chumbo é característica dos temerários, imprudentes, incontrolados e irascíveis; a cor vermelho-fogo é característica dos prudentes, magnânimos e

256 ZIMMER, H. (1951, 1986: 162). 127

devotos; a cor amarela é característica da compaixão, consideração, ausência de egoísmo, não-violência e autocontrole; a cor branca é características das almas desapaixonadas, absolutamente desinteressadas e imparciais. 257 A sistematização das formas de vida compartilhada por ambas as doutrinas está longe de ser primitiva. Esta sistematização está baseada na distribuição de dez faculdades entre os diversos seres, indo dos átomos elementares até os organismos dos homens e dos deuses. Segundo Zimmer, apesar desta sistematização ser curiosa e arcaica, ao mesmo tempo é rebuscada e sutil ao extremo; trata-se de uma concepção fundamentalmente científica do universo. No seu entender são concepções que iluminam a longa história do pensamento humano, na verdade bem mais extensa e impressionante do que aquela defendida pelos humanistas e historiadores acadêmicos ocidentais através de suas breves histórias sobre os gregos e a renascença. Os ensinamentos que Mahãvira difundia já existiam há séculos, talvez milênios. Há muito tempo tal sistematização tinha liquidado com as hostes dos poderosos deuses e magos feiticeiros da tradição sacerdotal ainda mais antiga, que por sua vez já se encontrava muito acima dos níveis realmente primitivos da cultura humana. Assim, pode-se reconhecer com um pouco mais de humildade que o mundo já era antigo, muito sábio e erudito quando as especulações dos gregos produziram os textos que hoje são estudados em universidades como se fossem os primeiros capítulos da filosofia. Como se observará, contrariamente à idéia ocidental de indivíduo eterno, como foi concebida pelos gregos e legada ao cristianismo e ao homem moderno, na terra do Mahãvira e do Buddha Shãkyamuni a personalidade sempre foi considerada uma máscara transitória, o que não impediu que à noção do eu também tenha sido dado o status de uma “categoria sagrada do espírito humano”, desde os primórdios desta cultura. Segundo Collins o budismo tradicionalmente tem esquematizado outros estilos de pensamento em termos de listas ordenadas de doutrinas, por meio de seu conteúdo conceitual, como no freqüente “Primeiro Sutta” da “Coleção de Suttas” – a Brahmayãla , ou em termos de personalidades particulares, mais comumente referidas como os “Seis Heréticos” – como no Segundo Sutta da Coleção, o Sãmaññaphala –, cada um dos quais apresentado como “cabeça” de uma ordem, professor de uma escola bem conhecida e de reputação, assim como um sofista, reverenciado pelas pessoas, um homem de experiência que tem algumas de suas idéias, de acordo com a visão budista, como doutrinas particulares sustentadas por indivíduos particulares. Justamente, três dos seis heréticos parecem ter sido conectados com o começo do

257 ZIMMER, H. (1951, 1986: 163-164). 128

movimento conhecido como Ã-Jiva , sendo o mais importante Gosãla, cujo pensamento está condensado nas seguintes palavras: “Não há causa nem condição para a degradação moral dos seres, eles se tornam degradados sem causa nem condição. Não há causa nem condição para a purificação dos seres, eles se tornam purificados sem causa nem condição. Nenhuma ação de qualquer pessoa tem qualquer efeito. Todos os seres: fracos, sem força ou sem vigor modificam-se pelo acaso, assim como experimentam felicidade ou tristeza nas seis classes de seres da qual eles pertencem e sua própria natureza. Através de oitenta e quatro mil grandes aeons cósmicos, tolos e sábios como sejam, vagueiam através da roda de renascimentos antes de colocar um fim para o sofrimento. Na roda de renascimento, com seu fim designado, felicidade e mágoa são medidas exteriormente como numa medida de arroz, não há nem crescimento nem decrescimento, nem ascensão nem queda. Assim como um rolo de barbante desenrola sua extensão até o fim, tolos ou sábios vagueiam pela roda do renascimento até encontrar um fim para seu sofrimento” 258 . O Buddha discordava do principal dogma de Gosãla pois este não deixava lugar algum para o esforço humano voluntário. Por outro lado, tanto o jainismo como o budismo concordam em acentuar a possibilidade de uma mais rápida liberação do ciclo como conseqüência do esforço. Ambas as doutrinas representam um protesto contra a mecânica inflexibilidade da lei evolutiva de Gosãla, na medida que atinge a esfera da vontade humana. Neste ponto o Buddha é completamente categórico: “Existe – diz ele – um esforço heróico (viryam ) no homem; existe a possibilidade de um empenho bem sucedido ( utsãha ) cuja meta é livrar o homem do vórtice de renascimentos, desde que ele lute muito por isso.” 259 Os discípulos de Gosãla ficaram conhecidos como ãjivika , os que professam a doutrina de ã-jiva . O termo jiva significa “mônada vital”, e o prefixo ã, neste caso, significa “enquanto”. Toda esta denominação parece estar referida à doutrina de Gosãla, pois “enquanto a mônada vital”, ã-jiva , não tiver seguido o curso normal de sua evolução até o fim, ou seja, tiver passado por um número fixo de nascimentos inevitáveis, não é possível a sua realização. Segundo a doutrina ã-jiva o progresso biológico natural não pode ser nem acelerado através da virtude e do ascetismo, nem retardado por causa do vício, porque o progresso tem um curso inexorável de acordo com o seu próprio ritmo. 260

258 COLLINS, S. (1982, 1994: 35 - 36). 259 Nota do Compilador: Nas escrituras budistas há muitas passagens em louvor ao esforço e ao empenho; contudo, não foi possível localizar o trecho aqui citado por Zimmer, In ZIMMER, H. ( 1951, 1986, n. 90: 184). 260 ZIMMER, H. (1951, 1986: 183). 129

Por causa desta visão, o próprio Buddha Shãkyamuni declara os ensinamentos deste importante antagonista como a pior doutrina de todas as falsas doutrinas de seu tempo: “a compara a um vestido de cânhamo que, além de ser desagradável à pele, não oferece proteção alguma contra o frio no inverno ou calor no verão”.261 Um vestido (a doutrina) inútil que não serve para nada. De fato a doutrina Ã-Jiva considerava que nenhum esforço ascético era capaz de reduzir a série de renascimentos, logo não oferecia esperanças para aquele que ansiava liberar-se o mais rapidamente possível do âmbito da ignorância mediante exercícios de santidade. A metáfora de Gosãla do rolo de barbante faz do destino humano uma trajetória inexorável, que obedece à lei que rege a evolução da mônada vital. Nenhum esforço humano ou graça divina pode alterar este princípio inalterável de escravidão, evolução e liberação. Segundo Zimmer esta é uma lei que entrelaça toda a vida, liga desde a matéria elementar, aparentemente inerte, ao reino dos insetos e dos homens, atravessa todas as coisas vestindo e despindo todo o guarda-roupa de máscaras e vestimentas próprias aos papéis das encarnações, e não pode ser forçada, apressada, enganada ou negada. 262 Esta lei traduz uma perspectiva fria e científica do universo e suas criaturas. Há como uma espécie de melancolia projetada no reino da natureza, não faz concessões para a fé ou anseios humanos, nenhum acordo favorável à consciência de uma possível liberdade. A doutrina de Gosãla, através de uma visão panorâmica de todos os reinos e divisões da natureza, mostrava que cada mônada vital devia atravessar, numa série de oitenta e quatro mil nascimentos, todo o espectro de variedades do ser. Essa trajetória começava entre os átomos elementares do éter, ar, fogo, água e terra, progredindo passo a passo pelas esferas das formas de existência geológica, botânica e zoológica até chegar, por fim, ao reino humano. Cada nascimento está vinculado aos demais de acordo com uma precisa ordem evolutiva, minuciosamente graduada. Todas as mônadas do universo teriam de passar por esta única e inevitável trajetória. A criação torna-se uma espécie de laboratório cósmico onde as mônadas se tornam cada vez mais refinadas, enriquecidas e limpas, passando de obscuros e inferiores estágios do ser para estágios superiores até que, por último, na forma humana, no limiar da liberação, adquirem a discriminação moral e o conhecimento espiritual. 263

261 AGUTTARA – NIKÃYA I. 286. (Traduzido por T. W. Rhys Davis) The Gradual Dialogues of the Buddha , Pãli Text Society, Translation Series n. 22, Londres, 1932, p.265. In ZIMMER, H. (1951, 1986: 183). 262 ZIMMER, H. (1951, 1986: 184). 263 ZIMMER, H. (1951, 1986: 184). 130

O Buddha em Parinirvãna (nirvãna completo) com seu discípulo Ananda. Grupo de estátuas do século XII. Polonnaruwa, Sri Lanka, Ceilão in Faure, B. Boudhisme . Paris: Editions Liana et Levi, 1997.

131

4 O BUDISMO, UMA OUTRA VERSÃO DA INDIVIDUALIDADE NA ÍNDIA ANTIGA

Possam os ensinamentos do Senhor Buddha, a única fonte de felicidade e benefício, Existir nesse mundo para sempre, Possam as vidas dos que preservam os ensinamentos do Senhor Buddha, Existir como uma bandeira de vitória! Vermelha 264

4.1 O Budismo do Buddha Shãkyamuni 265 – “O Desperto”

Se, por um lado, o budismo experimentou o ápice e o declínio em sua própria terra nativa, por outro é a única mensagem religiosa e filosófica da Índia que se difundiu além de suas fronteiras. A difusão do Budismo é um fato indubitável, que se mantém vivo e ativo ao longo de dois mil e quinhentos anos de história e expansão geográfica desde o seu surgimento na Índia. Primeiro conquistou a Ásia ao norte e ao leste, interessando mais de trinta países e atingindo cerca de vinte e duas línguas asiáticas 266 , tornando-se, naquela vasta região, uma crença de massas que contribuiu para moldar a civilização asiática durante séculos. A partir do século dezenove as idéias budistas também passaram a despertar o interesse da filosofia, literatura, música e demais artes culturais do ocidente, mas foi em meados do século vinte, principalmente após a invasão do Tibete pela China 267 , que a expansão do budismo em direção ao ocidente ganhou uma nova força. Além do interesse intelectual despertado até então, começou a haver uma crescente difusão dos ensinamentos e práticas pelos próprios mestres oriundos da diáspora tibetana, conduzindo a um nível de comprometimento e

264 Tara Vermelha – Uma Porta Aberta Para a Bem-Aventurança e o Estado Desperto Definitivo (versão para uso restrito às salas de práticas coletivas), fornecida pelo Lama Padma Samten. 265 Shãkyamuni B (Sãkyamuni) Skt., lit.: “Sábio do Clã dos Shãkya”, epíteto de Siddhãrta Gautama, o fundador do Budismo (buddha dharma), o Buddha histórico, que pertenceu ao clã do Shãkya. Siddhãrta recebeu este epíteto após ter-se separado de seus professores e resolver encontrar por si mesmo o caminho para a iluminação. Shãkyamuni é freqëntemente mencionado em associação com Buda, de maneira a distinguir o Buddha histórico dos outros Buddhas. In The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion. (1989: 313). 266 GARD, R.A. Budismo . Tradução de Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1961, 1964, p. 9. 267 Nessa invasão, seis mil monastérios foram destruídos, bibliotecas queimadas, estátuas quebradas, afrescos destruídos. A prática espiritual era, sem constestação, o fim principal da existência, e os próprios leigos consideravam que suas atividades cotidianas, se necessário fosse, tinham importância secundária diante da vida espiritual. Ao serem aniqüilados aqueles mosteiros, estava sendo destruído o coração da cultura tibetana. A única coisa que não se conseguiu destruir foi o ânimo dos tibetanos. A esperança que eles alimentam de salvar a sua cultura e recuperar sua independência continua inteira. In REVEL, J.F. e RICARD, M. O monge e o filósofo: o budismo hoje . Tradução de Joana Angélica d’Ávila Mello. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 15. 132

aprofundamento cada vez maior 268 . Assim, o budismo começa a implantar-se também no ocidente. O fenômeno da difusão do budismo poderia levar a pensar a filosofia do Buddha Shãkyamuni como portadora de uma mensagem eminentemente popular e acessível às grandes massas. Este fato explicaria o seu poder de penetração em culturas e povos diversos ao longo das mais distintas épocas históricas, pelos quatro cantos da Terra. Segundo Zimmer essa primeira impressão, na verdade, não se sustenta, pois trata-se justamente do contrário: “Este fato tende a ocultar que, em sua essência, o budismo destina-se apenas a uma minoria de privilegiados” 269 . Logo, um dos primeiros pontos desta análise do budismo será procurar desvendar este caráter aparentemente paradoxal: como uma doutrina que se destina a “poucos privilegiados” conseguiu um raio tão amplo de difusão no tempo, da antiguidade à pós- modernidade e, no espaço, da Ásia à Europa, chegando às Américas do Norte e do Sul. Depois de focalizar as raízes da tradição budista no pensamento indiano, onde recorta- se a tradição da “não-violência”, “ Ãhimsa ”, como uma das características mais marcantes deste pensamento, examinar-se-ão agora as bases do budismo antigo, que foi fundado na Índia por Siddhãrta Gautama, o Buddha. Quando compara-se a biografia do Buddha Shãkyamuni com outros homens de seu tempo verifica-se que ela não difere muito do paradigma de vida de outros hereges, como por exemplo da vida de Mahãvira, contemporâneo do Buddha Shãkyamuni, que foi examinada no segmento anterior. Na verdade, o Buddha Shãkyamuni é, em tudo, um homem da sua época. Porém, traz a marca característica daqueles homens dotados de uma onipotência criadora, capazes de transcender o seu tempo, atravessar a história e deixar impressas, nela, as letras do seu nome 270 . Por isso, diferente de Mahãvira, o Buddha Shãkyamuni abre um novo caminho de salvação, o “Caminho do Meio”, tendo se tornado, a partir deste ato, o fundador histórico do budismo. Segundo a tradição, Siddhãrta Gautama descende do clã dos Shãkya, que governavam com outras famílias um pequeno Estado em Kapilavastu, próximo ao poderoso reinado de Kosala. Esta família pertencia à varna dos kshatryas 271 , na época da Índia Brahmânica, no entanto, não há muitas referências históricas sobre a infância e a juventude do Buddha

268 SUBHUTI, D. (Alex Kennedy) Buddhism for Today A Portrait of a New Buddhist Movement . Gsã Bretanha. Windhorse Publications, 1983, 1988, p. 26. 269 ZIMMER, H. (1951, 1986: 326). 270 O Buddha recebeu muitos nomes; os mais usados são os de Siddhârta (aquele que alcançou o alvo), de Gautama (ou, em pali , Gotama ), de Çâkyamuni (o sábio, ou asceta da família dos Çâkyas ) e de Çâkyasinha (o leão Çâkya ). 133

Shãkyamuni 272 . A própria historicidade da existência do Buddha Shãkyamuni já foi alvo de debates entre os estudiosos. Na opinião de Mourre, os textos relativos à existência do Buddha Shãkyamuni estão longe de apresentar a mesma garantia de autenticidade dos Evangelhos cristãos. Há oscilações segundo o país e as diversas escolas budistas. Os mais antigos remontam aos três séculos posteriores à morte do fundador. Em sua maioria são narrativas lendárias, cobertas de vasta mitologia, a ponto do próprio Mourre chegar a se perguntar se o herói destas fábulas alguma vez existiu 273 . Alguns orientalistas, como Senárt em seu ensaio sobre a lenda do Buddha 274 , foram levados a ver no Buddha Shãkyamuni uma figura imaginária ou um mito solar; apoiado no Lalita Vistâra , o sábio holandês Kern em sua “Histoire du boudhisme dans l’Inde” 275 interpretou a vida do fundador segundo relações astronômicas e, mais recentemente, chegou a sustentar-se que o Buddha Shãkyamuni não era nada mais do que o princípio íntimo de iluminação em todo homem. Mas a tese de Oldenberg 276 reúne hoje a maior parte dos estudiosos que concluíram pela realidade da existência histórica de Siddhãrta Gautama, o Buddha. A tradição fornece, com efeito, numerosos detalhes, precisos, concordantes, sobre a província natal, a família, a doutrina, os grandes acontecimentos de sua vida. As descobertas da arqueologia moderna também a confirmam, entre as quais uma das mais interessantes foi feita em Kapilavastu, ao norte de Bénarès 277 : trata-se de uma coluna, elevada no terceiro século a.C. pelo imperador budista Açoka, que porta a inscrição “O Bem-Aventurado nasceu aqui.” 278 O relato de sua vida, entretanto, tem sido transmitido através de narrativas legendárias. Por isso pergunta-se: quais são as garantias de que a imagem que está sendo construindo do Buddha Shãkyamuni e de seus ensinamentos possa ser reconhecida como pertencendo à tradição deste pensamento? Ao surgir esta dificuldade, como foi dito na introdução, procura-se seguir o método sugerido por Jaspers – focalizar nos textos o que pressente-se ocupar um lugar central mas que, sem garantias absolutas, pode ser atribuído ao Buddha. Segundo este autor “até em uma figura lendária do Buddha, sobrenatural, fundada no

271 Kshatryas H ( ksatriya ) Skt., formam a segunda casta ( varna ) da sociedade hindu, a dos guerreiros, príncipes e reis. Seu dever era a proteção da comunidade; ela é simbolizada pelos rajas , gunas da atividade. 272 DAVID-NEEL, A. O Budismo do Buddha . Tradução de Vera Quirino dos Santos. São Paulo: IBRASA, 1985, p. 21. 273 MOURRE, M. (1961, 1998: 221). 274 1875 275 1882 276 Le Bouddha, sa vie, sa doctrine, sa communauté . Traduzido do alemão por P. Foucher, professor na Sorbonne. Prefácio de Sylvain Lévi, professor do Collège de France, 2 a. edição, 1904, in-8. F. Alcan, editor. 277 Em 1896. 278 MOURRE, M. (1961, 1998: 221). 134

devir cósmico é possível reencontrar a fluorescência simbólica disto que foi na origem uma realidade humana.” 279 Siddhãrta Gautama , o Buddha, nasceu em 560 a.C, ao norte da Índia 280 , filho de um rajá que pertencia ao clã dos Sâkyas, de nome Suddhodana. Segundo a tradição, sua mãe deu à luz quando estava no bosque de , perto de Kapilavasthu, em uma das vastas propriedades onde os ricos hindus passavam o verão. Ela morreu oito dias após seu nascimento, por isso na verdade foi educado pela irmã de sua mãe, Prajãpati Gotãmi, que era também a segunda mulher de Suddhodana. Seu pai era um grande proprietário de terras, rico e bastante orgulhoso de sua linhagem nobre. A família dos Sâkyas pretendia descender do rei legendário Ikshvâku, mais elevado ainda, o deus solar em pessoa. O futuro Buddha pertencia, em todo caso, a uma casta de guerreiros. Aparentemente, Siddhãrta Gautama alcançou quase tudo que a riqueza e a nobreza podiam proporcionar, tendo inclusive um filho, Râhula, fruto de seu casamento com Yasodharâ. No entanto, sua felicidade foi ensombrecida desde que tomou consciência daquilo que realmente constitui a condição humana: a descoberta da velhice, da doença e da morte. “Não convém”, pensou ele, “que eu mostre horror e desgosto diante da desagradável miséria dos corpos, pois eu também vou envelhecer, conhecer a doença e morrer.” 281 Este acontecimento é decisivo e marca a saída de casa, o abandono do país e dos prazeres do mundo em busca da salvação pela ascese. Gautama tinha, então, apenas vinte e nove anos. Esta decisão, por um lado, traz a marca da escolha de um caminho extraordinário, “único”, como estava prescrito na Índia Brahmânica daqueles tempos para todos os homens que quisessem nele ingressar após o nascimento de um filho ou de um neto. Por outro, encerra a vontade de encontrar respostas para suas indagações: se esta era a realidade da condição humana, pergunta-se Siddhârta Gautama, como podiam todos viver na cegueira destes fatos e ainda assim ser felizes? Tomada esta decisão, Gautama se transforma num asceta errante. Dirigindo-se para Vaisâli encontra seu primeiro mestre bramânico, Ârâda Kâlâma, que dava ensinamentos de uma espécie de Sâmkhya pré-clássico. Gautama apropria-se desta doutrina, porém a julga insuficiente. Abandona Ârâda e retorna para Râjagrha, capital do estado de Magadha. Aí encontra seu segundo mestre, Udraka. Rapidamente e com facilidade domina as técnicas de Yoga ensinadas por Udraka. Este período de aprendizagem filosófica e yóguica durou um ano.

279 JASPERS, K. (1957, 1998: 167). 280 A uma distância de uns cento e cinqüenta quilômetros de Benares, próximo à cidade atual de Gorakphur e da fronteira indo-nepalesa, nas cadeias secundárias do Himalaia. 135

Não se sentindo satisfeito, segue para Gayâ e é seguido por cinco discípulos. Durante seis anos, dedica-se à prática da mortificação nas florestas, mas em vão: jejuns e austeridade não podem conduzir à iluminação. Gautama descobriu, ao contrário, que a ascese 282 , ou seja, a aplicação estrita das regras ascéticas, não toca mais que superficialmente a verdade, que a privação pura e simples é ineficaz. Decide, então – o que nas seitas indianas passa por uma monstruosidade –, nutrir-se solidamente a fim de recuperar as suas forças. Escandalizados, seus amigos ascetas vão embora, renegando-o. Ele fica só. Passa a praticar meditação, sem mortificação pela ascese 283 , em sua pureza estrita, até que: “Uma noite, enquanto ele medita sob uma figueira, a iluminação lhe vem de um só golpe, com uma evidência total, ele vê aparecer diante dos olhos de seu espírito a coesão do universo: isto que, porque aquilo é, como os seres em sua obstinada sede de viver, se agarram sobre os falsos caminhos da alma e renascem sem cessar pelas novas reencarnações – isto que é o sofrimento, de onde ele vem, como nós podemos nele colocar um fim.” 284 Este conhecimento toma a forma de um ensinamento. A visão correta não está nem na vida do prazer e gozo do mundo, nem na vida da ascese, que é a arte de se torturar a si mesmo. O primeiro, ele considera vil e desprezível; o último, pleno de sofrimento, portanto nenhum dos dois conduz ao fim. O caminho descoberto pelo Buddha Shãkyamuni é aquele que passa pelo meio. Este é o novo caminho da salvação. O ponto de partida do conhecimento do Buddha é a imperfeição do mundo, a crença ainda obscura de que toda a existência é sofrimento e que o importante é libertar-se dele. Ao tomar a resolução de uma vida correta em palavras e atos, vai aprofundando-a por graus na prática de meditação e assim consegue alcançar o conhecimento que já se esboça na obscura crença inicial: a verdade do sofrimento elucidado. Porém, este caminho percorrido não se esclarece senão ao fim, graças ao conhecimento, que leva a sair do devir sem fim e de tudo

281 JASPERS, K. (1957, 1998: 167). 282 É importante frisarmos, como mostramos ao longo de nosso trabalho, que na Índia encontramos uma concepção hindu anterior ao Budismo e que ainda subsiste, do ascetismo e das austeridades ( tapas ), a que fizemos referência no cap.2, sobre o “interesse pelas raízes antigas, pré-arianas em Mircea Eliade” e no segmento sobre a “ascese”. Concepção muito diferente daquela que o Catolicismo tornou familiar para nós. Na Índia, a flagelação dos ascetas não tem por fim, em absoluto, a expiação de pecados cometidos pelo penitente, ou uma expiação oferecida, por procuração, para as faltas de outrem. Elas são um método que visa conquistar alguma coisa: geralmente, poderes extraordinários sobre a matéria. Existe a esse respeito uma teoria complicada, difícil de ser compreendida e que não foi, até o presente momento, bem definida pelos ocidentais. In DAVID- NEEL, A. (1985, n. 13: 28). 283 Com essa atitude, o Buddha evita a disciplina severa, ascética, corporal, como a de alguns contemporâneos do Buda, os jainistas por exemplo, cuja austeridade tinha como objetivo culminante a aniquilação do corpo físico. In ZIMMER, H.(1986: 329). 284 JASPERS, K. (1957, 1998: 168-169). 136

aquilo que traz a marca do transitório, abre para o eterno, faz passar do ser no mundo para o Nirvãna . Ao pé da figueira Gautama tornou-se o Buddha, o Iluminado, tendo alcançado o conhecimento que tanto havia procurado. Mas e agora, o que fazer? Seu primeiro impulso após alcançar a iluminação e a certeza da libertação é guardar o silêncio. Como poderia o mundo lhe compreender? De que iria adiantar todo o seu esforço, se o mundo segue um outro caminho, aquele da ignorância e do ciclo dos renascimentos? Após um período de hesitação, pensando em todas as dificuldades que encontraria para ser escutado, decide-se: não podia permanecer muito satisfeito em ter obtido, apenas para si, a libertação. Toma uma nova decisão: a de levar para todos os seres este precioso conhecimento alcançado através da iluminação. Esta é a coisa nova, a grande novidade do pensamento budista, particularmente para uma sociedade Indiana, dividida socialmente em varnas . A Iluminação é uma experiência virtualmente universal, acessível a todos que queiram experimentá-la, não apenas a alguns poucos privilegiados. É uma experiência pessoal que está aberta a todos. O Buddha Sãkhyamuni hesitou por um momento, mas finalmente decidiu levar sua mensagem a todos os seres sem distinção de castas, raças ou credos. Sentiu vontade de compartilhar este despertar, fruto da sua experiência pessoal, com todos que quisessem ouvi-lo e seguir seu método de libertação. Por isso, diferente do hinduísmo, o budismo nasce com uma vocação universalista. Não é por acaso que o budismo se opôs aos deuses protetores de um só povo, cujo poder terminaria em alguma fronteira. O budismo se dirige a todas as mulheres, a todos os homens, a todos os seres. 285 Assim, quando o Buddha Shãkyamuni retoma o seu caminho e é interrogado por um viajante que encontra na estrada, ele responde: “Eu vou a Bénarès e vou bater o tambor da imortalidade.” 286 Na visão de Bareau o que está subentendido é que ele irá pregar a sua doutrina, que durante quarenta e cinco anos ensinará sem cessar a todos os que quiserem ouvi- lo e seguir seu método de liberação, ou, numa linguagem propriamente budista: “ele quer mostrar o Caminho conduzindo à Libertação, a alcançar o Nirvãna .”

285 “Mas, cuidado: não no mesmo nível, não da mesma maneira. Aqueles que querem aderir ao devem agir com muita prudência. Trata-se de uma decisão muito séria, que envolve uma vida, e até várias vidas. Não se renuncia impunemente a seu passado, a suas raízes. E, de qualquer forma, nós não fazemos nada para converter. Não é nosso objetivo”. In Bstan-‘dzin-rgya-mtsho, Dalai Lama XIV (1996: 21). 286 Apud MAHÃVAGGA, t. I, p. 8; MajjAhima-nikãya, t.I, p. 171. In BAREAU, A. Le nirvãna selon le 1e bouddhismo antique dit Hinayãna. In Introdução ao pensamento indiano, em Sarvepalli Radhakrishnan , p. 225. 137

Mas por que falar aqui de imortalidade? Será que o caminho apontado pelo Buddha como conduzindo à libertação, a alcançar o Nirvãna é uma promessa de imortalidade, como parece sugerir esta citação de Bareau? Afinal, que uso tem a palavra Nirvãna neste contexto, e que uso o imaginário ocidental tem feito desta palavra? Sabe-se que, no ocidente, é muito freqüente usar-se o termo Nirvãna com outro sentido bastante distinto deste de imortalidade, ou seja, do “nada”, que vai bem com a reputação de pessimismo que se atribui ao budismo no espírito dos ocidentais. Pode-se inferir, deste tipo de interpretação, uma influência de vários pensadores responsáveis pela difusão do budismo na Europa no século XIX, entre eles o filósofo alemão Shopenhauer, que ocupa um lugar de honra 287 . Outros comentaristas ocidentais, sobretudo os cristãos, falaram ora de um “abismo de ateísmo e niilismo”, como Dahlman, de um “aniquilamento” como Burnoulf ou simplesmente do “nada”, como Schopenhauer. Para Rhys Davids e outros trata-se de um estado impossível de ser alcançado nesta vida 288 . Uma boa maneira de desvendar este mistério que envolve a palavra Nirvãna é perguntar pelo seu uso no pensamento indiano, no qual seu sentido não só não é unívoco como encontra-se um outro termo, análogo a este, mais vinculado à tradição Hindu: na Índia, antes do aparecimento do budismo, já se cultivava o ideal do Moksha , ou seja, o caminho extraordinário percorrido por todo aquele que queria buscar um desenvolvimento espiritual e, para isso devia se tornar um renunciante, um Sannyãsin . Na Índia Brahmânica a vida humana tinha quatro objetivos: os três primeiros eram Dharma 289 , Artha e Kãma 290 , ou seja, a lei, a riqueza e o desejo sensual; no entanto, além desses três havia um quarto e último, o Moksha , considerado o mais elevado. Este objetivo ficava reservado, de preferência, para uma etapa ao final da vida. Nesta etapa, Moksha se tornava o objetivo único daqueles que ingressavam na floresta em busca da libertação de todos os vínculos mundanos, do Karma , do ciclo dos renascimentos, o Samsãra . Esta libertação era buscada através das práticas ascéticas onde se

287 Shopenhauer (1788-1860), prefere o Budismo ao “Brahmanismo”, devido ao sistema de castas deste e, mais ainda, ao “Cristianismo”, por suas idéias falaciosas sobre Deus e seu código ético defeituoso, que não considera os animais. Ele pretendia que sua filosofia estava de acordo com os ensinamentos de Buddha. Apesar de seu conhecimento do Budismo se ter fundado em fontes muito incompletas e inexatas — as que estavam disponíveis na primeira metade do século dezenove — a afinidade entre sua filosofia e o Budismo é impressionante, embora num exame mais aprofundado apareça como um tipo de Budismo incompleto. Mas sua filosofia adquiriu uma certa popularidade, no fim do século dezenove, e contribuiu, indubitavelmente, para despertar um interesse pelo Budismo, não apenas como objeto de estudo, mas como um modo de vida e de pensamento com o qual era possível se identificar. In Le monde du Bouddhisme . Sous la direction de Heinz Bechert et Richard Gombrich. Traduzido do inglês por Hervé Denès et Jaqueline Huet. Thames & Hudson. Paris, 1984, 1998, p. 266. 288 Bstan-‘dzin-rgya-mtsho, Dalai Lama XIV (1996: 144). 289 A palavra dharma guarda sentidos diferentes dentro do Hinduísmo e do Budismo. Para identificar melhor essas diferenças,consultar o Glossário, ao final do texto. 138

buscava alcançar a união com o deus Brahmã e do conhecimento da realidade última, por meio desta identificação mística. A doutrina do Buddha Shãkyamuni, um herege em relação a toda esta tradição ortodoxa hindu, aponta um novo caminho de libertação cujo objetivo, a partir de então, é alcançar o Nirvãna . Este é o novo ideal, ao qual deve aspirar todo aquele que escolher este novo caminho de salvação. Porém, segundo as palavras de Sua Santidade o XIV Dalai-Lama, o “Buddha jamais falou do Nirvãna . Sim, ele indicou uma libertação dos renascimentos (o que só torna a noção compreensível para um ocidental se ele admitir como fato o encadeamento das transmigrações, o Samsãra ), mas suas indicações param por aí”. Daí esta profusão de interpretações. Do ponto de vista de Sua Santidade o XIV Dalai-Lama, se lhe perguntam o que é o Nirvãna , ele responde: “uma certa qualidade do espírito”. Portanto, diante desta multiplicidade de sentidos e interpretações, caso se queira despertar para a inovação que representa o caminho ensinado pelo Buddha Shãkyamuni e seu “ideal de felicidade” ou “libertação” é necessário a desconstrução, ao menos em parte, do imaginário ocidental, efetuando-se uma mudança de postura que relativize pelo menos as premissas que regem esta perspectiva ou pontos de vista sobre questões essenciais. Ainda que o Buddha Shãkyamuni não tenha discorrido sobre a natureza do Nirvãna , no imaginário ocidental esta palavra simboliza o “ideal de felicidade budista”, o “caminho da libertação”. Nirvãna tornou-se uma palavra a tal ponto difundida no ocidente que chegou a ser apropriada, inclusive, pelo vocabulário da psicanálise freudiana, onde encontra-se o denominado “princípio do Nirvana ” 291 . Porém, em seu uso ordinário, no imaginário ocidental, esta palavra tanto pode estar associada a algo semelhante ao paraíso, tal como é concebido no ocidente, como um lugar ou um estado de felicidade, de beatitude dentro da plenitude do ser, como também pode estar associada ao cessar de toda a vida, à morte pura e simplesmente, uma das ameaças mais terríveis aos olhos de um ocidental. Esta ambigüidade da palavra Nirvãna não existe sem razão. Ela remete a dois momentos distintos, e de fato existem dois termos diferentes para denominar estes dois momentos que estão separados no tempo e em sua natureza. Existe o Nirvãna que o Buddha alcançou no momento da sua experiência de iluminação, uma experiência de felicidade da libertação, e o Parinirvãna , o qual foi alcançado no momento de sua extinção, momento a partir do qual o Buddha não mais renascerá. Bareau se pergunta: pode o estado de felicidade

290 Este termo, Kãma , também possui sentidos distintos no Hinduísmo e no Budismo. Para identificá-los melhor, consultar o Glossário ao final. 291 O “Princípio do Nirvãna”, ou “Princípio de Inércia” seria a tendência do organismo humano a se descarregar de toda energia para se manter em repouso. Este princípio é contrabalançado pelo “Princípio de Constância”, ou 139

do primeiro momento continuar sem modificação no segundo? 292 Há evidências, até mesmo pelas interpretações comentdas acima, de que no pensamento ocidental a palavra Nirvãna se encontra muito mais freqüentemente associada com o nada, com o desaparecimento total e definitivo do ser. O Buddha Shãkyamuni jamais se pronunciou sobre a natureza do Nirvãna , porém ao decidir pregar sua doutrina teria dito: “Eu vou a Benares e vou bater o tambor da imortalidade” 293 , afirmação que não parece indicar um niilismo, uma aniquilação, muito menos a morte, nua e crua, ou o nada. Se este fosse o sentido do ideal de felicidade do caminho de libertação budista, o mínimo que se poderia fazer é perguntar: como uma prática de desenvolvimento espiritual que conduz o indivíduo a buscar sua própria aniquilação ou o mais absoluto niilismo sobrevive há vinte e cinco séculos, tendo encontrado, inclusive, a partir de meados do século vinte, com a diáspora tibetana, um campo fértil para se difundir e implantar com toda força no ocidente? Procurando-se bem no interior do pensamento indiano será difícil encontrar uma atitude que corresponda a esse suposto ideal de auto-aniquilação, ou mesmo ao tão apregoado niilismo. O que os ocidentais parecem desconhecer é que, nesta tradição, também não se cultivava o “desejo” ou a “aspiração” da morte como uma forma de auto-aniquilamento, muito pelo contrário. Desde os primórdios da religião védica já se havia caracterizado como uma categoria central do “eu do ritual do sacrifício” a palavra sânscrita Amrtam 294 , cujo sentido para o reino dos humanos era poder se obter uma vida longa e feliz. É verdade que, para obter-se tal “graça”, chegava-se a sacrificar vidas humanas, causando o descontentamento geral com estas práticas sangrentas do sacrifício, na época dos Upanishads. No caso do “eu ascético” caracteriza-se como categoria central a Âhimsa , “não-violência”. Logo, tanto em uma construção do eu quanto na outra, desde os primórdios do pensamento indiano, não aparece esta aspiração niilista, seja na direção do nada ou de uma auto- aniquilação como ideal de felicidade ou libertação.

seja, a necessidade de se manter um quantum , um nível suficiente de energia para manter o organismo vivo. Logo, o “Princípio de Nirvãna” caso não encontre um obstáculo, pode conduzir à morte. 292 BAREAU, A. (2000: 224-225). 293 Apud Mahãvagga, t. I, p. 8; MajjAhima-nikãya, t.I, p. 171. In BAREAU, A. ( p. 225). 294 Como sabemos, a categoria do tempo nunca foi uma categoria dada para o pensamento indiano, é sempre necessário se construir um tempo de vida, empurrar cada vez mais para frente esse tempo de viver. Também são sinônimos de Amrtam as expressões “néctar da vida e ambrósia divina” que na religião Védica era um termo muito empregado para designar o Soma , embora seu sentido literal seja “imortal”. A condição de imortalidade era um estado inacessível ao nível dos corpos e, como sabemos, só atingível pela realização do Eu verdadeiro Ãtman , idêntico ao deus Brahman por sua natureza de Consciência Absoluta, através da identidade Ãtman- Brahman. In Dictionnaire De La Sagesse Orientale .(1989: 15). 140

É importante lembrar que, segundo Collins, seria um erro dar como sinônimo de Amrtam a palavra “imortal”, pois Amrtam pertence a um ponto do espaço fora do tempo, ao ponto parado, Pada , onde não existe nem dia nem noite, nem morte nem não-morte 295 . Não resta dúvida de que, ao ser aplicado ao reino dos deuses, este termo podia se aproximar um pouco mais da idéia de imortalidade, ou seja, a sobrevivência após a morte em um Loka , a qual seria, logicamente, seguida por uma segunda morte e, conseqüentemente, um retorno à Terra. No reino dos homens, entretanto, obter Amrtam é poder construir na Terra, um tempo de vida longo e feliz. Na perspectiva de Bareau, pelo contrário, não só não haveria restrições para se dar como sinônimo de Amrtam a palavra imortal como se encontra, com muita freqüência, nos textos canônicos do budismo antigo, a palavra Amrtam como sinônimo de Nirvãna . Em seu artigo “ Le Nirvãna selon le bouddhisme antique dit Hinayãna”, ao citar a “Terceira Nobre Verdade” enunciada pelo Buddha Shãkyamuni, procura demonstrar que a palavra Nirvãna possui um sentido ambíguo que não foi suficientemente elucidado nos textos canônicos do budismo antigo. Ele se propõe, então, circunscrever estes seus sentidos diversos, bem como os de seus múltiplos sinônimos encontrados nos textos canônicos do budismo antigo. A questão dos múltiplos sentidos da palavra Nirvãna guarda um interesse particular, pois tanto no imaginário ocidental quanto nos textos budistas é esta palavra que representa o ideal de felicidade e libertação tal como proposto pelo Buddha Shãkyamuni. Sobre o Nirvãna e o Paranirvãna , ainda que o Buddha tenha guardado silêncio, o objetivo ao seguir esta análise empreendida tanto por Bareau, um estudioso ocidental do budismo, quanto por Sua Santidade o XIV Dalai Lama, a maior autoridade contemporânea dentro da tradição budista, é que ela pode fornecer ferramentas para alcançar o insight obtido pelo Buddha em sua iluminação não só a respeito do novo ideal de felicidade e libertação como da questão do eu budista, estreitamente ligada a este ideal, ou seja, a questão da “ausência de existência inerente”. Além da pergunta sobre o sentido paradoxal da difusão do budismo, doutrina para poucos privilegiados ou doutrina de massas, surge então uma outra questão: em que medida a atração do ocidente em relação ao budismo não é reveladora de seus principais fracassos – promover a felicidade para todos os seres? O estilo de vida ocidental não está comprometido nem com a felicidade individual nem com a felicidade de todos os seres, tarefa com a qual o Buddha Shãkyamuni se comprometeu há vinte cinco séculos. Resta saber em que medida o

295 COLLINS, S. (1982, 1994: 42-44). 141

ideal de felicidade e libertação budista, de fato, pretendia suprir esta falha básica da civilização ocidental. Se na época do Buddha Shãkyamuni o maior sofrimento estava representado pelo aprisionamento no ciclo de renascimento e morte, no Sãmsara , do qual era preciso se libertaratravés da eliminação da Ãvidya 296 , a cegueira fundamental, resta saber o seguinte: o que aprisiona o homem em sua sociedade ocidental contemporânea? Para se libertar, o que é preciso fazer, onde reside a sua cegueira fundamental, essa que o impede de promover a felicidade para todos, não apenas para alguns privilegiados? Um dos autores que pode auxiliar o entendimento esta questão é Kulananda, quando afirma o seguinte:

“Ao vir para o ocidente, os ensinamentos budistas têm encontrado o que é provavelmente o maior de todos os seus desafios. Podem eles realmente transformar uma cultura tão ampla, tão orgulhosa, tão rica, poderosa, confusa e fragmentada como a nossa? Eu acredito que podem. O budismo tem a capacidade para inflamar um renascimento cultural e espiritual no ocidente. Mas só pode fazer isso se permanecer sendo Budismo. Para isto acontecer, os ocidentais devem se esforçar para entender e praticar em termos do Budismo, e não em seus próprios termos” 297

Segundo Sua Santidade o XIV Dalai Lama dois conceitos desempenham um importante papel na atração do ocidente pelo budismo: Ãhimsa , a não-violência, e “ausência de existência inerente”. Assim, é interessante verificar de que maneira estes dois conceitos estão vinculados ao ideal de felicidade ou libertação budista. Em que medida esta atração do ocidente pela doutrina budista não está ligada à necessidade de reconstruir um novo ideal de felicidade que permita aos ocidentais sonhar com uma nova utopia?

4.2 Os três giros da Roda do Dharma em André Bareau

“É normal Kãlãmas, duvidar, estar inseguros: a insegurança surgiu em vocês sobre aquilo que tem sido adquirido através

296 Este termo costuma ser traduzido como “ignorância”, mas preferimos traduzir como “cegueira”, por dar mais a idéia de que se trata de um problema ligado a um determinado tipo de visão de mundo e não, apenas, a uma questão de conhecimento. 297 KULANANDA, Western Buddhism , London: Harper Collins Publishers, 1997, pp. 232-233. 142

da repetição; nem sobre tradição, nem sobre rumor; nem sobre o que está numa escritura; nem sobre conjectura; nem sobre axioma; nem sobre raciocínio especial; nem sobre um viés em relação à uma noção sobre a qual tem sido ponderado; nem sobre outra habilidade parecida; nem sobre a consideração ‘O monge é nosso professor.’ Kãlãmas, vocês mesmos sabem: ‘Essas coisas são ruins, essas coisas são falhas, essas coisas são censuradas pelos sábios; tomem-nas e observem, se essas coisas conduzem a prejudicar e adoecer’, abamdonem-as” 298

Ao propor este tipo de atitude mental diante de qualquer doutrina o budismo aparece como um não-dogmatismo. O Dharma não constitui uma filososfia, ao menos no sentido em que este termo foi empregado na Grécia antiga e no ocidente moderno – “o termo filosofia em seu sentido de teoria do conhecimento e reflexão ética.” 299 O Dharma também não constitui uma doutrina em “ismo”, pois seus princípios fundamentais diferem radicalmente do catolicismo, do protestantismo, do marxismo, do estruturalismo etc. Segundo Tacou o Dharma constitui uma “soteriologia positiva”, isto é, seu enfoque é prático, uma estratégia de salvação: a libertação, a supressão do sofrimento. Nesse registro se diferencia da fé cristã ou muçulmana, pois seus ensinamentos não pressupõem nenhum dogma, mas também nenhum credo, nenhuma revelação. O que é crucial no Dharma é que, nele, a teoria se encontra subordinada à prática, a fé só não basta. O caráter experimental dos ensinamentos revela-se no final da citação “tomem-nas e observem, se essas coisas conduzem a prejudicar, e adoecer, abandonem-nas”. O Buddha Shãkyamuni convida “a ver as coisas como elas são”, por isso sugere que se faça um teste com seus ensinamentos antes de aceitá-los. A partir dessa perspectiva, examinar-se-ão agora os ensinamentos que constituem as bases da doutrina budista, que vem se difundindo no ocidente, denominada “Os Três Giros da Roda do Dharma.” 300 .

298 KÃLÃMA SUTTA, 1963, Sutta n. 65. 299 TACOU, C. L’Herne Nirvãna , Les Cahiers de l’Herne Paraissent . Paris, Éditions de l’Herne, 1993, p. 347. 300 Cada Giro da Roda do Dharma não se refere, de uma maneira geral, a discursos individuais pronunciados em ocasiões particulares. Representa, em realidade, um quadro de referência que permite classificar os ensinamentos do Buddha segundo o tema e a concepção filosófica adotada. Esse método hermenêutico de distinguir os diversos “giros”, exclusivo das tradições Mahãyana, é muito complexo e sujeito a controvérsias. Pode-se dizer que o primeiro discurso do Buda, no Parque das Gazelas, iniciou o tipo de ensinamento que ficou conhecido como Primeiro Giro da Roda do Dharma. In GYATSO, T. XIV DALAI LAMA . O Mundo do Budismo Tibetano: Uma Visão Geral de sua Filosofia e Prática ; traduzido para o inglês, organizado e anotado por Tupten Jinpa; prefácio de Richard Gere; tradução de Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, 2001, n. 6, p. 34 143

Segundo a tradição o Buddha Shãkyamuni girou a roda do Dharma três vezes. A tradição Theravãda do sudeste da Ásia, em geral, aceita como canônicos apenas os Sutras da Primeira Volta, e muitos estudiosos modernos consideram que só estes ensinamentos foram de fato proferidos pelo Buddha Shãkyamuni durante toda a sua vida. A Tradição Mahãyãna já admite as três Voltas como expressões diretas da palavra do Buddha Shãkyamuni. 301 . É importante lembrar que na literatura clássica budista encontram-se alguns sistemas de pensamento e prática que são denominados yãnas ou veículos 302 . Basicamente encontram-se três yãnas : o veículo da Liberação Individual, Hinayãna , o veículo de Salvação Universal Mahãyana e o veículo do , Vajrayãna . Na experiência Budista todos esses sistemas são respeitados por sua qualidade de trazer um grande benefício a um número infinito de seres. Tal qualidade, no entanto, não significa que cada um desses yãnas seja completo ou possa apresentar um caminho que aponte para o ideal de felicidade ou libertação que conduza à plena liberação do sofrimento e do ciclo da existência. Na visão budista só se alcançará a libertação e a liberdade de uma mente plenamente desperta se for possívelsuperar Ãvydia , a cegueira fundamental, que faz o homem permanecer dentro de seus equívocos habituais em relação à natureza da realidade. É Ãvydia que se encontra na base de todos os estados emocionais e cognitivos, e por isso se torna o fator responsável pela permanência do homem aprisionado no ciclo de vida e morte, o Samsãra . Segundo Sua Santidade o XIV Dalai Lama o sistema de pensamento e prática que apresenta um guia completo para sair-se desta prisão 303 é denominado o “Veículo do Buddha”, o Buddhayãna . Neste veículo encontram-se dois sistemas de pensamento e prática: o “Veículo Individual”, ou Hinayãna , e o “Veículo Universal”, ou Mahãyana . O primeiro abarca o sistema Theravãda , que é a forma predominante de budismo em muitos países da Ásia, tais como o Sri Lanka, a Tailândia, a Birmânia, o Cambodja e outros.

