PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Nordan Manz

Metáforas políticas no gênero : A metamorfose dos signos na mídia japonesa

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo 2013 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Nordan Manz

Metáforas políticas no gênero tokusatsu : A metamorfose dos signos na mídia japonesa

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica na área de concentração Signo e Significação das Mídias pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profª. Drª. Christine Greiner

São Paulo 2013

BANCA EXAMINADORA

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Para meus professores e colegas que me ajudaram a perceber o mundo através de um novo prisma. METÁFORAS POLÍTICAS NO GÊNERO TOKUSATSU : A METAMORFOSE DOS SIGNOS NA MÍDIA JAPONESA

RESUMO Esta dissertação apresenta exemplificações do tokusatsu , gênero que faz parte do cinema e televisão japoneses, identificando como, a partir da 2ª Guerra Mundial, surgiram alguns dos mais importantes personagens e suas metáforas políticas. Após a emergência da chamada cultura pop, muitas destas metáforas foram descontruídas e despolitizadas. O objetivo do trabalho é analisar o processo evolutivo destas produções, focando nas mudanças epistemológicas, cujo principal sintoma é, justamente, a banalização das questões que marcaram o início do movimento. A fundamentação teórica parte da obra de Yoshikuni Igarashi (2011) que analisou o nascimento dos corpos monstruosos em diversas mídias japonesas (TV, cinema, mangá, etc.), assim como as representações simbólicas da guerra e do pós-guerra. Além disso, partimos das teorias de George Lakoff e Mark Johnson (2002) acerca das metáforas cognitivas e outras bibliografias específicas referentes ao cinema japonês. Como corpus da pesquisa foram analisadas quatro séries japonesas de cinema e televisão lançadas entre 1954 e 1985: Godzilla (1954) de Ishiro Honda, primeiro filme a apresentar um monstro gigante; (1966) de Eiji Tsuburaya, que apresenta discussões de cunho ecológico; a série de P-Production, Spectreman (1971) que também problematiza temas ecológicos e doutrinação dos corpos; e, finalmente, O Fantástico Jaspion produzido pela , durante a década de 1980 e teve ampla divulgação no Brasil. Espera-se contribuir com uma bibliografia crítica pouco conhecida no Brasil e que analisa as tensões entre produções midiáticas japonesas de cunho político que, gradativamente, parecem tornar-se mero entretenimento e objeto de consumo, amplamente disseminadas pela cultura J- POP.

Palavras-chave : tokusatsu , cinema japonês, metáforas cognitivas.

POLITICAL METAPHORS IN THE TOKUSATSU GENRE: SIGN METAMORPHOSIS IN THE JAPANESE MEDIA

ABSTRACT This dissertation presents tokusatsu examples, a genre that is part of the Japanese cinema and television, identifying how, since World War II, some of the most prominent characters and political metaphors aroused . After the emergence of the so called pop culture, many of these metaphors were deconstructed and depoliticized. The goal is to analyze the evolutional process of these productions, focusing on the epistemological changes, whose main symptom is, precisely, the trivialization of the issues that defined genre landmarks. The theoretical grounding rises from the works from Yoshikuni Igarashi (2011) who analyzed the birth of monstrous bodies in several Japanese media (TV, movies, , etc.), as well as war and post-war symbolic representations. Beyond that, we depart from George Lakoff e Mark Johnson (2002) theories surrounding on cognitive metaphors and another specific bibliography relative to the Japanese cinema. As the research corpus four cinema and television series launched between 1954 and 1985 were analyzed: Godzilla (1954) by Ishiro Honda, first movie to present a giant monster; Ultraman (1966) by Eiji Tsuburaya, which presented discussions with ecological scope; the P-Production series, Spectremen (1971) which also questioned ecological themes and bodies control; and, finally, The fantastic Jaspion , produced by Toei Company during the 1980 decade, which received great disclosure in Brazil. We hope to contribute with a critical bibliography almost unknown in Brazil, which analyzes media tensions in Japanese political productions that, gradually, seemed to become only entertainment and consume object, widely disseminated by J- POP culture.

Keywords : tokusatsu , Japanese cinema, cognitive metaphors.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 4

CAPÍTULO 1 ...... 7

1.1. Contextualização histórica do Tokusatsu ...... 7

1.2. O papel dos monstros ...... 21

CAPÍTULO 2 ...... 35

2.1. A metáfora como fundamento do tokusatsu ...... 35

2.2. Análise das primeiras séries e seus desdobramentos políticos ...... 39

2.3. Redes de Consumo e infantilização: a soberania do merchandising ...... 79

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 109

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 112

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS ...... 113

INTRODUÇÃO

A presente dissertação foi gerada a partir da vontade de entender o processo de construção dos personagens e narrativas das séries e filmes do gênero tokusatsu , com um olhar voltado para as fontes de inspiração de seus autores e seus contextos. A princípio, as séries e filmes pareciam ser amálgamas de histórias de super-heróis e de ficção científica, oriundas dos EUA e da Europa, com o folclore japonês. Entretanto, no desenvolvimento do projeto, durante as primeiras análises dos objetos de estudo, algo mais profundo emergiu. Essas produções foram se revelando extremamente marcadas por questões políticas, representadas de forma metafórica. Para um olhar mais superficial, tais questões passavam despercebidas, criando a falsa percepção de que o gênero tokusatsu possuía apenas produtos voltados para o entretenimento do público infantil. O corpus da pesquisa foi demonstrando que tal gênero era um campo muito mais rico, propício a um estudo de ordem comunicacional e semiótica. Buscou-se entender de forma mais minuciosa como se davam as construções desses personagens, quais as influências dos contextos social, político e econômico em que estavam inseridos, e como essas questões eram representadas de forma metafórica nas produções estudadas. Deste modo, o trabalho foi dividido em dois capítulos, com o intuito de tornar mais claro o processo de construção e desconstrução dessas metáforas, mais especificamente, nas produções selecionadas como corpus do trabalho. O primeiro capítulo é dividido em duas partes. Na primeira parte, realizamos uma contextualização histórica apresentando o desenvolvimento das produções do gênero, seus principais personagens, franquias e produtoras responsáveis. A partir de 1954, com o filme Godzilla , nascem os primeiros super-heróis japoneses, como – uma série de curtas metragens que ganhou versão adaptada para o mercado estadunidense. Abordamos os primeiros personagens criados para a televisão, como Gekko Kamen , da produtora Toei Company, mais tarde responsável pela criação de franquias de grande sucesso. A primeira parte prossegue demonstrando a importância do gênero no Japão e no mundo. Para dar continuidade à contextualização, descrevemos o surgimento das principais franquias, como Ultraman , da , com dezenas de séries e filmes, que gera novas produções com o herói alienígena enfrentando monstros gigantes até os dias de

4 hoje; Spectreman da P-Productions que seguia o mesmo estilo de Ultraman ; da Toei Company e da mesma produtora, que também geraram dezenas de produções; e finalmente os Metal Heroes , também da Toei Company, que na quarta série da franquia apresentaria um dos personagens mais emblemáticos do gênero para o público brasileiro: O Fantástico Jaspion . Este personagem retomaria na década de 1980 a questão dos monstros gigantes. A pesquisa enfatiza, ainda, a importância do Tokusatsu no mundo, ao apresentar um pequeno panorama das séries e filmes diretamente inspiradas no gênero produzidas fora do Japão, muitas vezes por iniciativa dos próprios fãs, como Five (França), Insector Sun (Brasil), Squadron Ranger (Tailândia), dentre outros. A segunda parte do primeiro capítulo trata da figura do monstro, amplamente utilizada no gênero e emblemática para o público. Os monstros, carregados de significações, foram selecionados como ponto de partida para o estudo das metáforas dentro do gênero tokusatsu . Um panorama acerca dessas figuras é traçado a partir de personagens mitológicos e das primeiras aparições da figura do monstro na literatura. Deste modo, a própria construção da figura monstruosa é colocada em discussão, buscando marcar as especificidades dos monstros dentro deste gênero. O segundo capítulo é dividido em três partes. Na primeira, aproveitamos os desenvolvimentos do capítulo anterior e procuramos instalar a metáfora como fundamento do gênero tokusatsu , a partir das teorias do linguista George Lakoff e do filósofo Mark Johnson. Os autores desenvolvem a perspectiva de que as metáforas não são apenas figuras de linguagem, mas são usadas cotidianamente como modelos cognitivos. A segunda parte pontua as produções que compõem o corpus da pesquisa: Godzilla , Ultraman , Spectreman e O Fantástico Jaspion , demonstrando como as metáforas usadas nos filmes correspondem aos modos de representação dos problemas socioconômicos abordados em Godzilla, Ultraman, Spectremen e Jaspion . Apresentamos também um breve panorama do desenvolvimento do cinema japonês do pós-guerra. Para tanto, a pesquisa seleciona trechos e episódios específicos que ajudam a entender a rede político-semiótica envolvida nessas produções. Na terceira parte do segundo capítulo passamos a discutir a desconstrução das metáforas originalmente elaboradas no tokusatsu . Apresentamos como principal agente

5 dessa desconstrução a rede de consumo que se desenvolve em torno de tais produções. Produtos que fazem uso da imagem dos personagens mas, para alcançar um número maior de consumidores, acabam infantilizando e tornando mais acessíveis suas imagens/figuras, personalidades e narrativas. Como exemplos da desconstrução das metáforas, analisadas neste capítulo, apresentamos os filmes subseqüentes de Godzilla e sua antropomorfização, a série animada do mesmo personagem, e itens como o “porta papel higiênico” com a imagem do monstro. A utilização de Ultraman como garoto propaganda de produtos eletrônicos, além de tantos outros itens baseados nos personagens Spectreman e Jaspion, que alteram as ideias primordiais de seus criadores, também nos servem como parâmetro de análise. Nas considerações finais elencamos uma série de problemas, a serem aprofundados em etapas futuras da pesquisa, tendo em vista a complexidade das discussões aqui apresentadas.

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CAPÍTULO 1

1.1. Contextualização histórica do tokusatsu

A palavra japonesa tokusatsu é uma contração da expressão tokushu kouka satsuei , ou “filme de efeitos especiais” em tradução livre. O termo é usado para classificar filmes e seriados japoneses em live-action (produções audiovisuais com atores, como o cinema tradicional) que fazem uso intenso de técnicas de efeitos visuais e de efeitos especiais. Em geral, os tokusatsu são marcados por temáticas ligadas à ficção científica e à fantasia , protagonizadas por monstros gigantes ( Eiga ), por heróis gigantes ( Kioudai Shiriizu ), ou por super-heróis de transformação ( Henshin Horo Shiriizu ), nomenclaturas costumeiramente usadas pelos fãs do estilo para definir cada vertente. A origem do gênero remonta ao antigo teatro Kabuki , que já apresentava cenas de ação e luta, e o Bunraku, que já trabalhava com marionetes, uma das primeiras técnicas de efeitos especiais. Entretanto, foi no início da década de 1950 que o tokusatsu ganhou forma a partir da proposta de Eiji Tsuburaya, um reconhecido artista de efeitos especiais, e do diretor Ishiro Honda, referente à produção de um filme que apresentasse um monstro gigante enfurecido, capaz de destruir tudo em seu caminho. O resultado dessa parceria é o filme Godzilla (1954). Inicialmente, seus idealizadores utilizariam para a produção do monstro a técnica do stop motion , a mesma utilizada em King Kong 1, filme que os havia inspirado na criação de Godzilla . Entretanto, o alto custo da técnica os levou a buscar uma alternativa: o suitmation foi a solução encontrada – técnica que combina utilização de miniaturas a um ator vestido com uma roupa de borracha correspondente.

1 Produção de 1933, dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. 7

Figura 1. Godzilla de 1954 – primeiros passos do gênero Tokusatsu .

O impacto de Godzilla na cultura japonesa foi grande. Ao longo dos anos, a figura do monstro e a técnica de suitmation seriam muito utilizadas nas subsequentes produções de tokusatsu . Após o sucesso do filme muitos estúdios passariam a investir em filmes de monstros, além de começarem a dar os primeiros passos em uma variação do estilo, os filmes de super-heróis. Em 30 de Julho de 1957, a Company, formada por dissidentes da Company, lançou o primeiro super-herói live-action japonês, Super Giant . A série de curtas metragens produzida para cinema foi um sucesso, gerando oito sequências. Na década de 1960, a empresa Walter Manley adquiriu os direitos internacionais da série e alterou seu nome para Starman . A distribuidora Medallion Films lançou os nove filmes em versões reeditadas e condensadas em quatro longas metragens.

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Figura 2. Supaa Giant – primeiro super-herói do cinema japonês.

Em 1958, o primeiro super-herói produzido para a televisão japonesa é lançado pela Toei Company. Gekko Kamen teve muito êxito entre o público infantil, que consumia com entusiasmo os produtos relacionados ao personagem, como pistolas, capas e óculos escuros. A série foi produzida de 24 de fevereiro de 1958 a 5 de julho de 1959, e contou com 130 episódios. Gekko Kamen também foi adaptado para o cinema, além de ganhar uma versão em mangá, e em 1972 uma versão em animação. A Toei Company seria responsável mais tarde pela produção de dezenas de séries e filmes do gênero tokusatsu , como as franquias Kamen Rider e Super Sentai , e obteve muito sucesso também no mercado de através da Toei .

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Já em 1960 foi ao ar pela NET (TV Asashi) National Kid , série produzida pela Toei Company e criada pelo autor de mangás, Daiji Kazumini, que mais tarde seria responsável pela criação do personagem Spectreman . A produção feita por encomenda pela National Eletronics Inc (Panasonic) tinha como objetivo divulgar a marca. No Japão, National Kid foi exibido de 4 de agosto de 1960 a 27 de abril de 1961. No Brasil a série estreou em 1964 e ficou no ar até o início de 1970, através da Rede Bandeirantes e da TV Record. National Kid teve um total de 39 episódios filmados em preto e branco e mostrava a Figura 3. Gekko Kamen – primeiro herói da TV japonesa. luta do professor Masao Hata/ National Kid contra os ataques dos Incas Venusianos, Seres Abissais, Seres Subterrâneos e os Zarrocos. Apesar da grande popularidade da série no Brasil, no Japão não teve o mesmo sucesso. Em 2009 foi lançada no Brasil pela Focus Filmes uma caixa com a saga completa do personagem.

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Figura 4. National Kid – primeiro Tokusatsu .

Na década de 1960, devido aos avanços tecnológicos, principalmente o advento da televisão em cores, o tokusatsu encontraria um cenário bastante favorável para sua expansão, com o investimento de muitas produtoras no gênero. Magma Taishi , de 1966, Vingadores do Espaço , no Brasil, estrearia a transmissão a cores na TV japonesa, uma evidência da importância do gênero no país. A série foi produzida pela P-Productions e apresentada pela TV Fuji, chegando ao fim em 1967. No Brasil foi ao ar em 1973 pela Rede Tupi, sendo reprisada pela Rede Record no fim da década de 1970. A produção apresenta o herói gigante vindo do espaço que luta contra monstros igualmente gigantes. A série ganharia anos mais tarde uma adaptação para o mercado dos EUA com o nome de Space Avengers . O personagem, criado por Osamu Tezuka 2, foi originalmente publicado na revista Shonen Gahosha Magazine , com o nome de Ambassador Magma .

2 Osamu Tezuka, criador de Astro Boy e A Princesa e o Cavaleiro, é considerado o responsável por uma nova proposta estética e estrutural para os mangás, posteriormente adotada em grande âmbito. 11

Figura 5. Vingadores do Espaço – primeira transmissão em cores da TV japonesa.

Em 1963, Eiji Tsuburaya, responsável pelos efeitos especiais de Godzilla , cria sua própria produtora, a Tsuburaya Productions, e lança o seriado Ultra Q , que apresentava em seus episódios o encontro com o sobrenatural e seres bizarros. Percebendo a popularidade dos episódios que mostravam monstros gigantes, Tsuburaya propõe um seriado em que um humanoide alienígena gigante combatesse, a cada episódio, esses monstros que tanto agradavam o público. Surge assim, a série Ultraman , o segundo programa da TV japonesa a ser transmitido em cores, exibida entre junho de 1966 e abril de 1967. No Brasil foi ao ar

12 ainda na década de 1960 pela TV Tupi e depois reprisada até a década de 1980 pela Rede Bandeirantes, TV Record, TV Manchete, TVS e SBT.

Figura 6. Ultraman – franquia de grande sucesso.

A série conta a história do policial da distante Nebulosa M-78, Ultraman , que durante sua missão de escoltar o monstro Bemlar, chega acidentalmente à Terra e atinge a nave do oficial da Patrulha Científica, Shin Hayata, que não suporta os ferimentos e morre. Sentindo-se responsável pelo incidente, Ultraman funde seu corpo ao do oficial trazendo-o novamente à vida. Deste modo, acaba conferindo a Hayata – que passa a ser uma espécie de hospedeiro – o poder de alternar sua forma com o corpo gigantesco de Ultraman , combatendo os ataques de monstros. Mais tarde a P-Productions produziria uma nova série protagonizada por um herói gigante que também se tornaria popular no Brasil: Spectreman . O seriado idealizado por

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Tomio Sagisu 3 foi exibido entre 1971 e 1972 pela TV Asahi e contou com 63 episódios que narravam a luta do androide Spectreman contra os simioides (símios humanos) Dr. Gori e Karas, seu ajudante. No Brasil foi exibido na década de 1970 pela TV Record e reprisado em 1980 pela TVS (atual SBT).

Figura 7. Spectreman – herói gigante da P-Productions.

Spectreman foi concebido como Choujin Elementman . No piloto da série, diferente da roupa metálica com a qual o personagem ficou conhecido, Elementman usava um uniforme em que predominava a cor vermelha, ficando a boca do ator à mostra. Em 2 de janeiro de 1971, a série estreava com o título Uchu Enjin Gori (Gori, o Homem-Macaco Espacial ). Entretanto, devido à falta de popularidade do título, este foi alterado a partir do episódio 21 para Uchu Enjin Gori Versus Spectreman e finalmente viria a se chamar apenas Spectreman a partir do episódio 40 . Ainda na década de 1970, outro sucesso dos mangás ganharia adaptação para a TV, Kamen Rider . O personagem criado por , que havia sido assistente de

3 Tomio Sagisu usava o pseudônimo de Souji Ushio quando assinava as produções de mangás. 14

Osamu Tezuka, teve 98 episódios e foi exibido entre 3 de abril de 1971 e 10 de fevereiro de 1973 com produção da Toei Company.

Figura 8. Kamen Rider – franquia de grande sucesso da Toei Company.

O grande sucesso da série levou à criação de outras versões do herói. A segunda série lançada foi Kamen Rider V3 que também obteve sucesso, estabelecendo uma franquia que dura até hoje, assim como Ultraman . O argumento das primeiras séries da franquia geralmente apresentava um jovem com o poder de se transformar em um ciborgue mutante com visual inspirado em insetos, cuja missão era enfrentar alguma organização do mal. Duas séries da franquia foram exibidas no Brasil: e Kamen Rider Black RX , ambas pela Rede Manchete durante a década de 1990. Em 2009 foi ao ar tanto no Brasil como nos EUA a adaptação estadunidense de , Kamen Rider: Dragon Knight , no Brasil, Kamen Rider: O Cavaleiro Dragão. Outra franquia de sucesso da Toei Company, Super Sentai , se iniciaria na década de 1970 com a série Himitsu Sentai GoRanger :

(...) cinco super-heróis adolescentes, vestindo uniformes colantes coloridos, refletindo códigos que os japoneses relacionavam com sexo e características de personalidade. Enquanto o azul escuro é uma cor exclusiva de homens e rosa de mulher, amarelo e verde são cores unissex.

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O vermelho que no ocidente é considerada uma cor ‘feminina’, é uma cor considerada masculina e que indica a liderança - portanto o líder do grupo era o Ranger Vermelho (...). (SATO, 2007, p. 320 ).

Figura 9. Himitsu Sentai GoRanger – primeira série da franquia Super Sentai .

Tanto Himitsu Sentai GoRanger como JAQK Dengeki Tai foram séries criadas por Shotaro Ishinomori, que deixou de fazer parte da franquia em 1979, ano em que estreava Battle Fever J . Esta série apresentou pela primeira vez o termo Super Sentai e a figura do robô gigante, elemento que seria utilizado em todas as produções subsequentes. Foi a partir de Battle Fever J que os Super Sentai ganhariam uma nova série a cada ano. A partir de 1982, a Toei Company dá início à franquia chamada de Metal Hero, com Uchuu Keiji Gyaban (Policial do espaço Gavan ), que durou até 1998, com Robotack . Esta é a franquia da qual Jaspion , série analisada neste trabalho, faz parte. A Toey Company produziu também outras séries de sucesso, como Sharivan , Metalder , Jiraiya e Jiban . O argumento geral baseava-se no personagem de um jovem policial da Terra treinado no espaço para se tornar um policial espacial. Trajando uma armadura metálica e pilotando uma nave de combate, retornava à Terra para enfrentar alguma sociedade ou clã maligno que almejava conquistar o universo.

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Figura 10. Sharivan , Gavan e Shaider – trilogia original da franquia Metal Hero .

O tokusatsu influenciou produções em vários países, o que demonstra relevância do gênero dentro da cultura pop mundial. Na França, a principal série foi Jushi Sentai (Esquadrão dos Mosqueteiros France Five ), cujo nome foi posteriormente mudado para Shin Kenjushi France Five (Novo Esquadrão de Mosqueteiros France Five). Trata- se de uma microsérie francesa do gênero criada e produzida por Buki X-4 Productions na década de 2000, em homenagem aos Super Sentais japoneses, muito populares na França na década de 1980. Até hoje foram ao ar seis episódios, sendo o último em 2013. A série foi exibida no Japão, porém não fez muito sucesso, apesar da participação do cantor Akira Kushida , um dos cantores japoneses de temas de tokusatsu mais populares do mundo, responsável por interpretar músicas de séries como Jaspion , Jiraiya e Jiban .

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Figura 11. France Five – Tokusatsu produzido na França.

No Brasil, talvez o principal representante seja Mega Powers , série criada por Levi Luz e produzida pela empresa carioca Intervalo Produções em 2008, em homenagem aos Super Sentais japoneses. A série teve uma temperada com três episódios e deixou de ser produzida. No início os episódios foram lançados em DVD pela Vídeo Brinquedo , depois passaram a ser exibidos online pela WTS Kids, em blocos.

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Figura 12. Mega Rangers – tokusatsu nacional.

Outra série importante no Brasil foi Insector Sun , web série brasileira criada pela KRI Produções Entretenimento em 2000, baseada nos quadrinhos de super-heróis nacionais, da mesma produtora. A série teve uma temporada de 12 episódios, com previsão de lançamento da segunda, com mais 12 episódios.

Figura 13. Insector Sun – tokusatsu nacional produzido por fãs.

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Ainda no Brasil foi produzida outra web série chamada Blast Rangers , criação de fãs do Rio Grande do Sul com o intuito de manter vivo o estilo no país, tendo Bruno Seidel Neto como idealizador. A web série foi criada em 1993 e gravada em 2002. Já SFX Drama Erexion é uma série nipo-coreana, produzida pela Chungam entretenimento em 2006. A série é exibida no canal da KBS 2 e conta a história de sete personagens cujas caracterizações são baseadas nos sete dias do calendário asiático: sol, lua, fogo, água, madeira, metal e terra. Squadron (figura abaixo) é uma série de televisão tailandesa de super-herói similar ao tokusatsu japonês, criada pela Broadcast Thai Television. Liderados pelo Dr. Earth, cinco jovens esportistas se unem para proteger a Terra do ataque de uma tribo maligna alienígena. A primeira temporada da série estreou em 2006 Figura 14. Erexion – série nipo-coreana. e foi ao ar na Tailândia Canal 3. A segunda temporada, intitulada Sport Ranger 2 , estreou em 2012 no Canal 3. Kai Jia Yong Shi é uma série chinesa criada em 2009, inspirada nas séries japonesas. A série apresenta influências estéticas dos super sentais e dos metal heroes . Conta a história de cinco jovens descendentes de cinco diferentes Figura 15 . Squadron Sport Ranger – Tokusatsu tailandês.

20 tribos, que juntos devem defender a Terra das ameaças do Imperador da Escuridão e seus Minions. Foi produzida em 2009 e contou com 52 episódios. Teve seus direitos adquiridos pela distribuidora estadunidense Televix, ganhando o nome ocidental de Armor Hero . Zaido: Pulis Pangkalawakan (Zaido: The Space Police ) é uma série de origem filipina, concebida para ser continuação da série japonesa Uchu Keiji Shaider , da Toei Company. A produtora japonesa recusou a ideia, mas permitiu que a série fosse criada e divulgada como um spin-off – uma série derivada diretamente de outra –, com uma passagem de tempo de vinte anos em relação aos acontecimentos da série japonesa. A série foi produzida pela GMA Network e rendeu apenas seis episódios para a TV, realizados entre 2000 e 2013.