301 TULKU, T. As Três Jóias: Buddha, Dharma, Sangha . Série Crystal Myrror; v. 6. São Paulo, Dharma, 1994, p. 38. 302 Segundo Sua Santidade o XIV Dalai Lama, no “Lankavatãra-Sutra” (Sutra da jornada a Lanka), que é um dos sutras mais importantes da escola budista Mahãyana, encontram-se alguns desses vários sistemas. In GYATSO, T. XIV DALAI LAMA. O Mundo do Budismo Tibetano: Uma Visão Geral de sua Filosofia e Prática. Traduzido para o inglês, organizado e anotado por Geshe Tupten Jinpa; prefácio de Richard Gere; tradução de Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1995, 2001, n. 6, p. 25. 303 Max Weber, assim como o Buddha Shakyamuni, é outro autor que lança mão da metáfora da prisão para pensar a sociedade, a partir de premissas diversas. Enquanto para o Buddha, a causa do sofrimento é inerente à natureza humana, por estar submetida à lei da impermanência, para Weber ela está num determinado tipo de ética econômica, que levou o ascetismo para fora dos mosteiros: “De acordo com a opinião de Baxter, as preocupações com os bens materiais só poderiam cobrir os ombros do santo com um tênue manto, que a qualquer momento ele pudesse despir. O destino faria o manto se transformar numa prisão de ferro”. In 144

Das diferenças entre o Veículo Individual, Hinayãna e o Veículo Universal, Mahãyana , dois pontos apresentam uma importância fundamental: o primeiro diz respeito ao ideal de felicidade proposto pelo Buddha como caminho de libertação. Enquanto no Veículo Individual este ideal está representado pela palavra Nirvãna , no Veículo Universal o ideal do Nirvãna permanece como meta em última instância, porém se dá uma ênfase maior ao ideal do Bodhisattva , aquele que adiou sua entrada no Nirvãna enquanto todos os seres não tiverem sido libertados. Pode-se, num certo sentido, dizer que o primeiro corresponde a um ideal de felicidade e libertação individual, Hinayãna , enquanto o segundo corresponde a um ideal de felicidade e libertação, em certo sentido, mais social, Mahayãna . O segundo ponto diz respeito à diferença na visão da doutrina budista da “ausência de existência inerente” 304 e do alcance de sua aplicação. O Veículo Individual, Hinayãna, explica a visão da “ausência de existência inerente” apenas em relação a pessoas ou identidade pessoal, mas não em relação a coisas e eventos em geral, enquanto o Veículo Universal, Mahayãna , estende este mesmo princípio a todo o espectro da existência, a todos os fenômenos. Com a visão do Veículo Universal este princípio adquire uma maior profundidade, na medida em que ele se torna um princípio universal. De acordo com os ensinamentos de Mahayãna só quando estiver fundamentada nessa interpretação universal a experiência de “ausência de existência inerente” do praticante produzirá a eliminação das ilusões e seus estados de cegueira subjacentes. Através da qual será capazes de extirpar as raízes do Sãmsara . Outro aspecto importante da doutrina budista da “ausência de existência inerente” é que vivenciar em profundidade esta doutrina pode levar, em última instância, à plena iluminação, um estado de total liberdade dos vestígios sutis e das tendências habituais obstrutivas que são criadas pela concepção errônea da natureza da realidade. O sistema e a prática que apresenta esta visão são denominados Mahãyana ou Veículo Universal. Para que se possa aprofundar a compreensão do pensamento budista serão examinados, em cada um destes veículos do Buddhayãna , os seguintes aspectos: em relação

WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo . Tradução de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tomás J.M.K. Szmrecsányi. 13 o. ed. São Paulo: Pioneira, 1999, pp. 130-131. 304 Em sânscrito, anãtman (tib. Bdag med), literalmente: a doutrina do “Não-eu”, que se traduz em inglês por selflessness . A opção do tradutor, que também adotamos, é pela denominação de “Doutrina Budista da Ausência de Existência Inerente”, bastante comum em textos budistas, oferecendo a vantagem de, por um lado, evitar a terminologia já marcada por certas áreas de pensamento, como a psicanálise ou a filosofia; e por outro, evita r que se perca a dimensão mais ampla que, justamente, a tradição Mahãyãna atribui a essa concepção . In GYATSO,Tensin. DALAI LAMA XIV, O Mundo do Budismo Tibetano: Uma Visão Geral de sua Filosofia e Prática . Traduzido para o inglês, editado e anotado por Geshe Tupten Jinpa. Prefácio de Richard Gere. Tradução de Maria Helena Rouanet. Rio de janeiro, Nova Fronteira, 2001, p. 27.

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ao Veículo Individual é interessante, junto com Bareau, circunscrever os diversos significados do termo Nirvãna ; e em relação ao Veículo Universal, circunscrever a doutrina da “ausência de existência inerente”. inicialmente, examinar-se-ãp os ensinamentos do Buddha Shãkyamuni nos “Três Giros da Roda do Dharma ”, porém enfatizando-se mais os ensinamentos do primeiro giro:

O Primeiro Giro da Roda do Dharma – As Quatro Nobres Verdades:

A lenda popular afirma que, após ter atingido a iluminação, o Buddha Shãkyamuni permaneceu calado, sem transmitir qualquer ensinamento por quarenta e nove dias 305 . Alguns autores, como Bareau, afirmam que o Buddha teria dito a um viajante que ia para Bénares para “bater o tambor da imortalidade” 306 . O fato é que, tendo compreendido que o ascetismo não conduzia à libertação do sofrimento, Siddharta Gautama desistiu de suas penitências e resolveu alimentar-se. Foi abandonado pelos ascetas, que pensavam que ele havia fracassado em seu compromisso com a vida do ascetismo. Ao se ver só, Gautama pratica a meditação sem ascese, sem as práticas de automortificação. Nessa ocasião obteve a iluminação, um conhecimento diferente de tudo aquilo que se costuma denominar assim 307 . Após um período de curta hesitação decide levar este conhecimento para benefício de todos os seres; pensa primeiro em procurar seus antigos mestres, mas estes já não viviam. O Buddha Shakiamuny dirige-se, então, para Bénarès, onde reencontra os cinco ascetas que antes o haviam renegado, mas que agora se sentem espontaneamente atraídos por ele. O Primeiro Giro ocorreu no Parque dos Cervos, em Vãrãnasi, quando o Buddha falou para os seus primeiros cinco discípulos: , Asvajit, Bãspa, Mahãnãman, e Bhãdrika. Estes ensinamentos são considerados como constituintes dos discursos que o Buddha proferiu a partir deste momento e nos seis ou sete anos que se seguiram. Nesses discursos, o Buddha Shãkyamuni deu os seguintes ensinamentos: os princípios das “Quatro Nobres Verdades”, o “Caminho de Oito Passos”, os ensinamentos referentes à impermanência, à ausência de existência inerente e os códigos de conduta estabelecidos nos textos . Na noite do primeiro discurso o Buddha conduziu os cinco discípulos a uma compreensão clara e nítida sobre as Quatro Nobres Verdades. Por três vezes apresentou as

305 GYATSO, T. Idem . Nova Fronteira, 1995, 2001, n. 6, p. 33. 306 Apud Mahãvagga, t. I, p. 8; MajjAhima-nikãya, t.I, p. 171 In BAREAU, A. Le nirvãna selon le bouddhisme antique dit Hinayãna , p. 225. 146

Verdades: primeiro como uma descrição da realidade como ela é; segundo como o que deve ser compreendido; e, terceiro, como aquilo que os iluminados compreenderam e apreciaram. Por esta razão os ensinamentos do primeiro discurso são às vezes conhecidos como Quatro Nobres Verdades em doze aspectos. A doutrina básica do Buddha Shãkyamuni, Ãrya- (em páli Âriya- ), foi traduzida pelos ingleses como “Quatro Nobres Verdades”. Segundo Gard, ao optar pelo uso da palavra Verdade, uma dimensão importante deste ensinamento pode ter sido obscurecida. O Buddha Shãkyamuni efetivou a sua iluminação através de uma compreensão transcendente e do entendimento, prajñã 308 , percebendo de forma epistemológica e alcançando de forma metafísica a liberdade final na “Existência Perfeita”, o Nirvãna . Se Satya (em páli, Sacca) significasse somente “Verdade” e não, simultaneamente, “Existência”, como poderia ter sido alcançada essa transformação do ser, desde o início da percepção básica da dor, Duhkha , até a culminação da experiência mais elevada de todas, o Nirvãna ? Portanto, o termo Ãrya , na fórmula, implica uma conotação budista de exaltação universal, uma compreensão do ser como “supremamente humano”, não indicando, assim, um estado étnico de ser Ãrya , ou seja, do reconhecimento social do “nobre” 309 . Segundo o Sutra relativo ao Primeiro Giro, quando o Buddha Shãkyamuni ensinou as Quatro Nobres Verdades estabeleceu uma relação entre três fatores: a natureza das próprias verdades, suas funções específicas e seus efeitos, ou completa realização. O primeiro fator descreve a natureza das verdades individuais. O segundo explica por que é importante compreender a significação específica de cada uma delas para o praticante, a saber: o sofrimento deve ser reconhecido, e sua origem, eliminada; a cessação do sofrimento deve ser concretizada, e o caminho que conduz a essa cessação deve ser plenamente compreendido. Quanto ao terceiro fator, o Buddha Shãkyamuni explicou o resultado último, ou efetiva realização das Quatro Nobres Verdades – o reconhecimento efetivo do sofrimento, o abandono efetivo da origem do sofrimento, a concretização efetiva da cessação do sofrimento e a efetiva realização do caminho que leva a tal cessação. Segundo Sua Santidade, o XIV

307 JASPERS, K. Les grands philosophes . Ceux qui ont donné la mesure de l´humain: Socrate, Bouddha , Confucius, Jésus . Traduzido do l’ alemão por C. Floquet, J. Hersch, N. Naef, X. Tilliete, Inglaterra, Presses de Cox y Wyman Ltd., 1957, 1998, pp. 173-174. 308 Prajñã H B Z. Skt., lit.: “consciência” ou “sabedoria”. De acordo com Paul Deussen, “a falta de objeto sujeito da consciência, a mais elevada alma, que não tem objeto fora dela mesma e talvez seja inconsciente; aquela alma que envolve a alma individual em sono profundo. Por esta razão, prajñã é a alma em sono profundo”. In The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion. Buddhism. Hinduism. Taoism. Zen . Orgs. Stephan Schumacher, Gert Woerner. Boston. Shambhala, 1989, p. 274. 309 GARD, R.A. Budismo . Tradução de Affonso Blacheyre. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1961, 1964, pp. 80- 81. 147

Dalai Lama, “esse ensinamento estabele o traçado de todo o corpo do pensamento e da prática budista, fundamentando, assim, a estrutura básica de um caminho individual rumo à iluminação.” 310 Em seu livro, “ L’Enseignement Attribué au Bouddha ”, Bareau apresenta este ensinamento, segundo as palavras do Buddha: 311

Primeira Nobre Verdade :

“Oh! Ascetas, dois extremos não podem ser freqüentados por aqueles que deixaram a vida de família: o exercício dos prazeres, o amor dos prazeres dos sentidos, ou as práticas pelas quais se faz sofrer a si mesmo e por causa de doutrinas não sagradas esgota-se de cansaço seu corpo e seu espírito sem poder conservar aquilo que se preparou. Oh! Ascetas, em lugar desses dois extremos existe o Caminho do Meio, onde aparece o olhar correto 312 , aparece o conhecimento, a quietude definitiva, a calma, que cria o conhecimento sobrenatural e faz obter a iluminação completa, que cria a vida religiosa 313 que conduz à extinção 314 . O que se entende por Caminho do Meio 315 ?...”

O Caminho do Meio é o bem aventurado Caminho das Oito Correções: a opinião correta, a intenção correta, a fala correta, a atividade correta, os meios de existência correta, o esforço correto, a atenção correta, a concentração mental correta. Como são ensinadas pelo Buddha estas quatro nobres verdades? Qual é a nobre verdade da dor? Esta primeira verdade afirma que:

“O nascimento é dor, a velhice é dor, a doença é dor, a morte é dor, a união com o que se detesta é dor, a separação do que se ama é dor, não obter o que se deseja é dor; em conseqüência os cinco agregados de apropriação são

310 GYATSO, T. . Ver Nota 305. Nova Fronteira, 1995, 2001, p. 35. 311 Por se tratar de tradição oral, não temos certeza absoluta das palavras do Buddha Shãkyamuni , mas, como afirma Jaspers, podemos procurar nos textos os aspectos mais centrais atribuídos a ele, sem que, entretanto, possamos ter alguma certeza. 312 A expressão “olhar correto”, caksus , designa aqui não mais o órgão material, mas a faculdade de ver claramente, “com seus próprios olhos”, as Verdades descobertas pelo Buddha. Nós a denominamos ainda “Olho da lei”, ou “da Doutrina” ( dharma-caksus ), ou ainda “olho do Buddha”. In BAREAU, A. En Suivant Bouddha . Paris: Éditions du Félin, Philippe Lebaud, 2000, n.2, p. 64. 313 A “vida religiosa” ( çrãmanya ) é aquela que levam os ascetas ( çramana ), os que se “esforçam” por alcançar a libertação. In BAREAU, A. En Suivant Bouddha . Paris: Éditions du Félin, Philippe Lebaud, 200, n.3, p. 64. 314 Não é raro que, nos textos canônicos pertencentes aos Corpos do Sermão, Sutra-Pitaka — em páli, Sutta - Pitaka — a “Extinção”, seja denominada “Imortal”, Amrta — em páli, amata : literalmente “não-morte, sem- morte”. In BAREAU, A. Le nirvãna selon le bouddhisme antique dit Hinayãna, p. 225. 315 BAREAU, A. En Suivant Bouddha . Paris: Éditions du Félin, Philippe Lebaud, 2000, n.3, p. 64. 148

dor...Esta pura verdade da dor deve ser conhecida, e ela é conhecida por mim. A via das oito correções deve ser cultivada...316 ”

Segunda Nobre Verdade - Qual é a nobre verdade da origem da dor? Esta segunda verdade afirma que:

“A sede, que está na origem dos nascimentos, associada aos prazeres dos sentidos, pela qual nós experimentamos o prazer...Esta pura Verdade da origem da dor deve ser suprimida, e ela é suprimida por mim. A Via das oito correções deve ser cultivada... 317 ”

Terceira Nobre Verdade - Qual é a nobre verdade da cessação da dor? Esta terceira verdade afirma que:

“A cessação desta sede, seu desprendimento, seu abandono, sua renúncia, sua liberação, sua supressão, seu apaziguamento, sua ausência de lugar de asilo, tal é a pura Verdade da cessação da dor. Esta pura Verdade da cessação da dor deve ser vista com seus próprios olhos 318 , e eu a vi com meus próprios olhos. A via das oito correções deve ser cultivada.” 319

Quarta Nobre Verdade - Qual é a pura Verdade do Caminho que conduz à cessação da dor? Esta quarta verdade afirma que:

“É a pura Via das oito correções: a opinião correta, a intenção correta, a fala correta, a atividade correta, os meios de existência corretos, o esforço correto, a atenção correta, a concentração mental correta...Esta pura Verdade do caminho que conduz à cessação da dor deve ser cultivada, e ela tem sido cultivada por mim 320 ”.

316 Bareau, A . Idem , p. 65. 317 Bareau, A. Ibidem , p. 65. 318 Quer dizer que a “realidade” da cessação da dor, em outras palavras: o Nirvãna , a Libertação ( vimukti ), deve ser constatada e conhecida com tanta evidência como qualquer objeto material que vemos com os próprios olhos. In BAREAU, A. Ibidem , p. 65. 319 BAREAU, A. Ibidem , p. 65. 320 BAREAU, A. Ibidem , p. 65. 149

Segundo Bareau, a “Terceira Nobre Verdade”, a que diz respeito à cessação da dor, concerne de fato o Nirvãna , esta que é definida pelo Buddha Shãkyamuni da seguinte maneira: “isto que é a cessação, o desapego sem resto desta sede (de prazeres, da existência e da inexistência, sede que está na origem da infelicidade), sua rejeição, sua renúncia, sua liberação, sua ausência de apego.” 321 Esta Verdade que faz da vida uma sucessão de sofrimentos sem fim é precisamente o que tinha sido visado pelo jovem asceta Gautama e que foi por ele alcançado em sua iluminação, sentado sob a árvore Bhodi 322 , este fim que ele explica aos seus discípulos, em suas palavras:

“Meu pensamento foi então libertado [ vimukta , em páli, vimutta ] da impureza do desejo, da impureza da existência, da impureza da ignorância. Desde que fui libertado, adquiri o conhecimento desta libertação e reconheci isto: concluído está para mim o nascimento, tendo praticado minha conduta ascética, cumprida minha tarefa, eu não receberei outra existência. Tal é, disse o Buddha, o Nirvãna , a extinção, a cessação da dor, a libertação [vimukti ] das impurezas que sujam toda a vida e causam dor.” 323

Nesta passagem, sobre a Terceira Nobre Verdade, a verdade da cessação da dor, Bareau infere uma ambigüidade presente na palavra Nirvãna . Ela evoca o desaparecimento completo e definitivo de um mal, do qual permite escapar para sempre e, assim, experimentar somente felicidade. Segundo Bareau esta ambigüidade é bem clara, por isso tanto a palavra Nirvãna quanto seus sinônimos apontam para dois sentidos muito diferentes, sobre os quais os textos canônicos não fizeram uma distinção muito nítida: O primeiro diz respeito à cessação da infelicidade pela supressão de suas diversas causas, principalmente da Trishnã , desejo, e da Ãvidya , cegueira, ignorância. Eliminadas estas causas, o resultado é a “felicidade da libertação” ( vimukti-sukha , em páli, vimutti-sukha ) que foi usufruída pelo Buddha nas semanas que se seguiram à iluminação. Mas há também de um segundo sentido apontado ao final da citação, ou seja, das conseqüências distantes desta extinção-cessação-libertação, a saber, que seus renascimentos estavam concluídos ( Ksina , em páli, Khina ), que ele não receberia outra existência, que nenhuma parte sua renasceria após a sua morte, que só ocorreria meio século depois.

321 Apud Mahãvagga, edição da Pãli Text Society, t.I, p. 10. In BAREAU, A. “Le nirvãna selon le bouddhisme antique dit Hinayãna”, in Les Cahiers de L’Herne , sob a direção de Constantin Tacou, Paris: Éditions de L’Herne, 1993, p. 224. 322 A figueira sagrada. 323 Bareau, A. Ver Nota 322 . p. 224. 150

Bareau faz então a seguinte indagação: se a mesma palavra Nirvãna possui estes dois sentidos bem diferentes, tanto em sua natureza quanto em seu tempo, devemos pensar que eles referem-se a um mesmo estado mental, ou, de outra maneira, prosseguirá a beatitude serena que o bem-aventurado alcançou na hora da iluminação após a sua morte sem mudança, após este último acontecimento, eternamente? Ele próprio responde: “nas outras religiões da Índia antiga, uma resposta afirmativa a esta questão não punha nenhuma dificuldade, mas isso não é assim, deste mesmo modo para o budismo, como veremos.” 324 Não resta dúvida de que o Buddha proclama a impermanência do eu para uma sociedade indiana convertida ou à crença em um eu eterno, como pensavam os eternalistas, ou à crença em um eu que é aniquilado ao morrer, como pensavam os materialistas niilistas. Poucos séculos antes do budismo a tradição brahmânica (proto-hindu) começou a produzir composições que são conhecidas como Upanishads . Nesses textos o coração da questão espiritual é visto como a questão do conhecimento do eu, Ãtman , o qual, de resto, era visto como uma essência subjacente à totalidade da realidade: tanto a do mundo externo quanto a da personalidade. Não se tratava de um eu pessoal pois era localizado além tanto do corpo como da mente, e visto como uma realidade transcendente, embora imanente, daquilo que nos Upanishads era considerado como sendo a verdadeira natureza da pessoa. Localizando-se além da individualidade empírica, este “eu pré-budista” tinha pretensões de ocupar o posto de centro sagrado do universo, de um eu universal, eterno, a identidade Ãtman-Brahman , igual para todos os seres. Segundo Max Muller, orientalista alemão, os Upanishads são “um sistema no qual a especulação humana parece ter alcançado o ápice” 325 , pois não apenas forneceu as bases para a filosofia Vedãnta 326 como imprimiu ao desenvolvimento filosófico indiano, desde então, sua marca indelével. Com os Upanishads alguma coisa de fundamental ocorre: se, por um lado, o eu recebe, sem sombra de dúvida, o status de centro sagrado do universo, de uma categoria “sagrada do espírito humano” (os Upanishads são um marco da “sacralização” do eu no oriente, através da construção da identidade Ãtman-Brahmã ), por outro, com o surgimento do budismo, esta mesma “sacralização do eu” sofre uma espécie de descentramento, na medida em que este eu, como entidade autônoma, independente, eterna, sagrada, é visto pelo Buddha como uma visão equivocada, um fruto da Ãvidya , da cegueira fundamental.

324 Bareau, A. Idem , p. 225. 325 MULLER, M. In RADHAKRISHNAN, S. A Source Book in Indian Philosophy . New Jersey, Princeton University Press, 1957, 1973, p. 37. 326 Verificar o sentido ao final no Glossário. 151

Este descentramento da sacralização do eu pelo budismo teve duas conseqüências importantes: a primeira, que esta sacralização foi estendida a todo o cosmo, ao universo, a todos os seres 327 ; o Budismo se constituirá assim como um holismo e não como um humanismo, na medida em que o centro ético de seu sistema não é ocupado pelo eu e sim pelo cosmo, razão pela qual, para o budismo toda forma de vida é sagrada; por outro lado, se o “eu budista” não é mais o centro ético, sagrado, nem por isso deixa de ter um lugar central no pensamento budista. Para o Buddha Shãkyamuni o eu torna-se o centro da dor, de todo sofrimento humano, pois, do seu ponto de vista, o apego à ilusão do eu é uma das maiores fontes do sofrimento, o que no ocidente costuma-se denominar “auto-centramento”, “narcisismo”, “egoísmo”. Para eliminar este apego, o Buddha Shãkyamuni questiona a cegueira de imaginar uma solidez do mundo fenomenal. Logo, na base deste sofrimento está Ãvidya , a cegueira das Quatro Nobres Verdades. É preciso extinguir esta ignorância, esta cegueira fundamental, para poder eliminar a causas do sofrimento, da dor. O que, exatamente, é o ignorado? Que o mundo fenomenal não tem substancialidade, não apresenta solidez, não possui uma existência inerente. Se todas as coisas são impermanentes e estão em constante fluidez, é o apego a elas que produz sofrimento, porque tudo está sempre em constante transformação. O Nirvãna aponta para a capacidade humana de transcender a própria realidade, de superar Ãvidya . Segundo Bareau, uma outra fonte de pesquisa sobre os diversos sentidos da palavra Nirvãna é encontrada em seu uso nos imemoráveis textos canônicos do budismo antigo, e o significado que ela exprime é expresso por sinônimos diversos e numerosos através dos quais pode-se circunscrever estes possíveis sentidos. Assim, um outro sinônimo encontrado por Bareau para Nirvãna é a palavra “extinção” e, segundo sua opinião, esta interpretação não deixa de ser etimologicamente exata, na medida em que a palavra sânscrita Nirvãna significa propriamente “extinção” 328 , e designa uma operação pela qual uma chama se apaga quando é soprada. Além disso, a própria palavra “extinção” possui diversos sentidos:

“Não é raro na verdade que, nos textos canônicos pertencendo aos Corpos dos Sermões, o Sutra Pitaka , a Extinção seja chamada imortal, Amrta , em páli, Amatta , literalmente, não-morte, sem-morte. Isto se explica facilmente, visto que colocando um termo aos nascimentos, ela suprime necessariamente

327 Para o Budista, toda vida é sagrada, não apenas a vida humana. Uma formiga e um homem possuem o mesmo valor, como manifestações da vida. Já afirmamos anteriormente que o Budismo não constitui, por isso, um Humanismo, mas sim, um Holismo, ao deslocar o centro do Ser Humano para o Cosmos. 328 BAREAU, A. Ver Nota 322, p. 223. 152

as vidas que estariam nas continuidades destes e em conseqüência as mortes pelas quais se acabariam estas últimas 329 ”.

Como já foi visto, Bareau não faz restrições ao uso da palavra “imortal” como sinônimo de Amrtam . A explicação que encontra para este sentido é lógica, porque colocando um termo ao renascimento são suprimidas, necessariamente, as vidas que se seguiriam, e consequentemente as mortes. Nesse sentido é que Bareau admite que Amrta pode ser considerado um sinônimo de imortalidade, pela supressão dos renascimentos, o que não necessariamente implica em uma suposta existência eterna do eu em algum lugar após a morte. Ainda assim, a partir dessa inferência, ele pensa ter encontrado no coração do budismo mais antigo o mais autêntico e antigo sonho da imortalidade que, segundo sua visão, todas as religiões procuram realizar pelos meios mais diversos 330 . Afirma, inclusive, ter encontrado Amrtam como sinônimo de Nirvãna , parecendo querer indicar que Nirvãna possa também significar “imortalidade”, restando ver em que sentido, porque esta palavra também possui sentidos diversos. Collins, outro estudioso do Budismo, apresenta uma opinião diferente. Ele pensa que traduzir Amrtam como “imortal” não é o mais adequado. Segundo suas pesquisas a palavra Amrtam pertence ao vocabulário do hinduísmo, onde aparece vinculada, na religião védica, ao ritual do sacrifício. O ritual era realizado para se obter Amrtam que, no reino dos homens, significava construir o tempo de vida na Terra, obter uma vida longa e feliz. Amrtam pertencia a um ponto parado do espaço, Pada , ao centro da roda da vida, onde não há movimento, não existe o tempo, não há morte nem não-morte, logo não há o mortal nem o imortal. Este é o espaço que ocupa, no pensamento indiano, o lugar do Absoluto, ao qual parece pertencer o Nirvãna . Porém, em uma coisa ambos os autores concordam: tanto Collins quanto Bareau admitem que a palavra Amrtam significa “não-morte”. Logo, a partir desses autores pode-se, claramente, perceber que se é preciso começar associando Nirvãna com alguma coisa, noespírito ocidental, não é com a morte, ou a aniquilação, e sim, justo o contrário, com a “não-morte”, com o “não-nascimento”. Sobre o fato de Bareau pensar ter reencontrado no budismo antigo o sonho da imortalidade, pergunta-se se, em um certo sentido, essa maneira de pensar não reflete muito mais uma modalidade de pensar típica de imaginário ocidental, que constitui um obstáculo

329 BAREAU, A. Idem , p. 225. 330 BAREAU, A. Ibidem , p. 225. 153

para poder-se ver a novidade que a posição budista representa. Se Buddha se opõe tanto ao eternalismo quanto ao niilismo, talvez o que esteja querendo mostrar é que o importante será encontrar uma maneira de acabar com o sofrimento em vida. Na Índia de sua época libertar-se do sofrimento era sair da roda da vida, do ciclo de renascimento e mortes, do Sãmsara . Mas será que tal liberdade, naquela época, implicava, necessariamente, em querer alcançar a imortalidade? Isto parece ser um pouco contraditório em relação ao posicionamento do Buddha, tanto no que diz respeito ao eternalismo quanto ao niilismo materialista. Sair do ciclo de renascimentos e mortes, o Samsãra, era também não estar mais subjugado a uma divisão social em castas, tal como era organizada a sociedade indiana da época do Buddha e, nesse sentido, pode-se vê-lo como um “revolucionário espiritual”, alguém que quer transformar a realidade da existência. Assim, é interessante sublinhar que também a palavra “extinção”, segundo o próprio Bareau, é identificada com “não-morte”. Na medida em que o fluxo de renascimentos é interrompido não haveria por que continuar existindo a morte. Assim, embora a palavra Nirvãna signifique literalmente “extinção”, esta palavra, aqui, não tem sentido de morte, e sim de interrupção do fluxo de renascimentos, logo, de “não-morte”, o que é completamente diferente. O próprio Bareau, admite o seguinte:

“Os três sinônimos e numerosos epítetos do Nirvãna que nós reencontramos, geralmente dispersos mas perfeitamente agrupados nas séries mais longas na imensa literatura canônica confirmam claramente no conjunto esta idéia de imortalidade, de beatitude eterna subentendida, mas também a contradizem.” 331

Para facilitar a compreensão desses diversos sentidos Bareau os divide em dois grandes grupos: os que compreendem uma soteriologia positiva e os que compreendem uma soteriologia negativa: Soteriologia Positiva sobre o Nirvãna : entre estes encontram-se os termos que assimilam o Nirvãna a uma outra margem, aquela que é alcançada quando se vence a torrente das transmigrações, ou a uma ilha que deve emergir após uma inundação, tal como na Índia, como um refúgio, um abrigo, ou a uma caverna plena de frescor, onde se pode repousar após uma jornada tórrida. Nessa linha, o Nirvãna é denominado “a calma, o apaziguamento, a proteção, a libertação, o remédio que cura todos os males, a felicidade, o fim supremo”.

331 BAREAU, A. Ibidem , p. 226. 154

Também é denominado “fechado, real, sutil, puro, excelente, muito difícil de ver, extraordinário, maravilhoso”. Na soteriologia positiva o Nirvãna é apresentado como uma coisa real e atraente no grau supremo, suscitando a esperança e a alegria, à qual devem aspirar intensamente todos os seres atormentados incessantemente pelo sofrimento da vida, pela “doença, a velhice e a morte”, pelas decepções, as penas e os sofrimentos. Nesse sentido ele é seguramente o oposto, o contrário do “nada”. 332

Soteriologia Negativa sobre o Nirvãna: os termos negativos fazem do Nirvãna o desapego, Virãga , mais precisamente a supressão das paixões, do desejo, o fim da sede de existir, o fim dos sofrimentos, a saída do mundo das transmigrações, a ausência de todo perigo. Também é dito que ele é o inefável, imutável, desembaraçado das aflições, das impurezas, das paixões, invisível, fora do alcance da velhice. Nesse tipo de soteriologia o Nirvãna é denominado o “não-nascido”, o “não vindo à existência”, o “não-feito”, o “não- composto” – Asamskrta –, termo que adquire uma importância considerável para a compreensão do Nirvãna . Segundo Bareau esta segunda série de termos, negativos pela forma, confirma e explica o julgamento que se pode tirar da primeira, pois lá onde não há mais nenhum tipo de sofrimento ou do que pode causá-lo, pode-se esperar encontrar um refúgio contra ele. Dessa forma, estas duas séries de sinônimos e epítetos do Nirvãna podem se referir tanto ao Nirvãna obtido pelo Buddha no momento da iluminação como àquele que é chegado, enfim, no momento de sua morte. Assim, a ambigüidade assinalada anteriormente, relativa ao termo Nirvãna , parece se estender aos discursos do bem-aventurado, como se este não tivesse desejado distinguir entre estas duas formas de “extinção”, ou, na verdade, tivesse julgado a primeira, ou seja, o Nirvãna em vida, a mais importante das duas, portanto tivesse julgado inútil falar da segunda longa ou seguidamente. Este ponto parece ser de extrema importância, pois ressalta que, no budismo, encontra-se uma posição pragmática, porém de um pragmatismo bem ao estilo indiano. Quando se demonstra que, na filosofia indiana, encontra-se uma crença íntima entre filosofia e vida, isto mostra que, como na Grécia antiga, a filosofia não era apenas um mero exercício intelectual. Na filosofia indiana encontra-se uma atitude de aplicação prática da filosofia na vida, sendo típico do pensamento indiano estabelecer uma relação entre teoria e prática, entre doutrina e vida. Na Índia a verdade é buscada não como um conhecimento acadêmico, mas

332 BAREAU, A. Ibidem , p. 224. 155

como algo que torna o homem livre. Segundo Radhakrishnam essa atitude não deve ser confundida com o que é denominado “atitude moderna pragmática”; ele a considera mais ampla e profunda, não se trata de que a verdade deva ser mensurada em termos práticos, mas da verdade como o único sinal possível de fornecer uma direção para a prática. Há uma outra relação importante que se pode extrair da série de sinônimos da palavra Nirvãna enquanto soteriologia negativa: como o mal é inerente a toda a existência, segundo a “Primeira Nobre Verdade”, ele mancha a moldura onde a vida se passa, o mundo onde se vive, logo há uma oposição entre “mundo” e “extinção”. Esta oposição torna-se clara no epíteto cujo sentido evidencia esta negatividade – Lokottara (em páli, Lokuttara ), literalmente “supramundano”, isto é, exterior ao mundo, Loka, e além dele, não mais na ocorrência do espaço mas em valor, portanto de uma forma simbólica. Assim, este epíteto se aplica não apenas à “extinção” mas também a tudo o que está relacionado com o “caminho da libertação”, a suas etapas sucessivas e aos discípulos que a seguem ou, mais exatamente, à sua comunidade, a Sangha de ascetas mendicantes. A forma e a significação etimológica deste epíteto conduzirão, sem dúvida, a conceber o Nirvãna e, sobretudo, o Parinirvãna como situado fora do espaço e do tempo onde está situado o nosso mundo. Agora, torna-se mais fácil entender porue ele é dito “sutil, muito difícil de ver, extraordinário, maravilhoso, inefável, verdadeiramente inconcebível, fora do alcance do pensamento humano”, ou, empregando-se uma palavra pertencente ao vocabulário religioso do ocidente, misterioso. Sobre isto, disse o Buddha: “existe um não-nascido, Ajãta , um não vindo à existência, Abhuta , um não-feito, Akrta , [em páli, Akata ], um não-composto, Asamskrta , [em páli, Asnkhata]”. No texto páli é acrescentado: “pois, se não houvesse esse não-nascido, este não- vindo à existência, este não-feito, este não-composto, não poderia haver isso que é nascido, vindo à existência, feito, composto.” 333 Segundo Bareau esta curta série de sinônimos, tendo sentidos muito próximos, à primeira vista podem parecer se opor ao termo Amrtam , “não-morte”. Na verdade, no contexto búdico eles aparecem como complementares. De acordo com a tese da impermanência universal – Anityatã (em páli, Aniccatã ) – que é uma das bases da doutrina, todos os seres, todas as coisas têm um começo e um fim, um nascimento e uma morte, logo dizer que o Nirvãna é “não-nascido” etc. quer dizer que ele é sem morte, sem nascimento, que ele está fora do ciclo de morte e renascimentos, do Sãmsara . A propósito desta frase do

333 BAREAU, A. Ibidem , p. 228. 156

Buddha Shãkyamuni, Sua santidade o XIV Dalai Lama comenta que, a partir dela, os budistas não negam a existência do real. Isto será mencionado mais adiante, quando for examinada “A Questão do Eu Budista: Samsãra e Nirvãna em Peter Harvey.” A palavra Asamskrta , “o que é não-composto”, ocupa um lugar importante na doutrina budista, no “Corpo da Doutrina Aprofundada” – Abhidharma-Pitaka , que difere grandemente de uma escola para outra tanto pelos seus ensinamentos como pela sua composição literária. Nesse sentido se distingue claramente do “Corpo dos Sermões” – Sutra-Pitaka , cujo conteúdo doutrinal é essencialmente o mesmo, seja qual for a seita ou escola a que pertença. A palavra Asamkrsta (em páli Asnkhata ) significa “aquilo que não é feito em conjunto de partes” – Krta – ou “aquilo que não é produto pela conjunção de muitas causas e condições diversas” – hetu, pratyaya . Ao afirmar a existência daquilo que não tem causa, nem condição, nem origem, nem nascimento, escapa, então, inteiramente a esta causalidade que, segundo o budismo, rege todos os “puros fenômenos” do mundo, tanto seres vivos como coisas inertes. Como se pôde observar, a Terceira Nobre Verdade, aquela da cessação da dor, concerne de fato ao Nirvãna 334 , mas não só a este princípio; concerne também ao “eu budista”, cujo ideal de felicidade, o Caminho da Salvação, é apontado pelas Quatro Nobres Verdades, conduzindo ao Nirvãna . Aquilo que é composto, que é pelos cinco agregados, os Skhandas , não deve ser confundido com o “eu budista”. Esta relação é muito importante para que se possa começar a delinear em que medida o “eu budista” vai sendo construído, em parte como diferença, em parte como semelhança, por relação aos diversos tipos de eu configurados pelo pensamento indiano da época do Buddha, entre os quais recortam-se: o “eu ascético”, o “eu do ritual do sacrifício” e o “eu da identidade Ãtman-Brahmã ”, ou “eu pré-budista”. Pouco depois de ter passado aos seus primeiros cinco discípulos o ensinamento que ficou conhecido como o célebre “Sermão de Bénarès”, que faz parte do Primeiro Giro da Roda do Dharma, onde expõe em grandes linhas o método de salvação descoberto por ele, o Buddha Shãkyamuni ensina os dois princípios sobre os quais repousa toda a filosofia budista desde suas origens na Índia até os dias de hoje. Este é o ensinamento que ficou conhecido como o “Sermão sobre a Impermanência”, ainda pertencendo ao “Primeiro Giro da Roda do Dharma”. Tais princípios são: a “Lei da Impermanência Universal”, que governa os seres e as coisas, e a “Ausência de Eu ( Ãtman )”, ou seja, o elemento pessoal eterno, como aquele que conceberam os brahmanistas, ou o “princípio vital individual ( jîva )” cuja existência era sustentada pelos jainistas. Sendo tudo impermanente, mutável, tendo um começo e um fim,

334 BAREAU, A. Ibidem , p. 224. 157

nada de eterno pode existir, nem ãtman , nem jîva , nem nada de análogo àquilo que os ocidentais chamam de “alma”. A pessoa não é nada além de um conjunto transitório e em transformação incessante de cinco grupos ou agregados de fenômenos diversos, eles mesmos em perpétua modificação: a matéria dos corpos, as sensações, as percepções ou noções, as composições mentais, a saber, a volição, a memória, a inteligência, as virtudes e os vícios, enfim, a consciência sensorial ou mental. 335 O Buddha expressou da seguinte maneira o “Sermão sobre a Impermanência” para os cinco ascetas:

“Oh! Monges, a matéria é desprovida de ‘eu’. Se a matéria fosse o ‘eu’, o corpo não creria e nós não sentiríamos dor. Se a matéria fosse o ‘eu’, nós deveríamos exercer sua vontade sobre ela sem obstáculo, tomar tal forma que nós desejássemos ou deixar tal outra que nós desgostássemos. É porque a matéria é desprovida de ‘eu’ que o corpo cresce e que nós sentimos a dor, é também por isto que nós não podemos tomar à vontade tal forma que nós desejamos nem deixar tal outra que desgostamos. Isto serve para as sensações, as percepções, as composições mentais e a consciência.” 336

O Budha Shãkyamuni, então, pergunta aos monges: “Oh! Monges, a matéria, é ela permanente ou impermanente?” Os monges respondem: “Oh! Bem Aventurado, a matéria é impermanente.” O Buddha Shãkyamuni diz: “Se a matéria for impermanente, ela é penosa ou agradável?” Os monges respondem: “Oh! Bem Aventurado, a matéria é penosa.” O Buddha Shãkyamuni diz: “Se a matéria é impermanente e penosa, ela é então submissa à lei da transformação. Pensem então isto: a matéria, ela sou eu ou ela é outro, ela pertence a outro ou ela pertence a mim? Isto serve de igual maneira para as sensações, as percepções, as composições mentais e da consciência.” 337

“É porque, oh! monges, nenhuma matéria seja passada, futura, ou presente, interna ou externa, grosseira ou sutil, bela ou feia, distante ou próxima; não sendo nem eu nem outro, não pertence nem ao outro nem a mim. É necessário produzir esta consideração correta, conforme a realidade, este conhecimento, esta sabedoria. Isto serve de igual maneira para as sensações,

335 BAREAU, A. En Suivant Bouddha . Paris: Éditions du Félin, Philippe Lebaud, 2000, p. 69. 336 BAREAU, A. Idem , p. 70. 337 BAREAU, A. Ibidem , p. 70. 158

as percepções, as composições mentais e da consciência. Assim, oh! monges, o santo discípulo, tendo compreendido esta consideração, está desgostoso da matéria. Estando desgostoso, ele não se apega mais. Não se apegando ele obtém a Libertação. Estando libertado, ele adquire o conhecimento de sua libertação: Meus nascimentos são terminados, minha conduta pura está estabelecida, minha tarefa está cumprida, eu não receberei mais outra existência. Isto serve tanto para as sensações, as percepções, as composições mentais e da consciência.” 338

Quando o Bem-Aventurado pregou esta doutrina o pensamento dos cinco monges foi libertado de todas as suas impurezas e eles puderam, então, fazer nascer o conhecimento da libertação sem obstáculo. Neste momento, havia no mundo seis Arhant : os cinco discípulos e o Tathãgata , Arhant , completa e perfeitamente iluminado. 339

O Segundo Giro da Roda do Dharma – A Doutrina da Vacuidade

O Buddha Shãkyamuni ensinou, no Pico do Abutre 340 , os sutras da sabedoria – a coleção de sutras conhecidas como “Perfeição da Sabedoria”, Prajnãpãramita . Esses sutras enfocam principalmente os temas da vacuidade e dos estados transcendentes associados à experiência da vacuidade. O Segundo Giro deve ser visto como uma expansão dos temas ensinados pelo Buddha Shãkyamuni no Primeiro Giro da Roda. No Primeiro Giro, o Buddha Shãkyamuni ensinou a importância de se reconhecer a natureza basicamente insatisfatória de nossa própria existência e o sofrimento e as dores que são parte de tal existência condicionada. No entanto, no Segundo Giro, há uma importante mudança de ênfase. Aqui o praticante é encorajado a expandir o alcance de sua contemplação da natureza do sofrimento para abranger todos os outros seres sencientes. O Segundo Giro é, pois, muito mais extenso em seu alcance e visão. No que diz respeito ao tratamento da origem do sofrimento, o Segundo Giro é muito mais abrangente. Além de Ãvydia , ignorância ou cegueira, e do apego, os sutras da sabedoria

338 BAREAU, A . Ibidem , p. 70. 339 Apud Vinayapitaka des Dharmaguptaka, edição de Taishõ Issaikyõ, no. 1428, p. 789 ab. In BAREAU, A. En Suivant Bouddha . Paris: Éditions du Félin, Philippe Lebaud, 2000, p. 70. 340 O Pico do Abutre é popularmente conhecido como um lugar montanhoso em Rajghir, no atual estado de Bihar, na Índia. In GYATSO, T. O XIV DALAI LAMA . O Mundo do Budismo Tibetano: Uma Visão Geral de sua Filosofia e Prática. Trad. para o inglês, org. e notas de Geshe Tupten Jinpa; prefácio de Richard Gere; tradução de Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, 2001, p. 1.1 Introdução ao pensamento indiano, in RADHAKRISHNAN, Sarvepalli, 45. 159

identificam, de maneira pormenorizada, várias formas sutis de ilusões que obstruem a capacidade do homem de perceber a realidade de um modo não-contaminado por sua tendência habitual a se aferrar à existência inerente de todos os fenômenos. Por esse prisma, a origem do sofrimento é vista, portanto, não apenas nos notórios fatores da ignorância e apego, mas também nos indícios e manifestações sutis dessas ilusões. Assim, no Segundo Giro, a discussão sobre a Terceira Nobre Verdade, a verdadeira cessação, adquire maior profundidade e complexidade. À diferença dos ensinamentos pertencentes ao Primeiro Giro, os ensinamentos do Segundo Giro abordam minuciosamente a natureza da cessação em geral, suas características específicas e assim por diante. Essa maior profundidade e essa minúcia também ficam evidentes no que se refere à apresentação da Quarta Nobre Verdade, o verdadeiro caminho. Em relação ao efetivo caminho para a iluminação, o Buddha Shãkyamuni ensina, nos sutras da sabedoria, um único caminho fundado na geração de um profundo discernimento com relação à vacuidade, ou “ausência de existência inerente”, o verdadeiro modo de ser de todos os fenômenos. Este discernimento é cultivado com base na compaixão universal e na – a genuína aspiração altruística à realização da plena iluminação pelo bem de todos os seres –, atitudes que caracterizam aquele que está sendo treinado no Mahayãna ou Veículo Universal. A combinação de discernimento com relação à vacuidade e realização da bodhicitta constitui a perfeita união entre sabedorias e meios hábeis. Nesse contexto, a sabedoria diz respeito principalmente à experiência da vacuidade, ao passo que o método, ou meios hábeis, concerne principalmente ao motivo altruístico que dirige tal sabedoria para a realização dos ideais compassivos do indivíduo. Esse caminho de união é ensinado no Segundo Giro da Roda do Dharma.

O Terceiro Giro da Roda do Dharma – A Natureza de Buddha

O sutra mais importante desse ensinamento é o da Essência, Tathãgata , o Tathãgatagarbhasütra , que descreve o potencial para a iluminação inato em no homem: sua essência de “condição de buddha”, ou “natureza de buddha”. Esse sutra é, na verdade, a fonte da coletânea de hinos de Nãgãrjuna e também do tratado de Maytrea, o Mahãyãna- uttaratantrasastra , “o sublime continuum do Grande Veículo”. Neste sutra o Buddha Shãkyamuni vai ainda mais longe, explorando os principais temas abordados no Segundo 160

Giro, a saber: a doutrina da vacuidade e as experiências transcendentes associadas à sua realização no âmbito do caminho individual para a iluminação. No entanto, uma vez que a natureza da própria vacuidade – a vacuidade da existência inerente de todos os fenômenos – já havia sido plenamente explicada, em seus níveis mais profundos, nos sutras da sabedoria; não há uma uma exposição mais sutil da doutrina da vacuidade no Terceiro Giro. A peculiaridade do Terceiro Giro é a apresentação de técnicas meditativas particulares que visam ampliar a sabedoria que compreende plenamente a vacuidade, e a discussão, por um prisma subjetivo, dos vários fatores sutis envolvidos na experiência individual dessa sabedoria. Será retomada a discussão sobre as práticas de meditação a seguir, quando for examinado mais detalhadamente o Caminho de Oito Passos.

4.3 A questão do eu budista – Samsãra e Nirvãna em Peter Harvey.

“Todos os seres humanos são iguais. Feitos de carne, ossos e sangue. Todos queremos a felicidade e evitar o sofrimento e temos direito, a isso. Em outras palavras, é importante compreender a nossa igualdade. Pertencemos todos a uma família humana. O fato de brigarmos uns com os outros deve-se a razões secundárias, e todas essas discussões são inúteis. Infelizmente, durante muitos séculos , os seres humanos usaram todos os métodos para ferir uns aos outros. Muitas coisas terríveis aconteceram, resultando em mais problemas, mais sofrimentos e desconfiança. E, conseqüentemente, em mais divisões” Sua Santidade o XIV Dalai Lama 341

A atração sentida pelo ocidente em relação ao budismo pode ser atribuída a dois conceitos: 342 o primeiro, que identificamos como uma das categorias centrais do “eu ascético” e, num certo sentido, do próprio pensamento indiano, é Ãhimsa , a “não-violência.” Esta noção vem, pouco a pouco, sendo percebida não como uma fraqueza, como era comum se pensar na época de Ghandi, mas como uma demonstração de força política e espiritual. Isto se tornou patente na própria atitude mantida por Sua Santidade o Dalai Lama e dos tibetanos de um

341 DALAI LAMA, Tenzyn Gyatzo. Pensamentos e Reflexões sobre a Paz .. Seminário Valores Humanos e sua prática na Vida Cotidiana. Comitê de Apoio ao Tibet, 1999, pp. 7-8. 342 DALAI LAMA XIV. A Força do Budismo: uma conversa sobre viver melhor no mundo de hoje. Sua santidade o Dalai Lama e Jean Claude Carrière. Tradução de Maria Celeste Marcondes e Lia Marcondes. São Paulo: Mandarim, 1996, p. 34. 161

modo geral em relação aos seus invasores, os chineses, cujo maior reconhecimento a entrega do Prêmio Nobel da Paz a Sua Santidade o XIV Dalai Lama 343 ; o segundo é o conceito de interdependência que se encontra diretamente vinculado à questão do eu budista. Se, por um lado, esta noção pode ser um fator de peso nesta atração exercida sobre o ocidente, por outro, a questão do eu talvez seja, a partir da perspectiva ocidental, em um nível conceitual, um dos pontos mais controvertidos em relação à doutrina budista, e isso não parece ser nada casual. O fato de a questão do eu budista ser alvo de tantas distorções e incompreensões por parte dos estudiosos ocidentais pode residir em que, num certo sentido, esta noção do Eu coloca em questão a concepção de eu que, até agora, tem jogado um papel hegemônico dentro do pensamento ocidental. O ocidente caminha, de modo geral, para uma direção de vida onde predomina cada vez mais o individualismo, no campo ideológico, político e social. Um individualismo que, se teve suas origens na figura do asceta indiano, como pressupõe Dumont, distancia-se dezessete séculos daquele presente nas origens do cristianismo, durante os quais transformou-se em uma ideologia que difere bastante dos seus primórdios na Índia e no começo da era cristã. Segundo esta perspectiva ideológica contemporânea do individualismo pressupõe-se, necessariamente, a existência de um eu dotado da capacidade de tornar-se independente, autônomo, e diante do qual o social deve estar sempre se curvando para satisfazer suas necessidades, mesmo que para isso seja necessário um esmagamento das aspirações mínimas e básicas da grande maioria. Como afirma Weber, o ocidente desenvolveu uma racionalidade econômica que visa única e exclusivamente ao lucro, em detrimento de outros valores, e este tipo de racionalidade econômica gera, no campo social, “uma direção de vida que porta um elemento irracional”. 344 Pode-se dizer que a concepção hegemônica do eu ocidental é resultado do casamento entre uma pretensa racionalidade no campo econômico e uma flagrante irracionalidade na direção de vida. O resultado deste acasalamento híbrido é um pensamento onde predomina uma concepção egocêntrica, narcisista, individualista e egoísta de um eu voltado para si mesmo e para a satisfação de suas idiossincrasias pessoais, alimentadas por uma sociedade de consumo e experimentadas como necessidades inalienáveis. Na tradição budista vê-se a construção de uma individualidade que, como dizem os budistas, desde os primórdios “atravessa a corrente.” No caso do eu budista, em seus primórdios na Índia, esta corrente era o pensamento brahmânico e sua visão de um eu eterno, em que Ãtman , o eu, e Loka , o universo, eram vistos como essencialmente iguais através da

343 Em 1989. 344 WEBER, M. (1999: 47). 162

identidade Ãtman-Brahman . Daí a doutrina ensinada pelo Buddha Shãkyamuni de Ãnatman , “a ausência da existência de um eu inerente”, que a maioria dos estudiosos ocidentais traduziu como “não-eu”. Num primeiro momento este eu budista tem a aspiração de buscar uma salvação individual, o ideal do Arhat na tradição Hinayãna . Inspirado nas noções de Ãhimsa e de interdependência ganha na tradição Mahayãna o ideal do Bodhisattva , através do qual, além da meta de alcançar o Nirvãna , como estabelecido pela tradição Hinayãna , deve seguir seu caminho. O Bodhisattva é, justamente, aquele que abre mão de entrar no Nirvãna enquanto todos os seres não tiverem sido salvos. Assim, explicitamente, do ponto de vista do eu budista, não se encontra a predominância de uma visão sintonizada com o individualismo ideológico, mas muito mais como um desenvolvimento daquele individualismo do asceta indiano, que ainda não tinha sido contaminado por dezessete séculos da racionalidade ocidental que permitiu ao capitalismo, junto com a sociedade de consumo, florescer com tanto vigor no ocidente. Esta estratégia soteriológica e social adotada pela tradição Budista com sua doutrina de Anãtman – “ausência de existência de um Eu inerente” – pressupõe um descentramento do eu, tanto por relação à questão da sacralização brahmânica do eu, a identidade Ãtman- Brahman , quanto de uma divisão social em varnas da Índia Brahmânica, pois a iluminação e o caminho da salvação budista estão abertos a todos que queiram segui-lo, sem distinções de sexo, raça, casta ou de credo. Na contemporaneidade o eu budista continua indo contra a corrente, em oposição a um determinado tipo de construção da individualidade hegemônica em uma sociedade não mais dividida em varnas , como na época da Índia Brahmânica, mas ocidental, pós-moderna, capitalista e globalizada, onde o as diferenças sociais também se globalizaram, tendo há muito ultrapassado as fronteiras nacionais, transbordando para um abismo entre países e até mesmo entre continentes inteiros, como é o caso da África. A presença destes contrastes demonstra que, por essas diferenças entre áreas ricas e desenvolvidas e áreas pobres e subdesenvolvidas se tornarem cada vez mais intransponíveis, sem nenhuma perspectiva de reversão deste quadro, num prazo de tempo hábil e previsível tal cenário gerará a impossibilidade de uma convivência harmoniosa entre os povos de todo o planeta, não sendo mais um conflito circunscrito a uma mera oposição entre ocidente e oriente. Nas palavras de Sua Santidade o XIV Dalai lama:

“O mundo está se tornando cada vez mais dependente e é por isso que acredito firmemente na necessidade de desenvolver-se a responsabilidade 163

universal. Precisamos pensar em termos globais, pois as conseqüências de medidas adotadas por um determinado país, hoje, ultrapassam fronteiras. A aceitação de padrões universais, como os descritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Internacional sobre os Direitos Humanos é primordial no mundo atual, cada vez menor. O respeito pelos direitos fundamentais do ser humano não é apenas um objetivo a ser atingido. É antes o alicerce indispensável a qualquer sociedade.” 345

Trungpa traça determinados pontos de vista filosóficos a respeito de questões relativas tanto à “verdade” quanto à “realidade”, que tiveram uma influência significativa no desenvolvimento da escola Madhyamika. 346 Essas linhas de pensamento, na verdade, não se encontram limitadas às escolas filosóficas budistas antigas; mas são encontradas, também, nos enfoques teístas do hinduísmo, do vedantismo, do islamismo, do cristianismo e da maioria das demais tradições religiosas. Segundo a tradição Madhyamika , esses outros enfoques podem ser agrupados em três categorias, a saber: os eternalistas, os niilistas e os atomistas, sendo que, do seu ponto de vista, as duas primeiras visões são consideradas completamente equivocadas, apenas a última sendo considerada parcialmente certa. 347 O Eternalismo é visto como uma das mais ingênuas versões do teísmo. As doutrinas eternalistas vêem os fenômenos como se estes contivessem alguma espécie de essência eterna. Ainda que as coisas nasçam e morram, ainda assim são vistas como possuidoras de uma essência imperecível. Como a característica da existência eterna precisa estar ligada a alguma coisa, os adeptos desta doutrina costumam endossar a crença em um Deus, na alma, em um ãtman , em um inefável si-mesmo. Só que, também, os adeptos desta doutrina podem se decepcionar com um Deus que nunca viram, ou uma alma ou uma essência que não conseguem alcançar, assim, o que antes parecia a “verdade” pode, subitamente, transformar- se em um sentimento de “ter sido enganado” ou “traído” que ocasiona, muitas vezes, uma mudança radical de crenças filosóficas, conduzindo muitas vezes a uma tomada de posição niilista.

345 GYATZO, T. XIV Dalai Lama. “Pensamentos e Reflexões sobre a Paz”, Seminário Valores Humanos e sua Prática na Vida Cotidiana . Publicação realizada em comemoração à segunda visita de Sua santidade o Dalai Lama ao Brasil, de 4 a 7 de abril de 1999. Tradução em inglês: Lea Schwarcz e João Roberto Moris, Comitê Brasileiro de Apoio ao Tibet. 346 Para maiores informações a respeito, consultar o glossário ao final. 347 TRUNGPA, C. Além do Materialismo Espiritual . Tradução de Octavio Mendes Cajado. Revisão de conteúdo e forma a cargo do Grupo de Estudos do Dharma de São Paulo. São Paulo. Editora Cultrix, 1973, 1999, pp. 180-182. 164

O Niilismo também é visto como uma concepção errônea, porém um pouco mais sofisticada. Segundo essa doutrina filosófica tudo vem do nada, do mais insondável mistério. Este enfoque pode estar ligado tanto a afirmações teístas quanto ateístas, em que o Ente Supremo é incognoscível. Mesmo que se veja o sol brilhar sobre a Terra, contribuir para a vida crescer, proporcionar calor e claridade, não se consegue atinar com a origem da vida. Dentro de uma visão niilista não se encontra um ponto de partida lógico para o início do universo. A vida e o mundo nada mais são do que a dança de mãya , a ilusão. As coisas são simplemente geradas de maneira espontânea, de lugar nenhum. O nada adquire, neste enfoque, um papel importante, de uma realidade incognoscível. O universo acontece misteriosamente, sem nenhuma explicação real. É possível que um niilista afirme que a mente humana não pode entender esse mistério. Logo, nessa visão da realidade, o mistério é tratado como uma coisa. A idéia de que não existe resposta é, ela própria, invariavelmente, vista como resposta. Segundo Trungpa não importa ser eternalista, niilista ou atomista, em qualquer uma destas doutrinas está-se sempre presumindo que existe um “mistério”, algo que não se conhece: o significado da vida, a origem do universo, a chave da felicidade. Luta-se para alcançar esse mistério transformando-se em uma pessoa que o conhece ou possui, chamando- o de “Deus”, “alma”, “ ãtman ”, “ brahman ”, “ shunyata ”. Certamente, não é esta a abordagem Madhyamika da realidade, ainda que as primeiras escolas Hinayãnas de budismo possam, em parte, ter caído nessa armadilha. Por isso, seu enfoque é considerado parcial. Tal observação se justifica na medida em que a visão apresentada pelo enfoque Hinayãna a respeito da realidade vê na “impermanência” o grande mistério: o que nasceu tem de mudar e morrer. Segundo Trungpa esta é uma abordagem ainda limitada e parcial; não permite ver a própria impermanência, mas apenas a sua manifestação na forma. Logo, os Hinayãnistas descrevem o universo em termos de átomos existentes no espaço e momentos existentes no tempo. Como tais, são considerados pluralísticos, atomísticos. Como se sabe o Buddha Shãkyamuni se opunha tanto aos eternalistas quanto aos niilistas, como explica Sua Santidade o XIV Dalai Lama, em entrevista a Carrière:

“Baseado na experiência pessoal, sem qualquer revelação divina, o Budismo pelas próprias palavras de seu fundador, nega toda existência independente do ‘eu’. Esse paradoxo é único na história do pensamento: o que todas as tradições chamam de ‘alma’, e em sânscrito, Ãtman – essa entidade permanente que sobreviveria a nós para conhecer outra vida, ou várias outras 165

vidas, essa realidade distinta do corpo, resistente à morte, ao sono, à perda de consciência – o Budismo a procura sem encontrar.” 348

Mas esta visão da “ausência de uma existência independente”, prossegue Sua Santidade, “não se limita à noção de alma, do Ãtman ; ela inclui também as noções contemporâneas de um eu, um ego, que não supõem a sobrevida de uma alma depois da morte, mas estabelecem um ‘em si’ tangível, um ‘ser-eu’ definido e durável, logo estas também são energicamente refutadas” 349 , assim a concepção do eu budista aponta para a “ausência de uma existência inerente”, logo só é possível admitir-se uma “existência dependente” do eu. Não apenas desta existência, mas de uma forma de originação que também é pensada como dependente. No Budismo, todos os fenômenos são pensados como dependentes, a realidade é uma rede infinita de relações causais, como a imagem do cristal lapidado que reflete em cada uma das suas facetas o próprio brilho, formando uma rede infinita de pontinhos luminosos. Nenhum desses pontinhos existe desconectado de uma rede de relações causais. Percebe-se que a mentalidade ocidental precisa se esforçar para entender essas sutilezas do pensamento budista. Na história dos estudiosos ocidentais modernos do budismo percebe-se uma tentativa, nem sempre bem sucedida, de tratar esta questão a respeito do ensinamento budista de que todos os componentes da personalidade são “não-eu” e dos possíveis problemas filosóficos a respeito deste ensinamento. Segundo Harvey este ensinamento costuma ser visto como implicando que a tradição budista, ao afirmar que, se nenhum eu permanente, metafísico, pode ser encontrado na personalidade, então tal coisa não existe. Na verdade, a tradição é freqüentemente tomada como negando, explicitamente, o eu. Paul Williams, por exemplo, insiste em traduzir Anãtman como “não-eu.” Em seu livro “A Força do Budismo”, em entrevista ao jornalista Jean Claude Carrière, Sua Santidade o XIV Dalai Lama apresenta um esboço do que pode ser uma primeira resposta ao paradoxo do “não-eu”:

“Ao mesmo tempo em que busca inutilmente seu eu permanente, Buddha descobre a igualdade de todas as coisas existentes, sem nenhum lugar privilegiado, e as relações que as unem. Não se trata de negar a existência do mundo ou de nós mesmos. Ao contrário do eternalismo

348 DALAI LAMA XIV. Ver Nota 343 , p. 64. 349 DALAI LAMA XIV . Idem , p. 64. 166

(permanência da essência dos seres para além do fluxo das existências), essa atitude de dúvida radical conduziria ao niilismo por admitir o mundo como uma simples construção do espírito” 350

Dessa forma explica que a quase totalidade das escolas budistas rejeita essa negação radical do real como chegaram a pensar alguns filósofos ocidentais, entre eles o irlandês Berkeley 351 , e tal rejeição está baseada na seguinte frase do próprio Buddha: “existe um não- nascido, não se tornar, não feito, não composto, e se não existisse, não haveria evasão possível do que é nascido, tornar-se, feito e composto.” O Dalai Lama encontrou uma maneira muito própria de resolver esta questão: “Quando duvido da minha existência, belisco-me.” 352 Percebe-se em muitos autores que buscaram dar uma interpretação dos possíveis significados desta doutrina a não compreensão do seu alcance enquanto estratégia social e soteriológica. Não resta dúvida de que, do ponto de vista da perspectiva ocidental, encontram- se diversas interpretações, as quais ,por apresentarem pontos de vista conflitantes, tornam ainda mais difícil entender, a partir da interpretação dada por esses autores, qual seria a função deste ensinamento dentro do contexto cultural da época em que o Buddha Shãkyamuni viveu, e que estratégia social o interesse por este tipo de doutrina pode cumprir em uma sociedade ocidental contemporânea e globalizada. Identificam-se dois pontos, pelo menos, que devem ser respondidos: primeiro, se realmente a doutrina budista nega a existência do eu e, se assim o faz, qual concepção de “Eu” está negando ou opondo-se a; segundo, qual a proposta budista a respeito de uma concepção positiva da individualidade, qual o seu significado e as possíveis implicações desta nova forma de abordar a individualidade, não só em relação ao contexto cultural no qual o budismo surgiu – a Índia do século seis antes de Cristo – como ainda hoje, em relação ao momento atual que se vive, particularmente no ocidente do século vinte e um, onde começa a implantar-se uma tradição do budismo ocidental. Segundo Harvey 353 alguns seguidores modernos da escola Theravãda vêem o Bhuddha Shãkyamuni como tendo dado o ensinamento sobre a “negação da existência do eu”. Esta linha também foi adotada em um dos estudos mais recentes e amplos a respeito deste ensinamento do “não-uu” segundo esta escola, realizado por Steven Collins em “Selfless

350 DALAI LAMA XIV. Ibidem , p. 72. 351 BERKELEY, G. Três Diálogos entre Hylas e Philonoüs , 1712. In DALAI LAMA XIV, op. cit . (1996: 73). 352 DALAI LAMA XIV. Idem , p. 73. 353 HARVEY, P. The Selfless Mind. Personality, Consciouness and Nirvãna in Early Buddhism . Grã Bretanha, Biddles Limited, Guidford and King’s Lynn, 1995, pp. 7-9. 167

Persons, Imagery and Tought in Theravãda Buddhism” , um dos autores de referência desta obra. Na opinião de Harvey, entretanto, as primeiras fontes usadas pela tradição Theravãda estão carentes de tal negação explícita. Harvey argumenta que a idéia de que o budismo “nega o eu” tem se tornado um lugar comum dos estudos religiosos. Nesse sentido, mostra que se, por um lado, tratamentos sofisticados como o de Collins são claros em afirmar que a perspectiva budista não descarta a “continuidade psicológica” em uma pessoa, por outro é muito comum encontrar recém chegados ao campo de estudos budistas vendo no ensinamento de que “não existe o eu” uma negação de qualquer tipo de eu, tanto metafísico quanto empírico. Isto, afirma Harvey, está completamente errado. Um outro aspecto levantado pelo autor sobre a visão dos estudiosos ocidentais do budismo a respeito do ensinamento de que os fatores da personalidade são “não-eu” é que, muito freqüentemente, o Buddha Shãkyamuni, ao dar este ensinamento, é representado, na visão desses estudiosos, como estando engajado em um ataque ao conceito de eu mais do que conduzindo seus discípulos a reconhecer uma importante verdade sobre os fatores empíricos da personalidade. Harvey novamente não considera esta representação verdadeira em relação às fontes do primeiro budismo. Do seu ponto de vista Collins teria falhado em reconhcer isto quando afirma que, para os estudiosos e meditadores, o ensinamento do “não-eu” funciona meramente como um tabu lingüístico no discurso técnico, ou seja, que essa discussão a respeito do eu não teria um lugar na área filosófica. Tal afirmação foi feita por Collins 354 ao analisar “um último exemplo, em que o uso particular de attã é recusado” que, do seu ponto de vista, pode fornecer a chave essencial para este tipo de pensamento e discurso, no qual a negação do eu, a doutrina de anattã , toma efeito. O primeiro ponto para o qual ele chama atenção é que esta doutrina visa por em questão um dogma estático, inalterável, o qual coloca um “eu” ou “pessoa” permanente ou reencarnando – este dogma, sublinha Collins, é o objeto da censura budista. Dessa forma, a “doutrina do eu” (attavãda ) é uma das quatro formas de “apego” (as outras são prazeres-sentidos [simples], regra-e-ritual, e “visões”). Deste modo, afirma:

“Especulações sobre o eu [ou “um”] ( attãnuditthi ) é um termo usado nos Suttas (muitos sinônimos são usados nos últimos textos) para

354 COLLINS, S. Selfless Persons . Imagery and Thought in Theravãda Buddhism . Cambridge University Press, 1982, 1994, pp. 73-77. 168

algumas visões específicas do eu, todas das quais são rejeitadas tout court .” 355

Dessa forma, argumenta que no pensamento brahmânico tanto a verdade final quanto o objetivo do pensamento religioso era este eu ( Ãtman ) e o universo ( Brahman ), que eram essencialmente o mesmo. 356 No budismo doutrinas do eu e do universo (em Páli o termo é Loka ) estão freqüentemente conectadas. Contudo, o budismo recomenda que “visões concernidas com a(s) doutrina(s) do eu e do universo” sejam renunciadas pelos monges através da prática de “atenção cuidadosa.” O budismo considera que a visão que o “eu e o universo são o mesmo” é uma das “redes” de visões na qual um homem pode se emaranhar; isto é dito ser uma forma de “angústia” acerca da irrealidade interna. O Buddha prossegue, então, dizendo que não existe “apego a uma doutrina do eu” ou “dependência sobre a visão” que impedirá a “angústia, aflição, sofrimento, pesar, e desassossego.” Como nos últimos textos budistas a palavra Puggala – pessoa – começa a denotar a idéia teórica de um sujeito permanente, ou alma, em função deste significado aparece o argumento de que “uma pessoa assim não é para ser encontrada.” 357 Collins, então, afirma que seu objetivo é apenas poder identificar qual o papel particular que geralmente é desempenhado no pensamento budista pela doutrina de Anattã . Pode-se descrever melhor isto, afirma, como um tabu técnico no discurso linguístico. A respeito desta afirmação, alvo da crítica de Harvey, ele fornece a seguinte explicação:

“Se temos visto que o budismo tem um amplo nível de diferenciação na sociedade, sugeri que o discurso técnico psicológico e filosófico joga uma parte ativa na vida religiosa somente dos meditadores virtuosos e intelectuais escolásticos. Na compreensão religiosa, mesmo desses últimos, este tipo de discurso técnico não exaure o nível dos modos nos quais termos pessoais são usados. De acordo, tanto para os budistas ordinários não-especialistas (isto é, claro, a maioria) e para os especialistas quando lidando com tipos de narrativas simples ou material ético/comportamental eu tenho sublinhado, podemos dizer que o eu não é negado – significando que tanto a palavra eu (attã), quanto palavra pessoa (Purisa/Puggala) podem ser usadas sem receios técnicos”

355 COLLINS, S. Idem , p. 76. 356 Collins está se referindo ao primeiro capítulo de seu estudo, op.cit . (1982, 1994). 357 Será tarefa dos caps. 3 e 4 elucidar em detalhe como e por que nenhum Eu teórico deve ser encontrado, e dos cap. 5 e 6, discutir por que a pessoa não é encontrada. 169

Do seu ponto de vista quando se insiste sobre a doutrina de anattã , para os não- especialistas, isto tem a função simbólica de prover uma oposição simbólica intransigente para o pensamento brahmânico. 358 Para os estudiosos especialistas e meditadores o uso de termos pessoais como construtos técnicos no discurso analítico sistemático é quase simplesmente não autorizada, tabu. Mas no seu entender existe uma forma de análise sistemática que substitui o uso do “eu” ou “pessoa” como termos técnicos – aquela dos elementos impessoais ( dhammã ) que, quando reunidos, dão a impressão, para o “não iluminado”, de que existe um eu. Ao mesmo tempo, sublinha, que este tipo de teorização alternativa não representa a totalidade da doutrina de Anattã é igualmente importante evitar, tanto por razões morais ou epistemológicas, o uso de construtos teóricos em qualquer tipo de “visão” sistemática. Dessa forma, a posição intelectual do especialista em budismo é quase específica:

“A despeito de ser um sistema que enfatiza num grau bastante exagerado a responsabilidade individual na ética (através da estrita aplicação do Karma) e que oferece um modo para salvação completa (no Nirvãna), existe uma recusa radical para falar de um eu ou pessoa permanente em qualquer contexto teórico. É, eu penso, frutífero para um estudioso tentar explicar, em seus próprios termos mais ou menos técnicos, o que isto significa e o que uma tal salvação pode ser. Preferivelmente, ele deve ver a instância ideológica do budismo como uma estratégia social, intelectual e soteriológica”

Mas não resta dúvida, escreve, de que para os budistas que estão concernidos com a doutrina de Anattã e lhe prestam fidelidade explícita, ela provê orientação para atitudes sociais e comportamentos (particularmente vis-à-vis com o pensamento brahmânico e com os sacerdotes rituais que estão empenhados em suprir isto), para a atividade conceitual na vida intelectual dos budistas escolásticos e para atividades soteriológicas na vida de meditadores virtuosos. Então, qualquer um que aceite o caminho virtuoso budista deve aceitar algum grau de submissão a esta estratégia, e aplicar a si mesmo os modos de análise psicológica que são recomendadas pela doutrina budista.

358 Collins afirma que retornará a este ponto no final deste capítulo, in COLLINS, S. op.cit . (1982, 1994: 77). 170

Segundo Collins, outras tradições religiosas, por apresentarem visões e estratégias diferentes, abrem para o pensador sincrético a possibilidade de construir suas próprias explanações da “realidade” à qual todos devem se referir. No entanto, aos estudiosos cabe permanecer em silêncio, contentes em mostrar a lógica e a função das formas particulares das palavras que cada tradição escolheu para encarnar a sua mensagem. Assim, do ponto de vista deste autor, o que os estudiosos podem fazer está resumido a duas etapas: primeiro, tentar ver o que isto significava nos valores e pressupostos do pensamento religioso contemporâneo Indiano, de modo a conduzir o Buddha Shãkyamuni a adotar esta estratégia; segundo, examinar como isto foi e pode ser aplicado à vida e experiência do monge budista. Tendo visto a argumentação de Collins, parece que seu ponto de vista está coerente com a linha de trabalho que adotou, ou seja, procurar contextualizar o pensamento budista em relação às tradições que toma como suas possíveis matrizes e o contexto cultural da sua época. Collins considera que a influência brahmânica, como matriz do pensamento Budista 359 , é hegemônica, apesar de admitir também uma influência do ascetismo 360 , meio que encontra referido nos textos budistas como Samana-Brãhmana : Brãhmana refere-se tanto aos Brahmins “ortodoxos” quanto aos Brahmins ascéticos, e Samana (em sânscrito, Sramana ) a ascéticos não-brahmânicos e professores religiosos. No entanto, sobre as origens do ascetismo na Índia, como já foi visto anteriormente, embora Collins tenha chegado a levantar algumas hipóteses, entre as quais a de que o ascetismo possa ter uma origem nas tradições autóctones e pré-arianas, deixou-as, igualmente, em aberto. Não resta dúvida de que o Buddha Shãkyamuni, em sua época, foi um herege em relação à ortodoxia brahmânica, e sobre isto há um consenso geral entre os autores; também parece não haver muitas dúvidas de que, com a doutrina da “ausência de existência inerente”, opôs-se tanto conceitualmente quanto eticamente à tradição brahmânica com seu ritual do sacrifício, que já estava em declínio em sua época. Naquele momento, do interior da própria tradição ariana, havia surgido uma oposição aos rituais do sacrifício através de especulações dos Upanishads pós-Védicos que refletiam o pensamento das pessoas mais inteligentes do período. Com isso, a afirmação de Collins de que “quando se insiste sobre a doutrina de anattã , para os não-especialistas, isto tem a função simbólica de prover uma oposição simbólica intransigente para o pensamento brahmânico. 361 Para os estudiosos especialistas e meditadores, o uso de termos pessoais, como construtos técnicos no discurso analítico

359 COLLINS, S. op. cit., (1982, 1994: 29). 360 COLLINS, S. op. cit ., (1982, 1994: 33). 361 Ver Nota 359 . (1982, 1994: 77). 171

sistemático, é quase simplesmente não autorizada, tabu” não apresenta uma incompatibilidade com a discussão sobre a concepção budista do eu, muito menos do ponto de vista filosófico. No entanto, quando Harvey afirma que “muito freqüentemente, o Buddha Shãkyamuni ao dar este ensinamento, é representado, na visão desses estudiosos como estando engajado num ataque ao conceito de eu, mais do que conduzindo seus discípulos a reconhecer uma importante verdade sobre os fatores empíricos da personalidade”, acrescentando ainda: “não considero esta representação verdadeira em relação às fontes do primeiro budismo”, diferente do enfoque adotado por Collins, não está levando em conta a contextualização do pensamento budista, apresentando uma visão, num certo sentido, reducionista, ou seja, querendo dar um enfoque à doutrina de Anattã ensinada pelo Buddha Shãkyamuni como se se estivesse apenas diante de uma teoria “psicológica”, cujos sentidos e funções desempenhados em relação ao seu meio social não apresentam nenhuma relevância para a compreensão da própria teoria. Nesse sentido, é mais produtivo o ponto de vista defendido por Collins, de olhar-se a doutrina do Buddha Shãkyamuni em sua dimensão ideológica: “ver a instância ideológica do budismo como uma estratégia social, intelectual e soteriológica.” Não resta dúvida de que Harvey tem razão em circunscrever o aspecto específico da doutrina de Anattã , ou seja, que negar a existência de um eu metafísico, permanente, não significa negar a existência de todo e qualquer tipo de eu, inclusive do empírico. Tal observação parece importante na medida em que busca evitar um tipo de distorção bastante freqüente entre os estudiosos ocidentais do budismo sobre a questão do eu e de como é concebida a construção da individualidade pelo budismo. Assim, antes de examinar-se diretamente o que diz Collins a respeito da questão do eu budista, é ilustrativo apresentar a visão de alguns estudiosos ocidentais, apresentados por Harvey, e a interpretação que deram sobre a questão do eu budista, que demonstram maior afinidade com o enfoque adotado por Harvey do que com o de Collins. Estes autores também colocam uma ênfase maior nos “aspectos psicológicos” da doutrina de anattã , e não sublinham tanto a sua dimensão ideológica, ou seja, a visão da doutrina de anattã como uma estratégia intelectual, social e soteriológica, que é o enfoque adotado por Collins, como será visto a seguir. Apresentação de Harvey dos estudiosos ocidentais: “De maneira a explorar a implicação do ensinamento de que todos ‘ dhammas ’ são ‘não-eu’ ( na-attã ), é interessante fazermos referência às interpretações de alguns daqueles que crêem ver nos ‘Primeiros Suttas ’ a colocação de um Attã metafísico: um eu permanente, substancial, autônomo”. “Para me 172

referir a uma tal suposta entidade”, afirma Harvey, “eu irei me referir como Eu 362 , reservando o eu para um eu empírico em mudança de qualquer tipo.”363 Segundo Harvey, como na literatura sobre budismo é comum encontrar-se, como uma direção geral, a visão segundo a qual tal ensinamento é para ser visto como simplesmente negando um u, seja metafísico ou empírico, ele considera apropriado dar voz àqueles que foram contra tal consenso. O autor pensa que essas interpretações poderão ser usadas, por último, como hipóteses para ser testadas contra aqueles textos que, atualmente, afirmam o contrário. O autor argumenta que ainda que estes autores estejam errados podem ter cometido este erro de maneira interessante. Assim, apresentar-se-á cada uma destas interpretações antes de examinar-se o ponto de vista de Collins, um autor que, claramente, se inclui entre os que advogam um ponto de vista contrário aos mencionados por Harvey: Interpretação de Miss. I. B. Horner: a autora afirma que, enquanto seguindo os “primeiros textos em Pãli”, freqüentemente usam “ attã ” simplesmente no sentido convencional de “si-mesmo”, “ oneself ”; mas sustenta que “ attã ” também é usado como o oposto lógico de “não-eu”, ou seja, “eu” 364 . Sua visão parece admitir que existe um “elevado” ou “Grande Eu ” e um “inferior”, individual, que pode vir a tornar-se o “Elevado Eu ” por aperfeiçoar a si mesmo: “o Homem não é para ser olhado como Aquele Eu o qual é o Mais Alto, mas como potencialmente capaz de se tornar idêntido com Este Eu ”. 365 Um outro aspecto levantado é relativo ao eu individual, o qual teria vindo para alcançar “união com” o “Mais Alto Eu ”366 . Todavia, ela evitou dizer muito sobre a natureza do Eu . Não viu o Pãli Cânon olhando attã nem como um coração permanente para a personalidade, nem como uma entidade permanente a qual sobreviveria à morte, nem como um princípio subliminar do universo, como nos Upanishads . Entretanto, Nirvãna , em páli Nibbãna , foi incluído, por esta autora, entre aquelas coisas que eram “não-eu”. 367 Interpretação de Edward Conze : este autor, que se caracteriza por ser um grande tradutor de textos budistas, mais freqüentemente da tradição Mahãyãna , também admite que haja a colocação de algum tipo de eu. Em “Buddhism, its Essence and Development” afirma o

362 O autor emprega maiúsculas para grafar o Eu, quando se refere a esse Eu metafísico , permanente, substancial e autônomo, adotando as minúsculas para o eu empírico, mutável. Adotaremos esta representação, pois em nosso trabalho usamos sempre a notação “eu” para qualquer tipo de eu, metafísico ou empírico. 363 HARVEY, P. Ver Nota 354 . (1995: 17). 364 Apud HORNER, I.B. “Attã and Anattã, Studies in Comparative Religion”(1971, 7 (1): 32 ). In HARVEY, P. op. cit . (1995: 17). 365 Apud HORNER, I.B. “Early Buddhist Theory of Man Perfected – A Study of the Arahan”, 1936, Londres, Willians and Norgate, p. 103. In HARVEY, P. Op. cit . (1995: 17). 366 Apud HORNER, I.B. (1936: 238), in HARVEY, P. (1995: 17). 367 Apud HORNER, I.B. “Theravãda Buddhism”, in The Concise Encyclopaedia of Living Faiths , org. R.C.Zaehner, Londres, Willians and Norgate, 1977, pp. 288-289. In HARVEY, P. (1995: 17). 173

seguinte: “nosso verdadeiro eu toma estranheza dele mesmo” quando nós nos identificamos “com aquilo que nós não somos” 368 . Então, parece identificar o “verdadeiro eu ” com o “Incondicionado” ou o “Absoluto”, isto é, Nirvãna , em páli Nibbãna .369 Embora afirmando em um artigo 370 ser este o curso dos estudos budistas, ou seja, que os autores têm tentado “atribuir ao budismo primitivo o ensinamento upanishádico sobre Eu ou ãtman .” 371 Em seu estudo, “Buddhism thought in Índia”, embora ainda afirmando que “Eu não sou mais nada do que o Absoluto” 372 ele torna claro por que não vê nenhum “ Ãtman universal” upanishádico no primeiro budismo: porque ele é identificado com “consciência”, viññana , a qual é considerada como “não-eu” pelo budismo. 373 Contudo, considera a visão de que o Buddha não negou o Eu , mas diz somente que isto não podia ser apreendido. 374 Conze, faz também a seguinte advertência: “a não apreensão de um eu – essencial para uma vida religiosa ao longo das linhas budistas é grandemente depreciada quando se transforma em uma declaração filosófica proclamando que o eu não existe”. 375 Harvey também considera esta advertência bastante apropriada, e diz que as próprias razões para Conze assim o fazer estão baseadas no fato que o Buddha ensina “eu ” para materialistas grosseiros, “não existência do eu ” para egoístas e, para aqueles próximos ao Nirvãna e livres de todo apego ao eu , ensina “que não existe nem eu , nem não-eu .” 376 Em um outro artigo 377 ele se refere ao Nirvãna como um “estado no qual o eu foi extinto” 378 , cujo significado deve ser que, o eu empírico foi extinto. Finalmente, em outro artigo 379 , afirma que o budismo Mahãyãna tem como objetivo “algum tipo de união com o Um transcedental, que é idêntico ao nosso verdadeiro Eu , também vendo este último como uma centelha divina.” 380 Interpretação de George Grimm : este autor é um entre os vários estudiosos que devotaram muitos livros para circunscrever uma interpretação do eu no budismo. Entre seus trabalhos relacionados ao tema encontra-se “Doctrine of Buddha”, no qual incorre em vários

368 Apud CONZE, E. Buddhism – Its Essence and Development , Oxford, Cassirer, 1951, (2ª ed. brochura, 1974, p. 109) in HARVEY, P. (1995: 18). 369 Apud CONZE, E. (1951,1974: 111) in HARVEY, P. (1995: 18). 370 De 1959. 371 Apud CONZE, E. Thirty Years of , Oxford, Cassirer, 1967, pp. 12-13. In HARVEY, P. (1995: 18). 372 Apud CONZE, E. Buddhist Thought in Índia , Londres, George Allen and Unwin, 1962, p. 43. In HARVEY, P. (1995: 18). 373 Apud CONZE, E. (1962: 127). In HARVEY, P. (1995: 18). 374 Apud CONZE, E. Idem., ibidem , p. 18. 375 Apud CONZE, E . Idem , p. 130, ibidem , p. 18. 376 Apud CONZE, E. Idem , p. 208, ibidem, p. 18. 377 De 1963. 378 Apud CONZE, E. (1967: 211), in HARVEY, P. (1995: 18). 379 Apud CONZE, E. (1967: 17-19) in HARVEY, P. (1995: 18). 380 Apud CONZE, E. (1975: 17-19) in HARVEY, P. (1995: 18). 174

problemas. Um desses é que, para explicar por que o Eu não é liberado, tem de atribuir apego a ele 381 , mas como o último é claramente dito ser não-Eu , ele tende a vê-lo como uma “qualidade inessencial” 382 . Harvey considera que uma parte de maior interesse de sua interpretação é a visão de que “você não é algo, mas você é em verdade nada” 383 , ou seja, o Eu de alguém é não-coisa, nada conhecível: está além das categorias de “ser” e “não-ser”, as quais somente se aplicam ao mundo finito. 384 Por este posicionamento, e pelo destaque dado ao pensamento destes autores, pode-se claramente perceber que Harvey pretende encaminhar seu argumento sobre a questão do eu budista numa direção diametralmente oposta à de Collins, cujo argumento, pelo menos em alguns pontos principais, serão examinados no próximo segmento. A seguir, então, será retomado, para uma melhor análise, o argumento de Harvey: Harvey faz, então, um paralelo entre esta a visão de Grimm e a de Conze, para quem o Eu “não pode ser apreendido”. Citando ainda um outro autor, J. Pérez-Remón, diz que, embora tenha produzido uma versão mais sofisticada do que a posição do tipo da de Grimm, em “Self and Non-self in Early Buddhism” 385 , ainda assim falhou ao evitar correlacionar, de forma coerente, o problema do apego ao eu. Em síntese, estas visões de intérpretes da questão do eu no budismo, segundo Harvey, apresentam certas possibilidades que podem ser trazidas à mente quando se estiver investigando os “Primeiros Suttas” sobre questões relativas ao eu/Eu : Em Horner , existe um Eu real, o qual é Nirvãna , em páli Nibbãna , e um eu em mudança, o qual se torna o Eu real. Em Conze , existe um “verdadeiro Eu ” que é o “Incondicionado”, Nirvãna , em páli Nibbãna , mas o qual é “não-apreendido.” Em Grimm, um tal Eu real ou verdadeiro está além das categorias de “existência” e “não-existência”. Esta breve análise e síntese, feita por Harvey, do ponto de vista adotado por estes autores em relação ao ensinamento sobre a doutrina de anattã , dado pelo Buddha Shãkyamuni, apresenta um valor particular. Serve para evidenciar que, se não se procurar contextualizar as doutrinas psicológicas para poder apreciar seus componentes ideológicos, corre-se o risco de não perceber seu alcance e a função social que desempenham no contexto

381 O termo em inglês é craving . 382 Apud GRIMM, G. The Doctrine of the Buddha , 2ª edição, traduzido por Silacara, Berlim, Akademie Verlag (original alemão: 1915), 1958, p. 233. In HARVEY, P. (1995: 18). 383 Apud GRIMM, G . Idem , 1958, p. 133. In HARVEY, P. (1995: 18). 384 Apud GRIMM, G. (1958: 6). In HARVEY, P. (1995: 18). 175

de sua época, o que limita muito o campo de discussão possível de seus diversos aspectos. Tal observação também é válida para o campo das “doutrinas psicológicas” da corrente época, em relação às quais costuma-se perder essa capacidade de tomar uma certa distância e poder ver tanto a sua dimensão ideológica quanto o tipo de estratégia que estão cumprindo em relação ao meio social. Tendo examinado estas diversas interpretações sobre a questão do eu no budismo, passar-se-á ao nosso próximo segmento onde será examinado o ponto de vista expressado por Steven Collins tanto a respeito do conceito de Nirvãna quanto da noção de anattã , “não-eu”, para poder-se, pouco a pouco, elucidar melhor a relação entre estes dois conceitos no pensamento budista e, a seguir, retomar o ponto de vista de Harvey sobre estas questões e compará-lo, se possível, com o ponto de vista adotado por Collins.

4.4 A originação dependente como caminho do meio em Steven Collins

“É em torno do verbo Samskr – a atividade a qual forma, arranja reunindo, consolida e traz completamento – que estas reflexões do Buddha estão concentradas, como estavam aquelas dos Brahmãnas antes dele, pois é nisto que encontra a chave para estes dois sistemas os quais colocam um certo tipo de ação como a origem da realidade.” 386

No primeiro capítulo de seu livro, “ Selfless Persons. Imagery and Thought in Theravãda Buddhism ”, Steven Collins afirma que apresentará um esboço de dois aspectos, entre os quais um diz respeito a qual é o lugar, na história geral da religião primitiva indiana, do ensinamento do Buddha Shãkyamuni. Sublinha que enfatizará, dentro do espectro geral que parece ter existido, a tradição particular do pensamento e prática brahmânicos, argumentando que, do seu ponto de vista, foi esta tradição que exerceu uma influência intelectual decisiva não apenas sobre o budismo, como também sobre todo o pensamento indiano subseqüente. O autor denomina “Sanscritização da Índia” o primeiro elemento do pano de fundo contra o qual o budismo se coloca. Com isso pretende chamar atenção para a influência crecente da linguagem, idéias e práticas dos invasores arianos, particularmente dos sacerdotes brahmânicos, sobre as populações indígenas do subcontinente. Esta cultura

385 De 1980. 386 COLLINS, S. (1982, 1994: 199). 176

sânscrita permeia até hoje a vida da maioria dos indianos, em uma maior ou menor extensão, e é denotada pelo mais vago dos termos – o hinduísmo. O Cânone Páli apresenta, em sua visão, muitos traços da religião popular de seus dias. Tendo o budismo competido com o brahmanismo na expansão do que hoje se denominam “religiões indianas”, tais acontecimentos conduziram a que esta tradição intelectual tivesse que ter feito um processo de acomodação, a si mesma e à sua teorização, em um modo quase específico para com o seu grupo, extenso tanto social quanto culturalmente. 387 Se, por um lado, o brahmanismo exerceu esta influência intelectual sobre o budismo, por outro procura-se traçar uma relação entre o budismo e algumas das linhagens ascéticas mais antigas da Índia. No capítulo anterior 388 destacou-se a figura do indivíduo renunciante, procurando retomar esta tradição ascética indiana desde as suas raízes pré-arianas, buscando apoio em alguns autores como Campbell, Elíade, Mourre e Zimer, chegando a uma elaboração do que se denomina “eu ascético”, cuja categoria central é Ãhimsa , a “não- violência”, um conceito que joga inegavelmente um papel importante na tradição budista e na forma de subjetividade modelada a partir desta tradição. De certa forma, esta subjetividade ascética também engloba o que Collins denomina “religioso virtuoso”, só que neste caso ele enfatiza a tradição ascética brahmânica, não tendo se preocupado em enfatizar as raízes pré- arianas das tradições ascéticas indianas 389 , como fizeram outros autores, entre eles Campbell, Elíade, Mourre e Zimmer. Serão retomadas as idéias de Collins sobre a questão do “eu budista”, inicialmente, a partir de suas considerações sobre as passagens e as relações entre a tradição brahmânica e a budista. O que este autor procura demonstrar é o “processo de internalização das estruturas de pensamento e imaginação”, as quais estavam anteriormente relacionadas com o ritual externo do sacrifício, e agora sofrem uma refração sobre a vida do renunciante individual, na qual Collins encontra dois tipos de efeito: primeiro, os efeitos comportamentais; segundo, os conceituais. Efeitos comportamentais : em relação a este primeiro tipo de efeito, destaca a prática dos renunciantes ascéticos concentrando-se na manipulação e interpretação da “consciência” ou “experiência”, segundo ele um termo moderno, mais em voga.