1.2. O papel dos monstros

Apresentado o panorama geral do universo dos tokusatsu , agora traçaremos o recorte preciso dos objetos a serem analisados neste trabalho. A produção do gênero tem uma orientação geral calcada na utilização dos efeitos especiais, mas internamente é bastante diferenciada no que diz respeito às linhas criativas. Assim, procuramos uma delimitação que nos permitisse pensar a produção conceitual e os significados dos tokusatsu , através do aprofundamento de uma de suas perspectivas. Subsidiariamente ao trabalho com efeitos especiais que define o gênero e o nomeia, como se viu acima, as franquias definem parâmetros de composição de roteiro que naturalmente acabam por engendrar padrões de desenvolvimento criativo e, por conseguinte, significações típicas para cada franquia em particular. Não adotaremos simplesmente o viés de uma franquia específica, pois seria improdutivo, uma vez que a profusão de produções em cada uma das linhas de franquia tornaria difícil uma abordagem científica capaz de redundar em conclusões satisfatórias, dotadas de validade acadêmica. No âmbito da procura por uma delimitação produtiva, na fase de mapeamento geral do gênero tokusatsu , uma possibilidade de recorte surgiu diretamente da pesquisa de linhas teóricas a serem adotadas neste trabalho. Através do estudo de textos de George Lakoff e Mark Johnson, mais especificamente do livro Metáforas da vida cotidiana (2002), a adoção da metáfora surgiu como uma forma precisa de abordagem de criações artísticas, pensada

21 como um padrão identificável para o pensamento e para a realização de ações, e não apenas como um recurso estilístico. No capítulo seguinte a abordagem dos autores supracitados será desenvolvida. Por isso, aqui nos ateremos a apenas pontuar esses conceitos de Lakoff e Johnson para que se possa entender como eles moldaram a definição do recorte temático adotado. A postulação de que a metáfora transcende seus usos e efeitos estilísticos foi o argumento que nos fez, primeiramente, buscar metáforas presentes nos tokusatsus . Alguns padrões narrativos que redundam em metaforizações passíveis de serem analisadas: o eterno dialogismo entre o bem e o mal; o papel do herói, nos moldes da jornada do herói conforme conceituada por Joseph Campbell; a formação de equipes de combatentes e a utilização de cores simbólicas. Dentro do vasto universo metafórico descoberto, um em especial chamou-nos atenção: o amplo uso da figura dos monstros nas narrativas. Em uma parte bastante considerável do gênero, os monstros aparecem como antagonistas, tornando-se figuras balizadoras das histórias. Em um ambiente narrativo marcado pela presença de heróis que combatem forças malignas, os monstros representam um recurso retórico poderoso, colocando à frente dos protagonistas um desafio de grande porte, extremamente difícil de ser superado. José Gil em seu livro “Monstros” (2006) realiza uma análise sobre a composição da figura monstruosa que pensamos primordial para o entendimento do significado da presença dos monstros no tokusatsu . Portanto, passamos a expor aqui seu ponto de vista. Cotejando alguns autores, Gil apresenta dois pontos fundamentais com relação à figura do monstro: o fato dos monstros serem pouco vistos e o fato de serem sinais de um extraordinário. De acordo com o autor, estes dois fatores são ligados ao olhar. Os monstros seriam entidades que se ocultam, mas que, ao mesmo tempo, quando se dão a ver, oferecem uma superabundância. Segundo José Gil, tal efeito se dá porque “um monstro é sempre excesso de presença” (2006, p. 75). O monstro é visto pelo autor como uma combinação de elementos que redunda em uma imagem que “(...) contém sempre mais substância que uma imagem vulgar” (2006, p. 75). Conforme se verá, isso é muito importante na concepção dos monstros do tokusatsu , pois, tradicionalmente, a fisiologia de seus monstros é orientada

22 pelo acúmulo de substâncias naturais e/ou não-naturais, o que gera justamente a impressão do excesso de substância e ou presença. Ainda segundo José Gil, essa característica peculiar dos monstros - que aparece com proeminência nos monstros do gênero – confere a eles “uma autêntica vocação para representação” (2006, p. 76 ). Desse modo, fica claro que a composição da figura monstruosa não é fruto de um simples acúmulo desordenado, mas obedece a um sentido que, mesmo subterrâneo, se torna marcante enquanto arquitetura de significação. Essa retórica ficará mais clara quando discorrermos a respeito da presença dos monstros nos filmes e séries que compõem nosso corpus de pesquisa. Outra colocação importante para nós advinda de Gil é a afirmação de que o monstro é “(...) ao mesmo tempo, absolutamente transparente e totalmente opaco” (2006, p. 78 ). Segundo o autor, encarar um monstro é ter a atenção definitivamente capturada, o olhar “(...) paralisado, absorto num fascínio sem fim (...)” (2006, p. 78 ). Ainda, essa extrema absorção seria conjugada com uma impossibilidade real de conhecimento a respeito do que se vê, pois o monstro nada revela, sendo uma fonte de informação não codificável, uma espécie de alfabeto desconhecido que não se pode desvendar. Assim, surge uma perspectiva sobre o monstro que é a do extraordinário materializado e, mais importante ainda para nossos objetivos, de um extraordinário que se esconde e que, quando aparece, revela. Tal processo de construção de sentidos está no cerne da composição da metáfora enquanto instrumento de linguagem , o que traz à tona sua função original. É importante perceber, também, que é justamente o funcionamento das metáforas em sua função original de significação enviezada e paralela o que nos aproxima dos conceitos de Lakoff e Johnson que utilizaremos como base analítica. Esse processo também se revelará como estrutura de construção narrativa das próprias séries e filmes aqui analisados, uma vez que os monstros figuram justamente como entidades que, com sua magnitude de extraordinário, expõem o que se pretende ocultar, mas que não pode ser verdadeiramente ocultado. A profusão de monstros nos tokusatsu tem sua origem no que se convencionou chamar, no contexto japonês, de Kaiju Eiga , ou “filmes de monstros”. Estes filmes tiveram grande impacto cultural, tornando-se muito populares. Etimologicamente a expressão comporta as seguintes significações: a palavra japonesa Kaiju pode ser traduzida como

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“besta estranha” e tornou-se uma expressão muito comum no universo do tokusatsu ; a palavra Eiga significa “filme”. Essas significações da expressão serão, no desenvolvimento deste item, bastante importantes, com ecos na análise das metáforas a ser apresentada no capítulo a seguir. Godzilla , de 1954, foi um dos primeiros filmes de monstro do mundo e o pioneiro no Japão. À época do lançamento do filme, a expressão tokusatsu ainda não fora cunhada, mas a obra certamente influenciou o gênero, dando a primeira forma a alguns de seus pressupostos e instalando o monstro como uma de suas figuras centrais. Ghidorah, Mothra, Gamera, monstros antagonistas de filmes japoneses, passaram a fazer parte do imaginário popular não só no Japão, mas de fãs ao redor do mundo.

Figura 16. Ghidorah – a onda dos monstros no cinema japonês.

Na imagem acima pode-se facilmente perceber um atributo ligado à figura monstruosa que comparece nos filmes de monstros japoneses e nos tokusatsu de modo muito marcante: os monstros, via de regra, são proporcionalmente muito maiores e mais fortes que os heróis, tornando-se, assim, entidades amedrontadoras. Devido ao tamanho e à força, os monstros impõem-se ainda como obstáculos incontornáveis. Os heróis devem combatê-los prontamente, pois os monstros, de maneira geral, entram em cena causando 24 uma destruição larga e contínua, impondo um grande número de estragos materiais e colocando em risco e/ou eliminando um grande número de vidas. O tamanho e a força sobrenaturais dos monstros são associados ao fisicamente hediondo. Na maioria das vezes, as imagens concebidas e desenvolvidas para os monstros são causadoras de repulsa ou, ao menos, de aversão, desviando-se de padrões estéticos ligados ao belo, ou ao que é agradável aos olhos. A forma física anômala é quase um atributo natural dos monstros. Ao longo da história e, em especial, nos contos de fada tradicionais, existe o pressuposto da “ética pela estética” – o bom é belo e o mau é feio. Um exame dos contos coletados pelos irmãos Grimm e por Charles Perrault pode facilmente revelar esse aspecto: belas princesas são ameaçadas por bruxas fisicamente hediondas; crianças inocentes são ameaçadas por lobos devoradores de humanos. A anomalia não está relacionada apenas à feiura, mas também às combinações não naturais. A Quimera é geralmente descrita e representada como a união dos corpos de um leão, uma cabra e uma serpente; o Grifo como o amálgama do corpo de um leão com uma cabeça de águia; o Minotauro tem corpo de homem e cabeça de touro. O que está em jogo nessas combinações é um atestado do estado não natural dessas criaturas. Ao promover a união de espécies que não se misturam na natureza, promove-se a inserção imediata da criatura-amálgama no âmbito de um estado sobrenatural, que não pode ter uma ascendência biológica definida e que, portanto, geralmente repele qualquer origem derivada do humano e/ou do divino.

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Figura 17. Quimera – a combinação não natural.

Em Frankenstein ou o Moderno Prometeu , de Mary Shelley, de 1818, o protagonista Victor Frankenstein, obcecado em banir a morte da humanidade, cria um ser humano artificial a partir de pedaços de diversos cadáveres. Sua criação tem a missão primária de se tornar um novo paradigma humano, quase uma melhoria genética. O ser criado, pensado como esse novo paradigma, a princípio belo e comparável a Adão, revela- se fisicamente hediondo, sendo, por isso, imediatamente rejeitado por seu criador. Além disso, o ser criado por Frankenstein não tem alma, o que o faz sentir-se inferior aos seres humanos e mesmo aos demônios. Por essas razões o monstro não é nomeado na obra de Mary Shelley. Desse modo, a criatura de Frankenstein é uma criatura de um estado não natural. Não se trata de um amálgama de espécies, mas da composição de um corpo humano que se quer vivo a partir de pedaços de corpos humanos mortos. Além do desafio ao desenvolvimento natural da espécie e, obviamente, aos desígnios divinos, é importante notar que o caráter hediondo e não natural da criatura decorre também e justamente de seu caráter de conjunto não harmonioso.

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O que mais assusta no ser criado por Victor Frankenstein é o fato dele ser uma junção/costura de pedaços diversos de cadáveres. As partes isoladas não são identificadas com os corpos aos quais pertenciam e, em conjunto, formam um ser tão heteromorfo e deformado que não pode ser contido nos limites da normalidade humana. Assim, promove- se a inserção imediata da criatura-amálgama no âmbito de um estado sobrenatural – não há uma ascendência biológica definida e natural e, por conseguinte, não há qualquer possibilidade da associação a uma origem divina

Figura 18. O monstro de Frankenstein – a composição a partir de pedaços. 27

Nesse sentido, os monstros do tokusatsu podem ser pensados como monstros de matriz frankensteineana. São anômalos e dotados de origens imprecisas, o mais das vezes tendo sua geração ligada a eventos não naturais e a problemas socioeconômicos, como poluição e desastres nucleares. Em seu caráter anômalo, os monstros do tokusatsu tem características muito próprias, não sendo apenas amálgamas de criaturas conhecidas como a Quimera, o Grifo e o Minotauro. As anomalias físicas da Quimera e do Grifo são geradas através da união de espécies constantes nas instâncias biológicas conhecidas. A anomalia física do Minotauro é fruto da união de uma espécie animal com o gênero humano. Na maioria das vezes, os monstros do tokusatsu ,, diferentemente, não são junções improváveis de espécies conhecidas ou interações do humano com o animal. A concepção da monstruosidade no gênero é bastante particular. Notadamente, ou se trata de seres dotados de uma unidade, mas de uma unidade que não cabe em nenhum padrão biológico ou estético; ou se trata de seres que parecem, justamente, ser resultado de uma mistura ainda mais improvável, a da junção de partes variadas de seres integrais cujo fenótipo não é conhecido ou esperável. Lafuente e Valverde dizem que “(...) há monstros para todos os gostos e de qualquer condição imaginável (...)” (2000, p. 19). Citando uma pequena lista dessas condições, os autores consideram a categoria dos monstros por hibridação. Se o monstro de Frankenstein pode ser encaixado nessa categoria, e quanto a isso parece não haver dúvida, os monstros do tokusatsu podem ser considerados ainda mais monstruosos, uma vez que nenhuma ou quase nenhuma de suas partes constituintes é identificável. Constituindo-se em exemplos bastante claros desse tipo de construção hibridizada, os monstros do tokusatsu constituem-se como seres que carregam em si uma grande intranquilidade. Se o monstro de Frankenstein causava asco e repulsa por ser uma miscelânea de cadáveres diversos, esse efeito provavelmente pode ser sentido em maior grau quando se fala de uma mistura de partes inidentificáveis. E, como os monstros do gênero não pertencem aos reinos biológicos conhecidos nem ao seu congraçamento, não pode haver uma origem divina que os sustente.

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Seguindo os padrões de constituição da monstruosidade, os monstros do tokusatsu são, portanto, fisicamente hediondos, formados por uma costura artificial de partes incombináveis, passíveis de constar em bestiários dos mais diversos, desde os premeditadamente ficcionais até os que se ocupam de uma arqueologia catalográfica mais vinculada ao real. Misturam em seu corpo muitas vezes os reinos animal e vegetal, dotados, ainda, de profusas intervenções maquinais. O que se constrói é, portanto, uma origem artificial que tende a ser – e é – muitas vezes associada a uma não naturalidade que se prende a uma geografia inexistente e a um decorrente caráter maléfico. Tal conformação, como nota Quinteiro instaura ainda os monstros do tokusatsu como “figuras irrepetíveis” (2006, p. 73), que sob essa condição são tornados “sujeitos associais, à margem quer da lei humana quer da lei divina” (Punter, 1998: 46) . Reforçando nossa argumentação, Quinteiro define que os monstros são gerados:

(...) fora de um útero materno, fora dos padrões físicos que definem um ser humano normal, fora da família e da sociedade (que os rejeitam), fora da lei e dos princípios que regem a sociedade burguesa e, até mesmo, fora da vida e da morte (...). (QUINTEIRO, 2006, p. 77 ).

Ora, os monstros não tem um útero, não compartilham com os humanos um padrão físico, não tem uma família – em geral, são únicos e estéreis –, não provém de uma sociedade específica – portanto, não têm semelhantes ou quem os aceite –, são definitivamente “foras da lei” e, mais importante, fora da vida e da morte. Não apenas no tokusatsu , se os monstros “vivem”, esta vida é anômala. Se não vem diretamente da morte como em Frankenstein, os monstros, por seu desencaixe em todas as categorias da existência, são seres cuja natureza de aberração parece destinada a ser dizimada para que as naturezas biológica e cultural que conhecemos sobrevivam. Este aspecto da biologia dos monstros aqui tratado é importante para o desenvolvimento das narrativas por dois motivos. Primeiro porque a conformação física hedionda dos monstros é atributo correlato a seu tamanho e força hiperbólicos e, segundo, porque uma vez que não têm origens precisas, e já que não são seres reconhecíveis como parte da biosfera terrestre, são anomalias viventes que podem ser eliminadas pelos heróis sem muito pesar ou culpa.

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O morticínio de um grande número de pessoas é normalmente ancorado na desumanização das mesmas. O massacre justificado pela desumanização talvez encontre no Holocausto seu exemplo mais tocante e contundente. Ancorado nessa descaracterização do humano, o quadrinista Art Spiegelman escreveu e ilustrou a história em quadrinhos Maus – a história de um sobrevivente (maus significa “rato” em alemão). Na obra, baseada nas memórias de seu pai referentes ao Holocausto, Spiegelman retrata os alemães como cães, os estadunidenses e seus aliados como gatos e os judeus – o povo caçado – como ratos. As significações aqui desenvolvidas e a desumanização dela derivada é correlata à que os monstros sofrem no tokusatsu . Como se pode perceber, os monstros são criaturas sempre além dos limites. Superam os limites físicos humanos e os limites biológicos que conhecemos; rompem os limites de unicidade das espécies, propondo amálgamas; encontram um terreno próprio desvinculado de um nascimento e chamador da morte. Como Quinteiro afirma, os monstros “caracterizam-se sempre pelas múltiplas transgressões dos limites” (2006, p. 79), e é pela palavra “transgressão” que podemos abordar os monstros de tokusatsu , no contexto mais geral de construção da monstruosidade e dentro de seu universo específico. Os monstros do gênero são derivações bizarras de criaturas conhecidas como insetos ou lagartos, deturpações de figuras mitológicas e/ou de fantasia, como os dragões, junções improváveis de arquiteturas biológicas não identificáveis ou, ainda, um amálgama dessas três orientações arquitetônicas. A tudo o que já foi dito, é possível acrescentar uma característica peculiar dos monstros do tokusatsu : se fossem considerados padrões biológicos conhecidos, em boa parte dos casos esses monstros seriam mecanicamente disfuncionais. Este fato é importante para o desenvolvimento das significações no gênero, e tal disfunção mecânica será muito importante quando analisarmos as metáforas constituídas nas obras analisadas.

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Figura 19. Gamera – anatomia do monstro.

A disfunção mecânica é oriunda do tamanho desproporcional dos monstros, de sua composição em amálgama, das origens imprecisas de suas partes componentes e até mesmo de sua procedência não divina. Seu tamanho gigante impossibilitaria uma existência real, uma vez que é sabido que a massa de um corpo da proporção de um monstro do gênero seria insustentável para qualquer esqueleto. Sua composição corporal de misturas inviáveis e proporções inconciliáveis os impediria de atuar em um combate contra um herói tradicional, mesmo nos mínimos níveis de velocidade e agilidade. Ainda, não há uma origem divina que pudesse suplantar essas impossibilidades. Todavia, no tokusatsu os monstros não respeitam essas limitações. Na análise das metáforas essa condição aparecerá com mais força e precisão. Por enquanto basta ressaltar que não respeitar essa naturalidade é parte da função dos monstros nas obras analisadas. Para transgredir ainda mais, a maioria dos monstros é caracterizada com garras, dentes

31 bestiais e uma série de “acessórios”, cabíveis em sua natureza abominável e polimórfica, que os torna ainda mais ameaçadores, evocando alta capacidade de agressão. A movimentação dos monstros do gênero é desajeitada e sua forma de andar é desconexa. Além disso, os monstros emitem frequentemente sons guturais incompreensíveis, gritos e urros, que fazem parte de seu arsenal bélico e não humano. Portanto, cria-se um composto de significações que, acumuladas reiteradamente, reforçam tanto a monstruosidade das criaturas quanto seu caráter de ameaça iminente. Tal nível de construção potencialmente agressiva dos monstros pode denotar uma busca por torná-los paradigmáticos. A junção de origem não natural, tamanho e força hiperbólicos, caminhar e movimentação desarmônicos e a presença de instrumentos bélicos em seu próprio corpo aparece como a representação de inimigos prototípicos. Assim, na mesma medida que a ameaça dos monstros é intensificada, há também uma intensificação do valor dos heróis que os vencem. A argumentação desenvolvida até aqui fornece as bases necessárias para apresentar os monstros como centro das metáforas do tokusatsu. Uma aproximação primeira e primária traria, via esse desenvolvimento, o paradigma da “ética pela estética”, largamente desenvolvido nos contos de fadas, onde o belo é bom e o feio é mau, como já apresentado anteriormente. Tratando da construção do corpo humano, Alexander Lowen afirma que “a beleza, em seu significado mais simples, representa a harmonia dos elementos de uma cena ou de um objeto” (1984, p. 127). O significado de beleza do qual o autor trata, baseado na harmonia dos elementos, é o que funda a concepção de ética baseada na estética clássica dos contos de fada. Assim, a ética é pensada como um conjunto de ações harmônicas em sua arquitetura e em sua orientação para o bem, e por isso, belas. Fisicamente, os monstros são impossibilitados de alcançar esse ideal – sua construção desarmônica é complexa, mas principalmente entrópica. No entanto, há mais a ser considerado. Por conta de seus atributos físicos os monstros espalham a desordem, são arautos da destruição e do caos. Uma vez que atrapalham o andamento ordenado do mundo, poderiam, ou mesmo deveriam, ser eliminados. Só que no tokusatsu a questão não é tão simples assim. Todas as construções e seus respectivos significados referidos acima estão presentes e fazem parte da semiose do

32 gênero, mas nos exemplos estudados há um aspecto complementar: os monstros são também entidades narrativas e símbolos das situações que servem de esteio para a confecção das obras. Desse modo, os monstros do gênero mostram o que está errado com o mundo, ou com a situação específica da qual extraem seu fundamento criativo. Talvez por conta disso, muitas vezes os monstros são, na verdade, inocentes – ou são enganados/ludibriados pelos vilões ou são por eles afetados/transformados para que atuem como destruidores da ordem estabelecida. Em um número bastante significativo de episódios das séries estudadas, os monstros mortos pelos heróis, no clímax das narrativas, não tem efetivamente culpa de sua condição de ameaça. Esse aspecto de “inocência” permite pensar que sua eliminação tem ares de injustiça. Vale ressaltar que, no contexto que nos interessa neste trabalho, a presença dos monstros no gênero tokusatsu , entendida sob a luz das metáforas conforme abordadas por Lakoff e Johnson, funciona de forma a extrapolar sua condição de “bestas estranhas”. Se os monstros são seres repugnantes, hiperbólicos, bélicos e ameaçadores, mas podem também ser considerados inocentes, torna-se necessário pensar que suas significações estão carregadas de significados paralelos. Uma vez que esses significados paralelos e, portanto, as metáforas constituídas, estão ligados a conteúdos histórico-culturais, é relevante discorrer sobre as séries escolhidas como objetos de estudo desta pesquisa. Os tokusatsu selecionados foram quatro: Godzilla , Ultraman , Spectreman e Jaspion . As narrativas desenvolvidas nas séries elencadas, dentro de suas peculiaridades estruturais e semânticas, representam questões socioeconômicas de seu tempo. Godzilla trazia indagações acerca do horror atômico. Ultraman e Spectremen discorriam sobre o problema da poluição. Jaspion funcionava como uma síntese dos temas de outras séries, e ainda trabalhava questionamentos acerca dos possíveis males do desenvolvimento tecnológico desenfreado. Nas séries analisadas, os desenvolvimentos acerca dos significados das figuras dos monstros funciona em consonância com os temas apontados no parágrafo anterior. Mais que isso, pode-se pensar num trânsito intercamadas, onde os significados universais das figuras monstruosas assomam nos tokusatsus e, ao mesmo tempo, estão associados aos temas de base. Desse processo de construção imanente e em palimpsesto, decorre uma

33 interpenetração entre as camadas de significação e uma fertilização semântica cruzada, o que gera polissemia. Este é o sentido assumido ao tratarmos das metáforas, sob a égide dos conceitos de Lakoff e Johnson. No gênero estudado, a associação das figuras monstruosas e suas peculiaridades aos temas subsidiários, tratados em cada uma das séries, é a própria metáfora. As características físicas dos monstros e suas decorrentes simbologias são acionadas simultaneamente com os temas e as contestações socioeconômicas. Assim, os deslocamentos de sentido das metáforas tornam-se presentes. As séries analisadas tratam de seus temas específicos através de ficções, falando sobre tais temas sem abordá-los diretamente, o que se constitui como processo metafórico. Já que esse processo metafórico tem em si propósitos moralizantes, chamando a atenção para assuntos então pouco ou nada tratados, está claro o vínculo com o sentido das metáforas trabalhado por Lakoff e Johnson. Em Godzilla , Ultraman , Spectreman e Jaspion , os monstros são símbolos dos problemas socioeconômicos e, neste sentido, constituem-se em instigadores e modelos metafóricos dos pensamentos e das ações. Considerando, então, que os monstros funcionam como sinais indubitáveis dos problemas da época, tornam-se uma espécie de aviso metafórico vivo e incontornável. Uma vez que se quer abordar um problema de modo não direto e ilustrativo, tão mais eficiente será essa ilustração quanto ela for, disfarçadamente, impositiva. A presença dos monstros não é uma imposição em seu sentido mais estrito. Porém, se as criaturas monstruosas do tokusatsu são gigantescos agentes do caos que não se pode esquecer ou ignorar, os conteúdos metafóricos por eles disparados também são impositivos e incontornáveis. Estando definido o papel dos monstros no gênero estudado e o modo como esse papel aciona o sentido metafórico conforme entendido por Lakoff e Johnson, no próximo capítulo passaremos a um estudo mais profundo do significado das metáforas segundo esses autores.

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CAPÍTULO 2

2.1. A metáfora como fundamento do tokusatsu

O universo referencial sobre o qual este trabalho se debruça baseia-se nos conceitos desenvolvidos por Geroge Lakoff e Mark Johnson em Metáforas da vida cotidiana (2002). O pressuposto maior dos autores é o de que metáforas podem ser entendidas como um modelo de pensamento, sendo não apenas uma figura de linguagem e um exercício retórico, mas uma rede cognitiva que constitui o pensamento e a expressão humana. Esse entendimento pode ser aplicado à análise do tokusatsu , já que se caracteriza como gênero no qual os efeitos especiais se apresentam como elementos de linguagem. Nos tokusatsu , os efeitos especiais não são meramente ilustrativos, não funcionam apenas como apoio para a construção das narrativas, são, na verdade, parte fundamental da estrutura das mesmas. Portanto, os efeitos especiais são essenciais para a construção e para o entendimento da linguagem e das significações do gênero. No entanto, trata-se de uma questão delicada. Mesmo que a existência de efeitos especiais evidentes e não “de ponta” ou “invisíveis” seja uma orientação bastante proeminente no gênero, há séries de tokusatsu que apresentam esses efeitos com um nível de realização técnica bastante elevada. Porém, o recorte que apresentamos não contempla nenhuma dessas séries. As obras aqui estudadas apresentam a acepção mais comum de efeitos especiais: a do efeito que se mostra e que, ao mostrar-se, acaba sendo importante elemento de narração. A linguagem típica do gênero, ao evidenciar os limites técnicos de produção conforme poderá ser percebida nas obras aqui analisadas, constitui uma camada de significação. As metáforas desenvolvidas internamente nos filmes constitui outra camada. Poderíamos pensar em uma série de outras camadas, como a edição, as vestimentas, os temas dos episódios, etc., no entanto, o foco aqui é outro. A questão das técnicas de produção é extremamente relevante, bastando lembrar que a tradução de tokusatsu é “filme de efeitos especiais”. Assim sendo, é quase obrigatório que uma produção do gênero seja ancorada ou, no mínimo, conte com uma quantidade significativa de efeitos. As séries aqui abordadas são exemplos marcantes do uso de efeitos

35 especiais. Estes são claramente reconhecíveis no processo de montagem, por vezes destoante bastante das cenas gravadas. É o caso do primeiro episódio de Jaspion , em que a animação é utilizada de tal maneira que se nota claramente sua inserção, podendo ser tomada como uma intervenção grosseira. As quatro séries aqui analisadas – Godzilla, Ultraman, Spectremen e Jaspion – desenvolvem, em seus respectivos contextos, metáforas consistentes que nos episódios e ao longo do desenvolvimento das séries, instituem seus sentidos, de maneira específica e também em um viés mais universal. De maneira específica entendem-se as mensagens pensadas em termos dos episódios individuais e destes em relação à série como um todo. Em um viés mais universal entendem-se as mensagens em relação aos episódios e à série, mas voltadas a contextos mais amplos, referentes ou ao Japão, ou à relação do Japão com outros países ou, ainda, a questões globais. Godzilla discorre primordialmente acerca do horror atômico. Ultraman e Spectremen desenvolvem-se, essencialmente, em torno da questão da poluição. Jaspion funciona como uma síntese dos temas abordados em séries anteriores, colocando bastante em cena os problemas do desenvolvimento econômico e tecnológico. Todas essas temáticas podem e devem ser pensadas por sua apresentação nos episódios, mas também não podem deixar de ser entendidas como fruto de ambientes histórico-culturais precisos e identificáveis, que trazem em seu bojo mensagens capazes de promover discussões e movimentações derivadas e paralelas. Cumpre, agora, apresentar a veia conceitual através da qual as metáforas presentes nos tokusatsus aqui estudados serão abordadas. De acordo com os conceitos de George Lakoff e Mark Johnson, apresentados em Metáforas da vida cotidiana já no primeiro capítulo, “a metáfora é, para a maioria das pessoas, um recurso da imaginação poética e um ornamento retórico” (2002, p. 45). Os autores advogam que a metáfora é, no mais das vezes, entendida como presente apenas na esfera da linguagem, e que a metáfora está “infiltrada (...) no pensamento e na ação” (2002, p.45). O que chama a atenção na argumentação de Lakoff e Johnson é que, para eles, a metáfora constitui “nosso sistema conceitual da vida cotidiana” (2002, p.45). Assim sendo, haveria uma base metafórica para o pensamento e para a ação que é alimentada

36 cotidianamente, de maneiras mais ou menos conscientes. No decorrer de seu texto, os autores demonstram como construções conceituais metafóricas inserem-se na elaboração de linguagem e, assim, na elaboração de pensamento e, até mesmo, no planejamento e na execução de ações. Para os autores, a metáfora se instala no pensamento e na vida cotidiana como um sistema conceitual complexo, capaz de guiar construções da inteligência e de moldar atitudes, desde os níveis mais imperceptíveis aos mais evidentes. É no desenvolvimento da linguagem e do pensamento, nutrido por e dependente dela, que os autores encontram, em suas análises linguísticas, traços fortes e complexos da presença da metáfora enquanto modelo de pensamento e ação. Uma vez que as séries analisadas também apresentam em sua construção de linguagem a utilização de metáforas que estruturam, promulgam e reiteram suas temáticas peculiares, é presumível a proposição de que é através dessas metáforas que esses tokusatsu constroem suas esferas de significação. Esta argumentação, todavia, pertence ainda à esfera da linguagem. Para utilizar os conceitos de Lakoff e Johnson acertadamente é necessário que as metáforas sejam vistas principalmente como modelos conceituais, além de oriundas da estruturação da linguagem. Se esses modelos são capazes, segundo os autores, de configurar pensamentos e ações, são igualmente capazes de fornecer paradigmas norteadores suficientemente fortes para que um determinado tema seja posto em discussão e debatido, com o advento de uma potencial conclusão. “Um conceito pode ser metafórico e estruturar uma atividade cotidiana” (2002, p. 46). O entendimento das metáforas como instrumentos de construções conceituais que configuram procedimentos e raciocínios deve, então, ser pontuado na esfera dos tokusatsu . As quatro séries selecionadas como objetos de estudo deste trabalho tem um ponto em comum: a figuração de monstros como antagonistas. Os monstros – e suas ações – são justamente as metáforas em questão, representam os problemas socioeconômicos enfrentados pelos protagonistas de Godzilla, Ultraman, Spectremen e Jaspion . Uma vez que monstros são, via de regra, muito maiores e mais fortes que os heróis, são sinônimos de ameaças de grande porte que devem ser enfrentadas. Os monstros são também esteticamente feios, normalmente configurados e descritos como repugnantes e ameaçadores, atentam contra o tradicional ideal estético dos heróis e ao postulado da beleza

37 e da admirabilidade enquanto posicionamento ético. Os monstros são, também, aberrações, fruto de mutações ou interferências não naturais de modelo frankensteineano, contrapõem- se, assim, à noção da natureza benfazeja do herói. Portanto, a existência de monstros no tokusatsu é metafórica, uma vez que são metáforas para as ameaças de base que guiam cada uma das séries. Godzilla é o monstro- metáfora do horror nuclear, do mesmo modo que os monstros enfrentados por Ultraman, Spectremen e Jaspion são metáforas das ameaças socioeconômicas que cada um desses heróis têm como antagonistas mais profundos. Nas séries investigadas neste trabalho é primordial que as metáforas sejam tratadas como modelos de pensamento e ação, como proposto por Lakoff e Johnson. Assim, no gênero estudado podemos pensá-las de duas formas: como instrumentos de criação e como instrumentos de recepção. Pensá-las como instrumentos de criação nos remete à gênese das obras e a seu processo de criação conceitual e de roteiro – os criadores, consciente ou inconscientemente, utilizaram as metáforas para elaborar suas criações. Pensar as metáforas como instrumentos de recepção nos remete aos modos como as obras finalizadas e transmitidas são recebidas pelos espectadores – os procedimentos metafóricos constituintes das obras, percebidos ou não, certamente disparam a constituição de outras metáforas pessoais e coletivas, usadas como interpretantes. Após a apresentação das metáforas como modelo de pensamento, vale lembrar que a abordagem proposta aqui é justamente de inversão deste processo. Trataremos da desconstrução das metáforas constituídas no tokusatsu através do desenvolvimento de procedimentos de comercialização de produtos relacionados às séries. Tal desconstrução tem seu cerne na utilização de elementos das séries analisadas para a montagem de um portfólio de produtos comerciais, gerando a construção de uma rede de consumo desses produtos. Tendo em vista os procedimentos comerciais inerentes a este processo, os significados primeiros das obras artísticas acabam sendo depauperados em termos de alcance semântico. Não se trata de uma demonização da publicidade e da indústria cultural, mas, sim, da exposição de acontecimentos documentados nos quais se pode notar o desvio dos objetivos iniciais das séries e do gênero tokusatsu. Como consequência temos a

38 constituição de outras metáforas, fundamentalmente mais pobres em termos de constituição semântica. Tal deslocamento será apresentado a seguir.

2.2. Análise das primeiras séries e seus desdobramentos políticos

O processo narrativo do gênero tokusatsu tem características próprias ligadas aos efeitos especiais, como já apresentado. O corpus deste trabalho ancora-se na utilização dos citados efeitos especiais e encontra sua coesão na proeminência das figuras monstruosas em suas narrativas. Godzilla , Ultraman , Spectreman e Jaspion desenvolvem suas histórias, a seu modo e com suas peculiaridades temáticas, sob a égide da figura dos monstros. As metáforas a serem analisadas residem justamente nesta figura e em sua performance nas narrativas. Os monstros das séries analisadas são objetos posicionados na fronteira entre o significado de base, mais geral, e o significado particular, mais específico. Mais pormenorizadamente, os monstros são as entidades narrativas que fazem a ligação entre o que se quer realmente significar, com maior peso cultural, e o que se comunica em termos de superfície, o que se comunica em cada um dos episódios das séries do gênero sobre as quais nos debruçamos. Portanto, consideramos os monstros como as principais metáforas. Nas séries que compõem o corpus deste trabalho, a justificativa para a existência dos monstros é fundada muitas vezes em ambivalências histórico-culturais e socioeconômicas que lhes serviram como leitmotiv . Neste sentido, a obra de Yoshikuni Igarashi é uma referência fundamental sobre os efeitos da 2ª Guerra Mundial no Japão, “(...) um país que estava em ‘uma posição intermediária’, como um ‘espaço que dava passagem a uma série de coisas’, como uma entidade limiar e fronteiriça, capaz de debilitar, insidiosamente, os efeitos das perdas nacionais da Guerra do Pacífico na Ásia” (2011, p. 253-254). Na afirmação acima, o próprio país comparece metaforicamente, na medida em que é entendido como uma “posição intermediária”, “espaço de passagem” e “entidade limiar e fronteiriça”. A pontuação que se faz acerca da guerra é bastante focada nos acontecimentos e nas consequências da 2ª Guerra Mundial no e para o Japão, em especial com relação aos problemas socioeconômicos do pós-guerra e aos efeitos das bombas nucleares jogadas em

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Hiroshima e Nagasaki. Essa construção conceitual fornece sólida base para a abordagem das séries analisadas, pois as metáforas nelas desenvolvidas são metáforas dos problemas evocados por Igarashi. A configuração do Japão como limiar e fronteiriço rende ainda mais aproximações com a questão da composição das metáforas no tokusatsu quando o autor diz que “esta configuração cultural camuflava (...) a desagregação criada pela derrota na guerra” (IGARASHI, 2011, p. 254). Se o Japão como lugar de passagem é entendido como camuflagem de uma condição, é evidente que a metaforização emerge nesse contexto. A metáfora, em sua estrutura, pode ser entendida como figura de linguagem que “camufla” o significado mais imediato, na medida em que diz sobre seu objeto sem se referir diretamente a ele. Ao discorrer sobre autores japoneses do período pós-guerra, Igarashi cita Nobuo Kojima e Kenzaburô Ôe, cujas obras constroem personagens em posições intermediárias, em interação com personagens estadunidenses, instaurando seus corpos “como locais onde o leitor poderia se debater com desejos contraditórios: o desejo de ocultar e o desejo de manter vivas, as memórias do passado” (2011, p.254). Especificando ainda mais a relação com as metáforas aqui analisadas, o autor diz que Ôe tentava “manter exposto o que (...) era uma infeccionada ferida interna” (2011, p.254). O processo de ocultar e de, concomitantemente, manter vivos os significados é metafórico por excelência. É a metáfora que diz sem dizer, que oculta e mantém. Nas séries analisadas, os problemas abordados não são diretamente atacados, mas, sim, trabalhados através do ocultamento dos mesmos, operado nas narrativas via procedimentos metafóricos. Esse não dizer é, justamente, o que diz. Nas séries estudadas os monstros são figuras centrais do que é dito. Podemos considerar, assim, tanto o gênero tokusatsu, de forma geral, quanto nosso corpus de pesquisa, profundamente metafóricos. Nesse contexto, os monstros, como corpos que metaforicamente representam os significados imanentes, são as próprias feridas internas infeccionadas. Nada mais metafórico e nada mais evidente. A conformação polimórfica e as origens não naturais e/ou não divinas dos monstros instauram-nos como uma espécie de enfermidade ou, ao menos, como sintoma de uma enfermidade.

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Uma vez que Godzilla é resultado do horror atômico, que os monstros de Ultraman e Spectreman relacionam-se com o problema da poluição, e que os monstros de Jaspion são resultado também da poluição, associada a problemas relacionados ao desenvolvimento tecnológico exacerbado, esses monstros podem ser tratados tanto como a enfermidade em si quanto como sintomas. Os personagens que combatem os monstros, por conseguinte, podem ser pensados como portadores de algum poder de limpeza ou de cura. Eliminar a doença e seus sintomas é uma prerrogativa da área médica, os profissionais dessa área são percebidos, em geral, como pessoas boas e confiáveis exatamente por desempenharem essas funções. Como se evidencia neste trabalho, no tokusatsu essa questão não é tão simples. Mesmo podendo ser entendidos como doenças ou como sintomas dessas doenças, os monstros do gênero não são simplesmente ruins. Muitas vezes, os monstros são vítimas dos problemas que representam. Os problemas abordados metaforicamente pelas séries é que geram as figuras monstruosas ou que as despertam ou que, de alguma maneira, contribuem para que realizem ações consideradas más no contexto humano. Portanto, os monstros, se podem ser considerados doenças e/ou sintomas, o são, na maioria das vezes involuntariamente sem culpa. Assim, a “função de cura” dos personagens que os combatem é posta em dúvida ética, e suas eliminações também representam dilemas morais. Tais percepções reforçam nossa abordagem do tokusatsu como um gênero complexo e polissêmico; reforçam também nossa percepção dos monstros como metáforas presentes nas narrativas estudadas, à luz do conceito de metáfora como figura de linguagem e à luz do desenvolvimento conceitual de Lakoff e Johnson. As metáforas conforme desenvolvidas em cada uma das séries serão aqui tratadas em breve. Porém, como essas metáforas são fruto do desenvolvimento nacional do Japão que deve ser entendido como uma espécie de “causa geral”, é importante detalhar esse contexto. Em especial, o exame de algumas questões que marcam o pós-guerra no Japão devem ser esmiuçadas, pois os acontecimentos políticos desse período são profundamente significantes e fomentadores de significados derivados e fundamentam um corpo de imaginário muito específico, que traz à luz uma esfera potencial de narrativas dele decorrente.

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Esse eixo narrativo potencial e geral é reiterado na concepção das narrativas e dos personagens do gênero estudado. Acontecimentos como os esforços de guerra para prover um corpo militar japonês, o horror atômico nas cidades de Hiroshima e Nagasaki e suas consequências, além da rendição do imperador Hirohito aos EUA são alguns dos fatos que merecem ser considerados. A 2ª Guerra Mundial e os anos que se seguiram com a ocupação estadunidense afetaram diretamente as produções culturais japonesas, de maneira ainda mais marcante as produções para o cinema e para a televisão. No cinema, os acontecimentos desse período passariam a ser manifestados de diversas maneiras. Todo um subgênero cinematográfico é criado: os “filmes sobre a guerra”, como coloca Maria Roberta Novielli (2007), são produções ambientadas no período da guerra e do pós-guerra, representando batalhas e determinadas figuras militares. Uma tragédia japonesa (1946) de Fumio Kakei e Regresso à pátria (1950) de Hideo Oba são alguns exemplos. Outro subgênero, chamado “filmes de tese”, apresentava críticas diretas à sociedade: Zona evacuada (1952) de Satsu Yamamamoto e o manifesto pacifista e antiamericano de Tadashi Imai, A torre dos lírios (1953), são títulos bastante reconhecidos. O impacto dos ataques nucleares em Hiroshima e Nagasaki foi tal que também gerou um subgênero de filmes, nomeado Hibakusha Eiga , expressão que significa “filmes sobre vítimas da radiação atômica”. Mesmo que, como Novielli aponta, a cinematografia sobre os ataques em Hiroshima e Nagasaki seja limitada, sua existência deve ser tomada como uma consequência artística de um fato político. Desta maneira, a acepção de Lakoff e Johnson sobre as metáforas, ligada à construção metafórica do pensamento e das ações, fica novamente evidenciada, se entendermos os Hibakusha Eiga tanto como processos de pensamento como ações que põem em movimento e em exposição tais pensamentos. A força desses filmes era tal que, durante a ocupação estadunidense, a censura imposta pelos ocupantes recaía sobre a representação da tragédia atômica, não permitindo qualquer referência explícita e direta às explosões, a menos que tal representação contivesse uma conclamação de perdão aos EUA. Decorrente do horror atômico e dos Hibakusha Eiga , ainda durante a década de 1950 surge um novo subgênero de filmes, o Kaiju Eiga ou “filmes de monstros gigantes”. A obra pioneira e a maior representante é Godzilla (1954), do diretor Ishiro Honda e dos

42 roteiristas Shigeru Kayama e Takeo Murata. O filme é considerado um importante manifesto contra o horror atômico e, como evidenciamos, é parte primordial do corpus da pesquisa e, portanto, será abordado adiante. Yoshikuni Igarashi (2011) esclarece que, para sobreviver à derrota na 2ª Guerra Mundial, o Japão se reinventou como uma nação pacífica e, assim, pôde acionar seu ressurgimento e atingir um grau de desenvolvimento elevado, muitas vezes referido como milagre econômico. Mesmo ao enfrentar um difícil processo de reconstrução e a instauração de um Japão transformado e modernizado, a sombra da guerra ainda pairava sobre a nação. As memórias das perdas humanas e do horror que as ocasionou continuava muito presente. Meio século após o fim da 2ª Guerra Mundial, o anseio pelo esquecimento da tragédia era de tal monta que o recurso da lembrança reinventada acaba perseverando. Sabemos que não se pode falar em exatidão de registro histórico, uma vez que suas fontes, em geral, não podem ser consideradas absolutamente inequívocas. A consulta a textos, por exemplo, apresenta o problema da presumível imprecisão do registro, mediado pela percepção de quem escreve. A pesquisa arqueológica traz a questão da interpretação das evidências. O que se processou no Japão, todavia, não é algo dessa ordem, mas, sim, a evidente imposição de uma determinada interpretação que é desviante da verdade, imprimindo uma ideologia oficial e textos portadores dessa ideologia. Como consequência, tal interpretação vai, progressivamente, construindo uma memória histórica japonesa fomentadora de um espírito de ordem social positivista e de qualidades desejáveis à nação e a seu povo. Nesse sentido, é impossível não pensar no livro de George Orwell, 1984 . Escrito em 1948, portanto, logo após o fim da 2ª Guerra Mundial, quando o Japão ainda se encontrava sob interferência dos EUA, o romance configura um mundo com frequentes conflitos, no qual a ideologia dominante se vale justamente das lembranças continuamente inventadas enquanto recurso de manutenção da ordem social. Na obra orwelliana, há todo um sistema de produção de registros oficiais, mídia e entretenimento cuja mecânica tem a função de promover e instaurar tanto o esquecimento das memórias que não convinham, quanto de propor e cristalizar novas memórias, adequadas às mudanças de orientação promovidas pela ordem vigente. O sistema criado é totalitarista e cruel, e parece mesmo ser inescapável fugir da máquina criada por ele.

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Não nos cabe, neste trabalho, fazer uma análise mais pormenorizada de 1984 , mas é importante referenciar o livro de Orwell, pois se trata de uma obra que apresenta ao leitor o que é considerado por muitos o epíteto literário da invenção e da reinvenção ditatorial da memória, um dos momentos máximos da consagração da alienação. Até hoje, a ideologia oficial instaurada no período da reconstrução japonesa perdura como modelo máximo na educação e no pensamento japoneses. É comum que opiniões em contrário, que postulam ideias mais verídicas, sejam vistas como invenções ou, no mínimo, inverdades. Assim, esse esforço por dar sentido e por suportar as perdas da guerra não pode ser considerado apenas um trabalho semiótico de construção de linguagem, mas deve ser entendido como construção de ideologia. Dentro deste contexto, podemos claramente evocar a concepção de metáfora, segundo Lakoff e Johnson. As narrativas desenvolvidas pelo Japão, se são narrativas oficiais de continuidade histórica, são também estratégias oficiais de instauração e de manutenção de um direcionamento do imaginário nacional que gera uma percepção favorável à ordem institucional do país, através da apresentação de um cenário histórico fictício, que serve ao propósito de justificar as perdas da guerra e a intervenção estadunidense. Tal estratégia de mascaramento e ocultação da história real e da construção de uma história oficial favorável é instrumento para a consolidação de uma nova identidade japonesa, com a imposição de meios de superação para uma intolerável ruptura histórica. Por meio das representações narrativas, as perdas da 2ª Guerra Mundial foram subvertidas em um sacrifício indispensável em nome do progresso, legitimando-as como caminho para a sociedade do pós-guerra. A dinâmica entre esquecimento/ocultação e lembrança de um novo passado está conectada a duas questões principais. A primeira diz respeito aos estadunidenses no processo de reinvenção do Japão, e a segunda à construção discursiva do corpo. Os EUA ocuparam o Japão de 1945 a 1952, implantando uma política específica para tal situação. Em seguida, os dois países tornaram-se aliados, tendo em vista interesses específicos dos Estados Unidos na Ásia, assim como acordos comerciais. Durante a Guerra Fria, esta comunhão deu suporte aos EUA em suas investidas contra a Ásia comunista. Por outro lado, o Japão foi capaz de alcançar seu milagre econômico através da abertura para o mercado estadunidense e assistência material oferecida pelo ex-inimigo.

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Para Igarashi (2011) essa metamorfose obscura na relação entre Japão e EUA foi responsável por uma crise na identidade nipônica. A aceitação da supremacia do ex-inimigo era condição para a sobrevivência japonesa, mas, ao mesmo tempo, abalava o orgulho nacional. É no contexto dessa incongruência que a necessidade de uma narrativa oficial, que dê conta da mesma, surge e se instala. A série de acontecimentos que culminaram na resolução do conflito entre EUA e Japão, as investidas contra Hiroshima e Nagasaki e a “decisão divina” do imperador em encerrar a guerra, proveram as bases sobre as quais a liderança japonesa do período da guerra pôde instituir uma narrativa com potencial para dissolver a tensão resultante do processo de admissão da derrota japonesa. Essa derrota seria fantasiada de necessidade estratégica e apreço pelo bem de toda a humanidade através da narrativa construída, corroborada pela liderança estadunidense por meio do suporte ao imperador. Igarashi complementa apontando que:

No remapeamento ideológico do período imediato do pós-guerra, qualquer história entre Japão e EUA que fosse incongruente com a necessidade política da Guerra Fria, era logo reprimida tanto nos EUA quanto no Japão. Para ambos os países, o adversário de ontem virou o amigo de hoje. A demonstração de poder sem precedentes dos armamentos atômicos detonados em Hiroshima e Nagasaki forneceu o ímpeto para a reconfiguração das memórias coletivas dos EUA e do Japão. (IGARASHI, 2011, p. 59).