387 COLLINS, S. (1982, 1994: 1-64). 388 Capítulo 3. 389 COLLINS, S. (1982, 1994: 78-81). 177

Efeitos conceituais : em relação a este, destaca que a interpretação conceitual dessa experiência procedia, claramente, das descrições desenvolvidas através do ritual do sacrifício, das quais destaca duas – a personalidade psicofísica e o processo-vida: Personalidade psicofísica : esta primeira descrição estava relacionada com a personalidade psicofísica ordinária, através da qual a personalidade é vista como sendo construída a partir de um composto de diferentes constituintes, destinados e, no pensamento dos renunciantes, “condenados”, eternamente, a agrupar-se e reagrupar-se na “roda dos renascimentos.” Processo-vida : esta segunda descrição, relacionada com o indescritível suporte do processo que dá vida, o “eu” – Ãtman – ou “pessoa” – Purusa –, cuja união ou realização poderia ser adquirida na “experiência mística” do praticante virtuoso, constituindo este o objetivo escatológico para o qual a prática religiosa estava dirigida. Em relação à personalidade psicofísica, quando se analisou o “eu do ritual do sacrifício” já havíam sido examinadas essas descrições, através das quais o ser humano era pensado como um composto de diferentes constituintes que eram separados na morte para retornar ao seu lugar original no Universo e, como essa idéia era invertida, quando se tratava de recriar a pessoa renascida sobre a Terra. 390 Examinar-se-á, agora, como a pessoa renascida era construída pelo ritual do sacrifício. São várias as formas nas quais era imaginado que a performance do sacrifício, e o mérito então obtido, criavam uma nova vida e a pessoa renascia num outro mundo. A mais primitiva dessas noções se parecia com a palavra Istãpurta , de difícil etimologia, segundo Collins, que se referia às oferendas feitas aos deuses e aos sacerdotes oficiantes, as quais deviam aguardar o sacrificado em sua nova vida. Encontra-se freqüentemente, nessas passagens, uma chamada quase fisicalista, conectada com a idéia da manutenção do corpo pela comida. Uma outra ligação que é estabelecida com uma performace apropriada do sacrifício é que tal “feito” acarreta comida nesta vida e mérito para a próxima; o próprio sacrifício se torna o corpo da próxima vida, o Ãtman . Dessa forma, é pensado que, imprimindo o sacrifício ao seu eu, o sacrificado se coloca no mundo celestial. 391 Este tipo de atitude fisicalista em relação ao trabalho do mérito sacrificial faz lembrar também a última concepção do Karma encontrada, já examinada anteriormente quando descreveu-se a tradição ascética jainista, cuja concepção da doutrina kármica é considerada das mais ingênuas, apresentando uma natureza completamente físicalista. São partículas que

390 Ver pp. 109-110. 391 COLLINS, S. (1982, 1994: 54). 178

se apegam à alma imaterial ( Jiva ), que é mantida assim, curvada sob o peso do Karma , no mundo do renascimento. Collins volta a sublinhar, entretanto, a idéia da pessoa criada pelo sacrifício como um composto. Também se havia encontrado a idéia dos elementos que compõem um ser humano retornando para os seus lugares no macrocosmo no momento da morte – olhos para o sol, respiração para o vento etc. quando analisou-se o eu do ritual do sacrifício. Esta idéia é elaborada em dois hinos do Atharva Veda , onde as várias partes do corpo são reunidas em um composto, Sambhãra . No budismo este composto se transforma nas denominadas “formações” ou “construções” (em Páli, Samkhãra , em Sânscrito, Samskãra – derivados das raízes verbais Kr e Sams-Kr , “fazer”, “tornar” [então Karma ], “construído” etc). É por meio da Samskãra que, no processo do Karma e renascimento, cria-se o composto que constitui o ser humano, o qual é, desde a perspectiva budista, equivocadamente imaginado ser um “eu”. Segundo Collins, encontram-se muitos precursores desta concepção nos primeiros textos brahmânicos. Um destes é o Sukrtãm/Sukrtasya Loka , o “mundo do mérito sacrificial”. Nos Brãhmanas , as descrições do sacrificado mostram a este, vindo a ser no próximo mundo, trazendo consigo um corpo, que é construído – Samskriyate – fora dos hinos Védicos. A pessoa que existe no Loka obtido pelo sacrifício (a palavra Loka pode significar ao mesmo tempo “sagrado”, “realidade ritual” ou “mundo” após a morte) é considerada uma criação composta: ela é feita – Samskrta – durante a cerimônia, sendo um composto “montado” pelos versos do sacerdote a partir da respiração, mente, fala e audição – Ãtmãnam Samastam Samskurute . Em relação à experiência de união que pode ser adquirida na experiência mística do renunciante ou praticante virtuoso, procurou-se relacioná-la ao que se denomina “identificação mística” 392 , com suas raízes nas práticas do Yoga. Verifica-se em Campbel, Elíade e Zimmer que desde os primórdios da civilização indiana, nas tradições ascéticas mais antigas e autóctones, encontra-se a presença de um elemento mágico que faz pensar no aspecto religioso, ainda na sua forma mais primitiva. Esta “identificação mística” está, por isso mesmo, apontando para uma dimensão do sagrado, dado o caráter místico-religioso presente nas práticas do Yoga . Tais aspectos se tornaram ainda mais evidenciados em função do êxtase associado às técnicas xamanistas locais, que buscavam, justamente, induzir ao transe e à possessão em sua forma mais primitiva, ou seja, através de um elemento mágico.

392 Ver pp. 77-80. 179

Busca-se entender, em Otto, este aspecto do sagrado através da presença do “sentimento de dependência”, do “sentimento de criatura”, da anulação do indivíduo diante de uma pré- potência que lhe é, logicamente, anterior. 393 No tempo dos Upanishads , que teve seu começo alguns séculos antes da época em que o Buddha Shãkyamuni viveu, os pensadores religiosos deram continuidade e desenvolvimento a este padrão de análise da personalidade através da lista de elementos constituintes da mesma. Assim, encontra-se nos Upanishads uma grande variedade de diferentes categorizações das partes constituintes da pessoa. Já nos Brãhmanas um homem é dito ser feito de cinco partes: imortais e mortais. As partes imortais são, respectivamente: mente, fala, respiração, visão e audição. As partes mortais são respectivamente: cabelo, pele, carne, ossos e medula. Nos Upanishads encontram-se também, freqüentemente, essas cinco partes imortais, porém algumas vezes com a adição de outros sentidos, funções corporais ou idéias mais abstratas como coração, consciência e sabedoria – Prajñã .394 O sentido desta palavra, presente tanto na tradição hindu quanto no budismo e mesmo na tradição Zen, apresenta os seguintes significados: Na tradição hindu, significa “consciência” como natureza do Ãtman; segundo Deussen, “ausência de objeto da consciência, a mais alta alma, a qual não tem objeto fora dela e, por esta razão é inconsciente; esta alma envolve a alma individual em profundo sono. Por isso Prajñã significa alma em sono profundo.” 395 Na tradição Budista e Zen (em Páli, Pañña ; em japonês, Hannya ) significa “sabedoria”, uma categoria central da tradição Mahayãna , referindo-se a uma sabedoria intuitiva experimentada imediatamente que não pode ser concebida por conceitos ou em termos intelectuais. O momento definitivo de Prajñã é o ensaio no vazio, Shunyatã , o qual é a verdadeira natureza da realidade. A realização de Prajñã é freqüentemente igualada com o alcançar a iluminação e é uma das marcas essenciais da natureza de Buddha. Prajñã é também uma das “perfeições”, pãramitã , atualizada por um bodhisattva no curso de seu desenvolvimento, bhumi . Também significa “iluminação”. Uma classificação mais complicada destes constituintes da personalidade é encontrada no Chãndogya Upanishads , onde os três elementos – calor, água e comida – são combinados em três diferentes grades de refinamento, os quais podem ser tabulados da seguinte maneira:

393 Ver pp. 85-87. 394 Apud BRÃHMANAS, S.B. I.O.I 3.4, I.O.I. 4, 1-3. In COLLINS, S. (1982, 1994: 78). 180

Calor Vermelho Água Branca Comida Preta Grosseiro Ossos Urina Fezes

Médio Medula Sangue Corpo

Fino Fala Respiração Mente

Os processos de interação entre esses elementos servem para avaliar não apenas o sono, a fome e a sede, mas também o crescimento do ser humano e a reabsorção, na morte, em “ Sat ” (“Ser”). Collins comenta que essas listas freqüentemente lembram as primeiras versões das listas da última escola Shãmkhya . Por exemplo, encontram-se em ordem ascendente: os sentidos, os objetos dos sentidos, a mente ( Manas ), o intelecto, o eu ( Ãtman ), o não-manifesto, a pessoa ( Purusa ). Muitas vezes foi pensado que estas passagens refletissem uma “escola proto-Shãmkhya ” mas, ao lembrar-se que a palavra Shãmkhya significa “enumeração” ou “discriminação”, talvez se possa afirmar, preferivelmente, a “ultima escola”, que teria se apropriado, usando como nome próprio, o que, originalmente, era uma tendência analítica entre os pensadores religiosos. Esta forma de discriminação, no entanto, serve tanto para distinguir os diferentes elementos dentro de uma pessoa quanto para o projeto de separar, tanto na teoria quanto na prática, o “eu essencial” ou “pessoa” da “personalidade psicofísica”. Esta era composta como um todo, assim, o “eu essencial” ou “pessoa” era o elemento central em torno do qual girava o caledoscópio dos constituintes psicofísicos que se organizavam e reorganizavam nas séries de vidas em Samsãra . Dessa forma, verifica-se como a idéia de um tal “algo central” pode ser desenvolvida a partir de idéias naturalísticas de respiração, água e fogo até chegar a uma noção mais abstrata de uma vitalidade de força vivificante.

395 Apud The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion. Buddhism. Hinduism. Taoism. Zen . Orgs. Stephan Schumacher, Gert Woerner. Boston, Shambhala, 1989, p. 274. 181

Nos Upanishads um novo elemento será acrescentado. Este pode ser denominado o internalizante ou subjetivizante do “algo central”, para fazer dele o Ursprung 396 da consciência ou mentalidade. Foi justamente por volta do VI ou VII século a.C., nos Upanishads , que o alcance do último objetivo religioso é tido como resultado da compreensão e ação humanas, independente de qualquer ajuda divina. É neste último estágio que a tradição veio a dar o mais alto valor e prestígio ao asceta renunciante do mundo, que representava, nele mesmo, estruturas de pensamento e imaginação que anteriormente estavam relacionadas com os rituais externos. O renunciante encarna a internalização do ritual do sacrifício. Collins considera o desenvolvimento do pensamento e prática brahmânicos que culmina neste foco sobre o asceta como um caminho coerente e gradual. 397 Já nos primeiros tempos a mente – Manas – havia desempenhado papéis que foram associados a outros elementos centrais pois, tão distante quanto uma pessoa possuísse uma mente, ela viveria. Por ocasião de sua morte Manas se encaminhava para Yama , o “Senhor da Morte”. Em outro hino a mente é elogiada como o cocheiro que controla o homem, como “sabedoria”, “atenção” – Cetas – e o “suporte”. A mente é vista como a “luz imortal interior”, a qual experimenta tanto a vida desperta como os sonhos. Nos Brãhmanas a realização da seqüência de dias e noites é dada para alguém que “olha para baixo como quem olha para os raios girando de uma charrete”. Os dois principais termos usados nos Upanishads para este “algo central”, compartilham fortemente da tendência de ser vistos como o pólo subjetivo final da consciência. Ãtman é um resultado das descrições de “respiração-vida” combinado com o motivo de uma “alma-fogo”. Progressivamente, entretanto, esta força vital se tornou privada de conteúdo, tornando-se, como Brahman , um suporte ou base da “pessoa” na esfera sacrificial cósmica: a “respiração-vida” – Prãna , o “centro” sobre o qual todas as coisas são construídas ou faladas – é, ela própria, baseada no Ãtman , como o são a consciência, a fala etc. O Ãtman deixa de ser, então, a respiração para se tornar “aquele quem respira dentro e fora”, “aquele que vê na visão”, “aquele que pensa o pensamento”, em resumo o agente por trás de todos os sentidos e, em conseqüência disto, além de qualquer descrição. Uma vez elaborada tal distinção analítica entre os descritíveis constituintes da personalidade fenomênica e seu indescritível suporte vivificante surgirá, concomitantemente, um julgamento de valor em concordância com isso. O sábio Yajñavalkya conta à sua esposa

396 Esta palavra está citada pelo autor em alemão, no texto, e por isso preferimos não traduzí-la. Mas o seu sentido é de “um salto”, o que parece se harmonizar com a idéia, mais desenvolvida, de “um salto” da consciência, ou da mente. 182

que tanto a esposa de alguém, a sua saúde ou a estrutura de varna , nada é valorizado por suas próprias causas, e sim por causa de Ãtman . Segundo Collins, foi a procura de um eu sem conteúdo e a denegração dos constituintes da pessoa fenomênica que se tornou, entre os renunciantes, um tema de compreensão imediata e pessoal, e tal busca acabou fornecendo um paralelo teórico e a justificação para as práticas de automortificação do ascetismo – Tapas –, que é mais imediatamente associado na representação comum da religião indiana com a figura do yogin. A elaboração teórica da prática do Yoga , ao longo das categorias da escola Shãmkhya , fez mais uso do segundo termo para “algo central” encontrado no Upanishads , ou seja, a “Pessoa” – Purusa . Esta caracterização da força última das coisas como algo pessoal é um tema tão antigo e onipresente na Índia quanto uma relativamente impessoalizada identidade Ãtman-Brahman . No Rgveda , o Hino Purusa conta o desmembramento sacrificial da pessoa primeva e o surgimento dos mundos físico e social a partir das diferentes partes do corpo. O Atharva Veda conta como partes da pessoa ordinária foram reunidas e de sua vivificação por Prajãpati , também denominado Brahman – que é o espírito que possui Ãtman . Nos Brãhmanas a figura de Prajãpati , “Senhor das Criaturas”, é onipresente, como Brahman , em relação ao qual é, ao mesmo tempo, idêntico ao sacrifício e o suporte vivificante do Homem Cósmico, cujo desmembramento criou o universo. Para o pensador upanishádico, o “algo central” é descrito como Prajãpati (a “pessoa”, Purusa , que anima o “corpo inanimado”, a cetana ), que originalmente, sozinho, criou e vivificou todas as funções corporalmente. “No começo disto tudo estava Ãtman , tendo a forma da Pessoa”, que é “o brilhante, Pessoa imortal em (tudo externo), e (que) com respeito ao mundo interno é a Pessoa imortal brilhando que é o Si mesmo, aqui – Ayam Ãtmã – isto é imortal, isto é Brahman , isto é tudo”. É este uso da pessoa sacrificada, Prajãpati , como um termo para o eu interior, subjetivo, que reflete ainda mais claramente a interiorização do sacrifício no pensamento renunciatório. Segundo Collins, esta internalização do aspecto do sacrifício como eu-negado é sublinhada por Hubert e Mauss, com sua função essencial na esfera social 398 e, juntando a desvalorização de tudo o que é “não-eu”, produziu tanto a pratica ascética de automortificação, Tapas , quanto uma estrutura teórica (concretizada no pensamento

397 COLLINS, S. (1982, 1994: 1-64). 398 Apud HUBERT, H. e MAUSS, M. Essay on the Nature and Function of Sacrifice . Tradução inglesa, Londres. In COLLINS, S. (1982, 1994: 81). 183

Shãmkhya ) no qual todas as partes da pessoa psicofísica são, muito mais, formas do “mundo material” – Prakrti – que aprisiona e escraviza a “pessoa” real, Purusa . Desta maneira, a descrição da personalidade dada pelo sistema conserva como em uma relíquia a abstração de valor da pessoalidade fenomênica, a qual constitui o centro da vida religiosa e o critério para a sua prática. A questão do tempo : um aspecto interessante relacionado à lista de elementos constituintes da personalidade, que será retomado pela tradição budista, é a questão da continuidade no tempo. Se o Buddha Shãkyamuni havia se colocado em oposição tanto aos “eternalistas” quanto aos “anilacionistas”, como poderia dar conta desta questão? É esta a questão que Collins 399 pretende responder, e seu raciocínio conduzirá ao ponto principal deste segmento, ou seja, apresentar a alternativa que o Buddha Shãkyamuni ofereceu a estas duas posições filosóficas – a doutrina da “Originação Dependente”. No enfoque adotado por Collins, ele procura concernir uma avaliação budista completa da temporalidade, por um lado examinando sua atitude para a continuidade no tempo como resultado de uma atividade construtiva que produz e condiciona a existência e a natureza da vida futura e, por outro, por esta natureza “construída” da consciência na vida, então produzida. Primeiro procura examinar estas idéias e colocá-las, firmemente, em seu contexto cultural específico. Depois pretende dar continuidade ao estudo do imaginário budista. 400 A seguir serão examinados os pontos de sua apresentação que conduzem ao foco de interesse, ou seja, a Originação Dependente. Segundo Collins, os dois temas fundamentais na atitude budista em relação à continuidade da vida e do tempo, sua criação e cessação, são derivados a partir da tradição brahmânica prévia, em formas sutilmente diferentes. O autor identifica duas dessas idéias relacionadas com esta temática: a primeira é a idéia de construir a futura existência pela ação; a segunda é o foco da consciência do religioso virtuoso como o teatro da aquisição religiosa e o critério do valor religioso. Nesta consciência é possível, através do processo de construir a futura existência no Sãmsara , cessar, gradualmente, os renascimentos. A idéia de construção do tempo para viver, de preferência, uma vida longa e feliz, foi vista quando analisou-se o eu do ritual do sacrifício, com Collins, quando o sacerdote Brahmin (para diferenciar de Brahman , o deus eterno) instigava seus clientes atuais e potenciais a se concentrar no ritual do sacrifício como a única maneira pela qual poderiam “produzir e ordenar uma seqüência de tempo na qual viver.” As oblações do ritual do

399 COLLINS, S. (1982, 1994: 103-110). 400 Esse estudo fora desenvolvido por ele no capítulo 5 de seu trabalho, in COLLINS, S. (1982, 1994). 184

sacrifício visavam alcançar Amrtam , um tempo de vida longo e feliz este não está dado ao homem como na tradição ocidental, pois no pensamento Brahmânico o tempo de viver deve ser construído pelo homem pelo poder mágico do sacrifício. Esta atividade construtiva do ritual produziu a ordenação e continuação do ciclo cósmico como um todo, e uma nova vida, após a morte, para a pessoa particular que tinha realizado o sacrifício. A Questão do Karma: em relação esta questão o autor sublinha, em conexão com a evolução da idéia de Karma para generalização de todas as ações de motivos previamente associados com o ritual do sacrifício, que palavras derivadas a partir do verbo Kr , ou Sams- Kr , como “fazer” ou “construir”, eram presentes em toda parte. Por exemplo, na própria palavra Karma , no termo para a “palavra” usada para o que é bem realizado (Sukrtãm/Sukstasya Loka ) e para a idéia de construir um eu ou pessoa pelo sacrifício (Aistikam ãtmãnam Samskaroti ). Segundo Collins os budistas adotaram tanto uma atitude quanto outra e sua respectiva terminologia, fazendo da palavra “construções” ou “formações” ( Samkhãra ) uma palavra básica para sua avaliação do Karma e renascimento. Talvez a contribuição budista mais importante para este desenvolvimento do conceito de Karma tenha sido fazer do “ato crucial”, um “ato mental”, uma “volição” ou “intenção” ( Cetãna ), de tal modo que isto se tornou uma presença, mais do que o ato externo sozinho, tornando-se, assim, a força significativa, Karmicamente falando. Silburn, estudiosa francesa, foi quem primeiro deu atenção detalhada ao complexo de idéias, no pensamento brahmânico, relacionando à atividade sacrificial com a construção da existência temporal, e quem sublinhou que é esta herança intelectual que informa o pensamento budista ao mencionar a idéia de Abhisamskãra , em Páli Abhisamkhãra , que foi traduzida por ela como “intenção e organização”. Nesse sentido, afirma o seguinte:

“De maneira que um ato deva ter uma conseqüência temporal, isto deve ser trazido para completamento e tomado sobre si (sobre si mesmo). Este trazer para completamento é expresso pelo verbo abhisamskr, e não é desconectado com o trazer completamento da atividade sacrificial, na qual o sacrificador toma sobre o sacrifício como um todo para fazer disto sua pessoa permanente.” 401

401 COLLINS, S. (1982, 1994: 201). 185

Versão final do sistema de crenças Samsãra-Karma-Moksha : segundo Collins o sistema de crenças Samsãra-Karma-Moksha , talvez se possa afirmar, incorporou também a interpretação brahmânica, de sua reação para a instituição do ascetismo renunciador do mundo. Nesta interpretação, separado do simples paralelo entre a polaridade social da “vida- na-sociedade” e a “renúncia-do-mundo” e a polaridade metafísica de Samsãra e Moksha , o desenvolvimento crucial para o propósito presente de Collins era este no qual os motivos do primeiro pensamento brahmânico, incluindo o da construção da futura vida no tempo através da atividade, foram transformados da seguinte maneira: ao invés de descrições de um sistema de ritual externo, passam a tornar-se parte de um padrão interiorizado de autopercepção. Collins sublinha que, neste desenvolvimento, tomou lugar uma reversão crucial de valores: enquanto no primeiro pensamento brahmânico a construção pelo sacrifício de uma seqüência de tempo e de uma nova vida para a pessoa renascida era afirmada como desejável mas, de nenhum modo, inevitável, agora isto se tornou aceito como um resultado inevitável de toda ação. Este feito é consignado pelo homem ordinário como um objetivo menor, enquanto o objetivo (alvo) religioso mais alto, aquele do renunciante, torna-se precisamente o oposto – fuga ou escapada da inevitável seqüência de ação e renascimentos, através da manipulação da consciente autopercepção de maneira a alcançar “conhecimento salvador.” Forma como o budismo apropriou-se da herança cultural brahmânica : Collins pensa que existem dois modos como o budismo organizou o espaço psicológico em uma maneira derivada de sua herança cultural indiana. Primeiro, aceitou como um pano de fundo conceitual a percepção geral do cosmo em termos de Samsãra-Karma-Moksha . Segundo, como uma figura importante contra este pano de fundo, colocou a “consciência do virtuoso religioso” como foco e critério da atividade soteriológica, em oposição à aquisição pelos especialistas (neste caso o monge virtuoso budista) de conhecimento de salvação (aqui visto como insight ou sabedoria). O budismo colocou o inevitável prolongamento da vida no Samsãra pela ação “ignorante” do homem ordinário. A partir deste enfoque, Collins considera possível entender a posição dos conceitos de Samkhãra e Abhisankhãra no pensamento psicológico budista, e como esses conceitos são vistos em conjunção com o de Viññana – “consciência” – como as bases da avaliação última da temporalidade e continuidade. Collins chama a atenção, primeiro, para o fato de que o conceito de Samkhãra contém tanto o sentido de atividade quanto de passividade: usando a distinção entre o presente do indicativo latino para “ele faz” e o particípio passado passivo para “é feito”, Poussisn 402

402 Apud POUSSIN, L. de la Valée. Théorie des Douze Causes , Paris, 1913. In COLLINS, S. (1982, 1994: 202). 186

considera que Samkhãra pode significar igualmente “aquilo que faz” e “aquilo que é feito.” Frawwallner, fazendo uma distinção semelhante em alemão, traduziu Samkhãra como Gestaltung , “formação”; comentários disto podem ser referidos não somente para o que “é formado”, mas também porque “isto significa que algo é colocado em estado de prontidão, de facilidade, o qual irá continuar a produzir efeito no futuro”, para “impulsos de vontade” ou “intenções.” 403 Tanto a atividade, que constrói a realidade temporal, quanto a realidade temporal então construída são Samkhãra . Collins observa que, na taxinomia do fenômeno no pensamento budista, Samkhãra é a quarta das cinco categorias, Khandhã , fazem a pessoa humana. É uma categoria mental (nome como oposto à forma), normalmente traduzida como “formações mentais”. “Forças herdadas” é uma boa alternativa, pois sugere tanto as idéias dinâmicas que se projetam no futuro de volição, desejo etc. e, também, o fato de que estes fenômenos Samsãricos são eles próprios tomados para ser condicionados pelo Karma , surgindo a partir deste. Nas seguintes citações palavras formadas a partir das raízes Sam-Kr e Abhisam-Kr são sempre presentes e são tomadas para ser definidas mutuamente: o termo técnico – Samkhãra – é explicado como “conjunto de pessoas 404 ” formando uma construção, então elas são “formações” ( Samkhatam abhisamkharotiti tasmã samkhãra ). Similarmente, aqueles que “tomam gosto” em formações estão construindo formações posteriores, as quais conduzem ao renascimento. Assim, felicidade e sofrimento não surgem fora da atividade de um eu, mas na intenção por trás dos atos de corpo, fala e mente. O corpo não é para ser visto como pertencendo a nenhum eu, não é “seu” nem dos “outros”, mas trata-se de um produto kármico prévio, algo que foi construído e desejado na existência. Assim, o que quer que um homem deseje, intencione, seja obsecado por, torna-se um objeto para persistência da consciência que, tendo crescido, vem a ser a aparência do futuro renascimento. Somente quando a consciência não persiste, não cresce, não forma construções, vem a ser liberada. Primeiros degraus da originação dependente : o termo técnico Samkhãra faz parte da lista dos cinco Skandha (Pali, Khandha ), termo utilizado para os cinco agregados que constituem a totalidade do que geralmente é conhecido como “personalidade”: Rupa – corporalidade da forma; Vedãna – sensação; Samjnã (Páli, Sannã ) – percepção; Samskãra (Páli, Samkhãra ) – formações mentais; Vijñãna – consciência. O termo técnico Samkhãra , o quarto dos cinco Skandha , também é encontrado como o segundo elemento da lista de Originação Dependente, conectado ao primeiro, Ãvidya –

403 O termo alemão citado no texto é Willensregungen . 404 Em inglês: people . 187

“ignorância” –, e ao terceiro, Viññana – “consciência”. Assim, explica Collins, todas as passagens citadas que usam palavras derivadas de (abhi)sams-kr são equivalentes para esses primeiros degraus da Originação Dependente, expressados em um estilo de prosa, ao invés da simples fórmula: “condicionado pela ignorância surgem as formações, lá surge consciência.” Segundo Collins uma das dificuldades da interpretação da Originação Dependente surge a partir da presença de “dois nascimentos”: o primeiro, da “consciência/nome-e-forma”, respectivamente os números 3 e 4 (abaixo); o segundo, do próprio nascimento, o número 11. A tradição Theravãda resolveu esta dificuldade ao tomar a “seqüência dos Doze Passos” como um todo para se referir a três vidas, como mostrado na coluna da esquerda, na tabela abaixo:

Vida Passada 1- Ignorância ( Ãvidya ) Processo Kármico 2- Formação ( Samkhãra ) Vida Presente 3- Consciência Processo de Renascimento 4- Nome e Forma 5- Os Seis Sentidos 6-Contato dos Sentidos 7-Sentimento Processo Kármico 8-Desejo 9-Avidez 10-Tornar-se Vida Futura 11-Nascimento Processo de Renascimento 12-Velhice e Morte

Esta lista, no entanto, pode ser tomada de outras maneiras, por exemplo em duas seções, a partir da “ignorância” – Ãvidya – para “contato dos sentidos”, (do número 1 ao 6), como o “passado no presente”; e a partir do “sentimento” para a “velhice e morte”, (do número 7 ao 12), como o “presente no futuro”. Segundo Collins a idéia colocada em relevo por essa perspectiva temporal é que a experiência presente (contato dos sentidos e sentimentos junto como o momento presente) existe como o resultado de Karma prévio que, desejado por aquela experiência, coloca a “Roda Kármica” girando sobre si mesma novamente, no futuro. Uma outra interpretação, em quatro seções, começa a partir da idéia de desejo ou apego como a causa da continuidade kármica (a lista, é claro, inclui ambos os “sinais 188

originais” da religião indiana – desejo e ignorância). Na interpretação dos quatro passos, como mostra o lado direito da coluna da tabela acima, os elementos numerados de 8 a 10 (Karma – processo A), são tomados como “causas passadas”; de 11 a 12 (Renascimento – processo B), como “efeitos presentes”; de 1 a 2 ( Karma – processo C), como “causas presentes”; e de 3 a 7 (Renascimento – processo D), como “efeitos futuros”. Logo a seqüência linear A – D corre a partir dos números 8 a 12, e 1 a 7. Existem, então, várias formas de interpretar a lista da Originação Dependente, da qual a divisão em três vidas é apenas uma. A existência de interpretações mutuamente compatíveis, segundo o autor, conduz à evidência da ingenuidade do escolasticismo budista e também sugere a natureza do critério de acordo com o qual os Doze Elementos foram arranjados em sua forma final, na qual compreensão ética e teoria escatológica são configuradas juntas, como a trama e a textura de uma única roupa. O padrão desta “roupa” expressa exaustivamente a totalidade da doutrina budista básica. A função fundamental da ista de Originação Dependente, em seus detalhes interpretativos e na totalidade, como símbolo, é a de expressar a idéia budista da “Roda da Vida” girando continuamente sem qualquer eu enquanto agente causal ou sujeito permanente do Karma . Dessa maneira, a interpretação particular da seqüência, referindo-se a três vidas, certamente faz sentido, representando em uma certa perspectiva um segmento da “Roda da Vida” girando continuamente. No entanto, este tipo de apresentação da lista da Originação Dependente demonstra uma racionalização superficial e organização de símbolos e termos técnicos do sistema uma vez gerado, preferivelmente, do que uma influência determinante sobre a geração do sistema nele mesmo. Um tal determinante original é, segundo Collins, precisamente a conexão de idéias que o autor tem traçado entre ( abhi-) Samkhãra e Viññana , “construções” e “consciência.” Originação dependente e continuidade da consciência: a continuidade da “consciência” ou “experiência” é explicada pela doutrina da Originação Dependente. Segundo Collins, no Nahãtanhãsamkhãya Sutta há o relato sobre um monge que havia interpretado o ensinamento do Buddha Shãkyamuni sobre a continuidade da seguinte maneira: “uma e a mesma consciência continua e, é renascida, imodificável.” Assim, explica a consciência como “aquilo que fala e sente, e que experimenta em diferentes momentos o resultado de bons e maus feitos”. No entanto, o Buddha Shãkyamuni reprova-o fortemente, chamando sua interpretação de uma “má opinião”, dithigatam , e pergunta se ele não pensou muitas vezes que consciência é gerada por condições causais. “Consciência é definida”, prossegue o Buddha Shãkyamuni, 189

“de acordo com as condições através das quais isto surge... se é condicionada pelo olho e objetos materiais, chama-se consciência do olho... se é condicionada pela mente e objetos mentais, chama-se consciência da mente.” O ponto deste ensinamento não é negar a “consciência” como veículo do renascimento, mas somente negar que isto é um sujeito imutável da experiência e da ação. Na verdade, a consciência é um fenômeno mutável, condicionado como qualquer outro. O Buddha Shãkyamuni, então, ensinou algo como: “consciência veio para a existência por causa de duas coisas.” Quais são essas duas coias? “Consciência do olho veio para a existência por causa dos objetos materiais... consciência da mente veio para a existência por causa da mente e dos objetos mentais (todos esses fatores causais são impermanentes) sujeitos à mudança, tendo a natureza de se tornar outro; olho... consciência da mente veio à existência por causa de uma causa impermanente – como eles poderiam ser permanentes?” Esta mesma atitude é revelada de inúmeras maneiras diferentes. Nada deve ser superimposto sobre às listas de Elementos Impessoais e Condicionados, os quais constituem um ser humano. Este também é um ponto de reprovação do Buddha Shãkyamuni a um monge, que estava “indo além do ensinamento” por perguntar se os elementos da personalidade são “não-eu”, indagação à qual o Buddha Shãkyamuni teria respondido: “qual eu faz feitos realizados por um não-eu afetado?” Para o pensamento budista a idéia de que a qualquer momento dado da experiência existe um eu por trás de qualquer corporal particular ou fenômeno mental que esteja ocorrendo é equivalqnte à idéia de que existe um eu permanente, o qual tem duração imodificável. Observa-se isto na resposta do Buddha para o monge Sãti, “má opinião” concernindo consciência, e a conexão é feita explicitamente. A visão de que “isto o qual sou eu, o qual fala sente, e o qual experimenta em diferentes tempos o resultado de bons e maus feitos, este eu permanente, estável, eterno, imodificável” é uma visão errada que surge no homem ordinário ignorante. Tal visão é denominada eternalismo ( Sassatavãda ) e é contrastada com o anilacionismo ( Ucchedavãda ), representando uma crença de que o eu existe, mas é destruido com a morte do corpo, uma visão geralmente associada com a negação do Karma . Essas duas visões são vistas juntas no exemplo de um homem que, primeiramente, toma uma visão eternalista do eu e que então ouve o ensinamento budista negando o eu; ele, então, pensa: “Eu serei aniquilado, destruido, eu certamente não existirei!” No primeiro discurso do Buddha Shãkyamuni o Caminho dos Oito Passos, a Quarta Nobre Verdade, era o Caminho do Meio, entre os extremos da indulgência sexual e a 190

autotortura ascética. Assim, na esfera conceitual, o ensinamento da Originação Dependente é um Caminho do Meio entre os extremos do eternalismo e do anilacionismo. Quando se afirma: “O mesmo homem atua e experimenta o resultado” adota-se uma posição eternalista; ao dizer-se “um homem age, outro experimenta o resultado” a postura é anilacionista. Evitando estes dois extremos, o iluminado dá um ensinamento do “caminho do meio”, isto é, da Originação Dependente. Em outra parte, os dois extremos são ditos “existência” e “não-existência” – uma idéia que engendrou muita discussão na última filosofia budista. O Buddha Shãkyamuni rejeita a idéia de que ensina “a destruição, aniquilação ou cessação de um ser realmente existindo” (o ponto é claro, já que tal ser, em primeiro lugar, não existe – nada pode acontecer para isto, nem aniquilação, nem algo mais). Ele é um “anilacionista” naquilo que ensina: “a anulação de ganância, ódio, e desilusão.” Por trás de todas essas visões erradas repousa o pressuposto de que existe uma entidade que é denotada pelo sujeito gramatical do verbo, enquanto a resposta do Buddha Shãkyamuni afirma a existência de um evento descrito pela noção verbal mas nega que é legítimo inferir a existência de um sujeito real a partir de uma forma verbal. 405 Esta diferença em assuntos lingüísticos é vitalmente importante para compreeender as relações mútuas entre budismo e o sistema “ortodoxo” do pensamento indiano, o qual foi articulado em sânscrito, em cuja teoria lingüística uma tal inferência necessita ser feita – Kriyã , “fazendo”, todavia Kartr , “fazedor”. No entanto, isto não é somente um assunto lingüístico, embora o budismo não negue a inferência lingüística diretamente – como informa o Visuddhimagga , “ação existe, mas nenhum fazedor.” De acordo com a teoria realista da linguagem sânscrita sagrada, a palavra usada para se referir a algo era, em seu som e forma, uma parte da própria coisa. Em um nível conceitual, esta idéia teve suas raízes na antiga noção de que conhecimento de um nome dava o poder de conhecer a coisa nomeada, o qual foi visto na conexão com a idéia brahmânica de conhecimento como poder, o que o Buddha Shãkyamuni nega com seu primeiro argumento para anattã . Um desenvolvimento mais sofisticado desta idéia, a concepção de Sabda- brahman , “brahman como som”, permaneceu indiretamente influente no pensamento indiano, sublinhando tal fenômeno como a lingüística filosófica de Bhatrharis e o uso de mantras, fórmulas sagradas, na tradição tântrica.

405 Nesse sentido, o Budismo apresenta uma concepção não-representacional e não-realista da linguagem, concepção esta que, no Ocidente, sempre foi hegemônica a partir de Agostinho, sendo apenas questionada com os desenvolvimentos dos estudos lingüísticos, dentre os quais destacamos o de Wittgenstein, que apresenta uma concepção de significado da palavra pela noção do seu uso. 191

Em um nível social, aceitação da idéia de sânscrito como uma linguagem privilegiada naturalmente sagrada refletia o status e poder dos Brahmins como guardiães e transmissores do aprendizado sânscrito. Embora o budismo nunca tenha se colocado em oposição direta ao sistema de Varnas 406 , os monges budistas, especialistas religiosos necessitando do apoio leigo, estavam, certamente, em oposição à proeminência dos Brahmins dentro da sociedade de Varnas . De acordo com a sua história mais inicial, o ensinamento budista era levado no dialeto de cada região; a tradição Mahayãna começou a empregar o sânscrito em data muito mais tardia. Considerando o ensinamento da Originação Dependente, que o budismo usou para se opor ao brahmanismo no nível conceitual, é crucialmente importante distinguir entre a idéia geral de condicionalidade e as séries dos “Doze Passos” ou “Doze Elos” que veio a ser a forma tradicional na qual o ensinamento é transmitido. De acordo com a lenda, o monge Sãriputta, que veio a se tornar o discípulo do Buddha Shãkyamuni mais avançado na aprendizagem, primeiro usufruiu a ordem após ter perguntado pelo “ponto essencial” mais do que os detalhes do ensinamento do Buddha Shãkyamuni. Foi falado: “aquelas coisas que surgem a partir de uma causa, dessas o Tathãgata 407 contou a causa, e desta a qual é sua cessação, o grande ascético tem um tal ensinamento.” Nisto o “olho da verdade” surge nele e, em uma fórmula que freqüentemente expressa oconteúdo da realização da liberação dos convertidos para o budismo nos Suttas , ele viu “tudo isto o qual tem a natureza de vir para a existência, tem também a natureza da cessação.” Três tipos de análise da personalidade budista em Harvey: Análise dos Cinco Skhanda : uma análise central é que ela consiste de cinco Skhanda , em páli, Khandas , grupos, ou Upãdãna-kkhandhas , “grupos de apego”. São cinco grupos de processos aos quais geralmente nos referimos como “eu” ou “mim”. Eles podem ser vagamente referidos como “fatores de personalidade”. Estes cinco khandas são: Rupa : “forma material”, significando o corpo; Vedãna , “sentimento”, o tom prazerozo de qualquer experiência, seu aspecto como sendo agradável, desagradável ou neutro; Sañña , “cognição”, aquela a qual reconhece, classifica e interpreta objetos dos sentidos e da mente; Sankhãras , um número de “atividades construtivas”, das quais uma típica é Cetanã , ou volição, outra inclui coisas como estados emocionais e atenção; Viññana ; geralmente traduzida pelo vago termo “consciência”, mas que também pode ser vista como “discernimento”: consciência sensorial ou mental, a qual discerne os aspectos e as partes básicas do seu objeto.

406 Castas. 407 Um Título para o Buddha. 192

Análise das “vinte esferas sensitivas” : Ãyatanas : os cinco órgãos dos sentidos, com o órgão-mente – Manas – como um sexto, e os seis tipos de objetos de que esses se tornam conscientes. Análise dos Dezoito Elementos: Dhatus : esses vinte com a adição dos tipos de discernimento relacionados para cada órgão do sentido. Análise da Originação Dependente : esta é uma forma de análise da personalidade de uma maneira mais dinâmica, de acordo com o “Princípio de Paticca-Samuppãda”: “Surgimento Condicionado” ou “Originação Dependente”. Segundo este princípio, nada outro que Nibbãna surge ou cessa exceto em dependência de certas condições. A aplicação deste princípio à personalidade é mais freqüentemente dado em termos de uma série de Doze Nidãnas – elos ou vínculos causais, cada um condicionando o outro que se segue na seqüência. Os “Doze Elos” são: Avijjã : “ignorância espiritual” das Quatro Nobres Verdades, na forma de uma má percepção persistente da natureza da realidade. Sankhãras : o quarto fator da personalidade, enfatizado aqui como aquele que gera efeitos kármicos. Viññana : “discernimento” – o quinto fator da personalidade. Nãma-Rupa : “mente-e-corpo” – uma pessoa em seus aspectos físicos e mentais, isto é, o corpo senciente, particularmente no início de um novo renascimento. Ãyatanas : “as seis esferas sensitivas” – os seis órgãos dos sentidos. Phassa : “estimulação” – o vazio da mente consciente do contato sensorial; Vedãna : “sentimento” – o segundo fator da personalidade. Tanhã : sede – a causa chave do sofrimento. Upãdãna : “apego” – apego às coisas e visões. Bhava : “tornando-se”, “vir a ser” – significando o processo contínuo da vida. Jâti : “nascimento” – o começo de uma nova vida. Dhukka : “envelhecimento”, “morte”, “angústia”, “lamentação”, “dor”, “luto”, “desespero” – esta é toda a massa de dukkha. Os pontos extremos nesta seqüência são ignorância e angústia. Tanto a calma meditativa pelos Jhãnas gera um enfraquecimento da angústia, quanto o insight meditativo direto, baseado numa mente plena fortalecida, gera uma destruição tanto da angústia quanto da ignorância. Porém, é enfatizado que cada fator da personalidade, esfera sensitiva, elo ou vínculo possui três qualidades que justificam por que não se deve ser apegado a eles. Essas qualidades são: Anicca – “impermanência” –, estão sujeitos à mudança e declínio; Dukkha – 193

“angústia” – causando sofrimento e sendo insatisfatório; Anattã , em sâscrito, Anãtman – “não-self” – um self ou eu não substancial ou real. Pontos Relevantes : tendo apresentado tanto o pensamento de Collins quanto o de Harvey sobre a Originação Dependente, o segundo de forma mais breve, deve-se sublinhar alguns aspectos destacados por Collins sobre esta nova forma de conceber o surgimento da individualidade, apresentada pelo Buddha Shãkyamuni e conservada através da tradição budista. Do ponto de vista de Collins a doutrina da “Originação Dependente” da individualidade, do “eu budista”, pode ser vista, conceitualmente, como um Caminho do Meio entre uma concepção eternalista do eu (como supunha a tradição brahmânica ortodoxa na Índia) e uma concepção anilacionista (como supunha a doutrina materialista, por exemplo de Gosãla, considerada pelo Buddha Shãkyamuni como uma roupa de cânhamo, não protege nem do calor nem do frio, em suma, não serve para nada). Collins procura estabelecer uma correlação entre as concepções de personalidade, construídas a partir das crenças do ritual do sacrifício, onde claramente começa esse movimento de separar um eu abstrato, eterno, como um princípio central, e os componentes fisicalistas da personalidade, na forma de “listas de elementos”. É desta idéia, como ele procura demonstrar, que surge no budismo esta doutrina da “Originação Dependente” que, no entanto, introduz nesta concepção oriunda do ritual do sacrifício, uma modificação crucial. Com o budismo, junto com a doutrina da “Originação Dependente”, surge também uma imagem da “Roda da Vida” girando continuamente, sem a necessidade de se pressupor a existência de nenhum princípio abstrato, eterno e central denominado Ãtman em sua origem. Por isso, a doutrina budista do eu é denominada de Anãtman , ou seja, sem eu eterno, central, abstrato, independente e autônomo. O budismo procura este eu, mas encontrando apenas o vazio deste tipo de eu eterno e permanente. Assim, o Buddha Shãkyamuni concebeu esta nova forma de conceber a individualidade através dos Doze Elos onde, a partir de cada “elo” anterior, surge o próximo “elo”. Mas aqui é importante distinguir que tipo de condicionalidade é esta que está em causa na concepção da “Originação Dependente” da individualidade e na sua cadeia dos “Doze Elos”. Não se está diante de uma concepção fisicalista da causalidade – está-se aqui muito mais próximo de uma concepção na qual cada “elo”, é visto como uma “realidade virtual.” Do interior de cada uma destas “realidades virtuais” ou “psíquicas”, pode se originar uma outra. Na concepção dos “Doze Elos da Originação Dependente da Individualidade”, do Buddha Shãkyamuni, os três primeiro apresentam um tipo de relação bastante sutil. São eles: Ãvidya , Samkhãra e Viññana, respectivamente Ignorância, Formações Mentais (Construções, 194

Intenções) e Consciência. Destes três primeiros surge um quarto, que na seqüência é Nãma- Rupa, “mente-e-corpo”, uma pessoa em seus aspectos físicos e mentais, isto é, o corpo senciente, particularmente no início de um novo renascimento. É daqui que se prosseguirá, tentando percorrer o caminho deste eu budista do princípio até o fim, ou seja, desde a mente do principiante até a do iluminado.

4.5 Os Cinco Skandhas em Chögyam Trungpa

“É como se estivéssemos assistindo a um filme: os quadros isolados do filme são projetados tão rapidamente que produzem a ilusão de um movimento contínuo. Desse modo formamos uma idéia, um preconceito, de que o eu e o outro são sólidos e contínuos” 408

Em seu livro, “ Além do Materialismo Espiritual ”, Trungpa escreve que não se deve aventurar em estudar assuntos mais adiantados enquanto não houver familiaridade com o ponto de partida. Pode-se dizer que o ponto de partida e de chegada é esta outra versão da individualidade da Índia Antiga, a doutrina da “Originação Dependente”, que tem um encontro marcado com a individualidade ocidental há dois mil e quinhentos anos. Por isso este autor afirma:

“Se não conhecemos o material com que estamos trabalhando, nosso estudo será inútil, as especulações sobre a meta se tornarão mera fantasia. Tais especulações poderão assumir a forma de idéias avançadas e descrições de experiências espirituais, mas apenas exploram os aspectos mais fracos da natureza humana, nossas expectativas e desejos de ver e ouvir algo colorido, algo invulgar.” 409

Por isso considera “destrutivo e injusto, para com as pessoas o jogo com suas fraquezas, expectativas e sonhos, em lugar de se apresentar o ponto realístico do que elas

408 TRUNGPA, Chögyam. O Mito da Liberdade e o Caminho da Meditação . Tradução de Aníbal Mari. Revisão de conteúdo e forma a cargo do Grupo de Estudos do Dharma de São Paulo. São Paulo: Editora Cultrix, 1976, 1995, p. 29. 409 TRUNGPA, Chögyam Além do Materialismo Espiritual Tradução de Octavio Mendes Cajado. Revisão de conteúdo e forma a cargo do Grupo de Estudos do Dharma de São Paulo. São Paulo: Cultrix, 1973, 1999, pp. 119-132. 195

são.” 410 É preferível começarmos por aquilo que somos e pelo que estamos procurando. De uma maneira ou de outra, este é o material com que lidam todas as tradições religiosas, seja aludindo ao alaya-vijnana 411 , seja ao “pecado original”, à “queda do homem” ou à “base do eu.” Não há nenhuma necessidade de sentir vergonha daquilo que se é, mesmo que da perspectiva de quase todas as religiões encontre-se uma tendência a abordar isto de modo pejorativo. Mas podemos nos tranqüilizar, não estamos diante de algo tão terrível. É verdade, que como seres sencientes, nem sempre nossos antecedentes foram assim tão maravilhosos, iluminados, tranqüilos ou inteligentes, no entanto isso não quer dizer que não possuímos um solo muito bom para ser cultivado e onde podemos plantar o que quizermos. O fundamento do budismo é a compreensão do eu, assim vamos agora examinar a descrição deste processo de “Originação Dependente”, do ponto de vista dos “Cinco Skandhas” em Trungpa 412 , complementada pela visão da doutrina budista segundo Jaspers e uma breve apresentação do “Caminho dos Oito Passos em Lama Padma Samten”, com o que conclui-se o quarto capítulo sobre “O Budismo, Uma Outra Versão da Individualidade na Índia Antiga.” No budismo, afirma Trungpa, o estado primordial da mente é este solo básico, este espaço aberto, isso é tudo que existe, é tudo que se é antes da criação do eu: um estado de abertura básica, liberdade básica, espaço, o qual ainda se tem, como sempre se teve, esta abertura primordial. O autor propõe tomar como exemplo, a vida e os padrões de pensamento cotidianos. Quando se vê um objeto ocorre, em um primeiro instante, súbita percepção sem lógica, nem conceituação em relação a ele; apenas o percebe-se o objeto no campo aberto. Então, de imediato, cai-se em pânico e passa-se a correr desorientadamente, tentando acrescentar-lhe alguma coisa, encontrar um nome, uma classificação para que se possa caracterizá-lo e classificá-lo. As coisas se desenvolvem, então, pouco a pouco, a partir deste ponto. Esse desenvolvimento não assume a forma de uma entidade sólida. Ao contrário, é apenas um desenvolvimento ilusório, a crença equivocada em um eu. A mente confusa tende a perceber-se como coisa sólida, em funcionamento, mas não passa de um conjunto de

410 TRUNGPA, Chögyam. (1973, 1999: 119). 411 “Dispensa da Consciência” – noção central da Escola Yogãchãra, do Mahayãna, que vê aí a consciência básica de tudo o que existe – a essência do mundo, fora da qual tudo que é, surge. Isto contém a experência das vidas individuais e as sementes de todo fenômeno psicológico. In The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion. Buddhism. Hinduism. Taoism. Zen . Orgs. Stephan Schumacher, Gert Woerner. Boston: Shambhala, 1989, p. 07. 412 TRUNGPA, Chögyam. (1973, 1999: 119-125). 196

tendências e eventos. Em terminologia budista, este conjunto é conhecido como os “Cinco Skandhas”, descrição já examinada anteriormente em Collins e Harvey, e agora em Trungpa. O ponto inicial é a existência deste espaço aberto, que não pertence a ninguém, não tem dono, não tem eu. Aí se encontra este estado de inteligência primordial, Vidya 413 , inteligência, precisão, agudeza, agudeza com espaço, agudeza com lugar em que se pode colocar coisas, trocar coisas. Trungpa propõe a imagem de um espaçoso salão onde se pode dançar sem correr risco de derrubar coisas, pois há um espaço completamente aberto. O homem é esse espaço, “é um” com ele, com Vydia , inteligência e abertura, ele então se pergunta:

“Mas se o somos durante o tempo todo, de onde veio a confusão, para onde foi o espaço, que aconteceu? Na realidade, nada aconteceu. Por ser vasto, ele nos convida a dançar; mas a nossa dança torna-se um pouco ativa demais, principiamos a girar mais do que o necessário para expressar o espaço. Nesse ponto nos tornamos conscientes de nós mesmos, cônscios de que Eu estou dançando no espaço.” 414

O Primeiro Skandha surge com essa primeira experiência de dualidade. Não somos mais “um” com o espaço. Eu estou dançando nesse espaço, e esta vastidão se torna uma coisa sólida, separada. Dualidade significa essa percepção – “Eu e o Espaço” – ao invés da completa identificação com o espaço, nasce a “forma”, o “outro.” E nesse momento nós desmaiamos, ocorre uma espécie de desmaio, esquecemos do que estávamos fazendo. Subitamente abre-se uma lacuma. O espaço sólido nos engolfa, nos perdemos nele, há um escurecimento e depois um despertar. Quando despertamos, já não vemos mais o espaço como abertura, recusamo-nos a ver sua qualidade suave e arejada. Ignoramo-lo completamente, isso é Ãvidya , “ A” significa “negação”, Vidya significa “inteligência”, logo Ãvidya , “não- inteligência”. Já não queremos apenas dançar no espaço, queremos ter um parceiro, e escolhemos o próprio espaço como parceiro, por isso fazemos deste espaço algo sólido, o solidificamos, com isso ignoramos sua qualidade fluente, aberta. Ãvidya é a ignorância desta qualidade de abertura do espaço, ignoramos a nossa própria qualidade básica antes de termos entrado em Ãvidya , no entanto ela ainda permanece conosco, mesmo que nós a ignoremos. Este é o ápice do primeiro Skhanda , a criação da “ignorância-forma”.

413 “Inteligência”, em sânscrito. 414 TRUNGPA, Chögyam. (1973, 1999: 121). 197

O Segundo Skandha surge com a criação de um mecanismo de defesa para proteger a nossa ignorância, a sensação. Como “ignoramos” o espaço aberto, queremos sentir as qualidades do espaço sólido com a finalidade de obter uma satisfação completa, procuramos satisfazer esta índole gananciosa que estamos desenvolvendo. Estendemos sempre a mão em direção ao “outro”, sempre que queremos assegurar-nos de que se ele está ali, então eu devo estar aqui. Essa é uma maneira de certificarmo-nos da nossa existência. Toda vez que alguma coisa acontece estendemos a mão para verificarmos se a situação é sedutora, ameaçadora ou neutra. Toda vez que ocorre uma repentina separação, uma sensação de não conhecer a relação entre “isto” e “aquilo”, tendemos a procurar sentir o chão. Tal é o mecanismo da sensação extremamente eficiente que começamos a estabelecer neste Segundo Skandha . O Terceiro Skandha surge com um mecanismo destinado a reforçar o aparecimento do eu 415 , a “percepção-impulso”. Identificamos três tipos de impulso: ódio, desejo e estupidez. A percepção refere-se à recepção de informações do mundo exterior, e o impulso é uma forma de resposta a essas informações. Estamos fascinados pela nossa própria criação, cores e energias estáticas, dessa forma queremos nos relacionar com elas, por isso começamos a investiga-las. Assim, criamos uma espécie de sistema de quadro de distribuição, um controlador do mecanismo de sensação. A percepção se instala como uma espécie de quadro central de distribuição. De acordo com as informaçãoes, nós emitimos julgamentos, nós reagimos. Não importa se a reação é favorável, contrária ou indiferente, está sendo determinada automaticamente pela burocracia da sensação e da percepção. Podemos empurrar aquilo que nos parece ameaçador, puxar o que nos parece atraente ou ficarmos indiferentes ao que nos parece neutro, estamos funcionando com um mecanismo automático à sensação intuitiva. O Quarto Skandha surge com a necessidade de desenvolver uma defesa mais eficiente para proteger a nossa ignorância e garantir a nossa segurança. O intelecto, a nossa capacidade de nomear e categorizar as coisas, surge com a finalidade de proteger-nos e enganar-nos da maneira mais completa e adequada. Dessa forma surge a necessidade de catalogarmos as coisas e eventos em “belas”, “feias”, “boas” e “más”, de acordo com o impulso que julgamos o mais apropriado. A partir desse ponto a estrutura do eu torna-se mais e mais pesada, mais e mais forte. Até então o desenvolvimento do eu tinha sido um processo de ação e reação, no entanto, pouco a pouco vai se tornando mais e mais sofisticado. Neste momento começamos a

415 Embora no texto o autor prefira usar a palavra Ego, preferimos manter a terminologia Eu, que adotamos para nos referirmos a uma categoria que começou a ser construída nos primórdios do pensamento indiano ,e que é um 198

experimentar a especulação intelectual. Não resta dúvida que a natureza básica do intelecto é muito lógica. Apresentamos uma tendência para trabalhar em favor de uma condição positiva: “confirmar nossa experiência, interpretar a fraqueza como força, fabricar uma lógica de segurança, confirmar a nossa ignorância” 416 Apesar da inteligência primordial operar o tempo todo, ela está sendo empregada pela fixação dualística, pela ignorância. Dessa forma, nos estágios iniciais do eu, essa inteligência opera “com a agudeza intuitiva da sensação.” Só mais tarde ela opera como intelecto:

“Na realidade, parece não existir o eu; nada existe parecido com o ‘eu sou’. Trata-se do acúmulo de uma porção de coisas. É uma ‘brilhante obra de arte’, um produto do intelecto que diz: Vamos lhe dar um nome, vamos chama-lo de qualquer coisa, vamos chama-lo ‘eu sou’, o que é muito inteligente. ‘Eu’ é o produto do intelecto, o rótulo que unifica num todo o desenvolvimento desorganizado e disperso do eu.” 417

O Quinto Skandha surge com a consciência, o derradeiro estágio e desenvolvimento do eu. É neste nível que “se processa uma amálgama: a inteligência intuitiva do Segundo Skandha , a energia do Terceiro, e a intelectualização do Quarto se misturam para produzir pensamentos e emoções.” Ao nível do quinto Skandha , dadas todas essas condições, encontramos os Seis Reinos e os padrões incontroláveis e ilógicos do pensamento discursivo. Aqui Trungpa afirma ter completado o retrato do eu, o ponto em que todos nós chegamos no estudo da psicologia e meditação budistas. 418 Procurar-se-á completar este retrato do “eu budista” a partir de uma apresentação da doutrina e meditação budista em Jaspers. Segundo este autor a doutrina do Buddha Shãkyamuni visa à liberação pela clarividência. 419 O saber justo é já, enquanto tal, liberação. No entanto, este autor chama a atenção, de que a origem e o método deste saber libertador não correspondem em nada ao que os ocidentais estão habitualmente acostumados a entender por “saber”. Trata-se de um saber que não se demonstra pelos procedimentos lógicos do pensamento nem pelas intuições sensíveis, mas está ligado, ao contrário, às experiências de

patrimônio da humanidade, não se circunscrevendo a nenhuma especialidade. Assim, também, evitamos a confusão com o emprego técnico da palavra Ego, por exemplo, adotada pela terminologia psicanalítica. 416 TRUNGPA, Chögyam. (1973, 1999: 124). 417 TRUNGPA, Chögyam. (1973, 1999: 124). 418 TRUNGPA, Chögyam. (1973, 1999: 125). 419 JASPERS, K. Les grands philosophes . Ceux qui ont donné la mesure de l´humain: Socrate, Bouddha , Confucius, Jésus . Traduzido do alemão por C. Floquet, J. Hersch, N. Naef e X. Tilliete, Inglaterra, Presses de Cox y Wyman Ltd., 1957, 1998, pp. 168-169. 199

transformação da consciência e dos níveis da meditação. Foi justamente esta última que tinha acarretado ao Buddha Shãkyamuni a iluminação embaixo da figueira. 420 Somente esta descida ao último patamar da meditação revelou-lhe o ensinamento que ele transmitiu logo a seguir. Assim, nas palavras do autor:

“O Buddha, como todos os yoguis da Índia, se sabiam, nestes estados meditativos, em ligação com os seres e os mundos de origem transcendente. Nestes estados ele via com o olho divino, clarividente e suprasensível.” 421

Segundo Jaspers ciência e especulação filosófica permanecem no interior da forma da consciência, tal como nos é dada. No entanto, a filosofia indiana toma, por assim dizer, em mãos a própria consciência e, “pelos exercícios de meditação, vai além através das formas superiores. A consciência se torna uma grandeza variável no curso desta elaboração por saltos sucessivos”. Há uma necessidade de ultrapassar o pensamento racional e sua relação com o espaço e o tempo, nível simples da consciência pela experiência de uma atividade transcendente, elevando-se por graus na superconsciência. De acordo com este pensamento filosófico, voltado para uma atitude de interiorização, esta é uma característica que contrasta com o pensamento ocidental, muito mais voltado para a extroversão 422 . As respostas às questões fundamentais da vida devem ser colocadas a estas forças mais profundas, graças às quais os enunciados intelectuais tomam seus sentido e sua justificação:

“É porque o que o Buddha se propõe a revelar se perde nas fórmulas da doutrina, concebidas por uma pregação imediata e imediatamente imaginadas no abstrato. Profunda é esta doutrina, difícil de descobrir, difícil de compreender, repleta de serenidade, de magnificência, inacessível à simples reflexão, sutil, acessível somente ao sábio.” 423

420 Essa árvore tornou-se conhecida como a árvore Bodhi — a “Árvore da Iluminação” ou “Árvore da Sabedoria”— na margem do rio Nerañjara, em Gaya (conhecida hoje como Buddha Gaya). In THERA, P. The Buda’s Ancient Path . Buddhist Publication Society, Kandi, Sri Lanka, 1979. 421 JASPERS, K. (1957, 1998: 174). 422 JUNG, C.G. Psicologia da Religião Ocidental e Oriental . Tradução do Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, OSB, 2 a. ed., Petrópolis: Vozes, 1971, 1983, pp. 486-487. 423 JASPERS, K. (1957, 1998: 174). 200

Um outro ponto importante e que não se pode esquecer é que, para alcançar a clarividência, a verdade, seja aquela da reflexão filosófica de uma consciência ordinária como aquela da experiência na meditação, tal clarividência permanece ligada a uma purificação da vida inteira pela conduta ética. As visões falsas não eliminadas apenas por uma atividade exclusivamente intelectual, nem por uma técnica de transformação da consciência; ao contrário, nenhuma terá êxito a não ser sobre o solo de uma alma purificada. A absorção da doutrina neste englobante que não é conteúdo de um saber toma sua expressão no seguinte enunciado: o Buddha Shãkyamuni não ensina um sistema de conhecimento, mas um caminho que conduz à salvação. É por este caminho, ao longo do qual o conhecimento e suas diversas modalidades tomam lugar, que o praticante chega ao fim, e não, ao inverso, primeiro por meio de operações lógicas. Estas sim, ao contrário, não tomam sentido senão ao curso desta progressão e a seu justo lugar. O “Caminho da Salvação” é dito o Nobre Caminho dos Oito Passos: crença justa, resolução justa, palavra justa, ação justa, vida justa, esforço justo, pensamento justo, concentração justa. Será agora examinado melhor o Nobre Caminho dos Oito Passos. Ao examinar os ensinamentos do Buddha, procura-se não circunscrever a visão a uma única tradição, embora seja impossível abarcar todas as visões. Para situar a expansão do budismo do ponto de vista histórico, o qual será abordado no primeiro segmento do próximo capítulo, pode-se dividi-la em cinco períodos: o primeiro, entre os séculos VI e V a.C, quando o Dharma foi exposto pelo Buddha Shãkyamuni e difundido por seus discípulos; o segundo, entre os séculos V e I a.C., quando foram realizados os concílios budistas e surgiram as primeiras escolas; o terceiro, entre os séculos I e VI, quando há o surgimento do Budismo Mahayãna ; o quarto, entre os séculos VII e XIII, quando há a expansão do budismo esotérico; e o quinto, entre os séculos XIX e XX, quando há a chegada do budismo ao ocidente, o que será tratado no próximo capítulo, “O Despertar do Budismo no Ocidente”. Em relação às antigas escolas, todas desapareceram, com exceção do Theravãda , que predomina até hoje nos países do sudeste asiático (Mianmar, Sri Lanka, Cambodja, Tailândia e Laos). Os precursores do Mahayãna , o “Grande Veículo”, passaram a denominar algumas escolas pelo termo Hinayãna , o qual apresentava uma conotação até certo ponto pejorativa. Mas tal atitude está sendo retificada, tanto que, quando se expuseram os Três Giros da Roda do Dharma, foi visto que Sua Santidade o XIV Dalai Lama faz uma apresentação destes veículos englobando-os no veículo do Buddhayãna , que abarca tanto ao Hinayãna quanto ao Mahayãna . Esta é uma forma de evitar uma atitude preconcebida ou de dar uma conotação pejorativa a qualquer um dos veículos de ensinamento budista, pois a imagem que o próprio 201

Buddha oferece dos veículos é a de uma barca que se usa para atravessar um rio: depois de ter-se realizado a travessia não é preciso sair carregando a barca por cima da cabeça, abandona-se a barca assim que se chega à outra margem. O fato é que os ensinamentos referentes ao Nobre Caminho Óctuplo estão presentes no em sua totalidade, e a divisão procede em termos do significado profundo do veículo. Zimmer propõe uma divisão que marca essas diferenças em termos da própria palavra yana , que significa “embarcação”, “barca”, e hina , “pequeno”, conseqüentemente hinayãna signigfica “pequeno barco”. Maha significa “grande”, conseqüentemente é “grande barco”. O pequeno barco, pelas suas próprias dimensões, não pode transportar muitas pessoas, enquanto o grande pode conduzir um maior número de pessoas. O caráter restritivo do Hinayana revela-se na exacerbação das exigências no domínio das práticas meditativas. No Mahayãna essas exigências são atenuadas e, em seu lugar, a compaixão ocupa uma dimensão privilegiada. Historicamente, o ideal do Arhat está do lado do Hinayana . Ananda não foi admitido no primeiro concílio, depois da morte do Buddha Shãkyamuni, por não ser arhat , isto é, não dominar completamente e com excelência, as práticas de meditação 424 Na tradição Hinayãna encontra-se um veículo que busca conduzir o praticante a evitar ações que possam gerar sofrimento; no Mahayãna há um grande veículo da aspiração altruísta de todos os seres; no Vajrayãna encontra-se uma forma especialmente rápida e eficaz de Mahayãna . Se nos limitássemos à tradição Hinayãna , que é uma tradição mais voltada para cumprir com determinadas regras, correríamos o risco de transformar o Caminho dos Oito Passos apenas neste compromisso de cumprir as regras. Já na tradição Mahayãna , há uma experiência de corpo, fala e mente, e a emoção surgindo junto. Ao se examinar, a partir do quinto passo (vida justa), o Caminho dos Oito Passos, examina-se a vida emocional além da identidade, ou seja, enquanto nos quatro primeiros há negociação, ainda que seja espiritual e benéfica, nos quatro últimos já existe uma forma de liberdade e amplidão da mente. Segundo a descrição do Lama Padma Samten esta verdade indica o Nobre Caminho dos Oito Passos, o caminho gradual que o Buddha Shãkyamuni ensinou para ir-se da experiência de aprisionamento à obtenção do reconhecimento incessante da liberdade. Os “oito passos” são os seguintes: 425

424 ZIMMER, H . Filosofias da Índia. Compilado por Joseph Campbell. Tradução de Nilton Almeida Silva, Cláudia Giovani Bozza e participação de Adriana Facchini de Césare. Versão final de Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 1951, 1986, pp. 351-365. 202

Nobre Caminho dos Oito Passos Hinayãna Motivação Refugiando-se na Visão Correta natureza do absoluto além da experiência cíclica Moralida- Pacificando a Mente de Pacificando a Fala Pacificando o Corpo Mahayãna Fé, bodiccita Ampliando a Mente Modo de Vida Correta Confiança além da identidade Compaixão Generosidade Destemor Contemplação Atingindo a estabilidade Meditação Meditando Realiza- Atingindo o resultado ção

O Primeiro Passo: é abandonar o refúgio nos “três venenos” e refugiar-se nas “três jóias” – ou seja, abandonar a motivação usual de perseguir objetivos que não são capazes de produzir felicidade duradoura e colocar-se na direção daquilo que realmente pode produzir uma experiência estável de liberdade. O Segundo, Terceiro e Quarto Passo : com essa motivação, firmemente estabelecida, os três passos seguintes são alcançados naturalmente; uma pessoa com tal refúgio não pratica nenhuma das dez não-virtudes em mente (segundo passo), fala (terceiro passo) e corpo (quarto passo). O Quinto Passo : há uma ampliação dessa motivação, que passa a incluir os outros seres. Nesse passo um desenvolvimento das quatro qualidades incomensuráveis e das seis perfeições proporciona destemor e uma inserção adequada no mundo que elimina a crise existencial. O Sexto, Sétimo e Oitavo Passo : os três últimos passos referem-se à prática da meditação: o sexto passo é o desenvolvimento de estabilidade; o sétimo passo, a prática da

425 SAMTEN, Padma. Meditando a Vida . São Paulo: Peirópolis, 2001, p. 149. 203

sabedoria transcedental que aponta em cada evento separativo uma natureza de liberdade; e o oitavo passo, a prática do reconhecimento incessante dessa pureza inerente não-separativa, a liberadde não causal que sempre esteve presente, mas que até então não havia sido reconhecida. O Nobre Caminho constitui a Roda do Dharma. O praticante gira essa roda da melhor maneira possível, percorrendo do primeiro ao oitavo passos várias vezes, a cada vez melhorando algum ponto, até realizar completamente cada um deles.

204

A Cadeia de Produção Dependente – Pratitya-Samutpãda. Skt. – Este afresco tibetano representa um dos ensinamentos essenciais do ensinamento do Buddha, o anel exterior simboliza os doze liames da cadeia. A parte principal do círculo contém os seis reinos da existência no sentido inverso das agulhas do relógio. O semi-círculo mostra aqueles que conhecem a decadência espiritual e os que avançam para o nirvãna. No centro encontram-se três grandes faltas: a paixão (galo); o ódio (serpente); o erro (javali). a personificação da morte sustenta a todos em seus braços in Le monde du Boudhisme. Sous la direction Heinz Bechert et Richard Gombrich. Londres: Thames and Hudson Ltd., p. 24. 205

5 O DESPERTAR DO BUDISMO OCIDENTAL NO SÉCULO XXI

“Os que crêem ter muito tempo querem se preparar somente na hora da morte. Aí são devastados pelo remorso. Mas já não será tarde demais?” 426 Padmasabhava

5.1 Mudança de paradigma ou ponte ocidente-oriente em Colin Campbell

Em seu livro, “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”, Sogyal Rinpoche diz que no pensamento budista “a vida e a morte são vistas como um todo, onde a morte é o começo de um novo capítulo da vida.” Para o budismo, a morte é um “espelho no qual o inteiro significado da vida é refletido”. 427 No budismo tibetano os ensinamentos relacionados aos demonstram, de certa maneira, a inseparabilidade entre a vida e a morte, tendo em mente a perspectiva de iluminação. 428 Esta forma de encarar o momento da morte está em flagrante contraste com a maneira como tradicionalmente esta questão é vista pela cultura ocidental. A sociedade ocidental está cada vez mais obsecada pela juventude, sexo e poder, procurando negar a velhice e a decadência, que todos nós teremos de enfrentar ao final das nossas vidas. Este é um fato inegável, mas do qual procuramos fugir todo o tempo. Mas o momento da morte é um momento crucial para o praticante espiritualmente avançado dentro do budismo tibetano:

“O yogue pode usar a morte como a grande oportunidade para atingir a iluminação. Entretanto, para aqueles comprometidos com o voto de Bodhisattva, morte é o momento de retornar. Eles têm o ideal altruísta de ajudar a todos os seres sencientes a atingir a iluminação, assim sempre voltam ao ciclo de renascimento e morte voluntariamente. Para eles, o momento da morte é a oportunidade de decidir o lugar e a hora de seu futuro renascimento. Os lagos e os rios do Tibete contarão para o mundo o seu destino.” 429

426 Apud Padma sambhava. In RINPOCHE, S. O Livro Tibetano do Viver e do Morrer . Tradução de Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Talento: Palas Athena, 1993, 1999, p. 28. 427 RINPOCHE, S. (1999, p. 29). 428 LOPES, A C. “Histórias da Diáspora Tibetana” in Revista USP . São Paulo (31): 150-162, set/nov., 1996, p. 158. 429 LOPES, A C. “Histórias da Diáspora Tibetana” in Revista USP. São Paulo (31): 150-162, set/nov., 1996, p. 154. 206

O “Livro Tibetano do Viver e Morrer”, de Sogyal Rinpoche, escrito recentemente 430 tornou-se rapidamente um dos livros relacionados ao budismo tibetano mais vendidos nos Estados Unidos e na Europa, o que demonstra um grande interesse por esta outra versão a respeito do momento da morte ou talvez uma mudança nas crenças sobre a morte que até o momento tiveram primazia no ocidente. Há pouco havíamos apontado em Jung um contraste entre uma atitude mais introvertida, caracterizando a maneira de ser oriental e uma atitude mais extrovertida, caracterizando a maneira de ser ocidental. E não são poucos os contrastes que podemos estabelecer entre essas duas versões de cultura, esses dois conjuntos de crenças e valores que se constituíram no pensamento ocidental e oriental quase como os lados opostos de uma mesma moeda. Ao longo de nosso trabalho, essa foi uma das perguntas, que permaneceu de certa forma implícita: será este contraste um obstáculo ou o despertar do budismo no ocidente mostra, ao contrário, que essa tradição, por suas características que acabamos de ver, apresenta uma maior possibilidade de fazer uma ponte entre oriente e ocidente? Fala-se de uma mudança de paradigma, de orientalização do ocidente, mas será que se trata de uma mudança tão radical ou não será o caso de pensarmos que justamente por estarmos vivendo em um mundo globalizado, um acontecimento também muito recente que presenciamos neste fim de século e início de um novo, não será preferível pensar este despertar do budismo no século vinte e um neste novo contexto da globalização? Tensin Gyatzo, Sua Santidade o XIV Dalai Lama, afirma que muitas vezes as pessoas lhe perguntam se o budismo – um ensinamento antigo que vem do oriente – é adequado ou não para os ocidentais, ao que ele responde:

“Minha resposta é que a essência de todas as religiões lida com problemas humanos básicos. Enquanto os seres humanos, ocidentais ou orientais – brancos, pretos, amarelos, ou vermelhos – passarem pelos sofrimentos do nascimento, da doença, da velhice e da morte, todos serão iguais nesse aspecto. Enquanto esse padecimento estiver presente, e uma vez que o ensinamento básico se relaciona com tal sofrimento, não há muita dúvida quanto ao fato de ele ser ou não adequado.” 431

430 Importante ressaltar que este livro, embora inspirado no “Livro Tibetano dos Mortos”, trata-se de um outro livro, que foi publicado originalmente com o título “The Tibetan Book of Living and Dying” , 1992. 431 DALAI LAMA, Gyatso, T XIV Dalai Lama: Bondade, Amor e Compaixão . Segundo a versão inglesa organizada por Jeffrey Hopkins e Elizabeth Napper. Tradução de Cláudia Gerpe Duarte. São Paulo: Editora Pensamento, 1997, 1999, pp. 92-3. 207

Para melhor explicar a sua posição ele faz uma distinção entre herança cultural e religião em si, dizendo que podemos distinguir a essência de uma religião do seu cerimonial circunstancial ou nível ritual. Assim, em sua opinião, na Índia, no Tibete, na China, no Japão, ou em qualquer outro lugar, o aspecto religioso do budismo é o mesmo, mas a herança cultural é diferente em cada país. Deste modo, na Índia o budismo assimila a cultura indiana, no Tibete, a cultura tibetana, e assim por diante. Ele considera que olhando desse prisma, a incorporação do budismo à cultura ocidental também pode ser possível. 432 Em seu artigo “Histórias da Diáspora Tibetana”, Ana Cristina Lopes afirma que há algumas décadas milhares de tibetanos, ao escapar da repressão chinesa, atravessaram as montanhas dos Himalaias para se refugiar inicialmente na Índia. Mas não demoraria muito para eles se espalharem pelos quatro cantos do mundo, levando unicamente como bagagem 1.300 anos de uma cultura celebrada por muitos como única em seu gênero. Como se sabe, o budismo foi levado no século oito por da Índia para o Tibete. E a propósito da chegada do budismo ao ocidente, no século vinte e um, a autora expressa a seguinte opinião:

“A difusão do budismo tibetano em terras ocidentais deve ser entendido no contexto da globalização, que gradativamente vai reunindo o mundo num mesmo todo. O ocidente, que levou seu modelo de cultura para o planeta inteiro, vive a contrapartida disso com a invasão de outras culturas. Resultado da hipermodernidade, um sentimento religioso livre das amarras do positivismo cartesiano ressurge, gerando a possibilidade de sobrevivência do budismo tibetano, ainda que longe de sua terra de origem.” 433

Alguns autores, no entanto, defendem uma tese mais ambiciosa de que “ocorre atualmente no ocidente um processo de ‘orientalização’, caracterizado pelo deslocamento da teodicéia tradicional por uma outra que é essencialmente oriental na sua natureza.” 434 Segundo Campbell, qualquer que seja a ética a guiar a nossa conduta no século vinte e um, com grande probabilidade deverá estar consoante com esta nova teodicéia emergente. Este autor explica que está lançando mão do termo “orientalização” para se referir a algo ainda

432 DALAI LAMA, Gyatso, T. (1997, 1999: 93). 433 LOPES, A C. “Histórias da Diáspora Tibetana” in Revista USP . São Paulo (31): 150-162, set/nov., 1996, p. 153. 434 CAMPBELL, C. “A Orientalização do Ocidente: Reflexões sobre uma Nova Teodicéia para um Novo Milênio” in Religião e Sociedade , n. 18, vol. 1, 1997, p. 5. 208

muito mais radical do que uma mera inversão do processo de “Coca-Cola-ização .” Sua tese, explica ele, é de que:

“O paradigma cultural ou teodicéia que tem sustentado a prática e o pensamento ocidental por cerca de dois mil anos está sofrendo um processo de substituição – e com toda probabilidade terá sido substituído, quando entrarmos no próximo milênio – pelo paradigma que tradicionalmente caracterizou o oriente.” 435

Sem sombra de dúvida essa mudança radical de paradigma está diretamente relacionada com a entrada de idéias e influências do oriente sobre o ocidente. Mas, em sua opinião, outros fatores relevantes para esta mudança têm sido os próprios desenvolvimentos culturais e intelectuais que aparecem do interior da própria civilização ocidental, desenvolvimentos estes aos quais podemos atribuir grande parte da responsabilidade pelo aceleramento dessa mudança de paradigma. E para exemplificar o que está sendo tomado aqui como mudança de paradigma, o autor vai se referir aos trabalhos do sociólogo Max Weber. Zizek é um outro autor que menciona o pensamento de Weber a propósito do debate em torno do “Budismo Ocidental”. Em nossa introdução, fomos buscar o pensamento de Weber, procurando imaginar justamente como ele responderia à hipótese levantada por Zizek de que ele, Max Weber, se fosse vivo, publicaria um segundo volume suplementar para sua “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” intitulado “A Ética Taoísta e o Espírito do Capitalismo Global”. 436 De fato, encontramos no próprio Weber a resposta, pois em seu livro, “Economia y Sociedad”, ele afirma que a única “ética religiosa” que, a rigor, está em oposição à participação no modo de vida do capitalismo é a “ética contemplativa” do budismo primitivo, inicialmente denominada em suas palavras como:

“A Ética mais extrema de negação do mundo, a mística concentração iluminista do velho budismo genuíno; não, naturalmente, das variações inteiramente transformadas que apresenta nas religiosidades populares, seja ela tibetana, chinesa e japonesa.” 437

435 CAMPBELL, C. (1997: 6). 436 ZIZEK, S. On Belief . Londres e Nova Iorque. Routledge, 2001, p. 13. 437 WEBER, M. Economia y Sociedad . México, Fondo de Cultura Econômica, 1ª. Ed. 1922, 11ª. Ed. 1997, p. 487. 209

Apesar de não concordar, como demonstramos em nosso capítulo sobre o budismo na Índia, nem com esta sua denominação de “ética mais extrema de negação do mundo”, nem com a denominação de “fuga do mundo” para a tradição budista, consideramos, no entanto, muito improvável que por esta sua visão a respeito do budismo Weber escreveria semelhante livro, como pensa Zizek. Mas talvez seja oportuno retomarmos o pensamento weberiano, com o qual já havíamos nos familiarizado quando escrevemos “O Sujeito Ético da Psicanálise Frente ao Individualismo Contemporâneo” 438 baseados no pensamento de Weber. Nesse trabalho, a partir da leitura da sua obra, particularmente de seu livro clássico “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, foi sublinhado, entre vários aspectos levantados por ele, um que chamou atenção e que é relevante para uma compreensão da dinâmica da subjetividade ocidental. Este aspecto consiste na afirmação de Weber de que, no ocidente, desenvolveu-se um tipo de racionalidade sem a qual não teria sido possível o desenvolvimento do sistema econômico do capitalismo, porém este mesmo sistema econômico gera uma “direção de vida”, um “estilo de vida”, que porta um elemento irracional, pois elege como valor absoluto o lucro e a ganância. 439 Na época, este foi um dos pontos levantados a respeito da questão do eu ocidental. Em seu artigo, “A orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodicéia para um novo milênio”, Colin Campbell traça um panorama abrangente da sociologia weberiana mais ligado à sua sociologia das religiões, assim este autor explica:

“O desejo de Max Weber de entender a complexa relação entre a estrutura institucional sócio-econômica da sociedade e sua cultura o levou a construir um esquema de classificação e análise das religiões mundiais. Embora estivesse baseado em sua erudição ampla e extraordinária e abarcasse um estudo detalhado do Cristianismo, Judaísmo Antigo, Hinduísmo, Budismo e Religião Chinesa (o trabalho sobre o Islamismo e o aprofundamento dos trabalhos sobre Cristianismo Primitivo e Catolicismo Medieval estavam em andamento mas não tinham sido concluídos quando ele morreu), seu esquema tinha um embasamento tanto lógico quanto empírico.” 440

438 COSTA BARROS, M.T. “O Sujeito Ético da psicanálise Frente ao Individualismo Contemporâneo”, trabalho realizado sob a orientação do prof. Jurandir Freire Costa e apresentado para o Exame de Qualificação do Curso de Doutorado em Saúde Coletiva, na área de Ciências Humanas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2000. 439 WEBER, M. (1999: 47-48). 440 COLIN, C. “A Orientalização do Ocidente: Reflexões sobre uma Nova Teodicéia para um Novo Milênio” . In Religião e Sociedade , n. 18, vol. 1, 1997, p. 6. 210

Campbell explica que tal esquema relacionava-se com um “conjunto estritamente limitado de respostas possíveis que Weber atribuía à problemática da teodicéia, que é a explicação dos caminhos de Deus para o homem e, especialmente, a solução do problema do mal.” Weber reconhecia o aspecto fundamentalmente mágico e animista da religião primitiva. No entanto, assim que a sociedade alcançava um certo patamar de desenvolvimento, onde já era possível gerar uma riqueza excedente suficiente para sustentar uma classe sacerdotal, esta classe podia se dedicar a resolver esta questão e, com isso, as crenças também se tornavam mais sistematizadas. As respostas sobre esta relação entre o divino e o “mundo” podem ser formuladas de duas maneiras: “ou o divino era concebido como fundamentalmente imanente, assumia-se, nesse caso, que interpenetrava o mundo cotidiano ou transcendente, nesse outro caso, representado como superior e separado do mundo cotidiano.” 441 No primeiro caso, está pressuposto que o divino é imanente em todas as coisas e é parte do mundo, incluindo a humanidade, desde a eternidade, enquanto no segundo é transcendente e, em conseqüência disso, fundamentalmente separado do mundo, controlando- o de cima, tendo-o criado ex-nihilo . Weber exemplifica estas duas pressuposições contrastantes com o princípio Brahman-Atman da filosofia religiosa indiana por um lado, e no Deus criador Semita por outro; duas teodicéias contrastantes que, em sua visão, caracterizam as sociedades do oriente e do ocidente. Uma vez que as teodicéias tomaram esta forma básica, há um processo de desenvolvimento cultural, ou “racionalização”, que teria conduzido a uma evolução através das gerações culminando nos sistemas logicamente fechados representados pela lei do karma por um lado e, por outro, pela predestinação calvinista. Será que, se seguirmos esta direção apontada pela linha de raciocínio de Weber, não podemos pensar o despertar do budismo no ocidente no século vinte e um como um dos elementos integrantes de um caminho do meio, uma terceira via possível entre essas duas teodicéias? Pois o budismo, ao dessacralizar o eu, destituindo esta identidade Atman-Brahman do seu lugar de centro do universo com sua doutrina de Ãnatman (esta que preferimos denominar de “Doutrina da Originação Dependente”, uma proposta nova de descrever a individualidade nem sacralizada como estava pressuposto pelo pensamento Indiano, nem fruto da criação divina como pressuposto pelo pensamento cristão) abriu uma nova via. Esta, quem sabe, auxiliada pelo ideal de Bodhisattva da tradição Mahayãna , pode ser um dos elementos para se construir uma ponte entre ocidente e oriente, hoje já não mais separados como pólos opostos, mas reunidos num todo globalizado e pós-moderno do século vinte e um. 211

Segundo Campbell, a análise de Weber vai até a reforma protestante, a partir daí apenas apresenta a formulação de uma hipótese geral, segundo a qual a religião declinaria em face às forças seculares da razão e da ciência. Campbell, então, se propõe a estender a interpretação até a atualidade e diz que podemos ver que os séculos dezoito, dezenove e vinte testemunharam um abandono progressivo desta teodicéia ocidental, na medida em que esta tem sido repetidamente abalada por idéias mais alinhadas com o modelo oriental. Assim, ele afirma que a teodicéia calvinista não foi meramente atacada, como parecia assumir Weber, pelas forças da secularização, mas em grande medida por crenças alternativas. Essas crenças, especialmente o “Arminianismo”, segundo Campbell, tenderam a enfatizar o amor mais do que a justiça terrível de Deus, a ponto de considerar que homens e mulheres, por terem sido criados “à Sua imagem”, eram também naturalmente bons e amáveis. Essa revolução na crença preparou o caminho para uma revolução ainda maior representada pelo Romantismo que rejeitou ao mesmo tempo as doutrinas literal e histórica do cristianismo, enquanto reteve uma crença tanto na bondade da humanidade como na espiritualidade que ligava a natureza do homem ao mundo natural. 442 Todas essas crenças construíram os alicerces para a substituição da imagem transcendente do divino tradicionalmente ocidental pela imagem imanente oriental, um processo que, embora tenha se iniciado há cerca de duzentos anos, somente agora começa a se tornar de fato uma realidade palpável. Do ponto de vista deste autor, falar de “orientalização”, portanto, não é apenas discutir a introdução de idéias e valores religiosos do oriente, mas principalmente referir-se ao processo pelo qual a concepção do divino, tradicionalmente ocidental, suas relações com a humanidade e o mundo, é substituída por aquela predominante no oriente. Mas essa descrição das crenças, valores e atitudes das civilizações do oriente e do ocidente como diametralmente opostas não foi idéia desenvolvida apenas por Weber, embora Campbell considere que a sua formulação da oposição entre essas civilizações seja muito mais detalhada e fundamentada que a maioria. Outros pensadores, no entanto, têm proposto esquemas não muito diferentes. O ponto chave dessas classificações baseia-se, de qualquer modo, no fato de que elas repousam em um contraste entre uma forma elaborada de resposta que exclui logicamente a outra. A idéia de uma ponte entre o oriente e o ocidente mostra que as coisas não são excludentes, mas pelo contrário, cria a possibilidade de se estabelecer uma interdependência entre todas as diferenças que formam o todo que é o planeta no qual

441 CAMPBELL, C. (1997: 6). 442 CAMPBELL, C. (1997: 7). 212

vivemos que, por apresentar a forma de uma esfera, parece sugerir que a idéia de harmonia pode não ser apenas uma utopia. Essa idéia de delinear um contraste entre oriente e ocidente é levantada pelo trabalho dos psicólogos Gilgen e Cho 443 , que elaboraram um questionário para comparar o pensamento oriental e ocidental na década de setenta. Com o resultado desta pesquisa, eles identificaram como oriental aquelas pressuposições básicas comuns ao budismo, taoísmo, confucionismo e hinduísmo e identificaram por ocidental aquelas presentes nas religiões judaico-cristãs e, até um certo ponto, subjacentes ao pensamento grego. Baseados em diversas fontes, identificaram como sendo a característica mais importante do pensamento oriental o seu “monismo” em contraste com o “dualismo” do pensamento ocidental. Contudo, a lista completa de crenças separando as duas perspectivas foi por eles resumida da seguinte forma: 444 Oriente Ocidente 1- homem e natureza são um 1- o homem tem características que o separam da natureza e do espiritual 2- o espiritual e o físico são um 2- o homem é dividido em corpo, espírito e mente 3- a mente e o corpo são um 3- há um Deus pessoal que está acima do homem 4- o homem deve reconhecer sua unidade 4- o homem deve controlar manipular a com a natureza, o espiritual e o mental ao natureza para garantir a sua invés de tentar analisar, rotular, sobrevivência categorizar, manipular, controlar ou consumir as coisas do mundo 5- por causa de sua unidade com toda a 5- o pensamento racional e a abordagem existência, o homem deve sentir-se "à analítica para solucionar os problemas vontade", em qualquer lugar com qualquer devem ser enfatizados pessoa. 6- a ciência e a tecnologia criam, na 6- a ciência e a tecnologia nos deram melhor das hipóteses, uma ilusão de uma vida boa e são nossa principal progresso esperança num futuro ainda melhor 7- a iluminação envolve a aquisição do 7- a ação e o espírito competitivo devem senso de unicidade com o universal; é um ser recompensados estado onde todas as dicotomias desaparecem 8- a meditação, um estado especial de contemplação silenciosa, é essencial para a aquisição da iluminação

443 Apud GILGEN, A. R. e CHO, J. H. “Questionnaire to measure Easter and Western thought”, Psychological Reports , 44, pp. 835-41 in CAMPBELL, C. (1997: 8). 444 Essas distinções foram formatadas num questionário de 68 itens, com 34 pares de afirmativas, para criar uma escala Oriente-Ocidente. A escala foi testada, com resultados que apontam para a sua validade, entre estudantes 213

Krus e Blackman 445 , por exemplo, usaram uma versão modificada do trabalho de Gilgen e Cho para produzirem sua própria lista de categorias que pertencem ao estilo oriental- ocidental de pensamento.