A segunda questão abordada no processo de esquecimento/ocultação da história e lembrança/construção de um passado transformado/idealizado é ligado ao controle do corpo. Antes de 1945, o corpo humano e sua construção já eram pontos centrais do discurso nacionalista, uma vez que a proposta política Kokutai pensava o corpo de maneira idealizada, tendo como paradigma o corpo do imperador. Tal orientação remete diretamente a concepções divinatórias, ligadas à imitação da imagem dos deuses na criação da humanidade, ponto nevrálgico de várias religiões, expresso de maneira inequívoca na concepção cristã de que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança”. Igarashi esclarece que a configuração dos corpos é concomitante às (re)configurações ideológicas do Japão, o que ressalta a construção do país como uma

45 entidade/unidade orgânica. Tal conformação obedece a “representações metafóricas da entidade política através das imagens corporais” (IGARASHI, 2011, p. 75). Dada essa concepção, mais uma vez podemos evocar Lakoff e Johnson no que diz respeito à percepção do papel das metáforas, uma vez que os efeitos da metaforização política, quando estabelecidos e consumados, tornam-se padrões de pensamento e de ação no modelo desenvolvido pelos autores. A metamorfose na relação entre Japão e EUA, consequência do empenho de ambos os países em criar uma atmosfera de conformismo relativo ao horror atômico, foi elemento que conceberia a narrativa fundadora da cultura do pós-guerra. Se de um lado há uma ótica antagônica entre as duas nações frente aos acontecimentos relativos ao fim da guerra, devido à assimetria criada pelo ataque nuclear estadunidense, por outro lado, parte da sociedade dos EUA e do Japão tomaria como verdade as representações populistas dos acontecimentos históricos que seriam, em seguida, incorporadas pela narrativa cultivada pelos dois países. Para reforçar a empatia entre EUA e Japão, a solução metafórica encontrada foi a sexualização. Uma vez que uma relação sexual pressupõe, em princípio, desejo e aceitação, o insuflar desses pressupostos na relação diplomática e cotidiana entre os dois países fez ecoar metaforicamente o desejo pela “parceria” e aceitação mútua, que se tornariam a base dessa relação. Para Igarashi (2011), após a falência do regime de sujeição pré-1945, os corpos que permaneceram entre as ruínas das cidades foram celebrados como signo da nova vida no Japão. Para muitos sobreviventes, nada mais restava de material em meio ao cenário de devastação das cidades atacadas, além dos corpos das vítimas do bombardeio e de seus próprios corpos. O imperador Hirohito passa a cruzar o país visitando esses cenários de destruição. Desse modo, conduz seu corpo até então inatingível e inalcançável para espaços públicos ao alcance de seus súditos. Em meio aos destroços e à degradação das cidades, sua figura divinizada configurava-se em signo paradigmático do que poderiam se tornar os corpos japoneses no período contíguo ao pós-guerra. Igarashi segue complementando que:

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Aos olhos de muitos japoneses, a figura do imperador foi humanizada e liberada dos constrangimentos do regime pré-1945, assim como seus próprios corpos no período pós-guerra. (...) O regime de guerra os submeteu a regulamentos rígidos, em uma tentativa de criar corpos obedientes e patrióticos (...). (IGARASHI, 2011, p. 122-123).

Quando cessa a ocupação dos EUA no Japão, as memórias de guerra ganham visibilidade na mídia japonesa, livres da censura imposta pelo país ocupante. Assim, pouco a pouco, essas memórias vão assomando e se instalando, tornando-se cada vez mais presentes no imaginário coletivo japonês. Nesse contexto, os corpos que sofreram deformações por conta dos efeitos da guerra, e em especial por causa da radiação, passam a ganhar cada vez mais destaque e a serem, assim, percebidos como presentes. Um bombardeio atômico como o que ocorreu em Hiroshima e Nagasaki causa uma devastação imediata brutal, mas seus efeitos a longo prazo também devem ser considerados. Deformidades, doenças, enfraquecimento, problemas genéticos e uma série de outras adversidades são o legado de um bombardeio atômico, além de sua devastação primária. Em uma espécie de ressonância invertida à exposição do corpo sagrado do imperador, os corpos dos sobreviventes da guerra passam a ser vistos, servindo também como suporte para o regresso do nacionalismo nipônico. Os acontecimentos que se seguiram à guerra, a tensão entre Japão e EUA e o desenvolvimento da narrativa fundadora, fundamentaram a concepção de inúmeras produções culturais do pós-guerra. No cinema, uma obra torna-se responsável por marcar o início de uma das vertentes mais emblemáticas e populares do cinema japonês em todo o mundo, o Kaiju Eiga, filmes de monstros, e consequentemente do gênero tokusatsu – o filme Godzilla (1954). Em 1946, o diretor Ishiro Honda visita a cidade de Hiroshima. A visão da cidade ainda devastada pela bomba atômica, lançada pelos EUA em 06 de agosto de 1945, desperta no diretor o desejo de expressar a visão do horror atômico em uma produção cinematográfica. Sua visão passaria a tomar formas monstruosas a partir do conceito do produtor Tomoyouki Tanaka e do mestre dos efeitos especiais Eiji Tsuburaya, que idealizam um protótipo de monstro com a ideia de usá-lo futuramente em um filme.

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Na década de 1950, falar sobre a destruição de Hiroshima e Nagasaki pelas bombas atômicas ainda era tabu no Japão, resultado da censura em relação aos armamentos atômicos e seus efeitos, imposta ao país pelos americanos (NOVIELLI, 2007). Segundo Yoshikuni Igarashi (2011), nesse período as memórias da guerra distanciavam-se das imagens de destruição e perdiam suas referências particulares. De acordo com o autor, essas memórias “foram se transformando em forças destrutivas sem forma” (2011, p. 276). Foi através da figura monstruosa de Gojira , conhecido internacionalmente como Godzilla , que Ishiro Honda representou as “memórias das perdas da guerra” num período no qual as marcas dessas perdas estavam desaparecendo. O longa metragem lançado em 1954 é considerado uma importante manifestação contra os testes nucleares e explosões atômicas estadunidenses (NOVIELLI, 2007). A produção da Toho apresentava como resultado das experiências termonucleares, o primeiro monstro gigante do cinema japonês, elemento que seria amplamente usado pelos filmes e seriados do gênero, tornando-se um dos principais ícones do tokusatsu . A mistura de gorila (gorira ) e baleia ( kujira ) que dá nome à criatura, no original Gojira , é despertada pelos testes nucleares americanos na Ilha de Bikini. O monstro chega ao Japão deixando um rastro de destruição por onde passa, e é finalmente eliminado pela criação do Dr. Serizawa, o Oxigênio Contratorpedeiro.

Figura 20. A fotografia soturna de Godzilla original de 1954.

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Igarashi (2011) propõe que a aparência monstruosa de Godzilla está marcada por memórias de guerra. Algumas representações ficam evidentes, entretanto, outras são menos perceptíveis ou até incompreensíveis para o público. Mesmo os EUA estando por trás da destruição inicial, seu nome é dissolvido na narrativa do filme, assim como na narrativa fundadora. Apesar de estarem presentes de maneira intensa na tela, as memórias da perda continuam inomináveis. Godzilla representa de forma alusiva a participação dos EUA em vários momentos do filme, porém não explicitamente.

Em 1954, despertado do sono eterno por testes nucleares americanos no Atol de Biquíni, Godzilla ataca Tóquio. Na vida real, tais testes nucleares e o incidente Lucky Dragon serviram de inspiração para o roteiro do filme. Em março de 1954, um navio pesqueiro de atum, o Daigo Fukuryumaru (Lucky Dragon V), foi apanhado pela chuva de partículas radioativas de um dos testes, e todos os 23 tripulantes foram expostos a radiação. Notícias sobre o Lucky Dragon romperam o longo silêncio sobre o estado de guerra nuclear no Japão, um silêncio que foi imposto ao Japão ocupado pelas restrições de censura americana. Godzilla alude, veladamente, ao envolvimento dos EUA fazendo menções sobre o Lucky Dragon em sua sequência de abertura. (IGARASHI, 2000, p. 278).

Igarashi destaca ainda que menções diretas aos EUA que deveriam ser explícitas estão notavelmente ausentes. Não há nem mesmo uma insinuação da responsabilidade estadunidense na subsequente destruição de Tóquio pelo monstro. O produtor do filme, Tomoyuki Tanaka, via Godzilla como:

(...) uma alegoria para o novo poder de destruição que ameaçava a humanidade, afastando sua origem geopolítica específica. Frustrado pela omissão de responsabilidade americana no filme, um dos roteiristas insistiu depois que Godzilla deveria cruzar o oceano Pacífico e atacar as cidades americanas, já que os EUA eram responsáveis pelos testes nucleares, e, por conseguinte, pelo retorno do monstro. (IGARASHI, 2011, p. 279-280).

Prosseguindo em sua análise, Igarashi pontua que Godzilla devasta Tóquio e é destruído na cidade pelos próprios japoneses sem qualquer envolvimento dos EUA ou outro país. O crítico literário Tokayaki Kobayashi destaca a “exclusão das forças americanas do filme nas cenas de batalha contra o monstro” (IGARASHI, 2011, P. 280). Mesmo com

49 mais de 210 mil militares estadunidenses ainda instalados no Japão na época, mais do que o contingente japonês possuía no filme, apenas as forças de defesa e as forças marítimas especiais japonesas investem contra Godzilla . A sequência faz sentido se as ameaças nucleares dos EUA estavam realmente representadas no corpo do monstro. Logo após a devastação nuclear de Hiroshima e Nagasaki iniciou-se o processo de redenção do Japão. Depois de todo o impasse sobre a decisão dos termos de rendição, o Imperador Hirohito, até então monarca apolítico, apresenta suas condições. Ele aceitaria imediatamente a proposta da Declaração de Potsdam desde que o poder imperial fosse conservado. A figura dos monstros gigantes passaria a povoar o universo das produções do gênero tokusatsu , a partir de então. Muitas séries apresentavam novos monstros a cada episódio, e em muitos casos eles tornavam-se tão populares quanto os próprios protagonistas. Em Ultraman , os monstros, presentes em toda a série, eram figuras centrais e mais uma vez tinham a função de representar de forma metafórica questões políticas. Mesmo o corpo gigantesco de Ultraman carrega uma ambivalência. Se por um lado o personagem representa a salvação da Terra, o agente indispensável para a existência da humanidade, por outro, é um dispositivo de coibição, encarregado de eliminar qualquer manifestação resultante do progresso descontrolado e agressivo ao meio ambiente, materializado através dos monstros. De acordo com Cristiane Sato (2007) é importante evidenciar que, apesar das lutas entre Ultraman e os monstros serem um dos principais atrativos da série – influenciadas pela pururesu (luta livre), muito popular na TV japonesa da época – a série Ultraman foi criada com uma “preocupação ecológica”. Em 1950 inicia-se a Guerra da Coreia, conflito entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, que durou até 1953. Nesses anos, a intervenção militar dos EUA sobre o Japão perdurava. As tropas estadunidenses, aproveitando a posição geográfica do Japão, estratégica em relação a ambos os países, passaram também a intervir na Guerra da Coreia, em favor da Coreia do Sul. Em razão disso, as necessidades de produção bélica aumentaram consideravelmente a demanda por material de base. Oswaldo Peralva explica como isso afetou o desenvolvimento industrial do Japão:

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Cada vez mais envolvidos nesse conflito, as tropas norte americanas precisavam de uma fonte de abastecimento de material – desde vestimentas até munições e outros objetos de natureza bélica, que encomendavam às fábricas japonesas. A fim de melhorar a qualidade dos produtos, os americanos fizeram vir dos EUA um especialista em controle de qualidade. E os japoneses procurando pôr em prática o ditado de que o bom aluno é aquele que supera o mestre, ampliaram essa técnica para o Controle Total de Qualidade (CTQ), que se fazia desde a matéria-prima até o produto final. O surto de prosperidade, nesse período, foi notável. (PERALVA, 1995, p. 63 ).

Peralva ressalta ainda que na metade da década de 1950, os cidadãos japoneses ainda não haviam recuperado o nível de vida do pré-guerra, mas já havia indícios de uma estabilização. Em 1951 o comércio exterior aumentou seu valor em 34%; a produção teve um crescimento de 70% entre 1949 e 1951 e as exportações cresceram 2,7 vezes. Deste modo, os lucros das empresas e o número de empregos teve um crescimento incrível. Um dos fatores que alavancou a economia japonesa desse período foi a entrada de divisas, proveniente das aquisições e gastos com as tropas dos EUA e suas encomendas.

Essas divisas atingiram 590 milhões de dólares em 1951, mais de 800 milhões em 1952 e a mesma soma em 1953. Assim, o Japão pôde gastar 2 bilhões de dólares por ano com importações de matérias-primas, o que duplicou a capacidade produtiva da indústria. O Gabinete de Shigueru Yoshida (1948-1954) foi responsável por esse desenvolvimento. Críticas apareceram ao mesmo tempo contra uma total dependência ante os EUA. (PERALVA, 1995, p. 63 ).

Em 1954 teve início um movimento nacional de protesto, devido ao incidente com o tripulante de um barco de pesca que faleceu em consequência de uma leucemia contraída devido aos efeitos de uma bomba de hidrogênio lançada em um teste no atol de Bikini. Os japoneses passaram a exigir a proibição desses testes e a criticar a política militar do governo japonês. Em 1955 foi declarado por Hotoyama, que sucedeu Yoshida como primeiro ministro, o término do estado de guerra entre Japão e União Soviética. No ano seguinte o Japão, que vinha participando do Fundo Monetário Internacional de 1952, passou a integrar as Nações Unidas. Segundo Peralva (1995), todos esses acontecimentos estavam intimamente ligados com o novo direcionamento da política externa japonesa, voltada para a economia, que

51 trabalhava com a exportação de produtos resultantes da transformação de matéria-prima importada. O autor aponta que em torno de 1954 a economia nipônica sairia do período de recuperação para entrar em sua fase de expansão. No que se seguiu, o orçamento total do Japão ultrapassou os cinco trilhões de ienes. O crescimento da indústria de construção naval alcançou o primeiro lugar no mundo. Ainda em 1955 iniciou-se a chamada “prosperidade Jimmu”, uma referência ao primeiro imperador japonês, considerada a fase inicial da prosperidade do pós-guerra. Em 1959 passou a se chamar Iwato, o que significava a maior prosperidade alcançada desde tempos mitológicos. Já nas décadas de 1960 o consumo e o lazer continuaram avançando. Em 1970 o Japão alcançou o segundo lugar no bloco não comunista, ao atingir a marca de 59,2 trilhões de ienes em seu Produto Nacional Bruto (PNB)

Enquanto as indústrias tradicionais, como as têxteis e de aço, alcançavam altos níveis de produção, havia crescimento ainda mais espetacular em novos campos industriais, como a construção naval, a eletrônica e os equipamentos fotográficos. Na década de 60 o Japão ultrapassou os suíços na produção de relógios, os alemães nos aparelhos fotográficos, os americanos e os europeus em outros produtos eletrônicos, com o trem bala (Shinkansen). (PERALVA, 1995, p. 64).

Segundo a ERCA (Environmental Restoration and Conservation Agency ), as políticas ambientais foram minimizadas pelas empresas do governo durante este período de acelerado desenvolvimento industrial. Deste modo, uma considerável poluição ambiental ocorreu nos anos 1950 e 1960 no Japão. Entretanto, medidas de proteção ambiental passaram a ser tomadas apenas na década de 1970. O Japão, a partir da década de 1960, infringiria ao seu meio ambiente graves danos devido ao progresso e ao crescimento econômico nunca testemunhados no país com tamanha intensidade e velocidade. Os recursos naturais eram consumidos de maneira desenfreada e a indústria aumentava a emissão de resíduos no ambiente. Fábricas e conjuntos residenciais tomavam o lugar das áreas verdes. A prioridade para a população e para o governo era o rápido progresso econômico. Por essa razão, mesmo com todo o processo de degradação ambiental ocorrendo em níveis alarmantes, o assunto tinha pouco espaço na mídia, que não via as questões ecológicas com bons olhos, já que a palavra de ordem era “progresso”.

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Mais uma vez, assim como em Godzilla , os monstros parecem cumprir a missão de corporificar questões que de alguma maneira foram veladas, desmaterializadas e ressignificadas. Discussões que transgrediam a ordem nacional encontravam seu caminho e ganhavam espaço na mídia através da manifestação do grotesco e do nonsense . O diretor de Ultraman , Akio Jisoji, falou à imprensa acerca de sua interpretação sobre os monstros da série. Para ele, eram “símbolos da natureza”, vítimas da ganância humana e passíveis de compaixão que muitas vezes apenas reagiam aos efeitos negativos do progresso humano e tornavam-se tão destrutivos devido ao tamanho descomunal. Sato (2007) aponta alguns episódios interessantes da série que ilustram bem essa ideia: a fúria do monstro Jamila decorre de seu choque com um satélite terrestre; o monstro Pestar se descontrola após engolir petróleo e a reação errática do monstro Jiras ocorre após a ingestão de iscas de peixe suspeitas. O episódio de Ultraman com o monstro Jamila chama-se “Terra natal”. Nele, aviões e navios que transportavam representantes de diversos países para uma conferência de paz no Japão são misteriosamente destruídos. Um enviado da França, que integra a Patrulha Científica, revela que os aviões haviam sido destruídos como se sofressem um impacto contra uma parede invisível. Mais tarde, a Patrulha consegue atingir uma nave hostil, e quando é destruída releva o monstro Jamila, que foge. Depois disso, o enviado da França revela que, na verdade, Jamila é um humano, um astronauta dos tempos da corrida espacial deixado para trás, “sacrificado pelo bem da ciência”, que acabou chegando a um planeta sem água e comida, onde sofreu uma transformação. É dito que Jamila havia retornado à Terra em busca de vingança. O quartel general de Paris ordena que a história de Jamila seja mantida em segredo e deveria ser dado ao astronauta/monstro um enterro decente, o único modo de levar adiante a conferência de paz. Esta sequência é soturna, a revelação é feita enquanto apenas suas silhuetas apresentam-se na tela, escondendo as faces e suas expressões. Quando o monstro é atacado com fogo, seus gritos não são de raiva, o que normalmente se espera desse tipo de personagem, mas de sofrimento e lamento. Jamila revida, atacando uma aldeia, usando fogo também. Ide, cientista da Patrulha, clama para que Jamila cesse o ataque, pois os habitantes da aldeia não eram culpados do que acontecera com ele. A sequência seguinte mostra, ao som de um tema

53 musical melancólico, um close no rosto do monstro contemplando a destruição que causara na aldeia. O exército, após falhar no ataque com fogo, usa uma arma baseada em água, que parece surtir efeito contra o monstro. Finalmente Ultraman entra em cena e inicia sua luta contra Jamila, tendo como cenário o prédio da Conferência de Paz, com as bandeiras de diversos países hasteadas em sua fachada. Em determinado momento, destaca-se o monstro pisoteando as bandeiras.

Figura 21. Jamila – o ataque contra as bandeiras.

Ultraman continua usando o recurso da água para atacar Jamila, que agoniza com gritos de sofrimento. O monstro debate-se no chão lamacento e arremessa barro que, aos poucos, encobre as bandeiras do Japão e de outros países. Jamila morre enquanto tenta, sem sucesso, alcançar uma bandeira estadunidense que aparece em detalhe com o mastro quebrado, mas intacta.

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Figura 22. Jamila enterra as bandeiras sob a lama.

O monstro recebe um funeral cristão. Em sua lápide é impressa uma inscrição em francês: “ À Jamila - Ici dort ce guerrier qui s'est sacrifié en quete d'idéal pour l'humanité ainsi que pour le progress scientifique ”. Em português: “Para Jamila - Aqui dorme o guerreiro que se sacrificou em busca do ideal para a humanidade e para o progresso científico” (tradução nossa). Todavia, mesmo com a presença e com os problemas trazidos pelas intervenções de Jamila, é importante notar que o mal causado foi suficiente apenas para que a verdade viesse à tona, mas não para que a história fosse revelada ao grande público. Nesse sentido, é emblemático lembrar que as primeiras aparições do monstro não são realmente aparições, uma vez que o monstro “aparece” como uma parede invisível contra a qual se chocam aviões e navios.

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Ainda podemos pensar que Jamila, cujo nome em árabe significa “beleza plena”, consegue essas parcas revelações apenas quando assume seu aspecto monstruoso mais notável, mostrando-se fisicamente. O monstro apenas consegue revelar algo quando abandona, em definitivo, a fisicalidade humana. O segredo do astronauta deixado para trás vem à tona graças aos sintomas da monstruosidade e da aberração. Mas, por mais que a figura do monstro apresente-se como sintoma de uma verdade encoberta, como sinal que obriga os olhares a se voltarem para uma verdade antes invisível, essa verdade é apenas revelada para um comitê selecionado que decide ocultá-la. A homenagem feita ao astronauta/monstro pela inscrição em sua lápide figura muito mais como um instrumento do encobrimento da verdade do que como uma real reparação. A menção a um “dormir” (“Aqui dorme o guerreiro”) já representa uma suavização de sua morte. A elevação do astronauta a “guerreiro” e a menção de sacrifício “em busca do ideal para a humanidade e para o progresso científico” desvia a atenção do abandono e instaura uma atmosfera enganosa de sacrifício heroico voluntário. Outra metáfora presente no episódio encaixa-se na contestação da devastação ecológica, contexto típico da série. Quando do ataque de Jamila à aldeia, enquanto os aldeões fogem, um garotinho retorna para salvar algumas pombas presas em uma gaiola. De cócoras, a criança segura uma das pombas com as duas mãos. A imagem é clara e não deixa dúvidas: a frágil paz é protegida pelas mãos de uma criança. O tabu das questões ecológicas na mídia do Japão seria rompido em 1968 pelo caso conhecido mundialmente como Doença de Minamata. Uma das maiores indústrias do Japão, a produtora de fertilizantes e compostos químicos Chisso Fertilizer Co. Ltd. despejou durante mais de 30 anos nas águas da baía de Minamata cerca de 500 toneladas de metilmercúrio, contaminando pessoas e animais da região, que se alimentavam dos peixes também contaminados. As consequências foram desastrosas para a população: perda de visão e audição, deformidades, espasmos e até morte. Ainda não se sabe o número de mortos e contaminados pelo metilmercúrio no Japão. O assunto continua aparecendo na imprensa devido a novos casos de pessoas na baía de Minamata e em outras regiões do país. O episódio descrito é carregado de metáforas poderosas. Assim como em Minamata, em nome do progresso a verdade foi velada. Apenas quando os corpos foram

56 transformados, somente quando o corpo do astronauta transformado em corpo de monstro revela-se e se faz incontornavelmente presente, é que os sintomas não puderam mais ser encobertos.

Figura 23. Corpos deformados das vítimas de Minamata.

Outras produtoras passaram a lançar suas próprias versões de heróis e monstros gigantes, como Spectreman , da produtora japonesa P-Productions, responsável também por produzir a série Lion Maru . O seriado idealizado por Tomio Sagisu, que usava o pseudônimo de Souji Ushio, foi exibido entre 1971 e 1972 pela TV Asashi, contou com 63 episódios e narrava a luta do androide Spectreman contra os simioides Dr. Gori, e Karas, seu ajudante. No Brasil foi exibido na década de 1970 pela TV Record e reprisado em 1980 pela TVS (atual SBT). Assim como Ultraman , o seriado apresentava também uma mensagem de cunho ecológico, alertando sobre os danos causados pela poluição. Os episódios sempre apresentavam em seu início a seguinte narração:

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Planeta: Terra. Cidade: Tóquio. Como em todas as metrópoles deste planeta, Tóquio se acha hoje em desvantagem em sua luta contra o maior inimigo do homem: a poluição. E apesar dos esforços das autoridades de todo o mundo, pode chegar um dia em que a terra, o ar e as águas venham a se tornar letais para toda e qualquer forma de vida. Quem poderá intervir? Spectreman!

Spectreman enfrentava a cada episódio monstros criados por seu antagonista Dr. Gori, o qual usava como matéria-prima para suas criações o lixo produzido pelo homem. O seriado apresentava efeitos especiais com baixo nível de refinamento técnico, sendo, inclusive, perceptível o uso do material utilizado para a produção das maquetes. Por exemplo, durante as cenas de batalha, era possível notar as placas de isopor quando quebradas. Mesmo assim, Spectreman foi sucesso entre o público, com grande audiência no Japão, sendo responsável pela segunda kaijyu-boom – picos de popularidade dos seriados de monstros e heróis gigantes. É possível observar certa dualidade que permeia a trama, pois Dr. Gori defende o seu objetivo de dizimar a raça humana, uma vez que ela está destruindo o planeta em nome do progresso. Além disso, o vilão reaproveita a poluição produzida e o material despejado pelos humanos na criação de seus monstros. Os monstros sempre aparecem no tokusatsu e em especial nas séries analisadas ligados à questão da metamorfose, tendo seus corpos modificados por agentes externos (em geral, os antagonistas) para que os objetivos desses agentes sejam alcançados . Conceito amplamente discutido pelo filósofo francês Michel Foucault, o poder disciplinar, a manipulação dos corpos, atribuindo-lhes certa utilidade, “Uma técnica que é, pois, disciplinar; é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo” (FOUCAULT, 1999, p. 297). No contexto japonês, podemos perceber de maneira clara o uso do poder disciplinar no discurso nacionalista anterior a 1945: Os corpos japoneses estavam no coração do discurso nacionalista anterior a 1945. O regime de guerra os submeteu a regulamentos rígidos, em uma tentativa de criar corpos obedientes e patrióticos forjando laços entre a ideologia nacionalista e as funções do corpo. Todas as funções dos corpos das pessoas deveriam se dedicar aos esforços da nação em

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guerra (fossem esforços de natureza ideológica, biológica ou econômica). (IGARASHI, 2011, p. 123).

Nas produções do gênero tokusatsu estas práticas discursivas são muito claras. Assim como Godzilla , Spectreman invocaria as memórias da 2ª Guerra Mundial materializadas não só na figura de monstros, mas também na dos super-heróis. Em suas séries, as práticas discursivas de poder também são evidentes. No primeiro episódio, Transformação , o herói que defende a Terra das investidas de Dr. Gori, na verdade, serve a um grupo chamado Dominantes, responsável pela metamorfose do protagonista, que só passa a adotar sua forma heroica sob as ordens de seus mestres. Já neste episódio, Spectreman é alertado pelos Dominantes de que ninguém deve presenciar sua transformação, pois assim se tornaria inútil aos propósitos de seus mestres e seria, então, destruído. No episódio Monstro bicéfalo uma família que vive em uma aldeia é amedrontada por um monstro que não aparece. A Divisão de Pesquisa e Controle de Poluição dirige-se para um reservatório, mas parte da equipe perde-se no caminho. O restante da equipe segue com Kenji, mas o pneu do carro é furado em uma ponte por uma ponta de foice quebrada. Eles chegam até a casa da família e percebem que não há ninguém na casa e as ferramentas estão partidas. Eles ouvem um grito ao longe. Um cachorro se aproxima carregando um braço humano na boca. Eles seguem o grito e chegam a uma casa, onde uma mulher agoniza e morre na frente deles. Suas costas estão banhadas de sangue. O marido corre gritando, disparando uma arma descontroladamente. O homem prossegue como se procurasse algo. Kenji vê o monstro.

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Figura 24. O Monstro Bicéfalo – alerta e violência nos episódio de Ultraman .

Dr. Gori prepara seu plano de cobrir a aldeia com nuvens para produzir uma tempestade elétrica e arrasar a região. Kenji tenta alertar o restante da equipe que havia se perdido, mas o rádio perde o sinal. A chuva inicia, seguida da tempestade elétrica. A ponte que dá acesso à aldeia é destruída. O homem armado aparece atirando novamente, sendo seu alvo uma espécie de rato gigante alado com duas cabeças – o monstro. O monstro apanha o homem e parte seu corpo em dois. Kenji retorna com seus companheiros para a aldeia. Eles encontram um garoto, que desmaia logo após o encontro. O monstro se aproxima e ataca a casa onde estão. Eles fogem da casa e se escondem em uma vala no chão. Nesse momento, percebem que o garoto arde em febre.

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Kenji precisa se afastar dos outros para poder contatar os Dominantes e se transformar em Spectreman . Seu amigo diz que vai correr para que o monstro se distraia, permitindo aos amigos que escapem. Kenji se oferece para ir em seu lugar, os dois discutem e Kenji golpeia o rosto do amigo, que desmaia. Ele chega até o carro e procura algum lugar onde haja uma brecha entre as nuvens para poder contatar os Dominantes, e consegue. Os Dominantes ordenam a destruição do monstro, antes que ele dissemine doenças. Kenji se transforma e parte para a luta contra o monstro. Spectreman decapita o monstro e vence a luta. Entretanto, depois da luta o herói desmaia. Ao acordar está em sua forma humana e percebe que o monstro voltou à vida com duas novas cabeças, que brotaram de seu corpo. O monstro lança um raio sobre uma árvore, que cai sobre Kenji. Dr. Gori explica que os seres humanos dominam os animais inferiores, mas que os ratos, sendo mais astutos, usam o lixo da civilização humana e por isso merecem respeito. Este foi o princípio que Dr. Gori utilizou para criar o monstro: um rato de duas cabeças, transmutado e tornado mais forte pela poluição. Dr. Gori percebe que o garoto está doente e conclui que é devido ao contato com o monstro. Kenji, soterrado, é resgatado pelos Dominantes. As duas equipes da Divisão de Pesquisa e Controle de Poluição voltam a se encontrar e partem para casa. O garoto começa a delirar. Os Dominantes contatam Spectreman e ordenam que se prepare para a transformação, a fim de enfrentar o monstro que se aproxima. Seus amigos tentam impedir que ele saia do carro. Kenji é alertado que seus outros amigos correm perigo. Um policial ferido, resgatado pela equipe de Kenji, é atacado pelo monstro, que apanha seu corpo em chamas. Karas, por ordem de Dr. Gori, invade um trem e mata o maquinista. Karas, assumindo o controle do trem, segue para Tóquio, guiando o monstro para um ataque à capital. O garoto é hospitalizado e todos se preocupam com o choque que recebeu ao saber que se tornou órfão. Kenji, também no hospital, é amarrado, pois desconfiam que está tendo delírios. Os Dominantes convocam Kenji, mas como está preso não pode se transformar. Então, ele pede que o garoto o desamarre. Mesmo fraco, Spectreman parte para mais uma batalha contra o monstro.

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O herói é golpeado e cai nos trilhos. Fraco, tem seu tamanho reduzido. Karas aproxima-se do trem. O herói não consegue se levantar, mas no último instante rola para fora do caminho do trem. Caças aparecem e começam a bombardear o trem e o monstro, que destrói todos os aviões. Spectreman , parcialmente recuperado, investe contra o monstro. Falha novamente, cai, o monstro o ataca e Spectreman o decapita mais uma vez. As cabeças desprendidas do corpo do monstro atacam o herói. O corpo sem cabeça caminha em direção a Spectreman , que não consegue reagir. O herói reúne suas últimas forças e destrói o monstro, atingindo-o com uma carreta de caminhão-tanque que transporta gasolina. Como se pode notar pelas descrições acima, a violência do episódio é grande e marcante. Tal nível de violência, nos parece improvável estar presente em uma série de tokusatsu hoje, devido à construção do gênero ao longo dos anos como produto de menor ordem artística e maior infantilização. A infestação de ratos pode ser pensada como uma metáfora do crescimento desenfreado das cidades. Nesse sentido, o fato do monstro ser um grande rato com duas cabeças é emblemático. Além de colocar a figura animal em cena, constrói-se essa figura associada a uma deformidade que pode, inclusive, ser fruto de desordens ecológicas causadas pela poluição, tema constante da série Spectreman. Aliás, as duas cabeças do monstro podem ter alguma conexão com a própria dualidade do Dr. Gori que declara, ao mesmo tempo, o desejo de salvar a Terra e o de destruir os seres humanos. Concomitantemente, as ações de Spectreman, que impedem a ação do Dr. Gori, impedem também que a degradação da Terra seja evitada. Assim, Spectreman porta, por sua vez, uma dualidade em suas ações. A presença do menino órfão que tem que superar sua situação para, de certa forma, tornar-se herói ao desamarrar Spectreman , lembra a questão dos órfãos da 2ª Guerra Mundial, questão cara para o gênero tokusatsu . O fato das pessoas que tiveram contato com o monstro sejam por ele afetadas e fiquem doentes, fracas, descontroladas e alucinadas também é emblemática no que se refere ao problema causado pela poluição. As cabeças do monstro que voltam a crescer quando cortadas é clara referência à Hidra de Lerna, ser mitológico de várias cabeças que, se cortadas, regeneram em duas outras, representando os vícios humanos e a busca insaciável

62 pelo prazer. Tal figura pode ser pensada, por associação, como uma metáfora da busca desenfreada dos humanos pelo progresso e pelo conforto, mesmo que para tanto o preço seja a destruição do planeta. O episódio O exílio de Spectreman é dividido em duas partes. Na primeira, Dr. Gori rapta um gorila de um zoológico e a partir dele desenvolve um novo soldado, K. Depois disso, Dr. Gori envia Karas para a Terra para coletar substâncias poluentes. Este força um policial a tomar um líquido, levando-o a uma morte angustiante. A notícia nos jornais retrata uma morte por queimadura, causada por substâncias químicas e poluentes. Os Dominantes aparecem para Spectreman para avisá-lo sobre uma base subterrânea que Dr. Gori está instalando na Terra. Fazem a solicitação para que o herói verifique o solo do local, a fim de constatar o nível de radioatividade, possibilitando a localização exata da instalação. Spectreman envia as amostras do solo para os Dominantes. Dr. Gori transforma Karas em um gigante que passa a aterrorizar a cidade, em clara referência ao filme King Kong. O monstro passa a enfrentar a polícia e a aeronáutica. A destruição chama a atenção de Spectreman e uma luta entre os dois é travada. O herói leva desvantagem, mas é auxiliado pelos caças japoneses, vencendo a luta. Paralelamente a isso, K. sequestra uma família. Dr. Gori coloca a família em câmaras, envenenando-a com poluentes criados pelos próprios homens. O vilão explica que quando a família retornar à Terra vai parecer normal, mas o contato de outras pessoas com membros da família poderá levar à morte instantânea. O contágio eliminaria todas os habitantes da Terra e levaria Dr. Gori a alcançar seus objetivos. Kenji investiga e acaba presenciando a morte de um entregador que entra em contato com a família. Os Dominantes ordenam que Spectreman elimine as pessoas infectadas, apontando que esta é a única maneira de evitar que a contaminação se espalhe, eliminando toda a humanidade. Kenji questiona a missão, por se tratar de gente inocente. Os Dominantes afirmam que ele está programado para obedecê-los, não pode contestá-los, ameaçam destruí-lo e insistem para que ele cumpra a missão imediatamente. A primeira parte da aventura acaba com a negativa de Kenji. A segunda parte do episódio é iniciada com os Dominantes reforçando a importância da ordem de sacrificar a família. Spectreman diz que cumprindo a ordem

63 estaria agindo como Dr. Gori, afirmando que prefere morrer a ter que matar o filho do casal. Kenji avisa a família e ordena que fiquem de quarentena. Kenji adverte a Patrulha antipoluição sobre a situação. K. sequestra a companheira de Kenji e a coloca na casa da família, fazendo com que seja infectada. Os Dominantes reforçam a ordem de eliminação. Spectreman entra na casa com o intuito de cumprir a missão, mas desiste. Os Dominantes anunciam que a arrogância do herói vai ser castigada, e ele é forçado a permanecer em sua forma humana. Os Dominantes então anunciam o castigo de Spectreman : o exílio em um planeta distante. O herói é atingido por um raio e, inconsciente, é levado para o espaço, até um planeta desconhecido. Dr. Gori envia Karas e K para perseguir o herói. Quando o encontram, espancam-no, em uma longa sequência. Os Dominantes anunciam que não tem a intenção de fazer Spectreman passar o exílio em companhia de outros, então propõem um acordo – o herói terá seu poder restituído, mas terá que vencer simioides. Vencendo-os, será transportado de volta à Terra. O herói vence e retorna. Spectreman parece ter a intenção de matar a família, mas os Dominantes revelam ter descoberto uma possível cura. A técnica de cura funciona, a família sobrevive e todos são salvos. O episódio descrito acima remete, de certa forma, à outra prática do governo japonês nos tempos de guerra, a chamada Lei do Vigor Físico e a Lei da Eugenia.

Durante os esforços dos tempos de guerra, a distância entre a mente e o corpo foi dissolvida para a criação de um corpo nacional. O que era considerado como ‘não saudável’ (improdutivo e não reprodutivo) foi catalogado como uma ameaça aos interesses nacionais. (...) o governo da década de 1940 submeteu os corpos a uma rede de vigilância. Primeiro identificados através de exames físicos, os elementos “não saudáveis” se tornaram alvos de repressão. Em 1940, o governo publicou dois programas de regulação, a Lei Nacional do Vigor Físico (Kokumin Tairyoku Hoo) e a Lei Nacional de Eugenia (Kokumin Yuusei Hoo), que tinham como intenção, monitorar o aprimoramento do corpo japonês. (IGARASHI, 2011, p. 126-127).

Através da Lei Nacional do Vigor Físico, jovens com menos de 20 anos eram obrigados a se submeter a exames físicos e, em seguida, recebiam uma documentação com os resultados. Havia controle de doenças pulmonares (tuberculose), doenças venéreas, lepra, doenças mentais, tracoma, parasitas, beribéri, desnutrição e queda dos dentes. O

64 programa foi revisto em 1942, incluindo um teste de capacidade motora, de extrema importância para os objetivos militares. Já a Lei Nacional da Eugenia possibilitou ao governo comandar operações sobre os acometidos por doenças hereditárias.

A lei listava cinco subcategorias de doenças sob sua jurisdição: doença mental hereditária, retardo mental hereditário, casos extremos e malignos hereditários de caráter patológico, casos extremos e malignos hereditários de doença física, e casos extremos de deformidade hereditária. Embora o número real de operações eugênicas realizadas fosse relativamente pequeno, a estratégia de exclusão da lei incrementou o controle de corpos no pós-guerra. (...) Os corpos frágeis estavam sujeitos não apenas a uma possível intervenção eugênica do Estado, mas, igualmente, a outras práticas de exclusão da sociedade. Lepra e doença mental, por exemplo, recebiam um escrutínio oficial específico das leis nacionais do vigor e da eugenia . (IGARASHI, 2011, p. 127-128)

Já na década de 1930 os esforços para levar os portadores de hanseníase aos leprosários nacionais foram intensificados pelo governo. Apoiado por organizações não governamentais, o estado atingiu o objetivo de excluir da sociedade os portadores de hanseníase. Conforme pontua Oda (apud Ohsawa, 2011), em 1942 ocorreu a chamada Kindai no Chokoku (Superação da Modernidade), conferência com renomados intelectuais japoneses, críticos do que consideravam uma modernidade descontrolada e uma crise moral pela qual o Japão vinha passando. A conferência era uma reação a um fenômeno que ocorria no país, que passava por uma transformação em seu estilo de vida, fortemente influenciada por costumes europeus e, mais fortemente ainda, estadunidenses. Tal reação é oriunda do fato de que cidades como Tóquio e Osaka passaram a abrigar um estilo de vida cada vez mais moderno, marcado por cinemas, cafés e salões de beleza, onde a influência europeia e estadunidense se fazia sentir sem que houvesse a mediação de instituições tradicionais japonesas. Nas cidades, os padrões ocidentais impunham-se por conta própria, não sendo mais necessário invocar o imperador para justificá-los. Ao mesmo tempo em que o imperador perdia sua função legitimadora, as próprias noções de identidade e de cultura japonesa se enfraqueciam sensivelmente.

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A resolução proposta por esses intelectuais era a retomada da tradição. Oda aponta que esta bandeira de refortalecimento da cultura japonesa nunca se desvinculava de uma restauração da dedicação ao imperador e aversão à influência estrangeira. Na série Jaspion é possível perceber ecos da dinâmica tradição versus modernidade vivida no Japão. Em alguns episódios esta questão fica bem evidente. A tecnologia e os sinais da modernidade são questionados, muitas vezes pelos próprios antagonistas, como visto em Godzilla de 1954 e no Dr. Gori da série Spectreman . A franquia Metal Hero teve início com a trilogia dos Uch ū Keiji (Detetives Espaciais), Gavan, Sharivan e Shaider . Mas foi na quarta produção da franquia no Japão Kyojuu Tokusou Juspion (Investigador de Monstros Juspion ) – adaptado no Brasil como O Fantástico Jaspion – que as lutas contra monstros gigantes seriam destaque e apareceriam com regularidade em seus episódios. A série, estrelada pelo ator e dublê Hikaru Kurosaki no papel título, estreou no Japão em 15 de março de 1985 e foi transmitida até 24 de março de 1986, contando com 46 episódios que foram ao ar pela TV Asahi. No Brasil, foi lançada inicialmente em VHS pela Everest e em seguida foi exibida pela extinta Rede Manchete, como parte das atrações do programa Clube da Criança, a partir de 1988, permanecendo na grade da emissora até 1994. Na Rede Record foi transmitida entre 1994 e 1996. Em 1997 foi ao ar pela TV Gazeta e atualmente faz parte da programação da Ulbra TV. Na trama Jaspion único sobrevivente da queda de uma nave espacial no planeta Edin é criado em meio a monstros pacíficos pelo profeta de mesmo nome. Edin acredita que o órfão seja o predestinado a se tornar o guerreiro celestial profetizado na Bíblia Galáctica, que salvaria o universo das forças do mal. O profeta, então, adota o menino e o treina, na esperança de que um dia venha a derrotar Satan Goss, na sua tentativa de estabelecer o Império dos Monstros. Já na adolescência Jaspion , ciente de seu destino, recebe de seu mentor os equipamentos para auxiliá-lo no cumprimento de sua missão. Dentre eles estão: a armadura Metaltex; a Androide Anri e a nave de combate/robô gigante, chamada de Daileon. O objetivo do personagem é encontrar os pedaços da Bíblia Galáctica, único meio de destruir Satan Goss, missão que acaba o levando à Terra, após aventuras em outros planetas. Os principais personagens da série, além dos já citados, são: Macgaren, do original Mad Galant, filho de Satan Goss e rival de Jaspion ; Miya, personagem alienígena

66 resgatada em outro planeta; Boomerman, do original Boomerang, aliado de Jaspion; além do professor Nambara e seus filhos, Kanoko e Kenta, também aliados do protagonista. Mais uma vez uma produção do gênero apresenta questões mais profundas e de cunho político através de narrativas nonsense e inúmeras sequências de luta. Assuntos como, críticas ao cristianismo, dispositivos de poder, ameaça do progresso desenfreado aparecem, ora de maneira discreta, ora de forma mais explícita, nos episódios de O Fantástico Jaspion . Em quase todos os episódios, o antagonista Satan Goss usa seu poder para enfurecer os monstros, que a princípio não são maus, com o intuito de conquistar a galáxia e instaurar seu Império. Além dos monstros, Satan Goss também faz uso de seu poder para controlar aliados de Jaspion e até mesmo objetos inanimados como o Satélite Sakura. O episódio Trama Miraculosa é centrado na personagem Miki, uma garota que apresenta o poder de cura. No início Miki cura uma pomba machucada apenas por segurá-la em suas mãos. Jaspion , ao observar o ocorrido, aproxima-se da criança. A menina diz que deseja mais poder, que deseja poder voar. Na sequência seguinte, Miki, já em casa com sua família, após um tremor de terra acaba sendo soterrada nos escombros de sua casa. A menina é resgatada por Mad Galant que, aproveitando-se da vontade da garota de desenvolver suas habilidades, diz a ela que não fosse por ele, ela estaria morta. Além disso, também lhe diz que Satan Goss iria lhe conceder o desejo de ser ainda mais poderosa, amplificando seus poderes mentais, tornando-a capaz de curar até mesmo doenças que a medicina atual não conseguia. Ligada a uma máquina, Miki recebe os raios energéticos de Satan Goss, que amplia seus poderes. Em seguida, Miki é encontrada sem nenhum arranhão e com a saúde perfeita, mesmo tendo ficado sob os escombros por 13 dias. A mídia passa a divulgar o incidente como um acontecimento milagroso. A televisão mostra a menina realizando milagres, como a cura de um garoto com uma grave fratura, apenas com a imposição das mãos. Satan Goss, então, amplia ainda mais os poderes da menina. A garota renasce em uma forma iluminada e passa a ser adorada pela população como uma Deusa. Para efetuar suas curas milagrosas, Miki aparece vestida com uma indumentária que remete à vestes sagradas e passa a receber as pessoas em uma caverna. A “Deusa” cura as pessoas com um

67 raio de energia emitido pelas mãos e ordena aos que são atendidos que usem um broche com a sua imagem estampada. Os broches tornam-se objetos do desejo da população. Na verdade, esses objetos possuem dentro de si pequenas partes dos chifres de um monstro. Quem utiliza os broches acaba infectado por essa essência, passando a agir violentamente com o objetivo de destruírem uns aos outros. Portanto, as pessoas que usam os broches passam a atuar como agentes de Satan Goss, como parte de um plano para invadir o Japão sem resistência. Nambara, aliado de Jaspion , apresenta um dos broches ao herói. Surpreendentemente, o artefato movimenta-se sozinho e “pica” o braço do herói, que passa a se sentir mal e tem que ser medicado. Tempos depois, Jaspion entra disfarçado na caverna de Miki e tenta alertá-la do plano, mas a menina não acredita nas palavras do protagonista. O herói é atacado e espancado pela população. Usando sua pistola, Jaspion livra as pessoas dos broches, livrando a todos, inclusive Miki, do encantamento. Entretanto, o bando de Mad Galant consegue capturar a menina e a crucificam, prendendo-a com correntes (Figura 25). Embaixo da cruz uma bomba relógio é instalada. Incentivada por duas asseclas de Mad Galant, parte da população passa a atacar Jaspion, porém Miki solicita que parem, pois Jaspion veio para salvá-la. Uma vez que já não é mais possível encobrir a verdade por trás da trama, o monstro, cujos pedaços de chifres haviam sido usados para infectar as pessoas através dos broches, surge e está então estabelecido o duelo final do episódio, entre ele e Jaspion .

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Figura 25. Jaspion salva Miki da crucificação.

O episódio em questão é recheado de significações cuja análise pode e deve se estender. Antes de empreendermos essas análises, contudo, convém esclarecer partes do contexto social japonês que serviram de base para a narrativa. Tendo como referência as colocações de Novielli (2007), pontuamos que no fim da 2ª Guerra Mundial vivia entre os escombros do conflito uma micropopulação de órfãos, crianças abandonadas, obrigadas a arranjar-se mendigando, fazendo pequenos trabalhos ou, simplesmente, roubando os passantes. Tal cenário, como se sabe, é tristemente universal quando se aponta e analisa as inevitáveis consequências de conflitos bélicos. As condições de mal-estar social dos “pequenos adultos” não interessavam a todos, pois era justamente a essa geração desgarrada e perdida que caberia a gestão do futuro do país. No cenário do pós-guerra no Japão o florescimento dessa grande preocupação desemboca em ampla produção de filmes sobre jovens e crianças. Nesses filmes, a esses jovens e a essas crianças eram confiados os ideais mais altos: o amor, a convicção de uma justiça humana possível e a aversão à guerra. Uma vez que a presença de um grande número de órfãos era um problema social de larga escala no país assolado pela guerra e marcado pelos traumas dos bombardeios atômicos, e uma vez que as consequências de tais eventos perduram a longo prazo, esta

69 temática encontra-se transfigurada e representada no tokusatsu . Tal transfiguração e representação tornam-se evidentes no episódio acima descrito e agora analisado. Há em Trama Miraculosa elementos ligados ao desejo de poder e ao consumo desenfreado de mercadorias fetiche. O desejo de poder de Miki pode ser entendido como uma forma de suprir suas carências afetivas, e a ânsia da população pelos broches pode ser lida pelos paradigmas da indústria cultural. Há, ainda, a possibilidade de pensar os broches como mecanismos de controle populacional, estando esses objetos inadvertidamente ligados ao controle dos corpos, como acima evidenciado. Em um trabalho que pretende apontar o empobrecimento das metáforas originais do tokusatsu , é primordial perceber que o controle dos corpos, tema amplamente investigado e, portanto, parte fundamental da história cultural do Japão, ainda que às vezes obscurecido, é materializado no episódio através de um objeto de consumo imposto por uma estrutura verticalizada de poder, através da espetacularização criada em torno da personagem Miki. A santificação de Miki e a exploração e aumento de seu poder de encantamento e comunicação pelos vilões é que cria condições perfeitas para a vasta comercialização dos broches, destinados a tornar seus portadores violentos e, assim, sujeitos ao controle. É importante notar que os broches contém a imagem da menina-curandeira, sendo, portanto, ícones que remetem às hagiografias, escritos sobre a vida e obra dos santos, e às imagens sacras. Na análise da narrativa é fácil identificar pontos de intersecção entre a simbologia cristã e o desenvolvimento da trama. No início de Trama Miraculosa , Miki cura uma pomba segurando-a nas mãos. A pomba é o símbolo do Espírito Santo e também pássaro que em episódios bíblicos variados adquire significações de beatitude, como quando uma pomba retorna a Noé com um ramo de oliveira, significando que o terreno para uma nova existência estava preparado. Além disso, na sequência Miki sofre o acidente do soterramento e sai dos escombros glorificada. Tal construção remete diretamente à crucificação e posterior enterro e ressurreição de Cristo. Cristo sai de sua tumba para empreender milagres e, da mesma forma, Miki sai do soterramento – uma espécie de calvário de longa duração, de 13 dias – para assumir o posto de criança miraculosa. Após ser promovida à celebridade pela televisão, que constrói sua imagem milagrosa, Miki instala-se em uma caverna e assume a posição de oráculo. Utilizando

70 roupas que lembram indumentárias sacras, realiza curas e vai cada vez mais aumentando seu prestígio e poder de encantamento. Justamente é este prestígio e poder de encantamento que propiciam, através da imposição do uso dos broches com sua imagem, o controle das pessoas pelos vilões. Próximo ao final do episódio Miki é crucificada. A menina que já passara pelo “calvário” do soterramento sofre, então, a mesma punição máxima sofrida por Cristo. Uma vez que o episódio é destinado a um público, sobretudo, infantil e adolescente, a crucificação não acontece com pregos ou cravos, mas com correntes. Todavia, essa suavização do suplício não torna a significação menos forte ou evidente. Portanto, um acontecimento metafórico ligado à mitologia cristã – o soterramento e sobrevivência miraculosa a ele – cria condições para que a televisão explore comercialmente o episódio. Essa exploração da imagem da menina gera uma procura desenfreada pelas graças incomuns que culmina em uma nova comercialização, desta vez de artefatos benéficos em princípio, mas que são causadores de malefícios variados, dentre eles outro acionamento da mitologia cristã, como a crucificação. Essa estrutura de significações é complexa e dispara composições transversais de significado que permitem a percepção do episódio como dotado de múltiplas camadas. O contexto cultural do pós-guerra no Japão, o problema dos órfãos, a mitologia cristã, o calvário, a ressurreição, a crucificação, a exploração pela mídia e o controle das mentes e dos corpos estão presentes e funcionando narrativamente em conjunto. Tal estrutura de significações tem seu referendo na própria perspectiva de criação de O Fantástico Jaspion , uma vez que já a apontamos como uma série síntese do gênero tokusatsu . Se Jaspion reúne elementos narrativos presentes em outros títulos, Trama Miraculosa aciona, cumulativamente a isso, alguns elementos culturais que constroem uma rica rede de significados. Em outro episódio, Metamorfose de Satan Goss , o antagonista máximo de Jaspion é confrontado com o sofrimento causado pela angústia da necessidade de sua própria transformação, que garantiria sua sobrevivência. O sofrimento do vilão é tão grande que, mesmo como entidade dotada de grande poder, não pode mais controlar seus próprios sentimentos. A linha geral do episódio é dada pelo vilão Mad Galant que, para resolver o problema e aliviar o sofrimento do pai, diz que um ritual deve ser executado. Tal ritual

71 necessita do sangue de uma menina nascida na lua cheia. Ainda, para que o ritual funcione a menina deve ter o corpo preparado para realizar a dança do sacrifício, que diminuirá as aflições do vilão. No desenvolvimento da trama do episódio, devido à sua angústia e sofrimento, Satan Goss ataca a cidade de Tóquio descontroladamente. Jaspion enfrenta o vilão em uma atmosfera sombria, e Satan Goss foge. Ao encontrar seu filho, diz que deseja passar logo pela metamorfose, antes que Jaspion reúna as crianças tocadas pela luz, caso contrário não haveria mais tempo para alcançar seus objetivos. Para conseguir a garota necessária, Mad Galant trama um engodo e cria uma suposta seleção para atuação em um musical, uma adaptação do livro Alice no país das maravilhas , de Lewis Carroll. A garota Yumiko dirige-se para o teste. Aprovada, é supostamente levada pela equipe, mas na verdade trata- se de um sequestro. Yumiko, então, é treinada para executar a dança ritual, sem saber dos propósitos do vilão. Ao ser convocada, a menina diz não estar preparada, pois ainda não sabia suas falas. Recebe como resposta que apenas a dança é suficiente. O que parece estar implícito nesse fato é que, para executar a tarefa imposta pelo império dos monstros, não é necessário dar voz àqueles que servirão de ferramenta para os objetivos do império. Necessita-se apenas do sangue, é preciso apenas o corpo da menina, devidamente programado e preparado para cumprir sua função. Mais uma vez, as práticas de regulação do corpo que ocorriam no Japão desde antes da 2ª Guerra Mundial são referendadas de maneira indireta, com o agravante de se debruçar sobre a figura de uma criança.