Oriente Ocidente

Síntese Análise Totalidade Generalização Integração Diferenciação Dedução Indução Subjetivo Objetivo Dogmático Intelectual Intuição Razão Anti-ciência Ciência Pessoal Impessoal Moral Legal Não discursivo Assertivo Associativo Poder Êxtase Ordem Irracional Racional Imaginativo Crítico

universitários, um grupo de budistas, alguns psicólogos transpessoais e alguns homens de negócio, in CAMPBELL, C. (1997: 8-9). 445 KRUS, D. e BLACKMAN, H. “Contributions to psychohistory: East-West dimensions of ideology measured by transtemporal cognitive matching”. Psychological Reports , 47, 1980, pp. 947-55. 214

Não resta dúvida de que tal contraste está sendo apresentado pelos autores de forma muito rígida para pretender sequer poder “descrever” uma realidade, seja da tradição religiosa do oriente, seja do ocidente. Entretanto, pode ser visto, argumenta Campbell, como um “esquema idealizado” construído tanto em torno de “dicotomias lógicas” quanto das “realidades empíricas”. Apesar de suas limitações, ainda assim, Campbell considera que é uma forma válida de conceber a realidade vasta e complexa que compreende as religiões mundiais e especialmente útil para se entender a evolução dessas religiões. O autor se pergunta: “Qual é então a evidência que sugere que uma mudança historicamente significativa de um lado para o outro dessa classificação dicotômica está ocorrendo?” 446 De acordo com o autor, para demonstrar tal mudança significativa é necessário “uma mudança nas crenças da população como um todo, mais do que o entusiasmo de uma minoria que ainda é vista pela maioria da população como movimentos exóticos”. Em sua visão, existem duas áreas das crenças religiosas onde tal evidência pode ser encontrada. Uma delas é relacionada à crença em “Deus” ou no divino, já a outra diz respeito à vida após a morte ou, para ser mais preciso, à relação desta vida com outras formas de existência. Para exemplificar as mudanças que possam estar ocorrendo nessas duas áreas de crenças, o autor apresenta dados estatísticos relacionados com mudanças encontradas, em relação a essas duas áreas de crenças circunscritas por ele, na população da Grã-Bretanha. Mudanças ocorridas em relação à crença em “Deus” ou no divino : o autor identifica uma queda que varia de uma escala entre pouco mais de 90 a pouco mais de 85% para seu nível atual entre 60 e 65% da população da Grã-Bretanha que diz acreditar em Deus, desde que o Gallup começou a pesquisar esta questão com regularidade depois da II Guerra Mundial. Por outro lado, a porcentagem da população pronta a declarar que não acredita em Deus de nenhum tipo cresceu de meramente 3 a 4% para algo em torno de 14 e 20% . Em relação a essas variações acima apresentadas, o autor chama atenção para o fato de que “esta evidência aparentemente explícita de secularização mascara o fato de que esse declínio tem se dado inteiramente às custas da crença de uma concepção judaico-cristã de um Deus pessoal.” 447 Tal aspecto é facilmente verificável quando essa questão, em relação à crença em Deus, é desdobrada em outras duas subquestões: aí este cenário se modifica. Este desdobramento é o seguinte: a primeira subquestão refere-se à crença em “um Deus pessoal”, já a segunda, refere-se à crença em “algum espírito ou força vital.” Fica constatado que, virtualmente, toda a queda na crença em Deus neste período decorreu da diminuição do

446 CAMPBELL, C. (1997: 9). 447 CAMPBELL, C. (1997: 10). 215

número daquelas pessoas que estavam dispostas a declarar sua crença no tradicional Deus criador e pessoal. Estas pessoas agora representam apenas um terço da população, quando, há não muito tempo atrás, constituíam simplesmente mais do que a metade. Em contrapartida, a proporção das pessoas dispostas a admitir uma crença em algum tipo de espírito ou força vital não sofreu nenhuma queda, como seria de esperar, se a explicação estivesse no fato de uma mera secularização. Pelo contrário, este número tem aumentado, levemente, nos últimos anos. 448 Mudanças ocorridas em relação às crenças das pessoas sobre a relação entre essa vida e outra existência : nessa área de crenças, Campbell considera que a evidência se mostra, no seu entender, um pouco estranha. Por um lado, tem declinado sensivelmente a proporção da população britânica que declara acreditar em céu e inferno. Mas por outro, ele constata que a “crença na reencarnação”, que com certeza não faz parte oficialmente do credo de nenhuma igreja cristã histórica, vem realmente crescendo. O fato é que cerca de um quinto dos britânicos adere a esta crença, que alcança um nível ainda mais elevado entre os jovens, com um quarto daqueles entrevistados entre 14 e 18 anos declarando acreditar na reencarnação. 449 A partir dessas evidências, o autor afirma que, consideradas isoladamente, essas “duas tendências” não apontam para nenhuma mudança drástica na base das crenças da população britânica, mas opina que:

“No entanto, quando consideradas em conjunto e diante da evidência de que todos os itens de fé que compreendem a confissão Cristã na sua forma tradicional (isto é, a crença de que Jesus era filho de Deus, a crença em céu e inferno, e na concepção por uma virgem etc.) são agora crenças minoritárias, aceitas por um pouco mais que um quinto da população, então esses dados de fato sugerem que uma mudança significativa está ocorrendo, uma mudança que poderá significar a derrocada da teodicéia que tem dominado o pensamento Ocidental por dois mil anos.” 450

Tendo examinado essa linha de argumentação desenvolvida pelo autor, serão apresentados agora três momentos do “despertar do budismo ocidental”: no primeiro, será

448 Segundo Campbell, em 1978 apenas um terço da população britânica acreditava num “Deus pessoal”, mas cerca de 40% acreditava em “algum tipo de força vital”. Apud CAMPBELL, C. (1997:.20-1) in CAMPBELL, C. “The New Religions Movements, The New Spirituality and Post-Industrial Society”. In : BARKER, Eileen (org.): New Religious Movements: A perspective for understanding, 1982. 449 CAMPBELL, C. (1997: 10). 450 CAMPBELL, C. (1997: 10-1). 216

feita uma abordagem do ponto de vista histórico desse percurso de duzentos anos de duração do despertar do budismo do ocidente; no segundo será apresentado “O Budismo Ocidental em Kulananda”, pertencendo a uma segunda geração de professores budistas ocidentais; tendo sido ordenado em 1977, Kulananda é membro da Ordem Budista Ocidental, preocupado em criar contextos nos quais ocidentais podem praticar o budismo; e no terceiro será apresentado “O Budismo Ocidental em Lama Padma Samten”, Alfredo Aveline, que antes de ter sido ordenado Lama lecionou como Físico, com bacharelado e mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde foi professor de 1969 a 1994, tendo se dedicado especialmente aos fundamentos epistemológicos da teoria quântica, nos quais encontrou afinidade com o pensamento budista. Em 1986, fundou o Centro de Estudos Budistas (atual Instituto Caminho do Meio), instituição dedicada a promover o estudo e o intercâmbio entre as culturas budista e não-budista. Lama Padma Samten, professor de budismo ocidental, foi o primeiro Lama brasileiro a ser ordenado na linhagem Ningma do budismo tibetano, em 1996, no Brasil, por Chagdud Tulku Rinpoche.

5.2 Os primórdios do budismo ocidental em Heinz Bechert

“Num fenômeno mais ou menos paralelo em vários países ocidentais, pessoas começaram a se reunir em torno das figuras dos mestres tibetanos. Centros de Dharma foram criados, tornando-se importantes abrigos para um Budismo Tibetano ameaçado de extinção. Hoje em dia estima-se em 200.000 o número de adeptos do Budismo Tibetano no Ocidente.” 451

Serão apresentados alguns aspectos da história dos primórdios do despertar do budismo no ocidente, mostrando que este despertar encontra-se ligado ao ressurgimento do budismo também no oriente. Em seu artigo, “ Le Boudhisme dans Le Monde Moderne: Le Renouveau du Boudhisme à l’Este et à l’Ouest ”, Bechert 452 escreve que ao longo dos últimos vinte anos do século vinte e um, houve o despertar e o nascimento do interesse pelo budismo enquanto uma prática religiosa em diversos países nos quais, até então, o máximo que havia

451 LOPES, A C. (1996: 153). 452 BECHERT, H. “Le Boudhisme dans Le Monde Moderne: Le Renouveau do Boudhisme à l’Est et à l’Ouest” in Les Cahiers de L’Herne , Paris, Éditions de l’ Herne, 1993. 217

era um interesse de pesquisa puramente histórica. Tal acontecimento parece apontar para a possibilidade da presença de elementos que ajudam a estabelecer uma ponte entre oriente e ocidente, gerando a possibilidade de as pessoas optarem entre as diversas práticas de ascese, práticas religiosas disponíveis em sua cultura ou, se preferirem, buscar outras práticas, construídas a partir de uma outra cultura, outra versão da individualidade, outro conjunto de valores, outras práticas de ascese, de meditação. Ou como acabamos de ver, pode também ser um reflexo do surgimento de elementos que reunidos começam a construir um Caminho do Meio entre as duas grandes formas de teodicéia que dominaram oriente e ocidente até então, fenômeno que Campbell denomina de mudança de paradigma e que preferimos pensar em termos do novo contexto da globalização. Já no final do século dezenove, alguns pensadores independentes começaram a contribuir positivamente para uma difusão e reconhecimento do valor do pensamento budista, entre estes o lugar de honra coube ao filósofo alemão Schopenhauer 453 . Da perspectiva deste autor, o budismo era “a melhor de todas as religiões, preferível ao ‘Brahmanismo’ com seu sistema de varnas e melhor ainda que o cristianismo com suas idéias falaciosas sobre Deus e seu código ético defeituoso que não leva em conta os animais.” Mesmo tendo um conhecimento sobre o budismo baseado em fontes bastante incompletas e inexatas, Schopenhauer, ainda assim, considerava que sua filosofia estava de acordo com os ensinamentos do Buddha Shãkyamuni. Na verdade, as fontes consultadas por ele, embora incompletas, eram as que se encontravam acessíveis na primeira metade do século dezenove. Ainda assim, a afinidade entre sua filosofia e o budismo é impressionante, mas em muitos aspectos, ao se examinar com atenção os ensinamentos de Schopenhauer, estes aparecem como uma forma de budismo incompleto. Ao final do século dezenove, sua filosofia adquiriu uma certa popularidade, e não resta dúvida que a grande estima que ele dedicava ao budismo contribuiu, inegavelmente, para suscitar um interesse por este pensamento não apenas como objeto de estudo, mas também como uma filosofia de vida e um pensamento com o qual era possível fazer uma identificação. Na Grã-Bretanha, Edwin Arnold 454 publicou seu célebre poema “A Luz da Ásia” ou “A Grande Renúncia” sobre a vida e o pensamento de Gautama, príncipe da Índia e fundador do budismo, tal qual contada em versos por um budista indiano. Este trabalho, na verdade, é baseado no Lalita-vistara e no Abhiniskramana Sutra , ambos considerados Sutras Mahayãna . O Lalita é um trabalho altamente poético tendo valor

453 1788-1860. 454 1832-1904. 218

literário e apelo devocional. O famoso poema de Sir Edwin Arnold – “A Luz da Ásia” – é primariamente baseado nele. Esses trabalhos encontram-se em sânscrito, mas há também uma versão em Páli, o Nidãna , a introdução de Buddhagosa ao seu próprio comentário sobre as histórias de Jãtaka . Então, novamente, temos o ‘ Buddhacarita ’ de Asvaghosa, um bonito poema épico, em sânscrito clássico. 455 Conze comenta que é curioso que os escritos canônicos relatem a vida do Buddha Shãkyamuni do nascimento até a morte. A primeira biografia, considerada por ele como a mais fina, a mais completa, é Buddhacarita de Ashvaghosa, primeiro poeta indiano secular. Buddhacarita , que significa ‘os atos de Buddha’, cujos primeiros treze cantos foram preservados em sânscrito e, quanto aos quinze restantes, devemos confiar na tradução tibetana. 456 Para este autor, o valor da avaliação de Ashvaghosa reside em sua liberdade de viéses sectários. Os estudiosos ainda discutem a qual escola, atualmente, pertence esse poema. Conze diz ter se concentrado naquelas cenas do drama sagrado, as quais causaram nos próprios estudiosos uma impressão mais convincente e, por extenso, na imaginação da comunidade budista. Abaixo pode-se observar dois momentos relatados nesse poema da biografia do Buddha que representam “aquele que despertou, alguém que acordou do sono da ignorância e vê as coisas como elas realmente são.”

Primeiro Momento: O Nascimento do Bodhisattva “Uma vez, no tempo, viveu um rei dos Shakyas, um descendente da raça solar, cujo nome era Shuddhodana. Puro na conduta, e amado dos Shakyas como a lua de outono. Tinha uma esposa esplêndida, bonita e constante, que era chamada a Grande Maya, por sua semelhança com Maya, a Deusa. Estes dois provaram as delícias do amor e um dia ela concebeu o fruto de seu ventre, mas sem nenhuma mácula, do mesmo modo como a sabedoria unia-se para encantar frutos nutritivos. Exatamente na frente de sua concepção ela teve um sonho. Um rei, na forma de um elefante branco, pareceu entrar no seu corpo, mas sem causar-lhe qualquer dor. Assim Maya, rainha deste rei como deus, concebeu no seu ventre a glória da sua dinastia.” 457

Segundo Momento: O Momento do Parto

455 SANGHARAKSHITA. A Guide to the Buddhist Path . Windhorse Publications, Londres, 1992, p. 34. 456 Essa tradução foi consultada por Conze, na edição de Weller e na edição de Narthang Tanjur, da Biblioteca Oficial da Índia. CONZE, E. Buddhist Scriptures . Penguin Books: Grã-Bretanha, 1959, p. 34. 219

“Quando a rainha notou que o tempo de seu parto estava se aproximando, ela foi para um leito coberto com um toldo, onde milhares de mulheres esperando olhavam com felicidade em seus corações. A constelação propícia de Pushya resplandeceu brilhantemente quando um filho nasceu para a rainha, para fortuna do mundo. Ele saiu pelo lado da sua mãe, sem lhe causar dor ou injúria. Seu nascimento foi um milagre como este de Aurva, Pritta, Mandhatri, e Kakshivat, heróis da antigüidade Indiana que foram nascidos respectivamente da coxa, da mão, da cabeça ou axila. Assim ele emergiu do ventre como próprio de um Buddha. Ele não entrou no mundo da maneira usual e, apareceu como um descendente do céu. E desde que por muitos anos foi engajado na prática da meditação, ele agora nasceu em ‘atenção plena’ e não irrefletido e desorientado como são as outras pessoas. Quando nasceu ele estava tão resplandecente e imperturbável que parecia como se o jovem Sol tivesse descido à Terra. E assim, quando as pessoas olharam atentamente para o seu brilho deslumbrante, ele reteve seus olhos como a lua. Seus braços e pernas brilhavam com a nuance do ouro precioso, e iluminou todo o espaço em volta. Instantaneamente ele andou sete passos, firmemente e com longas passadas. Nisto ele era a constelação dos ‘Sete Profetas’. Com a paciência de um leão examinou os quatro cantos, e falou essas palavras cheias de significado para o futuro: ‘Para iluminação eu nasci, para o bem de todos os que vivem. Essa é a última vez que nasci neste mundo de formação.” 458

Ao explorar o material sobre a biografia do Buddha, os estudiosos ocidentais, de uma maneira geral, têm se preocupado em distinguir, de um lado, o que consideram fatos históricos e, de outro, o que pode ser mito ou lenda. Uma das implicações deste tipo de metodologia é que, a partir desta divisão, começaram a ser emitidos julgamentos de valor, porém ambos os aspectos são igualmente importantes. 459 O Coronel Olcott também publicou o “Catecismo Budista”, segundo o Cânone da Igreja do Sul, em Colombo. 460 Apenas três anos mais tarde, o budista alemão Friedrich Zimmermann escreveu com o pseudônimo de Subhadra Bhikshu um “Catecismo Budista”, uma introdução ao ensinamento do Buddha Gautama, que logo foi traduzido em dez línguas. O autor tinha como objetivo apresentar o budismo no “espírito e essência do verdadeiro

457 CONZE, E. (1959: 35). 458 CONZE, E. (1959: 35-6). 459 SANGHARAKSHITA. (1992, p. 34). 220

ensino do Buddha Shãkyamuni”, omitindo todos os acréscimos através dos quais o saber escolástico dos períodos ulteriores havia amplificado as palavras do Mestre e a superstição e a imaginação do povo o estorvaram. A compreensão que os primeiros budistas ocidentais tiveram do budismo estava fundada no Cânone Páli, tal qual havia sido transmitido pela tradição Theravãda . O rápido progresso realizado pela Budologia científica nos últimos vinte e cinco anos do século dezenove trouxe uma importante contribuição para a reavaliação das fontes originais do budismo. As primeiras pesquisas aprofundadas foram obra do sábio francês Eugène Burnouf 461 , que escreveu a célebre “Introdução à História do Budismo Indiano”. 462 Burnouf trabalhou principalmente sobre as fontes sânscritas da tradição Mahayãna e também traduziu o “ Saddharmapundarika-Sutra ” ou “ Sutra do Lótus.” 463 Segundo o autor, foi somente graças à análise sistemática das fontes Páli que o leitor ocidental pôde ter uma visão autêntica do Buddha histórico e de seus ensinamentos. Os dois sábios que desencadearam este processo foram o Britânico Thomas Williams Rhys Davids 464 e o alemão Hermann Oldenberg 465 . “Buddhism, Being a Sketch of the Life and Teachings of Gautama, the Buddha” 466 de Rhys Davids, e “ Buddha: Sein Leben, Seine Lehre, Seine Gemeind” 467 de Oldenberg marcaram o início dos estudos budistas modernos. Oldenberg, que dirigiu a publicação do texto Páli completo do Vinaya Pitaka , em cinco volumes 468 , conseguiu dar uma descrição do budismo antigo fundado nas fontes, que permanece um grande clássico sobre o assunto e conserva, ainda hoje, toda a sua validade. Da mesma forma, Rhys Davids 469 fundou a Sociedade de Textos Páli, a Text Society Páli , que fixou o objetivo de publicar e traduzir os textos do Cânone Páli e os comentários da escola do Theravãda . Essa sociedade, em colaboração com pesquisadores de outros países, conseguiu publicar edições críticas da maior parte das obras canônicas durante os primeiros trinta anos da sua existência. Ao todo, a sociedade publicou, até então, cento e cinqüenta e quatro volumes de textos, setenta e oito volumes de traduções e um certo número de outras obras.

460 Em 1881. A primeira edição americana apareceu em Boston em 1885. 461 1801-1852. 462 Em 1844. 463 Em 1852. 464 1843-1922. 465 1854-1920. 466 Em 1877 467 Em 1881. 468 Entre 1879 e 1883. 469 Em 1881. 221

Por volta do começo do século vinte, os budistas ocidentais praticantes tornaram-se mais numerosos e ativos. O primeiro europeu a entrar na Sangha foi o britânico Allan Bennett McGregor. 470 Inicialmente adepto de um movimento ocultista, rompeu esses vínculos, fez uma viagem ao Ceilão e foi ordenado em Akyab, na Birmânia 471 e recebeu o nome eclesiástico de Ananda Metteyya. Dois anos mais tarde, em Rangoon, o grande violinista alemão Anton Gueth 472 tornou-se o segundo membro de origem européia da Sangha . Com o nome de monge de Nyanatiloka, ele adquiriu uma reputação mundial pelo seu conhecimento e prática do budismo. A maior parte da sua vida passou no Ceilão, onde se tornou 473 o abade fundador de um monastério na ilha de Polgasduwa, perto de Dodanduwa, para onde um grande número de europeus foram se ordenar monges. Nyanaponika, o mais célebre discípulo de Nyanatiloka, é um sábio budista ainda ativo hoje. Anagarika Dharmapala fundou 474 a Primeira Organização Budista Ocidental, filiada à Maha Bodhi Society, quando visitou os Estados Unidos convidado pelo budista americano Paul Carus. A primeira Associação Budista Alemã foi criada em Leipzig 475 , a Buddhisticher Missionsverein für Deutschland, Sociedade Missionária da Alemanha, pelo especialista dos estudos Páli, Karl Seidestücker. No mesmo ano, o bhikshu britânico Ananda Metteyya, acima citado, constituiu em Rangoon uma Sociedade Budista Internacional, nomeada Buddhasasana Samagama, que se espalhou por diversos países. A primeira associação britânica foi a Sociedade Budista da Grã-Bretanha e da Irlanda. Ela foi criada em Londres 476 , tendo como primeiro presidente T.W. Rhys Davids 477 . As associações budistas fundadas no ocidente tiveram, em sua maior parte, uma vida breve, pois faltava organizar uma maior interação entre os diversos grupos budistas locais. O Budismo no Mundo Moderno: O Renascimento do Budismo no Leste e no Oeste : esta expansão do budismo já havia começado mil anos atrás, quando os exércitos dos conquistadores muçulmanos penetraram no Afeganistão e no noroeste da Índia. Apesar desta invasão, as missões budistas ainda conseguiram converter os Mongóis e diversos outros povos da Ásia do norte e central, mas o budismo acabou perdendo sua influência em vários países da Ásia. Na própria Índia, por volta de 1500, ele havia desaparecido quase completamente, após o golpe mortal ocorrido aproximadamente no século doze e causado pelos conquistadores

470 1872-1923. 471 !902. 472 1875-1957. 473 Em 1911. 474 Em 1897. 475 Em 1903. 476 Em 1907. 222

islâmicos, os poucos grupos restantes foram assimilados cada vez mais ao hinduísmo. Na mesma época, o budismo perdia o Turquistão Oriental – Sinkiang – para o islamismo. Este se expandia também na Malásia e na Indonésia em detrimento do budismo e, no início do século dezesseteI, Java estava praticamente toda sob domínio/influência do Islã. Com o aumento da colonização, um novo inimigo do budismo apareceu em cena na história: as missões cristãs. Estas missões eram estreitamente vinculadas aos interesses coloniais. Em vista de ilustrar esta ligação, pode-se observar o caso do Ceilão, onde os portugueses coagiram toda a população costeira a abraçar o catolicismo. Os holandeses, que se seguiram aos portugueses 478 na expansão marítima, adotaram a mesma política no princípio. Eles forçaram a população a se converter ao protestantismo e perseguiram não somente os budistas e hinduístas, mas também os católicos. Alguns destes se refugiaram no centro da ilha, no reino de Kandy, que permaneceu independente e cujo soberano era budista e garantia a todos a liberdade de religião segundo pregava a antiga tradição budista. No momento em que os holandeses consentiram na liberdade de religião, ao final do século XVIII, uma grande parte da população retornou ao budismo e ao hinduismo, religiões praticadas pelos seus ancestrais. Os franceses e os britânicos, que no século dezenove acabaram por reinar sobre a Ásia do Sul e sobre a parte continental do sudeste da Ásia, com exceção do reino do Sião (que se tornou a Tailândia), evitaram, de uma maneira geral, interferir diretamente nas questões religiosas de suas colônias. Por outro lado, durante a primeira fase da dominação britânica, a conversão ao cristianismo permitia o acesso a toda uma série de privilégios. Num tratado assinado entre os chefes de Kandy e a Coroa britânica – conhecido pelo nome de convenção de Kandy de 1815 –, a administração britânica do Ceilão aceitou assumir oficialmente uma postura protecionista perante a religião do Buddha Shãkyamuni. No entanto, este acordo vai de encontro com as igrejas da Inglaterra, uma vez que a administração buscava pouco a pouco uma “separação entre as Igrejas e o Estado” 479 , ou seja, em vista deste acordo ela rompeu a maior parte das ligações que uniam o Estado à Sangha . Neste momento, surgiu uma nova elite que adaptou seus valores e seu modo de vida aos dos novos dirigentes. A Primeira Fase de Ressurgimento do Budismo : apesar dos fatos acima descritos, as conversões de budistas ao cristianismo permaneceram exceção. Em torno do final do século dezenove, a tendência à assimilação de valores ocidentais se extinguia e um novo sentimento

477 Existiu até 1926. 478 Em 1636. 479 Entre 1818 e 1853. 223

de identidade cultural começava a aparecer. O que se chamou de renascimento do budismo apareceu no seio da burguesia culta, quase ao mesmo tempo em que se iniciavam os movimentos que conduziriam à independência nacional. O Ceilão desempenhou um papel primordial nesta mudança. Neste país, a cultura budista havia efetivamente sobrevivido aos assaltos de vários séculos de dominação ocidental. A reforma da Sangha no século dezoito, levando à instigação de Saranamkara e à fundação de Nikayas reformistas (a Amarapura Nikaya e o Ramana Nikaya, acima mencionados), no século dezenove, foram os primeiros sinais de vitalidade da tradição budista na Ilha do Ceilão. Na metade do século dezoito 480 , o monge Valane Sidharta fundou, em Ratmalana, o primeiro pirivena (escola monástica) do Ceilão moderno. Trinta anos depois 481 , foram fundados dois altos postos do saber budista, são eles: o Vidyodava Pirivena em Colombo, e o Vidyalankara Pirivena em Kelaniya, perto de Colombo. A partir de 1865, tem início um certo número de debates entre monges budistas e padres cristãos sobre os méritos comparados das duas religiões. A publicação do texto do Grande debate de Panadura, que ocorreu em 1873, entre Mohottivatte Gunananda Thera do lado budista e os reverendos David de Silva e F. Sirimanne do lado cristão, marcaram uma virada nas relações budistas-cristãs no Ceilão. No mesmo ano, o texto deste debate foi traduzido para o inglês e publicado pelo americano J.M. Publes em Battle Creek, no Michigan. Este livro chamou a atenção do coronel Henry Steel Olcott 482 que fundou 483 , ao lado de Madame Blavatski 484 , a Sociedade de Teosofia. Evidentemente, em muitos pontos a teosofia diferia do budismo, mas a grande estima que os fundadores da Sociedade nutriam pela crença budista estimulou intensamente o interesse dos americanos e dos europeus e também infuenciou várias obras deste período, quando a teosofia era conhecida como “Budismo Esotérico.” A viagem feita ao Ceilão por Madame Blavatski e pelo coronel Olcott em 1880 é considerada o início do renascimento do budismo moderno na Ilha do Ceilão. O fato de dois eminentes ocidentais irem ao Ceilão por simpatia e admiração pelo budismo devolveu a confiança para os budistas num período no qual as potências cristãs pareciam dominar o mundo inteiro. Durante sua passagem pelo Ceilão, Olcott fundou a Sociedade de Teosofia Budista no Ceilão, com o objetivo de conservar a herança e difundir o ensino do budismo abrindo escolas religiosas.

480 Em 1849. 481 Em 1873 e 1875, respectivamente. 482 1832-1907. 483 Em 1875. 484 Nascida Hélène Petrovna Hahn von Rottenstern - 1831-1891. 224

Dentre as personalidades marcantes da primeira fase do ressurgimento do budismo é preciso citar David Hewavitarne 485 , que ficou conhecido pelo nome adotivo religioso de Anagarika Dharmapala. Nascido de uma família budista de Colombo, foi educado em um liceu anglicano, em uma época em que ainda não era possível fazer estudos superiores em escolas budistas, assim, ele foi submetido a uma mistura de fanatismo, de intolerância e de desprezo pelos valores mais significativos para a tradição budista, atitude esta que caracterizava uma boa parte das instituições missionárias cristãs do início do período colonial. Estas experiências do início da sua juventude deram origem a uma aversão profunda e definitiva por todas as formas de “barbárie cristã”. Hewavitarne encontrou o coronel Olcott por ocasião da passagem deste último por Colombo em 1880. Alguns anos depois 486 , ele acompanhou Olcott ao Japão e esta visita marcou o começo das relações entre os budistas nipônicos e os cingaleses na época moderna. Quando Dharmapala esteve em Bodh-Gaya 487 constatou o estado deplorável no qual havia decaído o lugar mais sagrado para os budistas, e decidiu trabalhar na sua restauração. No mesmo ano, Dharmapala fundou a Sociedade Bodh-Gaya-Mahabodhi em Colombo, que se tornou a Primeira Organização Budista Internacional com o como objetivo de unir os budistas de todos os países e de fazer de Bodh-Gaya um centro de devoção religiosa. Foi na última década do século dezenove 488 que a Sociedade Maha Bodhi , como era designada habitualmente, instalou seu quartel general em Calcutá, cuidando principalmente da reconversão dos indianos ao budismo. Outra força não menos importante no ressurgimento do budismo foi a “Associação Budista de Homens Jovens”, a “ Young Men’s Buddhist Association ” (“ Y.M.B.A ”), que havia sido formada segundo o modelo da “ Y.M.C.A ”. Esta associação foi fundada em Colombo 489 por Dissanayake, um católico convertido, e nos anos seguintes se multiplicou em diferentes lugares. A organização matriz foi mais tarde rebatizada como “All-Ceylan Buddhist Congress” e acabou tornando-se a primeira organização budista do país. O Modernismo Budista: existe uma ligação estreita entre o ressurgimento do budismo no oriente e o despertar do budismo no ocidente. No entanto, essa relação não se deu apenas no plano organizacional, houve também uma tendência a reinterpretar o budismo como sistema de pensamento, tendência esta que podemos denominar de “Modernismo Budista”.

485 1864-1933. 486 Em 1889. 487 Em 1891. 488 Em 1892. 489 Em 1898. 225

O budismo, tal como existia na Ásia no início do século dezenove, consistia numa multiplicidade de formas de pensamento e prática religiosa, nas quais havia se misturado com diversos tipos de cosmologia, tradicionais ou não. A partir de então, sob a influência dos métodos de pesquisa do século dezenove, são utilizadas as mais antigas fontes para se tentar reencontrar os ensinamentos originais do Buddha Shãkyamuni. Os sábios e os budistas modernos redescobriram o budismo “original” como sistema de pensamento filosófico com o único objetivo de indicar um Caminho de Salvação para se escapar da dor e do ciclo de renascimento. A cosmologia tradicional, a crença nos milagres e todos os elementos inaceitáveis pelo pensamento moderno foram, a partir de então, considerados acréscimos desnecessários ou alterações do budismo, acumulados ao longo de sua longa evolução histórica. Assim, o budismo tornou-se um modo de pensamento racional, tendo-se insistido, particularmente, sobre o fato que o Buddha Shãkyamuni não exigia que se acreditasse nos seus ensinamentos, mas que convidava seus fiéis a experimentarem por si mesmos o que ele ensinava, verificando pela prática religiosa e pela meditação se isso era para ser considerado útil ou não, verdade ou não. Os modernistas definem, portanto, o budismo como a “religião da razão”, por oposição às “religiões da crença cega em dogmas” como é o caso do cristianismo, do islamismo ou do judaísmo. Há uma crítica das noções de Deus e de alma propagadas pelas religiões ocidentais que são julgadas incompatíveis tanto com a razão quanto com uma visão realista do mundo. Entre os numerosos autores que escreveram sobre o modernismo budista, serão citados os seguintes: Anagarika Dharmapala : este autor se tornou célebre como autor de ensaios críticos 490 , dentre eles pode-se citar: “ Return to Righteousness ”. Hajime Nakamura: sábio japonês, autor de “ The Ways o f Tthinking of Eastern Peoples ” 491 , que conquistou notoriedade mundial por sua interpretação magistral do pensamento budista com vistas ao nosso tempo. K.M. Jayatilleke : filósofo da Universidade Peradenya do Sri Lanka, que propôs a interpretação da filosofia budista antiga, a mais coerente do ponto de vista contemporâneo.

490 Reeditados em 1965. 491 Honolulu, 1964, 226

5.3 O budismo ocidental em Kulananda

“Pela força da compaixão, do trabalho e do voto, os ensinamentos do Buddha do corpo, da fala e da mente agora resplandecem – eles são a luz do Sol do Tibete” Padmasambhava 492

Na introdução de seu livro, “Western Buddhism”, Kulananda escreve que a visão Mahayãna tradicional sustenta que “as escrituras canônicas Mahayãna foram estabelecidas pelo Buddha no começo do budismo, há dois mil e quinhentos anos, mas ficaram guardadas por cerca de quatrocentos anos até que, no caso da literatura da perfeição e da sabedoria 493 , foram trazidas para o topo do oceano pelo grande santo budista e estudioso .” 494 Por outro lado, os estudiosos ocidentais budistas têm realizado estudos e especulações sobre estas mesmas origens do budismo Mahayãna nas duas últimas décadas. Suas pesquisas estão baseadas em evidências arqueológicas, histórico-artísticas e epigráficas. Esses estudos apontam para fatos historicamente discrepantes em relação aquilo que afirmam as escrituras tradicionais. Segundo estes estudiosos ocidentais, as escrituras Mahayãna possivelmente começaram a ser compostas por volta do começo da “Era Comum.” Há uma conjectura de que o Mahayãna possa ter crescido a partir de uma coleção de “cultos de livros”, os quais estavam centrados em diferentes elementos desta nova literatura. Este tópico sobre as origens das escrituras Mahayãna é de grande interesse de Sua Santidade o XIV Dalai Lama. Por ocasião de sua visita à universidade de Michigan, para participar de um seminário com estudantes e graduados do programa de estudos budistas 495 , o professor residente de estudos budistas e Tibetanos, Donald Lopez 496 , pensou que seria interessante discutir com Sua Santidade os achados correntes dos estudiosos ocidentais sobre as origens do Budismo Mahayãna 497 . Entretanto, o que o prof. Lopez parecia estar interessado em saber era até que ponto Sua Santidade o XIV Dalai Lama manteria o mesmo tipo de abertura que havia tido perante

492 TULKU, T. As Três Jóias: Buddha, Dharma e Sangha . Série Crystal Myrror, v.6. São Paulo: Dharma, 1994, p. 196. 493 Prajñãpãramitã-Sutra . 494 KULANANDA. Western Buddhism , Londres, Harper Collins Publishers, 1997, p. 1. 495 1994. 496 Esse professor publicou o artigo: “The Buddhist and the Buddhologist”, publicado em Tricycle: the Buddhist Review , Nova Iorque, Verão de 1995. 497 KULANANDA. (1997: 01-26). 227

os cientistas ocidentais. Quando se colocou a possibilidade de uma divergência entre a cosmologia budista tradicional e os achados da ciência ocidental moderna, Sua Santidade afirmou que sempre que houvesse uma divergência, a primeira deveria ser descartada. Será que ele manteria a mesma atitude perante os achados destes estudiosos ocidentais do budismo, que se autodenominam “budologistas”, como tivera em relação aos cientistas ocidentais? Sua Santidade o XIV Dalai Lama escutou, atentamente, três estudantes graduados apresentarem essas idéias, permanecendo silencioso até o final da apresentação, só falando após o Prof. Lopez ter lhe perguntado o que ele pensava de tudo que havia sido dito. “É algo para saber”, respondeu Sua Santidade evocando a expressão budista: “objetos de conhecimento são ilimitados”. Este aforisma quer dizer que existem coisas infinitas que podem ser conhecidas, porém é importante considerar cuidadosamente o que é verdadeiro saber. Sua Santidade concedeu que o que os estudantes haviam dito era interessante e que deveria ser bom para os budistas ter algum conhecimento do que os estudiosos ocidentais afirmam sobre o budismo. Mas, ao final, sua opinião parecia ver a prática budista e os estudiosos ocidentais budistas como, em última instância, irreconciliáveis. Ele falou aos estudantes que se estes aceitassem a visão corrente dos estudos sobre o budismo então eles seriam somente capazes de acreditar na forma histórica do Buddha que apareceu no mundo. Eles não seriam capazes de acreditar nas figuras arquetípicas do Buddha Shãkyamuni que aparece para praticantes avançados de meditação. E não poderiam, ainda, acreditar na mente onisciente de natureza búdica e seu vazio. “Se eu acreditasse no que você me disse” – responde Sua Santidade aos estudantes – “o Buddha seria somente uma boa pessoa”. Kulananda então explica que ele é de uma segunda geração de budistas ocidentais. Seu professor, um homem inglês, aprendeu muito de budismo no oriente. E justamente como Sua Santidade o Dalai Lama não pode aceitar os achados dos estudiosos budistas ocidentais, sem com isso estar cometendo uma violência em relação às suas crenças religiosas. Ele, também, não se sente em condições de rejeitá-los – “pois meu completo sentido do que é significado por ‘verdade’ é encontrado na tradição científica e filosófica ocidental.” 498 Ainda que estejamos vivendo tempos pós-modernos, onde noções de verdade e objetividade encontram-se enfraquecidas, budistas ocidentais não podem ser verdadeiros consigo mesmos se negarem estes achados de sérios estudiosos ocidentais.

498 KULANANDA. (1997: 01-26). 228

Kulananda pensa que este é um dos motivos pelo qual um novo tipo de budismo está emergindo no ocidente. Um tipo de budismo que se encontra em um engajamento existencial profundo com a prática e teoria budista mas que, ao mesmo tempo, usa os instrumentos dos estudiosos históricos ocidentais para olhar criticamente seus próprios antecedentes – ambos orientais e ocidentais. Nos encontramos hoje numa junção altamente criativa. Há uma quebra da religião ocidental monolítica, tradicional e ortodoxa, todo um consenso social e cultural tem sido quebrado amplamente. Em seu lugar, encontramos um vasto nível de crenças e atitudes sociais voláteis e fragmentárias. Ao mesmo tempo, há uma possibilidade de acesso a uma cultura mundial em uma escala impensável poucos séculos atrás. Somos livres para construir o que nossos ancestrais nunca teriam pensado ser possível. Este é o meio no qual o budismo ocidental está começando a tomar forma. Kulananda apresenta algumas das doutrinas e métodos que o budismo ocidental ensina e pratica. Focalizando sobre as idéias centrais budistas a respeito da “condicionalidade” e do “vazio”, começa-se a examinar o modo pelo qual o budismo entende a relação entre consciência e realidade, entre nós mesmos e o mundo. É com base numa radical revisão desta relação que o budismo propõe que examinemos diferentes facetas do encontro entre budismo e cultura ocidental, ou seja, como isto afeta a vida religiosa, cultural, social e econômica do cotidiano budista na Europa e América do Norte. Todavia, ele faz questão de ressaltar que se trata de um discurso em termos ocidentais, dirigido a uma audiência ocidental. No ocidente, ainda hoje, é preciso falar sânscrito, páli, tibetano, chinês ou japonês para entender o budismo, todavia, não vemos um cristão moderno precisar falar hebreu, aramaico, grego ou latim para entender o cristianismo. Desta forma, no primeiro capítulo deste seu livro, Kulananda afirma que, na metade do século vinte 499 , não havia mais do que uma dúzia de centros budistas em todo mundo ocidental e, muitos ocidentais que tinham ouvido falar deles pensavam que o Buddha Shãkyamuni era o nome de um alegre ídolo com o qual os chineses trabalhavam. Hoje, existem muitas centenas de centros budistas no ocidente e alguns comentadores chegam a admitir que o budismo é a única religião que está crescendo, rapidamente, no ocidente. O Ensinamento do Buddha Shãkyamuni : o que Buddha atualmente ensina? Kulananda escreve: “Se isto é, isto vem a ser, a partir do surgimento disto; se isto não é, isto não vem a ser, a partir da interrupção disto, isto é interrompido.” 500 Este é o princípio da

499 Em 1950. 500 Majjhima-Nikaya II. 32, trna. I.B. Horner in Middle Length Sayings , Vol. II, , 1975, p. 229. 229

condicionalidade, citado acima e pode ser considerado, segundo Kulananda, a doutrina central em um sistema de pensamento religioso que parece estranho para aqueles mais familiarizados com uma abordagem teística da religião. Não é fácil ver-se a força dessa idéia ou entender seu impacto liberador nas duas arenas centrais da vida religiosa: o campo da doutrina, por um lado, e a prática religiosa, por outro. O Buddha Shãkyamuni, no entanto, era categoricamente claro acerca da centralidade deste princípio e, ao parafrasear um número de citações, a partir de uma grande variedade de fontes canônicas budistas, Kulananda afirma que o Buddha Shãkyamuni afirmou o seguinte: “Ele que vê o princípio de condicionalidade vê a verdade. 501 Quem vê a verdade vê Buddha.” Este tipo de afirmação pode soar estranhamente abstrata à escuta ocidental. Mas, apesar disso, nos últimos dois mil e quinhentos anos, incontáveis homens e mulheres budistas têm construído suas vidas religiosas em torno deste ensinamento. Este ensinamento tem inspirado neles grandes atos de devoção, renúncia e dedicado esforço espiritual, mas para nós este soa preferivelmente vazio, abstrato e pouco inspirador. Não parece ser de todo óbvio que essas poucas palavras possam ter o potencial para inteiramente reorientar o modo como nós vemos o mundo, para dar a nós uma compreensão completamente fresca da natureza da existência e para acender nosso potencial para transformação criativa. Kulananda questiona então: “Por que é que quem vê este princípio vê o Buddha?”, “Como uma sentença tão abstrata é espiritualmente tão significativa?” Para ilustrar este princípio tão abstrato, Kulananda escolhe então um exemplo relacionado com uma planta que se encontra na janela da sua casa. “Eu espero”, diz ele, “que nós possamos agora começar a ver que a rede de condições a qual suporta a existência de minha Lavatera ‘Barnsley’, é infinita. Onde quer que seja que se olhe, um outro nível de condições é visto e cada uma daquelas condições é, nela mesma, dependente de outro nível de condições. Em cada direção de tempo e espaço, tudo que nós vemos são condições interrelacionadas. Olhando para as coisas deste modo, nós nunca poderemos chegar a nenhuma ‘essência’ absolutamente definitiva, nenhuma natureza essencial, fixa, final, imodificável.” Todos os fenômenos do mundo, sem exceções, surgem em dependência de condições e com o cessar dessas condições o fenômeno, o qual depende delas, cessa também. Atrás, acima, além desta vasta rede de condições, em verdade, não existe nada de todo. O cosmo inteiro, insondável e vasto, não é nada mais do que uma rede de condições relacionada sempre

501 Pali dhamma, dharma . 230

em mudança e onde quer que se olhe nele, se olhamos com calma, concentrados, fixamente e sem medo, vemos infinitas profundidades de interconexões. Vendo neste modo, com o olho do insight espiritual não enevoado, é:

“Ver um mundo em um grão de sal E um céu numa flor-silvestre Segurar o infinito na palma da mão E a eternidade em uma hora.” 502

No entanto, este não é o nosso modo normal de percepção. Não tendemos a ver as coisas como elas realmente são. Parte da razão disto se resume ao fato de sermos enganados pela linguagem. Porque temos uma palavra, ou grupo de palavras, para descrever um fenômeno, tendemos a pensar que esta palavra ou grupo de palavras aponta para uma “essência”, algo que é fixo e imutável. No entanto, sabemos que o mapa não é a área que está sendo lida ou representada. Palavras não são as coisas para as quais elas apontam. Não é porque temos, geralmente, um padrão aplicável para certos padrões de fenômenos, que isto significa que aqueles fenômenos existam independentemente das condições que estão ocorrendo correntemente. É claro, o mesmo se aplica para cada uma e todas daquelas condições, justo porque podemos falar de células, átomos, ondas e partículas ou eventos na história, isto não significa que, ao identificá-los, estamos identificando algo mais “real” do que a planta que esses “termos” compreendem. Pois, cada um deles, novamente irá depender de outras condições. Dessa forma, percebemos que toda existência, sem exceção, é inteiramente contingente. O princípio budista da condicionalidade aponta para o fato que todos os fenômenos são, em última instância, destituídos de essência. Os fenômenos são – para usar um conceito budista importante – “vazios”. E o mesmo é verdade para todos. Não temos nenhuma natureza do eu fixa, final, identificável. Tudo que chamamos “nós mesmos” é simplesmente um padrão modificável de interrelações – padrão que é inextrincavelmente parte de um fluxo de condições. Nenhum fazedor de feitos é encontrado. Ninguém que sempre colhe seus frutos. Fenômeno vazio segue. Esta visão sozinha é certa e verdadeira. Todavia todos nos apegamos, mesmo inconscientemente, à idéia de que nós temos um “eu”, que é, “em sua natureza essencial”, fixo e duradouro, separado em sua essência do resto do universo.

502 “Auguries of Innocence”, in BLAKE,W.: Complete Writings , ed. G. Keynes, Oxford, 1966. 231

Esta representação que temos de nós mesmos é falsa e limitante. Sua principal limitação reside em limitar a sua possibilidade de mudança para melhor. Se temos um “eu”, uma natureza essencial fixa e duradoura, então existe um limite para a extensão na qual podemos crescer como indivíduos. Ouvimos exemplos desta idéia todo o tempo: “Eu sou quem eu sou. Eu não posso mudar e você deve me aceitar pelo que eu sou”. A idéia de que somos todos, de algum modo, feitos segundo um padrão particular e colocados no curso da vida por um Deus criador que nunca vemos, corre profundamente, apesar de freqüentemente de forma inconsciente, através da sociedade contemporânea ocidental. Nós pensamos que somos quem somos e existe um limite para a extensão na qual podemos esperar aperfeiçoar a nós mesmos. O revolucionário insight de Buddha destrói esta idéia. O princípio de Condicionalidade torna isto manifesto, pois nós não temos essência permanente. Nós somos quem somos em dependência de condições do presente e do futuro. Se nos inclinamos para criar condições as quais suportam mudança para o melhor, então nós, inevitavelmente, mudaremos para o melhor e não existe limite para quão melhor nós podemos ser.