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Figura 26. A doutrinação dos corpos japoneses.

O poder disciplinador aparece de maneira mais curiosa no episódio A investida dos aliados espaciais . Jaspion tem como companheira e auxiliar de aventuras a androide Anri. Os androides são, via de regra, mais sofisticados e semelhantes aos humanos do que os robôs, realizando funções mais elaboradas. De qualquer maneira, mesmo os androides, por conta de sua programação, realizam funções de maneira submissa aos humanos e, em especial, a seus programadores. Nesse sentido, vale lembrar as três leis da robótica, elaboradas por Isaac Asimov no livro Eu, Robô , publicado pela primeira vez em 1950. Tais leis tem o objetivo de regular o comportamento dos robôs, com ênfase em proteger os humanos de ações nocivas por parte dos robôs e, também, de maneira a impedir suas eventuais insubmissões. Mesmo que se trate de uma obra ficcional, os três preceitos de Asimov foram adotados como paradigmas pela robótica e, dessa maneira, figuram como substrato dessa ciência e do episódio aqui analisado. Os três preceitos/leis da robótica são:

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• 1ª Lei: Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, por omissão, permitir que o ser humano sofra dano; • 2ª Lei: Um robô tem de obedecer às ordens recebidas dos seres humanos, a menos que contradigam a Primeira Lei. • 3ª Lei: Um robô tem de proteger sua própria existência, desde que essa proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Leis. Para a análise do episódio A investida dos aliados espaciais , as duas primeiras leis são as mais importantes. Em especial a segunda lei, que deixa claro o princípio da necessidade incontornável da obediência. Uma vez que, teoricamente, estes preceitos estão na programação básica de um robô/androide não podem ser desconsiderados. O robô/androide só poderia desobedecer a ordem de um humano se esta ordem fosse a de ferir outro ser humano, ou se essa obediência redundasse em omissão para impedir que um ser humano fosse ferido. Anri, a companheira de Jaspion , é uma androide atípica, apresentando comportamento desobediente com relação às suas ordens. Anri constantemente desobedece Jaspion , demonstrando um comportamento insubmisso que desagrada o herói. No episódio analisado, Jaspion , cansado do comportamento da companheira androide e julgando-a rebelde, imobiliza Anri de maneira violenta. Em seguida, expõe seus circuitos e instala um microchip com o objetivo de alterar seu comportamento, tornando-a dócil e submissa. Anri, em respeito à primeira lei da robótica, não se rebela e aceita a intervenção. O que se pode analisar aqui é, justamente, a violência da intervenção e seu caráter invasivo. Jaspion imobiliza Anri, exercendo sobre ela um domínio físico que faz sobressaltar seu poder de chefia. Em seguida, rompe a “pele” da androide, expõe seus circuitos – suas entranhas, seus “órgãos”, sua intimidade – e instala nela um microchip, ou seja, uma prótese, instrumento de domínio com o objetivo único de “consertar a imperfeição da desobediência”. O caráter dominador da imposição da força física do herói, no ato de intervenção no corpo e no comportamento da androide, por si só apresenta elementos de significação que podem ser explorados em uma análise do episódio. Afinal de contas, é o masculino dominando o feminino, e dominando um feminino que, desde sua concepção, é talhado para

74 ser um “feminino perfeitamente submisso”, por não apresentar teoricamente a mínima possibilidade de insurgência. Mas, mais do que isso, a intervenção no corpo da androide, da maneira como é realizada, representa também um estupro simbólico, pois o herói e protagonista intervém direta e impositivamente no corpo da androide, apenas por sua própria vontade/necessidade de ser obedecido. Talvez seja demasiado comparar as mãos e braços do herói ao falo e o chip introduzido ao sêmen, mas na encenação do episódio essas significações comparecem e não devem ser contornadas ou esquecidas. No desenvolver da narrativa, na construção de uma ironia típica da série, após a violenta intervenção sofrida, Anri se submete temporariamente ao domínio de Jaspion . Porém, após um breve período de obediência, a androide se rebela e retorna à sua programação/personalidade costumeira. Tal fato coloca em cheque o poder do herói e sua prerrogativa de domínio, apontando uma contestação da segunda lei da robótica por parte da androide, o que insere um interessante questionamento acerca de uma suposta possibilidade de conquista de independência de ação e de pensamento por parte dos robôs/androides. Esta possibilidade é típica da ficção científica na literatura e no cinema, em obras como 2001, uma odisseia no espaço – 2001, a space odissey, livro de Arthur C. Clarke de 1968, lançado logo após sua adaptação para o cinema, por Stanley Kubrik – e Blade Runner – livro de Philip K. Dick, intitulado Do androids dream of electric sheep? no original de 1968 e adaptado para o cinema por Ridley Scott em 1982. Jaspion resgata também os temas ecológicos, os alertas contra o progresso desenfreado e o uso inconsequente da tecnologia. O segundo episódio da série, inspirado no filme Jornada nas estrelas (1979), é intitulado O triste fim de Sakura . Na trama, Sakura é um satélite construído no Japão e abandonado no espaço. Na narrativa, Jaspion encontra uma nave espacial que parece estar à deriva. Ao inspecioná-la, percebe que se trata de uma nave fantasma, sem tripulantes. Ao retornar para sua própria espaçonave, Daileon, o herói escuta um som de motor e avista a nave fantasma se movimentando. Ele resolve seguir a nave que, instantes depois, desaparece. Daileon então passa a ser atraída por uma força gravitacional que os leva ao planeta gelado Peece. Jaspion encontra, então, os destroços da nave fantasma que desaparecem de repente.

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Pouco depois, Jaspion é atacado por seres com aspecto robótico, que sequestram Miya e a androide Anri. Em seguida, surge o monstro Tetsugo que investe contra o protagonista. Herói e monstro se digladiam e Jaspion acaba soterrado na neve. Após emergir da neve, Jaspion passa a procurar por Anri e Miya e acaba sendo puxado por um túnel, para dentro de uma cidade subterrânea. Nesta cidade Jaspion enfrenta novamente os seres robóticos. Durante a luta, encontra um homem com cabelos brancos, de armadura. Este homem toca uma música em um piano de cauda, fazendo com que os vilões parem o ataque e se dispersem. O velho diz que ali havia uma aldeia onde se vivia em paz, mas quando “eles” apareceram, transformaram tudo em agonia e morte, e que seus dias estavam contados. “Eles” a quem o ancião se refere são Satan Goss e seus seguidores, que ressuscitaram o monstro gigante Tetsugo e deram vida à nave fantasma – o satélite japonês. Os vilões voltam a atacar quando o ancião tenta explicar sobre a nave, e o velho se sacrifica para impedir que Jaspion seja atingido. Suas últimas palavras são: “uma estrela é imortal”. O herói é, então, puxado por uma mão mecânica até o local onde um satélite solta uma gargalhada ameaçadora. O espírito da máquina se revela, apresentando-se como Sakura, construído pelos seres humanos e enviado aos confins do universo. Sakura revela ainda que, quando chegou ao planeta Peece, Satan Goss lhe concedeu vida e tornou-se seu Deus. O objetivo de Sakura é instaurar o império das máquinas para se vingar da humanidade. Jaspion enfrenta Sakura, que passa a controlar a androide Anri. Sakura diz que os que se opuserem serão eliminados. Satan Goss enfurece o monstro Tetsugo, que absorve a nave fantasma e o satélite Sakura. Então, o herói conclui que o monstro e o satélite são um só. No fim do episódio, o satélite transmite repetidamente a mensagem, “Advertência para humanidade!” e, então, explode, desintegrando todo o planeta. A temática do uso inconsequente da tecnologia é trabalhada no episódio com foco na rebelião do maquinário contra a humanidade. Tal recurso narrativo é frequente na ficção científica. Se no episódio A investida dos aliados espaciais pudemos encontrar uma direta relação entre os acontecimentos narrativos e a confrontação das leis da robótica, conforme preconizadas por Isaac Asimov, em O triste fim de Sakura estes preceitos também servem de base para a narrativa.

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A rebelião do maquinário contra a humanidade teve recente proeminência com a trilogia Matrix – Matrix , 1999, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, 2003. No episódio aqui analisado esta temática adquire tons pessoais. Sakura quer vingar-se da humanidade que o criou, exilou e abandonou. Tal perspectiva aproxima claramente Sakura do monstro de Frankenstein. No livro e no episódio há a rebelião contra o criador que dá a vida e abandona. Além disso, pode-se perceber que o nome do planeta, Peece, é uma transformação da palavra “peace”, que em inglês significa “paz”. Portanto, no episódio o planeta “Paz” tem, como relatado pelo ancião, seu cotidiano pacífico adulterado pela intervenção do maquinário e de Satan Goss, que também intervém no maquinário. Dessa forma, direta e metaforicamente, é o maquinário que elimina a paz, e a advertência final de Sakura não deixa dúvidas quanto ao teor com que se aborda o progresso tecnológico desenfreado. A temática de alerta contra uso inconsequente da tecnologia volta a aparecer no episódio Perigo em Tsukuba , que aproveitou para a trama a realização da Expotsukuba 85 – exposição internacional de ciência e tecnologia, realizada de março a agosto de 1985 na cidade universitária de Tsukubana, com o tema “Homem, habitação, ambiente e tecnologia”. No episódio, um grupo de cientistas é exposto ao gás emitido pelo monstro Gamadoras e, durante a exposição, começam a se comportar de maneira estranha. Um deles destrói seus experimentos enquanto grita: “Deixe a natureza em paz, não temos o direito de prolongar a vida com a ciência! Gamadoras!”. Outro cientista destrói um laboratório exclamando: “Para que fibra-ótica? Para que computadores? Para o homem basta o sol, a terra! Gamadoras!”. Após saber dos incidentes, Jaspion decide investigar o ocorrido, pois pressente “uma sombra qualquer de Satan Goss na exposição”. Ao encontrar a terceira pessoa afetada pelo monstro, o herói assiste a uma transmissão de um homem que também apresenta os efeitos da exposição ao Monstro, com a seguinte mensagem:

É pura ilusão que o século 21 será a era da ciência e da tecnologia. A ciência não será capaz de deter a perturbação climática nem impedir que a terra se torne um imenso deserto. O século 21 será o século das trevas. Até as almas dos seres humanos serão transformadas. É o Gamadoras!

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Jaspion descobre através de Edin que Gamadoras era um monstro pacífico que após a realização de testes nucleares na ilha que habitava tornou-se um ser mutante, clara referência a Godzilla . A lenda apregoava que quem tomasse seu óleo viveria mil anos, porém, aqueles que tomaram seu óleo tornaram-se violentos e a guerra nuclear levou seu planeta à extinção. O enredo deste episódio deixa muito clara a temática subjacente do repúdio ao uso indiscriminado da tecnologia. Este argumento torna-se evidente ao considerarmos o aproveitamento de um evento real dedicado à discussão dos rumos do desenvolvimento tecnológico como fundação da linha narrativa. Como agentes potencializadores da temática temos também o fato do monstro afetar, justamente, cientistas vinculados à exposição, provocando um comportamento violento e anormal nestes. Um dos cientistas dominado pelo monstro destrói seus experimentos e clama contra o prolongamento da vida; outro cientista destrói seu laboratório e prega contra a fibra ótica e contra os computadores, valorizando elementos naturais, o sol e a terra; outro, ainda, aponta um cataclismo tecnológico, fala em “trevas” e em transformação das almas humanas. Nesse sentido, o episódio analisado assoma como um antecipador de discussões que se tornariam bastante proeminentes, uma vez que hoje muito se discute sobre a intervenção científica, via implantes e manipulação genética. A evocação de malefícios ligados à utilização de fibra ótica e de computadores é notadamente direcionada ao próprio contexto de industrialização japonês. Uma argumentação assim construída torna-se tão mais forte quanto mais se lembra o quanto esse tipo de tecnologia era, e ainda é, vital como produto de desenvolvimento e de comercialização no Japão. No entanto, o que mais nos parece relevante é a exposição do terceiro cientista, evocativa e premonitória, lembrando predições maledicentes que se tornaram frequentes no fim do último milênio e continuam se apresentando até hoje. Através da referência à perturbação climática levada a cabo pelo uso indiscriminado da tecnologia, o cientista prevê que a Terra se transformaria em um “imenso deserto”, diz que o século XXI será um século de “trevas” e aponta uma transformação das almas humanas. A transformação das almas é mais subjetiva e generalista, mas a imagem de um imenso deserto é forte, causando contraste com a imagem de profusão biológica presente em diversos ecossistemas do planeta. Claramente, está apresentada aqui uma inclinação

78 cataclísmica que se choca com as perspectivas otimistas de utilização da tecnologia como fator de desenvolvimento humano e de preservação da vida no planeta, em todos os seus âmbitos. Ainda, o que mais chama atenção é o apontamento do século XXI como século de trevas. É clara a relação desta nomenclatura com a Idade Média, também conhecida como “Idade das Trevas”. O que está em cena quando se relaciona a Idade Média às trevas é uma perspectiva de falta geral de conhecimento, uma vez que boa parte deste era acessível apenas a um número muito pequeno de pessoas, socialmente privilegiadas ou ligadas à Igreja. As trevas, no contexto medieval, também apontam o mundo “não iluminado por Deus”, ou seja, um mundo associado a um demoníaco e fora do caminho traçado pela luz do conhecimento, ministrado pela palavra dos sacerdotes, portadores da palavra divina. Em Perigo em Tsukuba , o alerta antitecnologia encaminha o mundo para um futuro anômalo em que a tecnologia promoverá deserto e trevas. Portanto, a tecnologia, normalmente associada à iluminação e à promoção do conhecimento, sofre um revés de significação e passa a ser portadora de signos detratores de si mesma. Tal inversão é frequente na ficção científica, sendo possível afirmar que este episódio da série Jaspion evoca elementos de distopia ou de contra utopia, uma vez que o que se constrói pela tecnologia, ao menos na perspectiva cataclísmica proposta pelos cientistas afetados pelo monstro, é a decadência do homem e da sociedade através de um desenvolvimento que se promete, a princípio, iluminador.

2.3. Redes de Consumo e infantilização: a soberania do merchandising

Após analisar algumas das metáforas utilizadas nas primeiras versões de tokusatsu e seus significados potentes, vinculados ao contexto histórico-social do Japão e às transformações e rumos que o desenvolvimento global estava tomando, torna-se claro que o papel das diretrizes comerciais passou a ser determinante em vários sentidos, sobretudo na continuidade das séries no cinema e na televisão. Muitas séries foram vinculadas a estas diretrizes impostas pelos estúdios e redes televisivas e passaram a explorar o universo das obras para a construção de uma rede de merchandising , diluindo as metáforas originais e neutralizando os seus significados latentes.

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Como vimos, as séries foram construídas tendo em vista discussões políticas, que mesmo não assomando de maneira direta nas tramas, as influenciaram. As discussões de ordem social e histórica que pululam sob a camada mais superficial do tokusatsu , e em especial das séries aqui referidas, fazem com que tenham dupla qualidade: são bons objetos artísticos de entretenimento, pois atraentes em termos estruturais, imagéticos e narrativos e são agentes de conscientização eficientes, mesmo que essa conscientização não seja imediatamente percebida, na medida em que discutem seus tópicos com qualidade. Portanto, encontramos uma virtude do tokusatsu que se ancora nos melhores desenvolvimentos artísticos unidos a uma discussão importante. A nosso ver, uma obra de arte não tem necessariamente que ser submissa à sua função social. O próprio fato de ser uma obra de arte já a torna uma entidade que presta um serviço ao social, o serviço de ser ela mesma e de significar através de seus próprios parâmetros. A vinculação dessa obra de arte a uma função social, portanto, figura como um “extra”, e se a obra cumpre esse extra sem depreciar seu caráter artístico, tanto melhor. O tokusatsu , portanto, é um tipo de produto midiático que realiza essa dupla função, sem deixar que qualquer uma delas se perca. A nosso ver, o gênero realiza ambas as funções de maneira plena e vinculada porque tem como parâmetro principal o desenvolvimento artístico. As passagens em que se nota um ensinamento ou uma “lição de moral” são integradas nas tramas. O primeiro exemplo que gostaria de analisar é Godzilla . Cristiane Sato (2007) comenta que, a princípio, o estúdio não tinha pretensão de produzir novos filmes com o personagem. Em 1969 o diretor Ishiro Honda declarou em uma entrevista que não havia planos para uma sequência e disse ainda, “ingenuamente esperávamos que o fim de Godzilla coincidisse com o fim dos testes nucleares” (SATO, 2007, p. 180 ). Esta afirmação traça a intenção social por trás da obra e evidencia sua metáfora, embora, como já afirmamos, a intenção social e a metáfora não obliterem o desenvolvimento artístico do filme. Entretanto, devido ao sucesso da produção, mais de 30 longas metragens tendo Godzilla como protagonista seriam produzidos nos anos seguintes. Sato ressalta que o fascínio que a figura do monstro causou nas crianças incentivou a Toho a focar a narrativa da franquia em temas que atraíssem ainda mais o público infantil. O estúdio passaria a

80 aproveitar a popularidade da luta livre, usando os combates entre os personagens de forma estratégica. Tais direcionamentos são, explicitamente, vinculados a fins comerciais. Não se trata de propor uma demonização da comercialização de produtos, mas, sim, de dar a ver o quanto tal diretriz desvia-se das orientações das obras fundadoras. Transformar Godzilla ou qualquer produto não criado para crianças, em um produto destinado ao público infantil demanda naturalmente um processo de desconstrução deste, em termos de suavização. Em suas frequentes adaptações de contos de fadas para o cinema, em animações, os estúdios Disney, focados no público infantil, utilizam versões mais amenas dos contos. Como se sabe, os contos de fada são frequentemente recheados de episódios narrativos e “lições a aprender” construídas por meio de elementos áridos que, muitas vezes, suscitam o grotesco, o bizarro, a dor e o sacrifício. Ao longo dos anos, em parte por conta de sua transmissão oral, em parte por conta de um arrefecimento da mensagem em prol de sua maior popularidade, esses contos de fada foram sofrendo reelaborações, sendo suprimidos ou reescritos seus elementos narrativos mais agressivos. A subordinação das séries de tokusatsu aqui analisadas aos fins comerciais e, em especial, sua adequação ao público infantil tem o mesmo caráter que a suavização dos contos de fadas. Como se verá adiante, isso se reflete em uma série de aspectos, desde o desenvolvimento das narrativas até a representação dos personagens. No caso de Godzilla , uma desconstrução imagética da periculosidade do monstro é realizada, como demonstraremos. A inserção da performance típica da luta livre na coreografia dos filmes direciona para a composição de espetáculo. Como se sabe, a composição e modus operandi da luta livre ou wrestling é muito mais próxima do teatro do que do combate. Tanto em eventos ao vivo (muito tradicionais na cultura mexicana) como em eventos transmitidos pela televisão (também de grande repercussão no México), as lutas são mais encenadas do que efetivamente realizadas. O que está em cena nos embates é muito mais a suspensão da descrença do que a imposição da supremacia física. Em sua obra Mitologias , Roland Barthes dedica um dos capítulos à luta livre, desenvolvendo argumentação no sentido acima expresso.

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Assim, quando em 1955 estreia o segundo filme da franquia, Godzilla no Gyakushu , que apresentava a luta do monstro Anjirasu contra Godzilla , as diretrizes de reorientação para uma temática mais suave e a inscrição das sequências de luta no universo da luta livre já estavam em voga. Para Yoshikuni Igarashi nas sequências as características do monstro seriam drasticamente alteradas, e a perspectiva crítica original sobre a narrativa fundadora se perderia. A fúria destrutiva do personagem era acentuada por seus movimentos desajeitados que em parte resultavam do enorme peso da roupa de borracha carregada com grande dificuldade pelo ator e também reflexo do desconforto causado pela falta de adaptação anatômica da fantasia. “Por isso, o senso de materialidade diáfana que o primeiro Godzilla exibia em abundância era bastante fortuito” (IGARASHI, 2011, p. 287-288 ). O ator não tinha liberdade de movimento e, diversas vezes, caía durante a filmagem, só conseguindo levantar com a ajuda dos colegas. Com o passar dos anos, conforme a tecnologia na construção de monstros no cinema se desenvolveu, as roupas ficaram mais leves e confortáveis, permitindo mais controle de movimento e, no caso da caracterização de Godzilla , deixando o monstro mais veloz e mais similar aos movimentos de um ser humano. Isso afetou negativamente os efeitos artísticos originais da obra. Apesar da utilização de fantasia por um ator, em alguma medida, também poder ser considerada um efeito especial e, por isso, estar em consonância com as características do gênero, isso diferiu demasiadamente da linha estética inicial de Godzilla . Portanto, em Godzilla no Gyakushu , a “humanização de Godzilla já estava em progresso” ( IGARASHI, 2011, p. 288 ). Nesse sentido, é emblemático e simbólico notar que essa humanização, assim como a nova orientação artística, vem “de fora para dentro” dos filmes. A utilização de atores vestidos de monstros, assim como a diretriz mercadológica que motivou sua inserção, são elementos alheios aos filmes enquanto unidade estética, ainda que façam parte de sua base. Tal parâmetro lembra posicionamentos típicos da indústria cultural, uma vez que esta promove a mercantilização de bens culturais sob a batuta de uma orientação mercadológica vertical, que parte das cúpulas das corporações para atingir e orientar a

82 própria concepção dos produtos de cultura e redundar em sua subordinação conceitual, estrutural, temática, estética e simbólica. Quando dizemos que a utilização de atores vestidos de monstros é um elemento “alheio” aos filmes, queremos pontuar que é um elemento alheio à concepção primordial da obra fundadora. Mais importante ainda, um elemento “alheio” fincado no novo paradigma traçado por uma suavização do produto, ao modo da suavização sofrida pelos contos de fada, que parte de uma orientação mais aberta e/ou subordinada a fins comerciais. Desse modo, o embate entre Godzilla e Anjirasu sugere que a narrativa do filme não consegue ser sustentada unicamente pela monstruosidade de Godzilla , ou, ainda, que a monstruosidade de Godzilla pode ser prejudicial ou diminuidora de seu potencial de popularização. Eis o dilema artístico apresentado. O embate entre a manutenção da monstruosidade original e a construção de uma monstruosidade mais antropomórfica, algo desajeitada e suave, foi vencido não pela diretriz artística mais congruente e ousada, mas sim pela orientação comercial, menos relevante. O uso das coreografias típicas da luta livre acentua o efeito de “domesticação da monstruosidade, através da produção de uma narrativa que antropomorfiza Godzilla” (IGARASHI, 2011, p. 288-289). Igarashi pondera que, mesmo com esse enfraquecimento da orientação artística original e com todas as alterações na estratégia da narrativa da franquia, a sequência de Godzilla mantém sua conexão com as marcas da guerra e à resistência ou resolução final das tensões entre Japão e EUA fomentadas pela narrativa fundadora. No filme o monstro é, assim como um inseto, atraído durante a noite pelas luzes da cidade de Osaka, comportamento similar ao Godzilla do primeiro filme, atraído pelas luzes de Tóquio. Uma limitação com relação à iluminação é estabelecida a fim de evitar a entrada de Godzilla na cidade. De acordo com Igarashi, essa sequência faz alusão ao período da guerra em que havia receio de que as luzes pudessem atrair os bombardeiros americanos B-29, criando regulação vivida pelos japoneses neste período. Em 1956, incentivada pelo sucesso comercial de Godzilla no Japão, a Columbia Pictures adquire os direitos do filme e o lança nos EUA com o nome de Godzilla, Rei dos Monstros . O filme foi retalhado e reconstruído, havendo mais de 20 minutos de corte no material original. Além disso, foram inseridas novas cenas apresentando um personagem estadunidense, interpretado por Raymond Burr.

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Tal reconstrução, por suas características, demonstra um profundo desrespeito com o material fonte, uma vez que a inserção de um personagem nacional, a retirada de material e a nova composição da edição fazem desvanecer a obra inicial em prol da constituição de uma obra derivada que serve muito mais a propósitos comerciais do que a intuitos criativos ou semióticos. Assim, com o passar dos anos, as produções subsequentes protagonizadas pelo monstro vão se distanciando das memórias de guerra e o poder crítico de Godzilla vai definhando (Igarashi, 2011). Dentro desse contexto, trata-se do declínio do poder crítico, muito ancorado na perda das metáforas originais, considerando que o distanciamento do eixo narrativo tradicional faz perder a linha de argumentação típica da obra originária, que tinha muito a representar em termos sociais e históricos. Seguindo essa linha de raciocínio da indústria, em 1962 o personagem Godzilla retorna ao cinema em um duelo contra um ícone do cinema dos EUA, King Kong. O filme original do personagem símio provavelmente inspirou a própria criação de Godzilla . No filme, intitulado King Kong contra Godzilla , os monstros se enfrentam em terras nipônicas. Segundo Sato (2007), a produção de 1962, como visava atingir o público infantil, é rodado em cores, apresentando uma versão heroica do monstro japonês. Igarashi (2011) realça que o filme deixa de lado a atmosfera soturna enfatizada pelo preto e branco dos dois primeiros filmes. Além disso, para o autor, o filme replica a narrativa fundadora do pós-guerra, abrindo mão de qualquer noção crítica mais vinculada aos sentidos primordiais e inaugurando uma linha metafórica diferente:

(...) os EUA salvam o Japão do monstro japonês. Além do que, é também uma mulher, nesse caso japonesa, que se torna objeto de desejo de King Kong. Há até uma cena em que King Kong fica em cima do Prédio da Assembleia Nacional com a mulher em sua mão, representando, destacadamente, o sentido de salvação: submissão sexual aos EUA. (IGARASHI, 2011, p. 291-292)

Embora menos atenta aos problemas suscitados nas primeiras produções, King Kong contra Godzilla alcançou sucesso, com mais de 12 milhões de ingressos vendidos somente no Japão. De qualquer forma, é importante apontar que nesse filme se as metáforas originais foram perdidas, a narrativa de domínio não apenas da indústria cultural, mas também do país interventor, fez-se presente. O fato dos EUA salvarem o Japão do monstro 84 japonês, em larga medida é trazida da situação histórica de intervenção estadunidense sobre o Japão após a 2ª Guerra Mundial. A presença de uma mulher japonesa nas mãos do “salvador” oriundo dos EUA sobre o prédio da Assembléia Nacional não deixa dúvidas quanto a isso. A transformação da figura monstruosa de Godzilla é ainda reforçada nas continuações da franquia. Em Sandai Kaiju Chikyu (Godzilla versus rei Ghridah ) de 1964, ano das olimpíadas em Tóquio, Godzilla completa sua metamorfose. Torna-se, afinal, um herói ao estabelecer uma aliança com os monstros Mothra e Rodan, com o objetivo de defender a humanidade contra o monstro vindo de outro planeta, Rei Ghridah. O processo de transformação da figura monstruosa em uma figura heroica coroa a depauperação da metáfora de monstruosidade original. Ainda que desde os primórdios a figura monstruosa de Godzilla tenha também ares de um estandarte de aviso com relação a problemas sócio-históricos, em especial com relação ao poder nuclear, o personagem mantém sua característica monstruosa e atua através dela. A adição de um caráter definitivamente heroico a Godzilla é contrária à sua delimitação inicial enquanto personagem, reduzindo seu horizonte semiótico a uma esfera de maior obviedade e menor polissemia. O processo de antropomorfização e domesticação de Godzilla chega ao seu auge no oitavo filme da série, Son of Godzilla , lançado em 1967, que concede a Godzilla a paternidade. Segundo Igarashi, com a presença de Manilla, nome do filho do monstro, e, em especial, sua capacidade de se comunicar em japonês instaura-se a “domesticação derradeira da monstruosidade” (2011, p. 293 ). Ainda de acordo com o Igarashi, o Japão da década de 1960 apresentava sinais de otimismo exacerbado, inspirado pelo crescimento econômico, que não mais comportava as trevas dos dois primeiros filmes e reservava para os monstros nada mais que o papel de figura caricata. Este caráter caricato pode ser facilmente notado na figura 27, abaixo, na qual se pode perceber o quanto o corpo de Manilla tem curvas suaves e arredondadas. O “monstro” apresenta rosto amigável e expressão alegre, em completa quebra de vínculo com a imagem de seu pai, cuja constituição corporal era marcada pela agudez e pela dureza.

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Figura 27. O filho de Godzilla – antropormifização do monstro.

Ishiro Honda, responsável pela direção dos seis primeiros filmes da franquia, afirmou que inicialmente as crianças não foram consideradas como público do Godzilla . Entretanto, a imagem acima não deixa dúvidas quanto ao redirecionamento das produções para o público infantil ocorrido a partir da década de 1960, corroborando a ideia de transformação do monstro a cada nova produção da franquia. Este redirecionamento afetaria negativamente e de forma notável a produção das obras. Fazendo a contraposição entre a imagem do Godzilla e a imagem de seu filho (figura 27, acima), podemos notar o quanto o empobrecimento das metáforas originais do filme são proeminentes. Basta pensar no processo de suavização e de antropomorfização da monstruosidade que pode ser visto, partindo de Godzilla e chegando a Manilla. A diferença entre um monstro ameaçador e um “humano monstrificado”, com ares de Golem benéfico, a ruptura que há entre um ser hediondo e seu filho de imagem domesticada, não deixam dúvidas quanto à interferência dos fins comerciais no desenvolvimento da franquia,

86 evidenciando o quanto essa interferência empobreceu as significações primeiras, mais profundas. Além das inúmeras sequências e adaptações, a figura do monstro migraria para outros segmentos. Uma longa série de brinquedos e de outros artefatos com a marca Godzilla foram produzidos, desde a estreia do filme em 1954. Empresas como Bullmark, Marusan e Bapresto, colocaram no mercado uma variada gama de produtos. Os brinquedos, pensados no contexto da atividade lúdica da brincadeira, podem ser considerados uma forma de disponibilizar um processo de recriação da história do monstro. Neste momento, porém, o que mais nos interessa é a exploração da figura monstruosa como instrumento comercial. A imagem abaixo é emblemática dessa exploração, e nos dá a medida da utilização de Godzilla pela indústria.

Figura 28. A desconstrução da imagem do monstro – porta papel higiênico.

Na figura acima, a transformação do monstro em item de comércio e o enfraquecimento das metáforas originais atinge um grau quase máximo – de representante da ameaça nuclear e repositório das memórias de guerra japonesas, Godzilla passa a suporte

87 de papel higiênico. Ainda que na embalagem a figura do monstro guarde bons resquícios de sua construção inicial, e ainda que seja adicionada de onomatopeias e olhos vermelhos ameaçadores, a desconstrução das significações é tão grande que instaura uma atmosfera cômica e risível sobre um objeto que primordialmente não continha esses direcionamentos artísticos e semânticos. Tal apropriação permite conexão com um caso ocorrido no Brasil: o chamado “Incidente de Varginha”. O caso seria o de supostas aparições de objetos voadores não identificados na cidade de Varginha, Sul de Minas Gerais, em 1996. O episódio foi investigado e posteriormente esclarecido de maneira oficial como um mal-entendido. O desenvolvimento investigativo do fato não nos interessa tanto, mas, sim, o desenvolvimento comercial que o caso tomou, passando de “sério” a “pitoresco e humorístico”. A exploração comercial do incidente deu-se em múltiplos níveis, foi adotada tanto pelas autoridades locais quanto por empresas interessadas em explorar seus potenciais. As figuras 29, 30 e 31, abaixo, ilustram esse processo.

Figura 29. Estátua do ET de Varginha.

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Figura 30. Caixa d’água em formato de disco voador.

Guardadas as devidas proporções e significações, o processo de exploração comercial gerado sobre o incidente de Varginha é muito próximo ao que ocorreu com a depauperação das metáforas em Godzilla . Em ambos os casos, as perdas cognitivas são ocasionadas pela apropriação para fins diversos dos originais e reforçadas pela antropomorfização e pela infantilização dos personagens. A estátua do ET (figura 289, a caixa d’água (figura 30) e a história em quadrinhos (figura 31) que tem o ET como personagem são exemplos claros do

Figura 31. História em quadrinhos que usa tipo de exploração comercial relacionada à que foi o ET como personagem. instalada sobre a figura e sobre os significados originários de Godzilla . No caso do ET, como no caso do monstro, uma criatura em princípio ameaçadora é tornada familiar e humana. O ET alegremente pisca um olho e segura um mapa do estado, sua “espaçonave” serve à população da cidade como depósito de água e ele também pode ser um “novo amiguinho espacial” (figura 31). Tanto no caso da

89 representação comercial do ET de Varginha como no caso da constituição física de Manilla, a antropomorfização, a suavização da figura monstruosa e o empobrecimento das metáforas originais estão fortemente presentes. Em 1978, através da coprodução do estúdio Hanna Barbera e da TohoProduction, foi produzida a série animada protagonizada por Godzilla . A história apresenta as aventuras de uma equipe de cientistas a bordo do navio Calico, liderado pelo Capitão Carl Majors. Durante a aventura é introduzido também o personagem Godzooky, o “primo covarde” de Godzilla . Através de um comunicador, a equipe era capaz de chamar o monstro em situações de perigo. Os episódios sempre apresentavam ao público algum aparato científico com proposta educacional.

Figura 32. A versão animada de Godzilla .

Conforme se pode notar na figura acima, não há um processo de antropomorfização do monstro, mas é mais uma vez evidente a suavização da figura. Muito diferentemente do monstro de 1954, Godzooky tem curvas suaves e expressão amigável. Embora não seja uma figura tão depreciativa quanto Manilla, Godzooky tem feições arredondadas, sua linha de barbatanas nas costas é suave, muito diferente das pontiagudas e angulosas barbatanas do Godzilla . Além disso, Godzooky é muito mais um mascote do grupo do que uma figura monstruosa com qualquer significação mais aguda.

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Ademais, uma vez que há a utilização dos episódios para fins didáticos com o ensinamento sobre aparatos científicos, as significações ficam muito subordinadas a esse fim. Mais uma vez, muito distante da obra original, as metáforas, se existem e se é possível chamá-las assim, são subordinadas a uma função, o que enfraquece o poder metafórico. Assim como no caso de Godzilla , o sucesso de Ultraman levou à sua expansão para outras linhas de produtos. Figuras de ação foram fabricadas por algumas empresas como Marusan, Bullmark, e mais recentemente pela Medicom. Como na exploração comercial de Godzilla , em muitos casos Ultraman e os monstros por ele combatidos são representados com feições caricatas e infantis, como é o caso da linha SD ( Super Deformed ), estilo de caricatura japonesa na qual os personagens são apresentados com o tamanho da cabeça e dos olhos aumentados e corpo atarracado, tentando aproximar-se das proporções de uma criança pequena, afastando-se de suas referências iniciais. A linha SD de Ultraman ganhou também uma adaptação para os videogames reproduzindo o mesmo estilo infantil (figura 33). No caso ao lado, há uma suavização e infantilização da figura do herói, com claros fins comerciais. O personagem é tornado caricato, e sua seriedade é revestida de conteúdos infantis e de um humor agregado. Mesmo os monstros, que aparecem no fundo da imagem acima são revestidos dessa atmosfera de não seriedade e caricaturização. Essa depauperação imagética é diversa de Godzilla , mas cumpre as mesmas funções. Se Ultraman originalmente é um humanoide, a derivação acima perde o antropomorfismo Figura 33. Capa de game para o console Game Boy, da Nintendo. mais proporcional e decai para um antropomorfismo mais fantasioso, inserindo-se numa ludicidade na qual a série não estava

91 inscrita. No caso dos monstros, a infantilização das figuras não os faz destoar tanto das figuras originais, que já são, em si, algo caricatas. Mas, de qualquer modo, a mera inscrição dos monstros em um contexto mais infantilizado faz perder a semântica de base da série. A popularidade da imagem de Ultraman passa a ser usada também como agente agregador de valor para variadas marcas. Recentemente o personagem foi usado para promover o lançamento de um novo produto da operadora japonesa de celular Softbank, o roteador ultra wi-fi 4G.

Figura 34. Ultraman no lançamento do roteador ultra wi-fi da Softbank.

A simples utilização do personagem como garoto propaganda não deixa dúvidas quanto à redução da significação do personagem. De entidade combativa de males que afetam a sociedade japonesa e, de uma maneira mais geral, afetam também o ecossistema mundial, Ultraman passa a vendedor de roteadores e a representante de uma corporação. Portanto, o personagem sai de uma esfera de significação de herói para uma esfera mais baixa, de instrumento de vendas. A subordinação de figuras emblemáticas a fins comerciais não é novidade. Porém, quando esta subordinação atinge um ícone cujo escopo suscita significações maiores,

92 típicas da construção do caráter heroico, sujeitando a figura do herói à atuação como mero coadjuvante de uma ação comercial, está sujeitando a direcionamentos corporativos não apenas sua figura como também o que essa figura representou ao longo dos anos, o que definitivamente comparece como demérito. Como no caso da desconstrução acima apresentada, relativa ao personagem Ultraman , os significados originais da série Spectremen e, em especial, sua figura heroica e as figuras dos vilões são também atingidos pela estética SD, com sua característica deformação caricatural de perspectiva, voltada para a representação das proporções corporais de criança. Tal desconstrução afasta Spectremen de suas referências estéticas, inserindo-o em um contexto infantil e infantilizante, muito diferente do contexto inicial da série.

Figura 35. Personagens SD de Spectreman.

A produção dos personagens SD de Spectreman obedece também à lógica de suavização e infantilização da figura do herói com fins comerciais. O que se abala com sua

93 caricaturização é a seriedade do herói e de seus antagonistas, que se torna repleta de conteúdos infantis e de um humor latente. A imposição de uma ludicidade de matriz infantil em personagens que não a portavam e o consequente empobrecimento das metáforas originais fica evidente se pensarmos que a infantilização das figuras torna, como se pode notar na figura acima, herói e vilões em figuras desajeitadas. A figura SD de Spectreman guarda em si uma postura corporal que remete à dignidade e heroicidade. As figuras do Dr. Gori e seu ajudante guardam, respectivamente, um sentido de autoridade 4 e de combatividade. Todavia, a deformação oferecida pela perspectiva SD entra em choque com essas posturas corporais, tornando-as inócuas ou, no mínimo, tão suavizadas quanto possível, o que direciona as figuras para a infantilização que faz empobrecer os significados primários da série. Na mesma direção semântica que a desconstrução das figuras SD de Spectreman, encontramos as representações do personagem transformado em brinquedo de banho e em brinquedo de corda, que podem ser conferidas nas figuras 36 e 37.

Figura 36. Brinquedo de banho.

4 Vale reparar que a figura do Dr. Gori, com sua mão levantada, remete à saudação nazista para Hitler. 94

Figura 37. Brinquedo de corda.

Ambas as representações acima são distorções bastante proeminentes dos sentidos primordiais. O que imediatamente assoma é a evidente comercialização direcionada ao público infantil, também em voga na representação SD, mas, o que nos parece mais importante é o sentido específico dessas duas distorções. Tanto o brinquedo de banho quanto o brinquedo de corda trabalham com o arredondamento das formas. A figura do personagem Spectreman, inicialmente mais angulosa, é suavizada e arredondada para que circule com maior familiaridade pelo universo lúdico das crianças. Com tal processo agregado, ocorre a vulgarização da imagem do herói, que passa a ser inscrita em um universo dúbio no qual sua seriedade heroica são atribuídas características de suavização, deformando os sentidos originais. Além disso, não se pode deixar de apontar a radical mudança de contexto. A retirada do herói de seu eixo espaço-temporal de origem e sua inscrição no universo desses dois tipos de brinquedo é bastante significativo.

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A representação de Spectreman como um brinquedo de banho transfere o personagem do contexto da série para um espaço de significações em que este pode figurar penas como acessório. Transfigurado em uma distração para que a criança se aquiete ou fique mais tranquila e dócil durante o ritual de limpeza, Spectreman passa a ser percebido também como um herói portador destas qualidades de distração, tranquilidade e docilidade. Tal significação passa a ser paralela à significação originária do herói, criando um movimento de contraposição que trabalha para a decomposição dos significados primordiais da série. O brinquedo de corda faz um movimento ainda mais desconstrutor da imagem original do herói. Retirando Spectreman de seu contexto e representação heroicos, inscreve- o no universo dos brinquedos e, ainda mais, no universo dos autômatos. Tradicionalmente, nos aparelhos movidos a corda, como relógios, o ato de “dar corda” representa uma instrução irrevogável para a realização de ações automáticas e incontestáveis. Como um relógio de corda não tem opção de não começar ou continuar a trabalhar a partir do momento em que é acionado, salvo se estiver danificado, também o herói, via sua representação infantilizada, passa a ser um instrumento que recebe uma ordem e a executa, invariável e repetidamente. Essa nova esfera de significação é, a nosso ver, mais potente que a do brinquedo de banho. Por isso, prejudica ainda mais os significados originais do que a outra. Em se tratando de um herói, tradicionalmente dotado de destreza física e qualidades éticas incorruptíveis, realizador de tarefas que o exigem em altos níveis, sua transformação em um autômato de brinquedo, que após receber uma ordem ou carga de energia converte-se em um instrumento repetidor de ações mecânicas previamente programadas, é algo que pode ser considerado um desastre semântico. Jaspion , assim como as produções anteriores do gênero, teve seu nome vinculado a dezenas de subprodutos como uma linha de brinquedos, produzida pela Bandai, e revistas. Uma vez que a popularidade da série O Fantástico Jaspion no Brasil foi bastante elevada, contou com desenvolvimentos comercias de várias ordens, tanto de espectro mais comercial quanto em termos de apropriações bastante típicas do contexto cultural brasileiro, como a transformação do personagem em atração circense. Esses produtos e apropriações serão tratados a seguir.

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A verve comercial ligada ao personagem Jaspion pode ser sentida na construção industrial de sua representação como action figure , expressão que pode ser traduzida como “figura de ação”, nome mais especializado para os populares “bonecos”. A fábrica de brinquedos Glasslite usou como base para a produção da action figure do personagem Jaspion o corpo já fabricado do personagem Robocop. Tal decisão relativa ao processo de fabricação da action figure , além de indicar algum insucesso do personagem Robocop, indica também um descuido com a peculiaridade estética do personagem Jaspion . A utilização de uma matriz já pronta, relativa a um personagem com a constituição física bem diferente, é obviamente ancorada em uma diretriz de produção comercial não vinculada à fidelidade aos significados primordiais da série, ferindo significativamente sua estética. Assim

Figura 38. Boneco produzido pela Glaslite, como nos aproveitando a matriz do corpo do boneco Robocop. casos de Ultraman e Spectreman , Jaspion também teve representações que se encaixam na estética SD. O caso de representação de Jaspion recolhido desse contexto é, talvez, o que mais se distancie dos sentidos iniciais da série, uma vez que apresenta tanto a deformação da perspectiva original quanto a transformação do personagem em um objeto de utilidade imbuído de um senso de extravagância pejorativa. Figura 39. Chaveiro SD . Como se pode conferir na figura 39, o personagem Jaspion foi transformado em um chaveiro. A estética do personagem chaveiro é derivada das representações SD, embora não seja uma representação SD tradicional. A cabeça do personagem é ligeiramente maior do

97 que seria em uma proporção correta, mas o exagero não é tão grande a ponto de ser classificado como uma representação SD “clássica”. O corpo do personagem também é achatado e atarracado. Apesar da figura apresentar uma postura combativa, a junção da cabeça e do corpo, esteticamente distorcidos, cria uma impressão de ridículo facilmente perceptível. Este fator aliado à função de chaveiro da figura, cria um objeto extravagante, podendo ser considerado “de mau gosto”. Ainda que justamente por esse caráter “de mau gosto” o objeto possa tornar-se interessante, se inscrito na esfera do inusitado, isso não anula seu sentido premente de desconstrução dos sentidos primordiais da série, principalmente no que tange à ridicularização de seu protagonista. Na figura ao lado encontramos um caso emblemático da dissociação dos sentidos originais da série Jaspion , na forma de inserção do protagonista no contexto de espetáculos circenses. Não se trata de um apontamento crítico com relação ao espetáculo circense de maneira geral, nem a um espetáculo circense em particular. Obviamente, sabemos que o circo é uma das esferas de comunicação, arte e espetáculo das mais privilegiadas do ponto de vista do desenvolvimento de uma semântica peculiar, apresentando um elevado índice de elaboração conceitual, estrutural e temático.

Figura 40. Apresentação circense com o Todavia, para os fins deste trabalho, devemos apontar personagem Jaspion . o que a inserção de um personagem como Jaspion , dentro de um contexto circense de espetáculo, traz para a série em si, no tocante ao enfraquecimento e ao desvio dos significados inicialmente desenvolvidos. Uma vez que o espetáculo circense é composto por um elenco bastante variado e atrações apresentadas em sequência, é importante perceber que a inserção de uma encenação realizada com um personagem de tokusatsu só pode estar inscrita neste âmbito. Mesmo que a encenação com o personagem Jaspion possa ter destaque na programação do circo, o simples fato de constar como figurante em uma lista de atrações variadas faz com

98 que a atração, de alguma forma, perca sua integridade significante se pensada como uma unidade de significado. Uma atração singular, portanto, é vista mais como parte de um espetáculo geral do que como uma atração em si, com seus significados particulares plenamente expostos e por isso perceptíveis como unidade semântica. Além disso, podemos pensar que para uma atração importa muito as apresentações que lhe são imediatamente precedentes e as que lhe seguem. No contexto circense é muito diferente quando uma atração é precedida por um show de palhaços ou por uma apresentação do Globo da Morte. Um show de palhaços normalmente é carregado de ironia e apresenta o desenvolvimento de um sentido de comédia burlesca, ao estilo pastelão. Uma apresentação do Globo da Morte é marcada por uma atmosfera de tensão e perigo. Tais atmosferas semânticas impregnam a atração seguinte com seus próprios significados. Uma representação relativa ao personagem Jaspion estaria, então, imbuída de um certo tom inicial de pastiche, se precedida por um show de palhaços, ou um certo tom de ameaça, se precedida por uma apresentação de Globo da Morte. Ao mesmo tempo, a apresentação de Jaspion imprime sua própria nuance à apresentação posterior. Tal efeito é típico do circo e incontornável em qualquer espetáculo circense. Como dissemos, não é nosso intuito depauperar esse efeito, mas apontá-lo como parte do processo de desconstrução dos sentidos originais da apropriação do personagem Jaspion no universo circense. A simples inserção de uma série de tokusatsu em um ambiente cultural que lhe é alheio já seria suficiente para o empobrecimento ou, no mínimo, para o desvio de seus significados. A inserção da representação relativa à Jaspion em uma série de atrações que guarda significados individuais de ordem múltipla também promove essa dissociação. Tanto o personagem Jaspion quanto alguns desenvolvimentos conceituais e temáticos da série, bem como conceitos do próprio gênero tokusatsu , dissolvem-se. Assim, ficam quase totalmente desvinculados e perdidos de seus significados primeiros, inseridos em uma atmosfera de vaudeville que, como já apontamos, não é em si demeritória, mas que desvirtua as significações originais. Nas duas figuras abaixo encontramos a transformação da série Jaspion em dois álbuns de figurinhas, ambos publicados no Brasil. O primeiro é dedicado exclusivamente ao

99 personagem (figura 41), já o segundo é um álbum no qual o personagem Jaspion figura ao lado dos heróis da série de Super Sentai Changeman (figura 42).

Figura 41. Álbum de figurinhas exclusivo do personagem Jaspion .

Figura 42. Álbum de figurinhas dos personagens Jaspion e Changeman .

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O álbum de figurinhas tem um processo de representação peculiar, representando seus objetos por meio da reprodução de ilustrações e/ou de fotografias. Assim como no caso do circo, não se trata de condenar essa estrutura, mas de pontuá-la para pensar suas implicações no entendimento dos significados iniciais da série Jaspion . Nos álbuns citados acima, os personagens e momentos marcantes dos episódios da série são apresentados na forma de frames retirados dos episódios. As ilustrações seguintes (figuras 43 e 44) demonstram essa dinâmica.

Figura 43. Interior do álbum de figurinhas Jaspion/Changeman .

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Figura 44. Interior do álbum de figurinhas Jaspion/Changeman .

Nas duas figuras acima, a estrutura típica do álbum de figurinhas dá-se a ver, sendo possível perceber que o objetivo dos álbuns é a representação e a (re)apresentação do protagonista, de outros personagens e de elementos da série, como os monstros. Para uma série televisiva, um álbum de figurinhas “presta um serviço” interessante, uma vez que a apresentação dos personagens e seus conflitos pode despertar o interesse por parte de novos espectadores, como aprofundar o interesse de espectadores já iniciados ou de fãs arraigados. Desse modo, em especial para novos espectadores, os álbuns funcionam como matriz do interesse pela série e como uma útil desconstrução da mesma, permitindo navegar por seus elementos semânticos de maneira orientada, com vistas a uma possível imersão posterior de natureza mais profunda. Mas, sob outra ótica, os álbuns, ao trabalhar com essa estrutura que lhes é inerente, ao mesmo tempo em que promovem essa útil desconstrução, também promovem incontornavelmente um processo de desvinculação dos significados das imagens selecionadas com os episódios dos quais são retiradas.

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Torna-se evidente o caráter de interesse comercial do álbum. Ainda que trabalhar em prol da divulgação da série não seja demérito para nenhum instrumento que opere nesse sentido, a constante e obrigatória desvinculação das imagens de suas fontes é o fator que pode criar um ambiente de percepção no qual as metáforas originais potentes sejam dissolvidas em uma série de imagens dissociadas de seus contextos. Assim, podem funcionar como construtoras de uma nova imagem da série, certamente mais pobre. No caso da adaptação para as histórias em quadrinhos (figuras 45 e 46), o que está em cena é o processo de empobrecimento dos significados primordiais na forma da desvinculação com suas metáforas de base e com o contexto inicial da série.

Figura 45. Adaptação da série Jaspion para história em quadrinhos no Brasil. Conforme se pode perceber pelas ilustrações, as histórias em quadrinhos de Jaspion não são atentas ao contexto de significações da série, esquecendo

Figura 46. Adaptação da série Jaspion para história as demandas histórico-culturais e construindo a em quadrinhos no Brasil. imagem do herói em conformidade com um modelo que privilegia a mera representação das lutas pela estética da luta em si, e não pela via da crítica tecida originariamente pela obra.

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Outra forma de desconstrução dos significados da série Jaspion é a tradução e a adaptação da trilha musical japonesa para o contexto brasileiro. Não só os arranjos musicais como as letras das músicas originais foram alteradas, para as quais nos dedicaremos com mais atenção. No entanto, é importante apontar que os primeiros arranjos das músicas da série são, em geral, mais elaborados, enquanto que os arranjos das canções gravadas em português costumam ser bastante próximos de registros típicos de música infantil. Tal fato pode estar ancorado no grande número de programas infantis de sucesso no Brasil, à época do lançamento e veiculação da série Jaspion no país. Esse processo, ainda, coaduna-se com processos citados acima, como a transformação da estética tradicional do personagem em uma estética SD, bem como à criação de álbuns de figurinhas e de histórias em quadrinhos do personagem, ações que tinham como meta atingir o público infantil. Para demonstrar como se dá o processo de empobrecimento dos significados originais da série na tradução das letras, elegemos a música Ginga no taazan , que em japonês significa Tarzan da Galáxia . A capa do álbum brasileiro no qual a canção está inserida é apresentada abaixo.

Figura 47. Capa do álbum O fantástico Jaspion .

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A letra original é apresentada abaixo:

Ginga No Taazan Chichi wo Shiranai Haha wo Shiranai Mukumori Saemo Oboe Teinai Dakedo Ore ni wa Nakama ga Iru sa Dare Yo Rimo Atsui Wakasa ga Aru

Ore wa Ginga no Taazan Yoake wo Tsureta Taiyou ni Naru Yasei no Inochi Jiyuu na Yume wo Omoikiri Moyashite

Iki ga Tsumaru ze Semari Kono Machi Imari Darake no Sewashii Kurashi Sousa Ore ni wa Uchuu ga Ie sa Ano Hoshikuzu ga Furusato no Hi da

Ore wa Ginga no Taazan Hikari wo Koete Mirai wo Tsukamu Hito ga Wasureta Seman wo Motome Ikite Yuku Otoko sa

Ore wa Ginga no Taazan Hikari wo Koete Mirai wo Tsukamu Hito ga Wasureta Seman wo Motome Ikite Yuku Otoko sa

Dada a escolha desta música, não podemos deixar de apontar a relação que se faz, tanto no título quanto na letra, ao personagem Tarzan, de Edgar Rice Burroughs. O ponto de intersecção dos personagens parece ser o fato de ambos serem órfãos. Tarzan é criado por macacos na selva africana após um desastre de avião no qual morrem seus pais e Jaspion um alienígena que não tem pai nem mãe. Essa proximidade talvez seja a inspiradora da relação, mas há mais que isso. Uma vez associado a Tarzan, como o “Tarzan da Galáxia”, todas as significações atribuídas ao personagem Tarzan acabam por sobrepor-se ao personagem Jaspion . Nesse sentido, é importante perceber que três das cinco estrofes da letra iniciam com o verso “Eu sou o Tarzan da Galáxia”. Tarzan é um sobrevivente, atlético, guerreiro e heroico. Perde-se na selva quando criança, é criado por macacos e retorna à civilização. O percurso empreendido pelo personagem é típico de uma jornada de herói nos moldes mais clássicos. É precisamente

105 esta relação, além dos predicados de coragem e destreza física, que fica acentuada quando se nomeia Jaspion como Tarzan. Tal relação é importante para entender a composição da letra da música e também para que se entenda o enfraquecimento dos significados originais na adaptação para o português. Conforme se verá, a letra em português não é uma tradução da letra em japonês, mas uma letra diversa, ao gosto dos parâmetros da indústria cultural no Brasil, tecida sob a égide das orientações de mercado e para a veiculação da série no contexto brasileiro. A seguir, reproduzimos a tradução direta do japonês e tecemos alguns comentários acerca dos significados originais nela presentes:

Tarzan da Galáxia Não conheço o meu pai, não conheço a minha mãe Nem me lembro do carinho deles Mas eu tenho amigos Eu estou mais vivo do que um jovem

Eu sou o Tarzan da galáxia Serei acompanhado pelo sol do amanhecer Vida selvagem e sonho com a liberdade Vivendo ardentemente

Eu me afogo nesta pequena cidade Vivendo sob muitas regras Sim, minha casa é o universo Essas estrelas são a luz da minha terra

Eu sou o Tarzan da galáxia Ultrapassando a luz e me agarrando ao futuro Olhando para a aventura que as pessoas esqueceram Sou um homem que vive assim

Eu sou o Tarzan da galáxia Ultrapassando a luz e me agarrando ao futuro Olhando para a aventura que as pessoas esqueceram Sou um homem que vive assim 5 (YAMAKAWA; WATANABE, 2004 )

Os dois primeiros versos da letra, “Não conheço o meu pai, não conheço a minha mãe/ Nem me lembro do carinho deles”, constroem a imagem de Jaspion como órfão. O último verso da primeira estrofe, “Eu estou mais vivo do que um jovem” e os versos

5 Tradução nossa.

106 seguintes da segunda estrofe, “Eu sou o Tarzan da galáxia/ Serei acompanhado pelo sol do amanhecer/ Vida selvagem e sonho com a liberdade/ Vivendo ardentemente”, posicionam Jaspion como herói ativo e como herdeiro dos predicados de coragem de Tarzan, inclusive com menção ao contexto geográfico do personagem de Burroughs. Podemos perceber que o índice de elaboração semântico da canção é elevado, não apenas pela composição conjunta que se faz dos dois personagens, mas por detalhes como o do segundo verso da segunda estrofe, “Serei acompanhado pelo sol do amanhecer”. A figura do sol, evocada em uma letra que relaciona os personagens Tarzan e Jaspion, pode ser pensada como símbolo tanto da geografia africana típica das histórias de Tarzan, quanto como representação da bandeira japonesa, oficialmente nomeada “Bandeira do Sol”, na qual um círculo vermelho figura sobre um fundo branco. No terceiro verso da terceira estrofe, “Sim, minha casa é o universo”, o personagem Jaspion é posicionado como um viajante. Portanto, Jaspion não tem uma casa definida ou uma origem precisa, assim como Tarzan. Os terceiros versos da quarta e da quinta estrofes, “Olhando para a aventura que as pessoas esqueceram”, reforçam a imagem de Jaspion como viajante e, mais diretamente, o posicionam como consciente de um sentido de aventura que escapa às pessoas, de maneira geral. Como se pode notar, as construções semânticas da letra original são complexas. Jaspion é relacionado a Tarzan para que possa ser carregado de suas características intrínsecas; é constituído como órfão, sem origens, como viajante e aventureiro e, ainda, faz-se uma relação entre figuras do contexto histórico cultural da África e do Japão (o sol africano/a bandeira japonesa). Já na construção da letra em português, os significados iniciais são esquecidos e confundidos. Este fato, somado ao arranjo infantilizado da música gravada em português, constitui a canção Guerreiro vencedor como um dos símbolos máximos do depauperamento dos sentidos primordiais da série. A seguir, reproduzimos a letra:

Guerreiro vencedor A história se repete E a lição não se esquece Novamente posso ter Esperanças no amanhã

Vejo novos tempos em guerra 107

E creio na justiça Toda luta que se faz pela paz Vai valer

Guardo em mim A força do amor Tenho sim Coragem pra continuar

O universo é o lar Do Guerreiro Vencedor Juro, eu vou seguir Até o fim (FERREIRA, 1989)

Em comparação à letra da canção original, a versão em português parece, no mínimo, principiante. Fica excluída a comparação entre Jaspion e Tarzan, o caráter de viajante, órfão ou “sem casa” do personagem e sequer há alusão ao sol, que evidencia tanto os contextos nos quais estão inseridos o personagem de Burroughs quanto o personagem japonês. Além disso, o universo resgatado pela letra em português é próximo a construções ligadas a esforços motivacionais e a uma literatura de baixo escopo. A construção semântica da letra em português não apresenta uma elaboração profunda, mas, sim, uma orientação generalista que faz perder os significados trabalhados inicialmente em Tarzan da Galáxia . O segundo e o terceiro versos da primeira estrofe da canção em português são emblemáticos deste processo: “Novamente posso ter/ Esperanças no amanhã”. Trata-se de uma construção retórica empobrecida, uma facilitação do significado similar aos empregados em literatura de auto ajuda e uma generalização em prol da popularização e infantilização dos significados que entra em total contraste com a orientação da letra original.

108

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação foi concebida com o intuito de esmiuçar aspectos estruturais, conceituais e temáticos do gênero tokusatsu , com base na análise de algumas de suas séries e filmes. A perspectiva inicial desenvolvida que colocava o tokusatsu como uma síntese de influências estadunidenses e europeias com folclore japonês foi abandonada, em prol do desenvolvimento de um viés mais ligado à representação de metáforas políticas. As produções do gênero, à medida que eram analisadas, revelaram-se bastante marcadas por questões políticas. Mesmo que as análises tenham evidenciado a forte presença de tais questões, na concepção e na construção narrativa das obras analisadas, percebemos que elas normalmente passavam despercebidas por conta de uma pré- concebida vinculação do gênero com o público infantil. Portanto, a pesquisa aqui desenvolvida teve como um de seus principais eixos a desmistificação de tal concepção. O tokusatsu foi admitido como um campo rico em aspectos comunicacionais e semióticos. Estes aspectos, ao orientar as narrativas do gênero, os tornam construtos culturais complexos que expõem questões de suma importância no contexto sócio-histórico japonês, em especial aquelas ligadas às consequências da 2ª Guerra Mundial. No entanto, não se restringem a este período. Os filmes e séries estudados foram e continuam sendo importantes, tanto como resultado de um contexto sócio-histórico específico como enquanto marcos culturais capazes de deixar rastros identificáveis e marcantes. Após a fartura que marcou a passagem dos anos 1970 para os 1980, os anos 1990 foram marcados por muitas adversidades, o terremoto na região Kansai, os atentados terroristas da seita de Asahara, além da crise financeira. O Japão adentrou o novo milênio assombrado pelo mundo pós-Akira (Akira é o nome de uma história em quadrinhos ao estilo mangá, publicada originalmente de 1981 a 1993. A obra é assinada por Katsuhiro Otomo, que dirigiu e roteirizou sua adaptação cinematográfica ao estilo anime, em 1998) , proposto pela animação de mesmo nome, que constituiu um grande sucesso de bilheteria, e pirataria, no mundo todo. Esse desencantamento parece ter sido traduzido de duas maneiras: gerando obras radicais que representavam a perda ou infantilizando os produtos e

109 transformando tudo em entretenimento e culto à juventude. Apesar da dificuldade em identificar quando começou este processo, dois elementos estão sempre presentes, em certa medida: o fenômeno otaku e a cultura pop. O fenômeno otaku , que indiretamente constitui um certo contexto de várias questões surgidas a partir das séries analisadas nesta dissertação, começou em 1983. O ensaísta Akio Nakamori tinha 23 anos quando escreveu um artigo na revista em quadrinhos Buricco, voltada ao público adulto, usando esta nomeação para falar do novo fenômeno que começava a despontar entre os jovens. Porém, o termo ficou à sombra durante muitos anos, aparecendo na mídia com mais força apenas em outubro de 1989 em uma situação bastante trágica, que passaria a estigmatizar todos os envolvidos na nova cultura otaku . Um homem jovem, de 27 anos, chamado Tsutomu Miyazaki matou quatro jovens meninas e passou a ser considerado um típico otaku . A partir daí, todo teor romântico, que poderia ser sugerido pela figura dos jovens tímidos preservados de qualquer acesso mais direto com a sociedade, foi esquecido e o termo passou a designar o assassino perverso por natureza. Muitas tentativas foram feitas para mudar a nomeação do fenômeno e tirar a marca do assassinato. Surgiram, então, nomes como otakky e hobby-ist. No entanto, o melhor remédio foi mesmo o tempo e as novas tecnologias que surgiram com a emergência de jogos como o futebol otaku , o otaku de golfe, de asa delta, etc. Um pouco como Peter Pan, não somente os otaku , mas boa parte dos japoneses jovens passaram a evitar a passagem para a idade adulta. Assim, os computadores tornaram-se máquinas de preservação da infância. Trata-se de uma mudança radical. Até a 2ª Guerra Mundial, o Japão era uma sociedade de ordem “confucionista”, na qual crianças tinham grande importância para os adultos, os mais jovens respeitavam os mais velhos e assim por diante. A ideologia militarista já não existia, no entanto, muitos de seus valores continuavam sendo praticados. A geração logo após a guerra ainda se valia de alguns destes princípios, mas a geração posterior, dos pais de quem nasceu nos anos 1960, assim como todos os professores que ministraram aulas para essas pessoas, trataram de cultivar nas crianças a ideia de que o passado estava enterrado e não havia como retomá-lo. O lema tornou-se consumir e viver o momento. O que tem sido chamado de cultura pop japonesa tem relação com este processo, uma vez que a referência mais importante parece ser o imaginário desta juventude que não necessariamente gira em torno da

110 adolescência, mas pode e tem de fato chegado cada vez mais tardiamente a um público de trinta anos ou mais . Tudo isso está ligado a um fluxo de geografias culturais que no caso japonês movimenta-se também como uma espécie de resistência, ainda que não deliberadamente política resistente àquilo que o governo e as instituições japonesas sempre consideraram a cultura nipônica: as artes tradicionais, as flores de cerejeira, a arte dos quimonos e assim por diante. É sobretudo após os anos 1990, em meio à crise, que a cultura nipônica se torna uma “tendência”, atravessando as estéticas tradicionais e se afirmando como pós-zen, kawaii , com iconografias de anime espalhadas por t-shirts , louças, outdoors , moda, emissões tecno-nipônicas na MTV, sushi bares e assim por diante. Mais do que a sociedade exótica de gueixas e samurais, o Japão tornou-se o protótipo da sociedade de consumo pós-industrial, fundada no fluxo acelerado de informação que se contrapõe ao antigo estereótipo do tempo lento e intervalar da cultura tradicional, transformando-se em ícone da comunicação de massa. É como se deixasse de se tratar de uma alteridade exótica para, finalmente, surgir o reverso da moeda. Ou seja, o Japão transformado na ponte mais estreita entre o extremo oriente e o extremo ocidente. Os filmes do gênero tokusatsu analisados nesta dissertação, passaram por transformações alimentadas por esses contextos. Se, como sugeriram Lakoff e Johnson, as metáforas refletem modos de pensar e agir, nada mais natural que testemunhar a despolitização e as novas tendências dos grandes personagens e heróis. Considerando o Japão na segunda década do novo milênio, não há conclusões definitivas. Há apenas uma série de questões que, para serem aprofundadas, precisam ser acompanhadas durante mais tempo, possibilitando distância e análise crítica destes fenômenos, os quais implicam não apenas na história do cinema japonês, mas nos processos educacionais, nos modos de vida e comprometimentos com a comunidade que, algumas vezes, parecem estar diluídos em redes de consumo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Séries ESQUADRÃO relâmpago Changeman. Direção: Takao Nagaishi e outros. Intérpretes: Haruki Hamada, Hiroshi Kawai, Shiro Izumi, Hiroko Nishimoto, Mai Oshii e outros. Roteiro: Kyoko Washiyama, Hirohisa Soda, Kunio Fujii e outros. Música: Tatsumi Yano e Katsumi Ono. Tóquio: TV Asahi, Toei & Toei Agency. 1985/1986. (Episódio 55). FANTÁSTICO Jaspion, o. Direção: Akihira Tojo, Takeshi Ogasawara. Yoshiaki Kobayashi. Intérpretes: Hikaru Kurosaki, Kiyomi Tsukada, Junichi Haruta e outros. Roteiro: Saburo Hatte. Música: Michiaki Watanabe. Tóquio: Toei Company. 1985/1986. (46 episódios).

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JIRAIYA, incrível ninja, o. Direção: Akihisa Okamoto, Tetsuji Mitsumura e outros. Intérpretes: Takumi Tsutsui, Masaki Hatsumi, Megumi Sekiguchi, Takumi Hashimoto, Noriaki Kaneda e outros. Roteiro: Susumi Takaku, Kenji Terada e outros. Música: Kei Wakakusa. Tóquio: Toei Company. 1988/1989. (50 episódios). KAMEN Rider Black. Direção: Satoshi Tsuji, Masao Minowa, Yoshiaki Kobayashi e outros. Intérpretes: Tetsuo Kurata, Akemi Inoue, Ayumi Taguti, Takahito Horiuchi, Taro Yoshida e outros. Roteiro: Shozo Uehara, Junichi Miyashita, Sho Sugimura e outros. Música: Eiji Kawamura. Tóquio: Toei Company, Mainichi Housou. 1987/1988. (51 episódios). KAMEN Rider Black Rx. Direção: Yoshiaki Kobayashi, Masao Minosawa e outros. Intérpretes: Tetsuo Kurata, Jun Takanomaki, Rikiya Koyama, Megumi Ueno, Mahito Akatsuka e outros. Roteiro: Taku Ezure, Junichi Miyashita, Kyoko Washiyama e outros. Música: Eiji Kawamura. Tóquio: Toei Company e Mainichi Housou. 1988/1989. (47 episódios). NATIONAL Kid. Direção: Nagayoshi Akasaka e Jun Kaoike. Intérpretes: Ichiro Kojima, Tatsume Shiutaro Taeko Shimura, Kazuo Hara e outros. Roteiro: Nagayoshi Akasaka e Daiji Kazumine. Música: Fukazawa Yasuwo. Tóquio: Toei Company. 1960/1951. (39 episódios). PODEROSO Lion Man, o. Direção: Koichi Ishiguro e outros. Intérpretes: Tetsuya Ushio, Kazuo Kamoshida, Ryoko Miyano, Tsunehiro Arai, Masaki Hayasaki e outros. Roteiro: Toshiaki Matsushima e outros. Música: Hiroshi Tsutsui. Tóquio: P-Productions. 1973. (25 episódios). REGRESSO de Ultraman, o. Direção: Inoshiro Honda e outros. Intérpretes: Jiro Dan, Rumi Sakakibara, Mori Kishida, Hideki Kawagshi, Nobuo Tsukamoto e outros. Roteiro: Shozo Uehara e outros. Música: Toru Fuyuki. Tóquio: Tsuburaya Productions. 1971/1972. (51 episódios). SPACE Cop Gaban. Direção: Yoshiaki Kobayashi e outros. Intérpretes: Kenji Ohba, Wakiko Kano, Kyoko Nashiro, Toshiaki Nishizawa e outros. Roteiro: Shozo Uehara e outros. Música: Michiaki Watanabe. Tóquio: Toei Company. 1982/1983. (44 episódios). SPRECTREMAN. Direção: Keinosuke Tsuchiya, Ishiguro Koichi e Hiromi Higuchi. Intérpretes: Tetsuo Narikawa, Tohru Ohira, Kazuo Arai e outros. Roteiro: Susumu Taka-

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Ku, Haruya Yamazaki e Masaki Tsuji e outros. Música: Miyauchi Kunio e Naohiko Terashima. Tóquio: P-Productions. 1971/1972. (63 episódios). SPIELVAN. Direção: Takeshi Ogasawara, Akihira Tojo e outros. Intérpretes: Hiroshi Watari, Jun Takanomaki, Naomi Morinaga, Machiko Soga, Ichirou Mizuki e outros. Roteiro: Shozo Uehara e outros. Música: Chumei Watanabe. Tóquio: Toei Company e TV Asahi. 1986/1987. (44 episódios). ULTRAMAN. Direção: Eiji Tsuburaya e outros. Intérpretes: Susumu Kurobe, Akiji Kobayashi, Sandayu Dokumamushi, Masanori Nihei, Hiroko Sakurai, Akihiko Hirata, Koguehide Tsuzawa e outros. Roteiro: Tetsuo Kinjo. Música: Kunio Miyauti. Tóquio: Tsuburaya Productions. 1966/1967. (39 episódios). ULTRASEVEN. Direção: Hajime Tsuburaya, Sohei Tojo, Kazuho Mitsuta e outros. Intérpretes: Koji Moritsugu, Yuriko Hishimi, Shoji Nakayama, Sandayu Dokumamushi e outros. Roteiro: Tetsuo Kinjoh, Shozo Uehara e outros. Música: Tohru Fuyuki. Tóquio: Tsuburaya Productions & TBS. 1967/1968. (Episódios 49). VINGADORES do espaço. Direção: Satoshi Kad, Hiroyuki Tsuchiya, Nakao Mamoru, Funadoko Sadao , Akira Kikuchi. Intérpretes: Tetsuya Uozumi, Shigeko Mise, Silvar, Hideki Ninomiya, Toshio Egi, Masami Okada, Tom Mura, Tohru Ohira. Roteiro: Togo Wakabayashi, Susumu Takaku, Hiroyasu Yamaura, Uchiyama Junichi, Ishido, Yoshi Akira e outros. Música: Yamamoto Naozumi. Tóquio – P-Productions. 1965/1967. (51 episódios).

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