5.4 O budismo ocidental em Lama Padma Samten 503

“Agora, enquanto eu e incontáveis outras pessoas estamos perdidos no oceano do sofrimento samsárico, eu busco a iluminação para adquirir felicidade temporária e definitiva para mim e para todos os seres vivos. Por este motivo tomo refúgio em Arya Tara, a corporificação do puro estado desperto, indissociável de todas as qualidades perfeitas do Budha, Dharma, Sangha, Lama, Ydam e Dakini” Tara Vermelha

503 Lama Padma Samten é o primeiro Lama brasileiro ordenado na linhagem Ningma do Budismo Tibetano, por Chagdud Tulku Rinpoche, em 1996. Físico, com bacharelado e mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde foi professor de 1969 a 1994, dedicou-se especialmente aos fundamentos epistemológicos e cognitivos da teoria quântica, nos quais encontrou afinidade com o pensamento budista. No período entre os anos 2000, 2001 e 2002 tem vindo, regularmente, ao Rio de Janeiro, realizando várias palestras, seminários e retiros, inclusive no Instituto de Medicina Social da Universidade do Rio de Janeiro, no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, na Universidade Federal Fluminense, e nos projetos desenvolvidos pelo Movimento Viva Rio junto às Comunidades do Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, onde ofereceu práticas de meditação e seminários para os jovens vinculados a esses projetos. 232

Até o presente momento, utilizamo-nos basicamente de pesquisa biblográfica, tanto no sentido de uma aproximação e aprofundamento de conhecimentos acerca da nossa temática fundamental – a filosofia budista, e a concepção de “eu” no budismo (cobrindo diversos períodos históricos e localizações geográficas). Além disso, buscamos nos capacitarmos teoricamente a refletirmos acerca da chegada do budismo ao ocidente, na tentativa de realizarmos um contraponto entre perspectivas absolutamente distintas acerca da subjetividade humana. Aqui, utilizamo-nos de uma fonte primária, com a qual tivemos contato incial não através de investigação empírica, mas sim em convívios cotidianos. Trata- se da perspectiva de um budista vivo e atuante, acerca do budismo e sua importância hoje: o Lama brasileiro Padma Samten. Esperamos, com o uso deste tipo de dados, ampliar o conjunto de informações acerca do desenvolvimento do budismo na atualidade (no caso, no Brasil). Acreditamos que o uso desta fonte, como preferencial para este tópico, fornece novos horizontes para o leitor, no sentido de que se trata de um “testemunho pessoal”, ou seja: temos aqui a nossa “lente” de reflexão focada sobre um “sujeito”, para pensarmos a “subjetividade”. Conheci Lama Padma Samten em Curitiba por ocasião do encontro com Sua Santidade o XIV Dalai Lama sobre “Valores Humanos e a Prática da Vida Cotidiana”. 504 Apresentei-me respeitosamente a ele, junto com várias outras pessoas, no palco do qual Sua Santidade o XIV Dalai Lama acabara de se retirar, após ter encerrado o último seminário daquele encontro. Estávamos no interior do “Palácio de Arame”, um anfiteatro circular, completamente envidraçado, de onde podíamos avistar a vegetação, as pedras e a água descendo no meio do verde a nossa volta. Um auditório no qual, em um clima de absoluta tranqüilidade, cerca de mil pessoas de várias partes do Brasil e do mundo tinham estado reunidas durante dois dias ouvindo Sua Santidade o XIV Dalai Lama. Era a primeira vez que participava de um evento budista. Estava participando do seminário e da Sangha , convidada por uma amiga. Os Caminhos do Buddha também apresentam seus mistérios. Um ano depois, recebi como hóspede em minha casa o Lama Padma Samten, uma oportunidade extraordinária e rara para uma doutoranda que havia assumido, desde março de 1998, o compromisso de escrever uma tese sobre o “eu budista”, de receber ensinamentos, de realizar práticas de meditação e, ainda, de conviver com o Lama Padma Samten que elegi, numa linguagem weberiana , o “tipo ideal” do Budismo Ocidental.

504 Sua Santidade Tensyn Gyatzo, o XIV Dalai Lama. “Seminário sobre a Prática de Valores Humanos na Vida Cotidiana.” Organizado pelo Comitê de Apoio ao Tibete. Curitiba, 04 a 06 de abril de 1999. 233

Inúmeros e frutíferos foram esses encontros, que se repetiram ao longo dos anos seguintes. Muitos foram os seminários, palestras, práticas, retiros nos quais tive a oportunidade de acompanhar o Lama Padma Samten. Todos estes encontros sempre estiveram repletos de pessoas interessadas, fosse em residências particulares ou locais públicos (teatros, universidades, associações), nunca faltou público demonstrando grande interesse em receber os ensinamentos dados pelo Lama Padma Samten. O que estas pessoas vêm buscar? Que poder é esse de atração que o budismo exerce quase “espontaneamente”, sem que ninguém precise fazer muito esforço para que as coisas aconteçam? Que tipo de energia esses eventos mobilizam? Que “irradiação” é essa que se instala a partir da figura de um Lama budista em uma metrópole como o Rio de Janeiro com pólos de interesse tão diversificados mas que, ainda assim, foi capaz de reunir de oitenta e cinco a cem pessoas diariamente, num retiro budista realizado durante todo um fim de semana? Não temos mais do que duvidar, o budismo ocidental não só é há muito uma realidade, mas já está implantado no Brasil. Portanto, não há melhor maneira de se concluir esta contribuição para o debate sobre o “despertar do budismo ocidental” do que apresentar o budismo ocidental de Lama Padma Samten, o primeiro Lama brasileiro da linhagem Ningma que foi ordenado por Chagdud Tluku Rinpoche, Lama tibetano radicado no Rio Grande do Sul. O que será relatado já não é mais um conhecimento apenas livresco (embora nada tenhamos contra os livros, muito ao contrário), pois o budismo é um conhecimento que não se adquire apenas em livros, é preciso ser iniciado nos seus ensinamentos. O budismo também é uma prática de ascese, deve-se entrar em contato com o ensinamento vivo do budismo, este que está sendo transmitido por Alfredo Aveline, um brasileiro de Porto Alegre, professor universitário de Física e agora, Lama Padma Samten, que fez o voto de Bodhisattva , junto a Sua Santidade o XIV Dalai Lama, para ajudar a todos os seres sem exceção. Esta é a nossa melhor forma de responder a um pensador contemporâneo do peso de Zizek, pois, assim como Max Weber tinha seu Benjamin Franklin para exemplificar o “espírito do capitalismo”, também temos “nosso” Lama Padma Samten para exemplificar o espírito do budismo. Não existem dúvidas das grandes diferenças que marcam estes dois pensamentos, porém se vem ocorrendo, finalmente, o encontro entre essas duas formas diferentes de “individualidade”, se o oriente chegou ao ocidente, ou se preferirmos numa linguagem mais atual, se estes “dois modos de subjetivação”, ocidental e oriental, estão estabelecendo um diálogo profundo, resta saber quais mudanças devem ser projetadas como 234

perspectivas possíveis para este novo século, este novo milênio. Será examinado agora um dos ensinamentos centrais da tradição budista, tendo em mente algo da ordem da mudança de paradigma que parece estar ocorrendo, como vimos em Campbell, ou da possibilidade de se construir uma ponte oriente-ocidente através desse diversos diálogos que, já há algum tempo, existem entre essas duas tradições distintas e que pode nos auxiliar, os ocidentais, a enriquecermos nosso repertório de modelos, referênciais e possibilidades de novas descrições para pensarmos as matrizes de subjetivação deste nosso mundo pós-moderno e globalizado do século vinte e um. Um exemplo do ensinamento sobre os “Doze Elos da Originação Dependente ”: é um enfoque dinâmico sobre a subjetividade a partir de uma perspectiva budista. “Doze Elos de Originação Interdependente” consiste em ensinamentos sobre a Roda da Vida e o Nobre Caminho Óctuplo, na perspectiva Vajrayãna , que é uma forma especialmente rápida e eficaz de Mahayãna . O Lama Padma Samten faz uma apresentação destes ensinamentos tradicionais, em uma abordagem contemporânea, buscando trazer benefícios imediatos ao cotidiano das pessoas. Em palestra realizada no “Circulo Psicanalítico do Rio de Janeiro” 505 o Lama Padma Samten fez a seguinte apresentação dos Doze Elos dirigida aos psicanalistas desta sociedade, assim ele escreveu:

“Quando o Buddha atingiu a liberação cíclica e percebeu que todas as experiências humanas eram criadas por processos internos complexos, os quais se manifestavam em doze etapas. Sua experiência de liberação completa se manifestou, não apenas enquanto liberdade dos processos condicionados da mente, mas como a compreensão muito aguda de como estes processos eram montados, como operavam em todos os seres e de como poderiam os seres livrar-se destes condicionamentos, os quais passaram a funcionar de forma completamente automática, dominando-os. Quando observamos estes ensinamentos, vemos uma direção muito clara de como podemos dirigir nossos esforços para libertar-nos de nossas próprias dificuldades e como, fazendo isto, nos capacitamos também para ajudar os seres a livrarem-se de suas aflições. Vemos que as nossas ações caem sempre em algumas dessas doze categorias. Quando percebemos isto, imediatamente, vemos como podemos recuperar a liberdade, porque temos as experiências emocionais, as pertubações, as quais se manifestam

505 Essa conferência foi realizada em 16 de agosto de 2000, sendo o texto escrito encaminhado pelo próprio Lama Padma Samten para divulgação entre os membros do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. 235

incessantemente nas nossas vidas. O processo de contemplação dos doze elos ou das doze etapas une a prática da meditação com a prática de compreensão intelectual de forma inseparável.” 506

Mas, para que possamos alcançar toda a força dessa concepção, é preciso termos em mente ainda o que fala o Lama Padma Samten:

“Quando olhamos os ensinamentos, seja em livros, seja quando ouvimos, é necessário reconhecermos a classe de ensinamentos que estamos ouvindo. As diferentes classes falam de formas diferentes os mesmos ensinamentos. Existem ensinamentos que olham para a Roda da Vida como um problema, eu mesmo dou esses ensinamentos. Em outros ensinamentos, vamos ver a Roda da Vida como perfeição. É necessário que vejamos em qual classe de ensinamentos que estamos imersos. A pessoa só vai ouvir a Roda da Vida como perfeição quando ela tiver capacidade de ouvir isso.” 507

Nesta exposição feita pelo Lama Padma Samten, ele avisa que está saltando todos os ensinamentos preliminares. Ele diz: “Estamos entrando direto na sétima etapa do Nobre Caminho 508 , como se nós fossemos meditantes.” E de um modo geral, considera que para a pessoa ouvir este ensinamento ela precisa possuir, pelos menos, a “experiência de estabilidade”, pois é esta experiência que permite o iniciado penetrar em todos os âmbitos. Nesse sentido, temos de “experimentar” este caminho ensinado pelo Buddha Shãkyamuni para podermos paulatinamente ir penetrando nessa nova modalidade de conhecimento ensinada por ele. Como explica o Lama Padma Samten: “Na verdade o método do Buddha é um método de girar a roda. Então nós vamos até a décima segunda etapa e voltamos para a primeira.” Mas, como funciona esse método? Lama Samten conta-nos que o Buddha, ao percorrer do primeiro ao décimo segundo elo e depois do décimo segundo ao primeiro, percebeu que se andamos em uma direção, estamos montando os doze elos, já se andamos na direção oposta, estamos desmontando os

506 SAMTEN, Padma. Texto da sua conferência do dia 16 de agosto de 2000, no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, redigido por ele mesmo: “Os Doze Elos – As Doze Experiências.” 507 SAMTEN, Padma. “Os 12 Elos da Originação Dependente”. Esses ensinamentos foram transmitidos oralmente pelo Lama Padma Samten, em retiro realizado na Fundação Peirópolis, em 28/08/2000, transcritos por Eliane Steingruber e cedidos pelo próprio Lama, que gentilmente autorizou a utilização do material para elaboração do segmento sobre “Budismo Ocidental em Lama Padma Samten”. O que apresentamos aqui é um resumo desses ensinamentos transmitidos diretamente pelo Lama, numa prática budista. Cópia via e-mail , 2002, p. 29. 508 Vida Justa. 236

doze elos da originação dependente. Assim é o ensinamento da Roda da Vida. Como todos os ensinamentos budistas, o ensinamento da Roda da Vida tem vários níveis de compreensão. Pode-se compreendê-los em um nível muito simples, em que somos indivíduos separados. Nós estamos dentro de uma experiência quase que externa, completamente dominados por alguma coisa e estamos dentro de um processo causal que, inevitavelmente, vai nos levando em uma certa direção. Os ensinamentos da Roda da Vida podem ser dados dentro da seguinte característica:

“Por estarmos presos à ignorância brotam dentro de nós as marcas mentais; Com o surgimento das marcas mentais, surge naturalmente a nossa identidade; Quando surge a nossa identidade, nós tentamos perpetuar alguma coisa; Por querer perpetuar algo, manifestamos o nosso corpo; Surgindo o nosso corpo, fazemos o contato; A partir do contato, temos sensações; Quando surgem as sensações, tentamos sustentar as agradáveis e nos afastar das desagradáveis; Obtemos sucesso e esse sucesso estabelece a nossa visão de mundo, a nossa visão de identidade; A partir daí, as nossas prioridades estão estabelecidas; A partir das prioridades, surgem as urgências; As defesas 509 , os três animais 510 , operam mas, como a impermanência não pode ser evitada, em um certo momento, tudo desaba; Quando tudo desaba, nós mantemos as sementes cármicas, ou seja, não importa qual foi o tamanho do estrago, a semente cármica está preservada; Então reinstalamos tudo, reorganizamos e remontamos a partir da experiência anterior e a partir do impulso da semente cármica;

509 Os Três Venenos: o javali, a cobra e o galo. O javali é comumente traduzido como “ignorância”, mas de fato indica uma fixação defendida e sustentada pela cobra e pelo galo. A cobra é muitas vezes traduzida como “aversão”, mas, de forma mais ampla, indica uma defesa enérgica dessa fixação. O galo é traduzido como “desejo”, mas é um equilibrismo constante, uma atividade incessante de sustentação da fixação na separatividade. A natureza pura dos três venenos é constituída pelos Três Corpos de Buda: o Darnakaya é a ausência de fixações, e ainda, a vacuidade que é fonte de todas elas; o Sambogakaya é a natureza da sabedoria correspondente aos cinco venenos e, portanto, a energia vibrante que emana continuamente do Darmakaya ; o Nirmanakaya é o corpo de compaixão, que surge incessantemente para beneficiar os seres que agem sem liberdade perante os três venenos e que, portanto, não reconhecem sua natureza inerente na forma dos Corpos de Buddha. In SAMTEN, Padma. Meditando a Vida . São Paulo: Peirópolis, 2001. 510 Os três animais, que se encontram no interior do círculo, no centro, simbolizam as três faltas: o Galo, muitas vezes, simboliza a paixão; a cobra, o ódio, e o javali, o erro. Mara , a personificação da morte, sustenta a todos em seus braços. In BECHERT, H. e GOMBRICH. Le monde du Boudhisme. Londres,Thames and Hudson. 237

Assim, tudo vai girando. Saltamos para uma outra posição dentro da roda e vamos seguindo; Quando chega a desgraça final, saltamos para um outro ponto e assim nós vamos girando a roda.” 511

Segundo Lama Padma Samten, esta é a forma de explicação causal, que consiste em uma das formas de usufruirmos deste ensinamento sobre os doze elos. O Buddha deu várias vezes o ensinamento dessa maneira. Assim como deu o ensinamento desse modo, ensinou também como podemos, em nível separativo, reverter este processo. Referindo-se às pessoas de quem estamos separados, com experiência de separatividade, dizia:

“Temos a experiência de dor, de desgraça, de desespero, de dissolução porque estávamos envolvidos em um processo de aspiração, de equilíbrio e de busca. Nascemos em algum momento e movemo-nos dentro de um mundo que reconhecemos – esta é a décima primeira etapa e a décima também; Esse processo ocorre porque tivemos experiências de sucesso; As experiências de sucesso estão na dependência de uma visão de aspiração; A aspiração está na dependência das emoções que tivemos em experiências singulares; Essas experiências singulares estão na dependência de contato; Contato está na dependência do surgimento do nosso corpo; O surgimento do nosso corpo está na dependência de uma aspiração; A aspiração está na dependência de uma estrutura mental; Essa estrutura mental está na dependência de marcas mentais; As marcas mentais sugiram pela ignorância; A partir do princípio da ignorância tudo se monta; Se nós compreendermos aquilo que está antes da ignorância e, assim, nos liberarmos da ignorância, nos liberamos de nossa aflição nesse momento.” 512

511 SAMTEN, Padma. Os 12 Elos da Originação Dependente. Esses ensinamentos foram transmitidos oralmente pelo Lama Padma Samten, em retiro realizado na Fundação Peirópolis, em 28/08/2000, transcritos por Eliane Steingruber e cedidos pelo próprio Lama Padma Samten, que gentilmente autorizou a utilização desse material para a elaboração do segmento sobre “Budismo Ocidental em Lama Padma Samten”. O que apresentamos aqui é um resumo desses ensinamentos, transmitidos diretamente pelo Lama numa prática budista. Cópia via e-mail , 2002, pp. 2-3. 511 Vida Justa.

512 Ver Nota 511 . pp. 3-4. 238

Segundo o Lama Padma Samten, o Buddha apresentou, muitas vezes, o ensinamento desta maneira. Ele apresentou o ensinamento para pessoas que têm, como aspiração, receber o ensinamento e utilizá-lo para livrar-se de sua própria dor. Esse tipo de ensinamento corresponde à categoria de ensinamentos Hinayana , onde estamos concentrados em nós mesmos, separados do mundo, separados dos outros seres. Nosso grau de interesse alcança apenas a nossa própria identidade. Desta forma, estamos focando os ensinamentos na perspectiva Hinayana . Mas estes ensinamentos também podem ser dados na perspectiva Mahayana . Nessa perspectiva, explica o Lama Padma Samten, “compreendemos como todos os seres estão presos nesse processo e tentamos descobrir como livrar a todos disso”. No entanto, nesta perspectiva inicial, Mahayana continua acreditando que os seres estão separados uns dos outros. Apenas, a nossa motivação é tal que a nossa mente os alcança. Não é apenas uma questão de estarmos presos a um processo de sofrimento. Os outros seres também estão e a nossa mente os alcança. Portanto, afirma o Lama: “Eu não quero que a minha filha passe por isso, não quero que a minha esposa, o meu marido passe por isso, os pais, mães etc., as pessoas queridas”. O Lama prossegue: “Nós não queremos que ninguém passe por isso.” No entanto, é preciso tornar isto muito claro em nossa mente, temos que encontrar a saída para poder ajudar os seres. Essa é a perspectiva dos . Mesmo que os bodhisattvas não tenham uma compreensão completa, eles têm essa aspiração. Em seguida apresentaremos uma parte do ensinamento dado pelo Lama Padma Samten sobre o primeiro Elo em um retiro budista, para demonstrar uma aplicação prática deste ensinamento. É possível afirmar que esta nova forma de conceber a subjetividade na perspectiva budista é ao mesmo tempo o diagnóstico e o remédio ou, ainda, um conhecimento libertador e nesse sentido o Buddha, nesse caso representado na pessoa do Lama, pode ser aproximado tanto do médico ocidental quanto do terapeuta. O Primeiro Elo : Avidya (tib. Ma-Rigpa ) – este primeiro elo, como pode ser observado na representação da Roda da Vida é simbolizado por um cego. 513 De um modo geral, todas as Rodas da Vida simbolizam Avidya por um cego com sua bengala. Por que cego? Para responder esta pergunta o Lama lança mão do cubo de Wittgenstein. 514 Observe o cubo abaixo cuidadosamente:

513 Avidya – (Vidya = sabedoria, visão, lucidez; Avidya = perda da visão). 239

O Cubo de Wittgenstein B

A

“Rigpa ” é uma palavra muito importante. Ela é usada no sentido de lucidez em meio às condições, mas uma lucidez não separativa, uma lucidez transcendente. Todos nós estamos caminhando, buscando recuperar Rigpa . Avidya significa, em tibetano, Ma-Rigpa , ou seja, negação, impossibilidade de Rigpa .

“Tudo que pudermos meditar sobre isso é de extrema valia. Tentem! Precisamos contemplar longamente, incessantemente essa situação de Rigpa e Ma-Rigpa. Quando nós podemos gerar as grades que nos facilitam na experiência de localizar os exemplos. Essa grade vai surgir como o foco da meditação na sétima etapa do Nobre Caminho. Essa grade está perfeitamente descrita no Sutra do Coração e ela tem 46 pontos, cada ponto tem quatro níveis e cada nível tem três condições. O que são 46 pontos? Nós vamos olhar e ver como opera a mente que atua junto com Avidya.” 515

“Quando Avidya cria o objeto, junto com o objeto surge a noção de inseparatividade”

Luminosidade - A luminosidade já é a própria natureza da mente operando, ou seja, nós criamos. Nós temos uma liberdade de criar. O Lama pergunta: “Como podemos evidenciar a liberdade de criar?” Se essa liberdade atua incessantemente, então esta é a razão

514 No último encontro com o Lama Padma Samten, em Itacotiara, Niterói, em maio de 2002, o Lama disse que preferia usar o exemplo de uma esfera dourada, pedindo para cada um imaginar a “sua” esfera dourada: uns preferiam o ouro velho, outros o ouro brilhante, e assim se foi manifestando essa inseparatividade da mente. 240

pela qual podemos dizer que a natureza de Buddha está em toda nossa experiência. Porque nós manifestamos Avidya , podemos dizer que nós temos uma natureza de Buddha. Mas, curiosamente, porque nos enganamos, porque criamos a parcialidade, podemos dizer que a natureza de Buddha está presente. Novamente, o Lama pergunta: “Onde a parcialidade se ancora?” A parcialidade se ancora na natureza última, na nossa capacidade de criar as coisas. Não vemos isso por causa da Avidya . Dessa forma, é pela própria capacidade de esconder que Avidya manifesta. Estamos diante de dois aspectos de Avidya : o primeiro consiste na capacidade de manifestar; o segundo, na capacidade de esconder. “Criamos a visão e, junto à visão, criamos a cegueira, NO MESMO ATO!”

“Só quem vê está cego!”

“Esta afirmação é muito, muito importante! Nós vamos ver isso muitas e muitas vezes, vamos constatar isso por todos os lados. Já aqui, por exemplo. Qualquer um de vocês que esteja fazendo alguma outra coisa, perde facilmente o que eu acabei de falar. Porque nós acessamos uma coisa, não podemos acessar a outra, isto é assim. Curiosamente, se vocês estudarem magia, vocês verão que uma das leis essenciais da magia é esta: Quando fazemos uma coisa, não fazemos outra! Toda a percepção da realidade está dominada por esse processo. É um processo importantíssimo. O Buddha diz: É como o pintor, o pano e as tintas ou como um mágico, que produz seres com galhos e panos” 516 .

Na perspectiva budista, o Lama Padma Samten inclui a arte como um instrumento valioso que pode auxiliar e trabalhar de forma sustentada e longa com esse tipo de percepção. Também o teatro, “e todas as artes plásticas podem trabalhar com isso, porque elas vão operar incessantemente com a delusão. Toda arte opera com a delusão, não tem como não fazê-lo. Por isso, acho que este é um campo muito fértil”.

“Quando olhamos o cubo, vamos identificar vários itens importantes dentro, não é? Por enquanto, estamos trabalhando com Avidya, percebendo que tem um nível de luminosidade e um nível de ocultação. Nós temos o vértice A surgindo. Quando surge o vértice A, parece que está tudo

515 Ver nota 511 . (2002: 3-4). 516 Idem , p. 15. 241

resolvido, nós vemos um cubo e pronto, isto se torna toda a nossa realidade. Portanto, quando vemos o vértice A, o cubo do vértice B desaparece; quando vemos o vértice B, o cubo do vértice A desaparece. Não conseguimos ver os dois cubos ao mesmo tempo, um cubo oculta o outro” 517 .

Um dos aspectos interessantes que este exemplo ilustra é o fato dele mostrar que o cubo não está propriamente no desenho. “Se ele estivesse lá, nós o veríamos de forma permanente.” Desta forma, observa-se que existe uma ação mental que opera de dentro e faz o cubo surgir, faz surgir a experiência do cubo. Esta ação mental que opera de dentro e faz surgir a experiência do cubo é uma experiência que está presente, por exemplo, nas mágicas. Mesmo sabendo que a mágica em si é uma ilusão, vemos acontecer, vemos as coisas sumirem ou aparecerem da cartola. Queremos sublinhar como esse exemplo do cubo de Wittgenstein, que mostra como algo surge a partir da experiência de luminosidade, da manifestação da liberdade da criação e ao mesmo tempo opera ocultando um outro aspecto daquilo que foi criado, uma espécie de área de sombra e por isso mesmo estamos sempre operando em um certo grau de Avidya , ajuda-nos a perceber como opera o surgimento da identidade numa perspectiva budista, do Caminho da Originação Dependente, Os Doze Elos: estamos criando “nosso cubo”, “nosso eu”. O importante nesse nível, é reconhecermos que ao nível da identidade estamos sempre operando em Avydia . Como afirma o Lama Padma Samten: “Nesse momento nós precisamos perceber isso operando. Não se trata de uma descrição: A delusão é isso ou aquilo.” Podemos localizar isso, através de exemplos. È um processo de se assenhorar dessa experiência.: “Com essa experiência, vamos poder contemplar. Isso é meditação. Vamos ver a delusão operando por todos os lados, esse é o nosso objetivo” 518 . Por isso, o Lama diz:

“Ao desenraizar Avidya, desenraizamos os doze elos. Cessando os doze elos, a Roda da Vida está desenraizada. Esse é o caminho! Nós vamos acessar uma realidade mágica, não é um processo causal. Nós estamos penetrando na percepção de um aspecto muito profundo da realidade, que não importa se o cubo é ameaçador ou se o cubo é benigno, não nos preocupamos com teor do objeto, o que importa é que, seja qual for a experiência do objeto que venhamos a ter, toda essa experiência é

517 Ibidem , p. 15. 518 Ibidem , p. 16. 242

inseparável do objeto de delusão. Precisamos olhar esse processo com muito cuidado” 519 .

Percebemos que existe então uma ação mental inicialmente oculta. Quando vamos percebendo isso, começamos a identificar um segundo plano da ação mental. O primeiro é este, o qual acabamos de acompanhar – a luminosidade, e o segundo, só agora nos damos conta, a ocultação. Ocultação : a ocultação faz desaparecer o cubo. Logo, temos a capacidade de fazer aparecer e fazer desaparecer 520 . Não só fazemos aparecer alguma coisa, como fazemos desaparecer a outra. Neste processo, encontraremos muitos exemplos, como o exemplo clássico do For-Dha , em Freud, no qual ele irá enfatizar mais o aspecto afetivo-simbólico e não tanto o aspecto cognitivo. Ainda assim, este é um ótimo exemplo para representar o surgimento de Avidya . Observe os exemplos do Lama Padma Samtem:

“Quando encontramos uma pessoa que se tornou negativa aos nossos olhos, é quase impossível olhá-la de um aspecto positivo. Precisamos de um grande esforço para isso, é uma dificuldade para nós vê-la de outra forma. Quando nós temos uma visão, aquela visão nos aprisiona em um certo sentido, porque nos impede de olhar outras características, de reconhecer aquilo de uma outra forma” 521 .

A experiência do cubo de Wittgenstein que nos possibilita mudar de uma experiência do cubo para outra são os traços. Estes mesmos traços proporcionam duas imagens, pelo menos. Logo, a experiência que temos a partir dos traços não está determinada por eles. Ela está determinada por uma operação mental interna. Ao conseguirmos localizar essa operação mental, vemos que ela tem liberdades, ou seja, podemos fazê-la surgir de um jeito ou de outro. Podemos criar um “clique” interno que nos faz passar de uma experiência para a outra. Essa experiência nós temos de agarrar com muito cuidado, porque ela é a essência da liberdade, em um sentido muito sutil. Quando nós abdicamos disso, qual é a liberdade que nos sobra? Nós temos a liberdade de pintar o cubo, de botar um vidro na frente, de emoldurá-lo

519 Ibidem, p. 16. 520 Como no célebre exemplo do Fort-Da, conhecido por todos os psicanalistas, ou por aqueles com algum grau de informação sobre a teoria psicanalítica: o neto de Freud brincava, lançando e puxando um carretel de linha; toda vez que o carretel surgia, ele soltava exclamações. Freud estabeleceu uma relação entre o carretel e a ausência da mãe que, através do jogo, a criança procurava simbolicamente dominar. 521 Ver Nota 515 , p. 16. 243

etc. E ainda achamos que isso é liberdade. Mas, neste momento, nós não temos mais liberdade alguma. Ficamos com a visão congelada. Criamos a ilusão de que o cubo está no papel. Só que não vemos isso mais como ilusão, de fato pensamos que ele está lá. Surge a separação sujeito-objeto, explica o Lama Padma Samten: “surgimos aqui e o cubo ali”. Na descrição de Trungpa, dos Cinco Skandhas , este é o momento que tomamos o espaço como parceiro, o solidificamos, vemos um eu e um outro. Este é o momento em que criamos a dualidade e no qual surge a identidade, o eu e junto com ela a Avidya . Desta forma, o Lama Padma Samten nos explica:

“Ainda que olhemos assim, o cubo está aqui, não está? Ainda que saibamos que o cubo não pode estar no papel, porque ele depende de uma operação mental, quando essa operação mental se dá o cubo aparece no papel, não é verdade? Então a essência da experiência de separatividade está na dependência da operação mental de Avidya. Avidyia cria a experiência do cubo no papel. Ainda que raciocinemos e não validemos isso, ainda que saibamos que não pode ser assim. Através desse exemplo, nós vemos que o cubo não pode estar aqui. Através do raciocínio, nós percebemos que o cubo surge de forma inseparável da nossa mente. Quando a nossa mente se posiciona o cubo aparece. Quando a nossa mente se reposiciona o cubo aparece de outra forma. Vocês percebam que isso é uma operação que está oculta. Há quantas vidas nós estamos operando assim e não percebemos? Nós não percebemos essa liberdade. É espantoso que um desenho tão simples é capaz de oferecer isso, não é?” 522

Tendo descoberto isso, mais tarde, começamos a observar múltiplos exemplos por todos os lados. Ficamos repletos de exemplos, quando entendemos isso. O Lama Padma Samten nos explica que a partir desse ponto, nós percebemos o surgimento simultâneo de sujeito e objeto. Segundo ele, Gyatso Rimpoche usa uma expressão que ele considera magnifica:

“A inseparatividade é o surgimento simultâneo de ...”

Desta forma, quando surgimos com uma face, o objeto não aparece com a cara que ele aparece. Quando o objeto aparece com a cara que ele aparece, isso indica uma face interna 244

que geramos. O Lama Padma Samten observa que quando dizemos “o objeto tem essa face ou eu tenho essa face”, ainda estamos tratando da mesma coisa. Logo, “se quisermos olhar como somos, só precisamos perguntar o que vemos, porque são inseparáveis. Não há como aparecer uma experiência lá, sem que nós apareçamos aqui.” 523

“Existe uma única experiência. Eu posso escolher e dizer que esta experiência é a manifestação do objeto ou dizer que ela é a manifestação do sujeito. Não se trata de um sujeito e de um objeto, é uma única experiência e eu é que vou definir como vou descrevê-la, objeto ou sujeito. Porque dentro da dualidade da linguagem eu só tenho essas duas opções de me expressar” Newsborn

E concluindo com as palavras do Lama Padma Samten sobre este ensinamento precioso: “Naturalmente, quando nós analisamos a experiência do surgimento do objeto, ele parece que surge lá. Mas se eu disser que eu estou me espelhando lá também não é correto. É uma inseparatividade. Isto é um mistério! A contemplação disso é muito, muito importante.” 524

5.5 “Todos que conheçam outros tão bem quanto a si mesmos (...)”

O título deste segmento é parte da seguinte frase escrita por Goethe no começo do século dezenove, e citada por Kulananda em seu livro “Western Buddhism”: “Todos que conheçam outros tão bem quanto a si mesmos devem também reconhecer que oriente e ocidente são agora inseparáveis” 525 Neste capítulo, “Budismo e Cultura Ocidental”, ele afirma que por onde o budismo “passa” costuma trazer cultura. De acordo com a lenda, para o Tibete, o budismo levou a arte de escrever. Na China, uma civilização que, em extensão, era equivalente à sua civilização de origem, o budismo criou na dinastia T’ang uma das mais grandiosas civilizações que o mundo jamais viu. Quem sabe, pergunta-se Kulananda, se o budismo não nos ajuda a nos voltarmos para o melhor que a cultura ocidental possui? Em sua visão, o ocidente está sob o domínio da maior crise de fé.

522 Idem , p. 17. 523 Ibidem, p. 18. 524 Ibidem , p. 18. 525 KULANANDA. Western Buddhism . London: Harper Collins Publishers, 1997, p. 211. 245

Dessa forma ele se propõe a examinar diferentes aspectos da relação entre o budismo e a cultura ocidental, particularmente no que diz respeito ao campo da arte, ciência, filosofia, psicoterapia e religião, pois em “cada um desses campos o budismo traz algo distinto para difundir e oferecer uma perspectiva de uma revisão radical.” 526 No entanto, o renascimento espiritual e cultural do ocidente a partir do oriente não é um fato novo. Na verdade, começou no século dezenove, com o nascimento do Romantismo, por isso Friedrich Schlegel, um dos fundadores do movimento romântico, afirmou: “No oriente nós devemos procurar o mais alto romantismo” 527 Segundo Kulananda, o Romantismo espalhou sementes de influência em todas as direções. Schlegel, por exemplo, influenciou Schopenhauer 528 , que por sua vez influenciou Nietzsche e Wagner, que começou uma ópera baseada na vida de Buddha. Na América, os Transcendentalistas da Nova Inglaterra vigorosamente se voltaram para o novo Orientalismo – E. P. Peabody fez a versão para o inglês de uma tradução francesa do “Sutra do Lótus” e, na Inglaterra, a interpretação poética de Sir Edwin Arnold da vida de Buddha, “A Luz da Ásia” (a qual já foi citada anteriormente) vendeu algumas centenas de milhares de cópias 529 . Mas nada disso é novo, já no século II a Europa havia sofrido uma perda de convicção em suas crenças racionais, e a conjunção de orientalismo e romantismo nessa época conduziu a uma moda de profetas orientais com o surgimento do gnosticismo. Há uma diferença nesse Romantismo do início do século dezenove que não pode ser posta de lado, com o pretexto de tratar-se de uma aberração. O que marca este Romantismo, afirma Kulananda, é a “ self-doubt ”, a “questão-do-eu”, e cada tempo europeu foi mensurado por um ataque desta dúvida 530 , a qual foi sempre seguida de um entusiamo pelo oriente. Já o dramaturgo Antonin Artaud havia escrito: “O Grande Lama, dê graças a nós com suas iluminações em uma linguagem, que nossas mentes européias contaminadas possam entender, e se preciso for transforme as nossas mentes...” 531 Segundo Kulananda, esta questão-do-eu cultural tem agora se tornado virtualmente um modo de vida. Tanto a velha moral quanto certezas estéticas abriram caminho a “meras opiniões” e a idéia de que o que poderia ser uma hierarquia de valores tem sido tomado “pela convicção selvagem de que todos os valores são somente relativos, que nada é realmente

526 Idem, p.210. 527 Ibidem, p.210. 528 Schopenhauer tinha uma figura de Buddha junto ao busto de Immanuel Kant. Ibidem , p. 210. 529 Ibidem , pp. 210-211. 530 Nos anos 1870, 1920 e 1960. Ibidem , p. 211. 531 Ibidem , p. 211. 246

valorizado como muito mais importante do que qualquer outra coisa, que tudo depende de seu ponto de vista.” 532 Na opinião deste autor, “este estado de completo relativismo em relação a valores é culturalmente e espiritualmente enervante.” No entanto, ao mesmo tempo, superficialmente pode parecer semelhante à posição budista, na medida em que o budismo também afirma que os valores são relativos, que nossos sentimentos, pensamentos e crenças surgem todos na dependência de condições. Se tudo é condicionado, como pode-se estabelecer que algumas coisas são melhores do que outras? Tudo não depende do nosso condicionamento? Mas, na verdade, o budismo é ainda mais sutil do que isso, afirma ele, pois a resposta budista para esse problema aponta para um caminho fora da confusão através da qual grande parte da nossa cultura costuma ser vista. Embora tudo seja condicionado, a condicionalidade pode operar de dois modos diferentes. Podemos falar de uma condicionalidade cíclica, onde um estado mental abre caminho para outro, num plano de valores mais ou menos horizontais. Mas podemos também falar de uma condicionalidade em espiral onde, na dependência de um estado mental positivo, outro, ainda mais positivo, é produzido. Se estivermos convencidos, conscientemente ou de uma outra maneira, de que possuímos uma natureza fixa, separada, as tendências que fizeram de nós o que somos agora também nos apresentam o mundo de uma maneira particular. A resposta a essa apresentação com apego ou aversão pode nos conduzir a pegar o agradável e afastar o desagradável, assim perpetuaremos o processo de “ser quem nós somos”, confinados dentro de uma faixa mono- dimensional de maior ou menor familiaridade. Mas se intuímos a natureza insatisfatória deste processo, em última instância, podemos procurar não abrir caminho para apego ou aversão. Como faremos isso? A resposta de Kulananda é que se mantivermos uma consciência clara de nossos sentimentos e sensações, então podemos abrir o “gap” entre sentimento e apego. Tal experiência reforça nossa intuição de como as coisas realmente são, podendo assim se seguir uma série de estados mentais mais intensamente positivos. No momento entre se tornar consciente de um sentimento e dar caminho para o apego, a dimensão aberta, a qual está sempre presente, é tornada mais explicitamente manifesta e podemos nos voltar para ela ou afastar-nos dela. Como exemplo, apresenta dois sentimentos opostos: ganância e generosidade. Enquanto um sentimento de ganância, de preocupação consigo mesmo preserva uma crença

532 Ibidem , p. 211. 247

delusiva na realidade de nossa separação fundamental dos outros, a generosidade e preocupação pelos outros se aproxima mais da realidade da interconexão. Só podemos deduzir uma hierarquia de valores a partir destes fatos da vida; esta hierarquia é ordenada de acordo com o modo como as coisas realmente são. Quanto mais uma coisa estiver de acordo com a realidade, mais elevada ela permanece na hierarquia. Por exemplo, generosidade permanece mais elevada do que a ganância. Existe, portanto, uma dimensão ética para esta hierarquia (generosidade é melhor do que ganância) e existe uma dimensão estética, pois assim como alguém pode responder para o mundo por tomar ou por dar, também alguém pode responder para isto em um espírito de apropriação ou apreciação. Como ilustração disto que ele acaba de dizer, Kulananda conta uma história relatada por seu professor de seu tempo na Índia. Este professor estava andando com um amigo na cidade do Himalaya de Kalimpong, quando sua atenção foi afetada por uma árvore majestosa à beira da estrada. O professor então disse para seu acompanhante: “Olha para esta magnífica árvore...!” Ao que o outro respondeu: “Oh, sim! Faria muitos feixes de lenha!” Dessa forma podemos ver as coisas com os olhos da apreciação estética, onde vemos as coisas nelas mesmas, como elas são, sem relação conosco e nossas necessidades; ou nós podemos vê-las somente como elas se relacionam a nossas necessidades e desejos. Dessa maneira a experiência de algo como belo, nos deixa por um tempo de fora da nossa rota normal de preocupação conosco mesmo em um mundo quase diferente – alguém o qual está mais concernido com valores do que com interesses. Após este percurso por algumas das questões que o budismo ocidental levanta faremos algumas breves considerações finais.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa reflexão acerca da noção de “eu” no budismo acabou por conduzir-nos a uma busca por fontes e “indícios” diversos, que nos fornecessem o solo necessário para colocações seguras. Daí a opção por uma investigação bibliográfica de caráter histórico, sociológico e antropológico, investigação esta que contemplou aspectos do pensamento indiano, anteriores, contemporâneos e posteriores à presença histórica do personagem – foco de nossa análise: Siddhãrta Gautama. Esta pesquisa revelou-nos um campo complexo, conduzindo-nos à consciência de permanências e mudanças históricas. Apesar do Budismo apresentar um potencial de diálogo com múltiplos campos do conhecimento ocidental, dados os nossos objetivos de caráter humanístico, o campo da ética ocupou boa parte de nossas preocupações. Um outro interesse nosso era dar uma contribuição que pudesse enriquecer o debate, sobre o uso que os teóricos da psicanálise têm feito da noção de sujeito, através da apresentação desta outra versão do “eu”. Nesse sentido, sublinhamos a existência de duas formas divergentes de subjetivação, constituídas a partir de dois tipos diferentes de sociedade: holista e individualista 533 . Fizemos um trajeto histórico diferente, fomos visitar uma outra cultura, uma outra versão, outros valores, outros motivos para viver, e retornamos, depois de dois mil e quinhentos anos, quatro anos e quatro meses, quem sabe a duração que temos, o fato é que tudo tem um tempo, e o nosso, agora, é de colocar um ponto final. O budismo é uma tradição que ensina a nos prepararmos muito para os momentos de finalização, morremos e renascemos a cada minuto, por isso não devemos ser ingênuos, pensando que tudo irá correr bem, porque, afinal, essa hora chega para todo mundo. Cada etapa, cada momento é um novo desafio, e da maneira como tivermos conseguido cumprir o momento anterior, disso depende o momento seguinte. É chegada a hora de avaliarmos se cumprimos o que prometemos no começo desse caminho. Qual foi nosso ponto de partida? Qual era a nossa questão inicial? Para pensarmos diferentes modos de subjetivação, procuramos identificar, inicialmente inspirados em Mauss, Dumont e Harpham como, do interior das práticas ascéticas no pensamento indiano, ou seja, na proto-história da Índia, constitui-se a subjetividade, a categoria do eu e, junto com ela, como surgiu, no pensamento indiano, a “questão da sacralização do ser humano.” O objeto central de nosso estudo foi esta nova maneira de conceber a individualidade na Índia Antiga,

533 Cf. Capítulo 2, 2.1. 249

o eu budista, ou seja, uma forma de subjetividade construída na linhagem das práticas ascéticas mais antigas da história da Índia, esta que foi capaz de atravessar dois mil e quinhentos anos de história e, chegar, em pleno século XXI, como uma forma de subjetidade viva ao ocidente. Pensamos comparar este tipo de subjetividade, uma subjetividade sobrevivente, oriunda de um indivíduo que surge como contraponto de uma sociedade holista e tradicional, como era a sociedade indiana na antiguidade (e, de certa forma, ainda permanece assim, até os dias atuais), à forma de subjetividade do indivíduo ocidental contemporâneo. Um outro tipo de subjetividade construída por dois mil anos de tradição judaico-cristã, e agora se encontra com esta “outra versão”, que lhe é anterior no tempo, um irmão ou irmã mais velha, quem sabe? Procurar entender o encontro destes dois modos de subjetivação, ambas construídas a partir de práticas ascéticas, mas que originaram formas de subjetividade tão divergentes, é também pensar no encontro de duas versões da culturanum mundo globalizado que, até então, mantiveram-se como distintas e separadas, com suas diferenças marcadas pelos contrastes e pelas oposições. Muitos são os elementos que nos permitem pensar que o renascimento do budismo, no século vinte e um, pode contribuir para estabelecer um diálogo entre essas duas versões da cultura. Mas como será este encontro nesta outra paisagem dos dias atuais, numa sociedade ocidental, onde impera o individualismo utilitário, o consumo e a globalização? O budismo, ao entrar numa outra cultura, modifica os seus valores, sua forma de vida, suas práticas de ascese. Foi assim na Índia, na China, no Tibete; por que no ocidente no século vinte e um tais efeitos não ocorreriam? Teria o ocidente um tal poder de neutralização, de congelar e paralizar aquilo que pode lhe mostrar que o mundo não se reduz apenas ao que conseguimos enxergar? Precisamos aprender a ver o cubo do vértice B, além do A, e precisamos mais ainda saber que temos essa liberdade de mudar de cubo, basta olhar com muita atenção, com muita calma, para os traços como nos ensinou o Lama Padma Samten. Mas por que o budismo? Qual foi o mapa que traçamos para seguir nosso caminho? Não encontramos nosso caminho facilmente, entramos por alguns desvios, mas conseguimos retomar nossa rota principal. Descobrimos um caminho possível, o pensamento indiano, esta outra cultura, muito recentemente descoberta por nós, e com a qual parece que estamos começando um longo diálogo. Depois que se visita e experimenta novas maneiras de ser também nos tornamos outros. Mas estamos apenas começando a nos familiarizar com esse outro lado. Foi neste pensamento que vislumbramos o começo da construção de um modo de subjetivação onde a consciência individual, a ahamkara , em contato com uma consciência 250

cósmica, através das práticas de Yoga , práticas de ascese, porém, dentro de uma característica mágico-mística, construíram primeiro o eu como uma categoria sagrada do pensamento indiano. Isso antes de ele ocupar, nesse pensamento, o posto de uma categotria conceitual, quando esta sacralização conheceu o seu ápice, a identidade Atman-Brahman . Este eu eterno, transcedental, além do corpo e do espírito, presente em todas as coisas, fixo, imutável, e que sobreviveria a nossa morte. Nessa época, na Índia, havia um declínio da religião védica e suas práticas sangrentas do sacrifício. Do interior da tradição ariana, na época das especulações dos Upanishads pós-védicos, e junto com as tradições ascéticas mais antigas, com sua noção do Ãhimsa , a “não-violência”, um momento de grande mudança estava ocorrendo na Índia e em várias partes do mundo, ao mesmo tempo. É nessa Índia que surge o budismo, e Gautama, o príncipe Shiddharta, se torna um asceta, um Sannyãssin , vai percorrer os caminhos traçados pela sua tradição para encontrar as respostas que procura. Encontra a iluminação e, durante quarenta e cinco anos, dedica-se a ensinar a todos aqueles que quizessem ouví-lo o novo caminho da salvação, a meditação sem ascese enquanto mortificação, o caminho dos oito passos, motivação justa, pensamento justo, visão justa, vida justa, meditação justa, assim fazendo e praticando podia-se chegar à iluminação, à sabedoria, ao conhecimento que conduz ao Nirvãna . Mas era preciso desfazer-se das visões erradas, e uma dessas visões era pensar que possuíamos um eu eterno, e imortal. Também, não era certo pensarmos que com a morte estava tudo terminado. O que o Budismo ensina? A liberdade. Para nos libertarmos basta apenas adquirimos o conhecimento certo. Esse que o Buddha vislumbrou em sua iluminação, e que, pela meditação, por graus, nós também podemos alcançar: “Todos os seres desejam ser felizes e ficar livres do sofrimento.” Esta nova linhagem de pensamento, inaugurada pelo Buddha, foi se expandindo e se irradiando. Da Índia para a Ásia, para a China, Tibete, Japão, Ceilão, Nepal, Vietnam, e finalmente rumou para o Ocidente, Ingaterra, França, Alemanha, Holanda, Estados Unidos, Brasil. Hoje quais são as características, as marcas registradas desta forma de individualidade sobrevivente dos começos do surgimento do indivíduo na Índia, construída no modelo do Sanyãssin , este indivíduo único e extraordinário, que estende a sua tigela para pegar o seu alimento, mas que ao mesmo tempo traz ensinamentos para os homens do mundo, ensina o caminho da salvação, do crescimento espiritual? O Buddha Shãkyamuni traz a marca 251

dos grandes homens, de um revolucionário espiritual, aquele que transforma o seu tempo, aquele que fica gravado na memória da história, esta que irá contar e recontar a sua lenda, a sua vida, os seus ensinamentos, para que as futuras gerações possam seguir o mesmo caminho que ele nos apontou. Mas neste nosso mundo ocidental, contemporâneo e conturbado, o que o budismo tem para nos ensinar ou contribuir? Mais uma prática de bio-ascese, como tantas outras, “técnica de relaxamento para executivos estressados da Wall Street ”, um novo complemento ideológico do capitalismo, afinal, o que pode resultar deste encontro entre duas formas tão opostas de cultura e de subjetividade? De um lado a generosidade, o ideal de Bodhisattva , as práticas das seis perfeições; do outro, a ganância, a competição desvairada, o sucesso a qualquer preço, as técnicas de modelamento de um corpo que não sabe para que está vivendo, qual é o sentido de existir. Entre os diversos caminhos de criação de um sentido para ação, certamente que em diferentes sociedades do ocidente o Budismo já ocupa um espaço próprio. Enfatizando a necessidade de reflexão acerca de uma hierarquia de valores, onde se pode distinguir entre o que é melhor e pior, da absoluta interdependência entre todos os indivíduos, traz uma nova forma de pensar a subjetividade e o próprio sentido da vida. A contribuição do Budismo para uma reflexão sobre as práticas ascéticas contemporâneas toma como categoria central a noção de Ãhimsa, a “não-violência”. Retomando a afirmativa de William James acerca do ascetismo e da guerra como os aspectos presentes em todas as culturas, podemos dizer que a oposição entre guerra (enquanto uma direção de vida que visa exclusivamente o poder e o lucro) e o Ãhimsa (enquanto o oposto da guerra – o anseio pela transcendência), talvez um dos grandes desafios do século vinte e um, seja a possibilidade de retomar a força da não-violência por oposição à força da violência. Se o século vinte, foi o século de Freud e da exploração do inconsciente, quem sabe este novo século não pode ser, senão o século de Buda; ao menos de alcançar um patamar mais elevado de consciência. Compreendemos que o mundo deve mudar, a vida precisa ser diferente para todos, o que nos impede de realizar esta mudança? Não estamos brincando, nem estamos sendo ingênuos, ou “utópicos”, percebemos que o Buddha nos aponta um caminho, muitos têm sido aqueles que não mediram esforços para levar este caminho para adiante, para que todos possam ter a oportunidade de conhecê-lo e, se quizerem experimentá-lo. O caminho de Buddha é um caminho aberto a todos que queiram segui-lo, sem distinções de raças, de credos, de sexos, de cor... para que as causas do sofrimento possam ser eliminadas, para que 252

todos possam ser felizes e que as palavras doença, morte, miséria e fome possam não ser ouvidas nos quatros cantos da terra e que mérito, sabedoria, glória, riqueza e felicidade possam aumentar para todos os seres sem exceção. Queremos um mundo melhor; por que então, não olhamos este outro lado do cubo? Por que não experimentar um estado positivo que, em uma condicionalidade em espiral, possa gerar um estado ainda melhor? Vamos exercer essa liberdade que temos de sonhar e fazer do nosso sonho uma realidade compartilhada. Este trabalho também foi um sonho, que agora estou podendo compartilhar com vocês.

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GLOSSÁRIO 534

Ahimsã H B (ahimsã ), Skt., lit. “não-violência”

H Respeito absoluto, em pensamento, em palavra e em ação, da integridade física de todo ser vivente, uma das cinco virtudes do primeiro estágio (yama) da Rãja-Yoga. Estas virtudes exigidas pelo Yoga-Sûtra de Patañjali constituem o “Grande Juramento” válido para todas as outras etapas. As quatro outras virtudes são: Satya (o respeito da verdade), Asteya (o respeito da propriedade), Brahmacharya (a castidade) e Aparigraha (a pobreza).

Ahimsã , o conceito de “não-violência”, adquiriu um renome mundial graças ao Gandhi que o utiliza como arma política contra a dominação colonialista britânica, sob a forma de resistência e não-cooperação passiva.

B O respeito absoluto de todo ser vivo é um dos aspectos fundamentais da atitude mental budista. È este conceito de Ahimsã que justifica, na maior parte dos países de cultura budista, a obrigação de observar, para monges e monjas, um regime alimentar vegetariano.

Amrita H (Amrta ), Skt., lit. “imortal”.

H Néctar da vida eterna, ambrosia divina. Este conceito é freqüentemente utilizado nos Vedas e seguidamente empregado para designar o Soma.

Amritattva H (Amrtattva ), Skt.; imortalidade, vida eterna. Este estado é inacessível ao nível dos corpos. Nós não podemos atingi-lo a não ser pela realização do Eu verdadeiro ( Ãtman ), idêntico ao Deus ( Brahmã ) por sua natureza de consciência absoluta.

Anãtman B 535 Skt. (Pali, ); não-Eu, impessoalidade. Uma das três características de toda existência ( Trilakshan a). A doutrina de Anãtman é uma das teorias centrais do budismo.

534 The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion. Buddhism. Hinduism. Taoism. Zen . Orgs. Stephan Schumacher, Gert Woerner. Boston: Shambhala, 1989 e Dictionnaire De La Sagesse Orientale . Boudhisme. Hindouisme. Taoisme. Zen. Traduzido do alemão por Monique Thiollet, Paris; Éditions Robert Laffont, S.A.., 1989. 535 Um título de entrada em cada uma das áreas de estudo é indicado por B, para Budismo, H, para Hinduísmo, T, para Taoísmo, e Z, para Zen. Se o mesmo conceito é usado em mais de uma área de estudo, mas com diferentes sentidos – primariamente Hinduísmo/Budismo – então, nesse caso, ambas as explicações são dadas 261

Ela nega a existência no interior de um ser individual de um Eu ( Ãtman ) no sentido de substância imperecível, imortal, única e independente. Na concepção budista, o Eu não é mais do que uma personalidade empírica, composta de cinco agregados da existência ( Skandha ), inconstante, efêmera e então dolorosa. No Hinayana , esta concepção permanece limitada à personalidade humana; o Mahãyãna em compensação a estendeu ao conjunto do Dharma de produção condicionada (ver Pratitya- Samutapãda ). Esta ausência de natureza própria ( Svabhãva ) é denominada no Mahãyãna com o termo de shûnya (vazio). Segundo a concepção hinduísta corrente, a alma, Eu ou Eu superior ( Ãtman ), é essencialmente caracterizada pela permanência e ausência de sofrimento. No budismo, em compensação, a personalidade composta de cinco Skandas perecíveis é considerada não como um Eu imortal, mas como um Eu convencional, fruto da experiência cotidiana. O próprio Buddha não dá jamais uma resposta definitiva à questão de saber se existe ou não um Eu verdadeiro, a fim de evitar a emergência de novas idéias supérfluas que pudessem ser um obstáculo para a prática espiritual. A doutrina do Não-Eu é mais para interpretar no sentido de um método “pedagógico” que naquele de uma teoria filosófica. A negação da existência do Eu se afirma contudo no curso do desenvolvimento do sistema de pensamento budista. Somente a Escola dos Vãtsiputriya acredita na idéia de um Eu. Mas esta opinião foi sempre condenada pelas outras orientações budistas. Todos os métodos do budismo visam à obtenção da libertação concentrando seus esforços sobre a abolição da crença em um Eu, principal obstáculo à realização do Nirvãna . É indispensável vencer o apego à idéia de um Eu, fonte de todas as paixões. Com efeito, se nós somos incapazes de perceber a impessoalidade da existência e de compreender que a vida não é mais que um fluxo permanente de nascimentos e de desaparecimentos de fenômenos psíquicos e espirituais, interditando toda emergência de um Eu permanente, nós não podemos penetrar no espírito das quatro nobres verdades em sua real significação e nem chegar a compreensão necessária para salvação .

Ârya-Satya B Skrt. (Páli, Arya-Satta ) Bases da Doutrina Búdica

uma após a outra, usualmente com a mais antiga significando originalmente na estrutura do Hinduísmo, dada em primeiro lugar. In The Encyclopedia of Eastern Philosophy and Religion. Buddhism. Hinduism. Taoism. Zen. Editors Stephan Schumacher, Gert Woerner. Boston: Shambhala, 1989, p. Xi. 262

As Quatro Nobres Verdades são: 1- A verdade da dor ( Duhkha ); 2- A verdade do aparecimento ( Samudãya ) da dor; 3- A verdade da cessação ( Nirodha ) da dor; 4- A verdade da via que leva à cessação da dor.

A primeira verdade enuncia que toda existência é dolorosa e insatisfatória. Tudo é sofrimento: o nascimento, a doença, a morte, a união com o que não se ama, a privação do que se deseja e os cinco grupos de apego ( Skandha ) que constituem a personalidade. A segunda verdade indica que a causa deste sofrimento é o desejo, a sede ( Trishnã ) de gozo sensual, de coisas que nascem e desaparecem. Este desejo encadeia os seres ao ciclo dos renascimentos ( Samsãra ). A terceira verdade mostra como a abolição total de todo desejo pode colocar fim ao sofrimento. A quarta verdade indica a via da salvação aos oito caminhos como meio de colocar fim a este sofrimento. A incompreensão destas quatro nobres verdades é cegueira ( Ãvydia ). Após diferentes esforços, a descoberta destas quatro nobres verdades foi o resultado da iluminação ( Bhodi ) do Buddha. Ele expôs isto no Sermão de Bénarès no começo de sua atividade de pregação. Os sûtra explicam as quatro nobres verdades da seguinte maneira: “Mas o que é, então, oh monges, a Nobre Verdade da dor? O nascimento é dor, a doença é dor, o desgosto, a aflição, o sofrimento, a tristeza, o desespero são dor; a não obtenção daquilo que se deseja é dor; em uma palavra cinco constituintes da existência, marcados pelo apego, são dor”. “Mas o que é, então, oh monges, a Nobre Verdade do aparecimento da dor? É o desejo, gerador de renascimentos, com seu cortejo de ciúmes e cobiças, se satisfazendo tanto aqui, quanto lá, desejo dos sentidos, desejo de existir, desejo de autodestruição”. “Mas o que é, então, oh monges, a Nobre Verdade da extinção do sofrimento? É, precisamente a extinção, o abandono, a renúncia, a libertação, o desapego completo deste desejo”.

“Mas o que é, então, oh monges, a Nobre Verdade do Nobre Caminho conduzindo a esta extinção do sofrimento? É o Nobre Caminho Óctuplo, a saber: motivação perfeita, palavra 263

perfeita, ação perfeita, esforço perfeito, os meios de existência perfeitos, esforços perfeitos, atenção perfeita, concentração perfeita .” 536

Artha H Skrt. Riqueza, possessão. Um dos quatro objetos da aspiração humana, considerada como não condenável pelo hinduísmo tanto que esta questão leva em conta as exigências da moral e do Dharma . Os três outros objetivos procurados são: Dharma (retidão virtuosa), Kâma (prazer sensual) e Moksha (libertação).

Asamskrita B (asamskrta ), Skt. ( Páli, asankhata ), lit. “não-condicionado, não-formado,” termo designando tudo que se encontra além da existência condicionada, além do ciclo de nascimento, da transformação e da morte. Ele constitui o contrário de samskrita . Na doutrina original, somente o Nirvãna era considerado como não-condicionado. As escolas Theravãda e dos Vãtsîputrîya permaneceram fiéis a esta concepção. Os outros ramos do budismo interpretaram este conceito diferentemente no curso de sua evolução. Os Mahãsãnghikas distinguem nove categorias de não-condicionados: os dois tipos de abolição ( Nirodha ), um acessível pela habilidade de discernimento ( pratisamkhyã-nirodha ) e assimilado ao Nirvãna , o outro, adquirido sem o concurso de discernimento ( Apratisamkhyã- Nirodha ), nem da sabedoria ( Prajñã ). O segundo se reporta às paixões futuras jamais abolidas nos santos. As outras categorias são o espaço ( Ãkãsha ), o infinito do espaço, o infinito da consciência, o nada e a esfera situada além da consciência e da inconsciência, a doutrina da Produção condicionada ( Pratîtya-Samutpãda ) e o Nobre Caminho Óctuplo. A Escola de Sarvãstivãda distingue três categorias não-condicionadas: o espaço e os dois tipos de “abolição” já referidos. A Escola de Yogãchãra acrescenta também a estes três primeiros Dharma a extinção através da imobilidade na meditação celeste, a abolição do pensamento e a sensação nos arhat , e conseqüentemente a “ Ainsité ” ( Tathatã ). Sob a denominação “não-condicionado,” os Dharmaguptakas entendem unicamente a “ Ainsité ” (Tathatã ) e a “permanência das coisas”, quer dizer sua essência. Aquilo que não se modifica por sua natureza profunda, tudo que implica por exemplo que de boas ações não podem se seguir maus efeitos. A isto se juntam certas formas de vida retirada, de recolhimento.

Ãtman H B Skt.

536 Apud NYÃNATILOKA, (1976: 186) in Dictionnaire De La Sagesse Orientale. Boudhisme. Hindouisme. Taoisme. Zen. Traduzido do alemão por Monique Thiollet, Paris; Éditions Robert Laffont, S.A.., 1989, p. 448. 264

H De acordo com a compreensão Hindu, o Self real imortal dos seres humanos, conhecido no ocidente como a alma. Ele é a testemunha não participante da jiva, além do corpo e pensamento e, como consciência absoluta, idêntica com Brahmã . Filosoficamente, ãtman é conhecido como Kutastha . Em virtude de sua identidade com Brahmã , suas marcas características especiais (ãtmakara ) são idênticas com aquelas de Brahmã : ser eterno, absoluto; consciência absoluta.

B No budismo a existência de um ãtman é negada. Nem dentro, nem fora das manifestações físicas e mentais existe qualquer coisa que pode ser designada como uma essência independente, imperecível.

Ãvidya H B Z Skt., lit. “ignorância”, “cegueira”.

H Conceito tirado da filosofia Vedãnta e que se refere a uma não visão, tanto individual quanto cósmica. Ao nível individual, a cegueira impede de distinguir permanência e impermanência, aparência e realidade; ao nível cósmico, ela é Mãyã . Seus efeitos são os mesmos que aqueles de Ajñãna .

B Z (Pali: Avijjã ); “Não-conhecimento” ou “cegueira”, quer dizer falta de visão das quatro nobres verdades, das três jóias ( Triratna ) e da lei do karma . Avydiã é o primeiro estágio da produção condicionada ( Pratitya-Samutpãda ) que encadeia o indivíduo ao mundo do Samsãra . Ela constitui também uma das três preocupações aflitivas ( Ãsrava ), uma das paixões ( Klesha ) e a última das dez algemas ( Samyojana ). Avidyã é considerada como a raiz de tudo o que é prejudicial no mundo. Nós a definimos como a cegueira de todo caráter doloroso de toda existência. Em desacordo com a realidade, este estado de espírito confunde realidade e fenômenos ilusórios; ele é fonte de sofrimento. A cegueira entranha a inveja ( Trishnã ). Ela constitui o principal fator que encadeia os seres ao ciclo de renascimentos. Segundo a concepção mahayanista da vacuidade ( Shûnyatã ), Avidyã é responsável disto que os não-crentes consideram o mundo sensível como a única realidade e desconhecem o essencial.

Bodhichitta B Skt., lit. “mente desperta”; a mente de iluminação, uma das noções centrais do budismo Mahãyãna . Na tradição tibetana, esta noção é vista como tendo dois aspectos, um 265

relativo e outro absoluto. A mente relativa de iluminação está dividida novamente em duas fases, são elas: (1) a intenção e vontade, norteada por compaixão sem limites, para alcançar liberação ( nirvãna ) para a segurança do bem estar de todos os seres e (2) ingresso atual em meditação, cujo propósito é a aquisição dos meios apropriados para atualizar esta vontade (bodhisattva ). A mente absoluta de iluminação é vista como a visão da verdadeira natureza (shunyatã ) dos fenômenos. Os vários métodos para originar a mente de iluminação descendem primariamente a partir de Atishã e entraram dentro de todas as escolas do budismo tibetano através dele.

Em acréscimo, os sistemas do Tranta desenvolveram a noção de mente de iluminação como uma entidade concreta fisiológica. A sublimação da mente de iluminação concebida como uma “essência grão” conduz a uma iluminação que pode ser experimentada diretamente corporalmente.

Bodhisattva B Z Skt., lit., “ser iluminado”. No budismo Mahãyãna , o bodhisattva é um ser que aspira adquirir o estado de Buddha pelo exercício sistemático das virtudes perfeitas ( Pãramitã ), mas que renuncia a experimentar um prazer muito vivo do Nirvãna perfeito enquanto que todos os seres não forem salvos. A virtude que determina toda sua ação é a compaixão ( Karunã ), sustentada por um conhecimento e uma sabedoria ( Prajñã ) perfeitos. O bodhisattva aporta uma ajuda eficaz, está pronto a assumir o sofrimento de todos os seres e a transmitir a outros os seus próprios méritos Kármicos. O caminho do bodhisattva começa com a busca do espírito denominado de iluminação ( Bodhicitta ) e a pronunciação dos votos de bodhisattva (Pranidhãna ). A “carreira” do bodhisattva é dividida em seguida em dez estapas ( Bhûmi ). O ideal do bodhisattva do Mahãyãna substituiu aquele do Arhat próprio ao Hinayãna , cuja toda aspiração consistia de obter sua própria salvação. Esta concepção foi julgada muito estreita e muito egoísta pelo Mahãyãna . O personagem do bodhisattva existe, todavia, já nos textos do Hinayãna . O termo designa o Buddha histórico Shãkyamuni em suas existências anteriores, tal como elas são descritas nos Jãtakas . A concepção do bodhisattva mahayanista toma sua origem na idéia que os Buddhas do futuro existem já sob forma de bodhisattva . O Mahãyãna distingue dois tipos de bodhisattva : os bodhisattva mundanos e os bodhisattvas transcedentais. Os mundanos são os homens que não se distinguem de seus semelhantese por sua compaixão, seu altruísmo e sua vontade em chegar ao estado de Buddha. Os bodhisattva transcendentais já realizaram os Pãramitã e alcançaram a condição de Buddha, mas eles 266

postergaram sua entrada no Nirvãn a total. Eles estão em possessão da sabedoria perfeita e não estão mais submissos ao Samsãra . Eles se manifestam sob as formas mais variadas a fim de ajudar os seres viventes sobre o caminho da libertação. Eles são objeto da devoção dos crentes, que vêem neles os guias e o sustentáculo de sua angústia. Os mais importantes destes bodhisattva são Avalokiteshvara , Mañjushr î, Kshitigarbha , Mahãsthãmaprãpt a e .

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Dharma H B Z Skrt. Liter. “Levar, ter”.

H Termo genérico designando “isto que constitui nossa verdadeira natureza”, retidão. Fundamento da moral e da ética humanas, lei natural do universo e base de toda religião. Os hindus denominam sua religião Sanâtana-Dharma , a religião eterna. Para o indivíduo, o Dharma está indissociavelmente ligado ao Karma . O homem não pode realizar o Dharma a não ser nos limites de sua situação Kármica.

B Z (pâli Dhamma, chin., Fa, jap., Hô, ou, Datsuma ). Conceito central do budismo, utilizado nas acepções diversas: 1- A Lei cósmica, a “Grande Ordem” a qual nosso mundo está submetido e cujo principal aspecto é a lei do renascimento determinada pelo Karma . 2- A doutrina de Buddha, o primeiro que tomou consciência desta “lei” e a fórmula. Esta doutrina exprime a verdade universal. Ao ser tomada neste sentido, o Dharma existia antes do nascimento do Buddha histórico que não era ele mesmo senão uma manifestação. É neste Dharma que o budista toma refúgio ( Trisharana ). 3- Conjunto de regras éticas e de normas de comportamento ( Shîla , Vinaya-Pitaka ). 4- Manifestações da realidade, coisas, fenômenos em geral. 5- Pensamentos, conteúdos psíquicos, idéias, reflexos dos fenômenos no espírito humano. 6- Termo designando os “fatores existenciais” que, para o Hinayãna , são aas pedras angulares da personalidade empírica e de seu universo.

Kãma H B Skrt, páli . Desejo sensual, anelo, ciúme sexual.

H No Rigved a, o desejo é apresentado como a primeira veleidade de manifestação do absoluto: “O desejo nasceu Nele que é fonte de consciência, que os santos descobriram no fundo de seu coração à força de procuras e que uniu o Ser absoluto ao mundo dos fenômenos”. Kãma , o desejo, aspiração a fazer o bem e não ciúme sexual. É celebrado e elevado à diguinidade de deus e do criador em um hino do Arthavaveda : “Primeiro nasceu Kãma . Nem os deuses, nem os pais, nem os homens, ninguém o iguala”. Em uma outra parte do mesmo Veda , Kãma representa o primeiro desejo e a força de realizar seus votos. Ele é também Kãma-Deva , deus do amor, semelhante a nosso Eros e Cupido ocidental. Ele aparece no Taittirîya-Brâhmana como os filhos do Dharma , deus da justiça, e de Sharaddhâ , deusa da fé. O Harivamsha os faz filhos de Lakshmi , enquanto um outro texto os faz nascer espontaneamente do coração de 268

Brãhma . O mistério que paira sobre as origens de Kãma está relacionado com conseqüênciasde suas paixões, que lhe valeram numerosos nomes e atributos.

B Uma das características da existência na esfera do desejo sensual ( Kãmaloka ), a mais baixa das três esferas que constituem o universo ( Triloka ). Kãma designa por sua vez a sede de satisfação sensual e a alegria que nós experimentamos desta fruição. O budismo considera Kãma como um dos maiores obstáculos para se encontrar a via da espiritualidade. Distingue-se cinco categorias de desejo sensual segundo o órgão de percepção: desejo de forma, de som, de odor, de gosto, de sensação física. Kãma constitui uma das três espécies de sede ( Trishnã ), um dos cinco obstáculos ( Nîravana ) e uma das manchas ( Ãsrava ).

Karma H B Z Skt., lit. “Ato”.

H Por Karma , nós entendemos: (1) uma ação física ou psíquica; (2) a conseqüência de uma ação física ou psíquica; (3) a soma de todas as conseqüências dos atos de um indivíduo cometidos nesta vida ou em vidas anteriores; (4) o encadeamento de causalidade do mundo moral. O Karma de um homem se forma a partir de seus Samskãra . É este potencial que guia seu comportamento e orienta as motivações de seus atos e de seus pensamentos presentes e futuros. Todo Karma é a semente de um outro Karma a vir. O homem recolhe os frutos do Karma sob a forma de alegria ou sofrimento, segundo a natureza de seus atos e pensamentos. Embora o homem imponha a ele mesmo os limites de seu caráter – mesmo porque aqueles são a conseqüência de seus atos e pensamentos passados – ele tem a escolha entre prosseguir com estas tendências que ele mesmo forjou ou de lhes combater. Esta liberdade de escolha, esta possibilidade de “autodeterminação”, reflete a liberdade suprema do Ãtman ou consciência interior. Pelo abandono a Deus, a busca do bom Karma e a dissolução do mal Karma , nós desatamos os nós da lei do Karma . Após a iluminação, nós não produzimos mais nenhum Karma . Existem três tipos de Karma : Ãgãmi-Karma , Prãrabdha-Karma e Sanchita-Karma . Nos Vedas , a palavra Karma designa também o culto ritual e o comportamento filantrópico.

B Z (Pali: Kamma ). Lei de causalidade universal que se manifesta segundo a concepção búdica da seguinte maneira: “O ato ( Karma ) é assimilado a uma planta que deixa cair uma semente, a 269

qual germina, se desenvolve lentamente em uma outra planta que produz um fruto. Quando ele está maduro, ele se solta e cai, atingindo inevitavelmente o autor do ato. Este ‘amadurecimento’ do ato é uma conseqüência necessária disto e, como a duração deste fenômeno ultrapassa freqüentemente uma vida e mesmo muitas, ela obriga então o ser a renascer para recolher o fruto ( Samsãra )”. A conseqüência kármica de um ato, seja ela de natureza física, psíquica ou oral, não depende tanto do cumprimento do ato ele mesmo que da intenção que a produziu. São as intenções que provocam os efeitos kármicos. Se um ato não pode ser bem realizado embora nós tivéssemos tido a intenção de fazê-lo, aquilo sozinho entranha as conseqüências ao nível de Karma . Somente a ação livre de todo sentimento de desejo, de ódio e ilusão permanece sem efeitos kármicos. A este propósito, convém sublinhar que as boas ações, merecedoras de recompensas, entranham também um Karma e então um renascimento. Para escapar ao ciclo dos renascimentos, é preciso se guardar de todas as ações, tanto boas quanto más. A lei do Karma não implica um determinismo. Se os atos passados determinam a forma de renascimento, eles não têm nenhuma influência sobre as ações presentes. O Karma coloca o indivíduo numa situação dada, mas sem livrá-lo de responsabiliadade sobre esta situação.

Kshatriya H (Ksatriya ), Skt., a segunda casta ( varna ) da sociedade hindu, esta dos guerreiros, príncipes e reis. Seu dever era a proteção da comunidade. Ela é simbolizada por rajas, a guna da atividade. Loka H Skt., lit. “mundo”; um termo usado em referência à divisão tradicional do universo em vários mundos, geralmente uma divisão tripla ( triloka ) constituída em céu, terra e inferno (ou o submundo). Estes são continuamente referidos como “os três mundos”. Outra classificação lista sete mundos superiores: (1) bhur-loka , a terra; (2) b huvar-loka , o espaço entre a terra e o sol, a região dos munis , e etc; (3) svar-loka , o céu de Indra ; (4) mahar-loka , a residência de Bhrigu e outros sábios; (5 ) jana-loka , a casa dos filhos de Brahma – Sanaka , Sãnanada , e Sanatkumãra ; (6) tapar-loka , onde os V airãjas residem; (7) satya-loka ou brahmã-loka , o reino de Brahma . Após alcançar este último mundo, não se renasce mais. Sete mundos inferiores, coletivamente conhecidos como pãtãla , correspondem a esses sete mundos superiores. As escolas do Sãnkhya e Vedãnta mencionam oito lokas , incluindo ambas regiões, superiores e inferiores: (1) brahmã-loka, o mundo dos deuses supremos; (2) pitroloka , o reino dos pitris , rishis e prajãpatis ; (3) soma-loka , a região da lua e os planetas; (4) indra-loka , a região de divindades inferiores; (5) gandharva-loka, a região de espíritos celestes; (6) rãkshasa-loka , o 270

reino dos rãkshasas ; (7) yaksha-loka , o reino dos yakshas ; (8) pisãcha-loka , o reino dos diabos e demônios.

Mãdhyamika B Skt., representativa da escola do Caminho do Meio (de madhyama , “o meio”). Uma escola do budismo Mahãyana fundada por Nagarjuna e Âryadeva , a qual atingiu grande importância na Índia, Tibete, China e Japão ( San-lun escola, Sanron escola). Entre os fundadores, os mais importantes e representativos da escola foram Buddhapãlita (quinto século), Bhãvaviveka (sexto século), Chandrakirti , Shãntirakshita e Kamalashîla (oitavo século). Os últimos três exerceram uma influência particularmente grande sobre o desenvolvimento mãdhyamaka no Tibete. O nome da escola se refere ao Caminho do Meio, o qual descreve a posição tomada pela escola em relação à existência ou não existência das coisas. Com a ajuda das oito negações (Nãgãrjuna ), qualquer afirmação acerca da natureza das coisas é rejeitada como incorreta e então o caráter ilusório e a relatividade de todas as aparências é mostrado. Desde que todos os fenômenos surgem em dependência sobre condições ( pratîtya-samutpãda ), eles não têm essência e são vazios de um eu permanente ( svabhãva ). Vacuidade ( shûnyatã ) tem um duplo caráter na escola Madhyamika . Por um lado, este termo significa o vazio do eu (também “egolessness”), enquanto de outro, significa liberação, porque a vacuidade é idêntica ao absoluto. Realizar vacuidade significa alcançar liberação. Isto é aperfeiçoado ao se purificar a mente de afirmação e negação. Para os Mãdhyamikas , shûnyatã é o princípio último, que é freqüentemente identificado com dharmakãya (trikãya ). Por causa do seu ensinamento concernindo a radical vacuidade de todas as coisas, a escola Mãdhyamika é também denominada Shûnyatãvãda (Ensinamento de Vazio). Entretanto, o absoluto só pode ser realizado trabalhando-se através da “verdade relativa” de maneira a alcançar o “absoluto” ou “verdade suprema”. Aqui nos encontramos a noção de “duas verdades” peculiar a esta escola. A verdade relativa, “velada” ( samvriti-satya ), é a realidade do dia a dia. A partir do seu ponto de vista relativo, a perspectiva convencional é válida e as aparências são reais. Esta visão é caracterizada pela dualidade. A verdade no mais alto sentido (paramãrtha-satya ) é destituída de multiplicidades, ou seja, opostos não têem sentido dentro dela. “Realidades” alcançadas pelo intelecto não são, a final de contas, reais, mas elas têm valor relativo. Então, a vacuidade de todas as coisas não significa desvalorização da experiência humana. Isto é mostrado pelo estilo de vida de um Mãdhyamika , pois externamente ele parece aceitar o mundo com seu sofrimento como real, ele segue os preceitos morais ( shîla ) e esforça- 271

se para apoiar outros seres no caminho da liberação, entretanto, ele sabe que tal ação é apenas, fundamentalmente, de valor relativo.

Mãyã H B Z Skt., lit. “decepção, ilusão, aparência”.

H Um princípio universal de Vedãnta ; o fundamento da mente e da matéria. Mãyã é a força (shakti ) de Brahmã e talvez seja eternamente, inseparavelmente, unido a Brahmã , justo como calor é unido com fogo, Mãyã e Brahmã juntos são nomeados Ishvara, o Deus pessoal que cria, mantém e dissolve o universo. Como ignorância ou ilusão cósmica, Mãyã desenha um véu sobre Brahmã e também cobre nossa visão, assim, nós vemos somente a diversidade do universo preferivelmente do que uma realidade. Mãyã possui dois aspectos, são eles: avidyã (ignorância) e vidyã (conhecimento). Avidyã conduz o homem para longe de Deus e em direção à mundanidade e aprisionamento pela materialidade, a qual em retorno conduz à paixão e ganância. Vidyã conduz à realização de Deus e encontra expressão em virtudes espirituais. Ambos aspectos são ativos no reino do tempo, lugar e causalidade e talvez sejam relativos. Seres humanos transcendem avidyã e vidyã ao realizar Brahmã , o absoluto.

B Z O mundo de aparências, mudando continuamente, impermanente, de ilusão e decepção, o qual uma mente não iluminada toma como a única realidade. O conceito de mãyã é usado em oposição a este do imutável, absoluto essencial, o qual é simbolizado pelo dharmakãya (trikãya ). O reconhecimento de todo dharmas como mãyã é equivalente à experiência de “despertar” (iluminação, bodhi ) e a realização de nirvãna . De acordo com os mais altos ensinamentos do budismo, como eles foram formulados, por exemplo, no zen, não é atualmente uma ilusão ou decepção olhar o mundo fenomênico como real. A decepção consiste talvez em tomar o mundo fenomênico como sendo imutável e somente realidade e então esquecer a visão do que é essencial. Fundamentalmente, o relativo e o absoluto são um e mãyã (Jap., mayoi , ilusão) e bodhi (iluminação) são um. 272

Moksha H (Moksha), Skt

H A liberação final e libertação de todos os vínculos mundanos, do Karma , do ciclo da vida e da morte ( samsãra ) através da união com Deus ou conhecimento da realidade última. Moksha é o mais alto dos quatro objetivos da vida humana; os outros três são: artha (saúde), kãma (prazer) e dharma (dever). Para o aspirante espiritual, a realização de moksha é o único objetivo da vida.

Nirvãna H B Z (nirvãna ), Skt., lit. “extinção”.

H Um estado de liberação ou iluminação, caracterizado pela fusão do indivíduo transitório em Brahmã . Nirvãna liberta o indivíduo do sofrimento, morte e renascimento e todos os outros vínculos temporais. É a consciência transcendente mais alta, referida no Bhagavad-Gitã como Brahmã-nirvãna , nos Upanishads como turiya , na yoga como nirbja-samãdhi , e no Vedanta como nirvikalpa-samãdhi .

B Z (Pali, nibbãna; Jap., nehan ); o objetivo da prática espiritual em todos os ramos do budismo. Na compreensão do budismo dos primeiros tempos, é esta a saída do ciclo de renascimentos ( samsãra ) e entrada em um modo inteiramente diferente de existência. Requer ultrapassar completamente as três raízes não saudáveis do desejo, ódio e ilusão ( akushala ) e o restante das volições ativas ( samskãra ). Significa liberdade dos efeitos determinantes do Karma . Nirvãna é o incondicionado ( asamskrita ). Suas marcas características são a ausência de nascimento, de existir e de morte. Em Mahãyãna , a noção de nirvãna sofre uma mudança que pode ser atribuída à introdução do ideal de bodhisattva e à ênfase na natureza unificada do mundo. Nirvãna é concebido como singularidade juntamente com o absoluto, a unidade de samsãra e a transcendência. Ele é descrito como habitando na experiência do absoluto, êxtase em conhecer a própria identidade com o absoluto, como livre de apego a ilusões, afetos e desejos (também , parinirvãna ). No ocidente, nirvãna tem sido confundido como mera aniquilação. Mesmo no budismo inicial, o nirvãna não era assim concebido. Em muitos textos, para explicar o que é descrito como nirvãna , é usado o símile de uma chama se extinguindo. O fogo que se apaga não acaba, mas meramente se torna invisível por passar no espaço (ãkãsha ). Desta forma, o termo nirvãna não indica aniquilação, mas preferivelmente entrada em um outro modo de existência. O fogo vem para fora do espaço e retorna de volta para ele. Então, nirvãna é um evento espiritual que toma 273

lugar no tempo mas é também, em uma esfera não manifestada e imperecível, sempre pronto lá. Isto é a “permanência da imortalidade”, a qual não é espacialmente localizável, mas é preferivelmente transcendente, supramundana ( lokottara ) e somente acessível à experiência mística. Então no budismo primevo, nirvãna não é visto em uma relação positiva para o mundo, é somente um espaço de salvação. Em alguns lugares nos sutras uma expressão é usada para nirvãna que significa “alegria”, mas muito mais freqüentemente nirvãna é caracterizado meramente como um processo ou estado de cessação de sofrimento ( duhkha ). Mas isto não deve, entretanto, ser olhado como prova de uma atitude niilística. É preferivelmente uma indicação da inadequação das palavras para representar a natureza do nirvãna , a qual está além da fala e do pensamento, em uma forma positiva. Para o budismo, o qual vê toda a existência como repleta de sofrimento, nirvãna é interpretado como a cessação de sofrimento e, para os budistas, o objetivo de alcançar o fim deste sofrimento é suficiente para justificar o esforço espiritual. Para a prática espiritual, é irrelevante se o nirvãna é um estado positivo ou uma mera aniquilação. Por esta razão, o Buddha declinou de fazer qualquer declaração concernindo a natureza do nirvãna . Em Hinayãna , existem dois tipos de nirvãna distintos, são eles: nirvãna com um resíduo de condicionalidade, o qual pode ser alcançado antes da morte e nirvãna sem condicionalidade, o qual é alcançado na morte ( sopadhishesha-nirvãna, nirupadhishesha-nirvãna ). Em Mahãyãna , por causa da ênfase no ideal de bodhisattva , alcançar o nirvãna permanece em um pano de fundo. Ele não perdeu, entretanto, nada da sua importância, desde que em nenhuma escola do Mahãyãna é a natureza de bodhisattva considerada o objetivo último. A extinção no nirvãna é apenas postergada pelo bodhisattva antes que todos os seres sejam liberados do sofrimento. Aqui, nirvãna toma um caráter positivo, a partir do momento em que ele se torna essencialmente um estado de consciência da própria identidade com o absoluto. Desta forma, enquanto identidade com o absoluto, não se limita à pessoa da experiência, preferivelmente ela é uma vivência sem limite, a qual abarca todas as aparências, incluindo o próprio corpo. Nesta visão, não existe distinção essencial entre samsãra e nirvãna . Aqui, dois tipos de nirvãna são distinguidos: o indeterminado ( apratishthita-nirvãna ) e o completo ( pratishthita-nirvãna ).

Samsãra H B Z (samsãra), Skt., lit. “migração”

H O ciclo do nascimento, morte e renascimento, ao qual são submetidos todos os homens, enquanto eles permanecerem na ignorância de sua identidade com Brahmã .

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B Z O “ciclo das existências”, seguido de renascimento no seio de diferentes condições de existência ( Gati ), as quais um indivíduo não pode se subtrair antes que ele tenha obtido a libertação e atingido o Nirvãna . O aprisionamento no Samsãra é conseqüência das três “Raízes do Doentio” ( Akushala ) que são a inveja ( Dvesha ), o desejo ( Trishnã ) e a ignorância ( Avidyã ). A condição de renascimento é determinada pelo karma de cada um. No Mahãyana , o termo Samsãra designa o mundo dos fenômenos. Ele é considerado como idêntico de natureza ao Nirvãna . A unidade de natureza entre Samsãra e Nirvãna repousa sobre a idéia de que tudo é ilusão; Samsãra e Nirvãna não outra coisa que simples palavras sem conteúdo real, elas são vacuidade (Shûnyatã ). Se consideradas como a verdadeira natureza do mundo e não apenas seu único aspecto fenomenal, observa-se que Samsãra e Nirvãna não são diferentes um do outro. A cadeia de existências não possui um começo definido. O Buddha não se lança jamais nas especulações relativas à origem do Samsãra , pois ele estimou que isso não tinha nenhuma utilidade para obter a salvação. Para poder escapar ao Samsãra e entrar no Nirvãna , é indispensável renascer sob a forma humana. As outras formas de existência não permitem às criaturas colocar fim no seu ciclo, pois elas são incapazes de compreender que o desejo e a ignorância são os motores do Samsãra e, logo, de superar estas forças.

Sannyãsin H (Samnyãsin ), ou Sannyãsi , de sannyãsa .

H Aquele que renunciou ao mundo e vive totalmente sem possessões somente para a realização da liberação ( moksha ). A perda do sannyãsin de possessões consiste não apenas em total pobreza material mas também no que o misticismo cristão chama de “pobreza de espírito”, isto é, liberdade de tais noções dualísticas como bom e mau, desejo e repulsão, medo e avidez. Skandha B Z Skt. ( Pali, Khanda ), lit. “grupo, agregados, amontoados”; termo para os cinco agregados, os quais constituem a totalidade do que é geralmente conhecido como “personalidade”.

B Z Eles são (1) corporeidade ou forma ( rupa ), (2) sensação ( vedanã ), (3) percepção (Skt., samjnã; Pali, sannã ), (4) formações mentais ( samskãra ), (5) consciência ( vijãna ). Estes agregados são freqüentemente referidos como “agregados do apego” ( upãdãna-skandha ), desde (excluindo os casos de e Buddhas) ânsia ou desejo ( trishnã ) ao fazer uma vinculação entre eles, exerce uma atração para si. Faz, então, deles objeto de apego e conduz ao sofrimento. As características dos Skandhas são nascimento, velhice, morte, duração e mudança. Eles são 275

vistos como não possuindo essência ( anãtman ), impermanentes ( anitya ), vazios ( shunya ) e dominados pelo sofrimento ( duhkha ). O agregado de corporeidade (forma e matéria) é composto de quatro elementos, são eles: o firme, fluido, aquecimento e movimento ( mahãbhuta) dos órgãos, do sentido, seus objetos, etc. A sensação agregada consiste de todas as sensações, desgradáveis, agradáveis, ou neutras. Percepções incluindo percepções de forma, som, cheiro, paladar, impressões corporais, e objetos mentais. Os agregados das formações mentais (também traduzidos “poderes psicológicos da forma” ou “impulsos mentais”) incluindo a maior parte das atividades mentais tais como volição, atenção, discriminação, alegria, felicidade, equanimidade, determinação, esforço, compulsão, concentração, e etc. Os agregados da consciência incluem seis tipos de agregados sendo eles a consciência de ver, ouvir, cheirar, do paladar, sensação corporal e consciência mental, todas das quais surgem do contato entre o objeto e o órgão correspondente. As características de sofrimento e impermanência dos cinco Skandhas formam um tema central da literatura budista. Sofrimento é baseado na impermanência e transitoriedade. A partir da impermanência da personalidade composta de cinco Skhandas , o budismo deriva a ausência de um Eu ( anãtman ). Qualquer coisa caracterizada pela impermanência e então, sofrimento não pode constituir um eu ( anãtman ), assim de acordo com a visão indiana, isto implica em permanência e liberdade de sofrimento. O conhecimento da “inessencialidade” dos Skandhas prontamente leva ao insight que conduz à liberação. Nyãnatiloka explica quais as conseqüências que este insight tem para a concepção da existência de um ego: “O que é denominado existência individual é em realidade nada, mas um mero processo daqueles fenômenos mentais e físicos, um processo que desde tempos imemoriais está seguindo e que, mesmo após a morte, irá ainda prosseguir por impensáveis períodos de tempo. Esses cinco grupos [agregados], entretanto, nem singularmente nem coletivamente constitui um Eu- dependente, real Ego-entidade ou personalidade ( atta [Skt. Ãtman ]), nem existe para ser encontrada qualquer tal entidade a parte deles. Desde que a crença em uma tal Entidade-Egóica ou Personalidade, como real em último sentido, prova ser uma mera ilusão (Nyãnatiloka 1972, p. 83).

Vedãnta H Skt.; um composto de Veda e anta : “fim”; o fim, isto é, a conclusão do Vedas , como contido nos Upanishads . As suas revelações espalhadas e seus profundos insights , os quais estão em tudo relacionados com Brahmã e ãtman , são sumarizados por Bãdarãyana em seu Vedãnta-Sutra , o qual forma as bases da filosofia de Vedãnta (Uttara-Mimãmsã ). Radhakrishnan escreveu em sua introdução para um capítulo sobre o Vedãnta-Sutra em seu 276

trabalho Indian Philosophy (1962): “De todos os sistemas hinduístas de pensamento, a filosofia Vedãnta é a que está mais proximamente conectada com a religião indiana e de uma ou outra forma ela influencia a visão de mundo de cada pensador hindu no tempo contemporâneo”. Há três ramos principais de Vedãnta desenvolvidos: (1) Advaita-Vedãnta (não-dualismo), cujos maiores professores são Gaudapãda , Shankara (o mais importante), Padmapãda , Sureshvara , e Vidyãranya , (2) Vishishtãdvaita-Vedãnta (não-dualismo qualificado), cujo chefe representativo é Rãmãnuja e (3) Dvaita-Vedãnta (Vedãnta dualístico ), cujo chefe representativo é Madhva .

Yoga H B Skt., lit. “yoga”. No hinduísmo, este termo significa subordinar a si mesmo a Deus, procurando união com ele. Desde que qualquer caminho para Deus pode ser chamado yoga , existem no hinduísmo muitos nomes para diferentes caminhos da yoga que acomodam a constituição física e moral básica dos que buscam. Aqueles caminhos hindus que ficaram mais conhecidos no ocidente e com uma elaboração mais completa são: Karma-yoga , ação abnegada; bhakti-yoga , amor devoto de Deus; rãja-yoga , a “yoga real”, a qual é idêntica com a yoga de Patañjali , uma das seis darshanas (escolas de filosofia indiana); tântrica, kundalini-yoga , jñana-yoga , o caminho do conhecimento abstrato. No ocidente, o termo yoga usualmente se refere a hatha-yoga , a qual é baseada em exercícios físicos, ãsana em conjunção com exercícios de respiração, prãnãyãma . Esta yoga “física”, entretanto, é olhada na Índia somente como uma prática preparatória para as formas espirituais de yoga que trabalham com várias técnicas de meditação. Como um meio de conhecer Deus, a yoga, em seu sentido mais extenso, não se encontra confinada à Índia. Todos os que buscam pela experiência de unidade fundamental (a denominada experiência mística), sejam eles xamans ou místicos cristãos, são yoguis neste sentido. Então as práticas tântricas do budismo tibetano são também denominadas de yoga , e seus grandes santos são chamados yoguis . Rio de Janeiro, 30 de junho de 2002

Maria Theresa da Costa Barros Doutoranda do Curso de Doutorado em Saúde Coletiva na Área de Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro