<<

Z71f Zimerman, David E. Fundamentos psicanalíticos [recurso eletrônico] : teoria, técnica e clínica : uma abordagem didática / David E. Zimerman. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2007.

Editado também como livro impresso em 1999. ISBN 978-85-363-0814-2

1. Psicanálise. I. Título.

CDU 159.964.2

Catalogação na publicação: Júlia Angst Coelho – CRB 10/1712 David E. Zimerman Médico Psiquiatra. Membro Efetivo e Psicanalista Didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Psicoterapeuta de Grupo. Ex-Presidente da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.

Reimpressão 2010

1999 © Artmed Editora S.A., 1999

Capa Joaquim da Fonseca

Preparação do original Supervisão editorial Projeto gráfico Editoração eletrônica

Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, à ARTMED® EDITORA S.A. Av. Jerônimo de Ornelas, 670 - Santana 90040-340 Porto Alegre RS Fone (51) 3027-7000 Fax (51) 3027-7070

É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa da Editora.

SÃO PAULO Av. Embaixador Macedo Soares, 10.735 - Pavilhão 5 - Cond. Espace Center Vila Anastácio 05095-035 São Paulo SP Fone (11) 3665-1100 Fax (11) 3667-1333

SAC 0800 703-3444

IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Sumário

Agradecimentos ...... 7 Prefácio ...... 9 Introdução ...... 13

PRIMEIRA PARTE: ASPECTOS GERAIS ...... 19

1 Evolução Histórica da Psicanálise ...... 21 2 Psicoterapia e Psicanálise: Semelhanças e Diferenças ...... 31 3 As Sete Escolas de Psicanálise ...... 41 4 A Psicanálise Contemporânea ...... 63

SEGUNDA PARTE: TEORIA ...... 75

5 A Estrutura e o Funcionamento do Psiquismo ...... 77 6 A Formação da Personalidade ...... 89 7 O Grupo Familiar: Normalidade e Patologia da Função Materna ...... 103 8 Trauma e Desamparo ...... 111 9 As Pulsões do Id ...... 117 10 As Funções do Ego ...... 123 11 Os Mandamentos do Superego ...... 133 12 Inveja: Pulsão ou Defesa? ...... 141 13 Posições: A Posição Narcisista ...... 153 14 Vínculos: O “Vínculo do Reconhecimento” ...... 163 15 Sonhos: Formação e Funções ...... 175 16 O Espelho na Teoria e na Prática Psicanalítica...... 185

TERCEIRA PARTE: PSICOPATOLOGIA ...... 195

17 Neuroses ...... 197 18 Histerias ...... 207 19 Depressões ...... 217 20 Psicoses...... 227 21 Pacientes Somatizadores...... 239 vi SUMÁRIO

22 Perversões ...... 253 23 Homossexualidade ...... 261 24 Pacientes de Difícil Acesso ...... 273

QUARTA PARTE: TÉCNICA ...... 279

25 Entrevista Inicial: Indicações e Contra-Indicações – O Contrato ...... 281 26 O que Mudou nas “Regras Técnicas” Legadas por Freud? ...... 291 27 O Setting (Enquadre) ...... 301 28 Resistências ...... 309 29 Contra-Resistência ...... 317 30 Impasses: Reação Terapêutica Negativa ...... 325 31 Transferências ...... 331 32 Contratransferência ...... 347 33 A Comunicação Não-Verbal na Situação Psicanalítica ...... 359 34 O Silêncio na Situação Psicanalítica...... 369 35 A Atividade Interpretativa ...... 377 36 As Atuações (Actings) ...... 391 37 A Face Narcisista da Sexualidade Edípica ...... 399 38 Insight – Elaboração – Cura ...... 411 39 Fundamentos Psicanalíticos com Crianças e Adolescentes ...... 421 Frederico Seewald 40 Psicoterapia Analítica de Grupo ...... 437 41 Condições Necessárias para um Analista ...... 451 42 Epílogo: A Crise Atual e as Perspectivas Futuras da Psicanálise ...... 459

Referências Bibliográficas ...... 467 Índice Remissivo ...... 473 Agradecimentos

À Guite, minha esposa, grande companheira e grande figura humana. Aos meus filhos: Leandro, por ser o filho e a pessoa que é; Idete, minha colega na SPPA, a quem devo a revisão de alguns capítulos e excelentes sugestões; e à memória de Alexandre, de quem guardo imorredouras lições de vida e de amor. À memória de meus pais, pessoas que foram humildes, sérias e, sobretudo, generosas. A Flávio Rotta Corrêa, meu prefaciador, com a minha carinhosa admiração, e em cuja pessoa agradeço a todos meus leais e queridos amigos. A Frederico Seewald, pela amizade prestimosa, e por sua contribuição com um excelente capítulo, inserido nos parâmetros da psicanálise contemporânea. A Henrique Kiperman e Celso Kiperman, meus editores, pelo incentivo e incondicional con- fiança que vêm depositando em mim. Às inúmeras instituições que têm me prestigiado com honrosos convites para os mais diversos tipos de participação psicanalítica, ou não-psicanalítica, individual ou de grupo, em Porto Alegre, Pelotas, Caxias do Sul, Florianópolis, São Paulo, Ribeirão Preto, Franca, Recife, Maceió, Goiânia, Lisboa, Coimbra, etc., pela amabilidade, novas amizades e pelo estimulante reconhe- cimento. Na pessoa do atual presidente da Sociedade de Psiquatria do Rio Grande do Sul, Sérgio Levcowitz – pessoa querida e admirada por todos que lhe conhecem – devoto um carinhoso agradecimento aos atuais e ex-dirigentes e membros dessa prestigiosa e pujante instituição que eu tive a honra de presidir no biênio 1981-82. Aos meus colegas mais jovens que compõem os meus grupos de estudo, pela fidelidade, con- vívio prazeroso e pelo permanente estímulo a me fazer estudar, pensar e escrever. Igualmente, aos meus inúmeros supervisionandos que me possibilitam tanto uma multiplica- ção das vivências emocionais na prática analítica como também me propiciam o privilégio de poder contribuir com um tijolo para a construção da identidade psicanalítica de cada um deles. Aos meus professores, supervisores e colegas da SPPA que propiciaram a minha formação psicanalítica e me abriram as portas para esse instigante, desafiador e maravilhoso – embora difícil e complexo – mundo da psicanálise. Em especial, meu recohecimento e gratidão à memória de Paulo L.V. Guedes e Roberto P. Ribeiro, meus analistas. Aos meus verdadeiros mestres – os meus pacientes –, que ao longo do meu exercício de quase 40 anos de atividade psicanalítica, de alguma forma, em alguma época e durante algum perío- do, tiveram a coragem de mergulhar comigo no escuro de áreas revoltas e desconhecidas, partilhando os mais íntimos sentimentos, segredos, sonhos e esperanças, assim induzindo-me a um permanente uso de minha função auto-analítica.

Prefácio

“Pensar é algo que certamente não se aprende; é a coisa mais compartilhada do mundo, a mais espontânea, a mais inorgânica. Mas aquela também da qual se é mais afastado. Pode-se desaprender a pensar: tudo concorre para isso. Entregar-se ao pensamento demanda até mes- mo audácia quando tudo se opõe, e, em primeiro lugar, com muita freqüência, a própria pes- soa. Engajar-se ao pensamento reclama algum exercício, como esquecer os adjetivos que o apresentam como austero, árduo, repugnante, inerte, elitista, paralisante e de um tédio sem limites. Frustrar as artimanhas que fazem crer na separação entre o intelectual e o visceral, entre o pensamento e a emoção. Quando se consegue isso, é como se fosse a eterna salvação! E isso pode permitir a cada um tornar-se, para o bem ou para o mal, um habitante de pleno direito, autônomo, seja qual for seu estatuto. Não é de surpreender que isso não seja nem um pouco encorajado.” Viviane Forrester1

Em meados de 1961, doutorando da Faculdade de Medicina da UFRGS, tomei conheci- mento de um curso organizado pelo Livre-docente Marcelo Blaya sobre Medicina e aspectos emocionais para médicos. Aceita minha solicitação de inscrição, no desenvolvimento do cur- so travei conhecimento com David E. Zimerman, na época iniciando sua formação psiquiátri- ca, depois de uma passagem pela Clínica Médica. Passagem que certamente já demonstra sua capacidade profissional, pois fez parte de um seleto e reconhecido grupo médico da época que trabalhava e ensinava na Enfermaria 2 da Santa Casa, sede da cadeira de Clínica Médica do Professor Tomaz Mariante. No ano seguinte, iniciei residência na Clínica Pinel, retornando ao contato com o David, que então foi meu professor e supervisor, junto com o diretor da residên- cia, Marcelo Blaya. Desenvolveu-se então uma amizade dentro do trabalho na Clínica, onde ele foi, durante vários anos, Diretor Clínico, e eu exercia funções clínicas e de ensino. Desde os primeiros contatos, fui capaz de perceber um dos aspectos que considero fundamental na personalidade do David e que tem papel significativo na sua carreira profissional. Refiro-me à sua capacidade de estimular o debate, o livre pensar e a criatividade dos que com ele convi- vem, trabalham e estudam. Alguns anos depois, já em formação analítica, tivemos oportunida- de de trabalhar juntos novamente numa experiência pioneira em nosso estado, e talvez no Brasil, que foi o Programa de Educação Continuada da Associação Médica do Rio Grande do Sul. Novamente sua característica maneira de trabalhar e de relacionar-se com os demais participantes da tarefa – no caso os professores e alunos do Programa – foi de capital impor- tância para o desenvolvimento e sucesso da idéia inovadora, como forma de ensino e estudo da prática médica. Em todas essas atividades e na sua clínica, David sempre comunicou suas experiências através de trabalhos, que estão publicados em revistas e livros, sendo possível observar a evolução de suas idéias – com a devida permissão de Winnicott – da clínica médica à psicanálise. Pensador original e estudioso sem preconceitos, foi capaz de desenvolver uma sólida cultura psicanalítica que lhe conferiu uma posição pluralista, aberta, mas sempre dentro dos conceitos fundamentais da psicanálise. Esse talvez seja o aspecto mais discutido do autor, 10 PREFÁCIO

algumas vezes distorcido e colocado como um ecletismo superficial, pois seu conhecimento permite-lhe o livre trânsito desde os trabalhos fundamentais de Freud aos de seus seguidores, e às diferentes escolas que se desenvolveram a partir daí. Aqui é interessante lembrar o que Bollas2 disse em Porto Alegre sobre escolas e “movimentos”: “porque para todas as tradições intelectuais, não importa qual seja a disciplina, é uma tragédia quando uma escola se torna ‘movimento’, no qual papas, bispos, cardeais e uma estrutura autoritária insiste na imposição de suas idéias sobre outras escolas de pensamento...”. A convivência entre as escolas permite que se possa ter uma visão do desenvolvimento do pensamento psicanalítico sem as barreiras dos “movimentos” e com a possibilidade do pensamento livre, autônomo, que é o pensamento criativo. Vamos nos socorrer do próprio autor para enfatizar esse aspecto do pensamento livre e sem preconceitos e ao mesmo tempo mostrarmos a sua posição independente dentro das diversas idéias e teorias psicanalíticas que existem na atualidade – “O pluralismo, muito mais do que um mero ecletismo, consiste exatamente em permitir um espaço de coexistência entre diferentes correntes, sempre levando em conta que a verdade não está numa delas ou numa outra, mas sim entre elas”. (Prólogo, p. 5) Outro aspecto que quero salientar do autor é a sua honestidade intelectual e a capacidade de ouvir e reconhecer críticas ao seu trabalho e às suas idéias. Quando me refiro a críticas, estou falando de troca de idéias, debates, questionamentos, o que sei que é extremamente difícil, pois os aspectos pessoais muitas vezes impedem esse saudável exercício. Dentro dos limites humanos penso que David tem essa qualidade, o que, aliás, permite-lhe esse constante desenvolvimento de seu pensamento e de sua produção psicanalítica. Poderia estender-me mais nesta apresentação do autor, através de minha visão que, apesar da profunda e carinhosa amizade que me une ao David, penso, transmitiu o que pretendo: mostrar como este livro é fruto de um trabalho que se iniciou na Enfermaria 2 e que se desenvolveu nesses anos de formação pessoal e profissional, num processo de elaboração e integração de estudos, prática clínica e intercâmbio com colegas e alunos com quem tem convivido. O livro, do qual não farei uma síntese porque o autor o faz na Introdução, é uma visão que oscila do panorâmico ao específico. Vou valer-me de uma imagem para melhor esclarecer o que quero dizer: é como se sobrevoássemos uma região e, ao observarmos um determinado aspecto de maior relevância, descêssemos para pesquisarmos e aprofundarmos nossa observa- ção. Assim transcorreu para mim a leitura, com momentos de reencontro de conceitos (é claro que sempre com a impressão do autor) e outros com idéias originais que nos fazem pensar, independente de concordâncias ou discordâncias. Isso torna o livro de leitura agradável e instigante que, penso, será proveitosa tanto para o iniciante que procura uma aproximação com o conhecimento analítico como para analistas em diferentes estágios de conhecimento e experiência. Apesar de considerar que a obra tem um estrutura lógica, desenvolvendo-se de uma maneira harmônica numa sucessão de conhecimentos que vão-se integrando e formando um todo coerente, vou destacar alguns aspectos pela sua originalidade ou pelos debates que propõe. Assim, além de várias colocações que se observa, ao longo da leitura, da forma como o autor se posiciona frente aos conceitos fundamentais da Psicanálise, ele contribui com algu- mas idéias próprias que em seguida veremos. Um exemplo de seu posicionamento frente às questões com os conceitos estabelecidos na psicanálise está no capítulo 2 – “Psicoterapia e Psicanálise: Semelhanças e Diferenças” – e também no que antes fiz referências, à sua fran- queza e honestidade na abordagem de um polêmico e controvertido tema. Esse tema vincula- se ao capítulo 4, no qual o autor aborda “A Psicanálise Contemporânea”, onde faz uma síntese das modificações que o pensamento analítico sofreu nesses 100 anos com as conseqüências na técnica e conduta clínica dos analistas. Nesse capítulo, o autor aborda o que ele caracteriza como os três períodos em que pode ser dividida a evolução da Psicanálise: “ortodoxa, clássica e contemporânea”, com seus respectivos “paradigmas”. Creio ser discutível a divisão e se as modificações que a teoria vai sofrendo podem ser caracterizadas como mudanças de paradigmas. Nos capítulos em que desenvolve os aspectos da teoria psicanalítica, encontramos, além de uma síntese didática dos fundamentos da teoria, algumas idéias originais do autor. Ao desenvolver o capítulo 11 – “Os Mandamentos do Superego” – o autor propõe o termo “con- tra-ego” para denominar o que Steiner chama de organização patológica, e Rosenfeld, de PREFÁCIO 11 gangue narcisista, de onde partem impulsos que sabotam o desenvolvimento sadio do ego. No capítulo 12, “Inveja: Pulsão ou Defesa?”, é proposta uma terceira posição, diferente do con- ceito kleiniano da inveja da natureza inata, ou da psicologia do ego caracterizada como uma reação secundária à frustração. Nesta terceira posição, a inveja é vista como um sentimento inerente à condição humana, de aparecimento precoce, mas não inato. No capítulo seguinte, ao abordar as posições, conceito clássico da teoria kleiniana vinculado à noção de objetos – parciais ou totais – as conhecidas posições esquizoparanóide e depressiva, o autor propõe uma terceira: “a posição narcisista – que precederia a posição esquizoparanóide, diferente, portan- to, do conceito utilizado por Hanna Segal, que a coloca como integrante da posição esquizo- paranóide. No capítulo 14, encontramos outra contribuição original do autor: “o Vínculo do Reconhecimento”, colocando-o em equivalência com os conhecidos (e reconhecidos) víncu- los de Amor, Ódio e Conhecimento de Bion. Esse conceito complementa-se no capítulo 37, integrando-se com outras abordagens interessantes e originais sobre “A Face Narcisista da Sexualidade Edípica”. Ainda queremos fazer referência especial ao capítulo 16 – “O Espelho na Teoria e na Prática Psicanalítica” – pela clareza e integração do texto desde a mitologia, a bíblia, o folclore, até os trabalhos psicanalíticos – e sua importância e significado na compre- ensão e prática psicanalítica. Muitos outros pontos poderíamos considerar: em especial, as- pectos técnicos nos quais se vê a experiência do autor como terapeuta e supervisor e os varia- dos usos que faz, dentro da técnica psicanalítica, em respostas ao material do paciente, de seus conhecimentos teóricos. Mas vamos deixar ao leitor ir descobrindo o mundo de estímulos contido nas entrelinhas, assim como “a comunicação não-verbal”, no capítulo 33, da qual o autor também nos fala com muita propriedade, e que permite ver o alcance do texto que nos ocupa neste momento. O capítulo final – “Epílogo” – aborda a crise da psicanálise, tema que tem ocupado os psicanalistas na atualidade. Essa é uma preocupação que vem de alguns anos. Assim, já em 1970, num relato oficial ao VIII Congresso Psicanalítico Latino-Americano realizado aqui em Porto Alegre, Madeleine e Willy Baranger, Alberto Campo e Jorge Mom, no trabalho, “Cor- rentes Atuais no Pensamento Psicanalítico” abordam o que eles denominaram “a crise da psicanálise atual”, que caracterizaram como uma crise de crescimento e de amadurecimento e consideram que existe uma crise intrínseca ao próprio desenvolvimento da teoria psicanalíti- ca, decorrente de novas indagações e questionamentos que o conhecimento traz e uma crise decorrente da posição da análise dentro do contexto social. No momento atual, vivemos uma condição na qual assistimos ao avanço do liberalismo de uma forma que muitos consideram totalitária. Fiori3 considera que o socialismo, o nacionalismo e o liberalismo proporcionaram ao homem valores por todos reconhecidos. No entanto, o socialismo sofreu uma distorção com o stalinismo, e o nacionalismo com o nazismo, e agora temos o que ele chama de libera- lismo totalitário. Esse liberalismo totalitário não admite contestação, pugna por um pensa- mento único com a utilização maciça dos meios de comunicação. Em especial, os aspectos que caracterizam o ser humano, que o diferenciam na escala zoológica; a existência dos afetos é rechaçada e, assim como se faz a substituição dos músculos pelas máquinas, busca-se o computador como substituto da mente humana. Apelos a formas rápidas de tratamento com a idealização de substâncias químicas que resolvem problemas sem sofrimentos e ansiedades; tratamentos em que a sugestão em suas diversas formas retoma uma força que parecia já superada, todos buscando, consciente ou inconscientemente, atacar a capacidade de pensar. A técnica psicanalítica, desde sua descoberta, sempre priorizou o pensamento livre, expressa na sua regra básica – a associação livre – e todos sabemos as dificuldades que encontramos para alcançá-la. Alguns analistas, como Bollas, consideram que a própria meta da análise seria atingir a livre associação. De fato, se pensarmos que a livre associação reflete a luta contra as resistências do indivíduo a pensar com liberdade sobre si, uma vez isso atingido, vencidas as resistências e estando o sujeito consciente da luta que teve para atingir esse ponto e a presença constante dos fatores que a isso se opõem, ele terá condições de detectar quando seu pensa- mento voltar a ter restrições e empecilhos e quando sua capacidade de pensar tornar-se dimi- nuída. Essa é uma luta sempre presente, pois individual e coletivamente estamos sempre sendo solicitados a não pensar. O pensamento é o maior inimigo dos “movimentos” que buscam a 12 PREFÁCIO

idéia única, ou seja, o não pensar. A globalização e a massificação atacam as verdades com promessas de felicidade e de liberdade quando, na realidade, propõem caminhos onde a liber- dade é cortada. A psicanálise é por definição questionadora. O acomodar-se ao meio e aos poderes estabelecidos, cedendo a apelos sedutores como prestígio, dinheiro, etc., descaracteriza a psi- canálise, que é cooptada pelo meio e dessa forma perde seu caráter subversivo. O mesmo se passa com o pensamento: a utilização maciça dos meios de comunicação como forma de anestesiar o indivíduo; a constante mensagem para adaptar-se ao poder existente; o desprezo e o ataque por qualquer idéia diferente que se oponha ao estabelecido, buscando descaracterizá- la, usando o deboche e a ironia como maneira de intimidar o “diferente”, colocando-o numa posição incômoda como alguém ultrapassado expressando idéias estapafúrdias, negando-se a ver as maravilhas que lhe são ofertadas. Livros como este que estou comentando, além do seu aspecto educativo para os iniciantes em psicanálise, tem a qualidade de fazer pensar a todos que o lerem. Toda produção intelectu- al e/ou científica que produza debates e inquietações concorre para opor-se às forças que tentam desvalorizar o pensamento e o conhecimento. A acusação de que o trabalho intelectual é elitista é uma tentativa de desvalorizar as funções que estimulam o pensamento livre. A psicanálise pode ter um importante papel nesta luta pela liberdade e pela manutenção de con- dições propícias ao desenvolvimento científico, se conseguir manter um espírito questionador, “evitando cair em todo o tipo de adequação ou adaptação que limite ou neutralize sua liberda- de para se opor, interrogar ou propor”. (Baranger e cols.) Penso que, com sua produção científica e, de modo particular, com este livro, David dá uma importante contribuição nessa luta pela liberdade de pensar e pela busca da verdade, opondo-se às mistificações e falsidades hegemônicas e totalitárias. Flávio Rotta Corrêa Membro Efetivo da Sociedade de Psiquatria do Rio Grande do Sul. Membro Efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Analista Didata.

NOTAS

1 Forrester, V. O horror econômico. São Paulo: UNESP, 1997. 2 Bollas, C. Entrevista pública. Rev. Bras. Psicanal., v. 31, n. 4, p. 1042, 1997. 3 Fiori, José Luís (cientista político). Entrevista à Folha de São Paulo em 13 de abril de 1998. Introdução

Inicialmente, pretendo dialogar com o leitor, e para tanto proponho-me a um diálogo comigo mesmo, procurando responder questões que eu próprio me formulo e que dizem res- peito sobretudo a três aspectos: quais as razões que me levaram a gestar e a publicar este livro, para qual tipo de público e, em terceiro lugar, com qual forma de sistematização e redação. A primeira interrogação justifica-se pela sabida razão de que todos nós, que pertence- mos à área de influência da psicanálise, temos à mão uma literatura psicanalítica com uma fartura de excelentes livros, de renomados autores, tanto de teoria psicanalítica como de metapsicologia, psicopatologia, técnica e prática.Talvez seja essa própria afirmativa a primei- ra razão que me motivou para o projeto desse livro: de fato, ao mesmo tempo em que uma abundante e protéica literatura representa uma evidente vantagem, ela também pode consti- tuir-se em um fator algo confusionante, especialmente se levarmos em conta os problemas semânticos, ou seja, seguidamente encontramos nos textos de diferentes autores que um mes- mo termo designe diferentes fenômenos psíquicos, enquanto também é freqüente que termino- logias distintas aludam a uma mesma conceituação psicanalítica. Entendi que tais inconvenientes pudessem ser amenizados por meio de uma leitura que fosse ao mesmo tempo abrangente, simplificadora, integradora e, sobretudo, com um propósi- to pedagógico. Essa finalidade de integração inclui o objetivo de estabelecer uma articulação entre as pioneiras descobertas de Freud e aquelas outras concepções psicanalíticas, frutos das profundas transformações que a psicanálise vem sofrendo nesse seu primeiro século de exis- tência, até chegar às mais recentes contribuições da psicanálise moderna, de sorte a tentar uma possível integração entre as distintas correntes psicanalíticas da atualidade. Uma segunda motivação para a feitura deste compêndio consiste em um continuado e animador estímulo que tenho recebido por parte de colegas mais jovens, com os quais tenho tido o privilégio de constituir inúmeros e duradouros grupos de estudo, acerca das variadas temáticas que compõem este livro, sempre levando em conta que todos os temas estudados devam manter uma íntima conexão com a prática clínica. Nesses grupos de estudo, descubro colegas mais jovens que me socorrem com questionamentos instigantes, sugestões inteli- gentes, um alerta para a necessidade de clareamentos, com um apontamento de eventuais omissões e falhas; além disso, eles me ajudam muitíssimo com o seu carinhoso e persistente incentivo. Da mesma forma, nos últimos anos tenho tido a fortuna de ser convidado, de múltiplos quadrantes, para participações especiais em jornadas, congressos, cursos, palestras, aulas inau- gurais, eventos comemorativos, etc, tanto por parte de sociedades psicanalíticas filiadas à IPA, como de grupos de estudos e centros formadores em psicoterapia psicanalítica, sendo que tais circunstâncias têm-me oportunizado um encontro bastante estreito com colegas em diferentes graus e níveis de formação psicanalítica, muito particularmente com os da nova geração. Estes últimos, de forma sistemática, costumam manifestar uma ânsia por um aprendiza- do dos princípios essenciais da ciência psicanalítica, a partir de textos que, de forma a mais simples possível, integrem as concepções pioneiras da psicanálise com as mais modernas, assim como também almejam uma integração entre as conceituações provindas dos mais dis- 14 DAVID E. ZIMERMAN

tintos autores. Neste último caso, alegam esses colegas, as concepções psicanalíticas apare- cem descritas de tal forma, que por vezes soam coerentes e complementares entre si, ao mes- mo tempo que também despertam uma sensação de que elas comumente são divergentes, contraditórias, redundantes e tautológicas, com o risco de uma “babelização”. A segunda questão que me formulei refere-se a para quem este livro se destina. Meus editores, Henrique e Celso Kiperman, respectivamente pai e filho, mercê de um notório “faro” para perceber as necessidades emergentes do público leitor, acreditam que há uma evidente demanda, em grande parte constituída por estudantes dos cursos de psicologia e por profis- sionais praticantes da psicoterapia psicanalítica, por um livro que “sintetize os princípios da psicanálise, mantendo a profundidade, a complexidade e a atualidade dos mesmos, ao mesmo tempo em que não se perca uma necessária simplicidade e acessibilidade, de modo que possa ser consultado e estudado tanto por psicanalistas veteranos ou em adiantada formação como também por iniciantes ou profissionais em geral que, filiados ou não à IPA, estudam e prati- cam a terapia psicanalítica”. A propósito, é necessário deixar bem claro que emprego deliberadamente o termo “tera- pia psicanalítica” não como um eufemismo conciliador entre psicanálise e psicoterapia de fundamentação analítica, mas sim – tal como aparece no capítulo 2 – como uma forma de preservar as necessárias distinções entre aquelas duas e, ao mesmo tempo, também para en- curtar as enormes distâncias que ainda hoje muitos estabelecem de forma radical entre psica- nálise e psicoterapia psicanalítica. Aliás, a aludida expressão “terapia psicanalítica” foi a que Freud utilizou por muito tempo, como é possível constatar na capitulação de alguns importan- tes trabalhos seus, o que pode ser exemplificado com O Porvir das Terapias Psicanalíticas (1910), Terapia Analítica (é o título de um dos capítulos de Leituras Introdutórias, de 1916), ou ainda Os Caminhos da Terapia Analítica (1919). Na verdade, pelo menos nos primeiros tempos, Freud nunca estabeleceu uma diferença entre psicanálise e qualquer outra forma de psicoterapia; o que, sim, ele diferenciava enfaticamente era a ciência psicanalítica, de um lado, e as várias formas de sugestão e/ou hipnose, de outro. Assim, é possível que, neste livro, em alguns momentos, as expressões “terapia analíti- ca”, “psicoterapia de orientação psicanalítica” e “psicanálise” apareçam com significação equivalente, o mesmo podendo acontecer com os termos “analista”, “psicanalista”, “terapeu- ta” e “psicoterapeuta”. Creio que, de forma genérica, o termo “método analítico” possa repre- sentar um denominador comum e integrar a conceituação essencial dessas diversas denomina- ções. Como a proposta dos meus editores, antes mencionada, coincidisse inteiramente com a minha ideologia particular de que fosse produzido um livro dessa natureza, após uma recípro- ca troca de estímulos resolvi aceitar aquilo que, mais do que um prestigioso convite, foi signi- ficado por mim como sendo um forte desafio, porquanto nunca me iludi quanto às enormes dificuldades e o exaustivo trabalho que eu teria pela frente. Pensei seriamente na possibilidade de convidar muitos colegas de notório saber em suas respectivas áreas mais específicas de conhecimentos da psicanálise, os quais, certamente, além de um maior prestígio, dariam uma contribuição muito mais valiosa para este livro e iria poupar-me bastante esforço. No entanto, resisti a essa tentação pela razão única de que entendo que um livro de finalidade didática deve conservar uma uniformidade conceitual e de estilo, além de permitir que um capítulo possa remeter a um outro, de modo a propiciar uma certa continuidade e conexão entre os sucessivos capítulos, e desses com a prática clínica cotidiana. Abri uma única exceção, no capítulo dedi- cado à fundamentação psicanalítica com crianças e adolescentes – o qual leva a assinatura do reconhecido psicanalista Frederico Seewald, com quem comungo uma mesma ideologia psi- canalítica –, para manter uma coerência, pois, embora eu tenha tido uma certa experiência psicanalítica com crianças, púberes e adolescentes, ela não foi suficiente para construir um conhecimento sólido, que justificasse a condição de poder ser eu o autor de um capítulo tão específico. O terceiro aspecto dos meus questionamentos é o que diz respeito à forma como este livro deveria ser produzido: optei pela tentativa de reunir em uma única obra as quatro princi- pais áreas da psicanálise, isto é, a teoria (e metapsicologia), a técnica, a psicopatologia e a FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 15 prática clínica. Evidentemente, paguei um certo preço por essa decisão tão abrangente e, é claro, tão sincopada. Confesso que o projeto inicial era mais simples, o livro ficaria restrito unicamente aos fundamentos básicos e essenciais da ciência psicanalítica; no entanto, à medida que os capítu- los iam-se sucedendo, também eu ia-me empolgando, de sorte que muitos capítulos resultaram bastante complexos e talvez de leitura difícil, porém trazem a vantagem, assim quero crer, de poderem ser úteis também para psicanalistas já bem experimentados. Ainda em relação à forma de redação dos textos, voltado para a possibilidade de que eles possam servir para alguma finalidade de ensino-aprendizagem, é possível que eu tenha abusado do recurso de fazer longas enumerações, com sucessivos itens que destacam alguns aspectos que me pareceram particularmente mais relevantes. Justifico esse tipo de recurso expositivo pela esperança de que, caso este livro cumpra o seu propósito de colaborar para seminários e grupos de estudos, fica mais fácil de ser acompanhado pelos participantes. Da mesma forma, como eu costumo valorizar bastante a procedência etimológica de determinados termos psicanalíticos, também é possível que eu tenha incorrido num certo abu- so no sentido de explicitá-los, ora em um entre-parênteses, ora em palavras grafadas e com um hífen separador dos étimos que dão origem à palavra. Em parte, absolvo-me desse provável exagero etimológico porque não o faço por diletantismo ou por um agradável exercício lúdico, mas, sim, porque acredito que a etimologia tem muito a nos ensinar, porque ela sobretudo se constitui como um processo de sucessivas transformações que se efetivam na passagem dos povos, de sua cultura e estado mental. Um outro provável exagero talvez seja o emprego de redundâncias, de modo a repetir as mesmas conceituações e formulações que já haviam aparecido em outros capítulos, apesar de que fiz isso deliberadamente, por acreditar que uma repetição continuada pode favorecer a compreensão e a respectiva introjeção por parte do leitor, sempre respeitando, é óbvio, a sua capacidade de crítica e discriminação. Também cabe registrar que procurei manter-me o mais fiel possível às idéias dos autores que são mencionados; no entanto, cabem duas ressalvas: uma é que, embora eu mencione uma extensa bibliografia, não me senti obrigado a citar todos os trabalhos de todos os autores que escreveram sobre um determinado tema que hoje já esteja definitivamente anexado ao corpo da psicanálise, por mais brilhantes que eles possam ter sido, e até terem me servido como uma eventual fonte de inspiração. A segunda ressalva é que, em meio às contribuições clássicas dos mais importantes autores, de distintas épocas, atrevo-me, em certos temas, a publicar pontos de vista que são de minha única e exclusiva responsabilidade – confio nos critérios dos leito- res para avaliarem a utilidade, ou não, dos mesmos. Finalmente, cabe dizer que tentei ao máximo estabelecer um entrelaçamento entre a teoria, a técnica e a prática clínica e, de forma análoga, sempre que possível, busquei entrela- çar os pontos de vista das diferentes escolas acerca de um determinado assunto, especialmente com os referenciais pioneiros de Freud. Assim, em épocas passadas, os analistas radicavam-se em uma única corrente psicanalí- tica e buscavam, precipuamente, aquilo que dividia os autores e psicanalistas; na atualidade, muitos cometem um exagero oposto, buscando unicamente aquilo que os reúne. Como muitos outros, acredito que a virtude deve estar em um meio-termo entre essas posições polarizadas, sempre levando em conta o que Bion nos ensinou acerca das vantagens de pensarmos a partir de uma multiplicidade e diversidade de vértices, reversíveis entre si. O pluralismo, muito mais do que um mero ecletismo, consiste exatamente em permitir um espaço de coexistência entre diferentes correntes, sempre levando em conta que a verdade não está em uma delas ou numa outra, mas, sim, entre elas. Não obstante isso, não é possível negar de todo o fato de que ainda persiste uma certa tendência de que cada uma das escolas queira excluir as demais. O presente livro de fundamentos psicanalíticos está dividido em quatro partes: 1) As- pectos Gerais. 2) Teoria e Metapsicologia. 3) Psicopatologia. 4) Técnica e Prática. Cada uma dessas partes consta de um certo número de capítulos que perfazem um total de 42. A criação original desses capítulos não foi feita em uma seqüência linear e com uma continuidade siste- matizada, tal como aparece no livro, e, muito menos, este foi confeccionado de um só fôlego. 16 DAVID E. ZIMERMAN

Pelo contrário, ele nasceu de uma gestação lenta, de vários anos de duração, e a elaboração inicial de alguns textos resultou da apresentação de trabalhos em congressos, conferências, publicações em revistas, etc., tal como, na medida do possível, especificarei a seguir. Assim, na primeira parte, que trata dos “Aspectos Gerais”, o capítulo 1 – cuja versão parcial foi apresentada, em 1995, como aula inaugural do ITI (Instituto de Terapias Integra- das, de Porto Alegre) – aborda uma necessária “Evolução Histórica da Psicanálise”, sendo que, mais do que uma narrativa linear da história da ciência psicanalítica, o texto pretende enaltecer o fato de que a leitura de qualquer texto somente adquire consistência se ela for feita dentro de um contexto, o histórico, inclusive. O capítulo 2, intitulado “Psicoterapia e Psicaná- lise: Semelhanças e Diferenças”, visa a estabelecer as diferenças óbvias que existem entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica, ao mesmo tempo em que também se propõe a mostrar que existem muitas semelhanças, e que as diferenças entre ambas não são tão profundas e inconciliáveis como certos setores de psicanalistas insistem em apregoar. No capítulo 3 – “As Sete Escolas de Psicanálise” – é onde mais claramente aparece o propósito de situar o leitor no torvelinho das várias escolas, particularmente para os que ainda não estão familiarizados com as múltiplas concepções provindas de cada uma delas, de modo que um dos objetivos desse capítulo é servir como uma espécie de ponto de referência e de consulta para elucidar concep- ções originais dos distintos autores que embasam este livro. O capítulo 4 – “A Psicanálise Contemporânea” – faz uma espécie de síntese dos três anteriores, a fim de estabelecer com mais determinação como está sendo entendida e praticada a psicanálise contemporânea. As idéias contidas nesse capítulo foram inicialmente apresentadas em uma conferência – a convi- te – na Universidade de Coimbra, Portugal, em 1996. A segunda parte do livro é denominada “Teoria”, e dela constam 12 capítulos, que abor- dam: os princípios gerais que regem “A Estrutura e o Funcionamento do Psiquismo” (capítulo 5); os fundamentos essenciais para “A Formação da Personalidade”, desde os primórdios do desenvolvimento emocional primitivo (capítulo 6); passando por “O Grupo Familiar: Norma- lidade e Patologia da Função Materna” (capítulo 7); e seguindo pelo primitivismo do “Trauma e Desamparo” da criança (capítulo 8). A versão original deste último capítulo foi apresentada na mesa-redonda “Trauma e Desamparo Humano”, na Jornada do CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre), em setembro de 1997. A vital necessidade de que seja bem conhecida pelo leitor a “estruturação tripartite da mente” está desenvolvida nos três capítulos seguintes, que abordam, respectivamente, as “As Pulsões do Id” (capítulo 9), “As Funções do Ego” (capítulo 10) e “Os Mandamentos do Superego” (capítulo 11). Complementando-os, o capítulo 12 – cuja versão original, com o mesmo título, aparece publicada na Revista de Psi- canálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, vol. 1:2, 1994 – aborda a relevante e sempre atual questão “Inveja: Pulsão ou Defesa?”. Segue-se a importante noção de “Posi- ções”, de M. Klein, com um destaque para o que, creio, pode ser chamado de “A Posição Narcisista” (capítulo 13), sendo que uma versão parcial desse capítulo, com um artigo deno- minado “A Posição Narcisista”, está publicada na Revista de Psicanálise da Sociedade Psica- nalítica de Porto Alegre, vol. 3:2, 1996. Igualmente importante é, baseado em Bion, a noção de “Vínculos”, com a inclusão do que considero como “O Vínculo do Reconhecimento”, que constitui o capítulo 14, o qual é uma versão ampliada e modificada do trabalho que original- mente foi apresentado no Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Recife, em 1995, e que posteriormente, sob o título “O Vínculo do Reconhecimento”, foi publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 30: 3, 1996. Não poderia faltar um capítulo específico sobre “Sonhos: Formação e Funções” (capítulo 15), dada a sua importância na história e na atualida- de da psicanálise. Tendo em vista que grande parte do desenvolvimento emocional primitivo está sendo enfocado por importantes autores de distintas escolas psicanalíticas, desde o vérti- ce do olhar da mãe funcionando como uma espécie de “espelho” para a criança, e que esse aspecto exerce uma decisiva influência na determinação de diversos quadros da psicopatologia, que constarão da terceira parte deste livro, decidi incluir um capítulo específico (16) abordan- do “O Espelho na Teoria e na Prática Psicanalítica”. A essência desse capítulo radica no artigo “O Espelho na Teoria e Prática Psicanalítica”, publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 17 vol. XXV:1, 1991, na qual ele consta como um “artigo premiado no concurso organizado pela Associação Brasileira de Psicanálise de Estímulo à Produção Científica”. Destarte, a terceira parte, que aborda a “Psicopatologia”, é composta por oito capítulos: o de número 17, trata de dar uma idéia das “Neuroses” em geral, mais especificamente a “neurose de angústia”, as “fobias” e as “neuroses obsessivas”. No entanto, pela freqüência com que comparecem na clínica psicanalítica, achei útil incluir capítulos específicos sobre as “Histerias” (capítulo 18) e “Depressões” (capítulo 19), sendo que a versão original deste apa- rece no artigo intitulado “Etiopatogenia dos Estados Depressivos no Processo Psicanalítico”, publicado na Revista do CEP-PA, vol. 1:1, 1992. Seguem os capítulos que abordam: a psicopatologia das “Psicoses” (capítulo 20, cuja versão original foi apresentada na mesa-re- donda do XIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em São Paulo, 1991, sobre “A Dimensão Teórico-Clínica na Análise de Psicóticos no Brasil”, título com o qual está publica- do nos Anais do referido evento); “Pacientes Somatizadores” (capítulo 21); “Perversões” (ca- pítulo 22). O sempre atual tema da “Homossexualidade” constitui o capítulo 23, que é uma versão algo modificada do meu artigo “A Face Narcisista da Homossexualidade: Implicações na Técnica”, publicado, em 1998, no livro Homossexualidade: Formulações Psicanalíticas Atuais, organizado por R. Graña; esta parte finaliza com os “Pacientes de Difícil Acesso” (capítulo 24), sendo que uma versão modificada deste último capítulo foi apresentada durante a mesa-redonda “Manejo Técnico do Paciente de Difícil Acesso”, durante o XI Congresso Brasileiro de Psicanálise, Canela, RS, 1987, e publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 22, 1988. A quarta e última parte, que reputo como a mais importante dentro das pretensões e dos objetivos deste livro, é intitulada “Técnica” e nela procuro estabelecer uma estreita correlação entre a teoria psicanalítica e a prática clínica, por meio dos aspectos das transformações que vêm acompanhando a técnica do “método psicanalítico”, o que será feito ao longo de 18 capítulos. Começo pela “Entrevista Inicial”, com as “Indicacões e Contra-Indicações” para tratamento psicanalítico, com o estabelecimento do necessário “Contrato” (capítulo 25). Sigo pelo instigante e atualizado tema acerca de “O que Mudou nas ‘Regras Técnicas’ Legadas por Freud?” (constitui o capítulo 26, sendo que as suas idéias primeiras foram originalmente apre- sentadas – a convite – na Sociedade de Psicanálise de Lisboa, em janeiro de 1996), bem como pela instituição do indispensável “Setting” (capítulo 27). Os capítulos seguintes tratam dos principais fenômenos que obrigatoriamente surgem no campo analítico, como as “Resistências”(capítulo 28); a “Contra-Resistência” (capítulo 29), os importantes processos resistenciais que podem assumir a forma de “Impasses e de Reação Terapêutica Negativa” (capítulo 30). As principais idéias desses três últimos capítulos estão contidas no trabalho “Resistência e Contra-Resistência na Prática Analítica”, apresentado na Sociedade Psicanalí- tica de Porto Alegre, em 1987, com o qual obtive a titulação de “membro efetivo” da SPPA. Essa quarta parte do livro segue com os capítulos “Transferências” (capítulo 31, cujas concep- ções originais foram apresentadas, em 1995, na conferência apresentada no ESIPP – institui- ção formadora de psicoterapeutas –, de Porto Alegre); a “Contratransferência”(capítulo 32); os importantes aspectos da comunicação no curso das terapias analíticas, particularmente a que se refere à “Comunicação Não-Verbal na Situação Psicanalítica” (capítulo 33, que é uma versão modificada do artigo que, com esse mesmo título, foi publicado na Revista do Centro de Estudos em Psicoterapia – CEP de Florianópolis, vol. 2, 1996). Igualmente, a freqüente presença do “Silêncio na Situação Psicanalítica” mereceu uma atenção específica (capítulo 34). Segue “A Atividade Interpretativa”, vista sobretudo à luz da psicanálise vincular, que compõe o capítulo 35, cuja versão original e abreviada foi apresentada na Sociedade de Psico- logia do Rio Grande do Sul, em dezembro de 1996, com o título “Interpretação à Luz da Psicanálise Vincular”). As diversas formas do inevitável surgimento das “Atuações (Actings)” compõem o capítulo 36. O tema de “A Face Narcisista da Sexualidade Edípica”, pela sua freqüência, importância e atualidade, exigiu um capítulo particular (capítulo 37, cuja versão original foi apresentada em Ribeirão Preto, no simpósio sobre “Édipo: as Múltiplas Faces da Sexualidade”, em setembro de 1996 e posteriormente publicado na Revista Brasileira de Psi- canálise, vol. 31:2, 1997). O capítulo referente ao Insight – Elaboração – Cura (capítulo 38), 18 DAVID E. ZIMERMAN

que completa essa série, representa uma versão modificada e ampliada do artigo “Algumas Reflexões sobre o Conceito de “Cura Psicanalítica”, publicado na Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre”, vol. 2:1, 1995. Finalmente, não poderiam faltar capítulos que abordam os aspectos de técnica, a partir de outras perspectivas do método psicanalítico, como é o caso do “Fundamentos Psicanalíti- cos com Crianças e Adolescentes” (capítulo 39, de autoria de F. Seewald); “Psicoterapia Ana- lítica de Grupo” (capítulo 40, o qual é uma versão algo modificada do meu artigo “Psicoterapias de Grupo”, que está publicado no livro Psicoterapias: Abordagens Atuais, de 1998, organiza- do por A. Cordioli). Da mesma forma, acreditei ser necessário incluir um artigo que enfoque as “Condições Necessárias para um Analista” (capítulo 41) e encerrar o livro com um capítulo específico que sirva como Epílogo e que discuta a “Crise Atual e as Perspectivas Futuras da Psicanálise” (capítulo 42), assim fechando um ciclo neste livro, que teve início no capítulo 1, o qual abordou as origens históricas do movimento psicanalítico. Embora a maioria dos capítulos tenha passado pelo crivo dos continuados seminários com os meus grupos de estudo, e da leitura prévia de alguns colegas em diferentes níveis de status psicanalítico, estou plenamente cônscio de que existem muitas incompletudes e insufi- ciências, até mesmo porque não tenho a menor pretensão de dar conta mais do que de uma pequena parte do imenso universo que é a psicanálise. Ao mesmo tempo, venho mantendo acesa a esperança de que essas inevitáveis deficiências sejam compensadas pela minha expe- riência psicanalítica de quase 40 anos, tanto clínica como didática, com a convicção de que, graças a um gosto pelo estudo e ensino, mantenho-me atualizado, apesar da velocidade verti- ginosa das renovadas concepções que surgem na psicanálise. Tudo isso, aliado ao prazer e à paixão que dediquei a esta tarefa-desafio, deixa-me animado pela esperança de que este livro possa atingir os objetivos aos quais ele se propôs. Aos eventuais interessados em adquirir esta obra, motivados pelo seu título, creio ser importante advertir que ele não é de leitura fácil, nem foi essa a minha intenção, porquanto os próprios fundamentos psicanalíticos são difíceis e complexos (embora também não caiba cair num exagero de situá-los num campo hermético e exclusivo dos especialistas). Portanto, antes de fácil, o que pretendo, sim, é que este livro consiga ser claro e sintético, sempre levando em conta que “sintetizar” não é o mesmo que “resumir”, sendo que o conceito de “síntese” alude a que os fatos enfocados sejam juntados e descritos de forma mais abreviada e abrangente, porém que conservem a mesma essência original, guardem uma inter-relação entre si e possi- bilitem uma abertura para novos vértices e significados. PARTE 1

Aspectos Gerais

CAPÍTULO e assim por diante, numa coleção digna de um bom tratado de psicopatologia. • Existem evidências de que, na Idade Média, os doentes mentais eram degredados, puni- 1 dos com crueldade ou com a morte, recolhi- dos a prisões e masmorras em meio a assas- sinos e outros marginais, exibidos em circos juntamente com gigantes, anões e outros aleijões, encarcerados em hospícios em cu- Evolução Histórica bículos infectos e imundos, muitas vezes al- gemados, etc. da Psicanálise • Predominava nessa época uma mentalidade voltada para a magia e a demonologia, de sorte que, junto à prática de cruéis rituais de exorcismo, também empregavam o uso de Todo texto psicanalítico, quer seja ele de natu- benzeduras, poções mágicas e as diversas reza teórica ou técnica, para adquirir um significa- formas de curandeirismo. do vivencial e uma ressonância empática com o autor e o assunto, necessita ser lido dentro de um • Os rituais de “cura” eram praticados por bru- contexto histórico-evolutivo, social, cultural e ci- xos, xamãs, sacerdotes e faraós. Na escala entífico no qual está inserido. social da sociedade primitiva, os xamãs go- Assim, utilizando um recurso unicamente de zavam de alto prestígio e ocupavam o topo finalidade didática, penso que podemos dividir a da hierarquia social. história da assistência aos transtornos mentais e • Em meados do século XVIII, Anton Mesmer, emocionais em três grandes períodos: pré-história, em Viena, empregava o recurso mágico do pródromos científicos e psicanálise como ciência. que ele chamava de “magnetismo animal”, de que todo indivíduo seria possuidor em estado potencial, e ele praticava com grupos PRÉ-HISTÓRIA por meio de uma forte sugestionabilidade calcada no seu impressionante carisma pes- De forma esquemática, convém enumerar os soal, método que passou para a história com seguintes aspectos que podem dar uma idéia da evolução de como nossos ancestrais entendiam e a denominação de mesmerismo, podendo ser enfrentavam as doenças mentais: considerado o precursor (um século antes) do hipnotismo. • Existem registros arqueológicos no antigo • Coube a Pinel (1745-1826) e a seu discípu- Egito que comprovam a prática de trepana- lo Esquirol (1772-1840), em Bicêtre, promo- ções cranianas possivelmente feitas com o verem uma inovadora reforma hospitalar que objetivo de localizar alguma causa da doen- ficou sendo conhecida como tratamento mo- ça mental que estaria localizada dentro do ral, consistindo num conjunto de medidas crânio, porquanto os vestígios encontrados que não as de contenção física vigentes na atestam uma regularidade nas bordas e uma época, mas, sim, daquelas que mantivessem apurada perícia na execução daquela práti- o respeito pela dignidade do enfermo men- ca. tal e aumentassem a sua moral e auto-esti- • Na bíblia sagrada, transparece a existência e ma. a preocupação com uma série de quadros psicopatológicos que hoje denominaríamos Estamos aludindo aos dois mais importantes de transtornos psiquiátricos, como é o caso psiquiatras nascidos no período da revolução fran- cesa, culminada em 1789, sendo que eles comun- do caráter sádico-destrutivo de Caim, a in- garam e partilharam dos ideais libertários deste veja dos irmãos de José, o alcoolismo de movimento revolucionário, e sob essa inspiração Noé, a psicose maníaco-depressiva de Saul, eles revolucionaram a filosofia da assistência hos- pitalar asilar, quebrando grilhões e cadeados, sa- 22 DAVID E. ZIMERMAN neando a imundície das celas e promovendo uma O grande nome no campo da hipnose emprega- humanização e reconstrução do sentimento de da para fins científicos era o do eminente neurolo- identidade, principalmente pelo trabalho labo- gista Charcot, que professava na famosa Salpetrière, rativo. em Paris, e cujos ecos das espetaculares descober- tas chegaram aos ouvidos de Freud, que conseguiu fundos de uma bolsa para estagiar e acompanhar Período dos Pródromos da Psicanálise de perto o carismático mestre francês, no período de setembro de 1885 a fevereiro de 1886. Sobretu- Em 1856, nascia Sigmund Freud que, aos 17 do, dois aspectos impressionavam a Freud: a exis- anos, iniciou a sua formação médica em Viena, onde tência da histeria em homens e a observação da destacou-se como um aluno e estagiário brilhante, dissociação da mente, induzida pela hipnose. sendo que muito cedo ele demonstrou a centelha Entretanto, um pouco antes disso, em 1882, o do gênio no campo da investigação que o levou à notável neurologista J. Breuer relatou a Freud o descoberta da estrutura gonadal das enguias e, mais método de base hipnótica que ele empregava com tarde, no campo da fisiologia, com os seus estudos a sua jovem paciente histérica que entrou na histó- sobre o sistema nervoso de certos peixes. Aliás, ria com o nome de Ana O. (cujo verdadeiro nome creio que indo além de uma mera coincidência, era Berta Papenheim). Esta paciente, durante o es- podemos inferir que o seu interesse pela estrutura tado de transe, recordava uma série de ocorrências “gonadal” e pelo “sistema nervoso” já prenuncia- traumáticas ocorridas num passado remoto, obten- va que a descoberta da psicanálise palmilharia es- do com isto um grande alívio sintomático, e Breuer tes caminhos da sexualidade e do psiquismo pro- denominou este novo método terápico de catarse, vindo do sistema nervoso, como ele julgava nos ou ab-reação (também é conhecido com o nome primeiros tempos. Um pouco mais tarde, em 1891, de talking cure, porque assim Ana O. se referia a publicou um livro sobre Aphasia e, em 1895, di- ele). Quando essa paciente produziu histericamen- vulgou os seus estudos sobre “paralisias cerebrais te uma gravidez imaginária, Breuer ficou muito infantis”, sendo que ambos o conceituaram como assustado (ainda não era conhecido o fenômeno da pesquisador e neurólogo. transferência) e providenciou uma viagem como A medicina desta época era quase que inteira- meio de fugir dessa tão incômoda situação que, mente assentada em bases biológicas, muito pouco inclusive, estava a ameaçar o seu casamento. interessada na psicologia que então era entregue As sementes do interesse pelo hipnotismo des- aos filósofos, sendo que a nascente psiquiatria não pertadas pelo relato de Breuer ficaram plantadas passava de um ramo da neurologia, para o que con- no jovem Freud e motivaram-no a aprender com tribuiu muitíssimo a descoberta de uma causa etio- Charcot a ciência do hipnotismo, experiência que lógica infecciosa (o Treponema pallidum, causa- ele repetiu em 1889 por uma segunda vez na Fran- dor da sífilis) para o quadro mental da “paralisia ça, agora em Nancy, onde pontificavam os mestres geral progressiva”, assim constituindo dentro da Liebault e Bernheim, com os quais Freud apren- medicina a especialidade de neuropsiquiatria. deu e ficou altamente impressionado com as expe- Os neuropsiquiatras de então prestavam um riências da “psicose pós-hipnótica” que lhe permi- atendimento mais humanista que os métodos ante- tiram verificar que, mesmo em estado consciente, riores, embora os recursos de que dispunham con- as pessoas executavam ordens absurdas que provi- sistissem unicamente no emprego de ervas medici- nham dos mandamentos neles implantados duran- nais, clinoterapia (repouso no leito), hidroterapia, te o transe hipnótico. massagens, estímulos elétricos (não confundir com Freud mostrava-se incrédulo e descontente com eletrochoque, método que surgiu mais tarde, intro- os métodos pretensamente científicos empregados duzido por Bini e Cerletti, e que ainda tem uma pelos neuropsiquiatras contemporâneos e resolveu certa utilização na psiquiatria atual); além do uso empregar o método do hipnotismo com as suas da eletroconvulsoterapia, também veio a ser em- pacientes histéricas, partindo do princípio de que a pregada a indução de um estado de coma pela ação neurose provinha de traumas sexuais que teriam do cardiazol ou da insulina, assim como se inicia- realmente acontecido na infância por sedução de va o emprego de calmantes, como os barbitúricos. homens mais velhos, mais precisamente os própri- Contemporaneamente, também já estava havendo os pais. a utilização da hipnose, não só dirigida para espe- Estas experiências levaram Freud a convencer táculos teatrais, como era comum na época, mas já Breuer a publicarem em conjunto as suas observa- com uma busca por fundamentos científicos. ções e descobertas, o que foi feito em 1893, sob o FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 23 título de Comunicação Preliminar e que foi absor- suas teorias psicanalíticas. O outro pé ele apoiou num vido como constituindo o primeiro capítulo do fa- campo que até então era totalmente desconhecido e moso livro de ambos, Estudos sobre a histeria, pu- desdenhado, criando e propondo a existência de uma blicado em 1895. Breuer, ainda traumatizado pelo dinâmica inconsciente, com leis e fenômenos espe- susto que levou com Ana O., ao mesmo tempo em cíficos, alguns explicáveis pelas suas novas teorias, que discordava da orientação de Freud, cada vez e outros a serem explicados e comprovados a partir mais dirigida para a sexualidade da criança, aban- de cogitações metapsicológicas. donou definitivamente a nova ciência, enquanto De uma forma extremamente resumida e esque- Freud prosseguiu sozinho com vigor redobrado, en- mática, podemos dividir a evolução histórica da frentando as críticas mordazes e desdenhosas de psicanálise, centrada exclusivamente nas contribui- todos seus colegas. ções originais de Freud, nos cinco seguinte estági- Muito cedo, Freud deu-se conta de que era um os, a seguir descritos: “teoria do trauma, teoria to- mau hipnotizador e por isso resolveu experimentar pográfica, teoria estrutural, conceituações sobre o a possibilidade de que a “livre associação de idéias”, narcisismo e dissociação do ego”. conseguida pelo hipnotismo, também pudesse ser 1. Teoria do Trauma. Durante muito tempo, o obtida com as pacientes despertas. Para tanto, pas- aspecto mais conhecido e discutido da obra de sou a utilizar um método coercitivo, convidando Freud era o da teoria da libido, que ele elaborou as pacientes a deitarem-se no divã ao mesmo tem- inspirado nos modelos da eletrodinâmica ou da po em que, com insistentes estímulos e pressionan- hidrodinâmica vigentes na ciência da época. As- do a fronte delas com os seus dedos, obrigava-as a sim, o conceito de libido, que Freud concebeu como associarem “livremente” como uma tentativa de re- sendo a manifestação psicológica do instinto se- cordarem o trauma que realmente teria aconteci- xual, recebeu sua origem na tentativa de explicar do, mas que estaria esquecido, devido à repressão. fenômenos, tais como os da histeria, que Freud ex- Graças à paciente Elisabeth Von R. que repre- plicava como sendo resultantes do fato de que a endeu Freud para que deixasse de importuná-la energia sexual era impedida de expandir-se atra- porque, ela assegurava-lhe, sem pressão associaria vés de sua saída natural e fluía, então, para outros mais livremente e melhor, é que ele ficou conven- órgãos, ficando restringida ou contida em certos cido de que as barreiras contra o recordar e associ- pontos e manifestando-se através de sintomas vá- ar provinham de forças mais profundas, inconsci- rios. Freud chegara à conclusão de que as neuro- entes, e que funcionavam como verdadeiras resis- ses, como a histeria, a neurose obsessiva, a neuras- tências involuntárias. Isto constituiu-se como uma tenia e a neurose de angústia (fobia), teriam sua marcante ruptura epistemológica, porquanto Freud causa imediata no aspecto “econômico” da energia começou a cogitar que essas resistências corres- psíquica, ou seja, num represamento quantitativo pondiam a repressões daquilo que estava proibido da libido sexual. Na neurastenia e na neurose de de ser lembrado, não só dos traumas sexuais real- angústia, somente o represamento da libido sexual mente acontecidos, mas também daqueles que fo- é o que estaria em jogo, enquanto nas demais neu- ram fruto de fantasias reprimidas. roses traumáticas outros acontecimentos da vida A partir daí, o conflito psíquico passou a ser passada também seriam fatores causadores dos concebido como resultante do embate entre as for- transtornos neuróticos. ças instintivas e as repressoras, sendo que os sinto- Partindo inicialmente da concepção inicial de que mas se constituiriam como sendo a representação o conflito psíquico era resultante das repressões simbólica deste conflito inconsciente. Esta concep- impostas pelos traumas de sedução sexual que real- ção inaugura a psicanálise como uma nova ciên- mente teriam acontecido no passado, e que retorna- cia, com referencias teórico-técnicos próprios, es- vam sob a forma de sintomas, Freud postulou que pecíficos e consistentes. os “neuróticos sofrem de reminiscências”, e que a cura consistiria em “lembrar o que estava esqueci- do”. Penso que, para certos casos, esta fórmula per- Psicanálise como Ciência siste na psicanálise atual como plenamente válida, porquanto é bem sabido que “a melhor forma de Como vemos, Freud representa a intersecção de esquecer é lembrar” ou, dizendo de outra forma, “o dois períodos: ele esteve com um pé nas concep- sujeito não consegue esquecer daquilo que ele não ções positivistas de sua época, não só da medicina consegue lembrar”. A diferença é que na época de mas também da física e química de cujos princípios Freud este relembrar visava unicamente a uma ab- ele sofreu uma enorme influência na elaboração de reação, uma catarse por meio da verbalização dos 24 DAVID E. ZIMERMAN fatos traumáticos e os respectivos sentimentos con- devido à percepção de Freud de que as mesmas tidos nas lembranças, enquanto hoje os analistas vão encobriam a existência de “resistências”; f) estas além disso e objetivam uma ressignificação dos sig- últimas resultam de repressões, sendo que o retor- nificados atribuídos aos traumas que o paciente está no do reprimido manifesta-se pelo fenômeno da rememorando na situação psicanalítica. “transferência”; g) sobretudo, o “caso Dora” ensi- A necessidade de desfazer as repressões intro- nou a Freud a existência e a importância de o ana- duziu dois elementos essenciais à teoria e à técnica lista reconhecer e trabalhar com a “transferência da psicanálise: a descoberta das resistências incons- negativa”. cientes e o uso das interpretações por parte do psi- 3. Teoria Estrutural. À medida que se apro- canalista. fundava na dinâmica psíquica, Freud tropeçava com 2. Teoria Topográfica. A teoria anterior per- o campo restrito da teoria topográfica, por demais durou até 1897, quando então Freud deu-se conta estática, e ampliou-a com a concepção de que a de que a teoria do trauma era insuficiente para ex- mente comportava-se como uma estrutura no qual plicar tudo, e que os relatos das suas pacientes his- distintas demandas, funções e proibições, quer pro- téricas não traduziam a verdade factual, mas sim vindas do consciente ou do inconsciente, interagiam que eles estavam contaminados com as fantasias de forma permanente e sistemática entre si e com a inconscientes que provinham de seus desejos proi- realidade externa. Desta forma, mais precisamente bidos e ocultos. Daí, ele propôs a divisão da mente a partir do trabalho O ego e o id (1923), ele conce- em três “lugares” (a palavra “lugar”, em grego, é beu a estrutura tripartide, composta pelas instân- “topos”, daí teoria topográfica). A estes diferentes cias do id (com as respectivas pulsões), do ego (com lugares ele denominou: Consciente, Pré-Consciente o seu conjunto de funções e de representações) e e Inconsciente, sendo que o paradigma técnico pas- do superego (com as ameaças, castigos, etc). O sou a ser: “tornar consciente o que estiver no in- paradigma técnico da psicanálise foi formulada por consciente”. Freud como: “onde houver id (e superego), o ego Em 1900, Freud publicou A interpretação de deve estar”. sonhos, no qual ele comprova que o conteúdo do 4. Conceituações sobre o Narcisismo. Embora sonho “manifesto” pode ser visto como um modo não tenha sido formulado como uma teoria, os estu- disfarçado e “censurado” da satisfação de proibi- dos de Freud sobre o narcisismo abriram as portas dos desejos inconscientes. A propósito, essa fase para uma mais profunda compreensão do psiquismo teórica de Freud pode ser resumida com a sua afir- primitivo e constituíram-se como sementes que con- mativa de que “todo sonho, e sintoma, tem um tinuam germinando e propiciando inúmeros vérti- umbigo que conduz ao desconhecido do incons- ces de abordagem por parte de autores de todas cor- ciente”, sendo que, pode-se acrescentar, é a desco- rentes psicanalíticas. De acordo com o pensamento berta do significado simbólico dos sonhos e sinto- mais vigente entre os autores, pode-se dizer que, na mas que inaugura a psicanálise como ciência pro- atualidade, um importante paradigma da psicanáli- priamente dita. se atual pode ser formulado como “onde houver A partir do seu fracasso com a análise de “Dora” Narciso, Édipo deve estar”. (Grunberger, 1979) – escrito em 1901, mas que somente foi publicado 5. Dissociação do Ego. Aquele jovem Freud em 1905, por razões de sigilo profissional –, Freud que ficara perplexo ao perceber uma dissociação obrigou-se a fazer profundas reflexões, sendo que da mente que se manifestava nas pacientes histéri- ele chegou a afirmar que, desde então, a técnica cas durante o transe hipnótico induzido por Charcot, psicanalítica foi profundamente transformada. foi aprofundando suas pesquisas sobre este fasci- Pode-se dizer que as principais transformações que nante enigma até que ele ficou convencido de que se processaram nessa época foram: a) a psicanálise esta clivagem da mente em regiões conscientes e deixou de ser uma detida investigação e busca de inconscientes não era específica e restrita às psico- solução de, separadamente, sintoma por sintoma; ses e neuroses, mas que ela ocorria com todos indi- b) a descoberta e a formulação do “princípio da víduos. Assim, desde os seus primeiros trabalhos multideterminação” dos sintomas; c) o próprio pa- com pacientes histéricas, Freud já falava de uma ciente é quem passou a tomar a iniciativa de pro- cisão interssistêmica da qual resultam núcleos psí- por o assunto de sua sessão; d) o analista substituiu quicos independentes. No entanto, é a partir de seu a atitude de comportar-se como um investigador trabalho sobre Fetichismo (1927) e, de forma mais ativo e diretivo por uma atitude mais compreensi- consistente, em Clivagem do ego no processo de va da dinâmica do sofrimento do analisando; e) defesa (1940), que escreveu ao apagar das luzes de abandono total da técnica da hipnose e da sugestão sua imensa obra, é que Freud estudou a cisão ativa, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 25 intrassistêmica, que ocorre no próprio seio do ego morte ou tanáticos”), assim como do conflito psí- e não unicamente entre as instâncias psíquicas. Com quico resultante de forças contrárias, do consciente isso, Freud lançou novas sementes que possibilita- versus inconsciente, princípio do prazer e o da ram aos pósteros autores desenvolverem uma con- realidade, processos primário e secundário, den- cepção inovadora da conflitiva intrapsíquica, o que, tre outras dualidades mais. creio, pode ser exemplificado com os trabalhos de Em Salzburgo, em 1908, houve a “Reunião de Bion (1967) sobre a existência concomitante em Médicos Freudianos”, posteriormente rebatizada qualquer pessoa da “parte psicótica e da parte não- como “1° Congresso Psicoanalítico Internacional”, psicótica da personalidade” e cuja compreensão, ao qual compareceram 48 pessoas. A IPA (Associa- por parte do psicanalista, representa um enorme ção Internacional de Psicanálise) foi fundada em avanço na técnica e na prática clínica. 1910, em Nuremberg, durante o 2° Congresso In- O gênio de Freud possibilitou que, entre avan- ternacional (com a participação de 60 pessoas, sen- ços, recuos e sucessivas transformações, ele cons- do que os últimos congressos internacionais de psi- truísse os alicerces essenciais do edifício metapsico- canálise têm contado com uma média de 3.000 par- lógico e prático da psicanálise, sempre estabele- ticipantes, dentre um número provável de 10.000 cendo interrelações entre a teoria, a técnica, a ética psicanalistas no mundo todo) e, por sugestão de e a prática clínica. Freud, a presidência coube a Jung. A idéia que ins- pirou a criação de uma entidade internacional com princípios ortodoxos a serem rigidamente cumpri- DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES A FREUD dos pelos seguidores foi o fato de que, em nome e na sombra do movimento da psicanálise, estava-se Como sabemos, Freud criou a psicanálise pra- disseminando não só uma licenciosidade de envol- ticamente sozinho, sendo que foi somente a partir vimento sexual como também a indiscriminada prá- de 1906 que ele concluiu o período de seu “esplên- tica da “análise silvestre”. dido isolamento” e passou a reunir-se na sua sala A seguir, aconteceram as dissidências de Adler, de espera com um seleto grupo de brilhantes cola- Steckel e, em 1914, a do próprio Jung. Para prote- boradores – Abraham, Ferenczi, Rank, Steckel, ger a Freud dos detratores da psicanálise e da sua Sachs, Jung, Adler –, e assim começaram as famo- pessoa, por sugestão de – que veio a incor- sas “reuniões das quartas-feiras” às quais chama- porar-se ao grupo original – foi criado o “Comitê”, vam de “Sociedade Psicológica das Quartas-Fei- o qual foi concebido pelo modelo de uma socieda- ras” e das quais há pormenorizados registros histó- de secreta, que lembra a dos paladinos de Carlos ricos nas “Minutas”, organizadas por O. Rank, e Magno. Desta forma, Freud ofereceu um entalhe onde, sob a liderança inconteste de Freud, eles tro- grego a cada um dos colaboradores íntimos que cavam idéias científicas a respeito de casos clíni- lhe permaneceram fiéis e que o adaptaram em seus cos de psicanálise (nos primeiros tempos, unica- respectivos anéis usando-os como uma insígnia. mente os de Freud) e discutiam os nascentes as- Assim, Freud, Jones, Ferenczi, Rank, Abraham, pectos associativos e administrativos. Mais tarde, Sachs e, mais tarde, Eitington compuseram o “Cír- essas “reuniões” sistemáticas viriam a instituir a culo dos Sete Anéis” do “Komitê”, sob um, implí- Sociedade Psicanalítica de Viena. cito, juramento de total fidelidade e sob um acordo Até 1906, no entanto, Freud já havia lançado explícito de que não questionariam publicamente as sementes essenciais do edifício psicanalítico, nenhum tema fundamental da psicanálise, como o como foram as noções da descoberta do incons- da sexualidade infantil, sem antes o terem entre eles, ciente dinâmico como principal motivador da con- desta forma garantindo a continuidade do movi- duta consciente das pessoas, o fenômeno da “li- mento psicanalítico. vre associação de idéias”, a importância dos so- Deste núcleo pioneiro da psicanálise resultaram nhos como via régia de acesso ao inconsciente, a algumas dissidências e alguns continuadores, sen- sexualidade na criança, estruturada em torno da do que, entre esses últimos, alguns mantiveram uma cena primária e do complexo de Édipo, o fenô- fidelidade absoluta, enquanto outros foram amplia- meno das resistências e, por conseguinte, das re- dores, transformadores e criadores, a partir das pressões, a transferência, e a presença constante concepções originais de Freud. Dentre os dissiden- de dualidades no psiquismo; como a dos dois ti- tes, o nome mais importante e o que mais foi senti- pos de pulsões (inicialmente os “instintos de auto- do por Freud foi o de Jung; um exemplo de discí- preservação e o de preservação da espécie”; mais pulo ampliador é o de Abraham, enquanto Ferenczi tarde os “instintos de vida ou libidinais e os de 26 DAVID E. ZIMERMAN pode ser mencionado como um transformador, em Freud, porém com desdobramentos próprios e con- muitos aspectos teóricos e técnicos. cepções originais, como é o da “área psíquica livre Ao longo da obra de Freud, comprova-se que, de conflitos”, as noções de “autonomia primária e embora gradualmente ele veio valorizando as pul- secundária”, a valorização da realidade exterior e sões agressivas, o masoquismo e o narcisismo, a o problema de “adaptação” à mesma. Seguindo-se verdade é que ele nunca deixou de considerar a a Hartmann, surgiu nesta escola a importante figu- posição falocêntrica como o eixo essencial do pro- ra de E. Jacobson que, por sua concepção de “self cesso psicanalítico, ou seja, a sua convicção de que psicofisiológico”, trouxe uma valorização às pri- todos os conflitos gravitariam em torno dos dese- meiras relações objetais e à internalização das mes- jos libidinais, do complexo de Édipo e da figura mas. Posteriormente, a “Escola da Psicologia do predominante do pai na conflitiva psíquica. Ego” inclinou-se fortemente para os estudos de M. No entanto, a grande guerra iniciada em 1914 Mahler e colaboradores, que, por meio da obser- trouxe consigo uma abundância de casos de “neu- vação direta da relação mãe-bebê, fizeram origi- roses de guerra”, assim como também uma alta fre- nais postulações acerca dos estágios evolutivos da qüência clínica de “sonhos traumáticos” que não criança desde o “autismo normal” até o da “auto- podiam ser explicados unicamente pela etiologia nomia e constância objetal”, antes passando pelas da libido sexual, e este fato levou Freud a conside- fases de “diferenciação, separação e individuação”. rar a existência da repressão também de impulsos Também tendo como berço os Estados Unidos, agressivos. O sadismo já tinha sido anteriormente foram criadas correntes que se proclamavam como reconhecido por ele, porém como parte constante psicanalíticas, mas cuja orientação fundamentava- da libido anal, sendo que a postulação definitiva se precipuamente em fatores socioculturais, como do “instinto de morte” deu-se a partir do seu clás- o da “culturalista” divulgada e praticada por E. sico “Além do princípio do prazer” de 1920. Fromm, K. Horney, e também os autores que enfati- Ao mesmo tempo, Freud esboçou os primeiros zaram as “relações interpessoais”, como H. Sulli- e inconclusos estudos sobre mecanismos de defesa van. mais primitivos, como a projeção (nos seus casos Entrementes, ao final da década 20, a partir de de paranóia e de homossexualidade), introjeção Londres, começam a surgir as revolucionárias con- (com a formação de objetos internos, tal como ele cepções de M. Klein, as quais, amparadas na sua os descreveu na melancolia), dissociação endo- prática de análise com crianças de muito pouca ida- psíquica do ego, importância da contratransferên- de, convergem para uma posição essencialmente cia, etc. “seio-cêntrica”. A escola kleiniana valorizou, so- Coube especialmente à sua filha e discípula, bretudo, a existência de um ego primitivo já desde Anna Freud, além da liderança do já consolidado o nascimento, a fim de que este mobilizasse defe- movimento psicanalítico, a continuação dos estu- sas arcaicas (dissociações, projeções, negação oni- dos do seu pai, como foram as suas importantes potente, idealização, etc.) para contra-arrestar as publicações a respeito dos múltiplos e variados terríveis ansiedades primitivas advindas da – inata mecanismos defensivos do ego de qualquer pes- – pulsão de morte, isto é, da inveja primária, com soa, e bem como do aprofundamento das demais as respectivas fantasias inconscientes. Talvez para funções do ego, as conscientes e as inconscientes, não se comprometer politicamente com Freud e além de ser uma das pioneiras da análise de crian- seus fiéis seguidores, M. Klein conservou o com- ças, embora nesse caso a sua técnica guardasse um plexo de Édipo como o eixo central da psicanálise, caráter mais pedagógico do que propriamente psi- porém, o fez recuar para os primórdios da vida, canalítico. assim descaracterizando o enfoque triangular edí- Os ensinamentos freudianos eram, então, com- pico, medular na obra freudiana. Da mesma forma partidos por um sólido grupo de psicanalistas em que Freud, também as concepções de M. Klein fo- Viena, até que, fugindo da perseguição nazista du- ram seguidas e ampliadas por muitos discípulos rante a Segunda Grande Guerra, muitos deles mi- contemporâneos dela e continuadores fiéis a seus graram para outros países, onde deram continuida- pontos de vista, como Joan Rivière, S. Isaacs, por de ao movimento da psicanálise. Dentre estes últi- exemplo; por psicanalistas pós-kleinianos como H. mos, sobressai o nome de H. Hartmann que mi- Segal, Rosenfeld, Meltzer, Bion e outros, que não grou para os Estados Unidos e onde, com o reforço só ampliaram como também produziram muitas de outros psicanalistas seguidores, como Kris e transformações à obra original da mestra; e tam- Loewenstein, fundou a “Escola da Psicologia do bém por autores neokleinianos, como B. Joseph e Ego”, fortemente fundamentada em S. Freud e Anna J. Steiner, entre tantos outros, e que sucessivamen- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 27 te vêm propondo novas modificações na teoria e um simples seguidor dela, trouxe um enorme acer- na técnica da psicanálise. vo de contribuições originalíssimas, a ponto de Também oriundo de Viena, seguindo os mes- muitos considerarem-no como um verdadeiro ino- mos passos de Hartmann, migrou para os Estados vador da psicanálise atual. Os trabalhos de Bion Unidos, onde se radicou, o psicanalista H. Kohut atravessam quatro décadas, sendo que, de forma que lá fundou a escola da “Psicologia do Self” com pedagógica, pode-se dizer que os anos 40 foram contribuições bastante originais, como é o fato de dedicados aos estudos e prática sobre grupos, a dé- ele dar uma dimensão estruturante ao fenômeno do cada 50 aos psicóticos, a de 60 à epistemologia (os narcisismo, assim como uma especial valorização fenômenos da percepção, pensamento, conheci- às precoces “falhas empáticas” da mãe e do meio mento...) e o decênio 70 foi marcado por uma ten- ambiente quanto ao desenvolvimento da criança, dência de natureza mais mística. entre tantas outras contribuições mais. Os autores acima aludidos serão mais detida- Na mesma época, orquestrada pelo carisma de mente explicitados no capítulo 3, que trata das sete J. Lacan, floresceu na França a “Escola Estrutura- escolas de psicanálise; no entanto, é claro que mui- lista”, que surgiu como reação de Lacan ao que ele tos e muitos outros nomes e respectivas contribui- considerava um excessivo pragmatismo da psica- ções poderiam ser mencionados, como, por exem- nálise norte-americana. Assim, ele propôs um “re- plo, os movimentos liderados por autores dissiden- torno a Freud”, isto é, um movimento para resgatar tes, como foi o fato, antes mencionado, de que, na os princípios básicos legados pelo fundador da psi- década de 30, H. S. Sullivan, K. Horney e E. Fromm, canálise e, a partir desses, construir novos desen- alegando que Freud dedicava muito mais interesse volvimentos metapsicológicos. Conforme o nome, às biológicas pulsões instintivas (nature) do que “estruturalismo” indica que todos elementos psí- aos fatores socioculturais (nurture), desligaram-se quicos estão conjugados entre si, formando de Freud e fundaram a corrente do “culturalismo”, subestruturas e estruturas com significantes e sig- a qual atingiu uma enorme aceitação nos Estados nificados específicos. A escola francesa de psica- Unidos. Da mesma forma, muitos outros movimen- nálise na atualidade, embora diluída em várias cor- tos poderiam ser mencionados, no entanto, mesmo rentes de pensamento psicanalítico, é altamente incorrendo em omissões e injustiças, o propósito conceituada em todo o universo da psicanálise e deste artigo não pretende ir além de dar uma amos- conta com autores originais e muito férteis, como tragem de como, partindo do gênio isolado de A. , para ficar num único exemplo. Freud, a psicanálise foi crescendo como uma árvo- Para dar uma maior completude à árvore genea- re frondosa e com incontáveis ramificações, talvez lógica que tem em Freud a sua raiz e tronco princi- excessivas, às vezes convergentes, outras vezes pal, é indispensável acrescentar dois ramos de es- tautológicas ou divergentes, porém mantendo uma pecial importância e fecundidade, que são as con- vitalidade proliferativa, possivelmente porque re- tribuições da mais alta originalidade trazidas por gada e adubada pelas podas, contestações, confron- Winnicott e Bion, ambos de genitura kleiniana. tos, transformações e um estado permanente de uma Winnicott admitiu publicamente a sua dissidên- certa “crise” no próprio seio da psicanálise e nos cia com M. Klein, a partir da sua não-aceitação da psicanalistas praticantes. postulação do conceito dela de “inveja primária” Ainda mantendo um esquema altamente simpli- em 1957. Filiou-se formalmente ao “grupo inde- ficador, pode-se dizer que neste seu primeiro sécu- pendente” da Sociedade Britânica de Psicanálise, lo de existência a ciência psicanalítica tem transi- e, aos poucos, foi construindo um corpo teórico e tado por três períodos típicos: o da psicanálise or- prático inteiramente original, sendo que a sua prin- todoxa, a clássica e a contemporânea, cujas carac- cipal contribuição é a valorização do precoce vín- terísisticas serão especificadas no capítulo 4. culo real mãe-bebê no desenvolvimento emocio- As transformações que vêm-se processando nal primitivo. Além dessa postulação do holding continuamente nos paradigmas da psicanálise não por parte de uma mãe “suficientemente boa”, estão nitidamente delineadas; pelo contrário, fre- Winnicott também criou os conceitos de “verda- qüentemente se sobrepõem entre si. O importante deiro e de falso self”, os de “fenômenos, espaço e é que o psicanalista não troque simplesmente um objetos transicionais”, entre tantos e tantos outros paradigma da psicanálise por um outro mais vigen- mais que aqui não cabe detalhar. te, ou que fique aferrado exclusivamente a uma Bion, também da Sociedade Britânica de Psi- determinada escola que lhe serviu de alicerce em canálise, discípulo e analisando de M. Klein, em- sua teoria, técnica e prática, mas, sim, que ele con- bora sempre se declarasse como não mais do que serve e correlacione todos elementos fundantes de 28 DAVID E. ZIMERMAN cada período, alguns superados e descartados na fundem-se com as transformações que também atualidade, plenamente válidos alguns outros, trans- acontecem, no mundo todo, nos aspectos sociais, formados outros tantos, e que construa a sua pró- culturais e, sobretudo, econômicos. Por conseguin- pria identidade de psicanalista com as vertentes de te, também mudou o perfil do paciente que procu- conhecimento que melhor sintonizarem com o seu ra tratamento analítico; mudaram os valores cultu- modo autêntico de ser, com uma ampla variação rais e os papéis na família e sociedade, especial- no estilo de trabalhar de cada um sem que haja um mente o da mulher; cada vez mais impõe-se a cruel afastamento dos princípios essenciais do processo “lei do mais forte”, para a sobrevivência física e analítico. psíquica dos indivíduos e das famílias; há uma es- Destarte, pode-se exemplificar com muitas con- calada crescente da violência que acarreta um es- ceituações postuladas originalmente por Freud e tado geral de insegurança acompanhada por um per- que hoje estão comprovadamente equivocadas e manente sobressalto; existe uma abundância de tra- descartadas, como a de um pan-sexualismo (todo e tamentos alternativos que prometem curas mági- qualquer fenômeno psíquico encontrava algum tipo cas, assim como também existem excelentes recur- de explicação na sexualidade); a subestimação da sos auxiliares, como os do campo da moderna psi- condição da mulher, que para ele seria sempre in- cofarmacologia, etc. ferior e invejosa dos privilégios do homem (decor- Ao mesmo tempo, estão sendo intensas as cam- rente de um outro equívoco seu: o de tomar Viena panhas de descrédito contra a psicanálise, especi- como protótipo único dos valores culturais); uma almente contra uma alegada “lentidão” na obten- exagerada ênfase na “inveja do pênis”; a ignorân- ção de resultados positivos, num mundo que cada cia da vagina por parte das meninas, até a puberda- vez mais exige uma frenética pressa e agilidade. de; a indiferença desdenhosa às incipientes contri- Os detratores, embora possam ter alguma parcela buições de M. Klein, e assim por diante. de razão, geralmente são movidos, na sua crítica Por outro lado, também vale exemplificar com deletéria, tanto por uma racionalização contra as uma técnica por ele empregada nos primórdios da suas próprias dificuldades emocionais, que eles não psicanálise, a qual parecia completamente supera- solucionaram porque não conseguiram permitir um da – como é o caso do efeito terapêutico da “catar- acesso ao seu inconsciente, como também, eles são se” – e que hoje, devidamente ressignificada, movidos por interesses econômicos, acenando com readquire um lugar de importância no processo “curas” mais rápidas, e confundindo os critérios psicanalítico. Assim, hoje entendemos que o mé- do público, em meio a uma maciça influên-cia da todo catártico vai muito além de um desabafo ou, “mídia” nos múltiplos meios de divulgação. inclusive como Freud definiu, unicamente como Tudo isto está representando um sério desafio uma forma de “lembrar o esquecido” com os res- aos responsáveis pelo destino da psicanálise, no pectivos afetos; hoje, considera-se que a liberação sentido de preservar os princípios básicos que cons- do afeto que está preso na representação patógena tituem a essência da sua ideologia, ao mesmo tem- endopsíquica se processa pela nomeação com pa- po em que ela deve aceitar as contribuições pro- lavras – propiciadas pelas interpretações do psica- vindas de outras áreas do pensamento humanístico nalista – e que possibilitam uma nova significação e proceder a algumas mudanças que conciliem com daquilo que está sendo recordado. os novos interesses e necessidades dos pacientes É claro que as considerações acima não pas- que buscam tratamento psicanalítico. Convém lem- sam de uma simples amostragem de uma quantida- brar que o significado de “crise” tanto pode aludir de enorme de transformações ininterruptas que vêm a um aspecto negativo como prelúdio de uma dis- acompanhando os sucessivos paradigmas científi- solução, assim como também pode estar indicando cos do movimento psicanalítico e que, na atualida- um momento culminante que antecede importan- de, acopladas a outras ordens de transformações, tes transformações na direção de um crescimento. estão caracterizando um momento de crise. O inegável é o fato de que a psicanálise atra- vessa uma crise e, quero crer, mais no sentido po- sitivo, o último acima mencionado. Unicamente CRISE NA PSICANÁLISE para exemplificar a existência desta crise que me- dra tanto fora como dentro da própria psicanálise, A psicanálise – e os psicanalistas – estão em vale mencionar a opinião recente de dois destaca- crise, porquanto estão no cume de uma série de dos e respeitados psicanalistas britânicos – Elisa- transformações. As mudanças vão muito além do beth Spillius e David Tuckett – que respectivamente campo restrito da psicanálise como ciência e con- comentam alguns aspectos da psicanálise atualmen- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 29 te praticada em dois dos maiores centros do mun- diagnosticar as causas de nossas dificuldades e, do, Estados Unidos e Inglaterra. sobretudo, de se implantarem dispositivos, estra- Assim, afirma Spillius (1995): “Na América do tégias, programas práticos e objetivos para se su- Norte, nos anos 50 e 60, a psicanálise era uma plantarem tais complicações. (...) As conclusões moda...Agora, a análise nos Estados Unidos está apontam para dois grandes pontos de conflitos: o fora de moda e o Prozac está na moda. Por muitos primeiro diz respeito à formação psicanalítica, anos, os defensores de departamentos de psiquia- quer dizer, um problema interno em que o princi- tria na América do Norte eram psicanalistas. Agora pal obstáculo é a nossa própria resistência em não é mais assim”. (Poderíamos acrescentar, tal mudar. (...) Algumas coisas já foram conseguidas, como aparece no capítulo 41, que essa última con- mas ainda é pouco, pois segue uma sensação de dição parece que está causando lá um sério esvazia- anacronismo entre uma prática artesanal de uma mento na busca de formação psicanalítica por par- época e certas características ultramodernas de te dos profissionais recém-formados, aliado ao fato comunicação e aprendizado de agora, a exigirem de que o sistema de seguro de assistência médica uma formação mais curta no tempo e mais inte- atualmente vigente nos Estados Unidos, incluída a grada com conhecimentos atuais no conteúdo. O psicanalítica, está gradativamente impossibilitan- segundo ponto de conflito é externo, isto é, refere- do a manutenção de um tratamento analítico no seu se à aceitação da psicanálise como um todo e como modelo habitual.) método terapêutico das afecções mentais, por parte Por sua vez, Tuckett (1995) opina que “... na do meio cultural, social e consumidor. Não resta a Inglaterra, na atualidade, o entusiasmo dos pacien- menor dúvida de que perdemos muito terreno nes- tes em analisar-se não se encontra lá. Outra dife- tas últimas décadas. São muitos os fatores interfe- rença é que na Inglaterra os psiquiatras opõem-se rentes nesse resultado, porém o mais importante com firmeza à psicanálise. Penso que os analistas parece ser a nossa falta de capacidade de avaliar, têm sido muito arrogantes ao fazerem certas afir- enfrentar e acompanhar as mudanças do mundo mações que não podem ser justificadas” (o grifo é em constante movimento. (...) Caberia aos psica- meu). nalistas adaptarem a psicanálise prática aos cam- Creio firmemente que estas duas afirmativas não biantes modos de viver das pessoas, quer dizer, é devem ser entendidas como uma mensagem derro- preciso abandonar um idealizado isolacionismo tista, mas sim como mais um brado de alerta de científico e cultural, não só pela integração com que temos muito a refletir e a transformar na práti- os demais segmentos, senão pela adoção de medi- ca da psicanálise. das práticas”. Tanto é verdadeira esta última afirmativa, que Como vemos, a IPA reconhece a crise na psica- a IPA está seriamente preocupada com os destinos nálise e nos psicanalistas, está afinada com as preo- do movimento psicanalítico no mundo todo, e isso cupações de todos os praticantes e usuários, está pode ser comprovado nas resoluções tomadas num tomando uma série de medidas administrativas e recente encontro, em 1997, na Venezuela, reunin- ideológicas e abre um campo para novas reflexões do as principais lideranças dos responsáveis pela e perspectivas que permitam o prosseguimento da psicanálise. Vale a pena reproduzir, embora parcial- psicanálise neste início do segundo século de sua mente, as principais deliberações que foram pro- trajetória histórica. postas neste encontro, tal como Mabilde (1997) – O presente capítulo será complementado por participante ativo desta reunião, então na condição outros dois: o que trata da “Psicanálise Contempo- de presidente da SPPA – informa-nos, com essas rânea” (capítulo 4) e o que aborda “A Crise Atual palavras textuais: “...Pude sentir a enorme e in- e as Perspectivas Futuras da Psicanálise” (capítulo tensa mobilização dos psicanalistas no sentido de 41).

CAPÍTULO setting formal, como também incide em psicana- listas de formação oficializada pela International Psychoanalytical Association (IPA), mas que, por desejo próprio ou porque premidos pelas circuns- tâncias, cada vez mais atendem sob um setting que 2 caracteriza ao que se denomina “psicoterapia psi- canalítica”. Não é difícil constatar que este mal-estar, indo além dos “psicanalistas oficiais” e dos “psicotera- peutas analíticos”, também se estende aos próprios Psicoterapia e Psicanálise: pacientes que, de uma forma ou de outra, trocam impressões entre si, comparam os respectivos tra- Semelhanças e Diferenças tamentos, enaltecem ou duvidam de seus terapeu- tas, sendo que a existência ou não do divã no con- sultório pode chegar a atingir uma representação de “fetiche” que designaria o que é um “verdadei- As semelhanças e diferenças entre o que se cos- ro” ou um “falso” tratamento psicanalítico, tudo tuma denominar “psicanálise” e “psicoterapia”, podendo gerar uma indefinição da identidade psi- assim como as suas convergências, divergências, canalítica, um clima de certa confusão, inclusive tangências e superposições, têm sido muito estu- no público em geral. dadas e discutidas, principalmente a partir da dé- Nesta altura, impõe-se a necessidade de que se cada de 40, sendo que, na atualidade, tais questiona- esclareçam os significados conceituais dos termos mentos continuam plenamente vigentes, controver- “psicoterapia” e “psicanálise”. tidos e polêmicos. A relevância deste tema pode ser medida por dois tipos de parâmetros: os objetivos e os subjeti- CONCEITUAÇÃO vos. Os primeiros manifestam-se por meio de uma relativamente grande quantidade de trabalhos que Em 1923, no seu trabalho Dois artigos de enci- se dedicam ao assunto, assim como também a clopédia: psicanálise e teoria da libido, Freud de- efetivação, em diferentes épocas, de mesas-redon- fine a psicanálise como um procedimento de in- das, inclusive em congressos internacionais, reu- vestigação dos processos mentais, um método de nindo psicanalistas de renome, sendo que as opi- tratamento e uma disciplina científica. Mais tarde, niões deles em relação às diferenças e semelhan- em 1926, no trabalho Podem os leigos exercer psi- ças entre psicoterapia e psicanálise tanto são con- canálise?, ele complementa a sua definição afir- vergentes como também aparecem essencialmente mando que “deve existir uma união entre curar e diferentes entre si. Da mesma forma, tem crescido investigar”, com o que até hoje todo psicanalista o número de projetos de pesquisa relativos a este clínico há de concordar, porquanto os três aspec- polêmico assunto, por parte de instituições sérias, tos acima mencionados estão intimamente conecta- enquanto, ao mesmo tempo, não é difícil perceber dos, são simultâneos e indissociados entre si. a existência de um clima algo constrangedor entre Psicoterapia, por sua vez, é um termo genérico aqueles que praticam a “psicanálise oficial” e aque- que costuma ser empregado para designar qualquer les que fazem, ou fizeram, uma paralela formação tratamento realizado com métodos e propósitos de base psicanalítica. psicológicos. Inicialmente, Freud não fazia uma Os parâmetros subjetivos que medem a impor- distinção entre os termos “psicoterapia” e “psica- tância deste assunto dizem respeito justamente ao nálise”; empregava-os indiscriminadamente para desconforto daqueles últimos, que trabalham com caracterizar o método de tratamento psicológico fundamentação psicanalítica, inclusive com o uso que criara, e freqüentemente empregava a expres- do divã, mas, não raramente, fazem-no algo culpa- são terapia psicanalítica, como que estabelecendo dos, quando não envergonhados ou até mesmo com uma conexão entre ambos. Posteriormente, no en- uma certa confusão, devido a uma indefinição da tanto, Freud sentiu-se no dever de discriminar a sua identidade profissional no campo da psicaná- psicanálise como ciência, e o emprego de outros lise. Penso que tal constrangimento acompanha tan- métodos que continuavam levando em conta os ul- to a esses psicoterapeutas que dão um atendimento trapassados recursos da sugestão direta, como, por psicanalítico sistemático dentro dos rigores de um exemplo, o da hipnose induzida. Essa posição de 32 DAVID E. ZIMERMAN

Freud está bem estabelecida em sua famosa afir- paciente, de reforçar os mecanismos defensivos do mação feita em 1918, em Budapeste, na qual ele ego mais desenvolvidos, de modo a propiciar-lhe advertia quanto à necessidade de “separar o ouro condições para confrontar e enfrentar o seu lado puro da psicanálise do cobre da sugestão direta”. “frágil e doente”, sem necessariamente ter de Continuadores dessa advertência de Freud, inú- aprofundar na dinâmica dos conflitos pulsionais meros autores definiram um rígido posicionamento inconscientes. na diferença entre as palavras que designam “psi- O termo “psicanálise”, por sua vez, alude uni- coterapia” e “psicanálise”, como pode ser exem- camente àquela modalidade de tratamento que se plificado com a assertiva de Glover (1931) que restringe aos referenciais e fundamentos da ciên- estabeleceu uma dicotomia pela qual ele polariza- cia psicanalítica tal como ela foi legada por Freud, va a psicanálise exclusivamente situada num pólo, isto é, o terapeuta trabalha essencialmente com a enquanto no pólo oposto restariam as psicoterapias noção dos princípios e leis que regem o inconsci- como sendo simples variações de métodos da su- ente dinâmico, e a prática clínica conserva uma obe- gestão, ou seja, é fácil deduzir, como “formas im- diência aos requisitos psicanalíticos básicos, tais puras” de análise. Outros autores assumiram posi- como a instituição e a manutenção de um setting ções parecidas com essa de Glover, embora menos adequado, uma atenção prioritária na existência de rígidas e maniqueístas, enquanto gradativamente foi um campo analítico, com as respectivas resistên- aumentando o número daqueles que foram desen- cias, transferências, contratransferência, além de volvendo a moderna psicoterapia dinâmica psica- uma continuada atividade interpretativa. Tais as- nalítica, baseada teoricamente nos mais rigorosos pectos, como o próprio Freud, em A História do princípios da psicanálise. Movimento Psicanalítico (1914), costumava assi- Penso que grande parte dessa confusão concei- nalar “distinguem a psicanálise das outras formas tual devia-se (e ainda se deve) ao fato de que a de psicoterapias” (entre essas “outras formas”, não palavra “psicoterapia” engloba uma larga série de está incluída a que ele denominava “terapia psica- possibilidades psicoterápicas, psicanalíticas ou não nalítica”). psicanalíticas, tanto na sua concepção teórica como Neste mesmo artigo, num indireto recado claro nas suas aplicações práticas. Assim, senso lato, a Jung, recém-dissidente, Freud afirma textualmente psicoterapia pode designar desde uma situação de que “toda investigação que leve em conta os fatos simples “aconselhamento”, uma “orientação direti- da transferência e resistência e os tomem como va e sugestiva”, uma “ab-reação”, um “reassegura- ponto de partida de seu labor poderá ser denomi- mento”, ou alguma das diversas formas de “psico- nada psicanálise, ainda que cheguem a resultados terapia de apoio”, assim como também é possível distintos dos meus; porém aqueles que rechaçarem que esteja aludindo a uma “terapia cognitiva”, ou essas duas premissas não escaparão à acusação “comportamental”, ou ainda “psicodramática”, de usurpação de propriedade, se insistirem em se “transicional”, “sistêmica” (para casal, família), chamarem de psicanalistas”. “grupal”, etc, etc. Por outro lado, a própria psicoterapia funda- A psicoterapia psicanalítica vem gradativa- mentada em bases analíticas também adquire de- mente adquirindo uma alta respeitabilidade como nominações diversas, conforme for o seu propósi- uma modalidade terapêutica capaz de propiciar to maior. Assim, são correntes a existência de tipos resultados verdadeiramente psicanalíticos, como de psicoterapias conhecidas, entre outras, com os será visto mais adiante; no entanto, como forma de nomes de terapias breves, terapias focais, terapi- exemplificar o universo semântico contido na pa- as voltadas para o insight. Como vemos, há um lavra “psicoterapia”, cabe afirmar que uma psico- conglomerado de psicoterapias, sendo que aqui o terapia de apoio pode assumir formas distintas. termo “psicoterapia” estará designando unicamen- Assim, comumente ela é significada de forma algo te aquela terapia sistemática, de fundamentação depreciativa, como não sendo mais do que uma psicanalítica, voltada para o insight, a qual mais prestação de conforto, consolo, “tapinha nas cos- comumente é designada com a denominação psi- tas”, palavras amáveis, etc., portanto, como algo coterapia psicanalítica, mas, também costuma apa- muito fácil de ser feito, enquanto que, pelo menos recer na literatura com os nomes de “psicoterapia em meu entendimento, uma adequada psicoterapia expressiva”, “psicoterapia compreensiva”, “psico- de apoio de base analítica não é nada disso, e ela terapia dinâmica”, “psicoterapia de orientação (ou exige um bom preparo do terapeuta, porquanto ele base) psicanalítica”, “psicoterapia dirigida ao in- tem a difícil tarefa de discriminar e localizar a, sight”, etc. muitas vezes oculta, “parte sadia e forte” do seu FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 33

Mesmo levando em conta a última definição tulados técnicos recomendados por Freud, acima apontada, pode-se dizer, conforme Wallers- relativos ao cumprimento das regras da “li- tein (1989, p. 304) que os analistas estudiosos dos vre associação de idéias”, da “neutralidade”, confrontos entre “psicanálise” e “psicoterapia”, da “abstinência”, do “anonimato do analis- principalmente os autores norte-americanos, divi- ta” e das regras que presidem as interpreta- dem-se em três grupos: 1) aqueles que, como Stone, ções centradas quase que exclusivamente no , Rangell, Bibring e outros mais, consideram a existência de diferenças claras e radicais entre am- “aqui-agora” da neurose transferencial. bas e advogam a necessidade de que se estabeleça Ocorre que essa solução não é tão fácil, a uma nítida delimitação das mesmas; 2) autores começar pelo fato de que a própria conduta igualmente importantes como Alexander, Fromm, técnica de Freud, tal como está expressa em Reichman, French, etc., posicionaram-se na con- seus historiais clínicos, diferia muito do que vicção de que a diferença entre psicoterapia e psi- ele sustentava em seus clássicos trabalhos canálise é mais de natureza quantitativa, e muito sobre a teoria da técnica, quase todos escri- menos qualitativa, além de que há uma inter- tos nos anos de 1912 a 1915. penetração entre ambas; 3) um terceiro grupo, en- • Por outro lado, podemos questionar-nos se tre os quais me sinto incluído, consideram que existe na análise contemporânea existe uma técni- um largo espectro de metas, indicações, contra-in- ca analítica única, embora ela permita varia- dicações, técnicas e processos, com os extremos bem diferenciados, porém com muitos pontos que ções de táticas, estratégias e estilos, ou se, tangenciam, superpõem e até confundem-se entre pelo contrário, existem princípios técnicos si. básicos (setting, resistência, contra-resistên- Essa última posição fica mais bem esclarecida cia, transferência, contratransferência, inter- com a seguinte postulação de Rangell (segundo uma pretação, elaboração, etc) que se instrumen- citação de Wallerstein, 1989, p. 310): “A “psica- tam de modos distintos, conforme forem as nálise propriamente dita” e a “psicoterapia psi- diferentes estruturas e circunstâncias espe- canalítica”, ao final de um espectro, são qualita- cíficas de cada paciente. Em qualquer dos tivamente diferentes uma da outra, se bem que exis- casos, é necessário considerar a influência ta um terreno fronteiriço de casos entre elas. Uma fundamental dos postulados teóricos nos comparação análoga pode realizar-se entre o fato quais o analista está essencialmente ancora- de que a consciência é distinta do inconsciente mes- mo quando existe um pré-consciente e diferentes do. graus de consciência. O dia é diferente da noite, • Assim, os “elementos de psicanálise” (Bion, mesmo quando existe o crepúsculo; e o preto é di- 1962) são virtualmente os mesmos em todas ferente do branco, não obstante exista o cinza”. terapias psicanalíticas. No entanto, as múlti- De forma genérica, como uma forma de síntese plas combinações entre tais elementos de- do que já foi exposto, os seguintes pontos mere- terminam as inúmeras e diferentes formas no cem ser ressaltados: campo analítico. Serve a metáfora de que as • A expressão “psicoterapia” é mais abran- mesmas notas musicais compõem melodias gente do que “psicanálise”, sendo que esta diferentes, desde as bem simples até as mais última é mais restrita e não deixa de ser uma sofisticadas e complexas; assim como tam- das diversas formas de psicoterapia, se bem bém as mesmas e poucas letras de um alfa- que a mais profunda, sofrida, elaborada e beto, conforme o arranjo delas, compõem in- pretensiosa dentre todas elas. finitas palavras e discursos diferentes. • É uma questão difícil, delicada e até presun- • Segundo J. MacDougall (1991, p. 73), “em- çosa a tarefa de estabelecer uma nítida deli- bora a distinção seja difícil, quer se trate de mitação entre ambas, porquanto, se existem psicanálise ou psicoterapia, a finalidade evidentes diferenças, também existem as áre- básica de tornar consciente o inconsciente as equivalentes as de uma “aurora” ou “cre- é a mesma nas duas. Às vezes, temos de re- púsculo”. duzir os objetivos porque o paciente não • O problema da distinção entre psicanálise e pode suportar ir mais longe”. psicoterapia pode ficar muito facilitada se se- • Prossegue essa importante autora: “O gran- guirmos estritamente e ao pé da letra os pos- de diferenciador entre psicoterapia e psica- 34 DAVID E. ZIMERMAN

nálise consistia no fato de que somente o À mudança do perfil caracterológico do paci- aprofundamento possibilitado pelas peculia- ente aliam-se outros fatores importantes, como os ridades dessa última é que permitiria uma de natureza sociocultural (modificações nos papéis reconstrução do passado como explicação e nas funções dos integrantes de uma família nu- para o comportamento do presente do ana- clear; casamentos, descasamentos e recasamentos; crescente clima de violência; dominância dos va- lisando. No entanto, esse aspecto, na atua- lores e ideais provindos da influência maciça da lidade, embora conserve a sua importância, mídia; estilo de viver mais estressante; abundante já não é mais considerado um instrumento oferta de tratamentos alternativos com a promessa terapêutico tão mágico e exclusivo como se de curas mágicas, etc.), e, muito particularmente, considerava até há algumas décadas. Mui- os fatores de ordem econômica, que acontecem no tos outros fatores concorrem, e que estão mundo todo, têm repercussão direta na determina- igualmente presentes na prática das terapi- ção do tipo de procura, motivação e possibilidade as analíticas”. para um tratamento psicanalítico. Da mesma for- ma, Hanly (1997), que é um importante membro Sintetizando todas as diversas denominações e da “Casa dos Delegados da IPA” afirma que: “As conceituações que até agora foram mencionadas mudanças culturais no mundo resultaram numa neste texto, creio que cabe utilizar a expressão ge- procura de métodos mais “rápidos”, fáceis e ba- nérica método analítico, que, ao mesmo tempo, ratos para a resolução de suas doenças”. unifica e mantém as diferenças entre psicanálise e Um outro aspecto que depende bastante da pes- psicoterapia psicanalítica. Ademais, não custa soa do paciente em relação ao êxito analítico, in- enfatizar que minha inclinação para manter uma dependentemente se é psicanálise standard ou psi- aproximação entre as duas modalidades do empre- coterapia psicanalítica, é o que se refere a se ele go do método psicanalítico pressupõe uma condi- possui, ou não, o que Bion (1992) chama de “fun- ção básica para o psicoterapeuta: a de que ele pos- ção psicanalítica da personalidade”. Essa capaci- sua uma sólida formação da metapsicologia, teoria dade é potencialmente inata, está intimamente li- e prática dos fundamentos psicanalíticos. gada à busca da verdade e de conhecimentos, e deve vir a ser desenvolvida no paciente durante a tera- pia analítica, basicamente pela introjeção do mo- ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES CONCEITUAIS delo do terapeuta. Essa condição é importante porque modifica o Partindo da última frase de J. MacDougall, aci- clássico critério de analisabilidade, que mais leva ma mencionada, e utilizando um recurso didático, em conta os aspectos de rótulo diagnóstico e de vale considerar separadamente os fatores que são perspectiva prognóstica pré-concebida pelo analis- próprios dos pacientes, dos terapeutas e do pro- ta, e introduz o critério de acessibilidade, ou seja, cesso analítico, que têm concorrido para algumas o terapeuta leva mais em conta o grau de motiva- transformações e interações entre psicanálise e psi- ção da pessoa que procura tratamento analítico para coterapia na atualidade. uma jornada longa e possivelmente penosa. Da mesma forma, também dois outros fatores são es- pecialmente valorizados: 1) mais do que o grau de Na Pessoa do Paciente patologia manifesta do paciente, o que merece uma maior valorização é a sua reserva de capacidades A clínica de hoje difere substancialmente da- positivas latentes; e 2) a disposição, consciente ou quela de um século atrás. Quase não mais encon- inconsciente, deste paciente a propiciar um aces- tramos as clássicas neuroses “puras” (histéricas, so, por parte do terapeuta e dele próprio, aos as- fóbicas...) e, em contrapartida, surgiram e predo- pectos ocultos de seu inconsciente. minam as neuroses “mistas”, assim como “novas Uma decorrência direta da existência, ou não, patologias”. Dentre essas últimas, tem crescido a da referida “função psicanalítica da personalida- demanda de pacientes psicóticos, borderline, psi- de” na pessoa do paciente determina, a meu juízo, cossomatizadores, transtornos alimentares, droga- uma profunda mudança no critério conceitual do dictos, perversões, transtornos de conduta, e espe- que é análise ou do que é psicoterapia, porquanto cialmente daquelas pessoas portadoras de transtor- este aspecto sobrepassa aos que estão presos a cri- nos narcisistas da personalidade, com problemas térios exteriores, tais como o uso do divã, número de auto-estima e indefinição do sentimento de iden- obrigatório de sessões semanais, etc. Assim, basea- tidade. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 35 do na minha experiência pessoal – e sempre levan- reciprocamente através de continuados movimen- do em conta que estou considerando que o tera- tos transferenciais-contratransferenciais. Além dis- peuta tem uma sólida formação psicanalítica –atre- so, tem-se que levar em conta que os terapeutas se vo-me a afirmar que, eventualmente, determinados confrontam com dois tipos de pacientes: aqueles pacientes que têm duas, ou até mesmo uma sessão que basicamente sofrem de conflitos (mais de na- semanal, podem estar num verdadeiro processo de tureza edípica, e que, genericamente, lutam sobre- análise, ou seja, estão fazendo verdadeiras mudan- tudo pela sua sexualidade) e o contingente cada ças psíquicas, enquanto alguns outros que cumprem vez maior daqueles outros que sofrem essencial- todas as costumeiras combinações de uma análise mente de carências (que, embora não deixem de standard podem não estar fazendo mais do que uma ser conflitos, são mais de natureza narcísica, oriun- “psicoterapia deitada” durante quatro vezes por das das falhas ocorridas nas etapas do desenvolvi- semana. Essas linhas já estavam escritas quando mento emocional primitivo, e que pugnam pelo seu encontrei um respaldo nessa autorizada afirmativa direito de viver). de J.MacDougall (1991, p. 74): “Há pessoas que Todos esses fatores convergem para o fato de vêm uma vez por semana, ou mesmo de 15 em 15 que já não basta unicamente que o analista seja in- dias, e que entram em um verdadeiro processo ana- teligente, perspicaz, sério, um suficiente conhece- lítico. Por outro lado, há pessoas que vêm três e dor da metapsicologia, teoria e teoria da técnica, e, até quatro vezes por semana e depois de três anos inclusive, que tenha tido uma formação psicanalí- não disseram mais do que haviam dito na primei- tica completa e aprovada pelos padrões da IPA. É ra semana”. óbvio que tudo isso é indispensável, porém é igual- mente essencial que o analista reúna aquilo que Bion (1992) nomina de “condições necessárias Na Pessoa do Analista mínimas”, que consistem numa série de atributos que o possibilitem conter uma forte carga projeti- Da mesma forma como ocorreu com o pacien- va de angústias, assim como prover e preencher os te, também o perfil do analista da atualidade mu- “buracos negros” que compõem os vazios existen- dou substancialmente em relação ao dos pioneiros ciais de determinados pacientes bastante regressi- do passado. Estes últimos notabilizavam-se pela ca- vos. pacidade de simplesmente decodificar o conteúdo Dentre esses atributos indispensáveis para a dos conflitos, com as respectivas pulsões, fantasi- pessoa do psicoterapeuta (que serão mais detalha- as, ansiedades e defesas primitivas que jazem re- damente estudados no capítulo 41, referente às primidas no inconsciente ou no pré-consciente, e “condições necessárias para um analista”), devem que se manifestam pelo simbolismo contido nos ser destacados aqueles que aludem a uma capaci- sintomas, lapsos, sonhos, livre associações de idéias dade de empatia, continência, paciência, intuição, e movimentos da neurose de transferência, apor- amor às verdades e à liberdade, respeito à auto- tadas pelo paciente. É claro que tudo isso continua nomia do outro, capacidade para suportar dor válido e importante, porém a participação do ana- mental, frustrações e decepções, prazer da cria- lista é considerada hoje como indo muito além dessa ção e, muito particularmente, a de possuir um ta- função única, relativamente fácil para aquele que lento especial para a prática da ciência e arte psi- for bem dotado intelectualmente e possuidor de uma canalítica. Destarte, pode acontecer a possibilida- boa bagagem teórica. de de que um terapeuta com uma consistente for- Partindo daí, pode-se dizer que a maior trans- mação analítica numa instituição não filiada dire- formação do papel do terapeuta no campo analíti- tamente à IPA possa ser tão eficiente e com uma co consiste justamente no fato de que ele deixou tão consolidada identidade de psicanalista como a de ser aquela pessoa revestida de uma auréola de de algum outro analista com uma satisfatória for- infalibilidade, uma completa saúde psíquica, pos- mação oficializada. suidor exclusivo das verdades e, por conseguinte, Por outro lado, alguns autores alertam que aqui- a sua função restringia-se a ser um privilegiado lo que é conceituado como sendo “psicanálise” observador perspicaz e capaz de interpretar os con- varia com os diferentes grupos analíticos à mercê flitos inconscientes de seus pacientes. das suas diferentes ideologias. Assim, de modo ge- A contemporânea psicanálise de natureza vin- nérico, os analistas da “psicologia do ego” e os cular implica no fato de que há uma permanente “kleinianos” são enfáticos na necessidade de dife- interação afetiva do paciente com o analista, am- renciar-se nitidamente psicanálise de psicoterapia, bos com algum grau de angústia, influenciando-se a fim de evitar confusão e diluição de conceitos e 36 DAVID E. ZIMERMAN objetivos, enquanto aqueles analistas que adotam dora de cada analista em particular, a dos psicana- uma linha de análise predominantemente “inter- listas que os analisaram e a dos respectivos super- personalista” encaram com maior flexibilidade os visores. Como não poderia deixar de ser, esse “supe- limites entre ambas formas de terapia analítica. rego analítico” aparece com mais nitidez e força Assim, a psicanálise também pode ser definida nos candidatos dos institutos formadores de psica- como uma forma científica de conhecimento da nalistas, sendo que ao mesmo tempo em que ele é realidade psíquica, quer essa tenha a forma de de- necessário e estruturante, quando for por demais sejo, fantasia inconsciente, fantasma, distorção da exagerado pode constituir-se como um fator agri- função perceptiva do ego, vazio existencial, ou de lhoante e mutilador da liberdade e da criatividade uma busca da verdade, conforme for a corrente dos candidatos e analistas jovens. psicanalítica predominantemente (às vezes, exclu- O que realmente importa é que o analista co- sivamente) adotada por cada analista. A propósito, nheça seus alcances e possibilidades, assim como vale registrar essa instigante afirmativa de J. os limites e limitações, seus e da ciência psicanalí- MacDougall (1991, p. 74): “o fato é que há pesso- tica, de modo que tenha uma clara idéia e seguran- as que fazem progresso com analistas que têm téc- ça daquilo que ele faz, de como está fazendo e com nicas extremamente diferentes. Nós temos neces- qual propósito. Isso faz-me lembrar Winnicott, de sidade de teorias, mas não é a teoria o fator de quem contam que, diante de uma pergunta que lhe mudança psíquica. Acho que há algo de misterio- fizeram acerca de se ele também praticava psicote- so na relação analista-analisando. Muito do que rapia, o mestre teria respondido algo assim: “Eu se passa não pode ser colocado em palavras. E sou um psicanalista, só sei fazer análise, indepen- também não são as interpretações que explicam dente do fato de que meu paciente vem cinco vezes todas as mudanças psíquicas”. por semana e deita no divã, ou de que se ele vem Acredito que um outro fator que provoca o es- uma vez por semana e fala comigo sentado na mi- tabelecimento de uma rígida inflexibilidade na dis- nha frente”. tinção entre psicanálise e psicoterapia analítica, Também deve ser levado em alta conta o fato além daquelas que naturalmente existem, também de que o analista da atualidade também luta com se deve a uma inconsciente necessidade de garan- dificuldades econômicas, já passou o tempo em que tir a preservação do “sentimento de identidade de o simples fato de ter a titulação de psicanalista ofi- psicanalista”. Isso se deve ao fato de que em toda a cializado pela IPA, por si só, já se constituía em formação de algum tipo de senso de identidade, uma certeza de encaminhamentos de pacientes para durante algum tempo, o mesmo estrutura-se pelo análise e uma garantia de consultório cheio. É ne- estabelecimento das diferenças nítidas com aque- cessário considerar os fatos, já assinalados, de que le outro, de quem o sujeito necessita se diferenciar existe um crescente e excessivo número de psica- para assegurar a sua identidade. Assim, para exem- nalistas, ao mesmo tempo em que uma generaliza- plificar, na estruturação do sentimento de identida- da crise econômica mundial e uma grande oferta de referente ao “gênero sexual”, os meninos púbe- de métodos alternativos de tratamento, principal- res organizam-se no conhecido “clube do bolinha”, mente o da moderna psicofarmacologia. onde “meninas não entram” (reciprocamente, as Vale a pena transcrever essa posição tomada meninas criam o seu “clube da luluzinha”). Utilizo dentro da própria IPA por parte do renomado essa metáfora para esclarecer a afirmativa anterior, Charles Hanly (1995): “Menos e menos pacientes de que, muitas vezes, uma das formas de alguém aceitam a análise clássica – quatro sessões por assegurar a sua identidade de psicanalista é a de semana, no divã, por anos, pagando cifras custo- manter a diferença, a maior possível, entre psica- sas. Muitos analistas – existem numerosas exce- nálise e psicoterapia psicanalítica ções – estão com consultórios esvaziados e pou- Da mesma forma, também penso que uma ou- cas pessoas procuram análise didática em institu- tra razão que torna ambígua a distinção entre psi- tos psicanalíticos da IPA”. Penso que a conse- canálise e psicoterapia analítica é a existência de qüência mais evidente disso é a de que as análises um “superego analítico”, provinda de uma sólida “puras” vão ficando cada vez mais restritas às pes- tradição de um século de existência fértil da psica- soas da área “psi” que fazem alguma modalidade nálise; das leis emanadas pela IPA, que, aliás, têm de formação psicanalítica. Enquanto isso, cresce o a obrigação de fazê-las, como forma de zelar pela número de analistas que em seus consultórios pri- preservação da psicanálise praticada pelos seus vados fazem algum tipo de psicoterapia, ou seja, afiliados no mundo todo. Igualmente, esse “supere- praticam a terapia analítica fora das clássicas com- go” contém a ideologia de sua instituição forma- binações oficiais. Já em 1980, Zimmermann (p.31), FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 37 publicava um trabalho no qual atesta que uma mé- Todos aspectos apontados, de alguma forma, dia de 60% dos analistas de todo mundo praticava, serão abordados nos respectivos capítulos deste li- de forma total ou parcial, a psicoterapia. Pelo me- vro. No entanto, cabe fazer algum destaque para nos nos Estados Unidos, o número de analistas ofi- alguns detalhes que dizem mais de perto a esse pro- ciais, que na atualidade pratica unicamente a psi- blema relativo à psicanálise e a psicoterapia. coterapia, ultrapassa a cifra acima mencionada. Uma outra conseqüência preocupante dessa situa- ção de crise consiste numa forte desilusão, falta de Número de Sessões estímulo e desmotivação por parte de muitos ana- listas mais jovens. Um dos critérios que a maioria, ou talvez a to- Um último fator que me ocorre como sendo talidade, dos autores que abordou este assunto cos- importante naquilo que se refere à pessoa do ana- tumava destacar para diferenciar a psicanálise da lista é o fato bem evidente de que proliferam insti- psicoterapia consistia justamente no número de ses- tuições de ensino não ligadas oficialmente à IPA, sões semanais, porquanto a primeira delas exigiria as quais promovem uma “formação (psicanalítica) um setting com um mínimo de quatro sessões, com paralela”, que recomendam aos seus alunos uma o propósito de propiciar a formação de uma neuro- análise pessoal e exigem supervisões sistemáticas se de transferência, que seria a única condição com- e permanentes, além dos indispensáveis seminári- patível com uma análise de verdade, enquanto a os teóricos, técnicos e clínicos, que podem ser de psicoterapia não deveria ultrapassar a duas sessões, uma qualidade muito boa, nivelados com os dos pela razão contrária, isto é, a de não permitir a ins- institutos oficiais. Assim, estes seminários são os talação da referida neurose de transferência. mesmos que aqueles realizados obrigatoriamente Penso que na atualidade uma grande parcela de nos institutos filiados à IPA, a bibliografia também autores deve estar-se fazendo duas perguntas é a mesma, e comumente tais institutos paralelos contestatórias àquela argumentação acima referi- são criados, dirigidos e contam com a colaboração da: 1) Com determinados pacientes, uma psicaná- de experientes e conceituados psicanalistas didatas, lise não pode funcionar sem a existência no campo membros efetivos e associados pertencentes aos analítico de uma plena neurose de transferência? quadros das sociedades psicanalíticas oficiais. Será que, muitas vezes, notadamente para aqueles pacientes que se escudam numa caracterologia nar- cisista, não se impõe a necessidade de que essa No Processo Analítico neurose de transferência seja construída gradati- vamente, enquanto a atividade interpretativa pode Todos os aspectos referidos concorrem para ser válida e eficaz em momentos transferenciais, uma crescente confusão quanto à verdadeira iden- assim como também no plano da extratransferên- tidade do psicoterapeuta e, igualmente, as diferen- cia? 2) A segunda questão refere-se a qual é mes- ças entre psicanálise e psicoterapia vão ficando mais mo o prejuízo ou o risco de que surja uma neurose borradas e imprecisas. Além das transformações de transferência no curso de uma psicoterapia, na que vêm ocorrendo no perfil tanto do paciente que hipótese de que se trate de um psicoterapeuta bem procura tratamento psicológico como na atitude, preparado e, eventualmente, em supervisão com um papel e função do analista, também o próprio pro- psicanalista reconhecido? cesso analítico vem sofrendo profundas modifica- Ademais, o critério do estabelecimento do nú- ções nas últimas décadas. Essas mudanças, embo- mero mínimo de quatro sessões para configurar uma ra não se afastem da ideologia essencial da psica- “análise de verdade” é altamente relativo, tanto que nálise, dizem respeito desde a instituição do setting nas épocas pioneiras eram seis sessões, depois per- (número de sessões semanais, uso do divã...), e al- maneceu um longo tempo em cinco, na atualidade cançam a forma de entender e trabalhar com os fe- predomina a condição de quatro, sendo que insti- nômenos resistenciais/contra-resistenciais; os trans- tutos de psicanálise altamente respeitados como os ferenciais-contratransferenciais; o conteúdo, forma da França, além de outras mais, adotaram a fre- e finalidade da atividade interpretativa; os actings; qüência de três, inclusive nas análises didáticas uma valorização dos vínculos; um maior emprego oficiais. da análise do consciente; uma abertura muito mais ampla para a terapia analítica com pacientes bas- tante regressivos, assim como um modificado vér- tice do critério de cura analítica, etc. 38 DAVID E. ZIMERMAN

O Uso do Divã Análise do Consciente

Creio que ninguém contesta que o divã consti- Na atualidade, a psicanálise, indo além do para- tui-se em um importante instrumento da prática psi- digma celebrado por Freud de “tornar consciente canalítica, por todas as razões conhecidas. Não aquilo que for inconsciente”, amplia-se com a no- obstante isso, é necessário que consideremos algu- ção de que mais importante é a maneira de como mas questões. A primeira delas é o risco de que o “o consciente e o inconsciente do paciente comu- divã represente um “fetiche” (essa palavra designa nicam-se entre si”. Igualmente, à medida que os o fato de quando a aparência exterior substitui a psicanalistas não se limitam unicamente a analisar essência do verdadeiro valor de algo, ou seja, quan- os conflitos inconscientes resultantes das pulsões do um “faz de conta” passa a ser significado como ou das relações objetais internalizadas, mas tam- “de fato, é”), em cujo caso, o analista estará traba- bém incluem a análise das funções do ego, tanto as lhando frustrado se ainda “não conseguiu” fazer inconscientes como as conscientes (percepção, pen- com que o seu paciente deite. Uma segunda possi- samento, conhecimento, juízo crítico, discrimina- bilidade, nada desprezível, é a que alude à eventua- ção, etc), o processo de análise vai se aproximan- lidade de que o analista tenha alguma evitação do mais ao da psicoterapia, a qual comumente já fóbica de trabalhar face-a-face com o seu paciente. privilegiava este aspecto. Uma terceira questão, talvez a mais polêmica, é se um terapeuta com sólida formação psicanalítica realizada numa instituição paralela, porém não ofi- Interpretação e a Pessoa Real do Analista cializada pela IPA, tem o direito de usar o divã em seu consultório; e, da mesma maneira, se há algum Durante longas décadas, até recentemente, as incoveniente no fato de algum paciente que, por interpretações do psicanalista formuladas no “aqui- hipótese, faça uma “psicoterapia psicanalítica” duas agora-comigo”, de forma sistemática e sempre na vezes por semana, utilizar o divã, se assim o qui- “neurose de transferência”, constituíam-se como um ser. instrumento por excelência e exclusivo da psica- Finalmente, quero enfatizar a minha posição nálise e, por conseguinte, como o grande fator de pessoal em relação ao uso do divã numa análise distinção com a psicoterapia analítica. Na atuali- standard: penso que já passou a época em que os dade, com o tratamento analítico bastante pratica- analistas incluíam nas cláusulas obrigatórias das do com pessoas muito regredidas, como psicóticos, necessárias combinações do “contrato analítico”, borderline, etc., cresceu intensamente a importân- o compromisso de o paciente fazer a análise deita- cia da “atitude psicanalítica interna” do terapeuta, do. Nesses casos, há o risco de que o analista possa a qual tem muito a ver com os atributos dele como estar reforçando, desde o início, um modelo de sub- pessoa real e não unicamente como objeto transfe- missão e obediência por parte do paciente, quan- rencial. A evidência desse fato na prática clínica do, na verdade, o nosso maior objetivo em uma contribui bastante para encurtar os limites entre análise não é a de modelarmos uma pessoa “bem psicanálise e psicoterapia. comportada” e de “bons princípios” (segundo os critérios do respectivo analista); pelo contrário, o maior êxito analítico é aquele que consegue atingir a aquisição, por parte do analisando, de uma liber- Fatores Sócio-Econômicos dade interna (de seus objetos opressores) e, por conseguinte, a obtenção de uma capacidade para Além dos fatores antes assinalados, que dizem viver a sua conduta exterior de uma forma livre. respeito à crescente dificuldade de que os pacien- Em suma, penso que o uso do divã não deve ser tes, genericamente no mundo todo, aceitem o tra- encarado como uma obrigação ou dever, mas sim dicional método analítico, no que este implica de que o fato de o paciente não deitar (ou, conforme ter uma longa duração, alto custo, um considerável as circunstâncias, o ato de ele deitar-se) deve ser grau de sofrimento, com resultados lentos e algo analisado o suficiente para que represente uma incertos, também é inevitável levar em conta uma importante conquista que o analisando está ob- modificação nos planos de saúde, que incluem os tendo, mercê de uma livre decisão sua para usar o tratamentos psicanalíticos, em alguns países, mais divã, mesmo que isso demande alguns meses ou particularmente nos Estados Unidos. Essa podero- mesmo anos. sa nação abriga maior quantidade de psicanalistas do que em qualquer outro centro psicanalítico do FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 39 mundo e, lá, a prática da psicanálise até algumas tein, e cujas conclusões foram publicadas em 1986, décadas atingiu o seu apogeu de crédito junto ao com longas considerações, mas que podem ser re- grande público. Na atualidade, essa credibilidade sumidas na significativa observação de que os re- está fortemente abalada, não só porque os ameri- sultados alcançáveis (e alcançados) pelas psicote- canos entraram na era do “Prozac”, como também rapias de orientação analítica e pela psicanálise devido à pressão por parte das agências governa- são muito mais próximas do que o originalmente mentais, dos planos de saúde e demais organiza- imaginado (...) e que são bem menores as distin- ções que administram serviços de saúde, no senti- ções claras entre os métodos técnicos e os meca- do de que os analistas demonstrem que aquilo que nismos operativos, na natureza e na permanência, eles praticam alcança resultados bons e visíveis. entre a psicanálise e as psicoterapias de orienta- Tudo isso – que ainda não atingiu o Brasil, porém ção analítica, do que habitualmente se pensava” é alta a probabilidade de que venha a acontecer a (p. 324). Não é demais dizer que o trabalho de Wallers- médio prazo – contribui para mudanças nas clássi- tein confirmou aquilo que muitos psicanalistas clí- cas combinações do setting habitual da análise, nicos já sabiam por experiência própria, não na to- assim aumentando a superposição entre psicanáli- talidade, mas dentro de um largo espectro que me- se e psicoterapia. deia os pólos entre as duas terapias analíticas. Para concluir: em 1969, a IPA pela primeira vez dedicou um “painel principal”, no Congresso In- ALGUMAS PESQUISAS ternacional de Roma, ao tema “Relação da Psica- nálise com a Psicoterapia”, sendo que a apresenta- Wallerstein (1989) registra que, por volta de ção de Wallerstein (1989, p. 314) concluiu com a 1950, a Associação Psicanalítica Americana criou formulação de nove perguntas que valem a pena um “Comitê de Avaliação da Terapia Analítica”, o transcrever, porquanto elas continuam plenamente qual, após cinco anos de um árduo trabalho, decla- vigentes e instigantes. Resumidamente, são estas rou, pela palavra do seu presidente numa mesa-re- as questões levantadas: 1) Existe uma psicotera- donda sobre psicoterapia dinâmica, que “este Co- pia científica fora da psicanálise? 2) Quais são as mitê nunca pôde ir além do difícil ponto inicial semelhanças e diferenças entre a psicanálise e a consistente em tratar de chegar a um mínimo acor- psicoterapia dinâmica? 3) Quão importantes são do em relação ao que é exatamente a psicanálise, as diferenças; elas devem ser desvanecidas ou a psicoterapia analítica e as formas transicionais”. aprofundadas? 4) Quais são os limites próprios Apesar dos grandes avanços teóricos e clínicos (ou de cada modalidade terapêutica ou quando uma justamente por causa deles) essas controvérsias psicanálise “modificada” se converte em psicote- conceituais ainda persistem na atualidade. rapia? 5) O paciente adapta-se ao tratamento ou É interessante registrar, no entanto, que os mes- o tratamento adapta-se ao paciente? 6) Quais são mos psicanalistas da Associação Psicanalítica as linhas divisórias significativas na teoria e na Americana, como os expoentes Stone, Gill e prática? 7) Que relação existe com a terapia não Rangell que na célebre mesa-redonda de 1954, onde psicanalítica? 8) Podem os conflitos derivados, ou discutiu-se “psicanálise e psicoterapia”, haviam qualquer conflito, ser substancialmente resolvidos postulado uma nítida distinção entre ambas as for- por meio de uma psicoterapia breve? 9) Quais os mas de tratamento, 25 anos após, mais precisamente problemas que resultam de os psicanalistas faze- num congresso realizado em 1979, em Atlanta, com rem psicoterapia?. a mesma temática daquela outra, passaram a afir- Com estas perguntas instigantes para novas re- mar que “desde as comparações de 1954, o incre- flexões, encerro este capítulo, não sem antes acres- mento da experiência e a precisão da técnica le- centar mais dois pontos: o primeiro, é deixar bem varam a reduzir as diferenças entre as duas (o claro que, quando enalteço o valor da psicoterapia grifo é meu). A mudança estrutural permanente analítica, estou considerando como certa a premissa que previamente pensava-se como característica de que o terapeuta tem alguma forma de uma reco- principal da psicanálise, pode ser obtida com uma nhecida formação psicanalítica. O segundo ponto é terapia analítica escolhida e realizada cuidado- que as minhas colocações, que possam representar samente” (Wallerstein,1989, p. 321). ser as mais polêmicas, encontram um respaldo em Da mesma forma, após mais de 30 anos de muitos autores que confirmam que “vai uma enor- exaustivas pesquisas, o respeitado “Projeto de In- me distância entre aquilo que nós, psicanalistas, pro- vestigação sobre Psicoterapia na Fundação Mennin- fessamos em escritos e participações oficiais, e aquilo ger”, em Topeka, Kansas –, liderado por Wallers- que, extra-oficialmente, realmente praticamos.

CAPÍTULO do a palavra “escola”, tendo em vista que muitas correntes do pensamento psicanalítico não estão aqui incluídas, enquanto Winnicott e Bion cons- tam neste capítulo como titulares de respectivas escolas à parte, quando habitualmente eles apare- 3 cem unicamente como um seguidor de M. Klein, como no caso de Bion, ou como “analista indepen- dente” (dissidente de M. Klein), caso de Winnicott. Assim, entendo que o que caracteriza uma “escola psicanalítica” são as seguintes quatro condições As Sete Escolas mínimas e básicas, que esses dois autores preen- chem totalmente: 1) o aporte de conceitos origi- de Psicanálise nais; 2) que esses tenham aplicabilidade na prática psicanalítica clínica; 3) que sejam conceitos que atravessem gerações de psicanalistas; e 4) que su- cessivamente inspirem e dêem novos frutos e ra- Em épocas passadas, os analistas ficavam mos. radicados em uma única escola psicanalítica e bus- A exposição que segue, como já foi frisado, visa cavam precipuamente aquilo que dividia os auto- simplesmente situar o leitor com referenciais mais res da psicanálise; na atualidade, muitos cometem precisos e delimitados dentro do multiforme e um exagero oposto, buscando unicamente aquilo multívoco universo da teoria e da prática da psica- que os reúne e unifica. No primeiro caso, corre- nálise. Nem poderia ser diferente: basta confessar mos o risco de cair num extremo de um teoricismo a minha sensação de estar cometendo um sacrilé- ou de um excessivo pragmatismo, enquanto a po- gio por tentar resumir em poucas páginas algo da sição extremada de uma sistemática busca de uni- vida e da obra de Freud, com o inevitável cometi- ficação pode representar o risco de um ecletismo mento de graves amputações. O esquema que será empobrecedor. Embora ainda persistam manifes- adotado para a brevíssima síntese de cada autor em tas querelas narcisistas entre os seguidores das dis- separado consistirá em descrever alguns dados bio- tintas correntes psicanalíticas, em que cada uma gráficos de cada um deles, seguidos da descrição delas arvora-se como a representante da “verda- das áreas teóricas e técnicas da psicanálise, nas deira psicanálise” e luta por excluir as demais, a quais eles, respectivamente, mais trabalharam e as nítida tendência atual consiste em evitar as posi- quais os notabilizam ainda na atualidade. ções polarizadas, promover uma formação plu- ralista de cada analista praticante e aproveitar as vantagens de pensarmos analiticamente a partir de ESCOLA FREUDIANA uma multiplicidade e diversidade de vértices, mui- tas vezes convergentes, outras vezes divergentes e É quase uma redundância falar em “escola até contraditórias, porém, até um certo ponto pos- freudiana” porquanto toda a psicanálise, e todos síveis de serem integradas e reversíveis entre si. os psicanalistas, de um forma ou de outra, estão O presente capítulo, é óbvio, nem de longe pre- ligados aos postulados metapsicológicos, teóricos tende esgotar, ou sequer aprofundar, as contribui- e técnicos legados por Freud e seus seguidores di- ções de cada uma das sete correntes psicanalíticas; retos, tanto os seus contemporâneos como os antes disso, a sua pretensão ficará restrita a situar o pósteros a ele. No entanto, o paradigma psicanalí- leitor nas principais conceituações que se constitu- tico freudiano, nos seus mais de 100 anos de exis- em como a essência do pensamento psicanalítico. tência, embora conserve a invariância dos seus prin- As sete escolas que estamos destacando e que aqui cípios básicos, vem sofrendo profundas transfor- aparecerão representadas pelos respectivos auto- mações, quer com acréscimos, reformulações ou res fundadores de cada uma delas são: 1) Escola refutações. Freudiana. 2) Teóricos das Relações Objetais (M. Na atualidade, o movimento freudiano pro- Klein). 3) Psicologia do Ego (Hartman a M. Mah- priamente dito tem por sede a tradicional Socieda- ler). 4) Psicologia do Self (Kohut). 5) Escola Fran- de Britânica de Psicanálise, onde ele ocupa um lu- cesa (Lacan). 6) Winnicott. 7) Bion. gar especial, juntamente com os outros dois gru- Creio que nessa altura cabe um esclarecimento pos, o “Kleiniano” e o denominado “Independen- quanto ao significado com que estamos empregan- te” (middle group). Esses três grupos convivem 42 DAVID E. ZIMERMAN harmonicamente, sendo que o freudiano, que lá (eram sete) de Jacob com Amália, sendo que o estruturou-se em torno de Anna Freud, não é o mais nome “Sigmund” equivale a “Salomão”, e foi-lhe numeroso deles, embora conserve uma forte influ- dado em homenagem ao seu avô que falecera dois ência no pensamento psicanalítico e goze de uma meses antes do seu nascimento e ao bisavô que tam- alta respeitabilidade. Além disso, existe um gran- bém tinha esse nome, sendo que esses dois últimos de contingente de psicanalistas no mundo todo que foram rabinos. O próprio Freud, em muitos depoi- mantém uma plena fidelidade científica a Freud e mentos prestados publicamente, admitiu que a sua que, ao contrário do que poderia parecer nos últi- condição de ser judeu forjou o seu caráter de uma mos tempos, as concepções originais do mestre coragem própria de uma minoria perseguida e que estão ganhando em vitalidade e expansão, princi- isso contribuiu bastante para caber justamente a ele palmente após a descoberta dos verdadeiros tesou- a sublime função de ser o verdadeiro criador da ros psicanalíticos contidos no “Projeto de uma Psi- psicanálise. Da mesma forma, ele reconheceu a sua cologia Científica para Neurólogos”, de 1895, que gratidão à Bnei-Brith (secular instituição judaica ficou escondido, ou esquecido, durante algumas dé- voltada para a defesa dos direitos humanos) que o cadas. recebeu no período do “esplêndido isolamento”, durante o qual Freud sentia-se sozinho, desampa- rado, cercado da descrença geral em torno dos seus Sigmund Freud estudos acerca da sexualidade infantil. Durante mais de 30 anos, Freud participou ativamente desse gru- po judaico, porém ele nunca escondeu que a sua Alguns Dados Biográficos identidade de judeu passava por três planos: 1) o religioso, que ele não aceitava, da mesma forma Nasceu em 1856, em Freiberg, Morávia (Tche- que não aceitava como sendo saudável qualquer coeslováquia), sendo que aos seus 4 anos, pressio- outra forma de fé religiosa; 2) uma clara ambigüi- nado por uma ruína econômica, mudou-se com a dade quanto à sua condição de um sionista voltado família para Viena, onde Freud viveu virtualmente para a causa da criação do estado nacional judeu toda a sua vida. O seu pai, Jacob, um negociante (o atual Estado de Israel); 3) uma consistente acei- de lã, contava então 41 anos e já tinha dois filhos tação de que ele possuía um espírito judeu. Ainda de um primeiro casamento quando se casou com vale consignar na vida de Freud que ele casou-se Amália, então com 21 anos, tendo nascido o seu com Marta (também uma judia, com alguns fami- primeiro filho de nome Sigismund (só mais tarde é liares sendo importantes autoridades religiosas) e que ele mudou o seu nome para Sigmund). Em Vie- com ela teve seis filhos, sendo que a caçula, Ana, na, ao completar os seus estudos secundários, foi a única que se tornou psicanalista, a sua mais Sigmund já sabia latim, grego, judeu, alemão, fran- importante seguidora e sucessora. cês, inglês e tinha noções de italiano e espanhol. Freud renunciou aos estudos jurídicos, porquanto Médico decidira estudar medicina e, a partir da sua condi- ção de médico, criou a psicanálise. Só abandonou Freud concluiu com brilhantismo o seu curso Viena porque, perseguido pelo nazismo, ele migrou médico, com 25 anos, na Universidade de Viena, para Londres onde viveu os seus últimos anos, vin- tendo feito um longo aprendizado em neurologia, do a falecer em 1939, em razão do agravamento de dedicando-se a pesquisas (passava horas dissecan- um câncer de maxilar que o vinha atormentando há do nervos de peixes raros, fez importantes investi- longos anos. gações sobre a cocaína, etc., etc.), e publicou inú- meros trabalhos dessa área que obtiveram um ex- Judaísmo pressivo reconhecimento científico. Embora tenha enfrentado uma forte corrente anti-semita, que en- Seu pai, Jacob, sem ser um religioso pratican- tão estava vigente na Universidade de Viena, Freud te, era um profundo estudioso do Talmud (livro da logrou a distinção de ser nomeado professor de sabedoria judaica) e, por ocasião do ritual de cir- Neuropatologia, e o fato de ter obtido o “Prêmio cuncisão (ritual judaico que sucede ao nascimen- Goethe de Literatura” possibilitou viajar a Paris to) do bebê Sigmund, registrou esse fato na bíblia para conhecer o trabalho do mestre Charcot, que lá da família, a mesma bíblia que ele presenteou a pontificava com a aplicação de técnicas hipnóti- Freud quando este completou 35 anos de idade, cas. Posteriormente, Freud voltou à França, dessa com uma dedicatória que preconizava a condição vez para Nancy, também para aprofundar-se nos de futuro gênio do filho. Freud foi o primeiro filho mistérios do hipnotismo, através das demonstra- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 43

ções de Bernheim. De volta a Viena, além dos re- sa”, ou “limpeza de chaminé”. Pode-se dizer que cursos médicos habituais da época para o tratamen- esses estudos sobre casos histéricos – especialmente to dos distúrbios “neuropsicológicos”, como era o a partir de Elisabeth von R. que sepultou para Freud emprego de banhos mornos, massagens, clino- a técnica hipnótica – inauguram a psicanálise cien- terapia (repouso no leito), pequenos estímulos elé- tífica. tricos e barbitúricos, Freud passou a empregar a No famoso “caso Dora”(cujo título original é técnica da hipnose na sua clínica privada. Muito Fragmentos da análise de um caso de histeria), cedo ele deu-se conta de que era um mau hipno- escrito em 1901, porém somente publicado em tizador, e substituiu esse recurso por técnicas que 1905, Freud enfatizava a arte da interpretação para promovessem uma “livre associação de idéias” que vencer as resistências dos conflitos reprimidos. possibilitassem um acesso às repressões incons- Freud reconheceu que essa paciente, uma adoles- cientes das suas pacientes histéricas. O desdobra- cente de 18 anos, portadora de acessos de tosse mento evolutivo desses fatos, que o levaram à cons- nervosa e períodos de afonia, interrompeu a análi- trução do majestoso edifício da psicanálise, já foi se após três meses porque ele não fora capaz de melhor explicitado no capítulo 1 deste livro. analisar os múltiplos aspectos transferenciais que estavam subjacentes nos relatos de Dora, e que alu- Psicanálise diam aos triângulos edípicos com os pais dela e com o casal “K”. Sem contar as 284 cartas que compuseram a Em 1909, Freud publica a análise do “pequeno estreita correspondência que durante 15 anos (de Hans” (o nome original desse trabalho é Análise 1887 a 1902) manteve com o seu amigo e médico de uma fobia em um menino de 5 anos) que, em- berlinense W. Fliess, e nas quais aparecem verda- bora tenha sido uma experiência psicanalítica le- deiras preciosidades de idéias psicanalíticas em vada a efeito pelo pai da criança, supervisionado gestação, Freud publicou mais de 300 títulos, entre por Freud, constitui-se como o primeiro exemplo livros e artigos. Como esquema didático, creio que de observação psicanalítica direta de uma criança cabe fazer um quadro com as principais áreas da e o primeiro exemplo de uma psicanálise com crian- psicanálise que foram estudadas por Freud, que são ças. Trata-se de um menino que apresentava uma as seguintes:1) Historiais clínicos. 2) Metapsicolo- fobia, especialmente por cavalos, e, a partir da aná- gia. 3) Teoria. 4) Técnica. 5) Aplicações da psica- lise desse sintoma, Freud comprova a sua teoria da nálise. “angústia de castração” em ligação direta com o “complexo de Édipo”. Igualmente, Freud compro- Casos Clínicos vou a existência de “teorias” existentes na mente Em Estudos sobre a histeria (1893-95), escrito das crianças com as quais elas tentam decifrar o juntamente com Breuer, Freud relata uma série de mistério do nascimento, assim como ele conseguiu atendimentos de curto prazo com pacientes porta- evidenciar como na criança as fontes de excitação doras de sintomas histéricos conversivos, como são múltiplas e variadas, o que o levou a afirmar foram Emmy von N., Lucy R., Katherina, e outras que “a criança é um perverso polimorfo”. mais, cabendo destacar Elisabeth von R. pelo fato Nesse mesmo ano de 1909, e também com o de que essa paciente – uma rapariga de 24 anos propósito de comprovar a sua teoria da sexualida- que sofria de violentas dores nas pernas e sentia de infantil, Freud publica o fascinante historial clí- uma grande dificuldade em andar – não se deixou nico do Homem dos ratos (com o título Notas so- hipnotizar. Como ela também se recusava ceder às bre um caso de neurose obsessiva), por meio da pressões exercidas por Freud para que ela asso- análise de um advogado de 29 anos que apresenta- ciasse “livremente”, obrigou-o a investigar e des- va graves sintomas obsessivos desde a infância. cobrir o fenômeno das “resistências inconscientes”, Paul Lorenz, esse era o nome do paciente, procu- ao mesmo tempo em que lhe serviu como um estí- rou análise com Freud porque vinha sendo ator- mulo para deslindar o verdadeiro código dos con- mentado pela idéia obsessiva de que “ratos pode- flitos que, como uma memória viva, transpareciam riam ser introduzidos pelo ânus”, além de uma cons- através da linguagem conversiva do corpo. Nesse tante angústia de que ele poderia provocar tragé- mesmo livro, aparece a malograda experiência hip- dias às suas pessoas queridas. Freud faz um magis- nótico-analítica que Breuer teve com a sua pacien- tral estudo de como o paciente defendia-se dessas te Ana O., em 1882, e que abriu o caminho para o idéias aterradoras por meio de rituais de fazer e método da terapia catártica; aliás, a prória Ana O., desfazer coisas, assim como também fazia um uso chamava esse método de “uma cura pela conver- patológico do pensamento e da ação, porquanto os 44 DAVID E. ZIMERMAN mesmos ficavam esterilizados pela utilização de natureza mais transcendental, serve como ponto de gestos e palavras de conteúdo mágico. partida para conjeturas imaginativas, as quais difi- Em 1911, surgiu a publicação do célebre Caso cilmente poderão ser comprovadas na realidade (por Schreber (título original: Notas psicanalíticas so- exemplo: o instinto de morte, ou a primitiva vida bre um relato autobiográfico de um caso de para- psíquica do bebê recém-nascido, etc., etc.). Na ver- nóia). Freud nunca viu Schreber, que na realidade dade, Freud formulou explicitamente apenas três era presidente do Supremo Tribunal de Dresda, pontos de vista característicos da metapsicologia sendo que escreveu esse trabalho a partir de uma (que, carinhosamente, ele chamava de “a bruxa”) que autobiografia redigida pelo próprio Schreber du- são o topográfico (consciente, pré-consciente e in- rante o seu internamento em um hospital psiquiá- consciente), o dinâmico (id, ego e superego) e o eco- trico. Freud fez a compreensão do discurso deli- nômico (quantidade de catéxis libidinal). rante das idéias megalomaníacas e paranóides, Os trabalhos metapsicológicos de Freud não são encobridoras do conflito homossexual latente de sistemáticos, nem completos, tampouco de apare- Schreber, da mesma forma como fazia com a inter- cimento seqüencial, por vezes contrapõem-se e apa- pretação do simbolismo dos sonhos. É neste artigo recem espalhados ao longo de sua obra, com su- que Freud estabelece as diversas transformações cessivas transformações. Vamos dar uma pálida psíquicas que são possíveis a partir do inaceitável idéia das mesmas. homossexualismo de Schreber, contido no “eu amo Em 1895, Freud redigiu o seu importantíssimo você”...(com as, negatórias, transformações em “eu e vigente trabalho Projeto de uma psicologia cien- não o amo, pelo contrário, o odeio”, ou “é ela que tífica para neurólogos, o qual somente veio a ser o ama”, etc.) descoberto muitos anos mais tarde entre escritos Em 1918, Freud publicou o famoso caso co- abandonados de Freud e publicado em 1950. É in- nhecido por O homem dos lobos (o título real é: teressante assinalar que, no mesmo ano de 1895, o Da história de uma neurose infantil), embora ele cientista Waelder descobriu o neurônio, o que se tenha tratado esse paciente, de nome Sergei, no ajustava exatamente ao que Freud estava cogitan- período de 1910 a 1914. Tratava-se de jovem de do sobre as catexias ativadas por estímulos endó- 18 anos, com graves sintomas fóbicos, obsessivos genos que são conduzidas por células diferencia- e paranóides, com psicossomatizações (creio que das dos neurônios, como seriam as “perceptivo- hoje ele seria diagnosticado como sendo um bor- sensoriais”, as “perceptivas do consciente” e as derline), cuja análise sofreu várias incidências que encarregadas do “registro da memória”. Este tra- valem ser bem conhecidas pelo leitor. Através de balho de Freud representa a tentativa mais radical uma minuciosa e prolongadíssima análise de um de entendimento dos fatos psicológicos em termos sonho no qual apareciam sete lobos empoleirados de neurologia (circuitos neuronais) e de física em uma janela, Freud visa reconstruir a neurose (quantidades energéticas que se regem pelas leis adulta a partir de problemas surgidos na infância, do movimento; neurônios carregados ou descarre- com um destaque especial aos conflitos oriundos gados de energia, barreiras que se opõem ou não à da “cena primária”. circulação energética, etc). Não obstante a riqueza e a beleza da descrição Em 1900, no sétimo capítulo de A interpreta- que Freud faz das análises com os pacientes men- ção dos sonhos, Freud concebeu um esboço bas- cionados, especialmente com os últimos, penso que tante desenvolvido do psiquismo – a Hipótese To- poucos analistas contestam que, na atualidade, tra- pográfica – constante de três sistemas: o Conscien- balharíamos não somente com fixações psicosse- te, o Pré-Consciente e o Inconsciente. Nesse mes- xuais e regressões, como Freud procedeu, mas tam- mo capítulo, entre outros tantos aspectos impor- bém com os defeitos estruturais. tantes, ele postulou a existência de um “processo primário”, uma primitiva forma de funcionamento Teoria e Metapsicologia da mente No ano de 1905, aparece o clássico Três ensaios Embora estes dois termos habitualmente sejam sobre a teoria da sexualidade, no qual Freud estu- empregados de uma forma quase sinônima, é útil da a normalidade e a patologia que acompanham a estabelecer uma distinção entre eles. Assim, “teo- sexualidade na infância, como é o caso das distin- ria” alude a um conjunto de idéias que objetivam tas “aberrações sexuais”. Nesse mesmo artigo, explicar determinados fenômenos clínicos que po- Freud também alude aos inatos componentes dem ou não ser comprovados pela experiência clí- pulsionais sexuais, às zonas erógenas, ao auto-ero- nica, enquanto “metapsicologia” (o prefixo grego tismo, à organização oral e à anal-sádica, aos ins- “meta” quer dizer “algo muito elevado”) tem uma FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 45 tintos de escopofilia, exibicionismo e crueldade, usa os distintos mecanismos negatórios para eva- ao impulso de conhecimento e à pesquisa da crian- dir as angústias dos conflitos neuróticos. ça ao processo de sublimação, entre outras con- O ano de 1926 também é marcante na história cepções mais. É interessante registrar que esse tra- da psicanálise porque o trabalho Inibições, sinto- balho e o da Interpretação dos sonhos foram os mas e angústia representa uma significativa mu- únicos, dentre a imensidão dos trabalhos de Freud, dança na concepção do essencial fenômeno da for- que mereceram constantes acréscimos conceituais, mação da angústia. Inicialmente, Freud a concebe- nas sucessivas reedições de seus livros. ra como sendo uma “angústia automática” que sur- Em 1911, surge a publicação de Formulações gia devido à pressão de um excesso de repressões. sobre os dois princípios do funcionamento men- Neste trabalho ele a descreve como uma “angús- tal. Ali, Freud postula a existência dos princípios tia-sinal”, que surge como preventiva dos perigos, do “prazer” e o da “realidade”. A partir das inter- e, é ela quem promove as repressões, e não o con- relações entre ambos, especialmente quanto à des- trário. No mesmo trabalho, Freud faz a sua mais carga das excitações libidinais, ele lança as primei- completa abordagem sobre o fenômeno das “resis- ras formulações psicanalíticas sobre a gênese e a tências”, descrevendo as distintas fontes e formas função dos pensamentos (foi baseado neste traba- de funcionamento das mesmas. lho que Bion construiu as suas fundamentais con- Em 1927, aparece a publicação de um trabalho cepções sobre os pensamentos e a capacidade para que veio a ser um importantíssimo filão de inspira- pensar). ção para a psicanálise atual. Trata-se de Fetichismo, Em torno do ano 1915, Freud gestou quatro dos onde Freud, complementando um artigo de 1924 – seus mais importantes trabalhos metapsicológicos: Neurose e psicose –, evidencia uma dissociação do 1) Sobre o narcisismo: uma introdução (onde ele ego, através da defesa da “desmentida” (também tece profundas concepções a partir de “sua majes- referida como “renegação”, “denegação”, “recu- tade, o bebê”. 2) As pulsões e suas vicissitudes. 3) sa”... e que, no original alemão, Freud cunhou de Repressão (recalcamento). 4) O inconsciente. Nes- Werleungung), por meio da qual o fetichista nega se mesmo grupo de trabalhos de 1915, também apa- ser verdadeiro aquilo que o angustia e que, bem no rece publicado o importante clássico Luto e me- fundo, ele sabe que é verdade. lancolia, no qual Freud estabelece a descoberta e a Em 1940, é publicado Clivagem do ego no pro- descrição do mundo dos objetos internalizados pela cesso de defesa que dá continuidade às concepções introjeção, tal como isso está contido na famosa esboçadas nos acima referidos trabalhos anterio- frase: A sombra do objeto recai sobre o ego... res, e que se constituem, na atualidade, subsídios Com os referidos trabalhos, Freud vai progres- indispensáveis para a compreensão do psiquismo sivamente lançando novas sementes e clareando os de qualquer ser humano. processos que viriam a constituir os alicerces bási- cos de seu edifício teórico-metapsicológico da psi- Trabalhos de Técnica canálise, embora fique evidente a predominância de conceitos mecanicistas e energéticos, típicos da Freud nunca deixou de integrar a teoria com a psicologia clássica. técnica; pelo contrário, sempre procurou respaldar No entanto, em 1920, Freud lança um trabalho uma na outra, de modo a que se fertilizassem reci- revolucionário: trata-se de Além do princípio do procamente. Dessa forma, ele escreveu inúmeros prazer no qual ele postula a existência da “pulsão artigos específicos sobre técnica psicanalítica, além de morte”, com todas as repercussões imagináveis. daqueles outros que aludiam indiretamente à téc- Em 1923, vem à luz um outro notável trabalho nica e à prática, como são os historiais clínicos e – O ego e o id –, que trouxe profundas repercus- inclusive em muitos trabalhos teóricos aparecem sões na teoria e prática da psicanálise e promove comentários dele sobre aspectos técnicos. uma fundamental mudança epistemológica, ou seja, Já em 1905, no trabalho Sobre a psicoterapia, a teoria “Topográfica” cede o lugar de importância que resultou de uma conferência pronunciada numa para a nova concepção de uma Teoria Estrutural escola de medicina, Freud apontava alguns aspec- da mente, com as forças dinâmicas oriundas das tos técnicos da nova ciência que privilegiava a di- três instâncias psíquicas: id, ego e superego. nâmica do inconsciente. É nesse artigo que apare- O trabalho A negação, publicado em 1925, é ce a famosa metáfora que ele toma de Leonardo da de uma importância essencial para a compreensão Vinci, ao dizer que o tratamento dos transtornos das múltiplas e protéicas formas de como o ego emocionais, tal como a arte, comporta duas con- cepções na aplicação prática. Uma, é por via “di 46 DAVID E. ZIMERMAN porre”, na qual o terapeuta, por meio de técnicas lhos de 1937: Análise terminável e interminável e sugestivas, como as hipnóticas, põe os seus conhe- Construções em análise. cimentos dentro da mente do paciente, da mesma forma como faz o pintor com as tintas sobre uma Aplicações da Psicanálise tela em branco. A segunda concepção consiste na “via di levare”, na qual, como na escultura em que Virtualmente, Freud cobriu todas as áreas do o artista remove um excesso de matéria de um blo- humanismo, procurando explicações de causas in- co de mármore e daí pode surgir uma figura huma- conscientes para o comportamento humano na re- na que estava como que adormecida, também o ligião, arte, ciência, telepatia, rituais mágicos, clás- psicanalista pode ser, sobretudo, o propiciador do sicos literários, figuras históricas, mitologia, demo- surgimento de aspectos vivos que estão perdidos nologia, relatos bíblicos, lingüística, antropologia ou ocultos nas profundezas do inconsciente dos e sobre a psicologia e aspectos culturais dos gru- pacientes. pos, massas e sociedades. Dentre esses últimos, é O período que vai dos anos de 1912 a 1915, útil mencionar os seguintes cinco artigos: As pers- coincidente com algumas importantes dissidências pectivas futuras da terapia psicanalítica (1910); no incipiente movimento psicanalítico, é justamente Totem e tabu (1913); Psicologia das massas e aná- aquele em que aparecem os principais textos de lise do ego (1921); O futuro de uma ilusão (1927); Freud relativos às recomendações básicas para to- Mal-estar na civilização (1930). dos aqueles que pretendessem empregar o método Dentre os colaboradores imediatos de Freud psicanalítico. Assim, é necessário destacar traba- aconteceram dissidências (as mais importantes fo- lhos como A dinâmica da transferência (1912), no ram de Adler, em 1910, e, especialmente, a de Jung, qual ele discrimina formas diferentes de transfe- que abandonou o grupo psicanalítico freudiano em rência e explica algumas relações entre a transfe- 1913, sendo que Otto Rank, junto com Ferenczi, e rência e a resistência. Também nesse mesmo ano, mais tarde W. Reich, eram os líderes em busca de aparece Recomendações aos médicos que exercem novas técnicas diferentes, até certo ponto divergen- a psicanálise (é aqui que Freud faz a célebre metá- tes daquelas recomendadas por Freud. Na impos- fora de que o analista deveria comportar-se como sibilidade de abarcar todos os autores contempo- “um espelho que...”, tal como aparece explicitada râneos de Freud, vamos nos limitar a algumas refe- no capítulo 26). Em 1913-1914, sob o título geral rências aos mais notáveis, como Abraham, Feren- de Novas recomendações sobre a técnica da psi- czi, Reich e Anna Freud. canálise, Freud brinda-nos com dois textos impor- tantes: um é “Sobre o início do tratamento” (no qual ele traz a metáfora de que, tal como no jogo Karl Abraham de xadrez, as aberturas são conhecidas e previsí- veis, enquanto o desenrolar e o término do jogo Nasceu em Bremen, Alemanha, em 1877 e mor- analítico é imprevisível e cheio de surpresas); o reu no Natal de 1925, aos 48 anos, em decorrência outro artigo é Recordar, repetir e elaborar, que de um abcesso pulmonar provocado por uma espi- adquiriu importância por representar um primeiro nha de peixe que engolira e que seguiu a via larin- esclarecimento profundo acerca do fenômeno do ge-traquéia-brônquios-pulmão. Foi o primeiro psi- acting-out como substituto da resistência a lem- canalista alemão e um dos fundadores da Associa- brar aquilo que foi reprimido. Em 1915, Freud pu- ção Psicanalítica da Alemanha. Era fiel colabora- blica Observações sobre o amor transferencial que dor e amigo íntimo de Freud, e fazia parte do “Co- representa um sério alerta quanto aos riscos de mitê dos Sete Anéis”. Abraham analisou muitos e envolvimento, mais especificamente o de o analis- importantes colegas, como Karen Horney, Theo- ta ficar enredado nas malhas de uma contratrans- dor Reick, Helene Deutsch, Edward e James Glover, ferência erotizada. Sandor Rado, Ernst Simmel, além de ter sido o se- Freud volta a elaborar as suas idéias a respeito gundo analista de M. Klein, cuja obra é fundamen- dos principais fenômenos que cercam a técnica e a talmente baseada nas concepções dele. Durante seus prática da psicanálise em conferências realmente estudos de bacharelado, interessou-se aprofunda- pronunciadas, como em Conferências introdutórias damente por lingüística e filosofia, que lhe ali- (1916), ou em textos que simulam conferências com cerçaram suas investigações psicanalíticas. Aspi- um auditório imaginário, como em Novas confe- rava a posição de professor universitário, porém a rências introdutórias à psicanálise (1933), além sua rejeição à condição que lhe impuseram de aban- dos textos posteriores, como os magníficos traba- donar sua origem judaica por uma profissão de fé FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 47 cristã impossibilitou-lhe a concretização desse de- de regressão propicia que o analista complemente sejo. Foi um autor prolífico e as suas investigações as primitivas falhas parentais. 7) Embora seja mui- mais originais, que ainda persistem como impor- to discutível a adequação analítica da sua técnica tantes e vigentes, são os referentes aos estágios pré- inovadora, que ele chamava de “técnica ativa”, a genitais do desenvolvimento, sendo que vale des- verdade é que Ferenczi foi o primeiro discípulo de tacar seu perdurável artigo de 1919, Uma forma Freud a mostrar que a técnica concebida por esse particular de resistência neurótica contra o méto- último não era a única que podia beneficiar o paci- do psicanalítico, no qual ele aborda, com extrema ente em análise. atualidade, o problema dos pacientes narcisistas Resta dizer que Ferenczi foi eleito presidente “pseudocolaboradores”. É consensual que poucos da IPA em 1918, no quinto congresso em Buda- autores possuam um estilo tão claro e atrativo como peste, mas renunciou após alguns meses, e o seu o dele. O livro de referência para o estudo de sua retrato é o único que não figura na galeria dos pre- obra é Psicoanalisis clínico. Paidós, Buenos Aires, sidentes, tampouco constando no “Roster” a sua 1959. condição de ex-presidente.

Sandor Ferenczi Wilheml Reich

É justo destacar Ferenczi, até mesmo porque A inclusão, aqui, de um destaque para W. Reich na atualidade está ressurgindo um vigoroso inte- justifica-se pelo fato de que na década de 30, por resse por sua obra, mercê de um reconhecimento meio de seu livro Análise do caráter (1933), ele de que ele postulara, de forma original, alguns prin- trouxe uma inestimável contribuição para o enten- cípios que estão encontrando plena ressonância na dimento de que uma análise poderia, e deveria, ir contemporânea psicanálise vincular. De forma muito além da remoção de sintomas e que ela tam- muito abreviada, cabe acentuar as seguintes con- bém deveria visar a mudanças na “armadura carac- tribuições de Ferenczi: 1) Lançou as primeiras se- terológica resistencial” de que todo paciente é por- mentes para a teoria das relações objetais e do con- tador, em alguma forma e grau. ceito de introjeção (não esquecer de que ele foi o Seu artigo sobre o caráter masoquista, publica- primeiro analista de M. Klein). 2) Antecipou-se 15 do em 1932, foi a causa imediata do seu rompi- anos a Spitz, com a sua afirmativa de que “as crian- mento com Freud. Nesse artigo, Reich punha em ças que são recebidas com aspereza e falta de amor dúvida a existência de um instinto de morte e ne- morrem fácil e voluntariamente”. 3) Em seu traba- gava que o masoquismo fosse manifestação direta lho de 1933, “Confusão de línguas entre o adulto daquele. Nos seus últimos anos, Reich desviou-se e a criança”, ele retoma a teoria do trauma da se- quase totalmente dos princípios essenciais da psi- dução real, afirmando que isso acontece “quando canálise e dedicou-se a propor uma teoria baseada os adultos confundem os jogos da criança com os na “orgonoterapia”, a qual não encontrou ressonân- desejos das pessoas sexualmente adultas”. 4) Foi cia no meio analítico e hoje está totalmente esque- o primeiro analista a dar uma significativa impor- cida. tância à pessoa real do analista, quer quanto a uma possível hipocrisia e inadequações deste, quer como uma rara oportunidade propiciada ao paciente de Anna Freud poder reelaborar (eu diria hoje: fazer ressignifica- ções e reidentificações) os primitivos problemas Muitos discutem se a notória importância que por meio de uma nova figura parental representada A. Freud representa para o crescimento e a difusão pelo analista, o qual o respeita, estima, é coerente da psicanálise deve-se aos seus próprios méritos e tem outras formas de enfrentar e solucionar os ou à sua condição de ser filha de S. Freud. O que é problemas. Em resumo, Ferenczi considerou a per- indiscutível é que seu livro O ego e os mecanismos sonalidade do analista como um instrumento de de defesa (1936) representa um enorme avanço, cura. 5) Ele não acreditava em nenhum critério porquanto, indo além das pulsões do id, ela enaltece definitivo de analisabilidade; pelo contrário, advo- as funções do ego, que Freud esboçou, mas que gava a idéia de que todo paciente que solicitasse não aprofundou. Dessa forma, ela pode ser consi- uma ajuda psicanalítica deveria recebê-la. 6) Foi derada como formadora de discípulos psicanalis- um precursor da postulação vigente de muitos au- tas que mais tarde viriam a fundar a escola da “Psi- tores (Winnicott, Kohut, Balint, ...) de que o estado 48 DAVID E. ZIMERMAN cologia do Ego”, assim como também foi em torno irmão Emmanuel que sofria de uma cardiopatia. de sua pessoa que a corrente freudiana da Socieda- Quando ela completou 17 anos, tendo em vista o de Psicanalítica Britânica se moldou, estruturou e projeto de casamento, ela desistiu do curso pré- ganhou respeitabilidade. médico que começara a cursar e estudou Arte e Um outro mérito de A. Freud é o de ter sido História, em Viena. Quando ela tinha 20 anos, uma das pioneiras da psicanálise com crianças, não morre, com 25 anos, o irmão Emmanuel, que era obstante o fato de que ela imprimia uma orienta- pianista e dedicava-se às artes. Com 21 anos, Me- ção de natureza pedagógica, ao mesmo tempo em lanie casou-se com Artur Klein, um químico, com que criticava M. Klein, a qual, na mesma época de quem teve três filhos, e de quem veio a separar-se. 1927, preconizava e praticava a análise infantil Em 1934, morre o seu filho Hans, vitimado por um dentro do mais puro rigor psicanalítico, abstendo- acidente de alpinismo. Outra perda importante foi se de qualquer medida reeducativa ou de apoio. a de uma ruptura pública que a sua filha Mellita, Como todos sabemos, foram travadas sérias polê- psicanalista, moveu contra M. Klein, com ataques micas entre ambas e entre os seus respectivos se- violentos e que tornaram irreconciliável o afasta- guidores, o que gerou as célebres “Controvérsias” mento entre elas. (na Sociedade Britânica de Psicanálise), nos idos anos da década 40, sendo que, por pouco, essa en- Psicanalista tidade não sofreu uma grave cisão oficial. Quando residia em Budapest, teve um primeiro contato com a psicanálise pela leitura de um texto ESCOLA DOS TEÓRICOS DAS RELAÇÕES de S. Freud, com o qual ela se sentira identificada e impressionada. Daí por diante nunca abandonou OBJETAIS – M. KLEIN sua devoção a Freud, com quem ela jamais conse- guiu ter um contato direto porque ele a evitava, de- Embora os méritos de uma mudança de enfoque vido às querelas entre Klein e sua filha Anna. Ela da psicanálise mais voltada para as relações objetais passou a fazer análise pessoal com Ferenczi, inter- internalizadas devam ser compartidas entre Ronald rompida devido aos incidentes decorrentes da gran- Fairbairn, psicanalista escocês pertencente à Socie- de guerra mundial da época; no entanto, entusias- dade Britânica, e M. Klein, os quais, trabalhando mada pela obra de Freud e incentivada por Ferenczi, desde lugares diferentes e de forma autônoma, rea- Melanie inicia, em 1916, a sua carreira de psicana- lizavam uma concepção psicanalítica semelhante, lista de crianças numa policlínica de Budapeste. nesse capítulo vamos priorizar a obra de M. Klein Em 1919, ela escreve O desenvolvimento de uma devido à sua forte penetração e influência no cone criança, que lhe serviu como sendo o trabalho que psicanalítico sul-americano. a titulou como membro da sociedade psicanalítica da Hungria. Em 1920, ela conhece K. Abraham, que, impressionado com o seu talento, convida-lhe Melanie Klein para residir em Berlim, onde ela ficou fazendo aná- lise com ele, durante o período de 1920 a 1925, e Alguns Dados Biográficos que foi interrompida devido ao inesperado faleci- mento de Abraham. Nesse ano de 1925, ela aceita Nasceu em Viena, em 1882, em uma família o convite de E. Jones para pronunciar algumas con- pobre, como a quarta filha de um pai que então já ferências em Londres, causando tal impacto e en- tinha mais de 50 anos, e ela morreu em Londres, tusiasmo entre muitos dos psicanalistas britânicos em 1960, com a idade de 78 anos. Seu pai era mé- que acabou aí fixando residência definitiva, e onde dico, um judeu ortodoxo que, a exemplo do pai de trabalhou com psicanálise pelo resto de sua vida, Freud, também era um estudioso do Talmud. A mãe organizando em torno de si uma verdadeira nova de Melanie era uma mulher bonita e corajosa, ten- escola de psicanálise do aberto uma loja para ajudar no provento da fa- mília. Obra M. Klein sofreu uma sucessão de severas e trau- Uma resenha dos seus principais escritos per- máticas perdas ao longo de sua vida: quando tinha mite fazer os destaques que seguem. Em seu artigo 5 anos, falece sua irmã Sidonie que lhe ensinava Os princípios psicológicos da análise infantil, de aritmética e assim sempre foi carinhosamente lem- 1926, M. Klein expôs, pela primeira vez de forma brada por Melanie. Tomara a decisão de ser médi- sistemática, suas concepções sobre os brinquedos ca, talvez influenciada pela vontade de ajudar o seu FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 49 como instrumento de análise, postulando uma ana- ras parentais representadas unicamente por um ma- logia entre o brinquedo e o sonho, de modo que, milo, seio, pênis, etc.). 8) Postulou uma constante brincando, a criança expressa de forma simbólica dissociação entre os objetos (seio bom x mau, idea- as suas fantasias inconscientes. Em 1930, aparece lizados x persecutórios, etc.) e entre as pulsões o trabalho Notas sobre a formação de símbolos, (construtivas x destrutivas, etc.). 9) M. Klein con- no qual ela inspira-se na análise do paciente Dick, cebeu a noção de posição – que é conceitualmente uma criança que tinha sérios transtornos de apren- diferente de “fase evolutiva” – e descreveu as, agora dizagem decorrentes de suas fantasias de um ata- clássicas, posições esquizoparanóide e a depressi- que sádico contra o corpo da mãe. Em 1932, M. va, que representam uma enorme importância para Klein reúne seus historiais clínicos com crianças a teoria e prática psicanalítica. 10) Suas concep- (Erna, Rita...) e, numa forma de síntese dos mes- ções sobre os mecanismos arcaicos do desenvolvi- mos, ela publica Psicanálise das crianças. No ano mento emocional primitivo permitiram uma possi- de 1934, aparece Psicogênese dos estados manía- bilidade de análise com crianças, com psicóticos e co-depressivos, onde, pela primeira vez, é conce- com pacientes muito regressivos em geral. 11) Para bida a noção de posição depressiva. Em 1946, ela não ficar descompassada com os princípios de publica, Notas sobre alguns mecanismos esquizói- Freud, M. Klein conservou as concepções relati- des, onde, também pela primeira vez, aparecem as vas ao “complexo de Édipo”, e ao “superego”, po- medulares concepções de posição esquizoparanói- rém os situou em etapas bastante mais primitivas de e o fenômeno da identificação projetiva. Ou- do desenvolvimento da criança. 12) Juntamente tros três livros importantes são: Contribuições à com os ataques sádico-destrutivos da criança, com psicanálise (1948), onde ela reúne artigos escritos as respectivas culpas e conseqüentes medos de ata- desde 1921; Desenvolvimentos em psicanálise ques persecutórios, ela postulou a importância de (1952); e Novos desenvolvimentos em psicanálise a criança, ou o paciente na situação analítica, de- (1955), onde aparece o importante artigo Sobre senvolver uma imprescindível “capacidade para identificação, sendo que nestes dois últimos livros fazer reparações”. 13) Deu ênfase extraordinária à constam inúmeras colaborações de outros autores importância da inveja primária, como expressão seguidores de sua ideologia psicanalítica. Outros direta da pulsão de morte. 14) Como decorrência trabalhos de especial relevância na obra de M. Klein dessas concepções, M. Klein promoveu uma signi- são: Inveja e gratidão (1957), Sobre o sentimento ficativa mudança na prática analítica no sentido de de solidão (1959) e Narrativa de uma análise in- que as interpretações fossem sistematicamente fantil (1961). transferenciais, mais dirigidas aos objetos parci- ais, aos sentimentos e defesas arcaicas do pacien- Principais Contribuições te, e com uma ênfase na prioridade de o analista trabalhar na transferência negativa. Sem levar em conta a ordem cronológica de aparecimento, pode-se dizer que ela foi pioneira Críticas nas seguintes e originais concepções: 1) Criou uma técnica própria de psicanálise com crianças e in- Há uma aceitação generalizada e consensual no troduziu o entendimento simbólico contido nos universo psicanalítico de que os seguintes três as- brinquedos e jogos. 2) Postulou a existência de um pectos são altamente relevantes, como positivos: o inato ego rudimentar, já no recém-nascido. 3) A fato de que suas concepções possibilitaram uma pulsão de morte também é inata e presente desde o análise mais profunda com crianças e psicóticos; a início da vida, sob a forma de ataques invejosos e importância da agressão no desenvolvimento emo- sádico-destrutivos contra o seio da mãe. 4) Essas cional e na clínica; a concepção do fenômeno da pulsões, agindo desde dentro da mente, promovem identificação projetiva, embora modificada e am- uma terrível “angústia de aniquilamento”. 5) Para pliada por Bion, como veremos mais adiante. contra-arrestar tais angústias terríveis, o incipiente As críticas negativas, partidas principalmente ego do bebê lança mão de mecanismos primitivos pelos analistas da “psicologia do ego”, costumam de defesa, como são: “negação onipotente”, “dis- sublinhar os seguintes aspectos: não aceitam a exis- sociação”, “identificação projetiva”, “introjeção” tência inata de uma pulsão de morte nos termos e “idealização”. 6) Ela concebeu a mente como um descritos por M. Klein; por conseguinte, repudiam universo de objetos internos que estão relaciona- a concepção de uma inveja primária agindo pre- dos entre si através das fantasias inconscientes, cocemente de uma forma destrutiva contra o seio, constituindo a realidade psíquica. 7) Além dos ob- representante da figura da mãe; tampouco aceitam jetos totais, ela concebeu os objetos parciais (figu- a existência de arcaicas fantasias inconscientes, nem 50 DAVID E. ZIMERMAN a de um ego inato capaz de suportar angústias; tam- ESCOLA DA PSICOLOGIA DO EGO bém não aceitam a concepção de um complexo de Édipo precoce (admitem a exceção nos casos de Como muitos outros psicanalistas europeus uma hiperestimulação libidinal por parte dos pais). perseguidos pelo nazismo na época da Segunda Da mesma forma, também não admitem a forma- Guerra Mundial, também o austríaco Heinz Hart- ção de um superego primitivo e, de imediato, cru- man migrou para os Estados Unidos, onde, junta- el; entendem que M. Klein cometeu um grave erro mente com Kris, Loewenstein, Rappaport e Erikson, porque, aos poucos, deixou de valorizar a realida- fundou a corrente psicanalítica denominada “Psi- de do meio ambiental externo, e somente teria va- cologia do Ego”. Esses autores fundamentaram-se lorizado essa realidade como confirmadora ou nos últimos trabalhos de Freud, particularmente a corretora das fantasias inconscientes, primariamen- partir da formulação da estrutura tripartida da mente te internas, e projetadas no mundo externo. Igual- – id, ego e superego – e também se alicerçaram mente, esses críticos acham que muitas vezes M. nos trabalhos de A. Freud referentes às funções do Klein confunde ansiedade psicótica com psicose ego. clínica e dá a entender que a criança pequena sem- Em boa parte devido ao espírito pragmático dos pre é um ser sofredor submerso em meio a terríveis americanos, os postulados dessa escola germina- ansiedades, o que não corresponde à verdade dos ram com muito vigor e frutificaram com os estu- fatos, e assim por diante, outras críticas similares dos de gerações posteriores, como os de Edith poderiam ser enumeradas, como as que se dirigem Jacobson (1954) com os seus trabalhos que des- às interpretações kleinianas que, segundo os críti- crevem a existência de um “self psicofisiológico”, cos, estariam abusando numa exagerada ênfase nos além de uma abordagem acerca das primitivas re- aspectos destrutivos. lações objetais que estabeleceram uma significati- As contribuições de M. Klein encontraram res- va aproximação com os teóricos das relações obje- sonância em psicanalistas contemporâneos dela, tais. Baseados nas idéias dessa autora, os psicólo- como J. Rivière, S. Isaacs, P. Heimann; seguiram- gos do ego deram um decisivo passo na estruração se com os pós-kleinianos compostos por ex- da ideologia dessa escola a partir dos trabalhos mais analisandos e discípulos dela, como H. Segal. H. recentes de pesquisa de Margareth Mahler e co- Rosenfeld, D. Meltzer, W. Bion; assim como de laboradores. Essa autora estabeleceu os sucessivos neokleinianos, representados na atualidade por B. passos na evolução neurofisiológica da criança Joseph, J. Steiner, entre muitos outros conceitua- acompanhada pelas respectivas etapas de cresci- dos autores psicanalíticos. É útil lembrar que, da mento mental e emocional. Assim, ela descreveu mesma forma como muitas dissidências caracteri- as seguintes fases, com as respectivas subfases: zaram o grupo original de Freud, também impor- autismo normal, seguida da simbiose normal, pas- tantes analistas kleinianos tanto romperam com ela, sando pela progressiva saída da indiferenciação como Paula Heimann, cuja principal contribuição com a mãe através da etapa de individuação e se- foi a sua apresentação e publicação do trabalho paração (com as subetapas de “diferenciação”, sobre a contratransferência, contrariando M. Klein, “treinamento” relativo à exploração do mundo ex- motivo pela qual elas romperam as relações. Al- terno e a de “afastamento e reaproximação”) até guns seguidores de M. Klein se afastaram por di- chegar à quarta etapa, que consiste na obtenção de vergências ideológicas e seguiram uma linha inde- uma constância objetal emocional com uma con- pendente, como D. Winnicott, enquanto outros solidação do self e da individuação. mantiveram-se fiéis a ela, porém com modificações Também é justo destacar na psicanálise norte- bastante profundas, como é o caso de W. Bion. americana o nome de Otto Kernberg, cujo pensa- As inestimáveis contribuições teóricas e clíni- mento psicanalítico representa ser uma verdadeira cas dos autores pós e neokleinianos, por meio de ponte entre os psicólogos do ego e os teóricos das uma vigorosa e fértil produção de artigos e livros, relações objetais, sendo que esse autor vem-se no- têm provocado marcantes ampliações e modifica- tabilizando por importantes trabalhos, notadamen- ções em muitos daqueles aspectos que apareceram te os que concernem às organizações narcisistas da como críticas negativas, especialmente as de or- personalidade, mais particularmente os estados dem técnica. borderline. De uma forma muitíssimo simplificada, cabe assinalar as seguintes contribuições provindas da escola da psicologia do ego, principalmente dos FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 51 trabalhos de Hartmann (1937) e seguidores imedia- tendimento da criatividade artística, assim tos: como, também, dos estados mentais do 1) Uma valorização do estudo das funções analisando no curso do processo analítico. mentais processadas pelo ego, como os afe- 10) Mais diretamente em relação à técnica e à tos, memória, percepção, conhecimento, prática da psicanálise, no mínimo devem pensamento, ação motora, etc. ser mencionadas as seguintes contribuições 2) Uma aproximação com outras disciplinas por parte de diversos representantes dessa como a medicina, biologia, educação, an- escola: a noção de R. Sterba (1934) a res- tropologia e psicologia em geral. peito de uma dissociação do ego como um 3) Uma ênfase nos processos defensivos do processo terapêutico; um importante inte- ego, em particular aqueles que se referem resse pelas defesas e pelos fenômenos que à neutralização das energias pulsionais se- se passam no pré-consciente; a observação xuais e agressivas, assim valorizando um direta de bebês e de criancinhas, pelos es- enfoque econômico da psicanálise. tudos como os de R. Spitz e M. Mahler; as 4) Até Hartmann, as noções de ego e self es- reconhecidas postulações de E. Zetzel tavam muito confusas entre si: devemos a (1956) acerca dos critérios de analisabili- esse autor uma mais clara diferença concei- dade e, principalmente do estabelecimen- tual entre ego como instância psíquica en- to de uma aliança terapêutica. carregada de funções, e self como um con- junto de representações que determinam o sentimento de “si mesmo”. ESCOLA DA PSICOLOGIA DO SELF 5) A principal tarefa do ego é o de uma ade- quada adaptação (não confundir esse con- Heinz Kohut ceito, como fazem muitos, com conformis- mo ou submissão), promovendo soluções Alguns Dados Biográficos adaptativas entre as demandas pulsionais e as imposições da realidade, muito particu- Nasceu em Viena, em 1913, onde se formou larmente com uma boa utilização da capa- em medicina, exercendo a especialidade de neuro- logia. Também ele foi pressionado pelo nazismo cidade de síntese e de integração por parte imperante no período da Segunda Grande Guerra do ego. e, por isso, resolveu migrar para os Estados Uni- 6) Os conceitos de autonomia primária e se- dos, onde se incorporou ao Instituto Psicanalítico cundária do ego, as quais aludem a uma de Chicago, tendo ali trabalhado e vivido até a sua área livre de conflitos e a uma livre utiliza- morte, em 1981, com 68 anos. Desde menino foi ção das energias que estão à disposição do de uma inteligência precoce e, mais tarde, revelou ego para fazer frente às exigências do id e sólidos conhecimentos de grego, latim, teatro e do superego. música. 7) Assim, o ego é concebido como uma estru- No começo de sua atividade, Kohut foi muito tura que, por sua vez, contém um certo nú- influenciado pela teoria de Hartmann, porém, aos mero de subestruturas, sendo que nem toda poucos, afastou-se dos postulados dessa escola, inclusive de muitos princípios básicos de Freud, e energia do ego provém do id como afirma- construiu o seu próprio corpo teórico-técnico, com va Freud, mas, sim, que parte dela é primá- uma ênfase quase que exclusiva no que ele veio a ria e autônoma. denominar “psicologia do self”. De forma sintéti- 8) É útil a concepção de que nem todos con- ca, impõe-se mencionar os seguintes aspectos na flitos são intersistêmicos; é necessário dis- obra original de Kohut: tingui-los daqueles que são intra-sistêmi- 1) Ele situa como o principal instrumento da cos, e que se processam entre as distintas psicanálise não o lugar da livre associação subestruturas egóicas. de idéias do analisando, mas, sim, o da 9) O conceito de regressão a serviço do ego, Introspecção e o da, recíproca, Empatia. é original de Kris (1952) e possibilita o en- 52 DAVID E. ZIMERMAN

2) Da mesma forma, Kohut retira o lugar hege- resto de sua vida, tanto no sentido positivo mônico do “complexo edípico”, de Freud, como negativo). e coloca no seu lugar as falhas dos self- 8) Na prática analítica, adquire uma grande objetos primitivos (em outras palavras, ele utilidade a sua conceitualização de trans- substitui o “homem culpado” de Freud e ferências narcisistas, nas quais o analista M. Klein pelo que ele considera ser o “ho- é sentido pelo paciente portador de trans- mem trágico”). torno narcisista da personalidade como fa- 3) Um outro enfoque enaltecido por Kohut é zendo parte do sujeito. Assim, essa mo- a importância na prática analítica que pro- dalidade transferencial é diferente daque- cesse no paciente uma internalização trans- la que se dá na clássica neurose de trans- mutadora, que consiste na introjeção da ferência edipiana, e ela pode assumir três figura do analista como pessoa e como formas, conforme o grau de regressão: a modelo de função psicanalítica para aque- fusional ou idealizadora (o paciente não les pacientes cujas falhas empáticas dos discrimina as diferenças entre o seu self e pais não haviam possibilitado identifica- o do analista, e como toda a felicidade ções satisfatórias, nem com a mãe, nem reside no objeto idealizado, o sujeito sen- com o pai e, tampouco, com substitutos te-se vazio e impotente, com enorme difi- destes. culdade para separações); gemelar ou de 4) Nestes casos, forma-se um transtorno do alter-ego (o analista já é sentido pelo pa- sentimento de identidade, porém secundá- ciente como um objeto externo, porém que rio em relação à dificuldade anterior da se deva comportar como um “gêmeo” do estruturação do self. paciente, de modo a confirmar as teses 5) Os dois conceitos medulares da obra de desse último, e partilharem os mesmos Kohut são os seus estudos sobre o self e ideais, metas e ambições); a especular pro- sobre o narcisismo. priamente dita (é maior a discriminação 6) Em relação ao narcisismo, antes de se pen- do paciente com o analista, mas ele tem sar em um desenvolvimento patológico, a uma necessidade vital de que seu “self sua concepção é a de que se considere que grandioso” seja espelhado pelo “olhar” o narcisismo, durante o desenvolvimento reconhecedor do terapeuta, assim como o do ser humano, segue uma evolução para- bebê em relação à sua mãe, de modo a lela e independente da libido objetal, de propiciar-lhe um sentimento de continui- forma que esse narcisismo adquire uma dade, coesão e de existência). função estruturante e pode vir posterior- 9) Kohut também alude à necessidade de que mente a sofrer transformações úteis, como se encontre uma necessária “frustração óti- a empatia, sabedoria, humor, aceitação da ma”, tendo em vista o fato de que esses pa- finitude... cientes, com facilidade, quando frustrados, 7) Em relação ao self, Kohut postulou duas entram em um estado mental que ele cha- novas estruturas, ambas de formação arcai- ma de “fúria narcisista”. ca: o self grandioso (imagem onipotente e perfeita que o sujeito sente como sendo pró- Críticas pria; no caso de uma evolução normal, o As maiores críticas que costumam ser feitas con- self grandioso vai transformar-se em auto- tra as postulações dessa escola residem no fato de estima, autoconfiança e ambições próprias) que Kohut não se restringiu à compreensão e ao e a imago parental idealizada (diz respei- manejo dos transtornos narcisistas, de modo que to à imagem primitiva toda poderosa e per- tentou explicar toda a psicanálise sob a sua ótica e feita que a criança tem dos pais e que, de isso representou uma evidente mutilação concei- alguma maneira, é sentida como fazendo tual. Destarte, muitos críticos dizem que no seu parte do sujeito. Essa imago parental idea- corpo teórico desaparece a teoria das pulsões (es- lizada transforma-se nos “valores ideais” pecialmente o da agressão destrutiva) e o comple- que podem acompanhar o indivíduo pelo FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 53 xo de Édipo, sendo que o papel do inconsciente tas à obtenção de seu título de membro efetivo, teria ficado muito reduzido. Lacan apresentou a sua tese intitulada “Da psicose Levando em conta que a psicanálise contem- paranóica em suas relações com a personalidade”, porânea está dando uma grande valorização aos que serviu como ponto de partida para as concep- aspectos que dizem respeito ao narcisismo, tanto o ções originalíssimas. normal como o patológico, como também à estrutu- Esse genial, polêmico e altamente controverti- ração do self, entendo que, apesar das restrições, do autor psicanalítico, revoltado com o crescimen- Kohut é um autor que merece, de parte de todo to da norte-americana escola da “psicologia do ego” analista, que suas conceituações teóricas e técni- e alegando que essa escola estaria deturpando o cas sejam muito bem conhecidas. Dentre outros li- verdadeiro espírito da psicanálise, decidiu dirigir vros mais, os dois seguintes consubstanciam a es- os seus estudos psicanalíticos a partir de um “re- sência de seu pensamento psicanalítico: A análise torno a Freud”. Alguns autores conjeturam que a do self, de 1971, e A restauração do self, de 1977, verdadeira causa era que Lacan continuava ressen- nos quais fica evidenciada a sua ruptura com Freud. tido com a sua transferência, sabidamente muito mal-resolvida com o seu analista Loewenstein, que, antes de fixar sua moradia nos Estados Unidos, ESCOLA FRANCESA DE PSICANÁLISE – morou durante algum tempo na França, para onde LACAN migrou, fugindo da Rússia, sua terra natal. Talvez seja mais exato dizer que se trata de um retorno a Na França há várias sociedades psicanalíticas (sobre) Freud, tendo em vista que, embora sempre que foram-se formando a partir de sucessivas dis- reiterando uma total fidelidade ao mestre Freud, sidências ideológicas – e querelas narcisísticas – Lacan fez radicais reinterpretações dos textos freu- entre os seus membros. O conjunto dessas socie- dianos, ao mesmo tempo em que ele deu uma di- dades caracteriza o que se denomina como a, pu- mensão totalmente estruturalista à psicanálise (daí jante, Escola Francesa de Psicanalise, onde pon- que essa corrente psicanalítica também é conheci- tificam nomes ilustres como o de J. Lacan, J. da como “escola estruturalista”). MacDougall, J. Laplanche, S. Lebovici, P. Aulag- Formou-se em medicina, com especialização nier, Grumberger, J. Ch. Smirgel, P. Fedida, sendo em psiquiatria e psicanálise, sempre demonstran- que entre tantos outros igualmente importantes, na do uma inteligência invulgar e uma crescente aqui- atualidade, está tendo um reconhecimento especial sição de uma sólida cultura e erudição, as quais o nome de A. Green. Na verdade, é consensualmen- muitas vezes ele utilizava de forma arrogante. Por te aceito que, de uma forma ou outra, todos estes essas razões, Lacan tanto foi cercado por uma imen- autores sofreram uma forte influência de Lacan que, sa corte de adoradores, dentro e fora do círculo por essa razão, aqui merecerá um espaço exclusi- psicanalítico, como também formou um grande vo como representante maior dessa Escola. contingente de desafetos, detratores e severos crí- ticos. À guisa de ilustração, vale a pena mencionar algumas dessas críticas mordazes que comumente Jacques Lacan aparecem publicadas: “Lacan jovem, servindo-se das mulheres para che- Alguns Dados Biográficos gar ao poder, e Lacan velho, servindo-se do poder para seduzir e chegar a elas”. “O dogmatismo, o Jacques Marie Emile Lacan nasceu na França, sectarismo e o conformismo de seus alunos, formou- em 1901, e faleceu em 1984. Provindo de uma fa- se, não apesar do gosto constante de Lacan pela mília de classe média, ele sempre foi um aluno bri- mentira, mas por causa disso”. “Lacan continua lhante, tendo-se destacado nas disciplinas de filo- grande, mais pelo que procurou do que pelo que sofia, teologia e latim. Iniciou seus estudos de me- acreditou encontrar; aprendemos muitas coisas gra- dicina em 1920 e, a partir de 1926, especializou-se ças a ele, e muitas outras apesar dele, ou contra ele, em psiquiatria, na qual se interessou particularmen- mas das quais não nos teríamos aproximado sem te pelo estudo das paranóias. Por essa época, Lacan ele”. Frases como estas, dentre outras laudatórias, integrou o movimento surrealista, juntamente com mas sempre num clima controvertido, poderiam ser outros famosos artistas, escritores e intelectuais, bastante multiplicadas. como Breton, S. Dali e Picasso. Em 1933, comple- mentando seus estudos sobre as paranóias com vis- 54 DAVID E. ZIMERMAN

Uma outra característica de Lacan foi a sua gran- do corpo. 2) A linguagem. 3) O desejo. 4) Narcisis- de facilidade para promover e ficar envolvido em mo e Édipo. sérios conflitos com seus pares; assim, ele dissen- tiu com a IPA e criou a sua própria “Escola Freudia- Corpo na de Paris” que adquiriu uma reconhecida pujan- ça, porém que aos poucos foi sofrendo a dissidên- A “etapa do espelho” na constituição do sujei- cia de muitos membros ilustres, sendo que alguns to prolonga-se na criança, dos 6 aos 18 meses, di- desses criaram novas escolas. Além disso, em 1980, vidida em três fases de seis meses cada uma. Na poucos anos antes de sua morte, Lacan dissolveu a primeira delas, a imagem da totalidade corporal é sua própria escola, e o número de novas correntes antecipada à do esquema corporal real; assim, a psicanalíticas formadas pelos seus ex-colaborado- criança reage com júbilo diante da imagem visual res foi num tal crescente – porque também esses, completa de si mesmo porque essa contrasta com a identificados com o mestre, promoveram novas e fragmentação do seu corpo. Tal fragmentação, no múltiplas cisões, a ponto de que alguns críticos pre- original francês é denominado por Lacan como ferem dizer que, mais do que “dissociada”, a esco- corps morcelé, e costuma ser traduzido por “des- la lacaniana está “pulverizada”. pedaçamento”, ou seja, são “pedaços corporais” que, por razões neurobiológicas, ainda não se jun- Obra taram. Por exemplo, a criancinha não concebe que o seu pé, nariz, sensações corporais provindas de O primeiro trabalho psicanalítico importante de órgãos internos, etc. pertencem a um mesmo e úni- Lacan foi sobre a “Etapa do espelho”, apresentado co corpo, o seu. no ano de 1936, em Mariembaud, durante o XIV De maneira análoga, depreende-se de Lacan que Congresso Internacional de Psicanálise. Em 1949, também o ego ideal constitui-se como uma imago em Zurich, durante o XVI Congresso, ele reformu- antecipatória, um registro imaginário prévio da- lou e ampliou o mesmo trabalho que então apre- quilo que ainda não somos mas queremos ser. Im- sentou sob o título de “Etapa do Espelho como porta enfatizar que nessa fase e na seguinte a ima- Formadora do Ego”, de profundas repercussões gem corporal da criança, que é sua, é percebida até a atualidade. Em 1966, ele reuniu seus “Escri- como sendo a do outro, e vice-versa, e isso escla- tos” num único volume que constitui a coluna ver- rece os sintomas de despersonalização, os de con- tebral de sua obra. fusão quanto à identidade corporal dos psicóticos, Quatro foram as vertentes que influenciaram e também os transtornos psicossomáticos que re- decisivamente o pensamento e a obra psicanalítica sultam da sensação fantástica de “um corpo para de Lacan: 1) Lingüística: inspirado no lingüista dois”, conforme J. MacDougall (1987). Saussure que, de 1906 a 1911, ministrou em Gene- bra uma visão estruturalista da linguagem, no seu Narciso e Édipo famoso Curso de lingüística geral. 2) Antropológi- ca: essa vertente foi baseada na “antropologia, de Na segunda fase da “etapa do espelho”, a crian- enfoque estruturalista”, concebida e divulgada por ça, ainda num registro narcisístico-imaginário, iden- Levi-Strauss. 3) Filosófica: Lacan sofreu uma forte tifica-se com o desejo da mãe, ou seja, ela deseja influência da obra Fenomenologia do espírito, do ser o falo da mãe (falo não é sinônimo de pênis, filósofo Hegel, que descreve o “diálogo do amo e mas sim deve ser entendido como símbolo do “po- do escravo”, em cuja relação, cada um desses dois der”). personagens é indispensável ao outro e, ao mesmo Na terceira fase da metáfora do “espelho”, dos tempo, cada um deles está escravizado ao outro. A 12 aos 18 meses, em situações normais, a criança partir desse modelo, Lacan utilizou para a sua teoria assume a castração paterna (aqui o conceito de analítica a noção dialética de “tese, antítese e sínte- castração não significa uma privação ou corte de se”, assim como também ele formulou a “dialética pênis, mas, sim, é uma alusão à função do pai como do desejo” e a do “olhar”. 4) A quarta vertente de o portador da lei que interdita e normatiza os limi- Lacan, naturalmente, é a psicanalítica, fundamenta- tes da relação diádico-simbiótica da mãe com o fi- da unicamente numa releitura da obra de Freud. lho). A aceitação, por parte do filho, dessa castra- Também são quatro as principais áreas do psi- ção paterna constitui o registro simbólico, o ingresso quismo que Lacan estudou mais original e aprofun- no triângulo edípico propriamente dito, além de dadamente: 1) A etapa do espelho, com a imagem representar o grande desafio às ilusões narcisistas que foram forjadas no registro imaginário das fa- ses anteriores. Além disso, para Lacan, não existe FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 55 um período pré-edípico absoluto, porquanto o pai discriminação conceitual entre ambos; quando do bebê já está presente, no mínimo, no psiquismo “fogo” for substituído por “calor”, trata-se de uma da mãe, tal como é a representação que ela tem do metonímia porque os dois conceitos estão ligados seu próprio pai. por uma contigüidade, sem simbolismo; se a pala- vra “fogo” for utilizada para transmitir uma “pai- Linguagem xão ardente”, podemos exemplificar como sendo uma metáfora porque houve uma semelhança sim- Lacan dá uma extraordinária importância ao bólica e, sobretudo, a criação de um novo sentido. aspecto do estruturalismo da linguagem (isso refe- Na metáfora, um termo é substituído por um outro, re-se às relações estabelecidas entre as estruturas enquanto na metonímia pode acontecer o fato mui- lingüística e social, vistas como sistemas em co- to comum de uma parte representar o todo. municação recíproca), de modo que para ele a “pa- O que sobremodo importa para Lacan, funda- lavra” tem tanto ou mais valor do que a imagem mentado em Freud, é que o psiquismo inconscien- visual, a ponto de Lacan declarar que o ser huma- te funciona com uma cadeia de significantes, de no está inserido em um universo de linguagem. tal sorte que por meio de “deslizamentos” (por meio A imagem é significada e ressignificada, pela de mecanismos de deslocamento, condensação e palavra, constituindo aquilo que P. Aulagnier simbolização, de forma análoga ao que ocorre com (1975) definiu como “enunciado identificatório”, os sonhos) um significante é remetido a um outro, que consiste em predições veiculadas pelo discur- de um modo que permite comparar esse processo so dos educadores (tipo: “essa criança é terrível e com o de uma decifração de uma carta enigmática, vai se dar mal na vida...”) e que vão-se converter ou a de uma consulta de um termo num dicionário, em “imagens identificatórias”, ou seja: a criança que vai remeter a um outro termo, que remete a um identifica-se com a representação e o afeto com que terceiro, e assim por diante, até ser conceitualizado o adulto significativo celebra ou desqualifica al- com algum significado. gum traço, valor ou atividade do filho. Por meio desse viés, só para exemplificar, po- Para Lacan, a linguagem determina o sentido e demos entender a articulação do narcisismo com o gera as estruturas da mente, de forma que, afirma complexo de castração edípica, porquanto a amea- ele, o inconsciente não é uma coisa, nem um lugar: ça de castração e tudo o que a simboliza, como ao mesmo tempo em que a linguagem é estruturante doença, cirurgia, separação, etc., remete o sujeito do inconsciente, esse também é estruturado como a uma primitiva sensação de desamparo e coloca uma linguagem (igual à estrutura gramatical do em perigo a sua auto-estima, o seu sentimento de sonho), embora primordialmente não esteja cons- identidade e, portanto, a sobrevivência de seu pró- tituído por palavas, mas, sim, por imagens, como prio ego. Por exemplo, uma situação cirúrgica qual- se fossem hieróglifos a serem decifrados. A unida- quer pode remeter a um significante de mutilação, de fundamental da linguagem é o signo que está que, por sua vez, remete a um de castração, pró- composto por uma imagem acústica – que se cons- prio do período edípico, o qual pode remeter a pré- titui como significante – e por um conceito – que vias fantasias com significantes de perdas e aban- determina o significado –, sendo que o importante donos, etc. na estrutura lingüística é o lugar que cada signo Em suma, é tamanha a importância que Lacan ocupa nessa estrutura, bem como a relação de cada atribui à linguagem provinda dos pais e dos valo- um dos signos com os demais signos. A metáfora res culturais que ele chega a afirmar a sua famosa que cabe empregar é a de uma sinaleira (farol) de frase de que o inconsciente é o discurso dos ou- trânsito: a sua simples presença tem um “signifi- tros. cante” (de alerta às leis do trânsito, no caso desse exemplo), enquanto cada uma das cores, verde, Desejo amarela ou vermelha, representa um significado específico. Lacan estabelece o funcionamento do psiquismo É útil estabelecer uma diferença entre signo, em três registros: imaginário, simbólico e real, os metonímia e metáfora, e para tanto vou me utilizar quais interagem concomitantemente, sendo que ele (Bleichmar,1989) do significante da palavra “fogo”, estuda o desejo humano a partir das interações en- com três significados possíveis, conforme as asso- tre o registro imaginário com o simbólico. Assim, ciações que o sujeito der: quando a palavra “fogo” nas primeiras fases da “etapa do espelho”, o regis- está diretamente ligada à “fumaça” estamos diante tro imaginário da criança faz-lhe supor que ela e a de uma linguagem sígnica porque estabelece uma mãe são a mesma coisa, que ela tem posse absoluta presença imediata, visível e concreta, sem haver da mãe, e caso a mãe reforce essa ilusão, crescerá 56 DAVID E. ZIMERMAN na criança a crença de que o seu desejo deve ser o 3) Pelo contrário, o analista deve dar uma im- de “ser o falo da mãe”, daí o seu desejo passa a ser portância muito especial à palavra do pa- o de ser o desejo da mãe. Quando essa criança in- ciente (que pode ser “cheia” ou “vazia”, de gressa no registro simbólico, o que é conseguido significados), assim mesmo ele também pela ação interditora daquilo que Lacan chama deve rastrear a “cadeia de significantes” que como “a lei do pai”, ela vai descobrir que “o dese- está contida no conteúdo, forma e estrutu- jo de cada um deve-se submeter à lei do desejo do outro”. ra da “linguagem”. É útil fazer mencionar uma distinção que Lacan 4) A forclusão (forma extrema de negação) postula entre as noções de necessidade (o mínimo impede a ruptura de fusão narcisista com o necessário para manter a sobrevivência física e psí- outro e, portanto, não se produz a capaci- quica, como é o alimento para saciar a fome), de- dade para formar símbolos nem o ingresso sejo (alude a uma necessidade que foi satisfeita com no registro simbólico, o que pode ser um um “plus” de prazer e gozo, e o sujeito quer voltar dos determinantes da psicose. a experimentar as sensações prazerosas) e deman- 5) A identificação narcisista também fica se- da (em cujo caso, a satisfação dos desejos é insaciá- riamente ameaçada quando os outros (o vel, porquanto o verdadeiro significado da deman- analista, na situação analítica) querem sair da é um pedido desesperado por um reconhecimen- do “jogo narcísico” e daí resulta um estado to e por amor, como forma de preencher uma anti- ga e profunda cratera de origem narcisista. Na de- colérico do sujeito assim frustrado. manda, há o desejo de ser o único objeto do desejo 6) A ausência do pai – no psiquismo da crian- do outro. No entanto, esse objeto é “eternamente ça – comumemente devido ao discurso de- faltante”, sendo que o desejo do sujeito não pode- negridor da mãe, pode propiciar a forma- rá jamais ser nomeado e circulará metonimicamente ção de psicoses e perversões. de um significante para outro. Isso explica os fre- 7) Em relação à técnica, Lacan modificou qüentes casos de um consumismo compulsivo por muitos dos critérios técnicos clássicos da roupas novas, a ânsia por ganhar presentes, a de- psicanálise freudiana, sendo que os seguin- manda por juras de amor, etc., que podem estar tes merecem ser destacados: a) Modifica- conectados com a busca desesperada de preencher ções no setting: Lacan propôs e aplicou uma um outro significante, aquele que alude aos anti- modificação revolucionária e, no mínimo, gos vazios existenciais. Nesses casos, a estrutura do sujeito obriga-o a seguir desejando, de sorte que altamente discutível até os dias atuais; é a o “seu desejo é o de desejar”, sendo que essa “dia- que se refere ao tempo de duração da ses- lética do desejo” representa uma enorme impor- são. Ao invés de durar os habituais 50 ou tância na prática psicanalítica. 45 minutos, para os lacanianos esse tempo “cronológico” foi substituído pelo “tempo Prática Clínica lógico”, que alude ao fato de que o impor- tante é a sessão terminar quando se pro- Algumas das postulações de Lacan possibili- tam encarar o paciente a partir de uma outra pers- cessa na mente do analisando o “corte sim- pectiva de observação e compreensão, e isso acar- bólico”, isto é, a passagem do plano “ima- reta modificações, inclusive de ordem técnica. ginário” – onde a palavra do paciente é Como ilustração disso, cabe mencionar os seguin- “vazia” e está a serviço de obstaculizar o tes aspectos: acesso à verdade – para o plano do registro simbólico, onde a palavra deve ser “plena” 1) A inveja e a agressão em geral não seriam e realmente a favor da comunicação e das inatas e primárias, mas sim elas surgem verdades. b) Em relação à transferência, quando é desafiado e frustrado o registro muitas vezes Lacan considera que não se imaginário do sujeito (na sua crença oni- instalará a transferência caso o analista in- potente de que ele tem uma fusão e posse terprete adequadamente. Ele chega a afir- da mãe). mar (1951) que a transferência do paciente 2) Para Lacan, a análise “não deve ficar redu- resulta de uma resposta deste a uma atitu- zida à mesquinharia exclusiva do mundo de pré-conceituosa do psicanalista, sendo interno”. que Lacan retoma esse aspecto em um tra- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 57

balho posterior (1970-73) com o nome de faz contra Lacan consiste em um rechaço à sua prá- “Sujeito Suposto Saber” (SSS) e que, como tica de fazer sessões sem tempo determinado, por- o nome indica, parte de um pressuposto que quanto restou público o fato de que cada vez mais o analista sabe tudo aquilo que o paciente as sessões duravam menos tempo, a ponto de mui- ignora. c) Quanto à contratransferência, tas delas não passarem de cinco minutos. Seus crí- ticos interpretam que essa conduta clínica de Lacan Lacan não aceita a possibilidade de que a não estaria baseada em suas convicções teóricas, mesma possa constituir-se como um impor- mas sim que essas serviam como racionalizações, tante instrumento técnico. d) Em relação à tanto pela sua ânsia de atingir um poder econômi- interpretação, Lacan adverte que o uso sis- co, como principalmente pelo seu objetivo de ob- temático da interpretação reducionista ao ter um poder político, pela proliferação de um gran- “aqui-agora” pode contribuir para uma fi- de número de analistas a ele ligados, sendo que xação do paciente no registro imaginário, quando dissolveu a escola que ele próprio fundara, narcisista, com o risco de que ele se identi- a mesma já contava com mais de 600 membros fique com os desejos do analista. Na ver- Nos últimos tempos, além da acentuação de sua dade, ele valoriza muito mais as interrup- conduta com matizes paranóides, era notório que ções que representem a castração, o corte Lacan demonstrava algumas “ausências” em suas apresentações públicas, que muito mais do que uma simbólico, do que propriamente as inter- exacerbação de suas costumeiras bizarrices, já es- pretações clássicas. tavam indicando um declínio orgânico com possí- veis manifestações neurológicas, que foram segui- Críticas das de um grave comprometimento intestinal, cuja Concomitantemente com um reconhecimento cirurgia complicou com uma infecção, que decre- generalizado por muitas das importantes contribui- tou a sua morte em 1984. ções de Lacan à psicanálise, também são inúmeras e radicais as críticas contra a pessoa e a obra dele, tanto em relação a muitas das suas concepções teó- ESCOLA DE WINNICOTT ricas como também, e principalmente, contra as suas inovações técnicas. De forma resumida, cabe Donald Woods Winnicott destacar os seguintes pontos que são alvo maior dos críticos: 1) Um exagerado radicalismo de Lacan Alguns Dados Biográficos na apresentação de suas postulações, como se as mesmas fossem as únicas verdadeiras na psicaná- Nasceu na Inglaterra, em 1897, e viveu num lar lise. 2) Em função disso fica muito difícil aceitar bem estruturado, econômica e afetivamente. Mui- de forma absoluta o descrédito que ele vota contra to cedo ele demonstrou uma inclinação pela músi- concepções clássicas, como o da noção de incons- ca e inegáveis dotes de criatividade artística, a par ciente, os fenômenos da transferência, contra- de ser um destacado atleta universitário e ter transferência, interpretações, entre tantos outros construído uma sólida erudição geral. aspectos mais. 3) Especificamente, em relação ao Formou-se em medicina, inicialmente como fenômeno da formação do inconsciente, não resta pediatra bem-sucedido, cuja especialidade exerceu dúvida da importância de sua concepção de que a durante 40 anos, quando já evidenciava sua preo- linguagem dos pais e da cultura exercem uma in- cupação com os aspectos emocionais de seus pe- fluência capital. No entanto, faltou uma ênfase por quenos pacientes na interação com as respectivas parte de Lacan no sentido de reconhecer tanto as mães. Prova disso é que foi nesse período que repressões primárias, secundárias e fantasias in- Winnicott criou os conhecidos jogos da “espátula” conscientes próprias da singularidade de cada su- e do “rabisco” (squiggle) que ele praticava com as jeito em particular, tal como Freud e M. Klein in- crianças. sistiam, como também Lacan aparenta ter ignora- Fez sua análise primeiramente com J. Strachey, do o fato de o discurso significante dos pais ser, e depois com Joan Rivière, tendo feito supervisão em grande parte, composto pelos valores enigmá- psicanalítica com M. Klein durante alguns anos. ticos que habitam a mente inconsciente desses úl- Publicou seu primeiro trabalho analítico em 1936, timos, como porta-vozes dos seus respectivos pais, no qual estudou a relação entre os conflitos emo- num continuado movimento transgeracional. 4) cionais e os transtornos de alimentação. Aos pou- Acima de tudo, a crítica mais contundente que se 58 DAVID E. ZIMERMAN cos, foi revelando uma predileção pelo atendimen- tre a fantasia e a realidade possibilita um alto po- to de pacientes psicóticos, borderline e adolescen- tencial e riqueza de criatividade, inclusive artísti- tes com conduta anti-social. ca. A área da ilusão de onipotência do bebê con- siste no fato de que o bebê vivencia o seio da mãe Obra como fazendo parte do seu próprio corpo, sendo que, no início, a mãe (ou o analista na situação ana- É tão extensa e original a sua obra (são apenas lítica) deve aceitar essa ilusão, porém, aos poucos, quatro livros, porém na totalidade de seus escritos ela deve processar uma progressiva “desilusão das constam mais de 200 títulos) que, aqui, não resta ilusões”, até que a criança perceba que ela tem a outro recurso a não ser aquele de dar apenas algu- “possessão” do objeto seio, mas que “não é o seio”. mas pinceladas nas suas concepções mais signifi- O objeto transicional, comumente um bico, tra- cativas, seguindo uma certa ordem cronológica. vesseiro, ursinho de pano, etc., ocupa um lugar e Em 1945, ainda fortemente influenciado por M. função nesse espaço de ilusão, caracteriza-se pelo Klein, Winnicott publica o seu clássico Desenvol- fato de que ele deve ser de posse exclusiva da crian- vimento emocional primitivo, no qual propõe que ça, ser amado, conservado por um longo período a maturação e o desenvolvimento emocional da de tempo e sobreviver aos ataques mutilatórios que criança processam-se em três etapas: 1) Integração a criança inflige-lhe. O objeto transicional repre- e personalização: o bebê nasce num estado de não- senta um momento evolutivo estruturante, porém, integração (não é a mesma coisa que “desintegra- segundo Winnicott, esse tipo de objeto é suscetível ção” e nem “dissociação”), na qual ele está numa de ter uma evolução patológica que ele exemplifica condição de “dependência absoluta”, apesar da sua com os quadros de fetichismo, adições e o de rou- crença mágica em possuir uma “absoluta indepen- bos. dência”. Segundo Winnicott, o desenvolvimento Em 1958, Winnicott publica o seu artigo A normal desse período levaria à obtenção de um es- Capacidade para Estar Só, no qual ele revela o quema corporal integrado da criança, que ele cha- seu gosto pelo emprego de conceituações parado- ma de uma “unidade psique-soma”, sendo que xais, tanto que essa importante concepção refere Winnicott define a personalização como “o senti- originalmente à capacidade de a criança ficar só, mento de que a pessoa habita o seu próprio cor- quando mais a mãe está presente, de tal modo que po”. 2) Adaptação à realidade: a mãe tem o papel cada uma delas está ocupada nos seus afazeres par- fundamental de ajudar a criança a sair da subjetivi- ticulares e privativos, porém uma invisível confi- dade total e provê-la com os elementos da realida- ança básica recíproca mantém-as unidas. de objetiva (tal como é a passagem da “gratifica- O ano de 1960 representa um marco bastante ção alucinatória do seio” para a gratificação pro- significativo na obra de Winnicott, que então pu- vinda de um real seio nutridor), de modo que a cri- blicou dois de seus mais importantes trabalhos: um ança comece a evocar “aquilo que realmente está à é A teoria da relação paterno-filial, em que mais sua disposição”. 3) Crueldade primitiva: nessa claramente define o papel da mãe no desenvolvi- época, Winnicott afirmava que todo bebê tem uma mento emocional do filho, descreve o estado psi- carga genética com uma certa cota de agressividade cológico de preocupação (ou devoção) materna que muitas vezes volta-se contra ela mesma, e que primária, desenvolve as noções das funções da mãe também vem acompanhada da fantasia de ter dani- como ego auxiliar, até que a criança consiga de- ficado a mãe; no entanto, ele enfatiza os aspectos senvolver as suas capacidades inatas de pensamen- construtivos da agressividade e a esperança da cri- to, síntese, integração, etc., ou seja, como uma fun- ança de que sua mãe lhe compreenda, ame e sobre- ção holding que sustente a criança tanto física como viva aos seus ataques. emocionalmente, de modo a garantir-lhe uma con- Em 1951, surgem os estudos de Winnicott rela- tinuidade existencial. O segundo trabalho publica- tivos aos fenômenos e objetos transicionais. Essa do nesse ano de 60 é Deformação do ego em ter- concepção original alude ao fato de que a passa- mos de um verdadeiro e falso self, no qual Winnicott gem do subjetivo mundo interno e imaginário do se refere ao fato de que quando as falhas ambientais bebê para o objetivo e real mundo externo proces- ameaçam a continuidade existencial da criança, essa sa-se, inicialmente, por meio de uma espécie de vê-se obrigada a deformar o seu verdadeiro self em ponte de transição entre ambos os mundos. Assim, prol de uma submissão às exigências ambientais, cria-se um espaço virtual, que Winnicott denomi- notadamente dos pais, pela construção de um “fal- na como espaço transicional, o qual, outras vezes, so self”. Nesse caso, seguindo uma metáfora de ele chama de “espaço potencial”, “área da ilusão” Winnicott, “o indivíduo, tal como o tronco de uma ou “área da criatividade”, porquanto o trânsito en- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 59

árvore, desenvolve-se às custas da expansão da 6) A concepção de que, de forma análoga ao casca, mais do que de seu núcleo, que é onde cor- que se passa entre a mãe e a criança, tam- re a seiva viva”. Clinicamente, o falso self costuma bém entre o analista e o analisando, cada vir acompanhado de uma sensação de vazio, futili- um está sendo “criado” e “descoberto” pelo dade e irrealidade e não deve ser confundido com outro, o que, parece-me, evidencia nitida- algum entendimento de ordem moral ou ética. mente o enfoque de uma psicanálise vin- Em 1971, aparece o livro O brincar e a realida- de, no qual sobressai o importante trabalho “O Pa- cular, tal como também transparece no pel de Espelho da Mãe e da Família”, onde Winni- “jogo do rabisco” (squiggle). cott tece interessantíssimas considerações acerca 7) O destaque ao valor positivo da destruti- do olhar da mãe na estruturação ou desestruturação vidade, desde que haja a sobrevivência do do self do filho. objeto simultaneamente amado e atacado. 8) A noção de que a não satisfação de uma necessidade pode provocar, não o ódio, mas Aspectos Técnicos sim uma decepção, uma reprodução do fra- casso ambiental de onde se derivou uma Entre tantos outros mais aspectos de técnica interferência na capacidade para desejar, a analítica que aparecem na obra de Winnicott, pen- qual deve ser resgatada na reexperimen- so que os seguintes merecem ser destacados: tação emocional com o analista. 1) Quando as falhas ambientais precoces são 9) A sua convicção de que com pacientes bas- repetitivas, há um congelamento da situa- tante regressivos vale mais o “manejo” do ção de fracasso, de modo que a instituição analista do que as suas interpretações. do setting analítico possibilita uma regres- 10) Toda pessoa apresenta algum grau e tipo são útil e representa uma possibilidade da- de dependência, e cabe ao analista ajudar quele fracasso ser reexperimentado com o o paciente a transitar pelas três fases que analista e vir a ser descongelado. caracterizam o processo de dependência: a 2) A admissão pelo analista quanto à possibi- absoluta, a relativa e aquela que vai rumo lidade de que ele desenvolva um ódio na à independência. contratransferência (título de um artigo de Segundo o relato biográfico de sua esposa, 1947) representa ser um importante instru- Clare, algum tempo antes de falecer, Winnicott mento técnico, a começar pela coragem de teria-lhe dito: “Oh, Deus, quero estar vivo quan- dizer uma verdade que era eventualmente do eu morrer”, sendo que em 1971, acometido por sentida por qualquer analista experiente complicações cardíacas, veio a expirar com a ida- com determinados pacientes, mas que nun- de de 74 anos, sem ter deixado filhos que não ca fôra publicada antes dele. aqueles representados pelo legado de uma mag- 3) A importância de que o analista saiba dis- nífica obra e uma legião cada vez maior de se- guidores. criminar a distinção que existe entre aqui- lo que o paciente manifesta como sendo “necessidades do id” e as “necessidades do ESCOLA DE BION seu ego”. 4) Da mesma forma como acontece nos pri- Wilfred Ruprecht Bion mórdios do desenvolvimento emocional de uma criança, também nos analisandos há um período de hesitação, que não deve ser Alguns Dados Biográficos confundida com o clássico conceito de “re- Nasceu em 1897, na Índia (pela circunstância sistência”. de que seu pai lá executava, então, um serviço de 5) O uso do analista como objeto transicional engenharia de irrigação a mando do Governo In- e o modo de como o paciente possa utilizá- glês), onde viveu até os 7 anos e foi sozinho para lo como tal, empresta uma outra dimensão Londres, a fim de iniciar a sua formação escolar. à transferência e à interpretação. Em Londres, ele completou a sua titulação acadê- 60 DAVID E. ZIMERMAN mica, tendo-se formado em medicina e posterior- década de 70, por sua vez, é considerada a de pre- mente fez a sua formação psiquiátrica e psicanalí- dominância mística. tica. Nesses 40 anos, Bion produziu em torno de 40 O próprio Bion descreve as dificuldades que títulos importantes, além de participações em con- encontrou no seu ambiente familiar e escolar, sen- ferências (caracterizadas por um continuado diá- do que ele reconhece que aquela experiência na logo com o auditório) e a coordenação de seminá- Índia deve ter contribuído para a formação de uma rios clínicos (ou seja, de supervisões coletivas), forma sua de pensar com matizes algo místicas. sendo que todas essas contribuições foram reuni- Teve uma impressionante formação humanística, das e publicadas (1973, 1992, 1995). Embora uma cabendo mencionar que estudou História Moder- primeira leitura dos textos de Bion possa transmi- na, em profundidade; obteve a licenciatura em Le- tir a impressão de um hermetismo por demais abs- tras, com distinção; fez avançados estudos em Fi- trato, em grande parte porque, deliberadamente, ele losofia e Teologia; tinha conhecimentos de Lingüís- empregou uma linguagem psicanalítica incomum tica e de línguas grega e latina; amante da literatu- – a verdade é que sua obra mantém uma coerência ra clássica, como de Shakespeare e outros; foi um e nunca se afasta das vivências emocionais experi- destacado atleta em esportes universitários, tendo mentadas na prática clínica. Suas contribuições são ganho várias medalhas de campeão; graduou-se tantas, tão originais, e com uma tal aplicabilidade médico com 33 anos, e obteve uma medalha de ouro na clínica psicanalítica do dia-a-dia de cada psica- em cirurgia; mais tarde, especializou-se em psiquia- nalista, que não cabe hesitar em reconhecê-lo como tria, que exerceu na Tavistock Clinic e no exército um verdadeiro inovador das contemporâneas con- britânico, onde se alistou voluntariamente e parti- cepções psicanalíticas. Com a esperança de que o cipou ativamente de operações militares no campo leitor releve as inevitáveis mutilações, considero do combate, tendo ganho uma importante medalha que as contribuições que merecem um destaque es- como reconhecimento por atos de bravura; fez a pecial são as seguintes: sua análise didática durante vários anos com M. Klein, tendo galgado todos os postos da Sociedade 1. Elementos de psicanálise. Bion preconiza- Britânica de Psicanálise. Em 1968, a convite, radi- va a necessidade de substituir o excesso de cou-se em Los Angeles, onde viveu e trabalhou o teorias que impregnam a psicanálise e subs- resto de sua vida, tendo feito visitas científicas a tituí-las por “modelos” e, da mesma ma- Buenos Aires e, por quatro vezes, ao Brasil, onde neira, ele propôs uma simplificação por plantou sementes que continuam germinando e fe- “elementos da psicanálise”, que, segundo cundando com muita vitalidade. Em novembro de ele, comportam-se de forma análoga às sete 1979, em meio a uma viagem de saudosismo à In- notas musicais simples, ou aos algarismos glaterra, de onde estava afastado há 11 anos, Bion de 0 a 9, ou ainda às letras do alfabeto, que veio a falecer após algumas poucas semanas de em diversas combinações permitem as mais evolução de uma leucemia mielóide aguda, em complexas configurações. Os seis elemen- Oxford, aos 82 anos de idade. tos psicanalíticos por ele propostos são: 1) uma permanente interação entre a “posição Obra esquizoparanóide”(PS) e “depressiva” (D); 2) a identificação projetiva na relação “con- Como esquema didático, podemos dividir a tinente”-“conteúdo”; 3) os “vínculos” de obra de Bion em quatro décadas distintas: a de 40, amor (L), ódio (H) e “conhecimento” (K); dedicada aos seus experimentos com grupos; a de 4) as “transformações”; 5) a relação entre 50, na qual, inspirado pelas observações dos me- idéia (I) e razão (R); 6) a “dor psíquica”. canismos psicóticos, tal como M. Klein postulava, 2. Estado da mente do psicanalista. Indepen- e que estavam subjacentes na dinâmica grupal, ele dentemente de o terapeuta estar trabalhan- trabalhou intensamente com pacientes em estados do num estado mental, seu, no plano “cien- psicóticos, com os quais se interessou, sobretudo, tífico”, “mitológico”, “de paixão”, “artísti- pelos distúrbios da linguagem, pensamento, conhe- co” ou “religioso”, o importante é que ele cimento e comunicação; nos anos 60 ele aprofundou nunca se afaste de um amor pelas verda- esses últimos estudos, de modo que essa década, des, por mais penosas que essas sejam. reconhecida como a mais rica, original e produti- va, pode ser chamada como a epistemológica; a Dessa maneira, ele enfatizou que toda aná- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 61

lise é um processo de natureza vincular aos outros, ou até mesmo contra as leis na- entre duas pessoas que vão enfrentar mui- turais. tas angústias diante dessas verdades, e isso 5. Bion emprestou um novo entendimento ao impõe que o analista possua o que Bion de- crucial fenômeno da identificação proje- nomina como condições necessárias míni- tiva. Na concepção original de M. Klein, mas, como a referida condição de ele ser esse fenômeno ficou virtualmente restrito “verdadeiro”, e mais as seguintes: • Um a uma forma de descarga de sentimentos permanente estado de “descobrimento”. • insuportáveis dentro do outro (a mãe, no Uma capacidade de ser “continente”, alia- caso do filho, ou o terapeuta, na situação do a uma “função-alfa”. • Uma “capacida- analítica), assim como também Klein pos- de negativa”(ou seja, uma condição de su- tulou que as identificações projetivas da portar, dentro de si, sentimentos negativos, criança visavam penetrar dentro do corpo como é, por exemplo, o de um “não saber”. da mãe para lá dentro dela poder controlá- • Uma “capacidade de “intuição”. • Um la e tomar posse de seus “tesouros” (pênis, “estado de “paciência” e de “empatia”. • A bebês, fezes, etc.). Bion, indo muito além, necessidade de que, na situação analítica, também considerou que a identificação pro- a mente do analista não esteja saturada por jetiva pode ter um uso estruturante, nesse memória, desejo e ânsia de compreensão caso ele a chama de “realista”, ou um uso imediata. • O reconhecimento de que o ana- patológico, quando então ele a denomina lista também é importante como “pessoa como “excessiva”, sendo que o excesso real” e que ele serve como um novo mode- tanto é em termos quantitativos como, e lo de identificação para o analisando. principalmente, pela qualidade de onipo- 3. A concepção antes mencionada da existên- tência. No entanto, a concepção mais im- cia permanente de vínculos na situação ana- portante de Bion é que mesmo essas iden- lítica, tanto os intra como os inter-subjeti- tificações projetivas “excessivas” podem vos, tanto os de amor como de ódio e co- estar cumprindo, na situação analítica, o im- nhecimento, sendo que todos eles podem portantíssimo papel de uma “comunicação ser sinalizados com sinal positivo (+), como primitiva”. Isto é, o paciente inconsciente- negativo (–). Assim, o vínculo do conheci- mente espera que o analista exerça a fun- mento (K) remete-nos aos problemas rela- ção de continente e pela decodificação dos tivos à verdade, falsidade e mentira, sen- efeitos contratransferenciais nele desperta- do que, quando ele é grifado como – K, é dos por aquelas identificações projetivas na porque está a serviço de alguma forma de sua mente possa exercer a função-alfa de negação de conhecimento ou de algum tipo dar um significado e uma nomeação para de ataque contra os vínculos perceptivos, aquelas vivências emocionais que estavam tanto os dele próprio como os do analista. acumuladas no psiquismo do paciente sob 4. A existência em qualquer sujeito de uma uma forma que Bion chama de um terror parte psicótica da personalidade (não con- sem nome. fundir com psicose clínica), que é compos- 6. O aprofundamento dos estudos concer- ta por elementos como: inveja excessiva; nentes à origem, natureza e função dos pro- intolerância absoluta às frustrações; uso cessos de pensar, conhecer, linguagem e exagerado de identificações projetivas; comunicação. Especialmente a ênfase dada ódio às verdades – externas e internas –; a à capacidade para pensar as emoções con- hipertrofia da onipotência no lugar da ca- tidas nos pensamentos, juntamente com a pacidade para pensar as experiências emo- respectiva capacidade para a formação de cionais, e da onisciência ao invés de reali- símbolos (caso contrário, as primitivas sen- zar uma aprendizagem com as experiên- sações e emoções serão evacuadas sob for- cias, a vigência de um “super”-superego ma de actings, somatizações, impulsivida- que tudo sabe, pode, condena e produz as de, etc.). suas próprias leis que o sujeito quer impor 62 DAVID E. ZIMERMAN

7. Esses aspectos remetem à importância que atividade interpretativa, que não fica res- Bion deu para que a psicanálise não fique trita à decodificação e interpretação da restrita unicamente aos conflitos inconsci- conflitiva inconsciente, mas, sim, adquire entes, mas sim que ela seja extensível tam- um caráter de promover sucessivas trans- bém aos aspectos conscientes do analisan- formações, sempre em direção às verdades do (e do analista). originais, levando o analisando a ser um 8. A abertura de novos vértices de percepção, questionador de si mesmo, a confrontar constituindo aquilo que Bion denomina vi- uma parte sua com uma outra oposta ou são binocular (ou multifocal). A mesma contraditória e assim por diante. consiste em que tanto o paciente como o 10. Partindo dessas premissas, Bion evita em- analista observem o mesmo fato psíquico pregar o termo “cura analítica” – até mes- a partir de outras perspectivas de aborda- mo porque nunca existe uma “cura” com- gem, distintas entre elas, de modo a possi- pleta, além de que essa expressão está im- bilitar que o sujeito venha a perceber e in- pregnada com os critérios da medicina – tegrar os aspectos diferentes da personali- de modo que ele prefere conceituá-la como dade que, não obstante estarem dissociados, crescimento mental, levando em conta que coexistem sincronicamente entre si. Aliás, no lugar de ir “fechando” a mente a partir Bion propõe um instigante modelo da men- da resolução dos conflitos, ele postula que te humana: ele a compara com um mapa- é necessário inverter o funil e abri-la cada múndi geográfico e topográfico que não se vez mais, construindo aquilo que ele deno- comporta como um bloco maciço e unifor- mina universo em expansão. me; antes disso, ele é composto, tal como Esse “crescimento mental” solidifica-se por no mapa, por regiões distintas, algumas gla- meio de uma gradativa construção da função psi- ciais, outras tórridas ou temperadas, algu- canalítica da personalidade, que se forma espe- mas montanhosas e caudalosas, enquanto cialmente como resultante da incorporação dessa que outras são lisas, suaves e pacíficas, e função de seu analista e que vai permitir ao sujeito assim por diante, sendo que uma análise prosseguir para sempre a sua permanente auto-aná- deveria poder cruzar todos os pólos e qua- lise. drantes da mente do analisando. Pela importância que as distintas colaborações 9. A aplicação na prática clínica de todos os dos autores dessas sete correntes psicanalíticas re- aspectos acima enumerados permite evi- presentam para uma visão integrada da psicanáli- denciar que eles acarretam sensíveis modi- se, muitos dos aspectos que foram destacados nes- se capítulo serão repisados, ou abordados sob ou- ficações técnicas em relação à análise clás- tros vértices, em muitos outros capítulos. sica, como pode ser exemplificado com a FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 63

CAPÍTULO não raramente adicionando no analisando mais cul- pas e sentimentos de desqualificação do que aque- las que ele já carregava, e (forçando um pouco a minha caricatura) insistindo na tese de que “em princípio, todo o sujeito é mau, até que prove o 4 contrário”. Os próprios autores kleinianos, como Rosenfeld (1986), foram modificando essa tese relativa à inveja primária e, na atualidade, os ana- listas seguidores de M. Klein conservam tudo aquilo que de importante e útil está contido nos postula- A Psicanálise dos dela, porém não mais prosseguem levando ao pé da letra aquela atitude na situação analítica de Contemporânea “caçador dos indícios da agressão e da inveja do paciente”. Existe agora uma maior abertura para trabalhar com inúmeros outros aspectos da perso- nalidade do analisando, principalmente a partir das A psicanálise comemorou recentemente um inovadoras concepções de Bion, a tal ponto que século de existência. Nestes 100 anos, acompanhan- aquela referida atitude anterior na forma de enca- do as modificações que se processaram em todas rar e interpretar o analisando, hoje, não passa de as áreas científicas e no pensamento humanístico uma caricatura. em geral, também a psicanálise sofreu – e vem so- Essas transformações na psicanálise, é eviden- frendo – profundas transformações, a ponto de, na te, processam-se tanto na metapsicologia e na teo- atualidade, se comparada com os tempos pionei- ria, como também na técnica e prática clínica, até ros de Freud, não exagerarmos ao dizer que ela está mesmo porque todos esses quatro aspectos estão quase irreconhecível. Isso se deve não só ao cres- intimamente imbricados entre si, um influencian- cimento do número de correntes psicanalíticas, cada do o outro. No entanto, parece-me que as mudan- uma delas com concepções contestadoras, inova- ças na prática clínica são algo mais lentas e tími- doras ou ampliadoras, mas também pelo fato de das, pelo menos como aparecem nas manifestações que cada uma delas também vem passando por su- públicas dos analistas, talvez pelo fato de que os cessivas mudanças, desde as suas formulações ori- princípios técnicos são transmitidos de geração a ginais. geração de psicanalistas, na maioria das vezes, in- Assim, talvez possa servir de exemplo, para fi- fluenciadas pela presença vigilante de um “Supe- car em um único, a forma como a escola kleiniana rego psicanalítico”, representado pelas instituições concebeu inicialmente o problema da “inveja” na responsáveis que, por sua vez, necessariamente, teoria e técnica da psicanálise e como é hoje: para também estão presas ao peso de uma tradição se- M. Klein, mais precisamente a partir de 1957, a cular. inveja primária é sinônimo de “pulsão de morte”, De uma forma altamente esquemática, creio que de sorte que ela é inata e, independentemente de a psicanálise pode ser dividida em três períodos, alguma frustração externa, o bebê já nasce devo- com os seus respectivos paradigmas mais caracte- tando um “ódio ao seio materno”, que ele vivencia rísticos: a ortodoxa, a clássica e a contemporânea. como sendo “mau”. Essa postulação metapsicoló- A psicanálise ortodoxa, que caracteriza aquela que gica, seguindo o princípio de que toda mudança foi praticada por Freud e algumas gerações de se- teórica é seguida de uma mudança técnica, e vice- guidores, privilegiava mais o aspecto da investiga- versa, acarretou para as gerações de analistas ção dos processos psíquicos, sendo que essa foi kleinianos uma forma de analisar que consistia pri- uma das razões por que os sonhos constituíam o mordialmente em encarar as manifestações transfe- que de mais precioso o paciente poderia trazer para renciais a partir desse vértice da inveja primária, o analista, e a análise desses sonhos ocupava um ou seja, de ataques sádico-destrutivos contra as exame longo e meticuloso de cada detalhe. O en- fontes geradoras de alimentos (mãe no passado, foque da análise era quase que exclusivamente analista no presente), seguidos de culpas, medo de centrado nos, proibidos, desejos edípicos, reprimi- uma retaliação persecutória, necessidade de repa- dos no inconsciente. O objetivo terapêutico precí- rações, etc. Embora haja bastante respaldo nessa puo, mais nos primeiros tempos, consistia unica- perspectiva, ela pecava pelo excesso e quase mente na remoção dos sintomas, sendo que a partir exclusivismo dessa abordagem na prática clínica, de W. Reich (1933) o objetivo da análise também 64 DAVID E. ZIMERMAN começou a ficar extensivo ao que este autor deno- co, como mudança de hora, possibilidade de um minava “couraça caracterológica”. As análises eram uso concomitante de algum psicofármaco, etc. de duração mais curta, enquanto as regras técnicas A psicanálise contemporânea, por sua vez, eram muito mais rígidas, de sorte que uma análise prioriza os vínculos – emocionais e relacionais – ortodoxa era praticada com seis sessões semanais. de amor, ódio e conhecimento, que permanente- O grande mérito do analista consistia na sua capa- mente permeiam a dupla analítica. O modelo utili- cidade para decodificar as manifestações simbóli- zado para essa inter-relação analítica guarda seme- cas, sendo que o paradigma da cura repousava em lhança (o que não quer dizer igualdade) com aque- três princípios formulados por Freud: 1) o neuróti- le que caracteriza a primitiva relação da mãe com co sofre de reminiscências e a cura consiste em o seu bebê, e vice-versa; assim, os psicanalistas rememorá-las” (teoria do “trauma psíquico”); 2) atribuem uma importância bastante mais significa- tornar consciente o que é inconsciente (teoria to- tiva à influência da mãe real, no psiquismo da crian- pográfica); e 3) onde houver o id, o ego deve estar ça. Da mesma maneira, é cada vez maior a crença (teoria estrutural). de que a “pessoa real” do analista exerce uma mar- O período da psicanálise clássica coincide com cante influência na evolução da análise. O leque a abertura de novas correntes de pensamento psi- de analisibilidade, incluindo pacientes bastante re- canalítico, algo diferenciadas dos postulados gressivos, ficou mais ampliado, sendo que o con- freudianos. Possivelmente como uma forma de criar ceito de “analisibilidade” (que precipuamente leva e preservar uma identidade própria para a psicaná- em conta os – antecipados – aspectos de diagnósti- lise, existia uma diferença bem mais rígida do que co e prognóstico) começa a ceder lugar aos critéri- a que existe atualmente entre psicanálise e terapia os de “acessibilidade” (alude, mais do que ao di- psicanalítica. Na literatura psicanalítica, começa a agnóstico clínico, à motivação e à capacidade de o transparecer a presença de uma crescente e forte paciente permitir, ou não, um acesso ao seu incons- valorização dos aspectos referentes ao desenvolvi- ciente). Começa a haver um menor rigor nos limi- mento emocional primitivo. Em conseqüência dis- tes entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica. O so, ficou alargado o espectro de categorias clínicas estilo interpretativo do analista adquire um tom algo consideradas “analisáveis”, abarcando, inclusive, mais coloquial, sendo que a inclusão de eventuais pacientes em condições psicóticas. O foco do maior parâmetros técnicos é encarada com mais naturali- interesse do analista passou a ser o da interpreta- dade, muito particularmente o aspecto que se refe- ção das emoções arcaicas, relações objetais par- re ao uso simultâneo de psicotrópicos. A análise ciais e fantasias inconscientes, com as respectivas das funções do ego, incluídas aquelas que perten- ansiedades e defesas primitivas. Por parte do ana- cem ao consciente, ocupam um interesse bem mai- lista, esse período clássico evidenciava uma ênfa- or por parte dos psicanalistas. Cresce de forma sig- se interpretativa nos sentimentos agressivos do pa- nificativa o enfoque nos transtornos narcisistas da ciente, ligados ao “instinto de morte”. As análises personalidade e, da mesma forma, começa a ga- passaram a ser de duração bem mais longa, com nhar corpo a análise de “autismo psicogênico”, tan- uma menor rigidez nas regras técnicas, com a re- to em crianças com autismo secundário como com dução do número de sessões para cinco semanais certos casos de adultos neuróticos. A psicanálise e, posteriormente, em alguns centros, para quatro começa a abrir as portas para outras ciências, como sessões. O período clássico conservou a regra vir- a lingüística, a teoria sistêmica, as neurociências, a tualmente absoluta de que só teriam um valor “ver- psicofarmacologia, etologia, etc. Em relação aos dadeiramente psicanalítico” as interpretações uni- critérios de formação de psicanalistas, o pêndulo camente dirigidas à “neurose de transferência”. A contemporâneo inclina-se nitidamente para uma contratransferência passou a ganhar um merecido “formação pluralista”, ou seja, para a recomenda- espaço de valorização, assim apontando para os ção de que o psicanalista conheça os postulados primórdios da psicanálise vincular baseada na re- das diversas escolas de psicanálise e, a partir des- lação transferencial-contraransferencial. No entan- sas, juntamente com a sua experiência de análise to, de certa forma, ela recaiu num extremo oposto pessoal e de supervisões, construa a sua formação, de que tudo aquilo que o analista sentisse seria li- de forma livre e coerente com o seu jeito autêntico teralmente sempre resultante de identificações pro- de ser. jetivas do paciente. Havia uma intensa restrição Um bom critério para medir as principais trans- quanto à introdução de qualquer “parâmetro técni- formações da psicanálise é aquele que leve em conta co” – termo de Eissler (1953) – que designa qual- a prática clínica, ou seja, que enfoque aqueles as- quer modificação de combinação no setting clássi- pectos que podem ser considerados como agentes FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 65 eficazes de verdadeiras mudanças terapêuticas. 2. Tipo de angústia. Freud enfatizou a impor- Destarte, a meu juízo, as seguintes transformações tância soberana da angústia de castração, merecem ser destacadas: ligada ao conflito edípico, enquanto M. Klein parte da noção de que “a parte do instinto de morte que age dentro do psiquis- PARADIGMAS DA PSICANÁLISE mo precoce do bebê provoca uma terrível sensação de morte iminente”, à qual ela Entendemos por “paradigma”, em psicanálise, denomina de angústia de aniquilamento. um conjunto de postulados teóricos, com as respec- tivas regras técnicas e normas de conduta dos psica- 3. Mecanismos de defesa. Freud valorizou, nalistas que, visando resolver algo considerado pro- sobretudo, o mecanismo defensivo da re- blemático e enigmático para a comunidade científi- pressão (a defesa mais evidente nas pa- ca, determinam a pauta, amplamente dominante e cientes histéricas de que ele tratava), além vigente para uma certa época, de como a psicanálise de outras presentes nos quadros paranói- deve ser entendida e praticada. Assim, durante lon- des, como a projeção, na psicopatologia gas décadas predominou, de forma exclusiva, o das fobias e neuroses obsessivas, como des- paradigma freudiano, com uma absoluta ênfase no locamento, anulação, isolamento e forma- embate entre os desejos pulsionais e as respectivas ção reativa. M. Klein, por sua vez, descre- defesas do ego, aliadas às ameaças do superego veu as defesas primitivas de que o psiquis- contra eles. Com os teóricos das relações objetais, mo do bebê necessita para fazer frente à notadamente M. Klein, o pêndulo da psicanálise in- clinou-se para a importância das relações objetais, aludida angústia de aniquilamento, como internalizadas, resultantes das pulsões, especialmen- são: negação onipotente, dissociação te as sádico-destrutivas, ligadas a objetos parciais, (splitting), projeção e identificação projeti- acompanhadas por ansiedade de aniquilamento e va, introjeção e identificação introjetiva, defesas do ego extremamente primitivas. idealização e denegrimento. A fim de ilustrar como a psicanálise transita de 4. Formação do ego. Freud postulou que o um paradigma para outro, creio que cabe fazer um ego formava-se a partir do id, quando con- apanhado sintético das principais transformações frontado com o princípio da realidade. Por que importantes postulados de Freud, metapsicoló- sua vez, M. Klein, coerente com a sua idéia gicos, teóricos e técnicos, até então indiscutíveis, de que o psiquismo do recém-nato lança sofreram a partir das concepções de M. Klein, como mão de defesas primitivas contra a angús- são as seguintes: tia de aniquilamento, descreveu a existên- 1. Pulsão de morte. Freud descreveu o “ins- cia de um ego inato (rudimentar), porquan- tinto de morte”, pela primeira vez, em Além to quem processa os mecanismos defensi- do princípio do prazer (1920). M. Klein vos no psiquismo é o ego. conservou esse mesmo termo (talvez para 5. Fases e Posições. Freud (juntamente com ser “politicamente correta” com a comuni- Abraham) descreveu as fases (ou etapas, dade psicanalítica da época, maciçamente estágios, períodos) do desenvolvimento freudiana) para fundamentar a sua teoria libidinal, as quais seguem um desenvolvi- sobre o desenvolvimento primitivo do mento biológico (oral, anal, fálico...), en- psiquismo, porém o empregou com uma quanto Klein preferiu a noção de posição, concepção bem distinta da de Freud. En- que alude mais diretamente a uma “conste- quanto para Freud o “instinto de morte” lação de pulsões, angústias, defesas, afe- aludia a uma noção metapsicológica de uma tos...”, que adquirem configurações espe- “compulsão à repetição de uma energia cíficas e que se mantêm presentes ao longo psíquica, que tende ao inanimado, isto é, à de toda vida. morte”, para M. Klein, esse instinto – que 6. Superego. Como sabemos, Freud postulou equivale à sua posterior (1957) postulação que “o superego é o herdeiro direto do com- de “inveja primária”, alude aos impulsos plexo de Édipo”. M. Klein, baseada na sua sádico-destrutivos. observação de análise com crianças de tenra idade, entendia que o superego (os seus 66 DAVID E. ZIMERMAN

precursores) é de formação muitíssimo 10. Repercussão na Técnica. A posição do ana- mais precoce, tem uma natureza cruel e ti- lista seguidor de Freud ficava basicamente rânica e está intimamente ligado à pulsão centrada na interpretação dos desejos de morte. edípicos, com as respectivas ansiedades e 7. Complexo de Édipo. Freud situou o início defesas contra a conseqüente angústia de da formação do complexo de Édipo por vol- castração. A partir de M. Klein, houve uma ta dos 3-4 anos de idade da criança. Para profunda ruptura desse paradigma técnico, ser coerente com a sua noção da precoci- no sentido de que os analistas kleinianos dade do superego, M. Klein fez recuar o passaram a intepretar precipuamente as fan- início da formação daquilo que ela veio a tasias inconscientes mais diretamente liga- denominar complexo de Édipo precoce. das à agressão e à inveja, assim como tam- Assim, ela inverte a equação de Freud, afir- bém para o assinalamento dos mecanismos mando que é Édipo quem se forma no ras- defensivos os mais primitivos possíveis; a tro do superego. angústia de aniquilamento e de desintegra- 8. Sexualidade. Em relação à sexualidade fe- ção; as relações objetais internalizadas; os minina, Freud insistiu nas suas teses de que objetos parciais; o superego tirânico; a an- a mulher sempre tinha uma “inveja do pê- siedade paranóide, a maníaca e a depres- nis”, enquanto Klein deu uma concepção siva; a formação de culpas e a necessária bem mais ampla e distinta à noção de inve- necessidade de fazer reparações, etc. ja, ligando-a diretamente às pulsões des- Por tudo isso, tais analistas adotaram uma pos- trutivas, de modo que a “inveja do pênis tura interpretativa bastante mais ativa e precoce, o seria secundária à angústia de castração dos que, por si só, evidencia o quanto uma transforma- seus genitais, devido à fantasia inconsciente ção paradigmática igualmente promove transfor- de uma retaliação aos seus ataques ao cor- mações na ideologia da psicanálise e na forma de o po da mãe”. Da mesma forma, Freud não analista analisar. Da mesma forma como Klein pro- admitia que a meninazinha já tivesse um moveu mudanças no paradigma freudiano, também conhecimento da sua vagina (seria, para ela, Bion efetivou profundas transformações na teoria um pênis castrado), enquanto M. Klein kleiniana e, conseqüentemente, na prática clínica, acreditava que existe, por parte da menina, porquanto teoria e técnica são indissociáveis. uma percepção das sensações vaginais, e O paradigma kleiniano representou um grande avanço na psicanálise, pois abriu as portas para o da vagina como um órgão anatômico seu. tratamento psicanalítico de pacientes psicóticos e Por outro lado, pode-se dizer que a ênfase outros mais que apresentam um alto grau de re- que Klein deu ao arcaísmo da mente, e dela gressão, além de haver possibilitado um notável ter feito Édipo retroagir a etapas primiti- aprofundamento no entendimento do desenvolvi- vas, desfigurou a essência do significado mento emocional primitivo do bebê. Um terceiro original dessa importante concepção de paradigma que na atualidade já está definitivamente Freud. encorpado pelos psicanalistas e que, em sua maior 9. Narcisismo. A noção de “narcisismo”, para parte, devemos às contribuições de Bion, é o que Freud, consistia no investimento da libido pode ser denominado psicanálise vincular (outros no próprio corpo, como um auto-erotismo, preferem chamar de “psicanálise das inter-rela- de “sua majestade, o bebê”. M. Klein não ções”, “psicanálise interacional”...). Conquanto estes três consagrados paradigmas via vantagem na adoção desse postulado, não sejam excludentes, pelo contrário, eles podem tanto que, no curso de sua vasta obra, ela ser divergentes em muitos aspectos, porém conser- não empregou o termo “narcisismo” mais vam uma complementaridade entre si, não resta do que duas vezes para definir a sua crença dúvida de que cada um deles determina substan- de que o narcisismo não era mais do que ciais mudanças na forma de praticar a psicanálise. uma busca do objeto idealizado presente A maior transformação, desde o período ortodoxo na mente da criança. Poucos contestam que até o atual contemporâneo, consiste no fato de que essa posição de M. Klein empobreceu em na época de Freud vigia uma convicção “positivis- muito a sua teoria e sua técnica. ta” e absolutista, que considerava o analista como FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 67 um observador neutro e objetivo, para não dizer o ma, a verdade em psicanálise deva necessariamen- senhor absoluto, perfeitamente sadio do ponto de te estar ligada a Freud (houve época em que qual- vista emocional e dono das verdades acerca do seu quer discordância com Freud, ou M. Klein, era paciente. Assim, ao paciente caberia o papel único considerada uma heresia, uma posição antiana- de trazer o seu “material”, e ao psicanalista caberia lítica), sendo que o referido desprendimento desse a função de fazer um levantamento “arqueológi- radicalismo está possibilitando uma maior liberda- co” das ruínas do passado do paciente, soterradas de, criatividade, com reflexos imediatos na técnica no seu inconsciente, trazendo-as ao momento atual, e prática. no consciente. Por essa razão, creio que cabe de- Penso que pode servir como exemplo dessa nominar a esse primeiro paradigma da psicanálise abertura de novos vértices psicanalíticos, não só a com a expressão pulsional-histórico. Igualmente, obra de Bion que, sobretudo, privilegia a visão de embora com uma nítida valorização das configura- que a maior tarefa do analista é a de auxiliar o seu ções objetais (bastante mais enfaticamente, as paciente a desenvolver a capacidade para pensar internalizadas), o paradigma kleiniano continuou as experiências emocionais, as primitivas e as no- persistindo na visão do terapeuta como um privile- vas, como também existem outros enfoques con- giado observador objetivo, que conseguiria man- temporâneos, como: 1) Uma crescente valorização ter uma plena neutralidade e que, qual um juiz su- das representações e funções do ego, não unica- premo, sabia perfeitamente o que era o correto e o mente as inconscientes, mas também as do ego mais apropriado para o seu paciente. Como a ênfa- consciente. 2) O importante papel na formação do se da teoria e técnica kleiniana incidia enfaticamen- inconsciente do sujeito, exercido pelos significa- te nas relações objetais internalizadas, com as res- dos que são veiculados pelo discurso dos pais diante pectivas fantasias inconscientes, proponho deno- dos fatos vividos, tal como enfatiza Lacan. 3) Logo, minar esse paradigma como Objetal-Fantasmático. com uma conseqüente valorização do aspecto da O contemporâneo paradigma vincular está apoi- transgeracionalidade. 4) Também vem adquirin- ado no “princípio da incerteza” (de Heisenberg) o do uma maior atenção, na psicanálise, os aspectos qual explica o fato de que, em qualquer observa- de como o indivíduo está inserido no seu meio ção, o próprio observador, no caso o analista, in- grupal (família, sociedade, instituições), com os tervém na realidade do fenômeno que está sendo respectivos papéis que, desde criança, ele foi “pro- observado – sendo que esse aspecto representa uma gramado” para desempenhar. 5) Um vértice psica- significativa importância para o curso da análise. nalítico que adquiriu uma grande relevância con- Do mesmo modo, fundamentados na crença de que siste na importância e na freqüência crescente dos o paciente e o analista também são duas pessoas pacientes que procuram tratamento analítico devi- reais e adultas, com as suas inevitáveis limitações do a problemas ligados à baixa auto-estima e a e angústias, tornou-se consensual entre os psicana- transtornos do sentimento de identidade, como é a listas que é impossível continuar concebendo o noção de falso self, de Winnicott. 6) Um outro as- modelo unipessoal do processo analítico, e tam- pecto que vem assumindo um estatuto de paradigma pouco que este seja linear e seqüencial, mas, sim, é a psicanálise voltada para crianças portadoras de que a análise consiste num modelo dialético entre um “autismo secundário”, resultante de uma rígida o analista e o analisando, onde as teses apresenta- “carapaça protetora” (ou “concha autista”) e que das pelo analisando são confrontadas com as antí- necessitam de uma outra abordagem técnica para teses propostas pelo analista, de modo que resul- serem “encontrados” e “despertados” pelo analis- tam sínteses (insights), que funcionam como no- ta, visto elas estarem realmente perdidas, como vas teses, num sucessivo movimento espiralar as- mostram Tustin (1986) e A. Alvarez (1992) e que cendente, em planos gradualmente mais amadure- estão à espera de que os seus buracos negros exis- cidos na mente do analisando, nos casos exitosos. tenciais venham a ser percebidos e preenchidos. Esse modelo dialético, direta e necessariamente, Todos esses úlimos aspectos, quero crer, estão pre- implica a capacidade para pensar as experiências sentes e exigem as mesmas mudanças técnicas na- emocionais, daí que proponho denominar esse ter- queles pacientes adultos que estão num estado de ceiro paradigma da psicanálise como Vincular- desistência, em cujo caso, eles estão tão defendi- Dialético. dos e desesperançados que o “seu único desejo Ademais, lenta e gradativamente, os autores es- consiste em nada desejar”, tal como será melhor tão superando a convicção dogmática de que a ver- explicitado mais adiante. Entendo que esse vértice dade só pode ser encontrada numa leitura ou de entendimento psicanalítico para determinados releitura correta de Freud, ou que, de alguma for- pacientes, cada vez mais numerosos – enfocado não 68 DAVID E. ZIMERMAN tanto nos conflitos, mas nos vazios resultantes das peuta de forma nenhuma deve ser confundida com primitivas carências e déficits – possa estar repre- uma atitude de ele “ser bonzinho” ou de nunca frus- sentando uma abertura para um quarto paradigma, trar o seu paciente, de sorte que é necessário estar que pode ser denominado Déficit – Buracos Ne- alerta para que o importante fator de função conti- gros interiores. nente não ocupe o lugar das interpretações, por- quanto ambas se complementam entre si. Um outro aspecto relativo à função de “conti- FUNÇÃO CONTINENTE nente” consiste no fato de que ele não diz respeito unicamente à capacidade de o sujeito conter as pro- A contemporânea “psicanálise vincular” está jeções de um outro, como geralmente supõe-se, mas fundamentalmente baseada no modelo da relação também designa a capacidade – a ser desenvolvida continente-conteúdo, tal como foi concebida por na análise como uma das metas mais importantes – Bion, que partiu da noção de que para todo “con- de o indivíduo “conter” as suas próprias angústias e teúdo” (composto por uma massa de necessidades, experiências emocionais, de modo a não ter que ne- angústias, objetos ameaçadores, etc.) que necessi- gar, atuar, somatizar ou repeti-las indefinidamente. ta ser projetado, deve haver um “continente” re- ceptor. Desta forma, assim como a função conti- nente da mãe é indispensável para acolher, conter PARTE PSICÓTICA DA PERSONALIDADE e processar as identificações projetivas do filho – condição sine qua non para o desenvolvimento Trata-se de uma contribuição de Bion que, ex- emocional do bebê, ou da criança – igualmente é pandindo as postulações de Freud e M. Klein, con- indispensável que, na situação analítica, com qual- cebeu que todo indivíduo conserva na sua mente a quer paciente, o terapeuta possua essa condição. coexistência recíproca, e em permanente interação, Não custa ressaltar que a noção de “continente” entre o que Bion denomina “parte psicótica da per- não deve ser confundida com a de um mero “reci- sonalidade” (atenção: não confundir com psicose piente”, que alude a uma situação meramente pas- clínica, tal como é descrita na psiquiatria) com uma siva, cuja função não vai além de um depósito de outra parte, a “não-psicótica (ou neurótica) da per- dejetos. Pelo contrário, o conceito de continente sonalidade”. Essa conceituação adquire uma sig- significa um processo ativo, pelo qual a mãe (ou nificativa importância na prática analítica contem- analista) acolhe as identificações projetivas colo- porânea porque o terapeuta fica muito mais recep- cadas dentro dele, as contém, decodifica, transfor- tivo às manifestações regressivas do paciente (como ma, dá um sentido, um significado, um nome, e só são as agressivas, confusionais, masoquistas, per- então as devolve para o filho (paciente), devida- versas, depressivas, maníacas, psicossomáticas, mente desintoxicadas, em doses suaves e parcela- etc.), que costumam provocar reações contratrans- das. ferenciais muito difíceis. Essas últimas tanto po- Estamos tão acostumados com o emprego da dem adquirir um caráter patogênico como podem noção de “continente” que nem sempre nos damos reverter para um estado de empatia do analista para conta de que ela partiu originalmente de Bion, e, com o seu paciente, se elas forem consideradas principalmente, que esse conceito, em comparação bem-vindas à análise, porque o seu surgimento in- com os paradigmas anteriores, veio a mudar fun- dica que o paciente está propiciando um acesso a damentalmente a tomada de consciência e a posi- essa parte psicótica, a qual, em algum grau, é ine- ção do analista em relação ao seu papel no vínculo rente ao ser humano, e que, por isso mesmo, deve analítico, muito mais particularmente com os pa- ser bem analisada. cientes regressivos. Cabe recordar que, acompanhando Bion, os Muitos psicanalistas, eu incluído, acreditam que seguintes elementos psíquicos compõem essa “parte naqueles pacientes de estruturação psicótica, a ati- psicótica”: a existência de fortes pulsões agressi- tude psicanalítica interna do terapeuta (resultante vo-destrutivas, com predomínio da inveja e vora- de uma composição de uma série de atributos que cidade; um baixíssimo limiar de tolerência às frus- estão mais explicitamente descritos no capítulo 41) trações; as relações mais íntimas, com outras pes- assume uma alta relevância, provavelmente maior soas próximas, são predominantemente de nature- do que as interpretações clássicas, centradas nos za sadomasoquista; há um uso excessivo de conflitos, com a ressalva que de modo algum este- splittings e de identificações projetivas; existe um jamos menosprezando a essas últimas. Pelo con- grande ódio às verdades, tanto as internas quanto trário, a “atitude empática e continente” do tera- as da realidade externa; conseqüentemente, há uma FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 69 preferência pelo “mundo das ilusões”. Como re- crição de um estado de “desmantelamento” (cor- sultado do ódio às verdades, há um ataque contra responde a uma espécie de “desmantelamento”) que os vínculos de percepção e aos do juízo crítico; acontece nos estados autistas; Winnicott (com seus existe um sensível prejuízo na capacidade das fun- perduráveis estudos originais acerca do desenvol- ções do pensamento verbal, de formação de sím- vimento primitivo da criança, levando em conta as bolos, do conhecimento e do uso da linguagem conseqüências na criança decorrentes das falhas como forma de comunicação. daquela mãe que não funciona de forma “suficien- As capacidades para pensar e aprender com as temente boa”; e, mais recentemente, Steiner (1981) experiências ficam substituídas pela onipotência e com a sua concepção de “organização patológica”, pela onisciência, enquanto a arrogância ocupa o e B. Joseph (1975) que estudou aqueles analisandos lugar do orgulho sadio, ao passo que a confusão que chama de “pacientes de difícil acesso”). fica a serviço de impedir uma discriminação entre Essa última denominação alude àqueles pa- o verdadeiro e o falso. Também existe nessa “parte cientes que, de certa forma, independentemente do psicótica” a existência de um “super”-superego, que seu grau de regressão, embora manifestamente co- se diferencia do conceito convencional de supere- laborem com a análise, na verdade não passam de go, porquanto o primeiro designa uma organiza- “pseudocolaboradores”, pois eles não permitem um ção psíquica do sujeito, que dita as suas próprias acesso às zonas ocultas do seu inconsciente, de sorte leis de convívio humano e quer impô-las aos ou- que não se produzem verdadeiras mudanças psí- tros, na base de que ele “tudo sabe, pode, controla quicas. MacDougall (1978) chega a chamar esses e condena”. pacientes de “antianalisandos”. A psicanálise contemporânea vem enfatizando a existência, entre outras, de três situações que ca- PACIENTES DE “DIFÍCIL ACESSO” racterizam “pacientes de difícil acesso”: 1) Os que são somatizadores (em cujo caso, no lugar de pen- Na época de Freud, a psicanálise clínica estava sar e fantasiar, eles fazem uma espécie de “curto restrita aos pacientes neuróticos. Com as revolucio- circuito” e expressam a angústia através do cor- nárias concepções de M. Klein acerca do desen- po). 2) Os portadores de uma gangue narcisista volvimento emocional primitivo do bebê, a psica- (ou “organização patológica”) que, qual uma máfia, nálise ampliou as possibilidades de entender e, as- promove arranjos perversos dentro do self, de modo sim, tratar analiticamente determinados pacientes a sabotar qualquer possível crescimento da parte psicóticos. Os estudos de alguns dos mais notáveis dependente e frágil do paciente. 3) Em um grau seguidores diretos de M. Klein propiciaram uma mais extremo e difícil de ser trabalhado pelo ana- abertura significativamente maior do leque de pos- lista, aqueles pacientes que estão defensivamente sibilidades para pacientes que até então eram escudados em uma cápsula autista. apriorísticamente considerados não analisáveis, como os casos de perversão, psicopatia, borderli- ne, drogadicções, autismo, psicossomatizadores, PACIENTES COM “CÁPSULA AUTISTA” neuroses graves, psicoses afetivas (até há pouco tempo, conhecidas como “psicoses maníaco- Cada vez mais, as investigações da psicanálise depressivas”). inclinam-se das neuroses para as situações clínicas Dentre os autores mencionados, todos eles par- que resultam das fixações, ou regressões, concer- tindo de uma respeitável experiência clínica de nentes às etapas mais primitivas do desenvolvimen- análise com psicóticos, cabe citar Bion (com seus to emocional. Dentre as referidas situações clíni- estudos sobre os processos da formação e utiliza- cas, existe uma que há mais de 50 anos vem preo- ção da linguagem e do pensamento nos esquizofrê- cupando os analistas pesquisadores dos transtor- nicos); H. Segal (1954) (com a sua importante dis- nos autísticos de certas crianças, não aqueles que tinção entre “símbolo” e “equação simbólica”, tal são de natureza genético-neurológica, mas, sim, os como essa última é utilizada por psicóticos); Rosen- quadros de “autismo psicogênico” (ou “autismo feld (em inúmeros artigos, publicados em seu livro secundário”), nos quais essas crianças parecem Estados psicóticos (1965), bem como, também, “desligadas” do mundo exterior e transmitem-nos com os seus importantes trabalhos sobre “narci- a impressão de que elas olham, não para as pes- sismo”, muito particularmente a sua noção de “gan- soas, porém através delas. A esse respeito, a psi- gue narcisista”(1971); Meltzer (1975) (por meio canálise contemporânea, principalmente a partir de de seus estudos sobre “perversões” e da sua des- F. Tustin (1986), fez duas revelações muito impor- 70 DAVID E. ZIMERMAN tantes: a primeira é a comprovação de que essas escondidas atrás do escudo protetor, até obter al- crianças sofrem de “vazios”, uma ausência quase guma resposta que sirva de escada para novas sa- absoluta de emoções, ou seja, elas estão cheias cudidas, com vistas a transformar um estado men- daquilo que Tustin chama de buracos negros (nome tal de de-sistência num outro de ex-sistência. tirado da física cósmica que designa uma espécie de “autofagia” da luminosidade das estrelas), os quais são resultantes da formação de uma rígida A COMUNICAÇÃO NÃO-VERBAL carapaça, uma “concha autística” contra a ameaça de um sofrimento provindo das frustrações impos- Como, proporcionalmente, tem aumentado o tas pela realidade exterior. A segunda revelação número de pacientes com estruturação regressiva relativa à existência desses “buracos negros” na que procura o tratamento analítico para o seu so- constelação psicológica, que começa a ocupar a frimento, também paralelamente a comunicação atenção da moderna psicanálise, é a de que esses não-verbal vem assumindo uma importância cada estados autísticos não são exclusivos das crianças, vez maior na situação analítica. Destarte, também mas sim que tais transtornos também são encontra- é a Bion que devemos dois assinalamentos relati- dos em certos estados neuróticos de adultos e, mais vos ao problema da comunicação: um consiste no notadamente, em situações psicopatológicas mais fato de que nem sempre o discurso verbal do pacien- regressivas, como psicoses, borderline, perversões, te serve para comunicar, pelo contrário, com rela- drogadicções, etc., sendo que um fator comum em tiva freqüência, ele pode estar a serviço de não todos eles parece ser o de uma “separação traumá- comunicar, por meio do recurso de, usando as pa- tica do corpo da mãe”, em um período no qual ain- lavras como um “soporífero verbal” (Bion, 1992), da não se processara suficientemente bem na crian- causar no analista um estado de confusão, torpor, ça a etapa de uma “diferenciação” (“discrimina- irritação, tédio, etc., de sorte a reduzir significati- ção”) com a mãe, com um conseqüente prejuízo vamente a capacidade perceptiva do terapeuta, as- das subetapas de “separação” e “individuação”, se sim impedindo uma eficaz atividade interpretativa usarmos a terminologia de M. Mahler (1975). que certos pacientes tanto temem. A importância dessas constatações reside no Em contrapartida, os analistas atuais estão muito fato de que tais pacientes, como já foi assinalado, mais atentos àquelas formas de linguagem que es- requerem uma outra abordagem técnica que con- tão muito aquém e além das palavras, porém que, siste em o terapeuta sair ativamente em busca des- para um analista “bom entendedor”, elas podem se paciente, criança ou adulto, que, mais do que estar servindo como uma importante forma de co- escondido ou fugindo, está realmente perdido e municar, de dizer acerca de sentimentos que nem o necessitado de ser encontrado e “sacudido”, para paciente sabe explicar por que e como eles exis- despertá-lo de um estado de “desistência” de viver tem dentro dele, pois os mesmos ainda não estão a vida, conformado que ele está em unicamente representados com palavras, e que justamente por sobreviver, qual um vegetal. Dizendo com outras isso constituem um tipo de ansiedade que Bion palavras: o fundamental é que o analista possa pro- nomina de “terror sem nome”. Essa linguagem não- piciar a esse tipo de paciente algum tipo de “expe- verbal pode vir por meio de gestos, somatizações, riências de ligação”, já que não adiantam as inter- actings, etc., porém os analistas modernos sabem pretações do analista, por mais corretas que elas o quanto é relevante a comunicação primitiva que sejam, porque esse paciente escudado na sua cáp- provém dos “efeitos contratransferenciais” provo- sula autística não se liga a elas; tampouco adianta cados no analista. uma boa função continente do terapeuta, porquan- Como exemplo: em uma recente supervisão, to o paciente “não está nem aí” e não fica sensibili- centrada numa primeira entrevista com uma pa- zado pela “continência” que lhe é oferecida. ciente de características borderline, a analista nos Por isso, Tustin faz a metáfora de que para es- disse que, ao final da sessão que relatava, ela per- ses casos o setting analítico seja uma espécie de cebeu que se sentia confusa, cansada, algo vazia, “útero psicológico”, que ele funcione como uma perdida e desesperançada, sem saber se a paciente “incubadora” para que o self em estado prematuro voltaria para a próxima sessão agendada e se real- possa obter aquelas provisões essenciais para o seu mente ela deseja tratar-se; mas, ao mesmo tempo, desenvolvimento, que não se realizaram na sua in- a analista ficou muito tocada quando a paciente re- fância. Assim, a proposta analítica contemporânea feriu que gostava de pintar e que vinha guardando é aquela antes referida, a de, de alguma forma, ir tintas com muitas cores. Não foi difícil perceber- ao encontro, e sacudir, sacudir, sacudir as emoções mos que, por meio dessa desconfortável contra- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 71 transferência provocada na mente da analista, a FUNÇÕES DO EGO paciente comunicou-lhe, sem palavras diretas, tudo que ela queria transmitir de como ela sente o seu Cada vez mais os psicanalistas contemporâneos mundo interno, ou seja, era a própria paciente que estão valorizando a forma como o paciente utiliza fazia um pedido de socorro por estar sentindo-se as funções mais nobres do seu ego, ou seja, de como perdida, confusa, vazia, sozinha, quase sem espe- ele percebe a si e aos outros, como pensa, conhe- ranças, ao mesmo tempo em que alentava a analis- ce, discrimina, ajuíza críticamente, comunica e ta que valeria a pena que essa acreditasse e inves- age. Neste contexto, muito especialmente a partir tisse na análise com ela, porquanto ela tinha um de Bion, a psicanálise moderna vem, sobremodo, estoque de muitas cores (aspectos coloridos, em- valorizando dois aspectos essenciais: um consiste bora latentes e congelados) à espera de serem res- na necessidade de que o analista auxilie o paciente gatadas, pintadas e emolduradas (inicialmente ne- a desenvolver a capacidade para pensar as suas cessitaria da “moldura-continente” da analista). experiências emocionais, e o segundo aspecto re- Ainda relativamente ao aspecto da comunica- fere-se à forma de como o paciente deseja, ou evi- ção na situação analítica, a psicanálise contempo- ta, tomar conhecimento das verdades. rânea está creditando uma igual importância à for- Em relação ao “pensar”, pode parecer uma ma de como o analista transmite e, principalmente, obviedade enfatizar esse aspecto já que, como de como ele recebe as mensagens provindas dos muitos dizem, “quem é que não pensa? Pensar, todo pacientes. A propósito, vale a pena transcrever essa mundo pensa”. Creio que não é bem assim e, para afirmativa de J. MacDougall (1986): “Assim como sintetizar algumas das formas falhas de pensar, vou todos os outros seres humanos, nós, os analistas, repisar uma frase que me ocorreu e que seguida- temos dificuldades de ouvir ou perceber aquilo que mente emprego: “Muitas pessoas pensam que pen- não se enquadra em nossos códigos pré-estabele- sam, mas não pensam, porque pensam com o pen- cidos”. samento dos outros (personalidades passivo-sub- metidas; falso self...), ou contra o pensamento dos outros (paranóides, narcisistas), ou de uma forma SIGNIFICAÇÕES circular esterilizante, com os pensamentos sempre voltando para o mesmo ponto (caso dos obsessi- Fundamentada em algumas importantes concep- vos), ou com ataques auto-acusatórios, primitivos ções de Lacan sobre a influência do discurso dos e desqualificatórios (melancólicos), ou orbitando pais na estruturação do psiquismo inconsciente da em torno de seu próprio umbigo (como é a forma criança, a psicanálise contemporânea implica na de pensar dos narcisistas), etc. necessidade de que o analista não fique ligado uni- Ao contrário, os psicanalistas contemporâneos camente na presença das pulsões com as conseqüen- priorizam para os seus pacientes o desenvolvimen- tes fantasias inconscientes do paciente, mas sim que to de uma eficaz capacidade para pensar, a qual ele também atente para a forma como este anali- consiste na necessidade de: 1) O analisando fazer sando significa os fatos que estão acontecendo e as um contato com aquilo que, de alguma forma, já experiências emocionais que ele está vivenciando. preexiste dentro dele (corresponde ao “conhecido Partindo deste vértice, fica facilitado para o tera- não pensado”, de Bollas, 1992). 2) Possuir um es- peuta perceber o quanto a mente do paciente cos- tado mental de “posição depressiva”, ou seja, que tuma estar impregnada de significados que, por ele tenha condições de aceitar perdas e aceitar o exemplo, podem ser fóbicos (tudo parece perigoso seu quinhão de responsabilidades e culpas. 3) Ter e, por isso, deve ser evitado) ou paranóides (tudo condições de perceber quando o seu pensamento foi-lhe significado no passado como ameaçador e tem características mágico-onipotentes, ou quan- por essa razão, o sujeito fica defensivo e querelan- do ele é “sincrético” (em cujo caso, toma a “parte te) ou narcisistas (tudo o que ele faz, ou pretende como se fosse o todo”. 4) Poder enfrentar as expe- vir a fazer, deve ter o selo da perfeição, de forma riências emocionais difíceis, sem fugir delas pelas que ele passa a vida num constante estado de so- inúmeras formas evasivas e evitativas. 5) Estabe- bressalto, apavorado com o medo do fracasso), e lecer conexões, correlações e confrontos entre fa- assim por diante. Assim, o analista da atualidade tos (por exemplo, insights parciais) presentes e tem a tarefa de promover a “dessignificação” das passados, sentimentos com outros sentimentos, significações patogênicas e possibilitar ao pacien- idéias com idéias, sentimentos com idéias, etc, etc. te a obtenção de “neo-significações”, desintoxi- 6) Sobretudo na psicanálise contemporânea, onde cadas dos significados que lhe foram inoculados. abundam os transtornos narcisistas, os analistas 72 DAVID E. ZIMERMAN privilegiam o aspecto de o paciente poder pensar pacíficas com outras turbulentas, superfícies ame- acerca da distância que vai entre o seu ego ideal, o nas e montanhas íngremes, climas tórridos e zonas ideal do ego e o ego real. glaciais, etc.,etc. Por essa razão, Bion insiste na Em relação à situação analítica, no que diz res- necessidade de que o analista consiga sintonizar peito ao acesso às verdades, principalmente a par- com qual dimensão psíquica o paciente está-se re- tir da concepção de Bion sobre o “vínculo do co- lacionando com ele num determinado momento da nhecimento”, esse aspecto adquire uma expressiva análise (é com a “parte psicótica” ou a “neuróti- relevância na psicanálise contemporânea, porquan- ca”?, a da “criança” ou a do “adulto”?, a que cola- to ele possibilita a análise dos traços caracteroló- bora ou a parte que boicota?, e assim por diante). gicos baseados nas múltiplas formas de mentiras e Meltzer, por sua vez, em Exploración del falsidades, assim propiciando a que o analista tra- autismo (1975), no qual trata do problema da “ade- balhe na construção de que o paciente adquira não sividade”, descreve quatro tipos de espaço mental a posse das verdades, mas de uma personalidade que ele denomina dimensionalidade da mente, sen- de “pessoa verdadeira”, única forma de um sujeito do que cada um dos respectivos espaços guarda encontrar a “liberdade” para pensar e ser quem real- um desenvolvimento próprio e características es- mente ele é. pecíficas. Assim, ele considera o espaço unidimen- sional, como aquele no qual o tempo e o espaço se fundem numa dimensão linear, não se distinguem MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO PSIQUISMO entre si, e não permitem a formação de memória e muito menos do pensamento. Esse tipo de espaço Na atualidade, é consensual entre os analistas primitivo – característico dos estados autísticos – que não há uma uniformidade no psiquismo – tan- é comparado por Meltzer a uma ameba, que comu- to do paciente como do terapeutas – isto é, a mente nica-se com o mundo unicamente através da emis- de cada um deles comporta distintos aspectos que são de pseudópodos (vale dizer, no caso dos au- podem ser bem distintos entre si, por vezes pare- tistas, de pseudópodos mentais). O espaço bidi- cendo ser absolutamente contraditórios ou em opo- mensional, característico da “identificação adesi- sição, ou simplesmente representam várias dimen- va”, não vai além de um contato – de superfície – sões em que o psiquismo pode funcionar, inclusive do ego do sujeito, com outras “superfícies” de pes- de forma harmônica. soas necessitadas, que são valorizadas somente pelo Bion é um dos autores que mais enfatiza essa que elas gratificam ou frustram. O espaço mental multidimensionalidade. Assim, ao referir-se à pes- tridimensional é aquele no qual predominam as soa do analista, ele afirma que “no consultório ele identificações projetivas, o que possibilita a fanta- tem que ser uma espécie de poeta, artista, ou cien- sia do sujeito de “entrar e sair de dentro do obje- tista, ou um teólogo (1973, p.40). “Ser (being) é to”, assim definindo um “tempo oscilatório” e um mais importante do que conhecer, entender ou di- esboço de espaço próprio. Essas identificações – zer”. Da mesma forma, em relação à própria psica- adesivas, projetivas e introjetivas – quando usadas nálise, Bion postula que a mesma se processa em em excesso, impedem a emancipação do objeto e três dimensões, sendo as do domínio dos sentidos, determinam os quadros de “pseudomaturidade”, no dos mitos e o da paixão, assim como ele também qual tais indivíduos sentem uma inautenticidade. propôs que a psicanálise pode ser entendida a par- O espaço tetradimensional é concebido por Meltzer tir de três vértices: matemático-científico; estéti- como aquele no qual, saindo do narcisismo e pas- co-artístico; místico-religioso, aos quais, creio, po- sando satisfatoriamente pela posição depressiva, o demos acrescentar um quarto vértice, o existenci- sujeito adquire uma discriminação de espaço e tem- al-pragmático, tal foi a ênfase que Bion deu à im- po, reconhece a existência e autonomia do outro, portância das experiências emocionais sofridas na de modo que a mente encontra um espaço que lhe prática analítica. permite perceber, conhecer e pensar. Mais especificamente em relação à pessoa do Seewald, em seu importante trabalho, que cons- paciente, Bion utiliza uma metáfora para a sua con- titui o capítulo 39 do presente livro, embora par- cepção de múltiplas dimensões do psiquismo hu- tindo de um outro vértice, diferente daquele de mano: ele compara a mente com um mapa-múndi, Meltzer, também descreve quatro dimensões da sendo que, da mesma forma que esse, o psiquismo mente, sendo que essa concepção, tal como a des- também sofre transformações com o correr do tem- creve, representa ser bastante relevante na prática po; existem pontos cardiais psíquicos que apon- analítica contemporânea. tam para uma direção ou outra; coexistem zonas FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 73

FENÔMENO DA NEGATIVIDADE por Freud, os fenômenos resistenciais, os transfe- renciais, contratransferenciais, as formas de co- Ainda dentro da compreensão de que a mente municação, interpretação, actings, aquisição de não comporta uma única dimensão e, muito menos, insights, elaboração e critérios de cura, ficam cla- que os fatos psíquicos sigam uma ordem linear, ou, ramente evidenciadas as profundas mudanças da tampouco, obedeçam ao princípio de causa-efeito, técnica psicanalítica da psicanálise contemporânea é importante consignar que existe no psiquismo o comparativamente com a dos períodos anteriores. fenômeno da negatividade. A mesma alude ao fato Também está havendo uma maior liberdade em de que os opostos e contraditórios não são exclu- relação à introdução de eventuais “parâmetros” dentes entre si, pelo contrário, eles são includentes, técnicos (desde que o analista tenha absoluta segu- sendo que o arranjo dos contrários é que propicia a rança de que a mesma não vá afetar a necessária formação de unidade, de um todo integrado (seria preservação da essência básica do setting). Pode importante se, na sua atividade interpretativa, no servir como exemplo disso a crescente utilização, lugar do costumeiro emprego da conjunção alterna- por parte de muitos psicoterapeutas, do recurso téc- tiva “ou”, os analistas empregassem prioritariamente nico que pode ser denominado como intervenção a conjunção copulativa “e”). vincular, e que consiste na eventualidade de o ana- Dizendo com outras palavras: uma coisa não lista, no curso da terapia que obedece ao método pode existir sem que haja ao mesmo tempo uma analítico, durante um determinado período, fazer “não coisa”, de modo que a toda matéria corres- reuniões conjuntas do seu paciente com um cônju- ponde uma “antimatéria”, o bonito só existe por- ge, filho, pais, etc., com a finalidade de poder ob- que contrasta com o feio, o branco com o preto, servar melhor como se processa a dinâmica das con- etc., etc. A propósito do “jogo dos contrários” figurações vinculares. Parece que o emprego des- exemplificado com o “branco” e o “preto”, vale a se método, em algumas situações muito especiais, metáfora de que, tomados isoladamente, o branco possibilita sensíveis vantagens, como, por exem- ou o preto não nos diriam nada e provocariam uma plo, poder trabalhar mais eficazmente com o im- monotonia entediante; no entanto, eles podem ser portante e freqüentíssimo problema dos “mal-en- arranjados de uma forma tal que componham um tendidos”, resultantes dos distúrbios da comunica- tabuleiro de xadrez, que pode ter uma excelente ção, dentre tantas outras possibilidades mais. utilização. É desnecessário frisar que estamos nos Todos os aspectos que neste capítulo aparece- referindo aos “brancos” e “pretos”, entre tantos ram, não mais do que superficialmente apenas men- outros pares equivalentes que compõem o psiquis- cionados, serão detida e separadamente descritos mo de nossos pacientes. nos respectivos capítulos específicos. Porém, a tí- tulo de exemplificação das aludidas transformações, cabe mencionar o quanto certos fenômenos de ocor- NA PRÁTICA ANALÍTICA rência inevitável no campo analítico, que até há algum tempo atrás eram considerados nocivos para A psicanálise contemporânea prossegue conser- uma boa marcha da análise, hoje são entendidos e vando os ideais e os princípios básicos concebidos utilizados pelo analista como uma importante fon- por Freud (noção do inconsciente, pulsões, ansie- te de acesso a regiões desconhecidas do inconsci- dades, fenômenos do campo analítico, etc.), em- ente e, principalmente, como um meio de comuni- bora apresente profundas transformações nas con- cação dos transtornos do self e das inter-relações cepções teóricas, notadamente nas que dizem res- humanas. peito ao desenvolvimento emocional primitivo. Assim, a “resistência”, que durante muito tem- Igualmente, existem mudanças na forma de com- po foi interpretada como uma oposição à análise, preender os pacientes, como vimos na amostragem hoje, embora com a ressalva de que em alguns ca- deste texto e, conseqüentemente, também existem sos as resistências se organizam de uma forma per- sensíveis modificações nos aspectos técnicos. manentemente obstrutiva ao processo analítico, de Assim, desde os critérios de seleção dos pacien- modo geral, é considerada bem-vinda ao campo tes para a indicação de análise como sendo o trata- analítico, porquanto se constitui como uma exce- mento de escolha para uma determinada pessoa, lente bússola que permite ao analista perceber como passando pelas características das combinações do funciona o ego do paciente no mundo da realidade contrato analítico e levando em conta os demais exterior, do que, porque, para que e como, ele de- aspectos fundamentais do campo analítico, como fende-se, às custas de uma automutilação de suas o setting, a observância das regras técnicas legadas capacidades. 74 DAVID E. ZIMERMAN

O mesmo poderia ser dito em relação aos de Bion, no sentido de que, antes de uma resolução actings do paciente, suas somatizações, manifesta- única dos conflitos que provocam sintomas e trans- ções agressivas, falsificações, etc, etc. A “transfe- tornos caracterológicos, em um continuado proces- rência”, virtualmente, é considerada indissociada so evolutivo da análise para um progressivo estrei- da contratransferência, sendo que, atualmente, mais tamento da conduta neurótica do paciente, tal como importante do que simplesmente a qualidade do o modelo de um funil, o êxito analítico deveria, afeto é a observação dos efeitos contratransferen- ainda segundo Bion, ser pautado por crescentes ciais, assim como é igualmente relevante a percep- aberturas da mente, que ele denomina “um univer- ção dos, nada raros, conluios resistenciais/contra- so em expansão”, sendo que o modelo que a mim resistenciais, transferenciais-contratransferenciais. ocorre é o de um “funil invertido”, que alargue cada Da mesma forma, as “interpretações” do analista, vez mais as capacidades do paciente para pensar, na atualidade, não são tanto medidas pelo acerto conhecer, ser autêntico, livre – inclusive nas áreas do conteúdo delas, mas muito mais pela sua eficá- dos prazeres e lazeres – e construir um espaço men- cia, e isso implica levar em conta, acima de tudo, o tal para um exercício permanente de auto-análise, destino que as interpretações tomam na mente do pela obtenção, na análise, de uma “função psica- paciente. nalítica da personalidade”. O critério de “cura” também vem sofrendo al- guma transformação, de acordo com a proposição FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 75

PARTE 2

Teoria

CAPÍTULO rio distingui-lo de instinto (tradução do termo instinkt, que também aparece na obra de Freud, embora poucas vezes), o qual designa mais expli- citamente fixos padrões hereditários de comporta- mento animal, típicos de cada espécie. Na literatu- 5 ra psicanalítica, eventualmente a noção de “pulsão” pode aparecer com a terminologia de “impulsos” ou de “impulsos instintivos”. Inicialmente, Freud enunciou as pulsões do ego (também denominadas como de “autopreservação”, A Estrutura e o Funcionamento cujo protótipo é o da “fome”) e as sexuais (ou de “preservação da espécie”), sendo que, após suces- do Psiquismo sivas modificações, mais precisamente a partir do clássico trabalho Além do princípio do prazer, de 1920, ele estabeleceu de forma definitiva a dualida- de de Pulsões de Vida (ou Eros) e Pulsões de Mor- O simples título deste capítulo dá uma idéia da te (ou Tanatos), que, em algum grau, coexistem enorme abrangência conceitual que ele permitiria fundidos entre si. – virtualmente toda a psicanálise –, caso a preten- Segundo Freud (1915), a pulsão é conceituada são fosse a de uma completude, o que, praticamen- como sendo “o representante psíquico dos estímu- te, demandaria um livro especial. Destarte, o pro- los somáticos” e os seus componentes são os se- pósito do presente texto é eminentemente de natu- guintes: 1) Fonte (no alemão original é quelle) diz reza pedagógica, tentando estabelecer uma sínte- respeito ao órgão, partes do corpo ou zonas eró- se, quase que à moda de um glossário, a fim de genas, de onde procedem os estímulos. 2) Força situar aquele leitor que ainda não esteja completa- (drang) refere-se a uma quantificação da energia mente familiarizado com as, essenciais, concepções que busca descarga motora, sendo que esse aspec- genético-dinâmicas que fundamentam a metapsico- to da pulsão é o que fundamenta o ponto de vista logia, teoria, técnica e prática da psicanálise. Por “econômico”. 3) Finalidade (ziel) consiste na ne- esta razão, a maioria dos conceitos deste capítulo cessidade de uma “satisfação” imediata, a qual, aparece repetida em diversos outros capítulos. originalmente, só pode ser obtida por meio de uma “descarga” motora ou pela eliminação do estímulo procedente de alguma fonte. 4) Objeto (objekt) PRINCÍPIOS BÁSICOS DE FREUD constituía-se para Freud “naquilo em relação ao qual ou pelo qual a pulsão é capaz de atingir a sua O termo “princípio” é bastante utilizado nas ciên- finalidade”. Como derivado direto desses quatro cias em geral, e designa um “ponto de partida” para componentes essenciais da pulsão, deve ser acres- a construção de um sistema ideativo-cognitivo que centada uma quinta característica, a do investimento mantenha uma certa lógica. Pode-se depreender a pulsional (bezetzung), que foi traduzida para o in- existência de vários e distintos princípios que este- glês como cathexis e para o portugês como catéxis jam agindo simultaneamente e interagindo entre si, ou catexia. O significado original da palavra embora cada um deles mantenha uma autonomia bezetzung é “ocupação”, e como tal é entendido conceitual, com regras e leis específicas. No campo pelos autores da atualidade. da psicologia e da psicopatologia, rastreando histo- Embora, pela sua especial importância, o tema ricamente as então revolucionárias concepções de “pulsões” constitua um capítulo específico (o de Freud, podemos enumerar os seguintes princípios número 9), é útil acrescentar neste resumo mais dois do psiquismo: aspectos: um é o de que um mesmo “objeto”, par- cial ou total, pode servir ao mesmo tempo a várias pulsões, como podemos depreender do uso da Existência das Pulsões “boca”, que tanto pode servir para a satisfação das necessidades alimentares como também para aque- las eróticas ou agressivas, e assim por diante. O A palavra pulsão (empregada por Freud com o segundo aspecto é que a noção de “objeto” não deve termo original alemão trieb) alude a necessidades ficar restrita à presença de algo ou de alguém que biológicas, com representações psicológicas, que está alheio ao indivíduo; assim, o próprio corpo urgem em ser descarregadas, sendo que é necessá- 78 DAVID E. ZIMERMAN pode servir ao mesmo tempo como uma “fonte” e psiquismo tende a reproduzir o mesmo recurso que como um “objeto” da finalidade pulsional, tal como a medicina estuda sob o nome de “princípio da Freud genialmente concebeu em seus estudos so- homeostase biológica”, isto é, existe a necessidade bre o narcisismo. da busca de um perfeito equilíbrio das tensões or- gânicas provenientes de distintas partes do próprio organismo humano. Da mesma maneira, o “princí- Princípios do Prazer e da Realidade pio da constância” visa à obtenção da menor ten- são psíquica possível, tanto por intermédio do re- Originalmente, o “princípio do prazer” era de- curso da evitação e afastamento da fonte de estí- nominado por Freud “princípio do prazer-despra- mulos desprazerosos, como também pela via de zer”, pelo fato de que ele significava que o incipien- uma “descarga” que possibilite uma nivelação equi- te aparelho psíquico tendia a livrar-se, descarre- libradora. gando a todo e qualquer estímulo que provocasse O “princípio da constância” também é conhe- desprazer, visando reduzir ao mínimo a tensão cido como “princípio de Nirvana”. No entanto, cabe energética (este último aspecto alude ao “princípio apontar uma pequena diferença entre o que ambos da constância”, descrito mais adiante). Posterior- designam. Assim, enquanto o primeiro deles faz mente, Freud descreveu que os aumentos da ten- referência a uma simples diminuição da tensão psí- são psíquica poderiam ser prazerosos, como seria quica, o princípio de Nirvana alude a uma diminui- o caso de um acúmulo e de uma retenção temporá- ção de toda excitação ao zero absoluto, o que, de ria da excitação sexual. fato, vem a configurar a “pulsão de morte” segun- O “princípio do prazer” alude essencialmente do a concepção original de Freud, e que mais pre- ao significado de que a catéxis pulsional demanda cisamente refere-se a uma volta da célula viva ao uma gratificação imediata, sem minimamente le- anterior estado inorgânico, portanto, a um estado var em conta a realidade exterior. O melhor exem- de morte. plo disso é a formulação de Freud sobre a “satisfa- ção alucinatória dos desejos”, pela qual o bebê substitui o seio faltante pela sucção do seu próprio Princípio da Compulsão à Repetição polegar. Outros exemplos equivalentes, nos esta- dos adultos, podem ser os que constituem os deva- O próprio Freud não se sentia à vontade com a neios, fantasias inconscientes, crenças ilusórias, sua original postulação do “princípio do prazer”, produções delirantes, impulsividade, etc. porquanto o mesmo não conseguia explicar-lhe No entanto, essa satisfação mágica e ilusória satisfatoriamente os fenômenos psíquicos repetiti- sempre acabará sendo frustrante e decepcionante vos de natureza não-prazerosa, que ele observava porque ela não suporta as exigências e necessida- com grande freqüência nos casos de sonhos angus- des da realidade, como é, por exemplo, o caso de tiosos, nos atos-sintomas masoquistas, nas neuro- uma fome real que fatalmente não se satisfará com ses traumáticas, principalmente nessas últimas com a substituta sucção do polegar, o que vem a deter- o volumoso surgimento das “neuroses de guerra” minar a instauração do “princípio da realidade”. advindas no curso da Primeira Guerra Mundial de Freud descreveu o surgimento de ambos os 1914-18. De forma análoga, ele também percebia princípios de uma forma sucessiva e seqüencial, que as crianças repetem jogos, brincadeiras e rela- porém, na atualidade, principalmente a partir de tos de estórias como uma tentativa de elaborar ati- Bion, considera-se que de alguma forma os “prin- vamente aquilo que elas sofrem passivamente, cípios do prazer e o da realidade” estão sempre como pode ser algum forte susto traumático, a per- presentes, de forma simultânea, e interagem ao lon- da de alguma pessoa importante, etc. go de toda a vida, mesmo que, no adulto, as de- Assim, Freud constatou que essa compulsão mandas imediatistas e mágicas do princípio do pra- (zwang) repetitiva procedia de uma intensa força zer possam estar ocultas. provinda do interior do indivíduo e que estava si- tuada “além do princípio do prazer”, sendo que o amadurecimento dessa idéia culminou em 1920, em Princípio da Constância cujo trabalho ele postulou a existência de uma “pulsão de morte”, como já foi referido. Com essa Ainda como uma decorrência direta da neces- concepção metapsicológica, Freud conjeturou que sidade de livrar-se dos estímulos desprazerosos, a pulsão de morte repete-se de forma compulsória quando está dominado pelo princípio do prazer, o como uma forma primacial de fazer o organismo FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 79 vivo voltar ao estado inorgânico anterior, tal como ta maneira, do ponto de vista da observação objeti- está contido na sentença bíblica de “...vens do pó e va, o bebê está em interação com a mãe, enquanto ao pó voltarás”. Conquanto Freud tivesse procura- que do ponto de vista desse bebê, a mãe não é mais do fundamentar essa sua concepção da pulsão de do que um prolongamento dele, e basta emitir um morte por meio de especulações relativas a desen- “pseudópodo mental” que ele conseguirá fagocitar volvimentos de ordem biológica, o certo é que des- tudo o que necessita, porque “nessas condições tudo de então, e até os dias atuais, os analistas dividem- é uma posse exclusiva dele mesmo”. se entre os que aceitam e consideram essa postu- O narcisismo secundário, por sua vez, como o lação como importante, inclusive para a prática ana- seu nome indica, alude a uma espécie de refluxo lítica (entendimento do masoquismo primário, por da energia pulsional, a qual, depois de ter investi- exemplo), enquanto outros refutam-na totalmente. do e “ocupado” os objetos externos, sofre um desen- vestimento libidinal, quase sempre devido a fortes decepções com os objetos externos provedores, e Narcisismo Primário e Secundário retornam ao seu lugar original, o próprio ego. A maioria dos autores posteriores a Freud não Embora Freud já viesse lançando algumas idéias encontra vantagem alguma em manter-se a divisão daquilo que ele viria a conceituar como “narcisis- entre narcisismo primário e secundário, pois, na mo”, tal como aparece em Leonardo (1910), foi prática analítica, ambos são indissociáveis e con- em seu importantíssimo trabalho Sobre o narci- fundem-se entre si. Aquilo que, sim, pode ser dito sismo, de 1914, que ele estabeleceu de forma con- com absoluta convicção é que o “narcisismo” ocu- sistente e categórica os fundamentos metapsicológi- pa um espaço crescentemente importante na psica- cos dessa, então revolucionária, concepção de nar- nálise, abrindo novos vértices de compreensão, cisismo. O interessante disso, vale lembrar, é que notadamente em dois aspectos: um é que ele deve esse clássico trabalho foi elaborado por Freud como ser compreendido no contexto de um eixo evolutivo uma réplica a Jung, que acabara de assumir uma entre os estados psíquicos pré-edípicos com os total dissidência do círculo freudiano e que con- edípicos, com as respectivas características espe- testava a teoria da sexualidade com o argumento cíficas de cada um, e com as delimitações e intera- de que essa teoria de Freud não poderia explicar as ções entre narcisismo e sexualidade edípica. O se- psicoses, tendo em vista que tais pacientes não de- gundo aspecto a ressaltar é que o cada vez maior monstravam interagir libidinalmente. Para contes- entendimento do narcisismo alargou as portas para tar esse desafio do desafeto Jung, Freud teve a ge- a análise de pacientes intensamente fixados ou nial centelha de conceber que o sujeito tomava o regredidos às primitivas etapas do narcisismo ori- seu próprio corpo como sendo ao mesmo tempo ginal. Pela importância que esse tema representa uma fonte e um objeto da libido sexual. para a prática da terapia psicanalítica, ele será me- Essa última concepção caracteriza o que Freud lhor estudado no capítulo 13 deste livro, que versa veio a conceituar como narcisismo primário, que sobre a “posição narcisista”. inicialmente ele postulou como sendo uma etapa evolutiva sucedendo uma anterior que ele denomi- nara como a do auto-erotismo. Posteriormente, no Masoquismo Primário e Sadismo entanto, ambas as denominações e conceituali- zações ficaram superpostas e igualadas entre si. Para Freud, até 1920, o sadismo fazia parte da A maioria dos autores considera que o protóti- pulsão sexual como uma espécie de “instinto de po mais fiel da “narcisismo primário” é o da vida domínio”, cujo objetivo seria o de ter a dominação intra-uterina. Assim, Freud concebia que nesse tipo e posse dos objetos, por meio do recurso de subme- de narcisismo haveria uma total indiferenciação tê-los à força. entre o ego – submetido e confundido com o id – O masoquismo, por sua vez, paradoxalmente, com a realidade exterior. A primeira estranheza que estaria visando a obtenção do prazer pelo desprazer, essa postulação sempre provocava nos estudiosos atendendo aos mandamentos internos da “pulsão refere-se ao fato óbvio de que o bebê não poderia de morte”, a qual, em algum grau e forma, sempre ignorar a mãe, porquanto ele depende vitalmente está presente e fusionada com a pulsão de vida. A da relação real com ela. Freud, antecipando-se a presença dessa inata pulsão de morte no interior essa questão, formulou a sua famosa metáfora de do psiquismo do sujeito é a responsável pela exis- que o “o corpo humano seria como uma ameba que tência do que Freud veio a denominar masoquis- se liga aos objetos pelos seus pseudópodos”. Des- mo primário, o qual, quando defletido para o exte- 80 DAVID E. ZIMERMAN rior, determina o surgimento do sadismo, que vir- meio de cada elemento do conteúdo latente é pos- tualmente sempre estaria ligado com a pulsão se- sível reconstruir uma rede de conexões que deter- xual. minam o sonho manifesto, tal como está contido O masoquismo secundário instala-se em um na sua famosa frase: “Todo sonho tem um umbigo segundo momento e a sua formação decorre de que conduz ao desconhecido do inconsciente”. Isso outros fatores, como aqueles associados às culpas, que acontece com os sonhos, de forma análoga com as correspondentes necessidades de castigos, ocorre com a formação de sintomas e todos os fe- como pode ser exemplificado com as autopunições nômenos da psicopatologia. (ou induzir a que outros o punam) determinados pela ação inconsciente de um superego tirânico e cruel. Séries Complementares Baseado na prática clínica, pode-se afirmar que o sadismo e o masoquismo coexistem simultanea- À medida que Freud foi percebendo e discri- mente, tanto intra como intersubjetivamente. As- minando os múltiplos e diferentes fatores genéti- sim, são freqüentíssimos os vínculos entre pessoas co-dinâmicos determinantes da normalidade e pa- que se configuram de maneira nitidamente sadoma- tologia do psiquismo, ele estabeleceu o seu con- soquística, às vezes de forma acintosa, e, outras ceito de séries complementares, que , complemen- vezes, de um modo muito dissimulado. Como tando o princípio do determinismo psíquico, serve exemplo ilustrativo, suponhamos um casal que es- de ponte entre os fatores endógenos – inatos e cons- tabelece entre si um convívio sadomasoquista, no titucionais – e os fatores exógenos, adquiridos. qual tanto pode acontecer que a cada um deles cabe A noção de “séries complementares” aparece de forma fixa e estereotipada a um desses dois pa- em Cinco leituras sobre psicanálise (1910), po- péis, como também pode suceder que eles alter- rém foi em 1916, em uma de suas Conferências nem-se em momentos diferentes, qual uma gan- introdutórias (a de n° XXII, p. 406), que Freud gorra, nos papéis de quem será o sádico e a quem define com maior clareza e consistência essa con- caberá a função de masoquista, e vice-versa, com ceituação de “séries complementares”, também uma alta possibilidade de nunca saírem desse cír- conhecido por equação etiológica, porquanto o que culo vicioso interminável. sobretudo fica enfatizado é o fato de que os fatores em jogo são inerentes à condição humana e perma- necem interagindo entre si, de forma permanente e Princípio do Determinismo Psíquico em infinitas formas de combinações. Assim, Freud descreve três séries: 1) Os fatores inatos, heredo- Este princípio alude ao fato de que na mente constitucionais, inclusive os que se desenvolvem nada acontece ao acaso ou de um modo fortuito, durante a vida intra-uterina. 2) As precoces expe- sendo que cada acontecimento psíquico é determi- riências infantis. 3) Os fatores ambientais atuantes nado por outros que o precederam, de tal sorte que na atualidade do sujeito. A conjunção das duas pri- não há descontinuidade na vida mental. meiras séries resultam em um estado de “disposi- Esse princípio fica melhor compreendido e ção” (anlage) que determina a formação de “pon- complementado com o modelo da multicausali- tos de fixação” no psiquismo, e que, interagindo dade, com o qual Freud, indo além das causas linea- com a terceira série – representada pelas frustra- res responsáveis pela determinação de um dado ções impostas pelos fatores externos reais, desen- sintoma, postula a idéia de que “várias causas pro- cadeiam e produzem os mais diversos quadros da duzem um mesmo efeito”(creio que podemos acres- psicopatologia. centar que muitas vezes “uma mesma causa pode produzir vários e diferentes efeitos”). Dizendo com outras palavras, mesmo aquilo que possa parecer Processo Primário e Processo Secundário ser uma “casualidade” está fortemente determina- do por uma múltipla “causalidade”. Freud postulava que o inconsciente é consti- Posteriormente, a partir de A interpretação dos tuído por uma energia psíquica proveniente das pul- sonhos, de 1900, Freud considerou que, mais do sões, as quais, operando conjuntamente com as “re- que várias causas produzindo o efeito do fenôme- presentações” que se formam no ego, caracterizam no do sonho, o que acontece é que existe um siste- esses dois tipos de processamento psíquico. O pro- ma diferenciado (processo primário, inconsciente) cesso primário caracteriza-se por um fácil deslo- que irá gerar efeitos conscientes, de modo que por camento e descarga da libido. As várias cadeias de FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 81 representações com os respectivos significados in- MODELOS DE FUNCIONAMENTO conscientes produzem aquilo que se denomina DO APARELHO PSÍQUICO como condensação, ou seja, numa representação única, como pode ser um determinado sintoma, Teoria do Trauma podem confluir todos os significados de uma ca- deia associativa, que, por sua vez, podem produzir Vale recordar que a primeira concepção de novos “deslocamentos” e assim sucessivamente, tal Freud sobre a etiologia da psicopatologia, tal como como, por exemplo, é possível observar nitidamente aparece em Comunicação preliminar (1893), di- nos sintomas fóbicos. zia respeito à ocorrência de um trauma sexual real- Assim, já em 1895 (Projeto...) Freud descrevia mente acontecido nos primórdios da infância, sob um funcionamento primário do aparelho neurônico, a forma de algum abuso sexual praticado pelo no qual a energia psíquica circula de forma livre, genitor e que estava reprimido no inconsciente. Ele de forma que ela tende a descarregar-se imediata e próprio deu-se conta de que as coisas não se passa- totalmente, tal como acontece no “princípio do pra- vam tão simplesmente assim, e, mesmo no caso de zer”. A partir de A interpretação dos sonhos (1900), suas pacientes histéricas, que constituíam virtual- Freud começa a elaborar com maior consistência a mente a totalidade de sua clínica e que lhe confir- noção do processo primário, com uma energia li- mavam os referidos abusos que elas teriam sofri- vre, deslocável e condensada, com inscrição de sig- do, Freud percebeu que tais relatos nem sempre nificações (as quais, alguns anos mais tarde ele veio condiziam com a realidade dos fatos, mas sim que a conceituar como “representação-coisa”), e que eles apareciam distorcidos pelas “fantasias incons- seguem as leis do inconsciente, ou seja, onde não cientes” que, genialmente, ele foi impelido a con- há lógica referente à noção de tempo, espaço, con- ceber. A concepção da “teoria do trauma” foi, cada tradições, etc. vez mais, perdendo a sua importância na psicanáli- No processo secundário, a energia psíquica está se, porém, nos últimos tempos, ela volta a ganhar presa e circula de forma mais compacta, sempre uma relevância, não unicamente para a explicação ligada a alguma representação psíquica, mais pre- das “neuroses traumáticas” e das “neuroses atuais”, cisamente, àquelas que se situam no sistema pré- mas também para o problema dos traumas primiti- consciente-consciente, logo, com aquilo que Freud vos realmente acontecidos – e não somente os se- denomina “representação-palavra”. Em resumo, xuais – que podem ter produzido um intenso esta- enquanto no processo primário as energias fluem do psíquico de “desamparo”, tal como será explici- livremente sem encontrar barreiras, porquanto se- tado num capítulo específico, (o de número 8). guem as leis que regem o inconsciente e o princí- Uma vez que essa “teoria do trauma” não con- pio do prazer, no processo secundário, as energias seguia explicar a complexidade que de forma cres- psíquicas, com as respectivas significações e re- cente a psicanálise vinha enfrentando, Freud for- presentações, operam diretamente ligadas ao prin- mulou a existência de dois princípios fundamen- cípio da realidade e determinam uma lógica do pen- tais: o da multideterminação e o da existência de samento. um inconsciente – a partir dos quais ele passou a Finalmente, cabe acrescentar que ambos os pro- buscar modelos (figuras metafóricas que permitem cessos foram descritos por Freud numa seqüência uma abstração a partir de uma imagem concreta, e de surgimento linear e temporal, o secundário su- vice-versa), teorias (um conjunto de hipóteses que cedendo o primário. Na atualidade, a partir de Bion, podem vir a ser confirmadas cientificamente, ou devemos considerar que ambos os processos estão empiricamente, pela prática clínica) e concepções sempre presentes na mente de qualquer sujeito, de metapsicológicas (especulações imaginativas que forma simultânea e numa conjunção constante en- não têm como ser confirmadas com um definitivo tre si, sendo que a predominância do funcionamento grau de certeza, porém que permitem um impor- mental do processo primário corresponde no adul- tante campo de investigações). to ao que esse autor denomina como “parte psicótica A partir da conjunção desses fatores, Freud da personalidade”, enquanto a predominância do criou a concepção da existência de um “aparelho processo secundário equivale à “parte não-psicótica psíquico”, que ele concebeu tanto do ponto de vis- (ou “neurótica”) da personalidade”. ta da “economia” das energias psíquicas, como tam- bém por meio de “modelos”, como o “topográfi- co” e o “estrutural”. 82 DAVID E. ZIMERMAN

Ponto de Vista Econômico Modelo Topográfico (1ª Tópica)

A “pulsão” – representante psíquico das exci- Freud empregou a palavra “aparelho” para ca- tações provenientes do interior do corpo e que che- racterizar uma organização psíquica dividida em gam ao psiquismo – é postulada por Freud como sistemas, ou instâncias psíquicas, com funções es- um elemento quantitativo da economia psíquica, pecíficas para cada uma delas, que estão interliga- segundo a sua hipótese que explicaria o funciona- das entre si, ocupando um certo lugar na mente. mento do aparelho psíquico a partir dos modelos Em grego, “topos” quer dizer “lugar”, daí que o mo- científicos da física mecanicista da sua época. As- delo tópico designa um modelo de lugares, sendo sim, os processos mentais consistiriam na circula- que Freud descreveu a dois deles: a 1ª tópica é co- ção e repartição de uma energia pulsional (catéxis), nhecida como Topográfica e a 2ª, como Estrutural. de grandeza variável, e que sofre a ação de uma A noção de “aparelho psíquico”, como um con- contracatéxis. Esse último conceito de “contracar- junto articulado de lugares – virtuais – surge mais ga” aparece no trabalho O inconsciente (1915) e claramente na obra de Freud em A interpretação nele Freud mostra que essas energias contracate- dos sonhos (1900), no qual, no célebre capítulo 7, xizadas (mecanismos defensivos) são permanen- ele elabora uma analogia do psiquismo com um tes e criam “resistências” que, da mesma forma que aparelho óptico, de como esse processa a origem, as pulsões, também são inconscientes. transformação e o objetivo final da energia lumi- A maior crítica que se faz contra esse ponto de nosa. vista econômico decorre justamente do fato de que Nesse modelo tópico, o aparelho psíquico é ele foi elaborado por Freud a partir daquelas con- composto por três sistemas: o inconsciente (Ics), o cepções fisicalistas que surgiram no final do sécu- pré-consciente (Pcs) e o consciente (Cs). Algumas lo XIX, quando, além dos princípios e leis da hi- vezes, Freud denomina a este último sistema de sis- dráulica, também ocorreram a descoberta da ele- tema percepção-consciência tricidade e do neurônio, de modo que Freud esta- O sistema consciente tem a função de receber beleceu a concepção de que uma energia física per- informações provenientes das excitações prove- corria as vias nervosas neuronais, tal como a ener- nientes do exterior e do interior, que ficam regis- gia elétrica percorre pelos fios, sendo que em al- tradas qualitativamente de acordo com o prazer e/ gum momento de sua obra ele chegou a evidenciar ou, desprazer que elas causam, porém ele não re- a sua esperança de que no futuro a energia psíqui- tém esses registros e representações como depósi- ca poderia vir a ser quantificada. Penso que, mes- to ou arquivo deles. Assim, a maior parte das fun- mo restrito aos conhecimentos da época, esses per- ções perceptivo-cognitivas-motoras do ego – como mitiriam que Freud pudesse estender a sua concep- as de percepção, pensamento, juízo crítico, evoca- ção para o fato da “potencialidade” da energia, ou ção, antecipação, atividade motora, etc., processam- seja, assim entendo, da sua transformacionalidade, se no sistema consciente, embora esse funcione in- tal como acontece, por exemplo, com a metáfora timamente conjugado com o sistema Inconsciente, de uma queda d’água que tanto pode arrasar uma com o qual quase sempre está em oposição. lavoura próxima, como também pode dar vida e crescimento à mesma se ela for adequadamente dre- nada; ou ela pode-se transformar em energia elétri- Pré-Consciente ca, e daí em térmica, luminosa, etc. O modelo mecânico quantitativo empregado por Esse sistema foi concebido como estando arti- Freud está amplamente superado na atualidade por culado com o consciente e, tal como surge no Pro- outros modelos, como o da cibernética, pelo qual jeto..., onde ele aparece esboçado com o nome de uma energia mínima e não-específica pode desen- “barreira de contato”, funciona como uma espécie cadear desproporcionais reações em cadeia e de de peneira que seleciona aquilo que pode, ou não, efeitos retroativos; ou o modelo da moderna física passar para o Consciente. quântica, que desvenda os segredos subatômicos Ademais, o pré-consciente também funciona num campo onde uma mesma matéria, conforme como um pequeno arquivo dos registros, de modo as condições do observador, tanto pode manifes- que a ele cabe sediar a fundamental função de con- tar-se como “onda” ou como “partícula”. Não obs- ter as “representações-palavra” (conforme Freud, tante isso, como antes foi assinalado, o modelo 1915), que consiste num conjunto de inscrições econômico volta a ganhar importância na teoria e mnêmicas de palavras ouvidas e de como foram prática da psicanálise. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 83 significadas pela criança. Essa formação de “re- que a palavra “estrutura” significa um conjunto de presentação-palavra” é diferente da “representa- elementos que separadamente tem funções especí- ção-coisa”, porquanto esta última opera no incons- ficas, porém que são indissociados entre si, inte- ciente e suas inscrições não podem ser nomeadas ragem permanentemente e influenciam-se recipro- ou, tampouco, lembradas voluntariamente, enquan- camente. Ou seja, diferentemente da 1ª Tópica, que to a característica mais marcante do sistema Pré- sugere uma passividade, a 2ª Tópica é eminente- Consciente é a de que os seus conteúdos, ao con- mente ativa, dinâmica. Essa concepção estrutura- trário do Inconsciente, podem ser recuperados por lista ficou cristalizada em O ego e o id (1923) e meio de um voluntário ato de esforço. consiste em uma divisão tripartide da mente em três instâncias: o id, o ego e o superego.

Inconsciente O ID Esse sistema designa a parte mais arcaica do aparelho psíquico, onde, por meio de uma herança Do ponto de vista topográfico, o inconsciente, genética, existem pulsões (quando essas nunca como instância psíquica, virtualmente coincide com emergem nos sistemas consciente e pré-conscien- o id, o qual é considerado o pólo psicobiológico da te, elas são consideradas como “repressões primá- personalidade, fundamentalmente constituído pe- rias”), acrescidas das respectivas energias e com las pulsões. Sob o ponto de vista econômico, o id é “protofantasias” (como Freud as denominava, mas a um só tempo um reservatório e uma fonte de ener- que também são conhecidas por “fantasias primiti- gia psíquica. Do ponto de vista funcional, ele é re- vas, primárias ou originais”). Além disso, o incons- gido pelo princípio do prazer; logo, pelo processo ciente também consiste num depósito de repres- primário. Do ponto de vista da dinâmica psíquica, sões secundárias, as quais chegaram a emergir sob ele abriga e interage com as funções do ego e com forma disfarçada no consciente (como nos sonhos os objetos, tanto os da realidade exterior, como ou sintomas) e voltam a ser reprimidas para o In- aqueles que, introjetados, estão habitando o supe- consciente. rego, com os quais quase sempre entra em confli- Como foi dito, uma função que opera no siste- to, porém, não raramente, o id estabelece alguma ma Inconsciente e que representa uma importante forma de aliança e conluio com o superego. repercussão na prática clínica é que ela contém as “representações de coisa”, as quais consistem em uma sucessão de inscrições de primitivas expe- O EGO riências e sensações provindas de todos os órgãos dos sentidos, como o da visão, audição, tato, etc., e A afirmativa de Freud de que “no princípio tudo que ficaram impressas na mente da criança numa era id” atesta que ele sempre concebeu que o ego época em que ainda não haviam palavras para desenvolve-se a partir do id, pela persistente in- nomeá-las. Funcionalmente, o Inconsciente opera fluência do mundo externo e da necessidade de segundo as leis do “processo primário” e, além das adatação ao mesmo. No entanto, desde M. Klein pulsões do id, esse sistema também opera muitas até os autores modernos, predomina amplamente a funções do ego, bem como do superego. convicção de que o ego não se forma desde o id, mas sim que ele é inato, tem energia própria e, ain- da que de forma rudimentar, desde recém-nascido Modelo Estrutural (2ª Tópica) o ego do bebê já está interagindo com a mãe. Como a maior parte dos mecanismos de defesa Insatisfeito com o “modelo topográfico”, por- era inconsciente, e como o ego era considerado a quanto esse não conseguia explicar muitos fenô- fonte e a sede dessas defesas, nada mais natural de menos psíquicos, em especial aqueles que emer- que Freud percebesse que o ego não era sinônimo giam na prática clínica, Freud vinha gradativamente de consciente e nem sequer se superpunha e con- elaborando uma nova concepção, até que, em 1920, fundia-se com este, mas, sim, que ele tinha raízes mais precisamente a partir do importante trabalho no inconsciente. Esta última afirmativa consitui o metapsicológico Além do princípio do prazer, ele maior fator diferenciador entre a 1ª e a 2ª Tópicas; estabeleceu de forma definitiva a sua clássica con- no entanto, sempre deve ficar claro que uma não cepção do aparelho psíquico, conhecido como invalida a outra; pelo contrário, elas comple- modelo estrutural (ou dinâmico), tendo em vista mentam-se. 84 DAVID E. ZIMERMAN

Ainda persiste a clássica definição de que o ego mite a conduta de cada sujeito (nesse caso, alguns é a principal instância psíquica, porquanto funcio- autores empregam a denominação de ego auxili- na como mediadora, integradora e harmonizadora ar), como também ele habitualmente refere a uma entre as pulsões do id, as exigências e ameaças do instância psíquica resultante da introjeção predo- superego e as demandas da realidade exterior. Po- minante de “objetos maus”, de características tirâ- rém, como propósito pedagógico, cabe considerar nicas e até cruéis, que sob diversas formas de amea- o ego como uma conjunção de três pontos de vista: ças obrigam o sujeito a submeter-se aos manda- 1) Como um aparelho psíquico, com funções es- mentos daquilo que ele pode ou não pode, deve ou senciais, na sua maior parte conscientes, para rela- não deve fantasiar, desejar, pensar, preferir, dizer, cionar-se adaptativamente com a realidade do mun- fazer e, sobretudo, ser. do exterior, como são, entre outras, as de percep- Ao longo de sua obra, Freud usou indistinta- ção, pensamento, memória, atenção, antecipação, mente os termos “superego”, “ego ideal” e “ideal discriminação, juízo crítico e ação motora. 2) Como do ego”, virtualmente como sinônimos. No entan- sede e fonte de um conjunto de funções mais com- to, a psicanálise atual fica muito enriquecida com plexas, na sua maior parte inconsciente, como é o uma sutil, porém necessária, diferença entre os con- caso da produção de angústias, mecanismos de ceitos específicos que cada um desses termos com- defesa, fenômenos de identificações e formação de porta, assim como também com outros termos símbolos. 3) Como sede de representações que correlatos que seguem abaixo, não obstante o fato determinam a imagem que o sujeito tem de si mes- de que todos eles continuem sendo apêndices do mo e que estruturam o seu sentimento de identida- superego clássico, uma espécie de “primos-irmãos” de e de auto-estima. dele. Assim, vale a pena discriminá-los separada- mente.

O SUPEREGO Superego Classicamente, essa instância psíquica é enten- dida segundo o significado da famosa frase de Freud Além dos aspectos descritos, o superego tam- de que “o superego é o herdeiro do complexo de bém se caracteriza por ser quase totalmente de ori- Édipo”, o que vem a significar que ele está consti- gem inconsciente, é composto e ditado pelos obje- tuído pelo precipitado de introjeções e identifica- tos internos; o seu maior efeito é o de ser um gera- ções que a criança faz com aspectos parciais dos dor de culpas, com as conseqüentes angústias e pais, com suas proibições, exigências, ameaças, medos, e a sua pressão excessiva no psiquismo é a mandamentos, padrões de conduta e o tipo de rela- maior responsável pelos quadros melancólicos e cionamento desses pais entre si. Além disso, é im- obsessivos graves prescindível levar em conta o aspecto da transgera- cionalidade, ou seja, o fato de que o superego dos pais do paciente, por sua vez, está identificado com Ego Ideal a de seus próprios pais, e assim por diante numa escalada de muitas gerações, sendo que isso inclui na formação do superego os valores morais, éti- Enquanto o superego é considerado o “herdei- cos, ideais, preconceitos e crenças ditadas pela cul- ro do complexo de Édipo”, o ego ideal constitui-se tura na qual o sujeito está inserido. como o “herdeiro do narcisismo primário”. Por A data de formação do superego é um assunto conseguinte, ele funciona no plano do imaginário, polêmico na psicanálise, pelo fato de que os segui- alicerçado na fantasia onipotente, ilusória, própria dores de Freud consideram que o seu início coinci- da indiscriminação com o outro (persistência da de com o Édipo clássico de Freud, ou seja, por volta fantasia de fusão diádica-simbiótica com a mãe), dos 4-5 anos, enquanto os autores kleinianos, res- em que “ter” é igual a “ser”, e vice-versa; por tudo paldados na clínica com pacientes psicóticos e aná- isso, o sujeito portador de um ego ideal predomi- lise com crianças, fazem retroagir aos primeiros nante no seu psiquismo, está sempre à espera do meses de vida a formação dos precursores do su- máximo de si mesmo, além de nutrir ideais virtual- perego, ligando-os à inata pulsão de morte. mente nunca alcançáveis. As identificações são O que me parece que ninguém põe em dúvida é primárias, do tipo adesivo ou imitativo, e o senti- o fato de que o termo “superego” tanto pode desig- mento de identidade resultante é o de falsidade. O nar uma necessária estrutura que normatize e deli- ego ideal costuma estar muito distante do ego real, porém, para manter a ilusão, o sujeito deve utilizar FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 85 fortes recursos defensivos de “negação”, como o “Super”-Superego da renegação (ou desestima) que é mais próprio dos estados narcísicos parciais (como nas perver- Trata-se de uma expressão empregada por Bion, sões), ou o da forclusão, presente nos estados com a qual ele designa uma conceituação que se narcísicos totais (psicoses). O sentimento predo- diferencia dos significados clássicos atribuídos ao minante frente as frustrações das expectativas do superego; pelo contrário, o “super”-superego de ego ideal, muito mais do que culpas como no supe- Bion (entendo que o nome “supra-ego” seria bas- rego, é o de humilhação. O ego ideal é conjugado tante apropriado) alude a uma área psíquica que é no presente indicativo: “Eu sou assim...”, o que in- própria do que ele chama de “parte psicótica da dica que transitoriamente no desenvolvimento emo- personalidade”, em cujos casos, o sujeito, indo além cional primitivo ele pode ser estruturante (como do “certo-errado”, “devo-não devo”, “bem-mal”..., está implícito no conceito de self grandioso, de cria a sua própria moral e as suas leis com as quais Kohut, 1973), porém a sua persistência é respon- ele afronta a realidade e que, a qualquer custo, ele sável por transtornos narcisistas de toda ordem. pretende impor aos demais.

Ideal do Ego Contra-Ego

É o herdeiro do ego ideal, projetado nos pais, Proponho esta denominação para designar uma somado às aspirações e expectativas próprias des- estrutura que age dentro do ego – e desde ele – e tes últimos. Dentro do sujeito, o ideal do ego é con- que se organiza como uma oposição às partes frá- jugado num tempo futuro e condicional: “Eu deve- geis, porém sadias e verdadeiras do ego, a partir rei ser assim, senão...”. As identificações são triá- do princípio desse contra-ego de que aquelas par- dicas e formam-se na triangularidade edípica, po- tes é que são as que levam o sujeito ao sofrimento rém ainda não se constituíram com uma constância e às humilhações. Ainda que a expressão “contra- objetal, nem com uma coesão de self e sentimento ego” pareça-me original (compulsei uma extensa de identidade bem definido. O ideal do ego pode bibliografia e nada encontrei assim), os conceitos ser um importante fator estruturante do psiquismo, nela embutidos não são originais e, sob nomes di- tanto nos primeiros movimentos identificatórios ferentes, com pequenas variantes, aparecem clara- (corresponde ao que Kohut denomina de imago mente definidos em muitos autores que estudaram parental idealizada) como também quando ele está essa organização contra-egóica. Assim, vale des- a serviço de um projeto de “um vir a ser”. No en- tacar: o ego sabotador, de Fairbairn (1941); a gan- tanto, a sua permanência em grau exagerado leva- gue narcisista, de Rosenfeld (1971); a organiza- rá o sujeito a construir um “falso self” para ção patológica, de Steiner (1981); o estado fachis- corresponder às expectativas dos outros, ou a qua- ta, de Bollas (1997). dros fóbicos e narcisistas. O sentimento predomi- O importante a destacar é que o contra-ego, de nante é o de vergonha diante de eventuais fracas- alguma forma, age aliado com os objetos sabota- sos. dores e infantilizadores do superego, além de mui- tas vezes até confundir-se com esse, porém ele fun- damentalmente está a serviço da manutenção do Alter Ego mundo das ilusões narcisistas, com a predominân- cia do que costuma ser chamado como “narcisis- Indica uma gemelaridade, ou seja, que um ou- mo destrutivo” ou “narcisismo de morte”. Esse as- tro (“alma gêmea”) é o portador de aspectos que o pecto relativo à “organização patológica” que cons- indivíduo não diferencia daqueles que são exclusi- titui o contra-ego está ganhando uma crescente im- vamente seus próprios. O termo “alter ego”, em portância na psicanálise e facilita o entendimento desuso na literatura psicanalítica, está voltando a de fenômenos como o das “reações terapêuticas ganhar um reconhecimento pelo fato dele caracte- negativas”, entre tantos outros mais. rizar o fenômeno do duplo (análogo ao da especularidade), o qual vem ganhando uma expres- siva relevância na teoria e prática psicanalítica, OUTROS MODELOS DA MENTE especialmente para a compreensão dos pacientes com distúrbios narcisistas. As considerações até agora tecidas neste capí- tulo estão essencialmente fundamentadas em Freud 86 DAVID E. ZIMERMAN e, embora continuem plenamente vigentes em sua dores de Hartmann (1947) relativos à área livre de maioria, foram em alguns aspectos refutadas, mo- conflitos e à autonomia primária, e juntamente com dificadas, ampliadas ou complementadas com pon- a sua equipe acrescentou as importantes concep- tos de vista originais por parte de outros autores. ções de etapas do desenvolvimento infantil que Como não cabe, aqui, um esmiuçamento aprofun- começam por um autismo normal (posteriormen- dado dessas diversas contribuições, vamos restrin- te, retiraram essa denominação porque passaram a gir-nos a uma pálida amostragem das mesmas, uni- acreditar que a interação afetiva com a mãe já está camente mencionando algumas delas, a partir dos presente no recém-nascido), seguem por uma fase principais autores. de simbiose, a qual sucede um estágio de diferen- M. Klein. Essa importante autora modificou em ciação, resultante das duas subetapas de separa- grande parte o paradigma psicanalítico edificado ção e individuação, seguidas de um período de trei- por Freud, por meio de concepções que permitem namento, até atingir um estado psíquico de cons- entender o funcionamento do psiquismo a partir da tância objetal, nos casos bem-sucedidos. presença de: ego inato; pulsão de morte (numa Kohut. Ele introduziu o conceito de um narci- conceitualização diferente de Freud, embora em- sismo estruturante, ao mesmo tempo que foi desca- pregando o mesmo termo); precoce angústia de racterizando a consagrada importância do comple- aniquilamento; primitivas relações com objetos xo de Édipo na determinação dos quadros da parciais; mecanismos de defesa muito primitivos psicopatologia. Tomando como ponto de partida o (com destaque para a extraordinária importância narcisismo como uma linha autônoma do desen- das “identificações projetivas”); a original concep- volvimento infantil, Kohut (1971) postulou a fun- ção de posições, a esquizoparanóide e a depressiva. damental importância da existência dos self-obje- Bion. Esse autor acreditava que a psicanálise tos (objetos parentais que são responsáveis pela “já tinha teorias demais” e por isso ele propunha estruturação do self), com as possíveis falhas um modelo de funcionamento psíquico que fosse empáticas dos mesmos (que determinam os futu- compreendido a partir dos vários arranjos ros distúrbios narcisísticos e requerem do analista combinatórios do que denominou “elementos da a capacidade de promover uma internalização psicanálise”, da mesma maneira que as sete notas transmutadora). Nessa mesma linha, Kohut con- musicais permitem compor músicas desde as sim- cebeu um “arco de tensão” na criança, no qual um ples até as mais complexas, ou, de forma análoga, dos pólos, constituído pelas “ambições”, ele deno- as letras permitindo palavras e discursos diferen- mina como self grandioso, e no outro pólo, onde tes, ou os algarismos possibilitando os mais com- residem os “ideais”, está a imago parental ideali- plicados cálculos algébricos. Assim, unicamente a zada, e no meio deles estão as capacidades e talen- título de exemplificação, vale destacar que criou o tos do ego. modelo continente-conteúdo; propôs a hipotética Lacan. A partir de uma releitura de Freud, existência de elementos alfa e beta como Lacan desenvolveu idéias originais, como é o caso determinantes da capacidade para pensar; intro- da etapa do espelho, que vai dos 6 aos 18 meses de duziu a importantíssima noção da função de conti- vida da criança; essa concepção acarretou uma for- nente (rêverie) da mãe (ou do analista na situação ma diferente dele descrever a conflitiva edípica; analítica); conjeturou a existência de um psiquismo igualmente, ele concebeu três planos do psiquismo: fetal; desenvolveu a concepção de vínculos, inter- o imaginário, o real e o simbólico; Lacan também nos e externos; dentre os vínculos, Bion emprestou atribuiu uma enorme importância ao que o discur- uma alta relevância ao vínculo do conhecimento so dos pais representa para a formação do incons- (“K”) e com isso ele valorizou sobremodo os pro- ciente da criança; dessa forma, Lacan postula a im- blemas da verdade, falsidade e mentira. Como de- portância de o analista trabalhar com a rede de corrência, ganhou relevância o problema da comu- significantes e significados que estão contidos nas nicação, que muitas vezes visa justamente a uma associações de idéias manifestas pelo paciente. “não-comunicação”; finalmente, nessa simples Winnicott. Dentre as inúmeras concepções ori- amostragem, é indispensável mencionar a sua con- ginais de Winnicott acerca do desenvolvimento cepção de parte psicótica da personalidade, e de emocional primitivo cabe destacar aquelas que di- como essa interage com as partes não-psicóticas, zem respeito às noções de transicionalidade (fe- de modo que esse vértice (outro conceito de Bion) nômenos transicionais, objeto transicional e espa- inovou muita coisa na prática analítica. ço transicional); a sua postulação de um estado de M. Mahler. Essa autora representante da “psi- não-integração (é diferente de “desintegração”) do cologia do ego” trabalhou com os conceitos inova- bebê nos primórdios do desenvolvimento; o papel FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 87 de holding e de espelho que a mãe exerce diante aparecerão embutidos em outros textos deste livro, das necessidades reais que fazem a criança esperar e igualmente outros aspectos importantes, como os uma resposta “suficientemente boa” por parte da referentes às “pulsões do id”, às “funções do ego” mãe; a estruturação de um verdadeiro ou de um e aos “mandamentos do superego”, foram aborda- falso self, entre tantas outras concepções mais. dos não mais que superficialmente, porquanto eles É claro que esse capítulo relativo ao funciona- merecerão capítulos específicos (9, 10 e 11) que mento e estrutura do aparelho psíquico deixou seguem a esse. muitos pontos em aberto, que de alguma forma

CAPÍTULO forme assevera Freud, “uma unidade etiológica inseparável”. Os avanços mais significativos da psicanálise nestes seus 100 anos de existência referem-se jus- tamente às renovadas concepções acerca do desen- 6 volvimento psicossexual, desde os tempos pionei- ros de Freud, com uma ênfase em uma evolução por fases, até os dias atuais, nos quais os autores psicanalíticos e estudiosos de outras ciências têm trazido inestimáveis contribuições para o entendi- A Formação da mento da formação da personalidade desde os mais primitivos passos do desenvolvimento emocional, Personalidade contidos na relação primária da mãe com o seu bebê.

São tantos e tão diversificados os fatores que FATORES HEREDO-CONSTITUCIONAIS estão em permanente interação e influência na for- mação da personalidade que talvez fosse mais ade- • É fácil perceber que o padrão de atividade quado nomear este capítulo de construção da per- do recém-nascido revela acentuadas diferen- sonalidade. Isso justifica-se porque a evolução da ças individuais entre os bebês, o que pode psicossexualidade não se processa de uma forma ser observado, é evidente, quando são ir- linear, obedecendo a uma prévia programação de natureza genética, mas sim ela deve ser construída, mãos. Assim, um mesmo estímulo exterior durante um longo tempo, levando em conta os fa- mal pode tirar um bebê de sua “fleuma”, en- tores constitucionais inatos da criança e os que se- quanto um outro bebê pode reagir de uma rão adquiridos pela influência do meio ambiente maneira extremamente agitada; igualmente, exterior, principalmente a influência dos pais. são significativamente muito variáveis as Assim, continua válida a clássica “equação formas e a duração das mamadas, o funcio- etiológica” (ou “série complementar”) formulada namento do aparelho digestivo, o ritmo do por Freud (1916), pela qual ele postula que são três sono ou despertar, a maneira de chorar, etc., os fatores formadores da personalidade da crian- etc. A fome e a dor são as sensações corpo- ça: 1) Os heredo-constitucionais (anlage). 2) As rais que mais freqüentemente provocam o antigas experiências emocionais com os pais. 3) pranto do bebê, o qual se constitui em um As experiências traumáticas da realidade da vida adulta. Na atualidade, os autores costumam redu- sinal para que a mãe ocupe-se dele. zir esta equação a um simples assinalamento de que • Não obstante isso, os modernos estudos ge- há uma permanente interação entre nature (fatores néticos rejeitam como não sendo científicas biológicos) e nurture (fatores ambientais). as hipóteses de que haja uma transmissão Assim, partindo de um outro vértice conceitual, hereditária de características adquiridas de embora análogo ao que está mencionado acima, é gerações anteriores, como Lamark postula- necessário estabelecer uma diferença entre os pro- va e Freud tendia a acreditar, assim como cessos de maturação e desenvolvimento. também descartam a noção de que para um A palavra “maturação” refere-se aos proces- determinado gene corresponderia uma carac- sos de crescimento que ocorrem em função das terística comportamental especificamente de- potencialidades orgânicas, neurofisiológicas, do finida. Por outro lado, o mesmo rigor cientí- recém-nascido e que são relativamente independen- tes do ambiente exterior. O termo “desenvolvimen- fico dessas investigações tem demonstrado to”, por sua vez, alude à interação entre os proces- que existe, de fato, uma “predisposição cons- sos de maturação e as influências ambientais, que titucional inata”, porém a mesma é passível determinam as variações individuais do aparelho de mudanças pelas influências ambientais. psíquico de cada um. Os fatores da predisposição Dizendo com outras palavras: a dimensão da genética inata e os ambientais, intimamente inter- potencialidade da criança não é totalmente ligados de uma forma indissociável, formam, con- preestabelecida geneticamente; antes, trata- 90 DAVID E. ZIMERMAN

se de uma dimensão potencial, ou seja, os detectar, já no útero, algumas indicações pre- potenciais da criança a serem desenvolvidos, maturas do futuro temperamento da criança. dependerão, em grande parte, da responsi- • Bion (1992), mesmo sem contar com os so- vidade da mãe e do ambiente. fisticados recursos da moderna tecnologia, • Alguns estudos etológicos (estudo dos com- vinha insistindo, principalmente na década portamentos espontâneos dos animais, de 70, na sua conjetura especulativa quanto preferentemente em seu habitat natural) ser- à existência de uma intensa vida psíquica vem para mostrar a influência recíproca e fetal e, indo mais longe, ele a estendia à in- complementar entre os fatores genéticos e fluência quanto à impressão (eu me pergun- os ambientais. O fenômeno do imprinting é to: não será imprinting?), já nas células em- um deles: com este nome (talvez a melhor brionárias, dos fatores uterinos, através de tradução para o português dessas marcas que uma ressonância das flutuações dos estados ficam impressas na mente seja a palavra físicos e emocionais da mãe. Bion afirmava “moldagem”), em 1935, o etólogo austríaco repetida e enfaticamente que essas primiti- K. Lorenz, por meio de estudos com aves, vas sensações corporais e, de certa forma, observou que, na ausência da mãe, as patas experiências emocionais, ficavam impressas nascidas em chocadeiras apegam-se e ficam e representadas no incipiente psiquismo do fixadas ao primeiro objeto móvel que encon- feto, com ulteriores manifestações no adul- tram, e que isso se dá durante um período to, sob a forma de enigmáticas e protéicas particularmente sensível que dura cerca de psicossomatizações. 36 horas. Uma vez instalada, fica irreversível. • É evidente que devem ser incluídos alguns Este fenômeno repete-se de forma variável fatores de natureza orgânica, como são al- para cada espécie, porém conserva a cons- guns possíveis defeitos genéticos do feto, tância de que, fora do período sensível, o eventuais estados de intoxicação da mãe imprinting não mais acontece. (medicamentosa, tabagista, etc.) que pene- • Penso que cabe uma especulação: a de que tram no organismo do bebê em gestação, este fenômeno do imprinting encontre uma assim como também devemos considerar os equivalência nas primeiras sensações corpo- possíveis problemas decorrentes de partos rais que acompanham a vida intra-uterina do complicados, etc. feto em gestação. Aliás, não são poucos os • O bebê nasce num estado de neotenia, isto autores, psicanalistas ou não, atuais ou anti- é, nasce prematuramente, no sentido de que gos, que ao longo do tempo têm postulado apresenta, em relação a qualquer espécie do teorias que expressam a convicção de que reino animal, uma prolongada deficiência de as reais condições uterinas da mãe, notada- maturação neurológica, motora, que o deixa mente a repercussão de seus estados emocio- em um estado de absoluta dependência e nais e físicos, encontram uma direta reper- desamparo. Em contraste com a lentidão da cussão no feto. Assim, recentes estudos de maturação motora, o desenvolvimento dos Piontelli (1989) comprovam que “é possível órgãos dos sentidos na criança é relativamen- observar que várias características do feto te precoce e rápido: ela começa a sentir ca- persistem durante toda a gravidez e podem, lor e frio desde o nascimento, a ouvir a par- inclusive, ser notadas na vida pós-natal”. tir das primeiras semanas, a olhar por volta Suas pesquisas demonstraram que com sete do primeiro mês, e assim por diante. semanas e meia o feto começa a responder a • Dentre os fatores constitucionais, também é estímulos vindos tanto de fora como de den- útil incluir a noção de organizadores, tal tro do seu corpo; ele responde com movi- como ela foi postulada por R. Spitz (1965). mentos violentos e aumenta o batimento car- Este autor tomou este termo emprestado da díaco à punção de uma agulha e à injeção embriologia, na qual o termo “organizador” intraperitonial de soluções frias. Ademais, a designa o fato de que um determinado gru- autora aventa a possibilidade de podermos po de células diferencia-se de outras seme- lhantes, no sentido de que elas são portado- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 91

ras de uma informação genética que induzi- tes psicanalíticas que desde o nascimento (ou rá a um desenvolvimento específico, o que antes, segundo Bion) já existe, sim, uma re- ocorre a partir de um certo momento da evo- lação objetal com a mãe, embora em bases lução. O exemplo clássico disto consiste no muito primitivas. Logo, já existe um, inato, transplante de células epidérmicas que, a esboço de ego, diferentemente do que Freud partir de uma certa idade, darão origem às afirmava, isto é, de que o ego emergiria do células diferenciadas do olho. Utilizando tal id, o qual, no início da vida, reinaria sozi- modelo, Spitz postulou a teoria de que o de- nho. senvolvimento da criança passa por três • Igualmente, muitos autores, muito particu- organizadores – pontos nodais de transfor- larmente os kleinianos, advogam a teoria de mações – que são: o sorriso espontâneo (por que, já no recém-nato, existe a presença e volta do terceiro mês), a angústia do oitavo funcionamento de arcaicas fantasias incons- mês, e a capacidade para dizer não, em tor- cientes, por conseguinte, também a existên- no do segundo ano. cia de fortes “angústias de aniquilamento”, • Igualmente se impõe o registro dos estudos com as respectivas defesas primitivas do ego de Piaget, epistemólogo suíço que estudou incipiente para contra-arrestar as aludidas aprofundadamente o fato de que a evolução angústias. Outras escolas de psicanálise, das capacidades sensoriais, motoras e inte- como a dos norte-americanos da psicologia lectuais de uma criança podem variar no rit- do ego e a da psicologia do self, discordam mo e qualidade, porém inevitavelmente obe- destas teorias. decem a uma pré-determinada seqüência • O que ninguém discorda é o fato de que o neurofisiológica. bebê está à mercê de estímulos de toda or- • O desenvolvimento atual da neurociência dem – físicos e psíquicos; sensoriais e cines- está comprovando que os fatores orgânicos tésicos, prazerosos e desprazerosos – sendo relativos às sinapses neuronais e hemisférios que ele não tem condições neurofisiológicas, cerebrais, exercem uma clara e definida in- e muito menos egóicas, para distinguir se es- fluência no psiquismo, tal como pode ser sas sensações corporais provêm de dentro observado, com alguns evidentes resultados ou fora dele, se deste ou daquele órgão. As- positivos, com o uso adequado de neuro- sim, a criança, nesse transitório estado de lépticos ou antidepressivos da moderna caos, não consegue descarregar para o mun- psicofarmacologia. Da mesma forma, algu- do externo, através da motricidade e da ação, mas pesquisas recentes sobre os hemisférios este aumento de tensão que acontece no seu cerebrais comprovam que algumas pessoas mundo interno. Ela o faz por meio da lin- têm uma tendência inata para o talento ver- guagem corporal primitiva (choro, ricto do- bal, enquanto outras podem ter falta dessa loroso, diarréia, vômito, esperneio, etc.), de capacidade e serem aptos em habilidades modo a mobilizar as pessoas que estão à sua manuais, criatividade artística, ou são mais volta para cumprirem essa função de aliviar propensos para descargas afetivas, etc. Pen- e processar as necessidades e o estado de so que podemos incluir uma especial capa- tensão insuportável. cidade inata da criança que é aquela que con- Neste ponto, começa mais explicitamente a im- siste em uma “intuitiva” condição de “ler” portância dos fatores ambientais, muito particular- as modulações afetivas expressadas na face mente a das funções atribuídas aos pais. A exposi- e na voz da mãe. ção que se segue, naturalmente muito sumária, obe- • Conquanto Freud tenha postulado um esta- decerá à ordem cronológica de como estes fatores do inicial de “auto-erotismo”, seguido de um do desenvolvimento da personalidade apareceram “narcisismo primário” (muitas vezes essas na literatura psicanalítica, desde as originais con- duas concepções superpõem-se nos seus es- cepções de Freud e Abraham acerca das etapas critos), nos quais não haveria nenhuma rela- evolutivas, passando pela teoria das posições, tal ção objetal, é virtualmente consensual entre como foram concebidas por M. Klein, e, por fim, os atuais autores das mais distintas corren- vamos deter-nos algo mais demoradamente nas 92 DAVID E. ZIMERMAN mais recentes contribuições a respeito do desen- ções agradáveis, como resultado dessa gratificação volvimento emocional primitivo. materna. Para Freud, a teoria da libido era originariamen- te um conceito anatômico. Os órgãos produtores AS FASES DO DESENVOLVIMENTO de libido eram denominados “zonas erógenas, como os lábios, a boca, a pele, o movimento mus- Inicialmente, é útil esclarecer que o termo “fase” cular, a mucosa anal, o pênis e o clitóris, sendo que aparece em outros textos de distintos autores com em cada idade específica predomina a hegemonia outras denominções, como “etapa”, “estádio”, “es- de uma determinada zona erógena. tágio”, “período”, etc. Durante muitas décadas da A primeira etapa da organização da libido foi evolução da psicanálise, essa concepção de “fases” denominada como a fase oral, sendo que a boca foi a única vigente e o seu emprego extrapolou o (vem do latim “os-oris”, daí “oral”) constitui-se campo restrito da psicanálise, absorvida que foi como a zona erógena que primacialmente experi- pelos diversos setores culturais, onde ainda per- menta a libido oral e suas gratificações, como é no manece com a conceituação original. ato da amamentação. A finalidade da libido oral, De há muito tempo é sabido que as etapas além da gratificação pulsional, também visa à “in- evolutivas na formação da personalidade da crian- corporação”, a qual, por sua vez, está a serviço da ça não são estanques e nem de uma progressão ab- “identificação”. solutamente linear; antes, elas se transformam, Deve ficar bem claro, no entanto, que a boca superpõem e interagem permanentemente entre si. não é o único órgão importante dessa fase evolutiva, O importante, principalmente para a prática clíni- mas sim que ela se constitui um modelo de incor- ca, é que os diferentes momentos evolutivos dei- poração e de expulsão, ou seja, como um protótipo xam impressos no psiquismo aquilo que Freud de- de funcionamento arcaico que intermedeia o mun- nominou de pontos de fixação, em direção aos quais do interno com o mundo externo. Assim, também eventualmente qualquer sujeito pode fazer um devem ser consideradas nessa fase oral, outras zo- movimento de regressão. nas corporais que cumprem a mesma função, como: Os “pontos de fixação” formariam-se a partir o complexo sistema aerodigestivo, sobretudo, todo de uma exagerada gratificação ou frustração de o trato gastrintestinal; os órgãos da fonação e da uma determinada “zona erógena”. No primeiro linguagem; as sensações cinestésicas (alude ao caso, o sujeito, diante de angústias insuportáveis, “equilíbrio” corporal), enteroceptivas (as que pro- tenta regredir para um tempo e um espaço que lhe vêm de órgãos internos) e as proprioceptivas (de- foi tão protetor e gratificante; no caso de uma ex- rivam das camadas mais profundas da pele); a pele cessiva frustração que foi a determinante do ponto que, além das aludidas sensações profundas, tam- de fixação, a regressão dá-se, muitas vezes, sabe- bém propicia as funções de tato e a de uma, essen- mos hoje, como uma tentativa de resgatar alguns cial, aproximação “pele-pele” com a mãe; todos os “buracos negros “existenciais. órgãos sensoriais, como olfato, paladar, tato, au- Assim, é bem conhecido o fato de que todos os dição e visão. Em outra parte deste capítulo será afetos primitivos sofrem sucessivas “transforma- melhor explicitada a importante função que o “olhar” ções” psíquicas, que ficam presentes ou represen- desempenha na estruturação da personalidade da tados no inconsciente, constituindo “pontos de fi- criança. xação”, os quais funcionam como um pólo imanta- Também é útil destacar que, pelo fato de o bebê do e, tal como faz um eletroímã, atraem para si a não ter condições de distinguir a origem dos dife- representação de novas repressões de fantasias e rentes estímulos, ele também não conseguirá dife- de experiências emocionais. renciar o conteúdo dos mesmos, resultando daí que tudo aquilo que ele vier a tocar tem o mesmo signi- ficado que o alimento, logo, da mesma forma, ele Fase Oral também quer incorporar. Igualmente, “falar e ser falado” representa, em etapas muito primitivas, o mesmo que “tocar e ser tocado”, e assim por dian- De todas as fontes de energia vital da criança te, de tal sorte que cabe dizer que o processo pri- procedem sensações tanto desprazerosas, que exi- mário da fantasia do bebê, de que ele domina o gem uma descarga imediata e que encontram um mundo externo, repete, em certa medida, o proces- alívio e bem-estar com a satisfação das necessida- so de incorporação. des básicas por parte da mãe, como também sensa- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 93

A fase oral do desenvolvimento, de um modo Assim, também o controle esfincteriano deve, geral, alude ao primeiro ano de vida. Abraham sobretudo, ser considerado como um modelo de (1924) trouxe uma importante contribuição à com- como processa-se o controle motor em geral; as preensão dessa fase evolutiva ao distinguir duas sensações de domínio ou de sujeição; o prazer na subetapas dentro da fase oral: a fase oral passivo- expulsão ou retenção; a intermediação entre aqui- receptiva (dura até que o bebê tenha condições de lo que é uma produção e uma posse do bebê, em agarrar espontaneamente os objetos) e a fase oral confronto com as exigências do mundo exterior, as ativo-incorporativa. A importância desta última implicações emocionais nos atos de receber, reter, reside no fato de que Abraham intuiu o conceito de eliminar, tomar e dar, etc. que essa incorporação ativa possa estar carregada Destarte, o valor da matéria fecal acima mencio- de pulsões agressivas e hostis, geralmente dirigidas nada adquire a significação de uma troca entre a à mãe. criança e o mundo exterior, o que se constitui como É útil acrescentar que ao longo da obra de Freud um protótipo das equivalências descritas por Freud aparecem postulações fundamentais, hoje clássicas, entre as fezes e o dinheiro, presentes, filhos. e que acontecem no curso da fase oral, como são: Abraham descreveu duas subetapas: fase anal uma especial valorização do corpo (“o ego, antes expulsiva e fase anal retentiva. Na primeira, a de tudo, é corporal”); a identificação primária com criança tanto pode proporcionar um prazer, ao mes- a mãe; a concepção de uma bissexualidade como mo tempo “auto-erótico” e de um presente para os uma qualidade primordial da herança biológica; a pais, quanto também pode representar uma mani- vigência do princípio do prazer-desprazer; o pre- festação “sádico-anal”. A fase retentiva decorre do domínio do processo primário do pensamento; a fato de que a criança aos poucos descobre que a primitiva formação das representações-coisa; as mucosa anal pode ser prazerosamente estimulada incipientes formas de linguagem e comunicação; não unicamente pela expulsão, mas também pela dentre outros conceitos mais. retenção das fezes. Muitos autores pensam que este ponto de fixação constitui um importante elemen- to do prazer auto-erótico masoquista para a crian- Fase Anal ça e também como uma forma de controlar e mani- pular as pessoas que cuidam dela, por meio da re- Da mesma maneira como foi referido em rela- tenção das próprias fezes. ção ao fato de que a fase “oral” não se refere ex- Em resumo, é na fase anal que a criança desen- clusivamente à importância da boca, também a ex- volve sentimentos sádicos e masoquistas, a ambi- pressão “fase anal” não alude unicamente à libidi- valência, as noções de “poder” e de “propriedade nização das mucosas excretórias encarregadas da privada”, a rivalidade e competição com os demais, evacuação e micção, com as respectivas fantasias bem como o surgimento das “dicotomias”, tipo (agressão contra os pais ou uma forma de presen- grande x pequeno; bonito x feio; dentro x fora; ati- teá-los; controle onipotente; gratificação; vergo- vo x passivo; bom x mau; masculino x feminino, nha; culpa; humilhação ou uma crescente auto- etc, etc. estima; sensação de que é uma “obra” sua; valor Baseados nessas características da fase anal – simbólico das fezes e urina; etc.) que sempre as com os seus respectivos pontos de fixação e de re- acompanham. gressão – muitos autores descreveram importantes Geralmente, esta etapa é considerada como aque- textos quanto à formação de um caráter anal, como la em que as transformações vão ocorrendo no cur- é o caso de uma caracterologia de molde obsessi- so do segundo e terceiro anos, sendo que outras im- vo-compulsiva, além de uma melhor compreensão portantes funções devem ficar incluídas nesta fase, de várias síndromes psiquiátricas. como são as de aquisição da linguagem; engatinhar e andar; curiosidade e exploração do mundo exte- rior; progressivo aprendizado do controle esfincte- Fase Fálica riano; controle da motricidade e prazer com a ati- vidade muscular; ensaios de individuação e sepa- A fase fálica – a terceira etapa pré-genital do ração (por exemplo, comer sozinho, sem a ajuda de desenvolvimento psicossexual – também é descri- outros); o desenvolvimento da linguagem e comu- ta na literatura psicanalítica mais recente com a nicação verbal, com a simbolização da palavra; os denominação de “fase edípica”. A expressão “fá- brinquedos e brincadeiras; a aquisição da condi- lica” origina-se no conceito original de Freud de ção de dizer “não”; etc. que até certa idade as crianças de ambos sexos su- 94 DAVID E. ZIMERMAN põem a existência de genitais masculinos em todas como são as subseqüentes teorias da “sedução”, da as pessoas (sendo o falo, na antigüidade greco-ro- “cena primária”, do “incesto” e do “complexo de mana, a representação simbólica do poder, concen- castração”. trada no órgão anatômico pênis), enquanto a ex- pressão “edípica” alude ao fato de que os desejos erógenos nos meninos e nas meninas ficam incre- Cena Primária mentados, com fantasias as mais diversas, e nor- malmente elas dirigem-se aos pais do sexo oposto, Tanto por uma intuição como por estímulos no triângulo edípico. externos (barulhos noturnos, insinuações dos pais De forma muito sumarizada, cabe registrar os se- ou cenas que vê na televisão), a criança imagina o guintes acontecimentos que se manifestam nesta fase: que se passa no quarto fechado dos pais, fica mui- to excitada e usa o recurso das repressões. Por ve- zes, estas últimas não são suficientes e a criança Masturbação aumenta o seu mundo de imaginação, que fica gi- rando em torno das anteriores fantasias pré-edípicas Na fase fálica, o prazer organiza-se predomi- (entredevoramento; coito sádico; fusão paradisíaca; nantemente pela excitação das mucosas genitais do amputações; coito e parto anal; etc). pênis, nos meninos, e mais indiretamente do clitóris, A criança é levada a tomar imaginariamente, e nas meninas, podendo este ser vivido como sendo de forma alternada, o lugar dos protagonistas da um pênis pequeno. Como uma continuidade da fase cena, com as diversas fantasias correlatas, ineren- evolutiva anterior, este prazer masturbatório fica tes ao “complexo de Édipo”. Quando os pais per- bastante associado ao prazer uretral no ato de uri- mitem, ou até induzem a uma participação concre- nar e à retenção vesical. ta dela na cena primária, estarão provavelmente Sempre houve uma grande dúvida entre os au- produzindo um futuro perverso. tores quanto ao fato de se as meninas teriam ou não um conhecimento, nessa fase, da existência da vagina: Freud acreditava que não, enquanto mui- Complexo de Édipo tos outros psicanalistas, como K. Horney, E. Jones, M. Klein e tantos outros, contemporâneos, afirmam Esta expressão designa o conjunto de desejos que a vagina intervém precocemente na sexualida- amorosos e hostis que a criança experimenta com de da menina, que dela possuiria um conhecimen- relação aos seus pais. Freud situou-o por volta dos to intuitivo. três anos e M. Klein postulou o seu surgimento Cabe registrar que não raramente a mãe, du- aproximadamente aos seis ou oito meses de idade. rante a higiene da genitália da criança, pode estar Porém, com essa concepção ela desfigurou bastan- estabelecendo com ela um conluio masturbatório. te a conceituação original de Freud acerca de Édipo. Para Freud, o complexo de Édipo comporta duas formas: uma positiva, que genericamente consiste Curiosidade Sexual num desejo sexual pelo genitor do sexo oposto, bem como de um desejo de morte pelo do mesmo sexo, Uma observação atenta da natural curiosidade e uma forma negativa, na qual há um desejo amo- das crianças nesta fase do desenvolvimento, que se roso pelo genitor do mesmo sexo e um ciúme ou manifesta pelos constantes “por quês ?”, permitirá desejo de desaparecimento do outro. Na clínica, o verificar que a maioria delas se refere às origens mais freqüente é que ambas formas coexistam nos das diferenças entre pares opostos, como masculi- indivíduos, embora uma delas predomine nitida- no-feminino; seio-pênis; grande-pequeno, etc., e mente. que a constatação progressiva dessas diferenças O complexo edípico sempre foi considerado provoca um acréscimo de angústia, que encontra como o núcleo central na estruturação de toda e alívio numa explicação adequada por parte do edu- qualquer neurose, sendo que, na atualidade, essa cador; caso contrário, obrigará a criança a cons- concepção tem sido contestada por alguns autores truir as mais estapafúrdias teorias. que acreditam que nos pacientes bastante regressi- Essas teorias são tecidas principalmente em tor- vos não é a má resolução propriamente edípica a no dos seguintes aspectos: a diferença anatômica responsável maior pela neurose, mas, sim, que ela dos sexos; o enigma do nascimento e, por conse- é apenas o reflexo das complicações das fases an- guinte, tudo que cerca as fantasias de concepção, teriores, particularmente das fixações narcisistas. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 95

Predomina, entre os psicanalistas, a consen- uma repressão da sexualidade infantil, com uma sualidade de que o complexo de Édipo representa amnésia relativa às experiências anteriores, e a se- ter um papel organizador essencial para a organi- gunda característica consiste no fato de que se es- zação da personalidade, no mínimo por quatro ra- trutura um reforço das aquisições do ego. A com- zões fundamentais: binação de ambas propicia a “sublimação” das pul- sões, comumente na escolarização e em atividades 1) Ele abre caminho para a triangulação, ou esportivas, assim como, também, na formação de seja, permite a inclusão de um terceiro (pai) aspirações morais, estéticas e sociais, de modo tal que, ao interpor-se na díade mãe-filho, pos- que este período é comumente considerado como sibilitará à criança o indispensável proces- sendo aquele que consolida a formação do caráter. so de renunciar à possessividade onipoten- te e aceitar as diferenças de sexo, geração e potência, em comparação com os pais, Puberdade e Adolescência assim como, também, reconhecer que es- tes são relativamente autônomos e têm os O termo “puberdade” deriva de “púbis”, mais seus próprios espaços. especificamente alude aos “pêlos pubianos” que 2) A segunda razão da importância da resolu- começam a aparecer no menino ou na menina. Basta ção edípica é porque ela determina a for- este fato para mostrar que esse período de pré-ado- mação das identificações, aspecto absolu- lescência indica que é uma etapa do desenvolvi- tamente essencial na formação da persona- mento no qual começa a maturação fisiológica do aparelho sexual. lidade e do sentimento de identidade. O termo “adolescência”, por sua vez, etimologi- 3) A exclusão da criança da cena primária camente é composto pelos prefixos latinos “ad” pode gerar uma série de sentimentos de (para a frente) + “dolescere” (crescer, com dores), forte intensidade, com a predominância de o que dá uma idéia de que se trata de um período uma sensação de abandono e traição e, por de transformações, portanto, de crise. As princi- conseguinte, uma avalanche de ódio e pla- pais transformações, além daquelas na anatomia e nos de vingança contra os pais. Tais senti- fisiologia corporal, também são de natureza psico- mentos serão acompanhados por outros, lógica, muito especialmente o da busca de uma como medo, culpa, excesso de identifica- identidade individual, grupal e social. ções projetivas, incremento de ansiedades De modo geral, considera-se que a adolescên- paranóides, especialmente aquelas que es- cia abrange três níveis de maturação e desenvolvi- mento: a puberdade (ou pré-adolescência), no pe- tão contidas na “angústia de castração”. ríodo dos 12 aos 14 anos, a adolescência propria- A presença desta última, sob diversas for- mente dita (dos 15 aos 17) e a adolescência tardia mas de manifestação, representa um impor- (dos 18 aos 21). tantíssimo elemento na prática clínica da Cada uma dessas etapas apresentam caracterís- psicanálise. ticas próprias e específicas que mereceriam uma 4) É unicamente por meio de uma exitosa re- descrição pormenorizada, mas não cabe fazê-las solução da conflitiva edípica que se torna no contexto do presente capítulo. possível o ingresso em uma genitalidade adulta; caso contrário, as fixações parciais nas fases pré-edípicas ou uma má resolu- AS “POSIÇÕES” ção do complexo de Édipo, resultarão em distintas formas de “pseudogenitalidade” Até M. Klein, a concepção freudiana de “fases (ver capítulo 37). evolutivas” guardava uma hegemonia total entre todos os psicanalistas. A partir dos estudos dessa autora, houve uma significativa mudança na forma de entender os movimentos evolutivos do psi- Período de Latência quismo infantil, embora a conceituação de “fases” continue vigente e perfeitamente válida em muitos Depois dos seis anos de idade, a criança entra aspectos teóricos e clínicos. no período de latência, que apresenta duas carac- O termo “posição”, tal como foi proposto por terísticas principais: a primeira é que vai acontecer M. Klein, designa um ponto de vista, uma forma 96 DAVID E. ZIMERMAN de o indivíduo visualisar a si mesmo, aos outros e DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL PRIMITIVO ao mundo que o cerca. Esse vértice de observação institui-se a partir de uma constelação de ansieda- Freud não só descreveu a evolução psicossexual des, relações objetais, defesas e afetos, e determi- em termos de “fases”, em termos das pulsões liga- na uma forma de o sujeito “ser” e de comportar-se das à sexualidade, como também priorizou um na vida. enfoque “falocêntrico” e, por conseguinte, com uma M. Klein descreveu dois tipos de “posição”: a atribuição de valorização muito maior à figura do esquizoparanóide (PEP), em 1946, e a depressiva pai. Assim, sempre que a mãe aparece nos seus tex- (PD), em 1934, embora a certa altura de seus estu- tos, tal como pode-se observar em alguns de seus dos ela tenha descrito uma terceira modalidade, a historiais clínicos, parece que a importância do “posição maníaca” à qual não mais retornou. A PEP, papel dela fica reduzido ao de ser uma subsidiária em condições normais, estende-se até o terceiro mês da hegemonia do pai da criança. de vida e consiste em um indispensável uso de de- Em contrapartida, M. Klein deu à psicanálise fesas muito primitivas por parte do incipiente ego uma concepção “seiocêntrica”, tal foi a sua ênfase do bebê, notadamente as “dissociações” e as “pro- na importância das primitivas relações do bebê com jeções”, como uma forma de ele livrar-se das terrí- a mãe, mais precisamente com o objeto parcial veis ansiedades de “aniquilamento”, que, segundo “seio”, que fica dividido na mente primitiva da Klein, são resultantes das pulsões sádico-destruti- criança naquilo que a autora denominava como vas, diretamente ligadas à inata “inveja primária”, “seio bom” e “seio mau”. Klein fundamentou essa ou seja, à “pulsão de morte”. Muito particularmen- concepção a partir do que ela observou em análi- te, deve ser destacada a utilização durante a PEP ses com crianças de pouca idade, partindo do pres- daquilo que ela veio a denominar “identificações suposto que essa dissociação do seio nutridor ma- projetivas”, conceito altamente importante e que terno era devido à ação da pulsão de morte, sob a hoje é aceito por todas correntes psicanalíticas. forma de uma inveja primária que atacava esse seio, A PD, por sua vez, sucedendo à PEP, vem a com as conseqüentes ansiedades, culpas e necessi- organizar-se por volta do sexto mês e designa um dade de fazer reparações. estado que vai possibilitar que a criancinha come- Sem dúvida, são conceitos muito úteis e que ce a discriminar, reconhecer e integrar os aspectos ajudaram a abrir as portas da análise para pacien- clivados dessa mãe, agora como um objeto “total”. tes de estruturação psicótica. No entanto, embora A consolidação da PD implica na condição de que nos primeiros tempos Klein tivesse valorizado a a criança tanto assuma o seu quinhão de culpas e mãe real externa, gradativamente, possivelmente de responsabilidades como também que ela possa empolgada com a aceitação das suas originais con- exercitar as suas “capacidades reparatórias” pelos cepções, ela foi concentrando o seu interesse qua- danos que, na realidade ou na fantasia, infligiu aos se que exclusivamente nas fantasias inconscientes seus objetos necessitados. da criança, virtualmente sempre de caráter sádico- Bion propôs um modelo, segundo o qual as PEP destrutivo, sendo que a figura da mãe real ficou e PD não são estanques e de evolução linear e praticamente esquecida, enquanto toda ênfase re- seqüencial, pelo contrário, elas estão sempre pre- caía sobre a mãe que estava introjetada, distorcida sentes ao longo de toda a vida, e sempre em uma pelas aludidas fantasias do bebê. interação recíproca. A abordagem evolutiva da Embora muitos kleinianos continuem aceitan- criança desde esta concepção de “posições” trou- do e praticando com tais postulações originais, tam- xe uma enorme amplificação dos conhecimentos bém se formou um grande contingente de psicana- teóricos e, portanto, da prática psicanalítica. listas que formulara severas críticas a elas, com os Acompanhando muitos autores que postulam a argumentos, entre tantos outros, de que Klein não existência de uma condição mental do bebê ante- tinha a menor possibilidade de comprovar suas afir- rior à da PEP – mais exatamente a de uma total mações com algum rigor científico e que, além dis- indiferenciação entre o bebê e a mãe, tendo em vista so, ela parecia reduzir o bebê a um ente que esti- que a PEP tal como ela é formulada pressupõe al- vesse sempre num terrível estado de sofrimento e gum grau de diferenciação entre “eu” e “não-eu” – com um estado mental idêntico ao de um adulto atrevi-me a propor a possibilidade de considerar- psicótico. se a existência de uma “posição narcisista” – que Mais precisamente a partir da década de 50, reúne características muito peculiares – e que será muitos autores, alguns de origem kleiniana, como abordada no capítulo 13 deste livro. Winnicott e Bion, outros com formação distinta, como Lacan, M. Mahler, Kohut, unicamente para FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 97 citar alguns dos mais conhecidos em nosso meio, Demais representantes da “Escola Francesa de retomaram, sob distintos vértices conceituais, a Psicanálise”, como Lebovici, Joyce MacDougall, decisiva importância do grupo familiar – notada- Janine Ch. Smirgel, Grunberger e A. Green, entre mente a da função materna – no desenvolvimento tantos outros mais, têm trazido importantes contri- emocional primitivo da criança e, por conseguinte, buições para o entendimento do desenvolvimento na estruturação da personalidade. primitivo, com uma ênfase nos aspectos do narci- Pela inviabilidade de, aqui, estudar mais apro- sismo. fundadamente todas essas contribuições que par- tem das mais primitivas raízes evolutivas (serão explicitamente abordadas em capítulos subseqüen- H. KOHUT tes), vamos limitar-nos a fazer um breve apanhado daqueles autores que acima foram mencionados, Esse autor, criador da escola da psicologia do ressalvando o fato de que o termo “desenvolvimento self, ao não aceitar a primazia do conflito edípico emocional primitivo”, a rigor, alude unicamente aos na determinação das neuroses, dirigiu todas as suas dois primeiros meses de vida. concepções psicanalíticas referentes à evolução da criança para o fato de que são as primitivas “falhas empáticas” da mãe com o seu bebê as causadoras LACAN dos vazios existenciais, responsáveis pelos futuros quadros da psicopatologia clínica. Como vimos no capítulo 3, este importante e Kohut (1971), privilegiando o foco ambienta- controvertido psicanalista francês, resgatando os lista mais do que o foco pulsional, utilizou a ex- estudos de Freud pertinentes aos pacientes narci- pressão “objetos do self” (self-objects, no original) sistas e paranóides, descreveu o “estágio do espe- para designar aquelas pessoas do meio ambiente – lho”, que consiste em que, primitivamente, a criança a mãe, principalmente – que são os responsáveis não tem a vivência do seu corpo como sendo de pela estruturação do self da criança. A partir daí, uma unidade integrada, pelo contrário, ela percebe ele descreveu dois tipos desses objetos primordi- a sua corporalidade como uma dispersão de partes ais, especulares: 1) Aquele que funciona como um separadas. Daí decorre a fantasia do corpo dividi- espelho da criança e que, mediante incessantes elo- do, com a respectiva fantasia de “despedaçamento” gios e admiração a ela, outorga-lhe uma imagem (“corps morcelé”), que pode voltar a manifestar-se de “self grandioso”, o qual até certo ponto tem uma em regressões psicóticas. importante função estruturante. 2) O objeto paren- Este estágio do espelho prolonga-se dos 6 aos tal que reflete para o filho uma imagem grandiosa 18 meses, em três subetapas, sendo que a partir dos que os pais têm de si próprios, constituindo a seis meses a criança começa a conquistar a totali- “imago parental idealizada”. dade de seu corpo por meio do “espelho” repre- Este autor centrou seus estudos na etapa narci- sentado pela sua mãe. sista do desenvolvimento emocional primitivo, sen- Assim, Lacan (1949) utiliza o “espelho” como do que ele fez uma profunda reformulação das con- uma metáfora do vínculo entre a mãe e o filho, que cepções originais de Freud acerca do narcisismo, progride desde a dimensão visual e imaginária, a inclusive enfatizando os aspectos positivos e qual permite a ilusão de completude onipotente estruturantes do mesmo, assim como ele também (primeira fase) até o da dimensão simbólica, com a insistiu na necessidade de o analista preencher os aquisição da linguagem verbal. vazios existenciais provenientes das falhas empá- A importância que Lacan atribuiu ao papel da ticas da mãe, de modo a promover uma “internali- mãe, pai e demais representantes da cultura ambien- zação transmutadora”. tal, talvez possa ser sintetizada nestas duas conhe- cidas expressões dele: “O inconsciente é o discur- so dos outros” e “O papel do filho pode ser o de M. MAHLER ser o desejo do desejo da mãe”. Uma leitura mais atenta das mencionadas refe- Juntamente com uma equipe de colaboradores, rências a Lacan permite verificar a profunda in- essa importante psicanalista, representante da nor- fluência que o corpo, o discurso e o desejo da mãe te-americana escola da psicologia do ego, proce- – juntamente com a participação do pai como re- deu a uma investigação científica que durou mui- presentante da lei da ordem simbólica – represen- tos anos, pelo método da observação direta de be- tam para a incipiente formação da personalidade. bês com o auxílio de um espelho no chão que se 98 DAVID E. ZIMERMAN prestava ao estudo das várias reações das crianci- mo tempo em que, de fato, está em “depen- nhas diante deles e das suas interações com as res- dência absoluta”. pectivas mães. Essas observações foram feitas pri- • Nos primeiros tempos, a corporalidade do meiramente com crianças psicóticas (na década de bebê consiste num estado de não-integração 50) e, após, com normais (na década de 60). (é diferente de angústia de “desintegração”) Na descrição das etapas concernentes ao que entre as diferentes partes de seu corpo, e entre ela denomina como “nascimento psicológico dos bebês”, Mahler (1975) dá um grande destaque aos o seu corpo e a sua mente. mecanismos de “espelhamento mútuo”, que servem • Assim, Winnicott introduz os conceitos de à demarcação do “eu” e do “outro”. A partir daí, integração (dessas partes dispersas) e o de ela fez estudos sobre o desenvolvimento emocio- personalização, que refere à aquisição da ca- nal primitivo e postulou a existência de “fases” com pacidade de a criança poder “habitar o seu as respectivas “subfases” e “etapas” destas últimas, próprio corpo”, o que implica em renunciar tal como elas já foram descritas no capítulo 3. à ilusão de que seu corpo está fundido com Cada uma destas fases tem características pe- o da mãe. culiares, sendo que a concepção da “individuação- • A angústia que, em situações futuras, acom- separação” tem sido aceita pela maioria dos psi- panha os estados de uma “não-integração”, canalistas e representa um expressivo ganho de foi definida por Winnicott como breakdown, entendimento e manejo do processo psicanalítico. ou seja, uma angústia catastrófica, que às vezes denomina de “agonias impensáveis”. D. WINNICOTT • Postula a concepção dos fenômenos transi- cionais – com os objetos transicionais e o De formação kleiniana, este importante e reco- espaço transicional – que aludem ao fato de nhecido autor, afastou-se de M. Klein (e ingressou que nesse período o bebê está com um pé no no “grupo independente” da Sociedade Britânica mundo do imaginário e com o outro ingres- de Psicanálise), mais explicitamente a partir de sua sando na realidade exterior, assim criando discordância com Klein, que culminou publicamen- condições para uma separação da mãe. te quando ela formulou a sua teoria acerca da “in- • Ele estabelece uma diferença entre mãe-am- veja primária”. biente (ainda não há no bebê a diferença entre Gradativamente, Winnicott foi se afastando dos “eu-outro”) e mãe-objeto (onde já há essa conceitos relativos à pulsão de morte e derivados, diferença). como o das precoces e arcaicas fantasias incons- cientes sádico-destrutivas do bebê. Ao mesmo tem- • Dentre as condições da “mãe suficientemente po, ele foi dando uma crescente importância à par- boa”, ele incluiu: a preocupação materna ticipação da mãe real no desenvolvimento emocio- primária (um estado inicial de “devoção” ao nal do filho, a um ponto tal que dá a impressão filho); capacidade de holding (sustentação) dele ter caído num extremo oposto ao de Klein, e de handling (manejo); a progressiva desi- desinvestindo a importância das arcaicas fantasias lusão das ilusões de onipotência e a capaci- inconscientes da criança. dade para sobreviver aos ataques agressi- Dentre as concepções totalmente originais de vos do filho. Winnicott a respeito do desenvolvimento emocio- • Vale fazer um registro especial para a fun- nal primitivo cabe destacar, entre outras mais, as ção especular da mãe: para Winnicott (1967), seguintes: o primeiro espelho da criatura humana é o • A decisiva influência do ambiente facilitador rosto da mãe, sobretudo o seu olhar. Ao e da mãe suficientemente boa. olhar-se no espelho do rosto materno, o bebê • Um estado de identificação primária com a vê-se a si mesmo: “Quando olho sou visto, mãe, no qual ainda não há o reconhecimen- logo existo... posso agora me permitir olhar to de que existe uma mãe externa a ele, ao e ver”. mesmo tempo em que “não existe um bebê • A capacidade de estar só”, cujo conceito sem a mãe”. alude ao fato de que nesse período em que a • Assim, diz Winnicott, o bebê sente-se num criança está constituindo a sua confiança estado de “absoluta independência”, ao mes- básica ela consegue ficar sozinha, embora FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 99

paradoxalmente com a presença da mãe, cada De meu ponto de vista pessoal, atrevo-me a uma absorvida em seus interesses, conser- propor a existência de um prazer sem nome, o qual vando a sua identidade pessoal, mas saben- alude às sensações muito gratificantes e prazerosas do que o outro existe e está perto. que ficam representadas no ego do bebê antes da • A possibilidade da criação gradativa de um formação da palavra e que reaparecem na criança (não será por isso que toda criança feliz sempre verdadeiro ou de um falso self. desenha um sol emitindo raios luminosos?) e no • Em resumo, para Winnicott, “a criança cria adulto sob a forma, por exemplo, de uma sensibili- o ambiente e o ambiente cria a criança”. dade artística e estética. • Partindo da sua original concepção de uma BION permanente existência na vida psíquica en- tre um continente e um conteúdo (1963), A meu juízo, se M. Klein ficou em um extremo Bion preconizou que, mais manifestamente de valorizar enfaticamente e quase que unicamen- desde o nascimento, há uma clara interação te o mundo interno do bebê, e Winnicott mais no entre a mãe e o bebê, a primeira como “con- outro extremo da valorização do ambiente exterior, tinente” e o segundo como “conteúdo” de representado, sobretudo, pela mãe, coube a Bion suas necessidades e angústias. dar um valor equitativo a ambos aspectos na deter- • Essa interação mãe-criança forma-se princi- minação da evolução e na formação do psiquismo palmente por três vias:1) uma comunicação humano. De forma extremamente sumarizada, cabe des- primitiva entre ambas; 2) a formação de vín- tacar as seguintes concepções de Bion relativas ao culos; e 3) a forma de resposta às frustra- assunto em pauta: ções. • Os “vínculos” são definidos por Bion como • A existência de um rudimentar psiquismo “elos emocionais de ligação entre duas ou fetal (1992), no qual já há uma interação com mais pessoas, ou entre duas ou mais partes os estímulos e respostas fisiológicas provin- de uma mesma pessoa”. Tais vínculos estão das da mãe gestante. sempre presentes, desenvolvem-se e trans- • Essas primitivas sensações e, de certo modo, formam-se numa interação progressiva e experiências emocionais vivenciadas pelo Bion descreve três tipos: o de amor (“L”), feto, ficam impressas no seu psiquismo e vão ódio (“H”) e conhecimento (“K”). determinar uma influência no futuro adulto • A “comunicação primitiva” processa-se por bem maior do que geralmente pensa-se (tal- intermédio do conteúdo das maciças cargas vez venha a ser futuramente, como aventa de identificações projetivas que o bebê emi- Meltzer, a melhor teoria para explicar o fe- te através das diversas formas da “lingua- nômeno das psicossomatizações). gem do corpo”, à espera de elas serem aco- • Pode-se dizer que essas sensações primiti- lhidas por um continente materno. vas ficam impressas no ego sob a forma de • Creio ser válido considerar que enquanto es- “representações”, sendo que Bion descreve tiver havendo a emissão de identificações um tipo de angústia muito intensa, que ele projetivas dessas ansiedades que angustiam denomina “terror sem nome”, a qual, a meu a mãe (ou ao terapeuta numa equivalente si- juízo, deve corresponder àquilo que Freud tuação psicanalítica), é um sinal de vida, de chamava de “representação-coisa”. Portan- existência; a situação fica dramaticamente to, é uma angústia que se formou antes da preocupante quando a criancinha (ou o pa- “representação-palavra”, e por isso trata-se ciente) fica apática, depressiva, num estado de uma angústia terrorífica que não chegou de desistência. Este estado mental do bebê a adquirir um nome na época de sua forma- também pode ser evacuado dentro da mãe e ção, o que explica o fato de que pacientes provocar nela uma forte angústia ou um si- regressivos não conseguem traduzi-las com milar estado de desistência. palavras para o terapeuta. • Quando as necessidades básicas do bebê não são compreendidas e satisfeitas pela função 100 DAVID E. ZIMERMAN

materna, sobrevém um incremento da pulsão ou seja, a mãe vai ajudar a criança a trans- de morte que o seu ego incipiente não con- formar os “elementos-beta” que unicamente segue processar, provocando o surgimento servem para ser evacuados, em “elementos- de fortes e insuportáveis angústias de ani- alfa”, que se constituem como matéria-pri- quilamento. ma para uma crescente evolução da capaci- • As frustrações não somente são inevitáveis dade para pensar. Trata-se, portanto, de uma como também são úteis e indispensáveis para verdadeira alfa-betização emocional. a estruturação psíquica da criança. A capa- • A respeito da ausência ou privação do seio cidade de tolerância às frustrações depende materno, Bion fez uma concepção original: das condições constitucionais do bebê e da o bebê faz uma “representação”, no seu ego forma de como processou-se uma determi- primitivo, deste seio ausente, de tal sorte que nada frustração por parte do ambiente pro- ele tem incorporado dentro dele a presença vedor. Assim, penso que podemos referir de um seio não-presente, que ele denomina quatro tipos: a frustração adequada (que pro- como “menos (-) seio” ou “não-seio”. move o crescimento, porquanto leva a crian- • Bion postula que todo recém-nascido é por- ça a achar soluções para o problema criado tador de inatas pré-concepções (como a de pelas frustrações e vai propiciar uma gra- um seio amamentador, por exemplo), sendo dativa capacidade para pensar e simbolizar); que a realidade externa, representada pela as frustrações que são por demais escassas mãe, vai produzir realizações positivas (gra- e tímidas (dá um resultado inverso ao ante- tificação, logo, confirmação da pré-concep- rior); aquelas que são incoerentes (leva a ção) ou negativas, sendo que ambas são criança a um estado de confusão e ambigüi- estruturantes, se o forem em quantidade e dade); e as frustrações excessivas e injustas qualidade adequadas. (promovem a exacerbação dos sentimentos • A acentuada falha continuada do rêverie agressivo-destrutivos). materno vai fazer com que a criança hipertro- • A frustração excessiva comumente resulta de fie a onipotência (que substitui a capacida- uma prolongada ausência ou privação do de para pensar) e a onisciência (que vai ocu- seio materno nutridor, despertando no bebê par o lugar que deveria ser o da “aprendiza- sensações altamente desprazerosas devido ao gem com as experiências”). incremento do ódio. Essas sensações intole- • A predominância da onipotência, onisciên- ráveis – que Bion denominou como sendo cia, elementos-beta, uso excessivo de iden- “elementos-beta” – precisam ser descar- tificações projetivas, bem como de outros regadas para o exterior em uma busca de um aspectos regressivos equivalentes na crian- adequado “continente” que possa contê-las cinha, vão produzir pontos de fixação ou de (no adulto, essa descarga faz-se comumente estagnação do desenvolvimento a níveis por meio de actings, enquanto no bebê ela muito primitivos do psiquismo, configuran- transparece sob a forma de uma agitação do a presença no adulto daquilo que Bion corporal, como esperneios, etc. (1957) denomina “a parte psicótica da per- • Esse continente materno, que Bion também sonalidade” (PPP). nomina de capacidade de rêverie é de fun- • Esta última sempre convive no mesmo indi- damental importância na relação mãe-bebê. víduo com a “parte não-psicótica da perso- Bion exemplifica com situações nas quais as nalidade”; ela está presente, em grau maior falhas do rêverie materno não só privam a ou menor, em qualquer pessoa; não tem o criancinha de alívio e da gratificação, como significado de “psicose”, tal como essa é con- ainda fazem com que a mãe devolva para o ceituada na psiquiatria clínica (embora even- filho a angústia que este projetara, agora tualmente possa atingir esse grau de psicopa- acrescida das angústias dela própria, num pe- tologia). A concepção da PPP representa ser rigoso círculo vicioso maligno. um resíduo do desenvolvimento emocional • Uma boa capacidade de rêverie da mãe exi- primitivo que adquiriu uma enorme impor- ge aquilo que Bion denomina função-alfa, tância na prática das psicoterapias analíticas. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 101

Dentro da Escola Britânica de Psicanálise im- uma profunda necessidade de encontrar na pessoa põe-se também mencionar mais dois autores: J. do terapeuta uma espécie de “incubadora uterina Bowlby e F. Tustin. emocional”. Bowlby (1969) estudou durante mais de 40 anos Fica evidente para o leitor que um maior apro- o que ele descreveu como sendo um vínculo afetivo fundamento de cada um dos aspectos menciona- primário do bebê com a mãe, que se processa por dos do começo ao fim deste capítulo mais compor- meio do fenômeno do “apego” (attachment). Esse taria um livro do que um simples artigo de finali- autor comprovou que essas crianças, que precoce- dade didática, como é o caso deste texto. Por outro mente foram privadas de suas mães, passam por lado, sem obviamente subestimar a importância da uma série de três fases que ele denomina: 1) pro- sexualidade edípica, tem sido cada vez maior a atri- testo (a criança chora, esperneia e volta-se para buição da relevância dos fatores narcisistas na for- qualquer ruído ou som que possa indicar a mãe au- mação da personalidade e na determinação da sente); 2) desesperança (a etimologia composta de psicopatologia. Assim, os distintos quadros da “des” (sem) + “esperança”, indica que o bebê “can- psicopatologia, notadamente os de natureza bas- sou” de esperar, sendo que essa fase é análoga ao tante regressiva, tendem a ser melhor compreendi- penar do adulto; e 3) retraimento (indica o desape- dos com base nos defeitos, nas (des)estruturações go emocional e corresponde à indiferença e desvalia psíquicas, do que com base nos conflitos intrapsí- da depressão adulta, com o sério risco de entrar quicos. num estado mental de “desistência”. Por essas razões, entendi ser justificável a in- Tustin (1986) estudou particularmente as crian- clusão de dois capítulos que seguem este, são-lhe ças “autistas” nas quais existe um estado de “nada”, complementares, estendem-se à aplicação na prá- de vazio, que funciona como “conchas autísticas” tica das terapias psicanalíticas e dizem respeito à e que traduz um desligamento da realidade vincu- “normalidade e patologia da função materna” (ca- lar. São crianças que na prática clínica evidenciam pítulo 7) e à “posição narcisista”(capítulo 13).

CAPÍTULO contribuem para este estado de coisas são, entre outros, os seguintes: • Um novo significado de fa- mília, com novos valores, expectativas e papéis a serem desempenhados. • Uma maior emancipa- ção da mulher, que geralmente deve trabalhar fora 7 e que, por isso, deve fazer uma extenuante ginás- tica para conciliar as funções de maternagem com as profissionais. • Em contrapartida, também o perfil do homem tem mudado bastante, especial- mente quanto à sua maior participação na econo- O Grupo Familiar: mia doméstica e nos cuidados precoces com os filhos. • Igualmente os avós, de modo geral, não Normalidade e Patologia têm mais o mesmo tipo de uma disponível parti- cipação ativa que tinham junto aos netos. • O cres- da Função Materna cente índice de divórcios e recasamentos, sendo que neste último caso acresce o fato de uma mis- tura dos respectivos filhos. • Um número cada vez maior de mães adolescentes e solteiras. • Uma Na atualidade, é consensual entre todos os psi- crescente mentalidade consumista, em grande par- canalistas, independentemente se a orientação te ditada pela “mídia”, que também exerce uma conceitual dos mesmos inclina-se mais para o foco influência na formação de valores ideológicos. • pulsional ou ambiental, o fato de que o grupo fa- A angustiante necessidade de ter que conviver com miliar exerce uma profunda e decisiva importân- a violência urbana; uma generalização da angús- cia na estruturação do psiquismo da criança, logo, tia de ordem econômica, etc. na formação da personalidade do adulto. Dinâmica do Grupo Familiar O GRUPO FAMILIAR A família constitui-se como um campo dinâmi- O termo “grupo familiar” designa não unica- co no qual agem tanto os fatores conscientes quan- mente a influência exercida pela mãe, mas também to os inconscientes, sendo que a criança, desde o pelo pai, irmãos, os inter-relacionamentos, bem nascimento, não apenas sofre passivamente a in- como, também, pelas demais pessoas que interagem fluência dos outros, mas, reciprocamente, é tam- diretamente com a criança, como babás, avós, etc. bém um poderoso agente ativo de modificações nos No entanto, no presente capítulo deter-nos-emos demais e na estrutura da totalidade da família. mais demoradamente na função materna, tomada Um primeiro fator a levar-se em consideração em seu sentido genérico, que tanto pode referir-se é o da transgeracionalidade, isto é, cada um dos unicamente à mãe concreta como a qualquer outra genitores da criança mantém a internalização de pessoa que, de forma sistemática e profunda, ve- suas respectivas famílias originais com os corres- nha a exercer a sua função. pondentes valores, estereótipos e conflitos. Há uma forte tendência no sentido de que os conflitos não resolvidos pelos pais da criança, com os seus res- Fatores Socioculturais pectivos pais originais, interiorizados, (como, por exemplo, os conflitos edípicos de cada um deles) Preliminarmente, é útil lembrar que a confi- sejam reeditados nas pessoas dos filhos. A propó- guração dos “grupos familiares” vem sofrendo sito disso, é relativamente comum que uma mãe, profundas transformações reais com a passagem fixada edipicamente em seu pai, menospreze o seu das sucessivas gerações, sendo inquestionável que marido, enquanto repete com o seu filho o mesmo esse fato traz significativas repercussões no bebê, enredo incestuoso mal-resolvido; desta forma, ela na criança, no adolescente e futuro adulto, tanto delega ao filho o papel de ele tomar o avô (o pai no que diz respeito à formação de sua identidade dela) como um admirado modelo para identifica- individual como à identidade grupal e à social. ção, com a exclusão da figura paterna, que resta Alguns dos fatores culturais e sociológicos que desvalorizada. É claro que o mesmo vale para as 104 DAVID E. ZIMERMAN fixações mal-resolvidas do pai e reproduzidas pe- de um clima de liberdade e de respeito recíproco los filhos. entre os membros. Caso predomine um uso exage- Não são somente os conflitos neuróticos (ou rado de “identificações projetivas” de uns nos ou- psicóticos, psicopáticos, perversos, somatizadores, tros, a tal ponto que predomine uma posição geral etc.) das gerações precedentes da família nuclear “esquizoparanóide” em detrimento de uma “depres- que se reeditam nos próprios pais, e dentre eles, e siva”, haverá o grave risco de que se percam os daí para os filhos, em uma combinação que envol- necessários limites, direitos, deveres, privilégios e ve, no mínimo, três gerações, num continuado jogo o reconhecimento das limitações de cada um, e, de mútuas reprojeções. Também há a transmissão conseqüentemente, os lugares que cabem a um pai, de valores e de significados, tanto os de natureza mãe ou filho, podem ficar borrados, confusos ou pulsional (por exemplo: o estímulo excessivo, ou trocados. o bloqueio, da sexualidade ou da agressão), como Qualquer uma dessas situações, é óbvio, reper- também os egóicos (identificação com certos atri- cute fundamentalmente na formação do psiquismo butos e capacidades, por exemplo), os provindos do filho, e isso justifica que nos alonguemos nos do superego (mandamentos e proibições) e do ide- lugares e funções que, basicamente, cabem aos al do ego (ambições e expectativas). genitores, notadamente a função materna, desde o O grupo familiar nunca é estático. Antes, ele nascimento do filho. sofre contínuas transformações e comporta-se como um campo grupal dinâmico, onde circulam em to- dos os níveis, uma rede de necessidades, desejos, NORMALIDADE E PATOGENIA DA demandas, relações objetais, ansiedades, mecanis- FUNÇÃO MATERNA mos defensivos, mal-entendidos da comunicação, segredos ocultos ou compartilhados, afetos contra- Uma adequada maternagem – que Winnicott ditórios, etc., sendo necessário destacar três aspec- denomina como sendo aquela provinda de uma mãe tos essenciais: 1) As características pessoais, em suficientemente boa – alude ao fato de que essa todos os sentidos, do pai e da mãe separadamente, mãe não frustra, nem gratifica, de forma excessiva, em especial, da relação entre eles, sendo que é e que possibilita um sadio crescimento do self do essencialmente relevante a imagem e a valoração seu filho. Essa condição de maternagem requer uma que cada um deles tem em relação ao outro, pelo série de atributos e funções da mãe, que tanto po- fato de que essa imagem é que, em grande parte, dem pautar por uma normalidade, como também constituirá as representações internas que o filho podem adquirir caraterísticas patogênicas. Pela terá de cada um dos pais e, por conseguinte, de si extrema importância que esses múltiplos aspectos mesmo. 2) Este fenômeno está diretamente conec- da relação mãe-filho exercem no desenvolvimento tado com o aspecto das identificações, matéria-pri- do ser humano, cabe descrevê-los separadamente. ma da formação do primacial sentimento de iden- tidade e da auto-estima. 3) A designação e a defi- nição de papéis, (como, por exemplo, o de “bode expiatório”; “orgulho da mamãe”; “doente da fa- Normalidade da Função Materna mília”, etc., etc.) a serem cumpridos dentro da fa- mília e fora dela. Uma mãe “suficientemente boa” (termo de Win- De acordo com todos os aspectos referidos, as nicott), levando em conta as óbvias diferenças in- famílias estruturam-se com um perfil caracteroló- dividuais de cada uma delas, deve preencher satis- gico variável de uma para outra, porém, com uma fatoriamente as seguintes condições: especificidade típica de cada uma delas, que, por exemplo, pode ser de natureza excessivamente 1. Ser provedora das necessidades básicas do simbiótica ou de características predominantemente filho (de sobrevivência física e psíquica: obsessivas, narcisistas, paranóides, fóbicas, depres- alimentos, agasalho, calor, amor, contato sivas, sadomasoquistas, etc., ou naturalmente apre- físico, etc.). sentam-se como famílias bem estruturadas e sa- 2. Exercer a função de para-excitação dos es- dias. tímulos que o ego incipiente da criança não Uma família bem estruturada requer algumas consegue processar pela sua natural imatu- condições básicas, como é a necessidade de que ridade neurofisiológica. Esses estímulos haja uma hierarquia na distribuição de papéis, lu- tanto procedem das tensões e traumatismos gares, posições e atribuições, com a manutenção derivados das primeiras experiências sen- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 105

soriais e emocionais da infância, como tam- gressiva e necessária “desilusão das ilu- bém se originam nas desprazerosas sensa- sões”. ções emanadas do próprio corpo. Neste úl- 7. Isso remete-nos a uma função essencial de timo caso, elas podem ser exteroceptivas uma boa maternagem: a de frustrar ade- (parte externa do corpo), proprioceptivas quadamente. As frustrações, além de ine- (camadas profundas da pele), enterocep- vitáveis, também são indispensáveis ao tivas (órgãos internos, como pode ser, por crescimento emocional e cognitivo da exemplo, uma cólica intestinal do bebê), criança. No entanto, como será exposto cinestésicas (sensação de equilíbrio). A mais adiante, as frustrações podem consti- mãe compreendendo e, na medida do pos- tuir-se como patogênicas, se incorrerem em sível, atendendo aos apelos do bebê, ali- um desses extremos: as frustrações pode- via-o das tensões insuportáveis que se ex- riam ter sido evitadas, sem prejuízo para pressam por um estado de excitação. ninguém; são excessivamente escassas ou 3. Possibilitar uma simbiose adequada: as por demais exageradas; ou, ainda, continua- sensações corporais acima referidas adqui- damente incoerentes. Especialmente no rem uma grande dimensão na criancinha caso em que as frustrações ambientais fo- porque, além do fato dela não ter condi- ram excessivas e inadequadas, o bebê rea- ções de reconhecer de onde as sensações ge agressivamente com a emissão de sinais procedem e as diferenças entre si, essas ain- de forte agitação, como que à espera de que da vêm acompanhadas de uma arcaica sen- alguém contenha as suas sensações e pri- sação de “não-integração” das diversas par- mitivas emoções intoleráveis (as quais tes do corpo. Assim, é função da mãe, de constituem o que Bion denomina “elemen- certa forma, “emprestar o seu corpo” ao tos-beta”, que são “evacuadas” para fora bebê, temporariamente, pelo “encaixe” dos pelas “identificações projetivas”. corpos de ambos, o que se traduz na forma 8. A função de a mãe conter as aludidas car- de quando a mãe o segura no colo, embala- gas de identificações projetivas está sendo o, faz a sua higiene, etc. reconhecida como a fundamental para a 4. Compreender e decodificar a arcaica lin- estruturação sadia da criança. Essa capaci- guagem corporal do bebê, que se vai trans- dade de continência, ou de rêverie, como formando gradativamente desde os iniciais Bion as denomina (Winnicott a conceitua reflexos sensório-motores até uma crescen- com o nome de holding), implica no exer- te maturação neuronal e da corticalidade cício da função-alfa (conceituação de cerebral. Uma das formas de o bebê comu- Bion). nicar-se com a sua mãe é por meio do cho- 9. Essa última consiste na função de a mãe: ro (pode ser o sono, as mamadas, etc.) e estar disponível para acolher o “conteúdo” cabe à mãe decodificar se este choro ex- das necessidades e angústias da criança; pressa fome, frio, fraldas “cocosadas”, dor contê-las dentro de si; decodificá-las; no ouvido, cólica, um apelo por companhia, transformá-las; dar para si própria um sen- etc., etc.). tido; um significado; uma nomeação e, daí, 5. Essa presença continuada da mãe que “en- uma devolução para o filho da compreen- tende e atende” essas necessidades básicas são das referidas angústias, agora, devida- do bebê vai propiciar para a criança um mente desintoxicadas. Posteriormente, senso de continuidade, baseada na praze- além das necessidades básicas, com as res- rosa sensação de que ela “continua a exis- pectivas angústias, a mãe também terá que tir”. ser continente dos desejos, demandas e ata- 6. Uma maternagem adequada também impli- ques agressivos, do tipo da fase da teimo- ca não só essa necessária presença da mãe, sia e birra que acompanha aquela fase da mas também na sua condição de saber es- criança sistematicamente dizer “não”; dela tar ausente e, com isso, promover uma pro- acusar a mãe com “tu és má “, “não gosto de ti”, “tu não existes para mim”..., e a mãe 106 DAVID E. ZIMERMAN

“sobreviver” tranqüilamente a esses ata- também das capacidades de seu filho, no- ques. tadamente dos pequenos (para ele, enor- 10. A função de rêverie deve vir acompanha- mes) progressos que ele esteja conquistan- da de uma capacidade de empatia, ou seja, do. de uma forma de comunicação primitiva en- 17. Assim, a mãe deve favorecer a formação tre a mãe e o bebê, pela qual a mãe conse- no psiquismo da criança de representações gue “intuir” o que está-se passando com o valorizadas e admiradas, tanto do próprio filho. filho como também dos pais que estão sen- 11. A capacidade de a mãe sobreviver aos ata- do internalizados pela criança. Assim, é ques destrutivos e às demandas vorazes do especialmente relevante a representação filho sem um revide retaliador e, muito me- que a mãe tem do pai do seu filho, por- nos, sem sucumbir a um estado de depres- quanto essa será a imagem que a criança são (que exacerba as fantasias da criança a terá de seu pai. Da mesma forma, a visão respeito de sua maldade e destrutividade). que a mãe tem dos potenciais de seu filho 12. Uma boa maternagem implica que a mãe tornam-se parte importante das represen- deve permitir que a criança exercite o seu tações que este terá de si próprio. direito – e necessidade – de devanear, ima- 18. Da mesma forma, a mãe deve ter bem cla- ginar e fantasiar, assim como também deve ro, para si, que ela funciona como um im- permitir temporariamente que a criança de- portantíssimo modelo de identificação para monstre aquilo que Kohut (1971) denomi- o seu filho. na como “self grandioso” e “imago paren- 19. Uma adequada maternagem deve facilitar tal idealizada”. uma lenta e gradual dessimbiotização e, 13. Deve ser destacada a importância do dis- assim, abrir um caminho para a entrada em curso da mãe, porquanto ela dá nomes e cena de um pai, respeitado e valorizado. A significados, de toda ordem, que ainda são partir daí, a mãe estará promovendo a seu desconhecidos pela criança e que, por isso filho a passagem de uma díade exclusiva mesmo, são potencialmente os fundantes com ela para um triângulo edípico. Assim, dos valores e das auto-representações da a criancinha adquire a capacidade de reco- criança. Uma forma particularmente impor- nhecimento da existência de terceiros, o que tante relativa ao “discurso” da mãe é aque- propicia a importante transição de um es- la que diz respeito à sua emissão de “du- tado de narcisismo para o de um socialis- plas mensagens” para o filho, aspecto que mo. será abordado mais adiante. 20. É evidente que as funções estruturantes do 14. A mãe deve emprestar as suas “funções do psiquismo da criança não dependem uni- ego”, como as capacidades de perceber, camente da mãe, mas sim que, além de ou- pensar, juízo crítico, etc., de modo a orga- tras eventuais pessoas, elas estão íntima e nizar e processar essas funções do ego de indissociadamente conectadas com as fun- seu filho, enquanto ele ainda não as tem ções que comumente cabem à figura pa- desenvolvidas. terna. 15. Um importante aspecto da maternagem consiste no fato de que a mãe representa para a criança ser como um espelho, tal Funções do Pai como aparece nesta frase de Winnicott (1967), tão bela como verdadeira: o pri- Na literatura psicanalítica, a figura do pai tinha meiro espelho da criatura humana é o ros- um relevo extraordinário na obra de Freud, enquan- to da mãe, seu olhar, sorriso, expressões to na teoria kleiniana a sua figura ficou muito ofus- faciais. etc. cada pela hegemonia que Klein atribui à mãe, sen- 16. Como decorrência do item anterior, torna- do que, na atualidade, a psicanálise está resgatan- do a importância do lugar, papéis e funções perti- se necessário incluir a função materna de nentes ao pai. Assim, dentre as, fundamentais, fun- reconhecimento, não só das angústias, mas FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 107

ções que devem ser exercidas pelo pai, as seguin- Papel dos Irmãos tes merecem ser destacadas: • A segurança e a estabilidade que ele dá, ou A literatura especializada nem sempre costuma não dá, à mãe, na tarefa, por vezes árdua e valorizar o “complexo fraterno”, isto é, a influên- extenuante, de bem educar e promover o cia recíproca entre os irmãos. No entanto, essa interação é de capital importância na estruturação crescimento do filho. dos indivíduos e do grupo familiar. Pode-se dizer • Dentro da concepção da transgeracionali- que os irmãos funcionam como objetos de um du- dade, é útil saber como foi o vínculo dele plo investimento: o primeiro é o que diz respeito com o seu respectivo pai, e até que ponto ele às conhecidas reações ambivalentes de amor e ami- o está repetindo com seu filho; qual é a re- zade, mescladas com sentimentos de inveja, ciú- presentação interna que ele tem da esposa me, rivalidade, etc. O segundo investimento con- (mãe da criança) e que influirá bastante na- siste em um, defensivo, deslocamento nos irmãos quela que o filho terá da mãe, e também qual de pulsões libidinosas, ou agressivas, que prima- o “lugar” que o pai ocupa no desejo e na riamente seriam dirigidas aos pais. representação que a esposa tem dele. Assim, é comum observar situações nas quais • A ênfase que merece ser dada ao papel do os irmãos criam camufladas brincadeiras eróticas entre si; ou quando um irmão torna-se um zeloso e pai incide no fato de que a sua presença – enciumado guardião dos namoros de sua irmã mais física e afetiva – é de fundamental impor- velha; ou quando adota uma postura maternal em tância no processo de separação-individua- relação a um irmão (ou irmã) mais moço; ou na ção (Mahler, 1986) referente à díade mãe- situação em que se manifesta uma acentuada re- filho. Com outras palavras, é o pai que no gressão a níveis de necessidades que estão sendo papel de “terceiro”, interpondo-se como uma gratificadas pela mãe para um irmãozinho caçula, cunha normatizadora e delimitadora entre a ou doente, e assim por diante. mãe e o bebê, irá propiciar a necessária pas- Por outro lado, não é raro observar que a um sagem de Narciso a Édipo. irmão é dado substituir a um outro, já falecido (ou • As adequadas frustrações impostas pela fun- abortado), de quem deve herdar tudo o que os pais ção paterna, pela colocação de limites, reco- esperavam daquele, como, por exemplo, nome, gênero sexual, expectativas, etc. Da mesma forma, nhecimento das limitações e aceitação das pode-se observar o fato de que um dentre os ir- diferenças, promovem a necessária, embora mãos desempenhe junto a um outro o papel de “du- dolorosa, passagem do princípio do “prazer- plo”, assim complementando para este irmão, e desprazer” para o da “realidade”. Da mes- vice-versa, tudo o que este não consegue fazer ou ma forma, as frustrações promovem um es- ter, como é o caso das diferenças de sexo, por exem- tímulo às funções do ego da criança, espe- plo. Por vezes, essa condição de “duplo” adquire cialmente a formação da capacidade para tal intensidade que ambos não conseguem separar- pensar. se, e envolvem-se em uma típica folie a deux, sen- • As fantasias inconscientes que se formam em do que a ruptura dessa ligação simbiótica, especial- torno da “cena primária” e que vêm a de- mente na adolescência, pode trazer conseqüências sempenhar uma decisiva determinação na tão graves para um dos dois. Esse tipo de ligação sim- biótica entre irmãos (posteriormente extensiva a importante resolução do complexo edípico todas demais inter-relações deles) pode estar refle- dependem diretamente do comportamento tindo o modelo de como é a união dos pais, que dos pais, e de como cada um deles, por sua freqüentemente assume uma característica de uma vez, resolveu em si próprio esses mesmos simbiose que se manifesta disfarçada pelo predo- conflitos edípicos. Uma vez ultrapassada a mínio de um recíproco sadomasoquismo, de tal ligação simbiótica com a mãe (graças à ne- sorte que o casal não consegue viver junto, porém, cessária presença e função castratória da fi- eles tampouco conseguem viver separados. gura paterna), e resolvido o conflito edípico, Uma outra situação bastante comum é aquela a criança, mais assegurada em sua identida- encontrada nos indivíduos que se sabotam ou de- de, vai poder renunciar à mãe como seu in- primem-se diante de seus sucessos na vida adulta, teresse exclusivo e abrir-se para uma socia- nos casos em que eles tenham tido irmãos precoce- mente falecidos, ou com sérias limitações orgâni- lização com o pai, irmãos e amizades. 108 DAVID E. ZIMERMAN cas e psíquicas, ou mal sucedidos de foma geral. rantir o seu “seguro-solidão”, como costumo defi- Essa auto-sabotagem deve-se: 1) Às culpas incons- nir essa situação nada rara. cientes por terem concretizado o triunfo de uma velha rivalidade com os irmãos; 2) Também pode dever-se ao fato de que para não humilhar e fazer Corpo sofrer os que não acompanharam o seu sucesso, o sujeito faça um voto de “solidariedade às vítimas” Nestes casos de predominância “narciso-sim- e boicote o seu próprio crescimento enquanto não biótica”, é comum que se forme uma relação muito conseguir uma “reparação”, geralmente impossí- particular que a mãe faz ao corpo da criança, como vel, de que os demais irmãos (e ou pais) acompa- pode ser visto, nas situações mais extremas, nas nhem o seu sucesso. concepções de J. MacDougall (1987) acerca de “um São muitos os mitos bíblicos que referem dire- corpo para dois”. Comumente, essa “confusão dos tamente aos conflitos entre irmãos –, entre outros: corpos” expressa-se pela determinação imposta os de Caim e Abel; de Esaú e Jacob; e de José e pela mãe no uso de roupas da criança (se ela sente seus irmãos – sendo que todos eles se constituem frio, o filho obrigatoriamente deve ficar supera- em um rico manancial para o entendimento da im- brigado, mesmo que na realidade não esteja tão frio portância da patologia entre irmãos, dentro de um assim); na manipulação dos genitais durante a roti- contexto do grupo familiar (Zimerman, 1993). na higiênica; no abuso de enemas, etc., e, particu- larmente, por meio da construção de uma atitude hipocondríaca que obriga a criança a sentir os Patogenia da Função Materna mesmos sintomas e angústias corporais que ela, mãe. Assim como a mãe, principalmente desde os primitivos vínculos com o bebê, constitui-se como o primacial fator estruturante do desenvolvimento Prover e Frustrar do filho, também costuma acontecer que as falhas da função materna sejam poderosos determinantes A função de “prover” implica levar em conta da “desestruturação” do psiquismo da criança e, as coordenadas de espaço (um lugar-continente por conseguinte, do futuro adulto. para as projeções do bebê) e de tempo (gratificar Dentre os fatores patogênicos – ou seja, daque- rápido demais estimula a simbiose, gratificar lento les que promovem a gênese da patologia – impõe- demais gera protesto porque é vivido pelo bebê se assinalar aos seguintes: como frustração). As frustrações, como antes foi destacado, tanto podem ser adequadas, quando então elas são indispensáveis e estruturantes, como Simbiose também elas podem ser inadequadas e desestru- turantes. As frustrações inadequadas têm origem numa dessas três possibilidades: O tipo de amor que a mãe devota à criança é predominantemente objetal ou narcísico? Com 1) São por demais escassas, em cujo caso a outras palavras: tanto pode prevalecer nela o dese- mãe tende a resolver todas as necessidades jo de ter um filho para ajudá-lo a crescer até que e desejos da criança antecipando-se à ca- ele tenha condições de emancipar-se, como tam- pacidade dessa de poder pensar para achar bém é possível que ela sinta o filho como uma pos- soluções para os problemas criados. Assim, se sua, dentro do seu projeto inconsciente de uma a mãe não só inibe no filho a capacidade “gestação eterna”. Pode acontecer, portanto, que a mãe tenha uma necessidade vital do seu filho e o para pensar, como também, ao mesmo tem- induza a funcionar como sendo o seu complemen- po, ela reforça excessivamente a onipotên- to sexual ou narcísico, ou ambos. Nos casos em cia, a vigência do “princípio do prazer” e que a mãe seja basicamente uma pessoa deprimi- um vínculo simbiótico que pode atingir um da, ou que tenha uma fobia de ficar sozinha, costu- nível tal a ponto de determinar uma “iden- ma acontecer que essa mãe invista em algum do tificação adesiva”, tal como Meltzer (1975) filhos (às vezes, em alguns ou em todos) um víncu- conceitua. lo simbiótico, cimentado de culpas, de modo a ga- 2) Quando são continuadamente exageradas, tanto na intensidade como numa possível FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 109

qualidade de injustiça contra o filho, essas uso das identificações projetivas, num movimento frustrações geram na criança um sentimen- de hipérbole, como um apelo desesperado para ser to de ódio intenso, acompanhado de uma compreendido e contido, e isso acarreta sérias con- “ansiedade de aniquilamento”, com sensa- seqüências, as quais podem ser sintetizadas naqui- ções corporais insuportáveis, a tal ponto lo que Bion denomina como sendo “a parte psicótica da personalidade”. que elas não conseguem ser metabolizadas Outros distúrbios da “função de continência e, de alguma forma, necessitam ser evacua- materna”, além dos já citados 1) mãe- enigmática das (Bion denomina a essas terríveis sen- e 2) mãe-recipiente, antes referidos, são, possivel- sações de “elementos-beta”, as quais não mente: 3) mãe-indiferente (ela não “escuta”, logo, se prestam para “serem pensadas”, mas, não compreende e não contém as ansiedades do sim, “atuadas” ou “somatizadas”). filho que, por isso, entra num estado de desamparo 3) As frustrações incoerentes que provocam e cria vazios existenciais); 4) mãe-ansiosa que, na criança um estado de confusão, instabi- embora amorosa, não tem boa capacidade de lidade e de um permanente sobressalto rêverie e por essa razão ela manipula exagerada- quanto à reação dessa “mãe enigmática”. mente o filho, de modo a devolver a esse as mes- mas ansiedades que ele projetou, acrescidas das que Em resumo, cabe equacionar a existência de três são próprias dela, mãe. Alguns analistas da Escola tipos principais de métodos patogênicos de educa- Francesa de Psicanálise (Rocha, 1988) referem a ção: a severidade excessiva, a indulgência excessi- uma 5) mãe-abismo “quando a criança é induzida va e a incoerência das atitudes dos educadores, ou a acreditar que ela é unicamente o complemento entre eles e, pior que tudo, uma indiferença pela narcísico e sexual da mãe, sempre será insuficiente criança. No caso de uma exagerada indulgência por tudo que ele der ou fizer pela mãe”. De um outro parte dos pais, uma provável conseqüência nas vértice, creio que essa “mãe-abismo” pode ser en- crianças será a formação de um superego de carac- tendida como aquela que, além de não conseguir terísticas muito severas e rígidas, porquanto ela pró- funcionar como continente do filho, ainda troca de pria terá que policiar as suas ameaçadoras pulsões papéis com ele, fazendo a criança funcionar como internas. continente dela, de tal maneira que diante dos de- sejos insaciáveis (“abismo”) da mãe, ele deverá comportar-se como criança-rolha. Conter Espelho Em relação à importantíssima função de conti- nência materna, a primeira observação a ser feita é a necessidade de que se estabeleça a distinção en- A “função especular materna” para o desenvol- tre “continente” e “recipiente”, porquanto este úl- vimento da criança, na qual ela se vê refletida e timo, como o nome sugere, não passa de um mero reconhecida no olhar da mãe, é tão importante que depósito passivo, onde a criança expele os seus justifica prolongar a metáfora de “seio bom e seio excrementos emocionais, como se ela fôra um mau” de M. Klein, para a de “olhar bom e olhar penico. O grave prejuízo para a criança, dessa mau” da mãe. Neste contexto, cresce muito a res- “mãe-recipiente (penico)”, é que ela será introjetada ponsabilidade da mãe real, pois, sendo um espelho e representada como uma figura muito frágil e des- do seu filho, ela tanto pode refletir o que ele real- valorizada, assim aumentando no filho, ao mesmo mente é, ou, qual um espelho que distorce as ima- tempo, sentimentos culposos, de onipotência, de gens – o que lembra aqueles espelhos côncavos e agravamento da dissociação da figura feminina e convexos que aparecem em parques de diversão – de uma autodesvalia. a mãe pode refletir aquilo que ela própria é, ou Em contrapartida, o conceito de “continência” imagina ser. No entanto, pior que essa há 6) mãe- refere a um processo ativo da mãe, em que ela “aco- distorcionadora que é aquela que funciona como lhe”, “transforma” e “devolve” para o filho, devi- um espelho-opaco, que nada reflete, nem de bom e damente desintoxicados, significados e nomeados, nem de mau. o “conteúdo” das identificações projetivas dele. Na hipótese de que a mãe não consiga exercer essa função, a criança vê-se obrigada a incrementar o 110 DAVID E. ZIMERMAN

Discurso mente são conferidas à criança, e que ele carrega como uma obrigação inconsciente de desempenhar No mínimo, três aspectos decorrentes do dis- ao longo da vida. curso da mãe em relação ao filho são singularmen- te importantes: um é o das significações; o outro Duplo vínculo (double bind) refere-se à construção das predições e expectati- Bateson e colaboradores (1955) utilizam esse vas do ideal do ego; o terceiro aspecto alude ao termo para referirem-se a situações pelas quais as duplo vínculo (composto de duplas mensagens). mensagens contraditórias e paradoxais emitidas pelos pais, invariavelmente, deixam a criança no Significações papel de perdedora e num estado de confusão e Diante de um mesmo fato, cada mãe pode atri- desqualificação. Pode servir como exemplo, banal, buir uma significação que reflete o seu próprio a sentença da mãe que diz ao filho: “Eu te ordeno mundo interno. J. MacDougall (citada em Rocha, que não deixes ninguém te dar ordens”, ou grita a 1988, p. 33) exemplifica com três possibilidades: altos brados para que a criança nunca grite, etc. a mãe que sistematicamente condena a experiên- Dessa forma, a criança fica presa nas malhas de cia afetiva do filho (“basta, ninguém gosta de crian- um duplo vínculo: receia ser castigada se ela inter- ça que chora”), ou a nega (“não é verdade que você pretar as mensagens da mãe tanto acertada como detesta seu irmão, você o adora”), ou que a substi- equivocadamente. Aliás, o termo “bind “ original- tui por um discurso que esteja em relação com os mente alude a uma condição de “prisioneiro”, tal problemas inconscientes dos pais. como é o cabresto nos animais. Assim, uma mãe fóbica – portanto, alarmada e O emprego do “duplo vínculo” é bastante co- alarmante – emprestará um significado de “peri- mum por parte das mães que se sentem ameaçadas go” a qualquer acontecimento (por exemplo, um com a aproximação afetiva do filho e, como uma raio acompanhado de um trovão ou uma briga po- forma de controlar a distância afetiva, rejeitam-no, dem adquirir um significado terrorífico de tragé- porém, ao perceberem e sentirem que a recusa foi dia iminente, etc.) e fará a apologia da “evitação”, um ato agressivo, que pode ameaçar uma separa- enquanto uma outra, de características paranóides, ção, buscam uma nova reaproximação simbiotiza- obsessivas, narcisistas, hipocondríacas, e assim por dora, num círculo viciosos ambíguo e interminá- diante, plantará na mente da criança os significa- vel. Na verdade, o uso do duplo vínculo visa à dos correspondentes, que poderão acompanhá-la manutenção de uma dependência eternamente para o resto da vida (daí por que a psicanálise con- simbiótica, sendo que na prática analítica pode temporânea está valorizando bastante a necessida- acontecer que pacientes que desde a infância tive- de de o psicanalista ajudar o analisando a fazer ram esse molde impresso em seu psiquismo, de- dessignificações, seguidas de neosignificações). senvolvam alguma forma severa de “impasse psi- canalítico”. Ideal do ego Resta evidente que, não obstante a ênfase do presente texto tenha incidido na mãe, a mesma é Uma mãe de características fortemente “narci- indissociada da figura do pai. Mais especificamen- so-simbiotizadoras” doutrinará o seu filho no sen- te, a ação patogênica da figura paterna consiste nas tido de quem ele é (na visão dela), como ele deve condições em que o pai esteja excessivamente au- ser (especialmente a que ele aprenda a funcionar, sente, tanto física como afetivamente, ou também tendo como desejo maior o de ser o maior “dese- quando ele é demasiado frágil ou é por demais jo” da mãe), o que e quem ele será quando crescer desqualificado pelo discurso materno. Nestes ca- e como ele deve sentir, agir e amar. (“Teu nome é sos, haverá uma grave falha na necessidade de que João, tu és o filhinho querido da mamãe, vais ser haja a presença de um “terceiro”, uma figura de obediente e vais-me dar muito orgulho porque es- pai forte e respeitado, que exerça a função de im- pero que sejas o primeiro lugar da aula, e no futuro por a “lei” (a “castração simbólica”, como concei- um médico famoso...”). Da mesma forma, esse tipo tua Lacan) de modo a desfazer a “díade narcisística” de mãe usará um discurso catequisador de modo a com a mãe e instituir o “triângulo edípico”. Da excluir a figura do pai do campo afetivo da crian- mesma forma, a presença de um pai excessivamente ça, com as conseqüências previsíveis. Um aspecto sedutor ou tirânico impedirá uma boa e necessária particularmente importante em relação à constru- simbiose transitória com a mãe, assim como difi- ção dos ideais é a atribuição de papéis, de distintas cultará a resolução edípica. modalidades, algumas patológicas, que precoce- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 111

CAPÍTULO estado de desamparo (Hilflos, no original alemão) da criança, situação que ele descreve com as seguin- tes palavras: “O ego se sente desamparado, atordo- ado e abandonado à sua sorte diante de um aluvião de excitações demasiado poderosas para que os 8 processos mentais do ego possam-nas manejar”. Por essa mesma época, Ferenczi (1933), além de ressaltar a relevância dos traumáticos abusos sexuais precoces, também enfatizou a importância dos pais na determinação de “traumas”, afirmando Trauma e Desamparo que isso ocorre quando “a criança não se sente compreendida pelos adultos, como se houvesse uma “confusão de linguagem” entre eles (...) e, ade- mais, esses adultos oferecem uma experiência Entendi ser útil incluir o presente capítulo nes- exageradamente excitante, ameaçadora ou te livro pela razão de que, cada vez mais, aumenta perturbadora”. o contingente de pessoas, em condições bastante 2. M. Klein: além da sua fudamental concep- regressivas, que procura tratamento analítico, de ção a respeito da angústia de aniquilamento – re- modo que, paralelamente, também vem aumentan- sultante da ação do instinto de morte – talvez o do significativamente o interesse dos psicotera- texto mais ilustrativo do estado de “desamparo” é peutas pelos traumas – físicos e psicológicos – que o que está no seu trabalho Sentimento de solidão, tais pacientes sofreram na sua primitiva infância e no qual fica evidente a sua noção de que o indiví- que provocaram a mais dolorida das angústias: a duo pode estar rodeado de muita gente e ainda as- de um estado de desamparo. sim sentir-se sozinho, abandonado e desampara- O conceito de “trauma” aparece na literatura do; o que acontece no caso de que o seu mundo psicanalítica com vários significados, sendo que interno seja habitado por “objetos maus”, tal como inclusive nos trabalhos de Freud ele também so- seus pais foram introjetados. freu consideráveis modificações. Um passeio pe- las distintas correntes psicanalíticas permite per- D. Meltzer, importante seguidor de M. Klein, ceber que as noções de “trauma” e de “desampa- deu uma grande contribuição ao entendimento do ro” aparecem com terminologia distinta, porém com “estado de desamparo” por meio de seus conceitos significados equivalentes. Assim, importa mencio- de identificação adesiva e do estado mental de nar os seguintes autores representantes das sete desmantelamento (1975). Este último, na verdade, escolas de psicanálise, embora não se pretenda, corresponde a um estado de “des-mente-lamento”, aqui, dar mais do que uma pálida idéia das concep- no qual a mente parece suspender o seu funciona- ções de cada um deles. mento” – à maneira de um “petit mal epiléptico” –, em cujo caso, a “mente cai aos pedaços”. Tanto na 1. Em Freud, o “trauma” aparece pela primei- “identificação adesiva” como no “desmantelamen- ra vez em 1895, nos seus estudos com suas pacien- to” resulta a falta de um espaço mental interno para tes histéricas, como sendo relacionado com uma conter e sustentar as identificações, daí surgindo a primitiva “sedução sexual” perpetuada pelo pai con- formação de um esvaziamento das capacidades tra a menina indefesa. Posteriormente, ele conce- próprias e, logo, de uma sensação de desamparo. beu que essa realidade psíquica dessas pacientes era devida a fantasias decorrentes de “desejos se- 3. A “escola da Psicologia do Ego” pode ser xuais” reprimidos. Em sucessivos artigos, Freud re- representada pelos estudos de M. Mahler e cola- conheceu outras formas de traumas, como: do nas- boradores (1975) acerca do “nascimento psicoló- cimento (nos termos concebidos por O. Rank); da gico” da criança. Esse “nascimento”, que implica angústia de castração do menino, frente à percep- em um despertar para a vida pela aquisição de um ção de que as meninas não tinham pênis; em 1926, sentimento de identidade e autonomia, está direta- ele deu um passo importante ao reconhecer o trau- mente ligado ao vínculo com a mãe. Na hipótese ma representado por perdas precoces, incluídas a de que essa mãe seja patogenicamente simbioti- perda do amor da mãe ou de outras pessoas signi- zadora, a criança terá dificuldades em passar pela ficativas. etapa de diferenciação com aquela e, por conse- No mesmo trabalho de 1926, Freud liga a ocor- guinte, também não solucionará as etapas de sepa- rência dos aludidos traumas psicológicos com um ração e individuação, permanecendo enredada nas 112 DAVID E. ZIMERMAN malhas de uma simbiotização cronificadora; por- 7. Bion, em sucessivos trabalhos, estuda o es- tanto, ela resta desamparada. É igualmente trau- tado de desamparo infantil por meio do seu origi- mática para a criança a condição em que a neces- nal modelo de continente-conteúdo. Assim, quan- sária – embora temporária – “função simbiotizadora do a mãe fracassa na sua função de rêverie, de con- da mãe” falha por escassez ou por um desligamen- ter o conteúdo das angústias e necessidades da to por demais precoce da criancinha, o que reforça criança e de não processá-las pelo que ele denomi- o seu estado de desamparo. na função-alfa, essa criança ficará invadida por 4. A “psicologia do self” de H. Kohut (1971) sentimentos de ódio decorrente das excessivas frus- prioriza a compreensão do estado de desamparo trações de não ser compreendida e contida. Esse como decorrente das primitivas falhas empáticas ódio não metabolizado pela criança, essa falha na dos self-objetos; ou seja, quando os pais reais fa- alfabetização emocional (ou seja, na necessária lham na função de estruturar a organização psíqui- transformação dos elementos beta em alfa), preju- ca do filho, este desenvolve-se com dificuldades, dicará sensivelmente a capacidade da criança para em meio a profundas “injúrias narcisísticas”. Kohut pensar, simbolizar, etc. e a forçará a incrementar o também faz a importante observação de que o fi- uso exagerado de identificações projetivas, num lho necessita, durante algum tempo, tanto da apro- crescente círculo vicioso de esvaziamento, medo e vação do seu self grandioso, por parte dos pais (por desamparo. meio de elogios, incentivos, etc.), como também Embora todas concepções dos autores mencio- de que esses pais permitam que a criança idealize- nados mereçam um estudo particularizado pela os (imago parental idealizada). importância que representam, quero acentuar mais 5. Na Escola Francesa de Psicanálise, além dos particularmente a outros dois autores da Escola estudos de Lacan (1949) sobre a “angústia de Britânica de Psicanálise, J. Bowlby e F. Tustin. despedaçamento” (corps morcelé) e das falhas maternas durante a etapa do espelho, penso que a Bowlby (1969) descreveu três fases que acom- concepção de Green (1976) acerca da “mãe mor- panham o estado mental e emocional de uma crian- ta” esclarece melhor a vivência de trauma e de- ça, diante da experiência de separação prolongada samparo que sofre uma criança, nos casos em que da mãe e da privação dos cuidados maternos. A ela teve uma mãe severamente deprimida, com to- primeira é a fase do protesto, na qual a criança cho- das as conseqüências imagináveis. Nesses casos, ra, esperneia, tumultua, como que pedindo socor- resultam crianças deprimidas (às vezes manifestas ro. Na segunda fase, ela, já cansada de lutar, entra por uma hiperatividade reativa), cheias de um num estado de desesperança, isto é, num crescente “branco-vazio” da mãe, portanto, esvaziadas de vi- “desespero” porque começa a não esperar mais talidade. nada. A terceira fase é a do retraimento, na qual 6. Em Winnicott, a condição de desamparo da essa criança, sentindo-se totalmente desamparada, criança aparece em muitas das suas concepções. retira toda libido que ela investiu no meio ambien- Vale destacar pelo menos uma delas: aquela que, te, efetua um “desapego emocional” e recolhe-se a desde bebê, o filho sente nas falhas do holding um estado de indiferença, apatia e depressão. Pen- materno, muito particularmente aquela que se re- so que os remanescentes deste estado mental po- fere à necessidade de que essa mãe seja suficiente- dem ressurgir no adulto sob a forma de uma “de- mente boa, com condições de funcionar como um sistência”, tal como pretendo explicitar mais adian- adequado espelho. Esse “olhar-espelho” está bem te. definido nessa memorável e poética frase de Winni- F. Tustin (1986) em seus estudos com crianças cott (1967): “O primeiro espelho da criatura hu- que apresentavam algum grau de autismo psicoló- mana é o rosto da mãe: o seu olhar, sorriso, ex- gico, descreveu o quanto elas, diante das falhas dos pressões faciais, tom de voz...”. Mais adiante, ele cuidados maternos primários, sentiram-se impelidas completa com outra frase que traduz o possível a construir uma barreira autista (ou uma concha, protopensamento da criança: “Olho e sou visto, uma manta, ou ainda, uma cápsula autista), uma logo, existo!”. Sem esse olhar reconhecedor da mãe, espécie de escudo protetor contra os traumas ex- a criança cai num estado de desamparo, sendo que ternos. Essa “cápsula autista”, além do provável pior do que o espelho de uma mãe que distorce a fator de uma hipersensibilidade constitucional, for- imagem do filho quando ela responde e reflete mal ma-se como conseqüência de excessivas defesas às necessidades dele, é quando essa mãe compor- ou de compensações (que é diferente de “defesas ta-se como um espelho embaçado, opaco, que nada contra...”) para enfrentar os traumas relacionados reflete. à separação corporal com a mãe. Tais sensações FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 113 corporais vão sendo transformadas em esperiências lia motora, também provoca uma “desconti- psicológicas. Se o “nascimento psicológico” foi nuidade no sentimento de “ser”. complicado, especialmente por falha da função de • A repercussão dos traumas no psiquismo da “útero mental” da mãe, não se formará o “senti- criança é proporcional à precocidade de seu mento de unidade com a mãe”, e daí resultará um estado de inermia. Assim, em seu Esboço de bebê desamparado e abandonado, assim criando um psicanálise, de 1940, Freud, utilizando uma “buraco negro” (o qual, assim entendo eu, equiva- le ao que Bion concebe como um “não-seio”). importante e bela metáfora, compara o efei- to de um trauma psicológico ao de uma “agu- Dos estudos de Tustin, é possível depreender – lha no embrião humano. Uma agulhada num em casos de perversões, drogadicções, borderline, organismo desenvolvido é inofensivo; po- transtornos alimentares, transtornos narcisistas e, rém, se for numa massa de células no ato da inclusive, nas neuroses em geral – a existência da- divisão celular, promoverá uma profunda quilo que talvez possa ser denominada como “par- te autista da personalidade”. Nesses casos, a pes- alteração no desenvolvimento daquele ser soa mantém uma auto-sensualidade e o tampão humano em formação”. autista funciona como uma barreira contra a rea- • Nos primeiros tempos, o conceito de “trau- lidade, assim impedindo a introjeção de novas ex- ma” ficou restrito unicamente àqueles mani- periências. Ao mesmo tempo, certas situações co- festamente cometidos aos órgãos genitais da muns podem funcionar como traumas invasivos criança; posteriormente, o próprio Freud, porque incidem em símbolos mnêmicos, ou seja, com freqüência, incluiu na sua conceituação em “representações” no ego primitivo desse tipo os traumas mais ocultos e algumas vezes mais de experiências psicológicas de desamparo. Tustin insidiosos, que se referem a vivências de postula a necessidade de que o terapeuta que tratar abandono, a separações traumáticas, ao a uma dessas crianças – ou um adulto portador dessa medo da perda do amor das pessoas signifi- emocionalidade prematura cheia de “buracos ne- gros” – deve funcionar com a função equivalente à cativas. de uma incubadora psicológica. • Esses traumas psicológicos ficam represen- A palavra “trauma” vem do grego e significa tados no ego da criança, de modo que poste- “ferida”. Desta forma, penso não haver dúvidas de riores acontecimentos, aparentemente ba- que todas as contribuições acima assinaladas apon- nais, podem incidir e evocar essas represen- tam para algum tipo de “ferida” precocemente tações traumáticas, determinando um esta- infligida ao psiquismo da criança e que podem levá- do de “desamparo”, muitas vezes acompa- la a um estado de desamparo. Como a conceitua- nhado de uma intensa angústia, de um esta- ção, tanto de “trauma” como a de “desamparo”, do de pânico, totalmente desproporcional ao, ficou por demais abrangente, cabe tentar fazer um manifesto, fator desencadeante. apanhado das características mínimas e invariantes Os acontecimentos externos traumáticos cos- que as definem: • tumam ser administrados pelo ego do indi- • A noção de “trauma” conserva a idéia de que víduo traumatizado por meio de uma lenta se trata de um conceito essencialmente eco- elaboração, por uma repetição de sonhos nômico da energia psíquica: uma frustração traumáticos, sendo que esse fato serviu para frente à qual o ego sofre uma injúria psíqui- alguns autores retificarem que nem todos so- ca, não consegue processá-la e recai num nhos representam uma “satisfação de dese- estado no qual sente-se desamparado e ator- jos”, mas, sim, que eles podem significar uma doado. tentativa de elaboração de outras angústias, • Com outras palavras: as falhas grosseiras da independentes de desejos, especialmente os função materna provocam a invasão de estí- libidinais, como Freud postulava. mulos ambientais (inpingements ou “traumas • As neuroses traumáticas, tal como foram invasivos”) que ultrapassam a capacidade do concebidas e descritas por Freud no seu ego incipiente, assim dificultando a absor- modelo “econômico” de estancamento da ção dos estímulos do id. Isso, ao mesmo tem- libido, ocuparam um lugar muito importan- po que produz uma total impotência e desva- te nos primeiros tempos da psicanálise, e, num segundo momento, com o advento do 114 DAVID E. ZIMERMAN

paradigma da psicanálise centrada nas rela- “agredir”, o qual resulta dos étimos “ad” (quer di- ções objetais, as “neuroses traumáticas” (ou zer: para a frente) e “gradior” (significa: movimen- “neurose atual”) caíram num ostracismo. Na to). Quais são os fatores que influenciam para que atualidade, as “neuroses atuais” estão vol- uma determinada força seja utilizada pelo self de tando a adquirir um merecido lugar na lite- uma forma construtiva ou destrutiva? Creio que entre muitos outros fatores, como são os heredo- ratura psicanalítica, especialmente por parte constitucionais e os biopsicossociais, também ad- dos autores que se dedicam ao estudo dos quire uma especial importância a inter-relação en- fenômenos relativos às somatizações (como tre o estado de desamparo e a conseqüente reação aparece mais detalhadamente descrito no de violência, tanto em termos individuais, como capítulo 21). também coletivos e sociais. • Para Freud, na “neurose atual” uma tensão É necessário levar em conta o fato de que corporal física não consegue passar para o • essa equação trauma-violência pode proces- psíquico, permanecendo sobre uma via físi- sar-se em três planos: intrapessoal, interpes- ca, de modo que, frisava ele, os sintomas soal e transpessoal. O “intrapessoal” pode manifestos nas “neuroses atuais” – quer sob ser entendido nos termos de Bion, que estu- a forma de neurastenia, neurose de angús- da os “vínculos” como sendo elos relacionais tia ou de hipocondria – não deveriam ser e emocionais que ligam duas ou mais pes- consideradas como manifestações simbóli- soas, ou duas ou mais partes de uma mesma cas, mas sim como uma expressão do fra- pessoa; nesse caso, o conflito pode ser o do casso do ego para processar os estímulos ex- “id” versus “ego”, ou versus “superego”, cessivos. assim como pode ser entre relações objetais • Todos os traumas, de uma forma ou outra, internalizadas, etc, etc. O plano interpessoal estão ligados à violência que é cometida con- também está contido na mesma definição de tra o ser humano, muitas vezes cometidas de Bion, e alude diretamente à natureza de como forma sutil e silenciosa. Desta forma, espe- os vínculos de amor, ódio e conhecimento cialmente a partir das contribuições da Es- permeiam as inter-relações humanas, tendo cola Francesa de Psicanálise, adquire uma como protótipo a primitiva vincularidade especial importância para a psicanálise a vi- mãe-filho. O aspecto transpessoal extrapola olência que pais e educadores em geral, re- ao plano pessoal e diz respeito ao que se presentantes de uma cultura vigente, podem passa em um nível mais abstrato, como o das cometer contra a criança através de um dis- nações, por exemplo. curso que funcione como um “imperativo Neste último caso, impõe-se a inclusão dos categórico”, invadindo, impregnando e es- • violentos traumas que os governantes de um cravizando a mente da criança com crenças, regime político autoritarista podem cometer valores, desejos e expectativas deles própri- contra os seus cidadãos, aprofundando enor- os, pais, assim cometendo uma violência mes diferenças de poder aquisitivo, promo- contra a autonomia dessa criança, que pode vendo profundas injustiças sociais, aviltan- persistir ao longo de toda sua vida. do os direitos mínimos de uma cidadania É útil assinalar que a etimologia da palavra “vio- decente, atentando contra a dignidade do ser lência” deriva do étimo latino “vis”, que significa humano e, assim, provocando um continua- “força”, o que tanto dá origem aos vocábulos “vi- do estado de desamparo. Um grau extremo gor”, “vida”, “vitalidade”, como também origina o dessa situação pode ser exemplificado com termo “violência”. A transição de um estado men- aquela situação em que militantes políticos tal de “vigor” para o de uma “violência” é a mesma que se processa entre o de uma “agressividade” foram presos, isolados e submetidos a tortu- sadia para o de uma “agressão” destrutiva. Para que ras, ou muito mais grave ainda, aquela em a diferença conceitual entre “agressividade” e que milhões de pessoas ficaram confinadas “agressão” fique mais clara, convém lembrar que em campos de concentração submetidos a “agressividade” designa um sadio movimento para toda ordem de humilhações, separação de a frente, tal como comprova a etimologia do verbo familiares, perda de identidade, sevícias fí- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 115

sicas e morais e um profundo atentado con- damental fator de crescimento mental para tra a dignidade do ser humano. qualquer analisando, porém, ela é particu- • Também é necessário levar em conta o fato larmente essencial para esse tipo de pacien- de que, no mundo todo, estão acontecendo te. intensas transformações sociais, políticas e • Assim, o continente do analista, na contem- econômicas, o que, inevitavelmente, acarre- porânea “psicanálise vincular”, representa ta profundas mudanças na designação de ser o principal instrumento para o preenchi- papéis, lugares e funções. Essa afirmativa mento dos “buracos negros” que acompa- pode ser exemplificada com a condição da nham os estados de desamparo que se for- mulher moderna, com os novos papéis que maram no passado do paciente, justamente ela desmpenha, dos sucessivos e cada vez pela falência dessa condição de rêverie da mais freqüentes descasamentos e recasamen- mãe. Deve ficar claro que, ao contrário de tos, tudo isso concorrendo para uma signifi- um papel de mero recipiente, que se com- cativa mudança na configuração da família porta unicamente como um depósito passi- nuclear. O que importa destacar é que essas vo da deposição dos detritos psíquicos do transformações também modificam os sig- paciente, a função continente do analista é nificados dos conceitos de trauma, desam- um processo ativo que possibilita o “acolhi- paro e violência. mento” das identificações projetivas, segui- das por uma “contenção” das mesmas, e mais uma “decodificação”, “transformação”, atri- IMPLICAÇÕES NA PRÁTICA ANALÍTICA buição de um “sentido”, “significado” e de um “nome” para aquelas experiências emo- Cada vez mais os psicanalistas são procurados cionais primitivas que o analisando está por pacientes que apresentam um acentuado grau revivendo no vínculo analítico, e que sem- de regressão, como podem ser aqueles predomi- pre constituíram-se para ele como “agonias nantemente borderline, portadores de algum tipo impensáveis” (termo de Winnicott) e “inomi- de perversão ou psicopatia, transtornos narcisistas da personalidade, somatizadores, deprimidos gra- náveis” (termo de Bion), portanto, incapa- ves, transtornos da auto-estima, transtornos do sen- zes de serem verbalizadas espontaneamente timento de identidade, barreiras autistas e mani- pelo paciente. festações afins. • Faz parte de uma boa condição do “conti- Nestes casos, não basta o psicanalista trabalhar nente” do analista a sua função-alfa, ou seja, com os conflitos resultantes do embate entre as suprindo as precoces falhas maternas, o te- pulsões e as defesas, com as conseqüentes ansie- rapeuta propicia uma transformação de ele- dades; também é indispensável que se trabalhe com mentos-beta (que são sensações primitivas, os problemas de déficit do desenvolvimento emo- protopensamentos que se prestam unicamen- cional primitivo que ocasionaram intoleráveis, e te para serem “evacuados”) em elementos- muitas vezes inonimadas, experiências psicológi- alfa, (que são os que permitem a formação cas de desamparo, graves vazios existenciais e sé- rias deficiências nas capacidades do ego, como a das capacidades, entre outras, para pensar e capacidade para pensar, simbolizar, etc. simbolizar). Com outras palavras: cabe ao De forma esquemática, na prática analítica, os analista a função de promover uma verda- seguintes aspectos merecem ser ressaltados: deira alfa-betização emocional. • A experiência clínica da prática psicanalíti- A interpretação deixa de ser o único instru- • ca permite afirmar que esses pacientes mento do analista para promover as mudan- regredidos vivem como sendo verdadeiros ças psíquicas do seu paciente; pelo contrá- “traumas” e, por conseguinte, como “desam- rio, a sua atitude psicanalítica interna (tal paro”, aquelas vivências despertadas pelas como está descrita no capítulo 41), tecida frustrações, das quais as mais comuns são com os seus atributos de empatia, amor às as que estão ligadas a algum tipo de priva- verdades, paciência, capacidade de ser “con- ção, especialmente a de separações. É útil tinente”, etc., constituem-se como um fun- lembrar que a capacidade para suportar frus- 116 DAVID E. ZIMERMAN

trações também pode depender de fatores • As crianças que construíram “barreiras au- heredo-constitucionais que podem tornar a tistas” necessitam, por parte do terapeuta, predisposição do bebê às frustrações com algo mais do que “interpretações” e de um uma sensibilidade demasiada. adequado “continente”. Tomo emprestado a • Também os pacientes ainda fortemente fi- seguinte afirmativa de A. Alvarez (1992) que xados na posição narcisista (descrita no ca- define bem a essa condição: essas crianças pítulo 13), vivenciam de uma forma muito autistas não estão fugindo ou escondendo- traumatizante e dolorosa as experiências se; elas, de fato, estão perdidas, à espera de emocionais que implicam alguma renúncia que alguém vá ao seu encalce. ao mundo das ilusões, em especial naquelas • Creio que esse estado psíquico, no qual es- pessoas que eternamente aspiram a um esta- sas crianças encapsuladas autisticamente fi- do de “completude”, e, por conseguinte, a cam distantes, apáticas e abúlicas, correspon- posterior, e inevitável, renúncia ao desejo de de nos adultos a um estado de desistência, incesto também é vivida de forma bastante que os leva a viver, ou a analisar-se, de for- traumática. ma mecânica, sem vitalidade, e cujo “desejo • Da mesma maneira como o “trauma do nas- maior consiste em não ter desejos”. São aná- cimento” deriva da súbita passagem de um lises difíceis, não obstante o psicanalista estado de vida aquoso para um outro aéreo, possa estar trabalhando muito bem (embora também a passagem de um estado mental do seja grande o risco de uma “contratransfe- analisando para um outro diferente (por rência de desistência”). Essas análises re- exemplo, de uma “posição esquizoparanói- querem a necessidade de que, de alguma de” para uma “posição depressiva”, entre maneira, o terapeuta deva ir ao encalço do tantas outras possibildades mais), pode pro- paciente e venha a “sacudi-lo”. vocar nele uma intensa sensação de desam- • Igualmente, também penso que nesses casos paro, configurando aquilo que Bion deno- o vínculo do reconhecimento (capítulo 14) mina como “mudança catastrófica”. Trata- adquire uma importância especialíssima na se de um momento muito difícil e delicado situação analítica, de modo que o analista da análise e que requer um manejo analítico deve manter uma constante visão binocular, bastante sensível e adequado ao conseqüen- isto é, permanecer atento aos aspectos re- te forte sentimento de desamparo que gressivos e, ao mesmo tempo, reconhecer irrompe no analisando justamente quando ele qualquer sinal de progresso do paciente, por está fazendo mudanças importantes. mínimo que esse seja. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 117

CAPÍTULO Freud utilizou as palavras “Instinkt” e “Trieb”, no original alemão, com significados bem distintos entre si e não como sinônimos. De uns tempos para cá, os autores estabelece- ram a diferença significativa de que, quando Freud 9 empregava “Instinkt”, ele estava-se referindo aos instintos biológicos que caracterizam o reino ani- mal, tal como os conhecemos com as suas caracte- rísticas específicas por cada espécie, e quando re- feria-se a “Trieb”, ele estava aludindo a algo muito As Pulsões do Id mais abrangente e imanente, proveniente das profundezas inatas do ser humano, sob a forma de impulsões (aquilo que aguilhoa e propulsiona). Embora Strachey (1977, p. 27) tenha feito uma lon- Este capítulo que trata do id, juntamente com ga fundamentação justificando a sua tradução para os dois seguintes, que enfocam o ego e o superego, “instinctual impulse”, ele reconhece que, para a compõem aquilo que, na “teoria estrutural” de tradução inglesa da palavra “trieb”, os seus críti- Freud, costuma ser denominado “estrutura tripartite cos preferem unicamente o termo “drive”, da mes- da mente”. Convém, portanto, esclarecer o concei- ma forma como, em nosso meio, os estudiosos to da palavra “estrutura”, em psicanálise: ela defi- atuais da obra de Freud evidenciam uma preferên- ne um conjunto de elementos que se constituem cia pelo termo “pulsão”. numa relação organizada, e que, portanto, são ri- Em muitos dos seus textos, Freud manifestou a gorosamente intedependentes entre si, não obstante sua concepção de que a pulsão representa o con- o fato de cada um deles, separadamente, conservar ceito de algo que é limite entre o somático e o psí- uma relativa independência. Assim, toda estrutura quico (1905, Três ensaios...). Trata-se, portanto, é um sistema, ligado de um modo tal que qualquer de uma fonte de excitação que estimula o organis- mudança produzida em um elemento provoca mu- mo a partir de necessidades vitais interiores e o dança nos demais. impele a executar a descarga desta excitação para Depreende-se daí que as pulsões do id, as fun- um determinado alvo. A natureza dessa força ções do ego, os mandamentos do superego e a rea- energética só pode ser conhecida por meio dos seus lidade ambiental externa agem entre si de forma representantes psíquicos. Assim, transformando o continuada e indissociada, um influenciando ao somático em psíquico, com as respectivas sensa- outro, e somente serão abordados em capítulos dis- ções das experiências emocionais primitivas, o in- tintos pela razão de obediência a um esquema di- divíduo vai construindo o seu mundo interno de dático de exposição. representações. Também convém esclarecer que Freud escolheu Conforme Freud descreveu, toda pulsão impli- o termo id (que ele tomou emprestado de Groddeck) ca a existência de quatro fatores que lhe são para caracterizar a instância psíquica que sedia as imanentes: uma fonte, uma força, uma finalidade e pulsões, pelo fato de que “id”, em alemão (“das um objeto. Além destes, pode-se depreender dos Es”), designa um artigo neutro, sem gênero nem trabalhos de Freud mais essas características: o número, assim caracterizando a maneira impesso- deslocamento da pulsão de uma zona corporal para al, biológica, de como as pulsões instintivas agem outra, o intercâmbio entre as distintas pulsões, a sobre o ego. compulsão à repetição e as transformações das pulsões. A fonte provém das excitações corporais, dita- CONCEITUAÇÃO das pelas necessidades de sobrevivência. A força determina o aspecto quantitativo da energia pulsio- Inicialmente, é útil lembrar que há uma equiva- nal, ou seja, representa o importante aspecto “eco- lência na literatura psicanalítica entre os termos nômico” do psiquismo, conforme o modelo ener- “instintos”, “impulsos”, “impulsos instintivos”, gético de Freud acerca do funcionamento psíqui- “pulsões instintivas” e “pulsões”. Isto deve-se ao co. A finalidade, primariamente, é a descarga da fato de que as primeiras traduções dos textos de excitação para conseguir o retorno a um estado de Freud – notadamente a da Standard Edition, reali- equilíbrio psíquico, segundo o “princípio da cons- zada por Strachey – não levaram em conta que tância” ou o da “homeostasia”, sendo que ambos 118 DAVID E. ZIMERMAN são equivalentes à busca do “princípio de Nirvana”, iniciais de sobrevivência física e psíquica, quando que alude ao fato de o organismo tentar reproduzir satisfeitas com um acréscimo de prazer e gozo, o idilíaco estado intra-uterino. O objeto – bastante podem ser transformadas em desejos (de repetir variável e mutável – é aquele que seja capaz de experiências gratificatórias), ou em demandas, em satisfazer e apaziguar o estado de tensão interna cujo caso trata-se de desejos insaciáveis, porquan- oriunda das excitações do corpo, ou que, no míni- to visam preencher enormes vazios afetivos. mo, sirva-lhe como mero depósito de descarga. Freud considerou a concepção de “pulsão” O conceito de investimento pulsional – ou seja, como sendo o eixo central dos conceitos psicanalí- a catéxis- alude ao fato de que uma certa quantida- ticos, tanto que ele a ligou com a necessidade de de de energia psíquica, a qual também pode mani- sobrevivência e, a partir daí, caracterizou o desejo festar-se por um “interesse do ego”, esteja ligada a como um impulso que visa repetir experiências nas um objeto, tanto externo como ao seu representan- quais já tenha previamente havido a satisfação de te interno, numa tentativa de reencontrar as experi- alguma necessidade. ências de satisfação que lhe estejam correlacio- Cabe a pergunta de por que Freud utilizou o nadas. termo “sexualidade infantil”, que tanta polêmica Para cada finalidade pulsional corresponde um gerou na sua época e que ainda hoje continua des- determinado objeto. Um exemplo simples disto é a pertando mal-entendidos. A rigor, inicialmente, fome, cuja finalidade é a sua satisfação, e cujo ob- Freud postulou a existência de um “pan-sexualis- jeto é o alimento, e, na condição do bebê, isso cor- mo” nos moldes de um erotismo pulsional similar responde à necessidade do leite, ou seja, do objeto à genitalidade adulta, e somente aos poucos é que parcial “seio”. No caso em que o objeto do investi- ele foi definindo, algo mais claramente, a necessá- mento pulsional seja o próprio indivíduo, já esta- ria distinção entre ambas, como a seguir será me- mos falando de narcisismo. lhor explicitada. É interessante o fato de que para descrever este “investimento” específico de energia mental, Freud empregou o termo original “Besetzung energie”, CLASSIFICAÇÃO DAS PULSÕES sendo que “Besetzen” significa “ocupar, guarnecer”, e ele fazia a comparação com uma força militar de Desde o princípio de sua obra, Freud ligou ocupação que pode ser dirigida para uma ou outra pulsão à sexualidade, e isto, fora de qualquer dúvi- posição, segundo as necessidades requeridas. da, constituiu-se no centro das descobertas da psi- Existe um inter-influencionamento entre a qua- canálise e, da mesma forma, ele sempre conside- lidade e a quantidade pulsional: tanto a quantidade rou a existência de uma dualidade pulsional. pode modificar a qualidade (fenômeno que encon- Assim, em sua primeira formulação de um con- tra comprovação na ciência exata da Física), como ceito dualista das pulsões essenciais, Freud distin- também a qualidade dos estímulos pulsionais, ou guia entre pulsões do ego, (ou de autoconserva- do continente receptor dos mesmos, pode modifi- ção) e as pulsões sexuais (ou de preservação da car a intensidade da resposta aos referidos estímu- espécie). los. Essa diferença que está sendo estabelecida en- tre “quantidade” e “intensidade” é importante na prática clínica e vou utilizar uma metáfora que tal- Pulsões de Autoconservação (do Ego, vez clareie: se pincelarmos a superfície de uma pele normal com tintura de iodo, ela vai provocar um do Indivíduo) desconforto mínimo; no entanto, se a mesma quan- tidade do mesmo iodo for aplicada numa ferida Para Freud, essas pulsões representavam o con- aberta vai provocar uma resposta de dor muito mais junto das necessidades e exigências ligadas às fun- intensa. ções corporais, indispensáveis à conservação, de- As transformações das pulsões podem ser senvolvimento, crescimento e os auto-interesses do depreendidas de muitas concepções de Freud, como ego (sem levar em conta, então, as características é o fenômeno das sublimações, dos mecanismos estruturais do mesmo). Freud também costumava defensivos do ego, tal como é a formação reativa, referir-se a essas pulsões com a terminologia “in- sendo de especial importância a transformação em teresses do ego”. fantasias inconscientes, com as respectivas ansie- Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualida- dades, etc. Uma retomada da leitura de Freud, como de” (1905) Freud mostra que no início da vida as fez Lacan, permite perceber que as necessidades pulsões são unicamente as de “autoconservação” FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 119 que, à moda de uma escolha analítica de objeto, cabe exemplificar com o ato da amamentação, na visa fundamentalmente assegurar a vida do lac- qual a fonte da pulsão é a necessidade do organis- tente, impulsionando-o à busca de um objeto (mãe) mo do bebê de ser nutrido; a força corporal é, que lhe proporcione a satisfação de suas necessi- primordialmente, a sua boca; a força da pulsão cor- dades essenciais, como são os cuidados com o responde à intensidade de sua fome; a finalidade seu corpo, amparo, calor, amor e um leite nutri- da pulsão visa a saciar a fome para a conservação dor. Inicialmente, as “pulsões sexuais” estão indis- da vida do bebê, enquanto o objeto para o qual a sociadas daquelas de “auto conservação”, sendo sua pulsão está dirigida é o leite que emana do seio que num segundo momento elas se tornam inde- (ou mamadeira). Nesse mesmo exemplo do ato da pendentes e se destinam primordialmente a satis- amamentação, num segundo momento, a fome do fazer os desejos libidinais (a erotização do seio bebê já está saciada, no entanto, ele deixa-se de- produtor do leite). morar sugando o seio materno: nesse caso, Freud Para explicar melhor, vou passar a palavra ao diria que a fonte da pulsão é proveniente de um próprio Freud, com grifos meus: “O chupar o dedo desejo libidinal-sexual; a zona erótica é a sua já aparece na primeira infância (...) e não há dú- mucosa labial (além do contato pele-pele com a vida de que a finalidade desse procedimento é con- mãe, olhar-olhar, etc.); a força dessa pulsão sexual seguir a nutrição. Uma parte do próprio lábio, a seria ditada pela intensidade da erotização e do língua ou qualquer outra parte da pele ao alcance desejo de gratificá-la, a finalidade dessa pulsão se- pode ser tomado como objeto sobre que este sugar ria a primeira manifestação do instinto sexual ne- se realiza (página 184)... Na altura do texto em cessário para a preservação da espécie, e o objeto- que Freud vai conceituar o Auto-erotismo (“o ins- alvo nessa fase primitiva é o seio da mãe, já devi- tinto não é dirigido para outras pessoas, mas en- damente erotizado. Posteriormente, como veremos contra satisfação no corpo do próprio indivíduo”), mais adiante, Freu unificou as pulsões de “autocon- ele emprega as seguintes belas frases: Os lábios da servação” e “preservação da espécie”, numa úni- criança, a nosso ver, comportam-se como uma zona ca, com o nome de “pulsão de vida”, no entanto, erógena, e sem dúvida o estímulo do morno fluxo ele conservou a concepção de uma dualidade do leite é a causa da sensação de prazer (...) De pulsional, introduzindo a noção da existência inata início, a atividade sexual liga-se às funções que de uma “pulsão de morte”. atendem à finalidade de autopreservação (nutri- ção) e não se torna independente dela, senão mais tarde. Ninguém que já tenha visto um bebê recli- Pulsões Sexuais nar-se saciado do seio e dormir com as faces co- radas e um sorriso feliz, a essência original, pode Como toda pulsão, a sexual situa-se no limite fugir à reflexão de que este quadro persiste como somatopsíquico, sendo que, a parte psíquica, Freud protótipo da expressão da satisfação sexual na vida denominou libido (em latim designa “desejo”), a ulterior. A necessidade de repetir a satisfação se- qual, em termos genéricos, alude a “todas as pul- xual desliga-se agora da necessidade de nutrir- sões responsáveis por tudo o que compreendemos se; uma separação que se torna inevitável quando sob o nome de amor “(Freud, 1921). Todo o prazer aparecem os dentes e o alimento não é mais inge- corporal que não era devido à satisfação direta das rido apenas pela sucção, mas é também mastiga- pulsões do ego, tais como a satisfação da fome, do (pág. 186). sede, e necessidades excretórias, ele considerou Justifico o emprego acima de uma transcrição sendo sexuais ou eróticas, sendo que as zonas cor- tão longa, não só pela importância do conteúdo, porais suscetíveis à estimulação erótica, foram de- mas também para incentivar o leitor que ainda não nominadas zonas erógenas. Assim, certas zonas esteja suficientemente familiarizado com a obra de corporais, principalmente aquelas constituídas por Freud e queira conhecer a essência original dela, orifícios (boca, ânus, meato do aparelho genito- para que, necessariamente, leia esse trabalho de urinário externo, mamilo) serão o local preferen- 1905 e que foi um dos poucos que mereceu cons- cial da fixação da libido, não só pelas gratificações tantes acréscimos e atualizações conceituais em privilegiadas por essas áreas corporais, como tam- sucessivas reedições ao longo de décadas. bém pelo seu papel de comunicação com o exteri- Como uma forma de traçar uma síntese dos or, e elas compõem as aludidas zonas erógenas. Na conceitos até agora emitidos nesse capítulo acerca verdade, completou Freud (1938), “seria mais cor- das conceituações iniciais de Freud relativas aos reto dizer que o corpo, como um todo, é uma zona tipos de pulsões e os componentes das mesmas, erógena”. 120 DAVID E. ZIMERMAN

Decorre daí, segundo Freud, o fato de que a pulsão de vida são necessariamente de natureza pulsão sexual está fragmentada em pulsões parciais, sexual representam uma enorme importância na de satisfação localizada e que só progressivamente prática psicanalítica clínica, especialmente pelo fato é que tenderão a unificar-se em uma mesma orga- de que possam representar serem elas primariamen- nização libidinal, sob o primado da genitalidade. te componentes da “libido do ego”, sobretudo, No caso de que as pulsões parciais não se integras- voltada para a preservação do próprio indivíduo. sem em uma genitalidade adulta, mas, sim, que per- O conceito de pulsão de morte, segundo Freud, sistissem como pontos de fixação e de regressão, designa que a mesma tem como finalidade uma re- estariam propiciando a formação de perversões, dução de toda a carga de tensão orgânica e psíqui- como escopofilia, exibicionismo, certas formas de ca; logo, uma volta a um estado inorgânico. Essa homossexualismo, etc. pulsão pode permanecer dentro do indivíduo (sob A primeira dificuldade encontrada por Freud, a forma de fortes angústias e uma tendência para a ao distinguir entre as pulsões do ego e as sexuais, e autodestruição) ou para fora (pulsões destrutivas). considerá-las como opostas entre si, surgiu da evi- A partir da “pulsão de morte”, Freud postulou o dência de que o indivíduo pode extrair um prazer princípio da “compulsão à repetição”, o qual de- erótico por meio das zonas erógenas do seu pró- signa a tendência do psiquismo humano em repetir prio corpo, sem a necessidade obrigatória de obje- situações penosas e traumatizantes anteriores, tal tos externos. A isto, ele denominou Auto-erotis- como pode ser comprovada nos fenômenos da neu- mo, enquanto que, para o fato de que o indivíduo rose de transferência, nas neuroses traumáticas (ele como um todo possa funcionar como o objeto de percebeu isso nas “neuroses de guerra”), em mui- seus próprios desejos eróticos, Freud chamou de tos jogos infantis ou em certas formas patológicas, narcisismo, sendo que ele chegou à última concep- como nas melancolias e no enigma do masoquis- ção estimulado que foi pelo que ele sentiu ter sido mo. um desafio de Jung, que por esta época postulava a Em relação à interação entre ambas as pulsões, existência de um único tipo de pulsão. merecem ser destacados os seguintes aspectos: Além disto, muito cedo Freud deu-se conta de que a teoria geral das pulsões não conseguia expli- • Nos indivíduos normais, e nos neuróticos, car todos os quadros da psicopatologia clínica, predomina a pulsão de vida, enquanto que como, por exemplo, o masoquismo ou as neuroses nas psicoses e condições correlatas (psi- narcisistas (nome com que, então, ele designava as copatias, perversões, drogadictos, etc), a pre- psicoses). Desta forma, Freud reconheceu que as dominância é da pulsão de morte. pulsões que se referiam tanto ao ego como aos ob- • As pulsões de vida e de morte coexistem fun- jetos externos não tinham natureza diferente e, por didas, sendo que, muitas vezes, elas apare- conseguinte, não mais cabia a distinção entre “pul- cem separadas e de formas completamente sões do ego” e “pulsões sexuais”. distintas. Outras tantas vezes, elas confun- Enquanto Jung continuava admitindo somente dem-se nas finalidades, como pode ser exem- uma classe de energia mental, Freud, embora mo- plificado com o “sadismo”, no qual a pulsão dificando substancialmente a sua concepção, per- maneceu fiel à sua teoria dualista. Assim, a partir de morte pode ligar-se às pulsões eróticas. de “Além do princípio do prazer” (1920), a duali- Penso que um outro exemplo similar é o que dade inicial que diferenciava as pulsões do “ego” e alude à necessária distinção que deve ser feita as “sexuais”, cedeu lugar a uma nova dualidade: entre agressividade construtiva e agressão pulsões de vida (“eros”) e pulsões de morte (“ta- destrutiva. A primeira delas representa uma natos”), sendo que esta concepção pulsional ele defesa contra os predadores externos e como conservou definitivamente em sua obra. Igualmen- motor de uma sadia ambição (é útil lembrar te, Freud concluiu que o ego tinha uma energia pró- que a etimologia de “agredir” vem dos étimos pria, independente da sexualidade. E mais: que latinos “ad” + “gradior”, ou seja, “um mo- antes e acima de tudo o ego é corporal. vimento para a frente”). As pulsões de vida passaram, então, a abranger • Em resumo, por meio de uma energia de as “pulsões sexuais” e as de “autopreservação”, de modo que a libido passou a ser conceituada como coesão, a pulsão de vida visa juntar, ligar tudo energia, não mais da pulsão sexual, mas sim da aquilo que estiver separado no indivíduo e pulsão de vida, unificando ambas anteriores. Essa na espécie humana, enquanto a pulsão de concepção de que nem todas as manifestações da FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 121

morte, pelo contrário, pela força de repulsão pelo termo “sexualidade infantil”. 3) O primado e disrupção, tende a destruir as ligações. quase que absoluto da sexualidade na organização • A partir da concepção estruturalista da men- do psiquismo infantil. te (1923), Freud postulou que, juntamente 1. A concepção energética do funcionamento com as repressões de fantasias, idéias e sen- mental, de Freud, foi inspirada nos conhe- timentos, as pulsões inconscientes faziam cimentos científicos vigentes na época de parte da instância psíquica “id”. seus estudos. Assim, sobretudo a descober- • No importante trabalho metapsicológico Ins- ta do neurônio e da eletricidade, serviram- tintos e suas vicissitudes (1915), Freud aven- lhe de modelo para a idéia da existência de ta a hipótese de que as pulsões sejam preci- uma energia psíquica-física que percorre- pitados de experiências filogenéticas, em ria as vias do sistema nervoso. Esse mode- cujo caso cada indivíduo conservaria vestí- lo conduz inevitavelmente a uma especial gios da história da espécie humana, inclusi- valorização do fator quantitativo dessa ve a experiência da morte, inerente a qual- energia pulsional, o que, certamente, não quer estrutura biológica. Prosseguindo com condiz com a imensa complexidade do essas especulações, em Além do princípio psiquismo humano, especialmente ao que do prazer (1920), Freud veio a formular a se refere ao aspecto qualitativo das emo- sua concepção de instinto de morte. ções. Na atualidade, predomina o “modelo Até aqui estivemos nos referindo unicamente a cibernético”, o qual comprova que uma Freud. No entanto, muitos outros autores refuta- energia mínima e não específica pode de- ram ou modificaram as concepções originais do pai sencadear as mais variadas e complexas da psicanálise. Assim, o renomado psicanalista bri- reações em cadeia. No entanto, impõe-se tânico R. Fairbairn (1941) não aceitava o conceito ressaltar, a partir de uma retomada da va- de pulsão por considerá-lo inútil, porquanto ele lorização das denominadas “neuroses preferia considerar o entendimento de que o ego atuais”, o aspecto econômico-quantitativo, tem energia própria, existe desde o nascimento, que volta a ganhar um relevância em psi- sendo que uma das funções do ego é a libido, a canálise. qual, acima de tudo, visa a uma busca de objetos. Além disto, Fairbairn postulou que não existe 2. Algumas considerações, em outras pági- pulsão de morte e que a agressividade é uma rea- nas, já foram tecidas em torno do pan- ção à frustração ou à privação. sexualismo proposto por Freud. Cabe acres- Por sua vez, M. Klein – que, junto (embora se- centar que o seu conceito da existência de paradamente) com Fairbairn foram os grandes cons- uma fase evolutiva normal que ele deno- trutores da “Teoria das Relações Objetais”- ado- minou “perverso polimorfa”, composta por tou o nome de “pulsão de morte”, cunhado por pulsões sexuais parciais, se por um lado Freud, porém deu-lhe uma concepção significati- provocou mais confusão, por outro, veio a vamente muito diferente. Enquanto para Freud o esclarecer bastante a sexualidade incipien- termo “pulsão de morte” designava uma origem te. Essa fase consiste no fato de que partes fundamentada em uma necessidade biológica de um do corpo do lactente vão adquirindo um lu- retorno à condição inorgânica, para M. Klein essa pulsão conceituava uma inata destrutividade sádi- gar privilegiado como fontes de prazer se- ca dirigida contra o “seio mau”, sendo que a ex- xual, primeiro a boca, depois o ânus, com pressão clínica da mesma ela considerou como a suas funções excretícias, numa etapa que “inveja primária”. precede ao controle esfincteriano, da mes- ma forma como todo sistema muscular que acompanha a locomoção motora, sendo que CRÍTICAS AO CONCEITO DE PULSÃO por volta dos 3-4 anos começa o estabele- cimento da primazia das zonas genitais. É As críticas mais contumazes às conceituações interessante esclarecer que Freud descre- de Freud acerca das pulsões atingem três aspectos: veu essas zonas erógenas, na cronologia de 1) A ênfase que ele deu ao aspecto energético quan- sua obra, numa ordem inversa ao de seu titativo. 2) A ambigüidade e a confusão causada 122 DAVID E. ZIMERMAN

surgimento na evolução psicossexual da mitiva relação mãe-bebê, com os seus as- criança. Assim, inicialmente na sua prática pectos de “apego”, de “especularidade”, de clínica com pacientes histéricos, ele enal- “continente”, etc. Nesta categoria de críti- teceu a erotização da zona genital antes da ca ao conceito de pulsão, encontram-se anal (que recém aparece descrita em 1913, muitos psicanalistas que pensam exatamen- em A disposição à neurose obsessiva), as- te da mesma maneira como Fairbairn, nos sim como a sua descrição de uma etapa oral termos antes mencionados. surge mais nitidamente somente num acrés- Quanto à concepção de M. Klein acerca da cimo que ele faz em 1915 ao original (1905) “pulsão de morte”, as críticas são ainda muito mais do seu clássico Três ensaios... enquanto em contundentes por parte de muitas áreas psicanalíti- 1923, num outro acréscimo a este mesmo cas, especialmente aquelas provindas do grande trabalho, Freud descreve a “etapa fálica” contingente de psicanalistas pertencentes à escola para diferenciá-la da “genital” que ficou re- da “psicologia do ego”, maciçamente praticada nos servada para o período da adolescência. Estados Unidos. Também alguns psicanalistas den- tro da própria escola kleiniana, notadamente D. Da mesma forma, Freud teve uma idéia brilhan- Winnicott, não aceitaram a concepção de “inveja te ao traçar uma analogia com a amamentação do primária” e declararam uma dissidência com a bebê lactente no seio da mãe: assim, diz ele, a pri- mestra. meira parte da mamada é exclusivamente para a De qualquer forma, o debate e as controvérsias satisfação de uma necessidade vital de alimenta- entre os autores sobre as pulsões resultam em no- ção, enquanto que a segunda parte, quando o bebê, vos e frutíferos vértices de pesquisa e de compre- embora já saciado da fome, prolonga-se no conta- ensão metapsicológica, teórica e clínica. to da sua mucosa bucal com o mamilo da mãe, está A psicanálise, durante muito tempo, ficou revelando uma pulsão sexual, embora não genital. centrada exclusivamente no estudo e prática das, 3. Em relação à ênfase, virtualmente exclusi- assim chamadas, psiconeuroses, originadas pelas va, que Freud atribuiu à sexualidade infan- dificuldades na resolução exitosa do complexo de til na estruturação do psiquismo infantil, Édipo, com a conseqüente “angústia de castração”. A partir de O ego e o id (1923), Freud cristaliza creio que ninguém mais contesta que ou- uma série de teorizações sobre o ego e abre cami- tros fatores são primacialmente estrutu- nho para os demais autores prosseguirem o seu es- rantes (ou desestruturantes), como o da pri- tudo, tal como será estudado no capítulo seguinte. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 123

CAPÍTULO – os termos “ego” e “self” ganharam clareza e pas- saram a designar fenômenos específicos do apare- lho psíquico. Assim, para Hartmann, “ego”, como instância psíquica, seria apenas uma subestrutura da perso- 10 nalidade, enquanto “self” foi conceituado como a “imagem de si mesmo” e seria composto de estru- turas, entre as quais não somente consta o ego, mas também o id, o superego e, inclusive, a imagem do corpo, ou seja, a personalidade total. Com outras As Funções do Ego palavras, pode-se dizer que esse autor postulou uma diferenciação entre ego-função, uma subestrutura da personalidade, ou instância psíquica, de ego- representação, que alude à imagem de si mesmo O significado do termo “ego” aparece na lite- ou do self. Ambos os aspectos são indissociados e ratura psicanalítica de uma forma algo ambígua e criam um paradoxo conceitual pelo fato de que, pouco uniforme entre os distintos autores, poden- embora o self seja mais abrangente e amplo do que do, por isso, causar algum tipo de confusão o ego, ele está “representado” (como que “conti- conceitual. Esse clima algo confusional pode ser do” e “fotografado”) dentro deste último. Na obra exemplificado com quatro situações: 1) Alguns de Hartmann, a ênfase predominante é no “ego- desses autores utilizam a escrita minúscula “ego” função”, enquanto na de Lacan a prioridade cabe para designar essa conhecida instância psíquica, e ao “ego-representação”. reservam a grafia “Ego”, com a letra “e” maiúscu- Voltando ao “ego”: um outro aspecto que me- la para indicar o que atualmente se entende por self. rece ser considerado é que as funções do ego va- 2) Os psicanalistas da Escola Francesa de Psicaná- riam fundamentalmente de acordo com as respec- lise, que tem uma larga produção e divulgação no tivas etapas evolutivas do desenvolvimento mental mundo psicanalítico, costumam empregar dois ter- e emocional da criança. Assim, em um enfoque mos em relação ao ego: um é “je”, que designa mais evolutivo, cabe discriminar as seguintes transfor- especificamente o ego como uma instância psíqui- mações que o ego sofre: ca encarregada de funções; o outro é “moi”, que se refere mais precisamente a uma representação da 1) Não haveria ego no recém-nascido. Segun- imagem que o sujeito tem de “si mesmo”, logo, do do a concepção de Freud, “no início tudo seu sentimento de identidade. 3) O próprio Freud, era id”, razão pela qual ele criou os con- ao longo de sua obra, empregava no original ale- ceitos de “auto-erotismo” e “narcisismo pri- mão tanto a expressão “das ich” (geralmente com mário” e fez a célebre postulação de que o acima mencionado conceito de “je”) como tam- “o ego, antes de tudo, é corporal”. Como bém usava “zelbst” (com o significado de “si mes- já foi referido, desde M. Klein até os prin- mo”); porém, às vezes, ele usava-os indistintamente, cipais autores atuais, essa concepção de o que veio a aumentar a imprecisão conceitual. 4) Freud, de que não existiria um ego no re- É útil estabelecer uma diferença conceitual e se- mântica entre “ego” e “self”. cém-nascido, tem sido refutada e substi- tuída pela postulação de que o ego é inato e já está agindo desde o nascimento. SELF Na atualidade, esse primitivo estado de indi- ferenciação do bebê com o mundo exterior (mãe) Até algum tempo, as palavras “ego” e “self” tem recebido distintas denominações, como “esta- eram usadas de forma indistinta e, se bem que ain- do de ilusão e onipotência” (Winnicott); “estado da persista uma certa superposição e indiscrimi- narcisista perene” (Kohut); “self psicofisiológico nação conceitual entre ambas, agravada por even- primário” (Edith Jacobson); “autismo normal”(M. tuais falhas de tradução nos textos que estudamos, Mahler); etc. a partir de Hartmann (1947) é que foi possível es- tabelecer um distinção. Com esse autor – renomado 2) Ego arcaico (ou incipiente). Também de- psicanalista radicado nos Estados Unidos, onde foi nominado por Freud como “ego do prazer o principal criador da escola da “psicologia do ego” puro”, no qual já existe alguma interação 124 DAVID E. ZIMERMAN

com o mundo exterior, embora com uma 4) Ego da realidade definitiva. Nesse estágio, total indiscriminação entre o “eu” e o “não- a criança está procurando reencontrar no eu”. Esse ego incipiente ainda não tem o exterior um objeto real que corresponda à respaldo de condições neurobiológicas para representação do objeto primitivamente estabelecer discriminações e, por isso, o satisfatório e perdido, aí residindo o fator bebê confunde as excitações com as grati- propulsor da prova da realidade. Assim, à ficações; os estímulos de dentro com os de medida que o ego vai evoluindo em um fora; a indiscriminação a respeito de qual processo neurofisiológico de maturação, parte do corpo originam-se os estímulos; ele vai encontrando as necessárias condi- assim como, também, há uma confusão en- ções para fazer a indispensável adaptação tre as partes do corpo e a sua totalidade do princípio do prazer ao princípio da rea- corporal. A terminologia de Freud de “ego lidade, assim como a transição de um fun- do prazer puro” também costuma aparecer cionamento baseado em um “processo pri- freqüentemente nos textos psicanalíticos mário” para o de um “processo secundá- com a denominação de “ego-prazer purifi- rio”, até alcançar a possibilidade de atingir cado”, nome que se justifica pelo fato de o pleno uso das suas funções mais nobres. que nessa fase o ego da criança “purifica- se” ao expelir (projetar) todo o desagradá- vel para fora, enquanto retém para si EGO-FUNÇÃO (introjeta) tudo que lhe é agradável. Conceitualmente, Freud definiu o ego como Ainda em relação ao “ego do prazer puro”, é sendo um conjunto de funções e de representações, útil lembrar que Freud também descreveu um esta- de modo que os atuais autores costumam sintetizar do mental do bebê, com a denominação “sentimento tudo isso descrevendo dois tipos: o ego-função e o oceânico” (algumas outras vezes, ele também cha- ego-representação, embora Freud não tenha espe- mava como um “estado de Nirvana” ou “sentimento cificamente usado essas denominações. É necessá- de universalidade”), tal como este último está des- rio consignar que entre o “ego-função” e o “ego- crito no primeiro capítulo de O mal-estar da civili- representação” se estabelecem relações permanen- zação (1930). Aí, Freud correlaciona esse senti- tes, indissociadas e recíprocas, porém, cada uma mento com o restabelecimento do “narcisismo pri- delas conserva sua especificidade e convém estudá- mário” – a fantasia originária, ou mito, de retorno las separadamente. ao ventre materno – como forma de abolir toda se- Ainda para fins pedagógicos, creio ser útil sub- paração. dividir o “ego-função” naquelas funções que estão 3) Ego da realidade primitiva (também apa- mais ligadas ao consciente, que se encarregam de rece traduzido por “ego-realidade do iní- promover um contato direto com a realidade am- cio”). Termo que era bastante empregado biental exterior, e aquelas outras funções que se produzem mais precisamente na parte inconscien- por Freud nos primeiros tempos, porém que te do ego, como, a seguir, ambas serão melhor dis- aos poucos foi desaparecendo, creio que criminadas e explicitadas. pelo fato de que, em uma sucessiva adap- tação à realidade exterior, ele designa não mais do que uma transição, quase sempre Funções do Ego Consciente inaparente, entre a segunda etapa anterior, acima descrita, e a quarta etapa, que se se- Classicamente, a psicanálise sempre preocupou- gue. Na vigência desse “ego da realidade se quase que unicamente com os conflitos que se primitiva” ainda persiste uma forte indiscri- processam no plano do inconsciente entre as pul- minação entre o “eu” e “o outro” da reali- sões e as defesas; no entanto, a contemporânea psi- dade exterior, mas o processo de “repre- canálise vincular, além de continuar valorizando sentações” no ego dos estímulos que pro- essa abordagem, também empresta uma significa- cedem do ambiente externo está em pleno tiva importância a muitos dos aspectos do plano andamento. consciente. Assim, mais do que o consagrado aforismo de que a essência da psicanálise consisti- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 125 ria em “tornar consciente tudo que estiver reprimi- diante de um mesmo desenho, em preto e branco, do no inconsciente”, autores como Bion preconi- uma pessoa perceba um vaso (se ela ficar fixada na zam que o mais importante na situação analítica é cor branca), enquanto uma outra vai perceber dois perceber como o consciente, o pré-consciente e o rostos humanos frente à frente (se o observador inconsciente “comunicam-se entre si”. Ou seja, para estiver concentrado no preto). exemplificar a última afirmativa: de que adianta O importante é que esses vértices recíprocos uma interpretação ser correta se, inconscientemen- entre analista e analisando mantenham uma distân- te, ou mesmo conscientemente, o paciente não a cia útil e adequada: que não sejam nem tão distan- escuta, a desvitaliza e a torna ineficaz porque ele tes a ponto de impedir a correlação entre os res- faz questão de não querer tomar conhecimento da- pectivos vértices, nem tão próximos entre si, impe- quela verdade que lhe está sendo dita pelo analis- dindo uma diferenciação e discriminação, com uma ta? Da mesma forma, é importante que no proces- conseqüente estagnação no processo de novas aber- so analítico o paciente assuma – conscientemente turas de conhecimentos da realidade psíquica. – a sua parcela de responsabilidade volitiva pelos A conceitualização de “vértice” permite uma seus pensamentos e atos. Essas funções egóicas, melhor compreensão daquilo que pode ser conside- embora com evidentes implicações inconscientes, rado como o maior mal da humanidade, que é o pro- manifestam-se prioritariamente no plano do cons- blema dos “mal-entendidos” da comunicação entre ciente, estão muito ligadas aos órgãos dos senti- as pessoas, porquanto, em tais casos, cada sujeito dos, contatam diretamente com a realidade externa adota um vértice particular de pecepção e pretende com uma finalidade adaptativa e, portanto, estão a que a mesma seja a verdade absoluta. Creio que o serviço do sistema perceptivo-cognitivo. Entre ou- poeta Campoamor pode explicar melhor nesse seu tras, as seguintes funções com participação cons- verso: “Nem tudo é verdade; nem tudo é mentira; ciente do ego necessitam ser destacadas: percep- tudo depende; do cristal com que se mira”. ção, pensamento, conhecimento, juízo crítico, in- teligência, discriminação, memória, atenção, ca- pacidade para antecipação e postergação, lingua- Pensamento gem, comunicação, abstração, síntese, atividade motora, algumas das quais vão merecer, a seguir, Na psicanálise atual, a capacidade de o pacien- uma exposição mais detida. te poder pensar as suas experiências emocionais, as antigas e as novas, está ganhando um crescente espaço de importância pelo fato de que, quando do Percepção contrário, isto é, quando a pessoa não pensa, as an- siedades manifestam-se através de actings, soma- A normalidade e a patologia da função per- tizações, bem como pelas diversas formas de “ne- ceptiva do ego adquirem uma extraordinária im- gação”, que determinarão os mais distintos qua- portância na prática analítica, especialmente por- dros da psicopatologia. que ela se refere não só a como o indivíduo perce- Dito assim, pode causar estranheza o realce que be o mundo exterior e a possível intenção dos ou- foi dado à necessidade de pensar, já que, à primei- tros, mas também abarca uma visualização de como ra vista, parece ser óbvio que todos pensamos o o paciente percebe a si próprio, a sua imagem cor- tempo todo: no entanto, essa função de o sujeito poral, as suas representações e o seu sentimento de “realmente pensar” é bastante complexa e difícil. identidade. Vou construir uma frase para clarear esta última Não resta dúvida de que a patologia da percep- afirmativa: “Muita gente pensa que pensa, mas não ção decorre de raízes inconscientes, notadamente pensa, porque pensa com o pensamento do outro aquelas que dizem respeito a inadequadas e exces- (caso de pessoas submissas; falso self, etc.) ou con- sivas identificações projetivas e introjetivas, res- tra o pensamento do outro (paranóias; rivalidade ponsáveis, por exemplo, pelos fenômenos alu- narcisista), ou contra si próprio (os auto-reproches cinatórios; porém, a participação consciente é igual- dos melancólicos) numa circularidade estéril (ob- mente importante, como é o caso do vértice (termo sessivos, que cavilam e ruminam os pensamentos de Bion), a partir do qual o observador – no campo sem sair do mesmo lugar), ou unicamente em tor- analítico esse papel tanto cabe ao paciente como no do seu próprio umbigo (narcisistas que se crê- ao analista – percebe e interpreta um determinado em donos das verdades), ou até como uma forma fato clínico. A conceituação de “vértice psicanalí- primitiva de unicamente evacuar para fora os tico”, de Bion, pode ser ilustrada pelo fato de que protopensamentos compostos por sensações into- 126 DAVID E. ZIMERMAN leráveis, em cujo caso o sujeito não consegue usar inglesa knowledge), sendo que, neste último, ele “símbolos” e substitui-os por “equações simbóli- contribuiu com concepções originais acerca do cas” (termo de H. Segal [1954], que alude ao pen- “não-conhecimento” (que ele designa como “- K “). samento concreto do psicótico). O ego processa esse automutilatório “ataque ao A capacidade para realmente pensar, de forma vínculo do conhecimento” quando o sujeito não eficaz, tem origem no plano inconsciente do ego, pode, ou não quer, tomar conhecimento e ciência porquanto implica na condição de o sujeito passar da existência de verdades penosas, tanto as exter- pela posição depressiva, o único caminho que lhe nas quanto as internas, assim impedindo o desmas- possibilita a formação de símbolos, os quais, por caramento, a percepção e correlação dessas verda- sua vez, permitir-lhe-ão a generalização e a abstra- des intoleráveis. ção de pensamentos. Além disso, o ato de pensar Essa função egóica relativa ao “conhecimento” requer que o sujeito estabeleça confrontos e corre- ganha uma especial relevância na atual prática ana- lações entre uma idéia e outra, entre fatos presen- lítica pelo fato de que ela está intimamente ligada tes e passados, entre aspectos contraditórios de si aos problemas que dizem respeito às verdades, fal- próprio. Também implica disposição do sujeito para sidades e mentiras, inconscientes ou conscientes, “ponderar”, isto é, diante de uma decisão “pesar” levando-se em conta o fato de que o “conhecer” os prós, contras e o seu quinhão de responsabilida- (ou “saber”) é o caminho para o sujeito vir a “ser”. de. Igualmente, a capacidade para realmente pen- sar exige do sujeito a condição básica que Bion denomina como “capacidade para aprender com as experiências”, as boas, e, principalmente, as más, Linguagem e Comunicação e assim por diante. Todos esses últimos aspectos importam numa participação fundamental da voli- Da boa ou má resolução das funções do pensa- ção do ego-consciente. mento e do conhecimento resultará a qualidade da estrutura lingüística e comunicacional. Nos primei- Juízo crítico ros tempos da vida, o bebê comunica-se com o É útil estabelecer uma distinção entre pensa- mundo através de uma linguagem corporal (choro, mento, juízo e raciocínio. O juízo crítico supõe uma esperneios, caretas, vômito, diarréia, etc.). Se a mãe capacidade do ego em articular e discriminar os consegue decodificar as mensagens emitidas por diversos pensamentos que estão separados entre si. essa linguagem primitiva, vai-se formando um cli- A função de raciocínio, por sua vez, implica arti- ma de entendimento recíproco, o qual propicia a culação de vários juízos. formação de núcleos de “confiança básica” no self da criancinha, abrindo caminho para a formação Capacidade de Síntese de símbolos, logo, da “palavra” e do discurso ver- bal. Sintetizar não é o mesmo que “resumir”; antes, Em caso contrário, fica prejudicada a capaci- ela é uma das funções mais nobres do ego, por- dade para a comunicação verbal, de modo que, no quanto consiste em juntar e integrar os mesmos futuro adulto, o verbo possa restar a serviço de uma elementos que estão sendo pensados, porém com “não-comunicação”, por meio de ambigüidade, en- um novo arranjo combinatório, de modo a possibi- godos, mentiras e a criação de um estado confu- litar um novo significado. Assim, a capacidade sin- sional. Tudo isso valoriza a importância de o ana- tética do ego permite que o sujeito, ao mesmo tem- lista estar atento para decodificar a “linguagem não- po, simbolize significados opostos. verbal” do paciente, em suas múltiplas formas de manifestar-se, conforme será detalhado em capítu- lo específico.

Conhecimento Ação Entre os autores psicanalíticos que têm estuda- do com profundidade a normalidade e a patologia A função de “ação” do ego corresponde ao pla- da função do “conhecimento”, é justo destacar Bion no comportamental, ou seja, da conduta do sujeito. que, juntamente com os clássicos vínculos de amor A prolongada dependência, que acompanha o ser e de ódio, também descreveu o do conhecimento humano desde o seu nascimento, estabelece pro- (que ele designa como “K”, letra incial da palavra fundas conexões entre o descompasso inicial de FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 127 suas sensações e fantasias com a sua capacidade me-os, de onde resulta o surgimento da ansiedade motora, sobretudo a da marcha. Se não houver uma decorrente de um represamento de desejos, fanta- suficiente harmonia entre as funções de pensamen- sias, sentimentos, etc. (essa concepção econômica to e de conhecimento com as da conduta, o sujeito de origem de ansiedade tinha caído em certo desu- reproduzirá as mesmas vivências de sua impotên- so, porém volta a ganhar crédito para explicar as cia infantil e descarregará as suas ansiedades, não “neuroses traumáticas” e as “neuroses atuais”). Por pelas atividades sublimadas, mas, sim, em actings sua vez, a conhecida “angústia-sinal” (descrita, a e condutas-sintomas. Constituem exemplos disso partir de 1926, em Inibição, sintoma e angústia), ao a conduta inibida em demasia (própria dos obses- contrário da anterior, é concebida como sendo um sivos), a sedutora (como nas personalidades histé- “sinal” que o ego emite diante de uma ameaça, e só ricas), a psicopática e a perversa, entre outras, sen- então é que vai processar-se a repressão. do que cada uma delas estará expressando uma Do ponto de vista da origem, funcionamento e configuração específica da personalidade, assim significado da ansiedade, cabe historiar, também, como, também, traduzindo uma forma arcaica de as seguintes concepções de Freud: angústia de nas- comunicação. cimento (inicialmente, foi concebida nos termos Não são todos os estudiosos do comportamen- descritos por O. Rank); angústia de desamparo (o to humano que privilegiam o seu entendimento termo original em alemão é Hilflosigkeit, tem o sig- como devendo partir sempre da estrutura psíquica nificado de uma sensação de terrível desvalia e do mundo interior do indivíduo. Há uma expressi- abandono, deriva da incapacidade de o ego pro- va corrente – denominada cognitivo-comporta- cessar os traumas psíquicos e pode ser considera- mental (ou comportamentalista, ou behaviorista) da como a prototípica de todas as demais angús- – que preconiza um caminho inverso, ou seja, o de tias); angústia de perda (separações); angústia da que uma mudança psíquica deve processar-se a par- perda do amor dos pais; angústia de castração (di- tir de estímulos, tanto os positivos como os inibi- retamente ligada ao conflito edípico e estabelece tórios, através de um treinamento da conduta exte- um limite para o crescimento “genital”); angústia rior. De qualquer forma, importa que o paciente de culpa e medo diante do superego (ameaça de desenvolva a capacidade consciente de, em grande punição, caso houver transgressão do código de parte, responsabilizar-se pelos seus atos. valores por ele imposto à criança); angústia devi- do à presença do “instinto de morte” (determina um masoquismo autodestrutivo). Funções da Parte Inconsciente do Ego Para M. Klein, a partir de uma perspectiva po- sicional, a angústia manifesta-se por três modali- dades: a persecutória (corresponde à “posição es- Formação de Ansiedades (ou Angústias) quizoparanóide” e supõe a existência de um primi- tivo superego cruel que ameaça com o aniquila- É de consenso entre os psicanalistas o princí- mento do ego), a depressiva (corresponde à “posi- pio de que o bebê sofre de ansiedades desde o seu ção depressiva”, vem acompanhada de um neces- nascimento (segundo muitos autores, como Bion, sário sofrimento psíquico e representa uma amea- originam-se desde a gestação). Apesar de a ciência ça ao aniquilamento dos bons objetos internos) e a psicanalítica ainda não dispor de um método cien- confusional (entre as duas anteriores e forma-se a tífico de registro e de mensuração das aludidas an- partir de um fracasso do processo normal de disso- siedades, é inegável que a sua presença é confir- ciação do amor e do ódio, do objeto bom e do mau; mada por fatos objetivos. Assim, a simples obser- em decorrência, o ego apela para um excessivo uso vação de qualquer bebê mostra-nos o quanto ele de identificações projetivas). Baseada nessas pre- oscila entre uma serena expressão de um completo missas, M. Klein descreve a ansiedade de aniqui- bem-estar, para a de um intenso sofrimento, o qual lamento (ou de desintegração), na qual tanto o ego fica traduzido, entre outros sinais, por um indiscu- como os objetos sentem-se ameaçados de uma des- tível ricto doloroso. truição. As ansiedades podem ser descritas a partir de Bion acompanha as conceituações de M. Klein distintos referenciais. Assim, ao longo de sua obra, e também descreve a angústia que ele denomina Freud, partindo de um ponto de vista econômico e terror sem nome, porquanto corresponde a uma adaptativo, descreveu dois tipos de ansiedade: a terrível ansiedade de aniquilamento que ficou re- angústia automática e a angústia-sinal. A primeira presentada no ego em uma época anterior à forma- corresponde a um excesso de estímulos que o ego ção das palavras e, por isso, o paciente não conse- não tem condições de processar e, por isso, repri- 128 DAVID E. ZIMERMAN gue verbalizá-las. De um ponto de vista clínico, rudimentar ego do recém-nascido está pugnando Bion acentua a possibilidade de que, muitas vezes, para livrar-se dessas angústias penosas e obscuras. uma angústia catastrófica (forte sofrimento psíqui- É óbvio que quanto mais imaturo e menos desen- co em um estado de confusão, depressão, sensação volvido estiver o ego, mais primitivas, e carrega- de estar perdido e piorando, etc.) surge no curso da das de magia, serão as defesas. análise, quando importantes mudanças psíquicas Pode-se dizer que o mecanismo fundamental estão começando a acontecer no paciente. do ego é o de rejeitar de qualquer forma – através Winnicott, de modo similar a Bion, alude a uma da utilização das múltiplas formas de “negação” – forma de angústia (ou agonia) impensável; além a vivência e a tomada de conhecimento de tais ex- da sua original concepção de uma regressão do periências emocionais ansiogênicas. As formas sujeito a um estado de angústia de não-integração mais primitivas de “negação”, alicerçadas em uma (é diferente de “desintegração” e refere mais dire- onipotência mágica, são as seguintes: tamente a uma fase evolutiva em que os diversos segmentos corporais e psicológicos ainda não ti- a) A forma extrema de negação mágico-oni- nham condições neurobiológicas de estarem inte- potente, própria dos estados psicóticos, é grados). Essa angústia de “não-integração” mani- denominada “Forclusão” (ou “Repúdio”): festa-se na clínica sob a forma de o paciente ter trata-se de uma denominação de Lacan e uma forte impressão de que possa estar “caindo”, corresponde ao original conceito de ver- sendo muito comum que ele sonhe com quedas e werfung de Freud) e consiste em fazer uma despencamentos. negação extensiva à realidade exterior e Lacan acrescenta um enfoque original em al- substituí-la pela criação de uma outra rea- guns aspectos do surgimento da angústia, como é o lidade ficcional (o melhor modelo está con- caso daquela que acompanha o sujeito, que, quan- tido no conhecido modelo que Freud des- do ainda fixado na “etapa do espelho”, sente-se alie- creveu como uma “gratificação alucina- nado na imagem do outro e angustia-se ante a sen- sação de que não vai conseguir recobrar a própria tória do seio”, quando, por algum tempo auto-imagem. Da mesma forma, Lacan aponta para possível, a criança substitui o seio ausente a angústia que resulta do medo do indivíduo não da mãe pelo próprio polegar). conseguir ser “o desejo do desejo do outro”. b) Uma outra forma de negação em nível de M. Mahler, uma importante representante da magia, porém de menor gravidade que a “Psicologia do ego”, aprofundou um estudo refe- forclusão psicótica, por ser mais parcial e rente ao que se costuma denominar ansiedade de estar encapsulada em uma só parte do ego, engolfamento, que está intimamente ligada às é aquela que foi descrita por Freud como subetapas evolutivas de “simbiose, diferenciação, Verleugnung e que conhecemos como individuação e separação”; portanto, à conhecida “renegação” (ou por um desses nomes: angústia de separação. denegação; recusa; desestima; desmentida). Esta compacta síntese permite depreender a crucial importância que a gênese, função e signifi- Essa defesa é típica das estruturas perver- cação de cada angústia em separado, vista por dis- sas e consiste em um mecanismo pelo qual tintos enfoques, representa para a compreensão o sujeito nega o conhecimento de uma ver- psicanalítica. dade que, bem no fundo, ele sabe que exis- te. O melhor modelo para explicar isso é o que acontece no fetichismo, tal como Freud Mecanismos de Defesa (1927) descreveu tal perversão: o sujeito sabe que a mulher não tem pênis; no entan- Sob este título designam-se os distintos tipos to, para negar a sua fantasia de que esta de operações mentais que têm por finalidade a re- falta deve-se a uma castração que, de fato, dução das tensões psíquicas internas, ou seja, das tenha ocorrido, ele renega a verdade com ansiedades. um pensamento tipo “não, não é verdade Os mecanismos de defesa processam-se pelo que a mulher não tem pênis” e reforça essa ego e praticamente sempre são inconscientes. Se falsa crença com a criação de algum feti- admitirmos a hipótese de que a ansiedade está pre- che, como pode ser uma adoração por sa- sente desde o nascimento, como muitos autores pos- tulam, teremos que aceitar a convicção de que o patos, etc. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 129

c) A negação que acompanha a “posição es- Identificação Projetiva quizoparanóide”, ou seja, aquela que é re- sultante da combinação de uma onipotente A importância que o fenômeno do mecanismo capacidade do ego do sujeito de fazer da Identificação Projetiva representa para a teoria, dissociações (das pulsões, dos objetos, dos técnica e clínica – reconhecida por todas as cor- afetos e de partes do próprio ego), segui- rentes psicanalíticas da atualidade – justifica que das de projeções (sobre um outro objeto), nos alonguemos um pouco mais na sua conceitua- identificações projetivas (para dentro de ção, de como ela aparece indiretamente em Freud e diretamente em Klein e Bion. algo ou alguém), de introjeções (é uma for- Freud. Todos reconhecemos que Freud descre- ma de incorporar tudo o que puder contra- veu aprofundadamente o mecanismo defensivo da arrestar o mau que a criança sente como “projeção”, como, por exemplo, no “Caso Schre- estando dentro de si) e de idealizações (de ber”, ou nos seus trabalhos sobre as paranóias. si próprio ou de outros, como uma maneira Embora ele nunca tenha utilizado a expressão de evitar sentir a sensação de desamparo e “identificação projetiva”, a essencialidade que ca- impotência). racteriza a concepção desse fundamental fenômeno- d) À medida que o ego for evoluindo e ama- psíquico aparece em alguns importantes textos de durecendo neurobiologicamente, ele come- sua obra. Assim, já no “Projeto...”, escrito há mais ça a empregar defesas menos arcaicas, de um século, Freud dá a entender que a criança como é o uso de deslocamento, anulação, incapacitada de, por si só, conseguir satisfazer as suas necessidades estabelece uma comunicação in- isolamento, regressão e transformação ao consciente com a sua mãe, a qual (entendendo e contrário. Essas defesas são típicas dos atendendo), possibilita uma “vivência de satisfa- quadros obsessivo-compulsivos e fóbicos, ção”. Igualmente, em “Psicologia das massas e o que não quer dizer, é claro, que elas não análise do ego” (1921), Freud descreve claramen- estejam presentes em outras situações ca- te a identificação projetiva que os integrantes das racterológicas e psicopatológicas. massas efetivam com os seus líderes, tal como acon- e) Por sua vez, um ego mais amadurecido tem tece, ele exemplifica, numa tropa do exército, en- condições de utilizar defesas mais estrutu- tre os soldados com o seu comandante. radas, como são a repressão, a formação M. Klein. Em “Notas sobre alguns mecanis- reativa, a racionalização e a sublimação, mos esquizóides” (1946), Klein utilizou pela pri- entre outras mais. Freud, em grande parte, meira vez a denominação de “identificação proje- tiva”, cuja conceituação ela foi ampliando progres- centralizou a psicanálise em torno da “re- sivamente em, pelo menos, três dimensões psíqui- pressão” (ou “recalcamento”), que, no ori- cas distintas: A) como uma necessária e estruturante ginal, ele denominava Verdrangung, sem- defesa primitiva do ego incipiente, através de uma pre presente nas estruturas histéricas. expulsão que, desde sempre, o sujeito faz de seus É útil deixar bem claro que todos esses meca- aspectos intoleráveis, dentro da mente de outra nismos defensivos são estruturantes para a época pessoa (a mãe, no caso do bebê); B) como uma do seu surgimento. No entanto, qualquer um deles, forma de penetrar dentro do interior do corpo da se for utilizado pelo ego de forma indevida ou ex- mãe, com a fantasia de controlar e apossar-se dos cessiva, pode vir a funcionar de um modo deses- tesouros que, imaginariamente, ela possui (fezes, truturante. Pode servir como exemplo a utilização pênis e, principalmente, os bebês imaginários); C) da “identificação projetiva”: ela tanto pode servir no trabalho “Sobre a Identificação”, inspirada na como um sadio meio de colocar-se no lugar do ou- novela “Se eu fosse você”, de Julian Green, M. tro (empatia), como também pode ser a responsá- Klein ensaia as primeiras concepções das identifi- vel pelas distorções psicóticas, no campo das per- cações projetivas a serviço de uma empatia. Notá- cepções. veis autores kleinianos ampliaram a compreensão Por outro lado, a importância dos mecanismos e utilização do fenômeno da identificação projeti- de defesa pode ser medida pelo fato de que a mo- va, como Rosenfeld (descreveu os estados confu- dalidade e o grau do seu emprego diante das ansie- sionais e de “despersonalização” dos psicóticos, re- dades é que vai determinar a natureza da formação sultantes de um excessivo intercâmbio de identifi- – a normalidade ou patologia – das distintas estru- cações projetivas e introjetivas), Paula Heimann e turações psíquicas. H. Racker (separadamente descreveram a possibi- 130 DAVID E. ZIMERMAN lidade de os psicanalistas utilizarem os seus senti- ção e utilização dos “pensamentos” e também dos mentos contratransferenciais como um importante “conhecimentos”. A capacidade para simbolizar é instrumento técnico); L. Grinberg (como os seus exclusiva do ser humano, e é por meio dela que a importantes estudos sobre a contra-identificação criança terá acesso às outras capacidades: de con- projetiva); Meltzer (assinalou o fato de que o em- ceituar, generalizar, abstrair, verbalizar, construir prego da identificação projetiva pode constituir-se metáforas e criar, sendo que a aquisição e a verba- para o paciente como sendo o seu melhor recurso lização da “palavra”, que designa fatos e idéias, “para proteger-se contra a angústia de separação”, representa ser um dos mais nobres símbolos. e Bion. A formação de símbolos pelo ego do sujeito Bion. Sem dúvidas, Bion foi o autor que mais está subordinada à sua capacidade de atingir a “po- consideravelmente ampliou a concepção original sição depressiva”, isto é, de suportar ausências e de Klein e acrescentou aspectos de inteira origina- perdas, tendo em vista que o símbolo é a unidade lidade. As seguintes conceituações mereceram um perdida e refeita. No entanto, esse reencontro registro: A) Ele criou o modelo continente-conteú- unificador não deve ser nos moldes originais (do do para virtualmente todos os fenômenos da vida tipo de uma regressão a uma primitiva unidade psíquica, sendo que a transação entre ambos é pro- simbiótica-fusional com a mãe), mas, sim, do re- cessada através de identificações projetivas. B) encontro de “um mesmo com um diferente”, de Bion considera dois tipos de identificação projeti- modo que, na situação psicanalítica, simbolizar va: uma, que ele denomina como realista (estru- consiste em captar o sentido, em um outro nível, turante e indispensável para enfrentar a realidade), de forma a emprestar um novo significado. e outra, denominada como excessiva, que se carac- São os símbolos que permitem que um “todo” teriza tanto por um excesso quantitativo, como tam- seja reconhecido nas partes fragmentadas e disper- bém pelo excesso qualitativo, devido às caracte- sas, assim como, também em um caminho inverso, rísticas da ilusória força mágica da onipotência e eles possibilitam que, a partir de um todo, venha- de uma fragmentação dos aspectos do self que são se a descobrir as partes. projetados. C) Introduziu a importantíssima noção Um bom exemplo da capacidade de formação de que a emissão do conteúdo de protopensamentos de símbolos pode ser dado pelo “jogo do carre- (elementos-beta), objetiva encontrar um continen- tel”, aquele que o netinho de Freud usava como te adequado, que decodifique os significados emi- uma forma de enfrentar a angústia de separação tidos e veiculados pela evacuação através de iden- com a sua mãe, simbolizando-a no carretel, fazen- tificações projetivas. D) Assim, essas últimas ad- do-a desaparecer e reaparecer, com as respectivas quirem a função de uma comunicação primitiva exclamações de “fort” e “da”. (daquilo que o paciente por demais regredido não consegue verbalizar, porquanto trata-se de uma an- gústia inominada, que Bion chama como terror sem Identificações: Sentimento de Identidade nome). E) No caso em que essas projeções não encontrarem um continente adequado, elas podem A aquisição de um sentimento de identidade alojar-se em objetos do espaço externo, constitu- coeso e harmônico resulta do reconhecimento e da indo o fenômeno que ele chama de objetos bizar- elaboração das distintas identificações parciais que, ros, e configurando a formação de alucinoses. F) desde os primórdios, foram-se incorporando no Embora Bion não empregue a denominação de “em- sujeito pela introjeção do código de valores dos patia”, fica transparente o quanto ele valoriza a fun- pais e da sociedade. Esse processo complica-se na ção estruturante possibilitada pela utilização ade- medida em que cada um dos pais modeladores da quada das identificações projetivas que permitiam identificação do filho, por sua vez, também está que um sujeito possa colocar-se no lugar de um identificado com aspectos parciais ou totais dos outro e sentir o que este sente e não consegue trans- seus respectivos pais, num importante movimento mitir. “transgeracional” que muitas vezes atravessa su- cessivas gerações na transmissão dos mesmos va- lores formadores da identidade, tanto a individual Formação de Símbolos como a grupal e social. A identificação é um processo ativo, do ego Como já foi referido, essa importante capaci- inconsciente do indivíduo, e consiste em que este dade egóica procede dos processos inconscientes venha a tornar-se idêntico a um outro (de acordo que estão intimamente ligados à formação, evolu- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 131 com a etimologia “iden-tificar” é o mesmo que “tor- dida: é a base dos processos depressivos, inclusive nar idem”, ou seja, “igual”). nos quadros melancólicos, segundo o mecanismo Há muitas formas de como processa-se a iden- identificatório que está contido na célebre afirma- tificação. Inicialmente, é útil fazer uma distinção tiva de Freud (1917) de que “a sombra do objeto entre proto-identificação e identificação propria- recai sobre o ego”. • Com a figura que, na realida- mente dita. As primeiras são de natureza mais ar- de ou fantasia, foi atacada: para esta última situa- caica e configuram-se por uma das quatro modali- ção, proponho a denominação de “identificação dades seguintes: com a vítima”. Nestes casos, é comum que persista a presença de um mesmo aspecto da “vítima”, como a) Adesiva: tal como foi descrita por E. Bick pode ser um sintoma, valor, maneirismo, etc. • Com (na sua concepção de “pele psíquica”, os valores que lhe foram impostos pelos pais, na 1968) e por Meltzer (quando alude aos base do “tu vais ser igual à louca da tia Maria...”. “pseudópodos mentais”, 1975), que con- A identificação também pode resultar das car- siste no fato de que a criança ainda não se gas de identificações projetivas pelas quais o su- “desgrudou” da mãe e, nesse caso, “ter” a jeito, que não consegue conter dentro de si próprio mãe é o mesmo que “ser” a mãe; portanto, os seus aspectos sentidos como maus (mas tam- há uma “fusão”, e não se forma uma “iden- bém podem ser os bons), projeta-os dentro dos ou- tificação” acompanhada com uma neces- tros que, então, passam a ser sentidos como idênti- sária “individuação”. cos a ele; depois, esses mesmos aspectos projeta- dos são introjetados e incorporados. b) Especular: a criança comporta-se como se De forma resumida, podemos dizer que o ver- fosse uma mera imagem que somente re- bo “identificar” pode ser conjugado em três planos flete os desejos da mãe, ou vice-versa, en- do psiquismo: na voz ativa (o sujeito identifica algo cara os outros como se esses fossem um ou alguém); na voz passiva (ele foi identificado com simples prolongamento de si próprio. e por alguém); na voz reflexiva (o sujeito identifi- c) Adictiva: decorre da anterior e consiste em ca-se com um outro). que, devido à falta de figuras solidamente A aquisição do sentimento de identidade pro- introjetadas, o indivíduo fica sem identi- cessa-se em vários planos – como o de gênero se- dade própria e por isso ele fica “adicto” a xual, social, profissional, etc. – e forma-se a partir certas pessoas que o completam e comple- das múltiplas e variadas identificações, parciais ou mentam. totais; idealizadas, denegridas, deprimidas, persecutórias ou admiradas; sadias e estruturantes, d) Imitativa: na evolução normal, essa forma patogênicas e desestruturantes, etc. é um primeiro passo para a construção de O sentimento de identidade sofre contínuas e uma identidade sadia. No entanto, muitas sucessivas transformações ao longo da vida de cada vezes, pode constituir-se como uma forma indivíduo, notadamente na época atual da aldeia permanente de personalidade que cabe cha- global, em que as mudanças sócio-políticas e eco- mar de “camaleônica”, porquanto esse su- nômicas processam-se com uma velocidade verti- jeito não faz mais do que se adaptar (na ginosa. No entanto, por maiores que sejam as trans- verdade, submeter-se) aos diferentes am- formações, elas sempre conservam algumas in- bientes. variantes essenciais, de modo que, independente- mente das variações temporais, espaciais e sociais Já as “identificações propriamente ditas” resul- (segundo Grinberg, 1971, a integração destes três tam de um processo de introjeção de figuras pa- últimos vínculos é que constitui o sentimento de rentais dentro do ego – sob a forma de representa- identidade), o sujeito continua sendo basicamente ções objetais – e no superego, o que pode ocorrer “idem”, isto é, o mesmo. por uma das seguintes formas: • Com a figura ama- Da mesma forma, é inerente ao sentimento de da e admirada: é a forma que constitui as identifi- identidade o constante questionamento do sujeito cações mais sadias e harmônicas; • Com a figura quanto a quem ele realmente é, como ele auto-re- idealizada: costuma ser frágil, custa ao sujeito o presenta-se, quais são os papéis e lugares que ele preço de um esvaziamento de suas capacidades e ocupa nos vínculos grupais e sociais, o que e quem uma pequena tolerância às decepções. • Com a fi- ele quer vir a ser e de como ele é visto pelos de- gura odiada: configura o que se conhece como mais. “identificação com o agressor”. • Com a figura per- 132 DAVID E. ZIMERMAN

Existe uma larga gama de transtornos do senti- adquire condições para refazer o seu sentimento mento de identidade, desde as “normais”, que de identidade. Esses períodos da análise costumam acompanham as crises vitais – como pode ser vir acompanhados de uma intensa dor psíquica e exemplificado com as transformações próprias da podem constituir aquilo que Bion denomina “mu- adolescência –, até as formas “patológicas”, como dança catastrófica” que, entre outras manifestações são aquelas que aparecem em pessoas “impostoras” mais, transparece uma “confusão do senso de iden- (geralmente psicopatas que impõem aos outros uma tidade”. falsa identidade); em portadores de um “falso self” Além disso, o sofrimento psíquico que acom- (conforme Winnicott); nos casos de uma “difusão panha a reconstrução do sentimento de identidade de identidade” (tal como Kernberg descreve em pa- também se deve ao fato de que, para dizer sim ao cientes borderline), etc. seu ego, o sujeito deve ter adquirido condições para No processo psicanalítico, mercê das profun- dizer não aos seus objetos internos opressores. das mudanças nas relações intra-objetais, o paciente FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 133

CAPÍTULO sendo que as conceituações a eles atribuídas nem sempre são uniformes, de modo que tudo isso co- mumente contribui para uma, nada incomum, con- fusão semântica, que fica muito mais complicada pelo fato de que importantes autores pósteros a 11 Freud, utilizando essa mesma terminologia, fize- ram distintas concepções e ampliações de signifi- cados. Por essas razões, cabe tentar fazer uma ne- cessária discriminação conceitual entre os três ter- mos referidos e mais alguns outros correlatos, além Os Mandamentos de igualmente tentar discriminar as fontes oriun- das de distintos autores. do Superego Como marco referencial neste artigo, vou se- guir aqueles autores que convencionam chamar “superego” a uma estrutura do conjunto, que com- preende diversas subestruturas, como são, entre O termo superego foi introduzido por Freud outras, o “ego ideal” e o “ideal do ego”, além da- (com o nome original, em alemão, de Uber-Ich) e quelas outras que lhe são próximas, comumente aparece pela primeira vez na literatura psicanalíti- conhecidas como “ego auxiliar”, “alter ego” e ou- ca no seu clássico trabalho de 1923, O ego e o id, tras afins, que guardam cada um deles, significa- integrando a segunda teoria do aparelho psíquico, dos específicos. ou seja, a teoria estrutural. Nessa publicação, Freud Destarte, apresenta-se a seguir um esboço para descreve o superego como uma instância psíquica definir, atualizadamente, cada um desses termos, que se separou do ego – encarregou-se das funções de início, de forma genérica e unicamente para es- de um juiz representante da moral, legislador de tabelecer um ponto de partida semântico e concei- leis e proibidor das transgressões dessas leis – e tual, sendo que no curso deste capítulo eles serão passou à condição de poder dominar ao próprio especificamente melhor explicitados. ego que lhe deu origem, como demonstram os es- tados de melancolia em que o indivíduo é criticado • Superego. Alude a uma estrutura composta por uma parte, sua, que emite mandamentos que por objetos internalizados, aos quais geral- provêm desde dentro dele próprio. mente atribui-se um caráter persecutório, de Antes disso, em 1914, no seu célebre Uma in- intensidade maior ou menor e que, por meio trodução ao narcisismo, Freud empregou a expres- de mandamentos, opõe-se às pulsões do id, são ideal do ego (Ichideal) para designar uma for- faz ameaças e um boicote às funções do ego, mação intrapsíquica relativamente autônoma, que distorce a realidade exterior e, ao mesmo é uma substituta do narcisismo perdido do sujeito tempo, submete-se a ela, cumprindo as de- e que lhe serve de referência para apreciar as reali- terminações sobre o que o sujeito deve e o zações de seus próprios ideais. Em 1921, no traba- que não deve fazer, o que sempre provoca lho Psicologia das massas e análise do ego, Freud nele um estado mental de culpas, acompa- voltou a empregar o termo “ideal do ego” como sendo uma formação nitidamente separada do ego, nhado de medo e atitude defensiva. o que lhe permitiu explicar a “submissão dos gru- • Ego auxiliar. Trata-se de uma expressão que pos ao líder” – como pode ser o comandante de não é muito empregada, porém ela é muito uma tropa militar – ou Jesus Cristo para os religio- útil na medida em que nos ajuda a discrimi- sos, os quais são idealizados coletivamente, e em nar que, nem sempre, os objetos superegói- quem os indivíduos depositam os seus próprios cos são introjetados de forma tirânica e amea- “ideais de ego”. çadora. Pelo contrário, quando os objetos Nesse mesmo trabalho de 1914, Freud também internalizados se organizam como aliados do utiliza o termo ego ideal (Idealich), com o qual ele ego, no sentido de auxiliar a estabelecer os designava os mesmos conceitos contidos em “ideal necessários limites e a imposição de valores do ego”. morais e éticos, cabe considerar a denomi- Na verdade, ao longo da obra de Freud, os alu- didos três termos – superego, ideal de ego e ego nação de “ego auxiliar” como equivalente ao ideal – aparecem virtualmente como sinônimos, que seria um “superego amistoso e benéfi- co”. 134 DAVID E. ZIMERMAN

• Ego ideal. Esta subestrutura, aparentada com se, porém que me parece adequado para sig- o superego, é considerada como uma her- nificar a existência de uma organização pa- deira direta do narcisismo original, ou seja, tológica (termo de J. Steiner, 1981), a qual, os mandamentos internos obrigam o sujeito desde dentro do próprio ego, qual uma a corresponder, na vida real, às demandas gangue narcisista (termo de Rosenfeld, provindas de seus próprios ideais, geralmente 1971) sabota o crescimento do ego sadio. impregnados de ilusões narcisistas inalcan- Esse aspecto referente a tal organização pa- çáveis e, por isso mesmo, determinam no in- tológica, que faz uma inconsciente sabota- divíduo um estado mental que se caracteriza gem e boicote contra o crescimento das par- por uma facilidade para sentir depressão e tes sadias do sujeito, vem ganhando uma humilhação diante dos inevitáveis fracassos crescente importância na psicanálise. daquelas ilusões. • Supra-ego. Proponho esse termo (o prefixo • Ideal do ego. Também esta subestrutura está “supra” significa “acima de tudo”) para de- diretamente conectada com o conceito da signar a conceituação de Bion relativa à exis- estrutura do superego, sendo que ela resulta tência de um super-superego, que alude a dos ideais do próprio “ego ideal” da crian- uma subestrutura constante da “parte psicó- ça, que são projetados e altamente idealiza- tica da personalidade”, pela qual o sujeito dos nos pais e que se somam aos originais cria uma moral própria e, onipotentemente, mandamentos provindos do “ego ideal” de pretende impô-la aos demais. cada um desses pais. Dessa forma, o sujeito fica submetido às aspirações dos outros so- bre o que ele deve ser e ter, e daí resulta que ORIGEM E FUNÇÕES DO SUPEREGO o seu estado mental prevalente é o de um permanente sobressalto e o fácil acometi- Em Freud mento de sentimento de vergonha quando ele não consegue corresponder às expectativas Origem. No que se refere à gênese do supere- dos outros, que passam a ser também as suas. go, Freud correlacionou a sua origem à dissolução • Alter ego. Esse termo já esteve muito em do complexo de Édipo, o que ficou consubstanciado voga no jargão psicanalítico, depois prati- na sua famosa frase: o superego é o herdeiro direto do complexo de Édipo. Segundo Freud, isso acon- camente desapareceu e, na atualidade, volta tece porque quando a criança supera, com mais ou a comparecer com alguma regularidade na com menos êxito, a sua conflitiva edípica, ele en- literatura da psicanálise, com o significado contra uma solução para as angústias acompanhan- da existência de um duplo do sujeito. Ou seja, tes desse conflito, pela interiorização dos seus pais por meio de identificações projetivas maci- dentro de si. Isto é, a criança identifica-se com eles ças dos seus superegóicos objetos internos e, assim, internaliza as interdições deles. No en- em alguém, o sujeito constrói uma duplica- tanto, essa identificação não é completa, porquan- ção dele, uma espécie de um “gêmeo imagi- to a criança pode identificar-se com certos aspec- nário”. Vale acrescentar que o fenômeno do tos dos pais e não com outros, de acordo com esse “duplo”, especialmente a partir de Lacan, que mandamento interno: “deves ser assim...(como teu descreveu a própria imagem da criança, vis- pai)”, mas também abarca a proibição “não deves ser assim... (como o teu pai; não podes fazer tudo o ta por ela mesma no espelho, está recebendo que ele faz; muitas coisas são prerrogativas exclu- uma significativa importância nos textos de sivas dele; ai de ti se o desobedeceres...”. muitos autores contemporâneos. Este tema Em relação a esse aspecto referente às identifi- foi inicialmente estudado por O. Rank (O cações que formam o superego, Freud acentuou a duplo, 1914) e por Freud (O sobrenatural, diferença entre a evolução no menino e na menina. também traduzido por O sinistro –, 1919, v. No rapaz, o complexo edípico defronta-se inevita- 17). velmente com as ameaças de castração e, diz Freud, • Contra-ego. Peço que os leitores relevem a um “superego rigoroso é o seu sucessor”, enquan- minha, talvez excessiva, pretensão de pro- to na menina, pelo contrário, a angústia de castra- por este termo que não existe em psicanáli- ção diante da mãe é que a empurra para o pai, as- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 135 sim forjando o complexo de Édipo e o conseqüen- As mencionadas críticas feitas a Freud reme- te superego. Ademais, forma-se um aparente para- tem-nos a uma velha questão: quando um processo doxo, segundo Freud: o superego constitui-se como de introjeção contribui para a formação do ego (no herdeiro do complexo de Édipo, ao mesmo tempo caso, do “ego auxiliar”) e quando ele contribui para em que ele contribui para a dissolução desse mes- a formação do superego? A resposta é que o resul- mo complexo por meio de interdições e ameaças. tado será decidido pela qualidade emocional com Em seus últimos trabalhos, Freud (1933) con- que a criança realiza as introjeções. Assim, por siderou que o superego surge como uma estrutura exemplo, se durante o ato de introjeção o principal que engloba três funções: “auto-observação”, interesse da criança estiver centralizado na inteli- “consciência moral” (responsável pela formação de gência do pai (função intelectual do ego) ou na culpas) e a de “ideal” (responsável pelo “sentimento habilidade manual da mãe para a manipulação de de inferioridade”), quando os ideais não são atin- certas coisas (função motora), a parte introjetada gidos. ficará incorporada ao ego. Entretanto, se a criança Conquanto o início da formação do superego, introjetar o seu objeto parental na vigência de um segundo Freud, seja fundamentalmente devido à ambivalente conflito de amor versus ódio, e se o renúncia aos desejos edipianos amorosos e hostis, interesse do filho estiver mais voltado para os as- ele também é reforçado por mais dois fatores: 1) A pectos éticos do objeto, então o objeto introjetado severidade do superego, também provinda da pró- passará a fazer parte do superego, sendo que, no pria hostilidade da criança voltada contra si mes- caso em que a introjeção fizer-se com a predomi- ma (e, por isso, obriga o psiquismo a se proteger nância do ódio, a probabilidade é de que o supere- com uma instância fiscalizadora). 2) As posterio- go adquira características persecutórias. A propó- res influências e exigências sociais, morais, educa- sito, cabe lembrar que no quinto capítulo de O ego cionais e culturais. e o id (1923, vol. 19) Freud estuda detidamente a Nessa linha de pensamento muitos outros auto- importância dos “sentimentos de culpa” na teoria, res aventaram a hipótese de que o começo da exis- psicopatologia e técnica da psicanálise, como, por tência do superego, pela internalização das inter- exemplo, na relação direta que ele estabelece entre dições, precede o declínio do complexo de Édipo. as culpas determinadas pelo superego e o impor- Serve como exemplo a postulação de Abraham tantíssimo problema do eventual surgimento da te- (1925) acerca da “moral dos esfíncteres”, no qual mível “reação terapêutica negativa”. ele enfatiza que os preceitos da educação esfincte- riana são adotados desde muito antes da conflitiva edípica, tal como era concebida na época por Freud. M. Klein Uma outra contribuição importante por parte da escola freudiana consiste na concepção de Anna Fundamentada em suas observações nas análi- Freud (1936) sobre o mecanismo de “identificação ses com crianças, algumas de tenra idade, M. Klein com o agressor”, que de certa forma complementa postulou que a origem da formação do superego uma afirmativa de Freud de que “o superego da era muito mais precoce do que a que foi concebida criança não se forma à imagem dos pais, mas sim por Freud, e que essa origem se baseava na intro- à imagem do próprio superego desses pais, de jeção dos objetos parciais, o seio da mãe, ao qual o modo que essa criança torna-se o representante bebê atribui poderes extremos de bondade e de mal- da tradição, de todos os juízos de valor que sub- dade, de proteção e de perseguição, de fonte de sistem, assim, através das gerações” (1933). prazer e de dor. Para acompanhar Freud (até por Uma crítica que costuma ser feita à forma como razões políticas), M. Klein também postulou que o Freud concebeu e divulgou a noção de superego superego se formaria com a dissolução do comple- consiste em que ele enfatizou o termo “superego” xo edípico e a respectiva internalização dos pais – quase que exclusivamente com um significado carregada com as fantasias de perigo de vir a per- persecutório e sádico, sem levar muito em conta a der esses objetos parentais –, porém ela conside- existência de outros aspectos positivos, protetores rou que o complexo de Édipo seria muito mais pri- e estruturantes para o desenvolvimento mental do mitivo que o sustentado por Freud, situando-o por indivíduo. Aliás, uma das poucas vezes em que volta do sexto mês da vida do bebê. Freud se refere ao superego com características po- Quando começou a analisar crianças pequenas, sitivas e bondosas aparece em seu trabalho O hu- M. Klein já havia assinalado que um dos fenôme- mor. nos mais inesperados que ela encontrou foi um su- perego muito precoce e cruel, e, partindo daí, ela 136 DAVID E. ZIMERMAN descreveu os arcaicos “precursores do superego”, ca as funções do seu ego, afirma sua superioridade anteriores ao Édipo, considerando que a severida- pelo denegrimento dos outros, achando falhas em de do superego decorria da “fase máxima” do sa- tudo que não coincidir com o que ele crê, opondo- dismo da criança. Esse sadismo viria acompanha- se tenazmente a qualquer aprendizado com a expe- do de sentimentos de culpa decorrentes das fanta- riência e devotando um ódio a toda verdade dife- sias orais-sádicas de devorar a mãe, sobretudo o rente da dele, impedindo, logo, qualquer tendência seu interior, cheio de “tesouros”, e os seios, cheios a uma evolução psíquica, como se essa represen- de um leite nutridor que a criança inveja, e quer, tasse um inimigo que deve ser eliminado. Resu- todo ele, exclusivamente para si. Ao serem inter- mindo, o sujeito com essas características psicóticas nalizadas, essas imagos da mãe atacada, tornam-se do “superego”, crente de que ele tudo sabe, pode, fortemente vingativas, cruéis, ameaçando a crian- controla e condena, substitui a capacidade de pen- ça de ela ser destruída, envenenada, devorada... sar pela onipotência, “o aprendizado pela experi- Todos conhecemos bem a extraordinária impor- ência” cede lugar à onisciência, o reconhecimento tância que a escola kleiniana sempre atribuiu aos da fragilidade e dependência é substituído pela objetos superegóicos persecutórios, os quais per- prepotência, a capacidade de discriminação entre sistem no paciente enquanto ele estiver funcionan- o verdadeiro e o falso fica borrada por um radica- do na vigência da “posição esquizoparanóide”; daí lismo arrogante, e assim por diante. que uma análise exitosa consistiria justamente em Da mesma forma como aparece em Freud e M. conseguir levar o paciente a transitar para a “posi- Klein, também o “superego” de Bion está impreg- ção depressiva”, o que é possibilitado por meio do nado de sentimentos de culpa. No entanto, o sujei- acesso aos aspectos do analisando relativo ao seu to não toma conhecimento deles, mercê de um uso ódio, com as conseqüentes culpas (e derivados, excessivo – não só na quantidade, mas também na como medo, etc.), seguidas, na instalação da posi- qualidade de onipotência mágica – de identifica- ção depressiva, de uma responsabilização por es- ções projetivas, as quais são “evacuadas” preferen- sas culpas e da obtenção de uma capacidade para temente sob a forma de actings, e a de enfiar-se fazer reparações. dentro da mente de um outro – como pode ser a do seu analista – levando este a sentir-se culpado.

Bion RESUMO DAS DIVERSAS VERTENTES Embora conservando os princípios essenciais de Freud e M. Klein acerca do superego, Bion Como vemos, são várias as vertentes concei- (1962) distinguiu-se, em parte, deles ao evoluir para tuais que se complementam para o entendimento uma abordagem original, que está contida no que da formação da instância psíquica “superego”, sen- ele prefere denominar como “super”-ego (às ve- do que uma síntese delas permite destacar os se- zes, aparece com a grafia de super-superego, sen- guintes fatores: do que, creio, talvez o nome mais apropriado fosse • Uma herança filogenética (lembra a noção o de supra-ego). Esse “superego” faz parte do que de Jung de “arquétipos”). Trata-se de um Bion chama de “parte psicótica da personalidade”, de modo que, indo além das proibições e das no- conceito muito discutível na psicanálise. ções do certo e errado, do bem e do mal, aprova- • Como herdeiro direto do complexo de Édipo ção ou condenação, etc., que são inerentes ao con- (conforme Freud alude à forma de como fo- ceito clássico de superego, essa concepção de Bion ram introjetadas as figuras parentais – mais consiste em uma “forma psicótica de pensar”, a qual exatamente, o respectivo superego próprio se opõe a todo desenvolvimento em bases científi- de cada um dos pais envolvidos na conflitiva cas e às leis inevitáveis da natureza humana, e, as- edípica). sim, ele rege-se por uma moralidade – “sem mo- • Pulsão de morte agindo desde o nascimen- ral” –, criada pelo próprio sujeito, que ele insiste to (assim obrigando a pulsão de vida à for- em impor aos outros e, igualmente, quer reger o mação de uma instância psíquica proibitiva, mundo com normas e valores próprios que são fir- que consiga conter as fantasias destrutivas e mados a partir de uma afirmação de sua superiori- dade destrutiva. terroríficas, diminua a ansiedade de aniqui- Assim, o “superego”, tal como foi concebido lamento e preserve a vida, embora, secun- por Bion, mostra-se como um objeto superior, ofus- dariamente, tais precursores do superego tor- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 137

nem-se ameaçadores contra o ego e os obje- aparecem nas distintas situações analíticas de cada tos internos). analisando em particular. Assim: • Projeção das pulsões agressivas, seguida da 1. As clássicas manifestações da existência de reintrojeção das mesmas, constituindo os ob- um superego tirânico aparecem na situa- jetos persecutórios e/ou idealizados que ha- ção analítica sob a forma de uma facilida- bitam o superego. de do paciente para assumir culpas (fre- • Introjeção do discurso superegóico dos pais. qüentemente indevidas), atos masoquistas, • Introjeção do código de valores sociocultu- boicotes e sabotagens contra qualquer pos- rais vigentes. sibilidade de um crescimento seu que seja • Assunção de papéis designados e que de- expressivo; cavilações obsessivas e estéreis vem ser compulsivamente cumpridos (por ações compulsivas; quadros melancólicos; exemplo, um superego tirânico pode impor dificuldades sexuais e proibição de obter ao ego do sujeito um mandamento para que uma completude orgástica e, assim por ele assuma na vida um papel de vítima, eter- diante, com outras manifestações equiva- no fracassado, bode expiatório, etc. lentes. O superego, inconscientemente, é • Assunção de “culpas emprestadas” (Freud, conjugado no pretérito perfeito: “Vou ser 1923, assinalou essa vertente que consiste punido porque transgredi tal norma ou man- no fato de os pais atribuirem à criança uma damento; portanto, eu fui; logo, sou, “mau”. culpa, indevida, que deveria ser deles, ou a Ninguém contesta a importância de o ana- de algum irmão, etc.). lista trabalhar com os aspectos tirânicos, • Introjeção de figuras mortas, que em situa- proibitivos, punitivos e muitas vezes cruéis ções melancólicas podem constituir-se como do superego de certos pacientes. No entan- objetos “cujas sombras recaem sobre o ego” to, isso não é feito unicamente por meio de (Freud, 1917), onde elas são configuradas interpretações transferenciais adequadas, como vítimas, exigindo reparos, sob amea- porquanto essas pouco adiantarão, se o pró- ças de vingança e muitas vezes obrigando o prio analista mantiver uma postura exces- sujeito a seguir o mesmo destino funesto sivamente superegóica no curso da análi- deles. se. • Uma idealização da pulsão de morte pode 2. A presença de um ego ideal pode ser cla- determinar um superego perverso, que faci- ramente comprovada na situação analítica lita ações heterodestrutivas, ao mesmo tem- com pacientes portadores de uma forte po em que emana mandamentos autodestru- estruturação narcisística, de acordo com a tivos. conceituação de que “o ego ideal é o her- • Um maciço ataque às funções egóicas de deiro do narcisismo primário”. Dessa for- perceber, pensar, discriminar e conhecer as ma, o ego ideal funciona predominantemen- verdades penosas, pode determinar a cons- te no plano do imaginário, não há uma di- trução de um “superego”, nos termos des- mensão sólida de futuro, nem planos ou critos por Bion. projetos estáveis e, pelo contrário, o ego ideal aparece conjugado no presente do indicativo (eu sou!), alicerçado na fantasia NA PRÁTICA ANALÍTICA onipotente, ilusória, própria da persistên- cia da primitiva fusão diádica com a mãe, É evidente que as funções do ego ideal, do ideal do ego, do contra-ego e do superego propriamente na qual “ter” é igual a “ser” e que, por isso, dito não são estanques; pelo contrário, eles imbri- o indivíduo sempre espera o máximo de si cam-se entre si, aparecem confundidos na literatu- mesmo. ra psicanalítica e compõem a totalidade do supere- Como a maioria desses ideais é inalcançável, o go. Não obstante isso, incluo-me entre aqueles que sujeito vive num permanente estado de frustração, julgam ser de grande utilidade na prática clínica maquinando novos planos e saídas por meio de discriminar cada um deles separadamente, tal como defesas maníacas. As identificações desses pa- 138 DAVID E. ZIMERMAN cientes aparecem como primárias, do tipo incons- cipal função do analista é ajudar o paciente a dis- tante, adesivo ou imitativo e o sentimento de iden- criminar entre duas possibilidades: a) a de que se tidade resultante é o de “falsidade”. Para manter a trate de metas impossíveis de atingir por serem por integração do self, esse paciente necessita recorrer demais grandiosas, ou porque elas representam tão a defesas de forte negação, como as “renegações”, somente as expectativas dos pais internalizados, mais próprias dos estados narcisistas parciais – mas não as dele mesmo; b) são ambições que, ape- como nas perversões – ou o recurso da “forclusão”, sar da possibilidade dessas serem provindas dos que é mais própria dos estados narcisistas totais, pais, o analisando possui condições para alcançá- caso das psicoses. las, mercê de seus dotes potenciais, de uma boa O analista deve estar atento ao fato de que a identificação com os seus pais e uma satisfatória forma de pensar desses pacientes obedece a uma adaptação ao princípio da realidade. No primeiro lógica binária, ou seja, para eles não existe um caso, a tarefa do analista consiste em facilitar a meio-termo: ou o sujeito julga-se o melhor ou o “desidentificação” do paciente com essas caracte- pior, etc. Embora eles sejam extremamente sensí- rísticas expectantes dos pais (que estão introjetadas veis às frustrações – que vivenciam com o senti- como sendo dele próprio), de modo a que ele al- mento predominante de raiva e humilhação – é de- cance o insight, de que, para “dizer sim ao seu ego, ver do terapeuta promover uma gradativa “desilu- ele deve reunir condições para dizer não ao seu são das ilusões”, de sorte a aproximar cada vez mais ideal do ego”. No segundo caso, conservando o o “ego ideal” do “ego real”. cuidado para que o próprio analista não funcione como um “ideal de ego” (o que não é nada raro de 3. O ideal do ego, por sua vez, pode ser con- acontecer), é importante que ele reconheça e alie- siderado “o herdeiro do ego ideal”, o qual, se às capacidades latentes desse seu paciente ambi- projetado nos pais e acrescido das aspira- cioso. ções e expectativas próprias desses últimos, costuma determinar no sujeito um constante 4. É importante que se observe a relação que sobressalto diante do terror de não cum- existe no paciente entre o seu “ego ideal”, prir com os mandamentos idealizados, o “ideal de ego” e o “ego real”. Assim, na- oriundos dos pais – e nele depositados des- quelas costumeiras depressões que se su- de a infância – e assim vir a perder o amor cedem a conquistas obtidas, é possível per- das pessoas significativas. Essa situação ceber que na euforia inicial da conquista psíquica pode propiciar a formação de um prevalece o ego ideal, e o ideal de ego fica falso self, pela razão de que o sujeito está, exacerbado e excitado para novas conquis- acima de tudo, preocupado com a necessi- tas futuras; no entanto, à medida que vai dade de corresponder, ou aparentar, aquilo havendo uma distância entre o que foi que os outros esperam dele. exageradamente idealizado e o que é real (por exemplo, a aprovação para ser admi- Dentro desse paciente, o ideal do ego é conju- tido em uma determinada instituição é mo- gado no futuro e condicional (“eu deverei ser as- tivo de intenso júbilo, o qual perdura so- sim, senão...”), sendo que isso representa tanto uma mente até que o sujeito perceba que inú- possibilidade de uma desvantagem – quando, en- tão, pode condicionar a construção de uma perso- meras outras pessoas também foram apro- nalidade tímida, submissa, fóbica ou um falso self vadas e admitidas), sobrevém uma depres- –, como também pode ser muito vantajoso, quan- são do tipo narcisista, porquanto toda a do então funciona como um pólo de ânimo e vitali- distância que separa o ego ideal do ego dade para atingir metas e ambições possíveis de real é vivida como um colapso narcisista. serem alcançadas (com uma posição tipo “ainda Um outro aspecto clínico comum consiste não sou, mas posso vir a ser...”). As identificações, em que muitas depressões que surgem na ao contrário do que se passa no “ego ideal”, já são velhice podem ser entendidas pela razão secundárias e triádicas, porém ainda não se consti- de que começa a falta de um “projeto de tuíram com uma constância objetal, nem com uma ideais” a serem alcançados, e isso dá lugar coesão do self e um sentimento de identidade bem a um conformismo depressivo. Também é definido. Nestes pacientes, o sentimento de vergonha cos- interessante consignar que no estado de tuma prevalecer sobre o de culpa, sendo que a prin- “paixão”, no seu grau máximo, o ego ideal, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 139

o ideal do ego e o ego real estão confundi- Classicamente, os casos de surgimento no cur- dos. Há a sensação de uma absoluta com- so da análise de graves impasses psicanalíticos, ou pletude, o apaixonado sente-se iluminado pior, da ocorrência de uma reação terapêutica ne- pelo “brilho do objeto que cai sobre o seu gativa, muitas vezes irreversível, são entendidas ego”, de sorte que a sua lógica gira em tor- (logo, manejadas) por meio de três vértices: 1) A de que um êxito analítico evoque um – proibido – no da órbita de que “não existe nada que o triunfo edípico, com as respectivas culpas e medos futuro possa me dar, que o presente já não (conforme Freud). 2) Como um ataque invejoso que esteja me dando” (Hornstein, 1983) e as- o paciente desfere contra o analista, porque este sim por diante, existem muitas outras situa- está sendo bem-sucedido “às suas custas” (M. ções equivalentes. Klein). 3) Como uma forma extrema de evitar en- 5. A presença de um contra-ego no psiquismo trar em contato com os objetos mortos e moribun- do paciente adquire uma importância espe- dos que jazem na, subjacente, depressão do pa- cialíssima na psicanálise atual, porquanto ciente (J. Rivière). ela esclarece-nos uma das razões porque Penso que podemos acrescentar mais uma ver- muitas análises fracassam, apesar de que o tente: a que é devido à ação do contra-ego, não só psicanalista tenha trabalhado adequada- pelo aspecto antes assinalado, de obrigá-lo a se- guir um destino funesto, como também quando este mente bem. Essa organização patológica impõe um determinado papel a ser cumprido por que sabota o crescimento de uma outra par- toda vida. Pode servir como exemplo disso, a fre- te do próprio paciente pode originar-se de qüente situação de uma mãe simbiótica que, sob fontes distintas, sendo que a mais freqüen- forma de doutrinação e chantagem afetiva, impôs temente descrita é aquela que resulta da ao seu filho – nosso paciente de hoje – o papel de presença no self de uma gangue narcisista ele manter-se infantilizado para que nunca possa (conceito de Rosenfeld, 1971). Nesse caso, prescindir dela, e ser o seu companheiro eterno; determinados objetos reunidos intrapsi- neste caso, todo êxito de uma mudança analítica quicamente e que são radicalmente contra que implicaria na aquisição de uma emancipação, a possibilidade do reconhecimento da fra- pode esbarrar nesse contra-ego que o acusaria de gilidade do sujeito e da sua dependência um crime de alta infidelidade, traição e ingratidão. Portanto, ao lado de o terapeuta trabalhar, como dos outros (no fundo, porque estão escal- normalmente faz, com todos os importantes aspec- dados com primitivas e humilhatórias ex- tos superegóicos que surgem na análise sob varia- periências emocionais frustrantes e dolo- das facetas, cabe alertar para a necessidade de o rosas), fazem de tudo para preservar uma analista dedicar uma atenção especial para a orga- “posição narcisista” (capítulo 13), desde o nização patológica contra-egóica em certos casos suborno, com a promessa de uma vida me- que, contrariando as nossas naturais expectativas, lhor que essa posição ilusória permite, até não estão respondendo exitosamente no que tange ameaças de uma debacle total, caso “ele der à obtenção de verdadeiras mudanças psíquicas de ouvidos ao seu terapeuta”. certos aspectos da personalidade do paciente. Uma outra possibilidade de formação de um 6. Ainda em relação ao manejo das manifes- “contra-ego” consiste naquela introjeção, antes alu- tações das diversas formas do superego no dida, da “sombra de objetos mortos que caem so- curso da análise, vale apontar mais dois as- bre o ego”, desde onde eles forçam aquilo que eu pectos: um consiste no risco de o analista proponho chamar de identificação com a vítima, ficar contra-identificado com os aspectos tendo em vista que esses objetos se configuram dos objetos internos superegóicos que o como tendo sido vítimas de presumíveis ataques paciente deposita dentro dele, o que deter- que esse nosso paciente teria feito contra eles. Por minaria uma contratransferência patológi- meio desse argumento – e funcionando como um ca, ou seja, o terapeuta se comportaria com contra-ego – esses objetos não só proíbem a obten- ção de êxitos, lazeres e satisfações (“como é que tu o paciente de forma análoga a como com- podes estar feliz, se eu estou penando no escuro, portaram-se aquelas imagos proibidoras e debaixo da terra...?”), como ainda obrigam o pa- atemorizadoras, de molde a vir a reforçá- ciente a, forçosamente, ter que seguir a mesma saga los, e assim impossibilitar qualquer outra de infortúnios de sua vida. saída para o analisando. 140 DAVID E. ZIMERMAN

O segundo aspecto a ser enfatizado é o que diz desconhecidos sob a forma de ameaças, respeito às interpretações do analista, porquanto ordens, proibições, expectativas e crenças não é nada rara a possibilidade de que, disfarçada ilusórias. sob a aparência de “interpretação”, o analista pos- sa estar doutrinando, catequisando, julgando, acu- Tudo isso faz crescer de importância a análise sando, exigindo, colocando expectativas, decep- dos aspectos relativos ao superego, não só os clás- cionando-se, aconselhando, conluiando, etc. sicos, mas também todos os demais correlatos a ele, de tal modo que, do ponto de vista da “estrutu- 7. Em síntese, a tarefa maior do terapeuta é ra tripartite”, ganha maior relevância na atualidade auxiliar seu paciente a encontrar uma liber- a clássica afirmativa de Freud (1933) de que, onde dade interna e uma autenticidade naqueles houver id (e superego, como transparece nitida- freqüentes casos em que fica evidente que mente nas entrelinhas de alguns de seus textos), o se trata de um sujeito que está sujeitado a ego deve ficar! uma ordem de mandamentos internos e FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 141

CAPÍTULO VORACIDADE Consiste em um desejo veemente, impetuoso e insaciável, e que está excedendo ao que o indiví- 12 duo necessita e ao que o objeto é capaz, ou que está disposto a dar-lhe. Ao contrário da inveja, que está principalmente conectada com a projeção, a voracidade está com a introjeção. A voracidade, ou avidez, é inseparável da privação e da frustra- ção, com as quais mantém uma dupla e íntima rela- Inveja: Pulsão ou Defesa? ção de causa e efeito.

DESPEITO O sentimento de inveja é, seguramente, um dos fenômenos que mais têm merecido da literatura É um sentimento algo mesclado à inveja e que psicanalítica um minucioso e aprofundado estudo alude a um estado de ressentimento, um misto de quanto às suas causas e conseqüências. Uma revi- raiva e de pesar, devido à decepção com o objeto são dos autores em relação ao estudo da inveja per- necessitado, pela preferência que este tenha dado a mite verificar quão importante e controvertida é a outrem. Consoante à sua etimologia, a palavra “des- sua conceituação, tanto do ponto de vista da peito” (“de” + “spectare”) significa “olhar de cima metapsicologia como da teoria e das aplicações na para baixo, ficar sobranceiro, desprezar” (Koehler, prática psicanalítica. 1938). No entanto, uma outra possibilidade é que Inicialmente, cabe fazer uma distinção entre ela resulte dos étimos latinos “des”(privação) + conceitos que, embora assemelhados, têm caracte- “pectus”. Conforme a mesma fonte acima,” “pectus- rísticas próprias e específicas, tal como são os sen- pectoris” significa peito, mente, alma. Esta última timentos de inveja, ciúme, voracidade, despeito e morfologia (Heckler, 1984) comprova que o des- admiração. Neste trabalho, empregamos a seguin- peitado é o indivíduo que ficou sem o “peito” (seio te conceituação de cada um deles: provedor) e, daí, o surgimento de sentimentos in- vejosos, vingativos e retaliadores. Assim, a perfí- dia, que nos dicionários aparece como deslealda- INVEJA de, maldade, traição, é um sentimento diretamente derivado do “despeito”. Implica uma relação de objeto com uma-única- outra pessoa, e sempre remonta a uma relação diádica e exclusiva com a mãe, a quem o sujeito CIÚME invejoso quis incorporar e ter a qualquer preço. Aliás, a etimologia da palavra inveja, formada pe- É um sentimento intimamente ligado à inveja, los étimos latinos “in” (dentro de) e “vedere” porém compreende uma relação de, pelo menos, (olhar), indica claramente o quanto este sentimen- mais outras duas pessoas envolvidas, de tal sorte to alude a um olhar mau que entra dentro do outro. que o indivíduo com ciúme sente que o amor que Isso encontra confirmação nos conhecidos jargões lhe é devido foi roubado, ou está em perigo de sê- populares do tipo: “mau olhado”, “olho grande”, lo, pelo seu rival. Assim, o ciumento teme perder o ou uma torcida que “seca” o adversário, etc. que ele julga pertencer-lhe, enquanto a pessoa in- Uma outra significação etimológica possível vejosa sofre ao ver que o outro tem aquilo que ele decorre de quando o prefixo “in” designa uma ne- quer exclusivamente para si mesmo e, deste modo, gativa, uma exclusão, de modo que “in + vedere”, é-lhe penosa a satisfação alheia a ele. No caso em significa que a inveja está a serviço do indivíduo que o ciúme é resultante de um uso excessivo de que, fortemente fixado na “posicão narcisista” (ver identificações projetivas, ele pode adquirir carac- capítulo 12), recusa-se a reconhecer (ver) as dife- terísticas delirantes. renças entre ele e o outro, que possui as qualida- des de que necessita, ou inveja. 142 DAVID E. ZIMERMAN

ADMIRAÇÃO ram-se no aludido aforismo, sendo que o próprio Freud se manteve fiel a este ponto de vista. Assim, Consiste em uma forma de sentir que se consti- em Análise terminável e interminável (1937), ao tui em um excelente ponto de partida para a forma- apagar das luzes de sua imensa obra, Freud reitera ção de sadias identificações com a pessoa admira- o seu pessimismo quanto à remoção dessa inevitá- da. Nos casos em que a inveja for excessiva, esse vel inveja do pênis, que , “tal qual uma base de tipo de identificação boa pode ser substituído pelo rocha, comporta-se como uma resistência irrever- emprego de imitações. Assim, é útil realçar que nem sível ao trabalho analítico”. sempre é fácil reconhecer a diferença que delimita Embora Freud tenha modificado a sua concep- entre uma admiração sadia e uma idealização, nos ção original da organização genital infantil, centrada casos em que esta é exagerada e patogênica. Tanto no monismo sexual fálico, e tenha estabelecido uma no estado de admiração como no de inveja, a iden- distinção entre uma, anterior, fase fálica, de uma tificação processa-se por meio do desejo inconsci- outra fase posterior, essa sim genital, a verdade é ente do sujeito em ser igual ao outro, que é o pos- que, ao longo de sua obra, a ênfase da sexualidade suidor dos dotes admirados ou invejados. A dife- feminina incidiu no primado do falo. Essa concep- rença consiste no fato de que, na inveja, o desejo ção falocêntrica de Freud (levada ao extremo, pode- de ser igual fundamenta-se em uma cobiça voraz e se dizer que a sua formulação seria essa: “mulher é destrutiva, e a identificação resulta imitativa e um homem que não deu certo”) vem sofrendo pe- patógena, enquanto na admiração prevalece um sadas críticas e, hoje, não encontra respaldo cientí- vínculo de amor e propicia uma identificação sa- fico, sendo considerada como um dos poucos pon- dia. tos frágeis de sua obra. No entanto, essa postulação de Freud merece uma revalidação a partir de um Mais adiante, vamos estabelecer a vinculação ponto de vista semântico, em que pênis é um e a graduação que existe entre a inveja, o ciúme designativo de falo, o qual, por sua vez, é um claro normal e o ciúme delirante. símbolo de poder. É importante enfatizar que o objetivo maior Dessa forma, o conceito de inveja do pênis, deste capítulo, que é o de demarcar a distinção en- como falo, continua sendo muito importante, des- tre a concepção da inveja como sendo a manifesta- de que ele também seja extensivo aos homens, e ção direta e primária do instinto de morte ou como que se leve em conta a importante participação do uma forma de defesa, não é um mero exercício de fator cultural. Aliás, essa última é a posição de J. retórica. Muito pelo contrário, o tipo de entendi- Chasseget Smirgel (1991), uma autora contempo- mento do psicanalista em relação à gênese, ao sig- rânea, para quem a masculinidade invejada não é a nificado e à função da inveja pode determinar pro- masculinidade objetiva e concreta; antes, é a mas- fundas modificações em sua atitude psicanalítica, culinidade fálica, que daria um poder infinito e uma assim como na atmosfera do campo analítico, bem total segurança, liberdade e isenção de culpas. Diz como na forma e conteúdo das interpretações. Smirgel (na página 82): “É um desejo narcísico de virilidade que fará a cama da feminilidade”. Abraham, em um clássico e ainda vigente tra- UMA REVISÃO CONCEITUAL DO balho (1919), dá um significativo destaque ao sen- SENTIMENTO DE INVEJA timento de inveja na formação de resistências narcisísticas contra o tratamento psicanalítico por A origem do sentimento de inveja pode ser com- parte dos pacientes que ele considera como sendo preendida a partir de três perspectivas de concep- “pseudocolaboradores”. ção: a instintivista, a frustracionista e a narcisística.

AUTORES KLEINIANOS FREUD Coube à M. Klein, paciente e discípula de Os primeiros estudos, com sistematização psi- Abraham, fazer um aprofundamento da importân- canalítica acerca do sentimento de inveja, proce- cia da inveja no desenvolvimento da personalida- dem dos ensaios de Freud em relação ao seu clás- de humana desde os seus primórdios. Seus primei- sico conceito de “inveja do pênis”. Sabemos que ros conceitos originais, explícitos, sobre o senti- muitas teorias sobre a feminilidade e sexualidade mento de inveja foram ditados juntamente com Joan feminina, formuladas por distintos autores, basea- Rivière (1937), nos quais ela definiu as linhas-mes- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 143 tras que viriam a consolidar-se em seu importante uma importante validade neste vértice de entendi- trabalho Inveja e gratidão (1957). Neste último ar- mento por parte da aludida corrente psicanalítica, tigo, M. Klein postula a inveja a primeira externa- considero-a muito parcializada e insuficiente, por- lização, além de um derivado direto do instinto de quanto sabemos que as frustrações também têm morte. É, portanto, uma pulsão inata, a serviço da origem interna. Estas últimas começam pelas ine- destrutividade, e é a determinante da formação de vitáveis sensações provindas das próprias vísceras fantasias inconscientes, com a respectiva formação do bebê, e do corpo em geral, e daí se estendendo da ansiedade de aniquilamento. por todos os desconfortos físicos e psíquicos, es- Todos sabemos da relevância dessa conceitua- pecialmente os do não-atendimento, e do não-en- lização na construção do edifício teórico-técnico tendimento, por parte dos pais, das necessidades da escola kleiniana: o ataque invejoso, por meio do seu filhinho, as quais, constitucionalmente, po- das projeções, ao seio nutridor e ao corpo materno dem estar sendo muito excessivas. (abrigo dos tesouros, como o pênis e os bebês), e as respectivas reintrojeções configuram um duplo prejuízo, qual seja: o incremento de ansiedades LACAN paranóides (com a ameaça de retaliação contra o ego) e depressivas (ataque aos objetos bons, com o Particularmente, utilizo em minha prática psi- conseqüente sentimento de desvalia). canalítica as concepções teórico-técnicas baseadas Outros importantes autores pós-kleinianos de- em uma terceira perspectiva – como é possível senvolveram reconhecidos ensaios metapsicoló- depreender de Lacan e outros autores das escolas gicos a partir dessa vertente conceitual de inveja. francesas de psicanálise – a qual consiste em con- São exemplos disso os estudos de Rosenfeld (1971) siderar a inveja como um sentimento inerente à sobre as organizações narcisistas; os de Bion condição humana e que, sem ser inata, forma-se (1967), especialmente aqueles relativos às funções muito precocemente, à medida que vai-se desfa- do pensamento e do conhecimento, por meio das zendo o paraíso simbiótico e vai-se instalando a suas originais concepções de “ataques aos víncu- necessidade em depender do ambiente exterior. los” e do modelo da “relação continente-conteúdo, Em decorrência dessa indispensabilidade e pre- de tipo parasitária”; os de Meltzer (1973) e, mais cocidade da inveja na evolução psíquica de todo recentemente, os de John Steiner (1981) acerca da indivíduo, ela pode ser considerada como uma “es- relação perversa entre as partes cindidas do ego, pécie de pulsão” (sem ser um inato impulso instin- além dos de B. Joseph (1988). tivo propriamente dito) e, ao mesmo tempo, a in- Como vimos, tanto em Freud como na escola veja institui-se como um mecanismo defensivo con- kleiniana, o sentimento de inveja guarda uma natu- tra os dolorosos sentimentos decorrentes da depen- reza pulsional, inata e irrefreável, ainda que ambos dência que nunca será plenamente satisfeita. situem-na em níveis muito distintos da organiza- Essa perspectiva é, portanto, essencialmente ção da personalidade. baseada no narcisismo original, com as respecti- Na atualidade, no entanto, há uma crescente vas feridas e injúrias narcísicas. Sabemos que o manifestação de autores contemporâneos, no sen- narcisismo satisfaz-se na relação fusional-especu- tido de conceber a inveja como um sentimento que lar e que, inversamente, a sua contestação produz se forma, secundariamente, tanto como uma rea- o reconhecimento da necessidade do outro, do qual ção às privações como, também, com um propósi- resulta a inveja com uma tensão agressiva. Desse to defensivo, a serviço de uma sobrevivência psí- ponto de vista, a partir da separação e da diferenci- quica. ação entre o “eu” e o “outro”, é que surge a inve- ja, porquanto essa só pode existir quando existem dois elementos diferentes. Inversamente, a inveja PSICÓLOGOS DO EGO pode originar uma defesa de regressão fusional, para que o ego ideal não sinta a separação e as suas Assim, além da teoria pulsional inata, uma se- diferenças em relação ao outro. gunda forma de compreender o sentimento de in- É necessário esclarecer uma posição conceitual: veja, utilizada especialmente por parte dos segui- desde que nasce, o bebê depende intrínseca e dores da “psicologia do ego”, consiste em consi- visceralmente dos cuidados maternos que lhe asse- derá-la como uma reação secundária, de destrutivi- guram a sobrevivência física e psíquica. Este bebê dade e avidez, como uma decorrência das frustra- ainda não sente o sentimento que nós, adultos, co- ções impostas pela realidade exterior. Embora haja nhecemos como inveja, pela simples razão de que 144 DAVID E. ZIMERMAN a sua incompleta maturação neurofisiológica o im- METAPSICOLOGIA DA INVEJA pede de fazer a diferenciação entre ele e o mundo exterior. É como se todos os estímulos, tanto os Inúmeros fatores concorrem para a gênese, o prazerosos e gratificantes como os frustrantes e processamento e as conseqüências do sentimento desprazerosos, partissem de uma mesma e única de inveja em todo e qualquer indivíduo. Guardan- fonte: ele próprio. do uma certa ordem cronológica, segue a enume- Essas experiências, com as respectivas sensa- ração de alguns dos mais importantes destes fato- ções, vão sendo registradas no ego (o modelo me- res. tafórico que me ocorre é o do negativo de um filme fotográfico) sob a forma de engramas que Freud 1. O estado de neotenia, pelo qual a criatura denominou “representação-coisa”. À medida que humana atravessa um período muito pro- o aparelho mental amadurece, as representações longado de uma dependência total, abso- vão-se constituindo com a parcialidade dos obje- luta e irrestrita, em relação à sua mãe. tos (e a respectiva “memória de sentimentos”(Klein, 2. Não se pode falar em inveja nas fases em 1957), e das significações conseqüentes às experi- que se mantém um estado de indiferencia- ências com os mesmos), sendo que é relevante con- ção simbiótico-narcisística. A inveja pro- signar que, conforme postulou Bion (1967), a au- priamente dita coincide com os primeiros sência de um seio nutridor bom é representado no movimentos de uma discriminação entre o ego como a concretização de uma presença má. eu e o outro. De fato, deve ser um período O princípio da busca do prazer está intimamente ligado ao princípio da evitação do desprazer, de tal de intenso sofrimento para a “sua majesta- forma que este último, tendo a negação como égide, de, o bebê” (Freud, 1914), o reconhecimen- constitui-se como a essência de todos os mecanis- to de que ele depende totalmente dos ou- mos defensivos, tanto os mais primitivos como os tros e que está à mercê da boa ou da má mais evoluídos. Dessa forma, em seu registro ima- vontade (ou das capacidades) destes últi- ginário arcaico, o bebê, por meio de sua inerente mos. onipotência (melhor seria dizer: onipotência de 3. Pela razão de que o lactente não distingue natureza neurofisiológica), como que “crê” que a entre ele e a sua mãe, diante das sensações mãe que o agasalha, nutre e protege não é mais do de frio, fome, dor ou solidão, ele “deduz” que um prolongamento dele próprio. É isso o que que no mundo já não há mais leite, bem- conhecemos como sendo uma relação diádica estar nem prazer, ou seja, que as coisas fusional, e confusional, de natureza simbiótico-pa- rasitária, a qual, de uma forma ou de outra, em grau valiosas da vida desapareceram. Da mes- maior ou menor, permanece fixada em algum re- ma forma, provavelmente quando ele é canto do mundo psíquico de todo e qualquer indi- atormentado pela ira, pelo choro intolerá- víduo, como um eterno “desejo impossível”. (É in- vel e sufocante, ou pelas cólicas e evacua- teressante assinalar que a palavra “desejo” forma- ções dolorosas e queimantes, todo o seu se a partir dos étimos “de” (privação) e “sidus” (es- mundo é sentido como sendo um vale de trela), o que alude à impossibilidade de alcançar e sofrimento, e ele também se sente como tor- possuir uma estrela do firmamento.) turado e destroçado, devendo tudo isso re- As frustrações que a realidade impõe a este presentar uma vivência de algo similar à anelado estado narciso-idilíco desperta no bebê o morte (ansiedade de aniquilamento). sentimento de inveja, ou seja, o de um impulso 4. Tais experiências de privação despertam na irrefreável em evitar o desprazer por não usufruir do Nirvana, e isso ele faz por meio de uma combi- criança o conhecimento da dependência, nação de duas modalidades. Uma é a de conseguir sob a forma de necessidades básicas, as- a posse total e exclusiva da mãe-paraíso, e a se- sim como o posterior conhecimento do gunda forma de inveja consiste em atacar esta mes- amor, sob a forma de desejos que, quando ma mãe, segundo o imaginário princípio de que “ela excessivos, insaciáveis e compulsórios, não tem nada do que eu necessito e, portanto, não constituem-se como demandas. Dessa for- vou sofrer se eu vier a precisar dela”. Nessa última ma, como assinala Joan Rivière (1957), na possibilidade, pode-se dizer que o ataque invejoso criancinha, uma necessidade ou um desejo visa proteger o indivíduo de sentir o penoso senti- insatisfeito vai dar origem a uma sensação mento de inveja. similar à de um roubo, ou de uma privação FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 145

injuriosa, e suscita a mesma agressão que aspecto tem uma especial importância na lhe provocaria um real ataque dessa natu- determinação dos processos identificató- reza. É preciso levar em conta que, mesmo rios. no adulto, o afastamento de alguém arden- 8. Ego ideal e ideal do ego. A crença da crian- temente necessitado, desejado e amado não ça na fantasia de que ela ainda é a possui- se produz sem ódio, despeito e espírito de dora dos atributos onipotente-narcisistas, vingança. Decorre de tudo isso que a de- própria do período de indiscriminação, pendência é sentida como algo perigoso, constitui o ego ideal, o qual está sempre pelo fato de que ela implica na possibilida- muito presente e atuante na pessoa invejo- de de vir a sofrer privações muito doloro- sa. O ideal do ego, por sua vez, institui-se sas. Em nosso entendimento, é contra essa a partir do fato de que as expectativas idea- “dependência má” que a inveja se organi- lizadas da criancinha em relação a si mes- za. ma, próprias do seu ego ideal, são projeta- 5. Há, portanto, uma inevitável sucessão de das nos pais e, aí, elas somam-se às expec- penosas feridas narcisísticas, das quais as tativas narcisísticas específicas e próprias mais notáveis são: o reconhecimento da destes pais. Assim como o superego é o her- criança de que ela depende de outros que deiro do complexo edípico e o ego ideal é são os provedores das necessidades mate- o herdeiro direto do narcisismo original, riais e afetivas; a percepção de que existem pode-se dizer que o ideal do ego nasce das diferenças entre ela e o adulto, tanto de ruínas do anterior e constitui-se como o her- sexo, como de geração e de capacidades; a deiro do narcisismo dos pais. Da mesma constatação pela criança de que ela tem im- forma: o superego é o representante do que perfeições, limites e limitações impostas o indivíduo está proibido de ser, ter ou fa- pela realidade, especialmente a inexorabi- zer; o ego ideal é o pólo da grandiosidade lidade das experiências de separações e as e das ambições, e o ideal do ego é o pólo de velhice, doença e morte. do que o indivíduo, no futuro, deve, ou 6. Isso significa que, conforme assinala Go- pode, vir a ser. Quanto maior for a distân- mes, em um recente trabalho (1998), “a cia entre o ego ideal e o ego real, maior inveja visa reduzir o sujeito e o objeto a será o sentimento de inveja. uma uniformidade e igualdade, em que não 9. Formação de fetiches. Comumente, o ego há inveja porque não há nada a invejar. ideal fica depositado em algo ou alguém, Podemos ver nisso uma das formas pela que passam a ser os portadores dos atribu- qual a inveja expressa o instinto de morte, tos narcisistas supervalorizados, como são cujo fim é criar o indifereciado, o homo- os de beleza, riqueza, poder, inteligência e gêneo, sem estrutura, em última instância, prestígio. Este “algo”, revestido destes va- um objeto desprovido de qualquer subs- lores narcisistas do ego ideal, pode ser con- tância ou existência”. siderado um fetiche sempre que preencher 7. O princípio da “evitação do desprazer” en- as três condições mínimas que o caracteri- contra a sua mais expressiva contraparte na zam: uma é a de que ele suplemente, ou busca por um estado de completude, ou complemente, uma falta essencial; a outra seja, a de um retorno ao primitivo prazer consiste em uma metonímia, pela qual a paradisíaco, sob a forma de uma fusão ima- parte passa a ser representada como sendo ginária com a mãe. A complexidade dessa o todo; a terceira condição que caracteriza situação intensifica-se quando coincide o fetiche é o fato de que este “algo” inveja- com o período evolutivo, no qual o pensa- do esteja a serviço de uma negação, do tipo mento não tem condições neurofisiológicas renegação. (O termo original, em alemão, de fazer discriminações. Nestes casos, a Verleugnung, costuma ser traduzido tanto função de pensar tem uma natureza sincré- por renegação, como também por dene- tica, pela qual há um jogo dialético em que gação, recusa, ou desmentida, correspon- o “ter” e o “ser” se confundem. Este último dendo, de certa forma, ao conceito de “- K”, 146 DAVID E. ZIMERMAN

de Bion). Essa renegação visa preencher o INVEJA E CIÚME vazio da falha narcísica por meio de um fetiche. Quando a inveja for excessiva, a Existe uma vinculação direta e íntima entre a negação assume as características de inveja experimentada para a pessoa representativa forclusão, mais própria e determinante das da mãe original e o desenvolvimento do ciúme. Essa condições psicóticas. conceituação independe do vértice teórico, quer este parta da inveja primária dirigida ao seio nutri- 10. Um dos fatores mais importantes no dor da mãe, ou do conceito de inveja secundária, surgimento do sentimento de inveja, quer como uma reação e como um mecanismo defensi- como causa, quer como efeito, é o que re- vo contra as frustrações e humilhações provindas sulta de uma excessiva idealização de uma do meio ambiente. A relação entre os sentimentos outra pessoa, a qual se faz portadora de de inveja e ciúme explica-se pelo fato de que o pai todas as qualidades valoradas, enquanto o (ou o seu pênis) converteu-se em uma posse da mãe, sujeito que inveja entra em um círculo vi- e é por essa razão que a criança, mesmo nas situa- cioso resultante de um auto-esvaziamento, ções triangulares, quer roubar para si ou a mãe ou acompanhado por uma autodesvalia, que o pai e ter a posse exclusiva de um deles. Quando acarreta mais idealização do outro, segui- esse tipo de inveja incide em meninas, pode ocor- do de mais inveja, num circuito interminá- rer que, em sua vida posterior, o êxito em uma re- lação com os homens vá adquirir o significado ciu- vel. São inúmeras as conseqüências, con- mento de uma vitória sobre uma outra mulher. Re- forme será detalhado mais adiante, que ciprocamente, o mesmo ocorre com os homens. advêm da relacão que o sujeito com inveja É comum que os sentimentos de inveja e de ciú- excessiva estabelece com as pessoas que me coexistam na mesma pessoa, sendo que o grau ficam sendo as idealizadas e invejadas. de intensidade do ciúme percorre uma escala que 11. Nos casos de inveja excessiva costuma ha- vai desde um ocasional ciúme normal, passando ver, proporcionalmente, um prejuízo na ca- pelo ciúme neurótico, de natureza possessiva, pacidade de formação de símbolos. Como obsecante e torturante, até atingir o grau de um ciú- sabemos, essa capacidade permitiria a subs- me delirante, psicótico, em que há uma perda do tituição de um objeto ausente por um outro juízo crítico. Há uma proporção direta entre o ní- equivalente, presente ou abstrato. Ao in- vel de ciúme e a intensidade da inveja, na medida em que ambos os sentimentos estão baseados na vés disso, a valoração e a representação dos crença imaginária da posse absoluta do objeto idea- objetos ficam sendo de natureza concreto- lizado. sincrética, no nível do plano imaginário, Na inveja, prevalece uma hostil negação da de- essa é razão porque, na lógica do invejoso, pendência do objeto necessitado. No ciúme deli- não existe um objeto que seja análogo: o rante, há o reconhecimento da dependência do ob- que há é um objeto único e incompartilhá- jeto, porém este é intensamente idealizado, ao mes- vel. Nos casos extremos, como nas psico- mo tempo em que ele é vivido como uma legítima ses, costuma haver uma confusão entre o posse da pessoa ciumenta, visto que a triangula- símbolo e o simbolizado, esse fenômeno ridade é somente aparente, e o que predomina é foi descrito por H. Segal com o nome de uma relação diádica e uma indiscriminação entre o “equação simbólica” (1954). Bion (1962), eu e o outro (todos hão de lembrar de um homicí- dio ocorrido no meio artístico brasileiro, no qual por sua vez, estudou com profundidade o uma conhecida e bela atriz foi cruelmente assassi- fato de que a inveja exagerada impossibili- nada por um casal, em que a mulher, impregnada ta o indivíduo a tirar um aprendizado com por um ciúme delirante, dias antes do crime, indu- as experiências frustrantes da vida e, as- ziu o marido à prática de uma recíproca tatuagem sim, ele substitui a capacidade de aprender dos nomes de cada um deles nos genitais do outro, (que implicaria na passagem da posição como uma forma de posse e de fusão eterna). No esquizoparanóide para a posição depres- ciúme possessivo neurótico, também há uma ex- siva, com a conseqüente formação de pen- cessiva idealização do objeto “amado”, porém já samentos elaborativos e, daí, ao juízo crí- há uma discriminação e o começo de uma efetiva tico, formação de conceitos e de abstrações) triangularidade, sendo válido afirmar que o ciúme pelo incremento do uso da onipotência. possessivo constitui-se em uma ponte entre a inve- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 147 ja e o ciúme moderado. Neste último caso, há uma parte do pressuposto de que o que é do aceitação da dependência de um objeto bom e um outro é sempre melhor (isso pode ser facil- considerável avanço na renúncia à idealização exa- mente observado quando duas ou mais gerada e às ilusões narcísicas. crianças estão brigando pela disputa de um Assim, pode-se dizer que a capacidade de dar e determinado brinquedo ou privilégio, ou receber amor está negada na inveja patógena, en- nos adágios populares, do tipo de que “a quanto ela está presente no ciúme possessivo. É útil deixar claro que as interconexões entre a inve- grama do vizinho é sempre mais verde que ja excessiva e as diversas formas de ciúme têm uma a nossa”...). acentuada mobilidade, as quais podem reverter-se 5. Uma característica inevitável em toda pes- em um ou em outro sentimento. soa invejosa é o de um permanente jogo de comparação com os demais, em que há uma única possibilidade: ou ele é o vencedor CARACTERÍSTICAS DA PESSOA INVEJOSA ou é o perdedor. Diante da hipótese de vir a ser humilhado como o perdedor, é comum Como uma decorrência direta dos fatores que ele evite fazer comparações pelo re- metapsicológicos apontados, o indivíduo invejoso curso de não se arriscar a pôr em prova as apresenta uma série de características que, virtual- suas legítimas capacidades e, dessa forma, mente, estão sempre presentes e manifestas. Des- acaba fechando as portas de muitas opor- tas, as mais notórias são as seguintes: tunidades que a vida lhe propicia. Como 1. A inveja sempre se dirige a algo que já per- um reforço dessa posição, o sujeito invejo- tence a um outro. so prefere ficar abrigado no seguro mundo 2. Este “algo” (pode ser um atributo físico ou da ilusão e devaneio, enquanto torna-se um psíquico, um bem material, etc.) é signifi- feroz crítico das realizações dos outros. cado como um fetiche altamente valoriza- 6. O indivíduo portador de uma inveja exces- do, e a sua falta é sentida como extrema- siva, devido à identificação projetiva da mente dolorosa. mesma, terá muito medo da inveja dos ou- 3. Em seu registro imaginário, este algo cobi- tros, tanto por parte de pessoas vivas e reais, çado é sentido como sendo especial e úni- como de mortos que estão internalizados. co e, portanto, não pode ser compartilhado Por essa razão, é muito comum que ele te- com mais ninguém. Por essa razão, o su- nha insucessos em sua vida, como uma for- jeito invejoso não se satisfaz em vir a pos- ma de provar que ele não roubou nada de suir algo análogo ou igual ao que o outro, ninguém, e que sequer representa uma ame- que ele inveja, já possui (se ele se conten- aça para os demais. tasse com isso, a sua aspiração não seria 7. Há uma extrema sensibilidade à perda de mais do que um legítimo “desejo”, ou até qualquer coisa que tenha sido significada da expressão de uma admiração, que po- como sendo boa e valiosa. Isso deve-se a deria servir como uma saudável fonte de uma lógica inversa do tipo: “Se eu não te- emulação). O invejoso quer possuir exata- nho, ou se perdi, é porque eu devo ser in- mente aquilo (objetos, atributos...) que já é digno e imerecedor de possuir o que é bom; uma posse do outro, para que esse fique o outro, sim, tem porque merece”. despojado e ele seja o único a ter a posse 8. Para amainar a extrema dor da privação, o do bem tão almejado, porquanto o mesmo invejoso somente encontra duas soluções. está revestido de uma extrema idealização Uma é a de arrebatar para si aquilo que é e das demandas do ego ideal, próprios da do outro, quer por meios violentos de vo- posição narcisista. racidade, ou, o que é mais comum, por meio 4. Devido à falha em seu registro simbólico, de uma sagacidade maquiavélica. A outra o indivíduo invejoso não se satisfaz com a solução é a de privar o outro da posse do obtenção de algo que seja equivalente ao algo idealizado e cobiçado, o que comu- que o outro possui, porquanto ele sempre mente é feito por meio de um maciço dene- grimento daquele. É útil acrescentar que a 148 DAVID E. ZIMERMAN

inveja não se restringe ao que o outro tem amizade faltar, sempre terá uma outra a – de algo concreto –, mas também ao que o quem recorrer. São pessoas que cultivam outro não tem, sempre que isso venha uma popularidade e fraternalizam as suas acompanhado do fato de que esse outro (o relações, sendo que, no fundo, elas podem analista na situação analítica) manifesta a estar utilizando o amor como uma forma capacidade para tolerar e aceitar as faltas. de desviar o ódio e os seus perigos. Para 9. É preciso considerar que na criança, ou completar o quadro de seus inter-relacio- mesmo no adulto, que sinta como um aban- namentos, vale registrar o fato de que a dono o afastamento de alguém ardentemen- pessoa invejosa, quando for bem dotada de te desejado e amado, isso não se produz certos atributos valorados, costuma ser um sem ódio, despeito e juras de vingança. São “colecionador de adoradores”, isto é, ele pessoas ressentidas e rancorosas (esta pa- necessita ficar rodeado de pessoas, prefe- lavra vem do étimo latino “rancidus”, que rentemente medíocres (ao mesmo tempo também dá origem a “ranço” e a “rancor”, tem uma intolerância pelos que são assim), sendo muito significativo o fato de que o que não representem-lhe uma ameaça em sentimento de rancor esteja intimamente vir a despertar-lhe o tão doloroso sentimen- conectado com o ranço de um tempo anti- to de inveja e que, além disso, garantam- go). Por essa razão, nos casos mais extre- lhe o alimento necessário para a exaltação mos, tais pessoas caracterizam os seus inter- narcísica da auto-estima. relacionamentos com as inúmeras varian- Esta linha de entendimento permite compreen- tes de desprezo, deslealdade, traição, infi- der porque tais indivíduos apresentam dificulda- delidade e perfídia. des tanto com a geração mais jovem (a compara- 10 Outras pessoas, igualmente despeitadas, ção para eles é intolerável), como com a velhice ressentidas e rancorosas, podem passar as (lembra o colapso narcisista). suas vidas colecionando injustiças e decep- 12. Como vimos, enquanto o ciumento teme ções, sendo que é importante levarmos em perder o que ele julga possuir, o indivíduo conta o fato de que uma indignação “justa” invejoso sofre ao ver que o outro possui pode ser uma das formas mais terríveis e aquilo que ele quer exclusivamente para si vingativas do prazer agressivo. Assim, elas mesmo e, assim, é penosa para ele a satis- buscam a completude de seus desejos ex- fação alheia. Assim, uma causa comum de cessivos e irrealizáveis, de tal sorte que inveja é a constatação da ausência deste costumam encontrar uma fonte gratifica- sentimento em outros e, por essa razão, um tória dos mesmos, a qual, no entanto, é de importante método, sutil, porém muito fre- duração limitada. Logo, sobrevém uma de- qüente, de defesa contra o surgimento da cepção seguida por um afastamento, des- inveja, consiste em despertar esse sentimen- prezo e rechaço homicida (por um pensa- to nos demais. São os conhecidos e com- mento do tipo: “Depois dessa, fulano mor- pulsivos “contadores de vantagens”. reu para mim”), e todo o ciclo recomeça 13. Um outro método para defender-se da in- imediatamente depois, com uma nova e veja, além do denegrimento do valor do ou- inalcançável busca do paraíso perdido. tro, e de sua autopromoção, consiste em 11. Da mesma forma como o “colecionador de sufocar os sentimentos de amor e de trocá- injustiças”, também há o “colecionador de los pelos de ódio porque estes últimos são amizades”. Trata-se do indivíduo que tem mais fáceis de suportar, já que previnem uma grande necessidade de reunir e acu- uma insuportável frustração, ao mesmo mular uma grande quantidade de pessoas tempo que mitigam os sentimentos de cul- que lhe garantam o reasseguramento de que pa, os quais ficam mais intensos quando ele é um ser que, de fato, existe, e de que prevalece o sentimento de amor. ele não é mau nem invejoso, pelo contrá- 14. Uma combinação dos dois últimos itens rio, de que ele é bom e amado e que, além acima resulta no que pode ser descrito como disso, nunca ficará sozinho, pois, se uma FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 149

a “técnica da provocação”, pela qual a pes- narcisistas de objeto seriam defesas contra qual- soa invejosa busca espoliar o outro de atri- quer reconhecimento da existência de uma separa- butos que este possui e que ele inveja. As- ção entre o self e o objeto. H. Segal (citada por sim, é muito comum que hajam situações Spillius, 1991, p. 553) complementa essa posição, analíticas em que o paciente invejoso con- afirmando que o narcisismo e a inveja são duas fa- ces de uma mesma moeda. siga irritar o psicanalista, privando-o da Tendo em vista que o título deste capítulo é “In- tranqüilidade invejada, e assim ele não te- veja: Pulsão ou Defesa?”, nada mais justo do que ria que valorizar ou admirar o analista e basearmos muitas das considerações que seguem nenhuma inveja seria mobilizada (B. Jo- pela evolução dos conceitos emitidos por Rosen- seph, 1982). feld, tanto pela razão de que este psicanalista goza 15. O aspecto essencial de que ao invejoso não de um reconhecido respeito no mundo psicanalíti- basta possuir o que o outro já possui – ao co, como também por haver sido um dos poucos que ele significa de uma forma extrema- autores a terem trabalhado profunda e predominan- mente idealizada –, mas também que lhe é temente com pacientes psicóticos, o que possibili- necessário que esse outro seja desprovido ta uma observação mais aguda da gênese e do ma- desses valores, mesmo que isso lhe custe nejo técnico da inveja. Uma terceira razão é a de que Rosenfeld nunca dissocia a teoria e a técnica prejuízos, encontra uma ilustração nesse co- de sua prática clínica e, por isso, suas concepções nhecido conto do folclore popular: uma acerca da inveja sofreram sucessivas modificações fada (ou bruxa?) propõe a um indivíduo ao longo de sua obra. Em seu último livro, Impasse invejoso o privilégio dele fazer qualquer e interpretação (1987), pode-se perceber claramen- pedido que ela lhe atenderia, com a condi- te as aludidas modificações conceituais e técnicas, e ção de que um seu amigo (por ele inveja- creio ser legítimo afirmar que, inicialmente, nos anos do) ganhasse em dobro a mesma coisa. Pois 50, ele concebeu a inveja como sendo tanática pri- bem, como é fácil adivinhar, o pedido que mária, enquanto, a partir da década de 80, nota- partiu do sujeito invejoso foi: “quero ficar damente no que se refere à técnica, a sua inclinação cego de um olho”. é nitidamente direcionada a uma concepção da in- veja como sendo uma reação defensiva. Assim, gradativamente, Rosenfeld foi enfati- A INVEJA NA PRÁTICA ANALÍTICA zando a sua convicção de que a inveja dificilmente aparece diretamente no material do paciente, mes- mo quando são feitas referências explícitas a ela, Durante muitas décadas, os psicanalistas, se- sendo que o analista somente consegue entrar em guindo a Freud, deram uma prioridade especial, na contato com as manifestações das relações de ob- análise de mulheres, ao aspecto da “inveja do pê- jetos que evidenciam a natureza narcisística das nis”, o qual era considerado o aspecto essencial mesmas. Em outras palavras, o psicanalista entra (na análise dos homens, a maior resistência se de- em contato muito mais freqüentemente com as de- veria à homossexualidade sempre latente). Na atu- fesas contra a inveja do que com esta diretamente. alidade, os autores estabelecem uma diferença A partir deste ponto de vista, as interpretações pas- muito significativa entre pênis (como um concreto sam a ficar primordialmente mais centradas nas órgão anatômico) e falo (um símbolo de poder que, dificuldades do paciente em perceber o analista comumente, também pode estar representado pelo como alguém separado, e diferente dele, e o horror próprio pênis). A partir dessa conceitualização, a a ter que depender de um objeto que não está sob o técnica do psicanalista passa a ficar mais centrada seu controle onipotente e que, por isso mesmo, pode no que poderíamos chamar de “inveja fálica”, e vir a humilhá-lo e a fazê-lo sofrer. esta é extensiva aos homens. Essa importante mutação conceitual de Rosen- Depois do trabalho de M. Klein, Inveja e grati- feld, com a qual me sinto plenamente identificado, dão, de 1957, os psicanalistas seguidores dessa pode ser claramente confirmada quando, ao tratar corrente, desde essa data até 1970, aproximada- do relevante problema do Impasse e da reação te- mente, interpretavam a inveja de forma sistemáti- rapêutica negativa, ele afirma (p. 32) que “... Nes- ca, exaustiva e prioritária, diretamente no material sa época (1958), eu e outros analistas kleinianos do paciente. Por essa época, Rosenfeld (1971) pos- acreditávamos que, por meio de uma análise deta- tulou que o narcisismo se constituía como uma de- lhada da inveja na situação de transferência seria fesa contra a inveja e, da mesma forma, as relações 150 DAVID E. ZIMERMAN possível impedir que ocorresse um impasse na analista inclua os aspectos positivos do pa- análise. Contudo, com o passar do tempo, minha ciente e, especialmente, a compreensão das experiência mostrou que isso só se dava em certos razões inconscientes que forçaram a emer- casos (...) Uma ênfase excessiva na interpretação gência da inveja, como uma medida de so- da inveja ou a supervalorização da contribuição brevivência psíquica. do analista, comparada com a do paciente, é uma Uma das maiores dificuldades de o paciente causa freqüente do Impasse”. • Da mesma forma, Spillius (1991) assevera que, excessivamente invejoso fazer um insight na atualidade, a maior parte dos analistas kleinianos produtivo dessa sua condição invejosa resi- tem-se mostrado menos inclinada a encontrar a con- de no fato dele estar funcionando predomi- firmação da inveja primitiva em todo seu material nantemente na “posição esquizoparanóide”, clínico. e daí ele não sente culpas e não assume o Baseados em Rosenfeld e em outros autores seu quinhão de responsabilidades. Pelo con- contemporâneos, podemos extrair as seguintes re- trário, ele nega onipotentemente e racionali- comendações técnicas, particularmente para os za que os seus (contra) ataques estão justifi- pacientes muito regressivos: cados porque o outro é que lhe inveja e o • O psicanalista deve levar em conta que este está atacando com ódio. tipo de paciente sente a análise e as interpre- • A interpretação da inveja não deve ser repe- tações como uma forma de estar sendo hu- tida muito freqüentemente e a ênfase deve milhado, pelo fato de ele reconhecer que estar em ajudar o paciente a suportar a dor, necessita do analista e de que este o está en- o desconforto e a vergonha que a inveja cau- tendendo melhor do que ele próprio. Isso sa, porque ela inibe a capacidade para amar. deve-se ao fato de que fica ameaçada a auto- Rosenfeld recomenda que unicamente nos idealização, a qual, por sua vez, costuma ser casos em que já tenha havido sensíveis pro- uma rígida defesa narcisista contra o senti- gressos com os pacientes muito regressivos mento de inveja. é que se torna viável a interpretação direta • Em relação ao destino das interpretações, é da inveja destrutiva. necessário considerar que o principal obje- • A idealização excessiva (ideal do ego) pode tivo do paciente muito invejoso pode estar ser facilmente observada tanto na extratrans- sendo o de utilizar o seu pensamento e a sua ferência como na transferência propriamen- comunicação para provar que o outro (o ana- te dita, e ela costuma acarretar algumas con- lista, na transferência) está equivocado. É seqüências prejudiciais. A primeira é a do muito comum que este paciente utilize o fe- estabelecimento de um círculo vicioso em nômeno que Bion denominou “reversão de que a idealização do psicanalista espolia o perspectiva” (1967), pelo qual ele, intima- paciente de suas próprias qualidades e, por mente, reverte às suas premissas básicas tudo sentir-se esvaziado, ele entra em um proces- o que ouve do seu terapeuta e, seguidamen- so de desvalia, a qual incrementa-lhe a sua te, após decorrido algum tempo, breve ou inveja, que ele tenta controlar por um novo longo, ele reconhece este mesmo insight reforço da idealização do analista, e reco- como tendo sido uma descoberta exclusiva meça todo o círculo vicioso de causa-efeito. dele próprio. É preciso levar em conta que, Uma outra conseqüência é que o psicanalis- na posição narcisista do paciente invejoso, ta idealizado pelo paciente invejoso será vis- os sentimentos não são tanto de culpas (que to como alguém tão auto-suficiente e feliz resultam do conflito superego x ego), mas que não vai precisar dele e isso acarreta-lhe muito mais de vergonha (ideal do ego x ego um permanente sobressalto em vir a perder real) e de humilhação (ego ideal x ego real). o tão necessário amor daquele. Decorre daí uma grande vulnerabilidade a • É importante, no entanto, que o analista te- um colapso narcisista e, portanto, a uma de- nha em mente o fato de que ele deve, transi- pressão de natureza narcisística. toriamente, aceitar uma – necessária e estru- • Pelas razões expostas, é recomendável que, turante – idealização excessiva, desde que na interpretação das verdades penosas, o esta não vá constituir-se como uma constan- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 151

te transferencial e, muito menos, em um con- seguido de uma progressiva aceitação de uma luio transferencial-contratransferencial, ci- dependência deste. Isso vem acompanhado mentado em uma recíproca fascinação por uma paralela renúncia à posição narci- narcisística. sista, o que se processa simultaneamente com • Como decorrência do item anterior, um dos a transição da posição esquizoparanóide para principais objetivos do tratamento psicana- a posição depressiva, segundo o referencial lítico consiste em promover o resgate das kleiniano. capacidades do analisando, as quais são le- • Creio, pois, ser válido que se estabeleça uma gítimas, embora estejam aparentemente au- distinção entre uma inveja “má” (destrutiva sentes. Isso resulta tanto do fato de que tais e desestruturante) e uma inveja “boa”, capacidades estejam ocultas dentro de si pró- estruturante, que se forma sem ódio excessi- prio (devido a um depressivo sentimento de vo, mesclada com admiração pela pessoa imerecimento, ou ao medo da ira e da inveja invejada, e por uma cobiça que funciona dos outros), como essas capacidades podem como uma sadia emulação. estar desaparecidas por estarem projetadas • Somente quando o analisando sente que está em outras pessoas por ele idealizadas. sendo entendido em seu sofrimento, aceito • A evolução exitosa da análise desses pa- com as suas maldades, respeitado em suas cientes regressivos, portadores de inveja ou limitações, realmente ajudado em sua análi- de ciúme possessivos, consiste em possibi- se, reassegurado de que o seu analista não litar que haja uma gradativa mudança transfe- repete as imposições tanáticas de seus obje- rencial em relação à figura do analista, no tos internos, sobrevive aos ataques e não res- sentido de passar de um objeto excessiva- ponde com ira, indiferença ou triunfo, e que mente idealizado (ou denegrido) para a con- ele tem um espaço realmente livre para pen- dição de sentir o terapeuta simplesmente sar e para crescer, é que a inveja diminui gra- como um objeto bom e confiável, o que vem dual e firmemente.

CAPÍTULO nóide”, ou totais (quando o sujeito alcança a “po- sição depressiva”) e, vistos de outro vértice, os ob- jetos também aparecem dissociados em “bons” (idealizados, e que, até certo ponto, exercem uma importante função estruturante) e “maus” (figuras 13 temidas, que exercem uma função persecutória). Na clínica, os objetos internalizados nunca apa- recem diretamente, mas, sim, eles surgem interme- diados mediante imagens, conceitos, recordações, angústias ou desejos que variam ao infinito e que Posições: A Posição Narcisista tanto estão ligados às “representações” no ego do sujeito, como também estão embutidos nas diver- sas configurações das duas referidas “posições”.

Segundo Baranger (1971), o conceito de “po- sição”, na obra de M. Klein, alude a uma constela- POSIÇÃO ESQUIZOPARANÓIDE ção de fenômenos inter-relacionados, como: o tipo de angústia predominante em uma determinada Como a própria denominação designa, os me- situação (a paranóide ou a depressiva); os meca- canismos predominantes nessa posição são os de nismos defensivos utilizados para dominá-las; as dissociação (o étimo grego “esquizo” significa “ci- pulsões que estão em jogo; as características dos são”, “corte”, “divisão”, tal como aparece em objetos que estão envolucrados nessa constelação; “esquizofrenia”, ou seja, “divisão da mente”), e os a qualidade e a intensidade das fantasias incons- de projeção (que estão pressupostos no termo cientes ativadas; o estado das instâncias psíquicas “paranóide” o qual traduz que trata-se de uma “para- do ego e do superego; os sentimentos e os pensa- gnose”,ou seja, de um distúrbio da percepção e mentos do sujeito – tudo isso configurando uma conhecimento do sujeito). totalidade em movimento na qual nenhum fator A necessidade de preservar a experiência pra- pode ser considerado de forma independente de to- zerosa, e de rechaçar a experiência dolorosa, leva à dos os demais. primeira dissociação (ou “clivagem”, ou “splitting”), M. Klein inicialmente descreveu três tipos de de modo que, segundo M. Klein, toda a qualidade posições: a esquizoparanóide, a depressiva e, en- da formação do psiquismo gira em torno do, tre elas, situou a posição maníaca, porém, ao lon- estruturante, “seio bom”, ou de um desestruturante go de sua obra, desconsiderou a última e adotou a “seio mau” (é interessante consignar que M. Klein sua concepção definitiva das duas primeiras posi- nunca usou a forma plural da presença óbvia dos ções. As passagens da “posição esquizoparanóide” dois seios, até porque a palavra “seio”, na concep- para a “posição depressiva”, e vice-versa, com as ção dela, adquire uma dimensão abstrata). oscilações entre ambas, acompanham-se de modi- A ênfase de M. Klein nos processos dissocia- ficações e transformações da estrutura e do funcio- tivos determinou uma profunda modificação na teo- namento dos objetos internalizados e, de forma ria e na técnica da psicanálise, tendo em vista que, correlata, determinam as mesmas modificações no embora Freud tenha feito inúmeras alusões à exis- sujeito. tência desse processo (especialmente em um dos A concepção de “posição” está, portanto, inti- seus últimos trabalhos, que não foi de todo con- mamente indissociada da noção de “objetos”, sen- cluído, A clivagem do ego no processo defensivo, do que estes últimos aparecem nos trabalhos de M. de 1938), a verdade é que, para ele, o processo ana- Klein sob duas maneiras: ora como estruturas en- lítico repousava fundamentalmente no levantamen- dopsíquicas, nas quais interagem diversos elemen- to das repressões, enquanto que para M. Klein con- tos, tal como foi conceituado acima; ora os objetos sistia, acima de tudo, na redução das clivagens, de internalizados adquirem um tipo de existência pró- origem primitiva, ao mesmo tempo em que ela con- pria e aparecem, no psiquismo, antropomorfizadas, siderava que a “repressão” seria uma forma evo- como se fossem, no dizer de Baranger, “uma qua- luída da clivagem. se-pessoa”, sujeita aos mesmos sentimentos, pa- As referidas clivagens não dizem respeito uni- decimentos, idéias e atividades que todo indivíduo camente aos objetos, mas também às pulsões, rela- tem. ções objetais, ansiedades e aspectos do ego, sendo Ademais, para M. Klein, os objetos podem ser que os pedaços resultantes das sucessivas dis- parciais (predominam na “posição esquizopara- 154 DAVID E. ZIMERMAN sociações necessitam ser expelidas para fora, o que Klein estão sempre presentes ao longo de toda a é realizado por meio do mecanismo de projeções, vida de qualquer sujeito, e sempre em uma perma- mais exatamente, para M. Klein, por meio de iden- nente interação recíproca (o que graficamente ele tificações projetivas. representou por PS ↔ D, com uma flecha de duplo De acordo com a teoria kleiniana, as defesas sentido), Bion também descreveu duas formas de características da posição esquizoparanóide durante identificações projetivas. Uma, que ele denomina os primeiros meses da vida do bebê – onipotência, realista (útil para o sujeito enfrentar a realidade, negação, dissociação, projeção, introjeção, ideali- inclusive com a importante função de “empatia” zação – são absolutamente normais e necessárias (embora ele não utilize essa denominação), ou seja, para a estruturação do seu psiquismo; no entanto, a a capacidade de “entrar na pele” do outro e poder persistência exagerada das mesmas, além de um sentir o que este sente e não consegue transmitir), certo tempo da evolução psíquica normal, é que e uma outra forma que ele chama como “identifi- vai determinar as condições para a instalação de cação projetiva excessiva”, que alude ao fato de uma psicopatologia. Assim, existe a possibilidade que, na posição esquizoparanóide, as projeções são de formar-se um círculo vicioso em torno do fato excessivas não só na quantidade, como também na de que o psiquismo mal-estruturado apele para um qualidade de onipotência. uso crescente dos referidos mecanismos arcaicos, Também coube a Bion ser o primeiro autor a e a predominância dos mesmos determine uma conceber o fenômeno de comunicação primitiva desestruturação ainda maior. desempenhado pelas identificações projetivas, tal Na clínica psicanalítica de adultos, a manuten- como acontece na sitação analítica, pelos “efeitos ção predominante da posição esquizoparanóide – contratransferenciais” despertados pelas projeções quer por detenção do processo evolutivo, quer por do paciente na mente do analista. Finalmente, cabe regressão aos primitivos pontos de fixação – destacar que a importante concepção de Bion acer- transparece, na maioria das vezes, nas manifesta- ca da parte psicótica da personalidade, que pode ções sintomáticas ou caracterológicas, nas quais o ser resumida com a afirmativa de que a mesma é sujeito, mercê do uso abusivo de clivagens e iden- essencialmente configurada com uma ampla domi- tificações projetivas e, à moda do dito de Sartre, nância da posição esquizoparanóide nessa “parte de que “o inferno são os outros”, mantém a sua psicótica”. Essa posição mental, basicamente, é ca- crença – auto-idealizada – de que ele é o certo, racterizada por um excesso de clivagens e identifi- bom e capaz, vítima da incompreensão, inveja e cações projetivas, resultantes de uma baixíssima to- ataques dos outros, que restam denegridos. No en- lerância às frustrações, com a predominância da tanto, também é possível que o sujeito, inversamen- onipotência e oniscência, etc. Bion também consi- te, identifique projetivamente os seus aspectos bons derava que o trânsito da posição esquizoparanóide e valorizados em outras pessoas, que então ficam para a posição depressiva constitui-se como um dos altamente idealizadas, enquanto resta para ele um mais importantes objetivos do tratamento analítico. esvaziamento e autodenegrimento. Ambas as formas, acima referidas, da posição esquizoparanóide, em alguma forma, grau e épo- POSIÇÃO DEPRESSIVA ca, aparecem com regularidade na situação analíti- ca transferencial, às vezes de forma quase imper- Assim como a posição esquizoparanóide carac- ceptível e, outras vezes, com manifestações fran- teriza-se pela dissociação do todo em partes, a po- camente psicóticas. O importante, no entanto, é que sição depressiva, bem pelo contrário, consiste na o analista esteja atento para a passagem, com as unificação e na integração das partes do sujeito que respectivas oscilações, da posição esquizopara- estão esplitadas e dispersas. A obtenção dessa po- nóide para a posição depressiva. sição depressiva, por parte da criancinha, é funda- O fenômeno da “identificação projetiva” foi mental para o seu crescimento psíquico, e isso im- descrito por M. Klein, mais enfaticamente, como plica uma série de condições, a seguir enumera- restrito às funções de descarga de sentimentos in- das: toleráveis pelo sujeito, e também como uma primi- tiva forma do bebê de controlar e tomar posse dos 1. A relação do lactente com a mãe provedo- “tesouros” (pênis, fezes, bebês...) contidos no in- ra do alimento físico (leite) e emocional (ca- terior do corpo da mãe. Bion ampliou considera- lor, amor, paz) é fundamental, porquanto a velmente essa importante concepção. Assim, além introjeção dela (representada por um “seio de enfatizar que as duas posições descritas por M. bom”, fonte de gratificação e reassegura- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 155

mento) pela criança, determinará, ou não, preocupação pelo outro; adquirir uma ca- a formação de núcleos básicos de confian- pacidade de integrar aspectos dissociados ça e, conseqüentemente, a capacidade de e ambivalentes, muitas vezes bastante con- tolerar a posição depressiva. traditórios entre si; desenvolver um apego 2. São esses núcleos de confiança no self da ao conhecimento das verdades e uma ca- criancinha que lhe possibilitarão a expe- pacidade para pensar as experiências emo- riência de tolerar perdas parciais (como, por cionais, que estão forcluídas pela onipotên- exemplo, um afastamento temporário da cia, onisciência, arrogância e prepotência, mãe), assim vitaminando a capacidade para típicas da posição esquizoparanóide, e cuja tolerar as frustrações, privações ou o atra- predominância impediria um verdadeiro so das gratificações, impostas pela reali- crescimento mental. dade exterior. É útil enfatizar dois aspectos: um, consiste em 3. Essa mãe introjetada como suficientemen- repisar que essa necessária passagem da posição te “boa” (na concepção de Bion, implica esquizoparanóide para a depressiva, na análise, não na capacidade de “continente”, com a fun- se faz de modo linear-seqüencial, mas, sim, em uma ção de rêverie) permite que a criança tole- permanente oscilação e interação entre ambas, sen- re bem melhor as angústias paranóides e as do importante consignar que, na situação analítica, depressivas. as oscilações entre as posições esquizoparanóide e 4. A progressiva aceitação de perdas é maté- depressiva determinam o surgimento de estados ria-prima para a formação de símbolos (cuja confusionais. Por essa razão, é importante o ana- função maior é a de substituir os objetos lista ter em mente o fato de que, muitas vezes, o perdidos ou afastados). O progressivo pro- penoso estado confusional de um paciente regres- sivo, no curso do processo analítico, pode estar re- cesso da capacidade simbólica é que vai presentando uma transição, sadia e necessária, possibilitar a formação da linguagem ver- embora preocupante e muito sofrida. A segunda bal (a palavra é um símbolo), dos jogos e observação é a de que, como vimos, por mais pri- brinquedos, assim como da formação dos mitivos que sejam os mecanismos que caracteri- sonhos, em uma escalada crescente, até zam a posição esquizoparanóide, tal como ela foi atingir a capacidade do pensamento abs- descrita originalmente por M. Klein, eles trazem trato. implícita a noção de que já há uma relação com 5. O acesso à realidade é paulatino e cons- objeto exterior. trói-se a partir da aludida capacidade de A psicanálise contemporânea, obviamente, ad- simbolizar, aliada às capacidades de dis- mite essa incipiente relação objetal do lactente com criminar e de separar-se dos objetos neces- a mãe, do ponto de vista de um observador exte- rior, porém, do “ponto de vista do bebê”, ele é o sitados, que são ambivalentemente amados único, a mãe que o amamenta não passa de um sim- e odiados pela criança. ples prolongamento dele, de modo que é legítimo 6. Na situação analítica, é imprescindível que considerar a existência de uma etapa posicional que o paciente, notadamente aquele bastante re- antecede àquela da esquizoparanóide e que, creio, gressivo, no qual predominam os mecanis- pode ser chamada como posição narcisista. Como mos esquizoparanóides, atinja a posição tanto a posição esquizoparanóide (PEP), como a depressiva, o que pode ser medido pelos posição depressiva (PD), são suficientemente bem seguintes requisitos: ele deve ser capaz de conhecidas e amplamente divulgadas, nesse capí- reconhecer o seu quinhão de responsabili- tulo será dado um espaço maior para a posição nar- dades e de eventuais culpas; conceder uma cisista. autonomia aos seus objetos necessitados e suportar uma separação parcial deles; fa- POSIÇÃO NARCISISTA zer reparações verdadeiras (as “falsas re- parações” são aquelas de natureza obses- Como vimos, o termo “posição” não é o mes- siva ou maníaca); dessa forma, ser capaz mo que fase, etapa ou estágio. Enquanto estas últi- de reconhecer uma possível gratidão por mas designam uma transitória linearidade evolutiva, quem o ajudou e desenvolver uma sadia o conceito de “posição” indica uma estrutura defi- 156 DAVID E. ZIMERMAN nitiva, em evolução constante e permanentemente CONCEITUAÇÃO DE NARCISISMO ativa na organização da personalidade. Portanto, indo além de um estágio (stage), o conceito de po- Há um verdadeiro leque de acepções acerca do sição constitui-se como um estado (state) mental. termo “narcisismo”, desde as distintas abordagens Ademais, “posição” designa um ponto de vista, uma pioneiras e originais de Freud até as atuais, que perspectiva, uma forma de o sujeito visualizar a si são provindas de autores de diferentes correntes mesmo, aos outros e ao mundo que o cerca. Esse psicanalíticas, em diferentes épocas e latitudes. vértice de visualização – que varia com as diferen- Em uma forma muito sumarizada, pode-se di- tes posições que a pessoa adota diante do que está zer que a evolução tem transitado pelos seguintes sendo observado, pensado e sentido – determina enfoques: uma forma de o sujeito SER e de comportar-se na vida. 1. Uma forma de perversão: conforme a pio- Assim, a posição narcisista não é unicamente neira designação de Näcke (mencionado uma importante etapa no desenvolvimento de todo por Freud). ser humano; antes, ela comporta-se como uma es- 2. Um tipo de escolha objetal: como em Leo- trutura, um modelo de relacionamento e de víncu- nardo da Vinci, de Freud (1910). lo, que opera ao longo de toda a vida e, por isso, é 3. Uma fase evolutiva: como no Caso Schre- de especial importância o seu reconhecimento na ber, de Freud, 1911, ou como é concebida prática clínica, como será feito mais adiante. na atualidade por muitas correntes psica- De acordo com o vértice conceitual que está nalíticas, as quais enfatizam a etapa primi- sendo adotado no presente artigo, pode-se dizer que tiva da fusão simbiótica do bebê com a mãe, a posição narcisista (PN), em sua forma original, caracteriza-se por uma total indiferenciação tanto em um estado de indiscriminação e especu- entre o “eu” e o “outro”, como também entre os laridade. diferentes estímulos procedentes das distintas par- 4. Um ponto de fixação das psicoses: como tes do seu próprio self – e que ela precede a posi- aparece em Schreber. ção esquizoparanóide, na qual já existe alguma di- 5. Um narcisismo do tipo libidinal, ou seja, ferenciação, não obstante o uso maciço de identifi- um processo de investimento da libido so- cações projetivas. Um importante fator diferencia- bre o ego (conceito essencial de Freud, dor entre PEP e PN é o fato de que, na primeira, já descrito em seu magistral Introdução ao há um rudimento de ego a defender-se ativamente narcisismo, de 1914). contra a vigência das pulsões destrutivas e do pa- 6. Um narcisismo normal e estruturante que, vor de aniquilamento, decorrentes da pulsão de ao longo da vida, pode sofrer transforma- morte (ou inveja primária), enquanto que a PN não se constitui originalmente a partir da agressão, ções sublimatórias, sob a forma de sabe- mas, sim, como uma forma de assegurar e perpe- doria, criatividade, etc. (como postula tuar a unidade simbiótica, indiscriminada e fusio- Kohut, 1971). nada com a mãe. 7. Um narcisismo destrutivo, como denomi- O termo “posição narcisista” foi empregado por na Rosenfeld (1971), ou, segundo Green H. Segal (1983), em uma conceituação praticamen- (1976), narcisismo de morte, ou, ainda, te sinônima à de PEP. No entanto, conforme aludi- narcisismo negativo (consiste no direcio- mos, embora PN seja inerente à PEP e indissociável namento, para o self, da destrutividade, a dela, ela possui uma configuração própria, mais an- qual fica idealizada). terior, complexa e abrangente do que essa última, 8. Um narcisismo de origem pré-natal, como porquanto o seu estudo parte do vértice do narci- preconiza Grumberger (1979), o qual se sismo, cujo conceito, tal como foi originalmente formulado por Freud, foi de modo virtual ignorado constitui como uma permanente busca de por M. Klein, que, aliás, ao longo de toda a sua um estado paradisíaco. longa obra, não usou o termo “narcisismo” mais 9. Um tipo de identificação: diante da perda do que duas vezes. de um objeto, o self transforma-se à ima- gem e semelhança desse objeto perdido, como aparece em Luto e melancolia, de 1917. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 157

10. Uma forma de identificação primária, sob de natureza fusional e indiferenciada, enquanto a um registro do imaginário, quando a crian- outra extremidade é constituída por uma triangu- ça se identifica, especularmente, com um laridade na qual os indivíduos estão discriminados duplo de si mesmo (tal como ensina Lacan entre si. Quanto mais próximo estiver o sujeito do em seus originais estudos sobre a “etapa primeiro pólo, mais enrigecida estará sendo a sua PN e, nesses casos, na situação analítica, sobres- do espelho”). saem as seguintes características típicas: 11. Um estado narcísico: uma forma defensi- vo-regressiva de enfrentar a sensação de pe- 1. Uma condição de indiferenciação. quenez e desvalia diante de determinadas 2. Um permanente estado de ilusão, em bus- situações de desamparo. ca de uma completude imaginária. 12. Uma personalidade narcisista (um conjun- 3. Uma negação das diferenças. to de traços, características e atitudes, 4. A presença da, assim chamada, parte psi- como, entre outros, uma megalomania, que cótica da personalidade. determina uma forma de ser e de viver). 5. A persistência de núcleos de simbiose e 13. Uma forma de transferência na situação ambigüidade. analítica (nos termos descritos particular- 6. Uma lógica do tipo binária. mente por Kohut). 7. Uma escala de valores centrada no ego 14. Uma organização narcisista: a qual resul- ideal e no ideal do ego. ta de possíveis combinações e arranjos pe- 8. A existência de identificações defeituosas. culiares dos elementos próprios do narci- 9. Uma afanosa busca por fetiches e objetos sismo original, e que podem restar enquis- reasseguradores. tados no ego do sujeito, como uma organi- 10. Um permanente jogo de comparações. zação patológica, tal como é a “gangue nar- 11. A freqüente presença de uma “gangue nar- cisista”, nos termos descritos por Rosenfeld cisista”. (1971). É evidente que as características acima, tal como 15. Uma posição narcisista: consiste num vér- aparecem na prática clínica, não são estanques. tice de visualização do mundo das relações, Antes, elas combinam-se em graus e formas dife- a partir da condição fundamental de que rentes, superpõem-se, completam-se, e, por isso, ainda não se tenha processado a diferença vale fazer uma discriminação mais pormenorizada entre o “eu” e os outros. a seguir. 1. Indiferenciação. Sob nomes diferentes e com pequenas variações conceituais, muitos autores mo- CARACTERÍSTICAS DA POSIÇÃO NARCISISTA dernos têm dado uma ênfase especial à situação em que o bebê constitui, com a sua mãe, uma díade Como se vê, pela razão de serem tão múltiplas fusional e indiscriminada. Assim, M. Mahler (1975) e tão diversas as conceituações inerentes ao narci- denomina esse estado como sendo etapas de au- sismo, corre-se o risco de uma babelização. Com tismo normal e de simbiose; Lacan situa-o evolu- um intento simplificador e unificador, creio ser tivamente no estágio do espelho; Winnicott, igual- muito útil entender a PN, a partir do parâmetro do mente, destaca o estado de ilusão de onipotência grau de discriminação entre o “eu” e o “não-eu”, (em que o bebê, em um estado de real “dependên- ou seja, entre o sujeito e os outros. cia absoluta”, tem a ilusão de possuir uma “absolu- O ser humano é o que, entre todos os seres vi- ta independência”; E. Jacobson (1964) estuda o self vos, tem mais prolongada a duração de um estado psicofisiológico, no qual somente existem sensa- de dependência absoluta para a satisfação de suas ções prazerosas ou desprazerosas; Grumberger necessidades básicas primárias. Esse estado é de- (1979) preconiza um nirvânico estado pré-natal signado com o nome de neotenia. Gradativamen- como um denominador comum de todas as formas te, o indivíduo vai adquirindo uma relativa dife- de narcisismo; Kohut (1971) considera um estado renciação e autonomia, embora nunca exista uma narcisista perene e descreve o self grandioso- independência absoluta em relação aos demais. exibicionista; Bleger (1967) postula a presença do Assim, pode-se imaginar um eixo relacional, no que ele denomina núcleo aglutinado (ou: “glisco- qual, em uma extremidade há uma relação diádica cárico”); Pacheco Prado (1978) dá o nome de en- 158 DAVID E. ZIMERMAN tranhamento, e assim por diante. Na verdade, to- nente condição de egocentrismo. É útil considerar das essas denominações, com pequenas variantes, a diferença que existe entre esse egocentrismo – equivalem ao que Freud referia-se como um esta- que subsiste narcisisticamente no adulto como uma do de nirvana, ou, em um outro registro, como o forma de negar a sua dependência e necessidade do ego do prazer purificado. do outro – e o egocentrismo próprio do desenvol- Como uma forma de simplificar essa polissemia vimento cognitivo (denominado por Piaget como conceitual, pode-se considerar o narcisismo, em etapa do pensamento pré-operatório), no qual a termos clínicos, como sendo um estado em que o criança ainda não tem condições neurobiológicas indivíduo continua fixado ou regredido à etapa de pôr-se no lugar do outro. Vale comparar, meta- evolutiva de indiferenciação com os demais. Nes- foricamente, o egocentrismo narcísico com o sis- sa etapa evolutiva de indiferenciação, o bebê acre- tema solar, uma forma em que o sujeito se sente dita que cada ato de sua mãe é um ato dele próprio, como sendo o sol, e as demais pessoas, como sen- que cada resposta de sua mãe, prazerosa ou des- do seus planetas e satélites e, como eles, sem luz, prazerosa, é uma obra de seu desejo e uma prova calor e movimentos próprios, pessoas essas que de- de sua onipotência. Como uma primeira conclu- vem girar em torno do “brilho” do seu narcisismo. são, pode-se dizer que o funcionameno psíquico Um bom modelo dessa metáfora é o de Luís XIV, o da PN está predominantemente fixado no registro “Rei Sol”, que manteve um permanente prolon- do imaginário. gamento da condição de “sua majestade, o bebê” Dessa forma, a ruptura de uma relação narci- (metáfora, essa última, criada por Freud, 1914). sística, em direção a uma edípica, mais evoluída, 3. Negação das diferenças. A terceira caracte- implica necessariamente que haja uma castração rística decorrente da PN consiste no uso maciço do simbólica, ou seja, que o indivíduo tenha a vivên- recurso defensivo da negação, tanto no que se re- cia da perda do paraíso simbiótico com a mãe. A fere às diferenças do indivíduo em relação com os conseqüência direta disso é a de um sentimento de outros (porquanto a sua óptica é a do egocentrismo incompletude e o penoso reconhecimento de que acima aludido), como também em relação à neces- ele depende e tem necessidade do outro (é justa- sidade de negar todos aspectos da realidade que mente aí que muitos autores, não kleinianos, situam afrontem a sua imaginária completude narcísica. a origem do sentimento de inveja). As principais regressões pelas pessoas forte- 2. Estado de ilusão em busca de uma comple- mente fixadas na PN dizem respeito à intolerância tude. O intenso sofrimento decorrente do reconhe- de suas diferenças em relação aos outros, tanto as cimento da inevitável incompletude obriga esse de sexo (é muito difícil o luto pela perda da bisse- sujeito a criar e a manter uma estrutura ilusória de xualidade), como as diferenças de gerações, de onipotência e onisciência, a qual, quando fortemen- capacidades e de atributos (tamanho do pênis, for- te fixada e nucleada no self, acarreta uma série de ça, inteligência, privilégios, etc.). A negação tam- derivados caracterológicos próprios da PN. bém é extensiva ao não-reconhecimento das ver- Assim, essas pessoas narcisistas passam a maior dades penosas, tanto as internas como as externas, parte de suas vidas buscando algo, ou alguém, que como são: a impossibilidade de uma plena com- confirme o seu mundo ilusório, dessa forma, ga- pletude; a admissão de que existe a presença de rantindo a preservação da auto-estima e do senti- um terceiro (na infância era o pai, a quem, ao fim e mento de identidade, ambas permanentemente a cabo, ela entregava-se); o reconhecimento de que muito ameaçadaas na PN, em virtude das deman- ele depende dos outros e, por isso, corre sérios ris- das do mundo da realidade. cos de sentir inveja, ciúme, perdas e separações; a Em um nível mais primitivo, o narcisista muito admissão de que o outro tem uma vida autônoma, regressivo pode estar procurando a sua unidade não é posse sua, não está sob o seu controle e tem o corporal perdida, ou seja, a parte do seu corpo que direito de ser diferente dele (ser diferente significa ficou alienada em um outro, geralmente a mãe. Isso que o outro ente, difere dele e vai para uma outra pode ser comprovado em casos de extrema regres- direção, ou seja, que esse outro é original e não foi são, como em esquizofrênicos que, diante de um originado por seu imaginário narcisista). Além des- espelho, procuram desesperadamente reconhecer sas negações, o indivíduo estagnado na PN tam- a sua verdadeira imagem refletida (os ensinamentos bém tem dificuldades em reconhecer os seus inevi- de Lacan sobre a “etapa do espelho” facilitam a táveis limites e limitações, como são, por exem- compreensão desse fenômeno). plo, os problemas ligados ao envelhecimento, do- Uma outra decorrência desse estado de ença e morte; a inevitável hierarquia na atribuição indiferenciação e de ilusão consiste numa perma- de papéis e de funções; a desproporção entre as FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 159 aspirações ideais e as capacidades reais em poder adesividade substituem a identificação, e assim por realizá-las. Neste último caso, para enfrentar a vida diante. adulta, o indivíduo pode ser tentado a utilizar o que 5. Núcleos de simbiose e ambigüidade. Com J. Chasseget-Smirgel denomina como sendo a fá- base em Bleger (1967), pode-se traçar uma distin- cil via curta, no lugar da custosa via longa, para a ção entre os conceitos de simbiose e de ambigüi- consecução dos objetivos adultos, preferência essa dade, que sempre aparecem na PN e que, embora que representa uma porta aberta para o narcisismo tenham semelhanças, conservam diferenças essen- no plano da conduta, como é o caso da perversão e ciais entre si. Assim, simbiose refere-se a um esta- da psicopatia. do no qual existe alguma fusão e indiferenciação 4. A presença da “parte psicótica da perso- com o outro, porém o sujeito pode substituir a sua nalidade”. O entendimento das referidas negações insegurança e dependência por meio de uma auto- fica facilitado se tivermos em mente os ensina- suficiência e onipotência. Para tanto, reproduzin- mentos de Bion (1967) acerca da patologia, tanto do a original simbiose mãe-lactente, o sujeito sem- das funções do pensamento como das cognitivas pre elege uma outra pessoa e a mantém sob um (-K) e dos vínculos perceptivos. Em casos extre- controle onipotente, como, por exemplo, pode ser mos, a negação adquire o grau de forclusão psi- comumente observado na união de um casal, entre cótica, na qual há alguma ruptura com a realidade um marido muito obsessivo e extremamente con- exterior. trolador, com uma esposa dependente e submissa, Também devemos a Bion a compreensão de que ou, vice-versa. todo indivíduo é portador, em grau maior ou me- Ambigüidade, por sua vez, designa uma condi- nor, do que ele denomina “parte psicótica da ção mais regressiva que a da simbiose e caracteri- personalidade”(PPP). É necessário repisar que essa za-se pelos seguintes aspectos: a persistência de denominação, por si só, não designa uma psicose núcleos sincréticos, ou seja, uma condição em que clínica, mas, sim, um encapsulado estado da mente o sujeito confunde a parte com o todo, e o “como- que se caracteriza por alguns aspectos regressivos se” com um, imaginário, “de fato, é”; a coexistên- que em uma mesma pessoa coexistem com os sa- cia de aspectos contraditórios, e até incompatíveis, dios. Vale destacar na PPP a presença de uma da personalidade, que o sujeito não sente e não per- baixíssima tolerância às frustrações; a predominân- cebe como estando em oposição entre si; o freqüen- cia da inveja e pulsões destrutivas; o uso maciço te jogo que o sujeito na PN faz com a vagueza, de negações; o emprego excessivo de identifica- como uma forma de negar as diferenças, dentro do ções projetivas; o ataque aos vínculos; a utilização princípio de que “no escuro, todos os gatos são da “reversão da perspectiva” (na situação analítica pardos” (Hornstein, 1983); a multiplicidade de desvitaliza as interpretações do analista); a inibi- depositários de suas necessidades e angústias, di- ção das funções de “representações” no ego, da ferentemente da simbiose, em que o hospedeiro formação de símbolos, abstração e criatividade. costuma ser uma única e determinada pessoa; nas É claro que a PPP está presente em todo e qual- situações grupais, os sujeitos ambíguos usam o re- quer indivíduo. No entanto, é necessário levar em curso de fazer pseudo-adaptações, isto é, eles apa- conta não só o grau quantitativo dos aspectos aci- rentam estarem bem adaptados e serem integra- ma aludidos, mas, também, se a predominância do dores, ao mesmo tempo em que, por meio de um narcisismo é de natureza libidinal, ou se é do nar- sutil jogo de intrigas e duplas mensagens, às vezes, cisismo destrutivo, e isso influi decisivamente na indo ao extremo do emprego de técnicas psi- determinação da caracterologia e do quadro clíni- copáticas, os outros do seu grupo é que restam con- co de cada sujeito. fusos. A ambigüidade e a simbiose podem alter- Uma forte presença da PN na organização da nar-se e coexistir em um mesmo indivíduo, e elas PPP acarreta profundas conseqüências na estru- requerem uma atenção especial na situação analíti- turação da personalidade. Assim, a onipotência ca, como será exposto mais adiante. ocupa o lugar da formação e uso dos pensamentos, 6. Lógica do tipo binário. No sincretismo, já a onisciência substitui o difícil “aprendizado ela aludido, uma parte costuma representar o todo e vice- experiência”, a prepotência (pré-potência) substi- versa, de modo que, no caso de um determinado atri- tui a impotência (ou seja, uma negação da im-po- buto de um sujeito não correspoder ao seu ego ideal tência diante da fragilidade, desamparo e depen- ou ideal do ego, ele generaliza essa deficiência para dência do outro), a ambigüidade e a confusão a totalidade de sua pessoa. Por exemplo, um nariz obliteram a discriminação entre o real e o ilusório, feio determina a convicção de uma feiura total e, da entre a verdade e mentira, etc., a imitação ou a 160 DAVID E. ZIMERMAN mesma forma, o insucesso de uma tarefa é vivenciado vai entre o plano ilusório (ego ideal) e o plano da na PN como sendo um fracasso na totalidade de suas realidade. Em contrapartida, o prazer narcisista tem capacidades, e assim por diante. a ver com o reconhecimento e a admiração de um Pela mesma razão de pensamento sincrético, a outro significativo e, embora esse último seja al- escala de valores na PN funciona em extremos de guém externo a ele, a demanda por reconhecimen- “tudo ou nada” e não admite meios termos. Isso to provém do objeto ideal que ele traz internalizado. conduz a uma lógica do tipo binário, na qual o su- Para fugir da ferida narcisista e garantir o prazer jeito oscila unicamente entre dois pólos: ou ele conferido pela PN, o sujeito deve encontrar valo- imagina-se como sendo o melhor (diante de um res e atributos que preencham os vazios de sua eventual êxito ele sente-se nivelado às demandas imaginária completude. do ego ideal) ou como sendo o pior (nos casos em Quando os referidos valores e atributos ficam que houver uma acentuada defasagem entre o ego supervalorizados, eles exercem a função de fazer o ideal e o real). Da mesma forma, na PN, o sujeito sujeito “parecer ser aquilo que, de fato, ele ainda considera-se como sendo unicamente um sucesso não é” e, portanto, nesses casos, esse tipo de valo- ou um fracasso; se não for lindo (ou melhor, o mais res constituem-se como sendo fetiches, os quais o lindo) é porque ele é feio, e assim por diante. sujeito vai procurar em si próprio (sob a forma de beleza, inteligência, riqueza, prestígio ou poder) 7. Escala de valores centrada no ego ideal e ou fora dele, em uma outra pessoa, em uma insti- no ideal do ego. Vale lembrar que estamos consi- tuição, em uma ideologia, em uma paixão, etc. derando que o ego ideal é o herdeiro direto do nar- Para exemplificar: alguém que esteja fixado na cisismo original; logo, ele representa ser o pólo das PN pode estudar com afinco a obra de Freud (ou a ambições pessoais, e geralmente funciona no re- de Bion, Lacan, etc.), não tanto para entendê-los gistro imaginário. O ideal do ego, por sua vez, re- em profundidade e fazer correlações, reflexões e presenta o pólo em que o sujeito sente-se na obri- aplicações na prática da clínica, mas, sim, para gação de cumprir os ideais e as expectativas pro- convencer a si e aos demais que ele “possui” Freud vindas dos pais e da sociedade. (logo, como um fetiche), o que o autoriza a imagi- A presença na estrutura psíquica do sujeito, tan- nar-se como sendo muito íntimo do mestre e, por- to do ego ideal como do ideal do ego, determina tanto, merecedor do mesmo prestígio e respeito des- uma extrema vulnerabilidade da auto-estima. Na se. Da mesma forma, dentro dessa óptica segundo sua precoce infância, esses indivíduos foram crian- a qual o indivíduo na PN pensa ser aquilo que re- ças extremamente sensíveis, não só às frustrações presenta ser, no caso dele desfilar com um carro externas, como também aos pequenos fracassos de luxo importado, ele vai acreditar piamente que evolutivos (como, por exemplo, os tombos que é poderoso, diferenciado e que, assim, ele imagi- acompanhavam o início da marcha, ou a vergonha na, esteja sendo reconhecido pelos demais. da incontinência esfincteriana, etc.), sendo que, embora venham a ser adultos bem-sucedidos, quais- 9. Escolha de pessoas reforçadoras da ilusão quer frustrações, desilusões ou insucessos conti- narcisista. Tendo em vista a imperiosa demanda nuam sendo vividos com um sentimento de desam- do sujeito fixado na PN por provas de que nele paro, aniquilamento e humilhação. estão preservadas tanto a integração biopsicossocial Nos casos em que a auto-estima do indivíduo como a auto-estima e o senso de identidade, ele fixado na PN gravita unicamente em torno do cum- institui, como meta principal de sua vida, a busca primento da obrigação de corresponder às expec- de pessoas, cuja função essencial é a de que esses tativas de si próprio ou às provindas de seus pais e endossem o seu ego ideal. Lacan, ao aprofundar o representantes, é muito comum a instalação do qua- estudo da dialética do desejo, baseado na metáfora dro clínico conhecido como “depressão narcisis- do “Amo e Escravo” do filósofo Hegel, mostra o ta” (Bleichmar, 1981), diante do fracasso na reali- quanto cada um deles precisa do outro para consti- zação dos projetos ideais. Uma outra possibilida- tuir-se como um sujeito completo, a tal ponto que, de, também muito comum, é a de que uma supera- no fundo, o amo acaba sendo escravo do seu escra- daptação às demandas do ideal do ego determine a vo, e esse, amo do seu amo. constituição da personalidade do tipo falso self, 10. Identificações defeituosas. Na PN, as iden- conforme a conhecida conceituação de Winnicott. tificações não se fazem por admiração pelos obje- tos modeladores, o que seria o desejável. Pelo con- 8. A busca de fetiches. A ferida narcisista – trário, elas formam-se por uma adesividade (o in- uma das mais dolorosas entre todos os sofrimentos divíduo fica sendo uma “sombra” de um outro, não psíquicos – é aquela que resulta da distância que mais do que “grudado” nesse), ou por uma mera FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 161 imitação (caso em que ele paga o alto preço de um de proteção e de satisfação das ilusões, ela ataca e total esvaziamento do seu self) ou, ainda, mais boicota o restante do self do sujeito, que , embora adiante no processo evolutivo, por uma excessiva dependente e frágil, está desejoso de um cresci- idealização, ou denegrimento do modelo introje- mento verdadeiro. Esse mesmo fenômeno tem sido tado. estudado com outras denominações, entre elas a Nos casos mais regressivos, a presença interio- de “organização patológica” (Steiner, 1981), na rizada de figuras parentais, sentidas como sendo qual o citado autor enfatiza a relação perversa que tanáticas e enlouquecedoras, impedem a passagem se estabelece, sob a forma de uma estrutura relati- da posição narcisista para a edípica, processo que vamente estável, entre partes diferentes, libidinais é indispensável para a constituição do sentimento e destrutivas, de um mesmo self. de identidade e de uma coesão objetal. 13. Inter-relações entre Narciso e Édipo. A Um outro aspecto a destacar, a partir de uma patologia de Édipo é indissociada da de Narciso. perspectiva transgeracional, é a de que a criança Assim, clinicamente falando, antes do que uma pode ficar identificada com as identificações que disjunção alternativa, tipo Narciso ou Édipo, é mui- cada um dos seus pais tem com os seus respectivos to mais útil a conjunção copulativa Narciso e Édipo, pais. Esse tipo de identificação processa-se, em sendo que cada um deles pode funcionar como re- grande parte, pelo discurso parental, comumente fúgio do outro. Em pacientes mais regressivos, é por uma forma intrusiva e, por vezes, de maneira indispensável que o psicanalista encare as mani- violenta. Em outras palavras, a criança (ou o pa- festações edípicas, às vezes muito floridas e atrati- ciente, na situação analítica) fica identificada com vas, a partir de um vértice da PN de seu paciente, a identidade que lhe é atribuída, sendo que, por embora ambas estejam articuladas entre si. No en- vezes, a identidade atribuída consiste justamente tanto, uma regressão narcisista nem sempre resulta em que ele não tenha uma identidade definida, de uma fuga de Édipo, ou vice-versa, e nem como como é possível observar naquelas personalidades uma forma de resistência contra a progressão até que podemos chamar de camaleônicas. Édipo. Pelo contrário, essa regressão, em determi- nadas circunstâncias da análise, pode representar 11. Jogo de comparações. Como o sujeito fi- um necessário e estruturante retorno às origens, a xado na PN está permanentemente pondo em che- fim de recomeçar tudo de novo, de uma maneira que a sua auto-estima, a qual é sempre muito instá- mais sadia porque mais verdadeira. vel, e como, da mesma forma, ele se reconhecepelos Em Narciso, a relação é diádica, enquanto no outros, resulta que, de uma forma compulsória, ele Édipo normal ela é triangular (no Édipo muito se vê impelido a estabelecer comparações com os narcisisado, a relação pode ser triádica, mas não demais. triangular), se levarmos em conta que são três pes- Premido pela lógica bipolar do “tudo ou nada”, soas, mas que uma – o pai – está excluída afetiva- o sujeito narcisista sofre muito com o êxito dos mente e, por isso, é como se não existisse. No mito outros, porquanto, por comparação, isso represen- de Narciso, o que prevalece não é o amor por si ta para ele ser um fracasso pessoal seu. Decorrem próprio, como sempre era conceituado, mas sim a daí duas possibilidades: uma é a de que ele refor- con-fusão com a mãe (identificação primária, de çará, cada vez mais, a busca de substitutos feti- Freud) e a falta de discriminação e de considera- chizados, ou de pessoas reasseguradoras de sua ção pelos demais, enquanto que em Édipo já existe grandiosidade; a outra possibilidade é que ele sin- a discriminação. Assim, como mostra-nos a narra- ta profundamente as dores da ferida narcisista, fi- tiva do mito, é necessário que morra Narciso – ou que tomado por sentimentos de inveja, ciúme, des- seja, a relação diádica especular em que ele foi con- peito e torne-se uma pessoa ressentida e vingativa denado a adorar unicamente a si próprio, como uma contra aqueles que estariam impondo-lhe humilha- forma de negar a sua dependência dos outros – para ções. Esse jogo de comparações costuma ser sutil que nasça e desenvolva-se Édipo, numa dimensão e dissimulado, porém, na prevalência da PN ele é triangular. O ingresso exitoso em Édipo é que vai permanente, obcecante e torturante. possibilitar a passagem do plano imaginário para o 12. A presença de uma “gangue narcisista”. real e o simbólico. Expressão de Rosenfeld (1971), com a qual ele designa a possibilidade de que o narcisismo oni- potente e destrutivo organize-se e enquiste no pró- prio self e, como uma gangue mafiosa, por meio de ameças, chantagens e de sedução com promessas 162 DAVID E. ZIMERMAN

A POSIÇÃO NARCISISTA NA PRÁTICA se firme, com intervenções diretas e objeti- ANALÍTICA vas, sem medo, embora com respeito, de que o paciente se melindre e abandone a análise. O manejo técnico dos pacientes nos quais so- A prática analítica ensina-nos que a “pele bressaem as características que, aqui, foram desta- grossa” sempre encobre e protege uma, sub- cadas como sendo próprias da PN, merece alguns jacente, “pele fina”. cuidados e táticas especiais, que não serão apro- • A recomendação antes destacada, de forma fundadas no presente capítulo, levando em conta alguma, deve impedir que o psicanalista, du- que esses analisandos, na maioria das vezes, per- tencem à categoria dos “pacientes de difícil aces- rante um tempo necessário, aceite as de- so”, em cujo capítulo específico serão melhor monstrações do exibicionismo grandioso de explicitados. Assim, vamos limitar-nos a apenas seu paciente em PN. enumerar alguns aspectos típicos da prática analí- • Os primeiros passos na transição de Narciso tica. a Édipo são muito dolorosos porque impli- cam na renúncia a alguns dos velhos sonhos • Todo e qualquer paciente é portador de al- ilusórios, sendo que, não raramente, esse gum aspecto da PN, embora essa possa estar movimento psíquico na análise vem acom- oculta, dissimulada ou manifesta, ser de grau panhado por aquelas penosas manifestações intenso ou moderado, de natureza benigna e que Bion denomina como “mudança catas- sadia, ou maligna e destrutiva. Desta manei- trófica”. ra, pode-se dizer que uma análise não pode • Adquire uma especial importância o proble- ser considerada como completada satisfato- ma da linguagem e da comunicação, por- riamente se ela não desfez a PN original, ou quanto é bastante freqüente o emprego de se, pelo menos, não trabalhou em profundi- uma comunicação não-verbal, por meio de dade com núcleos narcisistas enquistados e somatizações, ou de actings, que, muitas disfarçados. vezes, adquirem características preocupan- • Toda situação que remete a alguma forma tes. de desamparo constitui-se, para esse tipo de • Pela última razão acima, é importante que paciente, em uma ferida narcisista. Como as haja uma preservação, ao máximo possível, principais matrizes do desamparo são as pri- do setting que foi instituído. vações e frustrações, fica evidente a impor- • As diversas formas de resistências aparecem tância de como o analista lidará analitica- com regularidade na análise com pacientes mente com o problema das inevitáveis frus- fortemente fixados na PN, de modo que exis- trações. te uma razoável possibilidade da formação • A propósito disso, é útil lembrar a classifi- de impasses, abandonos, ou uma análise de cação proposta por Rosenfeld (1987) em dois “faz de conta” (nesse caso, aparentemente tipos de narcisistas: os que ele denomina vai tudo bem, porém esse paciente não rea- como sendo os de “pele fina” – que são liza nenhuma verdadeira e significativa mu- supersensíveis e exigem um tato especial do dança psíquica). Em certas situações extre- analista – e aqueles de “pele grossa” – que, mas de PN, o analista pode confrontar-se pelo contrário, são arrogantes, procuram tro- com uma situação em que esse tipo de pa- car de lugar com o analista e demonstram ciente procura a análise para provar que não um espesso escudo protetor contra a ativi- precisa de análise, que tanto o psicanalista dade interpretativa dele – e que, por isso como a psicanálise fracassaram com ele. mesmo, necessitam que o analista mantenha- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 163

CAPÍTULO “re” tem o significado de “voltar a acontecer”). 2) A aquisição de um reconhecimento do outro. 3) Ser reconhecido ao outro. 4) Ser reconhecido pelo outro. Este capítulo privilegia este último vínculo, 14 além de ser enfatizado o fato de que em grande parte a estruturação da personalidade de qualquer indivíduo é calcada na necessidade de preservar- se a auto-estima e o senso de identidade, e isto, além de outros fatores psicogênicos, também está Vínculos: O “Vínculo do intimamente conectado com o reconhecimento por parte dos outros de que, de fato, ele existe e é valo- Reconhecimento” rizado como alguém que é autônomo, aceito e dig- no de ser amado pelos demais. Como esquema de exposição, o capítulo inicial- mente enfoca, de forma separada, as conceituações A psicanálise contemporânea inclina-se, cada de vínculo e de reconhecimento; após, ambos são vez mais, para o paradigma da vincularidade, isto estudados em alguns aspectos de sua normalidade é, para o fato de que o processo psicanalítico con- e da patologia, além de como costumam manifes- siste sempre em uma interação entre analisando e tar-se na situação da prática psicanalítica. analista, a partir dos vínculos que se estabelecem entre ambos e que constituem o campo psicanalíti- co. VÍNCULO ANALÍTICO Por outro lado, o universal sentimento de uma necessidade de reconhecimento, por parte da cria- O termo vínculo tem sua origem no étimo lati- tura humana, aparece na literatura psicanalítica no “vinculum”, o qual significa uma união, com as desde os seus primórdios até a atualidade, em di- características de uma ligadura, uma atadura de versos autores de distintas correntes psicanalíticas, características duradouras. Da mesma forma, vín- com denominações, abordagens e contextos dife- culo provém da mesma raiz que a palavra “vinco” rentes. Em uma detida revisão da literatura ao meu (com o mesmo significado que aparece, por exem- alcance, em meio às múltiplas referências à impor- plo, em “vinco” das calças, ou de rugas, etc.) ou tância deste genérico “sentimento de reconhecimen- seja, ela alude a alguma forma de ligação entre as to”, não consegui encontrar mais do que alusões partes que estão unidas e inseparadas, embora elas passageiras e eventuais, embora relevantes e fér- permaneçam claramente delimitadas entre si. Tra- teis, e senti falta de um texto que objetivasse dar- ta-se, portanto, de um estado mental que pode ser lhe uma integração, consistência e destaque. expressado por meio de distintos modelos e com Por estas razões, a proposta do presente capí- variados vértices de abordagem. tulo consiste em considerar que esta necessidade Assim, vale a pena fazer algumas breves men- de reconhecimento permite ser enfocada a partir ções entre os principais autores que, de forma dire- de quatro vértices, adiante explicitados, com sig- ta ou indireta, trabalharam com a noção de víncu- nificados específicos e diferentes entre si, sendo lo. que todos eles se complementam e funcionam como Freud, em diversos trabalhos, deixou claramen- importantes vínculos interacionais, tanto na situa- te implícita a importância que atribuía aos víncu- ção psicanalítica como, também, na vida diuturna los (embora utilizasse termos correlatos) que se de cada pessoa, como um fator estruturante do de- estabelecem entre o indivíduo e seus semelhantes senvolvimento da personalidade. (Projeto..., 1895), entre a criança e a mãe (Leo- Assim, entre tantos outros tipos de vínculos já nardo..., 1910) ou entre os indivíduos e as massas suficientemente estudados na teoria e na prática da (Psicologia das massas..., 1921), etc., etc. psicanálise, especialmente os de amor, ódio e co- M. Klein também aludiu diretamente à noção nhecimento, tal como foram descritos por Bion, este de vínculo, como pode-se observar no seu relato trabalho pretende propor e submeter à considera- acerca da análise do menino Dick, no seguinte tre- ção dos leitores a existência e valorização do Vín- cho: “A análise desta criança tinha que começar culo do Reconhecimento, nas seguintes quatro pelo estabelecimento de um contato com ele”(1930, acepções possíveis: 1) Reconhecimento (o prefixo pg. 214). 164 DAVID E. ZIMERMAN

J. Bowlby, importante psicanalista britânico, diretamente e enfaticamente aprofundou o estudo durante mais de 40 anos estudou, utilizou e divul- sobre os vínculos e que virtualmente permeia toda gou bastante sua “teoria do vínculo”, sob a deno- a sua obra, notadamente aquela que alude à prática minação original de attachment, tendo conceitua- psicanalítica: estou-me referindo a Bion, cujos con- do como o vínculo afetivo primário da relação mãe- ceitos vão merecer, aqui, uma apreciação um pou- filho. No entanto, os estudos interativos de Bowlby co mais alongada. (1969) fundamentam-se no comportamento social, Assim, partindo da conceituação de que “vín- em um contexto evolutivo, de modo que ele consi- culo” é uma estrutura relacional-emocional en- dera que a principal função do vínculo é proteger a tre duas ou mais pessoas, ou entre duas ou mais sobrevivência do indivíduo contra os agentes pre- partes separadas de uma mesma pessoa, Bion es- dadores externos. tendeu o conceito de vínculo a qualquer função Bateson e colaboradores (1955), da Escola Palo ou órgão que, desde a condição de bebê, esteja Alto, Califórnia, no curso de seus aprofundados encarregado de vincular objetos, sentimentos e estudos sobre a teoria da comunicação humana, idéias, uns aos outros. Desta forma, ele descreveu descreveram a importante conceituação de duplo os vínculos de Amor (L, inicial de “love”), de Ódio vínculo (double bind), a qual consiste em uma pa- (H, de “hate”), e o do Conhecimento (K, de tologia da relação entre pais e filhos, em que, por “knowledge”), de um modo que todos os três po- meio de mensagens contraditórias (do tipo: “eu te dem ser sinalizados tanto de forma positiva (+) ou ordeno que não recebas ordens de ninguém...”) e negativa (-), sendo que Bion deteve-se mais parti- desqualificatórias (do tipo: “decepcionei-me con- cularmente no vínculo “-K”, ou seja, quando este tigo, o teu amigo “x” faz muito melhor que tu...”), está a serviço do que ele denominou ataque aos a criança, faça o que fizer, nunca pode ganhar de- vínculos perceptivos, especialmente no que se re- les e sobrevém um estado mental de aprisionamen- fere à desvitalização e à anulação dos significados to às expectativas dos pais. É interessante acres- das experiências emocionais. centar que o termo bind, usado no original, na sua Durante muitas décadas, todos os psicanalistas essência tem o significado de escravidão, o que basearam os seus esquemas referenciais virtualmen- traduz fielmente a natureza deste vínculo no qual te em torno dos dois vínculos, o do amor e o do as pessoas – um casal, por exemplo – estão atadas ódio, sendo que coube a Bion, sabidamente um de tal sorte que não conseguem viver juntas e mui- analista de profundas raízes na escola de M. Klein to menos separadas. e com um sólido embasamento freudiano, propor A Escola Argentina de Psicanálise tem dado uma terceira natureza de vínculo: o do conheci- uma importante contribuição ao estudo dos víncu- mento, o qual está diretamente ligado à aceitação, los nas interações humanas. Assim,o casal Baran- ou não, das verdades, particularmente as penosas, ger (1961) descreveu com grande riqueza de vérti- tanto as externas, como também as internas, e que ces psicanalíticos a permanente e recíproca inte- dizem respeito mais diretamente aos problemas da ração entre analista e analisando no espaço que eles auto-estima dos indivíduos. denominaram campo analítico. Na atualidade, au- Em lugar do clássico conflito entre o amor tores como Puget e Berenstein (1994) reservam a versus o ódio, Bion propôs uma ênfase no conflito conceituação de vínculos para o plano da inter- entre as emoções e as antiemoções presentes em subjetividade, com um enfoque de natureza sis- um mesmo vínculo. Assim, ele postulou que o “me- têmica, assim privilegiando uma ênfase nas distin- nos amor” (- L) não é o mesmo que sentir ódio e tas configurações vinculares (de natureza sim- que, tampouco, o “menos ódio” (- H) significa amor. biótica, sadomasoquista, etc., etc.) entre duas ou O vínculo de “menos amor” alude a uma oposição mais pessoas do mundo real, embora, é claro, es- à emoção do amor, o que pode ser ilustrado com a ses importantes psicanalistas reconheçam a simila- situação de puritanismo e a de samaritanismo, ou ridade entre tais configurações vinculares intersub- seja, em nome do amor o sujeito opõe-se à obten- jetivas com as intrasubjetivas. ção da emoção do prazer. Nesses casos, a manifes- É óbvio que os nomes e os conceitos mencio- tação externa adquire a aparência de amor, que, no nados não passam de uma simples amostragem e entanto, é falsa, o que não significa que esteja ha- que me poderia estender com outros autores que vendo ódio. Um exemplo de “- L” que me ocorre, emprestaram um grande destaque à vincularidade, seria o caso de uma mãe que pode amar intensa- como Balint, Winnicott, M. Mahler, Kohut, Lacan, mente seu filho, porém ela o faz de uma forma P. Aulagnier, Anne Alvarez, A. Green, etc., etc. No simbiótica, possessiva e sufocante, de modo que, entanto, vou-me restringir ao psicanalista que mais embora sem ódio, o seu amor samaritânico, cheio FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 165 de sacrifícios pessoais e com renúncia ao prazer culo necessariamente requer as seguintes caracte- próprio, é de resultados negativos, porquanto ele rísticas: 1) São elos de ligação que unem duas ou funciona como culpígeno e infantilizador, já que mais pessoas ou duas ou mais partes de uma mes- ela não reconhece e impede o necessário processo ma pessoa. 2) Estes elos são sempre de natureza de diferenciação, separação e individuação do seu emocional. 3) Eles são imanentes (isto é, são ina- filho. tos, existem sempre como essenciais em um dado O vínculo “- H “(“menos ódio”) pode ser ilus- indivíduo e são inseparáveis dele). 4) Comportam- trado com o estado emocional e conduta de hipo- se como uma estrutura (vários elementos em com- crisia, pela qual o indivíduo está tendo uma atitu- binações variáveis). 5) São polissêmicos (permi- de manifestamente amorosa por alguém, ao mes- tem vários significados). 6) Comumente atingem mo tempo em que existe um certo ódio latente as dimensões inter, intra e transpessoal). 7) Um (quando o ódio estiver muito predominante, trata- vínculo estável exige a condição de o sujeito poder se de cinismo). Portanto, pode-se dizer que no pensar as experiências emocionais na ausência do “menos ódio” está presente uma forma de amar que outro. 8) Os vínculos são potencialmente transfor- está baseada no ódio, embora o sujeito não se dê máveis. 9) Devem ser compreendidos por meio do conta dele, como, em um grau extremo, pode ser- modelo da inter-relação continente-conteúdo. vir como exemplo as atrocidades que, em nome do Conquanto a contribuição de Bion em acres- amor, foram cometidas pela “Santa Inquisição”. centar o vínculo do conhecimento aos do amor e Visto por um outro ângulo, creio que também pode do ódio tenha trazido uma grande ampliação e en- servir como exemplo aquela situação pela qual o riquecimento da compreensão das inter-relações indivíduo está sendo manifestamente agressivo com humanas em geral, e da situação psicanalítica em os outros, inclusive, com uma emoção de ódio por particular, penso que, a partir das suas próprias não estar sentindo-se entendido e respeitado, po- concepções, pode-se ampliar a conceituação ge- rém, no fundo, é uma agressividade que simulta- nérica de “vínculo” para outros vértices de vin- neamente com o ódio, está mais a serviço da pulsão cularidade, além daqueles aportados por Bion e de vida do que propriamente à pulsão de morte, pelos autores antes mencionados. Para ficar so- assim caracterizando a conflitiva de uma emoção mente em dois exemplos, vale citar a expressão versus uma antiemoção. Um exemplo comum dis- vínculo da fala empregada por O. Mello Franco so encontramos em muitos adolescentes que são Filho (1992), em um excelente trabalho no qual rotulados de rebeldes e agressivos pelos pais, pe- estuda as diversas modalidades de vincularidade los professores e pela sociedade, porém uma análi- analista-analisando, que se expressam pelas dis- se mais atenta pode demonstrar que eles estão exer- tintas formas da linguagem recíproca entre eles cendo uma conduta contestatória, com a finalidade na situação psicanalítica, bem como o vínculo de precípua de adquirir um sentimento de identidade apoderamento, termo empregado por N. Golds- própria, ou seja, serem eles mesmos, e não quem tein (1996) em um belo artigo no qual estuda as os outros querem que sejam. perversões. Igualmente, inúmeros e importantes Por outro lado, o simples fato de que o vínculo outros modelos poderiam servir de ilustração, do Conhecimento (K) está intimamente ligado ao porém não cabe fazê-lo aqui. mundo das verdades (ou falsidades e mentiras, no Dentro deste contexto que está sendo enfocado, caso de “-K”) permite depreender a enorme im- entendo ser de grande utilidade acrescentar mais portância que isto representa para a psicopatologia, uma modalidade de vínculo que caracterize mais se leva-se em conta que os diversos tipos e graus especificamente as vicissitudes radicadas desde a da patologia psíquica dependem justa e diretamen- primordial relação mãe-bebê. A este quarto elo de te dos tipos e graus de defesa que o ego utiliza para ligação, o qual considero intimamente ligado às a negação do sofrimento mental. Como exemplo etapas narcisistas da organização e evolução da de “menos conhecimento” pode servir o “ataque personalidade, proponho denominá-lo vínculo do às verdades” que comumente é empregado pela reconhecimento. “parte psicótica da personalidade”, de sorte que nos casos mais exagerados o sujeito constrói a sua pró- pria verdade, que contraria as leis da lógica e da VÍNCULO DO RECONHECIMENTO natureza, e que a todo custo quer impô-la aos ou- tros, como se fosse a verdade definitiva. Há uma conotação entre as funções psíquicas Do ponto de vista psicanalítico, principalmen- de conhecer e de reconhecer, mas elas têm signifi- te fundamentada em Bion, a conceituação de vín- cados específicos. Para os propósitos deste traba- 166 DAVID E. ZIMERMAN lho, o termo “reconhecer” abriga quatro concei- cussões na prática clínica, como seria no caso da tuações: 1) A de reconhecimento (de si próprio. 2) aquisição de insight, ou o surgimento das resistên- Reconhecimento do outro (como alguém diferente cias contra certos conhecimentos, entre tantos ou- dele). 3) Ser reconhecido ao outro (como expres- tros fenômenos do campo psicanalítico. são de gratidão). 4) Ser reconhecido pelos outros.

Reconhecimento do Outro Re-conhecimento No início da vida, o bebê não tem a consciên- Vimos que a concepção de vínculo considera cia de si, não tem consciência da existência do ou- as ligações entre as diferentes partes intrapsíquicas, tro, nem o que é dentro ou o que é fora; tampouco as quais, interagindo entre si, tanto podem estar em discrimina o que é “eu” e “não-eu”. O que existe é harmonia, como também elas podem estar em es- um estado caótico composto unicamente por sen- tado de dissociação, contradição, oposição, ou até sações que são agradáveis ou desagradáveis, sen- de uma franca beligerância. Partindo daí, é fácil do que, nesse estado narcisista, o outro sujeito é depreender a importância de o indivíduo reconhe- representado como sendo não mais do que uma cer (voltar a conhecer) aquilo que já preexiste den- posse e extensão dele próprio e que deve estar per- tro dele, como são, por exemplo, as pré-concep- manentemente à sua disposição para prover suas ções, tão bem estudadas por Bion (como é o caso necessidades. da inata pré-concepção que o recém-nascido tem Sabe-se que muitos sujeitos permanecem fixa- de um seio amamentador da mãe, ou a pré-concep- dos nessa posição narcisista (capítulo 13) sem con- ção edípica, etc.) e que, segundo ele, somente es- seguir conceber que o outro seja diferente dele. Na tão à espera de serem fecundadas por realizações situação psicanalítica, o estado transferencial nes- para que, por intermédio da função-alfa da mãe sas condições adquire a característica de transfe- (ou do analista na situação analítica), sejam conce- rência narcisística especular, conforme a concep- bidas como conceitos conscientes. Aliás, muito ção de Kohut (1971), nas três formas que este au- antes de Bion, os filósofos já tinham uma intuição tor descreve: fusional, gemelar e especular pro- desse fato, como percebe-se em Platão (1981) que priamente dita. acreditava no poder que a narrativa tem de “tocar É indispensável para o seu crescimento mental a alma”, porquanto, segundo ele, o mundo das idéi- que o sujeito desenvolva com as demais pessoas as está dentro de nós e que, portanto, conhecer é um tipo de vínculo no qual reconheça que o outro reconhecer aquilo que já preexistia no sujeito e que não é um mero espelho seu, que é autônomo e tem este pensava que estava fora dele. idéias, valores e condutas diferentes das dele, que Voltando ao ponto de vista da ciência psicana- há diferença de sexo, geração e capacidades entre lítica, esta mesma concepção está retratada nesta eles, sendo que essa condição de aceitação das dife- observação de Money-Kyrle (1968), um importan- renças somente será atingida se ele ingressar te seguidor das idéias de Bion, além de haver for- exitosamente na posição depressiva, conforme a mulado importantes considerações acerca dos pro- concepção de M. Klein. Um outro referencial teó- cessos de desenvolvimento cognitivo e das “mis- rico perfeitamente válido para a compreensão des- conceptions”: “adquirir conhecimento consiste não ta modalidade de vínculo é a que está consubstan- tanto em em ser consciente das experiências sen- ciada nas idéias de M. Mahler e colaboradores sório-emocionais, mas sim em reconhecer o que (1975) sobre os processos de diferenciação, sepa- elas são” (o grifo é meu). Aqui, parece-me, o ver- ração e individuação. bo “reconhecer” adquire o sentido de “ressigni- ficar”. Da mesma forma, penso que a conceituação de Ser Reconhecido aos Outros Bollas referente ao conhecido não pensado (1987, p. 227) também alude à necessidade de o analisan- Este aspecto da vincularidade afetiva do sujei- do voltar a conhecer aquilo que está reprimido ou to diz respeito ao desenvolvimento de sua capaci- negado de alguma outra maneira e que o sujeito dade de consideração e de gratidão em relação ao não está conseguindo pensar. outro. Também a aquisição dessa condição mental É incontestável a importância desse tipo de vín- está diretamente ligada à passagem da posição es- culo que diz respeito ao reconhecimento, o qual quizoparanóide para a posição depressiva, assim até permitiria um instigante estudo sobre as reper- substituindo as excessivas dissociações e identifi- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 167 cações projetivas por processos introjetivos estru- dos primeiros movimentos que vinculam o recém- turantes, com objetos totais no lugar de parciais, nascido com a mãe, e vice-versa. ao mesmo tempo em que o sujeito vai assumir o Assim, pesquisas modernas estão indicando, seu quinhão de responsabilidades e eventuais cul- cada vez mais decisivamente, que algum tipo de pas, de modo a transformar a onipotência, a onis- vínculo já está claramente estabelecido durante a ciência e a prepotência, respectivamente, em uma intra-uterina vida fetal, sendo que alguns autores, capacidade para pensar e simbolizar as experiên- como Bion, especulam que a vida psíquica rela- cias emocionais, um aprendizado com as experi- cional já esteja presente desde o estado embrioná- ências da vida e a assunção de sua dependência e rio. fragilidade. De acordo com a proposta do presente traba- A propósito disto, A. M. Rezende (1995, p. 38), lho, esta quarta modalidade do vínculo do reco- baseado em Heidegger, faz uma interessante e muito nhecimento merecerá uma abordagem mais detida esclarecedora correlação entre os termos originais e enfatizada, a partir de um embasamento nas con- de Denken (pensar) e Danken (agradecer). cepções de distintos e importantes autores psica- nalíticos. Começo por Freud que, em algumas passagens Ser Reconhecido (pelos Outros) ao longo de sua imensa obra, direta ou indireta- mente aludia à importância de reconhecer e ser “Para existir, a estrela depende do olhar dos outros.” reconhecido por intermédio dos outros, tal como é possível constatar já no “Projeto...”, em um trecho Justifico a importância que estou atribuindo a extraído do subtítulo 17, da primeira parte, Memó- esse tipo de vínculo com um argumento muito sim- ria e juízo. Aí, ao referir-se ao estabelecimento do ples: todo ser humano está inevitavelmente vincu- juízo, Freud assim nos fala do que ele denominou lado a objetos, quer no plano intra, inter ou transpes- Complexo do Semelhante: “(...) Daí, que seja em soal, e ele necessita vitalmente do reconhecimento seus semelhantes, donde o ser humano aprende dessas pessoas para a manutenção de sua auto-es- pela primeira vez a re-conhecer-se”(o hífen é de tima, sendo que não é possível conceber qualquer Freud). Portanto, no complexo de semelhante, o relação humana em que não esteja presente a ne- outro sujeito aparece como aquele que permite ao cessidade de algum tipo de um mútuo reconheci- ego incipiente estabelecer um confronto e, por seus mento, salvo nos casos de profunda patologia. Pelo próprios movimentos, ele busca seus pontos de vin- contrário, as configurações psicopatológicas habi- culação, suas semelhanças e diferenças. Aliás, tuais servem para confirmar que os transtornos da igualmente coube a Freud destacar o fato de que a auto-estima, do senso de identidade e o da relação identificação primária constitui-se como a forma com a realidade exterior formam-se como uma de- mais primitiva do enlace afetivo com outra pessoa, corrência direta da falência desse tipo de necessi- e como sendo o primeiro vínculo estruturante e dade do sujeito em ser reconhecido, ou então, estruturado do indivíduo com os seus semelhantes. como uma compensação contra isso. Nos últimos De forma análoga, Bion postula que o homem é casos, em que esse tipo de vínculo está profunda- um animal político porque não pode realizar-se mente afetado, ou negado, proponho a sinaliza- plenamente fora de um grupo, nem, tampouco, ção de “- R” como uma tentativa de conectar com satisfazer qualquer impulso emocional sem que o “- K”, de Bion. componente social deste impulso se expresse. To- É relevante destacar que até mesmo qualquer dos os impulsos são também narcisísticos e o pro- pensamento, conhecimento ou sentimento reque- blema é a resolução do conflito entre o narcisismo rem ser reconhecidos pelos outros (como resulta e o socialismo. Pode-se depreender, portanto, que claro na interação mãe-bebê) para adquirir uma para Bion, o grupo, com a suas funções de espelha- existência, ou seja, passar do plano intrapessoal mento e de reconhecimento dos outros, é essencial para o interpessoal, e vice-versa. para o desenvolvimento psíquico do ser humano. Portanto, a importância mais significativa do Por outro lado, é indispensável mencionar M. termo reconhecimento alude a uma necessidade Mahler e colaboradores (1975), que estudaram com crucial de todo ser humano, em qualquer idade, profundidade as fases de indiferenciação (autismo circunstância, cultura, época ou geografia, em sen- e simbiose) do bebê em relação à sua mãe e ao tir-se reconhecido e valorizado pelos demais e que meio ambiente, e eles também investigaram e des- ele realmente existe como individualidade. Por essa creveram as progressivas subfases da Diferencia- razão, vale a pena traçar uma breve recapitulação 168 DAVID E. ZIMERMAN

ção, que conduzem a criança à conquista de uma aspectos representam na prática analítica vincular separação, individuação e constância objetal. interacional. Desta forma, parafraseando M. Klein Pode ocorrer uma falha materna no reconheci- acerca do seio bom e do seio mau, creio ser justifi- mento do intento separatório da criança, como cado propor a concepção do olhar bom e do olhar acontece com mães que apressam a separação (pró- mau da mãe. A criança olha para ver como está prio daquelas que são excessivamente narcisistas e sendo vista pela mãe, e isso nos remete a uma ou- que se exibem na vitrine da “precocidade do seu tra conhecida frase de Winnicott: ocultar-se é um filho”), ou com aquelas que retardam a separação- prazer, porém não ser encontrado é uma catástro- individuação (como acontece com as mães que são fe, sendo que este aspecto denota a necessidade da exageradamente simbiotizantes, obsessivas). criatura humana em ser reconhecido e o terror de Nos casos em que houver uma predominância que isso não aconteça. simbiótica do vínculo mãe-filho, a identidade da Também as concepções de Kohut (1971) enfa- criança não se forma porque a representação que a tizam o quanto é necessário para a estruturação do sua mãe tem dela não parte de um reconhecimento psiquismo da criança que os pais aceitem e transi- de que o filho seja um ente separado dela, pelo toriamente incentivem a instalação de um self gran- contrário, é como se ele fosse uma parte ou uma dioso na mente do filho, através de sucessivas ma- extensão narcísica dela, mãe. nifestações de um reconhecimento elogioso pelas Da mesma forma, se utilizarmos o referencial aquisições de capacidades e de criatividade por de Winnicott, pode-se perceber o vínculo do reco- parte da criança. nhecimento em alguns dos atributos essenciais da As contribuições de Lacan (1977), por sua vez, mãe (ou, de forma análoga, do psicanalista), que deixaram mais claro o entendimento de que, em ele destacou como sendo os mínimos necessários condições normais, a criancinha tem uma necessi- para que a criança sinta-se reconhecida como, de dade absoluta e imprescindível da presença de uma fato, existindo e sendo alguém. Dentre esses inú- outra pessoa (mãe) para conseguir a unidade e a meros atributos, vale destacar particularmente, aqui, síntese da sua imagem corporal, da sua identidade. “o papel de espelho da mãe e da família no desen- Isto está de acordo com os conhecidos estudos ori- volvimento infantil” (título de um importante arti- ginais que Lacan descreveu como sendo “o está- go de D. Winnicott, que consta do livro O brincar gio do espelho”, pelo qual a imagem do próprio e a realidade, de 1971). corpo do lactente não é mais do que uma imagem Em relação a este último aspecto, vale lembrar antecipatória de uma integração de corpo unifica- a conhecida frase de Winnicott, tão poética quanto do que ainda não se formou. Portanto, o sujeito verdadeira: o primeiro espelho da criatura huma- identifica-se com algo que ele ainda não é, e crê na é a face da mãe, o seu sorriso, o seu tom de realmente ser aquilo que o espelho (o olhar, o dis- voz... Igualmente, cabe mencionar esta outra frase curso, o desejo e o corpo da mãe) refletir-lhe como dele que guarda um sentido análogo à anterior: olho sendo. Ou seja, nesse estágio, o sujeito reconhece e sou visto, logo, existo! E posso, agora, permitir- o seu self no outro e por meio do outro, como se me olhar e ver. ele pensasse assim:” por meio deste Outro, eu sei o Aliás, esse “olhar reconhecedor” da mãe tam- que, e quem sou, e como e quem eu devo vir a ser”. bém está presente, de forma indireta, em quase toda Em resumo, pode-se dizer com esta fundamenta- a obra de Bion e encontra um respaldo em outros ção teórica que os primeiros vínculos da criança importantes autores contemporâneos, que compa- com o mundo formam-se a partir dos laços afetivos ram o vínculo que se estabelece entre o tipo de re- ligados ao lugar que a criança veio a ocupar na cíprocos olhares da mãe para o bebê, e vice-versa, estrutura familiar, bem como se no desempenho dos com o vínculo que sucede na relação boca-seio, seus papéis ela será reconhecida, ou não, pelos sendo que ambas as situações encerram as mesmas outros que habitam fora ou dentro dela. fantasias, ansiedades e mecanismos (des)estrutu- rantes. Voltando a Winnicott, é ele quem nos lembra O VÍNCULO DO RECONHECIMENTO NA que muitos bebês têm uma longa experiência de SITUAÇÃO PSICANALÍTICA não receber de volta o que estão dando, e que não há experiência mais penosa e terrível do que a de Guardando as devidas diferenças óbvias, pode- ver e não ser visto, de não ser refletido no espelho se afirmar que todas as considerações feitas em embaçado, distorcionador ou opaco, da mãe. É fá- relação ao vínculo do reconhecimento do bebê em cil deduzir a extraordinária importância que tais interação com a mãe, e da criança em relação com FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 169 o seu meio ambiente, também são perfeitamente ciente ser reconhecido pelo analista (e vice-versa). válidas para a inter-relação vincular analista-anali- Seguem algumas delas. sando. Concordo com A. Green (1988) que chamou a atenção para o fato de que na expressão “relação Ansiedade de Separação objetal”, a palavra “relação” é a mais importante, ou seja, no estudo das inter-relações pessoais, os A tão conhecida e freqüente angústia de sepa- vínculos são mais importantes do que as pessoas ração também pode, em parte, ser encarada sob o separadamente, de tal modo que, na atualidade, con- prisma que estamos abordando acerca da normali- sidera-se que as propriedades não estão tanto nas dade e da patologia da necessidade de todo indiví- pessoas (paciente e analista, por exemplo), mas sim, duo de haver sido, ou não, reconhecido em seus entre as pessoas e no intercâmbio entre elas. Isto vínculos primitivos. Vimos como na original rela- confirma a tendência atual de considerar que, na ção mãe-filho, forma-se um natural vínculo espe- relação analítica, o analista é, ao mesmo tempo, cular, durante o qual, por meio do olhar reconhe- participante e criador do conhecimento, do clima cedor, ambos são, reciprocamente, um a imagem emocional e do que se passa entre ele e o paciente. do outro, cada um o desejo do outro, sempre confi- Nesse espaço formado entre os dois, uma grande gurando a díade desejante-desejado. Nesse momen- dimensão é ocupada pela ânsia por parte de am- to, em que esse narcisismo é essencial e estrutu- bos, ainda que de forma assimétrica, de serem re- rante, não ser visto – e, portanto, não ser reconhe- ciprocamente reconhecidos em suas necessidades, cido – é o mesmo que não existir. Assim, a perda desejos ou demandas. do olhar materno é representada intrapsiquicamente Assim, cabe ao psicanalista a delicada tarefa como sendo, de fato, uma ameaçadora separação, de reconhecer e suplementar as eventuais falhas com as respectivas angústias de aniquilamento, de que, desde criancinha, o paciente teve em uma ân- perda de amor ou de castração. A representação sia por sentir-se acolhido, contido, compreendido dessa modalidade de angústia costuma ficar e, especialmente, em ser reconhecido nas suas ma- deslocada para outras pessoas ou coisas, de manei- nifestações de ilusão onipotente, de amor e de ra que se constituem muitas metáforas que drama- agressividade, que são inerentes aos processos de tizam a ausência do olhar da mãe, como são as que diferenciação, separação e individuação. ocorrem em situações de escuridão, solidão, afas- No contexto acima, não é demais reiterear que, tamento, presença de estranhos, etc. devido à condição de desamparo neotênico pró- Na situação psicanalítica, sobremaneira nos prio do ser humano, desde recém-nata a criança casos em que não estiver suficientemente desen- necessita simbiotizar-se com um outro significati- volvido o núcleo básico de confiança – ou a “ca- vo para poder utilizar os recursos egóicos deste pacidade para ficar só”, se utilizarmos a termino- último como se fossem os seus próprios e, por con- logia de Winnicott –, a perda do olhar materno re- seguinte, é-lhe vital que esse outro intua e reco- produz-se quando o paciente projeta maciçamente nheça aquilo que lhe falta. Portanto, especialmen- no analista esta mãe sem olhar reconhecedor, ou te com pacientes muito regressivos, o terapeuta – quando o analista mal olha para o paciente, ou olha tal como os pais, no passado – deve emprestar o mas não o vê... As manifestações clínicas mais co- seu ego, durante algum tempo, sob a forma de uma muns aparecem como fobia ao uso do divã, um fre- moratória, não só como um necessário continente, qüente e recorrente sentimento de solidão, uma como antes foi ressaltado, mas também revelando absoluta intolerância aos silêncios do analista, o e modelando funções (como a da capacidade para medo de separação e abandono, etc. pensar, o conhecimento e o enfrentamento das ver- dades, discriminação, etc., etc.), que o paciente, por si próprio, não consegue executar. No entanto, a condição necessária mínima para que o analista Organização Narcisista possa preencher esses vazios de existência e de atrofia de funções egóicas do paciente é a de que, Em condições normais, a criança reconhece a antes de mais nada, ele possa reconhecê-las empa- presença e a necessidade do “outro”, de modo a ticamente, isto é, que o paciente sinta que, de fato, constituir o seu mundo desde esse outro, o qual está sendo visto e reconhecido. será constitutivo e fundante do seu self. Em caso São inúmeras as repercussões na prática analí- contrário, como acontece nos transtornos narcisis- tica de vínculo que alude à necessidade de o pa- tas, o indivíduo tanto pode apresentar uma deman- da excessiva em obter o reconhecimento dos ou- 170 DAVID E. ZIMERMAN tros, como ele pode negar e fugir dessa vital neces- pacientes ou fogem de um vínculo de dependência sidade, refugiando-se em sua própria subjetivida- afetiva por meio de uma auto-suficiência onipo- de, muitas vezes em um estado de isolamento, soli- tente, ou diante de frustrações, como as separações, dão, encastelado em uma autarquia narcísica e em por exemplo, eles costumam projetar-se maciça- uma constante declaração de guerra aos demais. mente no analista, como uma tentativa de restabe- Nesses casos, resultará que tal sujeito, por não to- lecer a fantasia de estar fundindo com ele. Esta úl- lerar que o outro (como o analista, na situação ana- tima possibilidade apresenta-se comumente mas- lítica) seja autônomo e diferente dele, estará sem- carada por uma configuração de aparência edípica. pre fazendo a redução de tudo que for novo, ou Aliás, um bom exemplo de configuração narci- diferente, ao idêntico, e, da mesma forma, ele cre- sística camuflada por uma aparência edípica é a ditará ao seu próprio self tudo o que é de um outro, situação de uma “pseudogenitalidade” (capítulo de quem ele não tem a posse absoluta. Não custa 37), tal como ela aparece manifestamente nos ca- repetir que, no fundo, este paciente está em busca sos de don juanismo ou de ninfomanias. Em tais de alguém que lhe reconheça a fragilidade subja- condições, esses indivíduos unicamente “amam” cente e, da mesma forma, como alguém que é dig- aqueles que os fazem sentir-se amados, ou seja, a no de ser amado, tal como realmente ele é, e não intensa atividade aparentemente genital, que exige como ele próprio (ego ideal), ou os outros (ideal uma contínua e ininterrupta troca de parceiros, obe- do ego), querem que ele seja. dece a uma irrefreável e vital necessidade primiti- Um outro aspecto relevante na organização va de serem reconhecidos como capazes de serem narcisística da personalidade, é que, no afã de ob- amados e desejados. tenção de reconhecimento por parte dos outros, tais indivíduos deslocam essa necessidade que basica- mente nunca foi satisfeita para a construção de fe- Organização Edípica tiches. Assim, eles atribuem uma importância ex- traordinária à eleição de fetiches – que, magica- É fundamental que os pais reconheçam não só mente, criam a ilusão de que o “parecer” fica sen- o filho como alguém relativamente separado de- do como “de fato é” – como mais notoriamente les, e individualizado, mas que também eles reco- são a exaltação da beleza, prestígio, riqueza, poder nheçam a criança como diferenciado da própria e demais recursos de um falso self que arranque história narcísica e edípica deles próprios, o que, é admiração e inveja dos demais. Comumente, são claro, nunca será de forma total, devido ao inevitá- pessoas que utilizam a maior parte de sua conver- vel atavismo inconsciente que os pais carregam. sação tanto para criticar aos outros como para van- Assim, a maneira como a criança irá se organi- gloriar-se (“uma vã-glória”). zar edipicamente vai depender bastante de como Da mesma forma, pode acontecer que, por ve- os pais reconheceram o sexo biológico do filho e, zes, é tão intensa a necessidade da criança – ou a por conseguinte, qual a expectativa e o procedi- do analisando adulto ancorado na posição narci- mento deles em relação ao gênero sexual a ser de- sista – em ser reconhecido como alguém muito es- senvolvido. Isto não é difícil de perceber em mui- pecial, que pode ocorrer que ele não consiga com- tos pacientes que mostram uma certa “intuição” do preender os outros, nem ser entendido pelos ou- que significou para os seus pais o fato de eles te- tros, ou fazer como os outros. Isto seria nivelar-se rem nascido menino ou menina. Muitos casos de aos demais, o que ele não suporta, e a conseqüên- bissexualidade (portanto, narcisística) resultaram cia pode resultar em uma busca na transgressão como uma tentativa de solução para o dilema de dos costumes habituais da família e sociedade, in- como enfrentar o rechaço dos pais, por terem nas- clusive, os sexuais. cido de sexo trocado em relação à expectativa de- Em resumo, o reconhecimento do outro (ana- les. lista) como fonte de vida, de amor, de verdade e de Este aspecto transgeracional (de, no mínimo, segurança representa, para muitos pacientes, um três gerações) influi decisivamente na configura- sentimento catastrófico diante da possibilidade de ção edípica dos indivíduos, e tem muito a ver, por- depender do analista e vir a ser frustrado em seus tanto, com os valores e expectativas do grupo fa- anseios. Trata-se, pois, de pacientes que erigiram miliar e da cultura vigente do grupo social no qual uma organização narcisista, a qual consiste em uma se está inserido. fantasia de um mundo imaginário de objetos oni- potentes, que estariam sempre presentes e disponí- veis para satisfazer as suas demandas. Por isso, tais FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 171

O Vínculo com Grupos do”, quando, na verdade, pode estar representando um sadio movimento em direção a uma libertação A indiferenciação, ou seja, o não-reconheci- e definição do seu senso de identidade. mento das diferenças, pode manifestar-se em situa- ções muito diversas, como é o caso de uma paixão extremada, o caso dos vínculos simbióticos fu- Falso self sionais, assim como também nas situações grupais, nas quais o grupo prevalece sobre o indivíduo, tal Uma outra possibilidade de o indivíduo conse- como acontece em seitas fanáticas que acreditam guir o reconhecimento do seu meio familiar e so- que o líder carismático irá brindá-los com o “senti- cial é por meio do recurso inconsciente de, desde mento oceânico”. Aliás, é especialmente importante criança, adaptar-se às expectativas que os demais o aspecto do vínculo do reconhecimento em rela- valorizam e impõem como condição para a aceita- ção à inserção social do indivíduo nos mais diver- ção, admiração e amor. Este processo institui a for- sos lugares, como, por exemplo, a família, a esco- mação de um “falso self” – para usar um termo de la, o clube, as instituições, etc. Aquilo que, de fato, Winnicott, que estudou o assunto de forma profun- todo sujeito espera de seus grupos sociais é o reco- da – o qual pode apresentar com distintas configu- nhecimento, por parte dos demais, de quem espe- rações, sendo que o grau máximo de falsificação ram demonstrações que confirmem a sua legítima da personalidade está presente nos indivíduos im- “pertencência” e a aceitação de seu pleno direito a postores. É útil lembrar que nem sempre o falso compartir o mesmo espaço e valores comuns a to- self é construído como uma forma de aparentar as- dos. pectos considerados positivos. Muitas vezes, no afã A afirmativa acima pode ser facilmente perce- de ser reconhecido pelo grupo social – extensão bida na formação espontânea dos grupos adoles- do seu grupo familiar internalizado como opositor centes. Assim, muitas vezes, o adolescente, com ao seu sucesso – o indivíduo pode funcionar com um pé na sua condição de ainda ser criança e com um “falso self negativo”, aparentando mazelas e o outro na de quase um adulto, para ser reconheci- desvalia encobridoras de reais valores positivos. do com a nova identidade de uma pessoa adulta Também é comum acontecer que, desde crian- emancipada dos pais, apela para uma união com cinha, o indivíduo tenha passado por sucessivas ex- outros iguais, compondo a formação de grupos (às periências de não ser reconhecido em suas caracte- vezes, gangues) como uma forma de fazer-se ouvir rísticas de pessoa muito sensível, devido ao espelho melhor e com mais força de determinação. deformador da mãe. Trata-se, na maioria das vezes, A ânsia pelo reconhecimento de sua identidade de mães depressivas e que, encobertas por uma pseu- adulta é tamanha que o adolescente faz de tudo para do proteção, tenham devolvido ao filho um discurso mostrar-se diferente das pessoas do seu meio habi- na base de “não vale a pena sentir entusiasmo ou tual, o familiar e o social. Assim, é bastante co- amor, não vale a pena sofrer, chorar é uma vergo- mum que o adolescente transgrida os hábitos e va- nha”... Cria-se um excelente caldo de cultura para a lores dos seus pais, pelo uso de roupas bizarras, formação de um falso self que, em casos mais extre- penteados esquisitos, costumes algo anti-sociais, mos, atinge um total bloqueio dos prazeres e lazeres exercício do uso de drogas, discurso contestador e inerentes às pulsões da vida. desafiador, etc. Tudo isto constitui um movimento de hipérbole (um termo de Bion), ou seja, uma for- ma exagerada de manifestar-se, a qual funciona Setting como um recurso barulhento para ser visto (é dife- rente de “olhado”), escutado (é diferente de sim- Na situação psicanalítica, a necessária garantia plesmente ser “ouvido”) e reconhecido como al- do setting instituído, tanto o externo (constância de guém com identidade própria que, para tanto, essa lugar, horário, regras, limites, etc.), como o “setting precisa ser diferente da dos pais. interno” do analista (a sua autêntica atitude psicana- Vale a pena insistir na importância destes fatos, lítica interna), permite que o paciente, especialmen- porquanto o adolescente com esta conduta rebelde te o regressivo, sinta um progressivo reconhecimen- (ou um paciente cronologicamente adulto com fi- to de muitos aspectos mal-resolvidos nele. Assim, xação de sua adolescência mal resolvida), embora por meio de um sagrado respeito ao seu espaço e tem- esteja na fronteira da agressão contra ele próprio, a po – propiciado pelas combinações do setting –, o família e as leis, pode ser confundido pelos educa- analisando vai reconhecendo o seu território, os seus dores como sendo um psicopata, um “caso perdi- direitos e limitações em relação ao mesmo e, sobre- 172 DAVID E. ZIMERMAN tudo, vai desenvolvendo um sentimento de Explico melhor: depois de algum tempo, o narci- pertencência. Além disso, por meio das funções de sista não se olha mais tanto no espelho material, “holding” (acolhendo, sustentando e contendo as mas, sim, no espelho representado pelo reconheci- angústias), de “handling” (um adequado manejo mento do outro, o qual lhe deve devolver uma ima- técnico) e de “backing” (uma viagem de retorno aos gem que confirme aquela idealizada que o narci- vazios existenciais para suplementá-los), o paciente sista tem de si próprio. Pode acontecer que o outro vai sentindo-se reconhecido nos seus intentos de (o psicanalista na situação analítica) reconheça-se diferenciação, separação, individuação, integração com admiração, porém, se a óptica do admirador e, portanto, na construção de sua auto-estima e de não for aquela esperada pelo ego ideal do anali- sua verdadeira identidade. sando, sobrevém a fúria narcisística. Também é útil consignar que uma das formas que algum analisando pode utilizar para não reco- Resistência e Transferência nhecer que o analista é diferente dele consiste em provocar nele uma reação contratransferencial, tipo Enquanto houver a predominância da indi- estado mental de briga, polêmica, contra-atuação, ferenciação (- R) e da indiscriminação, próprias da sadomasoquismo, etc. nos mesmos moldes que ele, configuração narcisista, vai resultar que o paciente paciente, costuma ter, e isso os tornaria iguais. concebe o espaço psíquico como único, isto é, esse espaço será todo dele, ou do seu psicanalista que, imagina esse paciente, invadirá a sua mente e to- Interpretação-insight mará conta de todo o espaço. Por conseguinte, sur- gem resistências tenazes, as quais deverão ser en- Guardo uma absoluta convicção de que o con- tendidas pelo terapeuta como sendo uma forma de teúdo da atividade interpretativa, por mais correta luta desesperada do paciente para manter a sua so- que seja, somente será eficaz se ela vier acompa- brevivência psíquica, isto é, ele luta contra o risco nhada de uma adequada e autêntica “atitude inter- de ficar engolfado e perdido no outro. Assim, obe- na” por parte do analista. Da mesma forma, acredi- decendo a um movimento defensivo-ofensivo, esse to firmemente que uma maior atenção por parte do paciente antecipa-se e, como forma de resistência, terapeuta nos aspectos vinculares relativos à ne- ele tenta invadir e ocupar a mente do analista. Caso cessidade de reconhecimento favorece bastante a este não tenha uma compreensão clara disto tudo, sua atitude de compreensão, de disponibilidade e haverá uma alta possibilidade do risco de o analis- de sintonia afetiva com o paciente. ta vir a, patologicamente, contratransferir, contra- Como vimos, ao abordar a estruturação do resistir ou contra-atuar. psiquismo da criança, se não houver resposta do Da mesma forma, uma possibilidade de trans- olhar-espelho reconhecedor da mãe, pode resultar ferência dessa modalidade de luta narcisística é a um vazio informe, um nada. Isto tem importância de que esse tipo de paciente não costuma abando- na prática clínica, tendo em vista que são pacientes nar a análise, embora despreze-a continuamente, que apresentam formas que aparentemente nada porque, no fundo, ele se reconhece como muito frá- dizem, porém, que dizem muito acerca do seu gil e dependente. Para atacar o vínculo da percep- “nada”. ção dessa dependência penosa, o narcisista neces- Na prática analítica, especialmente com pa- sita de uma permanente auto-reafirmação de que cientes que não conseguiram ser reconhecidos pe- ele é, de fato, auto-suficiente e, por isso, pelo con- los pais como sendo uma pessoa emancipada e di- trário, ele constrói a tese de que o analista é que ferente deles, é importante que o analista leve o precisa dele. Assim, esse paciente não reconhece o analisando a questionar-se: “O que eu representa- terapeuta como pessoa autônoma, diferente e se- va para os meus pais? O que eles esperavam de parada dele, compondo, então, um curioso parado- mim? O que e quem eles queriam que eu viesse a xo: ele necessita da análise e do analista para pro- ser? O meu analista é uma repetição deles ou é uma var que não necessita deles. pessoa que permite transformações no meu modo Um aspecto transferencial muito importante que verdadeiro de ser?”, e assim por diante. pode ser melhor compreendido à luz do vínculo do É óbvio que as reflexões acerca do vínculo do reconhecimento diz respeito ao fato de que os pa- reconhecimento na prática psicanalítica não se es- cientes fortemente fixados na posição narcisista gotam nas situações exemplificadas neste trabalho, demonstram uma grande necessidade de mirarem- e, quero crer, que uma detida atenção em nosso se no analista como um objeto-espelho aprovador. trabalho analítico diuturno, com qualquer analisan- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 173 do, permitirá reconhecer inúmeras outras facetas gurança básica, um prazer pela vida, uma pulsão que esse vínculo primário possibilita observar e tra- para o conhecer e um reconhecimento de que ela é balhar no campo analítico, quer na pessoa do paci- útil, capaz e valorizada. ente, do psicanalista e, naturalmente, entre ambos. Tudo isso, que também vale igualmente para a Em resumo, e à guisa de conclusão, vale repe- situação psicanalítica, apenas confirma o que o sá- tir o que Winnicott (1971) afirmou ao referir-se ao bio Beckeley, já preconizava em 1710: “Esse est fato de que é unicamente nas condições nas quais percipi”, ou seja: Ser é ser percebido. uma criança é refletida pelos olhos amorosos da mãe que se torna possível a construção de uma se-

CAPÍTULO Tal modelo permitiu que ele estabelecesse uma teo- ria puramente psicológica, assim abandonando aquele baseado na neurofisiologia que até então ele mantinha, e representou o primeiro esboço para conceber uma primeira teoria do aparelho mental 15 – a teoria tópica –, onde os “topos” (lugares) eram ocupados pelas instâncias do inconsiente, pré-cons- ciente e consciente. 5) O fenômeno do sonho sen- do concebido como paradigma de um funcionamen- to normal da mente e, ao mesmo tempo, como ex- Sonhos: Formação e Funções pressão psicopatológica, facilitou a concepção de que no aparelho psíquico não existia uma plena delimitação entre o normal e o patológico. 6) Igual- mente, o estudo dos sonhos permitiu que Freud es- FREUD tabelecesse uma integração entre experiências re- centes (restos diurnos) e as antigas (que constitu- Até antes das descobertas de Freud, a busca de em o conteúdo latente do sonho). 7) Da mesma entendimentos dos sonhos, que desde sempre acom- forma, propiciou a Freud as primeiras descrições panham os seres humanos, estava entregue aos acerca do Édipo e da sexualidade infantil. 8) As- demiurgos e charlatães em geral que procuravam sim, pelo estudo dos sonhos e dos sintomas mani- extrair anúncios proféticos, premonitórios, - festados pelas suas pacientes histéricas, Freud es- gens de espíritos ou interpretações fantásticas. Da tabeleceu uma equivalência entre a estrutura dos mesma forma, na época em que a ciência começa- sonhos e a das neuroses, o que lhe possibilitou con- va a dar os seus passos mais firmes, coube aos filó- ceber e formular a sua clássica postulação de que o sofos e a alguns médicos neuropsiquiatras tenta- sonho é a via régia para chegar ao inconsciente. rem desvendar os mistérios e enigmas contidos no 9) O sonho implica, portanto, uma “interpretação”, ato de dormir e de sonhar, mas não conseguiram e foi por decorrência da descoberta do papel do passar do plano das especulações, além de também, sonho que, além dos avanços teóricos, Freud colo- insistirem na tecla de emprestarem a cada fragmento cou a atividade interpretativa como eixo de gravi- simbólico, de qualquer sonho, um determinado sig- tação da técnica da psicanálise. nificado específico, o qual valeria para todas pes- Realmente, desde que essas concepções foram soas. formuladas, os sonhos somente adquirem sentido, A partir de Freud, mais exatamente em 1900, psicanaliticamente falando, se estiverem conecta- com a elaboração e publicação do seu mais famo- dos com o que se passa no inconsciente do sonha- so livro – A interpretação dos sonhos –, os sonhos dor. Pela importância que o entendimento dos so- não só ganharam uma nova dimensão científica, nhos representa para a história e para a atualidade como também o aprofundamento de seu estudo da psicanálise, cabe recordar os pioneiros princí- abriu as portas para a consolidação da teoria da pios fundamentais estabelecidos por Freud há um psicanálise. Esse trabalho, no qual Freud traz uma século, tanto do ponto de vista dos processos de abundância de sonhos pessoais, representa um sua formação, quanto também das suas funções. marco essencial na história da psicanálise pelas seguintes razões: 1) Representa a primeira análise (auto-análise) levada a efeito, sendo que a maior Formação do Sonho motivação para esse ato corajoso de Freud foi a sua necessidade de elaborar os seus sentimentos Para Freud, são três os fatores indispensáveis despertados pela morte de seu pai (como ele pró- para que se processe um sonho: 1) Estímulos sen- prio afirma no prólogo da segunda edição, em soriais (internos ou externos, como ruídos, odo- 1908). 2) Possibilitou a Freud construir um mode- res, luz, vontade de urinar, etc.), os quais são con- lo do aparelho psíquico, tal como aparece no capí- siderados como não tendo uma significativa influ- tulo VII desse seu livro. 3) Nesse referido capítu- ência na gênese dos sonhos. 2) Restos diurnos (pro- lo, Freud formula o modelo de um aparelho óptico, vindos de significativos estímulos ambientais, como no qual um feixe luminoso pode sofrer transforma- pode ser algum acontecimento marcante, um filme ções, capaz de, tal como o sonho, manifestar-se de impactuante ou, principalmente, a mente do sujei- formas e com finalidades diferentes da original. 4) to impregnada de interesses e preocupações. 3) A 176 DAVID E. ZIMERMAN existência de sentimentos, pensamentos e desejos o simbolismo onírico corresponde aos sig- que estão reprimidos no inconsciente. nificados específicos de cada indivíduo e, Dando continuidade a esses fatores, Freud con- também, das suas respectivas repressões cebeu a participação de múltiplos fenômenos psí- (assim, aquela hipotética “serpente” do so- quicos que concorrem para a formação dos sonhos, nho pode, para alguns, de fato, representar como são os seguintes: um pênis, enquanto para outros pode sig- 1. Conteúdo manifesto do sonho. Designa o nificar uma pessoa má, pérfida, traiçoeira, que aparece no consciente daquele que so- qual uma cobra venenosa, e assim por di- nhou, quase sempre sob a forma de ima- ante). gens visuais, que ele pode ou não recordar 6. Linguagem do processo primário. Na ela- depois de despertar. boração onírica, dá-se a passagem do con- 2. Elaboração onírica secundária (também teúdo latente para um conteúdo manifesto, conhecida como “atividade do sonho”). o qual, por ser formado pelos recursos Consiste numa atividade do ego, durante o mágicos da condensação, deslocamento e sono, que se encarrega de disfarçar e dissi- símbolos deformadores, expressa-se por mular aquilo que está reprimido no incons- uma linguagem típica do processo primá- ciente e que está “proibido” de aparecer no rio do pensamento e com uma confusão consciente em estado “bruto”. entre os elos de conexão dos elementos do 3. Conteúdo latente do sonho. Corresponde sonho, embora manifestamente ele possa ao conjunto de – ocultos – desejos, pensa- aparentar uma fachada com muita coerên- mentos, sentimentos, representações, an- cia e lógica. Nesses casos, diz Freud, os gústias que estão represados no incons- disfarces e as distorções podem ser de tal ciente e que somente terão acesso ao pré- monta que os aspectos que representam o consciente e ao consciente após o disfar- conteúdo latente da satisfação de desejos çamento realizado pela, acima aludida, ela- ficam completamente irreconhecíveis. boração secundária. 7. Formação de compromisso. Da mesma for- 4. Censor onírico. Freud comparou essa par- ma como ocorre na formação de um sinto- te onírica do ego inconsciente ao de um ma neurótico, Freud (1933) concebeu que “censor de notícias com amplos poderes também o sonho resulta de uma “formação para suprimir qualquer trecho que ele jul- de compromisso” entre as pulsões do id e gar incoveniente”. as defesas do ego que permitem somente 5. Mecanismos defensivos do ego. Conden- uma gratificação parcial e tolerável daque- sação (o trabalho do sonho tem sempre por las pulsões. finalidade formar uma imagem única que represente simultaneamente todos os com- ponentes do conteúdo latente, o que pode Função do Sonho, Segundo Freud ser feito por omissões, fusão, neologismos, etc.); deslocamento (refere que há um des- Até o final de sua obra Freud, sustentou o seu locamento de significados ao longo de uma aforismo de que a função única do sonho consiste cadeia associativa, pelo “deslizamento” de (por meio de uma “negociação” com o ego) em um significante para outros, à maneira do uma forma disfarçada de uma gratificação de de- que se passa em um jogo de bilhar) e sim- sejos (reprimidos). Em boa parte, ele inspirou-se nos sonhos simples das crianças da primeira infân- bolização. Neste último caso, durante muito cia que, de uma forma mais clara e menos distor- tempo Freud acreditou que haveria uma lin- cida, expressariam nos seus sonhos aqueles dese- guagem simbólica universal, de tal sorte jos que não haviam sido satisfeitos na véspera, que um mesmo símbolo teria o mesmo sig- como, por exemplo, que ela está numa confeitaria nificado para todos (por exemplo, o apare- comendo doces, etc. cimento de uma “serpente” em qualquer Partindo dessa concepção, Freud estabeleceu sonho seria sempre um símbolo fálico), uma conexão entre essa mencionada função do so- porém aos poucos ele foi considerando que nho com uma análoga função que exerce algum sin- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 177 toma neurótico – como a conversão ou dissocia- CONTRIBUIÇÕES POSTERIORES A FREUD ção histérica – ou algum fenômeno psicótico, tal como aparece nas relações que ele estabelece en- Críticas a Freud tre o sonho e o delírio no seu belo artigo Delírios e Sonhos na Gradiva de W. Jensen (1907). Conquanto Freud mantivesse a essência da sua Paralelamente, uma outra função primordial teoria sobre os sonhos até o fim de sua obra, im- exercida pelo sonho é aquela que foi sintetizada portantes autores que o sucederam conservaram por Freud com a sua clássica formulação de que o vários pontos de vista dele, porém também tece- sonho é o guardião do sono. Com outras palavras, ram inúmeras contestações críticas e propuseram mesmo diante de uma considerável diminuição das outras vertentes teórico-técnicas. As críticas mais defesas do ego (em boa parte porque o caminho comuns e freqüentes dizem respeito aos seguintes para a motilidade voluntária então está impossibi- aspectos: litado) e ainda com uma diminuição da vigilância consciente, o sujeito pode dormir sem maiores ris- • A função do sonho não pode ficar resumida cos de ser invadido pelos desejos proibidos que unicamente a uma forma de “realização de irrompem desde o inconsciente, devido ao fato de desejos”; também existem outras funções que o sonho permite uma certa gratificação dos como as de comunicação, integração, elabo- mesmos. Quando o sonho não consegue cumprir o ração de traumas, resolução de conflitos, etc. seu papel de guardião protetor do sono, pode acon- • A sentença de Freud – “sonho é o guardião tecer o mesmo fenômeno conhecido como terror noturno, que freqüentemente as crianças manifes- do sono” – seria uma verdade apenas par- tam (no adulto, corresponde, na linguagem psica- cial, porquanto também é verdadeira a recí- nalítica, aos sonhos de angústia, popularmente cha- proca, ou seja, é o sono que propicia o mados de “pesadelos”). surgimento da função de sonhar, que, indo Uma questão começou a preocupar Freud e seus muito além da realização de desejos repri- seguidores: onde estaria a realização de desejos nos midos, é essencial para a preservação do sonhos penosos? O próprio Freud, partindo da de- psiquismo (como comprovam recentes inves- cifração que ele fez dos “hieróglifos” contidos no tigações experimentais psicofisiológicas). conteúdo manifesto do seu famoso sonho da “inje- • É difícil entender por que Freud insistiu so- ção de Irma”, chegou à corajosa interpretação de mente no enfoque da gratificação dos dese- que o sofrimento expresso nas imagens desse so- jos libidinais e, assim, não revisou a sua teo- nho traduzia desejos inaceitáveis dele, como, por exemplo, o de uma vingança. Dessa forma, Freud ria dos sonhos a partir de uma concepção da aprofundou a sua convicção de que o desejo ina- dualidade das pulsões, apesar de que ele já ceitável está sempre presente no sonho, embora tivesse formulado de forma definitiva a sua irreconhecível devido a uma série de transforma- concepção da “pulsão de morte”. Como de- ções que ele sofre, como comumente é a possibili- corrência disso, ele tampouco valorizou, nos dade dele se manifestar pelo oposto. sonhos, a existência dos eternos conflitos Um exemplo disso: uma paciente que nutria um entre o amor e o ódio e, mais ainda, mesmo desejo sexual por um homem “proibido” trouxe à no enfoque dos aspectos libidinais, ele man- análise um sonho no qual ela está dançando com teve um nítida preferência por um falocen- ele (nesse caso a decifração é fácil), enquanto no trismo. sonho de uma outra analisanda com um desejo aná- • Em relação aos aspectos da técnica psicana- logo, a mesma aparecia mantendo uma encarniçada e odienta luta com um homem mal encarado que lítica acerca dos sonhos, as críticas a Freud ameaçava assaltá-la (transformação ao oposto); da relevam três pontos: um é o que refere a uma mesma forma, as manifestações simbólicas do con- valorização única do significado dos simbo- teúdo manifesto desse desejo poderiam ser bastan- lismos, sem que Freud tenha igualmente va- te mais complexas e difíceis de reconhecimento. lorizado as funções exercidas por algum so- nho específico; o segundo ponto alude a um exagero na investigação dos mínimos deta- lhes e na duração prolongada na análise de cada sonho separadamente; enquanto o ter- ceiro ponto, destacado por Segal (1981), 178 DAVID E. ZIMERMAN

consiste na crítica de que as interpretações Escola Kleiniana de Freud consideravam unicamente os aspec- tos narcisistas e unipessoias do paciente, e Para M. Klein, o sonho consiste em uma dra- ele não demonstrava interesse pelos aspec- matização de algum conflito, com as respectivas tos bipessoais e vinculares com o analista. fantasias inconscientes e angústias, do qual parti- cipariam todos os elementos componentes do self. Entre outros, os autores kleinianos que mais se apro- Contribuições da Psicofisiologia fundaram no estudo dos sonhos foram H. Segal e D. Meltzer, sendo que este último atacou duramente (e parece que de modo exagerado) as concepções Nos anos 50, apareceu o livro do pesquisador de Freud. Em um de seus últimos livros – Dream R. Fliess acerca da descoberta psicofisiológica dos Life (1984) – Meltzer concebe que o sonho traduz, movimentos oculares durante o sonhar, e das for- sobretudo, as representações simbólicas dos esta- mas de como aparecem os traçados eletroence- dos da mente de quem sonha, além de que a ativi- falográficos no curso de certas fases do sono, es- dade do inconsciente, geradora de símbolos, está pecialmente o período que passou a ser chamado presente indiretamente no dia-a-dia da vida de vi- de REM, o qual designa o fato de que o sono está gília, de modo a transparecer uma atividade per- sendo acompanhado por um movimento rápido dos manente que corresponde às fantasias inconscien- olhos (a sigla REM, em inglês, significa “rapid eyes tes. Ademais, discordando radicalmente de Freud, movements”). Essa fase é denominada de “para- Meltzer acredita que o sonho é um processo ativo, doxal” devido ao paradoxo de que é justamente que tem uma capacidade criativa e é um gerador quando o sono está sendo mais profundo que o rit- de símbolos. Em resumo, para Meltzer, Dream Life mo cerebral registrado no eletroencefalograma significa que o script do sonho é o mesmo da vida aproxima-se do estado de vigília, sendo que o mo- consciente, de modo que, na verdade, “a pessoa vimento rápido dos olhos aparenta como se a pes- vive nos sonhos”. soa adormecida seguisse uma cena com os olhos, ao mesmo tempo em que a via piramidal do movi- mento voluntário é inibida, com paralisia motora total. Como assinala P. Jeammet (1989), caso a Psicólogos do Ego pessoa adormecida seja despertada durante essa fase, ela é capaz, na maioria das vezes, de narrar o Os autores dessa corrente psicanalítica também sonho, contrariamente às outras fases do sono. Além se afastaram bastante de Freud (alguns deles, joco- disso, estudos experimentais mostram que a priva- samente, costumavam dizer que a “via régia” de ção eletiva dessa fase do sono (por meio do recur- Freud já estava gasta e algo inutilizada, de tanto so de forçar uma interrupção do sono justamente ter sido transitada) e enfocaram os sonhos do pon- quando aparece o movimento rápido dos olhos), to de vista da estrutura da mente. Por exemplo, o diferentemente do que acontece nas outras fases, caso em que certo paciente sonhou com um prédio provoca distúrbios importantes durante a vigília, onde homens e mulheres circulavam entre os três como um comportamento alucinatório no animal, andares, subindo e descendo, entrando e saindo, transtornos da personalidade, mudanças de caráter aquilo que provavelmente Freud interpretaria como e diminuição da eficiência no homem. símbolos expressando o desejo reprimido de rela- Tais descobertas causaram um grande entu- ções sexuais (“entrando e saindo...”), os psicólo- siasmo entre os pesquisadores da área e estabele- gos do ego privilegiaram o entendimento de que a ceram-se laboratórios, que prosseguem ativamen- movimentação entre os três andares do prédio es- te nos dias de hoje, para o estudo dos fenômenos tava traduzindo de como se processava o trânsito – que acompanham o dormir, o sonhar e a atividade adaptativo – entre as três estruturas da mente do onírica durante toda a noite. Um aspecto interes- paciente, as pulsões do id, as defesas do ego e as sante a ser consignado é o fato de que os fenôme- ameaças do superego. nos que ocorrem na fase REM, de modo genérico, estão confirmando as hipóteses de Freud. Winnicott

Para ficar em um único aspecto que relaciona a obra de Winnicott e seus seguidores com os so- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 179 nhos, cabe destacar a noção do “espaço-sonho”, ciente, o que, somado à concomitante dificuldade que corresponde ao “espaço transicional”, isto é, o de elaborar e simbolizar, vai impedir a formação espaço que existe no sonho pode representar uma de sonhos, a ponto de Bion afirmar que “os psicó- transição entre o mundo imaginário e o real, assim ticos não sonham” e que “nas psicoses e estados como também representa a possibilidade de pen- borderline os sonhos confundem-se com alucina- samentos e atos criativos. ções”. A afirmativa de que os psicóticos não so- nham costuma causar uma certa estranheza, por- quanto muitas vezes eles narram sonhos; Bion ex- Bion plica essa aparente contradição com o argumento de que, nesse caso, trata-se de um sonho meramen- O fenômeno dos sonhos foi abordado por esse te evacuativo de restos diurnos que não passaram autor a partir de vários vértices, como o do modelo pelo processo de simbolização e elaboração. continente-conteúdo, no qual o sonho funciona Grinberg e colaboradores (1967), baseados nes- como um “continente” de primitivos sentimentos, sas concepções de Bion, propuseram duas contri- idéias e protopensamentos que estão armazenados, buições: 1) A existência de três tipos de sonhos: o e ao mesmo tempo ele funciona como um “conteú- elaborativo, o evacuativo e o misto. 2) De forma do” que na situação analítica está como que “pe- similar ao “aparelho para pensar os pensamentos”, dindo” para ser contido e entendido pelo seu ana- tal como foi formulado por Bion, aqueles autores lista. Um outro modelo utilizado por Bion é o do concebem a existência no psiquismo de um “apa- aparelho psíquico funcionando como o sistema di- relho para sonhar os sonhos”. gestivo, de tal sorte que também os sonhos seguem o trajeto que vai de uma incorporação de estímulos antigos e recentes até uma evacuação. Essa idéia Escola Psicossomática de Paris de evacuação de conteúdos mentais foi utilizada por Bion para formular a sua importante concep- Um grupo de psicanalistas franceses, liderados ção de que os estímulos primitivos que geraram por P. Marty, esboça uma resposta a uma instigante sensações e emoções primitivas, em uma primeira questão: existe alguma especificidade entre o tipo etapa da formação de pensamentos, não passavam do sonho manifesto e o perfil caracterológico do de protopensamentos, que ele denominou “elemen- sonha? Pelo menos, em alguns casos, eles acredi- tos-beta”, os quais não se prestam para serem pen- tam que sim. Assim, segundo Rallo (1989), aqueles sados, mas tão-somente, para serem evacuados. Se psicanalistas consideram que os pacientes psi- os elementos beta forem transformados em “ele- cossomáticos apresentam sonhos com três caracte- mentos-alfa” então, sim, começará a construção de rísticas típicas: ou eles são prosaicos, sem contato um “aparelho para pensar os pensamentos”, como com o conteúdo pulsional, ou, pelo contrário, em Bion denomina. Para que se dê essa transformação seus sonhos os conteúdos inconscientes irrompem de “beta” em “alfa” é indispensável que a criança de uma forma bruta, sem elaboração secundária, encontre na mãe uma eficaz “função-alfa”, que, constituindo os chamados “sonhos crus”, ou a ter- além de dar um sentido, significado e nome para as ceira possibilidade é a de que existe nesse tipo de suas experiências emocionais, também lhe possi- paciente uma pobreza na produção onírica. Em to- bilite a formação de uma “barreira de contato” (tam- dos os casos, a análise permite observar que nos bém conhecida como “tela-alfa”) composta por pacientes somatizadores existe uma pobreza da vida esses elementos alfa, que sirva como uma barreira de fantasia, juntamente com uma forma de pensa- delimitadora e permeável entre o inconsciente e o mento muito mecanizada, que eles chamam de “pen- sistema pré-consciente-consciente. samento operatório”, sendo que tudo isso se origina Esse trânsito permeável entre inconsciente, pré- na infância em decorrência de um déficit na função consciente e consciente, mais a capacidade para da “barreira protetora” de estímulos – a chamada distinguir entre o sono e a vigília, e mais ainda, função de “para-excitação” da mãe – que vem a ser, uma capacidade para formar símbolos é que, se- ou não, internalizada pela criança. gundo Bion, possibilita a formação dos sonhos e Ainda em relação a uma possível forma de so- de um “pensamento onírico” (que aparece, junta- nhos típicos para determinadas psicopatologias, mente com os mitos e sonhos, na fileira “C” da sua recentes pesquisas eletrofisiológicas apontam que “grade”). Se não houver uma função-alfa eficaz da nas pessoas deprimidas a atividade onírica proces- mãe, surgirá uma “pantalha-beta” que não conse- sa-se muito próxima à atividade pré-consciente da gue estabelecer os limites entre inconsciente e cons- vigília, de modo que o sonho de tais pessoas é de 180 DAVID E. ZIMERMAN um nível muito superficial, e elas contam que so- gem “sígnica” que precede à “simbólica”) nham como se estivessem despertas, com conteú- de alguma doença orgânica séria, que viria dos do sonho de caráter opressor e que não se dis- a confirmar-se decorrido algum tempo, às tinguem das suas preocupações da vigília. vezes longo. 6. Como uma função elaborativa. Foi Feren- czi (1934) quem, pela primeira vez na lite- FUNÇÕES DOS SONHOS ratura psicanalítica, enfocou o ponto de vista de que, indo além de uma única “rea- Como vemos, as pioneiras e originais postu- lações acerca dos sonhos continuam válidas em lização de desejos”, os sonhos também têm certos aspectos, no entanto, elas vêm sofrendo pro- a função de buscar uma solução para os fundas transformações, sobremaneira no que se problemas que ocupam o psiquismo. Esse refere às suas funções e, conseqüentemente, tam- último aspecto está bem sintetizado por bém, na técnica da prática psicanalítica. À guisa de Guedes Cruz (1996) que, partindo do estu- síntese do que até aqui foi exposto, e levando em do do sonho da “injeção de Irma”, afirma conta tanto as contribuições de Freud como dos que “a função de resolução de problemas demais autores, cabe consignar as seguintes fun- que possuem os sonhos, dentro da concep- ções que os sonhos podem desempenhar: ção de que são nosso modo de pensar (o 1. Como um meio de descarga pulsional. grifo é meu) durante o sono e que con- 2. Como um recurso de realização (disfarça- tinuamos, quando dormimos, a elaborar os da) de desejos (reprimidos), segundo a clás- dilemas e situações dramáticas que enfren- sica fórmula de Freud; no entanto, na atua- tamos durante a vigília”. De forma simi- lidade, devemos considerar que a negação lar, cabe citar essa afirmativa de Meltzer não fica restrita à repressão, mas sim que (1984): “O processo de sonhar é o funda- também abarca outras formas bastante mais mento, não unicamente de nossa visão do primitivas de o ego processar a negação de mundo, e, portanto, de nosso estado de âni- verdades intoleráveis. mo, senão que, também, cada sonho é uma 3. Com uma função traumatofílica, ou seja, tentativa de resolver um conflito, que pri- como uma maneira de elaborar situações mariamente é um assunto do mundo inter- traumáticas (é o caso daqueles sonhos no, e logo tem implicações na conduta ex- constantemente repetitivos). terna”. 4. Com funções adaptativas e de integração 7. Como um processo criativo e gerador de do ego, como preconizam os “psicólogos sentidos e de novos significados. É bastan- do ego”, pelo fato de que os sonhos propi- te conhecido o famoso “sonho de Kelulé”, ciam que os fatos reais externos atuais se nome de um cientista que somente conse- integrem com as experiências emocionais guiu elaborar definitivamente a sua concep- do passado que fazem parte do mundo in- ção da estrutura química do benzeno, como terno do sonhador, com a produção de mu- uma arranjo molecular sob a forma de um danças estruturais. anel, após ele ter sonhado com uma ser- 5. Como uma forma de linguagem e de co- pente que engolia a sua própria cauda. municação: determinadas experiências É evidente que nem todos os aspectos enume- emocionais antigas que estão representa- rados aparecem em todo e qualquer sonho; pelo das no ego, ainda sem nome, não conse- contrário, os sonhos adquirem configurações e fun- guem ser verbalizadas na situação analíti- ções diferentes, de acordo com as características ca, e elas são expressadas pela linguagem singulares do psiquismo de quem sonha, da sua ca- não-verbal do sonho, esperando ser deco- pacidade ou incapacidade para a formação de sím- dificadas e nomeadas pelo analista. Da mes- bolos, do grau e tipo da ansiedade vigente, se é ma maneira, é interessante registrar que não criança, adolescente ou velho, se está acometido são poucos os relatos de pessoas que ates- de doença orgânica grave, se está submetido a al- guma situação de estresse traumático, etc. tam que um determinado sonho alusivo ao corpo teria sido o primeiro sinal (lingua- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 181

Uma outra questão que pode ser levantada é a tando a dar um merecido valor à análise dos so- que se refere ao fato bastante comum de por que nhos. seguidamente não recordamos os sonhos? A res- De modo geral, cabe destacar os seguintes as- posta dada por Freud (1925) de “o sonho que foi pectos referentes ao manejo dos sonhos que sur- esquecido é porque já cumpriu a sua missão ou gem no dia-a-dia da prática clínica: porque foi secundariamente reprimido” é consi- derada, na atualidade, insuficiente. São muitos os • Na situação analítica, o terapeuta não deve fatores: além de o esquecimento significar a pos- estar com a sua mente saturada (termo de sibilidade de uma nova repressão, também leva-se Bion) com uma busca ativa, e única, do “de- em conta o grau de profundidade do sono, a aten- sejo” pulsional. Assim, está superada a épo- ção que o sujeito presta aos sonhos quando ele des- ca em que o sonho expressaria unicamente perta, a motivação para recordá-los e o desejo de as repressões – sempre ligadas a conflitos sonhar para permitir um acesso ao inconsciente, edípicos – e, da mesma forma, o terapeuta tanto que é sabido que as pessoas em análise são as deve evitar a busca de um simbolismo uni- que mais recordam os sonhos. versal em cada imagem visual do sonho (ob- jetos salientes e pontiagudos, como uma faca por exemplo, seriam sempre símbolo de pê- NA PRÁTICA ANALÍTICA nis, os côncavos seriam da vagina, etc., etc.). Igualmente, o analista já deixou de conside- Um primeiro questionamento que deve ser le- vantado na prática clínica diz respeito às contro- rar o sonho como uma produção unipessoal vérsias acerca de “qual é a importância do sonho do paciente, pois o que importa é o que ele na atualidade?”. Durante muito tempo, Freud e está expressando em termos de vincula- seus seguidores deram um papel fundamental aos ridade, especialmente a que está aludindo sonhos dos pacientes, e a técnica vigente diante do ao vínculo transferencial. relato de algum sonho consistia em extrair o máxi- • Como forma de comunicação, é útil que o mo possível do possível simbolismo de cada ele- terapeuta esteja atento tanto para a impor- mento onírico em separado, bem como das respec- tante possibilidade de que o sonho esteja tivas cadeias de associações livres despertadas. exercendo a função de uma comunicação de Como exemplo disso, ocorre-me mencionar a aná- sentimentos que o paciente não tem condi- lise de um único sonho do “homem dos lobos” ções de nomear e verbalizar, como também (aquele sonho de alguns lobos brancos empo- leirados na árvore em frente da sua janela, sendo existe uma possibilidade oposta, isto é, a de que esse famoso paciente despertou aterrorizado que o relato do sonho tenha o propósito in- pelo medo de ser comido por eles), sonho esse que consciente de, ao mesmo tempo, agradar o foi exaustivamente analisado por Freud durante analista e confundi-lo, para que não haja uma meses, nos mínimos detalhes. comunicação útil à análise. Essa última hi- Em contrapartida, nos últimos anos, algo desi- pótese manifesta-se por meio de uma abun- ludido, Freud já não emprestava a mesma impor- dância de sonhos, cada um deles com uma tância aos sonhos, talvez porque ele não abria mão imensidade de detalhes, muitas vezes cau- de sua convicção – que já muitos psicanalistas não sando uma sensação contratransferencial de aceitavam – de que a função única do ato de so- caos, não sendo raro que possam ocupar todo nhar seria visando a uma disfarçada realização de o tempo da sessão, ou, o que é mais freqüen- desejos reprimidos. Dessa forma, decorreu um pe- ríodo no qual os sonhos não despertavam maior te, fazem uma pausa, como que a dizer ao interesse nos psicanalistas, porquanto a psicanáli- analista: “Já fiz a minha parte de bom paci- se evoluiu do modelo de um “levantamento arqueo- ente, relatei tudo com minúcias, agora é a lógico”, como então Freud preconizava, para um sua vez: interprete-me!”. outro modelo de natureza de “relações objetais” e • A última frase remete à situação bastante fre- de “vinculações intra e interpessoais”. Na atuali- qüente de que o paciente acredita ser obriga- dade, a julgar pela quantidade de trabalhos relati- ção do analista interpretar aos seus sonhos sob vos aos sonhos, parece que os analistas, sem ficar o argumento de que esse é que entende de em nenhum dos dois extremos aludidos, estão vol- inconsciente (durante muito tempo, os ana- listas incentivavam tal condição), sendo que 182 DAVID E. ZIMERMAN

é igualmente comum que quando estimulado o que a obrigava a “correr atrás dele, como pelo terapeuta para dizer o que o sonho o fez uma mendiga esmolando”, mas que, embora pensar, o analisando entende que o analista dessa vez ela tenha tomado um outro tipo de está lhe dando o papel de que ele deve “inter- iniciativa para obrigá-lo a cumprir a sua obri- pretar” psicanaliticamente ao seu sonho, quan- gação, esse fato não poderia ter desencadea- do, na verdade, o que importa é que ele faça do tanto ódio, porquanto ela já estava acostu- associações e reflexões, em um trabalho con- mada com esses abusos corriqueiros de seu junto com o analista. ex-marido, além de que ela ficara aliviada por • O ideal é que as associações do paciente – e ter conseguido manter a sua dignidade. No as do analista – encadeiem a três planos: a) a lugar de interpretar, lembrei-a de que, antes busca de um significado contido nas imagens do relato desse “sonho-pesadelo”, ela referiu- oníricas e no “enredo” do sonho; b) uma me que saiu muito “mexida” da última ses- possível ligação disso com algum “resto diur- são. A paciente de imediato recordou que no” da véspera; e c) qual ponto pré-cons- aquilo que mais a mobilizou e a fez pensar ciente ou inconsciente (conteúdo latente) foi bastante na aludida sessão foi ter-se dado con- mobilizado pelo resto diurno. ta que o seu pai brinca com os netinhos de • Na situação analítica, o mais provável é que maneira sádica, num jogo de “faz que dá, mas o resto diurno estimulador do sonho consis- não dá” e que só agora ela dava-se conta de ta justamente naquilo que foi mobilizado em que esse mesmo tipo de brincadeira, ele fez uma sessão anterior; assim, o que deve ficar toda a vida com ela, e continua fazendo na claro é que a interpretação do sonho não deve atualidade (para manter um certo negócio em ser uma tarefa única do terapeuta, tampouco andamento, ela precisa aceitar empréstimos do paciente, mas, sim, de ambos, em um tra- do pai, o que pretensamente confere a ele o balho de construção do entendimento dos direito de controlar, desqualificar e humilhar). significados ocultos do sonho. As demais associações suscitadas foram em • Como tentativa de exemplificar os itens aci- torno de “duplas mensagens,” provindas do ma enumerados, vou referir o sonho de uma pai e da mãe, que sempre resultavam em um situação clínica, que foi selecionada, aleato- estado culposo da paciente e em uma angus- riamente, pela razão única de que é a mais tiante busca de saída, o que ela tentava por recente nesse momento em que estou redigin- meio de um “falso self”, com uma atitude de do este capítulo: a paciente mal deita no divã, submissão, e, ao mesmo tempo, com uma in- diz que ficou muito “mexida” pela sessão an- tensa atividade profissional que justificasse terior e passa a relatar o pesadelo que teve as expectativas de seu pai, figura extremamen- nessa noite: o seu ex-marido (pessoa com ca- te idealizada por ela. Abreviando: ela e eu racterísticas psicopáticas que muito engana- entendemos o sonho manifesto – ativado pelo va e humilhava) vinha para cima dela, tentan- resto diurno do atrito com o ex-marido – como do agredi-la, enquanto ela ia sentindo-se sendo uma necessária elaboração e comuni- crescentemente possuída de um enorme ódio cação de um antigo e forte ódio reprimido e incontido, que lhe deu forças para não fugir negado (pela idealização) contra a figura do e, aos berros de “chega!”, ela tinha ímpetos pai (em uma aliança com a mãe), e que so- de assassiná-lo de alguma forma violenta. O mente após ela conseguir reconhecer e expres- pesadelo foi interrompido com a paciente sar esse velho e surdo ódio, com fantasias de despertando em um estado de alta angústia, ímpetos homicidas contra quem tanto a hu- banhada em suor e com forte taquicardia. milhou e infantilizou, é que poderá vir a mo- Após uma breve pausa, perguntei-lhe se a dificar o vínculo interno e externo com os seus ocorrência de algum fato real poderia ter pais e, assim, resgatar os aspectos verdadei- desencadedo o seu sonho, ao que ela respon- ramente bons deles. deu que, na véspera, mais uma vez o pai de • Um outro ponto que é possível perceber no seu filho (o seu ex-marido, que aparece no curso dos tratamentos analíticos é o fato de sonho) não depositara o dinheiro da pensão, que, muitas vezes, tanto a quantidade quan- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 183

to a qualidade dos sonhos trazidos pelos pa- ria, ele próprio, tratar de preparar a sua co- cientes variam na proporção direta do maior mida e conservar (freezer) os seus “alimen- ou menor interesse do analista pelo aporte tos-valores” estocados durante o ano analí- dos sonhos. A maioria dos pacientes, espe- tico. Em relação ao “sonho contratrans- cialmente os mais regressivos, tem uma in- ferencial”, no qual o analista sonha com um tuição desse interesse do terapeuta, não sen- determinado paciente, a auto-análise do mes- do incomum que os sonhos sejam sonhados mo pode constituir-se em uma excelente bús- como uma espécie de “presente” para ele. sola para a compreensão do que se passa no • É freqüente o surgimento, durante o proces- plano inconsciente da relação analítica. so analítico, de sonhos, tanto no paciente • Também é útil consignar o fato de que os quanto no terapeuta, que aludem diretamen- sonhos trazidos pelo paciente ao longo da te à situação do campo analítico: ao primei- análise podem servir para o analista como ro, podemos chamar de sonho transferencial; um importante meio de avaliação de como ao segundo, de sonho contratransferencial. estão, ou não estão, processando-se as mu- Como exemplo de “sonho transferencial”, danças no seu psiquismo. Assim, um sonho recordo-me de um paciente que dias antes recente, comparado com um sonho da mes- do início das férias sonhou que a sua empre- ma natureza trazido anos atrás, pode eviden- gada desaparecera e isso, em um primeiro ciar, por algum detalhe, mesmo que aparen- momento, desnorteou-o ante o sobressalto temente pequeno, alguma importante trans- de que a sua casa viraria numa bagunça caó- formação. tica; resolveu vistoriar a casa e percebeu que • Por tudo o que foi dito, só nos cabe concor- a cama do seu dormitório estava realmente dar com o Talmud (livro da sabedoria judai- muito desarranjada, o sanitário com uma re- ca) que há séculos já sentenciava que todo lativa sujeira, bem tolerável, enquanto a co- sonho que não se interpreta é uma carta que zinha estava bem arrumada, com o fogão, fica sem ser aberta. refrigerador, freezer, tudo funcionando per- Finalmente, não obstante as oscilações demons- feitamente. Mais do que um mero entendi- tradas por Freud quanto à sua posição em relação à mento de que ele estaria expressando uma utilização dos sonhos na prática analítica, a verda- queixa e preocupação com o fato de que “a de é que ele sempre manteve um reconhecimento e empregada-analista desaparecia com as fé- uma gratidão pelo estudo dos mesmos, tal como rias e deixava-o abandonado” o sonho foi aparece na transcrição deste trecho que consta do conjuntamente analisado como traduzindo prólogo para a terceira edição inglesa de Interpre- um balancete que o paciente fazia de como tação dos sonhos, publicado em 1930: “...Ainda estava a sua casa interna, tranqüilizando, a insisto em afirmar que este livro contém a mais ele e a mim, de que a situação ligada à geni- valiosa das descobertas que eu tive a fortuna de talidade (dormitório) ainda estava algo atra- realizar. Uma intuição como esta o destino pode depará-la somente uma vez na vida de um homem”. palhada, a analidade (sanitário) estava bem razoável, enquanto a oralidade (cozinha) despertava-lhe uma confiança de que pode-

CAPÍTULO • A imagem reproduzida no espelho das águas adquiriu um significado de sobrenaturali- dade. Em quase todas as partes do mundo havia uma proibição de mirar-se nas águas 16 paradas porque acreditava-se que a imagem refletida na água seria a alma disponível às forças do mal e do demônio. • Para os povos da Grécia Antiga, sonhar com o reflexo da própria imagem na água era um O Espelho na Teoria e agouro de morte. Isso é explicado pelo fato de que o primitivo percebia a própria ima- na Prática Psicanalítica gem como algo real e que, portanto, pudesse abandoná-lo. Provavelmente, essa crença deu origem ao mito de Narciso. • Os índios costumam recusar o espelho, pois O espelho é tão antigo como a história da hu- crêem que a imagem refletida é a sua pró- manidade. Muito antes de adquirir a forma cientí- pria alma e que a perderão se a olharem. fica de um vidro com a parte posterior recoberta por uma amálgama, os primitivos miravam-se no • Algumas crendices populares: “Criança que espelho das cristalinas águas paradas e construí- se olha no espelho custa a falar”; “Espelho ram suas crendices diante do misterioso fenômeno quebrado é sinal de morte”; “Olhar-se no da reflexão. espelho à noite é perigoso: pode-se ver o Sob diversas formas, é relevante a presença do diabo”, etc. espelho em todas as áreas humanísticas, como arte, • Em casa onde há mortos, é comum cobri- literatura, folclore, religião, mitologia, ciência e, rem-se os espelhos durante três dias, etc. naturalmente, nas concepções psicanalíticas, sen- • Em culturas primitivas, era proibida a toma- do que essas últimas é que constituirão o enfoque da de fotografias, pois a imagem (alma) fi- principal deste capítulo. caria presa e imóvel no retrato. A função do espelho é indissociável da função Há uma primitiva conexão de significados do olhar e, por isso, creio ser útil repassar alguns • dos mitos que a envolvem, com o propósito de entre a imagem refletida no espelho e a pró- embasar as considerações analíticas que seguem. pria sombra. A sombra do corpo é parte in- A mitologia e a bíblia mostram-nos a freqüên- tegrante do mesmo, e suscetível de ser por- cia com que o ato de olhar foi significado de forma tadora de todas as suas virtudes, poderes e persecutória. Assim: • As filhas e a mulher de Ló perigos. Os mortos perdem a sombra con- foram transformadas em estátuas de sal por terem creta e transformam-se, elas próprias, em desobedecido a proibição de Deus no sentido de sombras que podem assustar os vivos: são que não mirassem os pecados de Sodoma e as assombrações. Em certas culturas, pisar Gomorra. • Narciso perdeu-se no olhar especular, na sombra de alguém é considerado como deslumbrado de si próprio. • Édipo cegou-se como uma agressão e apropriação de outra pessoa. castigo pelo crime edípico. • Orfeu voltou a cabe- ça para olhar a sombra da formosa Eurídice e per- Da mesma forma, podemos encontrar na litera- deu-a para sempre. • O herói Perseu defendeu-se tura uma abundância de descrições alusivas ao es- da Medusa (uma das três Górgonas, cuja cabeça, pelho. Por exemplo: • Lewis Carrol, em Alice, tra- mesmo arrancada, conservava o poder de petrifi- tou do tema, que aparece em muitos mitos, de como car quem a olhasse), forçando-a a mirar-se. • Na o espelho pode representar a porta pela qual a alma mitologia judaico-cabalística, aparece a figura do pode dissociar-se e “passar” para o outro lado. • “Golem”, uma espécie de robô extraído do barro, Também o conhecido Retrato de Dorian Gray, de que era mudo (uma alusão a que não atingiu a lin- Oscar Wilde – uma espécie de versão moderna de guagem verbal) e que evoca a temida visão do du- Narciso –, mostra claramente o quanto a imagem plo, da sombra (à moda de imagem especular). interior pode ficar dissociada e refletida em um Também as folclóricas crendices populares ofe- retrato exterior, da mesma forma como num espe- recem-nos um fértil manancial alusivo ao espelho. lho, ou num duplo (alter ego), em uma busca mági- Seguem: 186 DAVID E. ZIMERMAN ca de imutabilidade e imortalidade. • Como outro Spitz (1965) descreveu a conhecida reação de exemplo, vale citar uma passagem da oratória do “medo aos estranhos”, processando-se por volta dos Padre Vieira, pela profunda abstração e intuição oito meses. Esse período coincide (no referencial de natureza psicanalítica que ele soube reconhecer kleiniano) com a instalação da posição depressiva e no espelho. Eis o trecho: “... descobriu a sabedo- da formação simbólica, com a subfase da “diferen- ria de Salomão dois “espelhos recíprocos” que ciação”, no curso da fase de “separação-indi- podemos chamar de tempo, em que se vê facilmente viduação” (segundo M. Mahler), ou com o estágio o que foi e o que há de ser. Que é que foi? Aquilo do espelho, em que começa a conquista da imagem mesmo que há de ser. Que é o que há de ser? Aqui- própria (Lacan). Pode-se, pois, entender o “estra- lo mesmo que foi (...) olha para o passado e para nhamento” como um reconhecimento da criança de o futuro e vereis o presente”. (Novaes, 1988) que ela existe separada da mãe, e que existem ter- Nas artes cênicas, vou limitar-me a um único ceiros que são sentidos como sendo estranhos, in- exemplo: na representação teatral de “Dom Qui- trusos e ameaçadores ao paraíso da fusão simbiótica. xote”, a cena mais impressionante é certamente O estranho é o sinistro (“unheimlich”, de Freud); aquela em que o pseudo-herói aparece aterroriza- é o que está de fora da relação especular e que, do do ante a obrigação de ter que se mirar na imensidão ponto de vista da criança, vem não para substituir a de espelhos que o cercavam e ameaçavam de de- mãe, mas para separá-la do filho. volver-lhe a sua imagem real... Rodrigué (1966) assinala que as crianças em Não fôra a limitação do espaço, seria uma tarefa idade pré-escolar, principalmente em torno dos 4 fascinante poder extrair significados e correlações anos, elegem, entre os seus jogos preferidos, os que com o espelho, tal como aparece em filmes, folclo- consistem em fazer decalques de figuras (por trans- re, arte pictórica, etc. Deixo ao eventual leitor esse parência, por impressão gráfica) e o de contorno exercício de reflexão (e, se fosse possível, comunicá- gráfico (recortar uma figura de papel de tal forma lo a mim, o que seria de imenso agrado para mim). que, ao desdobrar a tira, aparece uma frisa de figu- ras iguais, unidas entre si). Esses e outros jogos similares são chamados por esse autor de “jogos REVISÃO DA LITERATURA PSICANALÍTICA de duplicação”, e ele levanta a possibilidade de que CONCERNENTE AO ESPELHO os mesmos visam a duas finalidades: 1) Como um reasseguramento tranqüilizador à criança de que Pesquisadores que se dedicam à observação ela sobreviverá diante de uma subjacente ansieda- direta de crianças mostram a importância do espe- de de aniquilamento. 2) Como uma reafirmação de lho físico e da função especular desde as mais pre- que ela elaborou bem a posição depressiva, o que coces etapas evolutivas. Isso encontra respaldo em Ihe possibilita expressar as fantasias de reconstruir, textos de importantes autores. criar e procriar. A. Green (1976), um estudioso de Winnicott, Por outro lado, em clínica psiquiátrica, é bem afirma: “Sabemos que o bebê que se alimenta no conhecido o “sinal do espelho”, que se constitui seio, enquanto mama, olha não para o peito ou como um dos sinais mais precoces da eclosão de mamadeira, mas para o rosto da mãe”. Aliás, mui- uma esquizofrenia. Esse sinal consiste no fato de tos outros estudiosos confirmam isso e acrescen- que, na frente do espelho, o paciente efetua movi- tam a observação de que o lactente, por volta de mentos sob forma de gesticulações ou maneirismos. um mês, olha fixamente para a mãe e, se esta não De forma equivalente, nos pacientes em regressão corresponde, ele volta-se para um objeto brilhan- psicótica, podemos encontrar “gestos espelhados”, te, como uma janela ou televisão, por exemplo. em que eles, sentados face a face com o terapeuta, Petot (1988) registra que “o próprio júbilo da executam os mesmos movimentos desse. É bem criança frente à sua imagem especular encontra o conhecida a dependência que as pessoas muito nar- seu protótipo nas manifestações de prazer que os cisistas têm em relação à sua necessidade compul- psicólogos observaram no recém-nascido que imita siva de mirar-se no espelho. A propósito, segundo os movimentos faciais de sua mãe” (p. 186). Ruth Brunswick, esse era um importante sintoma Por outro lado, alguns autores observam que a do “homem dos lobos”, que concentrava muito de maioria dos bebês é canhoto no começo dos exercí- sua vida em um pequeno espelho que ele sempre cios da manualidade e, daí, eles evocam a imagem da levava em seu bolso, e a sua sorte dependia do que “mãe destra” que subministra movimentos e objetos este lhe revelava ou do que lhe fazia descobrir. com essa mão ao seu filho, o qual os toma com a mão Em um outro contexto, Foulkes (1967), impor- esquerda, como se estivesse diante de um espelho. tante estudioso das psicoterapias de grupo, descre- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 187 veu o “fenômeno do espelho”, o qual consiste na tência e integração da imagem corporal. Vale regis- comparação do grupo terapêutico a uma sala de trar também que Freud, nesse mesmo trabalho, ao espelhos, “onde o indivíduo entra em confronto com estudar uma “necessidade de restaurar um estado a sua imagem social, psicológica e corporal”. Os anterior das coisas” (p. 78), cita a seguinte passa- grupoterapeutas sabem que cada paciente do gru- gem de Platão, em Symposium – “...Tudo nestes ho- po reflete-se nos outros e, por sua vez, serve como mens primitivos era duplo; tinham quatro mãos e um refletor aos demais. Essas reações do espelho quatro pés, dois rostos, duas partes pudendas, e são especialmente importantes porque servem de assim por diante. Finalmente, Zeus decidiu cortá- base para a diferenciação entre o “eu” e o “não- los em dois, como uma sorva que é dividida em duas eu”, que é muito confusa nos pacientes que fazem metades para fazer conserva. Depois de feita a di- uso excessivo tanto de identificações projetivas visão, as duas partes do homem, cada um desejan- como da onipotência narcísica ou da indiscrimi- do sua outra metade, reuniram-se e lançaram os nação simbiótica. braços em torno da outra, ansiosas por fundir-se”. Moreno (1936) descreve a “técnica do espelho” Creio que esta citação atesta a importância que Freud em psicodrama. A mesma consiste em que o pa- deu ao jogo das imagens especulares, que ele reto- ciente protagonista sai do palco (cena) e participa ma em Ter e ser (1938), na qual trata das vicissitu- como observador da representação que uma outra des do processo identificatório que, à maneira de pessoa (ego auxiliar) faz dele. Busca-se com isso espelhos confrontados, permitem uma reflexão que o paciente se reconheça nessa representação, reverberante e constante na relação entre o indiví- assim como na infância ele reconheceu a sua ima- duo e o seu universo objetal. gem no espelho. Apresentam-se, a seguir, as principais idéias psicanalíticas concernentes ao espelho, em Freud, TEÓRICOS DAS RELAÇÕES OBJETAIS M. Klein, Bion, Lacan, Winnicott, Kohut, M. Mahler e em alguns autores da escola francesa. Dificilmente, vamos encontrar nos textos des- ses autores alguma referência direta ao espelho. No entanto, a importantíssima contribuição de M. Klein FREUD acerca dos mecanismos de identificações projeti- vas – hoje universalmente aceita – facilitou o en- Freud deu inúmeras contribuições à teoria psi- tendimento dos fenômenos especulares e abriu no- canalítica em relação ao ato de olhar e, indiretamen- vas portas para os estudiosos das mais diferentes te, à função especular. Basta lembrar os seus estu- correntes analíticas. Assim, são os incessantes dos relativos à cena primária, bem como os referen- movimentos projetivos e introjetivos que explicam tes à eleição narcisista de objetos. No entanto, em o barramento das fronteiras entre o eu e o outro, Freud, a menção explícita à palavra espelho aparece sendo que o eu encontra a sua origem e apoio na duas vezes (ou três, se consideramos o espelho imagem especular do outro. Dessa ótica, por exem- d’água em que Narciso se mirava). A primeira refe- plo, podemos entender o ciúme como sendo a cul- rência está na famosa analogia que ele utilizou para minância da ambivalência de qualquer relação fun- caracterizar a sua “regra da neutralidade” (1912), a dada em um modelo especular. qual será considerada mais adiante. A segunda refe- Os trabalhos de Bion merecem um registro es- rência direta ao espelho, estranhamente pouco cita- pecial. Ele estuda a “função continente” da mãe, da, aparece em um rodapé em Além do princípio do que se comporta para as angústias do bebê como prazer (1920), no qual Freud descreve suas obser- se fosse um espelho. De fato, a mãe bom-continen- vações acerca do seu neto de um ano e meio, o mes- te recebe a imagem projetada pelo filho e a devol- mo do muito conhecido jogo do carretel (“Fort-Da”). ve refletida, devidamente desintoxicada e nomea- O jogo do espelho do menino consistia em que ele da. Ocorre o contrário quando a mãe é um mau- “... havia encontrado um modo de fazer desapare- continente, que não reflete nada, ou reflete as an- cer a si próprio. Descobrira seu reflexo num espe- gústias da criança, acrescidas das suas próprias. Por lho de corpo inteiro que não chegava inteiramente outro lado, em seu trabalho de 1950, O gêmeo ima- ao chão, de maneira que, agachando-se, podia fa- ginário (1967), Bion estuda o paciente muito re- zer a sua imagem no espelho ir embora” (p. 27). O gressivo que, mercê de um uso excessivo de meca- mesmo júbilo que seu netinho sentiu ante o nismos de dissociações, identificações projetivas reaparecimento do objeto mãe-real após o seu desa- e introjetivas, bem como de personificação, torna parecimento, repetia-se ante a reafirmação da exis- o analista um gêmeo personificador da sua ima- 188 DAVID E. ZIMERMAN gem má (nos termos de um espelho, ao modelo do pletude onipotente (1ª fase) até o da dimensão sim- retrato de Dorian Gray). O “gêmeo imaginário” re- bólica, com a aquisição da linguagem verbal. presenta uma espécie de “duplo”, um segundo eu, dramatizando, assim, uma relação objetal muito primitiva e que visa a dois objetivos: 1) Manter Winnicott sob controle, no exterior, os objetos do seu mundo interior. 2) Manter a negação de que existe uma Em seu trabalho de 1967, O papel do espelho realidade diferente do seu próprio eu. da mãe e da família no desenvolvimento da crian- ça (1975), o autor concebeu uma das suas mais originais e gratificantes contribuições, numa con- Lacan cepção diversa a de Lacan, ainda que Winnicott admita que se baseou na “etapa do espelho” desse. Em 1936, em Écrits (1970), esse importante e Para Winnicott, o primeiro espelho da criatura hu- controvertido pensador francês, resgatando os es- mana é o rosto da mãe, sobretudo, o seu olhar. Ao tudos de Freud pertinentes aos pacientes narcisis- olhar-se no espelho do rosto materno, o bebê vê-se tas e paranóides, descreveu o “estágio do espelho”. a si mesmo. “Quando olho, sou visto, logo existo... A partir dos seis meses, a criança começa a con- Posso agora me permitir olhar e ver”. quistar a imagem da totalidade do seu corpo. Pri- Neste contexto, cresce muito a responsabilida- mitivamente, a criança não tem experiência corpo- de da mãe real, pois, sendo um espelho de seu fi- ral como uma unidade integrada: pelo contrário, lho, ela tanto pode refletir o que ele realmente é, ela percebe o seu corpo como sendo uma disper- ou, qual um espelho que distorce imagens, típico são de todas as suas partes (como a pintura de dos parques de diversão, a mãe pode refletir o que Jerônimo Bosch, em “Jardim dos Prazeres”, no ela é, ou imagina ser. Museu do Prado, retrata de forma impactuante). Este papel da mãe abriu um largo campo de Essa dispersão corresponde à sensação de que ha- compreensão em relação à função especular do veria tantas parcialidades do corpo quantas funções psicanalista. A imagem que o analista (mãe) tem fisiológicas existissem, e isso porque, nos primei- dos potenciais do seu paciente (filho) torna-se par- ros anos de vida, por falta de maturação biológica, te importante da imagem que o próprio paciente o lactente encontra-se submerso em uma confusão faz de si mesmo. de sensações desordenadas, difusas e indife- renciadas, que ele não sabe de onde procedem. Daí decorre a fantasia do corpo dividido com a respec- Kohut tiva angústia de “despedaçamento” (“corps morcelé”) que se manifesta nas situações psicóticas. Este autor, criador da escola da “Psicologia do Essa “etapa do espelho”, segundo Lacan, pro- self”, utiliza a expressão “objetos do self” (1971) longa-se dos 6 aos 18 meses e processa-se em três para referir-se a dois tipos de objetos primordiais fases fundamentais. Em um primeiro momento, a especulares: 1) Aquele que funciona como um es- criança percebe o reflexo no espelho como se fos- pelho da criança e que, mediante incessantes elo- se um ser real, do qual procura aproximar-se ou gios e admiração a este, outorga-lhe uma imagem apoderar-se. Essa imagem, que é sua, é imaginada de “self grandioso”. 2) O objeto parental que re- como sendo do outro, e vice-versa, a imagem do flete para o filho uma imagem grandiosa que os outro é percebida como sendo a de seu próprio pais têm de si próprios, constituindo a “imago pa- corpo. Em uma segunda fase, a criança percebe que rental idealizada”. o outro do espelho não é um ser real, que não passa Um importante desenvolvimento dessas idéias de uma imagem e, por isso, ela não vai mais refere-se à descrição da “transferência especular” procurá-lo atrás do espelho. A terceira fase consis- na análise de pacientes narcisistas. Essa transfe- te em que a criança já sabe que o refletido é apenas rência corresponde ao self grandioso e manifesta- uma imagem dela própria. Nessa ocasião, ela ma- se, na prática analítica, em uma das três seguintes nifesta um intenso júbilo e gosta de brincar com os etapas: movimentos do seu próprio corpo no espelho. Paralelamente, o espelho também é entendido 1) Fusional (corresponde ao conceito de por Lacan como uma metáfora do vínculo entre a Freud de “ego do prazer purificado” e ma- mãe e o filho, que progride desde a dimensão vi- nifesta-se pelo fato de o paciente crer que sual e imaginária, a qual permite a ilusão da com- o seu analista não passa de uma mera ex- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 189

tensão sua, pois ambos estariam em uma regressivo busca como uma técnica de sobrevivên- fusão arcaica. cia, já que esse tipo de objeto lhe restaura uma ima- 2) Alter ego ou gemelar (o paciente acredita gem narcísica e, com isso, reassegura-lhe a certeza que há uma perfeita semelhança entre ele e de que ele existe e vive. A autora mostra que o o seu analista). olhar que toda criança busca avidamente nas pupi- las maternas tem duas finalidades: 1) Como um 3) Especular (no sentido estrito deste termo). reflexo destinado a devolver a sua própria imagem Corresponde a uma etapa mais evoluída que especular. 2) Como uma busca em reconhecer tudo as duas anteriores e, nela, o analista é mais aquilo que ela realmente representa para a mãe. claramente visto como uma pessoa, sendo Baseada nas novas concepções acerca de pa- que o paciente necessita procurar induzi- cientes somatizantes provindas dos estudos de psi- lo a aprová-lo e a funcionar como um re- canalistas franceses (Marty, Fain, M’Uzan, David), fletor do seu self grandioso. MacDougall descreve o que ela denomina “um corpo para dois” (1987), no qual ela especula so- É claro que essas três etapas podem interpor- bre a fusão especular, psíquica e corporal da díade se, mas servem como um excelente referencial clí- mãe-filho. nico da evolução de cada análise.

Grunberger (1979) M. Mahler Centralizou os seus estudos no narcisismo do Maiúscula representante da escola da “psicolo- psicanalista e descreve como este pode utilizar o gia do ego”, essa psicanalista norte-americana e sua seu paciente como um espelho dele, de tal modo equipe procederam a uma investigação científica que gratificar o analisando é gratificar a si próprio. pelo método da observação direta de bebês, duran- te muitos anos, primeiramente com crianças psicóticas (na década de 50) e, após, com normais (na década de 60). Na descrição das etapas con- P. Ailagnier (1975) cernentes ao “nascimento psicológico dos bebês”, Mahler dá um importante papel à função especu- Tem estudado particularmente o uso abusivo lar, tanto que nas salas de observação havia um que as mães (ou analistas) cometem ao violentar a espelho ao nível do chão que se prestava ao estudo criança (ou o paciente) com a imposição especular de várias reações das criancinhas diante dele. A de seus próprios interesses e “desejos identifi- autora destaca que os mecanismos de “espelha- catórios”. Ou seja, trata-se da mãe que reflete à mento mútuo” servem à demarcação do “eu” e do criança não quem de fato ela é, mas como deve e “outro”, realçando a diferença entre as identifica- não deve ser, sentir e expressar suas emoções, as- ções verdadeiras que resultam da introjeção dos sim como quem ela será no futuro. Fica implícito pais e as proto-identificações especulares que são que o não cumprimento dessa profética imagem cus- mais de ordem imitativa. tará um preço elevado ao seu filho (“... Teu nome é João, és o filho adorado e obediente da mamãe, quando cresceres serás um médico famoso e, se ESCOLA FRANCESA DE PSICANÁLISE não for assim, me causarás uma profunda decep- ção e correrás o risco de me deixar muito deprimi- Além de Lacan, outros importantes e moder- da ou colérica...”). nos psicanalistas da França têm feito referências diretas à função especular. ESPELHO E CAPACIDADES DO EGO

J. MacDougall (1972) Senso de Identidade

É uma psicanalista reconhecida pela originali- Uma primeira conclusão a ser tirada da síntese dade de seus conceitos e que se dedica especial- antes feita é a de que há uma concordância geral mente à análise de pacientes “difíceis”, designa quanto à importância do recíproco espelhamento como “objeto espelho” aquela pessoa que o sujeito filho-mãe na formação da identidade da criança. 190 DAVID E. ZIMERMAN

Nesse processo identificatório, da mesma forma tância nodal para a compreensão da organização como valoriza-se a incorporação do “seio bom” narcisista, já fôra bem estudada por Rank, em 1914. versus “seio mau”, creio ser indispensável acres- Aliás, podemos constatar que, muitos anos antes centar a função estruturante do “olhar bom” versus do campo científico, a literatura antiga registrava a “olhar mau” da mãe. É por meio de sucessivas ex- presença desse fenômeno, como foi assinalado na periências do “bom” olhar materno que se estabe- introdução deste trabalho. lece, na criança, a crença de que, se ela é vista como O senso de identidade está intimamente relacio- um objeto de amor, então ela existe, é um ente, ou nado com as avaliações que tanto nós como os de- seja, está nascendo uma “entidade”. A passagem mais fazemos de nós mesmos diante do espelho do do estado de entidade para o de identidade começa juízo crítico, onde colhemos o que somos e o que a partir da instalação da confiança básica, a qual não somos. As máscaras (“personas”, no teatro permite uma progressiva dessimbiotização, segui- grego) que, a partir daí apresentamos ao mundo e da de uma constância objetal e coesão do self. que constituem a (persona)lidade, são antecipações A etimologia de identidade (idem + entidade) deste juízo. comprova que ela consiste em uma entidade que se Neste contexto, a patologia da identidade do mantém basicamente a mesma (idem), apesar das indivíduo guarda uma relação direta com a patolo- variações temporais, espaciais e sociais. A ausên- gia das identificações, sendo que as situações pa- cia do bom olhar estruturante equivale à presença tológicas mais comuns são decorrentes do fato de do mau olhado do outro, e a ausência do olhar- que as identificações projetivas dos pais proces- espelho da mãe é compreendido pela criança como sam-se a partir de: sendo solidão, escuro e silêncio. Pode-se dizer que a imagem necessita do espelho para construir-se, 1) Transtorno da identidade pessoal deles pró- sendo que, muitas vezes, em condições patológi- prios. cas, a auto-imagem resulta da “imagem do outro 2) Excessivas expectativas narcísicas. em mim”. 3) Depressão melancólica. Creio ser válido o entendimento de que a dialé- 4) O filho foi indesejado. tica “vida-morte” encontra uma correspondência 5) Persistência da introjeção, nos pais, de fi- psíquica ao nível mais primitivo do recíproco guras mortas e insepultas (aborto, por espelhamento bebê-mãe. Dessa forma, os sentimen- exemplo). tos de morte (palavra derivada do étimo latino “mors”) e de amor (“a-mors”?) podem confundir- Por outro lado, nos casos de identificação “ade- se: o apaixonado projeta o sentido de sua vida no siva”, nos termos descritos por E. Bick (1968), o outro e, falhando a reciprocidade, ele perde o sen- sujeito não conseguiu introjetar uma função espe- tido do próprio viver (“morre para a vida”). Isso cular própria e, por isso, prolonga por toda a sua parece ser mais comum nas pessoas em que a mãe vida uma forma de espelhar-se nos outros e imitá- foi introjetada simultaneamente, como uma promes- los. sa de vida e uma ameaça de morte, e o pai foi afas- Assim, a adesividade constitui-se como uma tado do mundo simbólico da criança e da mãe. forma desesperada de recompor a ameaça de de- As primeiras representações do ego já incluem sintegração, sendo que não há projeção nem in- as relações objetais mais arcaicas do sujeito com o trojeção, apenas um “grudar-se”. outro, por meio da e na imagem deste último, e Mahler (1975) destaca a especularidade na for- constituem-se como sendo as imagos (em grego, mação da identidade primária dizendo que ela imago quer dizer cópia, dublé). Não se pode per- “...consiste de uma mútua reflexão durante a fase der de vista que a função especular humana é bila- simbiótica. Este narcisístico e mutualmente libidi- teral, ou seja, também a mãe busca sua imagem no noso espelhamento reforça o delineamento da iden- espelho do filho. Muitos autores estão renovando tidade por meio da magnificação e da redupli- o interesse psicanalítico pelo papel do “duplo” e cação. Uma espécie de eco”. destacam que este, assim como a imagem especu- Creio que é importante registrar os casos, es- lar, caracteriza-se por uma bipolaridade. Por um pecialmente em estruturas perversas, nos quais o lado, há o júbilo pela conquista da totalidade cor- ego fica cindido em distintas identificações. As- poral que evoca a fantasia de imortalidade; por sim, no fetichismo, em algum momento estrutura- outro lado, o “duplo” suscita o terror ante o se uma relação especular, o próprio ego duplica-se enfrentamento com o similar e que ameaça a sua em sujeito (que pratica o ritual do registro imagi- unicidade. Esta “relação com o duplo”, de impor- nário) e em espectador (que se deleita). FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 191

Nas crianças cegas, os demais sentidos crescem FUNÇÃO ESPECULAR E SOMATIZAÇÕES de importância e cabe ao da audição assumir a prin- cipal função especular. E o que dizer das crianças Desde a vida intra-uterina, a biológica fusão do surdo-mudas? Assim, foi Hellen Keller (apesar de corpo provedor da mãe ao do bebê em gestação ela não ser cega de nascença) e vale lembrar, em prolonga-se imaginariamente no recém-nascido. sua comovedora história, que foi por meio da lei- Supõe-se que essa fixação persista, em forma la- tura tátil, possibilitada pelo auxílio e amor de Ann tente, por toda a vida, podendo manifestar-se em Sulivan, que ela descobriu o mistério das palavras- qualquer indivíduo, sempre que estiver ameaçado símbolos. em seu sentimento de identidade e de integração, corporal e psíquica. Essa fusão primitiva vai sendo acrescida de Formação de Símbolos novos, incessantes e indiscriminados estímulos, provindos de todas as partes e que, juntamente com A capacidade do ego relativa à formação de sím- as respectivas sensações, angústias e significações, bolos parece estar conectada com a especularidade. vão sendo arquivados e registrados como represen- A palavra “símbolo”, segundo Laplanche e Pontalis tações do ego. São representações DO corpo e que, (1967), “era para os gregos um sinal de reconhe- em condições regressivas, podem expressar-se NO cimento (entre membros de uma mesma seita, por corpo. exemplo), formado pelas duas metades de um ob- São especialmente importantes as representa- jeto partido, que se aproximavam” (grifo meu). ções do registro imaginário da etapa da “não- Símbolo é, pois, a unidade perdida e refeita, integração” das partes do corpo (um importante sendo que esse encontro de duas metades pode ser conceito de Winnicott), assim como o da “desinte- entendido como equivalente ao jubiloso encontro gração” (ansiedade de aniquilamento derivada do da criança com a totalidade de sua imagem refleti- instinto de morte, segundo M. Klein), ou de “despe- da. Dessa forma, se tomarmos as etapas do espe- daçamento” (corpus morcelés, de Lacan). Todas lho de Lacan como um referencial, podemos per- essas, para (re)comporem-se como uma unidade ceber a transição do “imaginário” (corresponde ao completa, requerem a função continente e delimi- que autores kleinianos descrevem como “equação tadora da mãe. simbólica”) para o “simbólico”. Não é demais lem- Creio ser adequado o uso da expressão “identi- brar de que, na conceituação de símbolo, a reunião ficação especular” para caracterizar a condição em das duas partes perdidas não visa à reconstituição que a fusional matriz somatopsíquica do indivíduo da primitiva unidade simbiótica mãe-filho. Pelo persiste indiferenciada à da mãe. A partir desse vér- contrário, essa busca do paraíso perdido é própria tice, certas situações clínicas podem ser melhor de pessoas muito regressivas e que mostram um entendidas, como, por exemplo, a sensação que sério prejuízo na formação de símbolos. muitos pacientes psicóticos manifestam de não ha- Na linguagem verbal, a palavra, ela própria, bitar o próprio corpo. Da mesma forma, creio ser constitui-se em um importante símbolo que possi- possível formular uma hipótese, a ser investigada, bilita ao ego utilizar o verbo para fins de comuni- de que determinados estados hipocondríacos crô- cação e não somente para a fala. A linguagem ver- nicos possam ser resultantes de uma identificação bal começa como sendo uma imitação, nos moldes especular com uma mãe corporalmente doente, tan- do espelho-eco da mãe e instala-se na época em to no real como no imaginário. que amadurece a capacidade inata da criança para a fala. Aliás, o eco não deixa de ser um espelho, repetidor, e não é por nada que a ninfa Eco ocupa O ESPELHO NO MITO DE NARCISO um lugar de relevância no mito de Narciso. Nas etapas primordiais, a linguagem está conectada com A clássica e simplista versão de que Narciso as imagens visuais, como os sonhos comprovam. mirava-se nas águas da fonte porque estaria apai- Se os pontos de fixação-regressão corresponderem xonado por si mesmo pode ser, hoje, ampliada por à fase especular fusional, a finalidade da fala, como um entendimento bem mais complexo. A partir da meio de comunicação do futuro adulto, ficará des- versão de Ovídio, acredita-se que o elemento es- virtuada, como será detalhado mais adiante. sencial do mito consiste na busca de Narciso por uma fusão especular: no reflexo das águas da fonte (mãe, fonte da vida), ele busca a si mesmo. No en- tanto, ele está condenado a nunca encontrar a sua 192 DAVID E. ZIMERMAN real imagem refletida, pelo fato de que essa corres- seria o analista reproduzir um espelho embaçado, ponde a uma etapa evolutiva em que ela está indis- que não reflita nada. criminada e confundida com a da mãe. Na versão Neste ponto, merece uma profunda reflexão a de Pausanias, Narciso mirava-se no espelho para conhecida regra da Neutralidade, formulada por acalmar a pena pela perda de sua irmã gêmea que, Freud em 1912: “O médico deve ser opaco aos seus como ele, também era belíssima. Também aí pode- pacientes e, como um espelho, nada deve mostrar se reconhecer a busca gemelar, a sombra, o duplo, a eles além do que lhes é mostrado”. Sabemos que, ou seja, a parte que lhe faltava para compor a tota- em sua prática clínica, Freud não se portava assim; lidade de sua imagem corporal. pelo contrário, ele era muito diretivo e trabalhava Narciso comporta-se da mesma forma como a numa atmosfera de envolvimento afetivo. Por ou- flor que lhe dá o nome, tal como é descrita por tro lado, em uma outra recomendação técnica, ele Brandão (1987), como “bela, inútil, decorativa, ensinava que a função do analista não deveria ser a estéril, venenosa, dá junto às águas, é estupefa- de “... profeta, salvador ou redentor”. Tudo isso ciente (de acordo com a sua raiz etimológica – permite inferir que ele não preconizou uma atitu- Narke – de onde vem narcótico), é de vida breve e de, como muitos analistas equivocadamente ado- simboliza a morte e a ressurreição”. taram, de um espelho frio, meramente um passivo Tirésias – o personagem articulador entre Nar- refletor. Creio que Freud tivera a intuição da fun- ciso e Édipo, pelo fato de ter presença relevante ção especular do psicanalista nos termos que esta- em ambos os mitos – profetizara a Liríope que o mos descrevendo, ou seja, mais do que servir de seu filho Narciso viveria enquanto ele não conhe- um mero espelho DO paciente, ele deve constituir- cesse a si próprio. Essa profecia pode ser entendi- se como um novo espelho AO seu paciente, onde da como um atestado de que há uma incompatibili- este possa mirar-se de corpo inteiro e possa, assim, dade entre o (não) conhecimento que resulta de ver a si próprio e não a imagem do seu analista. mirar-se no espelho da díade narcisista e a forma A transferência especular, especialmente a do de conhecimento da formação simbólica que é pró- tipo fusional, adquire uma relevância em face da pria da tríade edípica. A transição do espelho da possibilidade, nada rara, de ela eternizar-se, no caso ilusão para o da realidade exige que Narciso mor- de encontrar um ressonância em analistas de exa- ra, como no mito, e metamorfoseie-se em Édipo. geradas características narcisísticas. Pelo contrá- rio, a única forma de o analisando passar do plano do imaginário para o do simbólico é pela atitude O ESPELHAMENTO NO VÍNCULO ANALÍTICO interna do seu analista que, tal como a função da “Lei do Pai” (Lacan), faça sucessivas confronta- Todas as considerações a seguir sobre o ções com a realidade, rasgando as máscaras e que- espelhamento na prática analítica partem, é eviden- brando os espelhos da idolatria narcisista. Por ou- te, da premissa de que a relação analista-analisan- tro lado, se o analista não respeitar o ritmo do seu do constitui-se, sempre, como uma unidade de in- analisando e repudiar totalmente, desde o início, tercâmbio especial, de ordem vincular e especular, essa forma de aproximação desse tipo de paciente, e não o de uma simples relação linear entre duas o mais provável é que esse abandonará a análise pessoas estranhas. ou se manterá submetido masoquisticamente a ela. É com pacientes muito regressivos que a fun- Outra possibilidade é que ele permeie a sua análise ção especular adquire uma especial significação na com frenéticos actings, em busca de reassegura- relação analítica. Esse tipo de paciente está procu- dores objetos-espelhos. rando sobreviver ante uma ansiedade que o amea- Foi destacado antes que a linguagem verbal tem ça de aniquilamento, de despedaçamento corporal uma íntima conexão com a especularidade evolu- e psíquico. Por essa razão, ele está em busca de tiva, e que a fala pode sofrer uma patologia de sua uma identidade, bem como do resgate da totalida- função básica que é a da comunicação. A causa de de sua imagem e, para tanto, ele vai necessitar principal é a da fixação na fase especular imaginá- de um espelho, na pessoa do seu analista. Um es- ria, onipotente, e as formas mais comuns do des- pelho, plano e liso, que o reflita exatamente como virtuamento da comunicação verbal do analisando ele é, ao contrário de um analista-espelho que se são as seguintes: comportasse como um prolongamento dos passa- 1) Ele pode atribuir uma força mágico-onipo- dos espelhos convexos ou côncavos que tanto tente às suas palavras, da mesma forma distorceram a imagem de seu paciente; pior ainda como seus primeiros balbucios encontra- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 193

vam eco na mãe, que prestimosamente sa- Entre essas, é muito comum que tais pacientes evi- tisfazia os seus anseios. tem o uso do divã, pois necessitam mirar o rosto e 2) Em caso de regressões extremas, o pacien- o olhar do analista, e que manobrem no sentido de te não se fará entender porque as suas pa- receber deste respostas diretas e espelhadas, sob a lavras estarão veiculando equações simbó- forma de respostas, opiniões e ações. O entendimento do papel do psicanalista como licas em vez de símbolos. o de uma função de espelho ao seu analisando faz 3) Ele não sentirá necessidade em ser claro mudar a concepção puramente transferencialista em sua fala (na relação analítica isso mani- que, fundada no clássico “é aqui, agora e comigo”, festa-se comumente sob a forma de silên- leve o terapeuta ao papel de mero decodificador cios ou de frases subentendidas e reticen- das mensagens inconscientes de seu paciente, uma tes), devido à sua crença mágica de que o a uma. Pelo contrário, a todas essas formas desvir- analista, como a sua mãe outrora, qual um tuadas de comunicação o analista deveria portar- espelho, logo absorverá e refletirá a sua se como um “espelho ressignificador”. Isso quer imagem. dizer que ele, por meio de assinalamentos, confron- 4) O conteúdo de sua fala se limitará a ser um tações, indagações, além das interpretações trans- mero refletor, tipo eco, do discurso paren- ferenciais propriamente ditas, devolverá as proje- ções ao seu paciente, em doses mitigadas, devida- tal. mente compreendidas, nomeadas e, principalmen- 5) Ele falará somente aquilo que vier a refle- te, irá refleti-las com outras significações. Não é tir uma atitude de aprovação do analista, demais lembrar que, no caso de pacientes muito seu espelho (nesse caso, ele liga pouco ao regressivos, a linguagem adulta e simbólica do ana- conteúdo das interpretações e muito mais lista é ineficaz, e cresce em importância a “atmos- à forma, libidinizada, tal como a tonalida- fera analítica”, a qual é basicamente determinada a de da voz do analista, etc.). partir da sua função especular. Dessa forma, sabe- 6) O paciente pode libidinizar a sua fala (ma- mos todos que as interpretações, mesmo as exatas, mãe exultava maravilhada ante as suas pri- só serão eficazes se forem acompanhadas de uma meiras frases) e, neste caso, a sua lingua- atitude básica, interna, tanto da parte do analista gem ficará mais voltada para provocar um como do analisando. Entre as muitas características que compõem a efeito estético do que para comunicar. aludida atitude básica (capítulo 41), seleciono uma: 7) Como uma forma de acting, ele vai procu- a do respeito, não tanto pelo seu significado con- rar pessoas-espelhos que se ajustam a ser vencional, mas, muito mais, pelo que sua etimolo- induzidas a dizer o que o paciente necessi- gia ensina-nos. A palavra respeito forma-se a par- ta e deseja ouvir, a fim de manter a sobre- tir de “re” (de novo, voltar para trás) + “spectore” vivência de sua auto-imagem e da auto-es- (olhar). Isso quer dizer que o paciente, ao mirar-se tima. no espelho-analista, a partir de um retorno transfe- 8) Ele regredirá a um nível pré-verbal, em cujo rencial às suas origens, veja-se refletido como al- caso a sua comunicação, de ordem muito guém que é entendido, valorizado e amado. Dessa primitiva, processar-se-á por meio de ex- forma, sendo respeitado, o analisando passa a res- cessivas identificações projetivas, veicula- peitar o seu analista (corrige as distorções, tanto as denegridas como as idealizadas) e, sobretudo, de- das por gestos, atitudes, sintomas, actings, senvolve a sua própria capacidade de auto-respei- queixas hipocondríacas e somatizações. to. Uma etapa da evolução da análise que exige Essa evolução corresponde a uma gradual muito da adequação do analista é quando começa emancipação de sua dependência em relação ao a processar-se no paciente a transição da transfe- analista como sendo o seu espelho aprovador e, pela rência especular-fusional para uma forma mais re- introjeção da função especular deste, o analisando alista e amadurecida, e que, como é fácil depre- desobriga-se do papel de ser eternamente apenas a ender, costuma vir acompanhada de um incremen- sombra do desejo da mãe e desenvolve a sua capa- to de angústia. cidade para auto-reflexões, o que se constitui no Muitas formas de comunicação descritas como que Bion denomina a “função psicanalítica da per- sendo resistências de oposição à análise são, na sonalidade”. verdade, manifestações de transferência especular.

PARTE 3

Psicopatologia

CAPÍTULO mente falando, que fazer um diagnóstico clínico implica fazer uma análise sintática de como se ar- ticulam entre si as diferentes partes e níveis das várias subestruturas psíquicas, sendo que, de iní- cio, é útil estabelecer uma distinção entre sintoma, 17 caráter, inibição e estereotipia. Quando falamos em sintoma, estamos nos re- ferindo a um estado de sofrimento que o paciente acusa, e do qual está querendo livrar-se, porquanto o sente como um corpo estranho a si. É evidente Neuroses que existe a possibilidade, nada rara, de que a pes- soa manifeste claramente um sintoma facilmente observável pelos outros (alcoolismo, mudança de conduta, alguma evitação fóbica, etc.), porém que No início de sua obra, Freud dividiu os trans- está tão egossintônica que o paciente, aparentemen- tornos emocionais, que então ele denominava te, não o está percebendo e está sofrendo. psiconeuroses, em três categorias psicopatológicas: O termo caráter designa um estado – organiza- 1) As neuroses atuais (que estavam em desuso na do – da mente e da conduta que pode resultar har- psicanálise, mas que recentemente voltam a ocu- mônico e saudával, mas também pode acontecer par, com esse mesmo nome, um lugar de destaque, que, por mais sofrimentos que ele possa estar cau- principalmente a partir dos estudos com pacientes sando aos outros e cometendo prejuízos para si somatizadores). 2) As neuroses transferenciais, próprio, muitas vezes mutilando suas capacidades também conhecidas como psiconeuroses de defe- latentes e reais, sempre prevalece uma egossintonia, sa (que eram as histerias, as fobias e as obsessi- escudada em racionalizações muito bem engendra- vas). 3) As neuroses narcisistas (que constituem das. Para dar um único exemplo, pode ser um cará- os atuais quadros psicóticos). Freud afirmava en- ter obsessivo de uma pessoa bem adaptada e até tão que somente as neuroses transferenciais pode- bem-sucedida, mas que sofre um enorme desgaste riam ser tratadas pelo método psicanalítico, visto a pelo seu medo de cometer algum erro, por mínimo transferência ser a matéria-prima da psicanálise, e, que este seja, ao mesmo tempo em que impõe igual na época, a psicanálise não reunia condições para intolerância às falhas dos outros. perceber a existência da transferência naqueles A inibição é um estado que tanto pode ser a pacientes que estavam em um estado de encapsu- preliminar de um sintoma que está se organizando lamento narcisístico próprio das psicoses. como também pode já estar constituído por um De lá para cá, muita coisa modificou substan- permanente traço de caráter, como pode ser, por cialmente na ciência da psicanálise e na da psiquia- exemplo, uma timidez aceitável que possa já estar tria: as síndromes da psicopatologia foram ganhan- expressando uma “fobia social”. do uma crescente compreensão genético-dinâmica O termo estereótipo, embora não apareça mui- e paralelamente os autores foram ampliando, sub- to na literatura psicanalítica, deve, a meu juízo, ser dividindo, diversificando, construindo novos mo- incluído, porquanto ele designa aquelas atitudes delos e, portanto, aumentando a complexidade aparentemente normais que o sujeito executa no nosológica, tal como aparece nas modernas classi- seu dia-a-dia, mas que uma observação mais aten- ficações diagnósticas, como o DSM ou o CID. Se- ta vai comprovar que ele executa os seus papéis na guindo o planejamento do presente livro, fica evi- família, sociedade e no trabalho de uma forma dente que este capítulo não ficará reduzido à sim- mecânica, sem fazer modificações, girando em tor- plória (vista de hoje) classificação original de no de uma mesma órbita, como quem está unica- Freud, porém tampouco pretenderá, sequer de per- mente cumprindo papéis fixos e estereotipados (tan- to, abranger a totalidade dos tópicos nosográficos to papéis normais como patológicos) que, desde daquelas classificações oficiais. muito cedo, foram-lhe designados pelos pais e edu- Assim, pode-se começar dizendo que as estru- cadores, e que, de alguma forma, mutilam a sua turas caracterológicas, os sintomas, as inibições e personalidade. os estereótipos que configuram as diversas síndro- Os pacientes portadores de estruturas neuróti- mes psicopatológicas resultam de um jogo dialético cas caracterizam-se pelo fato de apresentarem al- entre as relações objetais, as ansiedades e, para gum grau de sofrimento e de desadaptação em al- contra-arrestá-las, os tipos de mecanismos que são guma, ou mais de uma, área importante de sua vida: utilizados pelo ego. Pode-se dizer, psicanalitica- 198 DAVID E. ZIMERMAN sexual, familiar, profissional ou social, incluída, como decorrência dessa hemorragia de substâncias também, é evidente, o seu particular e permanente- sexuais, a neurastenia caracteriza-se por um qua- mente predominante estado mental de bem ou mal- dro sintomático de fraqueza, apatia, cansaço, etc. estar consigo próprio. No entanto, apesar de que o Posteriormente, em 1911, ao estudar o “Caso Schre- sofrimento e prejuízo, em alguns casos, possa al- ber”, Freud descreveu um terceiro tipo de neurose cançar níveis de gravidade, os indivíduos neuróti- atual: a hipocondria, que poderia estar represen- cos sempre conservam uma razoável integração do tando um núcleo “atual” de uma esquizofrenia self, além de uma boa capacidade de juízo crítico e de adaptação à realidade. Outra característica dos estados neuróticos é a de que os mecanismos de- NEUROSE DE ANGÚSTIA fensivos utilizados pelo ego não são tão primitivos como, por exemplo, aqueles presentes nos estados Conceituação psicóticos. De um viés psicanalítico, pode-se discriminar, Freud estudou a angústia em dois momentos de forma genérica, cinco tipos de estruturas neuró- diferentes de sua obra. Na primeira formulação, a ticas: a de angústia, histeria, obsessivo-compulsi- angústia seria conseqüente à repressão, o que pro- va, fobia e depressão. Embora, na atualidade, seja vocaria uma libido acumulada que funcionaria de muito difícil de encontrar-se na clínica psicanalíti- uma maneira “tóxica” no organismo. A partir de ca algum desses quadros em “estado puro”, por- sua monografia Inibições, sintomas e angústia quanto de alguma forma eles sempre aparecem mes- (1926) ele conceituou de forma inversa, ou seja, é clados, convém descrevê-los separadamente, de a repressão que se processa como uma forma de acordo com a nítida predominância que uma das defesa contra a ameaça de irrupção da angústia, formas adquire no psiquismo do sujeito, e que de- mais especificamente, a angústia de castração. termina uma configuração neurótica mais específi- A neurose de angústia consiste em um transtor- ca. As histerias e depressões serão abordadas em no clínico que se manifesta por meio de uma an- capítulos específicos, de forma mais detalhada, le- gústia livre, quer sob uma forma permanente, quer vando em conta não só a sua freqüência e abran- pelo surgimento em momentos de crise. Em outras gência clínica, mas também que, em algum grau, palavras, a ansiedade do paciente expressa-se tan- elas sempre subjazem a qualquer estruturação psí- to por equivalentes somáticos (como uma opres- quica, incluída aquela que costuma ser considera- são pré-cordial, taquicardia, dispnéia suspirosa, sen- da como normal. sação de uma “bola no peito”, etc.), como por uma indefinida e angustiante sensação do medo de que possa vir a morrer, enlouquecer, ou da iminência NEUROSE ATUAL de alguma tragédia. Habitualmente, os psicanalistas empregam os A neurose atual, segundo Freud, não é produ- termos “angústia” e “ansiedade” de forma indis- zida por conflitos históricos, mas sim por motivos tinta, porém creio que cabe alguma distinção. O atuais, de modo que ela não depende estritamente termo ansiedade (talvez tenha alguma relação com de fatores psicológicos. Antes disso, a neurose de “ânsia”, isto é, um desejo desmedido) designa al- angústia seria resultante de fatores biológicos que guma descompensação da harmonia psíquica in- agiriam através de substâncias químicas, sendo que terna, no entanto, nem sempre ela é visível ou per- o acúmulo dessas “toxinas sexuais” produzidas ceptível porque, por meio de recursos defensivos pelas excitações frustadas manifesta-se diretamen- que constituem os mais diversos tipos de negação te por sintomas de angústia livre, como taquicardia, da referida ansiedade, o sujeito pode estar impreg- palpitações, respiração ofegante, etc., que, diz nado por uma ansiedade latente sem que ela seja Freud, são aquelas mesmas que estão presentes no manifesta. Como exemplo disso, pode ser o caso ato sexual. de uma fobia específica a utilizar um elevador, sen- Inicialmente, Freud descreveu dois tipos de do que essa pessoa nada sentirá enquanto puder neurose atual: a neurose de angústia (resultante administrar bem as suas técnicas evitativas dessa da libido estancada, como no caso do “coito inter- situação fobígena, porém um enfrentamento direto rompido”) e a neurastenia. da situação ansiogênica pode fazer vir à tona, de Neste último caso, teria havido uma excessiva forma ruidosa, aquela angústia que estava latente, descarga de substâncias sexuais, como aconteceria aparentemente inexistente. no exagero da prática da masturbação, sendo que FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 199

Por sua vez, a palavra angústia deriva do latim FOBIAS angor, que quer dizer “angustura, estreitamento, apertamento”, o que traduz fielmente os sintomas Conceituação que emergem e ficam livremente manifestos nos sintomas opressivos acima assinalados. Uma complexa e diversificada combinação de Na maioria das vezes, tais sintomas indicam que pulsões, fantasias, angústias, defesas do ego e iden- está havendo uma falha do mecanismo de repres- tificações patógenas pode determinar na persona- são, diante de um – traumático – excesso de estí- lidade do sujeito uma estruturação de natureza mulos, externos e/ou internos. Nos quadros clíni- fóbica. Pelo fato de que essa estrutura fóbica axial cos em que prevalece uma recorrência de episó- costuma ser multideterminada e variar intensamente dios de crises de angústia, é necessário que se le- de um indivíduo para outro, tanto em intensidade vante a hipótese que se esteja tratando do transtor- como em qualidade, ela configura-se clinicamente no conhecido como “doença do pânico”, o qual cos- com uma ampla gama de possibilidades, desde as tuma responder muito bem à medicação específi- mais simples e facilmente contornáveis até as mais ca. complicadas, a ponto de serem incapacitantes e Conquanto para Freud, como vimos antes, o paralisantes. termo “neurose de angústia” designasse uma das Assim, desde uma situação em que estão pre- formas de “neurose atual” – portanto, sem estar di- sentes alguns traços fóbicos na personalidade (sob retamente ligada a antigas repressões – posterior- a forma de inibições, por exemplo), passando pela mente, aquela terminologia também costumava ser possibilidade de uma caracterologia fóbica, carac- utilizada na literatura psicanalítica para designar terizada por uma modalidade evitativa de conduta, uma modalidade de neurose que guarda raízes his- aliada a um típico estilo de comunicação e de lógi- tóricas com fixações das repressões dos desejos ca, pode-se atingir uma configuração clínica de uma proibidos que, por isso, quando surge uma ameaça típica neurose fóbica, sendo que em certos casos é do retorno do reprimido à consciência, a neurose tal o grau de comprometimento do sujeito, que não de angústia manifesta-se pela via somática, através é exagero designar como psicose fóbica. de sintomas de angústia livre. Por outro lado, embora não incomum que a Assim, é útil estabelecer uma certa diferença fobia seja a manifestação única, tal é a sua predo- entre a neurose de angústia e a neurose atual. En- minância no paciente, o que costuma acontecer quanto a primeira alude mais diretamente à mani- com mais freqüência é que, como sintomas isola- festação sintomática de uma angústia livre, resul- dos, ela venha associada no mesmo indivíduo a tante da ameaça de que os primitivos desejos proi- outras configurações, como as histéricas e, prin- bidos, que estão reprimidos no inconsciente, re- cipalmente, as obsessivas e as paranóides, suas tornem à consciência, a “neurose atual” refere mais legítimas “primas-irmãs”. A propósito, creio que diretamente que o sujeito não está conseguindo todo terapeuta com uma sedimentada experiência processar um excesso de estímulos que, na reali- clínica há de concordar que os elementos fóbicos, dade e na atualidade, estão acossando ao seu ego. obsessivos e paranóides andam sempre juntos e Caso o ego não consiga processar adequadamente se interpenetram, porém elas estão estratificadas esse estressante excesso de estímulos (Freud, em de uma forma que a estrutura obsessiva é a mais suas primeiras formulações acerca da neurose atual, organizada no ego do sujeito e, quando ela falha, exemplificava com a masturbação mal dirigida, ou surge a predominância da estrutura fóbica e, igual- com os edípicos incrementados por uma hiperes- mente, em um plano mais regressivo, surge a timulação ambiental), os mesmos escoarão por estruturação paranóide. outras vias, como são as diversas possibilidades da Além disso, não é demais repisar o que já foi fisiologia orgânica. assinalado antes, que é importante levarmos em O termo “neurose de angústia” caiu em certo conta o diagnóstico diferencial que deve ser esta- desuso visto que ela ora se confunde com a síndro- belecido entre as fobias propriamente ditas, que me do pânico, ora com a neurose atual, ora com a vêm acompanhadas por uma intensa angústia-pâ- angústia dos fóbicos diante de situações especifi- nico, e aqueles quadros clínicos similares que se camente ansiogênicas. Aliás, nos primeiros tempos, manifestam na “doença do pânico”. Nem sempre é Freud designava as fobias com a denominação de fácil a distinção entre ambas, no entanto, um crité- “histeria de angústia” o que evidencia a sua per- rio útil consiste no fato de que na fobia há a pre- cepção de que a neurose de angústia e a fobia são sença de uma circunstância (objeto, local, alguma parentes íntimos. cena...) bem determinada, bastando evitá-la para 200 DAVID E. ZIMERMAN que a angústia cesse; enquanto no transtorno do forma de ansiedade de aniquilamento e, so- pânico é mais difícil correlacionar a origem desen- bretudo, de desamparo. cadeante da causa da angústia com alguma clara • Existe uma permanente simbolização e des- causa definida e desencadeante. locamento da ansiedade, que se constitui Uma razão importante para que seja estabele- como uma cadeia de significantes. O melhor cido um diagnóstico diferencial entre esses dois exemplo da rede de significantes que esta- quadros clínicos é que a doença do pânico costu- ma dar uma resposta positiva (às vezes dramática) belecem um significado fóbico consiste em ao uso da moderna farmacoterapia da família dos correlacionar como as fobias originais da antidepressivos, sendo relevante acentuar que, ao criança, do medo da escuridão, da solidão e contrário do que muitos pensavam (e alguns ainda de estranhos, estão intimamente conectadas persistem), esse eventual uso da medicação em nada com o significado do medo de perda da mãe, de negativo interfere no tratamento psicanalítico. ou do amor dela. Da mesma forma, compor- É útil lembrar que a Associação Americana de tam-se as representações simbólicas que, Psiquiatria, no seu Manual Diagnóstico e Estatís- transmitidas pela cultura milenar, transfor- tica de Transtornos Mentais, quarta edição (DSM mam-se em medos universais (serpentes, ra- IV), situa as fobias dentre os Transtornos de Ansie- tos, baratas, escuridão, etc.). dade. • Praticamente, sempre constatamos que no passado houve uma intensa relação simbió- Etiologia tica com a mãe, com evidente prejuízo na resolução das etapas da fase evolutiva da separação-individuação. Na prática clínica, Sabe-se que, na infância, as manifestações clí- nicas mais freqüentes são aquelas relativas aos é fácil observar a persistência desse vínculo medos, fobias (especialmente a animais) e aos “ter- simbiótico com a mãe, tanto a real como a rores noturnos”. É difícil estabelecer uma classifi- que está internalizada no paciente. Correlato cação definitiva das fobias, pelo fato de que são a isso, a figura do pai quase sempre foi des- muitos os critérios que podem ser empregados: as- valorizada e excluída, principalmente a par- sim, unicamente para exemplificar, se o referencial tir do discurso da mãe. etiológico estiver baseado na fixação da etapa • A patologia da fase de separação-individua- evolutiva, ela também permite várias vertentes ção promove uma dupla ansiedade: a de etiológicas. Destarte, a fobia pode ser originária engolfamento (resultante do medo de che- da clássica conflitiva da fase fálica-edípica, com o gar perto demais e absorver ou ser absorvi- respectivo “complexo de castração”, tal como está do pelo outro) e a de separação (pelo risco magistralmente descrito por Freud na fobia que o menino Hans tinha por cavalos. Entretanto, abun- imaginário de perder o objeto), de tal sorte dam evidências de que a fobia também pode estar que é característico da fobia a pessoa criar radicada na fase anal, até mesmo porque essa eta- um delimitado e restrito espaço fóbico para pa evolutiva coincide com os processos de “sepa- a sua movimentação. ração e individuação” da criança, conforme os es- • Um aspecto etiológico significativo é o que tudos de M. Mahler e colaboradores (1975). se refere à identificação da criança com a Da mesma forma, podemos adotar o ponto de fobia de ambos pais, ou de um deles, bas- vista da escola kleiniana, que enfatiza o fato de a tante mais freqüentemente com a mãe, sen- fobia resultar da fixação na fase evolutiva do sadis- do comum que atribuam à criança – futuro mo oral canibalístico, com a respectiva projeção dos adulto – o papel de proteger a fobia de soli- primitivos objetos aterrorizantes sobre o espaço ex- dão dos pais, assim construindo, às custas terior que, então, transforma-se em fobígeno. Pelo fato de que não há uma explicação unitá- de um investimento fóbico no filho, aquilo ria para a formação das fobias, cabe tentar clas- que eu costumo chamar de seguro-solidão. sificá-las de acordo com a pluralidade causal, se- • Dessa maneira, adquire uma importância na gundo a enumeração a seguir: etiologia da fobia o tipo de discurso dos pais, repletos com os respectivos significados Além da angústia de castração, também está • fóbicos, nos quais, acima de tudo, prevale- sempre presente em qualquer fobia alguma cem as palavras “cuidado”; “é perigoso”, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 201

“faz mal”, “evita chegar perto”, etc., etc. e • Há uma acentuada tendência a manifestações que refletem uma excessiva carga de identi- de natureza psicossomática. ficações projetivas dos temores dos pais na • Basicamente, o que define uma condição mente da criança. fóbica é o uso, por parte do paciente, de uma • É evidente que essa ação fobigênica dos pais “técnica de evitação” de todas as situações vai depender diretamente do grau de insufi- que lhe pareçam perigosas. Essa sensação de ciência das funções do ego da criança em perigo decorre do fato de que a situação ex- poder discriminar e pensar sobre aquilo que terior fobígena (por exemplo, um elevador, está sendo invadido no seu psiquismo. Tam- um avião, uma viagem, um tratamento ana- bém pesa um prévio conhecimento quanto lítico...) está sendo o cenário onde estão sen- ao risco de que o medo do sujeito esteja jus- do projetados, deslocados e simbolizados os tificado por uma ameaça real, ou que ele es- aspectos dissociados das pulsões e objetos teja fora de proporção, devido ao seu desco- internos, representados no ego como peri- nhecimento da natureza do fato que ele en- gosos. frenta, o que dá lugar à produção de fanta- • Por saber da irracionalidade de seus sinto- sias de terror. Um exemplo banal: se diante mas, o indivíduo fóbico desenvolve uma de um trovão em dias de chuva a mãe se apa- “técnica de dissimulação”, por vezes, até ao vora e cria um cenário de terror em casa, com nível de um falso self, tal é o seu grau de mil recomendações para os filhos, ela está culpa, vergonha e humilhação diante de seus criando um excelente caldo de cultura para temores ilógicos. Muitas outras vezes, a fo- a construção de uma fobia. Se, pelo contrá- bia não aparece manifestamente, e ela so- rio, essa mãe encarar o trovão com naturali- mente pode ser detectada pelo seu oposto, dade e, melhor ainda, puder explicar que ele isto é, de sua conduta contrafóbica. sempre acompanha o relâmpago que resulta • Em certas fobias, como as claustrofóbicas e das leis da natureza, quando ocorre o encon- as agorafóbicas, sempre existe uma escolha tro de cargas eletromagnéticas positivas com de pessoas que se prestem ao papel de “acom- as negativas, e que o trovão vem depois do panhantes” – e de continuadores – da mes- raio porque a luz se propaga com uma velo- ma fobia. Essa é a razão pela qual determi- cidade muitíssimo superior que a do som, a nadas características fóbicas, em certas fa- criança fica tranqüila, pelo menos dessa fo- mílias, perpetuam-se durante gerações. É útil bia ela está livre, e, de “lambuja”, ainda fez assinalar que a grande “união” que muitos um aprendizado. Essa experiência gratifican- casais e famílias se vangloriam de possuir te para a criança, de ver o medo transforma- (“estamos sempre juntos, nunca nos separa- do em palavras que dão um significado e um mos seja qual for a circunstância, etc.”) mui- nome ao que lhe é desconhecido, é aquilo tas vezes pode estar expressando uma mo- que todo paciente, muito particularmente o dalidade fóbica, na qual predomina a “téc- que estiver bastante regressivo, espera do seu nica de um controle mútuo”. analista. • Na situação analítica, costuma ocorrer que o paciente fóbico, repetindo o que faz com todas as pessoas em geral, mantenha a técni- Características Clínicas ca da regulação da distância afetiva com o terapeuta, de modo a não ficar nem próximo • Na clínica, como já foi acentuado, os esta- demais, para não correr o risco de ser “engol- dos fóbicos virtualmente sempre vêm acom- fado”, e nem tão longe que possa correr o panhados de manifestações paranóides e risco de perder o vínculo e o controle sobre obsessivas, e sempre estão encobrindo uma o necessitado analista. De forma análoga, é depressão subjacente. freqüente a possibilidade de que, como uma • Tanto ou mais do que a sexualidade confli- forma de regular a distância com a análise e tada, sempre encontramos uma má elabora- com o analista, eles faltem regularmente a ção das pulsões agressivas. muitas sessões ou apresentem outros tipos 202 DAVID E. ZIMERMAN

de resistências, sendo que não é rara a pos- também em algum prejuízo no seu funcionamento sibilidade de que façam um tratamento “des- na vida familiar e social. É bem sabido o quanto, continuado”, ou seja, com uma alternância em certos casos, os sintomas obsessivos e compul- de muitas interrupções e outras tantas reto- sivos, compostos por dúvidas ruminativas, pensa- madas, quase sempre com o mesmo terapeu- mentos cavilatórios, controle onipotente, frugali- dade, obstinação, rituais e cerimoniais, atos que ta, constituindo aquilo que Nogueira (1996) compulsiva e repetidamente são feitos e desfeitos chama de “uma análise em capítulos”. num nunca acabar, podem atingir um alto grau de • Uma outra decorrência de ordem prática é incapacitação total do sujeito para uma vida livre, que os pacientes fóbicos, nos quais predo- configurando uma gravíssima neurose, beirando à mina a “ansiedade de engolfamento”, podem psicose (recordei agora de uma jovem paciente, responder muito persecutoriamente à insis- internada, que estava com as suas mãos em carne tência do analista em interpretar sistemati- viva de tanto que, o tempo todo, lavava-as, esfre- camente no “aqui-agora-comigo”, não sen- gando nelas energicamente um sabão). do poucos os casos que interrompem a aná- Vale lembrar que o termo “obsessão” refere-se lise em função disso. aos pensamentos que, como corpos estranhos, infiltram-se na mente e atormentam o indivíduo, enquanto, por sua vez, o termo “compulsão” de- NEUROSE OBSESSIVO-COMPULSIVA signa os atos motores que o neurótico executa como uma forma de contra-arrestar a pressão dos referi- dos pensamentos. Conceituação Também é útil esclarecer que o diagnóstico de “obsessivo” não define uma forma única de caracte- No DSM-IV, essa entidade clínica está enqua- rologia, porquanto a mesma pode manifestar-se de drada como transtorno obsessivo-compulsivo formas opostas, ou seja, tanto são obsessivos aque- (TOC). Da mesma forma que acontece em outras les nos quais predomine uma tendência à passivi- estruturações da personalidade, também a de natu- dade e que tomam inúmeros cuidados antes de to- reza obsessiva diz respeito à forma e ao grau como mar uma iniciativa e deixam-se subjugar, como tam- organizam-se os mecanismos defensivos do ego bém são obsessivos aqueles nos quais prevalece diante de fortes ansiedades subjacentes. uma atividade agressiva, que se tornam líderes com Assim, embora a obsessividade possa ser um um perfil de mandonismo, intolerância a erros, fa- elemento comum em diversas pessoas diferentes, é lhas ou limitações dos outros, assim adotando uma importante que se faça uma indispensável discri- postura despótica e tirânica, ainda que sejam pes- minação entre os seguintes estados: 1) Traços ob- soas sérias, bem-sucedidas e bem-intencionadas. sessivos em uma pessoa normal, ou como traços acompanhantes de uma neurose mista, uma psico- se, perversão, etc. 2) Caráter marcadamente ob- Etiologia sessivo. 3) Neurose obsessivo-compulsiva. Sabe- mos que as duas últimas categorias se diferenciam Muitos autores, desde Freud até os contempo- especialmente pelo fato de que uma caracterologia râneos, têm exaustivamente estudado a gênese da obsessiva implica na presença permanente e pre- estruturação obsessiva sob os mais diversos e múl- dominante dos conhecidos traços de meticulosida- tiplos vértices de abordagem e de entendimento. de, controle, dúvida, intolerância, etc., sem que isso Como um roteiro para o leitor que quer acom- altere a harmonia do indivíduo ou que o faça sofrer panhar mais de perto a evolução das idéias de Freud exageradamente, embora ele apresente algumas acerca dos fenômenos obsessivo-compulsivos, se- inibições que o desgastam e possa estar infligido gue um roteiro cronológico das sucessivas vezes algum sofrimento aos que convivem mais intima- que ele abordou essa temática. Na época pioneira, mente com ele. Pode-se mesmo dizer que uma pes- as suas primeiras idéias surgem em 1894 (As psi- soa portadora de um caráter obsessivo, desde que coneuroses de defesa), 1895 (Obsessões e fobias), esse não seja excessivo, é aquele que melhor reúne e em 1896 (Novos comentários sobre as psiconeu- os sadios aspectos de uma necessária disciplina, roses de defesa). Um aprofundamento mais con- método, ordem, respeito, moral e ética. sistente e substancioso começa a aparecer desde Já a neurose obsessiva, pelo contrário, implica 1907 (Atos obsessivos e práticas religiosas, no qual um grau de sofrimento, a si próprio e aos demais, e ele formula a famosa sentença de que a religião é FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 203 uma neurose obsessiva universal, enquanto a neu- dem estar num forte conflito; ou, nas repre- rose obsessiva é uma religião em particular), pros- sentações do ego, o gênero masculino e o segue em 1908 (Caráter e erotismo anal), 1909 feminino não se entendem entre si, etc.). (Notas sobre um caso de neurose obsessiva, mais 4) Muitos autores apontam a importância da conhecido como o famoso caso do Homem dos defecação para a criança, com as respecti- ratos), 1912 (Totem e Tabu, no qual ele compara o vas fixações anais que se organizam em psiquismo dos neuróticos com o dos primitivos), 1913 (A disposição à neurose obsessiva), 1916 (O torno das fantasias que cercam o ato de sentido dos sintomas, que constitui o capítulo 17 defecar; o significado atribuído às fezes de Conferências introdutórias à psicanálise), 1918 (que a criança vivencia como sendo a sua (Da história de uma neurose infantil, celebremen- “obra”), a relação que a criança tem com te conhecido como o caso do Homem dos lobos), os pais que podem determinar se o defecar 1926 (Inibições, sintomas e angústia). e urinar representam sadias e estruturantes Seguindo a Freud, que, sobremodo, na organi- conquistas suas, ou uma forma de presen- zação obsessiva, destacou a conflitiva edípica, com tear os educadores, ou uma forma de po- a ansiedade de castração, homossexualidade laten- der controlar e castigá-los. te, masoquismo erógeno, etc., muitos outros auto- 5) De forma análoga, também importa a fixa- res, antigos e contemporâneos, trouxeram inúme- ção no psiquismo da criança daquela co- ras outras contribuições. As mesmas vão desde Abraham, que ligou as obsessões à existência de nhecida equação de Freud, pela qual ele um superego rígido formado desde a educação dos postulava que a criança equipara as fezes a esfíncteres, que ele chamava de “moral dos esfínc- pênis, bebês e presentes. No entanto, nin- teres”, até aqueles que, como Meltzer, J. Ch. Smir- guém contesta que a educação esfincteriana gel, entre tantos outros, valorizam não só as pul- da criança, quando adequadamente exer- sões sádico-anais, tão bem destacada pela escola cida pela mãe, representa um importante kleiniana, mas também destacam a participação do fator de estruturação do psiquismo. narcisismo, com a atribuição de um papel impor- tante às ambições do ego ideal e das expectativas do ideal do ego, de modo que são comuns expres- Características Clínicas sões como “idealização das fezes”, “narcisismo anal”, “pênis fecal”, etc. Esta última expressão, segundo J. Smirgel (1978), caracteriza aqueles pa- De uma forma algo abreviada, os seguintes as- cientes masculinos que vivem em um “estado anal”, pectos merecem ser destacados: e por um mecanismo narcisista onipotente “redu- • O termo “obsessivo” etimologicamente de- zem tudo a uma mesma merda”, assim abolindo as riva dos étimos latinos “ob” (quer dizer: con- insuportáveis diferenças que ele tem com os ou- tra, a despeito de...) + “stinere” (significa: tros. uma posição própria, tal como aparece em Resumidamente, os fatores etiológicos mais “de-stino”), bastando isso para definir o marcantes consistem na existência de: quanto existe uma ambigüidade e ambiva- 1) Pais obsessivos que impuseram um supe- lência no sujeito obsessivo, resultante do fato rego por demais rígido e punitivo. de que, por um lado, ele sente o seu ego sub- 2) Uma exagerada carga de agressão que o ego metido a um superego tirânico (ele é obriga- não conseguiu processar, e, igualmente, uma do a fazer, a pensar, ou a omitir, sob penas falha da capacidade do ego na função de sín- de...), ao mesmo tempo em que ele quer to- tese e discriminação das permanentes con- mar uma posição contra esse superego e dar tradições que atormentam o obsessivo. livre vazão ao id. 3) Do ponto de vista estrutural, há um cons- • Esse conflito entre as instâncias psíquicas tante conflito intra-sistêmico (o ego está sub- explica os sintomas, já mencionados, de or- metido ao superego cruel e, ao mesmo tem- dem, limpeza, disciplina, escrupulosidade e po, ele está pressionado pelas demandas afins, que caracterizam o obsessivo, sendo enérgicas do id) assim como um conflito que a obsessividade pode manifestar-se com intra-sistêmico (por exemplo, dentro do pró- dois perfis caracterológicos: um se manifes- prio id, as pulsões de vida e de morte po- ta sob uma forma passiva (corresponde à 204 DAVID E. ZIMERMAN

chamada “fase anal retentiva”) e o outro tipo • Se falham as defesas obsessivas, aparecem é de natureza ativa (corresponde à “fase anal extratos mais primitivos da mente (como expulsiva”), como foram denominadas por ânsia de fusão com o objeto, por exemplo) e Abraham. Os primeiros, aqueles obsessivos que podem provocar soluções fóbicas, que podemos considerar como sendo do tipo paranóides ou perversas. Da mesma forma, “passivo submetido”, apresentam uma neces- como conseqüência da relação íntima que sidade enorme de agradar (melhor seria di- existe entre obsessividade, fobia e paranóia, zer: não desagradar) a todas as pessoas, de- freqüentemente observa-se que muitas vezes vido à sua intensa ansiedade em poder ma- as obsessões não são mais do que uma mo- goar ou vir a perder o amor delas. Assim, dalidade de contrafobia e, em outras vezes, esse tipo de obsessivo pode ficar no papel o detalhismo obsessivo está claramente a da criança intimidada e submetida aos obje- serviço das desconfianças e da conseqüente tos superegóicos, as quais passam o tempo defensividade paranóide. Nesse último caso, todo pedindo “desculpas”, “por favor”, “com o sujeito fica sendo um polemizador, ele licença”, “muito obrigado”..., ou adotando querela e porfia em cima de detalhes míni- atitudes masoquistas. A segunda modalida- mos (ele sempre tem um “não” engatilhado de caracterológica de obsessivos consiste no na ponta da língua, ou quando diz “sim”, em tipo do “ativo-submetedor”, que resulta de seguida vem um “mas”...), configurando um processo de identificação com o agres- aquilo que, comumente quando alguém quer sor pelo qual o sujeito adquire as caracterís- se referir a alguém “chato”, define-o como ticas de exercer um controle sádico sobre os sendo um “pentelhador”. outros, aos quais ele quer impor as suas ver- • A escolha de suas relações objetais costuma dades. recair em pessoas que se prestem a fazer a • Em ambos os tipos de neuróticos obsessivo- complementação dos dois tipos antes des- compulsivos há uma permanente presença de critos, como é, por exemplo, o de uma rela- pulsões agressivas, mal resolvidas, de um ção tipo dominador x dominado; ativo x pas- superego rígido, muitas vezes cruel, ante a sivo; sádico x masoquista, etc. desobediência aos seus mandamentos, e de • Quando prevalece uma obsessividade narci- um ideal de ego cheio de expectativas a se- sista, o sujeito exibe uma superioridade, por rem cumpridas, sendo que tudo isso mantêm- vezes muito bem disfarçada sob uma capa nos em um continuado estado de culpa. de modéstia, pela qual ele tenta convencer • Os mecanismos defensivos mais utilizados aos outros (e a si próprio) o quanto ele é, pelo ego para poder sobreviver à carga das entre todos mais, o mais honesto, dadivoso, ameaças são os de anulação (desfazer aqui- humilde (faz lembrar aquela anedota do su- lo que já foi feito, sentido ou pensado), de jeito que se jactava de ter conseguido o títu- isolamento (isolar o afeto da idéia), forma- lo mundial do “sujeito mais humilde”), etc. ções reativas (como forma de negar os sen- Essa superioridade obsessiva pode manifes- timentos que lhe despertem ansiedade), ra- tar-se por uma dimensão “moral”, que con- cionalização e intelectualização (especial- siste no fato de que o sujeito se torna, com- mente na situação analítica, são muito em- pulsivamente, um “colecionador de injusti- pregadas a serviço das resistências). Mais ças”. ainda, existe a defesa inconsciente que con- • Freqüentemente, os obsessivos encaram a siste em utilizar um sistema de pensar rumi- sexualidade do ponto de vista da analidade nativo, cavilatório, com uma nítida preferên- (cuidados de limpeza e assepsia, sentimento cia pelo emprego do “ou”, disjuntivo, no lu- de ser propriedade, ou ser proprietário, do(a) gar do “e”, integrativo, de sorte que a pre- parceiro(a), controle do orgasmo e exagera- sença compulsiva e recorrente de certos pen- dos escrúpulos em utilizar os recursos orais samentos obsessivos visam justamente anu- e anais que uma sexualidade adulta permi- lar a outros pensamentos que estão signifi- te). Também acontece seguidamente uma di- cados como sendo desejos proibidos. ficuldade em o obsessivo “soltar-se” no ato FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 205

sexual, com a conseqüência de uma dificul- a sua agressão reprimida), o isolamento (em dade orgástica, porquanto uma “parte” de sua narrativas desprovidas de emoções), etc. É mente está inconscientemente “escalada” preciso levar em conta que a força mágica para funcionar como “observadora” daquilo que o neurótico obsessivo empresta aos seus que está se passando com os dois da parce- pensamentos e às suas palavras colabora para ria. Quando prevalece a obsessividade nar- que o seu ego mobilize as defesas mencio- cisista, é tal o pavor de que haja um fracasso nadas. da potência ou da orgasmia, que ele(a) usa É fácil o terapeuta perceber o quanto o “ideal de mil subterfúgios para evitar o enfrenta- do ego” se constitui como o tirano do paciente ob- mento de uma ligação erótica porque não se sessivo, forçando-o a uma idealização da perfei- entregam ao ato precipuamente na busca de ção e a adotar um estilo de pessoa excessivamente um prazer, antes disso, é como se estives- lógica. O sujeito esforça-se ao máximo para atin- sem se submetendo a um exame de avalia- gir um perfeccionismo, porém nada adianta; não ção de sua auto-estima, sempre a perigo, e vem a recompensa imaginada e com facilidade ele daí a facilidade de instalar-se um círculo vi- fica aprisionado em um estado de decepção e de- cioso de medo e evitação, que acaba adqui- pressão. rindo características fóbicas. O maior cuidado que o analista deve ter consis- • Na situação analítica, o risco é de que o te na possibilidade de ele se deixar equivocar pela colaboração irretocável desse paciente, que costu- paciente obsessivo consiga fazer prevalecer ma ser obsessivamente correto, assíduo, pontual, o seu controle, sobre si mesmo e sobre o te- associa livremente, bom pagador, com boa apre- rapeuta, pelo uso de seus habituais mecanis- sentação e vida profissional geralmente bem resol- mos defensivos: o de um controle onipoten- vida; porém, existe a possibilidade de que este ana- te (deixa o processo analítico estagnado); o lisando mais esteja “cumprindo a tarefa de ser um deslocamento (para detalhes, que se tornam bom paciente” do que propriamente alguém dis- enfadonhos e podem provocar uma, esterili- posto a fazer mudanças verdadeiras. Nesses casos, zante, contratransferência de tédio); a anu- não basta que as interpretações do analista estejam lação (com o emprego sistemático de um corretas, é necessário observar o destino que elas discurso na base do “é isto, mas também pode tomam na mente do obsessivo, se elas lá germinam ser aquilo, ou, não é nada disto...”; a forma- ou se ficam desvitalizadas. Um bom recurso técni- co é o de fazer um permanente confronto para o ção reativa (sempre gentil, educado e bem paciente entre o que ele diz, sente e, de fato, faz. comportado, o paciente não deixa irromper

CAPÍTULO dição bastante depressiva, sendo que essas pessoas não se completam em nenhuma área da vida. 4) As “pseudo-histerias”, presentes em personalidades muito mais primitivas, sendo que a sua extrema instabilidade emocional justifica a antiga denomi- 18 nação “psicose histérica”. Segundo Zetzel, a indi- cação de psicanálise para as duas últimas formas de personalidade histérica, especialmente a última, seria muito discutível. Além disso, cabe acrescentar mais três aspec- Histerias tos: um, o de que a compreensão dinâmica dos au- tores quanto à etiologia da histeria também varia bastante, desde aqueles que priorizam, alguns ex- clusivamente, o pólo fálico, edípico, até outros psi- Deliberadamente, preferi a forma plural (histe- canalistas que mais enfaticamente valorizam o pólo rias) para titular este capítulo, tendo em vista que oral, narcísico. Um segundo ponto diz respeito a existe um largo leque de possibilidades de como o que as histerias se modificam conforme o contex- termo “histeria” costuma aparecer nos textos psi- to sociocultural vigente em uma determinada épo- canalíticos, com formas e significados muitas ve- ca. O terceiro aspecto consiste no fato de que a zes bastante distintos e até algo contraditórios en- histeria é tão plástica e proteiforme, que de alguma tre si. Tanto é assim, que a histeria é o campo mais forma, ela está presente em todas as psicopato- amplo da psicanálise, como também é o mais pró- logias, sendo que a compreensão dos psicanalistas ximo da normalidade convencional, a tal ponto que, deixou de ser unicamente da psicodinâmica dos de certa forma, poderia abarcar a todas aquelas conflitos sexuais reprimidos, mas também como pessoas que se caracterizam por uma nítida predo- uma expressão de problemas relacionais e comuni- minância do emprego de repressões. cacionais. Mais ainda: o conceito de histeria abrange mui- Um espectro assim tão largo leva, inevitavelmen- tas modalidades e graus de quadros clínicos dentro te, a uma confusão conceitual e semântica, o que da categoria de “neurose histérica”, porém também justifica o questionamento: uma histeria ou muitas? permite ser abordado de outros vértices, como o de uma “personalidade (ou caracterologia) histéri- ca” ou o da possível presença de “traços histéri- EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO cos” em praticamente todas as personalidades nor- mais ou psicopatológicas, inclusive em psicóticos. O próprio nome “histeria” (de “histeros” que, Pode servir como exemplo o fato de que, conside- em grego, quer dizer “útero”) já dá uma idéia clara rando unicamente a “neurose histérica”, a mesma de como os antigos atribuíam unicamente às mu- costuma ser descrita por múltiplos pontos de vista: lheres a condição de serem as portadoras desse assim, do ponto de vista psiquiátrico, essa histeria transtorno psicológico e, mais ainda, havia a cren- costuma ser dividida em dois tipos, a conversiva e ça de que elas estariam sendo presas de “maus es- a dissociativa, mais adiante explicitadas. píritos” e, por isso, deveriam ser banidas da comu- Do ponto de vista psicanalítico, cabe tomar a nidade ou submetidas a rituais de exorcismo por conhecida subdivisão de Zetzel (1968) que propõe meio de torturas. a existência de quatro subtipos de pacientes histé- Decorridos alguns séculos, o atendimento das ricas, as quais ela denominou: 1) As “verdadeiras” histerias ganhou um certo cunho científico pelo ou “boas” histéricas, que atingem a condição de grande mestre Charcot, que então pontificava em casar, ter filhos, com bom desempenho profissio- Paris, por meio da prática da hipnose com pacien- nal e que se beneficiam com a psicanálise. 2) Ou- tes histéricas, experimentos esses que encantaram tras, também “verdadeiras”, com casamentos com- Freud e motivaram-no ao prosseguimento da in- plicados, geralmente de natureza sadomasoquística, vestigação e prática clínica com pacientes histéri- que não conseguem manter por muito tempo um cas. Na época em que Freud publicou Estudos so- satisfatório compromisso com a análise. 3) Aque- bre histeria (1895), quando ele recém estava esbo- las pacientes que manifestam sintomas histéricos, çando as suas idéias psicológicas ligadas ao dina- que lhes confere uma fachada de pessoa histérica, mismo do inconsciente, a comunidade médica fi- mas que, na verdade, encobre uma subjacente con- cou chocada porque até então a histeria era consi- 208 DAVID E. ZIMERMAN derada uma doença degenerativa, que seria causa- para a escola kleiniana, a histeria seria uma organi- da principalmente pela sífilis. No referido livro, es- zação defensiva contra uma psicose subjacente. crito juntamente com Breuer, em quatro pacientes Green (1974) também destaca o aspecto defen- histéricas, Emmy von N. Lucy R., Katherina e sivo da histeria, porém ele considera que esse es- Elisabeth, Freud começa verdadeiramente a encon- cudo protetor representado pelo caráter exibicio- trar o berço da psicanálise, e assim abrir as portas nista e histriônico, típicos do histérico, visam, so- para novos descobrimentos em sucessivos traba- bretudo, a protegê-lo contra os seus núcleos lhos, sendo que o seu estudo mais notável acerca depressivos, com vistas a equilibrar a sua auto-es- da histeria, publicado em 1905, é conhecido como tima, que sempre está ameaçada, porquanto, no o célebre Caso Dora. fundo, a pessoa histérica é extremamente frágil e A partir desse caso, assim como de outros tan- instável. tos trabalhos, Freud traz aportes teóricos e técni- Lacan retorna a Freud, mas ele o faz postulan- cos sobre a histeria, sendo que ele tanto valorizou do que não é o pênis (como órgão anatômico) que a sexualidade reprimida – gravitando em torno da a histérica busca de forma afanosa, mas, sim, o falo conflitiva edípica – como também concebeu a fe- (símbolo do poder que, comumente, mas não ex- minilidade como sendo basicamente governada por clusivamente, a criança atribui ao pênis do pai). um acentuado narcisismo. Daí, decorrem algumas No imaginário da criança, o falo designa justamente conseqüências, como: • Uma preferência da histé- aquilo que falta à mãe, e que vem a ficar represen- rica em ser amada, ao invés de amar; logo, um exa- tado no seu ego como uma ausência, falha, falta e, gerado culto ao corpo. • A escolha do homem seria por essa razão, ela pode passar a vida inteira acos- conforme o ideal do homem que ela gostaria de sada por desejos e demandas para preencher esse ser. • A constante existência de uma “inveja do pê- vazio imaginário. nis”; de onde se origina um “complexo de masculi- Em resumo, na atualidade, à medida que escas- nidade”. • Que a mulher procuraria satisfazer por seiam cada vez mais as histerias com os sintomas meio de algum filho; além de outros aspectos afins. dramáticos dos primeiros tempos de Freud, em uma Nos primeiros tempos, Freud também estabe- proporção inversa, abundam os escritos sobre os leceu um diferença na etiologia da histeria e da transtornos da “personalidade histérica”. No entan- neurose obsessiva: na histeria, o trauma sexual ocor- to, os autores não rejeitam as descobertas anterio- re entre os 3 ou 4 anos e é experimentado passiva- res e tampouco deixam de lado o desejo edípico mente pela criança, enquanto na neurose obsessiva com toda a sua constelação de conseqüências, em- a participação da criança no abuso sexual seria ati- bora esteja havendo uma crescente ênfase na orga- va e, por isso, ela vem a sofrer auto-recriminações. nização narcisista da estrutura histérica. Abraham, seguindo os passos de Freud, trouxe Assim, muitos traços sintomatológicos e carac- uma significativa contribuição ao subdividir as his- terológicos, classicamente considerados como his- terias em dois tipos, que ele considerou, respecti- téricos, foram melhor estudados e comprendidos vamente, como de tipo passivo, dependentes, e as por meio da perspectiva do narcisismo, de modo de tipo ativo, que manifestam características fálicas que, nesses casos, mais do que o objetivo de con- e são extremamente competitivas com os homens. seguir uma relação afetiva estável, essa pessoa his- Reich (1933), a quem a psicanálise deve o es- térica visa, sobretudo por meio de um jogo sedu- tudo do caráter, descreveu a “personalidade fálico- tório, ser amada e desejada, para então triunfar so- narcisista” que ele considerava como constituindo bre os objetos amorosos, que ficam sob o risco de uma categoria psicopatológica própria, situada em serem desprezados e abandonados. As antigas fe- um lugar intermediário entre a personalidade ob- ridas narcisistas tornam essas pessoas vingativas; sessivo-compulsiva e a histeria. Na atualidade, essa contudo, elas não querem uma “vingança final”, denominação de “fálico-narcisista”, que caracteri- posto que precisam dos objetos, e assim utilizam a zava, sobretudo, uma forte agressividade viril, caiu “tática da tortura”, fazendo-os sentirem-se culpa- em desuso, e as suas características clínicas foram dos (por um discurso repleto de queixas, lamúrias, absorvidas dentro da categoria mais ampla de “ca- cobranças, acusações, desqualificação e injeção de ráter histérico”. culpas), entremeados de momentos de muita paz e M. Klein esvaziou a importância da genitalidade amor, com o propósito inconsciente de que as pes- na histeria ao sustentar, enfaticamente, a arcaica soas necessitadas se ocupem, cuidem e supram as etiologia oral dos conflitos a ela inerentes, assim demandas narcisistas, até tudo recomeçar de novo valorizando, sobretudo, as angústias paranóides e com o mesmo script. depressivas da criança em relação à mãe. Assim, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 209

TIPOS DE HISTERIAS Histerias Dissociativas

Como antes foi frisado, a histeria é tão plástica Os sintomas clínicos mais comuns que caracte- que, a rigor, pode-se dizer que, de alguma forma, rizam esses quadros dissociativos consistem em ela está presente em todas as psicopatologias; no desmaios, desligamentos, ataques do tipo epilépti- entanto, o termo histeria deve ficar restrito para co, estados de “belle indiference”, sensações de aqueles quadros sintomatológicos e caracteroló- despersonalização e estranheza, estados crepuscu- gicos que obedecem a uma estruturação própria e lares e, mais tipicamente, os conhecidos casos de conservam uma série de pontos em comum. “personalidade múltipla” (como aparece nas “Três A própria classificação nosológica das doen- Faces de Eva”, etc.). Esses últimos casos devem- ças mentais (DSM) não fica restrita a um único eixo: se ao fato de que diversas representações distintas assim, partindo do eixo I (sintomas, psicopatologia) coexistem dentro do ego, dissociadas entre si, e que as histerias mantêm a velha divisão nos dois tipos, emergem separadamente na consciência de acordo denominados como conversivas e dissociativas, com determinadas necessidades e circunstâncias. enquanto que, visto do eixo II (caracterologia, trans- tornos da personalidade), o conceito é mais abran- gente e inclui as denominações de transtornos de Transtornos de Personalidade Histérica personalidade histérica; personalidade infantil- dependente; personalidade fálico-narcisista; tra- ços histéricos em outras personalidades; transtor- Gabbard (1992), baseado no DSM, considera nos de personalidade histriônica... útil diferenciar “personalidade histérica” de “per- sonalidade histriônica”, embora, às vezes, elas superponham-se. O autor considera que a forma “histérica” é a mais sadia delas, porquanto os seus Histerias Conversivas pontos de fixação estão radicados na fase fálico- edipiana, enquanto a forma “histriônica” está mais Diz respeito ao fato de que os conflitos sofrem fixada nos primórdios orais. Os transtornos de per- uma “conversão” nos órgãos dos sentidos (ceguei- sonalidade histérica constituem o protótipo atual ra, surdez, perda do tacto, alucinoses, etc.), e no dentro do universo das histerias e manifestam-se sistema nervoso voluntário (contraturas muscula- por um conjunto de características que serão abor- res, paralisias motoras, etc.). A conversão segue a dadas mais adiante. mesma deformação simbólica dos sonhos, sendo que muitas vezes os sintomas conversivos deixam transparecer com relativa facilidade o conflito sub- Transtornos de Personalidade Histriônica jacente. Um determinado sintoma conversivo pode conter muitos significados, como pode servir de exemplo a tosse que acometia a célebre paciente Esta denominação refere-se a uma forma mais Dora, e que representava três aspectos: um simbo- regressiva de histeria, sendo que as suas manifes- lismo de sentimentos sexuais, agressivos, narcisis- tações são muito mais floridas que as das “histéri- tas e melancólicos, uma forma de identificação com cas”, a ponto de alguns autores apontarem para um a tosse da sra. K., sua rival sexual, e a aquisição de íntimo parentesco entre o histrionismo e os esta- um ganho secundário. Por outro lado, vale consig- dos borderline. Destarte, a menina estabelece uma nar mais três aspectos acerca da conversão: ela não equação de igualdade sincrética entre o seio e o é específica das histerias, o diagnóstico diferenci- pênis, de tal sorte que, quando ela crescer, vai en- al, com doenças orgânicas, hipocondria ou mani- volver-se em comportamentos sexuais promíscuos festações psicossomáticas, nem sempre é fácil e, e insatisfatórios, pois o pênis masculino que ela por fim, a constatação de que a psiquiatria moder- tanto almeja não passa de um fetiche do materno na inclina-se acentuadamente para a postulação de seio feminino, em uma busca interminável e sem- que não há uma direta relação clínica ou dinâmica, pre incompleta. O termo “histrião”, na Roma anti- entre os sintomas histéricos conversivos e os “trans- ga, designava os atores que representavam “farsas tornos de personalidade histérica”. bufonas ou grosseiras”, de modo que, nas histeri- as, essa palavra alude àquelas pessoas que “repre- sentam” ser o que de fato não são, fingem, são fal- sas e teatrais, inclusive, são impostores na sexuali- dade, por meio de uma aparência de “hiperfe- 210 DAVID E. ZIMERMAN minilidade”, ou, no caso dos homens, de uma “hi- inibição sexual. • A imitação prevalece sobre a ver- permasculinidade”. dadeira identificação; etc.

Caráter Fálico-Narcisista O QUE HÁ DE ESPECÍFICO NAS HISTERIAS?

Embora essa denominação tenha caído em de- Não existe propriamente uma especificidade suso, alguns autores, como E. Bleichmar (1988), perfeitamente circunscrita nas histerias, até mes- fazem questão de conservá-lo, pela razão de que mo porque, como vimos, existe uma diversidade designa uma configuração típica de pessoas histé- de enfoques, nem sempre compatíveis entre si, po- ricas, sobretudo pelas características de ocupar uma rém vale afirmar que as diversas modalidades de posição de poder, de privilégio e de superioridade histerias podem ser entendidas a partir das identi- que lhes garanta serem admiradas, reconhecidas ficações de cada uma dessas pessoas, bem como como valiosas e com a posse de atributos que lhes da predominância das fixações, desde as narcísicas elevem a um nível de perfeição. Uma fixação das até as edípicas. No entanto, algumas característi- meninas nessa etapa fálico-edípica gera uma riva- cas comuns, embora não exclusivas, podem ser lidade com os homens, freqüentemente com dese- assim sintetizadas: jos de castração e de morte para com eles. Essa • A existência de uma mãe histerogênica, que autora faz o interessante assinalamento de que o provoca na criança sentimentos muito con- caráter fálico-narcisista não deve ser visto unica- mente originário de conflitos edipianos, mas tam- traditórios porque ao mesmo tempo ela é bém deve ser levado em conta que essa mulher bri- dedicada, falsa, cobradora, carinhosa, am- ga porque reivindica o seu direito de ter os mes- bígua, usa a criança como uma vitrine sua, mos direitos que a cultura concedeu aos homens. para exibir-se aos outros, e projeta no filho Creio que cabe acrescentar que há um risco de ro- culpas, responsabilidades e seus próprios as- tular uma mulher de “fálica”, unicamente com base pectos histéricos; enfim, provoca na criança nos critérios antigos, porquanto o papel da mulher um estado confusional, notadamente no que na sociedade moderna mudou completamente, e diz respeito ao sentimento de identidade. seria lamentável classificar uma mulher dinâmica, • O pai, no caso das meninas, costuma ser si- forte, emancipada e determinada, como “fálico- multaneamente sedutor e frustrador, perma- narcisista”. nentemente erotizando-as e permanentemen- te rejeitando-as. A confusão dos filhos pode Personalidade Infantil aumentar no caso em que o pai é desqualifi- cado pela mãe, já que “pai é alguém reco- nhecido como tal pela mãe, é aquele que tem Nos “transtornos da personalidade do tipo his- térico”, do DSM III, os termos “personalidade his- autoridade e exerce a lei no seio da família”, térica, histriônica ou psicoinfantil” aparecem vir- o que nem sempre acontece nesses casos. As tualmente como sinônimos; logo, as pessoas por- pacientes histéricas com freqüência têm um tadoras de um caráter infantil-dependente apare- pai insatisfeito com a esposa, que se voltou cem aparentadas com a histeria, embora elas guar- para a filha em busca da satisfação e da gra- dem características específicas. Dentre essas carac- tificação que não foi possível no casamento. terísticas, cabe destacar as seguintes: • O comum é A experiência clínica comprova o quanto é a transparência de uma labilidade emocional difusa freqüente na mulher histérica que o pai era o e generalizada. • Contrariamente ao tipo “fálico- seu centro do universo, enquanto a sua mãe narcisista”, essas personalidades infantis costumam restou desvalorizada, em um misto de amor ser dependentes e submissas. • Apresentam deman- e ódio. das regressivas, infantis, oral-agressivas. • Uma conduta social inapropriada, com prejuízo do sen- • Em relação à ansiedade existente nas histe- so crítico. • Os desejos exibicionistas têm um cará- rias, além da clássica angústia de castração, ter sexual menor do que nas marcadamente histéri- todas as demais podem ser sintetizadas na cas, no entanto, podem descambar para os extre- angústia de cair em um estado de desampa- mos de uma pseudo-hipersexualidade ou o de uma ro e de baixa auto-estima. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 211

• A tolerância às críticas e às frustrações, em de obtenção de provas concretas de que são geral, costuma ser muito baixa, vindo acom- amadas, desejadas e reconhecidamente va- panhada por uma labilidade emocional, su- lorizadas. Igualmente, há uma demanda por gestionabilidade e uma alternância de idea- uma aprovação de suas teses narcisísticas ou, lização e denegrimento dos outros significa- muitas vezes, masoquísticas. É tão intensa a tivos. demanda por um reconhecimento que, em • Os mecanismos de defesa predominantes são algumas formas de histeria, transparece um todos aqueles que levam a algum tipo de ne- egocentrismo e infantilismo, de modo que o gação, como a repressão que Freud, nos pri- outro significativo é utilizado unicamente meiros tempos, apontava como sendo a úni- como provedor das necessidades materiais ca, além das demais formas denegatórias que, e afetivas; assim como não lhes basta ter o aos poucos, foram sendo descritas. Um me- amor da pessoa amada, exigem ser o centro canismo defensivo particularmente impor- da vida desta pessoa. tante, e algo mais específico das histerias, • Em razão dessa alta vulnerabilidade da auto- consiste em uma dissociação das represen- estima, as pessoas histéricas são presas fá- tações internas, de forma que é bastante fre- ceis de estados depressivos, especialmente qüente que elas funcionem dissociadamente, a, assim chamada, “depressão narcisística”. ou seja, tal como se passa em um giro de um Para compensar esse permanente vazio exis- caleidoscópio, essas pessoas podem cambi- tencial, buscam compensações na obtenção ar subitamente de identidade. De forma aná- de dinheiro, beleza, prestígio, glória, jóias e loga, também é comum que uma pessoa his- de um consumismo exagerado. térica negue-se, conscientemente a praticar • Destarte, o corpo adquire uma extraordiná- alguma atuação, mas inconscientemente (e ria importância para a pessoa histérica não “ingenuamente”) ela faz de tudo para que só porque ela ficou hiperlibidinizada (quase esse acting aconteça. sempre por excessivos estímulos erógenos • Em relação ao sentimento de identidade, é na infância), mas também porque é por meio bastante freqüente a existência de um falso do corpo – uma forma de vestir, um sorriso self (falta de autenticidade, insinceridade e enigmático, um olhar diferente, uma certa um aparentemente inexplicável sentimento entonação vocal, alguma manifestação con- de falsidade), assim como também existe versiva ou dissociativa – que a pessoa histé- uma certa confusão quanto ao gênero sexual rica pretende garantir a posse da pessoa de- e outros aspectos identificatórios (“Sou mu- sejada. A aparência externa do corpo tam- lher ou sou homem?; Sou criança ou adul- bém é levada a extremos (muitas vezes, dis- to?; Sou hetero ou homossexual?, etc.”). Um simulada por um extremo oposto de total outro aspecto que complica a aquisição de desleixo) porque é tão acentuada a desvalia um definido sentimento de identidade con- dos autênticos valores internos que só resta siste no fato de que, como o histérico tem o recurso da aparência externa como garan- uma grande dificuldade em aceitar falhas e tia de vir a ser reconhecida e valorizada. faltas, ele vai usar de todos recursos incons- • A sexualidade da pessoa histérica quase sem- cientes (apelo às fantasias, provocação de pre está prejudicada e apresenta algum tipo certos papéis nos outros, etc.) a fim de con- de transtorno. De forma sumarizada, os se- servar a crença imaginária de que ele conti- guintes aspectos devem ser destacados: 1) nua sendo todos os personagens que habi- A permanência da primitiva fantasia de pos- tam dentro dele, o que fica ainda mais com- se de uma “bissexualidade”, a qual ficará plicado porque comumente as identificações incrementada quando o complexo de castra- são também feitas com figuras imaginárias. ção não tiver sido bem elaborado e prevale- • O vínculo do reconhecimento (capítulo 14) cer a fixação narcísica. A partir do reconhe- adquire uma enorme importância nas pessoas cimento da diferença dos sexos e da incom- histéricas, porquanto elas estão permanen- pletude sexual, cada um buscará no outro temente pressionadas pelas suas demandas sexo não apenas a satisfação do desejo eró- 212 DAVID E. ZIMERMAN

tico, mas também o seu necessitado comple- uma forma de vingança ou como uma pro- mento narcísico. 2) A existência de transtor- cura do inalcançável ideal narcísico, é bas- nos da função sexual, como uma homosse- tante freqüente o problema da infidelidade, xualidade latente, transtorno do gênero se- muitas vezes acompanhada por uma bem xual, alguma forma de inibir ou de castrar a dissimulada cumplicidade do outro. genitalidade do(a) parceiro(a), algum grau • Uma outra particularidade importante e tí- de perversão sexual, impotência, anorgasmia, pica das pessoas histéricas consiste na sua sendo que comumente a frigidez da mulher forma de comunicação, a qual guarda aqui- histérica funciona como um instrumento in- lo que Liberman denominou “estilo demons- consciente de tipo narcisista, a serviço de não trativo”, que consiste em uma forma drama- se humilhar perante o homem e, vingativa- tizada, e hiperbólica, de narrar os fatos. Esse mente, fazer com que este sinta-se um fra- estilo substitui a falta de uma capacidade cassado. para, de fato, pensar as experiências emocio- nais. Igualmente, tais pacientes utilizam bas- Assim, freqüentemente esse tipo de histérica usa a técnica da provocação, seduzindo o homem até tante a linguagem não-verbal expressada pelo o ponto de este mostrar-lhe o seu desejo por ela, corpo, assim como também eles costumam quando então ela processa uma fuga, não raramen- pressionar para que os outros – representa- te seguida de posteriores acusações de que ele foi dos pelos grupos familiar, social ou profis- grosseiro, vulgar e “estuprador”. sional – assumam o papel de protagonistas e Por outro lado, a mulher “frígida” também pode dramatizem o script do drama inscrito no seu ser hipersexualizada, promíscua ou até plenamen- mundo interno, representando aqueles papéis te orgástica, mas basicamente está sempre insatis- que desempenham os personagens do seu feita com os seus relacionamentos sexuais, de sor- teatro imaginário. te que é freqüente haver uma grande carga erótica, porém com uma inibição genital. Também é co- mum nessas mulheres a existência de sonhos ou NA PRÁTICA ANALÍTICA devaneios de relações sexuais sadomasoquistas, violação ou prostituição. Em linhas gerais, os dois itens descritos encontram um traço comum na afir- Embora seja difícil definir com maior precisão mativa de Fairbairn, de que “nas histerias, a genita- alguns referenciais de ordem técnica que cercam o lidade se expressa pela oralidade, enquanto a tratamento analítico com pessoas portadoras de al- oralidade procura satisfação pela via da genitali- gum tipo predominante de histeria, tal é a extensão dade”. das variáveis de qualidade, quantidade e formas das manifestações histéricas, creio que existe muita coi- • A escolha das relações objetais, mais parti- sa em comum entre todas histerias, sendo que, de cularmente a escolha da parceria, adquire modo genérico, os seguintes aspectos sobressaem: algumas características típicas, como pode • É fundamental a “atitude psicanalítica inter- ser: 1) A de um(a) parceiro(a) com quem vai na do terapeuta”, porquanto, necessariamen- constituir uma configuração de um recípro- te, ele deve estar despido dos habituais pre- co e alternante sadismo com masoquismo. conceitos (pré-conceitos) pejorativos, que 2) Quando prevalece uma “posição narcisis- culturalmente estigmatizam a essas pessoas, ta” (capítulo 13), o mais provável é que a assim como também ele deve estar preparado escolha seja determinada pela necessidade para não ficar de imediato envolvido nas ma- de uma fusão narcisista com uma pessoa lhas do “encantamento” que esses pacientes idealizada (a sua “outra metade”), com quem inicialmente provocam. alimenta a fantasia de alcançar a completude, • Na definição do “contrato analítico”, deve perfeição, eternidade, supressão das faltas e ser levado em conta que comumente esse tipo a abolição das diferenças, sendo que, mais de paciente fecha o contrato com alguma cedo ou mais tarde, sobrevêm as decepções, facilidade. No entanto, também com algu- seguidas de novas ilusões, em um círculo ma facilidade, podem interrompê-lo, ou por- vicioso às vezes interminável. Tanto como FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 213

que não estavam bem motivados, ou porque, • No caso de uma histeria de características levados pelos seus desejos ilusórios,esses mais regressivas, pode-se dizer que não há pacientes não calcularam bem as possibili- um narcisismo saudável nesse paciente: ele dades reais de arcar com um tratamento tão exige o amor para alimentar o seu self oni- longo, difícil e custoso, ou porque não su- potente e falso. Quando a mentira histérica portam as inevitáveis frustrações que decor- desmorona, o paciente fixado na posição rem de um tratamento analítico bem condu- narcisista desmorona junto, afunda-se na zido, até porque esse tipo de paciente tem depressão, e, para evitar a agonia resultante uma forte propensão para a idealização e, do desamparo e desesperança da depressão igualmente, para a decepção. subjacente, ele pode utilizar-se do recurso • Já vai longe, e está totalmente superada na histérico-paranóide de projetar culpas e res- atualidade, a época em que Freud e seguido- ponsabilidades nos outros, para tanto, poden- res consideravam a histeria como exclusiva do ir até o extremo de ameaças e tentativas das mulheres, definindo que, unicamente, “a suicidas, o que, na situação transferencial, histérica sofre de reminiscências” e que, provoca uma reação contratransferencial portanto, o tratamento consistiria em trazer muito difícil. para a consciência tudo aquilo que da confli- • Igualmente, constitui uma contratransferê- tiva edípica estivesse reprimido no incons- ncia difícil o fato de que a necessidade de ciente. Para atingir esse objetivo, nos tem- pensar e de verbalizar fica substituída por pos pioneiros, Freud tentava pelas técnicas uma forma de comunicação não-verbal cons- do hipnotismo, depois as substituiu pelas téc- tante de actings, às vezes muito preocupantes nicas de “catarse”, “ab-reativas”, sendo que, (e que não raramente forçam a intervenção a partir do seu fracasso com a famosa pa- de familiares no setting analítico), ou por ciente Dora, ele passou a valorizar os aspec- conversões, somatizações e transtornos da tos transferenciais ligados à constelação imagem corporal. edípica, o que hoje continua válido, embora • A atividade interpretativa do analista deve somente em parte. ficar centrada nos seguintes aspectos: 1) usar • Na atualidade, ninguém duvida de que o pa- a técnica da “confrontação”, como, por ciente histérico tem desejos sexuais, porém exemplo, levando o paciente a confrontar se ele também tem feridas e necessidades nar- há similaridade em como ele se vê, e como cisísticas, sendo que, na prática clínica, a re- os outros o vêem. 2) Para tanto, é válido uti- gra é que estas últimas aparecem mascara- lizar a técnica de uma “imaginária drama- das por uma florida e estimulante manifes- tização verbal”, através da qual o paciente tação de aspectos da sexualidade, que são troca de lugar, papel e função com outras pes- fortemente tentadoras para o analista inter- soas no cenário dos seus grupos de convi- pretar em termos transferenciais unicamen- vência, inclusive, com o próprio analista. 3) te edípicos, quando o seu verdadeiro sofri- Trabalhar com as funções conscientes do ego mento radica nas falhas narcísicas. Esse as- do paciente, ou seja, de como ele percebe, pecto é particularmente importante porque, pensa, ajuíza, discrimina e comunica os seus embora o inconsciente do histérico faça de sentimentos de ódio e de amor (como ele tudo para dissimular a dor narcísica por meio ama, é amado e quais os seus critérios de de uma fachada de sexualidade seguidamente amor). 4) O analista deve tentar juntar os erotizada e erotizante, bem no fundo, não há aspectos dissociados do paciente histérico, nada que mais o decepcione e provoque ran- de modo a torná-los unificados, e assim pos- cor do que quando as pessoas alvo da sedu- sibilitar que o paciente assuma o seu quinhão ção, como o terapeuta na situação analítica, de responsabilidade pelo que acontece nas não consigam distinguir entre “os desejos do suas inter-relações humanas. 5) Da mesma id e as necessidades do ego carente”. maneira, é função do terapeuta estar atento para a forma dissociada de como funciona o psiquismo do paciente histérico. 214 DAVID E. ZIMERMAN

• Um primeiro exemplo que me ocorre em re- acontecer que certos pacientes histéricos lação ao último aspecto é o de uma paciente despertam um entusiasmo no analista durante que, tendo feito um insight do quanto, sob o os primeiros meses, ou anos de análise, e disfarce de uma “ingenuidade”, estava acin- depois o frustram, tanto pela constatação de tosamente seduzindo um homem casado, to- que não estão ocorrendo mudanças verda- mou a “firme” deliberação consciente de não deiras, como também pela razoável possibi- mais prosseguir nesse jogo sedutório, ela se lidade de interrupções, por vezes súbitas e afastaria e somente conservaria uma boa e inesperadas. pura amizade com ele. No entanto, algumas O entusiasmo inicial decorre do fato de que, no semanas após, veio à lume que, ainda sob a início, esses pacientes histéricos encantam pelo aparência de uma ingenuidade, ela mantinha charme, inteligência brilhante, com facilidade para uma correspondência “pura”, uma troca de uma livre associação de idéias, com uma rica e cartas singelas com o homem desejado e detalhada vida de fantasias, comumente centradas proibido. Tratava-se de uma pessoa séria que, na sexualidade. Além disso, parecem bem motiva- honestamente, não percebia que continuava dos, trazem muitos sonhos, revelam reflexos rápi- com o mesmo jogo de sedução, não que es- dos e uma clara compreensão e resposta afetiva às tivesse deliberadamente mentindo, mas sim interpretações do analista, a par de uma agudeza porque ela funcionava com a sua mente dis- na percepção da realidade; no entanto, esse último sociada em duas partes opostas e contradi- aspecto pode ficar anulado pela sua “parte doen- te”. tórias, agindo concomitantemente. 6) Esse Essa probabilidade de anulação de um possí- aspecto remete a um outro equivalente, de vel êxito analítico deve-se a alguns fatores, tais importância essencial no tratamento analíti- como: 1) Embora manifestem emoções turbulen- co, qual seja: o de se esse tipo de paciente tas, o contato afetivo desses pacientes costuma ser quer resolver os seus conflitos por meio de muito superficial, contraditório, instável e com fuga múltiplas formas de evadir as dificuldades e das verdades, havendo uma propensão para adqui- verdades penosas, ou se ele está disposto a rir uma feição sadomasoquista; 2) A existência de ser verdadeiro e enfrentá-las, única maneira uma ambigüidade (na base do “nem que sim, nem de vir a fazer verdadeiras mudanças psíqui- que não, antes até, muito pelo contrário...”) que cas caracterológicas. 7) Assim, há uma ne- pode levar a uma confusão, porque representa um cessidade de o analista ir desfazendo as ataque aos vínculos perceptivos. 3) Costuma haver uma rápida passagem de um estado mental (humor, idealizações e as múltiplas ilusões que habi- afeto, atitude, idéia, identificação) para outro esta- tam a mente do paciente histérico, processo do mental oposto, de modo que ambos se anulem esse que deve ser permanente, firme e coe- entre si. 4) O exagero hiperbólico dos sentimentos rente, porém que exige paciência e tolerân- e dos fatos (tudo adquire dimensões enormes) po- cia, porquanto ele é muito doloroso para esse dem desfigurar os significados. 5) Existe a possi- analisando. bilidade de atuações excessivas, que mobilizem • Em relação ao trabalho de elaboração analí- outras pessoas diretamente envolvidas, que são for- tica, um aspecto que deve merecer uma aten- çadas a intervir e pôr em cheque a indispensável ção especial do analista consiste na possibi- preservação do setting. 6) Não raramente, tais pa- lidade de que o paciente esteja fazendo “fal- cientes ficam satisfeitos com a frustração da pare- sos insights”, ora intelectualizando, ora lha excitada no campo analítico, assim reproduzin- do o mesmo modelo que adotou para a parelha pai- desvitalizando as interpretações do analista. mãe. Igualmente, existe o risco de que o terapeu- Para finalizar, creio que a experiência clínica ta deixe-se envolver em algum dos muitos ensina que os aspectos obstrutivos e anulatórios tipos de conluios resistenciais. referidos predominam quando a estrutura psíquica • De forma genérica, cabe dizer que os pacien- do paciente histérico funciona sob a égide da “po- tes da série histérica são aqueles que mais sição esquizoparanóide”. No entanto, os fracassos gratificam, às vezes com resultados notáveis, não se constituem como a regra; pelo contrário, e, ao mesmo tempo, podem ser aqueles que aqueles pacientes que, não obstante apresentem mais frustram. Assim, é bastante freqüente uma nítida configuração histérica, adquiriram uma FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 215 adequada organização obsessiva, uma capacidade priado manejo técnico do analista, demonstram para ingressar na “posição depressiva”, a constru- excelentes e muito gratificantes resultados verda- ção de uma “aliança terapêutica”, aliadas a um apro- deiramente analíticos.

CAPÍTULO 1917, p. 281) pode estar absorvida no próprio nú- cleo do ego e aí permanecer por toda a vida, assim se constituindo em um luto patológico crônico. Po- sição depressiva é um termo de M. Klein (1934, p. 262) que expressa uma constelação de relações 19 objetais e ansiedades que constituem um estado psíquico no qual prevalece a tríade: objeto total (integração das suas partes dissociadas) – assunção da responsabilidade e de eventuais culpas – pre- sença de sentimentos de consideração e de inten- Depressões tos de reparação frente aos objetos. Depressão subjacente às neuroses e psicoses refere-se ao fato de que todo indivíduo, em grau maior ou menor, é portador de núcleos melancólicos da personalida- O tema relativo às depressões tem merecido, de. por parte dos psicanalistas, desde os pioneiros até Por sua vez, a depressão melancólica – a que os autores modernos, uma aprofundada e crescen- mais diretamente será aqui estudada – também apre- te valorização e investigação a partir de múltiplos senta uma ampla gama clínica de variações tanto vértices de abordagem. Desta complexa rede quantitativas como qualitativas. Assim, é comum conceitual, resultou um certo emaranhado teórico- que tenhamos pacientes portadores de uma depres- clínico, sendo que o presente capítulo pretende fa- são crônica cujos sinais clínicos possam ser tão zer uma síntese dos fatores etiopatogênicos que, insidiosos e pouco aparentes que, muitas vezes, ilu- de uma forma ou outra, isolados ou em combina- dem o nosso conhecimento e, daí, que nem sempre ção, em grau maior ou menor, são os determinantes merecem a devida valorização por parte dos psica- das diversas modalidades de estados depressivos nalistas. Em outro extremo, é sabido o quanto po- que se manifestam ao longo dos processos psica- demos confrontar-nos com bruscas e inesperadas nalíticos. Por outro lado, os conceitos aqui emiti- irrupções de surtos melancólicos agudos, com sé- dos não se prenderão ao rigor classificatório do rio risco de suicídio. E assim por diante... DSM; antes, resultam de uma revisão de trabalhos Apesar dessa variação de forma e de grau das psicanalíticos de distintas épocas e correntes de depressões, alguns de seus sintomas e sinais clíni- psicanálise, assim como, e principalmente, de uma cos são de presença constante, como, por exem- elaboração de minha prática clínica. plo: baixa auto-estima, sentimento culposo sem causa definida, exacerbada intolerância a perdas e frustrações; alto nível de exigência consigo pró- CONCEITUAÇÃO prio, extrema submissão ao julgamento dos outros, sentimento de perda do amor e permanente estado Uma primeira observação é que, diante do lar- de que há algum desejo inalcançável. go espectro clínico dos estados depressivos, torna- se indispensável que se reconheça a distinção que há entre melancolia, luto, tristeza, posição depres- ETIOPATOGENIA siva e depressão, a qual está sempre subjacente às diversas organizações neuróticas e psicóticas da Como esquema de exposição, vou considerar personalidade. Neste capítulo, cada um destes ter- nove vertentes responsáveis pela formação dos es- mos designa um estado psíquico próprio e diferen- tados depressivos, sendo necessário levar em con- ciado entre si. ta que as mesmas não são estanques entre si; pelo Assim, tristeza indica um estado de humor contrário, elas complementam-se e, por vezes, inter- afetivo que pode estar presente ou não nos estados penetram-se. depressivos. Luto corresponde a um período ne- cessário para a elaboração da perda de um objeto amado que foi introjetado no ego, sem maiores Causas Endógenas (Orgânicas) conflitos. Melancolia designa que a introjeção do objeto perdido (por morte, abandono, etc.) proces- sou-se de forma muito ambivalente e conflitada. Essa Cada vez mais, os psicanalistas estão reconhe- cendo as importantes contribuições advindas dos “sombra do objeto recaído sobre o ego” (Freud, campos da neurobiologia (há um crescente aprofun- 218 DAVID E. ZIMERMAN damento das investigações pertinentes ao sistema A depressão anaclítica (muitas vezes denomi- límbico, notadamente em relação ao hipotálamo e nada como “depressão essencial”) corresponde, nos ao núcleo amigdalino), da imunologia e da moder- casos mais graves, ao abandono de todo interesse na psicofarmacologia. e de todas as formas de investimento em objetivos Dois aspectos merecem ser ressaltados: um é a e idéias. Há falta de motivação para continuar a importância do reconhecimento, na prática clínica, viver – e até para lamentar-se –, daí, a gravidade da natureza diagnóstica da situação depressiva. Na quanto a um possível risco de suicídio. maioria das vezes, é fácil reconhecer os extremos, se emocionais ou orgânicos; no entanto, em muitas outras vezes, é muito difícil fazer a discriminação Identificação do Ego com o Objeto Perdido entre ambos fatores, apesar, é claro, de que eles estão em constante interação. O segundo aspecto é O protótipo dessa situação depressiva está con- o que nos levaria à atual polêmica entre os psica- tida na famosa expressão de Freud (1917, p. 281) nalistas quanto ao emprego, simultâneo ou não, dos “a sombra do objeto recai sobre o ego” e, pode- psicofármacos durante o processo psicanalítico mos completar, vai fazer parte integrante do pró- standard. prio núcleo do ego. Resulta daí que o objeto perdi- do e o ego, em um processo que lembra o fenôme- no da osmose, confundem-se entre si de tal sorte Depressão Anaclítica que o destino de um passa a ser o destino do outro. Outro modelo análogo, tirado da física, que, pare- Em 1914, Freud (p. 107) estudou a “escolha ce-me, pode ilustrar o dito acima, é o da imagem narcisista do objeto”, juntamente com a escolha dos “vasos comunicantes”, a qual consiste num fe- “anaclítica”, em cujo caso o indivíduo está em nômeno da física, pelo qual, se colocarmos um lí- busca de alguém que venha a preencher um vazio quido em um vaso em forma de “U”, ele necessari- de mãe original. amente vai ficar nivelado nos dois extremos, inde- Spitz (1965) estudou, desde a década de 50, a pendentemente do diâmetro de cada um dos lados “depressão anaclítica”, a partir da observação de do vaso. bebês que, quando eram separados de suas mães, Meltzer (1989, p. 118) chega a perguntar: “Quem entre o sexto e o oitavo mês, apresentavam uma vive a dor?” “É o ego ou seus objetos que estão sintomatologia que “assemelha-se de forma impres- sofrendo?” e “Quem está sendo atacado?” Prosse- sionante aos sintomas que nos são familiares na gue Meltzer: “É a pessoa que, na verdade, ataca a depressão adulta”. si mesma ou ela ataca a parte de si mesma que Bowlby (1969, p. 211), psicanalista inglês, des- está identificada com um objeto que, em um outro creveu o fenômeno do apego (“attachment”), que nível, ela está realmente acusando?” consiste na necessidade de uma vinculação afetiva A importância deste vetor etiopatogênico dos entre a mãe e o bebê, anterior e independente de estados depressivos é bem destacada por M. qualquer tipo de aprendizado, como o da alimenta- Martins (1969, p. 49), que, citando a Grinberg, as- ção, por exemplo. Esse autor comprovou que os sinala dois aspectos essenciais. O primeiro diz res- bebês que precocemente foram privados de suas peito à noção de que, ao lado do luto pelo objeto, mães passam por uma série de três fases, as quais existe um luto pelo ego, e vice-versa. O segundo ele denomina de: a) protesto (a criança chora, esper- aspecto refere-se às vivências de desagregação e neia e volta-se para qualquer ruído ou som que empobrecimento do ego, resultantes das partes per- possa indicar a mãe perdida); b) desesperança (a didas que deixaram de pertencer-lhe e de integrá- etimologia composta por “des” [sem] “esperança”, lo por terem ficado retidas no objeto. O conheci- indica que o bebê “cansou” de esperar, sendo que mento disso tem uma significativa importância na esta fase é análoga ao penar do adulto); c) retrai- técnica analítica, como será abordado mais adian- mento (indica o desapego emocional e é corres- te. pondente à indiferença e desvalia da depressão adulta). Creio ser interessante o fato de que se pode tra- Depressão por Perdas çar uma equivalência entre o fenômeno de “hospita- lismo”, de Spitz, o de “desapego”, de Bowlby e o Embora o termo “perda” seja muito abrangente da “síndrome de adaptação ao estresse”, descrita e genérico, e de alguma forma esteja sempre pre- pelo fisiologista H. Selye. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 219 sente nos demais itens de nosso esquema de classi- pressiva que se expressa no sentimento de ficação, justifica-se a sua especificação em razão que “não sou mais o mesmo...”. de algumas singularidades. Assim, essas perdas processam-se em três ní- A situação mais freqüente de perdas do ego é a veis: que resulta de um jogo de intensas identificações projetivas que o indivíduo faz de seus aspectos a) Perda de objetos necessitados (e, ambiva- positivos em outras pessoas por ele idealizadas, lentemente, amados e odiados). A essên- enquanto o seu próprio ego fica esvaziado e empo- cia dessa vertente depressiva consiste no brecido. fato de que a perda, real ou fantasiada, do objeto bom, amado e protetor, deixa o in- divíduo entregue ao objeto mau que, de seu Depressão por Culpas interior, o acusa, despreza, reduz a sua auto- estima a níveis ínfimos e, sobretudo, dei- Afirmar que o sentimento de culpa é um acom- xa-o totalmente desamparado. panhante sistemático dos quadros depressivos é b) Perda de objetos reasseguradores da auto- insuficiente para uma compreensão mais profunda estima do indivíduo. Trata-se de pessoas do paciente deprimido. Essa insuficiência decorre do fato de existirem muitos graus e tipos de culpas. que necessitam, de forma desesperada e Vale destacar as seis seguintes fontes culpígenas, compulsória, do reasseguramento de que que são devido: são amadas e valorizadas. Para tanto, cos- tumam estabelecer relações com pessoas a) a um superego estruturado como sendo rí- que se prestem a tal papel e, no caso de gido, punitivo e todo-poderoso; perderem-nas, sentem a terrível sensação b) ao ódio do ego contra o próprio id; que é inerente a quem fica sem as impres- c) às culpas imputadas pelos outros; cindíveis muletas. d) à obtenção de êxitos; c) Perdas do ego. Instala-se uma depressão e) à descrença do ego em suas próprias ca- reativa quando, por circunstâncias várias, pacidades reparatórias; há uma perda, súbita ou gradativa, das fun- f) à assunção das culpas de outros. ções do ego, especialmente no tocante às Cada uma destas eventualidades determina certa que são encarregadas da adaptação ao mun- especificidade na manifestação do quadro clínico do exterior. Um exemplo claro disso é a e do manejo técnico. conhecida “depressão involutiva””, a qual Assim, os indivíduos portadores de um “supe- se refere a uma quadra da vida em que o rego cruel” estão habitualmente protegidos por uma indivíduo não somente perde objetos (apo- sólida organização obsessiva e são muito propen- sentadoria; pais e amigos que envelhecem, sos à formação de quadros depressivos. Pode-se adoecem e morrem; filhos que casam e dizer que o self dos mesmos comporta-se como cenário de um permanente tribunal de julgamento saem de casa, etc.), como também há a per- em que uma severa promotoria induz o júri à apli- da de atributos do ego (por exemplo: pre- cação da sentença de “culpado” pelo crime de trans- juízo da acuidade visual ou auditiva, da gressão (pelo que fez ou pelo que deixou de fazer memória, da beleza, do juízo crítico, da em pensamentos, sentimentos e atos) e a conseqüen- agilidade de raciocínio, da mobilidade e dos te condenação a pesadas penas. As manifestações reflexos, e assim por diante). Assim, um clínicas são bem conhecidas, merecendo destaque jogador de futebol profissional é conside- as que se expressam pelas inter-relações de nature- rado um “velho” aos 30 e poucos anos por- za sadomasoquista. No curso do processo analíti- que ele perdeu algumas condições do ego co, esse tipo de superego pode ser um dos princi- (no caso, motoras) essenciais para aquele pais responsáveis pelo aparecimento da “reação te- exercício profissional. Não cabe esmiuçar rapêutica negativa”. A situação culpígena do item “b” (ódio do ego exemplos similares a este; no entanto, um contra o próprio id) ocorre nos indivíduos em que sinal de reconhecimento comum a todos há desarmonia entre o sistema de valores autênti- estes quadros é o de uma ansiedade de- cos do ego e que entra em rota de colisão com al- 220 DAVID E. ZIMERMAN guma manifestação de uma pulsão contrária. Um grandiosos projetos de redenção social, um presen- exemplo comum pode ser o de uma pessoa autenti- tear excessivo e inadequado, etc.), como da obses- camente generosa (é diferente de uma bondade re- siva (uma superproteção asfixiante, por exemplo) sultante de uma formação reativa que se formou e da masoquista (sacrifícios). para apaziguar a rigidez de um superego), incon- Em relação às culpas decorrentes do fato de que formada e culpada ao perceber a presença simultâ- o indivíduo “assume as culpas de outros”, basta nea de sentimentos de inveja, ciúmes, etc. registrar uma observação que é comum na clínica Em relação às “culpas imputadas pelos outros”, de nós todos: a freqüência de pacientes que se sen- é preciso levar em conta o fato de que, muitas ve- tem obrigados a reinvestir contra si mesmos os sen- zes, o sentimento de culpa não decorre das pulsões timentos de ódio e de culpa que, de fato, caberiam agressivas, destrutivas. Pelo contrário, é muito co- a alguém outro (o seu psicanalista, por exemplo). mum acontecer que determinados atos e “artes” das Isso radica-se na necessidade que muitas crianças crianças, frutos de uma agressividade sadia, pos- têm de protegerem (e protegerem-se) as figuras pa- sam ter sido significadas pelos seus pais como rentais que não se mostraram capazes de agüentar agressões daninhas. Essa criança poderá carregar uma forte carga agressiva e que, por essa razão, pelo resto de sua vida uma culpa indevida, causada tanto poderiam reagir depressivamente (uma mãe por uma confusão dilemática deste tipo: “Sou cul- depressiva, hipocondríaca, por exemplo), como pado porque sou ou fui um agressivo, ou me sinto poderiam revidar de forma violenta. agressivo porque viviam me culpando?” O destaque em relação à “culpa decorrente do êxito” justifica-se pela sua alta incidência e porque Depressão Decorrente do nem sempre ela se deve à sua causa mais comum que é a da punição superegóica como um revide ao Fracasso Narcisista triunfo edípico. Por essa razão, é útil que se amplie um pouco mais a sua compreensão. Assim, a ob- A relativa escassez de escritos psicanalíticos tenção de alguma conquista pode ser significada acerca da abordagem específica da “depressão pelo indivíduo como uma forma de traição e desle- narcisística” não faz jus à alta freqüência e rele- aldade em relação aos papéis que lhe foram desig- vância da mesma. nados a cumprir na vida. Um terceiro fator é a cul- Se tomarmos o referencial de Kohut – um re- pa que se forma a partir da comparação que o indi- conhecido estudioso dos problemas do narcisismo víduo faz entre seu êxito e a infelicidade de outras – podemos considerar dois aspectos, por ele assim figuras queridas, entre estas os mortos. Ainda um denominados: 1) o self grandioso (corresponde ao quarto fator pode ser incluído: trata-se daqueles ego ideal, o qual, como sabemos, constitui-se no indivíduos de estrutura narcisista, para os quais a herdeiro direto do narcisismo original); 2) imago consecução bem-sucedida de uma meta pela qual parental idealizada (corresponde ao ideal de ego, tanto lutaram leva-os à seguinte angustiante ques- o qual resulta do próprio ego ideal projetado nos tão, fruto da desproporção entre a grandiosidade pais, acrescido das expectativas do próprio narci- da expectativa fantasiada e a da realidade bem mais sismo destes) (Kohut, 1971, p. 21). modesta: “E agora? Ainda não é bem o que eu Conforme Bleichmar (1982) demonstra exaus- esperava de mim (ego ideal). Estou decepcionado tivamente, um estado depressivo sobrevém toda vez comigo”. Um quinto fator que faz o êxito gerar que houver uma decepção tanto da parte do seu culpas é o sentimento de que ele possa estar des- ego ideal como do ideal do ego. Em outras pala- pertando um estado de inveja ou de humilhação vras, um indivíduo portador de uma forte organi- em outros. Um sexto fator é a culpa decorrente da zação narcisística da personalidade sente-se em um ânsia de exibicionismo que pode ter sido a fantasia permanente estado de sobressalto diante da possi- prevalente para a consecução do êxito. bilidade de não corresponder plenamente às fortes A “descrença do ego em suas próprias capaci- exigências provindas de dentro ou de fora de si dades de fazer autênticas reparações” gera um cír- mesmo. Por essa razão, ele vai necessitar de um culo vicioso maligno de ansiedades depressivas e constante aporte de elogios, aplausos ou de qual- uma maior sensação de esvaziamento de que pos- quer outra prova que lhe reassegure a auto-estima. sua uma bondade, assim como leva o indivíduo a Resulta daí a explicação de por que a perda de um lançar mão de falsas reparações. Estas últimas cos- objeto externo reassegurador da auto-estima pode tumam manifestar-se sob uma forma constituída por constituir-se como um importante fator desenca- elementos tanto da série maníaca (por exemplo: deante de uma depressão. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 221

É preciso considerar dois elementos inerentes va relevância na prática clínica – consiste no fato aos indivíduos narcisistas: um é o emprego de uma de que o self do indivíduo sente necessidade com- lógica do tipo binária, isto é, ou ele é o melhor ou é pulsória de prestar uma eterna solidariedade à sua o pior, e assim por diante. O outro elemento, de- “vítima”, seguindo o mesmo destino desta. Serve corrente deste, é uma permanente atitude de com- como exemplo disso a situação muito comum de paração com os demais, e isso gera uma conseqüên- pessoas – mulheres principalmente, mas também cia muito importante: um estado depressivo resul- homens – que carregam em seu inconsciente o peso tante do “êxito dos outros”. É fácil depreender que, de terem sofrido a experiência de um aborto pro- neste último caso, a inevitável comparação que o vocado. Nestes casos, pode ocorrer que as referi- indivíduo narcisista sempre faz determina que o das pessoas, mesmo na hipótese de serem bem do- sucesso alheio faz-lhe sentir uma insuportável sen- tadas e aptas ao sucesso, estão inconscientemente sação de derrota, fracasso e humilhação, o que de- provocando o abortamento de todas as oportuni- creta um rude golpe em sua auto-estima e, daí, uma dades promissoras que aparecem em suas vidas, depressão (esses aspectos aparecem melhor expli- inclusive, não poucas vezes, de suas próprias aná- citados no capítulo 13, referente à “posição narci- lises. sista”).

Ruptura com os Papéis Designados Identificações Patógenas Pode-se dizer que esta vertente depressiva é um A etimologia do verbo “identificar” mostra que prolongamento da anterior. Na literatura psicanalí- esse fenômeno psíquico consiste em que, desde tica, ganha espaço, cada vez mais, a convicção de sempre, a criança vai ficando igual (idem) ao adul- que boa parte do inconsciente da criança é mode- to que a está modelando. Mais particularmente em lado pelo discurso dos outros por meio das mensa- relação aos indivíduos depressivos, podemos des- gens veiculadoras de significações, especialmente tacar três tipos dessas identificações que se organi- das que são provindas dos conflitos inconscientes zam a partir das depreciativas auto-representações dos próprios pais. Dessa forma, o indivíduo, desde em seu ego. criancinha, é ensinado a “como” e a “quem” ele A primeira delas é a “identificação com o obje- deve, e não deve, ser, e quais os papéis que deverá to deprimido”. A experiência de todo psicanalista desempenhar pela vida afora, a fim de garantir o comprova o quanto foi quase impossível para o seu amor dos pais e de jamais trair as expectativas que paciente, quando criança, ficar imune à modela- estes depositam nele. Uma desobediência a este gem de afetos depressivos, queixumes e uma ideo- princípio pode custar um preço terrível: a pecha de logia niilista provindas de uma mãe melancólica, ingratidão e a ameaça de perda dessas figuras de por exemplo. Por outro lado, a presença real de que ela necessita e, de certa forma, muito queridas, uma depressão constante da mãe, ou pai, reforça além do inevitável surgimento do sentimento as fantasias da criança de que tenha sido a sua mal- culposo. dade que provocou todas as desgraças. É uma constatação corriqueira na prática clíni- É útil acrescentar a possibilidade de que esteja ca de todos nós a dificuldade que atravessam mui- havendo a existência daquilo que Green (1976) tos analisandos quando, fruto de um progresso em denomina como “complexo da mãe morta”, cuja suas análises, começam a libertar-se dos estereóti- concepção consiste em um “assassinato psíquico pos que lhes foram programados. Um exemplo dis- do objeto mãe, que a criança perpetua sem ódio, e so, comum mas muito importante, é quando um ana- do qual resulta uma depressão branca, que é dife- lisando, habitualmente funcionando em níveis de rente da depressão negra, na qual há luto e dor simbiotização, começa a encontrar o caminho de pela perda”. uma “autêntica” autonomia e emancipação, com A segunda situação é a “identificação com o mudança de valores e de pessoas. Pode coincidir objeto desvalorizado” e denegrido, isso resulta da que esse crescimento, essa mudança psíquica, ve- reintrojeção da figura parental que, previamente, nha simultaneamente acompanhada de estado foi alvo de identificações projetivas carregadas de confusional, de sentimentos de despersonalização desprezo por parte da criança. e de perda de identidade, assim como de um peno- A terceira modalidade de identificação patógena so sobressalto em vir a cair em estado de loucura – depressiva é a que proponho denominar como “a ou de depressão insuportável. É relativamente co- identificação com a vítima”, a qual – de expressi- mum o surgimento de “impasses terapêuticos (bem 222 DAVID E. ZIMERMAN superados se o analista manejar bem a situação) e EQUACÃO “8 C” não é rara a possibilidade de que se instale a tão temida “reação terapêutica negativa”. Aliás, este Como uma tentativa de sintetizar o essencial sentimento de ingratidão e de traição que sempre do que foi dito até aqui, proponho um esquema de acompanha as depressões conseqüentes ao rompi- tipo mnemônico, em que sobressaem sete fatores, mento com os papéis programados deve ser consi- cujos termos têm a letra “C” como inicial, e que derado uma quarta causa responsável pelo surgi- estão em permanente interação entre si: mento da RTN (as outras três são: um superego alta- mente punitivo; uma inveja excessiva do sucesso do Completude (C1) psicanalista; um encontro com a terrível depressão Carência (C2) subjacente, em que jazem feridos e mortos). Cólera (C3) Culpa (C4) Castigo (C5) Pseudodepressões Compulsão à repetição (C6) Código de valores (C7) É muito comum que determinados indivíduos Capacidade para ingressar na posição de- atravessem a vida inteira aparentando desvalia e pressiva (C8) pobreza que não correspondem às suas realidades. Pode-se dizer que se trata de um “falso self ao con- Nesse esquema, fica claro que todo indivíduo trário”. nasce em um estado de total completude (C1) e, As causas mais freqüentes que levam a essa enquanto dura a fase de indiferenciação entre o “eu” aparência de esvaziamento e pseudodepressão são e o “outro”, o bebê anela por sua eternização. Como as seguintes: a mesma é impossível, diante das inevitáveis – e necessárias – frustrações por parte dos objetos ex- a) Medo de atrair a inveja retaliadora dos de- teriores provedores, “sua majestade, o bebê” mais, (um modelo disso é a passagem bí- (Freud, 1914, p. 108) entra em estado de carência blica de José e seus irmãos. (C2). Conforme o grau e a qualidade da mesma, a b) Medo de vir a ser considerado, pelos ou- criança desenvolve um estado raivoso de cólera, tros, uma inesgotável fonte de provimento (C3), que pode atingir o nível de fantasias de cru- das necessidades deles, e daí o risco de vir eldade e de crime homicida contra os objetos frustradores. Como decorrência direta dos ataques, a ser exigido, cobrado e sugado. reais ou fantasiados, instala-se na criança um esta- c) Necessidade de proteger as pessoas com do de culpa (C4) pelos eventuais danos que ela te- quem convive, a partir da fantasia de que nha infligido tanto aos seus objetos como ao seu um estado de felicidade seu pode ser en- próprio ego. O acompanhante imediato deste esta- tendido como um tripúdio àquelas pesso- do culposo é a necessidade de castigo (C5), sendo as, as quais, por isso, ficariam magoadas, que a mesma se reveste das mais diversas formas humilhadas e deprimidas. de masoquismo, desde as inaparentes até as de alta d) Necessidade de sofrimento que certos indi- gravidade. É fácil observar nas crianças o fato de víduos se impõem, como uma espécie de que, após o cometimento da “arte” delituosa, são “cota de sacrifício”. Trata-se geralmente de castigadas pelos pais e, após isso, sentem-se libe- pessoas que, quando crianças, foram progra- radas para uma nova transgressão, movidas por uma forma de compulsão à repetição (C6), até conse- madas a conseguir as coisas e os afetos de guirem provocar um novo castigo, e assim por que necessitavam às custas de muito recla- diante. mo, choro e sofridas negociações com os O mesmo processo reproduz-se na vida interior seus pais. O choro fácil é uma manifestação e exterior de muitos dos pacientes de estruturação habitual nesses pacientes, mas na maioria depressiva. No entanto, é preciso ressaltar que cada das vezes não expressa um estado de sofri- um dos fatores acima assinalados está impregnado mento, mas, sim, uma senha para conseguir de fantasias inconscientes, tanto as provindas das algo, ou não ser dele privado. Pode-se mes- fontes clássicas (e que todos conhecemos bem), mo dizer que para esses indivíduos pseudo- como também é composto a partir das significações deprimidos a exibição de sofrimento funcio- que os educadores emprestam à criança e que se na como um passaporte para o amor. constituem um categórico código de valores (C7). FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 223

Em outras palavras: uma mesma “arte” provocada cas. Essa tenaz resistência deve-se ao fato por duas crianças, em diferentes ambientes familia- de que, como tiveram relevantes perdas pre- res (ou em uma mesma família que funcione muito coces, sentem-se justificadas a eternizar uma dissociada) pode resultar em significados totalmen- atitude que, a título de ressarcimento, con- te opostos. Assim, uma das crianças pode ter sido siste em uma infinita espera que alguém (o entendida e valorizada, o que faria crescer o seu analista, na situação analítica, ou a socieda- núcleo de confiança básica, enquanto a outra pode ter sido rotulada de criança má, desobediente e cau- de como um todo) devolva o que lhes foi sadora de sérios estragos. Nesses casos, é a culpa roubado. Por essa razão, são particularmen- (imputada) que precede o sentimento de crime. te vulneráveis às frustrações e não é raro que O círculo vicioso dessa compulsividade repeti- passem a maior parte de suas vidas cobran- tiva somente será desfeito se a criança adquirir uma do e vingando-se das figuras que os abando- capacidade para atingir a posição depressiva (C8) naram e humilharam. (Este estado de sofri- e, assim, assumir a sua parcela de responsabilida- mento poderia ser denominado “Complexo des e puder fazer reparações verdadeiras. de Conde de Monte Cristo”.) Cada uma das sete etapas acima tem uma cons- telação particular e, apesar de todas elas estarem Nesses casos, cresce de relevância a atitude em permanente interação entre si, a ênfase de fixa- interna do psicanalista como fator terapêutico de ção em uma ou outra pode servir como uma espé- primeira grandeza. Essa atitude é tecida pelos au- cie de roteiro do tratamento psicanalítico. tênticos atributos de continência, empatia, coerên- cia, paciência, entre outros, e não deve ser confun- dida com o papel que o analisando procura delegar ALGUNS ASPECTOS DO TRATAMENTO ao seu analista: o de um complexo substituto da DAS DEPRESSÕES sua deficiente maternagem original, que nunca o frustre e esteja totalmente à sua disposição. Pelo contrário, a referida atitude analítica significa que Em relação às depressões endógenas, não cabe o psicanalista deverá ser introjetado como um ob- aqui esmiuçar as inequívocas melhoras obtidas pelo jeto confiável porque consegue conter as suas an- uso dos modernos recursos psicofarmacológicos, gústias, dá-lhe limites e não se destrói nem desapa- tendo em vista que os mesmos pertencem à área da rece. As sucessivas experiências emocionais dessa psiquiatria, embora, creio, não haja incompatibili- natureza, vividas na relação analítica, vão compon- dade alguma entre a simultaneidade do emprego do uma “constância objetal” e “uma coesão do self” da medicação e o prosseguimento normal do pro- (Mahler, 1975, p.58). cesso analítico. Um aspecto prático que vale a pena ressaltar é • Em relação às depressões resultantes de per- o de que analisando e analista aprendam a reco- das, vale destacar dois aspectos. Um é o que nhecer as diferenças clínicas constantes de sinais e se refere à diferença que é preciso estabele- sintomas típicos e específicos entre essas depres- cer entre objeto realmente “bom” e o que é sões e os estados depressivos de outra natureza. altamente “idealizado”. Ambos podem ser • Quanto às depressões anaclíticas (situadas muito parecidos, mas, em sua essência, são entre C1 e C3), é necessário que reconheça- profundamente distintos. Quando a perda for mos o fato de que este paciente deprimido de um objeto bom, a elaboração processa-se sofreu uma profunda e precoce perda da mãe de acordo com o luto normal. Quando a per- e, por isso, desde sempre, mantém-se em um da for de um objeto muito idealizado, o mais permanente estado de carência, amalgama- provável é que o ego do indivíduo vá sentir- do com os sentimentos de cólera e desespe- se desamparado, entregue aos objetos maus rança. Na clínica, tais pessoas, além de mui- e perseguidores, que lhe impõem um convi- to propensas a somatizações, mostram-se te ao sofrimento e à morte, assim configu- cronicamente deprimidas, com estado de rando os quadros melancólicos. Nestes ca- humor amargo e atitude ressentida e poli- sos, o psicanalista também será prematura e queixosa. No fundo, são vingativas e ranco- intensamente idealizado. A recomendação rosas, sendo que isso pode traduzir-se em técnica é a de que ele aceite essa idealização importantes resistências a mudanças psíqui- tão necessária para o equilíbrio de seu pa- 224 DAVID E. ZIMERMAN

ciente deprimido, desde que fique bem cla- • Nos analisandos em que o colapso narci- ro para o analista que essa idealização deve sístico é o responsável pela depressão, como ser transitória e vir a ser, gradativamente, des- uma conseqüência da decepção sofrida pelo feita e modificada. seu ego ideal, a ênfase da técnica analítica consiste em que se promova a difícil renún- O segundo aspecto a destacar é o de que, quan- do o objeto perdido instala-se dentro do ego, con- cia às suas grandiosas e ilusórias aspirações. funde-se com o mesmo e parasita-o de dentro, cons- Não é tarefa fácil para tais pacientes reco- tituindo-se, muitas vezes, naquilo que diversos au- nhecerem que não são o que pensavam que tores costumam chamar objetos “mortos-vivos”, ou eram ou gostariam de vir a ser, e que não o “moribundos”, ou ainda “aletargados”. Nessas si- são e nunca virão a sê-lo. É uma transição tuações, vale a pena registrar a recomendação téc- de mudança psíquica muito penosa para o nica de Grinberg (1963, p. 144) no sentido de que analisando (e, de certa forma, para o psica- “para que se processe uma boa elaboração do luto, nalista), pelo fato de que o sentimento de- ou da posição depressiva, é indispensável que se pressivo da perda de sonhos tão caros vem tenha realizado previamente a elaboração do luto mesclado com sentimentos de vergonha e de pelo ego”. Não é demais reprisar que, nestes ca- humilhação. sos, o destino do ego, qual o de Dorian Gray, é indissociado do destino dos objetos. M. Martins Por outro lado, se o sentimento de fracasso nar- (1969, p. 53) aprofunda o estudo de tais aspectos e cisista do paciente deve-se à sua convicção de ter aponta para a ocorrência de uma particular sensa- decepcionado as expectativas das pessoas que re- ção contratransferencial: a de um sentimento de presentam o seu ideal de ego, a técnica analítica exclusão que o analista sente face ao fato de que consiste em trabalhar sistematicamente na transfe- este paciente se mantém fielmente ligado ao seu rência das identificações projetivas reproduzidas objeto perdido. com o psicanalista, tendo em vista que este tam- bém é um importante representante do ideal de ego. • Nos casos em que a depressão é resultante Não é demais insistir que, especialmente nestes de culpas (em nossa equação corresponde à casos, o tipo de contratransferência despertada no C3, intimamente correlacionado com C2 e analista – se normal ou patológica – é de funda- C4), a principal recomendação técnica con- mental importância ao curso do processo analíti- siste na cautela que o analista deve ter dian- co. te da costumeira possibilidade de que a compulsão inconsciente do analisando este- • Nas depressões resultantes de identificações ja-o induzindo a estabelecer um vínculo ana- patógenas (Badaracco, 1990, p. 84), como lítico de natureza sadomasoquística. Se o psi- as antes descritas, o essencial da técnica psi- canalista ficar contratransferencialmente en- canalítica consiste em promover as desidenti- volvido, o mais provável é que suas inter- ficações, seguidas de reidentificações. É pre- pretações virão confundidas com advertên- ciso deixar claro que uma desidentificação cias, normas e acusações, o que virá ao en- não significa uma ruptura (no sentido béli- contro do núcleo masoquista do paciente; no co) do sujeito com o objeto com quem ele se entanto, o processo analítico desembocará identificou. Pelo contrário; o paciente deve em um repetitivo círculo fechado, sem pos- desenvolver uma capacidade em discriminar sibilidade para novas saídas. entre os aspectos que ele admira nos referi- dos objetos e que vai conservar como auten- Se a prevalência dos sentimentos culposos pro- ticamente seus e os aspectos que vai aban- vém de um código de valores (C7) que desde crian- donar porque parasitam-no, submetem e for- cinha e do exterior foram indevidamente imputa- çam-no a deprimir-se e a ser o que, de fato, das ao paciente, a tônica do trabalho do psicanalis- ele não é. O espaço aberto com as desidenti- ta será tanto a de prover novas significações quan- to a de promover ao analisando uma capacidade de ficações será preenchido com novas reiden- fazer discriminações entre as suas formas de pro- tificações, a partir da pessoa do analista como testar: se sadios ou se patológicos. um modelo de como este é, não na aparên- cia, mas na sua essência. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 225

O processo de desidentificação representa um É importante que o psicanalista esteja em uma momento muito delicado do curso analítico pela aliança terapêutica com o lado sadio do analisando razão de que ele costuma vir acompanhado de um que luta bravamente contra a rígida estereotipia que incremento do estado depressivo, assim como de lhe foi imposta. sensações de confusão e de perda de identidade. • Relativamente às pseudodepressões, o aspec- • Em relação à depressão conseqüente à rup- to mais importante a ser destacado é a ne- tura com os papéis designados, a manifesta- cessidade de o psicanalista ter bem claro para ção clínica mais comum é o surgimento de si a distinção entre essas e os verdadeiros sentimentos de ingratidão e de traição. Pode- estados depressivos. Uma vez estabelecida se dizer que o paciente sente uma “traição à a diferença, o manejo técnico consiste em tradição”, sendo muito interessante registrar fazer o respectivo desmascaramento da fal- que não é por nada que essas duas palavras sidade, acompanhado da interpretação das derivam de uma mesma raiz etimológica. A fantasias inconscientes responsáveis por essa exemplo do item anterior, também nestes estruturação enganosa. casos em que o paciente começa a permitir- É claro que as considerações aqui tecidas fo- se romper com alguns estereótipos cronifi- ram particularizadas separadamente para cada uma cados e a assumir papéis diferentes dos que das modalidades depressivas, unicamente por uma lhe foram programados, é comum a ocorrên- busca didática de exposição, sendo necessário rei- cia de somatizações, de sentimentos de con- terar que elas não são estanques; pelo contrário, fusão e despersonalização, assim como o de elas interagem, imbricam-se e complementam-se. uma sensação indefinida de perda de amor e o de “alguma desgraça por vir”.

CAPÍTULO PSICOSES Implicam um processo deteriorativo das fun- ções do ego, a tal ponto que haja, em graus variá- 20 veis, algum sério prejuízo do contato com a reali- dade. É o caso, por exemplo, das diferentes formas de esquizofrenias crônicas.

Psicoses ESTADOS PSICÓTICOS Abarcam um largo espectro, mas sempre pres- supõem a preservação de áreas do ego que aten- dam a duas condições: uma, é a de que esses “esta- A complexidade semântica do termo “psicose” dos psicóticos” permitem uma relativa adaptação pode levar a confusões na comunicação científica ao mundo exterior, como é o caso dos pacientes entre os psicanalistas sempre que estiver em dis- borderline; personalidades excessivamente para- cussão os critérios quanto à analisabilidade, ao nóides ou narcisistas; algumas formas de perver- prognóstico clínico e à apreciação casuística de tra- são, psicopatia e neuroses graves. A segunda con- balhos publicados acerca da análise de psicóticos. dição consiste no fato de que esses quadros clíni- Assim, na literatura psicanalítica pode-se perceber cos possibilitam uma recuperação, sem seqüelas, que a avaliação da eficácia analítica com os pa- após a irrupção de surtos francamente psicóticos cientes psicóticos varia em função do critério di- (reações esquizofrênicas agudas ou episódios de agnóstico adotado pelos investigadores: nos Esta- psicose maníaco-depressiva, por exemplo). dos Unidos, a distinção entre esquizofrenias pro- cessuais e psicoses esquizofrenóides costuma ser algo frouxa e, daí, as estatísticas são mais otimis- tas, sendo que o contrário ocorre nos trabalhos eu- CONDIÇÕES PSICÓTICAS ropeus. E no Brasil? Creio que recém estamos dan- do os primeiros passos em direção a uma autono- Essa denominação, aqui, refere aqueles pa- mia de pensamento e práxis; isto é, libertando-nos cientes que, apesar de estarem manifestamente bem da condição de meros importadores e imitadores, adaptados, são portadores de condições psíquicas sem recair no extremo oposto de romper ou me- que os caracterizam como potencialmente psicó- nosprezar as inestimáveis contribuições vindas de ticos e que, não raramente, no curso do processo consagrados autores de todas as partes do mundo. analítico, podem apresentar episódios de regres- Não cabe, aqui, fazer uma pormenorizada apre- são ao nível de psicose clínica. Isso deve-se a uma ciação da nosologia psiquiátrica e, tampouco, uma acentuada presença dos assim chamados “núcleos acurada distinção entre os referenciais teórico-téc- psicóticos” (corresponde ao que Bion denomina nicos procedentes das diferentes correntes do pen- como “a parte psicótica da personalidade”, que, samento psicanalítico. Da mesma forma, não serão como sabemos, não designa um diagnóstico psi- agudamente valorizadas as diferenças entre o que quiátrico, mas, sim, uma condição da mente). é psicanálise e as diversas formas de psicoterapias Esses “núcleos psicóticos” estão subjacentes às praticadas por psicanalistas, sendo que, no presen- estruturas neuróticas rigidamente organizadas, te capítulo, elas serão todas englobadas sob a de- como, por exemplo, as de natureza obsessiva ou nominação de “método analítico”. somatizante, as quais funcionam como uma última Como não se pode falar de psicose como uma e instável barreira defensiva contra a permanente categoria homogênea, vou adotar o critério de uma ameaça de descompensação psicótica, diante de um classificação, de base clínica, em três subcategorias: incremento de ansiedade. 1) psicoses propriamente ditas; 2) estados psicóti- Cada uma dessas referidas três subcategorias, cos; 3) condições psicóticas. por sua vez, pode ser subdividida, conforme o grau de gravidade, em uma escala que vai de 1 (forma benigna) a 4 (maligna), sendo que, muitas vezes, elas tangenciam e superpõem-se umas às outras. 228 DAVID E. ZIMERMAN

No presente capítulo, em relação aos pacientes surgimento de uma intensa angústia de ani- que foram nominados como sendo os de “condi- quilamento. ções psicóticas”, vamos limitar-nos a esclarecer • Para contra-arrestar a dita angústia, da mes- mais detidamente as características da “parte psicó- ma forma como faz o ego incipiente do bebê, tica da personalidade”, enquanto que, relativamen- essa PPP lança mão de defesas extremamente te aos pacientes portadores de “estados psicóticos”, primitivas, como são as de negação onipo- vale fazer uma referência mais particularizada da- queles que apresentam uma estrutura borderline. tente, dissociação, projeção e identificação Ninguém contesta que devemos às originais projetiva, introjeção e identificação introje- concepções originais de M. Klein, acerca do de- tiva, idealização e denegrimento. senvolvimento emocional primitivo, a possibilida- • Existe um baixíssimo limiar de tolerância às de de uma maior compreensão do que se passa no frustrações e, por isso, esses pacientes tra- psiquismo dos psicóticos, o que propiciou a aber- tam de evitar as frustrações no lugar de pro- tura das portas da psicanálise para essa categoria curar enfrentar e modificá-las. de pacientes. Dentre os mais eminentes seguidores • As relações mais íntimas caracterizam-se por kleinianos, impõe-se destacar os nomes de Rosen- vínculos de natureza sadomasoquista. feld (mais adiante, serão mencionadas algumas • Há um uso excessivo de splittings e de iden- idéias dele), de H. Segal (particularmente, é bas- tificações projetivas, de sorte que há uma ten- tante importante a distinção que ela fez entre “sím- bolo” e “equação simbólica”), de Meltzer (com as dência a uma “fusão” com o objeto necessi- suas noções de “identificação adesiva” e de um tado, do que pode resultar uma “con-fusão” estado mental de “desmantelamento”, que ele ob- entre ambos, de maneira que, assim, esse servou em pacientes autistas) e Bion. As contribui- núcleo psicótico promove um borramento ções deste último são reconhecidas por todos os das diferenças entre ele e o outro. seus colegas aqui citados como as mais originais e • Existe um grande ódio a toda realidade que importantes para o entendimento e tratamento ana- seja penosa, tanto à interna quanto à exter- lítico com psicóticos, razão porque as idéias de na. Por conseguinte, resulta uma preferên- Bion merecerão um destaque especial no presente cia pelo “mundo das ilusões” e, para manter capítulo. esse estado ilusório, a PPP comete um “ata- que aos vínculos” ligados à percepção e ao BION: “PARTE PSICÓTICA DA juízo crítico. PERSONALIDADE” (PPP) • Da mesma forma, resulta um prejuízo na capacidade das funções de pensamento ver- Como já foi frisado, assim como todo doente bal, de formação de símbolos, do conheci- psicótico tem uma parte sua que é de natureza “neu- mento e do uso da linguagem. rótica”, da mesma forma, todo e qualquer paciente • A onipotência, a onisciência, a imitação e a neurótico tem uma “parte psicótica” subjacente e prepotência substituem o necessário, porém oculta. Ademais, pode-se afirmar que uma análise doloroso, processo de “aprendizagem pela que não tratou dessa “parte psicótica” está incon- experiência”. clusa e corre o risco de ter produzido resultados • A perda da capacidade de discriminação analíticos não mais do que superficiais. Portanto, a acarreta uma confusão entre o que é verda- presença da PPP não deve ser confundida com psi- deiro e o que é falso, tanto do seu próprio cose clínica, e o analista deve conhecer bem os self como de tudo que está fora dele. núcleos psicóticos que estão enquistados no Existe a presença de um “super”-superego, psiquismo de qualquer pessoa, em graus variáveis, • obviamente. As características mais marcantes des- o qual dita as próprias leis e quer impô-las sa PPP, segundo Bion, são: aos outros. O prefixo “super” designa a con- dição dessa PPP de crer que “tudo pode, • A existência de fortes pulsões destrutivas, sabe, controla e condena” e que os demais com predomínio da inveja e voracidade. devam, incondicionalmente, acatar essa sua • Essas pulsões, quando agindo dentro do pró- arrogância. prio psiquismo e contra ele, determinam o • Essa “parte psicótica da personalidade” per- manece fixada na posição esquizoparanói- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 229

de e obstaculiza o ingresso do restante do te, necessitam encontrar um continente ade- psiquismo na posição depressiva. quado na pessoa da mãe, ou seja, que ela • A – inata – função epistemofílica (de saber acolha e devolva esses temores devidamen- e de conhecer), na PPP, está intimamente as- te “desintoxicados”, nomeados e significa- sociada com o sadismo destrutivo, do que dos. Em caso contrário, a criança reintrojeta- resulta um inibição intelectual e, por conse- rá as ansiedades projetadas, as quais, muitas guinte, uma atrofia da sadia curiosidade pe- vezes, acrescidas com as angústias próprias los conhecimentos, de tal sorte que a perso- da mãe, constituem-se sob a forma de “ter- nalidade psicótica costuma apresentar o tri- ror sem nome” (isto é, trata-se de uma forte pé composto de uma curiosidade intrusiva, angústia cuja formação original precede a da arrogância e estupidez. formação das palavras). • Daí, resulta uma impossibilidade de colocar • Para Bion, a linguagem do psicótico pode as experiências emocionais sob a forma de ser utilizada para quatro finalidades: a) Como pensamentos e os pensamentos sob a forma um acting (substitui a capacidade de pensar de palavras, do que deriva uma linguagem acerca das angústias insuportáveis por uma que comumente adquire a forma, nas perso- evacuação das mesmas através de uma nalidades psicóticas, de uma “salada de pa- motricidade). b) Como uma forma de comu- lavras”. nicação primitiva daquilo que ele não con- • Nas personalidades psicóticas, diz Bion, não segue comunicar com palavras. c) Como um se forma a “barreira de contato”, como acon- modelo de seu pensamento (a ausência de tece nas personalidades neuróticas, nas quais símbolos acarreta um prejuízo na utilização os “elementos-alfa” compõem uma barreira de substantivos e verbos, e a “salada” de que funciona como delimitadora entre o palavras, significados e propósitos pode es- consciente, o pré-consciente e o inconscien- tar traduzindo a sua forma de pensar). d) A te. Pelo contrário, nos psicóticos, essa bar- linguagem psicótica pode estar a serviço de reira é substituída pela “pantalha-beta”, a produzir efeitos no outro (no caso da situa- qual não consegue delimitar aquelas três ins- ção analítica, pode estar agindo na mente do tâncias psíquicas, nem os pensamentos, fan- analista, de forma a dissociar os vínculos tasias e afetos que transitam entre elas e, por associativos do mesmo). Um exemplo que essa razão, forma-se uma confusão entre o Bion dá desta última situação é a de um pa- real e o imaginário. ciente seu que o deixava confuso e que “ele • Ao invés do uso da “repressão”, como é o tencionava me dividir, ao me fazer dar duas habitual nos neuróticos, nos psicóticos sem- interpretações ao mesmo tempo, e isso foi pre há um uso excessivo de splittings, segui- revelado pela associação seguinte: “como dos de maciças identificações projetivas, que o elevador sabe o que fazer quando aperto funcionam como uma forma de evacuar e dois botões de uma vez ?” (1992, p. 35). descarregar em uma outra pessoa tudo aqui- • Todos esses aspectos somados tendem a le- lo que for intolerável para si próprio. var o paciente psicótico a um estado que “não • Os fragmentos de “objetos”, e das demais é de vida e nem de morte”. partes do aparelho psíquico (id, ego, supe- rego, afetos...) resultantes dos splittings, são projetados – sob a forma de objetos bizar- PACIENTES BORDERLINE ros – no espaço exterior, desde onde amea- çam e perseguem o indivíduo que os proje- Até há pouco tempo, essa denominação desig- tou, sendo que, nos casos mais extremos, nava um estado do psiquismo de um paciente que, esses pedaços projetados podem adquirir a clinicamente, estivesse na fronteira limítrofe entre a neurose e a psicose. Embora hajam evidências configuração de alucinações ou idéias deli- clínicas que confirmem essa afirmativa, na atuali- rantes persecutórias. dade os estudiosos desses casos borderline prefe- • A projeção desses temores e ansiedades, rem considerar tal condição psíquica como sendo principalmente as de aniquilamento e mor- uma estrutura, com características específicas e 230 DAVID E. ZIMERMAN peculiares. Dentre esses autores, é justo destacar a instável e exageradamente compartimentada, Otto Kernberg que, desde 1975, em sucessivos tra- de tal monta que Kernberg descreveu esse balhos, vem estudando essa psicopatologia, com estado da mente com o nome de departamen- inestimáveis contribuições e postulando para os talização. pacientes borderline a categoria de uma estrutura • É interessante consignar que na mesa-redon- psicopatológica específica e singular. da “Realidade Psíquica em Condições Bor- De forma abreviada, cabe destacar as seguintes características dos pacientes borderline: derline” (Rev. Brasil. Psican., 1996), a sín- tese final assevera que cada psicanalista, à • Todos os aspectos acima descritos como ine- sua maneira, mostrou como os pacientes rentes à “parte psicótica da personalidade”, borderline podem ser não apenas os mais em algum grau e forma, estão presentes nes- frustrantes, mas também os mais gratifican- ses pacientes fronteiriços. tes de tratar-se. • No entanto, diferentemente do que acontece nas psicoses clínicas bem-estabelecidas, os pacientes borderline conservam um juízo PSICOSES “PROPRIAMENTE DITAS” crítico e o senso da realidade. • Existe a presença permanente de uma ansie- Em relação a essas referidas psicoses, tal como dade difusa e a sensação de um vazio crôni- elas são descritas na psiquiatria, é consensual que co, que acompanham uma neurose polissin- há uma evidente lacuna entre os profundos avan- tomática. ços de nossa metapsicologia e os limitados alcan- • Essa última refere que esses pacientes reco- ces de nossa prática clínica. Assim, os poucos re- latos de tratamentos realizados exclusivamente pelo brem as suas intensas angústias depressivas método analítico clássico em pacientes com esqui- e persecutórias, com uma fachada de sinto- zofrenias processuais, por parte de renomados psi- mas ou traços caracterológicos, de fobias canalistas, como Rosenfeld, Bion e Meltzer, são diversas, manifestações obsessivo-compul- de brilhantes resultados de investigação teórica, mas sivas, histéricas, narcisistas, somatizadoras, de duvidosa eficácia clínica. perversas, etc., as quais podem ser concomi- Na atualidade, em nosso meio, a grande maio- tantes ou alternantes. ria dos psicanalistas preconiza, para tais pacientes, • É bastante freqüente o surgimento de actings métodos alternativos, em um arranjo combinatório que adquirem uma natureza de sexualidade de múltiplos recursos, como, por exemplo, a simul- perversa e sadomasoquista. taneidade do método analítico e o uso de fármacos, • Em casos mais avançados da estruturação ou com outros meios, que serão referidos mais adiante. borderline, podem aparecer manifestações Uma vez delimitadas as diferenças diagnósticas “pré-psicóticas”, como é o caso de persona- e prognósticas, podemos estabelecer algumas ca- lidade paranóide, esquizóide, hipomaníaca, racterísticas que são comuns aos pacientes psicó- neuroses impulsivas, transtornos alimentares ticos, havendo uma proporcionalidade direta entre graves, drogadicções, psicopatias, etc. a intensidade das mesmas e o grau de regressividade • Há um sério transtorno do “sentimento de do ego. Neste capítulo, vamos ater-nos unicamen- identidade”, que Kernberg denomina síndro- te a três dessas áreas características: a importância me da difusão da identidade, a qual consiste do corpo, a função cognitiva do ego e alguns as- na dificuldade que esse paciente tem de trans- pectos específicos da prática clínica. mitir uma imagem integrada, coerente e con- sistente de si próprio e, assim, deixa os ou- tros confusos em relação a ele. A IMPORTÂNCIA DO CORPO • Esse estado decorre do fato de que o pacien- Muito antes da formação do pensamento e da te borderline faz um uso excessivo da defe- linguagem, o corpo desempenha um papel funda- sa de dissociação dos distintos aspectos do mental na estruturação do psiquismo. Primitivamen- seu psiquismo, que permanecem contraditó- te, a criança não tem a experiência corporal como rios ou em oposição entre si, de modo que uma unidade integrada; pelo contrário, ela percebe ele se organiza como uma pessoa ambígua, o seu corpo como uma dispersão de todas as suas FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 231 partes. Isto deve-se ao fato de que, por falta de za” e “despersonalização”, assim como por vivên- maturação biológica, o lactente encontra-se sub- cias de desintegração corporal, de alucinações sen- merso em uma confusão de sensações desordena- soriais, de crônicos sintomas hipocondríacos e de das, difusas e indiferenciadas, que ele não sabe de somatizações. onde procedem. Tais sensações, acrescidas de re- novadas angústias e significações, vão sendo ar- quivadas e registradas como que de forma fotográ- A FUNÇÃO COGNITIVA fica no ego incipiente, onde se constituem como representações do corpo e que, em condições re- A forte influência do kleinianismo em nosso gressivas, podem expressar-se no corpo. meio determinou que, por muito tempo, a ênfase Por outro lado, é inerente ao ser humano ter na compreensão e no manejo do paciente psicótico uma certa capacidade de alienar-se no corpo do recaísse unicamente nos problemas decorrentes das outro. Isso é porque, em seu início evolutivo, a terroríficas fantasias inconscientes, com as respec- criança faz um domínio imaginário da sua imagem tivas angústias e defesas arcaicas. A partir de ou- corporal. Nas organizações psicóticas, há uma de- tros autores, Bion especialmente, o problema da tenção ou uma regressão a essas primitivas etapas psicose passou a ser entendido muito em relação à e, por isso, o indivíduo não discrimina as diferen- patologia das funções do ego, tais como a da per- ças entre ele e o outro; o que é de dentro e o de cepção, da comunicação e, principalmente, a do fora; as partes, do todo. pensamento. Resulta daí, então, que o temor mais profundo O problema do pensamento, por sua vez, está e de maior perigo que o paciente psicótico experi- intimamente ligado ao do conhecimento, isto é, às menta, de forma intensa, é o da dissolução e da diferentes maneiras que o indivíduo tem de dizer desintegração do ego e do self, e isso costuma vir “não” às verdades penosas, que vão desde um sim- acompanhado de fantasias de imagens corporais ples mecanismo de supressão até um extremo grau estranhas e de uma sensação de não habitar o pró- de forclusão, próprio das psicoses. prio corpo. Assim, impõe-se ao psicanalista a necessidade Da mesma forma, o sentimento de identidade de ele ter bem claro para si a gênese e a natureza constitui uma preocupação permanente para tais do pensamento, assim como quais são as áreas pacientes. Há uma necessidade constante de man- cognitivas que ficaram detidas em sua evolução ou ter a individuação, de conservar a identidade e de que se constituíram como pontos de fixação para manter as relações com os objetos do mundo exte- futuras regressões psicóticas. rior, decorrendo daí que eles põem em jogo todos Nem todos os adultos alcançam os estágios mais os órgãos dos sentidos, ou, inversamente, fazem elevados do desenvolvimento cognitivo e, muitas uma fuga desesperada por meio de uma retração vezes, as conquistas alcançadas são parciais, sem- autística intensa. pre dependem da realidade objetiva, a social in- Autores como Lacan, Winnicott e Kohut estu- cluída. daram a fase evolutiva em que o fenômeno da Na atualidade, é consensual entre os psicana- especularidade ganha relevância, sendo que a re- listas o fato de que, desde o nascimento, há uma gressão a essa etapa facilita o nosso entendimento permanente interação entre os fatores biológicos e de alguns sintomas psicóticos. Exemplo disso é o os inter-relacionais. surgimento do “sinal do espelho”, o qual pode cons- Da mesma forma, há uma tendência entre os tituir-se como um dos sinais mais precoces da que se interessam pela análise de psicóticos em eclosão de uma esquizofrenia e consiste no fato de integrar os ensinamentos aportados tanto pelos au- que, na frente do espelho, o paciente efetua movi- tores pioneiros, como Freud (processos primário e mentos sob a forma de gesticulações ou manei- secundário; formação do pensamento obsessivo e rismos, como se estivesse em uma desesperada delirante, como em Schreber, e, principalmente, os busca de sua própria imagem. De forma equiva- seus estudos sobre os processos de negação); lente, nos pacientes em regressão psicótica, pode- Ferenczi (em 1913, ele descreveu três etapas evo- mos encontrar “gestos espelhados”, em que eles, lutivas do pensamento primitivo do bebê: a) “má- sentados face a face com o terapeuta, executam os gico-onipotente-alucinatório”; b) fase dos “gestos mesmos movimentos deste. mágicos”, através de diversos “sinais” que ele emi- Em termos clínicos, as primitivas representa- te; c) fase das “palavras com a imaginação de efei- ções ligadas ao ego corporal traduzem-se no pacien- tos mágicos”) e M. Klein (estudou a patologia dos te psicótico por meio de sensações de “estranhe- impulsos epistemofílicos e do processo de apren- 232 DAVID E. ZIMERMAN dizagem), como também pelas contribuições de lógicas para a capacidade de indução, e nem para a autores mais modernos. dedução, a criança não consegue colocar-se no lu- Desses últimos, são bem conhecidos por todos gar do outro. Isso ajuda a explicar os aspectos da nós os trabalhos de Bion (o aparelho de pensar os patologia da linguagem e da comunicação, em que pensamentos; a proporção inversa entre a onipo- o indivíduo parte do princípio de que os outros tência dos pensamentos e o aprendizado pela ex- adivinham-no e entendem-no sempre, pela razão periência; a noção de pensamento vazio; a função em sua crença de que todos viveriam unicamente K e -K; o ataque aos vínculos; a reversão de pers- em função dele. Pela mesma falta de maturação pectiva, etc.) e os de M. Kyrle (o desenvolvimento neuronal, a importante função de julgamento, nes- cognitivo a partir dos mecanismos que produzem se estágio, não é de ordem moral ou legal, mas, os “mal-entendidos” e as concepções ilusórias). São sim, está baseada em seus valores unicamente menos conhecidos os trabalhos de Matte Blanco egocêntricos. É importante que diferenciemos este (1986), psicanalista pertencente à Sociedade Bri- egocentrismo de origem neurobiológica, daquele tânica de Psicanálise, cujos estudos sobre as pri- que é típico da organização defensiva narcisística. mitivas etapas do pensamento (“lógica simétrica e É só ao final desse segundo estágio e começo assimétrica” e noção de “conjuntos infinitos”) es- do terceiro que se constitui o “pensamento opera- tão ganhando gradativa relevância para a compre- cional concreto”, no qual a criança começa a fazer ensão da lógica psicótica. relações causais, temporais e lógicas, configuradas Além dessas contribuições de autores psicana- pelos vocábulos: porque; antes; depois; então; logo; listas, é preciso acrescentar aqueles que procedem etc., organizadores da importante função de sinta- de outras áreas, como, por exemplo, de Piaget xe do ego. (1954), suíço, que é epistemólogo e não psicana- A quarta etapa de um desenvolvimento normal lista. Esse autor classifica a normal evolução cog- – a do pensamento abstrato hipotético-dedutivo – nitiva em quatro estágios: 1) sensório-motor; 2) somente desenvolver-se-á satisfatoriamente se as pensamento pré-operatório; 3) pensamento pré- etapas anteriores forem suficientemente bem resol- conceitual concreto; 4) pensamento abstrato hipo- vidas. tético-dedutivo. É necessário destacar, para a compreensão do O entendimento neurobiológico, especialmen- tipo de lógica utilizada pelos psicóticos, a deten- te das duas primeiras dessas etapas, são fundamen- ção evolutiva nos subestágios em que persiste um tais para que tenhamos uma compreensão da pensamento de um destes tipos: 1) Sincrético (em estruturação do pensamento do psicótico, e isso que “parecer” é o mesmo que “ser igual”). 2) Rever- justifica que nos alonguemos um pouco mais. sivo (tudo o que acontece tem que ter, necessaria- Assim, o estágio “sensório-motor” caracteriza- mente, uma recíproca). 3) Racionalizado (fazer o se por uma absoluta indiferenciação entre o eu e o mundo real adaptar-se ao seu). 4) Classificatório outro; incapacidade de fazer quaisquer discrimi- (a partir da metonímia de que a parte é igual ao nações; uma não-integração corporal; uma falta de todo, e vice-versa, o indivíduo classifica as pesso- delimitação com o ambiente exterior (a mão do as e coisas baseando-se na presença de um simples bebê, por exemplo, é por ele confundida com a de atributo, comum entre elas). qualquer outro corpo em movimento). Só ao final A importância da função de pensar, na análise desse estágio é que começam a formar-se as no- de psicóticos, pode ser resumida na postulação de ções de eu x não-eu; dentro x fora, etc. Bion que, em diversos trabalhos, enfatiza o fato de O estágio do “pensamento pré-operacional” que, para que a mente possa desenvolver-se, é ne- estende-se dos 18 meses aos 6 (7) anos, e algumas cessário que a experiência emocional das relações de suas características são: a criança começa a ter íntimas seja pensada. No entanto, uma coisa é “pen- algumas alternativas; o pensamento ainda é sar” de acordo com os primeiros estágios da área preconceitual, ou seja, tudo deve ter uma realidade do pensamento; outra coisa é a capacidade de pen- física (os pensamentos estão na boca; os sonhos, sar em nível amadurecido, o que abarca o tríplice no quarto, etc.); tudo deve ter uma causa identi- aspecto de: conceituar, julgar e raciocinar, e que, ficável e um propósito definido (é a fase dos “por diferentemente do anterior, possibilita que os pen- quê?, que dá origem às teorias fantásticas da crian- samentos opostos, ou os contraditórios, sejam re- ça, como, por exemplo, as relativas ao mistério do conhecidos como podendo ser concomitantes en- nascimento e da morte e às diferenças dos sexos, tre si. etc.). Outra característica dessa etapa é o egocen- trismo: pelo fato de ainda não ter condições neuro- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 233

PRÁTICA PSICANALÍTICA to do ponto de vista de autores psicanalistas como os da neurobiologia contemporânea. A análise de psicóticos foi de interesse vital nos 2. Valorização da realidade externa. Diferen- anos 50, tendo começado como uma tentativa de temente do que a técnica kleiniana classicamente mostrar que eles podiam ser tratados exclusivamen- recomendava, no sentido de priorizar a interpreta- te pela técnica psicanalítica clássica. Isso, por um ção dos conflitos do mundo interno, referida às lado, propiciou os estudos sobre os estados con- primitivas fantasias inconscientes e aos objetos par- fusionais, o narcisismo e as funções cognitivas, bem ciais introjetados, os analistas contemporâneos como significativos avanços na análise de pacien- hierarquizam a importância dos objetos externos tes borderline e estruturas narcisistas. Por outro reais. lado, acarretou inconvenientes pelo fato de que 3. Relações familiares. No mínimo, dois as- muitos autores tenderam a refugiar-se e enclausurar- pectos merecem um registro: um, é o discurso dos se em uma doutrina rígida e monolítica, centrada pais como um dos modeladores do inconsciente do unicamente na interpretação transferencialista dos indivíduo; o segundo é a designação de papéis fi- conteúdos das arcaicas fantasias inconscientes. xos a serem cumpridos no contexto da dinâmica A maior crítica a essa posição pode ser sinteti- familiar, como, por exemplo, a atribuição do papel zada nesta pergunta de A. Green (1986): “... como de bode expiatório, ou de gênio, ou de uma eterna se pode, num trabalho como o nosso, trabalhar criança, e assim por diante, inclusive a possibilida- com a palavra pela palavra, tendo por ambição de de que o papel que foi designado para o nosso influenciar algo que não é da ordem da palavra?”. paciente psicótico tenha sido justamente o dele fun- Aos poucos, a análise de tais pacientes vem cionar como psicótico, isto é, como o portador das ganhando entre nós características específicas e partes psicóticas de cada um e de todos do seu gru- diferenciadas, criadas a partir de um enfoque múl- po familiar. tiplo. Apesar da discordância de muitos, eu sou dos 4. Colaboração multidisciplinar. Cada vez que crêem ser útil o psicanalista ter uma formação mais, os psicanalistas estão permeáveis às contri- pluralista e eclética, desde que fique bem claro que buições dos epistemólogos, neurólogos, lingüistas, ecletismo não é o mesmo que sincretismo, ou o educadores, geneticistas e, especialmente, à mo- mesmo que um mero aglomerado de conhecimen- derna psicofarmacoterapia. tos diferentes. Assim, por exemplo, seria forçosa- 5. Tratamento múltiplo. Como decorrência mente artificial qualquer tentativa de integrar dos itens anteriores, a tendência dos psicanalistas unificadamente a metapsicologia de M. Klein e a contemporâneos que tratam pacientes psicóticos neurobiologia de Piaget. Os que acreditam neste pelo método analítico é combinar a este outros último não podem conceber que uma criança com métodos alternativos como: diversas formas de menos de 10 meses possa construir fantasias, pen- psicoterapia; grupos de auto-ajuda; medicação psi- samentos e mecanismos mentais complexos que cotrópica; instituição que proporcione os benefí- permitam, por exemplo, o ego manipular uma ima- cios da ambientoterapia; o concurso dos assim cha- gem interna do objeto na ausência deste. mados “auxiliares terapêuticos”, “amigos qualifi- A mesma consideração vale para os mecanis- cados”; atendimento do grupo familiar; etc. mos dissociativos e projetivos, sendo que as fanta- 6. Particularidades da técnica psicanalítica. sias sádico-canibalísticas são, neste contexto, en- Sabemos que os objetivos básicos da análise com tendidas como tendo sido constituídas a posteriori, os pacientes psicóticos são promover: a constância quando o pensamento desenvolve-se em lugar das objetal interna e a constância da percepção da rea- experiências sensório-motoras. lidade externa a integração das dissociações; o de- Como esquema de exposição, vou apontar para senvolvimento da capacidade de domínio sobre os as seguintes áreas que, na atualidade, fundamen- estímulos resultantes das frustrações, tendo em vista tam e dimensionam a análise de psicóticos propri- que estes pacientes desorganizam-se diante de si- amente ditos: tuações novas, não-estruturantes; a transição do imaginário para o simbólico; e a formação do sen- 1. Recentes avanços teóricos. Destes, os que timento de identidade. Para tanto, creio que os se- vêm merecendo maior relevância são os referentes guintes pontos são os essenciais: à indiferenciação entre o “eu” e o “não-eu”; ao fe- nômeno da especularidade; ao registro somático; • Nos primeiros tempos da psicanálise, era ao alargamento das atribuições das identificações inadmissível cogitar uma análise para pacien- projetivas aos processos perceptivo-cognitivos, tan- tes psicóticos, porquanto, segundo Freud, os 234 DAVID E. ZIMERMAN

pacientes com “neurose narcisista” (assim, comunicação e como uma forma de invasão então, eram denominadas as psicoses), com fusional e controle onipotente. toda a libido retirada do mundo exterior e • É comum que esse paciente, durante um lon- reinvestida no mundo interior, não consegui- go tempo inicial da análise, faça uma idea- riam desenvolver uma “transferência” com lização extremada da pessoa do analista, e é o analista, e, sem transferência, não existiria importante que a mesma não seja destruída psicanálise. Desde os descobrimentos de M. de forma abrupta e, muito menos, que venha Klein e de outros autores que se aprofun- a ser perpetuada, em função das necessida- daram nos estudos relativos ao desenvolvi- des narcisísticas do terapeuta. mento emocional primitivo do bebê, sabe- • É de máxima importância o reconhecimento mos que tais pacientes desenvolvem, sim, dos movimentos resistenciais/contra-resis- uma transferência peculiar, que costuma ser tenciais como, por exemplo, a formação, no denominada “transferência psicótica”. par analítico, de diferentes tipos de conluios • É útil diferenciar essa “transferência psicóti- inconscientes. Da mesma forma, é importan- ca” do que denominamos “psicose de trans- te que se discrimine quando as resistências ferência”, tal como foi descrita por Rosen- do paciente representam uma absoluta opo- feld (1978), que pode emergir no curso da sição ao método analítico, ou quando elas análise com pacientes não-psicóticos (esse servem como um indispensável indicador ao fenômeno transferencial aparece mais escla- analista de como funciona o ego de seu pa- recido no capítulo 31, que trata das “transfe- ciente. Assim, os múltiplos e freqüentes rências”). actings devem ser entendidos como uma for- • O analista deve partir do princípio de que ma comunicacional muito primitiva (em todo paciente psicótico, por mais desagre- Freud, corresponde à etapa de “representa- gado que esteja, sempre tem uma parte não ção-coisa”, no ego) e que se expressam pela psicótica, à qual ele deve aliar-se. linguagem paraverbal da ação. Igualmente, • O passo inicial é, pois, conseguir o estabele- o uso freqüente de silêncios longos pelo pa- cimento de uma “aliança terapêutica”, sem ciente exige que se faça uma discriminação a qual o restante do trabalho analítico com quanto ao propósito de cada um deles, sen- este tipo de paciente será estéril. do que, muitas vezes, uma pausa silenciosa, • Ao contrário do que poderia parecer, é es- antes de ser uma resistência de oposição, sencial que se mantenha a preservação do pode estar significando a necessidade de o setting básico que foi instituído, como uma paciente ter um “espaço” seu para pensar. forma de assegurar à indispensável manu- • Também as freqüentes manifestações psicos- tenção dos limites e da diferenciação dos somáticas devem ser compreendidas e, se respectivos papéis. Essa recomendação téc- possível, decodificadas como um meio ar- nica é particularmente importante na análise caico de comunicação dos primeiros regis- de pacientes psicóticos que fizeram uma tros do corpo no ego, e deste, no corpo. estruturação da mente do tipo gemelar. Tra- • Sabemos o quanto os pacientes psicóticos são ta-se de uma dissociação com duplicação, sensíveis às frustrações decorrentes do re- em que tal paciente se lança em uma infinita conhecimento das ilusões simbiótico-narci- e nunca acabada busca de imagens especu- sísticas, assim como pela ausência dos obje- lares exteriores (“almas gêmeas”) que con- tos, acentuada, neste caso, pela impossibili- firmem a sua falsa crença de que não há di- dade de possuí-los. Resulta daí que tais pa- ferenças de sexo, de geração ou de capaci- cientes tendem a negar e a evitar essas frus- dades, entre ele e os outros. trações ao invés de modificá-las, o que se • As identificações projetivas, que costumam constitui num dos fatores que mais se opõem ser usadas maciçamente pelo paciente psicó- ao crescimento da mente. O analista deve ter tico, devem ser discriminadas pelo analista claro para si o fato de que a capacidade de em seu tríplice aspecto: como um mecanis- tolerância às frustrações é imprescindível mo defensivo, como um importante meio de para a formação de símbolos e para a mu- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 235

dança psíquica, a qual implica em uma rup- São bem conhecidas as respostas contratrans- tura com os conhecimentos e o código de ferenciais que se manifestam sob a forma de senti- valores previamente estabelecidos no pa- mentos de medo, paralisia, impotência, ódio, con- ciente. fusão, angústia diante dos espelhamentos, etc., mas vale destacar a possibilidade de o analista vir a sen- Dito de outra forma, o que propicia o início da tir em seu próprio corpo as representações intrapsí- simbolização é o psicanalista portar-se como uma quicas do paciente psicótico, nos casos em que as espécie de objeto transicional, que faculte ao pa- identificações projetivas deste resultem de sua ex- ciente a sua passagem da díade fusional para a inter- trema necessidade de “tocar” (emocionar) o ana- relação triangular; isto é, gradativamente substituir lista. a “lei do desejo” (mãe) pelo “desejo da Lei” (pai), tal como descreve Lacan: • A atividade interpretativa do psicanalista me- rece considerações mais alongadas. • Na experiência emocional do vínculo analí- tico, o indispensável contato com as “verda- Inicialmente, creio ser útil fazer uma diferença des” nunca deve ser de forma absoluta e nem entre a interpretação propriamente dita, senso es- trito, e a atividade interpretativa, senso amplo, a definitiva, mas, sim, deve constituir-se em qual abrange ainda mais, além da anterior, a valo- um compromisso com a veracidade, a coe- rização da realidade externa e da extratransferência; rência e a busca de correlação de significa- o estímulo a clareamentos; o assinalamento de pa- dos. radoxos e contrastes; o apontamento quanto às • É de especial importância explorar ao máxi- maneiras de como o paciente percebe, pensa, co- mo os fatores da realidade externa, a qual munica e age, e as respectivas interações entre elas; pode estar perturbada em umas áreas, e em e a formulação de perguntas, não as interrogatórias outras não. Assim, é preciso levar em conta exploradoras, mas aquelas que estimulam a refle- que, no curso do processo analítico, o de- xões. Há uma diferença entre as interpretações da senvolvimento da função cognitiva do ego transferência e na transferência: na análise, há trans- processa-se em três níveis distintos: o pri- ferência em tudo, mas isso não quer dizer que to- das as intervenções devam visar sempre a transfe- meiro é a tomada de conhecimento do pa- rência. ciente quanto ao “material” que ele traz, bem Estamos considerando que a técnica analítica, como ao da sua conduta, especialmente no dentro da indispensável preservação do setting, gira que concerne à distinção entre a fantasia e a em torno de dois eixos fundamentais, que são realidade; o segundo nível é o da nomeação, indissociados e complementares entre si: a ativida- conceituação e juízo crítico deste conheci- de interpretativa e a “atmosfera analítica”, a qual é mento; o terceiro é o da reflexão acerca dos determinada em função da atitude interna do psi- efeitos que este insight cognitivo e afetivo canalista. Enfatizamos o fato de que essa última terá em sua vida, ou seja, que ele, da mesma ganha em importância em relação à primeira na forma que o seu analista, antes do “porque” razão direta do grau de regressão do paciente, mas etiológico, valorize sobretudo o “para que” nem por isso concordamos com aqueles que su- bestimam o valor das interpretações para os pa- existencial. cientes psicóticos, sob a alegação de que o seu in- • Os aspectos contratransferenciais assumem discutível prejuízo na capacidade de formar sím- uma importância fundamental pelo fato de que bolos e, portanto, de fazer abstrações e conceitua- eles costumam adquirir extensão e profundi- ções determina que as interpretações se tornem inó- dade tais que, tanto podem constituir-se como cuas. uma excelente bússola comunicadora ao psi- De fato, é preciso reconhecer que de pouco canalista do mundo interno do paciente – com adiantam as interpretações centralizadas exclusi- as suas respectivas necessidades básicas que vamente nas fantasias inconscientes e, muitas ve- estão à espera de serem analiticamente pre- zes, sob a forma sistemática do chavão: “É comi- enchidas – como também podem os sentimen- go, aqui e agora”. No entanto, as interpretações, tos despertados no analista estancar, desvir- obviamente sem esses vícios, são indispensáveis, pois somente elas possibilitam nomear e dar senti- tuar ou até mesmo deteriorar de forma irre- do às inominadas angústias primitivas que o pa- versível o método analítico. 236 DAVID E. ZIMERMAN ciente está revivendo ao calor da experiência emo- fazer uma possível perpetuação simbiótica da díade cional analítica e que são as mesmas que ele vem mãe-filho, tão comum nos pacientes psicóticos. experimentando toda a sua vida, mas que não con- segue verbalizá-las porque as mesmas formaram- • É indispensável levar em conta que, sempre, se antes da etapa da “representação-palavra”. o paciente psicótico está cheio de...vazios. E que tais vazios, antigos e muito dolorosos, • Nestes casos, deve ser levado em conta que costumam ser substituídos por autarquias os pensamentos e as palavras podem com- narcisísticas de auto-suficiência, ou por es- portar-se para o paciente psicótico como se truturas tipo “falso self “, etc. Dizendo com fossem coisas materiais e que, portanto, po- outras palavras: existe desde sempre uma dem ter o mesmo destino destas, isto é, po- falta básica (falha de uma adequada mater- dem estar aglomerados, dilacerados, expul- nagem, com as conseqüentes feridas emoci- sos, entesourados, etc. onais), de modo que nos pacientes psicóti- • A transformação da experiência emocional cos predomina a presença de uma ausência. intolerável em algo tolerável só é possível pelo pensamento; por isto, é de grande utili- A importância disso na prática clínica consiste dade prática que o analista localize em qual no fato de que toda privação que esse paciente so- fre (inclusive aquela que seja inevitável e necessá- subestágio da evolução neurobiológica está ria para o seu crescimento) é significada pelo psicó- detida a capacidade de pensar do seu pa- tico como um abandono e, portanto, ele a semantiza ciente. Da mesma forma, pode-se dizer que como sendo uma vivência de “aniquilamento”. o paciente psicótico nunca chegará à cura, Igualmente, uma outra importante repercussão sendo que o objetivo do método analítico res- na prática clínica, decorrente da constante “presen- tringe-se a um trabalho de restituição, razão ça da ausência” no psiquismo do paciente com con- porque a atividade interpretativa visa a um figuração psicótica, consiste na imperiosa necessi- desenvolvimento cognitivo: ajudar a parte dade de que o analista saiba “escutar as ausências” não-psicótica do paciente a observar, a pen- (os dificílimos sentimentos contratransferenciais, sar e a não fugir das verdades. que qualquer terapeuta sente em tais situações, • No entanto, com o paciente psicótico, acima podem constituir-se, para ele, como uma excelente bússola empática para captar a comunicação não- de tudo, é a “atmosfera analítica” que se verbal do paciente dessas suas “ausências internas). constitui como o mais importante fator tera- Da mesma forma, também é indispensável que o pêutico. Cabe ao analista ter uma série de analista “escute” a constante presença da necessi- atributos básicos, dos quais é preciso ressal- dade desse paciente de ser entendido nas suas an- tar aqueles que correspondem aos que, cer- gústias emergentes (mais do que ser atendido na tamente, faltaram na maternagem original do demanda de seus pedidos concretos). paciente. Apesar da ressalva de que o víncu- Neste contexto, pode-se dizer que a atividade lo analista-paciente psicótico não reproduza interpretativa e a função continente do psicanalis- de forma rigorosamente igual a relação mãe- ta, aí incluída a capacidade de empatia, constituem bebê, é evidente que existem profundas simi- um sistema único, que vai compondo a “atmosfera litudes entre ambos. analítica”, a partir da qual aumenta a responsabili- dade do terapeuta, pois ele vai sendo introjetado Assim, o analista que trata de pacientes psi- como um novo modelo de identificação e de cóticos deve preencher as mesmas funções que uma ressignificação do código de valores do seu paciente mãe adequadamente boa exerce para o seu filho, psicótico. desde o nascimento, e que são as seguintes: prove- Uma outra forma de abordar as “condições ne- dora (das necessidades básicas); contenedora (das cessárias mínimas” (ver capítulo 41) que um ana- angústias); organizadora (do caos resultante da lista deve possuir para poder tratar pacientes psi- indiferenciação); significadora (nomear e dar sen- cóticos é a de realçar aquilo que ele não deve ser. tido a tudo que se passa com a criança) e modelado- Assim, ele não é o ego ideal do paciente (ou seja, ra (de identificações). Além da ativa participação ele não é Deus, ou uma pessoa poderosa, mágico- em parte dessas funções, cabe ainda ao pai da crian- onipotente, etc.). Da mesma forma, o analista tam- ça (ou o analista, na transferência paterna) cum- bém não é uma mãe substituta do paciente, que prir o papel do terceiro, isto é, aquele que vai des- nunca o frustre, tampouco é professor, confessor, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 237 amigo com vínculos sociais, um representante da zar com os aspectos construtivos e as poten- moral, etc. O terapeuta não é nada disso, embora, cialidades latentes, que estão ocultas e blo- temporariamente, possa ser um pouco disso tudo. queadas no psiquismo desse paciente, e das Em relação às interpretações, de forma breve, quais ele não se dá conta de que é possuidor. alguns pontos merecem um registro: Um exemplo banal disso: no curso de uma • O pior erro do analista, diz Rosenfeld (1988), supervisão, o analista interpretava correta- é quando ele interpreta todo o conflito trans- mente os aspectos agressivos e birrentos de ferencial em situações de “impasse analí- uma paciente que se recusava terminante- tico”(costumam acontecer freqüentemente), mente a aceitar uma necessária (para o ana- como sendo de responsabilidade única do pa- lista) mudança de horário de uma sessão. A ciente. situação caminhava para um “impasse” que • O analista pode estar cometendo uma vio- só foi revertido quando o terapeuta compre- lência interpretativa ao seu paciente psicó- endeu e “apoiou” os aspectos positivos da tico, se ele não levar em conta o nível evolu- “briga” da paciente, que estavam expressan- tivo do pensamento deste (por exemplo, fa- do a sua necessidade de sair de um estado lar em termos ético-científicos, ou de eleva- de submissão crônica que sempre tivera com da abstração, para um paciente que só con- seus pais, além de experimentar o exercício segue “pensar” em uma dimensão mágica e da importante capacidade para dizer “não”. concreta). • Destarte, é indispensável que o analista te- • Outro considerável erro técnico é quando o nha claro para si que a assim chamada “trans- analista põe ênfase exagerada nos aspectos ferência negativa”, quando bem compreen- destrutivos do paciente, sem levar em conta dida e manejada por ele, representa ser po- a contraparte construtiva dos mesmos. sitiva para o processo psicanalítico. • A propósito disso, cabe enfatizar que, sem • Um obstáculo importante às mudanças psí- perder a essência psicanalítica, está plena- quicas ocorre quando o terapeuta não perce- mente justificada a utilização, por parte do be as micromudanças do paciente, muitas analista, de uma “técnica de apoio”, desde vezes sob a forma de actings de aparência que fique bem claro que o emprego de preocupante, ou de manifestações transferen- “apoio” não é o mesmo que dar conselhos, ciais negativas, como as acima aludidas, as consolo, ser “bonzinho”, não frustrar ou não quais podem estar significando o seu come- estabelecer limites, etc. Pelo contrário, a téc- ço de independência e também de ele estar nica de “apoio” exige muita competência por começando a experimentar o afloramento de parte do terapeuta, porquanto ela implica na sua contida agressão, assim como a sua for- capacidade de o analista conseguir sintoni- ma de amar.

CAPÍTULO víduo, o que prenuncia o moderno enfoque psicos- somático. Apesar dessas tentativas de unificar a mente e o corpo, a verdade é que sempre prevaleceu am- plamente a concepção de uma total dicotomia en- 21 tre ambas, e a razão mais plausível disso talvez seja o terror de um desaparecimento total do indivíduo diante da concreta perecibilidade do corpo diante da morte. Na atualidade, em uma direção de extremo Pacientes Somatizadores oposto ao da dicotomia, são muitos os estudiosos a opinarem que não existem doenças psicossomáticas e tampouco fenômenos psicossomáticos, porquan- to a “natureza humana é uma só” e que qualquer A curiosidade pelos mistérios que cercam as tentativa de integração do psiquismo com o orga- relações entre a mente e o corpo acompanha a pró- nicismo já implica uma prejudicial idéia prévia da pria história da humanidade, o que pode ser evi- existência de uma dissociação entre ambas. Pes- denciado pelos recursos empregados por nossos soalmente, incluo-me entre aqueles que, embora re- ancestrais, representados nas figuras dos faraós, conhecendo a validade da essência desta útima afir- bruxos, xamãs, os quais, por meio de rituais mági- mativa, acreditam na necessidade de considerar, de cos, como os de orações, danças, práticas de exor- forma particular, a existência de fenômenos espe- cismo e outros afins, tentavam remover os “maus cíficos em que predominantemente fatores psíqui- espíritos” que seriam os responsáveis pelas doen- cos desencadeiem quadros orgânicos, e vice-ver- ças orgânicas terminais. Reciprocamente, achados sa, sendo útil o conhecimento de cada uma das arqueológicos de trepanações cranianas encontra- múltiplas configurações que as respostas psicosso- das em fósseis do antigo Egito, feitas com precisão máticas podem assumir. e com algum rigor científico, apontam para a pro- A primeira vez que o termo “psico-somático” babilidade de que nossos predecessores médicos (exatamente com essa grafia, com um hífen nitida- procuravam encontrar no soma orgânico a causa mente separador de psique e soma) apareceu na dos transtornos mentais. literatura médica foi em 1818, em um texto de Hein- Na própria história da medicina, desde o seu roth, clínico e psiquiatra alemão, no qual o autor início, duas escolas na Antigüidade Grega anta- buscava adjetivar uma forma particular de insônia, gonizavam-se: a primeira, liderada por Galeno, atri- sendo que tal concepção foi fortemente atacada por buía uma existência totalmente autônoma à doen- parte do conservadorismo científico da época. Ou- ça orgânica, sendo que a posterior descoberta de tras vozes tímidas apontavam para essa direção, acerca dos micróbios como agentes patogê- sendo interessante consignar o alto grau de intui- nicos específicos tornou essa concepção triunfan- ção de William Motsloy que há mais de 100 anos, te. De forma equivalente a essa descoberta, e de em Fisiologia da mente, escreveu: “Quando o so- acordo com os parâmetros da ciência do século frimento não pode expressar-se pelo pranto, ele XIX, os cientistas também procuravam encontrar faz chorarem os outros órgãos”. Desde o final da as causas das doenças mentais através do micros- década de 1940, o termo “psicossomático” adqui- cópio, na busca de bactérias, ou de fenômenos físi- riu essa grafia unificadora e passou a ser emprega- cos e químicos que pudessem explicá-las; assim, a do como substantivo, para designar, no campo da descoberta do Treponema pallidum na doença “pa- medicina, a decisiva influência dos fatores psico- ralisia geral progressiva” (que consiste no compro- lógicos na determinação das doenças orgânicas, em- metimento do sistema nervoso central devido a um bora já admitindo uma inseparabilidade entre elas. estado adiantado da sífilis), bastante comum na épo- ca, viria a confirmar, com uma grande euforia ini- cial dos cientistas, a tese de que sempre haveria CONTRIBUIÇÕES DE FISIOLOGISTAS uma única e direta relação tipo causa-efeito na de- terminação das doenças orgânicas ou mentais. A Alguns trabalhos de notáveis fisiologistas vi- segunda escola de medicina na Grécia Antiga, sob nham a comprovar experimentalmente as estreitas o comando de Hipócrates, concebia a doença como conexões entre os estímulos psíquicos e as respos- uma reação global do corpo e do espírito do indi- tas orgânicas. Dentre estes, cabe mencionar o cien- 240 DAVID E. ZIMERMAN tista russo Pavlov, com os seus experimentos pio- dade padrão A) caracterizaria aquelas pessoas que neiros sobre reflexos condicionados, o americano mantêm uma luta sem tréguas para o sucesso e uma Cannon, que em 1911 demonstrou o efeito fisioló- incontida aspiração para superar os demais, o que gico das emoções interferindo na regulação do equi- os deixaria mais suscetíveis a anginas e infartos, e líbrio homeostático do meio interno do organismo, assim por diante, faziam-se esmiuçadas descrições e H. Selye que, dando continuidade aos estudos de da conflitiva inconsciente presente nos ulcerosos, Cannon, desenvolveu a importante teoria do asmáticos, etc. estresse e a teoria da síndrome geral da adapta- ção. Selye conceituou estresse como sendo toda agressão (física, psíquica, traumática, infecciosa, ESCOLA DE CHICAGO tóxica), de origem externa ou interna, que venha a perturbar o referido equilíbrio homeostático, en- Assim, tendo à frente a figura de Alexander, a quanto “síndrome geral de adaptação” ele definiu escola de Chicago estudou e descreveu as sete como o conjunto de reações fisiológicas aos es- doenças psicossomáticas (asma brônquica, úlcera tresses, sendo que tais reações agem pela ativação gástrica, artrite reumatóide, retocolite ulcerativa, do eixo hipófise-hipotálamo-supra-renal, e desdo- neurodermatose, tireotoxicose e hipertensão essen- bram-se em três fases: uma fase de alarme (ou de cial), atribuindo a cada uma delas uma especifici- choque), uma segunda fase de adaptação e a ter- dade do conflito psicogênico, sendo que, em sua ceira de esgotamento, quando as defesas do orga- opinião e na de seus colaboradores, os indivíduos nismo esgotaram-se. Essas concepções adquiriram reagiriam de forma diferente conforme predomi- um notável impacto nos modernos estudos sobre nasse neles uma hiperatividade do “sistema simpá- os fenômenos psicossomáticos, de acordo com o tico” (sistema do organismo que implica na predo- postulado de que, nos pacientes somatizadores, o minância de reações adrenalínicas, com tendências soma reage (com secreção de adrenalina, etc.) às ativas e agressivas) ou a uma hiperatividade do “sis- ameaças psíquicas, como se ele estivesse diante de tema parassimpático”, também conhecido como reais ameaças à vida de seu organismo. “vagal” (que alude ao sistema responsável pela ten- dência aos estados de repouso e lentificação, com uma propensão à passividade). CONTRIBUIÇÕES DE PSICANALISTAS

Além de alguns ensaios de Freud, que serão R. SPITZ explicitados mais adiante, a grande fonte inovado- ra para o entendimento dos fenômenos psicosso- Também nos Estados Unidos, na década de 40, máticos partiu, nos anos 20 e 30, de pesquisadores tiveram início os importantes trabalhos de Spitz americanos, como Felix Deutsch, que estudaram (1945) sobre casos de hospitalismo infantil, que de forma sistemática pacientes com problemas consiste na sua comprovação, por meio de impres- psicossomáticos, descrevendo os seus perfis psi- sionantes filmagens que realizou, de que crianças cológicos, ou seja, buscando encontrar traços de muito pequenas, separadas das mães por um tem- personalidade que fossem comuns a um determi- po demasiado, experimentam progressivos senti- nado quadro clínico. mentos de vazio e desespero, que logo vêm acom- Embora essa abordagem não convencesse, em panhados por uma maior facilidade para contrair vista das numerosas exceções, os estudos prosse- doenças infecciosas, provavelmente, sabemos hoje, guiam nessa direção, e assim surge a importante pela queda das defesas imunológicas que acompa- figura de F. Alexander, psicanalista de Chicago, que nham os estados depressivos. Na observação de firmou a sua posição de que mais do que os perfis Spitz – da mesma forma como nos estudos sobre psicológicos do paciente, realmente importante era apego e perda realizados pelo psicanalista britâni- o reconhecimento dos subjacentes conflitos psíqui- co J. Bowlby (1969) – (e, parece-me, de forma equi- cos. Por exemplo, os hipertensos se debateriam valente ao que mencionamos nas pesquisas de entre tendências contraditórias: de um lado uma Selye), tais crianças passam por três fases sucessi- aparência de passividade e de calma (vivenciadas vas: a de protesto (quando então a criança chora, por eles como humilhatórias) e, por outro, uma ati- grita, esperneia), a de desespero (a criança cansa vidade agressiva, visando ao controle, ao domínio de seus protestos inúteis e parece perder as espe- e ao triunfo; de forma análoga, a personalidade ranças de ser escutada e atendida), sendo que a ter- coronariana (também conhecida como personali- ceira fase é a de desligamento, que sucede a uma FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 241 duração muito prolongada da fase anterior e impe- las promovem uma decisiva mudança epistemo- le a criança a uma retração de natureza autística. lógica em relação aos pacientes somatizadores, por- A última destas três etapas adquire uma signifi- quanto, antes da natureza do conflito psíquico, eles cativa importância na moderna psicanálise porque enfocam prioritariamente os transtornos da comu- ela esclarece melhor aos seguintes três aspectos: a) nicação desse tipo de paciente. Pela importância Uma imunodepressão facilitando a eclosão de do- dessas conceituações, cabe explicitá-las mais deti- enças orgânicas. b) Um elevado grau de desliga- damente. mento afetivo dessas crianças, o que muitas vezes culmina com o quadro clínico conhecido como “au- tismo secundário”, a ponto de ele, às vezes, con- ALEXITIMIA fundir com o “autismo primário”, de etiologia en- dógena, orgânica. c) A aludida retração libidinal, Conforme designa a etimologia da palavra, incidindo em pessoas adultas, pode levá-las ao es- composta dos étimos “a” (privação de) + “lex” (lei- tado psíquico de desistência, no qual prevalece uma tura) + “timos” (glândula que era considerada a abulia, apatia, com uma forma mecânica desse su- responsável pelo humor), o conceito alude à difi- jeito viver, cujo único desejo consiste em nada de- culdade de os pacientes somatizadores consegui- sejar e, da mesma forma que no autismo secundá- rem “ler” as suas emoções e, por isso, elas expres- rio, essa fragilização predispõe a uma série de con- sam-se pelo corpo. Para os pesquisadores dessa es- seqüências previsíveis, inclusive as de ordem so- cola, na causa da alexitimia existe um substrato mática. neurofisiológico às dificuldades de simbolização Assim, entre os anos 30 e 60, inspirada princi- das vivências emocionais, que resultaria de uma palmente na “escola de Chicago”, floresceu a me- falha das conexões neuronais entre o sistema dicina psicossomática, sendo inúmeros os traba- límbico do cérebro (responsável pelas emoções) e lhos que estudavam especificamente cada uma das o córtex cerebral (responsável pela capacidade de especialidades médicas (ginecologia, gastroente- síntese das percepçõess, julgamento e antecipação rologia, dermatologia...) segundo uma abordagem das ações). que atribuía uma particular conflitiva psíquica in- consciente para cada um dos respectivos sintomas orgânicos, separadamente. Para exemplificar com PENSAMENTO OPERATÓRIO a literatura psicanalítica do cone sul-americano: somente o reputado psicanalista radicado na Ar- O termo designa o estado mental de certos pa- gentina, Angel Garma, nos anos 50 publicou arti- cientes, como são os somatizadores, nos quais, a gos sobre doentes colíticos em dois livros, respec- exemplo do que Freud postulou daquilo que se pas- tivamente, sobre as úlceras gastroduodenais (1954) sa nas neuroses de angústia, o ego não consegue e os doentes cefaléicos (1958), todos sob um rigo- conter e processar uma carga excessiva ou penosa roso prisma da psicanálise. Aos poucos, o entu- de sentimentos e pensamentos, o que os leva a agir siasmo inicial dos analistas foi cedendo lugar a uma no lugar de pensar. Assim, para os analistas do Ins- descrença generalizada nesse enfoque de uma ex- tituto de Psicossomática de Paris, o que acima de plicação linear tipo causa (psíquica)-efeito (somá- tudo caracteriza esses pacientes é que o inconsci- tico), tanto pelo fato de essa abordagem permitir ente não tem condições de expressar-se pelas re- uma multiplicidade de explicações genético-dinâ- presentações, de modo que, no lugar de reprimir micas, freqüentemente intelectualizadas, e até fan- as pulsões do id, como acontece nas neuroses, ou tasiosas, como também pelos escassos resultados de forcluir (grau extremo de negação da penosa clínicos alcançados. realidade externa ou interna), como fazem os psi- Ainda dentro do campo das investigações que cóticos, os pacientes somatizadores utilizam o pen- cercam as inter-relações entre os processos men- samento operatório, isto é, eles superinvestem tais e os orgânicos, impõe-se mencionar duas im- libidinalmente tudo aquilo que existe de concreto, portantes fontes: a provinda de Sifneos e Nemiah, como, e principalmente, os seus sintomas corpo- nos Estados Unidos, que introduziram a noção de rais. alexitimia, e a da “Escola Psicossomática de Pa- A propósito desses trabalhos, tanto os de ris”, hoje “Instituto de Psicossomática”, integrada Sifneos quanto os de Marty, é oportuno trazer a por psicanalistas como Pierre Marty e colaborado- observação de A. Eksterman (1994), psicanalista res, que conceberam a conceituação de pensamen- brasileiro que, apoiado em uma longa experiência to operatório. As contribuições de ambas as esco- no trato de pacientes somatizadores, alerta-nos que 242 DAVID E. ZIMERMAN nem a alexitimia nem o pensamento operatório, por sim marcando um aspecto muito significati- si só, sejam os responsáveis diretos pelas soma- vo nas psicossomatizações, qual seja, creio tizações; antes, eles somente expressam uma das que podemos depreender de que, tanto nas mais importantes características que acompanham repressões neuróticas como nas renegações o psiquismo de tais pacientes, nos quais “o corpo, das perversões, nos actings dos psicopatas especialmente o corpo doente, parece ser o am- ou nas forclusões dos psicóticos, acontecem biente propiciador dessas manifestações lingüísti- cas primitivas”. somatizações. Portanto, não existe uma úni- Além dos pesquisadores mencionados, cujos ca e definida estrutura psíquica nos pacien- estudos centralizados na neurofisiologia e nos trans- tes que somatizam, sendo que é indispensá- tornos de comunicação dos pacientes psicosso- vel levarmos em conta uma alta sensibilida- máticos prosseguem de forma sistemática e apro- de de algumas áreas orgânicas que condi- fundada, também, concomitantemente, ao longo da cionam, facilitam, descarregam e cenarizam história da psicanálise, têm surgido teorias psica- em determinados estados emocionais. nalíticas as mais diversas que, de forma direta ou • Fenômeno das Conversões. Em 1910, apa- indireta, permitem um mais amplo entendimento rece o seu artigo Uma alteração psicogênica acerca dos processos psíquicos que operam nos da visão, que transparece o modelo da “con- pacientes somatizadores. De forma resumida, e versão histérica”, pelo qual os conflitos se- somente para citar os autores mais importantes, cabe apontar as seguintes. xuais não-reconhecidos pelo sistema cons- ciente utilizam o corpo como uma forma de linguagem e no qual os sintomas narram uma FREUD história inconsciente, sem palavras. • Neuroses atuais. Por essa época, e ainda ba- Antes do que algum trabalho explícito sobre os seado nas leis da termodinâmica da física e fenômenos psicossomáticos, é indiscutível que, de nas leis da neurofisiologia de então, e em- forma implícita, Freud plantou inúmeras sementes bora não se detendo nos problemas da pato- férteis que servem de base para os modernos estu- logia somática, Freud teve o mérito de levar dos sobre os pacientes psicossomáticos e sobre a em conta os processos de ordem biológica, linguagem corporal. Destarte, as seguintes concep- quando, então, propôs a sua conhecida clas- ções de Freud, expressas em diferentes trabalhos e sificação das neuroses em duas categorias. épocas distintas, merecem ser destacadas: Uma delas ele denominou “psiconeuroses de • Representações. Em 1891, em um trabalho transferência”, que compreendiam as formas sobre “afasias”, aparecem as suas primeiras histéricas, fóbicas e obsessivas; a outra ca- conceituações (que viriam a ganhar uma for- tegoria foi chamada de “neuroses atuais”, ma consistente e definitiva em 1915, no arti- que abarcavam a neurastenia, a neurose de go O inconsciente) relativas à noção de que angústia e, mais tarde, a hipocondria. As a junção da “representação-coisa” com a “re- “neuroses atuais”, segundo Freud, tinham por presentação-palavra” produz a consciência causa o bloqueio das excitações libidinais, dos fatos psíquicos. Em condições normais, conseqüentes tanto de uma privação de sa- há uma passagem da “representação-coisa” tisfação sexual (principalmente o “coito in- (a qual está sediada no inconsciente) para a terrompido”), como também de um excesso condição de “representação-palavra”, que se de estimulação, como seria o caso de mastur- processa no pré-consciente, onde ela ganha bação excessiva. A primeira delas provoca- uma palavra significativa e nomeadora das ria a “neurose de angústia”, com os sinto- emoções caóticas, sendo que esse entendi- mas de palpitações, palidez, sudorese, disp- mento é de importância fundamental em néia suspirosa, etc., enquanto a excessiva ex- qualquer teoria psicanalítica atual sobre os citação não satisfeita determinaria os qua- fenômenos psicossomáticos. dros de “neurastenia”, manifestada nos sin- • Complascência Somática. Freud usou esse tomas de cefaléias, distúrbios da digestão e termo em 1905, no famoso Caso Dora, as- evacuação, diminuição da atividade sexual, etc. Em ambos os casos, o acúmulo da libi- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 243

do bloqueada se escoaria por outras vias fi- • Identificações patógenas. A partir de seu siológicas. clássico Luto e Melancolia, de 1917, Freud estabeleceu a importante concepção de que, A noção de “neurose atual” implica a aceitação da teoria econômica das energias libidinais e, por nos quadros melancólicos, “a sombra do isso mesmo, caiu em um descrédito na psicanálise, objeto cai sobre o ego”, isto é, forma-se uma onde hibernou em um longo ostracismo, até que, identificação do sujeito com o objeto perdi- na atualidade, ela ressurge revigorada e bastante do de tal forma que, nesses estados melan- mais sofisticada, como são aquelas teorias anterior- cólicos, à frase de Freud “a sombra do obje- mente descritas como “alexitimia” e “pensamento to cai sobre o ego”, poderíamos acrescentar: operatório”, constantes das modernas teorias psi- “e lá pode ficar morando o resto da vida”, canalíticas, embora nem sempre haja um claro re- forçando aquilo que, particularmente, cos- conhecimento dessa concepção postulada por tumo chamar de “identificação com a víti- Freud. ma”. Nesses casos, o sujeito sente-se como • Processos Primário e Secundário do Pen- que obrigado a ser igual em tudo ao objeto samento. Em 1911, em seu clássico Dois perdido, e isso adquire uma especial impor- princípios do suceder psíquico, Freud con- tância nos processos psicossomáticos, por- cebe os principais fundamentos relativos aos quanto tal identificação, com grande freqüên- processos da teoria do pensar que fortemen- cia, faz-se com os sintomas clínicos da doen- te inspiraram Bion para que pudesse desen- ça que acompanhou ou que vitimou a pes- volver as suas idéias sobre a gênese, a for- soa que ambivalentemente ele amou e odiou. mação e a utilização dos pensamentos. Para Isso explica o fato tão comum de que em empregar uma terminologia proposta por datas que lembram a pessoa perdida (aniver- Zusman (1994), cabe afirmar que as soma- sário, etc.) recrudesce, no sujeito, o surgi- tizações correspondem às falhas dos proces- mento de sintomas e temores hipocondría- sos simbólicos (os quais estão unicamente cos equivalentes aos do objeto desapareci- presentes no processo secundário e possi- do. bilitam a capacidade de abstração dos pen- • Finalmente, além de lembrar que muitos dis- samentos) que então cedem lugar aos pro- cípulos de Freud, como Paul Federn, apro- cessos sígnicos, nos quais predominam os fundaram os estudos sobre a imagem corpo- aspectos protomentais sob a égide das leis ral, cabe consignar a visão profética de Freud do processo primário. Assim, os signos so- que, em 1938, preconizou que o futuro po- mente representam os aspectos concretos e derá ensinar-nos a influir diretamente me- contíguos dos fenômenos que acontecem na diante substâncias químicas particulares (o mente, inclusive, os representados no cor- grifo é meu) sobre quantidades de energias po. e sua distribuição no aparelho psíquico. • Ego corporal. Todos conhecemos a clássi- ca afirmativa de Freud, ligada às suas inci- pientes concepções relativas ao “auto-ero- ESCOLA KLEINIANA tismo” e ao “narcisismo primário”, de que “o ego, antes de tudo, é corporal”. Isso per- Também de forma indireta, M. Klein trouxe mite depreender, na psicanálise relativa aos substanciais contribuições para os fenômenos psí- processos somatiformes, a importância das quicos que se manifestam em uma linguagem cor- poral, dentre os quais vale mencionar os seguin- representações do corpo no ego e da cenari- tes: zação das defesas do ego no corpo. Essas últimas afirmativas adquirem capital impor- • Fantasias inconscientes. Especialmente a tância na psicanálise atual, tanto para o en- autora kleiniana S. Isaacs estudou, dentre tendimento dos transtornos da imagem cor- tantas outras fantasias inconscientes primi- poral quanto para participação do corpo tivas da criança, aquelas de natureza terro- como um cenário dos diversos “teatros” da rífica referentes ao corpo e à “figura combi- mente. nada” dos pais fundidos em diversas confi- 244 DAVID E. ZIMERMAN

gurações fantásticas e que assim são intro- embora pouco conhecido e divulgado, pare- jetadas pela criança, determinando transtor- ce-me ser muito significativo para o enten- nos da imagem da sua própria corporalidade, dimento das somatizações, porquanto per- além de novas fantasias referentes a retalia- mite inferir que arcaicos sentimentos e pen- dores ataques sádicos contra partes de seu samentos, que não conseguem ser recorda- corpo. dos como fatos realmente acontecidos, pos- • Angústia de aniquilamento (ou de desinte- sam vir a ser “recordados” através de outras gração). Para M. Klein, esse tipo de angús- vias, entre elas, a das somatizações. tia arcaica é um derivado direto da “pulsão de morte” que, agindo desde dentro da men- te da criança, mantém um constante sobres- ESCOLA FRANCESA salto no futuro adulto, ameaçado que este fica por um fantasiado ataque à sua sobrevivên- Lacan cia, tanto a psíquica quanto a física. • Identificação projetiva. Esse proceso defen- Os estudos desse genial e polêmico autor, rela- sivo do ego concebido por M. Klein – e hoje tivos à fase evolutiva do espelho, remetem a três reconhecido por todas correntes psicanalíti- noções fundamentais: a do “corpo espedaçado” cas – facilita o entendimento de, pelo me- (corps morcelé, no original), que designa uma sen- sação de que, tal como uma criança por volta dos nos, a dois aspectos que se manifestam como seis meses de vida, o sujeito em estado regressivo transtornos da imagem corporal: um, con- é capaz de vivenciar o seu corpo como que feito siste no fenômeno conhecido em psiquiatria de, ou em, pedaços dispersos. A segunda concei- como despersonalização, que alude a um tuação de Lacan, também oriunda dessa “fase do grau tão excessivo de identificações proje- espelho”, corresponde à crença da criança de que tivas de partes do indivíduo, inclusive, de ela está alienada no corpo da mãe, com ela fican- seu corpo, a ponto de o sujeito de estrutura do confundida corporalmente. Uma outra vertente psicótica não reconhecer, e estranhar, o seu muito importante descortinada por Lacan é a que próprio corpo. Igualmente, um excesso de se refere ao discurso dos pais na modelação do dissociações, seguidas de um forte jogo de inconsciente da criança, sendo que esse discurso projeções e introjeções, pode explicar o fe- pode inscrever significantes de natureza psicosso- mática. nômeno psiquiátrico conhecido como espe- lhamento, no qual o paciente psicótico re- pete todos os movimentos de uma outra pes- Instituto de Psicossomática soa que estiver diante de si, porquanto ele perdeu a sua identidade corporal e não con- Conforme foi mencionado, um conjunto de psi- segue distinguir o seu corpo daquilo que é o canalistas liderados por Marty, desde a década de corpo do outro. 50 até os dias atuais, prossegue as pesquisas fun- • Objetos parciais. A ênfase de M. Klein na damentais, basicamente centradas na concepção do precoce internalização que a criança faz de “pensamento operatório”. Um fato bastante signi- objetos parciais (“seio bom e/ou mau”; “pê- ficativo é que os psicanalistas dessa escola são nis bom...) durante a posição esquizopa- oriundos da Sociedade Psicanalítica de Paris, po- ranóide, na qual as mesmas adquirem carac- rém, de certa forma, egressos dela, eis que na épo- terísticas persecutórias, permite aventar uma ca em que iniciaram a investigação dos processos teoria explicativa da hipocondria: a de que psicossomáticos com outros referenciais que não os objetos persecutórios permanecem aloja- rigorosamente os da ortodoxia psicanalítica, tive- ram de fazê-lo fora dessa Sociedade. dos dentro de órgãos, de onde eles enviam Uma das características descritas por Marty ameaças de morte ao self do sujeito. (1994) nos pacientes somatizadores é aquela que • Memória de sentimentos. (no original: me- ele denomina “relação branca”, pela razão de que mory in feelings). Trata-se de um fenômeno eles, na relação com o analista, mostram uma afe- psíquico concebido por M. Klein em seu tra- tividade esvaziada, não demonstram evidências de balho Inveja e gratidão, de 1957, o qual, que estão num processo associativo, transmitem FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 245 uma impressão de que respondem mecanicamente dizer que “o sintoma psicossomático é um e que só parecem ligados aos aspectos concretos “sonho malogrado”. dos fatos narrados. • Ela não considera os estados de regressão psicossomática como exclusiva dos “pa- cientes somatizantes”, mas também inclui Joyce MacDougall aqueles outros que se sentem sob um tremen- do bombardeio de sentimentos estressantes Fortemente inspirada pelos estudos dessa es- que ultrapassam a capacidade do ego em cola psicossomática de Paris, MacDougall (1994) poder processá-los e, por essa causa, deter- emprestou a sua visão psicanalítica pessoal, de minam estados de pânico com sintomas físi- modo que os seguintes aspectos são por ela realça- dos nesses que ela chama de pacientes “somati- cos típicos daqueles descritos nas neuroses zantes”: de angústia. • Em relação à organização edipiana desses • Ela enfatiza a primitiva relação diádica mãe- pacientes, MacDougall considera que a mes- lactente, na qual a “angústia de espedaça- ma está edificada sobre uma organização mento”, tal como foi descrita por Lacan, bastante mais primitiva, na qual predomina adquire uma importância maior do que a clás- uma imago materna que usa a criança tanto sica angústia de castração edípica, sendo que como um extensão narcísica quanto uma naquela primeira angústia, acima menciona- extensão erótica e corporal dela própria, en- da, sempre está presente uma subjacente quanto a figura do pai está bastante desquali- ameaça de morte. ficada e ausente do discurso e do mundo sim- • Da mesma forma como ocorre em certas bólico da mãe e, portanto, no da criança. adicções e transtornos da sexualidade, tam- • Literalmente, ela afirma que “os pacientes bém as somatizações traduzem uma falta de somatizantes têm uma espécie de cisão en- elaboração e de simbolização dos pensa- tre o psíquico e o soma. Neles, todo afeto é mentos e sentimentos inaceitáveis que, en- sentido como perigoso. A psique envia uma tão, sofrem uma forte negação, tipo forclu- mensagem muito primitiva e o corpo (soma) são, e são substituídos por ações compulsi- reage e defende-se como se estivesse em vas que MacDougall chama como “atos sin- grande perigo (...) há uma linguagem do tomas”. corpo e é talvez essa linguagem a única que • Na história desses pacientes, destaca a auto- não mente” (1991, p.76). ra, sempre existe uma imago materna que falhou na sua função de “para-excitação” ao filho, justamente na época em que a criança D. WINNICOTT sofria um forte impacto traumático das pri- meiras experiências emocionais e sensuais, De uma forma extremamente reduzida de sua de modo que a mãe não conseguiu ajudar a imensa obra, vale destacar no mínimo os seguintes criança a pensar, decodificar e simbolizar o aspectos: seu universo pré-simbólico. • O conceito de “não-integração” de Winni- • O corpo primário e fragmentário da mais ten- cott tem um significado diferente daquele de ra infância deixa traços psíquicos desde o ansiedade de “desintegração” ou de “aniqui- começo da vida, de modo que compõem uma lamento”, de M. Klein, sendo que aquele alu- “história sem palavras” e, como que em um de mais diretamente a uma etapa em que a curto-circuito, o corpo pode transformar-se criança ainda não possuía condições neuro- em um “campo de batalha” onde essa histó- biológicas para o reconhecimento integrado ria se dramatiza. de suas partes corporais. Uma acentuada re- • Os processos que operam na somatização gressão às fixações dessa etapa podem ser podem ser considerados semelhantes aos responsáveis por aqueles estados psíquicos processos oníricos, chegando MacDougall a que Winnicott chama de “catástrofe” (break- down, no original), cujos sintomas são os que 246 DAVID E. ZIMERMAN

levam o sujeito a ter uma aterradora sensa- na busca de alguma doença no corpo do fi- ção de que ele está perdendo os seus refe- lho (por exemplo: “Isso que estás sentindo é renciais, vai cair e precipitar-se no espaço. cólica”), pode acontecer que no futuro esse Na clínica, é útil estabelecer uma discrimi- indivíduo, diante de uma angústia psíquica nação entre as duas ansiedades aludidas por- “sem nome”, só consiga expressá-la através que uma “não-integração” não significa uma do sintoma de cólicas intestinais, porquan- situação de regressão psicótica. to, no seu registro mental, a vivência de an- • A condição de “holding” da mãe, de acordo gústia passou a ser sinônimo de cólica. com o significado dessa palavra (do verbo • A meu juízo, sobretudo, a grande contribui- to hold: sustentar, segurar), inicialmente re- ção de Bion à psicossomática procede de feria aos cuidados físicos prestados pela mãe seus estudos acerca da capacidade, ou inca- à criança, a forma de mantê-la presa ao seu pacidade, de o sujeito poder pensar as suas corpo, os cuidados higiênicos, a forma de experiências emocionais. Primitivamente, as olhá-la, etc., o que determina uma conside- sensações corporais da criança e as suas pri- rável importância na forma como esses con- mitivas vivências emocionais determinam a tatos corporais foram representados no ego formação de protopensamentos, que Bion da criança. chama como elementos-beta, e que não se • Assim, Winnicott descreve que a condição prestam para serem pensados, mas sim, uni- ideal do holding materno é aquele no qual a camente, para serem, de alguma forma, “eva- mãe é suficientemente boa, levando em conta cuados”. No caso da mãe da criança possuir que os outros dois extremos – o de uma mãe uma boa condição de rêverie, com uma ade- ausente ou excessivamente boa – vão impe- quada função-alfa (a qual consiste em aco- dir o desenvolvimento na criança das fun- lher aqueles “elementos-beta”, decodificar, ções de tolerar frustrações, pensar e de sim- dar um sentido, significado e nome a eles) bolizar, logo, abrindo caminho para somati- então, sim, os protopensamentos transfor- zações. mam-se em elementos-alfa, daí podendo evoluir em complexidade crescente, até atin- gir o nível de uma alta abstração. Na hipóte- W. BION se de que a mãe não consiga processar essa “alfa-betização emocional”, os elementos- A obra de Bion permite extrair inúmeras con- beta prevalecem e devem ser evacuados, o tribuições para o entendimento dos fenômenos que acontece por três vias: o de uma impul- psicossomáticos, como são algumas que seguem: sividade, às vezes perigosa para si e para os • Bion acredita na existência de uma vida fetal outros; o da expulsão para fora, pela prática e que, mesmo embrionária, vai imprimindo excessiva de actings; ou o da evacuação para profundas marcas no incipiente esboço de dentro, pela via das somatizações. ego daquele ser humano que recém palpita • Outras contribuições de Bion que possibili- no útero da mãe. Para esse autor, tais im- tam uma melhor compreensão das manifes- pressões que jamais serão lembradas pode- tações psicossomáticas, são as suas concep- riam ser as responsáveis por regressões ções de transformações e o seu modelo de acompanhadas de sensações somáticas que continente-conteúdo. a ciência ainda não consegue explicar. Meltzer, um entusiasta de Bion, chega a afir- mar a sua crença de que essa é a mais pro- CONCEITUAÇÃO DO FENÔMENO missora teoria que, no futuro, poderá elucidar PSICOSSOMÁTICO muitos dos mistérios psicossomáticos. • Um outro importante aspecto destacado por Ninguém contesta a inequívoca interação entre Bion (1992) é quando ele conjetura que nos o psiquismo determinando alterações somáticas, e vice-versa, o que permitiria a ilustração com exem- casos em que a mãe enfrenta a angústia psí- plos clínicos que vão desde os mais simples (a cor- quica da criança pelos cuidados corporais, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 247 riqueira evidência de estados de raiva ou medo pro- como uma espécie de “caixa de ressonância”, sen- vocando palidez e taquicardia; vergonha levando a do que isso é variável de pessoa para pessoa, de um enrubescimento; um estado gripal desenca- acordo com os fatores genético-constitucionais de deando uma reação depressiva e, reciprocamente, cada um. um estado depressivo, facilitando o surgimento de Por todas essas razões, justifica-se considerar uma gripe, etc., etc.), passando por situações rela- a conceituação das manifestações psicossomáticas tivamente complexas (é conhecido o fato bastante levando em conta três planos: 1) No sentido restri- freqüente de mulheres que, embora muito desejo- to: diz respeito unicamente àqueles sintomas orgâ- sas de engravidar, mantêm-se inférteis durante um nicos que apresentam alterações anatomoclínicas longo período de anos até que, após a adoção de objetiváveis, como são as “sete de Chicago”, e ou- uma criança pelo casal, essas mulheres comecem a tras tantas mais equivalentes que poderiam ser hoje engravidar com facilidade), e as psicossomatiza- acrescidas a essas. 2) Em um sentido menos restri- ções podem atingir níveis bastante mais comple- to, o espectro das doenças psicossomáticas se alar- xos e ainda inexplicáveis, como comprovam os garia porque, nesse caso, a abrangência inclui os modernos estudos da psicoimunologia e dados da inúmeros e variados distúrbios funcionais, sem le- observação clínica, como o da instalação de qua- sões orgânicas. 3) No sentido amplo do termo, a dros cancerígenos diante de perdas importantes, etc. psicossomática abarca toda manifestação que de Da mesma forma, as correntes expressões po- alguma forma conota alguma inter-relação corpo- pulares como “estou me cagando de medo”, “cego mente, aí incluídas as repercussões psicológicas do de ódio”, “estômago embrulhado de tanto nojo”, sujeito a um eventual órgão que esteja doente. Nesse etc., etc., atestam claramente o quanto a sabedoria amplo leque de posssibilidades, alguns autores che- popular, de forma intuitiva, captou a existência de gam a considerar dentro da psicossomática aque- uma estreita e incontestável relação entre os esta- las pessoas que são manifestamente traumatofílicas, dos mentais e os corporais. ou seja, que de uma forma compulsivamente Os exemplos clínicos poderiam ser multiplica- repetitiva acidentam-se (“acidentofilia”) ou, penso dos ao infinito, sendo que esse fato, juntamente com que vale acrescentar, aqueles que de forma incons- a multiplicidade de vértices de abordagem e de fa- ciente forçam a repetição de cirurgias, algumas tores etiológicos em jogo, como os antes enumera- mutilatórias de certas zonas corporais. Da mesma dos, evidenciam a enorme complexidade desse fe- forma, vários autores aventam considerar os trans- nômeno psicossomático. Para dar um único exem- tornos de alimentação, como a bulimia e a anorexia plo, somente Marty descreveu cinco tipos de “per- nervosa, ou ainda, a obesidade, como problemas sonalidade asmática”, cada uma delas compreen- próprios da psicossomática. dendo uma compreensão e um tratamento distinto. Essa conceitualização polissêmica (de “poli”, Nessa visão panorâmica dos fenômenos psicos- que significa “muitos” + “semos”, que quer dizer somáticos, cabe mencionar as seguintes duas afir- “sentidos”) vem igualmente acompanhada de uma mativas de MacDougall (1994): “a dissociação grande variedade de termos diferentes que em par- corpo-mente é totalmente arbitrária, uma heran- te esclarecem e em parte confundem. Com um in- ça filosófica que pode confundir nossos pensamen- tento simplificador e à moda de um miniglossário, tos, nossas teorias e nossa prática psicanalítica” apresenta-se uma discriminação da terminologia (p.80); “ a somatização como resposta à dor men- que mais freqüentemente comparece na literatura tal é uma das respostas psíquicas mais comuns que psicanalítica acerca dos sintomas psicossomáticos, o ser humano é capaz” (p.75). da linguagem corporal e da imagem que cada su- Toda essa complexidade torna muito confusa a jeito tem do seu próprio corpo. conceituação relativa à psicossomática, bem como à semântica, que nomeia e dá significado a tais fe- • Fenômeno psicossomático. No sentido res- nômenos, também aparece na literatura de forma trito, esta denominação habitualmente atri- algo ambígua e confusional. No entanto, como prin- bui aos fatores e conflitos psíquicos como cípio unificador, pode-se dizer que, seja qual for a sendo os que predominante e primariamente natureza da manifestação psicossomática, é neces- desencadeiam reações orgânicas, a ponto de sário definir que: elas sempre exigem a presença produzir algum tipo de afecção objetiva em de uma fator psicológico que determine uma in- algum determinado órgão mais sensível. fluência essencial na etiologia da somatização, jun- Como a dramatização no corpo é de nature- to com uma concomitante existência de alguma área za sígnica, e não simbólica, torna-se muito orgânica particularmente sensível para funcionar 248 DAVID E. ZIMERMAN

difícil encontrar um simbolismo do conflito decodificar o simbolismo do sintoma con- psíquico no sintoma orgânico. versivo. • Fenômeno somatopsíquico. Inversamente ao • Hipocondria. Refere a uma condição imagi- conceito anterior, este termo refere-se à re- nária na qual o sujeito, cronicamente, sofre percussão que uma existência prévia e pre- dores ou outros desconfortos atribuídos a de- dominante de alguma doença orgânica pro- terminados órgãos, que geralmente são de voca no psiquismo (por exemplo, a desco- localização errática e virtualmente sempre berta da existência de uma doença grave que guardam uma subjacente ameaça de morte. leva o sujeito a um estado depressivo gra- Pelos referenciais kleinianos, a etiologia da ve...), com uma alta possibilidade de gerar hipocondria reside no fato de que os objetos um círculo vicioso pelo qual um alimenta ao persecutórios ficam instalados dentro dos outro. órgãos, de onde emanam as aludidas amea- • Organo-neurose. Essa denominação, que ças de morte contra o sujeito. Do ponto de indica a recíproca interação entre a neurose vista dos postulados freudianos, a explica- psíquica e os órgãos, foi proposta por O. ção fundamenta-se na forma de como certos Fenichel e esteve em voga durante muito tem- órgãos estão representados no ego do sujei- po, porquanto o seu livro Teoria geral das to. neuroses ganhou uma grande divulgação em • Transtornos da imagem corporal. Seguindo todos os institutos de formação psicanalíti- a última afirmativa acima, existe a possibili- ca. dade de que, sob a influência de inscrições • Psicossomatose. Esse termo é empregado primitivas somadas às fantasias inconscien- por P. Marty (1994, p. 166) para designar as tes, identificações e significações que os afecções ligadas com o “pensamento opera- educadores atribuem ao corpo da criança, o tório”, no qual as disposições da personali- resultado final seja o de que a sua imagem dade encontram na via somática a principal corporal permaneça representada, na parte saída para as situações conflituais. inconsciente do ego, de uma forma diferen- • Distúrbios (ou transtornos) somatoformes. te de como ela é na realidade. Isso explica A tendência moderna do estudo das somati- por que, com certa freqüência, uma pessoa zações inclina-se para abandonar o termo magra possa se julgar gorda, e vice-versa; “psicossomática” – porquanto, alegam mui- uma mulher bonita que se julga feia, e vice- tos autores, esse nome ainda mantém muito versa, etc., etc. presente a dissociação da psique com o soma • Neurose atual. Trata-se de uma denomina- – e propõem substituí-lo por “distúrbio ção dada por Freud, no início de sua obra, somatoforme” (como aparece na classifica- para designar os quadros de neurastenia, ção do DSM) ou por “transtorno somato- neurose de angústia e de hipocondria, os forme” (como consta no CID-10). quais ele concebia como resultantes de uma • Conversão (histérica). Nesse caso, os con- perturbação quantitativa recente da libido flitos psíquicos aparecem “convertidos” na sexual bloqueada (coito interrompido, mas- musculatura de inervação do sistema nervo- turbação excessiva...) que, no caso de um so voluntário (um exemplo banal pode ser o acumulo excessivo, é obrigada a escoar-se de uma “paralisia histérica”, ou nos órgãos através de outras vias fisiológicas. sensoriais com funções sensitivas (uma “ce- • Neurose de angústia. Como foi referido, tra- gueira”, por exemplo, etc., etc.). Diferente- ta-se de uma das formas de “neurose atual”, mente do que acontece nas psicossomatias – sendo que o termo “angústia” deriva de nas quais aparecem lesões teciduais e onde “angor” que, em latim, quer dizer “estreita- não têm sido possível estabelecer uma clara mento”, o que bem define aquilo que acon- relação tipo causa-efeito – nas conversões tece nos seus habituais sintomas típicos, histéricas não se formam lesões nos tecidos constantes de um “aperto” pré-cordial que orgânicos e geralmente é bastante fácil lhe representa ser uma ameaça de um enfarte letal, em uma sensação de obstrução respi- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 249

ratória como nas dispnéias suspirosas, em dicados adequadamente por psiquiatras com- uma dor que “aperta” a cabeça do sujeito a petentes. ponto de parecer que ele vai enlouquecer, etc. A neurose de angústia é a concomitante física da angústia de origem psíquica, sendo O QUE LEVA À SOMATIZAÇÃO? que o sintoma varia conforme o estímulo psicógeno incide no sitema nervoso “simpá- Por que algumas pessoas tornam-se neuróticas, tico” (secreção adrenalínica, com taquicar- outras psicóticas, ou perversas, e outras, ainda, dia, hipertensão, etc.) ou no “parassimpático somatizam? A ciência ainda não encontrou uma resposta precisa e definitiva para essa importante (uma lentificação generalizada, como bradi- questão. No entanto, é certo que a psicanálise não cardia, hipotensão, etc.). mais pode ignorar os inegáveis avanços de outros • Síndrome do pânico. Esse quadro clínico até ramos científicos, como a biologia, psicologia ex- há poucas décadas era confundido com as perimental, neurologia, psicofarmacologia, psico- crises manifestas nas neuroses fóbicas, que imunologia, e das neurociências em geral. Levan- surgem quando esse tipo de paciente defron- do em conta todos os aspectos que até agora foram ta-se com a situação fobígena que, a um grau destacados no presente capítulo e à guisa de sínte- máximo, ele passa permanentemente evitan- se, a psicanálise clínica e a de investigação funda- do enfrentar. Tais crises fóbicas também são mentam-se nas seguintes vertentes: caracterizadas por aqueles sintomas típicos 1. Toda e qualquer pessoa possui uma “poten- descritos na neurose de angústia. Daquela cialidade somática” (equivale ao conceito época para cá, começou a haver uma discri- de “complascência somática”, de Freud) minação mais refinada entre a crise de an- que, em determinadas situações emocio- gústia fóbica e a crise do transtorno do pâni- nais, pode ser ativada e manifesta na corpo- co. Na primeira, existe um claro e específi- ralidade orgânica. Na atualidade, está se co elemento fobígeno desencadeante, como dando um grande relevo aos estudos pro- pode ser qualquer lugar por demais fecha- vindos da psicoimunologia. do, ou por demais aberto, ou escuro, etc. e 2. Um possível estancamento da libido, liga- essa situação não pode ser evitada com o uso do aos conflitos da sexualidade edípica, de psicofármacos, enquanto a angústia de continua sendo um fator considerável, po- transtorno do pânico, pelo contrário, não obe- rém muito longe do peso que lhe era atri- dece a claros e específicos fatores desen- buído nos primeiros tempos da psicanáli- cadeantes e habitualmente costuma ter uma se. excelente resposta clínica ao uso adequado 3. Igualmente, importantes são os elementos da moderna farmacoterapia da família dos psíquicos da agressão sádico-destrutiva li- antidepressivos. Nos primeiros tempos em gados à pulsão de morte que, quando for- que a discriminação entre ambos os quadros temente negados, de alguma forma podem clínicos ainda não era clara, a psicanálise pa- aparecer sob forma de distintas formas de gou um tributo pela demora em admitir a útil somatizações. possibilidade de uma concomitância do pros- 4. A clássica concepção do “modelo econô- seguimento normal de uma psicanálise, com mico”, resultante do represamento quanti- o uso de uma medicação específica para o tativo dos derivados pulsionais, ressurge transtorno do pânico (essas mesmas consi- parcialmente na psicanálise, especialmen- derações também valem para certos casos de te na explicação de inúmeros quadros en- depressão endógena). Assim, não era nada quadrados no conceito de “neurose atual”. raro acontecer que pacientes diagnosticados 5. É consensual entre os autores atuais que a como “fóbicos”, cuja angústia não desapa- gênese da predisposição psicossomática recia no curso de uma análise de longa dura- reside nas vivências emocionais, narcísicas ção, apresentassem uma dramática resposta e sensuais que caracterizaram os primiti- de melhora poucas semanas após serem me- vos vínculos do bebê com a sua mãe. 250 DAVID E. ZIMERMAN

6. Alguns outros autores, como Bion, vão mais de descarga, como também um cenário de longe e situam as raízes da sensibilização representações. dos órgãos aos estímulos existentes no pe- ríodo gestacional intra-uterino, que também geram as primeiras inscrições no ego ASPECTOS DA PRÁTICA PSICANALÍTICA incipiente do ser humano. 7. Um claro entendimento do conceito de re- • Raramente, os pacientes somatizadores pro- presentações é indispensável para a com- curam espontaneamente a psicanálise como preensão das psicossomatoses. tratamento de escolha para estes transtornos; 8. Da mesma forma, é relevante o papel das habitualmente, eles vêm encaminhados pe- identificações, nas múltiplas formas como los seus médicos clínicos. elas aparecem no ego de toda pessoa. • Na entrevista inicial de avaliação, convém o 9. Igualmente, importantes são as significa- psicanalista proceder a um criterioso balan- ções com que o discurso dos educadores, ço das motivações e das condições do pa- muito particularmente o da mãe, impreg- ciente para um tratamento psicanalítico. nam e modelam o ego da criança em rela- • Assim, é possível que o psicanalista esteja ção à relação do psiquismo com o soma. diante de um paciente somatizador que lhe 10. As pessoas que representam os aconteci- transmite claros sinais de que manterá com mentos psíquicos pela linguagem sígnica ele uma relação branca: este é um termo que são mais propensas às somatizações, en- designa aquele paciente que, embora possa quanto o inverso disso acontece com aque- apresentar uma boa condição intelectual, las outras que atingiram a capacidade de adequada adaptação social e profissional e uma linguagem simbólica. uma igualmente boa capacidade para sim- 11. Assim, acima de tudo, a moderna psicaná- bolizar e abstrair, ainda assim ele não apro- lise atribui um papel de primeira grandeza funda os vínculos afetivos, não estabelece para a compreensão dos pacientes soma- associações de idéias que levem a insights, tizadores a uma incapacidade desses indi- quase nada fantasia e utiliza um “pensamen- víduos em conseguir conter e poder pen- to operatório” com valorização quase que sar as suas experiências emocionais dolo- única e estereotipada dos fatos objetivos e rosas, porquanto a aquisição das capacida- concretos, notadamente no relato dos sinto- des de formar símbolos, a de pensar e a de mas orgânicos. Nesses casos, o analista deve conhecer, são funções que estão intimamen- saber que provavelmente será uma análise te conectadas entre si, sendo que todas elas muito difícil. dependem de uma exitosa passagem pela • Aliás, cabe aqui reproduzir uma questão le- posição depressiva. vantada por J. MacDougall (p.75): diante de 12. Essa condição de insuficiência para “pen- uma excessiva “relação branca”, cabe ao sar” (ler) os sentimentos e poder estabele- psicanalista perguntar-se se a sua técnica ana- cer uma devida comunicação entre eles, lítica estará mais voltada para a demolição constituindo a base conceitual das moder- das defesas somáticas ou se, pelo contrário, nas noções de alexitimia e de pensamento será mais adequado o reforço de determina- operatório que acompanham as psicosso- dos mecanismos defensivos do ego desse tipo matoses. de paciente. 13. A atual linha de pesquisas evita procurar • Na hipótese de o analista optar pela primei- explicações na base do modelo causa-efei- ra alternativa, ele deverá estar preparado para to, de modo que ganha um crescente espa- funcionar como um bom continente, por- ço a concepção de transformações das ex- quanto, na medida em que forem cedendo as periências psíquicas, as quais são multifa- defesas de “forclusão” desse paciente soma- toriais, não necessariamente lineares e que tizador, paralelamente pode surgir um esta- podem encontrar no corpo tanto uma via do mental que Bion chama de mudança ca- tastrófica, a qual pode ser acompanhada por FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 251

preocupantes actings de natureza sadoma- • Diante da intolerância desse tipo de pacien- soquista, algum estado confusional com sen- te às interpretações, o analista deve desen- sações de despersonalização e outras mani- volver um tipo especial de “escuta do cor- festações da série regressiva. po” (que é diferente da escuta neurótica, • A transferência desses pacientes pode ser psicótica, ou dos casos de perversão) e tam- do tipo da “relação branca”, de modo que bém deve ficar comprometido com a tarefa comumente não chega a se instalar uma típi- de auxiliar o paciente, no mínimo, a três as- ca “neurose de transferência”, mas sim uni- pectos: 1) Evitar a tentação de querer desco- camente de “momentos transferenciais”; po- brir uma relação simbólica tipo causa-efeito rém, não raramente, ela assume a forma da- (o que cabe fazer nos casos de conversões quilo que Bion chama de transferência pro- histéricas). 2) Não impedir o livre fluxo das vinda da parte psicótica da personalidade, fantasias, pelo contrário, prestar alguma for- caracterizada por um início precoce, inten- ma de estímulo ao surgimento das mesmas. so, mas facilmente perecível. 3) Ajudar esse paciente a, de fato, pensar, • Em contrapartida, a contratransferência do ou seja, a fazer conexões afetivas entre as psicanalista passa por fases muito difíceis, suas experiências emocionais presentes e as com uma sensação de impotência, paralisia, passadas, juntamente com o desenvolvimeno sentimentos de raiva, tédio, alternâncias de da capacidade para fazer uma leitura das ânimo e desânimo, etc. Também deve ser mesmas. levado em conta o risco de que o analista • Como toda pessoa apresenta uma “poten- não esteja suficientemente ligado à possibi- cialidade somática”, é inevitável que, no lidade da existência de reais causas orgâni- curso de qualquer análise, surja algum tipo cas que merecem uma séria investigação de somatização, tanto na pessoa do paciente médica. quanto também na do psicanalista, ou • Em relação às interpretações, o psicanalista concomitantemente em ambos, sendo que deve, sobretudo, manter-se atento ao desti- essa última possibilidade pode estar repre- no que as interpretações tomam na mente do sentando uma importantíssima forma de co- paciente, sendo muito alta a possibilidade de municação primitiva de emoções que ainda que elas estejam sendo desvitalizadas pelo não encontraram palavras que possam ex- paciente através de intelectualizações, um pressá-las. Tais manifestações esporádicas apego à materialização e outras resistências não categorizam o paciente como sendo um inconscientes equivalentes, dirigidas contra “somatizador” porque essa psicopatologia im- um acesso aos subjacentes núcleos psicóti- plica algum grau de cronicidade e de ganho cos e de luto patológico. Nessas circunstân- primário. cias não se processarão verdadeiras trans- formações e mudanças psíquicas – logo, tam- pouco psicossomáticas.

CAPÍTULO HISTÓRICO Antes de Freud, alguns autores como Kraft- Ebbing e H. Ellis haviam estudado e divulgado 22 quadros clinicos referentes às perversões (incluíam então o narcisismo), porém o fizeram enfocando tão somente a descrição das manifestações clíni- cas, sempre sob o prisma de uma concepção mora- lística e denegritória. Perversões FREUD

Embora no início de sua obra, Freud tenha fei- Na atualidade, os autores discutem a adequa- to algumas alusões à vinculação entre zonas ção ou não do termo “perversão” para nomear uma erógenas com as perversões, como aparece em determinada categoria de pacientes que apresen- 1896, na correspondência com Fliess (carta 52), tam uma série de características comuns e típicas foi a partir de seu clássico trabalho de 1905 Três entre eles, levando em conta o fato de que essa ensaios sobre uma teoria sexual (vol.7) que ele denominação tem o incoveniente de estar impreg- dedica um estudo mais sistemático e consistente nada de “pré-conceitos”, especialmente os de or- sobre as perversões sexuais, assim definindo o que dem moral e ética, o que nem sempre faz jus à serie- se conhece como a sua primeira teoria sobre as dade e à profundidade com que tais pacientes me- perversões sexuais. Nesse artigo, Freud ensaia um recem ser comprendidos e analisados. estudo das perversões para, por meio dessas, po- São tão múltiplos e diferentes os quadros clíni- der demonstrar a existência da normalidade e dos cos, sintomas, traços caracterológicos e manifesta- desvios da sexualidade infantil. Vale lembrar que ções no plano da conduta, mais precisamente a da neste trabalho Freud aborda a três aspectos do es- sexualidade, que a tendência atual é por uma pre- tudo sobre as perversões: a) Como resíduo da se- ferência em conceber, englobar e designá-los como xualidade infantil, ligada à fixações em certas zo- pessoas portadoras de uma organização perversa nas erógenas. b) Como negativo das neuroses. c) ou de estrutura perversa. Concordo com o fato de Como um estágio evolutivo normal. que estas últimas terminologias favorecem o en- Em 1910, Freud publica Leonardo da Vinci e tendimento de que existe, nessas pessoas, uma uma lembrança de sua infância (v. 11), no qual , estruturação que correlaciona e articula entre si a além de abordar outros aspectos referentes à determinadas fantasias típicas, ansiedades, defesas, psicossexualidade e à criatividade artística desse conformação do ego, ego ideal, ideal do ego, supe- genial artista, também aparecem algumas especu- rego, resíduos narcisistas e a forma de como foi lações psicanalíticas sobre a origem da forma par- solucionado o complexo edípico. Não obstante, no ticular da homossexualidade de Leonardo, que presente capítulo o termo “perversão” aparecerá Freud situa na primitiva relação com sua mãe, des- de forma predominante, consagrado que ele está de a amamentação, o que vem a determinar uma na literatura psicanalítica. Porém, é necessário dei- identificação do menino com a mãe, tudo marcan- xar claro que tal expressão deve ser totalmente dis- do o início da sua segunda teoria sobre as perver- tinguido do significado de “perversidade”, como sões. será explicitado mais adiante. Aliás, é tal o cuida- Em 1914, em um dos artigos mais importantes do dos autores para desfazer o juízo pejorativo que de Freud – Sobre o narcisismo: uma introdução foi emprestado à palavra “perversão”, que muitos (vol. 14), ele aborda o problema da “escolha dos autores criam novas terminologias, como J. Mac- objetos homossexuais” (embora, na atualidade, seja Dougall, que propõe a expressão “neossexualida- discutível se a homossexualidade deve ser encara- de” porque, diz ela, “em quase todas as línguas, da como perversão, tal como será enfocado no ca- perversão tem um sentido pejorativo” (1991, p.69). pítulo seguinte deste livro), sendo que Freud con- sidera que essa escolha de objetos por parte dos homossexuais pode ser de dois tipos: a anaclítica e a narcisística. 254 DAVID E. ZIMERMAN

Igualmente relevantes são os três trabalhos: 1) sucede, sem propósito destrutivo, o que é muito Uma criança é espancada” (v. 17), no qual ele es- diferente de empregar os meios pré-genitais exclu- tuda os sentimentos de culpa devido às fantasias sivamente com uma predominância de perversão, incestuosas e atribui aos castigos físicos impostos destrutiva, sem consideração pelo(a) outro(a), como pelo pai, e erotizados pelas crianças, a causa res- um fim em si mesmo. Posteriormente, P. Heimann, ponsável pela gênese do masoquismo e da homos- seguindo a escola kleiniana de então, situou a eta- sexualidade. 2) Em alguns mecanismos neuróticos pa perverso polimorfa entre a fase oral secundária no ciúme, paranóia e homossexualidade (v. 18), e a anal primária, considerando que essa etapa se Freud começa a incluir os sentimentos agressivos caracterizaria por um incremento do sadismo, com na etiologia das neuroses. e 3) O problema econô- uma tentativa de relação objetal pelas diversas zo- mico do masoquismo (v. 10), em que aparece mais nas erógenas. detalhadamente a regressão à etapa sádico-anal, a Assim, depois de Freud apareceram inúmeros complementação do masoquismo do ego com o trabalhos, provindos de diversos autores pertencen- sadismo do superego e a mudança do sadismo em tes a distintas correntes psicanalíticas, trazendo masoquismo passivo. Estes três trabalhos foram múltiplas abordagens e significados, sendo que uma publicados, respectivamente, em 1919, 1922 e tendência dominante entre quase todos eles é a de 1924. situar as raízes da gênese das organizações perver- No entanto, é em 1927, no trabalho O fetichismo sas nas fases as mais primitivas da criança, em um que Freud estabelece a sua terceira teoria sobre a vínculo patogênico com a mãe. O que mudou radi- gênese dos mecanismos psíquicos da perversão, calmente, desde as primeiras formulações até as com o aporte de novas concepções referidas so- atuais, é que a atuação da perversão sexual, muito bretudo às defesas de renegação (ou desmentida) mais do que uma simples manifestação de “instin- da angústia de castração. tos parciais”, também dramatiza múltiplas identifi- Um grande passo dado por Freud para a mo- cações, formadas em distintos períodos, com dife- derna compreensão das estruturas perversas está rentes fantasias e objetos que de alguma forma fi- no seu trabalho de 1938 (publicado em 1940, v. caram dissociados, insulados e não integrados na 23) Clivagem do ego no processo de defesa, no personalidade total. qual mostra que, diante de uma exigência pulsional proibida pela realidade, o ego da criança precisa decidir entre reconhecer o perigo real, cedendo ante CONCEITUAÇÃO E CARACTERÍSTICAS ele e renunciando à satisfação pulsional, ou igno- CLÍNICAS rar a realidade, convencendo-se de que não existe motivo para medo, a fim de conseguir manter a Freud fez duas formulações acerca da concei- satisfação. As duas reações contraditórias ante o tuação de “perversões”, que se tornaram clássicas: conflito constituem o ponto central da clivagem do a primeira é a de que a neurose é o negativo da ego. Com essa concepção, Freud possibilitou o perversão, ou seja, aquilo que uma pessoa neuróti- entendimento do quanto essas pessoas funcionam ca reprime e pode gratificar somente simbolicamen- em uma permanente dissociação de sua personali- te através de sintomas, o paciente com perversão a dade, entre partes contraditórias, opostas e incom- expressa diretamente em sua conduta sexual. Essa patíveis entre si (por exemplo, uma estrutura forte- conceituação não é mais aceita pela psicanálise mente obsessiva convivendo com uma outra de moderna pois, acreditam os autores, a perversão natureza perversa), mas que funcionam concomi- tem uma estrutura própria. Em uma segunda afir- tantemente como se elas fossem compatíveis. mativa, Freud diz que a perversão sexual resulta É importante destacar que Freud também pos- de uma decomposição da totalidade da pulsão se- tulou que as “perversões” (a “disposição perverso xual em seus primitivos componentes parciais, quer – polimorfa da sexualidade infantil) formariam um por fixações na detenção da evolução da sexuali- estágio normal na constituição do ego da criança, e dade, quer por regressão da pulsão a etapas prévi- que, cabe acrescentar, no adulto pode aparecer as à organização genital da sexualidade. como um necessário elo que conduza o sujeito des- Este último aspecto permite uma importante de a sua neurose até a normalidade genital. Esse diferenciação conceitual, qual seja: separar as per- aspecto é importante, porquanto alarga o espectro versões sexuais em dois tipos de personalidades: da genitalidade normal no que concerne à prática um se refere àquelas que apresentam uma parte de polimorfas carícias orais, anais...como meios madura, que coexiste com uma parte imatura (essa sadios de gozo antecipatórios ao coito pleno que última corresponde à “parte psicótica da persona- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 255 lidade”, se utilizarmos a terminologia de Bion), a ma ter “uma aparência democrática, uma estrutura qual, diante de determinadas angústias intoleráveis, autocrática, faz uso de recursos demagógicos e o induz o sujeito a “atuações perversas” que são sen- resultado final é o de um laissez faire”, assim de- tidas pelo sujeito como egodistônicas. 2) O segun- notando um múltiplo jogo de dissociações que, por do tipo diz respeito àquelas pessoas que conhece- meio de identificações projetivas serão deposita- mos como “personalidades imaturas” (como nas das em hospedeiros dessa instituição, pessoas que histerias com elevado grau de regressividade) que, se prestam para esse papel, de tal forma que a ins- de forma egossintônica, atuam predominantemen- tituição pode sofrer um desvio da finalidade inicial te com perversões. para a qual foi criada e a que manifestamente se Freud também concebeu que é necessário levar propõe, sendo justamente isso que caracterizaria a em conta a dois elementos, os quais tornam anor- existência de uma perversão. E assim por diante. mais na gênese, forma e fins das perversões: a qua- No entanto, em um sentido mais estrito, a maio- lidade dos impulsos sexuais (como acontece nos ria dos autores, mesmo na atualidade, mantém uma casos de sadismo, masoquismo, exibicionismo, fidelidade a Freud e defende a posição de que, em escopofilia e o travestismo) e o objeto para o qual psicanálise, o termo “perversão” deve designar aquelas pulsões são dirigidas (como nos casos de unicamente os desvios ou aberrações das pulsões homossexualidade, pedofilia, zoofilia, necrofilia...) sexuais, mesmo que reconhecendo a existência de nos quais, segundo ele, o objeto normal seria subs- outros impulsos, como aqueles ligados à pulsão de tituído por um outro antinatural. morte, tão exaltados pela escola kleiniana. A etimologia da palavra “perversão” resulta de Um outro ponto que deve ser bem enfatizado é “per” + “vertere”(quer dizer: pôr às avessas, des- o que refere à necessidade de que se estabeleça uma viar...), o que designa o ato de o sujeito perturbar a distinção entre “perversão” e “perversidade”. A esse ordem ou o estado natural das coisas. Assim, os respeito, Laplanche e Pontalis (1967) assinalam que sujeitos com perversão consideram essas alterações existe uma ambigüidade no adjetivo “perverso”, como sendo boas e normais para a ética do mundo que corresponde àqueles dois substantivos: enquan- onde ele vive, o que implica em uma escolha, da to “perversão” alude a uma estrutura que se orga- qual ele é consciente, de uma conduta oposta a da niza como defesa contra angústias, a palavra “per- normal, desafiando as leis, sabendo que com os seus versidade” refere-se a um caráter de crueldade e atos ele ultraja a de seus pares e a ordem social. malignidade. Assim, o perverso (no sentido de “per- Logo, de acordo com esse significado etimológico, versão”) não busca primariamente a sensualidade; o conceito de perversão foi estendido, por alguns antes, essa comporta-se como uma triunfante “vál- setores, dentro e fora da psicanálise, para uma vula de escape maníaca” contra as ansiedades abrangência que inclui outros desvios que não uni- paranóides e, especialmente, as depressivas. camente os sexuais, como seriam os casos de per- De qualquer forma, todos admitem hoje que a versões “morais” (por exemplo, os “proxenetas”), perversão não é um simples ressurgimento ou per- as “sociais” (neste caso, a conceituação de perver- sistência de componentes parciais da sexualidade, são fica muito confundida com a de psicopatia), as sendo que o conceito de perversão implica a exis- perversões “alimentares” (anorexia ou bulimia ner- tência de um tipo particular de vínculo interpessoal, vosa...), as “institucionais”(algum desvio da finali- que consiste em um jogo de identificações proje- dade para a qual a instituição foi criada), as “do tivas e introjetivas de núcleos psicóticos, que são setting psicanalítico”, etc. admitidos e processados pelos participantes da re- Em resumo, no sentido amplo do termo, “per- lação, de tal forma que um fica preso ao outro. Indo versão” pode ser conceituada como toda subver- mais longe, entre muitos autores atuais que estu- são (inversão da ordem) de relação interpessoal, dam as perversões, há uma forte inclinação em con- de modo que em uma relação terapêutica analítica, siderar que as suas raízes residem nas primitivas por exemplo, a inversão da finalidade do objetivo fixações narcisísticas, como pode ser comprovado contratado consiste no fato desse paciente (às ve- na postulação de Janine Ch. Smirgel (1992) de que zes em um conluio inconsciente com o analista) “o desejo do incesto é apoiado por motivações não permitir que aconteçam modificações psíqui- narcísicas, uma busca de reencontros da época em cas verdadeiras. que, “ego” e o “não-ego” estavam fundidos; as- Um outro exemplo: no caso de uma perversão sim, a criança era para ela mesma o seu próprio em alguma instituição, de qualquer tipo, isso pode ideal narcisista”. Isso, complementa a autora, per- manifestar-se na escolha de uma liderança dema- mite que o sujeito, nessa condição, aspire a quatro gógica – um impostor – que, nesses casos, costu- ideais ilusórios: à completude; à perfeição de bele- 256 DAVID E. ZIMERMAN za, poder, prestígio e riqueza; à imortalidade; à dominador e dominado, etc. – que funcionam à supressão de falhas e diferenças. moda de uma gangorra, o que denominam de dia- Um fator complicador que acresce nesses ca- lética perversa. Devido a essa constante disso- sos é que a mãe e o filho tornam-se cúmplices para ciação, que mantém o sujeito em um estado de cons- excluir, enganar e denegrir o pai, o que provoca tante vigilância, parece que, em tais casos, o pra- um duplo prejuízo para a criança, porquanto se zer sexual nunca é plenamente atingido. Na verda- constituem como um excelente caldo de cultura para de, toda perversão é sádico-anal em sua essência, a instalação de uma futura perversão: por um lado, porquanto a conhecida equação pênis = criança = a criança fica sem uma necessária função do pai fezes é tomada ao pé da letra pelo sujeito, por cau- como uma cunha interditora, que estabeleça os li- sa do prejuízo de sua capacidade simbólica. mites e impeça um aprofundamento da fusão Um outro aspecto que costuma ser destacado simbiótica cm a mãe; por outro lado, no caso do por muitos autores é a existência, virtualmente cons- menino, diante de um pai que ele sente como tão tante, de uma organização defensiva obsessiva no desqualificado e ausente (na maioria das vezes, sujeito que pratica atuações perversas, sendo que devido ao discurso denegritório da mãe) ele fica ambos os aspectos estão fortemente “clivados” na sem um adequado modelo para uma sadia identifi- personalidade. cação masculina. Por tudo isso, pode-se dizer que Finalmente, cabe registrar que, na atualidade, uma pessoa com perversão idealiza a sexualidade há uma certa tendência para considerar as perver- pré-genital, as zonas erógenas e os objetos parci- sões como um capítulo das sociopatias (ou: trans- ais, especialmente os anais, e, mercê do recurso da tornos anti-sociais) e, nesse caso, elas estariam em renegação (Verleugung), ele apresenta um estado uma categoria equivalente ao das psicopatias, e mental de uma compulsão a idealizar, assim pre- como também há um parentesco genético-dinâmi- tendendo impor essas suas ilusões aos outros. co com o problema das adicções, fica justificado Para completar a conceituação de perversão a que vale estabelecer, de forma muito abreviada, partir do enfoque abordado acima, cabe afirmar alguns pontos de diferenciação entre elas. que: nas neuroses existe uma completa discrimina- ção entre “eu e os outros”; nas psicoses há uma completa indiscriminação disso e nas perversões o Psicopatia outro não está completamente internalizado (falta uma constância objetal, e o objeto guarda uma con- Muitos autores consideram que a “psicopatia” dição de fetiche, isto é, já não é mais imaginário, pode ser vista como um defeito moral, porquanto mas também ainda não é simbólico). Resulta daí ela designa um transtorno psíquico que se mani- uma necessidade de constantes actings na busca festa no plano de uma conduta anti-social. Os de uma outra pessoa externa que se preste ao con- exemplos mais comuns, são os de indivíduos que luio inconsciente de um faz-de-conta; porém, como roubam e assaltam; mentem, enganam e são im- a discriminação do perverso é precária, ele não vai postores; seduzem e corrompem; usam drogas e permitir que o outro seja autônomo e diferente dele, cometem delitos; transgridem as leis sociais e en- tampouco existe uma consideração dele pela outra volvem a outros, etc. pessoa, por que o seu partenaire deve funcionar A estruturação psicopática se manifesta por como um “fetiche intermediário”. meio de três características básicas: a impulsivi- É importante estabelecer uma distinção entre dade, a repetitividade compulsiva e o uso prevalente objeto transicional, tal como foi concebido por de actings de natureza maligna, acompanhados por Winnicott, e fetiche, visto que ambos são muito uma irresponsbilidade e aparente ausência de cul- parecidos na essência (estão no espaço entre o ima- pas pelo que fazem. Algum traço de psicopatia ginário e o simbólico), porém são completamente oculta é inerente à natureza humana; no entanto, o diferentes quanto ao destino que tomam na estru- que define a doença psicopática é o fato de que as turação do ego, logo, no tempo de duração desse três características que foram enfatizadas vão além objeto de transição dentro do psiquismo: o objeto de um uso eventual, mas, sim, que elas se tornam transicional, como diz o nome, é transitório no tem- um fim em si mesmas e, além disso, são egossin- po, enquanto o fetiche permanece eterno. tônicas, muitas vezes idealizadas pelo indivíduo, Alguns autores que estudam esse tipo de vin- sendo acompanhadas por uma total falta de consi- cularidade perversa e pervertizante enfatizam a deração pelas pessoas que se tornam alvo e cúm- permanente presença de pares antitéticos – sadis- plices de seu jogo psicopático. mo e masoquismo; exibicionismo e voyeurismo; FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 257

Alguns autores consideram a possibilidade de Alguns autores consideram a adicção como sen- que a gênese da psicopatia residiria no fato de que do um estado intermediário entre a neurose e a per- na evolução psicossexual desses sujeitos a matu- versão: enquanto a neurose resulta de uma transa- ração motora se faz precocemente e ela se mantém ção entre a repressão inconsciente e o reprimido dissociada da disposição para o pensamento ver- que teima em querer aflorar à consciência, na per- bal, de sorte que seus pensamentos são do tipo versão existe uma transação sob forma de ambi- motor, o que os torna incapazes para fazerem re- güidade na qual distintos níveis da estrutura da flexões, que, então, cedem lugar à impulsividade. personalidade – mesmo em personalidades “ma- O certo é que os indivíduos psicopatas estão duras” – podem apresentar uma simultaneidade de fortemente radicados na posição esquizoparanói- distintas identificações que ora geram algum esta- de, com a prevalência de inequívocos elementos do confusional ou se manifestam dissociadamente narcisistas, e impregnados de elementos sádico- em momentos diferentes. destrutivos (freqüentemente encobertos por uma As adicções estão sempre ligadas a uma tenta- erotização da pulsão agressiva), de tal modo que tiva de o sujeito de preencher “vazios existenciais” muitos psicanalistas crêem que as manifestações decorrentes da primitiva angústia de desamparo, psicopáticas não estão dirigidas primariamente e, para tanto, ele lança mão do uso ilusório de dro- contra a culpa e a ansiedade, mas, sim, que elas gas tóxicas e euforizantes, ou bebidas alcoólicas, o parecem ter o propósito de manter a idealização e que, secundariamente, pode acarretar problemas o superior poder do narcisismo destrutivo. sociopáticos). No entanto, também existe adicção Assim, é possível que a atuação psicopática se a alimentos, consumismo de roupas, jóias, etc., as- caracterize mais pela “perversidade” manifesta do sim como também sob a forma de uma busca com- que aquela que aparece no caso da perversão ou da pulsória a relações pseudogenitais com pessoas do atuação perversa. Na prática psicanalítica são pa- sexo oposto (ou do mesmo sexo), de modo que cientes que dificilmente entram espontaneamente parece ser válido referir uma “adicção às perver- em análise, e quando o fazem mostram uma forte sões” ou considerar a perversão como uma forma propensão para atuações e para o abandono do tra- de adicção. tamento quando este é levado a sério pelo analista, não só pela razão de uma enorme dificuldade de ingressarem numa “posição depressiva”, como tam- A PRÁTICA CLÍNICA NAS PERVERSÕES bém por causa de uma arraigada predominância da pulsão de morte e seus derivados que obrigam a Como vemos, há muitos pontos comuns entre uma conduta hétero e auto-destrutiva. perversões, psicopatias e adicções, porém também existem algumas diferenças entre elas, às vezes muito sutis, não sendo raro que elas se interponham Adicções entre si, sendo que a predominância nítida de cada uma delas pode requerer uma determinada aborda- É bastante provável que o termo “adicto” for- gem psicanalítica mais específica. As observações me a partir de “a” (privação) + “dicto” (dizer com que seguem enumeradas referem-se mais estrita- palavras), ou seja, designa aquele sujeito que care- mente à prática analítica com pacientes portadores ce de linguagem falada para expressar os seus de algum tipo e grau de perversão. conflitados sentimentos, o que na situação analíti- 1. Não é comum que pacientes procurem um ca se manifesta ora por mutismo, ou por uma ava- tratamento psicanalítico para tratar de sua lanche de palavras vazias – que não se prestam à comunicação – e que podem ser tão destrutivas perversão. O mais freqüente é que no cur- como o seu mutismo. so da análise, gradual e sutilmente, vão sur- Desta forma, o “a-dicto” vai criando um mun- gindo os sintomas da perversão que, amiú- do secreto, com a negação dos afetos, tal como de, o terapeuta durante longo tempo (às ocorre na “alexitimia”. Isso cria um sentimento de vezes anos), sequer suspeitava da existên- que ele está prisioneiro, de forma inevitável, de um cia deles. destino fatal. Daí resulta uma “neurose de impul- 2. Isso se deve a duas razões: uma, é a de que são”, e o sujeito apela à adicção (freqüentemente eles funcionam de uma forma em que a per- drogas, mas não exclusivamente) como uma tenta- sonalidade mantém-se absolutamente cindi- tiva de manter a sensação de estar vivo, enquanto a da (como aparece na conhecida metáfora abstinência gera nele a sensação de não existir. 258 DAVID E. ZIMERMAN

do “médico e monstro”), com os aspectos crônico sentimento de vazio, tédio, asco e contraditórios convivendo na mesma pes- falsidade. soa. Um exemplo que me ocorre, para ilus- 8. Todos esses aspectos co-existem com a pre- trar situações clínicas, não tão raras assim, sença numa parte da personalidade, de uma é o que aparece no filme “La belle de jour”, estrutura obsessiva. onde aparece um claro exemplo de cisão 9. Além das aterradoras angústias paranóides da personalidade que acontece na perver- e depressivas, esse paciente foge sobretu- são, pela bela personagem feminina (inter- do do seu terror diante da angústia de de- pretada por Catherine Deneuve) que duran- samparo. te a noite conservava todo o porte de uma 10. Devido a uma séria dificuldade para poder fina dama, de hábitos requintados e exce- pensar essas difíceis experiências emocio- lente cumpridora dos deveres de esposa, nais, esse tipo de paciente substitui por mãe e dona de casa, porém durante as tar- actings excessivos, procurando escoá-los des freqüentava um bordel, onde satisfazia pelas vias erógenas, não sendo raro que os seus desejos perversos de ser uma pros- para manter um estado de completude (in- tituta, e submetia-se sexualmente a práti- clusive da bisexualidade) eles atuem uma cas sexuais com todo tipo de homem, in- fantasia de “hibridização” por meio de uma clusive com aqueles que lhe impunham sa- ligação com alguma pessoa bissexuada. Da dicamente rituais de castigos físicos. mesma maneira, a menina que não conse- 3. A segunda razão que explica por que o lado gue se dessimbiotizar da mãe pode vir a perverso pode custar a aparecer é que tais compensar com uma demanda ninfoma- pacientes convivem com ele de uma ma- níaca, perversa, de relações heterossexuais, neira egossintônica. nas quais ela se mostra frígida ou anor- 4. Virtualmente, sempre encontramos na his- gástica, por continuar interiormente subme- tória pregressa desses pacientes evidências tida à figura da mãe castradora. De forma de uma mãe simbiótica (sedutora erógena análoga, quando se trata de meninos, essa e/ou narcisista, em cujo caso ela usa o fi- simbiotização mal-resolvida com a mãe lho como sendo uma mera extensão sua), pode desembocar na perversão sob a for- com a exclusão do pai. J. Ch. Smirgel ma de um “don-juanismo”, ou nos casos (1984) chega a afirmar que “a mãe do fu- em que a escolha de objetos for invertida a turo perverso concede ao pênis pré-geni- perversão pode assumir uma forma de ho- tal infértil do filho um grau de importân- mossexualidade, e assim por diante. cia fálica superior ao do pênis genital e 11. Nessas atuações, os pacientes com perver- reprodutor do pai”. são demonstram uma grande habilidade 5. Nessas pessoas sempre existem fortes com- para envolver a outras pessoas, o que fa- ponenentes narcisistas e sadomasoquistas. zem habitualmente com um jogo de sedu- 6. Da mesma forma, sempre encontramos uma ções e que freqüentemente adquirem a for- baixa tolerância às frustrações, uma nítida ma de “paixões”. preferência pelo mundo das ilusões; con- 12. Embora se processem através de zonas seqüentemente, uma evitação de entrar em erógenas, tais atuações estão a serviço de contato com as penosas verdades, as exter- uma pré-genitalidade, de forma que cabe nas e as internas (-K, de Bion). afirmar que é nas perversões onde mais cla- 7. Isso gera, em tal tipo de paciente, uma ideo- ramente se observa uma articulação da es- logia baseada na crença de que “melhor trutura edípica com a estrutura narcísica. vive quem melhor consegue fingir”, o que Trata-se do vértice narcisista da situação o leva ao emprego dominante de pensamen- edípica (conforme está detalhado no capí- tos e atitudes de um “como se”, uma in- tulo 37), sendo que esse aspecto tem uma definição do senso de identidade entre “ser” grande importância na prática porquanto o e “não ser”, o que costuma acarretar um terapeuta pode ficar encantado com a “ri- queza” do material edípico manifesto, vir FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 259

a fazer brilhantes interpretações nesse pla- virtuados. A maneira mais comum de acon- no, enquanto não se toca no narcisismo tecer uma “perversão da transferência” é subjacente, e a análise resulta estéril. que, através de identificações projetivas, o 13. Em relação ao setting, há uma necessidade paciente consiga colocar no analista a sua de que o mesmo seja preservado ao máxi- excitação, impaciência, uma intimidade mo; no entanto, o ataque ao enquadre não exagerada, a provocação de contra-atua- se faz marcadamente contra as combina- ções, etc. ções contratuais (horários, faltas, pagamen- 16. Assim, a contratransferência assume uma to...), como acontece comumente nas importância singular na relação analítica psicopatias, mas, sim, contra os lugares e pois o terapeuta fica submetido a uma per- papéis que respectivamente devem caber manente pressão do paciente, nem sempre ao paciente e ao analista e que o paciente manifesta, por meio de um sutil jogo de perverso procura subvertê-los. Assim, é útil seduções ou de ameaças diversas, com as que o analista, em certas siuações, se per- quais esse analisando procura forçar que o gunte: “Qual o papel que esse paciente quer analista comporte-se como ele, o paciente, colocar em mim? O de uma mãe que nunca quer! O grande risco consiste na possibili- frustra, de um juiz, professor, ego auxiliar, dade de haver uma absoluta falta de um duplo dele, continente para a projeção conscientização sobre a real esterilização de partes que ele não suporta, de um pai do processo analítico, devido à construção enganado e esterilizado?, etc. transferencial-contratransferencial de um 14. A resistência mais difícil de ser removida conluio de acomodação. Tendo em vista é aquela decorrente de uma forte cisão da esses riscos, é importante que o terapeuta personalidade, de modo que esse paciente, esteja alerta para aquilo que N. Goldstein tal como acontece nitidamente no fetichis- (1996) chama de vínculo de apoderamento, mo, usa maciçamente o recurso da nega- que consiste no fato de que o paciente per- ção, tipo werleugnug (conhecida com os verso, especialmente pela sedução, procu- nomes de renegação, denegação, des- ra tomar posse de um outro (que pode ser o mentida, recusa...) de modo que ele repete analista). Nesse caso, o paciente pode ge- com o analista as experiências infantis de rar, também no terapeuta, uma ilusão par- negar as diferenças de sexo, geração, ca- ticular que, segundo Goldstein, “consiga pacidades, dependência, suas limitações e mobilizar nas pessoas desejos latentes mais limites da realidade, a sua incompletude e ou menos inconscientes, que se corres- finitude, a autonomia do outro, etc. No en- pondem com aspectos da sexualidade per- tanto, diferentemente do que acontece nas versos polimorfa infantil, reprimidos ou psicopatias, existe uma grande possibilida- deslocados de nossa consciência”. Ainda de de que tais pacientes entrem em estado cabe consignar um outro aspecto que pode depressivo, às vezes com um estado de de- provocar uma contratransferência difícil: é sespero e ideação suicida. o fato de que, a exemplo da sua mãe, que 15. Em relação à transferência, inicialmente é provavelmente alternou com ele momen- útil estabelecer uma distinção entre perver- tos de sedução com outros de castração e são clínica (consiste no quadro que está rejeição, também os pacientes com estru- sendo descrito neste capítulo) e perversão tura perversa alternam com o analista, fa- da transferência (ou transferência perver- ses de sedução (inclusive por meio de me- sa). Essa última pode estar presente na aná- lhoras) com outras em que há uma perma- lise de pacientes com perversões, no en- nente presença de polêmica e desafio. tanto está longe de significar que, certamen- 17. Quanto às interpretações do analista, so- te, se trate de paciente perverso, porque a bretudo ele deve levar em conta, no míni- perversão da transferência pode estar pre- mo, quatro aspectos: a) a pulsão desse pa- sente em qualquer análise em que os pa- ciente não é tanto vivida por ele como um péis e funções do par analítico fiquem des- real “desejo”, como pode aparentar, mas 260 DAVID E. ZIMERMAN

sim como uma forma de ele expressar uma conluio perverso interno, como, por exem- ideologia particular, prenhe de idealizações plo, interpretando ao paciente que ele, sem e ilusões. b) Ele vive de “alucinações ne- se dar conta, está mentindo para si mesmo. gativas” e tem a convicção de que a análi- 19. Impõe-se assinalar alguns aspectos que se não passa de uma doutrinação; que as compõem uma necessária “atitude psicana- interpretações somente o desqualificam (e lítica” do terapeuta para analisar a esses pa- assim é ele quem desqualifica o seu analis- cientes: mais do que a clássica “atenção flu- ta). c) O analista deve estar atento para uma tuante”, afirma Meltzer, é mais adequado forte tentação de interpretar o florido e atra- o uso de uma “atenção reflexiva”. Da mes- ente “material edípico” e deixar passar os ma forma, vale complementar, mais do que essenciais elementos narcisísticos. d) Não à espera de “livres associações de idéias”, basta o analista ter a convicção de que está a tarefa maior do analista é auxiliar que o interpretando corretamente; acima de tudo, paciente tire um aprendizado com as ex- ele deve estar atento é com o destino que periências e que aprenda a pensar. É in- as suas interpretações seguem na mente dispensável tornar egodistônico aquilo que desse paciente. de perverso está sintônico no paciente, de 18. Um aspecto que ultimamente está merecen- modo a propiciar uma gradativa desilusão do uma importância especial é o concernen- das ilusões. É indispensável que o analista te às relações perversas que se estabele- tenha condições para enfrentar uma contra- cem entre as partes contraditórias do pró- transferência difícil e nem sempre percep- prio self do paciente, tal como descrevem tível. Ademais, junto com a possibilidade alguns autores como Rosenfeld (conceito de acontecer um verdadeiro êxito analítico de gangue narcisista), B. Joseph (pacien- em algum caso determinado caso de per- tes de difícil acesso), Meltzer, Steiner (or- versão, o analista também deve estar pre- ganização patológica) e outros. De uma parado para a eventualidade dele vir a so- forma análoga, esses autores destacam que frer uma grande frustração, diante da pos- em tais casos os aspectos dependentes (in- sibilidade, nada rara, de que após uma aná- fantis) do self do sujeito extraem um surdo lise de longa duração e que parece ter evo- prazer, muitas vezes erótico, do domínio a luído exitosamente, surja uma constatação que são submetidos pelo self “mau” final de que não houve mudança significa- (gangue), sendo que, assim, essas duas par- tiva na parte perversa do paciente. tes diferentes do self convivem harmoni- A experiência clínica demonstra que tem havi- camente num relação perversa. A impor- do uma significativa procura de tratamento analíti- tância disso na prática clínica consiste na co por parte de pacientes homossexuais, o que jus- necessidade de que, em muitos casos, o tifica um capítulo especial, como o seguinte. analista privilegie a interpretação desse FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 261

CAPÍTULO Todas essas múltiplas variáveis – que oscilam desde um entendimento que considera a homos- sexualidade não como uma patologia, mas, sim, como um legítimo direito de opção do livre exer- cício da modalidade sexual que mais convir a uma 23 determinada pessoa, tal como fica implícito no úl- timo DSM norte-americano, até o de um pólo ex- tremamente oposto no qual ela é categorizada como uma forma grave de doença, de perversão – vão acarretar profundas influências na prática psicana- Homossexualidade lítica com pacientes homossexuais. Por todas estas razões, penso ser útil que, preli- minarmente, antes de me aprofundar no presente capítulo, seja feita um apanhado sintético e esque- ALGUNS MARCOS REFERENCIAIS mático dos meus próprios marcos referenciais INTRODUTÓRIOS atinentes à homossexualidade. Em primeiro lugar, é necessário deixar claro A exemplo do que acontece na nosologia psi- • quiátrica, também na literatura psicanalítica não é que antes de ser enquadrada em uma única clara e unívoca a conceituação e inserção da ho- categoria nosológica – como perversão, por mossexualidade. Na verdade, essa expressão apa- exemplo –, a homossexualidade deve ser rece de forma polissêmica (do grego “poli” (mui- compreendida como sendo uma síndrome, tos) e “semos” (sentidos)), ou seja, permite várias ou seja, diversas causas etiológicas podem significações e sentidos, de tal forma que as con- manifestar-se por meio de uma mesma ma- cepções dos múltiplos autores acerca da homos- nifestação sintomática aparente. Cabe uma sexualidade tanto se superpõem ou coincidem, analogia com o surgimento de uma “febre”, como também surgem ambíguas ou divergentes a qual, por si só, de forma nenhuma pode ser entre si, e muitas outras vezes se complementam considerada como um quadro clínico espe- de forma frutífera, em uma ampla gama de varia- cífico, mas, sim, como uma síndrome febril ções teórico-técnicas. Igualmente o termo “homossexualidade” per- que tanto pode se dever a um resfriado ba- mite uma escuta polifônica, isto é, cada psicotera- nal, como pode traduzir uma pneumonia ou peuta tem uma forma particular de entender e de qualquer outro processo infeccioso, indo até escutar e, portanto, de interpretar o conteúdo e a a possibilidade extrema de um processo forma das mensagens verbais e não-verbais emiti- cancerígeno ou de uma gravíssima septice- das por tais pacientes a respeito de sua conduta mia. sexual. • Freud já estabelecera uma distinção entre Destarte, cabe afirmar que a conceituação psi- perversão (fetichismo; sadomasoquismo; canalítica de homossexualidade, além de polissê- voyeurismo; exibicionismo; pedofilia...) e in- mica e polifônica, também é polimorfa (várias for- versão (cujo termo designava a homossexua- mas de apresentação) e polideterminada (diversas lidade). Embora seja evidente que entre os causas concorrem para uma mesma manifestação clínica). homossexuais também se encontram muitos Em relação a esta polideterminação da homos- que apresentam características perversas sexualidade, concorrem fatores diversos, como (que são condenados pelos outros homos- podem ser os de natureza biológica, sociocultural sexuais, que constituem a maioria, e que não e os psicológicos, sendo que neste último caso tan- manifestam sintomas de perversão pura), este to podem predominar elementos edípicos, como os termo deveria ser evitado por esta dupla ra- pré-edípicos. Devido à impossibilidade de abarcar zão: sugere uma generalização injusta e, ade- a todas dimensões que estão presentes na determi- mais, a palavra “perversão” em quase todos nação da homossexualidade, este capítulo preten- os idiomas tem um significado altamente de privilegiar a abordagem dos fatores pré-edípicos pejorativo. que são inerentes à posição narcisista. • Para evitar que o termo “homossexualida- de” rotule todas manifestações desta forma 262 DAVID E. ZIMERMAN

homoerótica de sexualidade com um mes- ciais (presídios, internatos, etc) e nunca mais mo e generalizado significado, qualitativo e se repetem. quantitativo, e geralmente impregnado com • Na verdade, é muito difícil definir o que vem uma significação pejorativa e estigmatiza- a ser uma sexualidade “normal” ou uma dora, é que muitos autores preferem empre- sexualidade “perversa”. A este respeito, J. gar o termo “conduta homossexual”, o qual McDougall afirma que a compreensão da condiciona a necessidade de um esclareci- perversão se dá a partir da destrutividade mento quanto à forma e ao grau deste tipo que o sujeito estabelece seja em relação a si de conduta. e ao outro, e não como uma forma de práti- • A conceituação de “conduta homossexual” ca sexual que não se enquadra naquilo que ou, mais simplesmente, a de “homossexua- habitualmente é chamada de normalidade. lismo” alude aos apegos emocionais que O ato homossexual, em si, não é desviante, implicam em atração sexual, ou de relacões mas, sim, quando deixa de ser uma varia- sexuais declaradas entre indivíduos de um ção da sexualidade adulta e se transforma mesmo sexo. Como sabemos o termo “ho- em sintoma. A autora levanta a questão se mo”, em grego, quer dizer “ igual, semelhan- existem diferenças no contexto do processo te”, assim como a expressão “lesbianismo”, analítico entre analisandos heterossexuais (os que define a homossexualidade feminina, quais estão mais relacionados com uma difi- origina-se de “Lesbos”, nome da ilha grega culdade de obter prazer) e os homossexuais onde residia Safo, poetisa da Grécia Clássi- (a queixa refere-se mais à dificuldade de dar ca, que se notabilizou pelas suas relações prazer). homoeróticas. • Também é necessário levar em conta que a • De um modo geral, os autores concordam assim denominada fase perverso polimorfa, que o emprego do termo “homossexual” de- descrita por Freud (1905) como uma etapa veria ficar restrito aos casos em que os indi- no curso normal da evolução psicossexual, víduos, de uma forma mais crônica e com- pode manifestar-se na genitalidade adulta pulsiva, geralmente com alternância de epi- com manifestações pré-genitais no curso das sódios de exacerbações e de remissões, e relações sexuais, que até podem simular uma como uma maneira de se aliviarem de fortes prática perversa, mas que nada tem a haver ansiedades paranóides ou depressivas, em com a psicopatologia da perversão. distintos graus de qualidade e intensidade, • Em termos socioculturais, dados estatísticos atuam um desejo sexual de forma muito pre- deixam claro que homossexualidade não é dominante (isto é, não requer exclusivida- um fenômeno inusitado e que, pelo contrá- de) para pessoas do mesmo sexo biológico. rio, é bastante freqüente em qualquer socie- • Enquanto isto, o termo “homossexualidade dade. Algumas pesquisas apontam para um latente” deve aludir aos desejos homosse- índice aproximado de 4% do total de homens xuais disfarçados ou ocultos, não assumidos cuja conduta homoerótica é a única durante e nem concretizados. É um termo ambíguo e toda a vida, enquanto para as mulheres essa impreciso e que requer cautela em sua nomi- mesma conduta ocorre em 2% da população nação. Da mesma forma, não se justifica ro- em geral. tular como homossexuais aquelas pessoas • Os homens manifestamente efeminados, ou que, embora comumente casados e com fi- as mulheres de aspecto viril, constituem so- lhos, ocasionalmente cometem actings de mente uma pequena porcentagem da popu- natureza homoerótica, sem que a mesma lação homossexual. Algumas pesquisas guarde uma natureza compulsória e perma- apontam que somente 15% dos homosse- nente. xuais masculinos e não mais do que 5% dos • O mesmo vale para aqueles casos denomi- femininos, são facilmente reconhecível. As- nados como “homossexualidade situacio- sim, ao contrário de uma difundida crença nal”, isto é, a experiência homoerótica fica popular, os homossexuais não se se diferen- restrita a determinadas situações circunstan- ciam do ponto de vista físico (adiposidade, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 263

quadris largos, órgãos sexuais pequenos, • Cabe perguntar se a homossexualidade está pilosidade nas mulheres, etc.) dos indivídu- aumentando em números percentuais. A res- os normais. Nem todo efeminado é homos- posta é muito difícil porquanto os homos- sexual e a recíproca é verdadeira. sexuais não só estão assumindo a sua condi- • A importância e a significação, assim como ção com maior clareza, como fazem inúme- a aceitação ou repúdio da prática de uma de- ros movimentos públicos em defesa de seus terminada modalidade sexual, varia muito de direitos, o que pode dar uma falsa idéia de uma cultura para outra, e mesmo dentro de incremento, em números relativos, é claro. uma mesma cultura, também varia com o seu De qualquer forma, é incontestável que a momento sociopolítico e econômico. Esta homossexualidade constitui-se em um pro- última afirmativa pode ser exemplificada blema de extrema importância individual e com o extraordinário aumento da prática social; logo, em um importante desafio para homossexual, comprovadamente manifesta, a psicanálise e para os psicanalistas. no apogeu da Alemanha nazista, talvez pelo • Mais particularmente em relação ao campo então incremento da pulsão de morte, com a da psicanálise, também existe uma polêmi- respectiva agressão sádico-destrutiva e os ca quanto ao fato de se uma pessoa homos- temores correspondentes. sexual pode ter direito a fazer uma forma- Também é muito difundida a crença de que ção psicanalítica regular e oficial, e mais, se na Grécia clássica o homossexualismo não esta sua condição é compatível ou incompa- somente constituía uma regra do comporta- tível com o pleno e exitoso exercício da mento sexual, como ainda era altamente va- profundeza da função psicanalítica. lorizada e reconhecida pelos pares como um Por outro lado, cada vez mais os pacientes ho- ideal estético. Falta acrescentar no, entanto, mossexuais procuram atendimento psicanalítico, ao que isto era verdadeiro para a fase da puber- mesmo tempo em que os psicanalistas estão muito dade, durante a qual uma entrega total do mais bem preparados em conhecimentos teóricos rapaz aos cuidados de seu tutor era conside- relativos às primitivas etapas da evolução psicos- rado uma honraria e um sinal de uma apren- sexual e, conseqüentemente mais bem equipados dizagem completa e perfeita; entretanto, em com os necessários recursos técnicos. Como resul- contrapartida, na mesma Grécia, a homos- tado desses avanços fica-me a impressão de que os sexualidade adulta era severamente repudia- resultados analíticos com estes analisandos têm sido da e punida. mais exitosos e promissores do que décadas atrás. • Em resumo, a cultura determina grandes mudanças na maneira de encarar e abordar a POSSÍVEIS ETIOLOGIAS homossexualidade. Na atualidade existem fortes controvérsias sobre alguns assuntos Como já foi frisado, são muitos os fatores que essenciais que cercam os homossexuais, concorrem para o surgimento da síndrome homos- como a do direito legal de acasalamento; a sexual, sendo necessário que se destaquem aos se- permissão, ou não, de pertencerem aos qua- guintes. dros de organizações militares e de cúpulas políticas; a aceitação, ou não, por parte da população, de não serem encarados como Biológicos-Constitucionais “doentes”, e e assim por diante. O que não resta dúvida é o fato de que as medidas de A ciência atual ainda tem um conhecimento legislação repressora acarretam resultados muito pequeno acerca dos aspectos genéticos, or- negativos, porquanto reforça a condição de gânicos ou glandulares, sendo que até o presente clandestinidade, com os inevitáveis proble- momento predomina a idéia de que eles têm uma mas de culpa, vergonha, solidão e humilha- participação mínima na determinação da homos- ção, assim como propicia o favorecimento sexualidade. de chantagens – nada incomuns e extrema- mente persecutórias. 264 DAVID E. ZIMERMAN

Socioculturais e Familiares no (1924-1991) – atribui-se uma expressiva impor- tância não somente ao sexo biológico com que a Ninguém contesta, na atualidade, os efeitos criança nasce, mas também à formação do seu gê- condicionantes indiretos dos costumes e códigos nero sexual, o qual vai depender fundamentalmen- sociais, que são ditados pela vigência de uma de- te dos desejos inconscientes que os pais alimentam terminada cultura, a qual, por sua vez, varia gran- quanto às suas expectativas e demandas em rela- demente com as distintas geografias e épocas. ção à conduta e ao comportamento do filho ou da Como antes foi mencionado, a cultura determina filha. grandes e decisivas mudanças na maneira de sur- Esta indução, por parte dos pais, na determina- gir, encarar e abordar a homossexualidade. ção do “gênero sexual” das crianças costuma ser Geralmente prevalece, por parte do ambiente, feita a partir de combinação de fatores influen- uma rejeição franca ou dissimulada contra a ho- ciadores, como são alguns apontados por Graña mossexualidade, nos mesmos moldes persecutórios (1995), que destaca, por parte dos pais, a atribui- e humilhatórios que se processam contra todas as ção de nomes próprios ambíguos, o uso de roupas minorias sociais. Pode-se dizer que o conflito dos que provocam confusões e indefinições no contex- homossexuais está mais em relação com os costu- to social em que a criança está inserida, o tipo de mes sociais do que propriamente consigo mesmo. brinquedos e de brincadeiras, a forma de como os Adquire uma especial importância o discurso pais designam os genitais, o tipo de esporte que dos pais e da religião a respeito da sexualidade, de estimulam nos filhos, a idealização ou, denegri- tal forma que, muitas vezes, além de proibida a mento de certos atributos masculinos ou femini- sexualidade também é significada como perigosa nos, etc. (recordo um paciente esquizofrênico, com fortes Costuma ser comum a formação de um conluio fantasias homossexuais, que seguidamente lembra- inconsciente na base de um “faz-de-conta” que nin- va a admoestação de seu padre-professor de que guém está vendo nada, assim negando uma evidente “cada gota de esperma derramado na prática da cumplicidade entre duas ou mais pessoas de uma masturbação correspondia a uma gota de sangue mesma família, sendo que muitas vezes os pais não que se esvaia do corpo de Nossa Senhora”). só determinam decisivamente o gênero sexual dos Toda e qualquer família está inserida em um filhos como também pode acontecer que eles atuem determinado contexto sociofamiliar e sofre as suas a sua possível homossexualidade latente por meio influências, de modo que as mesmas são repassa- de seu filho ou filha. Aliás, não é nada raro que das pelos pais aos filhos. Os padrões da sexualida- certas famílias cultivem um conluio múltiplo que de não são inatos, mas criados. Logo, adquirem se manifesta em um determinado “segredo famili- uma importância fundamental as identificações dos ar”. filhos com os pais, assim como o discurso destes Entendo que a estruturação de um gênero se- últimos acerca da sexualidade. xual diferente do sexo biológico está longe de ne- Da mesma maneira, adquire uma especial im- cessariamente significar uma homossexualidade portância o aspecto da transgeracionalidade, isto atuante, porém pode ser um fator propiciador. Por é, os conflitos edípicos ou pré-edípicos não resol- outro lado, penso que se pode dizer que, em alguns vidos nos pais serão necessariamente repetidos com casos, um casal com sexos biológicos diferentes, os filhos, e este processo pode ter uma continuida- porém com um certo arranjo dos respectivos gêne- de ao longo de muitas gerações de uma mesma fa- ros sexuais, pode estar configurando uma relação mília. Para tanto, o habitual é que se estabeleça na de natureza homossexual. família uma designação de papéis, os mais diver- sos, a serem inconscientemente cumpridos por to- dos, dentro de um clima de veladas ameaças (supe- Fatores Psicológicos rego) ou de fortes expectativas (ideal do ego), cujo não-cumprimento gera culpa, medo, vergonha e Os acima referidos aspectos sociais, culturais e humilhação. familiares, intimamente inter-relacionados com as necessidades, desejos e fantasias inconscientes da criança, vão determinar primitivos pontos de fixa- Sexo e Gênero Sexual ção conflitivos, nos quais a criança vai estacionar em seu desenvolvimento psicossexual, ou para eles Na atualidade – graças principalmente aos tra- vai regredir quando, embora tenha alcançado a con- balhos de R. Stoller (1968), psicanalista america- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 265 dição adulta, não suporta o surgimento de determi- Freud mostra como o indivíduo pode construir tanto nadas ansiedades terríveis. uma produção delirante paranóide (“não, eu não o Classicamente, os pontos de fixação referem- amo, eu o odeio, e, logo, ele me odeia”); como pode se às etapas oral (felácio, sexualidade possessiva e ser um delírio de ciúme (“é ela que o ama”); ou aditiva, etc.), anal (no imaginário das crianças de uma erotomania (“ela(s) é que me ama(m)); ou uma ambos sexos, a incorporação anal do pênis do pai retirada narcisística (“ninguém me ama e eu não representa a aquisição de uma ilusória completude amo e não preciso de ninguém”). e potência fálica) e fálica (inserida dentro do com- Igualmente Freud contribuiu com um importan- plexo de Édipo, com as mais distintas configura- te pressuposto de que inicialmente a criança ções possíveis). apresenta uma concepção imaginária de que é pos- Unicamente como um esquema didático de ex- suidora de uma bissexualidade, sendo que esta sua posição podemos considerar os fatores psicológi- idéia continua servindo de ponto de partida dos mais cos propriamente ditos na determinação da condu- avançados estudos sobre a determinação da sexua- ta homossexual, a partir de duas vertentes: a edípica lidade, portanto também da homossexualidade. No e a narcísica, que serão mais adiante abordadas entanto, foi em torno da triangularidade da confli- separadamente. No entanto, devemos sempre le- tiva edípica que Freud fez as suas mais importan- var em conta o fato de que ambas costumam estar tes descobertas, que seguem aqui, extremamente intimamente inter-relacionadas, e que mais freqüen- sumarizadas. temente do que em geral se pensa, os conflitos narcísicos e pré-genitais podem estar mascarados e representados por uma ruidosa fachada edípica. A FACE EDÍPICA Aliás, foi o prório Freud quem nos apontou se- paradamente os caminhos destas duas vertentes. • A crise edípica, quer de resolução homo ou Assim, ao mesmo tempo em que a principal parte heterossexual implica, para a criança, a con- da sua obra gira em torno dos conflitos psíquicos dição de renunciar à fantasia de que ela tem resultantes das pulsões libidinais investidas nas a posse de uma bissexualidade; por conse- vivências e fantasias implícitas no conceito univer- sal do complexo de Édipo, é a Freud que devemos guinte, também implica a renúncia de seu a primeira compreensão das raízes narcísicas na desejo imaginário de que pode possuir se- determinação da homossexualidade. Essa última xualmente aos dois genitores. afirmativa pode ser comprovada nos seus trabalhos • Esta renúncia está ligada ao reconhecimen- de 1910 acerca de Leonardo Da Vinci e uma lem- to da existência de um terceiro (o pai) e está brança de sua infância (no qual fica claro que a intimamente ligada à cena primária, com homossexualidade de Leonardo representava uma todas as fantasias daí decorrentes. busca de recompor com a mãe uma perdida unida- • As principais fantasias, quer no menino ou de fusional primitiva); e principalmente no traba- na menina, estão diretamente ligadas à posi- lho sobre Uma introdução ao narcisismo (1914). ção e lugar que imaginariamente (ou con- Neste último, Freud aponta que a escolha do obje- cretamente em certas famílias de estrutura to homossexual pode ser de natureza anaclítica (um retorno à situação paradisíaca do apego original perversa) as crianças ocupam nesta cena que com a mãe, com a sensação de ter a posse absoluta tanto lhes pode sugerir uma idílica troca de dela) ou narcísica, nas suas três modalidades: bus- benesses entre os pais, ou um inferno no qual ca no parceiro uma extensão daquilo que ele é (tem- estes se destroem, fantasia esta que promo- po presente) ou do que ele foi (tempo passado) ou ve na criança uma concepção sadomaso- daquilo que almeja vir a ser (futuro). quista do ato sexual. Segundo M. Klein, a A propósito, também é a Freud, tal como apa- fantasia da criança de que os pais estão fun- rece no trabalho de 1911 sobre o célebre Caso didos no coito produz a imaginação da “fi- Schreber, que devemos a postulação de que existe gura combinada” responsável pela criação no curso do desenvolvimento psicossexual da crian- mítica da existência de figuras monstruosas. ça uma posição homossexual normal e estruturante. Ficar excluída da cena primária gera na crian- No mesmo artigo, a partir do original e proibido • desejo homossexual “eu o amo”, por meio de uma ça uma sensação de abandono e traição por série de transformações do verbo e do objeto, de- parte de um dos pais, ou de ambos, e, por terminada pela necessidade de negar tal opróbio, conseguinte, produz sentimentos de ódio, 266 DAVID E. ZIMERMAN

rivalidade, curiosidade invasiva e arrogan- substituto fálico) enquanto o menino sai des- te, incremento de um controle possessivo e ta crise quando, acuado pela angústia de cas- sentimentos de vingança. tração, renuncia à posse da mãe e se reaproxi- • A rivalidade com o genitor do sexo oposto, ma e se modela com o pai. por meio de um jogo de projeções e introje- ções dos acima referidos sentimentos e fan- tasias, determina o surgimento do complexo A FACE NARCISISTA de castração (é útil lembrar que Freud res- tringiu o uso desta expressão ao temor da • Em relação ao desenvolvimento normal da castração dos órgãos genitais). Para evitar a psicossexualidade, as primeiras formulações castração, o futuro adulto pode renunciar à de Freud postulavam a existência de uma heterossexualidade. etapa de auto-erotismo, seguida de um nar- • O complexo de Édipo pode tomar uma con- cisismo primário e, finalmente, de uma pos- figuração positiva (desejo pelo genitor do terior etapa do investimento libidinal em sexo oposto e uma rivalidade com o do mes- objetos externos. mo sexo) ou negativa (em cujo caso o com- • Na atualidade, é consensual que desde o nas- plexo de Édipo é invertido, ou seja, a crian- cimento o bebê já está interagindo com o ça deseja o genitor do mesmo sexo). É útil meio ambiente exterior e estabelecendo re- levar em conta que a resolução invertida do lações objetais, muito particularmente com complexo muito comumente seja decorren- a sua mãe. Importantes autores destacaram te do fato de que o gênero sexual dos pais este inato relacionamento objetal, como M. esteja trocado, o que, por si só, determina Klein (embora a sua ênfase tenha ficada uma patogenia no processo identificatório da centrada quase que exclusivamente no bebê, criança. nas suas pulsões destrutivas e conseqüentes • Assim, a elaboração final da crise edípica arcaicas fantasias inconscientes dirigidas ao acarreta duas conseqüências fundamentais “seio” e ao interior do corpo da mãe); Lacan para a criança, as quais estão entrelaçadas: (cujas principais idéias a respeito da fusão os modelos de identificação e a formação inicial do bebê com a mãe, estão contidas na do superego. Para o primeiro, entre tantas sua concepção evolutiva acerca da etapa do outras possibilidades de identificações espelho); Winnicott (que ao deixar clara a patogênicas que concorram para a homos- sua divergência com M. Klein, enfatizou, sexualidade, pode servir de exemplo a iden- sobretudo, o outro pólo, isto é, a extraordi- tificação do menino com uma mãe fálica, nária importância da mãe real no desenvol- sendo que esta, por sua vez, possivelmente vimento emocional primitivo da criança, também esteja identificada com a sua pró- notadamente através do holding materno e pria mãe também fálica, ou com a figura da função de espelho da mãe; Bion (que, a masculina do seu pai, ou de algum irmão cujo meu juízo, foi o autor que melhor equilibrou pênis ela invejava... Em relação à formação a importância tanto da mãe real como a das do superego, basta lembrar o aforismo de prematuras fantasias inconscientes da crian- Freud: o superego é o herdeiro direto do cinha. As concepções de Bion acerca da per- complexo de Édipo. manente relação continente-conteúdo na • É desnecessário frisar que, tal como Freud interação mãe-filho, com um destaque para nos ensinou, no processamento normal da a capacidade de rêverie e da função-alfa da crise edípica há uma diferença do que se mãe, são de decisiva importância na estrura- passa no psiquismo do menino ou da meni- ção do psiquismo da criança, como será abor- na. É suficiente lembrar que normalmente a dado mais adiante); M. Mahler (contribuiu menina entra na crise edipiana quando ela, com esclarecedores estudos acerca do nas- devido ao complexo de castração, afasta-se cimento psicológico do bebê, ao considerar da mãe e se aproxima do pai (para obter dele as diversas etapas e subetapas evolutivas, o pênis que lhe falta, ou um bebê, como um notadamente as de simbiose; diferenciação FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 267

(em relação à mãe), separação e individua- McDougall, 1987 – alude a “um corpo para ção, até atingir a etapa da aquisição de uma dois”). constância objetal. • Se a mãe simbiótica não for capaz de renun- • Assim, inicialmente, na vigência da indife- ciar ao corpo do filho e à posse do seu pênis, renciação e indiscriminação, os objetos ex- resultará uma luta desesperada – e ambígua ternos são percebidos sem diferenças se- – por parte do filho com o propósito de re- xuais, por conseguinte, de uma perspectiva pelir a mãe percebida como engolfadora e “homossexual”. perigosa. • Sabemos que a etapa de simbiose com a mãe • A referida exclusão do pai do campo afetivo é indispensável e estruturante; no entanto, do filho adquire tamanha importância na de- ela pode se tornar patogênica, tanto nos ca- terminação de uma possível estruturação sos em que há um precoce desligamento da homossexual do filho pelas seguintes duas mãe, como principalmente quando houver razões principais: o pai excluído não fun- uma exagerada manutenção deste vínculo ciona como uma necessária cunha interditora simbiótico, fortalecendo e fixando uma re- (à qual Lacan chama de Lei ou Nome do pai) lação de natureza diádico-fusional da crian- no romance simbiótico entre a mãe e a crian- ça com a mãe, excluindo, assim, a importân- ça. A segunda razão, em se tratando de me- cia do pai. nino, é que faltará a este um modelo de • Nestes casos, é fácil perceber, na clínica, que identificação masculino, que possa ser esta mãe simbiotizadora – que não renuncia introjetado com admiração. Estas possibili- ao seu desejo de manter uma eterna gravi- dades encontram respaldo em Freud, que em dez – tenta cimentar a posse exclusiva de seu Leonardo... afirma textualmente que: Assim, filho, por intermédio dos seguintes recursos como todas as mães insatisfeitas, ela tomou inconscientes:1) Toma o filho como um mero o filhinho em lugar do marido, e, pela prolongamento de seu próprio narcisismo maturação demasiado precoce do erotismo (no dizer de Lacan, delega ao filho a obriga- dele, despojou-o de parte de sua masculini- ção de cumprir o papel de representar o falo, dade. ou seja, o poder que ela almeja). 2) Por meio • As principais causas que concorrem para a de uma precoce erotização, a mãe fortalece exclusão do pai são as seguintes: 1) O pai se a ilusão onipotente do menino de que ele já mantém física e geograficamente muito afas- é uma pessoa adulta (isto estrutura um falso tado do lar. 2) Ele é exageradamente frágil e self) e que ele substitui, com vantagem, ao dominado pela mulher, ou excessivamente pai. 3) Esta exclusão do pai no psiquismo da tirânico. 3) No entanto, a principal causa é criança – especialmente nos meninos – é de quando a imagem do pai, apesar de seus es- fundamental importância na estruturação de forços, é denegrido pelo discurso da mãe na uma homossexualidade. 4) Para manter a determinação dos valores do filho. Com ou- garantia da posse do seu filho – com uma tras palavras, a imagem que a criança intro- finalidade daquilo que eu costumo nominar jetará da figura do pai é a mesma que esta de seguro solidão – esta mãe utiliza inúme- tem do seu marido. ros recursos inconscientes, como injeção de • A conseqüência maior da manutenção desta culpas, chantagem afetiva, desqualificação díade fusional simbiótica é o fortalecimento dos valores adultos, duplas mensagens, etc., e a persistência do estado mental que pro- a fim de perpetuar uma infantilização do seu pus denominar posição narcisista (ver capí- filho. 5) Um outro custo é o fato de que a tulo 13), da qual, entre muitas outras condi- criança – futuro adulto – hipertrofia o papel ções psíquicas, faz parte a, assim denomina- que lhe foi imposto de ser o principal desejo da por Bion, parte psicótica da personali- dos desejos da mãe, assim como também dade. costuma haver um continuum confusional • Nesta última vai acontecer que a criança não entre o corpo da mãe e do filho, ou filha (J. suporta frustrações; em conseqüência vai haver a hipertrofia as pulsões agressivo-des- 268 DAVID E. ZIMERMAN

trutivas, com a séria decorrência futura da dência que ela acarreta, mas principalmente contração de vínculos sadomasoquistas; para pela ameaça de uma desorganização do ego livrar-se dos conseqüentes sentimentos e – está intimamente ligado à estrutura narci- angústias intoleráveis, a criança utiliza ex- sística. Portanto, mais do que a angústia de cessivamente o recurso das identificações castração, estamos aqui enfatizando a pre- projetivas; ao mesmo tempo ela desenvolve sença da angústia de desamparo e desvalia; um horror ao conhecimento das verdades mais do que a problemática dos desejos, penosas, tanto as externas como as internas impõe-se a das necessidades básicas; mais (-K, de Bion); assim a criança incrementa a do que uma dolorosa frustração decorrente onipotência por meio da qual ela faz uma da exclusão da criança do triângulo edípico, negação dos limites, das limitações, do re- estamos aludindo à questão essencial da so- conhecimento das diferenças e tende a abo- brevivência psíquica e à constituição do ego, lir as dimensões do espaço (confunde-se com seus limites e sua identidade primitiva como outro) e do tempo (independentemen- e corporal. te de sua idade cronológica conserva a fan- • Creio que se pode dizer que virtualmente tasia de seu privilégio de funcionar na vida todos os pacientes homossexuais apresentam com o primitivo princípio do prazer- transtorno do narcisismo, ou seja, eles ne- desprazer). Esta onipotência impede o in- cessitam do outro (o seu “duplo”) para que gresso na “posição depressiva” e, conseqüen- este último funcione como um espelho, um temente, inibe a capacidade para pensar e suporte identificatório e como um reassegu- formar símbolos; a necessária “aprendiza- ramento de que ele, de fato, existe! gem com as experiências” (termo de Bion) Em resumo, pode-se dizer que o narcisismo não fica substituída por uma omnisciência, en- é somente uma etapa do desenvolvimento do ser quanto que a negação do sentimento de de- humano; ele é também um modelo de estrutura psí- pendência, fragilidade e inermia cede lugar quica, uma modalidade de vínculo em um registro a uma prepotência (pré-potência). imaginário, que poderá operar ao longo de toda • Podemos ir mais longe e afirmar que é a aqui- vida, inclusive na escolha homossexual de obje- sição da posição depressiva que determina e tos. inaugura o complexo de Édipo. De fato, en- Da mesma forma, a passagem pela conflitiva tre outros aspectos inerentes a essa posição, edípica promove a introdução do registro simbóli- vale destacar que é ela quem possibilita à co, o qual poderá atenuar ou modificar o registro criança a discriminar e separar-se do objeto, das ilusões imaginárias, porém nunca conseguirá acabar totalmente com elas. ganhando para si e concedendo para o outro O certo é que ambos os registros – o narcísico e uma relativa autonomia, assim efetivando um o edípico – permanecem em constante interação, reconhecimento da existência real do pai no em cuja intersecção ora há a predominância de um contexto edipiano. deles (a solução exitosa da conflitiva edípica per- • Nos indivíduos em que existe uma manuten- mitirá o ingresso na genitalidade adulta) ora de ção predominante da “posição narcisista” vai outro (uma fixação predominante na posição nar- acontecer um sério distúrbio na construção cisista reterá o sujeito numa pré-genitalidade, que, do sentimento de identidade, de tal modo por sua vez, pode condicionar uma estruturação de que, na tentativa desesperada de manter o natureza homossexual) . ameaçado sentimento de identidade, o sujeito pode usar a sexualidade, tanto a homo como a heterossexual, como uma droga, assim con- INTERSECÇÕES ENTRE NARCISO E ÉDIPO figurando aqueles casos que J.McDougall Como já foi assinalado, a própria obra de Freud (1978) denomina como sexo-adictos. permite observar uma íntima conexão entre o nar- • Da mesma forma, a angústia de desamparo cisismo original de “sua magestade, o bebê” com (Hilflosigkeit é o nome original, utilizado por as diversas formas da configuração edípica. Como Freud) – a angústia mais temida, não só pela este assunto referente às intersecções entre Narci- razão da falta de apoio e de extrema depen- so e Édipo demandaria um espaço extenso, vou, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 269 aqui, me restringir à ilustrações contidas em algu- quanto a regressiva – de Édipo a Narciso – e, mui- mas passagens míticas. to particularmente para a observação do oculto e Assim, uma atenta observação do original con- latente ego narcísico que está encoberto pela ma- texto histórico da tragédia edípica permite verifi- nifesta, e às vezes enganadoramente florida confi- car que o homossexualismo, com a conseqüente guração manifestamente edípica. maldição e punição, precedem o incesto e o parricídio, portanto em contraposição ao que ge- ralmente se pensa. Destarte, no mito, Laio foge de PRÁTICA PSICANALÍTICA Tebas para Élida, onde é afetuosamente acolhido pelo rei Pélope, cujo filho, Crísipo, estabelece um Na atualidade a psicanálise tem aberto as suas enorme amor homossexual com Laio. A descober- portas para um contingente de pacientes bastante ta desse amor proibido e repudiado acarreta con- regressivos, como costumam ser os psicóticos, bor- seqüências trágicas: Crísipo suicida-se; Pélope, derline, caracteropatas, somatizadores e, dentre ferido, traído e humilhado diante tamanho opróbio outros mais, também os portadores de alguma for- roga aos deuses do Olimpo uma vingança contra ma de perversão, como eventualmente pode ser Laio; os deuses o atendem e impõem a Laio o des- algum tipo de homossexualidade. Tudo isso con- tino trágico dele ser assassinado pelo seu próprio verge para o fato de que se impõe ao psicanalista a filho, Édipo. Como se pode perceber, toda a tragé- necessidade de trabalhar com os conflitos mani- dia começa com homossexualismo... festos – incluídos naturalmente os hetero e os ho- Ainda em relação ao mito de Édipo, vale trans- mossexuais – em uma dimensão que precede e vai crever esta bela passagem que Fairbairn (1975) nos muito além da conflitiva do conflito edípico típi- brinda e que tão bem ilustra o que aqui estamos co. Ou seja, é imprescindível que tenhamos um enfocando: “É notável que o interesse psicanalíti- profundo conhecimento da normalidade e da pato- co sobre a clássica história de Édipo tenha se con- logia do narcisismo, e as influências do mesmo na centrado sobre os atos finais do drama. No entan- estruturação edípica, sendo que a recíproca tam- to, como uma unidade, é importante reconhecer bém é verdadeira. que Édipo que mata a seu pai e desposa sua mãe Na situação psicanalítica propriamente dita, começou sua vida exposto em uma montanha, e vale fazer alguns registros relativos aos diversos assim esteve privado de cuidados maternais (o grifo elementos que compõem a vincularidade do cam- é meu) em todos seus aspectos, durante uma etapa po psicanalítico. na qual sua mãe deveria constituir-se no seu obje- to essencial e exclusivo”. No entanto, parece-me que é no mito de Narci- Setting so, que aparece mais claramente a continuidade e ponto de intersecção entre Narciso e Édipo, tanto que em ambos mitos aparece a figura do cego pro- A primeira pergunta que se impõe é se faz al- feta Tirésias como que estabelecendo uma cone- guma diferença o psicanalista que vai tratar um caso xão, ao mesmo tempo em que o final do drama de de homossexualidade ter o mesmo sexo biológico Narciso permite entender que é necessário que ele de seu paciente ou se é mais adequado que seja do (a díade fusional) morra, para que de sua morte oposto. No caso do homossexual masculino, sem- nasça Édipo com a respectiva triangularidade, que pre predominou a opinião de que seria mais indi- pressupõe a existência e o reconhecimento de um cado um psicanalista homem, pela simples razão terceiro, inicialmente o pai. Com outras palavras, de que ele funcionasse como um novo modelo de no mito de Narciso, o que prevalece não é tanto o identificação masculina, virtualmente sempre amor por si próprio, mas, sim, uma con-fusão com faltante nesse paciente. Embora na atualidade a a mãe (identificação primária de Freud) e a falta de maioria dos autores considere que o mais impor- discriminação e de consideração pelos demais, en- tante é o estabelecimento de uma neurose de trans- quanto que em Édipo já há o reconhecimento de ferência e que esta vai independer do sexo do ana- um outro e a capacidade de diferenciação com os lista, eu particularmente inclino-me a acreditar na demais. possibilidade de que a análise com um paciente É óbvio que os exemplos que inter-relacionam homossexual masculino progride mais exitosa- Narciso e Édipo poderiam se multiplicar, porém o mente com uma psicanalista mulher, pelas razões importante, na prática analítica, é considerar a pas- atrás expandidas acerca da existência de um primi- sagem, tanto a progressiva – de Narciso a Édipo – tivo e esterilizador vínculo simbiótico com a figu- ra da mãe. 270 DAVID E. ZIMERMAN

O setting propicia um novo espaço onde as pri- do paciente, que sejam de natureza homossexual. mitivas experiências patogênicas com a mãe pos- Uma outra contra-resistência temível alude à con- sam ser reexperimentadas e re-significadas com a tração de conluios inconscientes com o paciente, figura real de uma mulher. como pode ser exemplificado com a construção de Da mesma forma, caberia perguntar se um ana- – um nada incomum – vínculo baseado em uma lista preconceituoso em relação ao problema da recíproca fascinação narcisista. homossexualidade reúne condições para analisar exitosamente um paciente homossexual. Ainda em relação ao setting, é necessário des- Transferências tacar a importância da preservação das combina- ções instituídas porquanto tais pacientes tendem a Toda transferência tem, no mínimo, um resto induzir a alterações e à busca de privilégios, en- narcísico, da primitiva unidade da díade simbiótica. quanto o analista deve ter claro para si que é fun- A análise da transferência visa permitir a separa- damental que esse paciente desenvolva a capaci- ção deste objeto de necessidade, para constituí-lo dade para tolerar frustrações e para aceitar seus li- como um objeto de desejo, edípico. Há, portanto, mites e limitações. Esta última afirmativa está res- uma diferença entre a transferência narcísica de paldada na habitual observação de que a criança colorido erótico e que guarda uma natureza espe- não suporta que não haja o estabelecimento de li- cular (com a constante busca do seu duplo) e a trans- mites; ela sente-se desamparada e recai em uma ferência erótica propriamente dita, com desejos de intensa angústia. Assim, é fundamental a função cunho edípico triangular, não sendo incomum que do setting de definir os lugares e os papéis do ana- ambas as formas se superponham e se alternem. lista e do paciente, estabelecendo as devidas dife- Um aspecto particularmente importante é aquele renças. que diz respeito ao fato de que uma transferência positiva pode, na verdade, estar sendo não mais do que uma transferência idealizada, em cujo caso a Resistências fé do paciente ocupa o lugar da confiança básica e a sugestão do terapeuta substituir o penoso – po- A principal resistência nos casos de homos- rém imprescindível para o analisando – processo sexualidade parece não ser tanto a oposição a um de pensar as experiências emocionais do vínculo acesso às repressões edípicas com as correspon- analítico e que estão reproduzindo similares expe- dentes fantasias ligadas à cena primária, como ha- riências antigas e novas. Em contrapartida, a trans- bitualmente era entendido, quase que de forma ex- ferência de aparência negativa pode estar repre- clusiva, pelos psicanalistas. Pelo contrário, nestes sentando um movimento altamente positivo para a casos a resistência costuma estar muito mais liga- análise, isto é, uma sadia e mais confiante tentativa da a um aferramento a essa suposta conflitiva edí- de romper com os estereotipados vínculos de do- pica, como um véu encobridor e protetor das ilu- mínio, posse, especularidade e falsidade. sões próprias do mundo narcisista que tal paciente, Tão importante como a atividade interpretativa inconscientemente (e muitas vezes também cons- é o fato de que o analista consitua-se como um novo cientemente), procura manter a todo custo. objeto para o paciente homossexual. Um novo ob- Para manter a autarquia de suas ilusões narci- jeto que, diferentemente de seus pais originais, pre- sistas, uma das formas de resistência que este ana- encha no mínimo as seguintes condições básicas lisando utiliza com freqüência é a de um ataque no vínculo analítico: não seja demasiado frágil ou aos vínculos perceptivos (termo de Bion), tanto os “bonzinho” e tampouco por demais rígido e dele próprio quanto os de seu analista, a serviço de diretivo; que sobreviva (não ficar deprimido ou um “-K”, e para tanto é comum que o paciente con- arrasado) aos ocasionais ataques de ódio, controle siga despertar um certo estado confusional no tera- onipotente, triunfo e desprezo; que não se deixe peuta. enredar nas malhas de um envolvimento sedutório e, portanto, que não entre no jogo dos actings e contra-actings; não proceda a retaliações, que Contra-Resistência muitas vezes estão disfarçadas por interpretações superegóicas ou ameaças veladas; propicie a for- Uma contra-resistência importante é a possi- mação de neo-identificações e neo-significações; bilidade de que o analista desenvolva uma atitude facilite o processo de dessimbiotização, com vis- fóbica em relação aos movimentos aproximatórios tas a desenvolver no paciente as capacidades de FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 271 discriminação, diferenciação, separação e aquisi- tado por uma erogeneidade equivalente da mãe, ção de um sentimento de identidade; que não re- inclusive com disfarçadas carícias físicas por parte ceie impor as inevitáveis frustrações ao paciente, de ambas. Ao mesmo tempo este vínculo mãe-fi- desde que essas não sejam por demais escassas, lha fica impregnado de uma forte ambivalência, tin- nem excessivas e tampouco incoerentes; acima de gida com aspectos sadomasoquísticos, porquanto tudo, no entanto, é imprescindível que o analista nesses casos o apego narcisístico é inseparado da possua a capacidade de rêverie, de modo que te- rivalidade edípica com a “ mãe-bruxa” na disputa nha condições de conter as maciças cargas de iden- pelo pai. tificações projetivas do paciente, ou a actings preocupantes, sem ter de apelar para uma uma medicação (quando esta é desnecessária e só serve Contratransferência para acalmar a ansiedade do terapeuta) ou resistir à tentação de encaminhar para um outro colega, e As pessoas homossexuais, via de regra, notabi- assim por diante. lizam a sua vida afetiva por vínculos carregados de Enfim, o analista no seu papel de um “novo uma extrema sensibilidade às frustrações, um pâ- objeto” deve exercer a função-alfa, a qual, segun- nico de abandono e uma forte tônica sadomaso- do Bion, visa propiciar ao paciente que as suas for- quista, manifesta ou disfarçada, às vezes cabendo tes ansiedades inonimadas (o “terror sem nome” o papel de sádico a um do par e o de masoquista ao de Bion) sejam acolhidas, pensadas, significadas, outro, ou mais comumente tais papéis se alternam adquiram um sentido e uma nominação, para só entre eles. Embora nem sempre seja assim, e mui- então serem devolvidas ao paciente, em doses ade- tas vezes um casal homossexual adquira harmonia quadas, sob a forma de interpretações. e estabilidade, nos casos mais extremos há um per- Um outro aspecto que julgo muito importante manente risco de atuações masoquistas de alto ris- no que diz respeito ao entendimento e ao manejo co, às vezes trágicos. por parte do analista em relação à transferência de Por tudo isto, é fácil perceber que tamanhas um paciente homossexual é o fato de que ele tanto cargas de necessidades, com subjacentes ansieda- vai ocupar o lugar da transferência materna (exer- des primitivas de desamparo e aniquilamento e com cendo uma maternagem nos moldes acima actings por vezes muito graves, venham a provo- explicitados, complementando e suplementando car fortes impactos contratransferenciais, os quais funções egóicas que faltam ao paciente), como tam- tanto podem se constituir em enredamentos pato- bém o terapeuta deve encarar a transferência pa- lógicos, como também podem servir como uma terna, de modo a que se forme um curioso parado- excelente bússola empática para o psicanalista. xo: o analista, na função de pai, vai frustrar, se in- Neste último caso, pode servir como exemplo terpor e interditar o apego provisoriamente a possibilidade de o terapeuta entender que, por simbiótico que ele próprio aceita quando no papel meio de atuações, somatizações e difíceis efeitos transferencial de “mãe-continente”. contratransferenciais, o seu paciente homossexual Uma observação mais atenta em um grande esteja utilizando uma primitiva forma de comuni- número de casos de homossexualidade que tenho cação não-verbal, com a esperança que o analista acompanhado em supervisões me faz inclinar pela descodifique e o ajude a pensar aqueles sentimen- hipótese de que nos casos masculinos acontece a tos e angústias que ele nunca foi capaz de reme- constelação familiar antes referida quanto à exclu- morar ou pensar. são do pai, enquanto que na homossexualidade fe- Um aspecto que me parece útil consignar é o minina a predominância é a de um pai sedutor – e que diz respeito ao fato de que esse tipo de pacien- seduzível –, o que obriga a menina a fugir do hor- te pode provocar no analista uma forte sensação de ror do incesto e a refugiar-se na mãe. desconforto, como se este o estivesse decepcionan- Habitualmente nestes casos, também o pai ne- do e fraudando. Isto se deve à identificação proje- cessita fugir do pavor de um envolvimento edípico- tiva, dentro do psicanalista, de uma mãe narcista incestuoso, o que ele faz por meio de um distan- que enganou o filho, por fazê-lo crer como sendo ciamento da filha, físico ou afetivo, e assim refor- realidade aquilo que na realidade não passava de ça o apego narcísico-simbiótico dela com a mãe. meras ilusões infantis. Resulta daí uma dupla complicação na relação da filha com a mãe, em moldes de um retorno à posi- ção narcisista: assim, o erotismo da menina, que foi originado nas fantasias com o pai, fica incremen- 272 DAVID E. ZIMERMAN

Atividade Interpretativa Portanto, as interpretações para os pacientes homossexuais devem ter por objetivo, acima de A primeira observação que necessita ser feita é tudo, auxiliar no processo de des-simbiotização, a de que comumente o psicanalista deixa-se atrair por meio das des-identificações, seguidas de neo- e seduzir pelo belo e convincente “material sexu- identificações, a partir do modelo da função-alfa al” trazido pelo paciente e que parece estar “pe- do seu analista, para a construção de um verdadei- dindo” para ser interpretado num plano edípico. É ro senso de identidade. possível que em muitas ocasiões tais interpretações satisfaçam ambos do par analítico, porém é possí- vel que elas resultem inférteis porquanto a aludida Elaboração sexualidade edipiana pode estar fortemente anco- rada em fixações narcisistas não resolvidas. É muito difícil para este tipo de analisando a Da mesma forma, creio ser recomendável que aquisição de um autêntico crescimento mental e de o psicanalista não se detenha prioritária e sistema- uma sólida identidade de gênero sexual, como fru- ticamente na interpretação única dos conflitos re- to de um trabalho de elaboração de sucessivos sultantes dos desejos e fantasias sexuais, com as insights parciais, porquanto tudo isso implica sen- angústias correspondentes. Também é desejável que tir uma profunda dor psíquica. Talvez não haja dor a atividade interpretativa dirija-se à forma como o mais difícil de suportar do que aquela que implica analisando utiliza os seus recursos de ego; como ter que renunciar às ilusões do mundo do “faz-de- ele pensa as suas experiências emocionais, mais conta” e, assim, ingressar na posição depressiva.. diretamente, aquelas que estão associadas com a Não se trata unicamente de sentir a dor, mas angústia do desamparo; como ele utiliza a sua fun- principalmente, como ensina Bion, da capacidade ção K ou -K diante das penosas verdades internas e de sofrer a dor, tendo em vista que o paciente ho- externas; o seu juízo crítico; a sua capacidade de mossexual radicado na posição narcisista deve subs- fazer discriminações; as conexões que ele estabe- tituir a sua habitual atitude de evadir as verdades lece eentre partes contraditórias de sua personali- pela de enfrentá-las. Da mesma forma deverá fa- dade e assim por diante. zer a reposição dos papéis dos pais (no caso da Assim, cabe dizer que necessidades pulsionais homossexualidade masculina, provavelmente nem podem ser satisfeitas; conflitos inconscientes po- a mãe era tão “santa” como inicialmente costuma dem ser resolvidos por meio de interpretações; estar inscrita na realidade psíquica do paciente ho- porém os vazios existenciais exigem algo mais do mossexual e nem o pai era tão tirano, devendo os que unicamente interpretações: exigem o preenchi- seus aspectos positivos ser resgatados). mento dos “buracos negros” emocionais, bem como Igualmente, a costumeira onipotência desses a suplementação de funções do ego que não foram pacientes deverá ser substituída pela capacidade suficientemente desenvolvidas devido ao fracasso para pensar; a omnisciência deve ceder lugar ao da função de rêverie da mãe. “aprendizado com as experiências”; no lugar da Em relação à interpretação propriamente dita, prepotência o paciente deverá reconhecer que a é útil destacar o risco de o analista fugir da paixão mesma mascara uma pré-potência, ou seja, ele terá homossexual do paciente do mesmo sexo, por meio que fazer um doloroso contato com a sua parte frá- de interpretações que precocemente remetem às gil, desamparada e cheia de crateras emocionais. figuras do passado edípico aqueles sentimentos e Somente a partir destas transformações é que o desejos sexuais que estão sendo diretamente diri- analisando homossexual poderá substituir a díade gidos para o terapeuta. Pelo contrário, o psicana- simbiótica com o seu “duplo” por uma triangu- lista deve reunir condições de “conter” todas as laridade edípica em que há o reconhecimento e a demandas passionais de seu paciente homossexu- valorização de um terceiro, e, a partir daí, fazer al, venham elas como vierem, e “sobreviver” a to- livremente a sua opção de escolha do objeto de sua das elas, de uma forma bem diferente daquela que sexualidade. os pais do paciente utilizaram. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 273

CAPÍTULO resistencial/contra-resistencial de um determinado paciente com um determinado analista. O quarto autor que embasa esse capítulo é J. Steiner (1981), com a sua conceituação de “orga- nização patológica”, que será detalhada mais adian- 24 te. Outra consideração necessária aqui, é o fato de que as influências recíprocas entre a teoria, a téc- nica e a prática da psicanálise têm promovido avan- ços, modificações, bem como o aporte de novos e Pacientes de Difícil Acesso diferentes vértices de compreensão e de aborda- gens do paciente. A partir dessa perspectiva histó- rico-evolutiva, concordamos todos com o fato de que os mesmos pacientes, hoje naturalmente aces- A definição de “paciente de difícil acesso” síveis ao método analítico, seriam considerados de (PDA) é complexa, tanto conceitual como clinica- difícil acesso ou não-analisáveis pelos analistas mente, e, com o propósito de melhor precisá-la, pioneiros. vou tomar como pontos de referência conceitos de Nessa linha de reflexão, pode-se dizer que, hoje, quatro estudiosos do assunto. muitos pacientes rotulados como de difícil acesso Pertence a Betty Joseph (1975) a expressão por um determinado analista, possam não sê-lo para “PDA”, com que se designa um tipo de analisando outro, e vice-versa; da mesma forma como muitos que usa maciçamente o recurso da dissociação, pelo outros analisandos que parecem ser de fácil aces- qual a parte realmente “paciente” do paciente, ou so, na verdade, podem estar conluiados com seu seja, a criancinha frágil, dependente e cheia de an- analista em uma análise inócua. Em razão disso, gústias e necessidades fica esplitada no campo ana- talvez o melhor critério seja não o de prejulgar o lítico e, por isso mesmo, torna-se de acesso muito paciente, mas, sim, o de experimentar tratá-lo – difícil às interpretações do analista. A autora con- dentro de requisitos mínimos, é óbvio – levando sidera que essas partes dissociadas devem ser pro- em conta que a acessibilidade só poderá ser curadas nos diferentes esconderijos, apontando os estabelecida com a própria marcha da análise e a principais modos de ocultamento. definição de quem será o seu analista. Joyce MacDougall (1972), por sua vez, deno- Aqui, apesar de levar em conta a possibilidade mina de “casos difíceis” aqueles que apresentam de que o difícil acesso possa aparecer em todos os sérios obstáculos ao processo analítico. Isso ocor- níveis da estruturação da personalidade, vou me re em pacientes que são portadores de um tipo e deter particularmente nos analisandos mais regres- grau de organização defensiva que resulta em uma sivos, com fixações patológicas pré-genitais, de caracterologia muito difícil de ser modificada, pelo prevalência simbiótico-narcisista. Na clínica, tra- fato de que esta lhes serve de proteção contra pri- ta-se de pacientes com organização borderline da mitivas – e terríveis – ansiedades de aniquilamen- personalidade; os de organização perversa; os de to do self. A tenaz resistência às mudanças estrutu- personalidade exageradamente narcisista; os de rais, e daí o difícil acesso analítico, deve-se a que, sérias dificuldades na representação de si mesmos; antes de viver a vida, tais pacientes precisam é ga- os de conduta anti-social; os drogadictos; os rantir o seu sobreviver psíquico. psicossomatizantes, os deprimidos crônicos; os O terceiro referencial para caracterizar PDA é pacientes definidos por MacDougall como os baseado em Etchgoyen (1987), em relação a como “antianalisandos”; e aqueles pacientes portadores ele diferencia os conceitos de acessibilidade analí- de uma “organização patológica” que sabota o tica e o de analisabilidade. Para o autor, o critério crescimento mental do sujeito. de analisabilidade diz respeito unicamente à pes- Sabemos que esses quadros clínicos se super- soa do paciente, especialmente quanto ao seu diag- põem, mas, respeitando os diferentes graus de re- nóstico clínico e a uma previsão prognóstica, inde- gressão ou detenção evolutiva, bem com as peculia- pendente de quem será seu analista. Acessibilida- ridades típicas de cada um, creio ser possível tra- de, por sua vez, é um critério de natureza vincular, çar um perfil clínico do PDA, como o que segue. isto é, leva em conta como será a relação analítica no campo transferencial-contratransferencial e 274 DAVID E. ZIMERMAN

CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS DO PDA transforma em ouro tudo o que ele tocava), ora como um rei Midas ao contrário. 1. A história genética mostra que houve sem- 9. A prematura incapacidade para tolerar frus- pre um precoce fracasso ambiental em re- trações gera uma hipertrofia da onipotên- lação às necessidades de apego da criança, cia, a qual, por sua vez, impede o sadio de- quer pela privação materna, quer por uma senvolvimento das capacidades de simbo- realimentação patológica da mesma. Em lizar, de pensar, abstrair e a do juízo críti- outras palavras, ou foram mães indiferen- co. tes, ou foram mães intrusivas, de uma 10. A auto-estima é regulada pelo uso de uma possessividade narcisista, com o que usa- lógica do tipo binário, excludente, na base ram seus filhos com fins exibicionistas, da preferência ou desprezo. contribuindo para que a figura do pai fi- 11. Há uma precária capacidade para tolerar casse sendo denegrida e em um papel de as verdades, especialmente acerca de si terceiro excluído. mesmo, pois a verdade lhes é uma perma- 2. Decorre daí um prejuízo na constância nente fonte de dor e, por isso mesmo, eles objetal, na construção da confiança básica mostram uma nítida preferência pelo mun- e na passagem da indiferenciação para a do das ilusões. separação e a individuação. 12. Em qualquer nível evolutivo manifesto, por 3. Tais pacientes mostram uma particular di- mais floridas que sejam as evidências ficuldade para depender – com o fim de genitais-edípicas, a fixação patológica pre- evitar novas humilhações – e para as sepa- dominante sempre é de natureza pré-geni- rações, pois estas estão sempre ligadas a tal. Narciso ocupa um espaço bem maior uma ansiedade do tipo do aniquilamento e do que o de Édipo. ao risco de cair em uma depressão anaclíti- 13. Há uma elevada tendência a actings, em ca. que sobressaem os de natureza perversa. 4. O limiar de tolerância às frustrações é bai- xíssimo e esse tipo de paciente apresenta uma notável facilidade para sentir-se de- ORGANIZAÇÃO PATOLÓGICA cepcionado. Ao sentimento de decepção segue-se o de indignação com planos de A categoria dos “pacientes de difícil acesso”, vingança, e após isso vem o sentimento de como vimos, não é claramente estruturada como desânimo e de vazio, às vezes um vazio de uma entidade única, pelo contrário, ela comporta morte. uma grande variedade de síndromes clínicas, que não necessariamente guardam uma proporção di- 5. Há um excessivo uso dos mecanismos de reta com o grau de regressividade, ou de gravida- dissociação e de identificação projetiva. O de. No entanto, virtualmente em todas essas situa- controle onipotente é um pré-requisito bá- ções clínicas, sempre está presente uma organiza- sico. ção patológica que, agindo desde o próprio self do 6. Como resultado disso, os seus inter-relacio- paciente, dificulta, ou até mesmo impossibilita, que namentos são baseados na designação de ele estabeleça um contato com a sua “parte doen- papéis predeterminados, para si e para os te”, assim podendo impedir que se processe algu- outros. ma importante mudança psíquica na sua pessoa. 7. Há uma alta prevalência pela formação de A denominação organização patológica perten- vínculos de natureza sadomasoquista. ce a J. Steiner (1981). No entanto, a essência dessa 8. Há sempre uma forte presença de elemen- organização mafiosa agindo contra a parte frágil e dependente, porém sadia, do paciente, já havia sido tos narcisistas da personalidade, portanto descrita por Rosenfeld (1971) com o nome de um exagerado amor a si próprio e, ao mes- gangue narcisista. Mais recentemente, Bollas mo tempo, um exagerado ódio a si próprio. (1997) descreveu essa subestrutura sabotadora com Daí resulta que esse paciente costuma sen- a denominação de organização (estado) fachista e tir-se ora como um rei Midas (aquele que eu mesmo me aprofundei no estudo de uma faceta dessa organização, a qual denominei contra-ego, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 275 porquanto trata-se de uma força auto-inimiga que, ram prometidos, porém lhe sonegados e rou- desde o interior do ego, age contra o prório ego do bados. sujeito, qual um “inimigo na trincheira”, por meio • Como conseqüência, a OP freqüentemente de chantagens, ameaças, sedução, engodos, boico- vem acompanhada de muitos actings, mui- tes e conluios perversos. tas vezes de natureza perversa, assim repro- De forma genérica, os seguintes aspectos me- duzindo na vida exterior o modelo próprio recem ser destacados como presentes nessa orga- nização patológica, que determinam um difícil aces- de como essa organização age no interior do so à análise: self, por meio de conluios perversos entre as distintas instâncias psíquicas. Assim, é pos- • Em termos evolutivos, essa “organização sível que elementos perversos do sujeito, patológica” (OP) tem profundas raízes nar- mercê de um jogo de sedução e promessas, cisistas, e ela costuma manifestar-se, sediada pode associar ao self libidinal, que acaba fun- entre a posição esquizoparanóide (da qual cionando como um “inocente útil”, colabo- procura fugir para evitar as ansiedades rando com a perversão (no mínimo, nas OP persecutórias dos objetos que, quando desa- há a presença de fantasias perversas, princi- fiados, tornam-se tirânicos e cruéis, amea- palmente de tipo sadomasoquista). çando o ego de uma ruptura psicótica) e a • Em resumo, na OP sempre existe, de algu- posição depressiva (da qual também procu- ma forma, a presença da “parte psicótica da ra fugir, como forma de evitar a depressão e personalidade”, com características especí- o luto). É como se levasse o sujeito a “nave- ficas, tal como foram descritas por Bion, e gar em águas neutras”, graças a uma forte constam de muitos capítulos deste livro, prin- ambigüidade, pela qual acende concomitan- cipalmente o aspecto ligado à evitação das temente “uma vela a Deus e outra ao Dia- verdades (-K), não sob a forma absoluta de bo”. “forclusão” (como nas psicoses), mas, sim, • A OP, para manter a sua coesão, pode recor- como “renegação” (a forma de negação mais rer a outras estruturas defensivas (e confun- típica das perversões). dir o diagnóstico do terapeuta) como, por exemplo, uma estrutura de natureza obsessi- va controladora, de sedução histérica, triun- MANEJO TÉCNICO fo maníaco, submissão masoquista, quere- las paranóides, etc. Em relação ao processo analítico, na situação • Clinicamente, os sintomas e sinais mais co- clínica, os seguintes pontos devem ser destacados: muns consistem numa sensação de vazio, 1. Relativamente ao setting, é imperativo le- despersonalização, confusão, falsidade, frá- var em conta que os pacientes muito regres- gil auto-estima e uma tendência à fetichi- sivos exercem pressão de toda ordem, no zação, ou seja, tendem a utilizar um discur- sentido de desvirtuá-lo. Assim, eles podem so arrogante e radical, ou alguma ideologia, usar de todas as táticas conscientes e in- algum atributo, narcisista, de beleza, poder, conscientes concebíveis, tais como coerção, fortuna ou prestígio, etc. ameaças, sedução, chantagem, alegação de Igualmente, utilizam bastante o recurso da • desamparo e pranto, promessas imperati- idealização, não como um meio transitório vas, etc., todas elas convergindo para uma para encontrar novas soluções, mas sim, à tentativa de induzir o analista a cometer moda de uma “idealização romantica”, para uma transgressão técnica. É, pois, de espe- restaurar as falhas do passado perdido. Ao cial importância que o analista, sem exces- mesmo tempo, eles costumam lamuriar e fa- siva rigidez, mantenha a neutralidade e, a zer queixas de pobreza e “des-graça” que todo o custo, preserve o setting. É parte es- resultam de um contraste com os desejos sencial do enquadre o desenvolvimento de nunca alcançados, de luxo e luxúria, que esse uma “aliança terapêutica”, sem a qual a paciente acredita convictamente que lhe fo- análise não se processará. Também é im- portante levar em conta se o paciente não 276 DAVID E. ZIMERMAN

está utilizando o setting para fins de secre- “pendular”, oscilando entre fases animado- tos gozos pré-genitais de ordem perversa, ras e outras francamente desanimadoras. ou se, da mesma forma, ele está usando a 7. Na transferência, é bastante freqüente que sua linguagem como uma forma de comu- esse paciente tente estabelecer alguma for- nicação, ou o contrário disso. É muito co- ma de conluio perverso com o terapeuta, mum que esse paciente tente fazer uma in- nos mesmos moldes das relações perver- versão dos papéis da relação analista-pa- sas que existem entre as distintas partes do ciente, e isso é uma categórica representa- seu self, o libidinal e o agressivo. ção da identificação projetiva e do contro- 8. A contratransferência, em certos períodos, le onipotente. Por outro lado, essa inver- é muito difícil, fazendo-se necessário que são de papéis deve ser bem diferenciada o analista mantenha-se alerta para não fi- de quando está a serviço do triunfo narci- car identificado de forma “complementar” sista, ou de quando se trata de uma primiti- com certos aspectos perversos do pacien- va forma de comunicação. te, de forma a evitar reforçá-los e de con- 2. Esse paciente transmite uma impresão pa- trair algum tipo de conluio resistencial si- radoxal no analista: ele é sério, está bem- lencioso, principalmente levando em con- intencionado, tem uma capacidade simbó- ta que, em um nível inconsciente, a OP faz lica, não nega totalmente a realidade e co- com que paciente utilize a análise para um mumente ele é bem-dotado de capacidades outro fim que não o de uma substancial mu- egóicas. No entanto, decorrido algum tem- dança psíquica. po, o analista percebe que ele sonega, 9. A função “continente” do analista alivia distorce e mal-interpreta a realidade, segui- bastante, mas não é a solução, enquanto o damente usando a “reversão da perspecti- paciente não internalizar suficientemente va” (Bion) diante das interpretações do essa função para que então ele possa con- analista. ter as suas próprias angústias e poder pensá- 3. Existe um sério risco de o paciente libi- las, no lugar de negar ou de atuá-las; em dinizar (até erotizar) a OP, e manter-se adic- caso contrário essa “continência” do ana- to a essa, mesmo que objetivamente não lista, pela desqualificação promovida pela mais necessite dela, sendo que os aspectos OP pode ser confundida com fraqueza do que podem ser idealizados e libidinizados terapeuta e, assim, somente servirá para re- podem ser aqueles ligados à agresssão e ao forçar as fantasias de posse onipotente des- masoquismo. se paciente. 4. Há uma clara incapacidade desse paciente 10. Na vigência da OP os pacientes têm difi- em reconhecer a sua responsabilidade, e seu culdade em reconhecer as interpretações papel, sua participação ativa, na criação de que estabelecem um “porquê” e um “para seus problemas. quê” de natureza correlacional. 5. A persistência desse tipo de resistência 11. Em relação à elaboração dos insights, que pode criar um problema insolúvel para a permitam um aprendizado, é útil o analista análise, porquanto para que o paciente con- poder discriminar a diferença entre apre- siga se libertar dessa gangue mafiosa que ender (no sentido de tomar posse e aprisio- boicota o seu crescimento, ele deve ser ca- nar, próprio da parte psicótica da OP) e paz de enfrentar o luto pela separação, re- aprender (é da parte não psicótica, e im- nunciar ao controle onipotente, de forma a plica um aprendizado com as experiências dar liberdade ao outro, ser diferente dele e emocionais, o que permite fazer modifica- não ter a sua posse. ções psíquicas). 6. Quando qualquer análise não avança, o ana- 12. Há uma clara propensão às somatizações. lista deve pensar na presença ativa de uma 13. As identificações conflitadas, mais o pre- OP naquela fase do tratamento, sendo fre- juízo na representação do self e dos obje- qüente que a análise assuma um caráter tos, resultam em um evidente transtorno do FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 277

sentimento de identidade, com uma perma- ILUSTRAÇÃO CLÍNICA nente sensação de falsidade. 14. Há um evidente predomínio de ansiedades Como ilustração, vou exemplificar com uma paranóides, manifestas ou subjacentes. Ao paciente em torno de 30 anos, instrução superior, mesmo tempo, este tipo de paciente tem casada e com uma filha menor. A motivação mani- uma profunda descrença em suas capaci- festa pela qual ela me procurou para análise era a de que o seu casamento não ia bem. Laura, como a dades reparatórias, do que resulta que ele chamarei, disse-me que ela se esforçava ao máxi- costuma negar seus sentimentos de preo- mo, fazia o possível para agradar o marido e ser cupação, de responsabilidade, de culpa e uma boa mãe, mas não era o suficiente, pois todos de amor. só sabiam criticá-la e apontar-lhe erros. Já não sa- 15. É comum que o curso da análise com tais bia mais o que fazer, estava em desespero, chorava pacientes seja pontilhado de impasses e, o tempo todo e a sua vontade era a de “largar tudo”. não é raro, a ocorrência da temível reação Com os seus familiares mais íntimos, Laura alter- terapêutica negativa. nava movimentos de submissão e de revolta, mas, 16. Em termos da relação analítica, que discri- segundo ela, quanto mais gritava, mais piorava sua minarei a seguir, é de especial importância situação em todos os lugares. Viera de um trata- registrar o fato de que há uma alta possibi- mento interrompido por “um desentendimento com a analista por causa de um assunto de dinheiro” lidade de que o PDA esteja estabelecendo (pagar ou não pagar pelas sessões a que ela não uma falsa cooperação com o seu analista. pôde vir devido a uma intercorrência cirúrgica). 17. A partir de diferentes épocas, autores e cor- Desde muito cedo, na análise comigo, a paciente rentes analíticas, os estudos sobre tais pa- desenvolveu uma forte relação transferencial, ba- cientes se complementam, se interpenetram seada em oscilações afetivas, súbitas e intensas. No e, por vezes, redundam com outros nomes curso das sessões, Laura passava de forma repenti- e abordagens. Serve como exemplo disso na da idealização ao denegrimento; do riso ao cho- o último tópico acima listado. Assim, um ro; da prolixidade ao mutismo; do elogio ao ataque mesmo tipo de pacientes que estabeleçam verbal; de uma voz amistosa para gritos coléricos; uma falsa colaboração com o seu analista, da fluência das associações para as súplicas, daí nos termos descritos por Abraham em para as queixas e dessas para as ameaças de “ter- minar com tudo”, de abandonar a análise comigo, 1919, foram reestudados a partir de outros e procurar um outro analista que “fosse mais sensí- vértices, com a denominação de pacientes vel e afetivo do que eu”. “como se” por H. Deutch (1957); de “falso Quase tudo que ela me relatava era seguido da self”, por Winnicott (1960), de “pseudoma- expressão: “não adianta, sei que não estás enten- durez” ou “caráter ocultador”, por Meltzer dendo nada”, e a isso seguia um silêncio e uma (1967); de gangue narcisista (como um postura corporal de desânimo. Mais de uma vez “self onipotente mau que ataca e não deixa levantou-se no meio da sessão e, raivosa, ia embo- aparecer o seu próprio self libidinoso”), ra sem se despedir. Em alguns momentos ela me segundo a descrição de Rosenfeld (1975); pedia um prolongamento do tempo da sessão, ou B. Joseph denominou-os como “pseudo- uma prescrição medicamentosa, ou sessões extras. cooperadores” (1975); O. Kernberg (1981) Na medida em que se sentia frustrada na maioria desses pedidos, Laura intensificou as queixas e adjetivou a “desonestidade”, a qual, quan- ameaças. Por volta do quarto mês de análise, em do é profunda e crônica, determina um di- uma última sessão da semana, cumprindo suas fícil acesso, pois prevalece uma organiza- ameaças prévias, deu o tratamento por encerrado. ção defensiva perante a vida, do tipo “não Aceitei prontamente a sua decisão e combinamos tenho mais o que perder”; etc. a liberação de seu horário, enquanto eu me perce- Como vemos, existe um polimorfismo de ma- bi, intimamente, aliviado. Mas, na noite desse mes- nifestações clínicas e, por conseguinte, também mo dia, ela me telefonou e, com voz sumida e aos comporta múltiplos manejos técnicos e, por isso, prantos, me suplicava para que eu desse um jeito talvez uma vinheta clínica possa esclarecer melhor de vê-la no dia seguinte, um sábado. Pareceu-me o tipo de vínculo que comumente se estabelece entre um desespero sincero e atendi seu pedido, sendo o analista e o “paciente de difícil acesso”. que, nessa ocasião, ela me pediu uma nova chance 278 DAVID E. ZIMERMAN de prosseguir seu tratamento. Este continuou, ini- que ela vinha sentindo a vida toda. Laura me trata- cialmente, nos mesmos moldes, mas, aos poucos, à va da mesma forma como se sentia tratada pelo seu medida que ela foi estabilizando seu vínculo comi- antigo e atual meio ambiental; e ela fazia isso em go, começou a apresentar actings eróticos em uma parte por vingança, e em parte muito maior, com escalada crescente, em níveis quase degradantes, o um desesperado apelo por ser entendida e contida. que me manteve muito preocupado, pelo grau de Da mesma forma, pude compreender que Laura sérios riscos a que ela estava se expondo. Voltei a passava a maior parte de sua vida tentando se li- me perguntar se era uma paciente analisável ou pelo vrar da menina malvada e perversa que encobria menos se era acessível à minha capacidade analíti- através de uma conduta de ser boazinha e merece- ca. dora de amor. Na análise, ela estava tentando ser A partir desse claro desconforto contratrans- amada pelo que realmente era e experimentava es- ferencial, passei a refletir mais profundamente so- capar da escravidão de passar toda sua vida apa- bre o que estaria acontecendo conosco. Revisei a rentando ser o que ela não era de verdade. Na es- minha impressão diagnóstica inicial, que era o de calada dos actings, forçou uma separação do - uma personalidade histérica mais centrada em con- do, em uma atitude estranha e incompreensível para flitos edípicos, e concluí que essa caracteropatia todos os seus familiares e amigos. Entendi que esse era apenas uma camada de funcionamento enco- acting, antes de uma expiação masoquista, estava bridora de uma estrutura psíquica muito regressi- servindo como uma inelutável necessidade de rom- va, no nível de uma primitiva, e falha, ligação com per com uma estrutura simbiótica e começar a ex- a mãe. perimentar o uso de suas capacidades – especial- Também me ficou claro que a análise não teria mente a de estar só – e, a partir daí, refazer o vín- condições de prosseguir nas minhas condições culo conjugal em outras bases, o que de fato ocor- contratransferenciais e eu teria de optar por uma reu alguns meses após. Gradativamente, Laura foi dessas três alternativas: propor a interrupção da parando de atuar fora e foi modificando sua atitu- análise comigo; introduzir parâmetros de um sen- de dentro das sessões, no sentido de tolerar menos tido mais psicoterápico, limitador e diretivo, ou a dramaticamente as frustrações, de ligar-se às mi- de mergulhar junto com a paciente nas águas fun- nhas interpretações e responder com associações, das de seu poço, inconscientemente sentido por ela inclusive as evocativas de suas primitivas vivências. como escuro e lamacento. Pesei o fato de que, ape- Aos poucos, o processo analítico começou a se sar de tudo, Laura era assídua, pontual, estava afer- desenvolver em um ritmo regular, próprio dos pa- rada à análise e, sobretudo, estava sendo honesta cientes de organização neurótica, porém entremea- na dramatização de sua grave regressão. Refleti no dos por alguns episódios de “psicose de transfe- fato de que durante meses ela fizera suas sessões rência” (conforme Rosenfeld, 1989), os quais, sig- sentada, e só decidira passar ao divã quando se as- nificativamente, surgiam em períodos coinciden- segurou de que não estava se submetendo a algum tes com algum expressivo êxito seu. mandamento ou desejo de minha parte. A paciente Durante esses episódios, que duravam de dias deveria estar necessitando de, mais do que um ana- a semanas, Laura me atacava, ameaçava e me cul- lista fazendo interpretações corretas, que eu tam- pava, baseada em argumentos que nada tinham a bém preenchesse uma função que a mãe, especial- ver com a realidade factual, mas, sim, com a sua mente, não conseguiu preencher, ou seja, a função realidade psíquica invadida por objetos supe- de ser continente de suas necessidades, desejos e regóicos tirânicos, que compunham uma “organi- angústias, e que eu sobrevivesse aos seus ataques zação patológica”, a qual, funcionando de uma for- sem fugir ou me confundir com ela. Também per- ma “contra-egóica”, impediam o crescimento da cebi que sua freqüente exclamação de que eu não a sua análise e, portanto, o seu crescimento pessoal. estivesse entendendo não se devia tanto a um ata- O presente relato não teve a pretensão de estu- que contra mim, mas, antes, era um pedido de so- dar a genética e a psicodinâmica de um caso clíni- corro e uma forma primitiva de me comunicar que co, mas tão somente a de ilustrar a relatividade do a mãe, fora e dentro dela, desde sempre, fora surda critério de analisabilidade. Estou convicto de que, aos seus sinais de desespero. Assim, sua conduta há alguns anos, em que era menor a minha expe- das sessões, de desprezo ao analista, e seus actings riência, eu teria rotulado o caso de impossível aces- de natureza maligna, estavam se constituindo em so à abordagem analítica, pelo menos para mim, o uma forma de linguagem não-verbal, pelo recurso que, aliás, é o que me teria ocorrido, não fora a de fazer com que eu me sentisse preocupado, des- tenacidade e coragem de Laura. prezado, humilhado e impotente, ou seja, tudo o FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 279

PARTE 4

Técnica

CAPÍTULO ra, sempre, a uma única entrevista prévia à efe- tivação do contrato analítico, ainda que muitas ve- zes possa ser assim; porém, em muitas outras situ- ações, essa necessária avaliação pode demandar um período algo mais longo com um número bem maior 25 de contatos preliminares. Por essas razões, penso que a denominação mais adequada seria a de “en- trevistas de avaliação” ou “entrevistas prelimina- res”; no entanto, a terminologia de “entrevista ini- cial” já está consagrada na literatura psicanalítica Entrevista Inicial: Indicações e por isso será a empregada no presente texto. Inicialmente, é útil estabelecer uma diferença e Contra-Indicações – conceitual entre entrevista inicial e primeira ses- são. A(s) entevista(s) inicial(ais) antecede(m) o O Contrato “contrato”, enquanto o termo “primeira sessão” já alude ao fato de que a análise já começou formal- mente. Esta última palavra aparece grifada com o intuito de deixar claro que o vínculo analítico prin- Antes de assumir a responsabilidade formal de cipia já nas primeiras aproximações – em um esta- tomar uma pessoa para um tratamento psicanalíti- do de “pré-transferência” – que, inclusive, já prin- co – portanto, fica previamente sabido que este cipia desde o telefonema do pretendente à análise deverá ser de duração de muitos anos e de uma para um primeiro contato, independentemente da trajetória que inevitavelmente passará por perío- efetivação, ou ainda não, das indispensáveis com- dos difíceis, de muitos imprevistos, incertezas e binações contratuais. sofrimentos –, o psicanalista deverá ter uma idéia É claro que a duração da entrevista inicial de- razoavelmente clara das condições psíquicas e prag- pende das circunstâncias que cercam o encaminha- máticas que tanto ele como o pretendente à análise mento do paciente, de modo que é muito diferente possuem antes de enfrentar uma empreitada de ta- se ele já tem uma idéia razoavelmente clara do que manha envergadura. consiste uma análise, com a probabilidade de que Caso contrário, isto é, se não houver um míni- tenha sido avaliado por um colega reconhecidamen- mo necessário de medidas cautelatórias prelimina- te competente, e que este já tenha feito uma sonda- res, paralelamente aumentará o risco de que, mais gem e troca de idéias com o analista para quem ele cedo ou mais tarde, surja um fracasso do processo está encaminhando; ou se trata de um paciente que psicanalítico, o que representa uma séria frustra- não foi avaliado por ninguém, unicamente quer li- ção não só para o analista, mas, principalmente, vrar-se dos sintomas que o atormentam e não tem a para o paciente, com todas as conseqüências imagi- menor idéia do que é enfrentar uma análise stan- náveis. dard. O objetivo do presente capítulo consiste justa- No entanto, em qualquer dos casos, é impres- mente em enaltecer a importância da, assim cha- cindível esse contato prévio, até mesmo pela sin- mada, “entrevista inicial”, considerando separada- gela e, ao mesmo tempo, profunda razão de que mente a sua conceituação, finalidade, projeto tera- tanto o analista quanto o paciente têm o pleno di- pêutico e o procedimento do analista. Pelo fato de reito de decidirem se é com essa pessoa estranha estarem intimamente conectados com esses men- que está à sua frente que cada um deles, reciproca- cionados aspectos, também serão enfocadas as in- mente, quer partilhar um longo, profundo e im- dicações e contra-indicações para um tratamento previsível convívio e contato íntimo. Isso está de psicanalítico de escolha, bem como as condições e acordo com a palavra “contato” que em nosso idio- peculiaridades que cercam a feitura do “contrato ma se forma de “con” (significa “junto com”) + analítico” entre o paciente e o psicanalista. “tato” (trata-se de um “pele a pele” emocional, que tanto pode evoluir para um rechaço quanto para uma empatia), ou seja, alude a como, mutuamente, CONCEITUAÇÃO cada um está “sentindo” o outro, não obstante a possibilidade, nada rara, de que o intuitivo con- A expressão entrevista inicial, embora apareça tato inicial, quer no extremo de uma alta idealização na forma singular, não deve significar que se refi- 282 DAVID E. ZIMERMAN ou de um certo denegrimento não se confirme no ca maneira que aquele encontrou para, cautelosa- curso posterior da análise. mente, abrir as portas para uma análise. Da mesma forma, a entrevista inicial também propicia a oportunidade de o psicanalista ter uma FINALIDADE DA ENTREVISTA INICIAL impressão razoavelmente segura de como o pa- ciente processa a própria comunicação entre o seu Além de algumas das finalidades acima mencio- consciente e o inconsciente, se ele reconhece que nadas, o propósito fundamental deste contato pre- está realmente necessitando de uma análise e se liminar é de o psicanalista avaliar as condições está disposto a fazer mudanças em sua forma de mentais, emocionais, materiais e circunstanciais da viver, se a sua forma verbal de comunicar é veraz, vida do paciente que lhe buscou; ajuizar os prós e ao mesmo tempo em que a comunicação não-ver- os contras, as vantagens e desvantagens, os prová- bal merece uma particular atenção do analista, além veis riscos e benefícios; o grau e o tipo da psicopa- de outros tantos aspectos que serão abordados mais tologia, de modo a permitir alguma impressão adiante. A propósito, o tipo de comunicação que diagnóstica e prognóstica e reconhecer os efeitos se estabelece entre o par analítico pode ser alta- contratransferenciais que lhe estão sendo desper- mente indicativo da personalidade do paciente, tados. Assim, balanceando todos esses fatores, po- permitindo observar de que maneira, sem se dar der discriminar qual a modalidade de terapia psi- conta, ele mobiliza nos outros efeitos iguais àque- cológica será a mais indicada para este paciente e, les dos quais ele está se queixando e dos quais se mais ainda, no caso de que a indicação for o de diz vítima. uma análise, se ele realmente se sente em condi- Por outro lado, o terapeuta deve ter uma idéia ções e se, de fato, quer ser o terapeuta deste pa- clara de seus próprios alcances e limitações. O ins- ciente. trumento de avaliação com que o analista conta, é Um outro objetivo essencial da entrevista ini- o reconhecimento do estado de sua mente, isto é, cial é a possibilidade de o analista perceber a vera- como é a sua percepção dos fatos exteriores, prin- cidade e a qualidade da motivação do paciente, cipalmente quando estes não coincidirem com os tanto aquela que ele externaliza conscientemente seus valores e crenças; qual está sendo a sua res- quanto a que está oculta nas dobras do seu incons- posta resistencial/contra-resistencial, a transfe- ciente. Em outras palavras, sem exigir um compro- rencial-contratransferencial; o pano de fundo de metimento absoluto do paciente para a árdua tare- seus conhecimentos de teoria e técnica em relação fa que o aguarda – até porque os seus, ainda desco- ao paciente que está sendo avaliado; a sua intui- nhecidos, fatores inconscientes, alguns de possível ção, empatia, e sobretudo deve levar em conta a natureza boicotadora, tornam impossível que ele sua própria angústia. Caso contrário, existe a pos- assuma um compromisso definitivo – impõe-se, no sibilidade de que, em condições mais extremas, o entanto, a necessidade mínima de o terapeuta con- analista se comporte na entrevista inicial por uma ferir se a sua teoria de tratamento e de cura coin- dessas duas formas inadequadas: um excesso de cide com a do paciente. informalismo que, muitas vezes, está correspon- De fato, não é nada incomum a possibilidade dendo a uma necessidade de seduzir ao paciente de que o analista tenha em mente um projeto tera- ou um excesso de rigidez e hermetismo que pode pêutico verdadeiramente psicanalítico, isto é, vol- estar refletindo um distanciamento de natureza tado para a obtenção de verdadeiras mudanças es- fóbica. truturais de caracterologia, conduta e o desabro- Também existe o risco de que o analista defina char de capacidades, enquanto a expectativa do a sua avaliação por uma única impressão dominan- paciente não vai além de uma busca de alívio de te: assim, por vezes, o paciente “apresenta-se” de sintomas, ou a de uma “cura mágica”, ou ainda a uma forma inicial radicalmente diferente do que de contrair um vínculo com o analista pelo qual verdadeiramente ele é. Isso pode acontecer, tanto este, qual um mero substituto de mãe simbiótica para o paciente impressionar bem ao terapeuta e ou faltante, resolverá todos os seus problemas, sem ser por este aceito (bastante comum nos casos de que ele tenha de fazer o mínimo esforço e assim falso self e de histerias), como também para im- por diante. Não obstante a possibilidade de que a pressionar mal ao psicanalista (por parte daqueles impressão transmitida pelo paciente, em relação à que são portadores de uma baixa auto-estima, com sua motivação para um tratamento analítico, possa um forte temor de rejeição, e por isso precisam tes- parecer espúria, o analista nunca deve perder de tar se eles serão aceitos, mesmo sendo portadores vista a probabilidade de que possa tratar-se da úni- daquilo que eles julgam terem de feio e mau). FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 283

Resumidamente, a finalidade maior da entre- mudaram fundamentalmente os papéis e as posi- vista inicial é avaliar a analisabilidade e a acessi- ções dos pais, muito particularmente o da mãe; no bilidade do pretendente à análise, sempre levando passado, as análises eram de duração muito mais em conta que o perfil do paciente que na atualida- curtas que as atuais; existe uma acentuada modifi- de procura tratamento psicanalítico é profundamen- cação no estilo e ideologia da educação; uma te diferente daquele que caracterizava os tempos independização mais rápida dos filhos e uma liber- dos psicanalistas pioneiros. Ao mesmo tempo, tam- tação sexual mais precoce deles; uma influência bém o perfil do psicanalista contemporâneo sofreu maciça da mídia na formação dos valores huma- profundas transformações em relação aos das ge- nos, tornando o mundo, cada vez mais, uma aldeia rações anteriores, acompanhando os passos das global; um nítido incremento da violência urbana, progressivas evoluções e novos conhecimentos da acompanhada por um permanente sobressalto quan- teoria, técnica e prática da psicanálise atual. to à insgurança, inclusive a da sobrevivência eco- Etchegoyen (1986) diferencia os significados nômica e social; uma vida mais competitiva que conceituais de analisabilidade e o de acessibilida- exige maiores e mais constantes reasseguramentos de. Baseado no conceito de “analisibilidade”, pro- narcisísticos, etc. posto por Zetzel (1956), ele considera o primeiro Enfocando mais diretamente a situação psica- como sendo o critério clássico empregado para a nalítica, pode-se assegurar que: mudaram a pato- indicação ou contra-indicação para uma análise- logia, a estrutura da personalidade e os problemas padrão, que leva em conta muito especialmente os existenciais das pessoas que procuram tratamento aspectos de diagnóstico clínico (pacientes psicóti- psicanalítico; quase não mais aparecem pacientes cos ou aqueles portadores de uma estrutura alta- portadores de quadros definidos de sintomas mente regressiva, eram virtualmente recusados, psiconeuróticos, como costumavam ser as pacien- salvo nos casos de psicanalistas investigadores, tes histéricas, os obsessivos e fóbicos “puros”, que como foram Rosenfeld, Segal, Bion, Meltzer, etc.), constituíam a clínica dos psicanalistas das primei- e os de prognóstico, em uma antecipação dos possí- ras gerações. Na atualidade, predominam os pa- veis riscos e frustrações. cientes com neuroses mistas, não tanto os que vêm Acessibilidade, por sua vez, tal como conceitua com sintomas floridos, mas, sim, com transtornos B. Joseph (1975), não valoriza sobremaneira o grau caraterológicos, mais particularmente os de natu- de patologia manifesta; assim, cabe acrescentar, a reza narcisística; aqueles que manifestam queixas impressão do analista deve ser mais o de um “diag- vagas e difusas, com uma sensação de vazio, falsi- nóstico psicanalítico” do que o de um diagnóstico dade, futilidade e dificuldade para sentir os senti- unicamente clínico, muito embora este último tam- mentos, embora comumente, com uma super adap- bém seja levado em consideração; tampouco con- tação profissional; superficialidade nas relações sidera-se a rigorosa previsão prognóstica como fa- afetivas e sociais; reações somáticas; baixa auto tor decisivo na indicação da análise como trata- estima; indefinição do sentimento de identidade, mento de escolha, porquanto a tendência predomi- sendo que nos últimos anos tem sido crescente a nante é a de deixar que a prognose seja avaliada abertura das portas da psicanálise e, por conseguin- durante o próprio curso da análise, o que, às vezes, te, a procura por parte de pessoas que apresentam revela grandes surpresas para o analista, tanto po- um funcionamento psíquico muito regressivo, como sitivas quanto negativas. é o caso de psicóticos, dos borderline, diversas Em suma, o critério de “acessibilidade” atenta formas de perversões, graves transtornos de alimen- principalmente para a disponibilidade e a capaci- tação, alguns quadros de psicopatias, pacientes dade de o paciente permitir um acesso ao seu in- somatizadores, drogadictos, graves neuroses consciente, estando o interesse maior do psicana- incapacitantes e, enfim, um grande contingente lista mais dirgido não tanto à doença, mas muito daqueles que constituem o que vem sendo denomi- mais para “sua “personalidade total”, notadamente nado de pacientes de difícil acesso (B. Joseph, à reserva das suas latentes capacidades positivas. 1975). Em relação à mudança do perfil das pessoas Uma outra finalidade da entrevista inicial, que que na atualidade procuram análise, convém assi- muitos analistas valorizam, consiste na possibili- nalar os aspectos seguintes: em termos sociológi- dade de o terapeuta poder observar, e pôr à prova, cos tem havido uma importante mudança na estru- como o paciente reage e contata com os assina- tura familiar, que, cada vez mais, vai se reduzindo lamentos, ou a eventuais interpretação que lhe se- à família nuclear, a qual vai se dipersando em um jam feitas; como ele pensa e correlaciona os fatos tempo mais breve; há um menor número de irmãos; psíquicos, se demonstra uma capacidade para sim- 284 DAVID E. ZIMERMAN bolizar, abstrair, dar acesso ao seu inconsciente, e depressivas, é útil averiguar se há na famí- se revela condições para fazer insight. Da mesma lia casos de internações, suicídios, alcoo- forma, sou dos que acreditam que a entrevista ini- lismo, prescrição de uso de antidepressi- cial também funciona como uma espécie de trailler vos...; de um filme, que posteriormente será exibido na – o grau de motivação, antes aludido, prin- íntegra; isto é, ela permite observar, de forma ex- cipalmente levando em conta se o paciente tremamente condensada, o essencial da biografia emocional do paciente, e daquilo que vai se desen- está disposto a enfrentar uma jornada que rolar no campo analítico. além de longa, é árdua, onerosa, difícil e sem uma garantia de resultados exitosos; – a escolha e estilo das suas relações objetais O QUE AVALIAR? reais, ou seja, se há uma compulsividade em repetir as mesmas configurações vin- A formação na mente do psicanalista de um culares (por exemplo, as de natureza projeto terapêutico a ser desenvolvido, provavel- sadomasoquística, simbiótica, fascinação mente em um longo curso de muitos anos de análi- narcisística, etc.), e para tanto sempre es- se, tem início na sua colheita de observações obti- colhem pessoas de um mesmo perfil carac- das na entrevista inicial. Antes de uma pormeno- terológico para as suas inter-relações mais rização das particularidades dos aspectos do pa- profundas; ciente que devem merecer uma especial atenção – a forma de como ele se comunica, verbal e por parte do terapeuta, deve ficar claro que a enu- meração dos mesmos, apresentas a seguir, não passa não-verbalmente. de um recurso didático e em nenhum momento deve Em relação ao mundo interior do paciente, tan- sugerir que na prática eles devam ser colhidos de to quanto possível, seria útil se o analista puder uma forma obrigatória, nem obsessivamente com- colher impressões sobre as seguintes instâncias es- pleta e muito menos ser dirigida por uma forma truturais: linear e seqüencial. Pelo contrário, a entrevista inicial também tem • Id: quais são as pulsões predominantes, se a importante finalidade de marcar um “clima de as de vida ou as de morte, que se manifes- trabalho”, e por essa razão deve correr da forma tam por meio do tipo de necessidades, dese- mais livre e espontânea possível, embora ela se di- jos, demandas ou atos masoquistas, e que ferencie das sessões comuns do curso da análise, caracterizam tanto a sua sexualidade como porque a sua natureza permite que o analista seja a agressividade... algo mais diretivo, enfocando mais objetivamente • Ego: conceitualmente essa estrutura psíqui- a alguns aspectos que necessitam serem avaliados ca compreende um conjunto de funções e de para a definição do contrato e do projeto analítico. representações. É importante o terapeuta Assim, de forma algo “flutuante” e automática, observar como são as capacidades egóicas embora um tanto diretiva, o analista levará em con- ta: que o paciente está demonstrando na entre- – o tipo de encaminhamento que trouxe o pa- vista inicial, isto é, como funciona a sua per- ciente até ele, e como foi o contato inicial; cepção (por exemplo, como é a sua escuta –a aparência exterior, incluída a forma de daquilo que ele está ouvindo do analista); a como o paciente está vestido (é uma im- maneira dele pensar, conceituar, ajuizar e portante forma de communicação extra- discriminar; como é a sua função de conhe- verbal), como saúda, manifesta-se algum cer (ou desconhecer) as verdades; como são sintoma visível, como é a sua movimenta- as suas emoções e quais são os afetos que ção motora, o seu jeito de discursar...; mais o afetam; a sua maneira de estabelecer –a realidade exterior, isto é, as suas condi- correlações, nexos associativos e aquisição ções sócio-econômicas, o seu entorno fa- de insights; como é o conteúdo e a forma de miliar, a sua posição profissional, o seu sua linguagem e comunicação verbal (não projeto de vida próximo e futuro...; importa tanto o que o paciente “fala”, mas, –o histórico familiar, sendo que, muitas ve- sim, o que ele “diz”); a maneira de como ele zes, para pacientes com manifestações age (ou “atua”) aquilo que planeja, etc. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 285

Ainda em relação às funções do ego, é sobre- liar com maior profundidade numa entrevista ini- maneira relevante que o psicanalista colha uma cial tudo isso que foi enumerado – e não custa re- idéia razoável de quais são os inconscientes meca- petir que nem é o que, em termos absolutos, isso nismos de defesa que o paciente mobiliza para en- esteja sendo aqui preconizado – é necessário que, frentar as suas angústias e conflitos (por exemplo, pelo menos, o analista tenha em mente aos aspec- as “identificações projetivas” estão sendo utiliza- tos acima referidos e procure aproximar-se deles o das pelo ego a serviço de uma saudável função de mais possível. empatia, ou elas são de uma qualidade e intensida- de que redundam em uma patologia?; as defesas estão estruturadas de molde a prevalecer uma po- INDICAÇÕES E CONTRA-INDICAÇÕES sição narcisista, esquizoparanóide ou depressiva?) etc. Além destes quadros de psicopatologia, algu- Quanto às representações do ego, o analista mas outras condições que até um certo tempo atrás poderá observar como o candidato à análise, em contra-indicavam a escolha por um tratamento psi- avaliação, se representa a si próprio, a sua ima- canalítico, hoje encontram uma outra resolução. Um gem psíquica, corporal e a sua auto estima; como bom exemplo, é o critério de idade, o qual deixou estão estruturadas as suas relações objetais de ser excludente e é encarado com muito rela- internalizadas e que também podem ser percebi- tivismo, tanto que, desde M. Klein, a psicanálise das pelo esboço da transferência nascente; com ficou extensiva às crianças e, além disso, de uns quem e como são as identificações do paciente; daí tempos para cá, ela também é praticada com pes- resulta a importância de que se avalie como está soas de idade bastante mais avançada. Aliás, já estruturado o seu sentimento de identidade. Abraham (1919, Psicanálise clínica, capítulo 16) • Superego. É dispensável enfatizar a impor- afirmava que “a idade da neurose é mais impor- tante do que a idade do paciente”). tância dos mandamentos superegóicos no Um outro exemplo pode ser a dúvida que exis- psiquismo do paciente, tão evidentes e co- tia quanto à adequação de iniciar a análise em ple- nhecidas são as suas manifestações sob a no período crítico de um quadro clínico com sin- forma de culpas, auto-acusações, busca in- tomas agudos, situacionais, neuróticos ou psicó- consciente por punições, desvalia e baixa ticos; hoje os psicanalistas não receiam enfrentar auto estima, rigidez obsessiva, quadros me- essas situações com todo o processamento psica- lancólicos, etc., sendo que os sentimentos nalítico habitual, até porque a maioria dos analis- prevalentes são os de culpa e medo. Trata- tas está se inclinando, na atualidade, a não excluir se, portanto, de uma instância que pode atin- a possibilidade do eventual emprego de alguns gir uma condição essencialmente punitiva, “parâmetros” (conceito de Eissler, 1934), como muitas vezes com características extremas de pode ser o de um possível uso simultâneo de quimioterápicos. perseguição e crueldade; no entanto, em si- A propósito, também o diagnóstico clínico com- tuações normais, exerce a função de um porta um acentuado relativismo, tanto que, por normativo e indispensável “ego auxiliar”. Por exemplo, o diagnóstico de uma “reação esquizo- outro lado, o superego aparece na literatura frênica aguda” pode assustar em decorrência do psicanalítica, freqüentemente confundida nome alusivo à esquizofrenia e, no entanto, pode com “ego ideal” e “ideal do ego”, sendo útil ser de excelente prognóstico psicanalítico, enquanto discriminar algumas diferenças entre elas, tal o que pode parecer ser uma “simples neurose como estão descritas no capítulo. fóbica”, se for de organização crônica, pode resul- tar em um prognóstico desalentador. Resumidamente, pode-se afirmar que a pessoa Persistem como contra-indicações indiscutíveis que estamos avaliando para um tratamento psica- para a análise como escolha prioritária, os casos nalítico, como acontece com qualquer outra pes- de alguma forma de degenerescência mental, ou soa, é a de um sujeito sujeitado a uma série de de- aqueles pacientes que não demonstram a condição terminações que ele desconhece, porquanto ope- mínima de abstração e simbolização, bem como ram desde o seu inconsciente, sob a forma de ne- também para aqueles que apresentam uma motiva- cessidades, desejos, capacidades latentes, manda- ção esdrúxula, além de outras situações afins. mentos, proibições, expectativas, predições e fal- Não raramente os psicanalistas confrontam-se sas convicções. Não obstante, seja impossível ava- com situações nas quais a pesagem dos fatores fa- 286 DAVID E. ZIMERMAN voráveis e desfavoráveis revelados pela entrevista Uma vez processada a avaliação e o psicanalis- inicial não foi suficiente para que se definissem ta, após haver pesado todos os prós e contras, ter convictamente se convém ou não assumir formal- chegado à decisão de que a psicanálise é o trata- mente o compromisso da análise. Nestes casos, mento de escolha e que ele quer ser o analista, ao apesar de alguns imagináveis incovenientes, mui- mesmo tempo em que o paciente também manifes- tos psicanalistas advogam a combinação de uma ta que quer ser analisado por ele, ambos vão assu- espécie de “análise de prova” que consiste em pro- mir a tarefa de definir as combinações básicas que longar a “entrevista inicial” por um período relati- servirão como os referenciais essenciais da longa vamente mais longo para que só então ambos do caminhada que irão palmilhar, por meio daquilo par analítico assumam uma posição definitiva quan- que se convencionou denominar de “contrato ana- to à efetivação formal da análise. lítico”.

CABE INTERPRETAR NA ENTREVISTA INICIAL? O CONTRATO

Um outro aspecto da entrevista inicial que cos- Também a palavra contrato pode ser decom- tuma ser bastante controvertido entre os psicana- posta em “con” + “trato”, isto é, ela significa que, listas é o que diz respeito ao fato de se é cabível, além do indispensável acordo manifesto de algu- ou não, que o terapeuta exerça uma função inter- mas combinações práticas básicas que referenciarão pretativa no curso dessa(s) entrevista(s). É consen- a longa jornada da análise, há também um acordo sual que as clássicas interpretações alusivas à neu- latente que alude a como analista e paciente “tra- rose de transferência devem ser evitadas ao máxi- tar-se-ão” reciprocamente. Por essa razão, não custa mo; no entanto, penso que aquelas que particular- reiterar, a entrevista inicial que precede à forma- mente denomino de “interpretações compreensivas” lização do compromisso contratual tem a finalida- não só são permissíveis, como também são neces- de não unicamente de avaliação, mas também a de sárias para o estabelecimento de um necessário uma mútua “apresentação” das características pes- “rapport”, de uma “aliança terapêutica”. Explico soais de cada um e a instalação de uma “atmosfe- melhor: qualquer pessoa que está tencionando ex- ra” de trabalho, tendo muito em vista a criação es- por o seu mundo interno a um estranho, necessa- pontânea de uma “aliança terapêutica”. riamente está algo assustado e desconfiado, e nada A propósito, é útil estabelecer uma distinção é mais importante para ele do que saber que está entre as conceituações de aliança terapêutica, sendo compreendido (a palavra compreender é transferência positiva e match que, embora asse- composta de “com”, que significa “junto de” e de melhadas, são muito diferentes entre si. Assim, ali- “preender” que significa “agarrar firme”, devendo ança terapêutica é um conceito de Zetzel (1956) ser diferençada de entender que designa uma fun- que designa o fato de que, independentemente se o ção de natureza mais intelectiva). Assim, por exem- paciente está em transferência positiva ou negati- plo, se o paciente, em uma entrevista inicial, está va, existe uma parte sua, ainda que oculta, que está relatando queixas generalizadas de que está “can- bem ligada e cooperativa com a tarefa analítica. sado de ser explorado na sua boa fé e no seu di- Dizendo de outro modo, um analisando pode estar nheiro por pessoas que aparentavam ser suas ami- em uma transferência chamada de “positiva” (é gas e que depois o traíram e decepcionaram”, é assíduo, pontual, sério, associa bem, demonstra uma certo que todos entenderíamos que ele está expres- afetuosidade, concorda com as interpretações...), sando, embora não conscientemente, um temor de sem estar em uma verdadeira aliança terapêutica que, mais cedo ou mais tarde, o mesmo venha a (até mesmo porque a aparência de “positiva” pode ocorrer com a pessoa do analista que também está não estar sendo mais do que uma fase de intensa aparentando ser uma pessoa amiga. Se o analista idealização) e, em contrapartida, ele pode estar fizer a “interpretação compreensiva” deste temor numa fase da assim chamada “transferência nega- inconsciente, ainda que o paciente possa discordar tiva” (contesta tudo, agride verbalmente, resiste dela, sentir-se-á muito aliviado e disposto a fazer com faltas, atrasos, ameaças e actings...), e estar novas aproximações. É claro que se trata de uma em plena aliança terapêutica, que lhe assegura o ilustração por demais simples, no entanto uma direito de exibir o seu lado agressivo, e garante a miríade de situações similares poderiam ser exem- continuidade do trabalho analítico. plificadas. Match, por sua vez – cuja melhor tradução para o nosso idioma parece ser o de “Encontro” –, é um FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 287 interessante conceito que aparece em alguns traba- ca é tacitamente proibida), mentiroso, atuador, etc. lhos norte-americanos de pesquisa psicanalítica – afinal, é por isso que ele está se submetendo a (Kantrowitz, 1986). Este conceito, que merece ser uma análise – faz parte do seu papel, mostrar, pelo levado em conta na entrevista inicial, diz respeito menos, um mínimo de comprometimento em “ser ao fato de que, indo além dos fenômenos transfe- verdadeiro” e que dedique a indispensável parcela renciais-contratransferenciais, as características de seriedade à árdua tarefa analítica. reais de cada um do par analítico, quer de afinida- O que se espera do psicanalista é que ele tenha de, rejeição e, principalmente, da presença de pos- bem claro para si os seguintes aspectos: 1) Qual é a síveis “pontos cegos” no analista, segundo aquelas natureza de sua motivação, predominante, para pesquisas que foram efetivadas num curso de lon- aceitar tratar analiticamente a uma certa pessoa (se gos anos de duração, podem determinar uma deci- é por um natural prazer profissional ou prevalece siva influência no curso de qualquer análise. As- uma oportunidade para uma determinada pesqui- sim, segundo esses autores, um mesmo paciente sa; uma necessidade de complementar os ganhos analisado por dois psicanalistas, de uma mesma pecuniários; uma obrigatoriedade devido a uma competência e seguidores de uma mesma corrente certa pressão de pessoas amigas, ou, no caso de psicanalítica, pode evoluir muito mal com um de- candidatos, unicamente pelo cumprimento da obri- les e muito exitosamente com o outro, e vice-ver- gação curricular do Instituto; ou é um pouco de sa, sendo que também determinados níveis de sua cada um destes fatores...). 2) Ele deve ter definido estruturação psíquica pode evoluir muito bem com para si qual é o seu projeto terapêutico, se o mes- um analista (por exemplo, a sexualidade) e estag- mo está mais voltado para a obtenção de “benefí- nar com este mesmo analista em um outro nível cios terapêuticos” ou de “resultados analíticos” (por exemplo, a área narcisística), e o inverso ocor- (ver capítulo 38). 3) Diante de um paciente bastan- rer em uma análise com aqule outro psicanalista, te regressivo, o analista deve ponderar se ele reúne assim por diante. as condições de conhecimento teórico-técnico, no- O “contrato” (con-trato), portanto, exige uma tadamente das primitivas fases do desenvolvimen- definição de papéis e funções, respectivamente por to emocional e se está preparado para enfrentar pos- parte do psicanalista, do analisando e da vincu- síveis passagens por situações transferenciais de laridade entre ambos, sendo útil considerá-los se- natureza psicótica. 4) Da mesma forma, ele deve paradamente. avaliar se preenche aqueles atributos que Bion Assim, o que se espera por parte do analisan- (1992) denomina de condições necessárias míni- do? Em primeiro lugar, enfatizando o que já foi mas e que aludem à empatia, intuição, rêverie, fun- dito, que ele esteja suficientemente bem motivado; ção psicanalítica da personalidade, amor à verda- no entanto, o analista deve estar atento à possibili- de, etc. 5) Partindo da assertiva de que não deve dade de que um aparente descaso do paciente pode haver uma maneira única, estereotipada e univer- estar significando uma maneira que ele tem de se sal de psicanalisar, e que uma mesma técnica pode defender na vida diante de difíceis situações no- – e deve – comportar muitas e diferentes táticas de vas, e que essa atitude, manifesta como se fosse abordagem e estilos pessoais de interpretação, faz uma escassa motivação, pode estar representando parte do papel do analista reconhecer se ele domi- a sua forma de abrir uma “porta de entrada” para na o eventual uso de “parâmetros” (convém lem- uma análise de verdade. A recíproca disso também brar que Eissler cunhou este termo para designar é verdadeira, ou seja, uma motivação aparentemente as intervenções do psicanalista que, embora trans- plena, pode estar encobrindo um antecipado gridam a algumas regras analíticas, não alteram a rechaço para enfrentar momentos difíceis, de sorte essência do processo analítico). 6) O terapeuta deve que posteriores motivos fúteis poderão servir como estar em condições de reconhecer a natureza de suas racionalizações para abandonar a análise prematu- contra-resistências, contratransferências e eventuais ramente. contra-actings. 7) Ele deve ter condições de en- Em segundo lugar, espera-se que o analisando volver-se afetivamente com o seu analisando, sem reflita com seriedade sobre todos os itens das com- “ficar envolvido”; ser firme sem ser rígido; ao mes- binações que estão sendo propostas para o contra- mo tempo que flexível, sem ser fraco e manipulável. to analítico e que, desse contrato, ele participe ati- 8) Também entrou em voga, desde Bion (1970), a vamente e não de uma forma passiva e de mero questão referente a se a análise deve desvincular- submetimento. Não obstante o fato de que o pacien- se de toda pretensão terapêutica, tal como essa é te tem o direito de se apresentar com todo o seu concebida e praticada no campo da medicina. Creio lado psicótico, narcista, agressivo (a agressão físi- que existe um risco de o analista levar exagera- 288 DAVID E. ZIMERMAN damente ao pé da letra, a recomendação de Bion no aguardo que as outras situações surjam ao natu- quanto à importante recomendação de que a mente ral no curso do tratamento, sendo que a análise de do analista não fique saturada de desejos de cura cada uma delas é que vai definindo as necessárias (grifei a palavra “saturada” porque muitos mal-in- regras e diretrizes. terpretam a recomendação de Bion e pensam que O critério de “mínimo indispensável”, acima ele fez a apologia da abolição de qualquer tipo e mencionado, alude às definições relativas a horá- grau de desejo). Nesse caso, o analista corre o ris- rios, honorários (incluir a possibilidade de reajus- co de suprimir um natural desejo de que seu pa- tes periódicos, e esclarecer que o paciente está con- ciente melhore, e, no lugar disso, ele pode adotar quistando um espaço exclusivamente seu e que, por uma atitude de um distanciamento afetivo. isso, será o responsável por ele) e o plano de fé- Em relação ao campo analítico vincular a pri- rias. Essa orientação contrasta com a daqueles ou- meira observação que cabe é que a contemporânea tros psicanalistas que argumentam que, quanto mais psicanálise vincular, implica no fato que já vai lon- especificarem as diversas situações de sugimento ge a idéia de que cabia ao paciente unicamente a bastante provável no curso da análise, mais condi- obrigação, de certa forma passiva, de trazer “mate- ções terão de confrontar o futuro analisando com rial”, enquanto ao analista caberia a função única as transgressões daquilo que foi combinado. As- de interpretar adequadamente aquele material clí- sim, os analistas que adotam essa última posição nico a fim de tornar consciente aquilo que estava combinarão detalhes, como por exemplo: o direito reprimido no inconsciente. Pelo contrário, hoje ten- que eles se reservarão para responder ou não a per- de a ser consensual que ambos, de forma igualmente guntas do paciente; mudar ou não os dias ou horá- ativa, interagem e se interinfluenciam permanente- rios das sessões; como fica o pagamento em caso mente. de doenças ou necessárias viagens do paciente; qual Assim, o que se deve esperar é que, no contrato será o dia para pagar, e se o fará no começo ou fim analítico, haja uma suficiente clareza nas combi- da sessão; se pode ser com cheque ou unicamente nações feitas para evitar futuros mal-entendidos, com dinheiro-moeda; incluir, ou não, uma cláusula por vezes de sérias conseqüências. Da mesma ma- de advertência quanto ao compromisso de sigilo; neira, ambos devem zelar pela preservação das re- ou a obrigação de analisar algum ato importante gras do contrato (embora faça parte do papel do antes de o paciente efetivá-lo, como uma forma de paciente o direito de, eventualmente, tentar modi- prevenir o risco de actings, e assim por diante, em ficá-las) com as quais eles estão construindo um uma longa série de detalhes impostos à medida que importantíssimo espaço novo, no qual antigas e aparecerem (permissão ou proibição de fumar du- novas experiências emocionais importantes serão rante a sessão; aceitação de presentes; encontros reeditadas. sociais; forma de cumprimentar; silêncios, faltas Um tópico que persiste polêmico e controver- ou atrasos excessivos...). tido entre os psicanalistas, é quanto ao conteúdo Um importante ponto do contrato que não en- das combinações a serem feitas no contrato, nota- contra uniformidade entre os psicanalistas, inclu- damente no que diz respeito às regras técnicas sive dos que pertencem a uma mesma corrente psi- legadas por Freud, as quais continuam ainda ple- canalítica, é o que diz respeito à combinação de namente vigentes em sua essência, embora bastan- que “a análise deverá ser feita no divã “. Muitos te transformadas em alguns detalhes. Assim, espe- preferem incluir essa condição desde a formali- cialmente por meio da “regra fundamental” (obri- zação do contrato, enquanto muitos outros psica- gação de o paciente assumir o compromisso de fa- nalistas optam por não aludir de forma direta ao zer continuamente uma “livre associação de idéi- uso do divã, aguardando a oportunidade que, cer- as”) e da “regra da abstinência” (além das absti- tamente, surgirá no transcurso das sessões, assim nências que o analista deve se auto impor, essa re- possibilitando uma análise mais aprofundada das gra também aludia a uma longa série de itens que possíveis dificuldades em deitar, ou permanecer especificavam aquilo que era permitido ou proibi- sentado, e também para diminuir o risco de o pa- do para o paciente agir fora da situação analítica). ciente, desde o início, conduzir-se passivamente, Na atualidade, alguns psicanalistas ainda adotam o cumprindo a mandamentos e expectativas dos ou- critério original que regia a combinação do “con- tros, no caso o seu psicanalista. trato e, assim, impõem de modo esmiuçado uma A propósito da forma de o analista impor, pro- série de recomendações; enquanto a tendência da por ou deixar a critério do analisando o uso do divã, grande maioria é simplificar a formulação das com- é oportuno frisar que a contemporânea psicanálise binações para o “mínimo indispensável”, ficando vincular evita ao máximo as imposições, salvo aque- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 289 las absolutamente necessárias, antes referidas, e o fato de que embora o vínculo analítico seja uma prefere as proposições, ou seja, que o analisando relação nivelada pelos aspectos humanos de res- participe ativamente das combinações. Dentre tan- peito, consideração e partilha de um objetivo co- tos outros exemplos possíveis, vou empregar o pri- mum, na verdade, a inter-relação do par analítico meiro que me ocorre: muitos pacientes relutantes obedece a três princípios básicos: em aceitar ou não a análise – e isso é particular- mente comum entre os fóbicos – podem induzir o 1) Ela não é simétrica: isto é, os lugares ocu- analista a se posicionar, a afirmar que ele “deve” pados e os papéis a serem desempenhados fazer análise, porque a sua vida está muito compli- são assimétricos e obedecem a uma natu- cada em decorrências das limitações e incapa- ral hierarquia, sendo claro que, nessas cir- citações, etc. O incoveniente dessa atitude do ana- cunstâncias próprias do processo analítico, lista é que ele já está propiciando uma dissociação o analista goza de muito mais privilégios. do paciente, de forma que, a parte dele que quer 2) Também não é de similaridade: ou seja, analisar-se, fica depositada no seu terapeuta e, as- eles não são iguais, diferentemente do que sim, a análise já começa com ambos aceitando, imaginam muitos pacientes de forte orga- asumindo e reforçando a modalidade fóbica desse nização narcisista. Assim, esse tipo de pa- analisando funcionar de forma dissociada. Uma ciente gostaria que o analista fosse uma adequada atitude do analista no caso desse exem- plo seria ele auxiliar o paciente a reconhecer os mera extensão dele, não conseguindo ad- seus dois lados – um, sadio e progressista, e um mitir que o terapeuta é uma pessoa autôno- outro, doente e regressivo – que estão em oposição ma, tem sua própria técnica e seu próprio dentro de si, e facilitar a que o seu lado sadio tome estilo de pensar, trabalhar e viver. a decisão corajosa de enfrentar o seu temor exces- 3) A relação que o analisando reproduz com sivo e não se render à sua costumeira forma de o analista é isomórfica: a etimologia dessa evitação das situações novas. palavra: “iso” (quer dizer: análogo) + “mor- As contigências de nosso meio político-econô- fos” (significa: forma), designa que existe mico têm trazido um fator complicador na uma “forma análoga” de repetir transferen- efetivação do contrato na cláusula que se refere à cialmente as mesmas necessidades, emo- possibilidade de o analista ter um valor único, in- ções e defesas que caracterizaram os pri- dependentemente se ele fornece ou não um recibo que o paciente utilizará na sua declaração do im- mitivos vínculos com os pais, sendo que, posto de renda; ou se ele tem dois valores diferen- quanto mais regressivo for o paciente, tes, sendo que, não é nada incomum, a possibilida- maior é a isomorfia de reviver com o ana- de de que o analista defina claramente que não cos- lista o protótipo da relação mãe-bebê. No tuma dar recibos. Igualmente, varia de um analista entanto, deve restar bem claro, para ambos para outro, a conduta quanto a manutenção um do par analítico, que isomorfia não deve mesmo valor para todos os seus analisandos, ou se ser confundido com a idéia de que o ana- ele se dá o direito de estabelecer valores diferentes lista será um substituto para uma mãe ou de acordo com as circunstâncias pessoais de cada pai ausentes ou falhos, mas, sim, que ele paciente em particular. desempenhará – transitoriamente – as fun- O importante, vale enfatizar, não é tanto o cum- ções de maternagem (ou outras equivalen- primento fiel de cada uma das cláusulas combina- das, mas, sim, o estado de espírito com que as mes- tes) que o paciente carece. mas são aceitas por ambos, sem alterar um neces- As combinações das regras que nortearão a aná- sário clima de respeito mútuo, e assim começar a lise constituem, de forma fundamental, a criação pavimentar o caminho para a estruturação de uma do setting, o qual deve ser preservado ao máximo indispensável confiança básica. Sem ser necessá- e, pela importância que representa para a evolução rio esclarecer explicitamente, deve ficar bastante da análise, merece ser abordado mais detidamente claro para o psicanalista e para o analisando – nes- em capítulo à parte (o 27). te caso às custas de muita frustração e sofrimento –

CAPÍTULO mente na pessoa do analisando, no embate entre as suas pulsões (desejos) e defesas. A segunda fase pode ser denominada psicanálise objetal, porquan- to todo o interesse do psicanalista ficou predomi- nantemente concentrado no mundo das relações 26 objetais internalizadas do paciente, acompanhadas das respectivas fantasias inconscientes, ansiedades e defesas primitivas que estejam manifestas ou ocul- tas no seu psiquismo. Gradativamente, à medida que os autores foram desvendando o fenômeno O que Mudou nas contratransferencial, a partir de um melhor enten- dimento das contra-identificações projetivas, o pên- “Regras Técnicas” Legadas dulo do enfoque do campo analítico foi incidindo para uma responsabilidade, cada vez maior, na pes- por Freud? soa do psicanalista, o que, parece-me, também se constitui em um exagero. O terceiro período, o atual, pode ser denominado psicanálise vincular, ou seja, o que importa não é tanto aquilo que se Por meio dos seus trabalhos sobre técnica psi- passa unicamente no analisando, ou no analista, canalítica, mais consistentemente estudados e pu- mas, sim, nas diversas configurações vinculares que blicados no período de 1912 a 1915, Freud deixou se estabelecem no espaço de interação entre ambos. um importante e fundamental legado a todos os Apesar de o esquema acima ser exageradamente psicanalistas das gerações vindouras: as regras simplista, portanto imperfeito e que não deve ser mínimas que devem reger a técnica de qualquer tomado ao pé da letra, ele permite deduzir que, processo psicanalítico. Muito embora Freud as te- igualmente, as aludidas regras técnicas sofreram nha formulado como “recomendações”, elas são transformações paralelas, as quais serão a seguir habitualmente conhecidas como “regras”, talvez descritas separadamente. pelo tom pedagógico e algo superegóico com que ele as empregou nos seus textos. Convém lembrar que, classicamente, são qua- REGRA FUNDAMENTAL tro essas regras: a regra fundamental (também co- nhecida como a regra da livre associação de idéias) Embora a regra fundamental, com essa deno- a da abstinência; a da neutralidade; e a da aten- minação, apareça clara e explicitamente formula- ção flutuante. Creio que é legítimo acrescentar uma da por Freud em 1913, em dois trabalhos contidos quinta regra, a do amor à verdade, tal foi a ênfase em Novas recomendações... (no texto “A dinâmi- que Freud emprestou à verdade e à honestidade ca da transferência” aparece na p. 142 do vol. 12 como uma condição sine-qua-non para a prática da Standard Edition Brasileira e em Sobre o início da psicanálise. do tratamento, na p. 177 do mesmo volume), ela já Tais regras permanecem vigentes em sua transparece bem delineada em 1904, no seu traba- essencialidade, porém elas vêm sofrendo muitas e lho Sobre a psicoterapia. significativas transformações, à medida que a pró- Essa regra consistia fundamentalmente no com- pria ideologia da psicanálise também está passan- promisso assumido pelo analisando, em associar do por sucessivas e profundas modificações nesse livemente as idéias que lhe surgissem espontanea- seu primeiro século de existência, por intermédio mente na mente, e verbalizá-las ao analista, inde- de algumas rupturas epistemológicas. A propósito, pendentemente de suas inibições, ou do fato se ele pode-se dizer que, nesse período, a ciência psica- as julgasse importantes ou não. O termo “funda- nalítica tem transitado fundamentalmente por três mental” era apropriado pois seria impossível con- fases bem marcantes, conquanto todas elas conti- ceber uma análise sem que o paciente trouxesse nuem válidas e entrelaçadas. um contínuo aporte de verbalizações que permitis- Assim, a primeira fase – que podemos chamar se ao psicanalista proceder a um levantamento de de psicanálise pulsional – é aquela que foi rigoro- natureza arqueológica das repressões acumuladas samente praticada pelos psicanalistas pioneiros e no inconsciente, de acordo com o paradigma vi- seguidores imediatos, pela qual todo enfoque do gente à época. psicanalista era virtualmente centrado exclusiva- 292 DAVID E. ZIMERMAN

Como sabemos, nos primeiros tempos, na bus- No entanto, outros psicanalistas, parece-me que ca do “ouro puro da psicanálise” (1915, p. 211), a grande maioria na atualidade, preferem se limitar contido na lembrança dos traumas psíquicos, Freud a deixar bem claramente combinados os aspectos instruía seus pacientes no sentido de que contas- referentes ao quinhão de responsabilidade do pa- sem “tudo o que lhes viesse à cabeça”, sem omitir ciente quanto aos horários, honorários e férias, sen- nada (1909, p. 164) e, para tanto, ele forçava a “li- do que as demais questões (inclusive a do uso do vre associação de idéias” por meio de uma pressão divã; eventualidade de algum actings; uso simultâ- manual de sua mão na fronte do analisando. Poste- neo de medicamentos, etc.) serão examinados à riormente ele deixou de pressionar fisicamente, medida que surgirem no curso do processo analíti- porém continuava impondo essa regra através de co, hoje de duração bem mais longa do que aque- uma condição obrigatória na combinação inicial do las análises pioneiras. contrato analítico, bem como por um constante in- Aliás, muita coisa mudou na atualidade, a co- centivo às associações de idéias, no curso das ses- meçar pelo perfil do paciente que procura análise. sões. Assim, raramente nos confrontamos com aqueles Foi no trabalho Dois artigos para enciclopé- pacientes que apresentavam unicamente sintomas dia (1923) que Freud definiu com precisão as suas neuróticos “puros”, como costumavam ser os his- três recomendações fundamentais que, no início de téricos, fóbicos, obsessivos...O atual contingente qualquer análise, devem necessariamente consti- de pessoas dispostas a submeter-se a um longo pro- tuir essa “regra da livre associação de idéias”: 1) O cesso psicanalítico é constituído pelos que são por- paciente deve se colocar numa posição de uma tadores de transtornos da auto estima, “falso self”, “atenta e desapaixonada auto-observação”. 2) sofrimento narcisista, além do fato de que os ex- Comprometer-se com a mais absoluta honestida- traordinários avanços teórico-técnicos possibilita- de. 3) Não reter qualquer idéia a ser comunicada, ram que a psicanálise se estenda para um nível bem mesmo quando ele sente que “ela é desagradável; mais pretensioso de obtenção de um crescimento quando julga que ela é ridícula; ou não tão im- mental caracterológico profundo e não só sintomá- portante; ou irrelevante para o que se procura”. tico e adaptativo como era nas primeiras décadas. A regra fundamental, nestes primeiros tempos, Além disso, a psicanálise hodierna cobre um es- não se restringia unicamente à imperiosa obriga- pectro bem mais amplo, especialmente o de pa- ção de o analisando cumprir com a livre associa- cientes bastante regressivos, como os psicóticos, ção dos pensamentos e idéias; antes, ela se com- borderlines, somatizadores, perversos, drogadictos, portava como a caudatária de uma série de outras etc. tantas “recomendações” menores que os analistas Também houve significativas transformações impunham desde a formalização do contrato analí- nos fatores socioculturais e econômicos que, so- tico, como a de que o paciente usasse imediata- mados aos anteriores, também concorrem para ou- mente o divã, se comprometesse com seis, ou no tras mudanças, como a da duração do tempo das mínimo cinco sessões semanais, não assumisse análises, tal como foi ilustrado por Jacobs (1996), nenhum compromisso importante sem antes de forma jocosa, ao pronunciar que “antigamente analisá-la exaustivamente, o rígido emprego de os casamentos eram de longa duração e as análi- definidas fórmulas quanto ao modo de pagamento ses eram breves, enquanto hoje as análises são e assim por diante. longas e os casamentos breves”... Tudo isso – somado às demais regras que a se- No entanto, a principal transformação, diz res- guir serão abordadas, eram formuladas longa e peito ao fato de que os notáveis e progressivos avan- detalhadamente para o pretendente à análise, à es- ços teórico-práticos dos fenômenos pertinentes à pera de sua concordância e comprometimento – área da comunicação vem possibilitando que o constituía o “contrato” do trabalho psicanalítico, psicanalista compreenda muito mais acuradamente que duraria alguns meses ou, no máximo, alguns a “metacomunicação” que está contida nas diver- poucos anos. A este respeito é oportuno assinalar sas formas da linguagem não-verbal, como é o caso que muitos autores atuais ainda mantêm um mes- dos silêncios, das somatizações, da entonação vo- mo rigor na formulação inicial do contrato analíti- cal, da linguagem corporal e gestual, dos actings e, co, sob o respeitável argumento de que facilita o muito particularmente, a primitiva linguagem que trabalho do psicanalista o fato de ter um referencial o paciente emite na provocação de efeitos seguro para estabelecer confrontos com os desvios contratransferenciais na pessoa do analista. que, certamente, o analisando fará no curso da aná- Também devemos incluir o fato de que a co- lise. municação verbal do paciente por sua “livre asso- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 293 ciação de idéias” pode estar sendo muito mais “li- de então, quanto ao grande risco de envolvimento vre” do que “associativa” de modo a ficar a servi- sexual com as suas pacientes envolvidas em um ço de “-K “, conforme Bion (1962) nos ensinou, estado mental de “amor de transferência”, Freud isto é, ela inconscientemente pode visar a uma mera viu-se na obrigação de definir claros limites de “evacuação” ou à mentira, ao engodo e às diversas abstenção, tanto para a pessoa do analista como formas de falsificação das verdades. Da mesma também para a do analisando. Na verdade, Freud forma, a verbalização das idéias do paciente po- começou a postular esta regra a partir dos seus tra- dem obedecer ao propósito prioritário de atacar as balhos técnicos de 1912, quando se intensificaram capacidades de seu analista, como a de percepção as suas preocupações com a imagem e a responsa- e a de estabelecimento de correlações entre os vín- bilidade da expansão da psicanálise, porquanto até culos associativos, assim como o discurso do ana- então ele mantinha uma atitude de muita permissi- lisando também pode ter como meta provocar efei- vidade, como pode ser comprovado com a análise tos no analista que o levem à prática de contra- do “homem dos ratos”, em 1909, a quem Freud, atuações e assim por diante. em algumas ocasiões, no transcurso das sessões, Tudo isso permite afirmar que a “associação servia chá, sanduíches ou arenques. livre” – componente principal da “regra fundamen- Tal como o nome “abstinência” sugere, essa tal” – não é encarada na atualidade como a única e regra alude à necessidade de o psicanalista abster- tão fundamental forma de o analisando permitir um se de qualquer tipo de atividade que não seja a de acesso ao seu mundo inconsciente e, ao mesmo tem- interpretar, portanto ela inclui a proibição de qual- po, ela evoluiu da idéia de uma imposição do psi- quer tipo de gratificação externa, sexual ou social, canalista para o de uma permissão, com a finalida- ao mesmo tempo em que o terapeuta deveria pre- de de que o analisando fique realmente livre para servar ao máximo o seu anonimato para o pacien- recriar um novo espaço onde ele possa revivenciar te. Dessa forma, em 1918, no trabalho Linhas de antigas experiêcias emocionais e onde possa pen- progresso na terapia analítica (p. 204), Freud rei- sar, sentir, muitas vezes atuar e, acima de tudo, para tera que “na medida do possível, a cura analítica poder silenciar ou dizer tudo que lhe vier à mente, deve executar-se em estado de privação – de abs- no seu ritmo e à sua moda. tinência”. Fica claro nesse texto que Freud tam- Igualmente, na atualidade, a “associação livre” bém referia-se ao risco de que o analista atendesse também é um requisito importante na pessoa do às gratificações externas que o paciente busca, analista, ou seja, antes de formular a sua interpre- como um substituto dos conflitos internos. tação ele deve proceder a um trabalho de elabora- Por essa última razão, Freud estendeu à pessoa ção interna, a partir de uma forma livre de proces- do analisando a imposição de que ele se abstivesse sar as suas próprias associações de idéias e senti- de tomar qualquer iniciativa importante de sua vida, mentos. sem uma prévia análise minuciosa da mesma. Na sua formulação original (pode ser encontrada na p. 200 do vol. 12) Freud afirma textualmente que Regra da Abstinência “...protege-se melhor o paciente dos prejuízos oca- sionados pela exeecução de um de seus impulsos Essa “recomendação de abstinência”, pelo me- fazendo-o prometer (o grifo é meu) não tomar nos de forma clara, foi formulada pela primeira vez quaisquer decisões importantes que lhe afetem a por Freud, em Observações sobre o amor de trans- vida durante o tempo de tratamento, por exemplo, ferência (1915, p. 214), em uma época em que as não escolher qualquer profissão ou objeto amoro- análises eram curtas, e na clínica dos psicanalistas so definitivo, mas adiar todos os planos desse tipo predominavam as pacientes histéricas, que logo para depois do seu restabelecimento”. desenvolviam um estado de “paixão” e de atração É claro que essa recomendação continua sendo erótica com o analista. A isso, acresce o fato de muito importante, especialmente quanto ao fato, que, à medida que a psicanálise se expandia e ga- acrescento eu, de que a melhor forma de o analista nhava em reconhecimento e repercussão, paralela- atender o seu paciente é a de entender as suas ne- mente também aumentavam as críticas contra aquilo cessidades, desejos e demandas, única forma de que os detratores consideravam como sendo um uso evitar o risco de que essas sejam substituídas por abusivo e licencioso da sexualidade. actings, por vezes de natureza maligna Preocupado com a imagem moral e ética da Tamanha era a preocupação de Freud com a ciência que ele criara, além da científica, e com o possibilidade de o analista ceder à tentação de um possível despreparo dos médicos psicoterapeutas envolvimento sexual com as pacientes que ele uti- 294 DAVID E. ZIMERMAN lizou a metáfora de um radiologista que deve pro- originalmente recomendadas por Freud, nas análi- teger-se com uma capa de chumbo contra a inci- ses mais longas de hoje, seria impossível e condu- dência dos efeitos maléficos dos raios X. Sucessi- ziria para um clima de muita falsidade, além de um vas gerações de psicanalistas levaram essa reco- incremento da submissão e da paranóia. mendação ao pé da letra e, tal como a metáfora Pode-se dizer que, na psicanálise praticada nos acima sugere, carregaram para o campo analítico dias de hoje, o eixo em torno do qual deve girar a essa pesada proteção plúmbea, de forma a manter- abstinência por parte do analista não é tanto o que se o mais distante possível e de forma rígida, a qual- se refere ao “amor de transferência” – até porque quer aproximação mais informal, quer dentro, quer as pacientes histéricas típicas da época de Freud fora do consultório. não são as que prevalecem na clínica atual dos psi- Acredito que essa obediência evitativa, levada canalistas, e além disso, a psicanálise avançou muito ao extremo, contribuía para a instalação de um cam- na compreensão e manejos desses casos, embora, po fóbico entre analista e analisando, muitas vezes é claro, esse risco de envolvimento continua exis- servindo como um racionalização científica a ser- tindo e preocupando. O significado maior da ne- viço de uma, real, fobia por parte do psicanalista, cessidade atual do cumprimento da regra da absti- ou seja, o medo de ele chegar mais perto de aspec- nência por parte do psicanalista, inclina-se mais tos, temidos por ele, como sendo perigosos. Tam- para os riscos que estão ligados à configuração bém não deve ser descartada a possibilidade de que, narcisista deles próprios. não poucas vezes, uma excessiva abstinência por Vale destacar, pois, a alguns desses riscos, como parte do terapeuta pode estar a serviço de uma, in- é o caso de o analista gratificar os desejos manifes- consciente, retaliação, ou de um disfarçado sadis- tos pelo paciente – nos casos em que tais desejos mo seu, em relação ao paciente, enquanto ele pen- visam compensar deficiências internas suas –, des- sa que está aplicando admiravelmente a preconi- sa forma impelindo o terapeuta a subsituir um ne- zada regra da abstinência. cessário “entender” por um infantilizador e narci- No entanto, na atualidade, muita coisa mudou sístico “atender”. Da mesma forma, deve ser leva- na prática psicanalítica: o perfil emocional e da em conta a possibilidade, nada rara, de o psica- situacional do paciente que procura análise é bem nalista impor a sua grandiosidade narcisística como diferente daqueles dos primeiros tempos, as con- uma forma de usar o analisando como um prolon- dições sociológicas e econômicas também são com- gamento dele, com o fim de conseguir uma reali- pletamente diferentes, os conhecimentos teórico- zação pessoal, embora às custas de uma atrofia da técnico dos psicanalistas se ampliaram em exten- autonomia e autenticidade do paciente. E assim por são e profundidade, os objetivos a serem alcança- diante. dos também sofreram profundas modificações, as Deve ficar claro que, não obstante a “abstinên- análises são mais longas e, por conseguinte, temos cia” aludir diretamente à suspensão do desejo do mais tempo, mais liberdade e menos medo para analista, isso não significa a morte do desejo, a interagirmos intimamente com os nossos anali- desistência de desejar e, da mesma maneira, não sandos. significa que ele vá anular os desejos do analisan- Assim, sem nunca perder a necessária preser- do. Um bom exemplo para essa última situação é a vação do setting normatizador e delimitador, a que se refere à curiosidade do analisando, a qual, maioria dos analistas atuais trabalha de uma forma curiosamente, foi considerada pelos nossos maio- algo mais descontraída, o clima da análise adqui- res autores, de forma genérica, desde o ângulo da riu um estilo mais coloquial, com uma menor patogenia e não daquilo que a curiosidade também evitação de aproximação (que, como já aludimos, tem de saudável e estruturante. adquiria uma natureza fóbica). Ademais, há um Assim, Freud abordou a “curiosidade” desde a certo abrandamento do “superego analítico” (o qual perspectiva da criança excluída da “cena primá- é herdeiro das instituições que o formaram e mo- ria”; M. Klein privilegiou o enfoque centrado no delaram como psicanalista), de modo a possibili- desejo da criancinha em invadir o interior do cor- tar que o analista possa sorrir, ou rir, durante a ses- po da mãe para poder controlar e tomar posse dos são, responder a algumas inócuas perguntas parti- tesouros que a sua curiosidade, tecida com as culares, dar algum tipo de orientação, evidenciar fantasias inconscientes, faz ela imaginar que a mãe algum tipo de emoção, não ter pavor de que apare- os possui, sob a forma de pênis do pai, de fezes ça alguma fissura no seu anonimato, etc. Em ou- idealizadas e de bebês. Bion, por sua vez, acen- tras palavras, aplicar rigidamente a regra da absti- tuou os aspectos da curiosidade ligada à arrogân- nência e do anonimato, nos termos em que foram cia, tal como foi a de Édipo, a desafiar os deuses e FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 295 querer chegar à verdade a qualquer custo, pelo que pacientes não são “bichos”, não tem por que temê- ele pagou o altíssimo preço que o mito nos relata. los (a recíproca é verdadeira). Ademais, o analista O importante é que o psicanalista, mercê de uma aprendeu a melhor utilizar uma “dissociação útil” abstinência firme e coerente, porém benevolente e entre circunstâncias distintas, e mesmo na hipótese não intrusiva, consiga discriminar quando uma de que o aludido encontro, promova uma turbulên- manifesta curiosidade do paciente em relação ao cia ou esteja se prestando a um acting, é perfeita- analista está a serviço de uma patologia ou guarda mente possível disso ser analisado, como qualquer um propósito sadio. No primeiro caso, é possível outra realidade psíquica do vínculo analítico. observar que ele não está interessado nas interpre- Igualmente, a situação relativa aos presentes, tações do analista que o levassem a fazer reflexões, com que muitos pacientes brindam aos seus analis- mas, sim, que a sua curiosidade, tal como uma son- tas, merece uma consideração, dada a freqüência da meteorológica, procura penetrar na mente do com que ela acontece. É evidente que em muitas terapeuta para descobrir o que este quer ou não quer, situações analíticas o presentear pode estar a ser- para assim manipulá-lo ou com fins de sedução e viço de alguma forma de acting, submissão ou de- submetimento ou para triunfar sobre ele. No caso fesa maníaca, no entanto, em inúmeras outras oca- de uma curiosidade sadia, nada é mais desatroso siões, como no Natal, por exemplo, um presente que o analista respondeu com um silêncio gélido de dimensões adequadas pode ser naturalmente ou com uma forçada pseudo-interpretação a uma aceito pelo analista, sem a obrigação de uma siste- pergunta inócua do paciente e que, como hipótese, mática análise do porquê daquele presente. Assim, pode justamente estar expressando um enorme es- creio que é um equívoco técnico fazer uma rejei- forço para vencer uma inibição, um passo para en- ção pura e simples de qualquer forma de presente, saiar uma aproximação mais livre e afetiva e, so- sob a alegação do analista de que ele está obede- bretudo, como um exercício para reexperimentar cendo à regra da abstinência, até mesmo pela sin- uma curiosidade que, no passado, lhe foi proibida gela razão de que muitas vezes, para determinados e significada como sendo daninha. analisandos, o ato de presentear pode estar repre- Uma faceta correlata ao aspecto exposto, é sentando um sensível progresso, que deve ser ana- aquele que diz respeito aos encontros sociais, nos lisado e reconhecido. quais o psicanalista e o analisando partilharão um Como podemos depreender, regra da abstinên- mesmo espaço fora do setting psicanalítico. Até cia também era extensiva aos analisandos, tanto certo tempo atrás, os psicanalistas, de modo geral, que, no início do movimento da psicanálise, fazia evitavam ao máximo um encontro dessa natureza, parte do contrato analítico, que eles se comprome- sendo que muitos, inclusive, incluíam no andamento tessesm a se abster de tomar a iniciativa de qual- do contrato analítico uma cláusula para que o quer ato importante, sem antes submetê-la à análi- paciente se abstivesse dessas aproximações. Isso se com o analista. era mais freqüente nas situações das análises “di- Ainda em relação à regra da abstinência, e inti- dáticas” e, funcionando como um modelo de iden- mamente ligada a ela, ganha relevância a recomen- tificação, os analistas costumavam adotar a mesma dação de Bion de que o psicanalista deve abster-se atitude com todos os seus outros pacientes comuns. de funcionar com a sua memória saturada por me- Os psicanalistas mais veteranos são testemunhas mórias, desejos e ânsia de compreensão, sendo que do quanto em muitas sociedades psicanalíticas (a essa postulação nos remete à regra seguinte de bem da verdade, faço a ressalva que na minha épo- Freud, a da “atenção flutuante”. Neste contexto, ca de candidato, na minha sociedade, não tivemos isso implica que o analista também deveria se abs- esse tipo de problema, além da abstinência e neu- ter de fazer apontamentos no transcurso das ses- tralidade minimamente necessária) a referida evi- sões, ou de gravá-las, embora com o consentimen- tação, inclusive em eventos científicos, atingia um to do analisando, pelo fato de que, de alguma for- grau de fobia, em ambos do par analítico, extensi- ma, isso influir negativamente na referida atenção vo aos respectivos familiares. A organização de flutuante. algum encontro social exigia uma verdadeira gi- nástica por parte do anfitrião a fim de manter as devidas evitações. Na atualidade, continua sendo REGRA DA ATENÇÃO FLUTUANTE recomendável que se evite uma aproximação que represente ser demasiado íntima, porém os psica- Freud estabeleceu, como equivalente à regra nalistas encaram estes encontros ocasionais com fundamental para o analisando, uma regra funda- uma naturalidade muito maior, cônscios de que os mental para o analista, a conhecida “atenção flu- 296 DAVID E. ZIMERMAN tuante” (na Standard Edition Brasileira, está tradu- propicia ao analista estar ligado ao mesmo tempo zida, ora por “atenção uniformemente suspensa” para os fatos externos e conscientes, e a uma área (1912, p. 149), ora por “imparcialmente suspensa” do inconsciente que lhe favorece uma “escuta in- (p. 291). tuitiva”, que possibilita a arte e a criatividade psi- De forma análoga a Bion – e antecipando-se a canalítica. este autor – em Recomendações... (1912), Freud O contrário de uma “atenção livremente flutu- postulou que o terapeuta deve propiciar condições ante” seria o estado mental do psicanalista de uma para que se estabeleça uma comunicação de “in- “atenção excessivamente dirigida” a qual pode ser consciente para inconsciente” e que o ideal seria patogênica, tal como pode ser exemplificado com que o analista pudesse “cegar-se artificialmente uma participação ativa do analista, com a qual ele para poder ver melhor”. Ao complementar essa pretende colher informações que não sejam perti- regra de Freud, Bion argumenta que tal estado de nentes à situação analítica, mas, sim, que mais aten- “atenção flutuante” é bastante útil para permitir o dem à sua curiosidade pessoal, inconsciente ou surgimento, na mente do analista, da importante mesmo consciente. No mesmo contexto, em algu- capacidade, latente em todos, de intuição [vem dos ma situação mais extrema, esse analista estará étimos latinos in + tuere, ou seja, olhar para den- atuando como uma criança escopofílica, o que pode tro; uma espécie de um terceiro olho”], a qual cos- gerar um vínculo transferencial-contratransferencial tuma ficar ofuscada quando a percepção do analis- de natureza perversa. ta é feita unicamente pelos órgãos dos sentidos. Convém destacar que o analista que tentar le- Uma questão que comumente costuma ser le- var a regra da atenção flutuante rigorosamente ao vantada, é a que se refere sobre a possibilidade de pé da letra, trabalhará um estado de desconforto, o analista atingir a condição de “cegar-se artifi- devido a culpas, e com uma sensação de fracasso cialmente” e despojar-se de seus desejos, da me- pessoal, porque é impossível sustentar essa condi- mória e de seus prévios conhecimentos teóricos. A ção durante todas as sessões – e sempre –, sem que resposta que me ocorre é que não há nenhum eventualmente ele tenha suas distrações, divaga- incoveniente que o terapeuta sinta desejos ou quais- ções, desejos, cansaço, algum desligamento... quer outros sentimentos, assim como a memória de fatos ou teorias prévias, desde que ele esteja seguro que a sua mente não está saturada pelos Regra da Neutralidade aludidos desejos, memórias e conhecimentos. Igualmente, é necessário que o terapeuta tenha A abordagem mais conhecida de Freud a res- uma idéia bem clara desse risco, de modo que ele peito dessa regra, é aquela que consta em suas Re- consiga manter uma discriminação entre os seus comendações... de 1913, no qual ele apresenta a próprios sentimentos (pode ser um estado de ex- sua famosa metáfora do espelho, pela qual ele acon- pectativa da realização de desejos, como também selhava os médicos que exercíam a terapia psica- pode ser o de uma apatia, medo, excitação erótica, nalítica que “o psicanalista deve ser opaco aos seus tédio, sensação de paralisia e impotência, etc.), e pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes aquilo que é próprio da situação analítica. nada, exceto o que lhes é mostrado” (p. 157). Freud Essa condição é conseguida pela capacidade de representava essa recomendação como sendo a manter uma “dissociação útil” da função do seu contrapartida da regra fundamental exigida ao pa- ego psicanalítico, de modo a estabelecer as dife- ciente. renças e o reconhecimento das diversas áreas do O termo “neutralidade” (deriva do étimo latino seu mapa psíquico, inclusive as de sua vida parti- neuter que significa nem um, nem outro), embora cular, por vezes com emoções intensas e que nada designe um conjunto de medidas técnicas que foi têm a ver com a situação analítica. Ao mesmo tem- proposto por Freud no curso de vários textos e em po, essa “dissociação útil” possibilita-lhe conser- diferentes épocas, não figura diretamente em ne- var um estado de “teorização flutuante” do seus nhum deles. Eizerik (1993) assinala que, nas pou- conhecimentos teórico-técnicos, ao lado de uma cas vezes em que esse termo aparece nos escritos “atenção flutuante” também dirigida para os seus de Freud, a palavra original em alemão é “indiffe- próprios sentimentos, sem prejuízo da sua função renz”, cuja tradução mais próxima é “imparcial”. de rêverie. Por outro lado, o conceito de neutralidade deve Penso que tanto a “atenção flutuante” de Freud se estender aos próprios desejos e fantasias do ana- como o “sem memória...” de Bion equivalem a um lista (de uma forma equivalente ao “sem memó- estado mental de “pré consciência” que, portanto, ria...” de Bion), de modo a possibilitar que ele es- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 297 teja disponível para os pontos de vista dos seus absoluta é desejável ou se, pelo contrário, ela analisandos, diferentes dos seus, sem ter que ape- condiciona a uma atividade analítica asséptica e lar para um reducionismo sistemático de seus va- fria. A neutralidade, suficientemente adequada, lores prévios e também para que ele ocasionalmente somente surge quando o analista resolveu a sua aproveite a profunda interação com o seu analisan- contratransferência acerca de determinado confli- do e possa ressignificar as suas próprias experiên- to provindo do paciente, assim podendo integrá-la cias emocionais antigas. à sua função interpretativa. Classicamente, essa regra refere-se mais estrita Resta acrescentar que, aliado a um reconheci- e diretamente à necessidade de que o analista não mento dos seus sentimentos contratransferenciais, se envolva afetivamente com o seu paciente, tal também os conhecimentos teóricos do analista fa- como sugere a metáfora do espelho, já menciona- vorecem a um adequado desempenho da regra da da. Penso que essa comparação de Freud peca pelo neutralidade. incoveniente de fazer supor que ele recomendava que o analista deva comportar-se na situação ana- lítica exatamente como um espelho material, ou REGRA DO AMOR À VERDADE seja, como a fria superfície de um vidro recoberta com uma amálgama de prata, unicamente pesqui- Em diversas passagens de seus textos técnicos, sando, descodificando e interpretando mecanica- Freud reiterou o quanto ele considerava a impor- mente. A partir da compreensào de que essa metá- tância que a verdade representa para a evolução fora não podia ser levada ao pé da letra, pode-se exitosa do processo psicanalítico. Mais exatamen- dizer que a concepção da regra da neutralidade vem te, a sua ênfase incidia na necessidade de que o mudando substancialmente. psicanalista fosse uma pessoa veraz, verdadeira e Hoje pensamos que o analista deve funcionar que somente a partir dessa condição fundamental é como um espelho, sim, porém no sentido de que que a análise poderia, de fato, promover as mu- seja um espelho que possibilite ao paciente mirar- danças verdadeiras nos analisandos. Dessa firme se de corpo inteiro, por fora e por dentro, como posição de Freud, podemos tirar uma primeira con- realmente ele é, ou que não é, ou como pode vir a clusão: mais do que unicamente uma obrigação de ser! Além disso, também pensamos que o psicote- ordem ética, a regra do amor à verdade também se rapeuta deve envolver-se afetivamente com o seu constitui como um elemento essencial de técnica analisando, desde que ele não fique envolvido nas de psicanálise. malhas da patologia contratransferencial, sendo que Em relação ao compromisso com a ética, é opor- essa última condição de estado mental do analista tuno incluir que ela também diz respeito à necessi- é fundamental para possibilitar o desenvolvimento dade de o psicanalista não emitir julgamentos a do analisando, tal como nos sugere a formação respeito de terceiras pessoas, inclusive muitas ve- dessa palavra: desenvolvimento alude à retirada zes outros colegas, tendo em vista que os pacientes (des) de um envolvimento patogênico. os convidam para tal quebra de ética, por meio de A neutralidade, no sentido absoluto do termo, um inconsciente jogo sutil e provocador veiculado é um mito, impossível de ser alcançado, até mes- por intrigas, “fofocas”, insinuações e afins. mo porque o psicanalista é um ser humano como Freud estendia a sua postulação da indispensa- qualquer outro e, portanto, ele tem a sua ideologia bilidade da honestidade e verdade tanto à pessoa e o seu próprio sistema de valores, os quais, quer do terapeuta quanto à do paciente. Em relação ao ele queira ou não, são captados pelo paciente. Além primeiro deles, ninguém contesta a validade dessa disso, as palavras e atitudes do analista também assertiva de Freud, a ponto de podermos afirmar funcionam com um certo poder de sugestiona- que se o técnico que labora como analista não pos- bilidade (é diferente de uma sugestão ativa), como suir esse atributo de ser verdadeiro, de forma sufi- pode ser exemplificado com o simples fato de que ciente, o melhor que ele tem a fazer é mudar de a escolha que o analista faz daquilo que ele julga especialidade. Quanto à pessoa do analisando, as que merece ser interpretado, em meio a outras coisas têm mudado um pouco, se partirmos do vér- possibildades de enfoque interpretativo propicia- tice de que o paciente está no seu papel de fazer das pelo discurso do analisando, além do seu modo aquilo que ele sabe fazer, e no seu ritmo, cabendo e estilo de interpretar, fazem transparecer a sua ao analista a responsabilidade de tentar tornar personalidade e exercem uma certa influência no egodistônica uma caracterologia falsa e mentirosa destino do processo analítico. A questão que me- do analisando e, a partir daí, procurar modificar rece uma reflexão mais acurada é se a neutralidade essa patologia, tanto por meio de uma análise pro- 298 DAVID E. ZIMERMAN funda das motivações inconscientes de tal compor- analista – que vai muito além de unicamente uma tamento, como também por meio de uma identifi- capacidade para entender e habilidade para inter- cação com a postura de amor às verdades que o pretar – a qual podemos denominar de atitude psi- analista vier a demonstrar de forma consistente e canalítica interna – e que, na contemporânea psi- coerente. canálise vincular, assume uma importância funda- Esses aspectos mencionados vêm merecendo mental, sendo que ela implica na indispensabilidade uma consideração especial, a ponto de Bion, em de demais atributos mínimos, como empatia, intui- um dos seus textos, lançar a pergunta, hoje clássi- ção, rêverie, etc. ca: “é possível analisar um mentiroso?” e, como resposta, ele dá a entender que, em certos casos, é possível. Aliás, Bion foi o autor que mais se apro- UMA OUTRA REGRA: ximou dos problemas referentes às verdades, falsi- A PRESERVAÇÃO DO SETTING dades e mentiras na situação psicanalítica, princi- palmente nos seus escritos onde ele estuda o vín- Além dos aspectos acima destacados, é inegá- culo do conhecimento (“K”) ou o seu oposto (“- vel que um uso adequado das “regras técnicas” K”) quando a mente do analisando (e, muitas ve- implica necessariamente a preservação do setting zes, a do analista) estiver mais voltada para o não- instituído. Como já foi visto, cabe ao enquadre a conhecimento de verdades penosas, as externas e primacial função de normatizar, delimitar, estabe- as internas. Por outro lado, Bion também enfatizou lecer a assimetria (os lugares, papéis e funções, do o fato de todo e qualquer indivíduo, em algum grau, analista e do paciente, não são simétricos) e a não- faz uso de mentiras, falsificações e da evasão de similaridade (eles não são iguais). Em caso con- certas verdades. trário, o analista tenderá a contra-atuar, e haverá Tamanha foi a importância que Bion dedicou uma confusão entre os lugares e papéis de cada um às verdades que ele chegou a afirmar que “as ver- do par analítico. Da mesma forma, também é fun- dades representam para o psiquismo o mesmo que ção do enquadre manter um contínuo aporte do os alimentos representam para o organismo; isto “princípio da realidade”, que se contrapõe ao mun- é, sem o alimento da verdade o psiquismo morre”. do das ilusões próprias do “princípio do prazer” Da mesma forma, em Cogitations (1990), ele afir- do paciente. ma, entre outras coisas em relação à verdade, que Por todas essas razões, não deve caber dúvidas ela “é algo que o homem precisa sentir na atitude quanto à relevante necessidade de que as combina- que as outras pessoas têm em relação a si”, e que, ções feitas no contrato analítico – e que compõem podemos acrescentar, um sujeito (como algum pa- o setting – devam ser preservadas ao máximo, e ciente na situação analítica) pode sentir que lhe falta isso não é o mesmo que apregoar o uso de uma uma capacidade para as verdades, quer seja para rigidez obssesiva, cega e surda. Embora possa pa- escutá-las, para o exercício da curiosidade, para recer paradoxal, essa preservação do enquadre é comunicá-las ou até mesmo para desejá-las. particularmente necessária para com os pacientes No entanto, é necessário esclarecer que a ver- bastante regressivos, tendo em vista que eles têm dade a que estamos nos referindo não tem cono- um acentuado prejuízo na noção de limites e na tação de ordem moral e, muito menos, representa aceitação das inevitáveis privações, frustrações e uma recomendação para que o analista saia a uma no reconhecimento das, também, inevitáveis dife- obsessiva caça às verdades negadas ou sonegadas renças entre eles e os outros. pelo paciente, até mesmo porque o conceito de A propósito da afirmativa acima feita, de que a verdade absoluta é muito relativo. Antes disso, manutenção do enquadre não deve ser obsessiva- como foi frisado, o importante é a aquisição de uma mente rígida, é oportuno lembrar o fato bem co- “atitude de ser verdadeiro”, especialmente consi- nhecido de que Freud, na prática do seu trabalho go próprio, único caminho para atingir a um esta- clínico, não apresentou uma coerência entre o que do de liberdade interna, o que seguramente é o bem ele professava (o cumprimento rigoroso das “reco- maior que um indivíduo pode obter. De fato, ver- mendações” técnicas que aqui enfocamos) e o que dade e liberdade são indissociáveis entre si e não é ele praticava (é sabido que Freud algumas vezes por nada que na bíblia sagrada consta um trecho de analisava durante uma caminhada com algum pa- uma profunda e milenar sabedoria: “...só a verda- ciente, outras vezes ele charlava amenidades, tro- de vos libertará...”. cava presentes, aconselhava, admoestava, de for- Essa regra técnica inerente ao amor à verdade é ma indireta forçava os pacientes a trazerem associa- parte de uma condição mais ampla na pessoa do ções que confirmassem suas teses prévias. Isso, sem FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 299 levar em conta o fato de ele ter “analisado” o pe- Também concordo com Loewenstein que, já em queno Hans, pelo método de usar o pai do menino 1958, afirmou: “Duvido que alguma vez alguém como “porta-voz” de suas interpretações, assim tenha conseguido levar a cabo uma análise sem como ele também utilizou a introdução de um que tenha feito mais do que interpretar”. Também “parâmetro” com o seu paciente conhecido como gostaria de fazer minhas as palavras de Theodore “o homem dos lobos”), ao lhe fixar uma data de Jacobs (1996) quando ele afirma que: “...Há situa- término da análise, caso ele continuasse não me- ções em que a aderência estrita à postura analíti- lhorando... e assim por diante. ca pode, ironicamente, trabalhar contra o progres- É claro que eram outros tempos, e outros eram so analítico...Há momentos em que é necessário os paradigmas psicanalíticos, no entanto grande fazer um comentário que relaxa uma tensão insu- parte dessa incoerência de Freud entre o que ele portável, que reconhece uma realização, que soa escrevia e o que fazia deve ser creditada ao fato, como um sinal de precaução, que sutilmente aponta antes assinalado, de que ele sentiu-se obrigado a uma direção ou que oferece uma palavra de in- coibir abusos de outros terapeutas ainda muito centivo. Para aliviar a consciência do analista, tais malpreparados, e sua responsabilidade pela preser- intervenções geralmente contêm uma camada ex- vação da nova ciência aumentou porque era a épo- terna de interpretação, mas este artifício não ilu- ca em que aconteceram as dissidências de Adler e de o analisando e nem o psicanalista” (p. 79-80). Jung, e a psicanálise estava em grande expansão Todas essas considerações tecidas acerca da em meio a muitas críticas e um certo halo de liber- importância do setting como uma função ativa e tinagem. determinante do processo analítico permitem con- Assim como Freud utilizou com o “homem do cluir que, para o psicanalista, representa ser uma lobos” o, acima aludido, recurso não convencional arte ele conseguir manter a preservação do setting em psicanálise, o qual, desde a contribuição de K. no que este tem de essencial, ao mesmo tempo em Eissler (1953), podemos denominar de “parâme- que não caia num extremo de um dogmatismo tro”, cabe indagar um ponto que sempre se mante- enrijecido ou numa cega obediência aos cânones ve controvertido entre os psicanalistas: é desejável oficiais, única forma dele propiciar um espaço de ou indesejável o uso de “parâmetros” por parte do alguma flexibilidade e muita criatividade, para si e psicanalista? Recordemos que esse termo foi utili- para o analisando. Indo mais além, coerente com a zado por Eissler para referir-se às intervenções que, relevância que atribuímos ao enquadre do campo embora sejam extra-analíticas, não alteram a es- analítico, creio que seria válido consideramos a sência do processo psicanalítico. No entanto, mui- obrigatória “preservação do setting”, dentro dos tos autores têm argumentado que é muito difícil limites assinalados, como sendo uma sexta regra estabelecer os limites entre o que seja, ou não, uma técnica. alteração da essência psicanalítica, e para evitar Como conclusão, pode-se dizer que assim como precedentes que possam desvirtuar a necessária há a “violência da interpretação” – conceito de P. preservação das regras técnicas e do setting, eles Aulagnier (1975), para quem a “violência” dos pais se posicionam contra a inclusão de parâmetros que (ou do analista) tanto pode ser inevitável e estru- se afastem da neurose de transferência. turante, como tembém pode ser excessiva, intrusiva Pessoalmente, penso como Green que, ao estu- e desestruturante – também há a violência da im- dar a obra de Winnicott, afirma que “o essencial posição de preconceitos e de regras técnicas uni- não é a eventual ruptura do setting, mas o fato de versais, quando o psicanalista não leva em conta que este possa ser sempre retomado”, sendo ób- as peculiaridades pessoais de cada analisando e de vio, creio, que isso implica na condição mínima de cada situação analítica em particular. que o psicanalista tenha uma sólida experiência clínica, e que domine muito bem aquilo que ele está fazendo.

CAPÍTULO Em se tratando de pacientes muito regressivos, como é o caso de crianças autistas, F. Tustin (1981) sugere que o setting analítico deve ser visto como uma incubadora na qual o “prematuro psicológi- co” possa encontrar as integrações básicas que a 27 criança ainda não realizou, porquanto ela não teve as condições ambientais mínimas para satisfazê- las desde o nascer. São pacientes que necessitam da presença viva de um objeto externo (no caso, o terapeuta) que tal como um útero psicológico, aco- O Setting (Enquadre) lha, aqueça e proteja a criança e que, tal como uma pele psíquica mantenha unidas as partes do self. Estes pacientes a que estamos aludindo sofrem a mais dolorosa de todas as angústias, que foi con- O setting, comumente traduzido em nosso idio- cebida e descrita por Freud com o termo Hilflo- ma como enquadre, pode ser conceituado como a sigkeit, como ele cunhou no original alemão, e que soma de todos os procedimentos que organizam, alude ao desamparo, ausência, solidão e falta de normatizam e possibilitam o processo psicanalíti- amor. Em certo sentido, a presença desses senti- co. Assim, ele resulta de uma conjunção de regras, mentos sempre remetem a uma separação geográ- atitudes e combinações, tanto as contidas no “con- fica ou afetiva da mãe e significam a perda do amor trato analítico” como também aquelas que vão se dela ou um acúmulo de necessidades e desejos não definindo durante a evolução da análise, como os satisfeitos por ela. dias e horários das sessões, os honorários com a Não obstante essa importante falta primária que respectiva modalidade de pagamento, o plano de sempre existe nesses casos, o psicanalista não de- férias... verá se comportar como uma mãe substituta, mas, Tudo isso se constitui como sendo “as regras sim, com uma nova condição de maternagem, que do jogo”, mas não o jogo propriamente dito. Con- permita, por meio de sua atividade analítica, a tudo, isso não quer dizer que o setting se comporte suplementação das falhas e vazios originais. Faz como uma situação meramente passiva e formal. parte importante desta “atitude psicanalítica inter- Pelo contrário, ele tem uma função bastante ativa e na” do analista – a qual também funciona como determinante na evolução da análise, serve de ce- um elemento essencial do setting – a necessidade nário para a reprodução de velhas e novas expe- dele emprestar temporariamente algumas funções riências emocionais e está sob uma contínua amea- do seu ego, que o analisando ainda não desenvol- ça em vir a ser desvirtuado tanto pelo analisando veu, como são as capacidades para pensar, ajuizar, como também pelo analista, em função do impacto conhecer, sintetizar, etc. Uma metáfora que pode de constantes e múltiplas pressões de toda ordem. servir como exemplo dessa função do setting – ain- Alguns autores, como Bleger (1979), preferem da enfocando pacientes muito prejudicados no seu fazer uma distinção entre setting e situação analí- desenvolvimento emocional – é a de uma mãe que tica: a primeira seria conceituada como a soma de ampara, levanta e encoraja a criança que caiu no todos os detalhes da técnica, enquanto a segunda chão durante os seus primeiros ensaios de aprendi- diz mais respeito à soma de todos os fenômenos zagem da individuação e marcha. que se processam na relação analista-analisando, Assim, o setting, por si mesmo, funciona como incluído o próprio enquadre. Nessa última concep- um importante fator terapêutico psicanalítico, pela ção, na psicanálise contemporânea, é impossível criação de um espaço que possibilita ao analisan- separar setting da noção de campo analítico, para do trazer os seus aspectos infantis no vínculo trans- empregar a terminologia do casal Baranger (1961), ferencial e, ao mesmo tempo, poder usar a sua par- que acentua a vincularidade emocional que está te adulta para ajudar o crescimento daquelas par- sempre presente entre o par analítico. tes infantis. Igualmente o enquadre também age Para os seguidores de Winnicott, o setting tam- pelo modelo de um provável novo funcionamento bém constitui-se como um espaço transicional, isto parental, que consiste na criação, por parte do psi- é, como um necessário “espaço de ilusão” para os canalista, de uma atmosfera de trabalho ao mesmo analisandos precocemente detidos no desenvolvi- tempo de muita firmeza (é diferente de rigidez) no mento emocional primitivo, portanto pacientes bas- indispensável cumprimento e preservação das com- tante regredidos e virtualmente portadores de uma patologia de natureza narcisística. 302 DAVID E. ZIMERMAN binações feitas, juntamente com uma atitude de prias da “parte psicótica da personalidade” acolhimento, respeito e empatia. (Bion, 1967), sempre existentes em qualquer O destaque que está sendo dado à participação paciente. do analista no setting e na situação psicanalítica, • Desfazer as fantasias do analisando, que sem- visa enfatizar que já vai longe o tempo em que ele pre está em busca de uma ilusória simetria se conduzia como um privilegiado observador neu- (uma mesma hierarquia de lugar e papéis) e tro, atento unicamente para entender, descodificar e interpretar o “material” trazido pelo analisando; de uma similaridade (ser igual nos valores, pelo contrário, hoje é consensual que a sua estrutu- crenças e capacidades) com o analista. ra psíquica, ideologia psicanalítica, empatia, con- • Reconhecer que é unicamente sofrendo as teúdo e forma das interpretações contribuem, de inevitáveis frustrações impostas pelo setting, forma decisiva, nos significados e nos rumos da desde que essas não sejam exageradamente análise. Isso está de acordo com o “princípio da excessivas ou escassas, que o analisando (tal incerteza”, uma concepção de Heisenberg, que pos- como a criança no passado), pode desenvol- tulou o fato de que o observador muda a realidade ver a capacidade para simbolizar e pensar. observada, conforme for o seu estado mental du- rante uma determinada situação, a exemplo do que A propósito, Green estabeleceu uma útil dis- se passa na física subatômica, na qual uma mesma tinção entre privação (é algo que falta, e tem ori- energia em um dado momento é “onda” e em outro gem nas necessidades não satisfeitas, no passado), é “partícula”. Nesse contexto, analista e analisan- frustração (algo que não se realiza e alude princi- do fazem parte da realidade psíquica que está sen- palmente aos desejos existentes, no presente) e do observada e, portanto, ambos são agentes da castração (algo que pode vir a faltar, no futuro). modificação da realidade exterior à medida que Cabe acrescentar que essas – frustrantes – vivências modificam as respectivas realidades interiores. emocionais básicas são inerentes ao processo ana- lítico, em grande parte são desencadeadas pela pró- pria natureza frustradora do setting, e o seu surgi- FUNÇÕES DO SETTING mento no enquadre é necessário porque vai possi- bilitar o aprofundamento da análise de suas raízes É útil insistir na afirmativa de que, uma vez ins- e conseqüências.. tituído, o setting deverá ser preservado ao máxi- Assim, a função mais nobre do setting consiste mo, sendo que, diante da habitual pergunta: “Isso na criação de um novo espaço onde o analisando também vale com pacientes muito regredidos, como terá a oportunidade de reexperimentar com o seu os psicóticos?”, penso que uma resposta adequada analista a vivência de antigas e decisivamente é a de que essa recomendação vale principalmente marcantes experiências emocionais conflitosas que para este tipo de pacientes. Isso se deve às razões foram malcompreendidas, atendidas e significadas de que, além das finalidades acima apontadas, tam- pelos pais do passado e, por conseguinte, malsolu- bém fazem parte das funções do setting: cionadas pela criança de ontem, que habita a men- te do paciente adulto de hoje. • Estabelecer o aporte da realidade exterior, Levando-se em conta que virtualmente todo com as suas inevitáveis privações e frustra- paciente é, pelo menos em parte, um sujeito que ções. passou toda a sua vida sujeitado a uma série de • Ajudar a definir a predominância do princí- mandamentos, sob a forma de expectativas, ordens pio da realidade sobre o do prazer. e ameaças, as quais um dia provieram do meio ex- • Prover a necessária delimitação entre o “eu” terior, mas que agora estão sedimentadas no inte- rior do seu psiquismo, acredito que dificilmente ha- e os “outros”, por meio da função de desfa- verá uma experiência mais fascinante do que aque- zer a especularidade e gemelaridade típica la em que ele está revivendo com o seu analista destes pacientes. fortes emoções, os aspectos agressivo-destrutivos • Auxiliar, a partir daí, a obtenção das capaci- incluídos, e que os resultados podem ser bem dife- dades de diferenciação, separação e indivi- rentes daqueles que imaginava e aos quais ele já duação. estava condicionado. • Definir a noção dos limites e das limitações A importância disso decorre do fato de que, que provavelmente estão algo borrados pela apesar de todos sentimentos, atos e verbalizações influência da onipotência e onisciência, pró- significados pelo paciente como proibidos e peri- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 303 gosos, o setting mantém-se inalterado: o analista ência às combinações externas. Um exemplo disso não está destruído, nem deprimido, tampouco está seria o caso de o analista manter-se rígida e mani- colérico, não revida nem retalia, não apela para festamente fiel ao cumprimento das regras da abs- medicação e muito menos para uma hospitalização, tinência e da neutralidade, posicionar-se quanto a não o encaminha para um outro terapeuta, sequer um número mínimo de quatro (ou cinco) sessões modificou o seu estado de humor habitual e ainda semanais, privilegiar, de forma absoluta, o uso do se mostra compreensivo e o auxilia a dar um novo divã, nunca dispensar a sistemática interpretação significado, uma nomeção e propicia extrair um transferencial..., sem levar em conta algumas even- aprendizado com a experiência que tão sofridamen- tuais contingências reais, que possam justificar al- te ele reexperimentou. guma flexibilidade na aplicação desses procedimen- Os alicerces básicos que sustentam o setting tos clássicos. repousam na obediência às cinco regras técnicas Não pode ser descartada a hipótese de que, legadas por Freud, explicitadas no capítulo ante- muitas vezes, estes elementos do setting possam rior: 1) regra fundamental (é considerada como sen- estar funcionando não mais do que a serviço de do sinônima com a livre associação de idéias); 2) uma fetichização da análise, onde o que “parece abstinência; 3) neutralidade; 4) atenção flutuan- ser” substitui aquilo que “de fato, é”, e, por conse- te; e 5) amor à verdade. Embora essas “recomen- guinte, onde vai prevalecer a aparência externa, e dações”, de modo geral, continuem válidas e vi- não a essência visceralmente interna do processo gentes em sua ideologia essencial, deve ser levado analítico. em conta que na psicanálise atual elas estão bas- Assim como pode existir um desvirtuamento do tante modificadas em muitos aspectos. setting devido a uma excessiva rigidez (é diferente Existem riscos de que o cumprimento dessas de firmeza) do analista, também não podemos ig- regras, se praticadas pelo psicanalista de uma for- norar os incovenientes, por vezes graves, que de- ma estereotipada e sem uma sensibilidade mais fina correm de uma exagerada permissividade (é muito para alguma situação em especial, fique desvirtua- diferente de flexibilidade) na aplicação, e indispen- do na essencialidade de sua importância, e que, sável preservação, das condições normativas que assim, as regras não passem de um mero ritual ob- foram combinadas no contrato, e se essas não fo- sessivo aplicado de forma mecânica e rígida. As- ram claramente combinadas, torna-se mais sério sim, no início do movimento psicanalítico, fazia ainda o erro técnico. parte do contrato que os pacientes se comprome- Assim, alguns analistas evitam ao máximo que tessem a não assumir nenhuma responsabilidade os seus analisandos sofram frustrações, sob a racio- importante durante o curso da análise. Hoje, com a nalização de que estão sendo “humanos”, como se duração mais longa da análise, sabemos que esse é a condição de frustrar, e assim provocar algum tipo um princípio inútil e até prejudicial, pois pode le- de dor no analisando (ou na criança, por parte dos var à falsa crença de que somente a vida analítica é educadores), fosse uma “desumanidade”. Não é importante, e que o paciente deve fazer uma pausa nada raro que tais analistas confundam o impor- na sua vida real, com a promessa de que a reassu- tante atributo de o psicanalista ser uma pessoa ge- mirá, posteriormente, em condições idealizadas. nuinamente boa – o que, por si só, contribui como Outro incoveniente de um contrato com muitas um fator estruturante da personalidade do analisan- cláusulas dessa natureza consiste em reforçar, des- do – com a condição de ele ser bonzinho. Neste de o início, um vínculo tipo “dominador” versus último caso, o psicanalista não saberá frustrar, nem “dominado”, com todos os prejuízos daí decorren- colocar limites e definir limitações, nem propiciar tes. Por exemplo, o analista pode estar endossando a possibilidade de analisar sentimentos agressivos a tese do analisando de que, para conseguir tudo o no calor da transferência e tampouco despertará o que ele almeja da análise, basta se esforçar, não lado adulto do analisando que, conforme ensinou faltar, não se atrasar, pagar direitinho, etc. Vai se Bion (1962), deve aprender a enfrentar as dificul- estruturando uma crença de que o trabalho deve dades e modificá-las, como um passo fundamental ser valorizado, não tanto pelo resultado alcançado, para o crescimento mental, no lugar de evadi-las mas sim pelo esforço dispendido, e isso conflitua por meio de diferentes táticas de negação e de fu- com os valores reais da vida. gas, o que perpetua o estado de criança dependen- Da mesma forma, também há o risco de que te e onipotente. aquilo que realmente caracteriza o conceito do que Também devemos considerar o fato de que o é uma análise verdadeira seja confundido simples- analista, que evita ao máximo frustrar o paciente mente com uma rigorosa, embora honesta, obedi- em seus pedidos por mudanças nas combinações 304 DAVID E. ZIMERMAN do setting, pode estar encobrindo uma atitude se- incoerente (a mesma coisa que em um dia foi per- dutora a serviço do seu narcisismo, ou o seu medo mitido e até incentivado, no outro é criticado e proi- diante de uma possível revolta e rejeição por parte bido), às vezes sob a forma daquilo que Bateson do analisando. Além disso, também acresce o (1955) denomina como dupla mensagem ou men- incoveniente de um reforço no paciente, de uma sagem paradoxal (do tipo: “eu te ordeno, que não falsa concepção de que a frustração é sempre má e aceites ordens de ninguém”), provindas da mãe, ou que deve ser evitada, assim como a do analista deve do pai, ou das incoerências entre ambos. ser poupado de suas cargas agressivas; nesses ca- Em situações mais extremas, o setting pode fi- sos, o enquadre corre o risco de ficar estruturado car desvirtuado a um tamanho tal, que cabe a ex- em uma busca única de gratificações recíprocas. pressão perversão do setting, em cujo caso formam- Em contrapartida, outras vezes pode ocorrer o se diversos tipos de conluios inconscientes e até, inverso, isto é, para que o paciente ganhe algo, deve por vezes, conscientes, sendo o mais freqüente de- ser como prêmio pelo sofrimento, ou merecimento les aquele ditado pela necessidade recíproca de pelo seu esforço, ou por um bom comportamento. sedução, para agradar e ser agradado (nem estou Isso acontece mais freqüentemente com aqueles incluindo, aqui, aqueles casos gravíssimos do pon- pacientes que, desde crianças, foram condiciona- to de vista de uma psicanálise séria, em que há uma dos pelos pais a ganhar as coisas com muito choro, quebra de ética e uma total perversão sob a forma luta, formações reativas e prováveis humilhações. de envolvimento erótico, negócios em comum, Em outras palavras, o controle sádico, inconscien- amizade íntima fora do enquadre, etc.). te, por parte do analista, pode levá-lo a utilizar pri- Não é incomum que, por parte do psicanalista, vações severas e desnecessárias, e ele pode pensar, essa atitude de sedução – logo, de não-frustração, orgulhosa, porém de modo errado, que está acerta- com concessões e gratificações não analíticas – te- damente obedecendo à regra da abstinência e que nha origem no seu medo de vir a perder o seu pa- Freud se orgulharia dele. ciente, e ele não se dá conta do fato que consiste A experiência de sofrer frustrações não só é em que, justamente por ele estar trabalhando em inevitável como também é indispensável para uma um estado mental de medo e agrados, é que au- estruturação sadia do psiquismo, muito especial- mentam as possibilidades de a análise vir a ser in- mente para a formação e a utilização da capacida- terrompida. Pode-se dizer que a melhor forma de de para pensar, tal como demonstraram as origi- “atender” os pedidos e desejos do analisando é nais concepções de Freud (1911) e de Bion (1967). “entendê-los”, e que a melhor forma de agradar e As frustrações impostas pelas pessoas importantes gratificá-lo é analisá-lo suficientemente bem. do mundo exterior – incluído, portanto, o analista “Analisar bem” necessariamente implica a exis- no setting – não devem ser por demais escassas, tência de frustrações; no entanto, creio ser impor- excessivas ou incoerentes. tante que o analista faça uma distinção entre as frus- No primeiro caso, como conseqüência de uma trações que são inevitáveis e necessárias daquelas exagerada escassez de frustrações, não se formará outras que podem ser evitáveis e são desnecessá- um “problema a ser resolvido”, que é a alavanca rias, porquanto, estas últimas, não representam o propulsora da necessidade de pensar uma forma menor ganho para o processo analítico e as dores de achar uma solução, e tampouco se desenvolve- que elas produziram foram inúteis. Este aspecto nos rá a capacidade para formar símbolos, que têm a remete a um ponto bastante controvertido entre os finalidade de ocupar o lugar daquilo que está au- autores: é possível, ou até mesmo desejável, o even- sente ou falta. Quando as frustrações são excessi- tual emprego de “parâmetros”, sem que a necessá- vas, é tamanho o ódio despertado que as emoções ria preservação do setting fique comprometida? resultantes não se converterão em elementos-“alfa” (para usar uma terminologia de Bion), restando unicamente como “elementos-beta” que, não custa A INCLUSÃO DE PARÂMETROS repetir, não se prestam para o pensamento útil, mas, sim, para serem “evacuados” sob a forma de Parâmetro é uma denominação cunhada por actings, somatizações, etc. Igualmente, se as frus- Eissler (1953), com a qual ele reafirmou a sua po- trações impostas pelo setting forem incoerentes, sição de que tudo aquilo que transgrida o enquadre provocam um estado confusional deletério para a deve ser considerado como sendo um “parâmetro”, análise, e também pode estar igualando o analista ao mesmo tempo de que aventou a possibilidade às figuras parentais, assim reforçando uma forma de o psicanalista poder se afastar parcialmente das de educação que, no passado, provavelmente, foi recomendações técnicas preconizadas pela psica- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 305 nálise clássica e, assim, introduzir alguns outros soa perfeita e infalível), mas, sim, para aquelas si- aspectos, desde que nada disso interfira na evolu- tuações em que o próprio analista é quem desvir- ção normal de uma análise. Aliás, o termo “parâ- tua as combinações. metro” aparece nos dicionários com a significação Exemplo disso é quando ele se atrasa sempre, de que é “todo elemento cuja variação de valor al- ou continuamente muda os horários, encurta ou tera a solução de um problema sem alterar-lhe a prolonga excessivamente o tempo da sessão, faz natureza essencial”. espúrias combinações relativas ao pagamento, es- Assim, é permissível que, de forma transitória, timula os contatos telefônicos de forma ilimitada, ou até definitiva, uma análise comum se processe envolve-se exageradamente com as circunstâncias com menos de quatro sessões semanais ou com uma externas da vida do analisando, estabelece víncu- periodicidade que inclui a realização de duas ses- los sociais de maior continuidade e intimidade, usa sões em um mesmo dia? É válida a análise que se o paciente para satisfazer a sua curiosidade parti- efetua por longos períodos sem que o analisando cular e para atraí-lo como aliado contra algum pos- use o divã? Perguntas equivalentes poderiam ser sível rival ou detrator, e assim por diante... formuladas, como, por exemplo, quanto à forma Conquanto existe o fato notório de que, na atua- de interpretar, na extratransferência; ou quanto à lidade, cada vez mais os psicanalistas estão se per- conveniência de responder a algumas perguntas mitindo o emprego de parâmetros nas análises co- pessoais ou a de atender a solicitações, como a de muns – notadamente aos que se referem ao número fornecer indicações de profissionais; a adequação de sessões semanais – que, em grande parte se deve de concordar com o uso simultâneo de quimiote- às profundas modificações sócio-econômicas que rápicos, etc., etc. vêm se processando no mundo todo, a verdade é Deve ficar bem claro que o emprego de parâ- que a nossa instituição-mater, a IPA, continua re- metros deve atender três condições básicas: uma, é sistindo tenazmente em sua luta pela preservação a de que o psicanalista tenha uma absoluta segu- das condições clássicas das análises de natureza rança e domínio sobre aquilo que ele está fazendo didática, isto é, aquelas que envolvem os candida- e introduzindo no setting, e de que essa alteração tos na vigência de sua formação como psicanalis- não vai danificar a essência da análise, o que está tas. Poucos discordarão do fato de que a IPA está de acordo com o que Sandler (1983) apresentou no seu papel de zelar pela integridade e continui- no congresso de Madri, onde postulou a noção de dade dos princípios fundamentais que pavimentam parâmetros lícitos ou inevitáveis. A outra condi- a formação e o exercício da prática psicanalítica, ção é a de que no caso em que a proposta de altera- embora haja a existência de profundas controvér- ções mais profundas do enquadre provenham de sias no seu próprio seio. insistentes pedidos do analisando, elas somente Os próprios candidatos, em sua maioria, embo- devem ser atendidas após uma exaustiva análise ra sintam uma permanente angústia em conciliar a das mesmas, tendo em vista estabelecer uma clara sua realidade pessoal com as exigências formais distinção entre aquilo que se deve à pressão de uma da sua análise obrigatoriamente standard, e igual- justificada realidade, e o que pode estar a serviço mente sintam um constante sobressalto se poderão de um acting. Por fim, a terceira condição para a manter com os seus analisandos em supervisão ofi- introdução de parâmetros de maior densidade é a cial e curricular, as radicais obrigações impostas de que o par analítico tenha condições de retornar, pelos seus respectivos institutos de ensino filiados se for necessário e possível, às condições prévias. à IPA, a verdade é que, após passada a tormenta, Sobretudo, o que importa consignar é que co- costumam reconhecer que essa foi a melhor ma- mumente conspiram forças, tanto incoscientes como neira de eles terem feito uma formação séria e conscientes, para transgredir e desvirtuar a preser- definidora de uma legítima identidade como psica- vação do setting, tal como ele foi inicialmente com- nalista, e que unicamente após terem concluído binado, sendo que, quando essa pressão parte do exitosamente a sua formação com os padrões obri- analisando, devemos levar em conta que ele está gatórios e terem solidificado essa identidade é que rigorosamente dentro do seu papel de tentar alterar poderão se permitir, se for o caso, a introduzir as regras do jogo. Semelhante privilégio, no entan- parâmetros com os seus outros analisandos. Tam- to, está vedado ao psicanalista. É claro que não bém entre os psicanalistas didatas, em algum grau, estamos nos referindo a alterações ocasionais ou não é infreqüente surgir um certo conflito entre a imprevisíveis a que todos temos direito (aliás, até sua liberdade e a necessária regulamentação im- é útil que isso aconteça ocasionalmente, para des- posta pela IPA. fazer a falsa crença de que é uma espécie de pes- 306 DAVID E. ZIMERMAN

De uma forma equivalente, tem sido muito dis- em situações mais extremas, esteja correndo um cutida entre a IPA e algumas sociedades psicanalí- risco de se esvaziar ou desaparecer. Embora essa ticas, com condições específicas, como são as de última possibilidade de forma nenhuma condiz com natureza geográfica, por exemplo, e que reivindi- o atual momento da psicanálise no mundo, é ine- cam o direito de ser oficializada a assim denomi- gável que existe uma crise. O que não está sufi- nada análise condensada, que consiste no fato de cientemente claro é se a crise é da psicanálise ou que, em determinados casos, a análise com o can- dos psicanalistas ou de ambos. Por isso, muitos de- didato decorra com a realização de duas sessões dicados e notáveis psicanalistas estão propondo, e em um mesmo dia, embora perfazendo o total de até mesmo efetivando, a que se proceda a “uma quatro semanais. Muitas sociedades psicanalíticas análise da psicanálise”. do Brasil, devido às peculiaridades típicas de cer- Muitas das controvérsias, tal como frisamos tas regiões, sentem-se compelidos ao exercício des- antes, dizem respeito diretamente às condições sa prática, e brilhantes trabalhos de reconhecidos mínimas que devem reger a uma análise, notada- autores brasileiros, como o de Junqueira Mattos mente a de finalidade didática. Preocupada com (1996), provam, não passionalmente, mas, sim, com esse problema, a IPA proporcionou a criação e ins- argumentos científicos e respaldados em uma lon- talação de um Comitê sobre o Setting, o qual fun- ga prática clínica, a perfeita validade dessa moda- cionou com a participação de respeitáveis psicana- lidade de análise. listas advindos de distintas sociedades psicanalíti- De qualquer forma, nos últimos tempos, tem cas, procedendo a um amplo e democrático debate sido muito difícil e árdua a tarefa da IPA em conci- sobre alguns temas relevantes relacionados ao en- liar divergências tanto científicas quanto ideológi- quadre. Vale a pena ler na íntegra o “Relatório do cas e políticas, interesses associativos, contínuas Comitê da IPA sobre o Setting”, publicado na Re- mudanças sociais e, sobretudo, o inconformismo vista Brasileira de Psicanálise (27,2, p. 331, 1993), de muitos psicanalistas em todos cantos do mundo do qual, aqui, segue um resumo bastante detalha- em seguir exatamente de acordo com as diretrizes do, com a enumeração dos seguintes aspectos, que traçadas pela nossa instituição maior. Os próprios mereceram um reconhecimento geral de que: pacientes que na atualidade procuram auxílio tera- pêutico estão algo confusos e assediados por uma • O processo analítico caracteriza-se pelo es- gama de ofertas de tratamentos alternativos, alguns tabelecimento de uma “neurose de transfe- que acenam com recursos mágicos e com promes- rência”, ou, melhor, pela escuta da relação sas de curas rápidas, outros que nada têm de psica- transferencial-contratransferencial. nalítico, mas que intencionalmente conservam uma • O número de sessões semanais, por si só, não dubiedade e indevidamente usam algum nome de basta para definir o processo analítico. alusão psicanalítica, enquanto muitos outros trata- • O número recomendável já foi de seis, pas- mentos têm realmente uma sólida fundamentação sou para cinco, estabilizou na maioria dos psicanalítica e constituem distintas modalidades de lugares em quatro e na atualidade alguns terapias psicanalíticas. centros importantes estão permitindo e ado- Além disso, as crescentes dificuldades orçamen- tando três sessões por semana, inclusive para tárias que atingem a uma enorme fatia das pessoas necessitadas de tratamento analítico, o progressi- as análises didáticas. vo avanço dos psicofármacos, muitas vezes de ine- • Este número de três sessões, segundo o con- quívoca utilidade e que inclusive pode auxiliar ao senso do Comitê, seria comprovadamente o processamento da própria análise (isso não exclui mínimo necessário para uma adequada pro- o também crescente sério risco do uso incompe- moção do processo analítico, mas essa ob- tente, abusivo, indevido e inconseqüente desses servação continua sendo puramente empí- mesmos fármacos), aliados a um certo descrédito rica. popular, têm mantido o movimento psicanalítico • A concepção inglesa se atém à necessidade sob uma constante ameaça de crise. de quatro – de preferência cinco – sessões Sabemos que toda e qualquer crise pode ter um semanais, enquanto a concepção francesa, significado positivo, quando ela representa a cul- que aceita a validade de três sessões emanais, minância de um processo que sugere necessárias transformações profundas, ou pode ter um signifi- atribui uma maior importância à dialética cado negativo quando ela estiver indicando que algo entre a análise do “aqui-agora...” e o traba- está perdendo a consistência e a unidade, e que, lho psíquico que ocorre nos intervalos entre FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 307

as sessões. A propósito dessa diferença de tualmente possam ter pesado outros fatores parale- posição, também existe uma forte e antiga los como os de natureza política ou meramente rivalidade cultural entre estes dois importan- burocrática. De qualquer forma, temos de levar em tes pólos da psicanálise, tal como se pode conta que é necessário construir uma unidade en- depreender deste trecho espirituoso proferi- tre as diferentes correntes do pensamento psicana- lítico, e também entre psicanalistas pertencentes a do por J. Sandler, então presidente da IPA, uma mesma corrente, desde que fique claro que em uma entrevista concedida à revista IDE unidade não significa a abolição das diferenças, (1990, p. 62): “...portanto, as diferenças téc- divergências e opostos; pelo contrário, da mesma nicas são muito grandes e não é preciso pri- maneira como se passa na situação analítica, é ne- vilegiar o número de sessões. Do ponto de cessária a existência dos opostos e contraditórios, vista dos franceses, nós, os ingleses, faze- única forma de erigir um processo dialético cons- mos psicoterapia cinco vezes por semana, trutivo e em um movimento de espiral infindável, enquanto eles fazem psicanálise duas ou três continuamente transformador. vezes por semana...”. Aliás, Green (1994- RBP, p. 472), chega a afirmar que cinco ses- sões semanais têm o incoveniente de funcio- SIMETRIA. SIMILARIDADE. ISOMORFIA nar como um modelo reforçador de uma maternagem. Uma outra conclusão que o “Relatório do Co- mitê da IPA” permite depreender, parece-me, con- Também o tempo de duração de cada sessão • siste na existência de uma tendência para valorizar já foi de 60 minutos, ficou reduzida em 50 e mais aos aspectos inte-rrelacionais inerentes ao atualmente muitos psicanalistas estão ado- setting do que propriamente aos arranjos formais, tando o tempo médio de 45 minutos. embora, é evidente, esses devam ser preservados • O número de sessões é um fator que conta ao máximo possível. Os aludidos aspectos que di- mas não é o único. A qualidade da regressão zem respeito diretamente ao vínculo analítico, e também deve ser levada em conta. que, esses sim, devem ser rigorosamente cumpri- • É recomendável que haja uma flexibilidade, dos pelo analista, podem ser resumidos em três de modo que seja instituído um setting “su- conceituações que seguem abaixo: ficientemente bom” que considere as condi- ções e peculiaridades do analisando, e tam- bém as do analista. Simetria • Levando-se em conta a função continente do setting, é justo considerar que, no caso de A grande maioria dos pacientes demonstra, alguns pacientes que se sentem invadidos manifesta ou disfarçadamente oculta, um inconfor- mismo pelo fato de que a relação entre cada um pela presença do analista, pode haver uma deles com o seu respectivo psicanalista, não é – e indicação mais firme de uma freqüência mais não pode ser! – simétrica. Ou seja: o lugar que cada reduzida, enquanto outros pacientes frágeis um ocupa no setting; os papéis que respectivamente podem requerer uma maior freqüência de desempenham no campo analítico; a inevitável e sessões. necessária hierarquia que os diferencia; o desem- • Como orientação geral, o Comitê optou por penho de certas funções, o sofrimento, a depen- um setting que não seja rígido e que leve em dência, os direitos e privilégios não são os mes- conta as distintas situações específicas. mos entre eles. É natural que o analisando, através de diversas manobras, inconscientes em sua gran- É evidente que a consensualidade demonstrada de maioia, procure desfazer a essa odiada assi- por esse Comitê em pelo menos um dos importan- metria, por mais que o seu lado racional reconheça tes tópicos relativos ao setting, como é o do núme- a sua indispensabilidade. ro mínimo de sessões, tem os méritos de sugerir a A intensidade de tais aspectos está na propor- existência de uma saudável preocupação por parte ção direta do grau de narcisismo da estrutura psí- da IPA, assim como comprova a possibilidade de quica do paciente e as contínuas queixas ou actings um diálogo frutífero entre pensadores diferentes, e de protesto e de ataques contra aquilo que eles po- mais: parece indicar uma orientação de ideologia dem estar julgando como sendo uma grande injus- psicanalítica de maior flexibilidade, embora even- tiça. A revolta desses pacientes deve merecer uma 308 DAVID E. ZIMERMAN exaustiva análise, no lugar de que as queixas e rei- Isomorfia vindicações serem atendidas ou minimizadas. Tal como foi antes enfatizado, talvez o maior mérito que o setting representa consiste na criação Similaridade de um novo espaço para o analisando, raro e singu- lar, que lhe permita reexperimentar, no vínculo com Da mesma maneira, deve ficar bem claro que, o analista, a antigas – e novas – experiências emo- na situação analítica, não há uma similaridade en- cionais, de modo a poder estabelecer novas identi- tre o paciente e o terapeuta, isto é, eles não são ficações, significações e soluções, diferentes da- pessoas iguais naquilo que diz respeito aos valo- quelas que ele vinha repetindo estereotipadamente. res, crenças, forma de pensar, trabalhar, resolver Para tanto, uma das funções do setting é a de pro- problemas, etc. Essa situação ocorre mais comu- piciar uma isomorfia entre o que o paciente, no mente com pacientes que ainda não atingiram uma presente, busca na transferência com o analista, e condiçõ mental que possibilite estabelecer aquilo aquilo que no passado, ele tentou encontrar com a que M. Mahler e colaboradores (1971) denominam mãe. Isso vale para qualquer paciente, porém ad- de diferenciação ((discriminação entre “eu” e o quire uma importância especial quando se trata de “outro”), separação e individuação. analisandos muito regressivos, nos quais houve uma Para um melhor esclarecimento do tipo de pa- grave falha na função materna. ciente que necessita forçar uma “similaridade” no O fundamental, no entanto, é que não se con- setting, é útil referir as contribuições de Kohut funda “isomorfia” (significa: “uma forma análoga”) (1971) acerca da transferência especular, a qual com um estado de plena igualdade. Deve haver uma admite três tipos: 1) No tipo fusional, há uma com- isomorfia com os cuidados maternos originais – pleta indiferenciação com o analista e, por isso, durante um período transitório! – porém o analista paciente acredita que a similaridade dele com o não pode assumir o lugar e o papel da mãe, como terapeuta, não só é óbvia, como também é uma se, de fato, ele esteja sendo uma mãe substituta, obrigação desse último ter que aceitar essa condi- mas, sim, ele deve emprestar algumas funções de ção. 2) Tipo gemelar: nesses casos, embora o pa- maternagem. ciente admita, em parte, que o analista é uma pes- Se essas três condições não forem preservadas soa autônoma dele, persiste uma convicção de que de forma bem definida no setting, ele corre o sério eles são como que gêmeos univitelinos, na forma risco de ficar desvirtuado, com prejuízos para a de pensar e de agir. 3) Tipo especular propriamen- evolução exitosa dos aspectos regressivos de cada te dito: nesse caso, o paciente concede uma auto- paciente, com o risco de o analista “sair do seu lu- nomia bem maior ao analista e reconhece muitas gar” e do campo analítico adquirir um clima diferenças entre eles, porém não dispensa a sua cer- confusional, com o borramento das diferenças, per- teza de que cada um deve mirar-se no espelho do da dos limites e do sentido da realidade e, pior que outro. tudo, de se prolongar por muitos anos um “faz-de- Desfazer gradativamente essa ilusória similari- conta que é análise”. dade provoca muita dor, confusão e ódio nesse tipo Ademais, por mais que os analisandos possam de paciente de orgaanização narcisista; contudo é pressionar para transgredir ou perverter essas três a única forma de manter a estabilidade do setting e condições básicas, no fundo eles receiam que o seu de propiciar um crescimento verdadeiro. Em caso psicanalista fraqueje, porquanto, em sua grande contrário, se o analista não mantiver bem delimita- maioria, aquilo que todo paciente deseja é unica- das as diferenças, vai acontecer uma alta probabi- mente sentir e saber que está sendo bem analisado! lidade de actings e de contra-actings. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 309

CAPÍTULO tra o analista e vice-versa. Um exemplo disso é uma antiga referência de Freud, comumente muito cita- da: “o inimigo não pode ser vencido in absentia ou effigie” (1912, p. 199). Em A interpretação dos sonhos (1900), os con- 28 ceitos de resistência e de censura estão intimamente relacionados: a “censura” é para os sonhos aquilo que a “resistência” é para a associação livre. Neste trabalho, em suas considerações sobre o esqueci- mento dos sonhos, Freud deixou postulado que uma Resistências das regras da psicanálise é que tudo o que inter- rompe o progresso do trabalho psicanalítico é uma resistência” (p. 551). Aos poucos, com a tática de ir da periferia em Desde os primórdios da psicanálise, o fenôme- direção à profundidade, Freud foi entendendo que no resistência tem sido exaustivamente estudado o reprimido, mais do que um corpo estranho, era em sua teoria e técnica, mas nem por isso, na atua- algo como um “infiltrado”. Assim, ele começa a lidade, perdeu em significação e relevância. Pelo deixar claro que a resistência não era dirigida so- contrário, ele continua sendo considerado a pedra mente à recordação das lembranças penosas, mas angular da prática analítica e, cada vez mais, os também contra a percepção de impulsos inaceitá- autores prosseguem estudando-o sob renovados veis, de natureza sexual, que surgem distorcidos. vértices de abordagem e conceitualização. Com isso, Freud conclui que o fenômeno resis- Na qualidade de conceito clínico, a concepção tencial não era algo que surgia de tempos em tem- de resistência surgiu quando Freud discutiu as suas pos na análise, mas sim que ele está permanente- primeiras tentativas de fazer vir à tona as lembran- mente presente. ças “esquecidas” de suas pacientes histéricas. Isto Freud aprofundou bastante o estudo sobre as data de antes do desenvolvimento da técnica da Resistências em Inibição, sintoma e angústia associação livre, quando ele ainda empregava a (1926), quando, utilizando a hipótese estrutural, hipnose, e a sua recomendação técnica era no sen- descreveu cinco tipos e três fontes das mesmas. Os tido de insistência (por parte do psicanalista) como tipos derivados da fonte do ego eram: 1) Resistên- o contrário da resistência (por parte do paciente). cia de repressão (consiste na repressão que o ego Este método de coerção associativa empregado por faz, de toda percepção que cause algum sofrimen- Freud incluía uma pressão de ordem física que ele to). 2) De transferência (o paciente manifesta uma próprio procedia e recomendava como “colocan- resistência contra a emergência de uma transferên- do a mão na testa do paciente, ou lhe tomando a cia “negativa”, ou “sexual”, com o seu analista). 3) cabeça entre minhas duas mãos...”(1893-v. 5, pp. De Ganho secundário (pelo fato de que a própria 137; 327) a fim de conseguir a recordação e verba- doença concede um benefício a certos pacientes, lização dos conflitos passados. como os histéricos, personalidades imaturas,e aque- Freud empregou o termo resistência, pela pri- les que estão pleiteando alguma forma de aposen- meira vez, ao se referir a Elisabeth Von R. (1893), tadoria por motivo de doença, essas resistências com a palavra original widerstand, sendo que em são muito difíceis de abordar, eis que egossin- alemão “wider” significa “contra”, como uma opo- tônicas). 4) As resistências provindas do id (Freud sição ativa. Até então a resistência era considerada as considerava como ligadas à “compulsão à repe- exclusivamente como um obstáculo à análise, tição” e que, juntamente com uma “adesividade da correspondendo sua força à quantidade de energia libido”, promovem uma resistência contra mudan- com que as idéias tinham sido reprimidas e expul- ças. 5) Por fim, a resistência oriunda do superego, sas de suas associações. a mais difícil de ser trabalhada, segundo Freud, por O termo “resistência”, por longo tempo, foi causa dos sentimentos de culpa que exigem puni- empregado com uma conotação de juízo pejorati- ção. vo. A própria terminologia utilizada para caracte- No clássico análise terminável e interminável rizá-la, em épocas passadas (de certa forma, ainda (1937), Freud introduz alguns novos postulados persistindo no presente), era impregnada de expres- teórico-técnicos, e creio que se pode dizer que aí sões típicas de ações militares, como se o trabalho ele formula um sexto tipo de resistência: a que é analítico fosse uma beligerância do paciente con- provinda do ego contra o próprio ego: “...em cer- 310 DAVID E. ZIMERMAN tos casos, o ego considera a própria cura como te sobre resistências, deixou um importante legado um novo perigo” (p. 271). A meu juízo, Freud está sobre este tema, notadamente pelo seu enfoque da aqui intuindo e prenunciando aquilo que Rosenfeld vincularidade analítica, como será descrito mais (1965) veio a chamar de “gangue narcisista” e adiante. Steiner (1981) de “organização patológica”. Entrementes, as sementes de Freud continuam Neste mesmo trabalho de 1937, Freud aporta frutificando. Um exemplo disto pode ser dado a outras importantes contribuições sobre resistências, partir de seus estudos sobre o ideal do ego. Assim, como são as seguintes: o conceito de reação em Introdução ao Narcisimo (1914, p. 105) apare- rerapêutica negativa (RTN) como sendo aderido ce o seguinte trecho “... deverá realizar (a crian- ao instinto de morte; a valorização do papel da ça) os desejos, não-cumpridos, de seus pais”. Ba- contratransferência, sendo que ele aponta que a seados em afirmativas desta essência, um signifi- resistência do analisando pode ser causada pelos cativo contingente de analistas, inspirados em erros do analista, a observação de que a resistên- Lacan, que advoga um “retorno a Freud”, tem ex- cia no homem se devem ao medo dos desejos pas- traído uma significação especial para a compreen- sivo-femininos em relação a outros homens, en- são de algumas formas de resistência nas terapias quanto a resistência das mulheres deve-se em gran- psicanalíticas. Sua formulação básica fica baseada de parte à “inveja do pênis”; e Freud também alu- no fato de que o desejo da criança (paciente) é o de de ao surgimento de uma “resistência contra a re- ser desejado pelo Outro (pais no passado; terapeu- velação das resistências” (p. 272). ta, no presente). Muitos outros autores, contemporâneos de/ou Em outras palavras, a criança, para garantir o posteriores a ele, trouxeram importantes contribui- amor dos pais, pode ter aprendido, desde sempre, ções ao estudo das resistências, como são, entre a adivinhar e a cumprir as expectativas ideais dos tantos outros: Ferenczi (1918) apontou para o fato mesmos; logo, o seu desejo confunde-se como sen- de que a própria regra fundamental da livre asso- do o “desejo do outro”. A não ser assim, a criança ciação de idéias podia ser usada para fins resis- de ontem – nosso analisando de hoje – correria o tenciais; Abraham (1919) descreveu com maestria grave risco de perder o amor do superego e do ob- aspectos ainda vigentes das resistências crônicas jeto externo, sendo que, sempre que isso acontece, de natureza narcisística; W. Reich (1933) insistia sobrevém uma reação do tipo de protesto, deses- no fato de que o trabalho primordial do psicanalis- perança e retraimento, nos mesmos moldes que as ta, de início, deveria ser a remoção da “couraça crianças, estudadas por Spitz (1945), que tiveram caracterológica” formadora do tipo de resistência abandonos prematuros. É evidente que a reprodu- que ele denominou “resistência de caráter”; ção disso tudo no campo analítico configura-se sob J.Rivière (1936) fez um importante estudo sobre a forma de poderosas resistências inconscientes, as defesas maníacas na gênese da RTN, como uma como, por exemplo, a de um estado mental de de- forma resistencial de negação das ansiedades sistência. depressivas; Anna Freud (1936), seguindo os es- Em resumo, o que de mais importante pode ser boços do pai, foi a primeira a fazer uma clara siste- dito é o que a evolução do conceito de resistência, matização das defesas que o ego utiliza como re- na prática analítica, sofreu uma profunda transfor- sistências, demonstrando que essas não são apenas mação, desde os tempos pioneiros em que ela era obstáculos ao tratamento, mas são também impor- considerada unicamente como um obstáculo de tantes fontes de informação sobre as funções do surgimento incoveniente, até os dias de hoje, quan- ego em geral.; M. Klein, desde 1920, com os seus do, embora se reconheça a existência de resistên- conhecidos estudos sobre o psiquismo primitivo e cias que obstruem totalmente o curso exitoso de a análise com crianças, propiciou uma compreen- uma análise, na grande maioria das vezes o apare- são bastante mais clara acerca dos arcaicos recur- cimento das resistências no processo analítico é sos defensivos que o ego utiliza como movimentos muito bem-vindo, porquanto elas representam, com resistenciais; Rosenfeld (1965) aprofundou o estu- fidelidade, a forma de como o indivíduo defende- do das resistências em pacientes de personalidade se e resiste no cotidiano de sua vida. narcisística, não-psicóticos, nos quais um “self idea- Assim, de modo genérico, a resistência no ana- lizado”, patológico e de gênese precoce obriga o lisando é conceituada como a resultante de forças, indivíduo a um boicote e a uma permanente resis- dentro dele, que se opõem ao analista, ou aos pro- tência contra o aparecimento de genuinas necessi- cessos e procedimentos à análise, isto é, que dades da parte infantil dependente; Bion, embora obstaculizam as funções de recordar, associar, ela- não tenha produzido nenhum artigo explicitamen- borar, bem como o desejo de mudar. Nessa pers- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 311 pectiva, continua vigente o postulado de Anna ções do ego em si próprio ou no analista Freud (1936) de que a análise das resistências não (de perceber, sentir, pensar e discriminar), se distingue da análise das defesas do ego, ou seja, fuga para a extratransferência, etc. A partir da “permanente blindagem do caráter” (p. 46). deste enfoque clínico, o importante é que, em um dos passos cruciais da análise, pos- sa-se transformar as resistências egossin- TIPOS DE RESISTÊNCIAS tônicas em egodistônicas, para que o pa- ciente alie-se ao terapeuta, no objetivo co- Não é possível uma clara classificação ou sis- tematização das resistências, por três razões: as mum de analisar e superá-las. diferenças semânticas entre os autores, os múlti- 3. Uma forma também muito simplificada de plos vértices de abordagem e a sua multidetermi- sistematizar as resistências é pelo critério nação. de suas finalidades. Assim, além daquelas O que pode ser dito é que a resistência tanto descritas por Freud (1926, 1937), vale acres- pode ser inconsciente quanto consciente, mas sem- centar: resistência contra a regressão (medo pre provém do ego, ainda que possa vir orquestra- da psicose); contra a renúncia às ilusões da pelas outras instâncias psíquicas. Ela pode ex- simbióticas; contra as mudanças verdadei- pressar-se por meio de emoções, atitudes, idéias, ras (pavor de uma catástrofe, caso o paci- impulsos, fantasias, linguagem, somatizações ou ente abandone as suas familiarizadas solu- ações. Ou seja, todos os aspectos da vida mental ções adaptativas); contra vergonha, culpa podem ter uma função de resistência; daí a sua ex- trema complexidade. Clinicamente, elas aparecem e humilhação do colapso narcísico; contra em uma variedade de maneiras: claras, ocultas ou a elaboração da dor da elaboração da posi- sutis; simples ou complexas; pelo que está aconte- ção depressiva; contra os temores perse- cendo e pelo que está deixando de acontecer. Além cutórios próprios da posição esquizopara- disso, cada indivíduo tem uma pletora de recursos nóide e contra os progressos analíticos (o resistenciais, os quais variam com os distintos mo- grau extremo é a RTN). Também deve ser mentos do processo analítico. incluída a resistência que se manifesta 1. As resistências poderiam ser sistematiza- como um sadio movimento do paciente das a partir da teoria estrutural, como fez contra as possíveis inadequações do seu Freud (1926), no qual ele postulou os cin- analista. co tipos clássicos atrás referidos. Sob essa 4. Uma outra tentativa de sistematização se- ótica, hoje, o importante consiste em esta- ria a de baseá-la no tipo, grau e função das belecer as inter-relações dentro das das res- defesas mobilizadas. Assim, as organiza- pectivas instâncias psíquicas de onde se ori- ções defensivas podem se constituir como: ginam as resistências inconscientes (id, ego, inibições; sintomas; angústia; estereotipias; superego, ego ideal, ideal do ego, contra- traços caracterológicos; falsa identidade; ego); entre essas instâncias; e delas com a formas obstrutivas de comunicação e lin- realidade exterior. Da mesma forma, se guagem; actings excessivos, etc., etc. partirmos da primeira tópica de Freud, o 5. Poderíamos classificar as resistências re- importante seria a compreensão do surgi- lacionando-as aos pontos de fixação pato- mento das resistências a partir não da sim- lógicos que lhes deram origem. Assim te- ples localização topográfica, mas, sim, de ríamos, por exemplo, resistências de natu- como se processa o trânsito comunicativo reza narcisística, esquizoparanóide, manía- entre os sistemas consciente-préconsciente- ca, fóbica, obsessiva, histérica, etc. É claro inconsciente. que se isso fosse tomado de modo absolu- 2. Alguns autores, como Greenson (1967) ten- to, geraria grande imprecisão, tão óbvio nos tam uma classificação baseada em mani- é, por exemplo, que subjacente a toda fixa- festações clínicas, tais como: faltas, atra- ção edípica pode estar perfilada a criança sos, intelectualizações, silêncio ou prolixi- avara da fase anal, a criancinha ávida da dade, segredos, sonolência, ataque às fun- fase oral, ou o bebê mágico da fase narci- sista. 312 DAVID E. ZIMERMAN

6. É útil considerar as resistências em relação Etimologia às etapas evolutivas do desenvolvimento emocional primitivo. Dessas, a narcisista Vou me socorrer da etimologia para clarear a é particularmente importante por se cons- última afirmativa. Entendo como muito ilustrativo tituir no crisol da formação da personali- e importante o fato de que esse significado de so- dade e da identidade. Assim, a maioria das brevivência sintoniza com o que está contido na pessoas que hoje procura análise apresen- morfologia do vocábulo “resistência” (“re” + “siste- ta importantes problemas caracterológicos, ncia”). O prefixo “re” costuma emprestar quatro significados às palavras que ele compõe, e coinci- de baixa auto-estima e de prejuízo do sen- de que cada um deles, separadamente, conecta com timento de identidade, derivados da perma- um aspecto parcial do conceito de fenômeno nência de um estado depressivo subjacente, resistencial. Assim, “re” tanto indica: 1) A noção muitas vezes resultante das primitivas feri- básica de “voltar atrás” – no caso, aos primitivos das narcisísticas. pontos de fixação – (como em: regredir, revogar...). Tais pacientes muito regressivos, para garantir 2) A noção de “oposição” (como em: revoltar, re- a sua sobrevivência psíquica, podem buscar refú- provar...). 3) O significado de “repetição” (como gio dentro do outro, ou fugindo do outro. No pri- em: reiterar, ressentir...). 4) O sentido de uma “busca meiro caso, na situação analítica, na busca por uma de algo novo”(como em: reforma, re(e)evolução...). aliança simbiótica com o seu terapeuta, o paciente Por sua vez, o étimo “sistência” deriva de “sistere, recorre a um excessivo emprego de identificações sistens” que, em latim, entre outros, tem o signifi- projetivas, de modo a enfiar-se dentro do analista, cado de “continuar a existir”. A partir desta pers- tanto que, segundo Meltzer (1967, p. 13), essas pectiva etimológica, o conceito de resistência, es- últimas se constituem “na única defesa infalível pecialmente com pacientes bastante regressivos, contra a separação”, o que determina, nestes pa- pode ser entendido como sendo (1) uma volta à cientes, uma ansiedade confusional e um pavor de utilização de (2) recursos defensivos e ofensivos perder a sua identidade. Quando o refúgio consiste (contra o que, ou quem, lhes representa alguma em fugir do outro, este analisando o faz por meio ameaça), (3) de um modo repetitivo e tenaz, em de evitações fóbicas, actings malignos (perversões, uma busca ativa, do direito de (4) continuar a ex- psicopatias) ou pela criação de uma, sua, autarquia istir (vem do prefixo “ex” que designa “para o narcisística (borderline, por exemplo). Estas últi- mundo de fora”). O contrário de re-sistir, ou seja, mas representam organizações defensivas, rigida- de-sistir (o prefixo “de” significa privação) é que mente estruturadas, porquanto a necessidade de seria funesto. sobrevivência ocupa um espaço psíquico muito A propósito, penso que a forma resistencial mais maior do que o dos desejos edípicos. Dessa forma, grave é justamente a de um estado mental do anali- na análise resulta que quanto mais frágil for o ego sando de Desistência, em cujo caso ele procede do paciente, mais forte ele o é para resistir ao ana- unicamente de maneira formal e mecânica, sendo lista que o “seu único desejo pode ficar reduzido ao extremo de não ter desejos”, assim esterilizando a eficácia analítica. RESISTÊNCIA – EXISTÊNCIA – DESISTÊNCIA Isto se deve ao fato de que nos pacientes seria- mente regredidos, antes do que desejos, existe um estado de profundas necessidades, que se não fo- Estes pacientes mais regressivos opõem sérias rem intuídas e satisfeitas pelo analista reforçarão resistências às mudanças e desejam manter as coi- um estado anterior de sua vida, pelo qual, muito sas como elas estão, não porque não desejem cu- mais do que ódio, eles geram um sentimento de rar-se, mas é que não acreditam nas melhoras, ou decepção pelo novo fracasso do meio ambiente. que as mereçam, ou que correm o sério risco de Isso interrompe o crescimento do self e prejudica a voltar a sentir as dolorosas experiências passadas capacidade de desejar, o que conduz a uma sensa- de traição e humilhação; seu objetivo de vida é para ção de futilidade e a uma desistência de desejar e sobreviver e não para viver! de ser. Assim, a desistência vem acompanhada de um estado afetivo de indiferença, provavelmente nos mesmos moldes da indiferença que o sujeito acre- dita que tenha sofrido por parte de todas as pesso- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 313 as mais significativas de sua vida. A indiferença cionais mal resolvidas, com um indispensável cli- dessas pessoas consiste em aparentemente não de- ma de verdade e neutralidade. sejar ver e nem ser visto, notado e reconhecido, Por tudo isso, sem rigidez ou tolerância exces- sendo que nos casos mais graves forma-se um in- sivas por parte do analista, o setting deve ser pre- vestimento aditivo ao “nada”, e o exagero de uma servado ao máximo em suas combinações essen- “onipotência do masoquismo” torna-os suicidas em ciais, tendo em vista que o paciente pode desferir potencial. ataques – que na verdade são defesas resistenciais Em resumo, na situação psicanalitica enquanto – contra a sua manutenção. Embora tais ataques houver resistências que pugnam pela existência, possam ser desferidos, de uma forma ou outra, con- ainda persiste a chama da esperança, sendo que a tra todas as “regras técnicas” legadas por Freud que, pior forma de resistência é a de um estado mental devidamente transformadas, continuam vigentes na de desistência, a qual cronifica a des-esperança (ou atualidade, quero me alongar mais detidamente nas seja, o paciente nada mais espera da análise e da resistências do analisando contra a regra que po- vida). demos chamar de “amor às verdades”. Um conhecido conto, à moda de fábula, talvez O conceito de verdade na relação analítica é possa melhor ilustrar as diferenças entre resistên- fundamental em todos os aspectos teóricos e técni- cia, desistência e existência. Trata-se da história cos, e a sua importância tendo sido exaltada pelos dos dois ratinhos que cairam no fundo de uma gar- mais notáveis estudiosos da psicanálise, sendo jus- rafa que estava cheia de leite e sentiram a ameaça to dar uma relevância especial às inestimáveis de uma iminente morte por afogamento. Um deles contribuições de Bion acerca desta temática. decidiu que seria inútil lutar contra a fatalidade e, Assim, Bion (1963, p. 1967) considerou impor- passivamente deixou-se morrer afogado (equivale tante considerar que nas terapias psicanalíticas todo ao estado de desistência). O outro ratinho decidiu paciente e todo analista é portador, em algum grau, lutar e, às custas de um intenso, ativo e decidido de uma parte que prefere as não-verdades (é o que agitar do corpo (equivale à resistência), ele mante- ele denomina como “-K”) e isso está longe de ser ve-se à tona durante um tempo prolongado, até que sinônimo de mentira ou falsidade, ainda que ocasi- de tanto leite ser batido transformou-se em queijo, onalmente possa sê-lo. o qual então foi devorado pelo ratinho, assim abrin- Essa resistência ao conhecimento da verdade do um acesso ao gargalo da garrafa e daí para a tem uma ampla gama de variações no cotidiano liberdade do mundo externo, assim garantindo o clínico, desde a mentira com intencionalidade cons- seu direito de continuar a viver (correspondente ao ciente até as falsificações de natureza totalmente existir). inconsciente, passando por situações intermediá- rias, como as meio-verdades, sonegações, reticên- cias, enigmas, mensagens ambíguas, etc. A ideali- RESISTÊNCIAS NA PRÁTICA ANALÍTICA zação inicial, ou o denegrimento, que o analisando faz do seu analista, pode representar uma distorção Dentro da concepção da contemporânea psica- resistencial necessária e útil, desde que fique claro nálise vincular, não é possível dissociar a resistên- que isso não vá se constituir num clima perma- cia da contra-resistência; unicamente com um pro- nente da análise. pósito didático é que eles serão abordados separa- Um fator importante para um clima eficaz do damente, em capítulos específicos. setting é a motivação, tanto a consciente quanto a As resistências do paciente na situação analíti- inconsciente, quanto aos objetivos relativos a que ca manifestam-se de múltiplas formas e em diver- ambos, analista e analisando, esperam da análise. sas dimensões, como as seguintes. É bastante freqüente que na motivação inicial do paciente para o tratamento analítico a busca pela manutenção do status quo seja bem maior do que a Em Relação ao Setting de mudanças verdadeiras. Neste tipo de resistên- cia, a procura do objeto externo analista pode ser- vir como forma de eludir o contato com os amea- A criação do setting constitui-se na principal çadores objetos internos. tarefa do analista para assegurar o estabelecimento Para clarear as reflexões aqui apresentadas, vou e a manutenção do processo analítico. É o setting referir uma situação clínica do início da minha ati- que garante a indispensável colocação de limites e vidade psicanalítica, Trata-se do paciente A., cuja de hierarquia, a abertura de um novo espaço onde análise prolongou-se por muitos anos, com signifi- podem ser reproduzidas antigas experiências emo- 314 DAVID E. ZIMERMAN cativas melhoras nos planos de esbatimento de sin- ciente tem a finalidade de realmente comunicar algo tomas e nos aspectos adaptativos, porém com com para o psicanalista; pelo contrário, muitas vezes, pobres resultados no tocante às modificações dos tal como nos ensinou Bion, o propósito inconsciente seus núcleos caracterológicos mais regressivos visa confundir o terapeuta e atacar os seus víncu- (correspondia ao que Bion chama de “parte psicó- los perceptivos. O mesmo autor enfatiza que o dom tica da personalidade”). Na entrevista inicial, ela da fala pode ter o propósito de elucidar e comuni- disse que viera de uma interrompida psicoterapia car pensamentos, assim como também o de escon- anterior, que resolvera “trocar por análise” para dê-los na dissimulaçao e na mentira. Todos nós “aprofundar-se mais” e que escolhera a minha pes- conhecemos aqueles indivíduos fortemente narci- soa por me achar “muito humano”. Mais adiante, sistas para os quais é muito gratificante usar uma ela refere que resolvera fazer o vestibular para a linguagem onde o “bien dire” prevalece sobre o faculdade X, ao invés da Y, que era muito melhor, “dire vrai”, e isso na situação analítica se coloca a porque na primeira “era muito mais fácil para pas- serviço da resistência. sar”. O curso da análise foi muito penoso e inci- Da mesma maneira, pacientes em condições dentado, sempre que eu insistia em trabalhar mais regressivas podem resistir a verbalizar claramente incisivamente o nível da dimensão psicotizada de suas necessidades e desejos, movidos pela ilusão sua personalidade. Hoje entendo que a paciente simbiótica de que o terapeuta tem a obrigação de estava coerente com a sua forte resistência a um adivinhá-los e, da mesma forma como ocorre com trabalho analítico mais sério, já que em nosso con- as criancinhas, ser obrigado a falar se constitui, para trato ficara implícito que ela me escolhera, por acre- eles, em uma ferida narcísica profunda. ditar que comigo seria “muito mais fácil”, que ela De forma análoga, como assinala Ferrão (1974, poderia aprofundar um vínculo que ela chamara de p. 80), “há o tipo de paciente que se dá o papel de “humano” e que muito cedo mostrara que ela o “supervisor” do analista: fala por subentendidos, queria de natureza simbiótica. A paciente se rebe- estimulando a curiosidade de seu analista para porque eu é que não estava cumprindo nosso decifrá-los, elogiam quando este consegue acer- acordo latente, paralelo ao manifesto, de que a con- tar e criticam-no quando supõem que ele erra;...e fiança que ela depositara em mim o fora nas mi- há pacientes que procuram transformar a sessão nhas prováveis limitações e incapacidades. numa verdadeira polêmica, como se a análise fos- se um jogo de opiniões”. Com o termo “Ataque aos vínculos” – título de Em Relação à Interpretação um trabalho seu (1967) considerado um dos mais originais e criativos da literatura psicanalítica, Bion A eficácia de toda interpretação do analista, refere-se aos ataques que “a parte psicótica da per- além da importância do seu conteúdo, forma, opor- sonalidade” do paciente dirige contra qualquer coi- tunidade, finalidade e estilo de como ela é comuni- sa que ele sente como tendo a função de vinculação, cada ao paciente, depende fundamentalmente do que tanto pode ser de um objeto ao outro, um pen- destino que as mesmas tomam na mente deste últi- samento com outro, um pensamento com o senti- mo. Isto nos remete a um problema muito sério re- mento e assim por diante. lativo à resistência na prática analítica, qual seja, o Segundo Bion, tais ataques ao analista devem- de que as interpretações do analista, apesar de es- se não tanto ao conteúdo das interpretacões, mas, tarem certas do ponto de vista de compreensão da sim, ao fato de que este analista está compreen- conflitiva inconsciente, possam ser ineficazes. dendo e revelando o íntimo do paciente na tarefa A transmissão do conteúdo verbal do paciente de interpretar, porquanto a interpretação exitosa para o analista, e vice-versa, implica tantas variá- representa um elo, uma ligação entre dois pensa- veis, de tantos vértices teóricos, que se torna im- mentos, assim caracterizando uma ligação huma- praticável fazer, aqui, um estudo minucioso. Vou na. Os pacientes que priorizam os ataques aos vín- me limitar à observação de algumas costumeiras culos das interpretações são justamente aqueles que formas de resistências no ato interpretativo, como se mostram empenhados em desunir ou estabele- são, entre outros tantos, os seguintes asinalados por cer uniões estéreis dele com o seu analista e dele Bion: os distúrbios da comunicação, os ataques consigo próprio. aos vínculos perceptivos, e o fenômeno da “rever- Bion também fez uma importante contribuição são da perspectiva”. relativa ao destino da interpretação nos pacientes Assim, uma primeira observação que se impõe portadores de uma forte “parte psicótica da perso- é que nem sempre a comunicação verbal do pa- nalidade” quando ele descreve o fenômeno da “re- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 315 versão da perspectiva”. Este fenômeno consiste nhamente sem citá-lo). Esta última autora faz a in- basicamente no fato de que o paciente que o utiliza teressante observação de que o que caracteriza es- mantém com o analista uma “acordo manifesto e tes pacientes é que “...eles mantêm esplitada a sua um desacordo latente”, tendo em vista o fato de parte paciente, e usam a comunicação verbal como que, formalmente, possa tratar-se de um paciente uma forma de acting. Aparentemente são bastante assíduo, colaborador, gentil, que assente com a cooperadores e adultos, mas essa cooperação é cabeça confirmando que está aceitando as inter- uma pseudocooperação destinada a manter o ana- pretações, porém no fundo, ele as desvitaliza, re- lista afastado das partes infantis do “self”, real- vertendo o significado de tais interpretações a suas mente desconhecidas e mais necessitadas”. próprias premissas que lhe são familiares e que lhe Uma das formas de resistência que pode ocor- servem como defesas, logo, como resistências. rer, na esteira do narcisimo, é a que encontramos O conceito de “reversão da perspectiva” não nos pacientes que desenvolveram uma “transferên- tem o mesmo significado que o de um transtorno cia imitativa (Gadini, 1984, p. 9) a qual se consti- paranóide do pensamento, ou de um controle ob- tui em uma situação “das mais temíveis e insidio- sessivo, bem como, também, não alude ao proble- sas” para o processo analítico. Temível porque se ma da falsidade; na verdade, está mais próximo a organiza como resistência poderosa e tácita. Insi- de um perverso que quer impor as suas premissas, diosa porque se apresenta com todas as aparências de forma sutil. Segundo Bion, este tipo de resistên- de uma transferência positiva. Usam a imitação, ao cia à interpretação também não equivale àquela que invés da introjeção e, por essa razão, não conse- habitualmente é conhecida como “intelectualiza- guem a estruturação de uma identidade bem-defi- ção”; antes, ela se deve à incapacidade de pensar nida. destes pacientes. Ainda um outro tipo de resistência decorrente Ainda em relação ao destino da interpretação, de fixações narcisistas é a de natureza que pode- Rosenfeld (1965) assinala o quanto os pacientes ríamos denominar “transferência de vingança” (em narcisistas “podem aceitar e usar as interpretações alusão à expressão que Freud utilizou para carac- do analista, mas imediatamente as despojam de terizar sua paciente Dora-1905, p. 116), a qual está vida e significação, de maneira que apenas res- presente em pacientes que, embora de forma laten- tam palavras sem sentido” (p. 201). te, são cronicamente ressentidos e rancorosos. Co- mumente são analisandos que tiveram, muito pre- cocemente, uma importante perda parental e que, Em Relação à Elaboração por isso mesmo, acham-se no direito de, pelo resto da vida, reivindicar o retorno do anelado, e impos- O processo de elaboração analítica consiste, em sível estado anterior. Compensam este fracasso, e linhas gerais, na aquisição de um insight total a as conseqüentes traições que julgam ter sofrido, partir da integração de insights parciais. Pode-se desfigurando as situações reais e configurando ou- dizer que, no curso da análise, um fluxo e conti- tras, nas quais aparecem como uma, privilegiada, nuado e crescente de insight, sem que haja mudan- vítima de injustiças e humilhações, as quais rumi- ças autênticas na vida real, está se revelando como nam de forma obsessiva e prazerosa, com fantasias um sério indicador de resistência à análise, talvez e planos de ressarcimento e vingança. Essa carac- uma das mais sérias, qual seja, a da resistência às terização coincide com o que Bergler (1959) cha- mudanças. ma de “colecionadores de injustiças”. A compulsão Fora de dúvidas, os pacientes que apresentam rancorosa, ainda que seja um derivado indireto da o maior grau de resistência às verdadeiras mudan- inveja, diferencia-se dessa, pois não visa primaria- ças são aqueles que, mercê de uma forte caracte- mente a destruir as capacidades do analista inveja- rologia narcisística defensiva, funcionam no pro- do, mas sim de castigá-lo. Essa forma de resistên- cesso analítico na condição de “pseudocolabo- cia se processa de maneira egossintônica porquan- radores”. Essa última denominação já aparece no to o analisando se acha com pleno direito para tal, magistral trabalho de Abraham, que aborda esta e o triunfo sobre o analista, representante do anti- temática de resistências narcisistas (1919) e, mais go objeto abandonante e humilhador, pode passa a recentemente, também Meltzer (1973, p. 31) con- ser, na análise, um objetivo mais importante que a sidera estes falsos colaboradores como pacientes própria cura. que desenvolveram o que ele denominou como Exemplifico com um analisando que se dizia “pseudomadurez”, assim como Betty Joseph (1975, sempre amedontrado ante mim, e configurava esse p. 414) retoma o termo original de Abraham (estra- sentimento com uma imagem que repetia com fre- 316 DAVID E. ZIMERMAN qüência: ele se sentia como um pobre ratinho, fra- oposição sistemática, porque para o endosso de sua co e humilde, enquanto eu lhe aparecia como um tese precisam configurar o analista como objeto gatão, grande, forte, capaz e detentor do poder. mau. Agem, como me disse este mesmo paciente Movido por um sentimento contratransferencial, em que ilustrei acima: para mim, a lei mais importan- certo momento perguntei a quem o gato e o rato te da vida, é a de Talião”. Não se julgam primaria- lhe lembravam. Respondeu, prontamente: Tom e mente agressivos porquanto estão unicamente Jerry. A continuidade do trabalho foi em torno do justiçando através desta lei. Ou seja, como mostra quanto se imaginava vingando-se de todas as figu- a etimologia da palavra, estão de novo e mais uma ras autoritárias, do presente e do passado, que o outra vez (“re”)-”taliando”. Quanto mais melho- teriam submetido e humilhado. Secreta e sutilmen- ram, mais se queixam, e isso costuma despertar te, e fazendo da astúcia a sua principal arma, qual reações contratransferenciais dolorosas, uma sen- Jerry sempre levando vantajem final sobre Tom, sação no analista de vazio, desânimo e de estar sen- sentia-se passando de submetido a submetedor, de do vítima de ingratidão. Essas situações não são humilhado a humilhador. infreqüentes e podem contribuir para a formação Este paciente ilustra outros tantos que, como de impasses. ele, polido sem afetação, e com um educado res- O negativo da elaboração é o impasse, ou seja, sentimento e sarcasmo, ante o temor de sofrer um este surge quando aquele se detém. Pela importân- novo abandono agressivo, resistem à análise, rea- cia que o impasse psicanalítico – incluída a sua gindo com um furor narcista (termo de Kohut- forma mais grave, a reação terapêutica negativa – 1971), para dar uma boa lição a quem representa representa para a clínica cotidiana do processo ana- essa injuriosa ameaça. Ocorre que estes analisandos lítico, creio ser válido a inclusão de um capítulo ressentidos, sem motivos aparentes, fazem uma especial, que segue mais adiante (o de número 30). FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 317

CAPÍTULO nação de “contra-resistência”, tem havido um re- novado interesse dos psicanalistas relativo aos as- pectos contra-resistenciais. Inicialmente, impõe-se fazer a distinção de quando a resistência, inconsciente ou consciente, 29 por parte do analista, é originária dele próprio, ou quando ela é decorrente de um estado de contra- identificação com o seu analisando. No primeiro caso, estamos falando de resistência do analista; Contra-Resistência no segundo, trata-se de contra-resistência.

Resistência do Analista Como já foi frisado, a separação em capítulos específicos sobre os fenômenos resistencial e con- O melhor indicador de que as resistências pro- tra-resistencial justifica-se unicamente pelo inten- cedem unicamente de dentro do analista é quando elas se repetem sistematicamente com todos os seus to didático, pois, dentro da contemporânea terapia psicanalítica vincular, é evidente que toda mani- pacientes, independentemente de como eles sejam festação mental do paciente –a resistência, por diante de uma conflitiva emocional equivalente. Por exemplo, se qualquer paciente de uma determina- exemplo – vai de alguma forma repercutir no tera- peuta e vice-versa. Não obstante, é necessário des- da categoria (idoso, adolescente, mulher bonita), tacar que assim como a resistência pode partir uni- independentemente da estrutura emocional de cada um deles individualmente, o analista experimentar camente do paciente, também ela pode proceder unicamente do analista, embora o que sobretudo as mesmas reações emocionais e, assim, vier a for- vai nos interessar no presente texto é a interação mar “pontos cegos” em sua mente, é certo que ele “resistirá” a aprofundar a análise daquilo que ele resistencial/contra-resistencial que se processa en- tre ambos no campo analítico. não está suportando em si próprio. Psicanalistas norte-americanos (Kantrowitz, 1989) estudaram e pesquisaram com profundo ri- gor científico o que eles denominam de “match”, CONCEITUAÇÃO que consiste no fato de que, indo muito além de uma simples repetição transferencial entre terapeuta A contra-resistência chegou a ocupar um signi- e paciente, estabelece-se entre ambos um “encon- ficativo espaço na literatura psicanalítica, como tro”, singular, decorrente das características pró- pode ser constatado nas vezes em que Racker prias e reais de cada um deles, de sorte que pode (1960) emprega este termo e nas conceituações que resultar uma harmonia produtiva ou uma desarmo- ele faz acerca deste fenômeno, em seu consagrado nia estagnadora no trabalho do par analítico. O in- livro sobre técnica psicanalítica. Gradativamente, teressante desta pesquisa é que foi possível obser- os autores foram parando de abordar e de nomear var que em uma análise feita com psicanalistas diretamente a presença das manifestações da con- igualmente competentes e forjados por uma mes- tra-resistência, talvez pela possibilidade de que as ma formação oficial, os analisandos poderiam dar- considerassem enquadradas no fenômeno contra- se mal com um deles e se entrosar muito bem, do transferencial. Não há dúvida quanto ao fato de que ponto de vista psicanalítico, com o outro; sendo a os fenômenos de resistência e transferência – e por recíproca verdadeira. Mais ainda: muitos anali- conseguinte os de contra-resistência e contratrans- sandos da pesquisa se beneficiaram claramente em ferência – estão intimamente conectados, como uma área de seu psiquismo – digamos, para exem- Freud estudou exaustivamente; não obstante, acom- plificar, a sexualidade –, enquanto em uma outra panhando a muitos autores, também entendo que área, como podia ser a de uma primitiva organiza- existe uma nítida diferença conceitual e é útil estu- ção narcisista, o processo analítico ficava detido. dar e nomeá-los separadamente. No entanto, uma eventual troca deste analisando A partir dos trabalhos do casal Baranger (1961- por um outro analista poderia resultar em um re- 6) sobre o campo analítico e os de Bion (1959) sultado totalmente inverso, embora equivalente no relativos à psicanálise vincular, embora sem que balanço dos avanços e da estagnação. eles tenham usado especificamente esta denomi- 318 DAVID E. ZIMERMAN

Fatos como esses, nada raros na experiência cessos imediatos do seu paciente, mais atendendo cotidiana da clínica psicanalítica, permitem dedu- aos seus interesses narcisísticos do que qualquer zir não só que a pessoa real do terapeuta exerce outra coisa, e assim por diante em uma infinidade uma significativa influência no processo analítico, de possibilidades. mas também que existem, virtualmente em todos analistas, determinados pontos cegos que se consti- tuem como resistências, por vezes muito rígidas e NA PRÁTICA ANALÍTICA imutáveis. A resistência de um psicanalista também pode Vale tentar rastrear o surgimento de resistên- estar manifesta fora da situação analítica propria- cias do analista, ou de contra-resistências que acon- mente dita, como é o caso em que ele se nega a tecem no campo analítico – de uma forma muito tomar conhecimento de outros vértices teórico-téc- sumária – desde os primeiros passos, ou seja, des- nicos da psicanálise, ou toma conhecimento, po- de a entrevista inicial de avaliação até as fases de rém os desvitaliza, na maior parte das vezes recor- término de uma análise. rendo a um sistemático reducionismo para os valo- res e conhecimentos com os quais ele está bastante familiarizado, porém que saturam a sua mente. Entrevista Inicial

Não é nada rara a possibilidade de que o surgi- Contra-Resistência mento da “resistência” no campo analítico, como já foi frisado antes, deva-se unicamente às resis- A distinção que estamos propondo entre o que tências do próprio analista. Assim, já na situação se trata de uma “resistência própria do analista” e de seleção de pacientes para enfrentar uma longa quando é uma “contra-resistência, em razão da análise, é possível que, sob distintas racionaliza- influência do analisando” pode ser exemplificada ções para não aceitar determinado paciente, o psi- com a maneira como o terapeuta utiliza aquilo que canalista possa estar se evadindo do seu medo de Bion chama de uma mente saturada por “memória, enfrentar uma situação regressiva, como, por exem- desejo, e ânsia de compreensão”. Assim, pode plo: a da presença de um estado depressivo do acontecer que o analista durante a sessão fique con- consulente; a prática de actings que o desconfortam; fuso, com uma hipertrofia ou atrofia de seus dese- uma forte sedução de alguma paciente histérica; jos, com a sua memória atrapalhada e, por conse- sinais indicadores de uma “parte psicótica da per- guinte, com um prejuízo de sua indispensável ca- sonalidade”, etc. pacidade perceptiva, em razão dos “ataques aos É claro que comumente também ocorre que o vínculos perceptivos” (Bion, 1967) desferidos pelo pretendente à análise possa estar com a sua moti- inconsciente do paciente, de tal sorte que ele pode vação dividida, e a sua parte que está resistindo a ficar enredado no jogo resistencial deste último. enfrentar essa ameaçadora situação nova, visa, in- Essa condição caracteriza um estado de contra-re- conscientemente, provocar uma contra-resistência sistência. A mesma pode estar a serviço de uma de desistência na pessoa do analista, para esse não sutil resistência de certos pacientes, que consiste aceitar o desafio de iniciar a análise. no fato de que, ao invés de atacar a sua própria percepção de verdades intoleráveis, ele consegue o mesmo resultado, fazendo com que se multipli- Setting quem as resistências de seu analista.. Em contrapartida, o analista pode estar utili- zando a sua memória como uma forma de pos- As combinações que compõem a instituição de sessividade controladora sobre o seu analisando, a um necessário setting que possibilite uma análise partir da saturação da sua memória com conheci- exitosa podem ser resumidas no regular funciona- mentos de fatos já passados e que podem não coin- mento das regras técnicas, legadas por Freud – tal cidir com o momento afetivo presente naquele como elas foram descritas no capítulo 26 –, sendo momento na mente do paciente. Da mesma forma, que cada uma delas pode, eventualmente, ficar des- o desejo do terapeuta pode ser exclusivamente seu, figurada na sua essência e, por conseguinte, servir como seria o caso de ele querer que a hora da ses- como uma posição resistencial do próprio analista. são analítica termine logo porque está cansado ou Assim, o método da “associação livre”, que se perdido; ou almejar se gratificar com notáveis su- tornou conhecido como regra básica ou fundamen- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 319 tal da técnica psicanalítica (1913, p. 177), pode dem maníaca. Nesse caso, ele atuará no sentido de servir como exemplo da afirmativa acima, porquan- uma falsa independência, pela racionalização de to Freud instruía seus pacientes no sentido de que “dar maior liberdade à rigidez do setting, imposta contassem “tudo que lhes viesse à cabeça” (1909, pelas sociedades psicanalíticas”. Ao mesmo tem- p. 164), sem selecionar ou suprimir pensamentos e po, dirigirá o paciente em direção de uma falsa li- sentimentos, pois, do contrário, eles estariam re- bertação dos objetos externos, delegando ao seu sistindo, e o resistido deveria ser vencido acima de paciente um estímulo às pulsões do id e a um rompi- tudo. Isso, hoje, se tomado ao pé da letra pelo ana- mento bélico com o superego. lista, estaria revelando uma resistência dele, pois Da mesma forma, se o analista tiver uma estru- faria crer que o único importante da análise seria a tura obsessivo-masoquista, fará uma resistência a exigência de o paciente falar e, portanto, seus si- um clima de liberdade e levará o setting a extre- lêncios, atuações, ou tantas outras formas de co- mos de rigidez, enfatizando a que o paciente (pro- municação não-verbal, seriam sempre maltoleradas, jeção dele próprio, analista) “comporte-se bem”. malcompreendidas e, portanto, não utilizadas para Assim, o apregoado comportamento “muito huma- um aprofundamento do vínculo com o lado de difí- nitário” de certos terapeutas, que evitam ao máxi- cil acesso do analisando. mo frustrar o paciente em seus pedidos por mu- Aos poucos foi se firmando a crença entre os danças nas combinações do setting, pode-se confi- analistas de que mais importante que o compro- gurar como uma resistência do próprio analista, por misso do paciente em não opor resistências ao li- estar encobrindo uma atitude sedutora a serviço de vre fluir dos seus pensamentos, o que mais passou seu narcisismo ou do seu medo de despertar o re- a ser valorizado é o labor voltado para a maneira púdio do analisando. de como ele os observa, correlaciona, comunica e Os incovenientes dessa conduta, nunca sufi- age. cientemente frustrante, são claros, sendo que o prin- As livres associações do paciente exigem, por cipal, é o imediato estabelecimento da falsa crença parte do analista, o cumprimento da regra da “aten- de que a frustração é sempre má e deve ser evitada, ção flutuante” (1919, p. 326). Essa regra costuma assim como a de que o analista deve ser poupado sofrer a interferência resistencial, tanto que, como das cargas agressivas do paciente. Nesses casos, o diz Cesio (1975, p. 188), “ao contrário do que pode setting corre o risco de ficar se estruturando numa sugerir sua denominação, manter a atenção flu- prioritária busca por gratificações recíprocas. tuante exige do analista uma constante aplicação Por outro lado, Etchegoyen (1987, p. 9) alerta de energia para sobrepujar resistências que se para o fato de que “quando o analista pretende opõem à sua existência”. obter informações do paciente, que não sejam per- Partindo de um outro vértice, Bion utiliza essa tinentes à situação analítica, é porque ele está fun- regra de Freud para asseverar que o analista pode cionando mal, transformou-se em uma criança estar com a sua mente saturada de memórias e de- (quando não em um perverso) escoptofílica”. sejos, que visam sobretudo a que ele utilize os seus A regra da abstinência, complementar da “re- órgãos sensoriais para não perder o controle sobre gra da neutralidade”, recomenda que o analista não o paciente e sobre si mesmo, portanto, acrescento satisfaça os desejos regresivos do paciente (e os eu, de uma forma resistencial, e por isso ele paga o seus próprios), excluídos, obvimente, os da com- alto preço de não propiciar a emergência de uma preensão analítica. Em obediência a essa regra, fa- subjacente capacidade de intuição. zia parte do contrato, no início do movimento psi- A regra da neutralidade ficou condensada na canalítico, que os analisandos se comprometessem clássica “metáfora do espelho” de Freud; porém, a não tomar nenhuma responsabilidade importante se essa indispensável neutralidade estiver a servi- durante o curso da análise. A aplicação rígida dis- ço das resistências do analista, ela resultará desvir- so, hoje, indicaria um temor do analista aos impre- tuada. Nesses casos, a neutralidade pode ficar con- vistos da viagem analítica e se constituiria como fundida com um distanciamento fóbico, em cujo uma resistência do analista bastante prejudicial, caso, em nome de uma pretensa neutralidade, o tanto que há uma concordância geral de que, com a analista adota uma atitude de uma fria superfície atual duração das análises, aquele é um princípio de espelho, em uma equivocada interpretação e inútil e até maléfico. Pode levar à falsa crença de aplicação da analogia de Freud. que somente a vida analítica é importante e que o Pode ocorrer o inverso, ou seja, que o analista paciente deva fazer uma pausa na sua vida real, não tenha ressolvido sua emancipação de uma, má, com a promessa de a reassumirá, posteriormente, dependência interna e resistirá com defesas de or- em condições idealizadas. 320 DAVID E. ZIMERMAN

Outro inconveniente de um contrato com mui- obsessiva, ele manifesta uma intransigência por tas cláusulas dessa natureza é reforçar, desde o iní- qualquer arranhão do analisando que lhe pareça que cio, um vínculo tipo “dominador versus domina- não condiz com a verdade, sem se aperceber que do”, o que pode vir a endossar a teoria do analisan- ele é que pode estar equivocado, até mesmo por- do de que para conseguir tudo que almeja da análi- que a verdade é sempre relativa, nunca absoluta ou se, basta se esforçar, não faltar, não se atrasar, pa- imutável. gar direitinho, etc. Com isso, a resistência a um verdadeiro trabalho de análise vai se estruturando em torno da ilusão de que o trabalho deve ser valo- Atividade Interpretativa rizado, não tanto pelo resultado alcançado, mas, sim, pelo sofrimento, esforço dispendido ou pelo Uma primeira observação é a de que a tão fre- bom comportamento, o que conflitua com os valo- qüente forma de muitos analistas interpretarem tudo res reais da vida. Isso acontece mais comumente o que o paciente disser, em um sistemático reducio- com pacientes e, em contrapartida com analistas, nismo ao “é aqui, agora, comigo...” pode estar re- que desde crianças foram condicionados pelos pais presentando um conluio resistencial/contra-resis- a ganharem as coisas com muito choro, lutas e for- tencial, porquanto o analisando pode estar indu- mações reativas. zindo o seu psicanalista a lhe “interpretar” exata- A contra-resistência também pode manifestar- mente aquilo que ele quer ouvir e que já sabe por se por um controle sádico, inconsciente, por parte antecipação, de modo a assim perpetuar um con- do analista, o que pode levá-lo a utilizar privações trole sobre a análise e o analista. severas e desnecessárias, sob a racionalização de O que, acima de tudo, deve ser destacado é o que está fielmente cumprindo a regra da abstinên- fato de que uma interpretação do analista somente cia, quando, na verdade, ele pode eventualmente será eficaz (é diferente de correta) se ela tiver ori- estar resistindo a movimentos de busca de uma li- gem empática, caso contrário sua transmissão se berdade de aproximação sadia, por parte do anali- fará pela via do intelecto, portanto fria e estéril, sando. denotando um movimento resistencial. A regra do amor às verdades, como já foi ante- Uma consideração a ser feita é que, nos casos riormente destacado, pode ser incluída entre as em que o inconsciente do analista se identifica, de demais regras técnicas de Freud, como pode ser forma patológica, com as projeções do paciente, exempificada nesta passagem, entre tantas outras ele não terá condições de interpretar. Nesse caso, mais dele: “A relação entre analista e paciente se pode nada lhe ocorrer e, com a mente em branco, baseia no amor à verdade – isto é, no reconheci- em estado de contra-resistência, socorrer-se da te- mento da realidade – e isso exclui qualquer tipo oria e pseudo-interpretar as “resistências” do seu de impostura ou engano” (1937, p. 282). Entendo paciente. A persistência disso costuma provocar no que Freud referiu-se tanto à pessoa do paciente paciente a descarga através de actings, a busca de quanto à do analista, e talvez, principalmente, a um outras pessoas para transferências colaterais e o necessário clima de veracidade entre ambos. incremento de crescentes resistências, agora ver- Destarte, a negação ou a evitação das verdades dadeiras, que passam a ocupar todo o espaço que (na terminologia de Bion corresponde a “-K”), por possibilitaria o uso da capacidade para pensar as parte do analista, é utilizada pelos pacientes como experiências emocionais. uma autorização para as suas próprias falsificações Em suma, quando analista e analisando não tra- resistenciais e, por isso mesmo, o psicanalista “ser balham em um mesmo plano, todo sistema de co- verdadeiro” vai além de um dever ético, constitu- municação falha, e os campos resistencial e con- indo-se, também, em uma imposição técnica, caso tra-resistencial se incrementam. Diz Money Kyrle contrário estará minando os núcleos básicos de (1961) que, nesses casos, o paciente, frustrado por confiança do paciente, ao mesmo tempo em que não estar sendo compreendido pelo seu analista, estará reforçando as resistências dele que estejam vinga-se deste, castrando-o em sua potência, a for- baseadas na sua função “-K “. ma como o introjetará. (Entendo que a recíproca Ademais, devemos considerar que o analista também é verdadeira.) Isso configura, segundo o pode estar utilizando este aspecto relativo às ver- autor, uma situação bastante desesperante, na qual dades com finalidades resistenciais próprias dele, um necessita de ajuda e o outro não pode dar, do tal como acontece nas situações em que ele con- que resulta que nenhum dos dois sente ter o neces- funde “ser verdadeiro” com uma crença de que ele sário “seio” ou “pênis” bom. “tem a posse da verdade” ou quando, de forma FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 321

CONLUIOS INCONSCIENTES Neste capítulo vamos enfocar mais especifica- mente os “conluios resistenciais” que se estabele- Não é demais repetir: cada vez mais tem sido cem a partir de elementos narcisistas em ambos, enfatizado que o tratamento psicanalítico não é a analista e analisando. análise isolada de um indivíduo, mas, sim, a de um Pode-se dizer que, de modo geral, uma transfe- vínculo humano, com múltiplos vértices. Pode ocor- rência fortemente idealizada, já no início da análi- rer um desvirtuamento analítico deste vínculo, que se, é um claro indicador da presença de uma “posi- às vezes se cronifica e fica muito difícil de ser des- ção narcisística”. Dito de outra forma: a transfe- feita, nos mesmos moldes que sabemos o quanto é rência “negativa”, a mais difícil de ser detectada, difícil desfazer certas parelhas relacionais, quando de uma forma ou outra existe sempre, enquanto a as elas constituem um sistema que se alimenta a si sua ausência ou o seu aparecimento ao longo da mesmo, casos em que cada membro, mantendo as análise, apenas em reações esporádicas e passagei- suas dissociações, é inseparável do outro, com o ras, é indício de uma análise incompleta. Se hou- qual forma uma unidade. ver uma contra-resistência por parte do analista, Na clínica cotidiana vemos isso em uma infini- na detecção, aceitação e manejo dos sentimentos dade de parelhas que se estruturam de formas com- agressivos, o conluio se perpetuará. plementares, tipo sadomasoquista; forte-fraco; rico- Assim, é bastante freqüente um conluio resisten- pobre; feio-bonito; avaro-ávido; sadio-doente; se- cial que consiste em manter a agressão encoberta dutor-seduzido; adulto-criança, etc., etc. Um paci- por um manto de idealização, para evitar penosas ente com tais características tentará reproduzir com desilusões, as quais provocariam uma injúria nar- o seu analista algumas dessas modalidades inter- cisista (termo de Kohut, 1971) e levariam a uma relacionais, e é iso que se constitui no risco do es- inevitável irrupção de ódio, com o risco de a lua de tabelecimento no processo analítico de um irre- mel passar a ser de fel. Em casos extremos, este parável conluio de recíprocas resistências. tipo de conluio adquire as características de uma Tais conluios são denominados pelo casal “aliança simbiótica”, quando, buscando de novas- Baranger (1961-62) como “baluartes” existenciais, velhas ilusões, ambos se empenham em promover os quais se constituem em um sistema de “resistên- recíprocas e inesgotáveis gratificações, reforçan- cia organizada”, que se comporta como um refú- do a fantasia de que a eterna espera do impossível gio inconsciente de poderosas fantasias de onipo- um dia se concretizará. tência. Este “baluarte” pode estar configurado tan- Winnicott (1969, p. 275)) alude a essa situação to por uma perversão aparentemente muito pra- em um enfoque com pacientes muito regredidos, zerosa como por uma superioridade intelectual ou dizendo que: “A análise vai bem e todo mundo está moral, por uma relação amorosa idealizada, por contente, mas o único inconveniente é que ela nun- dinheiro, profissão, poder, prestígio, etc. Para não ca termina ou pode terminar num falso self, com o correr o risco de cair em um estado de desvalia, analista e paciente coniventes na formação de um fragilidade e desesperança, o paciente evita pôr em fracasso analítico” (o grifo é meu) jogo e analisar aquilo que constitui o seu baluarte, Grumberger (1961) assinala que a regressão para tanto sendo-lhe necessário conseguir a cum- narcisista na situação analítica pode se constituir plicidade do analista. em um estado de “paraíso”, no qual o paciente pro- O que sobretudo importa consignar, é que o cura substituir um fracassado processo de supere- estado de resistência/contra-resistência mais séria go (a sua neurose), por um novo superego (a análi- e esterilizante de uma análise, é aquela que se ma- se), dotado de uma onipotência narcisista. Resulta, nifesta sob a forma de conluios inconscientes (aos então, um estado de euforia e elação, com o anali- conscientes, fica mais apopriado denominá-los sando fazendo de sua análise, especialmente no iní- “pactos corruptos”) entre o paciente e o analista. cio, o tema central de sua vida, em termos de uma Tais conluios podem adquirir muitas modalidades, nova religião. Essa situação de encantamento, que como é o caso de uma muda combinação incons- no fundo é resistencial, pode se cronificar se hou- ciente entre ambos, de eles evitarem a abordagem ver um escotoma, bem com um escamoteio contra- de certos assuntos ou a de uma recíproca fascina- resistencial. Nesses casos,o analista fica interpre- ção narcisista, entre tantos outros conluios que se- tando, inocuamente, o conflito edípico, costumei- rão detalhados adiante, ressaltando, desde já, que ra cobertura da regressão narcisista, sem aprofundar o conluio inconsciente que se configura como uma o interjogo projetivo-introjetivo da onipotência, do “relação de poder”, sob uma forma sadomasoquís- narcisismo e do “ideal do ego infantil” (representa tica bem dissimulada é, de longe, a mais freqüente. o pólo das ambições e de expectativas ideais a se- 322 DAVID E. ZIMERMAN rem cumpridas), com a respectiva agressão laten- parte pelo todo, vir a trabalhar unicamente com a te. “parte infantil” do paciente, despojando-o de suas Quando a recíproca é verdadeira, vai partir des- capacidades adultas e discriminativas, bem como se analista contrair um pacto com o seu paciente de seu direito às críticas e réplicas, as quais serão “brilhante”; fica fascinado por este, o qual passa a interpretadas como “resistências”. ter o papel do ideal do ego de ambos. Pelo fato de Um analista arrogante não pode tolerar dúvi- que o ideal do ego está alicerçado na onipotência, das e incertezas, e resiste a isso por meio de um perfeição e grandiosidade infantil, resulta que esse controle submetedor de natureza sádica, o que leva tipo de conluio também caracteriza-se pelo fato de a configurar o seu vínculo com o analisando como que analista e paciente possam estar muito satisfei- uma relação de poder. Essa submissão, somada aos tos com o seu trabalho, enquanto que, na verdade, submetedores internos do paciente, reforçam um seja provável que eles estejam dando voltas, sem surdo ódio e uma rebelião inconsciente que, quan- sair do mesmo lugar, e nada mais se produz. do totalmente reprimidos, podem manifestar-se por Etchegoyen (1976) assinala que uma recíproca uma melancolização, somatizações ou até por aci- idealização excessiva é um momento crucial para dentes. a análise, porquanto a pressão para chegar a um Igualmente, se esse analista, sem exercer uma “happy end” dessa fascinação por meio de sutis função de continente, interpretar tudo somente em formas de actings, tanto dentro da situação analíti- termos de identificações projetivas, poderá estar ca (erotização) quanto fora dela (apresentação de cronificando a impotência e a desesperança de seu progressos), é sempre muito forte e nenhum ana- analisando. Os casos mais graves são aqueles em lista é imune a este chamamento sutil e persistente, que essa atitude do analista encontra uma comple- “pois é tão sintônico com o ego e tão aceito social- mentaridade no paciente de dependência masoquis- mente, que convence” (p. 626). ta, que, inclusive, gratifica-se com esse tipo de con- Essa afirmativa encontra respaldo na advertên- luio sadomasoquista e não tem desejo por modifi- cia de Chasseget Smirgel e Grunberger (1979, p. cações verdadeiras. 143): sendo como somos, débeis e medíocres, pelo Também Bion chama a nossa atenção para uma menos em relação às imagens, a miudo grandio- outra forma de conluio resistencial/contra-resis- sas, que os pacientes projetam sobre nós – pode- tencial que é muito daninha devido à sua natureza mos sentir o desejo inconsciente de perpetuar essa silenciosa e deteriorante, consistindo em um con- gratificante situação”. formismo com a estagnação da análise, portanto Também é importante destacar as contra-resis- em um estado de “a-patia” em ambos. Nesses ca- tências que resultam de fixações narcisistas não sos, Bion recomenda que o analista deve ter a sufi- resolvidas no analista, e que podem constituir-se ciente coragem para se aperceber de que a aparen- em arrogância, cuja finalidade maior é a de refor- te harmonia e tranqüilidade da situação analítica çar a sua frágil auto-estima, e de manter afastado não é mais do que uma estagnação estéril e que, a do seu ego qualquer coisa que possa, às vezes, di- partir dessa percepção, ele possa provocar um es- minuí-lo. Desde o trabalho de Bion sobre A arro- tado de “turbulência emocional”, de tal sorte que gância (1967) ficou claro que este sentimento de- aquilo que é egossintônico passe a ser egodistônico. riva diretamente de uma incapacidade básica para Meltzer (1973, p. 159) alerta para o risco de tolerar a frustração, especialmente a do “não-sa- um “conluio perverso”. O mesmo consiste em um ber”. Em tais condições, o analista arrogante, ain- jogo de seduções por parte de pacientes com ca- da que exteriormente possa ser amável e até de racterísticas perversas. Se esse conluio chega a se aparência humilde, assume, na relação analítica, estabilizar, conclui o autor, torna-se claro que o pa- uma atitude prepotente, “rempli de soi même”, ciente, ao invés de reconhecer suas limitações, verá enfatuado na sua convicção de ser superior ao seu seu analista “como uma prostituta, uma ama-de- paciente, ser dono das verdades (isso equivale ao leite, viciada na prática da psicanálise, incapaz que Lacan (1961) denomina SSS: Sujeito Suposto de conseguir melhores pacientes”. Saber). Assim, esse terapeuta não terá capacidade É indispensável registrar um tipo de conluio de empatia, disposição para escutar, de tolerar frus- resistencial/contra-resistencial, nada raro, que po- trações e, assim, aliado com as resistências do seu demos chamar de “conluio erotizado”, pelo qual analisando, anulará as capacidades positivas deste analisando e analista se comprazem – e se gratifi- último, total ou parcialmente. cam reciprocamente – com a erotização na transfe- Na prática clínica, isso se traduz pelo fato de rência. Essa situação pode ocorrer com um analis- que o analista, cometendo o grave erro de tomar a ta que sinta seu ego reforçado diante da comprova- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 323

ção de que ele é atraente e inspirador de paixões. guinte também o analisando, a refugiarem-se atrás O risco, nesses casos, é que esse analista, com ati- de uma cortina de aparente agressividade, pela qual tudes e interpretações – essas próprias podendo esse tipo de paciente vai então procurar, falsamen- servir como carícias verbais! – pode estimular e te, mostrar-se hostil, uma isca para o analista ficar perpetuar tal estado de coisas. lhe interpretando agressão, ao invés de seu enorme Os prejuízos analíticos, nesses casos, são óbvi- medo para uma relação de amor, pelo fato de isso os. Por um lado, não se fará a elaboração da trans- representar, para ambos, um sério risco de destrui- ferência negativa, a qual, como sabemos, muitas ção de si, do outro, ou do vínculo entre os dois. vezes está dissimulada por um erotismo, por parte Trata-se de um conluio que pode ser chamado de daqueles pacientes que, como assinalou Rappaport “pseudo agressivo”. (citado por Greenson, 1967, p. 280), “são muito É evidente que outras variantes de conluios re- propensos a atuações muito destrutivas”. sistenciais/contra-resistenciais poderiam ser descri- Por outro lado, também pode ficar prejudicada tos. No entanto, vale destacar é que o paciente está a elaboração de um outro aspecto, veiculado pela rigorosamente dentro do seu papel de analisando, transferência erótica e que, de modo estranho, é sendo que a responsabilidade pela formação do relativamente pouco lembrado na literatura psica- conluio inconsciente cabe ao psicanalista. Mais nalítica: trata-se do erotismo transferencial positi- ainda: se ele não se der conta disto ou se não tiver vo, quando manifesto em um contexto no qual o condições de reverter a existência no campo analí- analisando está se permitindo fantasias, desejos, tico de um desses conluios, aumentará a possibili- sensações e emoções a que sempre se proibira e dade de que o processo analítico se cronifique em coibira. Se o analista não se aperceber disso, por uma circularidade estéril, ou que desemboque em estar em estado resistencial defensivo, pelo seu te- impasses psicanalíticos, inclusive na tão temida mor da irrupção de uma transferência/contratrans- reação rerapêutica negativa, tal como eles serão ferência erótica, pode levar que ele, e por conse- estudados no capítulo seguinte.

CAPÍTULO no curso do processo analítico:1) Estagna- ção (aparentemente a situação está tranqüi- la, analista e analisando supõem que análise está se desenvolvendo bem, porém ela está 30 dando voltas em torno do mesmo lugar e nada de mais acontece, nem de mau ou de bom). 2) Paralisação (o analisando não sabe mais o que dizer, e o analista sente-se ma- nietado em uma desconfortável sensação Impasses: Reação contratransferencial de impotência e parali- sia, e no par analítico vai crescendo um sen- Terapêutica Negativa timento de esterilidade). 3) RTN (enquanto as duas anteriores costumam ser impasses silenciosos, este último habitualmente é rui- doso, por vezes dramático). A palavra “im-passe”, na etimologia derivada • Como é impossível que as conceituações do idioma francês, significa “caminho sem saída”. acima abranjam todos os aspectos que cer- Segundo Mostardeiro et al. (1974, p. 17), alguns de nossos dicionários atenuam o significado para cam esse fenômeno, talvez seja mais fácil “situação que parece não oferecer saída favorá- definir impasse por aquilo que, na situação vel”, o que está mais próximo ao que se observa na psicanalítica, ele parece ser, mas não é! prática clínica. • Assim, não se considera como um impasse Uma revisão bibliográfica permite verificar que analítico aquelas estagnações decorrentes de a conceituação de impasse analítico não é unívoca grosseiros erros técnicos do analista ou os entre os autores, sendo que alguns concebem este eventuais fracassos da análise decorrentes de fenômeno do campo analítico, como virtualmente uma diversidade de outras causas. sinônimo de “reação terapêutica negativa” (RTN), • Dentre essas outras causas, deve ser levada enquanto outros os diferenciam nitidamente. Acom- em alta conta a possibilidade de que, por panhando muitos, entendo que a RTN é uma das parte do psicanalista, tenha havido uma ina- distintas modalidades de impasse, aquela que está no pólo extremo de maior gravidade delas, tal como dequada seleção do paciente, tanto por ela será descrito mais adiante. Não obstante, o fato de não ter preenchido os critérios mínimos de que a distinção entre impasse e RTN nem sempre é “analisabilidade” ou “acessibilidade”, como possível, porquanto muitas vezes eles se super- também pelo fato de o analista não ter avalia- põem, creio ser bastante útil para a prática clínica do suficientemente a fragilidade da “moti- estabelecer os limites conceituais entre ambos os vação” do paciente para estregar-se a um tra- fenômenos. balho tão demorado, custoso e, de certa for- Inicialmente, como recurso didático, vamos ma, sofrido, como é uma análise. enumerar algumas das características básicas que • Desse mesmo contexto, pode acontecer que genericamente definem o impasse psicanalítico. a causa do fracasso analítico esteja radicada • Impasse pode ser entendido como “toda si- já em seu início, devido a uma imprecisa e tuação suficientemente duradora, na qual ambígua combinação das regras do setting, os objetivos do trabalho psicanalítico pare- ou que a “teoria de cura” do analisando (por çam não ser atingíveis, embora se mante- exemplo, ele espera unicamente um alívio nha conservada a situação analítica “stan- dos sintomas, ou alguma cura mágica...) não dard”. (Mostardeiro et al., 1974, p. 18). Esta coincida com a do psicanalista (que espera conceituação deve se aplicar a como se de- uma verdadeira mudança na caracterologia senvolve o processo analítico, e não unica- do paciente, or meio de um processo árduo mente a critério de cura ou à remoção de sin- e prolongado...). tomas. • Também não são consideradas como “impas- • Pode-se dizer que os impasses manifestam- ses” aquelas fases da análise que atravessam se por uma dessas três razões que ocorrem a barreira das “resistências incoercíveis” 326 DAVID E. ZIMERMAN

(Etchegoyen, p.613). Essas últimas, segun- dade que certos pacientes têm em conseguir do o autor, irrompem sempre desde o pacien- pensar as experiências emocionais, em cujo te, costumam ser agudas e ruidosas, mais caso ficam exacerbadas as resistências con- comumente surgem no início das análises e, tra as interpretações do analista, pelo recur- se não forem superadas, terminam em um so de despojá-las de valor e de vitalidade. abandono prematuro. Essa dificuldade para pensar não é a mesma • Todas as análises, especialmente as bem-su- coisa que o conhecido recurso resistencial cedidas, atravessam alguns transitórios pe- de “intelectualização”. ríodos difíceis que sugerem um impasse, mas • Bion enfatiza uma forma particular dessa que, se bem compreendidos e interpretados, desvitalização das interpretações: é a que ele são relativamente fáceis de superação, com denomina reversão da perspectiva, pela qual a aquisição de um importante insight. o analisando concorda manifestamente com • Destarte, os impasses não devem ser con- a interpretação do analista, porém, oculta- fundidos com os inevitáveis momentos de mente, ele as reverte para as suas próprias “transferência negativa”, até porque o surgi- premissas, logo, não se produz nenhuma mento dessa última no campo analítico, di- mudança. ferentemente do que o termo “negativo” su- • Da parte provinda unicamente do analista, gere, pode ser altamente “positiva”, desde não podemos descartar a possibilidade de que seja bem acolhida, compreendida e ma- que ele tenha as suas próprias limitações, nejada pelo analista. Caso contrário, aí sim, além das quais ele, inconscientemente, de- a transferência negativa pode vir a se confi- fende-se por uma estagnação da análise, sob gurar como um impasse. a forma de um impasse silencioso. Em casos • Penso que os impasses devam ser compre- mais extremos, pode acontecer aquilo que endidos em três dimensões possíveis: os Racker (1960) definiu como “uma reação impasses que procedem unicamente do pa- terapêutica negativa do analista”. De qual- ciente, os que se devem unicamente ao te- quer forma, na prática clínica é de funda- rapeuta e aqueles que se formam a partir de mental importância que o psicanalista reco- ambos, como resultantes de conluios resis- nheça qual é o seu estado contratransferen- tenciais/contra-resistenciais não desfeitos e cial, no curso do impasse. que, por isso mesmo, se cronificam em uma • Pode-se dizer, resumidamente, que os impas- estagnação, portanto em uma das formas de ses são polideterminados (resultam de diver- impasse. sas causas e fontes), polimorfos (adquirem • Assim, podemos considerar impasse não diversas formas), polissêmicos (comportam somente aquelas situações nas quais há uma distintos significados) e, além disso, na prá- evidente – às vezes ruidosa – presença de tica clínica, requerem diferentes manejos resistências contra a progressão da análise, técnicos. Assim, os motivos preponderantes contra as quais o analista está lutando, mas podem ser de natureza narcisista (em um ou também aquelas outras situações que aparen- em ambos do par analítico), uma fuga da temente estão tranqüilas, porém que, na ver- depressão, medo de um apego de muita de- dade, estão estagnadas em um conformismo pendência, uma enorme resistência às ver- recíproco do par analítico. Isso, eventual- dadeiras mudanças, etc., etc. mente, pode ocorrer mesmo naquelas situa- • Portanto, os fatores defensivos e ofensivos ções nas quais o paciente conscientemente que concorrem para o estabelecimento dos colabora, e aporta suficientemente o seu impasses que predominantemente procedem “material”, ao mesmo tempo em que o ana- dos analisandos são múltiplos, sendo que os lista o compreende e interpreta de forma aqui descritos, vão servir unicamente como correta. uma forma de amostragem e ilustração clí- • Desde os ensinamentos de Bion (1963), pas- nica, como são os seis seguintes: 1) “Os fal- sou a ganhar uma forte relevância como um sos colaboradores”. 2) a presença marcante fator gerador de impasse analítico a dificul- de desonestidade. 3) actings excessivos. 4) FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 327

o “antianalisando”. 5) A “psicose de trans- binete: “comigo-ninguém-pode”. A seguir, após um ferência”. 6) A RTN. Estes distintos proces- silêncio prolongado, passou a falar do ódio que sos, é evidente, não são estanques e autôno- sentiu contra sua esposa, pelo fato de ela haver mos; antes, eles se superpõem, se comple- mexido de novo em sua gaveta privada, de querer mentam e, no fundo, todos eles se radicam pô-la em ordem, o que lhe contraria, porque ele gosta, e tem o direito de ter sua gaveta toda em fortes fixações narcisísticas, tal como “esculhembada”. Ao mostrar-lhe a clara mensagem foram estudados por importantes autores. transferencial, o paciente sorriu, com algum ar de triunfo, e disse-me que durante muitos anos as ga- vetas que ele me deixara mexer eram as que “ti- “FALSOS COLABORADORES” nham um fundo falso”. Daí passamos a trabalhar nos seus sentimentos de uma aparente apatia e fal- Como já foi destacado, os pacientes portadores ta de prazer diante dos sucessos, no sentido de que, de uma forte estrutura defensiva narcisística, que na atualidade, eles não representavam uma depres- aparentemente cooperam perfeitamente com o tra- são propriamente dita como sempre fora, mas, sim, balho de análise, mas que, no fundo, a boicotam e uma maneira de ele não quebrar o seu juramento desvitalizam, foram estudados, entre outros, por de que ninguém poderia com ele. O paciente não Freud, Abraham, Reich, Rosenfeld, Meltzer, Bion queria dar-me esse gostinho de que eu pudesse com e mais recentemente por B.Joseph. ele, tendo em vista o seu antigo e ainda presente Um aspecto importante a considerar nesses pa- sobressalto de que mais cedo ou tarde as pessoas cientes narcisistas é o fato de eles vivenciarem como importantes de sua vida o decepcionavam, traíam humilhatório o fato de necessitarem ser ajudados a sua confiança e o humilhavam quando ele se ape- por alguém, o que determina uma acerba competi- gava de uma forma dependente. ção surda com o analista e uma tenaz resistência a O que vale acentuar, a partir desta vinheta clí- reconhecer melhoras. nica, é a minha convicção de que se tais aspectos Vou ilustrar isso com um analisando que, par- não fossem analisados, a análise correria um gran- cialmente, apresenta tais características. Ao longo de risco de ficar estagnada num silencioso impasse. da análise, cujos principais requisitos ele cumpria com toda a seriedade possível, vinha apresentando significativos progressos evidentes na sua vida em “DESONESTIDADE” geral, era sistemático que, especialmente ao subir algum degrau importante na escada do seu cresci- Este fator, por parte do analisando, representa mento, ele fazia questão de mostrar-me que “não um tipo de resistência que, se não for logo tratada adianta nada, continuo deprimido, nada para mim a fundo, vai impedir um acesso e elaboração das tem graça, faço tudo maquinalmente, ninguém vai verdades, e certamente levará a um impasse analí- conseguir me tirar deste buraco”. Em contraste tico. Joan Rivière (1936) já fazia a seguinte afir- com os sucessos externos, o clima analítico confi- mativa que continua plenamente vigente: “Tanto a gurava-se para mim com uma desconfortável sen- transferência absolutamente positiva, como a sação de estagnação e de alguma falsidade. O ana- transferência absolutamente negativa são de tole- lisando se mostrava insensível às interpretações, rância difícil, mas quanto à falsa transferência, tanto àquelas que aludiam às culpas decorrentes na qual os sentimentos do paciente não são since- dos desejos ligados ao antigo triunfo edípico quanto ros, essa tolerância se torna todavia mais penosa. das que apontavam diretamente para a sua inveja Representa um ataque tão violento ao nosso nar- de eu ser bem-sucedido com ele, ou para a sua sen- cisismo, envenena e paralisa de tal forma a com- sação de imerecimento de sucesso que a sua de- preensão da mente inconsciente do paciente que pressão subjacente o obrigava. Em um desses mo- desperta no analista intensas angústias depres- mentos, nos quais trabalhávamos que o que perdeu sivas”. a graça era não mais poder dar um tom de gran- Há diversos graus de desonestidade, desde as diosidade ilusória a tudo que ele fazia, lembrei-lhe formas sutis de impostura até as francamente o “juramento” que fizera em uma das primeiras psicopáticas. A gravidade, nesses casos mais ex- sessões da análise, muitos anos atrás. Essa espécie tremos, consiste no caráter consciente e delibera- de juramento, estava contido em uma imagem que do dessa forma de resistência, na qual a franqueza ele então trouxera na sessão, centrada em uma fo- está a serviço da má fé, e o drible, o engodo e a lhagem que ocupava quase todo espaço de seu ga- burla, idealizados. A desonestidade, quando se 328 DAVID E. ZIMERMAN constitui como uma forma – básica – de viver, deve O “antianalisando” (o prefixo “anti”, aqui, não ser entendida como uma organização defensiva significa “contra”, mas, sim, tem o significado equi- muito regressiva e rigidamente egossintônica, pela valente ao de “antimatéria”, isto é, revela-se pela qual tais pacientes conseguem evitar as insuportá- ausência, pelo contrário). Com essa denominação, veis decepções, desilusões e culpabilidade, atra- J. Mac Dougall (1972, p.22) descreve aqueles pa- vés do recurso de tirar da vida, e portanto da análi- cientes que têm características peculiares: dão a se, o seu caráter de seriedade. impressão inicial de serem “casos bons”; aceitam A propósito, Kernberg (1983, p,326), sob o bem o protocolo analítico e não abandonam o ana- subtítulo “Desonestidade na Transferência”, tece lista, porém o passar do tempo dessa análise, no interessantes considerações acerca de pacientes em geral linear e fria, revela que não se produziu mu- estado de regressão maligna, e que são mentirosos dança significativa. Tais pacientes colaboram com crônicos, o que os diferencia dos que, ocasional- o analista, falam de coisas e pessoas, mas não esta- mente, mentem para se protegerem da vergonha ou belecem as relações e ligações entre as mesmas, da culpa. Aqueles mentem para evitar a interferên- pois lhes falta o senso da curiosidade e indagação. cia do analista na sua conduta patológica, e costu- Parece que não fazem regressões maciças, mas, sim, mam “confessar” suas mentiras, mais com o pro- que perderam o contato consigo mesmos. Apesar pósito de se sentirem honestos e, assim, deixar toda disso tudo, eles mantêm uma estabilidade em suas a responsabilidade com o analista. relações objetais e recusam qualquer idéia de se- Fora desses extremos, é importante consignar paração de seus objetos de rancor. Apegam-se à os pacientes não-psicopatas e, muitas vezes, bem análise como “um náufrago a uma bóia, sem espe- adaptados socialmente, que desenvolveram a sua rança de alcançar terra firme”, diz MacDogall. personalidade nas bases de um “falso self” (Winni- A autora salienta que a transferência nesses cott, 1954), o qual, se não for suficientemente bem pacientes é natimorta na análise; eles jamais se ar- analisado, pode redundar em uma estagnação no riscariam a ficar nas mãos de um outro, e nisso são crescimento analítico. fiéis ao provérbio espanhol: “Antes morrer do que mudar”. A contratransferência, mais do que decep- ção, é de enfado, e o analista tem a impressão de ACTINGS EXCESSIVOS que ele representa para o paciente mais uma condi- ção do que propriamente um objeto a ser bem apro- Na atualidade, os psicanalistas estão bem mais veitado. atentos, e em melhores condições de entender que as atuações do analisando possam estar represen- tando uma importantíssima forma de ele estar uti- “PSICOSE DE TRANSFERÊNCIA” lizando uma forma de comunicação primitiva da- quelas ansiedades que ele não consegue lembrar, Essa é uma denominação de Rosenfeld (1978), verbalizar ou pensar. Não obstante isso, o tipo e com a qual ele descreve uma importantíssima, e grau dos actings podem ser de tal monta que pro- nada infreqüente, ocorrência na situação psicana- voquem impasses que culminam com interrupções lítica, que consiste no fato de que eventualmente da análise. analisandos não-psicóticos ingressam em um esta- A “atuação”, de características mais graves, está do transferencial de tamanho negativismo e dis- virtualmente sempre ligada às insuportáveis angús- torção dos fatos reais, em relação ao analista, que tias de separação, com o conseqüente cortejo de chega a dar a impressão de uma situação realmente medo e de sentimentos de vingança, inclusive o de psicótica. No entanto, a grande característica des- abandono da análise para castigar o analista que “o sa “psicose” transferencial consiste no fato de que abandonou”. Outras vezes, o acting excessivo do ela fica restrita unicamente à situação da hora ana- analisando pode estar decorrendo do seu desespe- lítica, finda a qual o analisando retoma a sua vida ro por não estar se sentindo entendido em sua aná- de forma completamente normal. lise. Também não pode ser descartada a possibili- Essa “psicose de transferência” pode durar dias, dade de que a atuação do paciente possa estar re- semanas ou meses, porém se ela perdurar por um presentando o cumprimento vicariante de um de- período demasiadamente longo e ininterrupto, sem sejo inconsciente do próprio analista (divórcio, dar mostras de reversibilidade, constitui-se como aventuras, liberação sexual, negócios, etc.), ao qual um sério indicador de um impasse irreversível. As esse se proibe de agir, delegando tais desejos para possíveis causas determinantes do surgimento des- seu paciente atuar por ele. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 329 se tipo de transferência temível serão melhor estu- são. Assim, parece-me bastante importante e escla- dadas num título específico do capítulo 31. recedora a posição assumida por M. Baranger que, em uma participação na “Mesa-Redonda sobre Resistências” (1979, p. 735), afirma que o impas- “Reação Terapêutica Negativa” se refere-se a uma forma de resistência que ocorre como estagnação de um processo que vinha em Embora muitos autores considerem o fenôme- progresso; às vezes é possível superá-lo e outras no apenas como mais uma forma de impasse, ou vezes termina com uma interrupção da análise, em mais um entre outros fatores determinantes de im- que o paciente leva os benefícios conseguidos. Isso passe analítico, pela freqüência e ambigüidade o diferencia da RTN, em que tudo volta à estaca conceitual com que a RTN aparece na literatura zero e o epílogo da análise pode adquirir caracte- psicanalítica, fica justificado seu estudo um tanto rísticas trágicas. mais demoradamente. POSSÍVEIS CAUSAS DA RTN REAÇÃO TERAPÊUTICA NEGATIVA Distintos importantes autores estudaram a etiologia das reações terapêuticas negativas, a par- Conceituação tir de variados vértices de abordagem. A seguir, serão enfocados, de forma muito reduzida, alguns A primeira vez que aparece a expressão “rea- deles: ção terapêutica negativa”, é no capítulo V (“As FREUD. No trabalho de 1923, antes mencio- Servidões do Ego”) do trabalho de Freud O ego e nado, Freud dá destaque, no surgimento da RTN, o id (1923), no qual ele afirma textualmente: “Há ao masoquismo moral e aos sentimentos de culpa pessoas que se conduzem muito singularmente no acompanhados de uma necessidade de castigo, tratamento psicanalítico. Quando lhes damos es- decorrentes de um implacável superego, o qual, por peranças e mostramo-nos satisfeitos com a mar- sua vez, resulta dos desejos de um triunfo edípico, cha do tratamento, mostram-se descontentes e pio- tal como é representado na mente do paciente qual- ram acentuadamente...Descobrimos, com efeito, quer sucesso que ele obtenha, inclusive o êxito ana- que tais pessoas reagem num sentido inverso aos lítico. Em trabalhos posteriores (1937), ele incluiu progressos de cura. Cada uma das soluções par- a influência da pulsão de morte e a compulsão à ciais que haveria de trazer consigo um alívio ou repetição. um desaparecimento temporário dos sintomas, pro- JOAN RIVIÈRE (1936), uma analista kleiniana, voca, ao contrário, uma intensidade momentânea estabeleceu uma relação entre a RTN e um sistema da doença, e durante o tratamento, pioram em lu- fortemente organizado de defesas maníacas do ana- gar de melhorar. Mostram-nos, pois, a chamada lisando contra um subjacente estado depressivo reação terapêutica negativa, É indubitável que, profundo, que o levaria à loucura ou ao suicídio. O nestes doentes, há algo que se opõe à cura, a qual paciente está tão identificado, solidário e assolado é considerada por eles como um perigo e que ne- por suas “vítimas” que, enquanto não se processar les predomina a necessidade de doença e não a uma reparação verdadeira, ele se proíbe de inves- vontade de cura”. tir exitosamente na sua própria pessoa, desfazendo Essa posição de Freud deu motivo a entendi- tudo que lhe pareça que esse êxito esteja aconte- mentos imprecisos entre muitos autores, sendo que cendo. para alguns o fenômeno diz respeito unicamente a Em relação à técnica analítica com pacientes uma reação, paradoxalmente negativa, durante propensos à RTN, J. Rivière faz duas observações qualquer momento do curso da análise, inclusive importantes: a primeira é quanto à necessidade como uma resposta à determinadas interpretações prioitária de o analista propiciar ao paciente a pos- eficazes do analista. Para outros, a RTN refere-se sibilidade dele fazer as aludidas reparações aos mais ao clímax das etapas finais, forçando a inter- objetos que, na realidade ou na fantasia, ele julga rupção de cura. Entretanto, aquilo que, sobretudo, ter atacado e destruído. Sua segunda observação, caracteriza a uma RTN, a paradoxalidade da rea- merece uma reflexão profunda: “Nada conduzirá ção do paciente. mais regularmente a uma reação terapêutica ne- Não raramente, impasse e RTN aparecem como gativa no paciente do que a falha em reconhecer sinônimos, porém prevalece a idéia de que não o nada mais do que agressão em seu material”. 330 DAVID E. ZIMERMAN

M. Klein, complementando seu acervo teórico, como que se constituindo em uma instância psí- afirma, em 1957 (p. 120), que: “Além dos fatores quica com características próprias e específicas, assinalados por Freud e desenvolvidos por J. separada das demais instâncias (ego, superego, ego Riviére, a inveja e as defesas contra ela desempe- ideal, ideal do ego e alter-ego), embora em íntima nham um papel importante na RTN”. Não resta interação com elas. Por essa razão, eu venho pro- dúvida que se trata de uma contribuição relevante pondo uma denominação genérica de contra-ego de M. Klein, e freqüentemente evidenciável na prá- para esses objetos e forças ocultas que, à moda de tica analítica o fato de que certos pacientes não to- um “inimigo dentro da própria trincheira”, opõem- leram a inveja que sentem do seu analista, porque se contra o crescimento do ego e, por isso, podem esse mostrou-se potente e capaz com ele. No en- induzir à formação de impasses, incluída a de uma tanto, algumas gerações de analistas kleinianos le- RTN. varam tão ao pé da letra o papel da inveja primária concebida por M. Klein, que entendo não ser exa- gero afirmar que as interpretações reiteradas e ex- Conflito com o “Ideal do Ego” clusivas nesse enfoque, com a finalidade de preve- nir uma RTN, é que, justamente, muitas vezes, pro- Um aspecto que vem merecendo uma crescen- vocavam a sua irrupção no campo analítico. Aliás, te atenção no tocante à gênese da RTN é o referen- isso seria um bom exemplo daquilo que alguns au- te ao conflito que se estabelece entre algumas de- tores contemporâneos consideram: “muitas vezes mandas do ideal do ego e as mudanças psíquicas uma reação terapêutica negativa, na verdade é uma que foram possibilitadas por um êxito da análise. relação terapêutica negativa”. É preciso considerar que o “ideal do ego” tem uma Além destes três clássicos fatores na determi- dupla significação: 1) Pode representar um pólo nação da RTN – o triunfo edípico, a depressão psíquico sadio, a serviço de ambições que corres- subjacente e a inveja –, na atualidade cabe acres- pondem às reais capacidades e potencialidades do centar mais dois outros, igualmente freqüentes e paciente, tendo em vista um projeto de um “vir a relevantes: 1) A presença de uma organização pa- ser”. 2) Pode também adquirir uma configuração tológica, sob a forma de uma “gangue narcisista”, patogênica, em cujo caso o sujeito sente-se obri- agindo dentro do próprio ego. 2) A de um conflito gado a cumprir as expectativas nele depositadas entre o ideal de ego do paciente e o seu êxito ana- pelos pais e pela cultura, expectativas essas que lítico. tanto podem ser de uma grandiosidade impossível de ser cumprida, como também podem ser de um papel programado, como, por exemplo, o de um “Gangue Narcisista” “eterno filhinho da mamãe” com a obrigação de não poder emancipar-se dela e, por conseguinte, Com esta denominação, Rosenfeld (1971) alu- com a proibição de construir a sua identidade de de a uma espécie de organização composta por adulto pleno. objetos internos que – movidos pela necessidade Com outras palavras, para esses analisandos, de negar a fragilidade e dependência que este indi- assumir as profundas e verdadeiras modificações víduo tem em relação aos outros – idealizam a oni- estruturais e a aquisição de valores adultos signifi- potência e a prepotência próprias do narcisismo, ca entrar em pânico, porquanto o caminho de ser de tal modo que sabotam o seu próprio lado infan- (ele próprio) passa pelo caminho de não ser (aqui- til que está fazendo força para crescer. Esta “orga- lo que os pais internalizados exigem). E deixar de nização patológica” (termo de Steiner, 1981) con- ser, por via da compulsão à repetição, transforma- siste em um arranjo de natureza perversa entre o se em voltar a ser o de antes, ou seja, o sujeito ego e os objetos sabotadores do crescimento. volta a ser um sujeitado, o que é a essência da RTN. São muitos os fatores boicotadores e sabotado- res, que agem desde o próprio ego e dentro dele, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 331

CAPÍTULO com a pessoa do psicanalista, na experiência emo- cional da relação analítica, todas as “representa- ções” que ele tem do seu próprio self, as “relações objetais” que habitam o seu psiquismo e os con- teúdos psíquicos que estão organizados como “fan- 31 tasias inconscientes”, com as respectivas distorções perceptivas, de modo a permitir “interpretações” do psicanalista, as quais possibilitem a integração do presente com o passado, o imaginário com o real, o inconsciente com o consciente. Transferências Etimologicamente, a palavra “transferência” resulta dos étimos latinos trans e feros. O prefixo “trans”, além de outros significados possíveis, tam- bém alude a passar através de (como em “trans- A clássica expressão “transferência” é con- parente”), ou passar para um outro nível (como sensualmente entendida como um substantivo “co- em trânsito), enquanto “feros” quer dizer “condu- letivo”, isto é, ela está no singular, porém engloba zir”, e creio que basta essa compreensão etimoló- uma pluralidade de significados distintos. Mesmo gica para caracterizar a essência do fenômeno trans- assim, preferi titular este capítulo na forma plural ferencial. No entanto, como o conceito de transfe- – “transferências” – tendo em vista: 1) A enorme rência vem sofrendo sucessivas transformações e gama de variadas possibilidades teóricas, técnicas renovados questionamentos – como, por exemplo, e práticas que estão contidas na sua conceituação. a de se a figura do analista é uma mera pantalha 2) O fato de que a transferência advém tanto da para uma repetição de antigas relações objetais pessoa do analisando como, também, do próprio introjetadas, ou se ele também se comporta como psicanalista, além de, em cada um deles separada- uma nova pessoa, real – impõe-se a necessidade mente, ou entre eles, em diferentes arranjos de fazermos uma evolução histórica, embora bas- combinatórios, adquirir múltiplas manifestações tante abreviada, do fenômeno da transferência, de clínicas. 3) À medida que a psicanálise ganha uma Freud aos nossos dias, passando pelos demais au- gradativa e enorme expansão, diversos autores, tores e concepções que adquiriram uma nomencla- desde distintas épocas e referenciais psicanalíticos tura própria. divergentes, ou mesmo convergentes, conceituam formas muito específicas de situações transferen- ciais, com um emprego de terminologias próprias FREUD de cada um, tudo isso podendo enriquecer bastante o entendimento e o emprego da transferência no Como sabemos, nos primeiros tempos, Freud campo analítico, porém também pode complicar e valorizava tão-somente a ocorrência da repressão causar alguma confusão semântica. dos precoces traumas sexuais na determinação das neuroses. Assim, diante do dramático relato que Breuer lhe fez acerca da “paixão” que Ana O. pas- CONCEITUAÇÃO: SEGUNDO sou a nutrir por ele, Freud não conseguiu perceber DIVERSOS AUTORES o aspecto transferencial e, muito menos, a perturba- dora reação contratransferencial de Breuer que fez Embora o fenômeno transferencial esteja virtu- com que este abandonasse a sua paciente Ana O., almente presente em todas as inter-relações huma- fugindo dela por meio de uma viagem com a sua nas, o termo “transferência” deve ficar reservado esposa, como um extremo recurso de garantir a unicamente para a relação presente no processo preservação de seu casamento. psicanalítico, onde juntamente com a “resistência” No entanto, em Estudos sobre a histeria (1895, e a “interpretação”, constitui o tripé fundamental p. 360) Freud empregou, pela primeira vez, o ter- da prática da psicanálise, dando-lhe o selo de mo “transferência” (ubertragung, no original ale- genuidade psicanalítica, entre outras modalidades mão), no sentido de uma forma de resistência, isto psicoterápicas. é, como um obstáculo à análise, a fim de evitar o De forma extremamente genérica, pode-se con- acesso ao resíduo da sexualidade infantil que ain- ceituar o fenômeno transferencial como o conjun- da persistia ligada às “zonas erógenas”, as quais, to de todas as formas pelas quais o paciente vivencia na evolução normal, já deveriam estar desligadas. 332 DAVID E. ZIMERMAN

Assim, nesse mesmo livro que escreveu com tem que ser conquistada, concluindo com a clássi- Breuer, no capítulo “A Psicoterapia da Histeria”, ca frase de que “não é possível vencer a alguém (o afirma textualmente que a “transferência é o pior inimigo) in absentia ou in effigie”. obstáculo que podemos encontrar” e conclui Em 1914 (Novas recomendações...), ele postu- conceituando-a como uma forma de um falso en- la que somente a repetição na transferência pode lace (ou falsas conexões, como ele veio a chamar libertar as lembranças reprimidas e assim evitar uma posteriormente) do paciente com o terapeuta. eterna compulsão à repetição, como actings subs- Em 1905, no seu clássico historial Dora, Freud titutos. Nesse trabalho, Freud introduz o conceito postula que o paciente não recorda coisa alguma de neurose de transferência. (p. 201) do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela Em 1915 (Observações sobre o amor de trans- atuação, ou seja, ele reproduz o reprimido não como ferência), Freud classifica as transferências em lembrança, mas como uma ação repetitiva, sem positivas (as amorosas) e negativas (as sexuais), naturalmente saber conscientemente do que está estas últimas ligadas às resistências. Aliás, em su- fazendo. Começa então uma importante virada cessivos trabalhos sobre técnica (1910, 1912, conceitual de Freud: até aqui a transferência seria 1915), Freud refere-se à íntima inter-relação exis- uma forma de atuação, e ainda continuava sendo tente entre transferência, e resistência, de modo que conceituada como uma resistência e como um ar- ele tanto descreve uma “resistência ao surgimento tefato indesejável para o bom andamento da análi- da transferência”, como também a possibilidade se da época, isto é, como um obstáculo para tornar de que “a transferência funcione como uma forma consciente a repressão inconsciente e pré-cons- de resistência”. Ao mesmo tempo, gradativamen- ciente. te, Freud vai retirando a importância do papel do No entanto, no “pós-escrito” desse mesmo tra- analista unicamente como um “descodificador” das balho, o termo “transferência” foi repetido pela associações livres, enquanto passa a valorizar tam- segunda vez, tendo sido conceituada como novas bém o seu envolvimento emocional e, por conse- edições revistas ou fac similes de impulsos e fan- guinte, o seu preparo para a função psicanalítica. tasias, passando a considerá-lo uma inevitável ne- Em 1916-17 (Conferências introdutórias), faz cessidade. Freud veio a reconhecer que a análise uma distinção entre neuroses transferenciais e com Dora fracassou devido ao fato de ele não ha- narcísicas, deixando aí a sua clássica afirmação de ver reconhecido e trabalhado suficientemente o que que as narcísicas (que era, como então, ele se refe- podemos chamar de “transferência de vingança” ria às psicoses) não poderiam ser tratadas (Dora abandonava Freud, tal como ela tinha sido psicanalíticamente por não haver libido disponí- abandonada pelo “Senhor K”) e tampouco ele re- vel para a formação da transferência. conheceu as fantasias homossexuais dessa pacien- Em 1920 (Além do princípio do prazer) dá-se te adolescente, que estavam sendo veiculadas pela um importante acréscimo conceitual, porquanto sua transferência. Freud lança o seu postulado da existência de uma Em 1909, no historial do Homem dos Ratos, a pulsão de morte e inclui o fenômeno da transferên- transferência foi vista como um caminho penoso, cia como um exemplo de compulsão a uma repeti- porém necessário, para que o paciente revivesse os ção penosa e infantil, pela qual o paciente é obri- conflitos com o pai morto, agora internalizado no gado a repetir (atuar) o material reprimido – sem- inconsciente. Assim, nesse ano, ao estudar as neu- pre ligado a algum vestígio da sexualidade edípica roses obsessivas, Freud faz a primeira referência – como se fosse uma experiência contemporânea da transferência como um agente terapêutico. realmente vivida com o psicanalista. Também a A seguir, em 1910, no trabalho relativo às Cin- partir daí ele aventou a hipótese de um masoquis- co leituras sobre psicanálise, empregando uma mo primário (e não unicamente como secundário analogia com a química, ele afirmou que “os sinto- ao sadismo), o que determinou uma mudança no mas são precipitados de anteriores eventos amo- entendimento de certas transferências. rosos que só podem dissolver-se à elevada tempe- A partir de 1923 (O ego e o id), com a sua pos- ratura da transferência e, portanto, transformar- tulação da teoria estruturalista, Freud ampliou se em outros produtos químicos”. bastante a importância do conceito de transferên- Em 1912, no trabalho A dinâmica da transfe- cia, de forma a abarcar na transferência, não unica- rência, Freud reforça essa concepção e, utilizando mente a repetição das lembranças e pulsões repri- uma linguagem de analogia bélica, afirma que a midas, mas também incluiu a participação de figu- transferência opera tal como num campo de bata- ras superegóicas e dos mecanismos de defesa do lha em que a vitória, ou seja, a cura da neurose, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 333 ego. Não obstante isso, ele sempre mostrou-se algo tante essa sua forma de entender o fenômeno trans- ambíguo a respeito da existência da transferência. ferencial. Assim, em 1938 (Esquema de psicanálise), re- Muito resumidamente, pode-se dizer que os fere-se à transferência como ambivalente...e pode psicanalistas da escola kleiniana enfatizaram os ser uma fonte de sérios perigos”, sendo que isso seguintes aspectos relativos à transferência: 1) A reflete o quanto ao longo de toda sua obra, ele compreensão e a valorização da transferência pri- mostrou-se ambivalente em relação ao fenômeno mitiva, ou seja, aquela que reproduz com o analis- transferencial, tanto que muitas outras vezes ele a ta as primitivas relações objetais, com as respecti- considera como o mais poderosos instrumento da vas fantasias inconscientes arcaicas, ansiedade de psicanálise. aniquilamento e primitivos mecanismos defensivos. Embora Freud não tenha ligado diretamente Estes últimos (negação onipotente, dissociação, com seus estudos relativos à transferência, creio identificação projetiva e introjetiva, idealização...) que podemos creditar-lhe a enorme importância que são muito anteriores à “repressão”, na qual Freud representam para a compreensão do campo analí- sistematizou toda a sua conceitualização transfe- tico as suas concepções referentes à dissociação rencial. 2) Essas primitivas relações objetais pro- (ou cisão, splitting) do próprio ego, tal como vavelmente não aparecem sob a forma de associa- transparece nos seus trabalhos A perda da realida- ções de idéias – tal como Freud preconizava –, de na neurose e na psicose (1924), Fetichismo porquanto ela se formaram antes da capacidade de (1927) e A divisão do ego no processo de defesa o ego da criança poder fazer representações-pala- (1938). vras das mesmas; no entanto, elas podem ser cap- Anna Freud (1936) prosseguiu alguns esboços tadas pelo analista e, daí, virem a ser reconstruídas. do pai e descreveu a “transferência de defesa” 3) Nesse tipo de “transferência primitiva” as rela- como um recurso do ego para se proteger, como ções objetais são configuradas com objetos parci- fizera no passado, de dolorosas conseqüências dos ais (seio, pênis...), desde as primeiras sensações impulsos sexuais e agressivos (por exemplo, uma corporais, e decorrentes das angústias persecutórias manifesta capa agressiva como escudo protetor de e depressivas inerentes ao início do desenvolvimen- latentes sentimentos amorosos). A mesma autora to infantil. 4) A transferência está presente não só introduz o conceito de “atuar dentro da transfe- nos momentos em que o paciente manifesta direta rência”, no qual a transferência se intensificava e ou indiretamente em relação com o analista, mas, extravasava do consultório para a vida cotidiana sim, de forma permanente, embora oculta. 5) Esse do paciente. entendimento do fenômeno transferencial acarre- tou profundas modificações na forma e conteúdo das interpretações do psicanalista, como será M. KLEIN explicitado mais adiante. As postulações originais de M. Klein acerca da Durante toda a sua prática analítica, desde o teoria e manejo técnico do fenômeno transferenci- início na década de 20 com o pioneirismo da análi- al sofreram – e continuam sofrendo – sensíveis mo- se com crianças, por meio da introdução da técnica dificações por parte dos seus seguidores mais emi- de jogos e brinquedos, M. Klein sempre trabalhou, nentes. Assim, para ficarmos restritos unicamente de forma sistemática, na transferência, muito espe- a poucos autores kleinianos, é indispensável men- cialmente a negativa, decorrente das pulsões sádi- cionar Rosenfeld com os seus estudos sobre trans- co-destrutivas. Ela entendia o fenômeno transfe- ferência narcisista, que inclui a descrição do que rencial como uma reprodução, na figura do analis- ele conceitua como “gangue narcisista”(1971) e ta, de todos os primitivos objetos e relações objetais também sobre o que ele descreveu como psicose internalizadas no psiquismo do paciente, acompa- de transferência (1978), um importante trabalho nhadas das respectivas pulsões, fantasias incons- que merecerá um destaque especial mais adiante; cientes e ansiedades. Essa idéia de M. Klein ficou Meltzer (1979) que descreveu a natureza e as for- muito robustecida com a sua concepção relativa ao mas da perversão na transferência; B. Joseph que, fenômeno da identificação projetiva, hoje consen- além de estudar a transferência como situação to- sualmente aceita por todos psicanalistas, sendo que tal (1985), também contribuiu para o conhecimen- em seu importante trabalho de 1952, As origens da to da transferência que se manifesta nos “pacien- transferência, o único que escreveu especificamen- tes de difícil acesso” (1975); Steiner (1981), que te sobre o tema, ela deixa claro e desenvolve bas- descreveu a organização patológica da personali- dade, na qual há uma relação permanente entre 334 DAVID E. ZIMERMAN partes diferentes da mente, que tendem a se repro- pelo analista, possibilitam uma internalização duzir na transferência; e Bion, cujas concepções transmutadora”, a qual preencherá as referidas fa- serão descritas à parte, mais adiante. lhas antigas e promoverá uma reestruturação do self.

KOHUT WINNICOTT

Este psicanalista austríaco que migrou para os Para Winnicott, a transferência é muito mais do Estados Unidos (Chicago), onde criou e divulgou que uma repetição de impulsos e defesas; especial- a “psicologia do self”, trouxe uma notável e origi- mente com pacientes em estados regressivos, não nal contribuição para a compreensão e manejo da há “desejos”, mas, sim, “necessidades” que, quan- normalidade e patologia do narcisismo. Mais es- do não satisfeitas pelo analista – que acima de tudo pecificamente, ele estudou as transferências nar- deve “intuí-las” – geram, nesse mesmo paciente, cisísticas e as classificou em três tipos: idealizado- mais do que ódio, uma decepção pelo novo fracas- ras, gemelares e as especulares. Estas últimas, ele so do ambiente que nos primeiros anos da criança subdividiu em duas escalas, de acordo com o grau lhe interrompeu o crescimento do self e prejudicou de como esses pacientes se imaginam ligados ao a capacidade de desejar, o que leva a uma sensa- terapeuta: 1) Fusional (corresponde ao conceito de ção de futilidade. Mais ainda, Winnicott afirma que Freud de “ego do prazer purificado” e manifesta- a incapacidade materna (ou do analista), indo além se pelo fato de o paciente crer que o seu analista do ódio da criança e da decepção pelo novo fra- não passa de uma mera extensão sua, pois ambos casso, pode produzir ameaças de aniquilamento do estariam numa fusão arcaica). 2) Especular pro- self, devido ao profundo estado de desamparo que priamente dita (necessita que o analista, tal como essa privação provoca. a mãe no passado, reconheça, confirme e espelhe o Assim, para Winnicott, a transferência deve ser self grandioso que o paciente lhe exibe). compreendida como uma nova relação, um novo Assim, Kohut (1971) caracterizou que a pacien- espaço que o paciente conquista para poder rela- tes com transtornos narcisistas mostram-se como cionar-se com o seu analista, cuja imagem, inicial- personalidades famintas, em uma dessas quatro mente, estará distorcida pelas projeções e sentimen- possibilidades, que naturalmente serão repetidas na to de “posse” que esse paciente tem em relação a transferência: 1) Famintas por fusão (pelo fato de ele, para que, aos poucos, venha a poder usar o que vivenciam o analista como uma extensão do analista, primeiro como um objeto transicional e, seu próprio self, eles têm uma enorme dificuldade após, de forma objetiva, como um objeto real. A com as separações). 2) Famintas por espelho (ne- relação analista-analisando passa a ser um proces- cessidade de encontrar no analista um “espelho” – so mutual, no qual cada um está descobrindo e inicialmente estruturante – que reconheça e aceite criando ao outro porquanto as descobertas levam o seu exibicionismo, assim lhes refletindo a “gran- às criações. diosidade de seu self “. 3) Famintas por ideal (ca- Entre outros aspectos relativos à transferência racteriza-se por uma busca constante de uma que Winnicott descreve, merece menção a função “imago parental idealizada”, ou seja, de pessoas, holding do analista; a sua capacidade de sobrevi- como o analista, a quem possam admirar pelo seu ver aos ataques destrutivos do paciente; o risco de prestígio, poder, beleza, inteligência ou virtudes que alguma análise, aparentemente bem-sucedida, morais). 4) Famintas por gemelaridade (consiste possa estar construindo não mais do que um falso na necessidade de encontrar um “gêmeo”, um self e o fato de que, embora Winnicott não descu- “alter-ego”, isto é, alguém o suficientemente pare- rasse dos aspectos sádico-destrutivos, contraria- cido com ele, de modo a confirmar a existência e mente a M.Klein, ele priorizava os aspectos cons- aceitação do seu próprio self). Um quinto tipo se- trutivos e o dos vazios existenciais.. ria o daquelas personalidades narcisistas que, em contrapartida aos quatro tipos anteriores, evitam o contato, não porque os demais não o interessem, LACAN mas, pelo contrário, justamente porque a sua ne- cessidade deles é muito faminta. Esse eminente e controvertido autor concebe a Kohut acredita que a transferência das preco- utilização da transferência na situação analítica de ces falhas empáticas que tais pacientes tiveram com uma forma frontalmente diversa de como todos os a mãe, uma vez bem compreendidas e manejadas analistas das demais escolas crêm e habitualmente FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 335 a praticam. Ele parte do princípio de que a fixação ta-se como um processo de transformações, as oral à mãe expressa o “estágio do espelho” no qual quais podem ser do tipo de “movimento rígido”(é o sujeito reconhece o seu ego no “outro”, ou que a pequena a distorção do paciente), “projetivas” e primeira noção de ego provém do outro. Assim, “alucinoses” (em cujo caso são profundas as Lacan acredita que a ênfase do analista na inter- distorções das percepções que o paciente faz). c) pretação sistemática da transferência não faz mais Bion inclui, no complexo transferencial, a existên- do que reforçar um vínculo de natureza diádica cia constante dos três vínculos: “amor, ódio e co- especular. Pelo contrário, prossegue Lacan, o ana- nhecimento”; é importante o psicanalista reconhe- lista deve romper essa díade imaginária, pela cas- cer quando a transferência provém da “parte neu- tração simbólica, como um recurso de propiciar a rótica” ou da “parte psicótica da personalidade”; transição do “nivel imaginário” para o “nível sim- assim, o seu conceito de vértice, a partir do qual o bólico”, próprio da triangularidade edípica. Todos analista possibilita que ele próprio e o paciente esses aspectos constituem o que Lacan configura percebam e reflitam uma mesma experiência a partir como a teoria simbólica da transferência. de uma outra visualização, adquire uma signficativa Apesar de que parece haver um certo exagero relevância na prática analítica. d) Igualmente é re- nas restrições de Lacan quanto às interpretações levante o fato de que Bion introduz a idéia que a transferenciais, devemos reconhecer como válido transferência não é unicamente com a pessoa do o seu alerta quando se trata de um “abuso transfe- analista, mas também de uma parte do paciente em rencialista” por parte de muitos psicanalistas que relação com “a pessoa mais importante que ele ja- assumem o papel daquilo que este autor denomina mais poderá lidar, que é uma outra parte dele mes- como sujeito suposto saber, e que, com esse resí- mo”. e) Fundamentalmente Bion encara o fenôme- duo narcisista, de uma forma ou de outra, vai este- no transferencial a partir do seu modelo de uma rilizar o crescimento do analisando. relação de continente-conteúdo, tomando como Para Lacan, a psicanálise consiste em um pro- paradigma disso a relação original mãe-filho. f) cesso dialético, pelo qual o paciente traz a sua tese, Destarte, vale destacar que ele também considerou o analista propõe uma antítese, daí surge uma sín- a condição do analista como uma pessoa real e não tese (insight) que leva a novas teses, sendo que a unicamente como um objeto, uma mera pantalha transferência somente surgindo quando, por algu- transferencial. Isso pode ser depreendido pelo se- ma razão, esse processo dialético é inoperante. guinte trecho (1992, p. 79), entre tantos outros: Assim, para ele, não é uma interpretação que põe “Penso que o paciente faz algo para o analista e o em marcha a análise, mas, sim, é a reversão dialé- analista faz algo para o paciente; não é apenas tica do processo, por intermédio de um trabalho uma fantasia onipotente”. com os significantes e os significados. Ainda dentro da proposta de conceitualização do fenômeno transferencial, impõe-se a necessida- de de fazer uma distinção entre a transferência pro- BION priamente dita e outros fenômenos correlatos, po- rém de significados distintos, que aparecem com Embora Bion não tenha escrito nenhum texto freqüência na literatura psicanalítica com uma ter- específico sobre o fenômeno transferencial, é pos- minologia específica, como são os conceitos se- sível depreender algumas das suas idéias relativas guintes. a essa importante experiência emocional contidas em inúmeras concepções originais dele, tais como: a) Um termo melhor do que “transferência” talvez Pré-Transferência seja transiência, o qual melhor define a caracterís- tica espacial de “transicionalidade” e a caracterís- Essa denominação alude à uma manifestação tica temporal de “transitoriedade”, que devem cons- de natureza transferencial que se instala no pacien- tituir a experiência emocional com o analista e que te ainda antes dele sequer ter tido um contato pes- necessitam sofrer transformações ao longo da aná- soal com o seu possível analista e que pode surgir lise. Assim, Bion diz textualmente que “a transfe- desde o encaminhamento à sua pessoa, uma obser- rência é uma experiência transitória, é um pensa- vação em algum evento científico, o primeiro con- mento, sentimento ou idéia que o paciente tem, em tato telefônico, etc. seu caminho para um outro lugar” (o grifo é meu). b) Da mesma forma, para Bion a transferência não é estática e uniforme, antes, ela resulta e compor- 336 DAVID E. ZIMERMAN

Para-Transferência analisar com o paciente os detalhes da briga que ele teve com a esposa, como tudo começou, qual Consiste no fato de que o paciente, à moda de foi a sua participação, o seu papel, a sua responsa- actings, extravasa para fora da situação analítica bilidade por uma possível provocação para uma os seus sentimentos transferenciais que estão so- previsível resposta daquela, e que esse episódio negados e que não aparecem diretamente com o repete tantos outros análogos com outras pessoas, analista, de modo a revelar com pessoas de seu etc., de sorte a poder propiciar um importante convívio mais íntimo algumas reações e atitudes insight, com a possibilidade eventual de, aí sim, inusitadas, que algumas vezes deixam os interlocu- poder fazer uma costura dessa briga com outras tores surpresos e outras os circunstantes são acio- manifestas ou ocultas que se passaram no passado nados e “convidados” a exercer determinados pa- ou que, de fato, possa estar acontecendo no víncu- péis. lo analítico.

Extratransferência Neurose de Transferência

Trata-se de um termo bastante conhecido e di- É útil traçar uma diferença entre o surgimento vulgado, que classicamente designa uma condição na situação analítica de momentos transferenciais pela qual o analista percebe que o analisando de- e a instalação de uma neurose de transferência. monstra por meio dos inter-relacionamentos de sua Neste último caso, quer seja de aparecimento pre- vida cotidiana a forma de como estão estruturadas coce ou tardio, o analisando vive intensa e conti- as suas relações objetais internas. De modo geral, nuadamente uma forte carga emocional investida os analistas desvirtuam a extratransferência e apre- na pessoa do psicanalista, que transborda para fora goam que tais experiências emocionais só têm efi- da sessão e lhe ocupa uma grande fatia do seu tem- cácia analítica se elas forem analisadas à luz da po e de seu espaço mental. O comum nesses casos vivência do “aqui-agora-comigo” transferencial. é que o paciente revive as suas experiências afetivas Acredito que esteja crescendo o número de outros não com uma percepção de um como-se, de que psicanalistas, entre os quais eu me incluo, que diante está reproduzindo antigas vivências equivalentes, de determinadas circunstâncias da situação analíti- mas com a convicção de um está havendo, de fato. ca – mais particularmente aquela na qual uma ver- A existência desse tipo de transferência justifica dadeira transferência, ainda deve ser paulatinamen- plenamente o emprego sistemático de interpreta- te construída – também trabalham com naturalida- ções centradas no calor do “aqui-agora-comigo- de e profundidade os vínculos manifestos na como-lá-então”. extratransferência tal como essa se apresenta na vida “lá fora”. Por exemplo, no caso de um paciente que esti- Transferência Psicótica ver narrando na sessão uma séria briga que teve na véspera com a sua mulher existe a possibilidade, Como o nome designa, trata-se de uma transfe- muito comum, de que o analista proceda a um au- rência que caracteriza os pacientes clinicamente tomático reducionismo interpretativo de que o ana- psicóticos e que, contrariamente à crença de Freud lisando está expressando uma briga com ele, ana- de que esses pacientes não seriam analisáveis, por- lista. Independentemente se essa interpretação cor- quanto eles nunca desenvolveriam uma transferên- responde a uma realidade psíquica do paciente ou cia (ele partia da idéia de que, nesses casos, toda se é um equívoco de compreensão do analista, é libido estava investida auto-eroticamente), hoje é freqüente que o paciente a rejeite com costumeiras consensual que eles desenvolvem, sim, uma clara exclamações do tipo: “Não é nada disso”; “Eu sa- transferência, sendo que, embora muitas vezes se- bia que ias dizer isso, tudo que eu falo sempre tra- jam inacessíveis à análise, muitas outras vezes eles zes para ti...”, não sendo rara a possibilidade que o possibilitam um verdadeiro trabalho analítico. analista queira reiterar a sua interpretação “transfe- Esse conceito de “transferência psicótica” não rencial”, adquirindo a sessão um clima polêmico. deve ser confundido com o da transferência pro- Em uma situação como a referida, creio ser vinda da “parte psicótica da personalidade” (con- perfeitamente possível um trabalho verdadeiramen- forme Bion) e tampouco se iguala à conceituação te analítico a partir da extratransferência, isto é, de de psicose de transferência, descrita por Rosenfeld FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 337

(1978) e que, por sua importância, será objeto de terapêutica” provinda, pelo menos, de uma parte uma capitulação especial. da mente do paciente que está comprometida em assumir e colaborar com a profundeza da análise, enfrentando, assim, as ineveitáveis dificuldades e Transferência Primária (ou Primitiva, dores. Precoce, Simbiótica, Narcisista...)

Com essas denominações, muitos autores de- Match signam aquela condição na qual prevalece um pri- mitivo estado mental do paciente caracterizado, Talvez a melhor tradução para o termo seja “en- sobretudo, por uma “indiferenciação entre o sujei- contro psicanalítico”, aludindo diretamente ao que to e o objeto”. vem sendo denominado como uma “relação real”. Trata-se de uma conceituação proposta por psica- nalistas pesquisadores norte-americanos, como J. Kantrowitz e colaboradores (1989), e refere ao fato Campo Analítico de que uma relação analítica vai muito além de uma simples relação transferencial repetidora de vivên- A expressão, difundida pelo casal Baranger cias passadas. A investigação desses autores obe- (1961-62), por si só define o fato de que existe entre deceu a uma rigorosa metodologia científica e lhes o analisando e o analista, de forma manifesta ou permitiu a conclusão de que os os aspectos pes- latente, uma corrente transferencial-contratransfe- soais de cada psicanalista em relação com os de rencial, a qual é permanente, de influências e efei- um determinado paciente constituem um match sin- tos recíprocos, e que, nas condições normais, sofre gular, o qual tem uma decisiva influência na evolu- sucessivas transformações em um continuado mo- ção, exitosa ou não, da análise. vimento espiralar, constituindo um campo onde Esses pesquisadores observaram que um mes- circulam necessidades, desejos, angústias, defesas, mo paciente pode fracassar na sua análise com um relações objetais, etc., etc. analista competente, enquanto terá êxito com um outro analista nem mais nem menos competente que o anterior, inclusive na hipótese de ambos perten- Aliança Terapêutica cerem a uma mesma corrente psicanalítica, sendo que a recíproca é verdadeira com um outro pacien- Essa denominação pertence a E. Zetzel, psica- te diferente. Mais ainda: eles observaram que um nalista norte-americana que, em um trabalho de analisando progride suficientemente bem com um 1956, concebeu um aspecto importante relativo ao analista em um determinado nível de sua persona- vínculo transferencial, ou seja, o fato de que um lidade (por exemplo, a que está ligada aos confli- determinado paciente apresente uma condição men- tos edípicos) e estagna em outras (fixações narci- tal, tanto de forma consciente quanto inconsciente, sistas, por exemplo), e vice-versa com um outro que permita que ele se mantenha verdadeiramente analista. aliado à tarefa do psicanalista. Essa concepção apa- rece nos textos psicanalíticos com outras denomi- nações, porém com significados equivalentes, como Pessoa Real do Analista “transferência eficaz”, pela construção prévia de um “rapport” (Freud,1913), “transferência racio- Observações equivalentes às últimas acima nal”, de Fenichel (1945), que alude a um “aspecto apresentadas, estão convocando os analistas para sensato” do paciente; “aliança de trabalho”, de se perguntarem quanto à importância que deve ser Greenson (1965), etc. creditada (ou desacreditada) à pessoa real do ana- Cabe acrescentar que uma aliança terapêutica lista, na construção do vínculo transferencial- não deve ser tomada como um simples “desejo de contratransferencial e, por conseguinte, no destino melhorar”, tampouco como sinônimo de “transfe- da análise. Parece-me que, aos poucos, o pêndulo rência positiva” e, muito menos, como antônimo está se inclinando para a crença de que a percep- de “transferência negativa”; pelo contrário, creio ção que o paciente capta das características reais que o importante surgimento dessa última, em sua da personalidade e ideologia da pessoa que o seu plenitude aparentemente negativa, muitas vezes se psicanalista, mais do que uma mera pantalha trans- torna possível devido ao respaldo de uma “aliança ferencial, de fato, ele é, inclusive como um modelo 338 DAVID E. ZIMERMAN de identificação para o paciente, tem uma signifi- vitalizarem as interpretações do analista, de modo cativa influência no campo analítico, até mesmo a que nele, paciente, nada mude de verdade. na determinação do tipo de transferência manifes- Em contrapartida uma transferência costumeira- ta pelo analisando. mente chamada de “negativa” pode estar sendo al- tamente “positiva” para o curso exitoso da análise.

TIPOS DE TRANSFERÊNCIAS Transferência Negativa Como sabemos, Freud dividiu as transferências em positivas e negativas. Com a evolução da psi- Com esse nome Freud referia aquelas transfe- canálise essa classificação ficou inadequada e in- rências nas quais predominava a existência de pul- suficiente, o que justifica uma explicitação em se- sões agressivas com os seus inúmeros derivados, parado de cada uma das modalidades. Antes de mais sob a forma de inveja, ciúme, rivalidade, voracida- nada quero definir a minha posição de que julgo as de, ambição desmedida, algumas formas de expressões “positivo” e “negativo” altamente ina- destrutividade, as eróticas incluídas, etc. dequadas para uma compreensão psicanalítica, Na atualidade, creio ser relevante fazer a afir- porquanto elas estão impregnadas de um juízo de mativa de que se uma análise não transitou pela valores, com um ranço moralístico, superegóico. “transferência negativa” no mínimo ela ficou in- No entanto, como são termos consagrados, eles completa, porquanto todo e qualquer analisando devem ser mantidos, desde que bem comprendidos. tem conflitos manifestos ou latentes relacionados à agressividade. A propósito, é útil estabelecer uma diferença entre agressão (sádico-destrutiva) e Transferência Positiva agressividade, a qual, tal como a sua etimologia (ad + gradior) designa, representa um movimento Classicamente essa denominação referia-se a (“gradior”) para a frente (“ad”), uma forma de pro- todas as pulsões e derivados relativos à libido, es- teger-se contra os predadores externos, além de pecialmente os sentimentos carinhosos e amisto- também indicar uma ambição sadia com metas pos- sos, mas também incluídos os desejos eróticos, síveis de serem alcançadas. desde que tenham sido sublimados sob a forma de Assim, a transferência pode ser “negativa” des- amor não sexual e não persistam como um vínculo de uma perspectiva adulta em relação à educação erotizado. de uma criança que quer romper com certas regras, O que julgo importante a ser destacado é o fato porém ela pode ser altamente “positiva” a partir de de que muitas vezes o que parece ser uma transfe- um vértice que permite propiciar ao paciente a cria- rência “positiva” pode estar sendo “negativa”, do ção de um espaço, no qual ele pode reexperimentar ponto de vista de um processo analítico, porquanto antigas experiências que foram mal-entendidas e ela pode estar representando não mais do que uma malsolucionadas pelos pais (por exemplo, que eles extrema e permanente idealização (isso é diferente não tenham entendido os presentes-fezes, ou o di- de uma – estruturante – admiração) que o paciente reito de o filho de fazer uma sadia contestação aos faz em relação ao analista. valores deles, etc.). Principalmente, o terapeuta Também pode acontecer que uma aparência de deve levar em conta que as manifestações agressi- “positividade” pode estar significando unicamente vas possam estar representando a construção de um inconsciente conluio transferencial-contratrans- preciosos núcleos de confiança que o paciente es- ferencial sob a forma de uma estéril recíproca fas- teja desenvolvendo em relação a ele próprio, ao cinação narcisística. Igualmente, é necessário le- analista, e ao vínculo entre ambos. var em conta a possibilidade nada incomum de que Talvez não exista experiência analítica mais uma aparente transferência positiva pela qual o importante do que aquela em que o paciente se paciente cumpre fielmente todas combinações de permita atacar o seu analista, pelas formas mais assiduidade, pontualidade, verbalização, uso do diversas, às vezes cruéis, e este sobrevive aos ata- divã, manifesta concordância com as interpretações, ques, sem se intimidar, revidar, deprimir, desistir, etc. possa estar encobrindo uma pseudocolabo- contrabalançar com formações reativas, apelar para ração. Isso geralmente acontece por parte de pa- recursos medicamentosos e outros afins, manten- cientes portadores de uma forte estrutura narcisis- do-se fiel e firme à sua posição de analista. Isso ta, que os leva em um plano oculto da mente a des- repercute no paciente de duas formas estruturantes para o seu self: a comprovação de que nem ele é FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 339 tão perigoso, destruidor e mau, como imaginava, e verdadeiro vínculo analítico. Em caso contrário, isto tampouco os seus objetos são tão frágeis como sem- é, quando, por meio de interpretações unicamente pre temeu. dirigidas “à persecução resultante da agressão que está encoberta, bem como de uma tentativa de ma- nipulação e controle por parte do analisando” o Transferência Especular psicanalista desfaz precocemente a idealização, daí resultando a possibilidade de o paciente ingressar Na atualidade, é consensual entre os psicana- em um estado de desamparo análogo à imagem que listas que a transferência não expressa unicamente me ocorre de se “tirar a escada e deixá-lo seguro a conflitos, tais como aqueles que tipificam a “neu- pelo pincel”. rose de transferência”, mas também que ela traduz A “transferência idealizadora” corresponde, os problemas de déficit. Neste último caso, pró- segundo Kohut (1971), a uma etapa do desenvol- prio dos pacientes com fortes fixações em etapas vimento emocional primitivo, na qual a criança tem primitivas nas quais as necessidades emocionais necessidade de estruturar o seu self pela da básicas não foram suficientemente satisfeitas pe- idealização dos pais, ao que ele denomina imago los cuidados de uma adequada maternagem, a trans- parental idealizada. ferência assume características de uma busca de O risco que essa forma de transferência repre- algo, em alguém, o que tanto pode assumir a for- senta para uma análise exitosa é a possibilidade de ma de uma “fusão”, ou a de um “continente”, de que o analista seja portador de uma estrutura ex- alguém portador de seus “ideais”, ou a de um “es- cessivamente narcisista, de modo a se sentir grati- pelho”. ficado com a idealização que o analisando faz dele Nesse último caso, quando o movimento trans- e assim, ao invés de ser um processo transitório, a ferencial representa uma busca de um “espelho” transferência idealizadora pode ficar cronificada, na pessoa do analista – que o reflita, reconheça e o que impossibilitaria o tão necessário surgimento devolva a sua imagem de auto-idealização, vital- de ocasionais períodos de “transferência negativa”. mente necessária para que o paciente sinta que, de Da mesma forma, a permanência da transferência fato ele existe e é valorizado – estabelece aquilo idealizadora, além do tempo necessário, represen- que genericamente está sendo denominado “trans- ta o risco de entronizar a fé no lugar da confiança, ferência especular”, quando é necessário que o ana- a evasiva dos problemas em vez do seu enfrenta- lista transitoriamente aceite funcionar como “ego mento e a sugestão no lugar da análise. auxiliar” do paciente, ao mesmo tempo em que gra- dativamente vá construindo o processo de diferen- ciação, que possibilite o paciente adquirir uma se- Transferência Erótica e Erotizada paração, individuação e uma posterior autonomia. Em 1915, Freud referiu-se ao “amor de trans- ferência” como uma complicação do processo psi- Transferência Idealizadora canalítico, que acontece com freqüência, e no qual a (o) paciente se diz “apaixonada” pelo seu (sua) Até há algumas décadas, os psicanalistas em analista. Embora ele reconhecesse o caráter defen- formação aprendiam que uma transferência exces- sivo dessa forma transferencial, Freud alertava aos sivamente idealizada do paciente em relação ao seu terapeutas para que não confundissem essa reação analista deveria ser logo analisada e desfeita, por- com um amor verdadeiro, ao mesmo tempo em que quanto ela não só encobria uma forte carga os advertia contra as tentativas de eles reprimirem persecutória subjacente (o que, na maioria das ve- o amor de tais pacientes, desde que “o tratassem zes, não deixa de ser uma verdade), como também como algo irreal e o rastreassem até suas origens representaria uma forma de controle onipotente do inconscientes”. analisando sobre o analista, pelo fato de que este Ao mesmo tempo, Freud advertia quanto aos sentir-se-ia obrigado a corresponder à perfeição que “casos graves de amor transferencial” e descrevia lhe era atribuída. essas suas pacientes histéricas como “meninas que, Na atualidade, entendemos que uma transferên- por natureza de uma pulsão elementar, recusam cia inicial de uma intensa idealização possa estar aceitar o psíquico em lugar do material” e ele su- representando uma necessidade básica e indispen- geria que a única forma de tratar a esses casos é o sável para que o paciente, aos poucos, construa um de uma tentativa de mudar de analista, ou, então, a de interrupção da análise. 340 DAVID E. ZIMERMAN

Como vemos, a transferência de características “as regras do jogo”, traduzidas nas formas de pa- eróticas adquire um largo espectro de possibilida- gamento, na obtenção de privilégios, em alguma des, desde os sentimentos afetuosos e carinhosos forma de provocação para tirar o analista de seu pelo analista até o outro pólo de uma intensa atra- lugar, etc. ção sexual por ele(ela), atração essa que se con- Comumente, nada do mencionado acima repre- verte em um desejo sexual obcecado, permanente, senta algum risco para a análise, desde que o ana- consciente, egossintônico e resistente a qualquer lista, embora possa ter alguma flexibilidade em re- tentativa de análise. O primeiro caso alude à trans- lação aos pedidos do paciente, não saia do seu lu- ferência erótica, enquanto o segundo refere-se a gar e função de psicanalista. No entanto, em se tra- transferência erotizada. tando de pacientes predominantemente psicopatas, Conquanto ambas as formas, em algum grau, essa atitude transferencial perversa pode se consti- estejam virtualmente e ocasionalmente presentes tuir como uma constante que exige redobrados es- em todas as análises, tanto de forma homossexual forços do terapeuta, sendo que, muitas vezes, as quanto heterossexual, é necessário estabelecer uma sucessivas atuações podem definir uma condição clara diferença entre elas. A “transferência eróti- de não-analisibilidade. ca” está mais vinculada com a necessidade que Meltzer (1973) foi o autor que mais consiste- qualquer pessoa tem de ser amada, sendo que essa mente estudou a perversão da transferência, apon- demanda por compreensão, reconhecimento e con- tando para o risco da formação de um conluio per- tato emocional, pode se fundir (e con-fundir) com verso entre o par analítico, que consiste em um jogo o desejo de um contato físico. de seduções por parte do paciente (creio que vale Em contrapartida, a “transferência erotizada” acrescentar a hipótese de as seduções partirem do designa a predominância de pulsões ligadas ao ódio analista) e que, na hipótese de o terapeuta ficar com as respectivas fantasias agressivas, que visam envolvido, e esse conluio ficar estabilizado, virá a a um controle sobre o analista e de uma posse vo- acontecer que o paciente, ao invés de reconhecer raz dele. Essas fantasias manifestam-se por diver- suas limitações e conflitos, verá o seu analista sas formas, são de origem inconsciente, superam o “como uma prostituta, uma ama-de-leite, viciada senso crítico da realidade objetiva (a ponto de o na prática da psicanálise e incapaz de conseguir paciente sequer reconhecer o “como-se” transfe- melhores pacientes” (p. 159). rencial”) e elas aparecem na situação analítica disfarçadas de legítimas necessidades amorosas e sexuais. Transferência de Impasse Dois sérios riscos podem acompanhar a insta- lação da “transferência erotizada” no campo analí- Embora essa denominação não apareça na lite- tico: uma, é a que, diante da não-gratificação do ratura psicanalítica, ela me parece válida como uma psicanalista dessas demandas sexuais do paciente, forma de designar aqueles períodos transferenciais este recorra a actings fora da situação analítica, que, típicos de situações de “impasses analíticos” que, às vezes, podem adquirir características de grave inclusive, podem culminar com a temível situação malignidade. A segunda possibilidade, igualmente de uma “reação terapêutica negativa”. maligna, é que a análise, a partir dessa transferên- Em tais casos de impasse, a transferência do cia de natureza perversa, possa descambar para paciente tanto adquire uma forte tonalidade eroti- uma perversão da transferência, inclusive com a zada que, enquanto dura, pode impossibilitar o cur- possível eventualidade de o analista ficar nela en- so da análise, conforme foi descrito, ou, como acon- volvido, fato que está longe de ser uma raridade. tece mais comumente, o analisando fica invadido por ansiedades paranóides, de modo que todo o seu discurso é concentrado em queixas e acusações ao Transferência Perversa seu analista, ao mesmo tempo em que fica em um estado de tamanha defensividade que não conse- O termo “perverso” deve ser entendido como gue escutar o que seu analista diz. Em casos mais um “desvio da normalidade”, porém não deve ser extremos, essa forma de transferência pode atingir tomado como sinônimo de uma “perversão”, clini- o estado conhecido como psicose de transferên- camente configurada como tal. Assim, é comum cia, tal como Rosenfeld a conceitua. que os pacientes em geral de alguma forma tentem “perverter” as combinações que eles aceitaram em relação ao setting analítico, procurando modificar FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 341

Psicose de Transferência dro transferencial merece uma particular atenção, de modo a ser bem conhecida por todo analista pra- Essa expressão aparece na literatura psicanalí- ticante. tica com diversos significados distintos, sendo que, aqui, designa a conceituação descrita por Rosenfeld (1978), que também a denomina “psicose transitó- A TRANSFERÊNCIA NA PRÁTICA ANALÍTICA ria”, pois se refere ao fato de que o surgimento dos “fenômenos psicóticos em geral só se ligam à trans- Em decorrência da amplitude do tema, que por ferência, interferindo muito pouco com a vida do si só comportaria um livro, vou me restringir a enu- paciente fora da análise”. merar, telegraficamente, sob a forma de afirmati- Segundo Rosenfeld, essa “psicose de transfe- vas e indagações, alguns dos principais tópicos que rência”, ou “transitória”, surge em pacientes neu- cercam o fenômeno transferencial, tal como ele róticos ou borderlines, durante a análise, e desapa- aparece em nossa clínica cotidiana, em relação aos recem após dias, semanas ou talvez meses, sendo seguintes segmentos do campo analítico. que elas podem recidivar periodicamente. “Qual- quer psicose de transferência é uma ameaça grave à análise, rompe a aliança terapêutica e pode levar Em Relação ao Setting a um impasse analítico completo”. Durante a vigência dessa “psicose transfe- • A análise não cria a transferência; apenas rencial”, prossegue o autor, “o analista costuma propicia a sua redescoberta, bastante facili- ser percebido de uma forma distorcida, como um tada pela insatalação do setting que favore- superego onipotente, sádico, mas a forma erótica da transferência psicótica na qual o paciente acre- ce algum grau de regressão do paciente, por dita que o analista está apaixonado por ele ou ela, meio de uma intimidade, porém processada pode também dominar a situação analítica por um com uma certa privação sensorial, frustra- certo tempo” (p. 137). “Tais pacientes freqüente- ções inevitáveis, assimetria de papéis, etc. mente formam alguma aliança terapêutica com o Um exemplo bastante comum disso é o da- analista, mesmo tendo presente uma “parte quele paciente que atribui a sua relutância psicótica da sua personalidade”, enquanto simul- inicial em aceitar a indicação da análise ao taneamente mantém a aliança terapêutica com a seu “medo de ficar dependente”, o que, por “parte não-psicótica” de si mesmos, diminuindo si só, já nos indica que ele, no fundo, reco- assim o perigo de aparecerem episódios deliran- nhece-se como um portador de núcleos de- tes transitórios”. pendentes; possivelmente uma “dependên- Pela razão acima, essa delicada situação transfe- rencial requer que o analista compreenda bem o cia má”, como o seu medo expressa, e o tra- que está se passando, tenha uma boa capacidade balho analítico visará transformá-la em uma de continência e paciência, procurando aliar-se à “dependência boa”, à medida que se desen- parte não psicótica do paciente e evitando pressio- volverem os elementos de “confiança bási- nar com interpretações que, embora possam ser ca” do self. corretas, só fazem aumentar um clima polêmico e, • Há transferência em tudo, porém nem tudo é por conseguinte, um incremento dos delírios trans- transferência a ser analisada e interpretada. ferenciais. Assim, há uma significativa diferença entre Reações dessa natureza surgem com relativa o analista trabalhar na transferência ou tra- freqüência no campo analítico, sendo que nem sem- balhar sistematicamente na análise da trans- pre é fácil discriminar se ela corresponde a uma ferência. reação a uma possível inadequação por parte da atitude e manejo do analista, ou se traduz um im- • Uma questão instigante, muito em voga, é passe prenunciador de uma ruptura com a análise, aquela que indaga se a pessoa do analista é ou ainda se está representando um difícil, porém unicamente um “objeto transferencial” no necessário, momento analítico, como uma forma qual o paciente reedita suas experiências de progresso e construção da confiança básica. passadas ou na transferência ele também re- Em tais situações de psicose transferencial as presenta e funciona como um objeto real e reações contratransferenciais são extremamente novo? difíceis para o analista e, por tudo isso, esse qua- 342 DAVID E. ZIMERMAN

• Com outras palavras: a transferência consis- analisada em profundidade. Outros autores, te em uma necessidade de repetição (tal no entanto, acreditam que a importância real como postulava Freud, que inclusive incluía do analista existe desde o início da análise o fenômeno transferencial como um exem- e, para tanto, eles alegam que vida mental plo do seu princípio de “compulsão à repeti- começa com interações e não com pulsões. ção”) ou, antes, a transferência representa • Em relação ao sexo biológico do analista, uma repetição de necessidades, como que- na atualidade há um certo consenso entre os rem os autores atuais ou ambas são indisso- autores que esse aspecto pode exercer uma ciadas e concomitantes? diferença na evolução da análise, mais pro- • A conceituação da transferência como sen- vavelmente no seu início, como pode ser o do uma repetição de necessidades – que não caso da instalação de alguma forma de “re- foram comprendidas e satisfeitas na devida sistência” ou de “transferência-contratrans- época primitiva do desenvolvimento emocio- ferência” específicas, não obstante o fato de nal – delega ao setting uma considerável existirem ao mesmo tempo transferências do importância no processo analítico, porquan- tipo materno e paterno, com analistas de to esse passa a representar para o paciente ambos sexos. um novo e singular espaço, no qual ele po- derá reexperimentar e transformar aquelas vivências emocionais traumáticas, mal resol- Em Relação às Resistências vidas, desestruturantes e representadas no ego de forma patogênica. Embora o clássico conceito de “resistência de • Assim como a transferência do analisando transferência” venha rareando na literatura psica- promove um estado contratransferencial do nalítica, é necessário lembrar que Freud, primeira- analista, da mesma forma a moderna psica- mente, considerou a transferência como uma for- nálise vincular considera que a transferên- ma de resistência (“...o analisando repete, em lu- gar de recordar”-1914, p. 196) e, em um segundo cia do analista também pode condicionar e momento, ele a concebeu como sendo aquilo que é estruturar a resposta transferencial do pa- o próprio “resistido”. Em Freud, resistência e trans- ciente, como é o caso, por exemplo, de quan- ferência aparecem muitas vezes superpostas, como do o paciente capta os desejos ocultos que o se fossem sinônimos, mas eles não o são, apesar de analista tem em relação a ele.. que a primeira delas pode servir de suporte para a • Os aspectos reais do analista que podem de- segunda e vice-versa. terminar uma influência na transferência do É útil estabelecer uma distinção entre dois ti- paciente dizem respeito desde os detalhes do pos de relação entre transferência e resistência: um consultório, o sexo, idade, como também a é a resistência contra a tomada de conhecimento sua ideologia (que o paciente logo percebe), da transferência, enquanto o outro tipo consiste em a escolha do material a ser interpretado e a uma resistência contra a resolução transferencial. Da mesma forma, o surgimento da transferência no forma de ele interpretar. Além disso, é ne- campo analítico tanto pode expressar a superação cessário levar em conta os aspectos da rela- da resistência como ela também pode funcionar a ção real que se expressam pelo match, bem serviço da própria resistência, como um meio de como, também, o fato muito importante de evitar um acesso a outras áreas ocultas do incons- que o analista também funciona como um ciente. Assim, muitos pacientes e muitos analistas, novo modelo de identificação, transforma- pelo medo do novo, imprevisível, preferem que o cional, por via da sua forma de pensar, con- analista permaneça sempre unicamente como ob- tatuar com as verdades, modo de enfrentar jeto transferencial, dentro dos parâmetros com os as angústias e de como ele exerce as funções quais os dois já estão bem familiarizados. que Bion denomina continente e função-alfa. Anna Freud descreveu a “transferência de de- • Alguns autores alertam para o fato de que a fesa” que exemplifica com a possibilidade de o pa- ciente manifestar uma transferência de hostilida- existência e a função do analista como um de, a qual o está protegendo do seu medo de amar. objeto real, novo, somente é possível quan- Um outro exemplo, nada raro, consiste na eventu- do a transferência manifesta já tiver sido FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 343 alidade de o analista interpretar, em uma forma en- ambas servem unicamente como uma exemplifi- fática e repetitiva, a transferência negativa, que cação que obviamente não exclui outras formas pode estar a serviço de uma possível fobia dele transferenciais, como poderia ser a “transferência próprio em relação à transferência erótica e assim fraterna”, etc. e também serve como uma introdu- por diante, podendo os exemplos ser multiplica- ção aos importantes aspectos que Bollas (1992) dos... levanta acerca das inter-relações entre transferên- Em resumo, continua vigente a questão que cia e interpretação. Esse autor propõe que, antes Freud levantou em Além... (1920): “é a resistência de formular a sua interpretação, o analista deveria que causa a transferência, ou é o inverso? “. fazer um trabalho de elaboração interna que o le- vasse a considerar as seguintes perguntas: Quem (qual objeto interno, ou qual a parte dele próprio) Em Relação às Interpretações está falando pela voz do paciente? O que está sen- do dito?; de que forma e vinculado a quê?; Por Torna-se muito limitante reduzir o momento da que agora? Com quem (qual a “parte” do analista, situação analítica a apenas uma única categoria que ele visualiza naquele momento) o paciente está transferencial, como seria, por exemplo, conside- falando? Para o que (comunicar, ou o contrário rar somente a transferência “paterna” ou “mater- disso; talvez provocar efeitos contratransferenciais na” sem levar em conta o fato de que cada um dos como meio de comunicação primitiva, etc.)? pais está introjetado em cada analisando, de uma Os seguintes aspectos também devem ser con- forma bastante dissociada. Assim, cabe ao analista siderados: perguntar-se: “qual é o pai que esse paciente está • O risco de um transferencialismo por parte transferindo para mim nesse momento? O amigo do analista, ou seja, que ele promova um bom, o tirano mau, um substituto das falhas da mãe? reducionismo, para o “aqui-agora-comigo”, A mãe boa que velou seu sono, o alimentou e pro- a tudo o que o seu paciente falar, sem levar tegeu ou a mãe que está representada no seu ego, em conta as particularidades específicas de como invejosa, castradora, infantilizadora, etc., etc. cada situação analítica em separado e crian- Ademais, o analista deve ter bem presente o fato do uma atmosfera de uma “transferência ar- de que em muitos casos, especialmente com pa- tificial”. cientes que ainda estão detidos em uma ligação • Essa situação pode gerar em analistas ainda diádica, ele funciona, na transferência, com um sem uma sólida formação, mais particular- papel ao mesmo tempo materno e paterno. Esse tipo de paciente necessita que o analista comporte- mente em candidatos que devem cumprir as se como uma “mãe-continente”, compreendendo e normas regulamentares, uma condição men- satisfazendo as suas necessidades básicas, conco- tal de se portar como um caçador de trans- mitantemente com uma outra necessidade desse ferências. analisando, a de de que o terapeuta também fun- • Assim, é comum que o analista veja transfe- cione como uma representação do pai que, seguin- rência em tudo (mesmo quando não é!) e do uma terminologia de Lacan, imponha-lhe os li- quando de fato surge uma transferência ne- mites da lei, fazendo a castração simbólica da sua gativa, embora possa estar sendo necessária parte infantil que quer se apossar da mãe, a qual e saudável, a mesma seja taxada de acting, também está representada no mesmo analista, no agressão ou resistência... mesmo momento da situação analítica. • Igualmente nefasta é a interpretação voltada Com outras palavras: independentemente do sexo biológico, o “analista-mãe” permite e facilita unicamente para os aspectos “negativos” sá- uma regressão do paciente a níveis simbióticos com dico-destrutivos, ou exclusivamente para os ele(a), ao mesmo tempo em que como “analista- “positivos”, que não dêem margem à análise pai” ele frustra, regula, normatiza e delimita essa da agressão. O mesmo pode-se dizer da in- aproximação, colocando-se na condição de uma terpretação dirigida exclusivamente para “a “cunha interditora”, um “outro”, um terceiro, que parte infantil” do analisando (muitas vezes é autônomo e diferente do paciente, assim rompen- constitui-se como um insulto ao adulto real) do com as ilusões narcisistas que este nutre pelo ou inversamente dirigida somente à “parte “analista-mãe”. adulta”(o paciente sabe que isso não é a sua As considerações acima concernentes à trans- verdade, e sente-se desamparado). ferência paterna, materna e a concomitância de 344 DAVID E. ZIMERMAN

• Inúmeras vezes o transferencialismo do o acréscimo de mais um sério fracasso na “aqui-agora...” redunda em uma esterilida- coleção de fracassos que esse paciente pro- de porquanto o paciente ainda nem está aí. vavelmente vem acumulando ao longo de sua De fato, freqüentemente, há uma ausência vida. da transferência, pela razão que esteja pre- • Diante do surgimento de uma “psicose de valecendo uma “ausência de vínculo”, o que transferência” (nos termos de Rosenfeld), o acontece com pacientes nos quais haja uma psicanalista deve evitar ao máximo entrar na predominância de sentimentos de vazio, in- provocação de um clima polêmico que o le- credulidade e desperança. Nesses casos, gra- varia a ficar enredado nas malhas de uma dualmente deve haver um processo de cons- defensividade ou ofensividade. Essa difícil trução da transferência. situação requer que juntamente com um en- • Diante de uma inicial “transferência espe- tendimento da dinâmica daquilo que está cular” ou de uma “transferência idealiza- passando-se no psiquismo do paciente, o ana- dora”, o analista deve aceitá-las porquanto lista deve reunir as condições de uma ade- elas visam preencher buracos afetivos e quada “continência”, sobretudo a de uma, cognitivos do paciente, porém o terapeuta ativa, paciência. deve manter o cuidado de que tais transfe- rências sejam transitórias o tempo suficien- É evidente que inúmeros outros aspectos pode- te para que a análise exerça a função precípua riam ser enfocados nas relações entre a transferên- daqilo que proponho denominar uma expe- cia e a atividade interpretativa, porém as exem- riência emocional transformadora, incluí- plificações aqui apresentadas permitem comprovar o quanto a transferência pode se manifestar de da a transformação que permita a passagem múltiplas formas, graus e em diferentes planos do da “posição narcisista” do paciente para uma psiquismo do paciente. Esse polimorfismo justifi- “posição edípica”. ca adotarmos o esquema proposto por A. Alvarez • Tanto no caso de uma “transferência eróti- (1992), que aponta para quatro modalidades de ca” que, de uma forma ou outra, sempre apa- manifestações transferenciais, cada uma delas exi- rece no processo analítico, como também no gindo, por parte do analista, um manejo técnico caso de uma “transferência erotizada”, em- especificamente apropriado, inclusive quanto à for- bora o(a) paciente mantenha uma absoluta ma de interpretar ou de não interpretar. convicção e determinação no seu obstinado Resumidamente, as quatro modalidades trans- jogo de sedução, bem no fundo ele(a) receia ferenciais são caracterizadas pelo fato de que: 1) que o analista cometa alguma destas três Há um predomínio das repressões, tal como acon- tece nas neuroses em geral, e que tão profunda- possíveis falhas: 1) Manter-se frio, indife- mente aprendemos com Freud. 2) A partir das con- rente e distante aos seus apelos e fantasias tribuições de M. Klein acerca do psiquismo arcai- eróticas (pode estar significando uma difi- co, a transferência passou a ser vista culdade fóbica do analista). 2) O terapeuta prioritariamente a partir das identificações projeti- ficar perturbado e defensivamente substituir vas na pessoa do analista, e portanto da necessida- as interpretações “compreensivas”, que le- de de ele perceber onde estão ocultas as partes ne- vam ao insight, por dissimuladas críticas, gadas, dissociadas, fragmentadas e projetadas da- acusações, lições de moral e a apologia de quelas relações objetais internas e de tudo mais bom comportamento, quando não por uma daquilo que o analisando não tolera reconhecer em ação repressora que pode incluir a ameaça si próprio. 3) Especialmente inspirados nas con- de uma interrupção da análise, uso de medi- cepções originais de Bion a respeito da relação continente-conteúdo, o pêndulo psicanalítico incli- cação, encaminhamento para algum colega nou-se para a relação do psicanalista com a parte de outro sexo, etc. 3) A possibilidade real psicótica da personalidade do paciente, com os de o analista ficar envolvido em uma intimi- respectivos vínculos de “amor”, “ódio” e “conhe- dade sexual, o que caracterizaria uma total cimento” e com uma ênfase no seu papel de “con- “perversão da transferência” e do processo tinente”, na sua capacidade de rêverie. 4) Alvarez, psicanalítico, portanto o fim do mesmo, com fundamentada em sua larga experiência com crian- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 345

ças autistas, sugere a existência de uma quarta pos- Ocorreu-me a hipótese de que essa quarta pos- sibilidade, que consiste no fato de que tais crianças sibilidade também possa estar presente na análise estão tão rompidas com a realidade exterior que de certos adultos, especialmente naqueles casos nos não chegam a desenvolver uma transferência. Nes- quais predomina um estado mental de desistência ses casos, diz a autora, não adianta o terapeuta ter (é diferente de “depressão”, embora possam estar uma boa condição de “continente” porquanto as associadas), em cujo caso o único desejo do pa- crianças sequer olham para ele, mas sim através ciente é o de não desejar, situação essa que costu- dele, impossibilitando um contato afetivo mínimo. ma provocar uma reação contratransferencial mui- As crianças que desenvolveram um autismo secun- to difícil. dário não estão fugindo ou ocultando-se, antes, elas estão, de fato, perdidas, e necessitam de que o te- rapeuta vá, ativamente, ao seu encalço.

CAPÍTULO impedia de ajudar o paciente a enfrentar áreas da psicopatologia que ele próprio não conseguia en- frentar. Aliás o prefixo alemão gegen tanto signifi- ca “contra” (como é na concepção original de Freud) como também designa “junto de “ou “apoia- 32 do em”, com o significado de “um recíproco engen- dramento”, tal como veio a ser concebido por ou- tros autores, muitos anos após Freud. No trabalho de 1910 (As perspectivas futuras da terapia psicanalítica), Freud introduziu a sua Contratransferência idéia acerca da contratransferência como sendo uma forma de oferecer conselhos técnicos a médicos não analisados, que então praticavam a psicanálise, movido pela sua esperança de que assim pudesse O estudo do fenômeno da contratransferência reduzir o perigo da participação emocional e o está intimamente ligado ao da transferência, de acting-out dos terapeutas, especificamente os de forma que eles são indissociáveis, um não existe envolvimento erotizado, até mesmo porque Freud sem o outro, muitas vezes se superpondo e con- era sabedor dos envolvimentos incestuosos de Jung fundindo. e Ferenczi com algumas pacientes. A contratransferência costuma ser considerada Em Conselhos ao médico sobre o tratamento como um dos conceitos fundamentais do campo psicanalítico (1912), Freud recomenda ao analista analítico, ao mesmo tempo em que a sua concei- tomar como modelo ao cirurgião, quem “deixa de tuação é uma das mais complexas e controvertidas lado todos os seus afetos e também a sua compai- entre as distintas correntes psicanalíticas. Discus- xão humana e concentra as suas forças espirituais sões acerca de suas possíveis incoveniências, ou em uma única meta: realizar a cirurgia o mais de prováveis vantagens como sendo um excelente ins- acordo possível com as regras da arte”. Da mesma trumento da prática psicanalítica; o ocultamento ou forma, Freud também empregou a metáfora do es- o alardeamento desse fenômeno na literatura psi- pelho (“o psicanalista, tal qual um espelho, somen- canalítica; problemas semânticos devido às dife- te deve refletir aquilo que o paciente lhe mostrar...”). rentes formas de sua compreensão; a divergência Essas metáforas citadas permitem perceber os quanto a se a contratransferência é um fenômeno receios de Freud quanto a uma aproximação afeti- unicamente inconsciente ou também consciente; a va entre analista e paciente; no entanto, no mesmo possibilidade de ela ser utilizada pelo psicanalista trabalho de 1912, ele recomenda que o inconscien- de forma benéfica ou inadequada e iatrogênica, são te do analista comporte-se a respeito do inconsci- alguns dos aspectos que têm acompanhado a sua ente emergente do paciente como um receptor te- história no curso das sucessivas etapas da psicaná- lefônico comporta-se com o emissor das mensa- lise. Não obstante, a importância da contratrans- gens telefônicas. É evidente que Freud emitia, ao ferência continua plenamente vigente, tendo o seu mesmo tempo, duas recomendações contraditóri- interesse aumentado à medida que está havendo um as: uma que apontava para a necessidade de uma emprego cada vez mais generalizado da terapia distância afetiva por parte do analista e outra para psicanalítica com pacientes severamente regredi- que ele fosse bastante sensível ao paciente. Na ver- dos. dade, Freud manteve essa ambigüidade conceitual ao longo de todos seus textos sobre técnica, evi- tando abordar diretamente esse assunto para “não FREUD dar armas ao inimigo”. Ainda em 1912, a instituição da análise didáti- A primeira menção explícita ao fenômeno da ca revelava a preocupação de Freud com a contra- contratransferência coube a Freud (1910, p. 130), transferência, especialmente pelo mal-estar repre- que a ele se referiu no congresso de psicanálise de sentado pela possibilidade de a psicanálise ficar Nuremberg, com a denominação original de desqualificada como ciência, devido às raízes sub- Gegenubertragung, o que alguns autores traduzi- jetivas que caracterizam o seu procedimento. Na ram como transferência recíproca. Nessa ocasião, época, o prefixo “contra” era utilizado unicamen- Freud usou o termo para referir-se à resistência in- te com o significado de “obstáculo”, diferentemente consciente do analista como um obstáculo que o do significado atual que equivale ao sentido de 348 DAVID E. ZIMERMAN

“contraparte”, cuja a finalidade é diferenciar a con- cientes do paciente, e ele destacava o quanto era tratransferência daquilo que seria simplesmente a imprescindível que o analista “reconhecesse essa “transferência do analista”. contratransferência em si próprio, bem como a ne- Embora muitos autores, como H. Deutch (1926) cessidade de superá-la”. No entanto, ele a aborda- e Reik (1934), reconhecessem a influência emocio- va do ponto de vista do risco dos sentimentos eró- nal recíproca entre analista e paciente, o conceito ticos e, por conseguinte, quase unicamente como específico de contratransferência ficou relegado a uma forma de resistência inconsciente do analista. um plano secundário, tendo esperado cerca de 40 anos para ressurgir, com uma outra conceituação, pelos trabalhos de P. Heimann (1950) e Racker AUTORES KLEINIANOS (1952), os quais postularam a possibilidade de a contratransferência constituir-se em um excelente M. Klein, em seu importante trabalho de 1946, recurso de o analista compreender e manejar cada descreveu o fenômeno que ela denominou identifi- situação analítica em particular. cação projetiva – hoje aceito por todas correntes Esse hiato de duas gerações de analistas que, psicanalíticas – que, juntamente com a sua concei- virtualmente, silenciaram sobre a contratransfe- tualização dos processos dissociativos (splitting), rência sugere que havia um medo e uma vergonha propiciou um melhor entendimento dos mecanis- generalizados dos terapeutas de exporem publica- mos primitivos que participam do fenômeno mente os seus sentimentos, porquanto estariam contratransferencial. Conquanto virtualmente todos transgredindo as regras vigentes da psicanálise, os autores que estudam o fenômeno transferencial- correndo o risco de serem “interpretados” pelos contratransferencial utilizam, de uma forma ou demais colegas de que a reação contratransferencial outra, os conceitos kleinianos de “dissociação” e era um indicador de que eles “deveriam retornar à de “identificação projetiva e introjetiva”, a verda- análise”. Ainda na atualidade, em meio a uma abun- de é que M. Klein, da mesma forma que Freud, dante literatura disponível sobre a contratransfe- sempre sustentou energicamente a sua posição de rência, aparece com muito maior naturalidade a que a contratransferência não era mais do que um exposição de sentimentos do analista como os de obstáculo para a análise, uma vez que ela correspon- ódio, confusão, erotização e impotência, porém o deria a núcleos inconscientes do analista, insatis- narcisismo do analista dificilmente é reconhecido fatoriamente analisados. por ele, o que indica a possibilidade de existir não Inspirados nos conceitos kleinianos, ainda que só uma negação disso, como também uma reação de forma algo tímida, em uma mesma época, al- de vergonha e desejo de encobrir tal situação. guns de seus importantes seguidores começaram a Assim, diferentemente do que aconteceu com referir os fenômenos contratransferenciais. Assim, o fenômeno transferencial, cujo reconhecimento Rosenfeld (1947) descreveu o fato clínico de que trouxe muito alívio aos analistas (os riscos não sen- ele somente conseguiu entender uma paciente psi- do reais, o analista não precisaria passar por aquilo cótica pelos os sentimentos próprios dele. Aliás, que Breuer passou com Ana O.), a contratransferên- em muitos outros textos de Rosenfeld, é possível cia continua provocando problemas de desconfor- perceber inúmeras outras alusões interessantes a to nos terapeutas. respeito da contratransferência. No entanto ele nun- Embora a instituição da análise didática reve- ca publicou qualquer trabalho que levasse por títu- lasse a preocupação de Freud com o problema da lo a palavra “contratransferência”, possivelmente contratransferência, ele não chegou a dar o passo – em respeito a M. Klein, de quem foi analisando. que deu em relação à transferência – de ver a con- Também Winnicott, em seu importante e cora- tratransferência como um instrumento útil ao tra- joso trabalho O ódio na contratransferência (1947) balho analítico. destacava os efeitos recíprocos que o par analítico Os autores não são unânimes quanto à concei- provoca um no outro. tualização e a utilização, ou não, na prática analíti- Bion (1963), em seus trabalhos com grupos que ca, da contratransferência. O que pode ser afirma- realizava na década 40, fundamentado naquelas do é que o termo “contratransferência” adquiriu, idéias kleinianas, fez a importante observação de na atualidade, o significado de um fenômeno dis- que a identificação projetiva, mais do que uma mera tinto do descrito por Freud. descarga de sentimentos intoleráveis, como enfa- Para Freud, a contratransferência consistia nos tizava M. Klein, também tinha a função de uma sentimentos que surgem no inconsciente do tera- forma de comunicação primitiva, não-verbal, pe- peuta como influência nele dos sentimentos incons- los efeitos contratransferenciais. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 349

No entanto, um estudo mais sistemático e con- autor também propôs a existência, na pessoa do sistente do fenômeno contratransferencial surgiu analista, de uma neurose de contratransferência. somente 40 anos após a primeira menção de Freud, Um outro autor kleiniano que estudou mais pro- a partir de dois analistas também kleinianos, P. fundamente o fenômeno da contratransferência foi Heimann, na Inglaterra, e H. Racker, na Argentina, M. Kyrle, em seu célebre trabalho de 1956 Contra- os quais, sem que um soubesse do outro, quase que transferência normal e alguns de seus desvios, no simultaneamente apresentaram trabalhos destacan- qual ele aborda três aspectos essenciais: 1) O ana- do a possibilidade de o analista utilizar a sua con- lista deve, silenciosamente, reconhecer que de al- tratransferência como um importante instrumento guma forma ele está emocionalmente perturbado psicanalítico, especialmente para a sua função de no campo analítico. 2) Tentar reconhecer quais fo- interpretação, sendo que ambos distinguiram esse ram “as partes do paciente” que lhe estão provo- uso útil daquilo que pode ser uma resposta contra- cando essa reação. 3) Quais são os efeitos que es- nsferencial patológica. Da mesma forma, com pa- tão operando sobre ele. Segundo M. Kyrle, esses lavras diferentes, ambos destacaram que a contra- três fatores podem ser reconhecidos em segundos, transferência representava a “totalidade” dos sen- sendo possível o analista revertê-los para uma útil timentos do analista como uma “resposta emocio- função de percepção e interpretação. nal” ao paciente, assim como também eles desta- Nem todos autores concordam com a postulação caram que ela se constitui em uma “criação” do de Heimann, Racker e Kyrle quanto à utilização da paciente, uma parte da personalidade dele. contratransferência como sendo um importante Tal era a oposição na época quanto à divulga- instrumento para o trabalho do psicanalista. Mui- ção da contratransferência, que a apresentação e tos deles apontam para o risco de que tudo o que o posterior publicação do trabalho Sobre a Contra- analista venha a sentir seja atribuído às projeções transferência, de P. Heimann, feito no Congresso do paciente, o que nem sempre seria uma verdade. de Zurich, em 1950, custou a ela uma ruptura com O próprio Bion que foi dos primeiros a destacar a M. Klein. Esse fato deve ter ocorrido por uma das importância do fenômeno contratransferencial, em três razões seguintes, conforme a versão dos dife- seus últimos tempos ele assumiu a posição de que rentes críticos: uma, é de que a senhora Klein, como a contratransferência é um fenômeno inconscien- Freud, queria preservar a imagem do analista pe- te e, portanto, não pode ser usada conscientemen- rante o grande público; M. Klein guardaria uma te pelo analista, pelo menos durante a sessão. inconciliável divergência conceitual com a posi- Assim, Bion preferia entender o fenômeno ção de P. Heimann; a terceira hipótese é a de que transferencial-contratransferencial pelo seu mode- tudo não teria passado de um puro ciúme da se- lo da interação continente-conteúdo, de modo a nhora Klein. Na verdade, após esse episódio, P. valorizar sobretudo a função continente do analis- Heimann silenciou sobre o tema da contratrans- ta que consiste em acolher, transformar e devolver ferência e somente o retomou após 10 anos (1960). as identificações projetivas que o paciente viu-se M. Klein igualmente manifestou uma hostilidade obrigado a emitir dentro dele. Bion também afir- contra M. Little quando esta, em 1951, defendeu a mava que a forma como o analista processa e de- utilização das reações contratransferenciais como volve ao paciente o que lhe foi projetado, por meio um instrumento útil para o psicanalista. das interpretações, vai formar consciente e incons- Não resta dúvidas de que Racker foi o autor cientemente no analisando alguma idéia de como o que mais consistentemente estudou e divulgou o analista é como pessoa real. fenômeno contratransferencial. Há registros que atestam a sua primeira apresentação referente ao tema na Sociedade Psicanalítica de Buenos Aires, ALGUNS ASPECTOS BÁSICOS DA em 1948, que, no entanto, somente foi publicado CONTRATRANSFERÊNCIA alguns anos após. Para Racker, a contratransfe- rência consiste numa conjunção de imagens, sen- Levando em conta todas as contribuições men- timentos e impulsos do terapeuta durante a ses- cionadas e fundamentado principalmente no aludi- são. Ele também descreveu dois tipos de reações do modelo “continente-conteúdo” de Bion, enten- contratransferenciais: a do tipo complementar (pela do que os aspectos que seguem, em subtítulos, qual o analista fica identificado com os “objetos merecem ser enfocados mais detidamente. internos” do paciente) e a concordante (a identifi- cação se faz com “partes do paciente” como pode ser com as pulsões e com o ego do analisando). O 350 DAVID E. ZIMERMAN

Conceituação A Contratransferência É Sempre Inconsciente? A constante interação entre analista e paciente implica um processo de uma recíproca introjeção, Mais comumente a contratransferência é con- das identificações projetivas do outro. Quando isso siderada como o resultado de uma interação me- ocorre mais especificamente na pessoa do analista, diante a qual “o inconsciente do analista põe-se em pode mobilizar nele, durante a sessão, uma respos- comunicação com o inconsciente do analisando”. ta emocional – surda ou manifesta – sob a forma Essa posição é compartilhada por autores impor- de um conjunto de sentimentos, afetos, associações, tantes como Bion e Segal. Como antes foi aludido, fantasias, evocações, lapsos, imagens, sensações Bion, nos seus últimos anos, manifestou-se contra corporais, etc. Não raramente essa resposta emoci- a possibilidade de que a contratransferência pudesse onal pode prolongar-se no analista para fora da ses- ser utilizada conscientemente pelo analista duran- são, pelos sonhos, actings, identificações ou so- te a sessão pelo fato de que se tratava de um fenô- matizações que traduzem a permanência de resí- meno de formação unicamente inconsciente, segun- duos contratransferenciais. Assim, uma autora do o autor acreditava. como J. McDougall (1989) chega a afirmar que “a Da mesma maneira, Segal (1977) opinou que contratransferência expressa as minhas próprias “a parte mais importante da contratransferência introjeções das experiências pré-verbais e pré-sim- é inconsciente e somente podemos reconhecê-la a bólicas do paciente...e que às vezes eu tomo co- partir de seus derivados conscientes”. Assim, os nhecimento disso através de meus próprios so- analistas seguidores dessa linha de pensamento dos nhos”. dois autores afirmam que quando o analista diz que Dizendo com outras palavras: o fenômeno “está angustiado, ou entediado, impotente...” isto contratransferencial resulta das identificações pro- não reflete mais do que um “conteúdo contratrans- jetivas oriundas do analisando, que provocam no ferencial manifesto” e que, da mesma forma como analista um estado de uma contra-identificação ocorre com os sonhos, é o seu “conteúdo latente” projetiva, conforme uma conceituação de Grinberg que ele deverá decifrar, ou fora da sessão por ele (1963). Para esse autor, os conflitos particulares mesmo, ou com a ajuda de uma análise. do analista não são os que determinam a contra- Outros psicanalistas, entre os quais me incluo, transferência; o que simplesmente acontece é que acreditam ser possível, em situações privilegiadas, ele fica impregnado com as cargas maciças das não de uma forma ininterrupta e continuada, que o identificações projetivas do paciente e fica sendo terapeuta perceba conscientemente, mesmo durante dirigido, passivamente, a sentir e a executar deter- a sessão, os efeitos contratransferenciais nele des- minados papéis. pertados, e fazer um proveitoso uso disso, desde que Na atualidade, predomina entre os psicanalis- esse analista tenha condições para discriminar entre tas a aceitação do tríplice aspecto da contratran- o que foi projetado nele daquilo que é dele próprio. sferência: como obstáculo, como instrumento e como campo, onde o paciente pode reviver as for- tes experiências emocionais que originalmente ele teve. Diferença entre Contratransferência As maiores controvérsias entre os autores gi- e “Transferência do Analista” ram em torno das questões relativas a: a) Se o fe- nômeno contratransferencial durante a sessão é uni- Desde que Freud instituiu o conceito de contra- camente inconsciente, ou também pode ser pré transferência, em 1910, até os dias atuais, o enten- consciente e consciente. b) Se não há o risco de se dimento desse fenômeno já passou pelos extremos confundirem os sentimentos do analista como sen- opostos de tanto ser considerado como altamente do uma resposta sua às identificações projetivas prejudicial para a análise como, também, houve do paciente quando, na verdade, tais sentimentos época em que era moda atribuir unicamente às podem ser exclusivamente do próprio terapeuta. c) “identificações projetivas do paciente” toda a res- Se ela pode ficar a serviço da empatia e da intui- ponsabilidade pelo que o analista estivesse sentin- ção. d) Se o analista pode interpretar a partir de do emocionalmente. Creio que ninguém contesta seus sentimentos contratransferenciais. e) Se deve que em ambos os extremos há um evidente exage- “confessar” isso ao analisando, ou não, etc. Há ro, sendo que a segunda possibilidade evidencia outros questionamentos equivalentes que, a seguir, uma espécie de fobia de o analista reconhecer os serão abordados separadamente. seus próprios conflitos neuróticos e, por conseguin- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 351 te, aquilo que ele esteja atribuindo a uma contra- nos sonhos ou na livre associação de idéias, ele pode transferência possa estar sendo nada mais do que auxiliar o analista a dar-se conta de seus sentimen- uma forma de ele estar “transferindo” para o pacien- tos contratransferenciais, desde que este último es- te aquilo que é a sua neurose particular. Essa últi- teja em condições de escutar o seu paciente. ma situação pode custar muitos abusos, injustiças Por outro lado, a noção de “continente” tam- e um resultado iatrogênico contra o paciente. bém alude ao fato de que o analista deva possuir as Um critério que pode ser utilizado para discri- condições de poder conter as suas próprias angús- minar quando se trata de uma legítima contratrans- tias e desejos. Cabe afirmar que além da transfe- ferência provinda do paciente ou se é uma transfe- rência do paciente e os conseqüentes efeitos con- rência própria do analista consiste no fato de que tratransferenciais, mais os seguintes fatores com- se um mesmo paciente despertasse em qualquer põem o “conteúdo” da mente do analista, e que ele outro terapeuta uma mesma resposta emocional isso mesmo deverá conter e trabalhá-los: a) A latente sugere a existência de uma contratransferência. Em (às vezes manifesta) “neurose infantil” do terapeu- contrapartida, se um mesmo analista tem uma mes- ta. b) O seu “superego analítico” (composto pelas ma reação emocional para qualquer paciente que recomendações técnicas das instituições psicanalí- guarde uma estrutura psíquica análoga, muito pro- ticas que lhe filiam, e o modelo do seu próprio psi- vavelmente é dele mesmo que provém os seus sen- canalista), que o fiscaliza permanentemente quan- timentos latentes, que ficam manifestos na situa- to a um possível erro ou “transgressão”. c) A even- ção analítica. tualidade de sua mente estar saturada por memó- Assim, o fenômeno contratransferencial surge rias, desejos ou uma ânsia por compreensão ime- em cada situação analítica de forma singular e úni- diata. d) Um “ideal de ego” que pode mantê-lo em ca, cada analista forma uma contratransferência uma permanente expectativa narcisística, de que diferente, específica com cada paciente em separa- ele demonstre um êxito pessoal, sendo que, neste do, a qual é variável com um mesmo analisando. caso, ficará dependente e subordinado às melhoras Essa variação irá depender das condições de cada do seu paciente. e) A sua condição de manter uma situação analítica em particular, a qual, às vezes, auto-análise, dentro ou fora da sessão. f) Creio que pode configurar uma situação edípica, outras ve- também cabe afirmar que faz parte da “autoconti- zes surge como uma díade narcisista, etc. nência” do analista que ele encontre um respaldo nos seus conhecimentos teórico-técnicos. Uma experiência pessoal minha pode ilustrar Continente-Conteúdo essa última condição acima apontada: há muitos anos – após um importante êxito que uma paciente As necessidades, desejos, demandas, angústias obtivera na sua vida profissional, graças ao que me e defesas de todo e qualquer paciente, mais parti- parecia ser fruto de uma exaustiva análise dos fa- cularmente a de pacientes muito regredidos, cons- tores inibitórios que antes o vinham impedindo de tituem um “conteúdo”, que urge por encontrar um ser bem-sucedido – para enorme perplexidade e “continente”, onde elas possam ser acolhidas. Cabe desconcerto inicial de minha parte, ela começou a ao analista o papel e a função de ser o continente me fazer fortes acusações, dizendo que “apesar de do seu analisando. No entanto, reciprocamente, ti, de teus boicotes contra o meu crescimento, de também o paciente funciona como continente do tua descrença em minhas capacidades...minha tese conteúdo do analista, como pode ser exemplificado foi aprovada e eu fui promovida...”. A situação com o acolhimento que ele vier a fazer das inter- prosseguia por semanas nesse mesmo tom, enquan- pretações daquele. to o que unicamente eu conseguia perceber é que, Destarte, da mesma forma como acontece com quanto mais eu “interpretava”, mais ela se revolta- o paciente, também o analista pode fazer um uso va contra mim, pinçando palavras ou frases minhas inconsciente de suas próprias identificações proje- e distorcendo completamente o sentido das mes- tivas patológicas dentro da mente do paciente e, em mas. A situação analítica ganhava contornos polê- contrapartida, o paciente pode fazer uso de um juízo micos e eu me flagrava com um estado mental de crítico sadio dessas projeções de seu terapeuta, como impotência e indignação diante de tamanha “ingra- um instrumento de percepção da realidade daquilo tidão”, ao mesmo tempo em que, defensivamente, que, de fato, está se passando com a pessoa do ana- eu queria provar-lhe o quanto as suas evidentes lista. Como decorrência dessa percepção, conscien- melhorias se deviam à sua análise comigo. Bus- te ou inconsciente, pode acontecer que por meio de quei socorro na literatura psicanalítica para esse observações explícitas, ou das que estão implícitas impasse psicanalítico e encontrei, em um artigo de 352 DAVID E. ZIMERMAN

Rosenfeld, “A Psicose de Transferência” (1978) o riva daquilo que Racker conceituou como “contra- esclarecimento que me faltava, que mudou a mi- transferência complementar”. nha conduta (no sentido de substituir as “interpre- Os efeitos contratransferenciais – em certos tações” defensivas por uma atitude de continência, casos são extremamente fortes – que o analista está sobretudo de paciência) e me permitiu compreen- experimentando durante os 50 minutos da sessão, der que ela não estava sendo conscientemente in- podem estar representando uma forma de comuni- grata; antes, projetava em mim a sua mãe, por ela cação primitiva daqueles sentimentos igualmente internalizada como invejosa e castradora, que não fortes que o paciente está abrigando, digamos, du- suportava o seu êxito e lhe fazia ameaças. Percebi rante 50 anos e que não consegue transmitir ver- então que a minha defensividade polêmica unica- balmente, porquanto eles constituem um “terror mente estava reforçando e complementando esse sem nome” (como Bion denomina). Se o analista objeto interno-mãe intolerante. Somente depois detectar esse estado de coisas, ele poderá utilizar dessa mudança, pela aquisição de conhecimentos os seus sentimentos contratransferenciais (às ve- teórico-técnicos que me faltavam, é que foi possí- zes dentro da sessão, mais comumente fora dela) vel reverter o impasse. como uma bússola empática, como costumo deno- Ainda em relação à capacidade de ser “conti- minar. Parece-me que essa contratransferência trans- nente”, torna-se indispensável mencionar aquela formada em empatia corresponde ao que Racker condição necessária para um analista, que Bion denominou como “contratransferência concordan- denomina capacidade negativa (1992), que não tem te” (me parece muito significativo o fato de que a nada de negativo, mas que leva esse nome porque etimologia da palavra “concordante” mostra que alude à capacidade para “suportar limitações suas ela é composta de “con” (quer dizer: “junto de”) + ou sentimentos contratransferenciais negativos”. “cor, cordis” (significa: “coração”). Isso pode se manifestar como uma sensação de o O termo empatia, da mesma forma que “contra- terapeuta não saber o que está se passando entre transferência”, também guarda designações distin- ele e o paciente, a existência de dúvidas e incerte- tas. Assim, em alguns textos de autores norte-ameri- zas, ou a presença de sentimentos penosos como canos, “empatia” costuma aparecer como uma fun- ódio, medo, angústia, excitação, confusão, tédio, ção consciente, confundindo-se com o significado apatia, paralisia ou impotência, etc. Caso o analis- de “simpatia”, ou de um “superego amável” por parte ta não possua essa condição, torna-se bem prová- do analista. Nada disso corresponde ao significado vel que ele vá preencher o vazio de sua ignorância que aqui estamos atribuindo à conceituação de em- com pseudo-interpretações que visam mais aliviar patia. Entendo que “empatia” consiste na capacida- a ele próprio do que qualquer outra coisa. de de o analista “sentir em si” (parece que essa é a A maior ou menor capacidade de continência tradução mais aproximada de “einfuhlung”, termo do analista determinará o destino que a contra-iden- empregado por Freud no capítulo VII de Psicologia tificação projetiva tomará dentro dele, se de uma das massas e análise do ego, de 1921), para poder forma patogênica ou construtiva para a análise com sentir “dentro do outro”, pelas adequadas identifi- o seu paciente. cações, projetivas e introjetivas. Aliás, isso está de acordo com a etimologia da palavra “empatia” (em + pathos): derivados do grego, o prefixo “em” (ou Empatia “en”) designa a idéia de “dentro de”, enquanto o prefixo “sym” (ou “sin”) indica “estar com”, e o étimo Cabe afirmar que a as identificações projetivas “pathos” designa “sofrimento, dor” (Basch-1983, p. do paciente podem invadir a mente do analista de 110), o que deixa claro a importante distinção entre modo que este fique perdido em meio aos senti- empatia e simpatia. mentos que lhe foram despertados, tal como no Também é útil distinguir empatia de intuição. exemplo acima, sendo que isso pode redundar numa A primeira é mais própria da área afetiva, enquan- “contratransferência patológica”. Quando isso to a segunda refere-se mais propriamente ao terre- ocorre – o que não é nada raro – o analista trabalha no ideativo e pré cognitivo, exigindo uma certa “pri- com um grande desgaste emocional, é invadido por vação sensorial”, uma forma de “escutar com um sentimentos contra (oposição) o paciente, por um tertceiro ouvido” (T. Reik, 1948) ou, podemos estado de confusão e impotência, e pode levá-lo a acrescentar, de “enxergar com um terceiro olho” cometer contra-actings, somatizações e inadequa- que provém de dentro da sua mente (“in” + “tuere” das interpretações, do tipo “superegóico”. De al- significa “olhar a partir de dentro”). Empatia e in- guma forma, toda essa situação corresponde e de- tuição não se excluem; pelo contrário, misturam- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 353 se e uma pode levar à outra. Ambas não se apren- dentro do analista e atingir justamente aqueles pon- dem pelo ensino, mas podem ser desenvolvidas pelo tos que constituem os mais vulneráveis do terapeu- “aprendizado com a experiência” (termo de Bion). ta, provocando-lhe escotomas contratransferenciais O estudo da “empatia” impõe que se mencione e um prejuízo da “escuta” do psicanalista, assim Kohut. Ele não foi o primeiro a enfatizá-la, mas propiciando a formação de “conluios inconscien- certamente foi dos que mais importância deu à sua tes” (aos que são conscientes é melhor denominá- importância na técnica e prática psicanalítica. Kohut los “pactos corruptos”). (1971) preconiza que a relação analítica deve ser o São inúmeros os tipos de conluios transferen- de uma “ressonância empática” entre o self do ana- ciais-contratransferenciais (estão superpostos com lisando e a função de self-objeto do analista, e isso os conluios resistenciais/contra-resistenciais) que está acontecendo quando o paciente sente-se com- se estabelecem inconscientemente entre ambos do preendido e demonstra que compreende o analista. par analítico, sendo que, na maioria das vezes, eles Ao mesmo tempo em que Kohut destaca que a “em- se estruturam de uma forma insidiosa e pouco trans- patia” possibilita a condição de o analista “colo- parente. Pode acontecer que tais conluios adqui- car-se no lugar do outro”, propiciar uma “vivência ram uma configuração de natureza sadomasoquis- emocional compartilhada” e possibilitar para o ta ou fóbico-evitativa de sentimentos tanto agres- paciente uma “internalização transmutadora”, ele sivos quanto eróticos, ou ainda o conluio comu- também alerta para o fato de que o narcisismo pa- mente se forma a partir de uma recíproca “fascina- tológico constitui-se como um dos principais obs- ção narcisista” em que não há lugar para frustra- táculos para o uso da empatia. ções, etc. Embora reconheçamos a importância essencial Diversos autores descreveram algumas formas da “empatia” na prática clínica, é necessário con- peculiares de conluios inconscientes que costumam cordar com aqueles autores que advertem contra o paralisar a evolução de uma análise. Assim, a títu- risco de uma supervalorização da mesma, quando lo de exemplificação, vale citar a Winnicott e essa for resultante de excessivas identificações, Meltzer. O primeiro descreveu no seu artigo “O projetivas e introjetivas, o que pode acabar se cons- uso do objeto” uma situação na qual tanto o pa- tituindo na formação de “conluios inconscientes”, ciente, como o analista, familiares e amigos, etc., até o extremo de uma espécie de “folie a deux”. estão satisfeitos com a análise, porque há eviden- tes benefícios terapêuticos. No entanto, diz Winni- cott, como análise propriamente dita provavelmente Conluios Inconscientes foi um fracasso porquanto não se processaram ver- dadeiras mudanças caracterológicas. Meltzer Toda relação transferencial-contratransferencial (1973), por sua vez, aponta para os riscos de o ana- implica na existência de vínculos que, conforme lista ficar enredado contratransferencialmente nas Bion, são elos relacionais e emocionais que unem malhas de alguma forma de transferência de natu- duas ou mais pessoas, assim como também a duas reza perversa. Assim por diante, muitas outros vér- ou mais partes de uma mesma pessoa. Assim, os tices conceituais poderiam ser enfocados. vínculos de “amor”, “ódio” e “conhecimento” (aos quais venho propondo a inclusão do vínculo do “reconhecimento” que alude à necessidade vital de Contratransferência Erotizada qualquer ser humano, em qualquer etapa de sua vida de ser reconhecido pelos outros) estão invariavel- Um(a) analista sentir sensações e desejos eró- mente sempre presentes em toda situação analíti- ticos que lhe são despertados pela(o) paciente cons- ca, ainda que em graus e modalidades distintas, com titui situações analíticas absolutamente normais, a prevalência maior de um ou de outro, etc. inclusive como um útil indicador de possíveis sen- No entanto, pode acontecer que o inconsciente timentos ocultos da área da sexualidade desse(a) do analisando efetue aquilo que Bion chama de paciente e que, na situação transferência, estão sen- “ataque aos vínculos”, pelo uso de identificações do transmitidos pela via dos efeitos contratransfe- projetivas “excessivas”, na quantidade ou no grau renciais. A normalidade dessa contratransferência de onipotência, e que acabam atingindo a capaci- erótica pressupõe que o analista assume o que ele(a) dade perceptiva do analista e, por conseguinte, a está sentindo, de modo a que a sua atividade per- sua condição de pensar livremente e estabelecer ceptiva e interpretativa não sofram nenhum prejuí- correlações ideoafetivas. Da mesma forma, certos zo. No entanto, as vezes pode acontecer que o ana- pacientes têm um “dom intuitivo” de projetar-se lista fique impregnado desses desejos libidinais 354 DAVID E. ZIMERMAN recíprocos, que ocupam a maior parte do espaço se fossem verdadeiras “carícias verbais”). 2) A par- analítico e que de uma forma ou outra interferem tir daí vimos que, por mais que se esforçasse e na sua atividade psicanalítica, sendo que isso cons- embora o conteúdo de suas interpretações estives- titui uma contratransferência erotizada, a qual não sem corretas, elas não eram eficazes, porquanto tão raramente como se possa imaginar, pode per- eram ambíguas e, portanto, estéreis. Assim, ele de- verter o vínculo analítico com a prática efetiva de veria adotar no plano consciente, uma posição úni- actings e contra-actings sexuais. ca: a critério de sua auto-análise ele deveria optar O exemplo que segue talvez ilustre melhor a entre ceder a um contra-acting ou manter coerente “contratransferência erotizada”: certa ocasião fui e sólida a sua posição e função de psicanalista (ele procurado por um colega, já com uma experiência optou pela última). 3) Era imperiosa a condição de psicanalítica muito boa, que queria trocar idéias que ele conseguisse manter uma estável e firme comigo porquanto estava atravessando um “im- “dissociação útil do ego” (entre a sua parte “ho- passe psicanalítico” com uma paciente que ele des- mem” que tem direito a sentir desejos e a do “psi- crevia como extremamente bonita, sensual, sedu- canalista” que tem o dever de manter a neutralida- tora e que gradativamente o assediava sexualmen- de), juntamente com a necessidade de se manter te, fazendo claras propostas de um relacionamento obediente ao critério mínimo de não falsear hipo- genital. As interpretações que o psicanalista fazia critamente a verdade dos sentimentos e tampouco em relação a tais investidas de sedução sexual, gi- desqualificar a correta percepção da paciente. ravam em torno de que “ela necessitava preencher Assim, ele encontrou condições emocionais vazios existenciais que se formaram na infância, para se posicionar perante ao assédio da analisanda devido às falhas dos objetos parentais”, ou a de de uma forma mais ou menos assim: é bem possí- que ela “o idealizava como um “príncipe encanta- vel que tenhas razão quando dizes que me perce- do” e por isso tentava gratificar a sua antiga fanta- bes atraído por ti, até mesmo porque trazes uma sia de possuir o “papai maravilhoso”, todinho, só abundância de situações que comprovam que és para ela”, ou ainda a de que “por baixo de sua ati- uma mulher bastante atraente. O que deve ficar tude amorosa, escondia-se uma intensa carga agres- claro, no entanto, é que essa muito provável atra- siva, com o propósito de denegrir a imagem, o con- ção provém do meu lado homem, porém ela não é ceito e o seu lugar de psicanalista, como forma dela maior que o meu lado psicanalista que, certamen- vingar-se da figura do pai-traidor”. te, por respeito a mim e, sobretudo, a ti, não se Essas e outras interpretações equivalentes não envolverá contigo, independentemente se continu- faziam o menor efeito na analisanda; pelo contrá- ares ou se interromperes a análise. Até onde sei, rio, ela não só debochava delas, como ainda afir- parece que essa atitude desfez o impasse. mava provocativamente que o analista estava-se “escondendo nas interpretações, mas que sentia ni- tidamente, pelo jeito dele, que ele estava a fim dela, Contratransferência Somatizada mas que estava acovardado”. A paciente chegou ao ponto de tomar a decisão de interromper a aná- Uma forma manifesta de contratransferência lise, para livrar o analista do problema ético e po- que é pouco descrita, embora pareça-me que é re- derem “transar livremente” em um local mais apro- lativamente freqüente – caso a observarmos mais priado”. A iminência dessa ameaça de interrupção detidamente – é aquela que se manifesta durante vir a se concretizar, além da inocuidade da ativida- determinados momentos da situação analítica sob de interpretativa, devido à desqualificação que a a forma de somatizações na pessoa do terapeuta. paciente fazia dessa é que estavam constituindo o Tais manifestações variam na forma e intensidade, “impasse psicanalítico”. desde algum discreto desconforto físico, até a pos- Como tentativa de sair do impasse, e sem cogi- sibilidade de o analista vir a ser tomado de uma tar diretamente dos aspectos éticos, e muito menos invencível sonolência, ou de fortes sensações e sin- os de natureza moral, propus ao colega três aspec- tomas corporais. tos técnicos que me pareciam essenciais: 1) Que Essa última afirmativa pode ser ilustrado por re- ele assumisse, para si próprio, a verdade do que latos de alguns colegas que eu supervisiono. Assim, realmente estava sentindo (ele admitiu que estava uma candidata traz à supervisão o fato de ela haver invadido por uma enorme tentação erótica e, inclu- sentido no curso da sessão com a sua paciente uma sive, reconheceu que as suas primeiras interpreta- forte sensação corporal de que estava escorrendo ções, pelo conteúdo e pela voz com que eram for- leite de seu seio esquerdo, o que perdurou até que a muladas, poderia ter repercutido na paciente como paciente deu sinais mais claros do seu estado regres- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 355 sivo, do quanto, no momento vivencial da situação rem um caráter estereotipado, pronunciadas em um analítica, a analista vinha sentindo falta do seio nu- tom de voz monótono e monocórdico, principal- tridor da mãe recentemente falecida. mente quando elas acompanham uma dificuldade Um outro colega relatou-me que durante um de pensar, de estabelecer conexões lógicas. A ter- certo momento de uma sessão que considerou “pe- ceira possibilidade, estudada por Cesio (1960), é sada”, devido ao clima melancólico da mesma, ele aquela que decorre das identificações projetivas do começou a sentir uma progressiva sensação de que paciente, de seus objetos internos aletargados, ou estava imobilizado na cadeira, talvez paralisado, seja, objetos que habitam o espaço depressivo do pensou com horror, e ia se alarmando com a possi- analisando sob a forma de moribundos, isto é, em- bilidade de que lhe houvesse “rompido um aneu- bora mortos, eles permanecem vivos dentro da sua risma”, até que o paciente começou a lhe falar do mente. A sonolência do terapeuta estaria represen- “derrame cerebral” que deixou o seu pai hemi- tando uma contra-identificação dele com esses ob- plégico. jetos “mortos-vivos”. Posso atestar o registro da existência de inú- meras situações equivalentes a essas, e de outras tantas que também permitem perceber que, por IMPLICAÇÕES NA TÉCNICA vezes, é por intermédio de uma somatização contra- transferencial que o analista poderá conseguir cap- À guisa de sumário deste capítulo, e baseado tar a profundos sentimentos que o paciente não con- em uma longa experiência como psicanalista e segue verbalizar, porquanto eles se formaram nos como supervisor, penso ser válido dar destaque aos primórdios do desenvolvimento da criança, antes seguintes elementos que cercam o fenômeno contra- da formação e representação da “palavra”. transferencial na prática das terapias psicanalíticas: Da mesma forma que uma somatização, tam- bém determinados sonhos do analista, em momen- • A importância da origem, reconhecimento e tos mais turbulentos da análise, podem ajudar a tra- manejo da contratransferência, após um lon- zer à luz alguns sentimentos transferenciais do pa- go período opaco na psicanálise, vem ga- ciente que ainda não tinham aparecido manifesta- nhando uma importância cada vez maior na mente no seu discurso. medida em que o tratamento psicanalítico ampliou o alcance da analisibilidade para crianças, psicóticos e pacientes regressivos Sonolência em geral, como no caso de perversões, bor- derline, somatizadores, etc. Além disso, a Creio que uma boa parte dos leitores já tenha contemporânea psicanálise vincular, obvia- passado alguma vez pela difícil situação de ser in- mente, implica uma especial relevância aos vadido, no curso de alguma sessão com um deter- aspectos transferenciais-contratransferen- minado paciente, por uma sonolência invencível, ciais. daquelas que as pálpebras parecem pesar chumbo e os minutos se arrastam, enquanto o analista faz • Os seguintes fatos justificam a importância um enorme esforço para se manter, pelo menos, da contratransferência no campo analítico: desperto. Nesse caso não se trata de uma estafa, 1) Ela influi decisivamente na seleção de sono atrasado ou algo equivalente, porquanto as pacientes para tomar em análise, tendo em sessões seguintes com outros pacientes decorrem vista que a escolha tende a recair nos pa- normalmente. cientes que gratifiquem as necessidades neu- Antes, estamos nos referindo a uma forma par- róticas do analista. 2) Quando bem percebi- ticular de contratransferência – um estado de so- dos, os efeitos contratransferenciais podem nolência – que comumente corresponde a uma des- se constituir para o analista em um relevante sas três possibilidades: uma, é a de que o analista meio de compreender um primitivo meio de consome um esforço enorme devido à pressão do comunicação não-verbal, que está sendo seu superego para manter afastadas de sua consci- ência algumas pulsões e ansiedades que foram des- empregado por certos pacientes, notadamen- pertadas pelo discurso do paciente; a segunda even- te os que estão em condições regressivas. 3) tualidade é a de que o analista entre em um “estado Os inevitáveis “pontos cegos” que acompa- hipnóide” diante de um paciente que apresente uma nham qualquer terapeuta podem adquirir uma alteração do seu sensório, cujas associações adqui- 356 DAVID E. ZIMERMAN

visualização por meio de alguma reação de épocas de séria crise econômica, que acarretem contratransferencial. 4) A contratransfe- no analista um medo real de vir a perder pacientes. rência pode servir como um estímulo para o Por sua vez, a contratransferência “complemen- analista prosseguir sempre em sua auto-aná- tar” instala-se quando começa o predomínio de um lise. 5) A existência da contratransferência objeto interno do paciente no campo analítico, sem que o analista se aperceba disso. Em casos como tem uma significativa influência no conteú- esses fica diminuída a capacidade de autonomia do do e na forma de o analista exercer a sua terapeuta, ele perde uma necessária equidistância atividade interpretativa. 6) Da mesma for- de seus próprios conteúdos inconscientes, entra em ma, é bastante freqüente que o analisando uma confusão, embora essa quase nunca seja trans- esteja mais ligado à resposta contratransfe- parente, um estado de desarmonia, ansiedade, so- rencial do seu analista – de modo a perceber nolência, impotência, etc., de sorte que a sua capa- a ideologia deste, o seu “estado de espírito”, cidade para pensar e interpretar resulta prejudica- a sua veracidade, etc.) do que propriamente da. Como decorrência, instala-se o risco de sobre- ao conteúdo das interpretações dele. vir uma “contra-resistência”, a qual pode assumir • No curso de supervisões é onde melhor po- alguma insidiosa forma de conluio inconsciente demos perceber a freqüente existência das com o seu paciente. mais variadas formas de contratransferência • O mais comum é que haja uma alternância inconsciente do terapeuta, assim como tam- cíclica entre a contratransferência “concordan- bém é possível comprovar como o clarea- te” e a “complementar”, o que também apa- mento delas (creio ser dispensável enfatizar rece com muita nitidez nas supervisões. Esse que de forma alguma isso implica em inva- “vai-e-vem” entre ambas as formas pode es- dir ou competir com o eventual analista do tar expressando uma dissociação interna do supervisionando) pode modificar fundamen- paciente (e, possivelmente, também a do ana- talmente o curso da análise. lista), como uma forma de defesa de partes • De modo genérico, a contratransferência do self que estão ameaçadas por fantasias des- pode ser de natureza “concordante” – que trutivas provindas do próprio sujeito. pode ser considerada como sendo benéfica, Assim, talvez a contratransferência ideal seja porquanto possibilita um “contato psicoló- aquela na qual o analista reconheça uma du- gico” com o self do paciente – ou de nature- pla identificação com o paciente: com o su- za “complementar” – em cujo caso ela cos- jeito e com os seus objetos. Por exemplo, é tuma ser prejudicial, pelo fato de que pode útil que diante de um conflito mãe: filho, o acarretar que o analista se contra-identifique terapeuta tenha condições de, empaticamente com os objetos superegóicos que habitam o colocar-se ao mesmo tempo nos dois luga- psiquismo do paciente e por conseguinte, os res, ou seja, tanto o de identificar-se com o reforçando impedindo, assim, que ele se li- lado criança do paciente, como também que berte de suas identificações patogênicas. ele possa reconhecer a sua identificação (não A contratransferência “concordante” pode fi- é a mesma coisa que “ficar identificado”, de car avariada, entre outras causas, por essas três forma total) com a figura parental internali- bastante comuns: situações muito impactantes da zada desse mesmo paciente. realidade externa, que interferem no campo analí- • Cabe destacar que um dos momentos contra- tico; “pontos cegos” do analista que o fragilizam e transferenciais mais difíceis é aquele que ocasionam uma maior vulnerabilidade para a tran- acompanha alguma transformação importan- sição de um estado de empatia para o de uma te no estado mental do paciente, aquilo que contratransferência “patológica”; a instalação no Bion denomina mudança catastrófica. Essa campo analítico de uma “psicose de transferência”, mudança, que pode ser, por exemplo, a pas- tal como foi descrita por Rosenfeld. Pode servir sagem de uma “posição esquizoparanóide” como exemplo da primeira condição, os cada vez para a de uma “posição depressiva” ou, ain- mais freqüentes problemas de manutenção do setting e dificuldades para a interpretação, diante da, a renúncia por parte do paciente a algu- mas ilusões próprias do “princípio do pra- zer” e substituí-las pelo “princípio da reali- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 357

dade” costuma vir acompanhada por um um que o paciente fique conhecedor das reações estado de sofrimento que, as vezes, atinge contratransferenciais que ele está despertan- proporções muito preocupantes. Nessa últi- do no seu psicanalista? Para definir a minha ma eventualidade, o analisando pode mani- posição pessoal tomo emprestado a seguin- festar: um estado confusional; uma angústia te afirmativa de I. Pick (1985): “A opinião referente a uma sensação de perdas de refe- de que o analista não seja afetado por estas renciais, inclusive corporais e do sentimen- experiências não só é falsa como indicaria to de identidade; uma descrença na incerte- ao paciente que, para o analista, a sua situa- za do futuro ao mesmo tempo que percebe a ção, sua dor e conduta não têm valor do pon- impossibilidade de voltar a utilizar recursos to de vista emocional...Isso representaria do passado; uma vivência intensamente não neutralidade, mas hipocrisia ou insen- paranóide com fortes acusações contra o sibilidade...O que aparenta ser falta de pai- analista a quem responsabiliza pela “piora”; xão na realidade pode vir a ser a morte do alguma depressão que, em casos mais extre- amor e do cuidado”. Um outro aspecto refe- mos, pode atingir o grau de ameaça de suicí- rente a isso é o que diz respeito a se o analis- dio, etc. Tudo isso gera uma contratrans- ta deve verbalizar explicitamente para o ana- ferência que deve ser muito bem reconheci- lisando esses seus sentimentos, numa forma da pelo analista, porquanto vai exigir dele algo confessional, ou se os admite no bojo uma boa capacidade de ser “continente” des- de sua atividade interpretativa. Penso que sas angústias, caso contrário, ele corre o ris- isso depende do estilo pessoal de cada um, co de ficar contrai-dentificado com os me- desde que se persista a condição básica de dos e culpas e pôr a perder o resultado de que o analista se mantenha verdadeiro e ho- um árduo trabalho que, embora de forma nesto com o seu analisando. muito penosa, pode estar expressando um • Por outro lado, é indispensável lembrar a afir- momento fundamental do crescimento de seu mação de H. Segal (1983) de que “muitos analisando. abusos e pecados analíticos foram cometi- • É imprescindível destacar que, antes de ser dos em nome da contratransferência... Mui- um psicanalista, ele é um ser humano e, por- tas vezes me vejo dizendo aos meus supervi- tanto, está sujeito a toda ordem de sensações sionandos que a contratransferência não é e sentimentos contratransferenciais, como desculpa; dizer que o paciente projetou em pode ser um estado mental de angústia, caos, mim, ou ele me irritou, ou ainda ele me co- ódio, atração erótica, compaixão, enfado, locou sob tal pressão sedutora, deve ser cla- impotência, paralisia, etc., etc. O importan- ramente reconhecido como afirmações de te não é tanto o fato de que tais sentimentos fracasso para compreender e usar a contra- desconfortáveis irrompam na mente do ana- transferência construtivamente”. lista, mas, sim, que eles possam ser assumi- • Quero concluir este capítulo a partir da cita- dos conscientemente por ele, através de uma ção acima para enfatizar os diferentes desti- “dissociação útil do ego” juntamente com nos que os efeitos contratransferenciais po- uma “capacidade negativa” para poder contê- dem assumir na mente e na atitude psicana- los dentro de si próprio, durante um tempo lítica do terapeuta: 1) Podem se configurar que pode ser curto ou bastante longo. Caso em uma forma de contratransferência pato- contrário, o analista vai trabalhar com cul- lógica, com todos os prejuízos daí decorren- pas, medos e um grande desgaste emocio- tes. 2) Não devem ser usadas como descul- nal, chegando a ficar extenuado ao final de pa, e muito menos com a finalidade de atri- um dia de trabalho, assim tornando despra- buir exclusivamente ao paciente a responsa- zerosa a sua atividade psicanalítica, que, pelo bilidade por todos os seus próprios sentimen- contrário, embora sempre muito difícil, pode tos e pelas dificuldades que a análise esteja perfeitamente ser gratificante e prazerosa. atravessando. 3) Uma vez reconhecida cons- • Persiste um ponto controvertido: é vantajo- cientemente pelo analista, ela pode se trans- so ou desvantajoso para o curso da análise formar em uma excelente bússola empática.

CAPÍTULO pação do terapeuta. Mais precisamente, cada vez mais, valoriza-se não tanto a comunicação do pa- ciente ou a do analista, mas, sim, a que se estabele- ce entre eles. Ademais, a comunicação por parte do analista 33 não se restringe ao diálogo na situação psicanalíti- ca: é muito freqüente que as pessoas aparentemen- te estejam em um intercâmbio comunicativo (pa- ciente-analista; analista-analista; analista-público leigo; etc.), porém, na verdade eles estão utilizan- A Comunicação Não-Verbal do discursos paralelos, nos quais as idéias e os sen- timentos não se tocam. Aliás, o fato de que dois ou na Situação Psicanalítica mais analistas compartam os mesmos referenciais teóricos ou que falem de forma similar acerca da psicanálise não significa que trabalhem da mesma forma na prática analítica: eles podem diferir na Ninguém contesta a afirmativa de que aquilo sua forma de escutar o paciente, de selecionar o que o ser humano tem de mais primitivo e imperio- que julgam relevante e, sobretudo, podem ter esti- so é a sua necessidade de comunicação, sendo que, los bem diferentes de analisar e de interpretar, as- na situação analítica, a comunicação vai “além das sim como, reciprocamente, analistas de filiações palavras”, porquanto há um campo do processo diferentes podem ter um estilo similar entre si. analítico, onde as palavras não dão conta do que A composição da palavra “comunicação” de- está acontecendo. signa o estabelecimento de alguma forma de men- Assim, já pertence ao passado, tal como foi sagem que se torna comum aos interlocutores, logo, transmitido e utilizado por algumas gerações de com-um, ou seja, ela alude à obtenção de uma uni- psicanalistas, a recomendação técnica de Freud de ficação. Sabemos ser esse um propósito idealiza- que o processo psicanalítico dependeria, unicamen- do, quer dentro, quer fora da psicanálise, e que, te, do aporte, por parte do analisando, da verbali- pelo contrário, o mais comum é que ocorram di- zação da sua livre associação de idéias, como par- versos distúrbios, tanto na formação da linguagem, te essencial da “regra fundamental” da psicanálise. como nas formas e funções da comunicação. Essa recomendação enfática, que estava justificada, O objetivo deste capítulo é justamente abordar se levarmos em conta que a prática psicanalítica da as diversas formas de como ocorre a normalidade época, visava precípuamente a uma reconstrução e a patologia da comunicação no vínculo das situa- genético-dinâmica, pelo levantamento das repres- ções psicanalíticas, com ênfase nos distintos ca- sões dos traumas e fantasias primitivas contidas nos nais de comunicação entre analisando e analista (e relatos do paciente. vice-versa), principalmente os que se referem ao Hoje não mais se admite, por parte do psicana- emprego da linguagem não-verbal. lista, uma reiterada “interpretação”, sob a forma de uma impaciente cobrança, na base de “se não falares, nada posso fazer por ti” ou “estás falando ALGUNS ASPECTOS DA METAPSICOLOGIA DA disso, para não falares sobre ti”, etc., etc. Pelo con- COMUNICAÇÃO trário, na atualidade cabe ao analista não só a com- preensão e a interpretação daquilo que está expli- A gênese, a normalidade e a patologia das fun- citamente significado e representado no discurso ções da linguagem e da comunicação são uma das verbal do paciente, mas também cabe-lhe a desco- áreas nas quais mais confluem as contribuições de dificação das mensagens implícitas do que está distintas disciplinas humanísticas. Desta forma, em- subjacente ao verbo, ou oculta por este, assim como bora trabalhando separadamente em diferentes épo- também na ausência do verbo, como algum gesto, cas, lugares, culturas e com abordagens muito di- somatização, atuação, etc. ferentes entre si, é possível encontrar uma certa Da mesma forma, o foco de interesse dos as- convergência e complementação entre os estudos pectos da linguagem e da comunicação, na análise de lingüistas (Saussure, Jakobson...), antropólogos contemporânea, não está centralizado unicamente (Levy-Strauss, Bateson...), epistemólogos (Piaget, naquilo que provém do analisando, porém igual- Klimovsky...), filósofos, neurólogos e, naturalmen- mente consiste naquilo que diz respeito à partici- te, psicanalistas. Dentre esses últimos, a meu juízo, 360 DAVID E. ZIMERMAN cabe destacar as contribuições de Freud, Bion e simples razão de que esta ansiedade foi represen- Lacan. tada no ego, sem ter sido designada com o nome do que estava lhe aterrorizando. Embora Bion não mencione Freud no que tange a “representação coi- Freud sa” e a “representação palavra”, creio que essa cor- relação se impõe. Na atualidade, ainda persistem vigentes e como uma viva fonte inspiradora, as investigações que aparecem em Freud, já em 1895, no seu “Proje- Lacan to...”, acerca dos aspectos formativos e estruturantes dos sons, imagens, memória, sensorialidade e de- Partindo do estruturalismo do lingüista Saussure senvolvimento verbal-motor. e do antropólogo Levy-Strauss, desenvolveu a sua Uma contribuição igualmente importante de teoria de que a linguagem (ou “convenção signi- Freud aparece em seu trabalho “O inconsciente”, ficante” como ele costumava denominar)é que de- de 1915, no qual ele postula as duas formas de como termina o sentido e gera as estruturas da mente. O o ego representa as sensações que estimulam a cri- autor dá uma importância primacial aos dois sig- ança: como “representação-coisa” e como “repre- nos linguísticos: o significante (alude à imagem sentação-palavra”. Como os termos indicam, é so- acústica ou visual) e o significado (alude ao con- mente na segunda dessas formas que a representa- ceito formado), afirmando que o significante não ção tem acesso ao pré-consciente, sob a forma de existe sem o significado, e vice-versa. No entanto, palavras simbolizadoras. prossegue ele, não importa tanto a relação recípro- ca entre ambos, mas, sim, a relação com os demais signos da estrutura. Bion Para facilitar o entendimento do leitor que não esteja familiarizado com os postulados lacanianos, A partir dos fundamentos de Freud (relativos é útil usar a metáfora de que os diversos signos da aos princípios do prazer e da realidade, de 1911) e estrutura podem ser lidos como se consulta um di- os de M. Klein (acerca da inveja e ódio primários; cionário, em que um termo remete ao outro, e as- da posição depressiva; e da formação de símbolos, sim sucessivamente. A extraordinária dimensão que Bion (1967) desenvolveu Uma Teoria do Pensa- Lacan deu à linguagem como fator (des)estruturante mento (título de um trabalho seu de 1962), basea- do psiquismo de todo indivíduo pode ser medida do em suas observações da prática psicanalítica com por estas conhecidas expressões dele: “O incons- pacientes psicóticos. ciente é o discurso do outro” e a de que “O incons- Assim, ele estuda profundamente os distúrbios ciente estrutura-se como uma linguagem” (com de pensar os pensamentos e os da linguagem, tal uma sintaxe própria). É fácil depreender a reper- como eles aparecem nos esquizofrênicos, tendo cussão disto na atividade interpretativa do analis- Bion centralizado a sua teoria no fato de que tais ta, porquanto a sua função de promover “ressigni- pacientes têm uma tolerância muito baixa às frus- ficações” passa a ganhar uma relevância especial. trações e, por conseguinte, desenvolvem um ex- Outro conceito de Lacan que auxilia o psicana- cessivo ódio destrutivo, acompanhado de um ex- lista a trabalhar com a comunicação lingüística do cesso de identificações projetivas, de “elementos- paciente é o seu conceito de que no discurso do beta”, cuja finalidade é unicamente evacuativa. Tal analisando pode haver o que ele caracteriza como estado psíquico impede o exercício da “função- a “palavra vazia” e a “palavra cheia” (ou plena). alfa” – encarregada de processar os elementos-beta, Resumidamente: a palavra plena de significa- e de transformá-los em elementos alfa – que ser- do é uma formação simbólica resultante da sinergia vem para ser pensados, em uma escalada evolutiva de dois fatores: o neurobiológico e o emocional. crescente, até atingir a condição de abstrações. Nos casos em que este último tenha falhado (no Uma outra contribuição de Bion, que encontra referencial kleiniano, a falha alude a que não foi uma ressonância na prática da psicanálise, é a que atingida a posição depressiva), as palavras não ad- se refere ao que ele denomina “terror sem nome”. quirem a dimensão de conceituação e abstração; Trata-se de um tipo de ansiedade de aniquilamento pelo contrário, não passam de um nível de concre- que o paciente não consegue descrever com pala- tização. Esse fato, em seu grau máximo, é observa- vras (e que, muitas vezes, de forma equivocada, o do nitidamente em esquizofrênicos que utilizam as terapeuta fica insistindo para que ele o faça) pela palavras e frases não como símbolos, mas como FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 361

“equações simbólicas” (tal como é descrito por ter uma boa capacidade de rêverie, será capaz de Segal, 1954). distinguir os vários significados possíveis. Assim, Nesses casos, resulta uma confusão entre o que qualquer mãe atenta, ou qualquer pediatra expe- é símbolo e o que está sendo simbolizado (na exem- riente, confirmar que, de certa forma, é possível plificação de Segal, um paciente dela, psicótico, distinguir quando o choro é de fome (gritos for- quando convidado para tocar violino, deu um sig- tes), de desconforto pelas fraldas úmidas e cocosa- nificado de que ele estaria sendo convidado a mas- das (o odor fala por ele), de uma cólica intestinal turbar-se publicamente). (um rictus facial de dor, com uma contração gene- Dessa confusão, pode resultar uma falha de sin- ralizada), uma dor de ouvidos (o choro é acompa- taxe, que pode manifestar-se, nos psicóticos, sob a nhado de um agitar horizontal da cabecinha), de forma de um discurso caótico, com uma salada de medo (uma expressão assustada), de pneumonia (o palavras. Em pacientes não clinicamente psicóti- choro é débil, e a respiração superficial vem acom- cos, podem aparecer formas mais sutis e não clara- panhada de um gemido), de quando é “manha”, e mente percebidas desses transtornos de pensamen- assim por diante. Um choro importante é o que to e, por conseguinte, de linguagem e comunica- acompanha a dificuldade de mamar no seio, o que ção. tanto pode ser decorrência de algum problema de ordem física, como pode estar traduzindo alguma dificuldade no clima emocional entre a mutualidade TIPOS E FUNÇÕES DA LINGUAGEM mãe-bebê. O que importa é deixar claro aqui, que, guar- Na atualidade, ninguém mais duvida que, des- dando as óbvias diferenças, o mesmo se passa na de a condição de recém-nascido, estabelece-se uma recíproca comunicação analista:analisando,a qual, comunicação – recíproca – entre a mãe e o bebê, muitas vezes, está se processando por meio de uma pela sensorialidade (visão, audição, olfato, tato, “linguagem sígnica” e não simbólica. sabor...), da motricidade e de sensações afetivo- O fenômeno da comunicação implica na con- emocionais que um desperta no outro, especialmen- jugação de três fatores: a transmissão, a recepção te no momento simbiótico e sublime do ato da e, entre ambas, os canais de comunicação, os quais amamentação. Da mesma forma, crescem as inves- determinam as diversas formas de linguagens. tigações que comprovam a existência de uma co- A maioria dos lingüistas acha ser desnecessá- municação no período fetal, e alguns autores, como rio, e até contraproducente, dividir a linguagem em Bion, fazem fortes especulações sobre a viabilida- “verbal e “não-verbal”, porquanto todas elas con- de de uma vida psíquica já no estado de embrião, vergem para um fim maior que é a comunicação. o qual estaria fazendo um importante registro dos Embora este argumento seja válido, eu creio ser movimentos físicos e psíquicos da mãe (tal como útil traçar um esquema didático, até como um in- aparece num capítulo especial, em Zimerman, tento de estabelecer uma linguagem comum com o 1995). leitor. Uma mãe com uma boa capacidade de comuni- Destarte, podemos dividir as formas de lingua- cação com o seu bebê sabe discriminar os diferen- gem em dois grandes grupos: a que se expressa por tes significados que estão embutidos nos sinais meio do discurso verbal e a que se manifesta por emitidos por ele, que alguns autores, como Zusman outras formas, não-verbais. (1991), denominam uma “linguagem sígnica”, para No discurso verbal, a sintaxe das palavras e das diferenciá-la da linguagem simbólica. Vamos frases compõem a “fala”. No entanto, é importante exemplificar com a manifestação sígnica mais co- destacar que nem sempre as palavras têm um senti- mum do bebê: o choro. Os gritos que o bebê emite do simbólico e nem sempre o discurso tem a fun- são fonemas, ou seja, sons que servem para des- ção de comunicar algo. Pelo contrário, segundo carregar a tensão, porém ainda não há discrimina- Bion, o discurso pode estar a serviço da incomu- ção entre o grito e o fator que o excitou (somente nicação, como uma forma de atacar os vínculos as “palavras” designariam discriminadamente o que perceptivos. Desta forma, é útil que tenhamos cla- estaria-se passando de doloroso no bebê, o que ra a diferença entre “falar” e “dizer”, sendo que dará-se bem mais tarde, a partir da aquisição da isso vale tanto para o paciente, como para o analis- capacidade de “representação-palavra”, no pré- ta e para os educadores em geral. consciente da criança). Nesta altura, impõe-se mencionar as contribui- Neste exemplo do choro, é necessário que a mãe ções do antropólogo Bateson e colaboradores “interprete” os gritos do seu bebê e, no caso de ela (1955), da Escola de Palo Alto (Califórnia), acer- 362 DAVID E. ZIMERMAN ca dos distúrbios de comunicação em certas famí- corre de uma “cultura familiar” (em certas famíli- lias, os quais acarretam graves conseqüências na as, a mentira é um valor idealizado e corriqueiro, estruturação do psiquismo da criança. Dentre ou- de tal modo que a criança identifica-se com os pais tros distúrbios apontados por esses pesquisadores, mentirosos); 14) a mentira ligada à “ambigüida- merece ser destacado aquilo que eles denominam de” (em cujo caso o sujeito nunca se compromete mensagens com duplos vínculos, em cujo caso os com as verdades, emite mensagens contraditórias pais inundam a criança com sigificados parado- e deixa os outros ficarem em um estado de confu- xais (“eu te ordeno que não aceites ordens de nin- são); 15) a mentira ligada ao sentimento de inveja guém”...) e desqualificadores (quando os elogios (o sujeito pode mentir de forma autodepreciativa, vêm acompanhados de uma crítica denegritória). para evitar a inveja dos outros, ou ele pode usar mentiras autolaudatórias, com o fim de provocar inveja nos demais que o cercam); 16) a mentira Tipos e Funções da Mentira utilizada como “uma forma de pôr vida no vazio” (essa bela imagem pertence a Bollas, 1992); 17) a Um outro aspecto referente ao distúrbio da co- mentira que tem uma finalidade estruturante (par- municação que, embora verbal, visa a uma não- tindo da posição de que algo se revela pelo seu comunicação, é o que diz respeito ao emprego de negativo, pode-se dizer que, para encontrar a sua falsificações, mais particularmente do importante verdade, o paciente precisa mentir). Isso faz lem- problema das mentiras. brar o poeta Mário Quintana, quando ele nos brin- Unicamente para dar uma idéia de como o uso da com essa frase: A mentira é uma verdade que se das mentiras comporta um universo de significa- esqueceu de acontecer”; e 18) por fim, tendo em ções, passo a enumerar nada menos que 18 moda- vista a situação da prática analítica, é especialmente lidades, que a mim ocorrem, como possíveis de relevante que o analista esteja atento, e venha a serem observadas no curso da análise:1) mentira assinalar consistentemente, aquelas afirmativas e comum (faz parte de uma, inevitável “hipocrisia crenças pelas quais o paciente está mentindo para social”, e ela é inócua); 2) mentira piedosa; 3) como si mesmo! (é claro que deve ser feita a ressalva que forma de evitar sentir vergonha; 4) uma maneira essa afirmativa só importa quando houver um ex- de fugir de um “perseguidor”; 5) a serviço de um cesso das mentiras do sujeito para si mesmo, por- falso self (nesse caso, tanto pode ser exemplificado quanto creio que todos concordamos com o dito com o discurso mentiroso de um político demago- de Bion de que toda e qualquer pessoa, em algum go, como também é necessário considerar que, grau, é portador de uma parte mentirosa). muitas vezes, um “falso self” tem a função de pro- teger o verdadeiro self); 6) mentira psicopática (visa ludibriar e prima pelo uso da “má-fé”); 7) Comunicação Não-Verbal mentira maníaca (a sua origem radica em um pas- sado no qual a criança gozava com um triunfo so- A linguagem não-verbal (ou pré-verbal), por bre os pais, com um controle onipotente sobre eles); sua vez, admite uma subdivisão em formas mais 8) como uma forma de perversão (em uma mistura específicas de como ela pode expressar-se, como do real com o imaginário,o sujeito cria histórias, são as seguintes: paraverbal, gestural, corporal, vive parcialmente nelas e quer impô-las aos de- conductual, metaverbal, oniróide, transverbal e por mais); 9) a mentira do “impostor” (o sujeito cria meio de efeitos contratransferenciais. uma situação falsa e a vive como verdadeira, às Cada uma dessas formas requer uma escuta es- vezes conseguindo enganar todo mundo); 10) como pecial, por parte do psicanalista, como será discri- uma forma de comunicação (o paciente recria a minado um pouco mais adiante. sua realidade psíquica,assim exibindo os seus pri- Antes disto, é útil lembrar que um discurso tem mitivos traumas e fantasias inconscientes); 11) a tres facetas: o seu conteúdo, a sua forma e as suas mentira que é usada como uma forma de evitação inúmeras funções. Essas últimas podem ser discri- de tomar conhecimento das verdades penosas (cor- minadas como sendo dos seguintes tipos: 1) Infor- responde ao que Bion denomina como”-K”); 12) a mativa (aporte de dados). 2) Estética (vem de mentira encoberta por um conluio-geralmente in- “estésis”, que quer dizer “sensação”, ou seja, diz consciente – com outros (um exemplo banal, é o respeito a um impacto sensorial, porém não unica- da mocinha que já leva uma plena vida genital, mas mente da ordem da beleza, como geralmente se para todos os efeitos, os pais “acreditam” que ela supõe). 3) Retórica (tem a finalidade de doutrinar se mantém “pura e virgem”); 13) a mentira que de- ao outro). 4) Instigativa (estimula reflexões no ou- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 363 tro). 5) Negatória (está a serviço da função “-K”, paciente ou sua forma de falar traduz uma arrogân- isto é, da não-comunicação). 6) Primitiva (age por cia?, timidez?, um constante desculpar-se?,de pe- meio de efeitos que afetam ao outro, como pode dir licença, “por favor”?, um jeito impositivo?, ocorrer na contratransferência). 7) Persuasiva (visa querelante?, etc. convencer os outros de algo que, de fato, ele não é. Dentro da escuta dos sentimentos que estão ao Para ficar em um único exemplo, vamos consi- lado do verbo, também é preciso levar em conta derar a última das formas acima enumeradas: nes- que a escolha das palavras e a seleção dos assuntos se caso, o discurso do paciente – geralmente trata- podem ter uma expressiva significação, assim como se de um portador de uma organização narcisista – é a importância dos lapsos que acompanham o dis- pode servir como uma forma de assegurar uma auto- curso. representação idealizada e, para tanto, ele convoca Creio que muitas das formas de silêncio que uma outra pessoa que lhe confirme isso. Nesse tipo acompanham, ou substituem a fala, podem ser in- de discurso persuasivo, o conteúdo da comunica- cluídas como uma manifestação para-verbal. No ção é a sua falsa crença; a forma é a de uma vee- entanto, os silêncios, por terem uma dinâmica pró- mência, por vezes patética; enquanto o propósito pria e uma expressiva relevância na prática analíti- inconsciente do discurso é o de conseguir aliados, ca, merecem uma consideração à parte (como está que compartilhem e comunguem dessa referida fal- descrito no capítulo 33). sa crença, a qual consiste em propagar a tese de que ele é vítima da incompreensão e de inveja dos demais. Na situação analítica, essa forma de lingua- A Escuta dos Gestos e Atitudes geem não deixa de ser uma modalidade de resis- tência, e a confirmação, ou omissão, do terapeuta Desde o momento em que o analisando está na diante dessas teses do paciente, se constituiria como sala de espera, é recebido e adentra o consultório, uma contra-resistência, assim compondo um con- ele já está nos comunicando algo por meio de sua luio entre ambos. linguagem pré-verbal: Veio cedo, tarde, foi pontu- Todas essas distintas formas e funções da lin- al?, Como está vestido, qual a sua expressão, como guagem têm uma enorme importância na prática nos saudou?, Deita-se?, Senta-se?, Como começa psicanalítica, porquanto elas determinam decisiva- a sessão?, está nos induzindo a assumir algum tipo mente não só o estilo da fala do paciente, e do ana- de papel?, etc., etc. lista, como também o tipo de escuta por parte de Da mesma forma, constitui-se como uma ex- ambos. pressiva forma de linguagem não-verbal, os sinais da mímica facial, a postura, os sutis gestos de im- paciência, contrariedade, aflição ou alívio, assim A ESCUTA DO ANALISTA como certos maneirismos, tics, atos falhos, estereo- tipias, o riso e os sorrisos e, muito especialmente, Por uma questão de espaço, vou restringir-me, por que e como chora, etc., etc. Além disso, como aqui, unicamente aos aspectos inerentes à comuni- já foi referido, o analista deve estar, sobretudo, aten- cação não-verbal. to para a linguagem não-verbal, que está contida e oculta no discurso vebal. Diante da impossibilidade de abarcar todo o A Escuta da Linguagem Para-Verbal leque de possibilidades deste tipo de linguagem, vou me limitar a exemplificar com uma única situa- O termo “para-verbal” alude às mensagens que ção, a da forma de cumprimentar, como é, por estão ao lado (“para”) do verbo, sendo que o em- exemplo, a atitude de alguns pacientes que prefe- prego da voz tanto pelo paciente quanto, também, rem não utilizar a rotina habitual do aperto de não é claro, pelo psicanalista constitui-se como um po- na entrada e saída de sessão. Não resta dúvida de deroso indicador de algo que está sendo transmiti- que se trata de uma forma de comunicação que deve do e que vai muito aquém e muito além das pala- ser respeitada, embora seja indispensável que ela vras que estão sendo proferidas. seja entendida e interpretada. Assim, em vários Notadamente, as nuances e alternâncias da al- pacientes meus, ficou claro que o não-cumprimen- tura, intensidade, amplitude e timbre da voz, ou o to pelo rotineiro aperto de mão, traduzia um pro- ritmo da fala no curso da sessão, dizem muito a pósito positivo por parte do analisando, qual seja o respeito do que está sendo dito e, principalmente, de não se submeter a uma estereotipia formal e, do que não está sendo dito. Por exemplo, a voz do pelo contrário, visava propiciar uma atmosfera com 364 DAVID E. ZIMERMAN o analista, mais informal, intimista, e sobretudo magro, ou vice-versa?, Julga-se feio mesmo quan- mais livre. do os outros o acham bonito, e vice-versa?, Tem É claro que, por outro lado, também seria fácil problemas de transtorno alimentar como anorexia exemplificar com pacientes cuja evitação desse tipo nervosa ou hiperbulimia?, e assim por diante). 2) de cumprimento manual devia-se a uma necessida- Cuidados corporais (vestimentas, penteados, saú- de de manter uma distância fóbica, notadamente o de física, etc.). 3) Conversões (muito freqüentes e de uma cálida aproximação física. variegadas, elas manifestam-se nos órgãos dos sen- Ainda em relação à forma de cumprimentar, tidos, ou na musculatura que obedeça ao comando sabemos que não é nada raro que determinados do sistema nervoso voluntário, sendo que as rea- pacientes costumam adotar uma rotina que vem ções conversivas permitem, muitas vezes, a desco- transposta de um costume social, ou seja, o de cum- dificação do seu significado psíquico, como será primentar com discretos beijinhos na face do (da) ilustrado com um exemplo, logo adiante). 4) Hipo- terapeuta. Em minha experiência como supervisor, condria (manifestações de sintomas físicos, errá- constato a relativa freqüência com que tais situa- ticos, sem respaldo em uma real afecção orgâni- ções se repetem, e o quanto, muitas vezes, elas cons- ca). 5) Somatizações (em um sentido estrito, o ter- trangem os terapeutas, sendo que, quanto mais tem- mo “somatização” alude a uma conflitiva psíquica po esse hábito se prolonga, mais dificuldade eles que determina uma afecção orgânica, como, por encontram para trabalhar com o fato. No entanto, exemplo, uma úlcera péptica. Em um senso lato, o essa situação deve ser trabalhada e desfeita não só termo “paciente somatizador” abrange todas as porque ela reforça uma dissociação (neutralidade manifestações psicossomáticas, nas quais alguma do setting em oposição a uma convenção de ami- parte do corpo funciona como caixa de ressonân- zade social) como também porque ressoa, em am- cia. bos do par analítico, um sabor de hipocrisia em Sabemos o quanto uma somatização pode di- trocar beijinhos após uma sessão, na qual, por zer mais do que a fala de um longo discurso. No exemplo, o paciente esteja em plena transferência entanto, nem sempre as somatizações são de fácil negativa. Parece-me que essa situação pode ser fa- leitura, sendo que nas doenças psicofisiológicas cilmente desfeita, uma vez que o analista compre- propriamente ditas (úlceras, asma, enzema, retoco- enda tanto o significado que este beijinho repre- lite ulcerativa, etc.) os autores se questionam se é senta para o analisando (como também do porquê possível encontrar um simbolismo do conflito in- do seu embaraço contratransferencial) e, a partir consciente, diretamente expressado no sintoma or- daí, com naturalidade, assinalar isso para o paciente. gânico, ou se este não é mais do que uma mesma, É necessário fazer a ressalva de que, conforme es- predeterminada, resposta psicoimunológica a di- tiver indicando o sentimento contratransferencial ferentes estímulos estressores. do analista, é bem possível que, em determinados Como assinalamos, as manifestações compre- casos, essa forma de cumprimentar possa ser ensivas possibilitam ao psicanalista, às vezes de mantida pelo menos durante algum tempo. forma fácil, às vezes muito difícil, a leitura da conflitiva psíquica contida no sintoma. Recordo uma paciente que enquanto discorria sobre os pe- A Escuta do Corpo sados encargos que os familiares e amigos deposi- tavam nela, começou a acusar um desconforto no O corpo fala! Basta a observação de como o ombro direito, que foi crescendo de intensidade, bebê comunica-se com a sua mãe para comprovar até transformar-se em uma dor quase insuportável, essa afirmativa. Desde as descobertas de Freud e que a analisanda atribuía à possibilidade de ter (...“o ego, antes de tudo, é corporal” e também deitado de “mau jeito” no divã. Após eu ter inter- aquelas relativas aos seus múltiplos relatos de con- pretado que pela dor no ombro ela nos mostrava versões histéricas) até os atuais e aprofundados dramaticamente o quanto vinha lhe doendo, desde estudos da psicanalítica, Escola Psicossomática de longa data, ter aceito (e propiciado) o papel de car- Paris, cada vez mais, todos os psicanalistas estão regar nos seus ombros o pesado fardo das expecta- atentos para fazer a leitura das mensagens psíqui- tivas e mazelas de sua família (depressiva), a dor, cas emitidas pelo corpo. como que num passe de mágica, passou instanta- Pode-se considerar, no mínimo, como cinco os neamente. Não custa repetir que, obviamente, nem canais de comunicação provindos do corpo: 1) A sempre as coisas se passam tão facilmente assim. imagem corporal (o paciente tem sintomas de des- personalização?, Julga-se gordo mesmo sendo FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 365

A Escuta da Linguagem Metaverbal se em relação à sua análise, o que mais importa levar em conta em relação à linguagem conductual Por linguagem metaverbal entende-se aquela é aquela que está expressa no fenômeno dos actings. comunicação que opera simultaneamente em dois Embora muitos actings sejam de natureza to- níveis distintos, os quais podem ser contraditórios talmente impeditiva quanto à possibilidade do pros- entre si. Um exemplo banal disso pode ser o de seguimento de uma análise, a verdade é que é cada uma pessoa que comunica algo com o verbo, ao vez maior a tendência de os analistas encararem as mesmo tempo em que com uma pisadela furtiva e atuações, não só as discretas e benignas, como tam- anuladora ele comunica a um terceiro que nada do bém muitas que assumem formas malignas e até que ele está dizendo tem validade e que a sua men- seriamente preocupantes, como sendo uma primi- sagem é uma outra, oposta (Maioli, 1994). tiva e importante forma de comunicação. Da mesma forma, a importância da metalin- Aludimos à possibilidade de que os actings (os guagem pode ser avaliada na situação analítica, por quais, até há um pouco tempo, eram sempre vistos meio de uma cadeia associativa composta por men- pelo psicanalista por um vértice negativo) possam sagens ambíguas, paradoxais, duplos vínculos con- ser benignos e, mais, vale acrescentar a eventuali- traditórios, o uso de formas negativas do discurso, dade de que a atuação esteja a serviço de uma fun- que devem ser lidas pelo lado afirmativo, etc. ção estruturante do self, como é o caso de uma busca Creio que um bom exemplo da “linguagem de criatividade e de liberdade, de modo que o metaverbal”,e que alcança uma grande importân- surgimento de determinados actings podem surgir cia na situação analítica, consiste no fenômeno de- como um indicador de que a análise está marchan- nominado por Bion como “reversão da perspec- do exitosamente. tiva”,por meio do qual o paciente, manifestamen- Ainda em relação ao acting, é necessário lem- te, concorda com as interpretaçõess do analista, brar que a clássica equação que Freud formulou porém, ao messmo tempo, latentemente, ele as em relação às suas pacientes histéricas, de que a desvitaliza e anula a eficácia delas,revertendo-as atuação constitui-se como “uma forma de repetir aos seus próprios valores e perspectivas prévias. para não ter que recordar”, deve ser complementada com estas outras: “repetir pelo acting na análise aquilo que não se consegue pensar, conhecer (-K), simbolizar, ou verbalizar. Na atualidade, o fenô- A Escuta da Linguagem Oniróide meno da atuação também permite compreender que o paciente está repetindo compulsivamente, como Neste caso, a linguagem se processa por meio uma forma de propiciar novas chances dele vir a de imagens visuais, às vezes podendo ser verbali- ser entendido e atendido pelo psicanalista em suas zadas e outras vezes, não, podendo até mesmo ad- falhas e necessidades básicas. Este último aspecto quirir uma dimensão mística. As manifestações representa, portanto, uma importante forma de co- mais correntes deste tipo de linguagem na prática municação primitiva, pelos efeitos contratransfe- analítica consistem no surgimento de devaneios, renciais. fenômenos alucinatórios e sonhos. Uma última palavra sobre a “escuta da condu- Cada um destes aspectos, separadamente, me- ta” – e que, de certa forma sintetiza as considera- receria uma longa e detalhada exposição, que não ções acima –, é relativa à conduta nas perversões, cabe aqui. No entanto, não é demais lembrar que tanto as de natureza sexual (que Joyce MacDougall também os sonhos podem ser vazios (quando são considera como a dramatização de criativas meramente evacuativos de restos diurnos), plenos “neossexualidades”), como a dos adictos. Neste úl- (quando eles são elaborativos, e a dinâmica psí- timo caso, é muito interessante como a morfologia quica processa-se por meio de transformações sim- desta palavra adicto, designa “a-dictum”, ou seja; bólicas) ou mistos. não dizer, e isso nos diz muito acerca da função da droga, de preencher o vazio resultante da falta de uma representação interna de uma boa maternagem. A Escuta da Conduta

Sem levar em conta os aspectos da rotineira conduta do paciente na sua família, trabalho ou sociedade, e tampouco as particularidades de sua assiduidade, pontualidade e o modo de conduzir- 366 DAVID E. ZIMERMAN

A Escuta dos Efeitos em um estado de “atenção flutuante”, é a Bion que Contratransferenciais devemos o mérito de ter dado uma grande ênfase à importância da capacidade de intuição do analista (a palavra intuição vem do latim “in-tuere”, que Descontando os evidentes exageros que alguns quer dizer “olhar para dentro”, como uma espécie analistas cometem de virtualmente reduzir tudo o de terceiro olho). que eles sentem, sendo oriundos das projeções Assim, com a sua controvertida expressão de transferenciais do analisando (e com isso eludem a que o analista deveria estar na sessão em um esta- possibilidade de perceber que os sentimentos des- do psíquico de “sem memória, desejo e ânsia de pertados podem provir unicamente do próprio ana- entendimento”, Bion unicamente pretendia exaltar lista), a verdade é que o sentimento contratransfe- o fato de que a abolição dos órgãos sensoriais e o rencial é um importante veículo de uma comunica- da saturação da mente consciente, permite aflorar ção primitiva, que o paciente não consegue expres- uma intuição que está subjacente e latente. O mo- sar pela linguagem verbal. delo que me ocorre para ilustrar esta postulação de O psicanalista deve ficar alerta diante dos dois Bion é o do brinquedo que está atualmente em voga, caminhos que a contratransferência pode tomar conhecida pelo nome de “olho mágico”, o qual dentro dele: tanto ela pode-se configurar como consiste no fato de que, utilizando a forma habitu- patológica, em cujo caso ele ficará enredado em al de visão, o observador não vê nada mais do que uma confusão de complementaridade com os um colorido desenho comum; porém se esse ob- conflitados objetos que habitam o mundo interno servador, a partir de uma distância ótima, nem per- do analisando, como também é possível que a to, nem longe demais, vier a exercitar uma outra contratransferência se constitua uma excelente bús- forma de olhar, ele ficará surpreendido e gratifica- sola empática. do com uma nova perspectiva tridimensional de Um simples exemplo disto, e que certamente aspectos antes não revelados, que saltam daquele corresponde à experiência de todo terapeuta, é o mesmo desenho. de um difícil sentimento contratransferencial de A essas formas de escuta do psicanalista pode- desânimo, impotência e de um certo rechaço que riam ser acrescidas outras tantas mais, como é o um paciente borderline provocava em mim. Em- caso de uma auto-escuta (uma adequada leitura bora eu percebesse e interpretasse a projeção de discriminativa entre o que é contratransferência, e sua agressão e depressão, assim como a dinâmica o que é a transferência do analista), o da escuta de seu ataque aos vínculos perceptivos, e a busca transverbal (consiste no fato de que os mesmos de um triunfo maníaco sobre mim, nada mudava, e relatos, sintomas, sonhos, etc., costumam ressurgir a minha confusão aumentava. Somente consegui periodicamente, porém é importante que o analista reverter o sentimento contratransferencial patoló- perceba as “trans”-formações dos mesmos, às ve- gico para o de uma empatia, a partir do reconheci- zes de forma muito sutil). mento do que o paciente insistia em repetir com- É claro que todas estas formas de escuta não- pulsivamente a sua atitude de arrogância narci- verbal, embora tenham sido aqui descritas separa- sística, como uma forma de se proteger, e de me damente, devem processar-se simultaneamente. O comunicar que aqueles sentimentos que me que importa é que todas elas, obviamente somadas abrumavam durante os 50 minutos da sessão eram à indispensável linguagem verbal, estão, virtual- exatamente os mesmos que lhe foram impostos, que mente sempre presentes nas distintas situações ana- o vinham atormentando desde sempre, e que ele líticas, e elas se expressam por meio de “canais de não conseguia expressar com as palavras. comunicação”, como as que são descritas a seguir.

A Escuta Intuitiva A COMUNICAÇÃO NA SITUAÇÃO ANALÍTICA

Sabemos que na transição entre os níveis pré- Pode-se dizer que são quatro os grandes canais verbais e o verbal-lógico situam-se as linguagens que em um movimento permanente e recíproco de metafóricas, como da poesia, música, devaneios ligação entre o emissor e o receptor compõem o imaginativos, mitos, sentimentos inefáveis, etc. campo comunicativo da interação analista-analisan- Conquanto Freud por meio da sua recomendação do. São eles: 1) A livre associação (e verbalização) técnica de que o psicanalista deveria “cegar-se ar- de idéias. 2) As diversas formas de linguagem não- tificialmente para poder ver melhor”, e trabalhar verbal. 3) A capacidade de intuição, não sensorial. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 367

4) Os efeitos contratransferenciais. Creio que cabe tilo deriva de “estilus” que, em latim, alude a um uma analogia entre os aparelhos de um rádio e a do estilete com duas pontas, uma aguda que serve para “sensibilômetro” do analista, porquanto tanto po- cortar e a outra, romba, que serve para aparar e dar demos mover o dial e conseguir uma sintonia fina forma), é importante considerar que devem ser pre- e clara, como podemos estar com o dial fora da servadas e respeitadas, ao máximo, os modos ge- sintonia do canal que está emitindo, e sequer falta nuínos e autênticos do estilo de cada um em parti- a possibilidade da interferência dos “ruídos da co- cular. Todavia, é igualmente importante conside- municação”, ou a de um total emudecimento tran- rar o efeito antianalítico de alguns estilos como são, sitório, resultantes dos conhecidos fenômenos da dentre outros, os que podemos denominar como “estática”. retórico (as palavras apenas escondem uma real O “sensibilômetro”, a que aludi, implica no fato intenção doutrinadora), estilo ping-pong (trata-se de que algumas condições mínimas são indispen- de um constante bate-rebate, de forma que não se sáveis na pessoa do terapeuta, como um modelo de forma um necessário espaço para reflexões), inte- função a ser continuamente introjetado pelo pa- lectualizador (com o risco de que o insight inte- ciente. Utilizando uma linguagem sintética, eu di- lectivo obtido pelo paciente além de não promover ria que tais condições mínimas consistem em que o transformações verdadeiras, ainda possa reverter a analista em um estado de atenção e de teorização serviço da resistência), pedagógico (o analista preo- flutuante, tenha bem clara as fundamentais diferen- cupa-se mais em dar “aulinhas” sobre o “porquê” ças que existem entre olhar e ver, ouvir e escutar, etiológico, do que atentar ao “para quê” existen- entender e compreender, falar e dizer, e entre pare- cial) e assim por diante. cer e, de fato, ser! Destarte, no trabalho analítico não basta a bus- Não custa repisar que, embora a ênfase deste ca do canal de comunicação do inconsciente com trabalho esteja incidindo sobre a pessoa do tera- o consciente; é necessário também a busca dos es- peuta, deve ficar claro que guardando as óbvias tilos que constroem e caracterizam o vínculo ana- diferenças da assimetria da relação, tudo se passa lista-analisando. Há necessidade de um certo grau igualmente em ambos. Um importante elemento do de ansiedade e de “turbulência” (conforme Bion) campo analítico que pode servir como exemplo que entre ambos, caso contrário deve-se pensar no ris- unifica analisando e analista, é o do estilo da co- co de que esteja imperando um estilo acomodativo, municação, cuja relevância, aliás, foi admiravel- como indicador de um provável conluio de com- mente sintetizada pela clássica frase de Buffon: “O placência. Pelo contrário, é útil constar do estilo estilo é o homem”. interpretativo, a coexistência da organização com É tamanha a relevância do estilo comunicativo a desorganização, por intermédio de uma continua- que uma exposição detalhada desta temática mere- da mudança dos vértices de observação. Para que ceria, por si só, um trabalho à parte. De forma re- esta afirmativa fique mais clara, vale utilizar a me- sumida, impõe-se como um dever, mencionar o táfora de um tabuleiro de xadrez, o qual ganha uma psicanalista argentino D. Liberman (1971), que se feição e função própria, devido à conjugação dos notabilizou pelos seus escritos acerca dos proces- opostos, isto é, do encontro entre os quadrados sos interativos da comunicação analisando-analis- brancos e pretos que isoladamente, ou se fossem ta, pela conjugação de postulados extraídos das todos da mesma cor, não diriam nada e nem adqui- áreas da semiótica, da lingüística e da teoria da ririam aquela função que unicamente foi propicia- comunicação. Entre outros aspectos muito eluci- do pelos contrastes. Creio ser desnecessário escla- dativos, Liberman é mais lembrado pelos seus es- recer que esta metáfora de modo algum significa tudos sobre os estilos da comunicação, sendo que que devemos sempre estar em oposição ao pacien- já se tornaram clássicos os cinco estilos que ele te, ou coisa parecida. nomeia como: refletivo, lírico, ético, narrativo e Para finalizar, à guisa de destacar a importân- dramático (nesse último caso, quer provocando cia da “atitude psicanalítica” no processo comuni- suspense ou impacto estético). Cada um deles cos- cativo, vale repetir que a comunicação, desde os tuma revelar a forma de como está estruturado o seus primórdios, está radicada na condição inata self da pessoa. do bebê em “ler” os significantes contidos nas mo- Do ponto de vista do estilo interpretativo do dulações da face, voz e corpo da mãe. analista (é interessante consignar que a palavra es-

CAPÍTULO pretativa do analista relativa aos silêncios do ana- lisando.

34 OS SILÊNCIOS DO PACIENTE Inicialmente é útil estabelecer uma diferença entre silêncio e mutismo. O primeiro pode aconte- cer sob distintas modalidades, graus e circunstân- cias, como será explicitado mais adiante, enquanto O Silêncio na Situação o termo mutismo alude a uma forma mais prolon- gada e com uma determinação mais definida por Psicanalítica parte do paciente em manter-se silencioso na aná- lise, às vezes de forma absoluta, ou com esporádi- cos e lacônicos comunicados verbais. O próprio mutismo também deve ser distingui- A literatura psicanalítica é relativamente escassa do quanto à possibilidade de ele estar representan- na apresentação de trabalhos que versem especifi- do uma timidez expressiva de uma proteção ao self camente sobre o fenômeno do silêncio no campo ameaçado, portanto a serviço da pulsão de vida, ou psicanalítico. De modo geral, os autores que o abor- se o mutismo adquire uma forma arrogante, consti- dam restringem-se mais particularmente à pessoa tuinte de uma conduta própria de um negativismo do “paciente silencioso” e o enfocam predominan- mais amplo e arraigado, logo sob a égide da pulsão temente sob o vértice de uma modalidade de resis- de morte. tência à análise. Essa última abordagem relativa ao Em resumo, o paciente silencioso não deve ser “silêncio” constituía-se como regra nos textos dos sistematicamente encarado como um sinônimo de psicanalistas clássicos, porquanto eles ainda não “resistente” à análise, embora muitas vezes o si- dominavam os atuais conhecimentos acerca da co- lêncio excessivo possa se constituir em um obstá- municação não-verbal, dos sentimentos primitivos, culo intransponível ao seu livre curso; pelo contrá- que determinados pacientes não conseguem expres- rio, é mais eficaz que o psicanalista compreenda o sar com as palavras do discurso verbal. silêncio como um desconhecido “idioma de comu- Assim, é natural que os psicanalistas pioneiros nicação” que está à espera de uma descodificação atribuíssem ao silêncio do paciente unicamente uma e de uma tradução em palavras simples e compre- função resistencial, tendo em vista que a análise ensíveis. por eles então praticada girava inteiramente em São múltiplas e polissêmicas (etimologicamen- torno de uma continuada e ininterrupta “livre asso- te, “poli” quer dizer “muitos” e “semos” quer dizer ciação de idéias”; logo, sem a verbalização das “sentidos”) as formas de como o paciente manifes- mesmas, não existiria a possibilidade de se desen- ta os silêncios no curso de determinadas sessões volver um processo de psicanalise. ou ao longo do processo de sua análise. Com a fi- A proposta do deste capítulo, acompanhando nalidade de exemplificar algumas dessas possibili- alguns autores contemporâneos, consiste em des- dades semânticas do silêncio, vou ilustrar com al- tacar que, ao lado de uma manifestação de contro- gumas brevíssimas vinhetas clínicas da análise de le resistencial, o silêncio também exerce uma im- uma paciente com quem eu muito aprendi a respei- portante função de comunicação não-verbal na to da linguagem do silêncio porquanto ela o utili- interação analista-analisando, tanto nos seus aspec- zou em contextos diferentes, com significados tos normais e estruturantes, como também naque- igualmente bem distintos, conforme a respectiva les que representam serem destrutivos e desestru- etapa evolutiva da análise. turantes para a analise. Trata-se de uma analisanda habitualmente lo- Como esquema didático, por meio de alguns quaz, com um discurso colorido e superlativo, mas exemplos clínicos, vou considerar, separadamen- que em determinadas sessões imerge em silêncios te, alguns aspectos da normalidade e da patologia profundos que podem ocupar quase todo o seu tem- do silêncio, nas pessoas do paciente, do analista e po. Na primeira vez que isso ocorreu, no início da na relação vincular entre ambos. Ao final, preten- análise, tratava-se de um revide hostil e raivoso do tecer alguns comentários sobre a função inter- ao que ela sentia como sendo uma indiferença de minha parte em relação à sua pessoa: ela me expu- 370 DAVID E. ZIMERMAN nha toda a sua intimidade enquanto eu não lhe fa- 1. Simbiótico: no caso de pacientes que se jul- cilitava saber da minha vida pessoal; ela trazia me- gam no pleno direito de esperar que o ana- lhoras e eu não vibrava manifestamente; ela me elo- lista adivinhe magicamente as suas deman- giava e eu não retribuía na mesma moeda. das não satisfeitas. Em uma outra fase, aproximadamente um ano 2. Bloqueio: da capacidade de pensar. após, um silêncio de aparência igual ao anterior 3. Inibição fóbica: medo de falar devido a obedecia a uma outra necessidade de compreen- são: por se sentir mais confiante, a paciente preci- uma forte ansiedade paranóide de dizer sava experimentar um longo silêncio entre nós, “bobagens”, ser mal interpretado, ocorrer sem ter de sentir uma ansiedade de tipo catastrófi- quebra de sigilo, etc. Nestes casos a inibi- co que lhe ocorria sempre que julgava que era obri- ção da fala é análoga à contenção anal das gada a preencher os “vazios” do silêncio que lhe sujeiras de fezes e urinas. pareciam um prenúncio de uma relação seca e mor- 4. Protesto: isto ocorre quando o paciente não ta. Ficou mais claro que a sua prolixidade habitual tolera a relação assimétrica com o analista, decorria de sua necessidade de contra-restar um an- e protesta, pois ele acha que assim obriga- tigo pânico de perder o contato visual, auditivo e rá o analista a falar mais. Mais comumente verbal com a sua mãe, eu. este protesto silencioso acontece quando os Em um terceiro momento do curso analítico, seus anseios narcisísticos não estão sendo ela manteve-se silenciosa, de olhos cerrados do co- meço até praticamente o final da sessão quando só correspondidos. então eu, que também me mantive silencioso todo 5. Controle: é uma forma de testar a paciên- o tempo, falei e interpretei. Baseado em um misto cia do analista ou de impedir que este te- de empatia e intuição, disse-lhe que, desta vez, pa- nha material para construir as interpreta- recera que ela sentira uma sensação de paz com o ções que ameacem a sua auto-estima. silêncio, como se ela precisasse me sentir como uma 6. Desafio narcisista: esse tipo de analisando mãe amiga, boa, velando o sono da filhinha. A crê o silêncio tanto pode ser uma fantasia analisanda, em meio a um pranto, confirmou que de que permanecendo silencioso ele triun- era assim mesmo e que foi um dos momentos mais fa e derrota o seu analista. Vale acrescen- importantes da análise, pois ela ficaria muito de- tar a advertência de Lacan de que em todo cepcionada comigo se eu a tivesse interrompido diálogo aquele que cala é quem detém o com estímulos do tipo “em que estás pensando?”. A interpretação se completou com a paciente poder, porquanto é ele que outorga as sig- conectando o que se passou entre nós, com o fato nificações ao que o outro diz. de que, segundo seu modo de sentir, sua mãe não 7. Negativismo: esse silêncio tanto pode ser lhe dava espaços para silêncios. Essa passava todo uma forma de identificação com os obje- o tempo todo a recriminando, estimulando ou or- tos frustradores que não lhe respondiam, denando, na base do: “Está na hora de acordar”; como também pode estar representando o “Já fizestes os temas? “; “Por que é estás tão quie- necessário e estruturante uso do “não” que ta, o que é que tu tens, minha filha? “; “fala meni- Spitz (1957) descreveu na evolução nor- na!”... mal das crianças, por volta do 15º mês de Em outros momentos mais adiantados da análi- vida, aproximadamente. se com essa mesma paciente, ocorriam pausas si- 8. Comunicação primitiva: por intermédio lenciosas prolongadas que correspondiam a um movimento interno de elaboração dos insights par- dos efeitos contratransferenciais que o si- ciais que ela ia adquirindo. lêncio do paciente desperta no analista, ele Por meio desses fragmentos clínicos é possível pode estar fazendo uma importante comu- verificar a ampla gama de significados diferentes nicação daquilo que está inconsciente e que que os silêncios adquirem nas distintas situações não consegue expressar com palavras. psicanalíticas, embora eles possam ser de aparên- 9. Regressivo: em algumas ocasiões, o pa- cia análoga. ciente totalmente silencioso adormece no A partir da experiência clínica, em relação às divã como uma forma de sentir-se como causas mais comuns que determinam os silêncios uma criança tendo uma mãe a velar o seu na situação analítica, penso que, esquematicamente, sono; outras vezes, de forma análoga, o si- podem ser distinguidos os seguintes: lêncio prolongado e um aparente distancia- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 371

mento pode estar representando a busca, te com a sua conseqüente atividade interpretativa: na presença da mãe, daquilo que Winnicott estou me referindo ao risco de o terapeuta deixar- (1958) postulou como “a capacidade para se envolver por uma contratransferência do tipo ficar só”. “complementar”, em cujo caso ele estará identifi- 10. Elaborativo: muitas vezes o silêncio se cado com os pais repressores e, por conseguinte, reforçará nesse analisando o seu superego amea- constitui como um espaço e tempo neces- çador ou o seu ideal de ego que está repleto de sários para o paciente fazer reflexões, cor- expectativas dos pais a serem cumpridas por ele. relações e a integração dos insights parciais para um insight total. Além destas costumeiras formas de silêncio que O Mutismo de Natureza Destrutiva de alguma forma e com algumas variantes sempre estarão presentes em qualquer análise de evolução No início deste capítulo foi destacado o fato de regular, também vale considerar outras situações que uma atitude exageradamente silenciosa por mais específicas, das quais vou exemplificar com parte dos analisandos tanto pode decorrer de uma duas delas: a do adolescente silencioso e a do forma do ego defender-se de fortes ansiedades mutismo que está presente nos pacientes em estado paranóides, depressivas e confusionais, como ela mental de desistência. também pode estar exercendo uma importante fun- ção de comunicar, de forma não-verbal e por meio de efeitos contratransferenciais, idéias e sentimen- Características do Adolescente Silencioso tos primitivos que ainda não foram nomeados. É necessário acrescentar que uma atitude de silêncio Em um interessante trabalho, Andrés Rascovsky absoluto e que se manifesta na analise de modo (1973) estuda alguns analisandos na adolescência permanente, já se constitui como um preciso indi- inicial (menores de 16 anos) e destaca as seguintes cador que se trata de um paciente muito regressivo particularidades: a) É bastante freqüente, notada- e que muito provavelmente o seu mutismo esteja a mente nos primeiros tempos da análise, que estes serviço de sua organização narcisista que lhe de- adolescentes se mostrem excessivamente silencio- termina impor um triunfo arrogante sobre o seu sos. b) Em grande parte, esta atitude silenciosa psicanalista. deve-se ao fato de que o adolescente nessa idade É claro que subjacente a essa organização nar- ainda não tem bem desenvolvidas as condições para cisista boicotadora do avanço da análise (a qual, discriminar e abstrair e, por isso, ele não compre- em um outro capítulo, proponho denominar como ende o “como-se” da abstração da interpretação. contra-ego) o mutismo do analisando pode estar c) Por esta última razão, este paciente leva tudo no significando uma extrema necessidade desse pa- concreto, exige respostas imediatas, confunde o real ciente em proteger-se contra possíveis novas hu- com o imaginário, tenta falar como se fosse um milhações já sofridas no passado e, por conseguin- adulto, constantemente exige opiniões e conselhos te, contra o reconhecimento de que ele precisa e do analista e diante das frustrações magoa-se com depende dos outros, que ele tem muitos gritos tran- enorme facilidade. d) As principais frustrações de- cados na garganta, muitas lágrimas a serem chora- correm do não atendimento de seus pedidos e de- das e muitos doloridos sentimentos esperando para sejos, e principalmente quando este adolescente não serem descodificados, pensados, sofridos e verbali- se sente compreendido pelo terapeuta, da mesma zados com palavras e nomes. forma como ele acredita que os seus pais não o Dentre as formas de narcisismo extremado, li- entendem. e) A forma de como esse adolescente gadas à pulsão de morte e a uma disfarçada angús- reage a tais frustrações é por meio de actings, dos tia de desamparo e aniquilamento, e que por isso quais o pior, e lamentavelmente o mais comum, adquirem características hetero e autodestrutivas, consiste em faltar muito às sessões e por vezes cul- há uma delas que é particularmente grave: a que mina com o abandono da análise; outro modo de diz respeito ao paciente que está em um estado reagir às frustrações é por meio de silêncios bas- mental de desistência. tante prolongados, não raramente um silêncio ab- Vou tentar clarear melhor esta conceituação com soluto durante muito tempo da análise. f) Por todas o auxílio da etimologia: o étimo latino “sistere” estas razões, entendo que o psicanalista deva ter significa “direito a ser” e ele dá origem aos vocá- uma cautela especial no entendimento desse pacien- bulos “existir”(“ex” quer dizer para fora”; portan- to o indivíduo ex-siste, ele é alguém), “resistir”(“re” 372 DAVID E. ZIMERMAN significa de novo, mais uma vez; logo, enquanto o obstante, convém lembrar que Freud era um psica- paciente re-siste revela que ele está lutando por uma nalista que participava verbalmente de uma forma nova oportunidade de voltar a viver com dignida- bastante ativa, como se depreende claramente dos de e direitos e não somente sobrevivendo psiqui- seus relatos clínicos. camente) e “desistir” (o prefixo “de” designa uma Também os seguidores da escola da psicologia privação, portanto “de-sistere” alude a um estado do ego, que são os herdeiros, continuadores e em que o único desejo do indivíduo é o de nada ampliadores da obra de Freud, são analistas muito desejar e costuma vir acompanhado com um per- silenciosos, adotam uma norma geral de, no início manente namoro com a morte). da análise, não interpretar virtualmente nada. Este estado psíquico de desistência, pode vir Os psicanalistas kleinianos, por sua vez, ampa- manifesto pelo mutismo do analisando, é particu- rados pela convicção de que os notáveis avanços larmente muito difícil de ser revertido na análise teórico-técnicos possibilitavam um entendimento porquanto o seu propósito inconsciente predomi- mais rápido e profundo do analisando, adotaram nante é o de impedir qualquer auxílio a favor da uma atitude interpretativa bastante mais ativa e pulsão de vida e exige por parte do psicanalista, imediata, que ia muito além da conflitiva edípica acima de tudo, uma enorme capacidade de conti- clássica e que visava sobretudo nomear com pala- nência e de paciência. Em contrapartida, uma das vras as arcaicas experiências emocionais. Assim, experiências mais fascinantes da análise aquela em pode-se dizer que, de certa forma os seguidores de que o trabalho analítico consegue, lentamente, atin- M. Klein romperam com o paradigma interpretativo gir o descongelamento do mutismo e surge uma da psicanálise clássica que privilegiava o silêncio comunicação verbal. do analista; pelo contrário, eles falam muito mais porque, acima de tudo, priorizam a necessidade de interpretar logo que surja a ansiedade emergente O SILÊNCIO DO PSICANALISTA em qualquer momento da sessão. Por sua vez, os psicanalistas inspirados em Nos textos de técnica psicanalítica este tema Lacan, que promoveram um movimento de retor- costuma ser controvertido, porquanto são múltiplos no a Freud, adotam a técnica de não interpretar os os fatores e os pontos de vista adotados pelas durante meses, justificando o seu silêncio como uma distintas correntes do pensamento psicanalítico. forma de o analisando flagrar-se de que ele utiliza De modo geral, um dos fatores que deve ser o seu discurso com palavras vazias, e que ele deve respeitado é o que diz respeito ao estilo particular desenvolver a capacidade para falar com palavras de cada psicanalista em separado, desde que ele cheias, isto é, com um discurso significativo. Por- conheça as suas motivações para se manter silen- tanto, com a expansão das idéias de Lacan, muitos cioso ou falante. Um outro fator bastante relevante dos seus inúmeros seguidores voltaram a recomen- consiste em uma decisiva influência dos paradigmas dar e a adotar uma atitude mais silenciosa por par- vigentes nas regras técnicas que caracterizam os te do analista, com a finalidade de oportunizar que, distintos períodos pelos quais a psicanálise tem dentro do “tempo lógico” da sessão (para os lacania- transitado nestes seus 100 anos de existência. nos não importa tanto o tempo de duração habitual Assim, em certa época, vingava a recomenda- e formal da “hora analítica”), o analisando atinja o ção de Th. Reik (1945), que aparece no seu texto estado de “castração simbólica” que o ajudará a La significación psicológica del silencio, no senti- passar do registro imaginário para o registro sim- do de o psicanalista manter-se nas sessões o máxi- bólico. mo possível silencioso, com a finalidade de des- Ademais, os lacanianos alegam que evitam in- pertar um contínuo estado de ansiedade no pacien- terpretar muito para não incrementar a fantasia do te e, dessa forma, impeli-lo a procurar quebrar o paciente de que o analista pode responder à sua mutismo do analista e a verbalizar de forma mais demanda, o que reforçaria a sua ilusão de especula- sentida e verdadeira as suas experiências emocio- ridade. Pelo contrário, o mais importante para tais nais presentes e passadas. analistas consiste justamente em romper com o es- Provavelmente não de uma forma tão radical pelho que no plano imaginário o paciente pretende como esta conduta apregoada por Reik, de manei- perpetuar com a pessoa do analista e, ao mesmo ra geral os psicanalistas clássicos costumam ser tempo, eles concentram a atividade analítica nos considerados como muito silenciosos, e a formula- desejos do analisando e os respectivos deslocamen- ção da interpretação aconteceria como a culminân- tos na cadeia de significantes. cia que segue a um longo processo de silêncio. Não FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 373

Embora tenhamos destacado que, dentro de um cheio, sendo que neste último caso ele se constitui largo espectro de normalidade, deve ser levado em como uma importante forma de comunicação. conta que determinados psicanalistas tenham um autêntico estilo pessoal de manterem-se mais si- lenciosos no trabalho analítico, é necessário tam- O SILÊNCIO NO VÍNCULO ANALISTA- bém consignar que muitas vezes o estilo inter- ANALISANDO pretativo pode estar denunciando algum grau de patogenia. É evidente que todas as considerações e exem- Assim, não é improvável que uma conduta ex- plificações anteriores que foram especificamente cessivamente silenciosa por parte do psicanalista descritas em relação ao silêncio do paciente e ao esteja demonstrando alguma dificuldade, talvez de do analista, de alguma forma guardam uma nature- natureza fóbica, para evitar uma aproximação mais za vincular. No entanto vale destacar separadamente estreita com o paciente. Por outro lado, o terapeuta o silêncio do analisando que corresponde a uma que não propicia um espaço de silêncio também forma primitiva de comunicação que está sendo está demonstrando alguma ansiedade, a qual mui- reproduzida no vínculo transferencial-contratrans- tas vezes decorre da falta daqueles atributos que ferencial. Com o auxílio de uma ilustração clínica Bion denomina “continente” e “capacidade nega- ocorrida em uma época em que eu ainda era um tiva” e que aludem a uma condição de ele poder tanto inexperiente, tentarei clarear a afirmativa aci- conter dentro de si mesmo aquelas angústias que ma. resultam das suas dúvidas, incertezas e do seu “não A paciente M., já nas entrevistas preliminares compreender” o que está se passando na situação de avaliação, informou-me que ela sobrevivera a analítica. um pacto suicida que seus pais fizeram ao final da Uma das conseqüências desta última condição gestação de M: o seu pai morreu e a sua mãe, em- é aquela que se reflete em um estilo interpretativo bora seriamente ferida, foi salva e posteriormente que propus denominar “estilo ping-pong”, o qual veio a casar com um outro homem que veio a assu- consiste em uma forma demasiadamente ativa de mir o papel de pai de M. o analista conduzir-se nas sessões, sob a forma de O início da análise parecia decorrer normalmen- um “bate-rebate” imediatista que lembra duas pes- te, porém por volta do sexto mês, alegando razões soas reciprocamente tentando se livrarem deum de ordem econômica (o que não condizia com a tijolo quente, e que muitas vezes adquire um cli- sua realidade), a paciente parou de me pagar, ao ma de polêmica com o paciente. O maior incon- mesmo tempo em que foi ficando progressivamen- veniente desse estilo é que ele priva o analisando te silenciosa, ao ponto de adotar um mutismo vir- da formação e utilização de um espaço mental que tualmente absoluto, interrompido esporadicamen- o possibiltaria pensar as experiências emocionais, te por alguma lacônica informação alusiva a algum ao mesmo tempo em que estimula o uso exagerado distúrbio orgânico, ou para, cabisbaixa, balbuciar do jogo de dissociações e de identificações proje- que não tinha nada para me dizer, embora M. se tivas. mantivesse sempre assídua, pontual e aparentasse De forma análoga, o analista que não está con- uma certa vivacidade na entrada e na saída das ses- seguindo conter dentro de si as angústias decor- sões. rentes dos efeitos contratransferenciais nele des- A minha sensação contratransferencial era di- pertados pelo paciente, poderá adotar outras mo- ficílima e muito angustiante, eu me sentia paralisa- dalidades patogênicas de estilo interpretativo que do, impotente, confuso, sem saber o que estava se podem oscilar desde um extremo de interpretações passando e tampouco o que dizer ou fazer, ao mes- quantitativamente excessivas e qualitativamente de mo tempo em que eu me flagrava tendo ímpetos de natureza superegóica, como também o estilo pode sacudi-la fisicamente; em resumo, parecia-me que adquirir a forma de silêncios inexpressivos e va- a dupla estava morta, conquanto eu sentisse alguns zios que, freqüentemente, podem estar represen- laivos de vida. A única coisa que me parecia clara tando um inconsciente revide hostil ao analisando consistia em um sentimento, mais intuitivo do que pelo fato deste estar atacando os seus vínculos de cognitivo, de que M. necessitava que eu tivesse percepção e de compreensão. bastante paciência e que eu contivesse os meus sen- Destarte, vale enfatizar que tanto existe o si- timentos quase insuportáveis, sem apelar para con- lêncio do ignorante como também o do sábio e, do tra-atuações. mesmo modo, assim como acontece com o uso das Tal situação prolongou-se por aproximadamente palavras, também o silêncio pode ser vazio ou cinco meses, sendo que aos poucos ela recomeçou 374 DAVID E. ZIMERMAN a falar e a me pagar, para um grande alívio meu; no 3. Fundamentalmente, por meio dos efeitos entanto, esse alívio foi temporário, pois aconteceu contratransferenciais, M. me comunicava um fenômeno interessante. A paciente tornou-se o quanto era desolador o seu mundo inter- verborréica, trazendo uma abundância de sonhos no composto por um pai morto, uma mãe bastante complexos e interessantes, associação de inconfiável e pouco continente (que tanto idéias e sentimentos ligados ao presente transfe- aceitou o pacto suicida, como também não rencial e ao passado vivencial, especulações psi- cológicas e filosóficas acerca de livros, filmes, etc., o cumpriu) e uma criança, ela própria, em tudo em um ritmo veloz, algo frenético e sem pau- um estado mental de solidão, desespero e sas. Pensei na possibilidade de um surto hipoma- impotência, dividida entre conhecer ou re- níaco dentro de um quadro de doença afetiva pudiar a sua triste realidade. No jogo entre bipolar, porém um meticuloso raciocínio clínico as identificações projetivas e introjetivas, descartou essa hipótese diagnóstica. tanto eu como M. assumíamos alternada- A minha impressão dominante era a de que M. mente cada um destes personagens do seu ingressara naquele estado mental que Reich (1933) mundo interior. denominara estado caótico” e que consiste em uma 4. Admitindo que as premissas acima estejam profusão de sentimentos e idéias aparentemente sem corretas é lícito depreender que M. incons- conexão entre si, mas que refletem em um impor- cientemente criara uma atmosfera no cam- tante movimento intrapsíquico. Mais alguns meses decorreram nessas condições até que a paciente po analítico que sugere a proposta de um retomou a conduta manifesta no início da análise, “pacto suicida” comigo. Acredito que dian- a qual finalizou após sete anos de um árduo traba- te de seu mutismo que me exauria e me lho e, quero crer, com um resultado suficientemen- excluía, se eu me deixasse levar pela impul- te exitoso, são contratransferencial de propor-lhe a Hoje, retrospectivamente, com maior experiên- condição de “ou fala ou interrompemos a cia e conhecimentos teóricos que cercam a análise análise”, ficaria concretizada a reprodução vincular, creio que posso melhor reconstruir o que do duplo suicídio, o meu como sendo a fa- teria se processado entre M. e eu e que sintetizo na lência da capacidade de psicanalista e o enumeração dos seguintes aspectos: dela com o fracasso do que talvez fosse a 1. Os primeiros meses da análise “normal” sua última oportunidade de viver a vida e correspondeu ao período que M. necessi- não unicamente penar masoquisticamente tou para desenvolver os núcleos de con- para sobreviver psiquicamente, tal como ela fiança básica e para o estabelecimento de estava levando a sua vida na época em que uma aliança terapêutica comigo, como um procurara a análise. prelúdio daqueles sentimentos difíceis de 5. O fato de M. ter podido reexperimentar o serem suportados por ela e que necessita- seu violento trauma psíquico e de, intuiti- vam de um setting apropriado para serem vamente, eu não ter sucumbido à sua pro- reexperimentados. posta de um pacto suicida, e de alguma for- 2 Entendo que a minha sensação de que ha- ma ter traduzido com palavras e significa- via um clima de “relação morta” no víncu- dos as suas fantasias ligadas à morte, per- lo transferencial-contratransferencial devia- mitiu que ela saísse de seu mutismo aterra- se ao fato de que M., por meio de maciças dor. identificações projetivas, fazia-me sentir o 6. mesmo que ela vinha sentindo durante toda Hoje, dou-me conta de que aprendi bastante a sua vida e não conseguia expressar com com M. O fato de que a transição de um palavras, e das vezes que ela tentou escla- mutismo que aparenta um “nada para di- recer com a sua mãe e demais familiares o zer” para o estado de uma verborréia caó- que realmente teria acontecido com o seu tica na verdade representa que um nada pai biológico, M. sempre encontrou respos- pode dizer muito acerca de um tudo, rela- tas evasivas e sinais evidentes de que ela tivo a uma séria turbulência emocional, mal estava constrangendo e molestando. contida, conhecida e elaborada, à espera de um continente que, com paciência, exerça FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 375

uma necessária função-alfa de descodifica- Penso ser útil que o analista, ao final da sessão ção, significação e nomeação. com um paciente mutista muito regressivo, faça uma breve síntese dos movimentos que ocorreram du- rante a mesma, de preferência conectando com os ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O de sessões anteriores, com o propósito de transmi- MANEJO TÉCNICO DO SILÊNCIO tir a este paciente excessivamente silencioso que uma outra pessoa, que não ele próprio, pode con- ter, valorizar e estar empaticamente ligado com os A primeira consideração é a de que nas situa- seus sentimentos sem ter que imergir em um esta- ções psicanalíticas existem diferentes tipos de si- do de desânimo, alheamento ou até mesmo de de- lêncios e cabe ao psicanalista conseguir discrimi- sistência. nar entre os que são necessários e estruturantes Igualmente, é importante que o analista detecte daqueles outros que se tornam impeditivos para o com clareza o seu estado contratransferencial, caso desenvolvimento da análise. Em determinados ca- contrário é muito possível que ele vá responder aos sos, o mutismo do analisando pode estar revestin- silêncios do paciente com um silêncio seu equiva- do uma organização narcisista cujo objetivo maior lente, e com características de retaliação, tal como é o de triunfar sobre o analista. nos mostra a etimologia desta palavra que alude ao Um segundo aspecto é o que se refere à formu- fato de que novamente (“re”) ele está utilizando a lação tão comum do terapeuta diante dos silêncios “lei de Talião”, ou seja, está se vingando nos clás- prolongados: “Em que estás pensando?” Penso que sicos moldes de “dente por dente, olho por olho”. a reiteração deste tipo de intervenção causa alguns Como contrapartida do silêncio, todos conhe- importantes prejuízos, como o de uma intrusão cemos aqueles pacientes que, inversamente, tem superegóica na mente do paciente, com um certo uma prolixidade tamanha que, se o analista não esvaziamento de sua autonomia e espaço mental, falar, eles se encarregam de preencher todo o tem- assim como também reflete a falta de um atributo po da sessão com um discurso ininterrupto. Aqui, importante para o psicanalista, qual seja o de uma não se trata de de uma conduta hipomaníaca e, mui- paciência. to menos, de uma pletora de assuntos significati- Diante de pacientes silenciosos cresce de im- vos; antes, trata-se de analisandos que têm pavor portância a necessidade de o psicanalista entender de que se estabeleça um silêncio entre ele e o ana- e interpretar, sem demasia, a comunicação não-ver- lista, porquanto para eles representa ser um silên- bal do paciente, como são os gestos expressivos, cio de vazio, de morte. A analogia que me ocorre, certa movimentação motora, a liguagem corporal, é como se houvesse “secado” o leite da mãe e, pa- etc. ralelamente, estivesse esgotada a capacidade des- O timing da interpretação é particularmente se paciente de re-animar e alimentar a essa mãe- importante para o paciente silencioso por duas ra- analista que, transferencialmente, ele receia estar zões: Uma é que se o analista demorar demais em murcha e deprimida e, por isso, ele se obriga a fa- tocar certos aspectos que não forma explicitamen- lar tanto. te verbalizados porém que ele intui que está na Para expressar, de uma maneira generalizada, mente do seu paciente, especialmente se este for a especial significância que representa o silêncio um adolescente, pode parecer que se trate de um do paciente ou do analista, vale utilizar a metáfora tabu intocável e aumenta a sua inibição verbal. A de que a música está formada por elementos de segunda razão é a de que se o analista interpretar notas – intervalos – notas, sendo que a ausência antes do tempo, pode soar como acusação, exigên- do som, isto é, a presença do intervalo, pode repre- cia intrusiva ou algo do gênero, assim reforçando sentar mais vigor e expressividade que a nota mu- o superego ou ideal do ego que já tanto assolam ao sical, por si só. paciente. Acima de tudo, vale enfatizar que o setting da O terapeuta também deve levar em conta que análise representa um novo e sagrado espaço para muitas vezes o silêncio com características desafia- o paciente poder “adoecer”, sendo muito provável doras pode estar significando para certos pacien- que a sua doença consiga se manifestar unicamen- tes que eles estão em busca de uma identidade au- te por meio da linguagem de um mutismo transitó- têntica, diferente daquela que os seus pais e a socie- rio, embora muitas vezes de longa duração e que dade lhe impuseram e obrigaram-no a construir um põe à prova as capacidades de uma boa maternagem falso self. do psicanalista.

CAPÍTULO cular? Há diferenças entre interpretação, constru- ção e reconstrução? Ela deve obedecer a uma estratificação, como a de seguir da superfície para a profundidadae do psiquismo do paciente? É váli- da a inclusão de “parâmetros técnicos” ? A ação 35 terapêutica da psicanálise opera unicamente por meio das interpretações? Qual o critério do analis- ta quanto à escolha do “material” a ser interpreta- do? A concepção e a formulação da interpretação deve seguir a “via di levare”, ou a “di porre” ? A Atividade Interpretativa Existem diferenças essenciais entre as diferentes escolas psicanalíticas em relação à ideologia, à téc- nica e à prática das interpretações? Existem algu- mas concepções atuais que abordem aspectos que Juntamente com os fenômenos da resistência e não são constantes da psicanálise clássica? A in- da transferência, a interpretação compõe o tripé terpretação restringe-se ao conflito psíquico resul- fundamental que caracteriza e identifica a psicaná- tante do embate inconsciente entre as instâncias lise, conforme postulou Freud, e que a diferencia psíquicas ou ela também abrange os aspectos cons- das demais formas de terapias não psicanalíticas. cientes do ego? Há diferença entre o ato da inter- Da mesma forma que as duas primeiras, também a pretação propriamente dita e o de uma atividade interpretação vem sofrendo significativas e acen- interpretativa? Finalmente, para os propósitos deste tuadas transformações neste primeiro século de capítulo, dentro da concepção de uma psicanálise existência da ciência psicanalítica, notadamente na- vincular, vale perguntar se ao lado da óbvia função queles aspectos que dizem respeito ao paradigma estruturante das interpretações do psicanalista elas da vincularidade que vem caracterizando a psica- também podem determinar a forma das manifesta- nálise contemporânea, ou seja, que o processo ana- ções resistencias e transferenciais do analisando ou lítico não fica tão centrado na pessoa do analisan- até mesmo pode redundar um um resultado patogê- do, tampouco na do analista, mas, sim, no campo nico para ele? que se estabelece entre eles. Formulei essas questões, entre outras mais que Por outro lado, desde os seus primórdios até a poderiam ser aventadas, sob uma forma inter- atualidade, continuam persistindo muitos pontos rogativa com a intenção de obter uma identifica- bastante polêmicos e controvertidos entre os psi- ção com a prática diária de cada leitor, a fim de, canalistas em relação ao conteúdo, à forma e ao juntos, construirmos um roteiro que propicie no- estilo de interpretar. vas reflexões sobre esta temática de vital impor- Assim, cada vez mais, merecem ser repensadas tância no processo psicanalítico. Destarte, o pre- as clássicas questões referentes às interpretações sente capítulo representa uma tentativa de respon- do psicanalista, seu instrumento maior: O que é, der as questões antes levantadas e formular outras conceitualmente, uma interpretação? Como ela se tantas. forma na mente do analista? Quando e como ela deve ser formulada ao analisando? Importa o esti- lo particular de cada psicanalista? O que distingue CONCEITUAÇÃO uma interpretação “superficial” de uma “profun- da” ou de uma “mutativa” ? A interpretação deve Conforme assinalam La Planche e Pontalis prioritariamente ser dirigida ao conteúdo constituí- (1967), a palavra “interpretação” não é uma tradu- do pelas pulsões, fantasias e ansiedades ou às mo- ção fiel ao termo original empregado por Freud, dalidades defensivas utilizadas pelo paciente con- que é Deutung, cujo significado alude mais direta- tra as mesmas? Qual o destino que as interpreta- mente a um esclarecimento, explicação, sendo que ções seguem dentro da mente do analisando? É ine- especialmente Freud também emprega o termo rente ao conceito de interpretação que na “verda- bedeutung, o qual se refere à descoberta de uma deira” psicanálise ela é virtualmente indissociável significação. Assim, nos trabalhos de Freud sobre do “aqui-agora-comigo” transferencial” ? Como técnica psicanalítica, “interpretar” aparece como age a interpretação? Como avaliar a sua eficácia? uma forma de o analista explicar o significado de Ela é unívoca ou admite subdivisões quanto às suas um desejo (pulsão) inconsciente. finalidades para cada situação analítica em parti- 378 DAVID E. ZIMERMAN

Dito assim, de forma tão simplificada, pode para triunfar sobre ele, ou para não necessitar so- parecer que a interpretação – voltada para os signi- frer e fazer verdadeiras transformações e mudan- ficados – tivesse uma natureza pedagógica ou algo ças na sua personalidade. equivalente; no entanto, a palavra “significação” Da mesma forma, nem tudo o que o psicanalis- adquiriu uma dimensão relevante na psicanálise ta diz são interpretações que correspondam ao que atual e diz respeito às profundas distorções pro- realmente proveio do analisando, pois não poucas vindas desde o psiquismo primitivo da criança, não vezes vezes elas não são mais do que chavões só como resultantes de suas fantasias, mas também repetitivos e estereotipados ou acusações disfar- como expressão daquilo que foi veiculado pelo dis- çadas que, no entanto podem adquirir um alto grau curso dos pais e da sociedade. de poder de sugestionabilidade sobre o paciente, Particularmente, creio que o termo “interpreta- induzindo-o ao aporte de material associativo que ção” está bem adequado, desde que se leve em conta simula uma falsa eficácia. que o prefixo inter designa uma relação de vincu- Por outro lado, é bem sabido que na reciproci- laridade entre o analisando e o analista, o que é dade do vínculo analisando-analista, as maciças muito diferente daquela idéia clássica de que cabe- identificações projetivas do primeiro deles poderá ria ao paciente o papel de trazer o seu “material” provocar no psicanalista, segundo Racker (1959), sob a forma de livre associação de idéias e ao psi- uma destas duas possibilidades: 1) Uma contra- canalista, a tarefa única de descodificar e traduzi- identificação do tipo “complementar” com os pri- las para o analisando. mitivos objetos superegóicos que nele foram pro- A noção de vincularidade implica em uma con- jetados, o que costuma determinar uma contratrans- tínua interação entre analista e analisando, pela qual ferência patológica. 2) Uma contra-identificação o primeiro deixa de ser unicamente um observador do tipo “concordante” que possibilitará a transfor- e passa a ser um participante ativo, sendo que cada mação para o estado mental de uma – indispensá- um do par analítico influencia e é influenciado pelo vel – função de empatia, por parte do psicanalista. outro, de modo que a interpretação formal repre- A importância disto é que cada uma destas duas senta ser uma das peças, embora importantíssima, possibilidades definirá a construção de um modo e de um processo bastante mais amplo, que é o da conteúdo de interpretações possivelmente totalmen- comunicação entre ambos, tanto a consciente como te diferentes, conforme a égide de um ou de outro a inconsciente, a verbal e a não-verbal, no registro dos acima aludidos estados engendrados na mente imaginário ou simbólico, no plano intra, inter ou do analista. transpessoal, na dimensão científica, filosófica ou Igualmente cabe nos perguntarmos se o mais artística, etc. importante é aquilo que o paciente diz e faz, ou o Sabemos que nos primórdios da psicanálise, a que ele deixou de dizer, sentir e fazer ? Aquilo que interpretação valorizava sobretudo a descodificação ele associa e nos verbaliza ou como ele entende e do simbolismo dos sonhos como a “via régia” de significa o que dizemos a ele ? A resposta a esta acesso ao inconsciente, sendo que Freud definiu a última pergunta também deve levar em conta o fato elaboração secundária como representando a pri- de ser bastante comum que o analisando responde meira interpretação do sonho. Em um segundo mais à metacomunicação do analista (aquilo que é momento, a interpretação dos sonhos cedeu lugar transmitido por outros meios que não o das pala- à interpretação sistemática do “aqui-agora-comi- vras) do que propriamente ao conteúdo contido nas go” da neurose de transferência. Na atualidade, verbalizações das interpretações. todavia, a transferência não está sendo entendida A função de interpretar não é unívoca, e pode- unicamente como uma simples repetição do passa- se dizer que ela guarda uma equivalência com a do, de modo que a interpretação também deve le- hermenêutica (arte de interpretar, particularmente var em conta outros fatores, inclusive o da pessoa os textos de natureza muito ambígua), sendo que real do psicanalista. esta área semiótica pode lembrar as características Dentro desta perspectiva da atual psicanálise dos oráculos, ou seja, cada paciente emana signos vincular, resulta ser claro o fato de que nem tudo o e mensagens de múltiplos significados e que ne- que o paciente diz tem a finalidade de comunicar cessitam ser descodificados diferentemente a cada algo à espera de uma interpretação eficaz por parte vez, de acordo com a situação e o momento parti- do analista; pelo contrário, freqüentemente o dis- cular de cada intérprete, no caso o psicanalista. curso do paciente visa exatamente ao contrário, ou A interpretação, segundo o consenso geral en- seja, a dominar, controlar e induzir o analista a lhe tre os psicanalistas, visa sobretudo à obtenção de “interpretar” justamente aquilo que ele quer ouvir, insight, sendo que a convergência e à inter-relação FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 379 dos diversos insights parciais é que possibilitam o toda a obtenção de um insight é formulada como trabalho de uma elaboração psíquica e, conseqüen- uma interpretação. 2) Interpretação não é o mesmo temente, a aquisição de verdadeiras mudanças ca- que “tradução simultânea” (expressão de M. racterológicas. Baranger, 1992) daquilo que o paciente diz. 3) Tam- Todos estamos de acordo com essa afirmativa, pouco é um “transferencialismo”, pelo qual tudo o porém é necessário acrescentar que a interpreta- que o for dito pelo analisando, em qualquer cir- ção do analista não deve ficar restrita unicamente à cunstância, sofre um sistemático reducionismo ao conscientização dos conflitos inconscientes, mas, clássico “é aqui – agora-comigo-como lá e então”, sim, que ela também se constitui como uma dialé- embora a interpretação esteja intimamente condi- tica, com uma nova conexão e combinação de sig- cionada ao nível e ao grau da transferência exis- nificados, de modo a possibilitar que o analisando tente na situação psicanalítica. 4) Há um perma- desenvolva determinadas funções egóicas que ou nente risco de que a interpretação incida sobre o nunca foram desenvolvidas ou que a foram, porém que o analisando fala e não sobre o que, de fato, estão obstruídas, como é, por exemplo, a aquisição ele diz, faz e sobre quem realmente ele é! (não cus- de uma capacidade para pensar as velhas – e as ta enfatizar que o mesmo vale para a fala do analis- novas – experiências emocionais, tal como Bion ta). 5) Acima de tudo, a importante função da in- frisa enfaticamente ao longo de sua obra e que, terpretação, tal como insiste Bion, não é de “co- parece-me, equivale ao que Bollas (1992) denomi- nhecer sobre”, mas, sim, a de promover no pacien- na “o conhecido não pensado”. te transformações em direção a um “vir a ser”. O mesmo vale para o desenvolvimento de ou- tras capacidades do ego consciente do analisando, como é o caso de sua capacidade para enfrentar o FORMAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO NA conhecimento das verdades penosas (função K, MENTE DO ANALISTA segundo Bion), ao invés de simplesmente evadi- las; desenvolver a capacidade de ser continente dos Preliminarmente, é indispensável estabelecer outros e de si mesmo; conseguir fazer a abertura que a interpretação fundamentada no vínculo de novos vértices de percepção e entendimento, de interacional também deve ficar definida por aquilo forma a possibilitar uma visão binocular (Bion) dos que ela não é. Assim, vale consignar que ela não mesmos fatos psíquicos. deve ser influenciada, confundida ou superposta “Interpretação” é um termo consagrado na psi- com os inconscientes (muitas vezes conscientes) canálise e deve permanecer restrito a ela, embora propósitos do analista, de amizade, sedução, con- essa função não seja exclusividade do campo psi- fissão, poder, apoio, moralização, catequese, canalítico. Assim, não me parece ser um exagero a aconselhamento, ser o subsituto de mãe ou pai, etc., afirmativa de que uma mãe adequadamente boa etc. “interpreta” ao seu bebê quando, mercê de sua ca- Em sua essência, a interpretação é o resultado pacidade de rêverie, ela escuta, compreende, sig- final de uma comunicação entre as mensagens, ge- nifica e nomeia a comunicação primitiva do seu ralmente transferenciais, emitidas pelo analisando, filho. Muito embora sejam situações bem distin- e a repercussão contratransferencial (conceituada tas, entendi ser útil a metáfora, como uma forma em um sentido genérico) que aquelas despertam de caracterizar que o ato interpretativo forma-se no psicanalista, em três tempos: o de uma acolhi- aquém e além das palavras unicamente. Essa com- da, seguida de transformações em sua mente e fi- paração adquire uma maior validação se levarmos nalmente a devolução, sob a forma de formulações em conta que a mãe consegue “interpretar” seu fi- verbais. lho somente se ela tiver aquilo que Bion denomina Dizendo de forma mais pormenorizada, tudo como sendo a – descodificadora e significadora – isto se processa no seguimento destes sucessivos função-alfa, o mesmo acontecendo exatamente passos na mente do analista: uma empática dispo- igual com o psicanalista, constituindo-se como uma sição para uma escuta polifônica; uma capacidade “condição necessária mínima” (Bion) para que ele para conter as necessidades, desejos, angústias e possa interpretar adequadamente. incógnitas nele depositadas; paciência para permitir A título de um resumo destas palavras intro- uma ressonância por vezes muito turbulenta em seu dutórias e de um posicionamento preliminar de próprio psiquismo, especialmente aquela que con- minha parte a respeito da conceitualização de in- siste em que o analista se confronte com a sua im- terpretação, parece-me válido definir que: 1) Nem potência e ignorância; esta última requer uma con- tudo o que o analista diz é interpretação, e nem dição de “capacidade negativa” (termo com que 380 DAVID E. ZIMERMAN

Bion designa uma necessária capacitação do tera- clássicas interpretações produtoras de insights, da peuta para suportar sentimentos negativos decor- abertura de novos vértices afetivos (sentir), cogni- rentes do seu “não saber” o que está se passando tivos (conhecer) e cogitativos (pensar), também se transitoriamente na situação analítica); capacidade devem ao fato de que o analista – através do seu para exercer uma função-alfa (Bion) que o possi- modelo real de como ele pensa as experiências bilite processar a descodificação das identificações emocionais, enfrenta angústias, liga-se às verda- projetivas do paciente e as respectivas contra-iden- des, enfim o seu modo autêntico de ser – está pro- tificações, de modo a possibilitar a ativas transfor- piciando ao paciente a possibilidade de fazer algu- mações de entendimento e de significados, até que mas necessárias desidentificações e dessigni- o psicanalista perceba que ele está em condições ficações e substituí-las por neo-identificações e de dar um nome às experiências emocionais que neossignificações, assim como também promove estão sendo vividas e revividas; a partir daí, o tera- novos modelos de funcionamento de capacidades peuta pode dar o passo final, que é o de verbalizar de ego, no sentido – tal como Bion enfatiza – de àquelas últimas, com uma formulação que seja co- como enfrentar, com dor, os velhos e novos pro- erente com o momento particular de cada situação blemas, no lugar de simplesmente evadi-los. analítica, com o seu estilo autêntico na forma de Também vale consignar que a interpretação não interpretar e com o propósitro de promover a aber- se forma única e exclusivamente a partir de uma tura de novos vértices de percepção e compreen- situação definidamente transferencial; é claro que são na mente do analisando, de forma a possibili- há transferência em tudo, porém nem tudo é trans- tar-lhe uma visão multifocal dos mesmos fatos psí- ferência a ser sistematicamente interpretada. As- quicos. sim, conforme a situação psicanalítica, muitas ve- Também é necessário levar em conta alguns zes a interpretação não deve enfatizar tanto a pre- outros fatores importantes. Um deles é o que se sença dos sentimentos transferenciais, mas, sim, o refere ao surgimento espontâneo da intuição do ana- desenvolvimento da capacidade para pensar e lista, a qual, como ensina a etimologia, consiste em comunicá-los ao analista. Ainda a propósito da uma espécie de “terceiro olho” (“in” (dentro) + inter-relação da interpretação com a transferência, “tuere” (olhar), em latim, significa “olhar para den- e como um adiantamento das considerações que tro”) que, segundo Bion, é um elemento muito re- serão tecidas mais adiante acerca da possibilidade levante na construção da interpretação, surgindo da patogenia das interpretações, creio ser de espe- quando a mente do analista não está saturada pelo cial importância mencionar Fabio Herman (1995) uso exclusivo dos seus órgãos dos sentidos (visão, que alude ao fato de que a interpretação pode for- audição...), nem pela sua memória ativa e tampou- mar-se a partir de uma “pseudotransferência”. co pelos seus desejos e ânsia de compreensão ime- Nestes casos, afirma Herman, o uso sistemático das diata. Aliás, a favor do surgimento da intuição, Bion “interpretações” saturadas com a estereotipia dos recomendava aos analistas para que estes deixem significados selecionados pelo próprio analista – livre a sua imaginação, a fim de promover a sua de acordo com a sua base escolástica – funcionam “imagem-em-ação”. como sugetão e doutrinação. Em tais situações, Um segundo fator a considerar em relação à prossegue esse autor, o paciente fica “enquadra- formação da interpretação consiste no fato de que do” pelas concepções do analista, e inconsciente- um clima positivo no vínculo psicanalítico (exis- mente ele também seleciona o seu “material” para tência de uma aliança terapêutica, empatia, respei- agradar e confirmar as teses do seu analista. Am- to, paciência, holding, etc.), independentemente se parado pela confirmação do paciente, em um cres- a situação psicanalítica estiver em transferência cente círculo vicioso, o analista prossegue com positiva ou negativa, costuma produzir o que ve- convicção reforçada, embora se forme um clima nho preferindo denominar “experiência emocional de trabalho analítico de um recíproco tédio, sensa- transformadora”, tanto porque ela define melhor a ção de análise monótona e enfadonha, outras ve- essência do processo analítico, como também para zes tumultuadas, porém vazias, e, sobretudo, com diferenciar da conhecida expressão “experiência a ausência de verdadeiras transformações. emocional corretiva”, de Alexander, pelo fato de Um outro fator que exerce uma significativa que esta última persiste impregnada com um signi- diferença na formação da interpretação na mente ficado pedagógico e superegóico. do analista é o concernente ao referencial teórico- Pelo contrário, a inclusão do termo “transfor- técnico da corrente psicanalítica no qual ele está madora” alude ao fato de que as transformações respaldado. Este fato tem muito a ver com o crité- operadas no psiquismo do analisando, além das rio de escolha do analista em relação a qual aspec- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 381 to presente na situação psicanalítica merece a prio- Da mesma forma, não fora a natural limitação ridade das interpretações, e qual o tipo de signifi- do espaço deste capítulo, seria interessante traçar cado será transmitido ao paciente. Aliás, todos sa- um quadro comparativo relativo aos critérios de bemos que entre tantas interpretações possíveis, em escolha de conteúdos, formas e finalidades das in- certos momentos é difícil saber qual delas é a mais terpretações, por parte dos seguidores das princi- exata ou, muito mais importante que isto, qual será pais correntes psicanalíticas vigentes, respectiva- a mais eficaz, tal como se observa comumente no mente lideradas pelos grandes pensadores da psi- curso de supervisões coletivas, nas quais abundam canálise que foram Freud, M. Klein, psicólogos do múltiplos e distintos vértices interpretativos. ego desde Hartmann até M. Mahler, Kohut, Lacan, Assim, os analistas mais ligados às raízes Winnicott e Bion. freudianas ficarão mais atentos à livre associação Uma vez formada a interpretação na mente do de idéias do paciente, buscando reconhecer a pre- analista surgem inúmeras outras questões como sença das pulsões, sobretudo as manifestações do aquelas que forma interrogadas no início deste desejo, intimamente ligadas às vivências edípicas, capítuloe que fundamentalmente dizem respeito à com o respectivo cortejo de ansiedades e defesas, sua função de comunicação vinculadora com o pa- sendo que a interpretação consistirá em trazê-las ciente do inconsciente para o consciente. Aqueles que são seguidores mais fiéis dos postulados kleinianos privilegiarão as relações objetais internas, com o ALGUNS QUESTIONAMENTOS RELATIVOS inevitável acompanhamento das fantasias incons- À INTERPRETAÇÃO cientes, ansiedades de aniquilamento decorrentes da pulsão de morte, defesas primitivas, com as con- Muitos aspectos relativos à arte de interpretar seqüentes culpas e necessidade de reparação. Até continuam sendo polêmicos entre os psicanalistas, certa época, as interpretações dos analistas klei- valendo a pena abordar mais detidamente alguns nianos deveriam ser sempre formuladas no “aqui- deles, sendo que, sempre que possível, emitirei a agora-comigo” transferencial e costumavam privi- minha posição pessoal em relação aos mesmos. legiar os aspectos sádico-destrutivos, ser dirigidas a objetos parciais e órgãos anatômicos, como uma tentativa de contatuar com as arcaicas experiências emocionais. Interpretação “Superficial” e “Profunda” Vale consignar que nas últimas décadas os prin- cipais autores kleinianos vêm gradativamente mo- Comumente existe, por parte dos psicanalistas, dificando a sua técnica interpretativa, em diversos um certo juízo pejorativo ao que se denomina “in- aspectos. Para dar um único exemplo, vale citar terpretação superficial” e, inversamente, uma res- Rosenfeld, cujos primeiros trabalhos importantes peitosa adimiração pela “profunda”. Em meu modo com pacientes psicóticos revelam o quanto ele ni- de entender, esta última não deve ser medida uni- tidamente centrava as suas interpretações na pre- camente pelo grau de profundidade das evolutivas sença da “inveja primária” e os acompanhantes de camadas primitivas da mente que a interpretação ódio destrutivo e controle onipotente. Esse mesmo pretendeu atingir; antes disso, creio que o critério autor, da mesma forma como sucedeu com outros deve ser o de se ela conseguiu, ou não, ir “pro fun- pós-kleinianos importantes, como Bion por exem- do” das necessidades e ansiedades emergentes no plo, modificou a sua posição em relação à inveja paciente em um dado momento da situação psica- primária, tal como aparece em seu último e póstu- nalítica. Visto por este vértice resulta ser interes- mo livro Impasse e interpretação (1988), na qual sante o fato de que as interpretações realmente “pro- Rosenfeld deixa claro que a “interpretação da in- fundas” são as “superficiais”, no sentido de que veja deve se dirigir às defesas contra ela (narcisís- elas entram em um contato com o que está palpi- ticas, maníacas ou melancólicas) e às conseqüên- tando na superfície emocional do paciente. cias dela (dor, vergonha, humilhação e culpa)...A Dentro desse contexto, confesso que não con- interpretação não deve, pois, enfatizar a inveja sigo entender por que ainda na atualidade muitos propriamente dita, repetidamente, mas sim as con- autores, e muitos psicanalistas de larga experiên- seqüências que inibem a capacidade de amar. A cia, continuam se questionado se é válido interpre- inveja propriamente dita somente diminui quando tar na transferência, desde as primeiras sessões. Par- o paciente sente-se aceito, respeitado e sabe que ticularmente, interpreto, inclusive nas sessões pre- tem um espaço para pensar, contestar e crescer”. liminares de avaliação, desde que a interpretação seja de natureza “compreensiva” (que é muito di- 382 DAVID E. ZIMERMAN ferente de uma “disruptiva”, por exemplo, como ção quanto mais espontânea ela for, sendo que o explicitarei mais adiante), ou seja, que ela tenha o nível, grau e a oportunidade dela serão ditadas pelo dom de fazer com que o paciente sinta-se profun- sensibilômetro do analista para cada situação ana- damenente entendido, assim aliviando as suas for- lítica em particular. tes ansiedades iniciais e promovendo a semeadura de uma necessária aliança terapêutica. Um exemplo banal disto: na entrevista inicial Via “Di Porre” ou “Di Levare”? de avaliação, uma senhora deprimida que buscava tratamento analítico, enquanto relatava os seus prin- Não custa lembrar que Freud (1905) mencio- cipais motivos, repisava com freqüência o quanto nando Leonardo da Vinci afirmou que uma inter- ela “tem procurado por pessoas que sejam amigas pretação, tal como acontece na criação das obras de verdade, porém que mais cedo ou mais tarde ela de arte, pode agir tanto com o analista pondo algo tem sido enganada por todos, que se fazem de bon- dentro do paciente (como faz o pintor diante de zinhos mas que sempre a abandonam depois de a sua tela: é a via di porre) ou retirando os excessos explorarem”. Eu pergunto se algum de nós contes- (como na escultura: é a via “di levare”) do que re- ta que essa paciente está “pedindo”, embora de for- sulta o afloramento de algo que já preexistia em ma inconsciente, para ser compreendida (e inter- um estado de encarceramento à espera de uma li- pretada) quanto à sua expectativa de que ela en- bertação (um notável exeemplo disto é a série de contre no analista uma pessoa verdadeiramente esboços de esculturas de Michelangelo, que com- amiga e prestimosa, ao mesmo tempo em que ela põem o conjuncto “Os Escravos” que podem ser está muito assustada e angustiada diante da pers- vistos no museu Uffizi, em Florença). A tendência pectiva de que venha a sofrer um novo fracasso atual dos psicanalistas é dar uma valorização mui- afetivo, isto é, que esta pessoa nova – o analista – to superior à via di levare, com o que eu concordo, “mais cedo ou tarde” venha a decepcioná-la, ex- desde que fique claro que que nem sempre “pôr plorando o seu dinheiro, valores e esperanças para algo” é o mesmo que sugestionabilidade ativa ou depois abandoná-la?. Exemplos asim são diuturnos alguma forma de im-posição na mente do pacien- e infinitos. te, sendo que em inúmeras situações, especialmen- O importante é não confundir interpretação “su- te com pacientes muito regressivos, torna-se indis- perficial” com “supérflua”, esta última significada pensável que o analista ponha (ou re-ponha) no com o sentido de inócua, estereotipada ou tauto- psiquismo do paciente algo que preencha os seus lógica, isto é, o terapeuta repetir a mesma coisa vazios existenciais, da mesma forma vindo suple- que o paciente disse, embora o faça com outras mentar funções do ego que não foram suficiente- palavras. mente desenvolvidas na infância do paciente. A propósito da sugestionabilidade acima referida, não é possível ignorar o fato de que por mais que o Conteúdo ou Defesas? analista cumpra a regra da abstinência, quer ele queira ou não, sempre o seu discurso veicula al- Um outro questionamento correlato ao anterior gum tipo de sua ideologia particular. é se as interepretações devem ser dirigidas prioritariamente ao conteúdo (pulsões, fantasias inconscientes,etc) ou às defesas (que constituem Vale a Inclusão de Parâmetros? as diversas modalidades resistenciais). Igualmen- te, até uma certa época pioneira, os psicanalistas Esta questão alude à polêmica entre muitos au- discutiam se as interpretações deveriam obedecer tores quanto à validade, ou não, de que indo além a uma ordem seqüencial, camada por camada, da das interpretações clássicas, o analista também per- superfície para a profundidade, como postulava mita a inclusão de alguns parâmetros (na concei- Reich (1934), em uma equivocada crença de que a tuação psicanalítica empregada por Eissler, 1953), história do processo analítico reproduziria linear- como é o caso de ele responder diretamente a cer- mente os passos da história do analisando. tas perguntas do analisando, prestar algumas infor- Não me parece que restem dúvidas entre os mações (por exemplo, indicar nomes de médicos, psicanalistas da atualidade em relação a tais aspec- advogados, etc), fazer algumas modificações do tos e a outros equivalentes, porquanto prevalece enquadre e, principalmente, trabalhar com a um consenso geral de que tudo ocorre simultanea- extratransferência, com a inclusão de outras pes- mente e que tanto mais eficaz será uma interpreta- soas no contexto da interpretação. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 383

Pessoalmente, mantenho a coerência com as Interpretação ou Atividade Interpretati- mesmas posições anteriores, isto é, não vejo va? incoveniente nenhum desta prática, desde que o terapeuta esteja bem seguro da preservação do seu lugar e papel de psicanalista e consiga, portanto, Creio ser útil estabelecer uma diferença entre discriminar a possibilidade que os parâmetros es- “interpretação propriamente dita” e “atividade in- tejam patogenicamente a serviço de atuações e con- terpretativa” (capítulo 37). A primeira consiste no tra-atuações. tipo de interpretação clássica que se destina a tor- nar consciente o conflito inconsciente, com as res- pectivas pulsões, ansiedades e defesas, que estão sendo reproduzidas transferencialmente no campo Interpretar Sistematicamente no analítico. “Aqui-Agora-Comigo”? Atividade interpretativa, por sua vez, designa a utilização, por parte do analista, de outros recur- Esta é uma questão altamente controvertida sos, como é o emprego de interpretações extratrans- entre os psicanalistas, e pela sua importância, mais ferenciais, a valorização da realidade exterior do adiante, no subtítulo “Interpretação e Transferên- paciente, o assinalamento de contrastes e parado- cia”, farei considerações mais amplas e explícitas. xos, o clareamento daquilo que o analisando ex- Por ora, quero registrar a instigante afirmativa de pressa de um modo confuso ou ambíguo, a valori- H. Segal, durante a sua estada em Buenos Aires, zação das distintas formas de linguagem não-ver- em 1958, tal como é mencionado por Etchgoyen bal e, sobretudo, a utilização de confrontos e de (1987): “...ela combateu esta postura interpretati- perguntas indagatórias que promovam a abertura va e teria afirmado que a insistência em interpre- de novos vértices e que instiguem o paciente ao tar exclusivamente em termos da situação transfe- exercício da capacidade para pensar, sob a forma rencial o que faz no fim das contas é satisfazer o dele estabelecer correlações e fazer reflexões. Es- narcisismo do analista e criar uma situação de tes aspectos talvez fiquem mais claros quando abor- megalomania, onde o analista é tudo para o pa- darmos, mais adiante, o tópico referente a como ciente, quando na realidade ele está simplesmente agem as interpretações. refletindo um objeto que vem do passado”. Des- contando o exagero contido nesta afirmativa, por- quanto essa “postura interpretativa” pode estar re- Tem Relevância a “Pessoa Real” fletindo nada mais do que uma fidelidade do ana- do Psicanalista? lista à sua formação oficial, concordo integralmente com A. Green (1995, p. 150) que afirma o fato de que o uso exclusivo desse tipo de interpretação sis- Este é um outro ponto altamente controvertido temática torna a análise um processo “terrivelmen- entre distintos autores. Particularmente, filio-me te empobrecedor”. entre aqueles que encaram o fato de que a análise Assim, como tantos outros, também sou con- contemporânea valoriza sobretudo a concepção de victo de que “uma análise sem interpretações não que ela é um campo analítico (tal como foi descri- é uma análise e ela não pode progredir, no entan- to pelo casal Baranger, 1961) e, como tal, implica to uma análise feita feita exclusivamente com in- em uma permanente interação de Vincularidade terpretações tampouco é concebível”. Indo além, entre analista e analisando; portanto, o papel do não resta dúvidas quanto ao fato de que, embora psicanalista deixou de ser unicamente o de um pri- haja transferência em tudo, nem tudo na análise é vilegiado observador, mas, sim, ele é um ativo par- transferência e que, muitas vezes, o psicanalista ticipante, além de um agente de modificações do deve dispender um largo período de tempo no pro- referido campo analítico. cesso analítico construindo uma “neurose de trans- Dentro dessa linha de concepção, admite-se que ferência”, a partir de uma abordagem extratransfe- o próprio aporte de “material” por parte do pacien- rencial. te, assim como as suas manifestações resistenciais e transferenciais, podem estar sendo fortemente induzidos pela influência da ideologia do analista, pela sua realidade psíquica e pela maneira real dele ser, de tal sorte que teremos que concluir que a pessoa do analista não pode ficar reduzido unica- mente à condição de um representante do mundo 384 DAVID E. ZIMERMAN dos objetos internos do analisando. Acredito que formulações, enquanto um outro será espirituoso e um exemplo simples dessa influência do analista talvez empregue figuras de metáforas; e assim por no curso da análise pode estar contido nestas per- diante, em um número de combinações quase infi- guntas: “Quais são os critérios de normalidade ou nitas. de patologia adotados pelo analista em relação aos O que importa é o fato de que a técnica é que seus pacientes”? ou ainda: “Qual o critério de cura deve manter inalterada nos seus princípios básicos, que ele tem em mente, e este coincide com o de seu independentemente da variação dos estilos. Aliás, analisando?... entendo ser perfeitamente válido que a formulação Assim, acredito que uma bem-colocada pergun- das interpretações seja temperada com imagens ta do analista pode funcionar como uma interpre- metafóricas, uma vez que, como asseverou Freud, tação, enquanto, em contrapartida, uma clássica “o pensar em imagens está muito mais perto dos interpretação formal, especialmente quando formu- procesos inconscientes do que pensar em palavras, lada em um automático transferencialismo, ou com já que o pensamento em imagens é mais antigo e um ranço tautológico (repetição daquilo que o pa- essencial na infância”. ciente já dissera com as suas próprias palavras) ou, No entanto, não custa alertar que determinados ainda, como um sistemático reducionismo às suas estilos interpretativos podem exercer um efeito premissas teórico-técnicas podem ter como resul- nocivo ao livre curso do processo analítico, e se tado não mais do que uma intelectualização, dou- constituírem em erros técnicos, podendo inclusive trinação ou outras formas igulamente estéreis do exercer um resultado patogênico. Dentre estes úl- ponto de vista de promoção de mudanças psicana- timos, cabe registrar aqueles estilos de natureza líticas. superegóica (as interpretações, disfarçadamente, Indo mais longe, acredito firmemente que a ati- estão sempre veiculando acusações, cobranças e vidade interpretativa do analista também deve su- expectativas a serem cumpridas); pedagógica (às plementar uma função que muitos pacientes, parti- vezes, elas constituem-se como verdadeiras “au- cularmente aqueles que são muito regressivos, não linhas”); doutrinária (pelo uso de uma retórica – excercem porque nunca a desenvolveram ou por- que é a arte de convencer aos outros – e com um que a mesma ficou estagnada e bloqueada no curso possível vício de o analista querer “confirmar” ou de suas etapas evolutivas. Refiro-me à função-alfa, “demonstrar” que a sua interpretação é correta); termo com que Bion designa aquela imprescindí- deslumbradora (de ocorrência freqüente nas for- vel função da mãe (ou do terapeuta na situação psi- mulações de analistas excessivamente narcisistas e canalítica) de emprestar as suas funções de ego – que estão mais interessados em brilhar com um como a de perceber, conhecer, pensar, discriminar, “bien-dire” do que propriamente num “dire-vrai”, significar, nomear, etc, – durante algum tempo, até com um provável risco de o analista des-lumbrar que a criança (ou o paciente) tenha condições de (tirar a luz) de seu paciente. utilizá-las de forma autônoma. No processo analí- Dentre tantos outros mais estilos prejudiciais, tico o desenvolvimento dessas capacidades egóicas vale destacar aquele que costumo denominar ping- não depende unicamente das interpretações, por- pong, pelo fato de que o analista mantém com o quanto, de uma forma insensível, a aquisição delas seu analisando um bate-rebate, de tal sorte que não também pode acontecer como decorrência de uma se formam espaços para silêncios, os quais são ne- identificação com as de seu analista, com o modo cessários, entre outras razões para que o psicana- autêntico de como ele as utiliza no curso das dife- lista exerça a sua função de continente e igualmen- rentes e múltiplas experiências emocionais da aná- te para que o paciente exerça a indispensável fun- lise. ção de pensar as suas impressões, sensações e ex- periências emocionais, muito particularmente aque- las que foram suscitadas pelas intervenções do ana- Importa o Estilo Pessoal do Psicanalista? lista. Igualmente pode esterilizar a eficácia de uma interpretação o estilo “além disso...” que muitos Como consideração inicial é útil lembrar a fra- analistas empregam após terem formulado adequa- se de Buffon de que “o estilo é o homem”, o que damente a interpretação essencial, de modo a pros- nos dá uma medida da importância desse aspecto. seguirem acrescentando mais e mais aspectos que Igualmente vale consignar que cada analista deve acabam diluindo àquela que já era suficiente. É cla- manter-se fiel ao seu estilo peculiar, que varia de ro que muitos outros prejudiciais estilos de inter- um para outro: algum de nós será mais silencioso, pretar poderiam ser acrescentados. outro mais loquaz; um será curto e seco nas suas FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 385

Quais São os Elementos Essenciais de uma tal do analista que venho chamando de bússola Interpretação. Como Elas Agem? empática, que, se estiver sintonizada com o estado mental do analisando, constitui-se talvez no ele- mento mais importante relativo ao fato de que nem De forma sumarizada pode-se dizer que cinco sempre uma interpretação correta é eficaz, e vice- são os elementos essenciais de uma interpretação, versa. sendo que de alguma forma eles estão sempre pre- Em relação aos outros dois itens, a finalidade e sentes e vinculados entre si. São eles: 1) Conteú- o destino das interpretações, pela sua relevância e do. 2) Forma. 3) Oportunidade. 4) Finalidade. 5) pelo fato de que nem sempre, parece-me, a litera- Destino das interpretações na mente do analisan- tura dá o necessário destaque, justificam a abertu- do. ra de subtítulos específicos. Em relação ao Conteúdo, já frisamos antes, o importante é que ele seja fruto de sucessivas trans- formações que as mensagens verbais e pré-verbais vão produzindo na mente do analista até que ele FINALIDADES DA ATIVIDADE encontre a nomeação necessária. Não custa enfa- INTERPRETATIVA tizar o fato de que o conteúdo que ele seleciona para a sua interpretação, dentre de tantas outras Creio que todos os analistas concordam com o possibilidades, está intimamente conectada com o fato de que na atualidade não basta dizer “então eu seu tipo de escuta daquilo que o paciente está emi- interpretei que...” porquanto falta sabermos para tindo e que provoca ressonâncias em sua realidade quem foi dirigida a interpretação, ou seja, para qual psíquica. Esta afirmativa deve ser complementada personagem que habita o interior do paciente e que com a interessante postulação da psicanalista fran- nesse momento está falando por ele e de dentro cesa H. Fainberg (1995) quanto à importância, por dele (pai, mãe? E se for um desses, trata-se do lado parte do analista, de como ele escuta a escuta (do amigo ou o tirano deste pai ou mãe? etc, etc). Igual- analisando). mente cabe perguntar para qual “parte” do psi- A Forma de como o conteúdo será formulado quismo do analisando ela pretende atingir (a “par- é de uma importância extraordinária, muito parti- te psicótica da personalidade” ?, a “não-psicótica”; cularmente com pacientes bastante regredidos e o “falso self”?; a forma de utilização das funções cuja atenção está muito mais voltada a mínimos egóicas? Quem sabe, a interpretação visa denunci- detalhes provindos do analista (de molde a querer ar um conluio perverso entre distintas e contradi- saber se pode confiar nele, já que não confia em tórias partes que coabitam no self do paciente e seus objetos internos) do que propriamente inte- que inconscientemente ele está tentando reprodu- ressado naquilo que lhe está sendo dito. Uma ana- zir com a pessoa do analista? E assim por diante. logia que me parece válida é a de comparar esta Mais importante que isto: com qual propósito situação com a de uma mãe que está amamentando o psicanalista está emitindo a sua interpretação? o seu bebê, sendo que tão importante como o leite- Desde logo, deve ficar claro que conforme for um alimento é a forma de como ela o segura, embala, dado momento da situação e do processo analítico, olha... deverá variar a finalidade da atividade interpretati- Ainda em relação à forma de o analista inter- va, sendo que, em um esquematismo didático, acre- pretar, é imprescindível enfatizar a importância da dito que podemos discriminar a seis tipos de inter- voz, com as respectivas tonalidades e modulações pretação, seguindo o critério de sua finalidade: 1) vocais, sendo que alguns autores chegam a consi- Compreensiva. 2) Integradora. 3) Disruptora. 4) derar a voz do analista como uma espécie de obje- Instigadora. 5) Nomeadora. 6) Reconstrutora. to transicional entre aquele que fala e aquele que 1. Interpretação compreensiva alude àquela que ouve, quando ambos estão em um vínculo de uni- pode e deve ser formulada desde as entrevistas pre- dade diádica. Da mesma maneira, vale lembrar que liminares (e também, naturalmente, no curso de toda as considerações tecidas a respeito do estilo inter- análise), porquanto a sua finalidade maior é a de pretativo fazem parte inerente do que estamos par- fazer com que o paciente sinta que as suas angústi- ticularizando como a forma de interpretar. Em re- as e necessidades estão sendo com-preendidas e sumo, ocorre-me aventar que a forma, por si só, contidas e por conseguinte, ela ajuda a construir pode funcionar como sendo uma interpretação. uma necessária aliança terapêutica e um empático A Oportunidade do ato interpretativo consiste clima de trabalho. Atrás, neste capítulo, foi referi- naquilo que todos aprendemos como sendo o do um trivial exemplo disto (a sessão de avaliação timing, o qual deve ser derivado de um estado men- de uma paciente deprimida). 386 DAVID E. ZIMERMAN

2. Interpretação integradora, como o nome diz, mumente com as características que Bion descreveu tem a finalidade de promover a integração das par- com a denominação de Mudança catastrófica) que tes do self do paciente que estão dissociadas e possibiltará ao paciente avançar para um projeto de projetadas, tanto fora dele, sob a forma de múlti- vida voltado para um verdadeiro “vir a ser”. plas identificações projetivas, como também den- 5. A interpretação nomeadora, tal como o ter- tro dele mesmo. Nesta última hipótese, é de espe- mo designa, alude à importantíssima função de que cial importância, conforme postula Bion, que o o psicanalista, mercê do exercício de sua função- analista “apresente” o analisando a uma “parte” dele alfa, acolha as cargas projetivas do seu paciente, próprio que ele conscientemente desconhece, mas pense nelas, descodifique, transforme, signifique e que pode estar funcionando ativa e intensamente, fialmente dê-lhes um nome. Conquanto este aspec- como seria o caso de sua “parte psicótica da per- to da interpretação seja essencial em qualquer aná- sonalidade” (Bion), ou a do seu “falso self” (Winni- lise, não resta dúvida que ela é prioritária e vital cott), ou a de um “conluio perverso” (Steiner) etc, para pacientes que sejam altamente regressivos, e etc. Essa forma de interpretação integradora pro- cuja angústia manifesta-se pela forma que Bion move o ingresso na posição depressiva, além de descreve como terror sem nome, justamente pelo também facilitar que o paciente resgate valores, fato, creio eu, de que os primeiros registros de ani- capacidades e identificações que estão atrofiadas e quilamento foram impressos no ego como “repre- esvaziadas. sentação-coisa” e não atingiram o nível de “repre- 3. Com o nome de Interpretação instigadora sentação-palavra”, segundo a conhecida termino- quero referir-me àquelas intervenções do analista logia de Freud. Este último aspecto é particular- que, sem serem interpretações propriamente ditas, mente significativo nas situações analíticas em que exercem, contudo uma importante função interpre- o analista insiste exageradamente para que o pa- tativa, porquanto elas vão instigar que o analisan- ciente verbalize a angústia que diz estar sentindo, do abra novos vértices de percepção, conhecimen- enquanto este, com toda razão, também insiste que to e reflexões sobre as suas atuais e antigas expe- não encontra as palavras (daí “Terror sem nome) riências emocionais, de modo a estimulá-lo (e para expressá-las, e não raramente nestas condi- educá-lo) a pensar e assim fazê-lo assumir o seu ções, o vínculo analítico descamba para um clima quinhão de responsabilidade em relação à elas. Não polêmico. custa lembrar que na psicanálise contemporânea, 6. A interpretação reconstrutora designa o fato tanto quanto o clássico propósito de “tornar cons- de que o analista efetiva como que uma “costura” ciente o conflito inconsciente” desde Bion, é igual- entre as experiências emocionais atuais que estão mente fundamental o exercício e desenvolvimento sendo vividas e ressignificadas na análise e aque- da capacidade para pensar as vivências emocio- las experiências análogas do passado, tal como elas nais, de modo a extrair uma aprendizagem com foram distorcidas pelas fantasias inconscientes e essas experiências pelos significados que foram imputados pelos pais, 4. A interpretação disruptora – termo que tomo educadores e cultura vigente. Penso ser útil acom- emprestado de M. Baranger (1992) – e que Bollas panhar aqueles autores que se referem ao conceito (1992), de forma equivalente, denomina como des- de “construção”, de Freud, para designar a função construtiva – consiste no ato de o analista tornar ego- construtiva das interpretações durante o curso da distônico aquilo que, embora seja doentio, está inte- sessão, enquanto “reconstrução” fica reservada para grado na estrutura psíquica do paciente de uma ma- significar as modificações ocorridas ao longo do neira egossintônica. Um primeiro exemplo que me processo analítico e que permitem re-construir o ocorre a respeito disto é o que se refere às ilusões histórico genético-dinâmico evolutivo do analisan- narcisistas de muitos pacientes, as quais devem ser do, ao mesmo tempo que a recomposição dos ne- desfeitas para permitir a passagem do registro ima- xos históricos que estavam dissociados entre si, vão ginário para o simbólico. Talvez não exista expe- lhe propiciar uma “continuidade existencial”, com- riência analítica mais dolorosa do que aquela que, ponente importante do senso de identidade. por via das interpretações disruptivas, levem o ana- lisando a reconhecer que, de fato, ele nunca foi aquilo que ele acreditava ser, imaginava que os outros pen- DESTINO DA INTERPRETAÇÃO NA MENTE savam dele e que, muito provavelmente, nunca virá DO ANALISTA a ser. Nesses casos, será unicamente por meio da penosa elaboração desta des-ilusão das ilusões Um dos riscos de que uma interpretação resul- narcisísticas, que será possível uma mudança (co- te ineficaz (é diferente de incorreta) é que ela incida FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 387 unicamente sobre o que o paciente fala e, não so- acredita na ilusão de que uma interpretação corre- bre o que ele diz, faz e, sobretudo, sobre quem re- ta do seu analista seja suficiente para aliviar o seu almente ele é, assim contribuindo para que ele per- sofrimento ou fazê-lo crescer e não que a interpre- maneça oculto sob as várias formas resistenciais tação visa mais do que a tudo fazer com que ele manifestamente imperceptíveis. Da mesma forma ativamente estabeleça correlações e interconexões a interpretação resultará estéril se ela não vier acom- dentro dele mesmo e que assuma o seu quinhão de panhada por uma legítima “atitude psicanalítica responsabilidades e eventuais culpas, ou seja, que interna” do terapeuta, isto é, se não houver uma ingresse nas dores da posição depressiva. Nesses plena sintonia entre o que ele diz e o que, de fato, casos, é comum que tal paciente proceda a uma sente, faz e é!.. Assim, por exemplo, não adianta dissociação da interpretação: aceita a parte que lhe assinalar corretamente os aspectos obsessivos do traz alívio e desvitaliza a que o faria sofrer. paciente se o analista estiver agindo e interpretan- Uma outra forma de dar um destino inócuo às do de forma exageradamente obsessiva, etc., as- interpretações é aquela que foi descrita por Bion sim como não basta ele falar de amor, se não o fi- com o nome de ataque aos vínculos, sendo que zer com amor. esses vínculos atacados tanto são os intra-subjeti- O que estou pretendendo destacar é a impor- vos (por exemplo, os que ligam um pensamento a tância na situação analítica do estado mental não outro pensamento, ou a um sentimento,etc., etc.) só do analisando, mas também do analista, sendo como também eles podem ser intersubjetivos, em que ambas as possibilidades podem desfigurar, es- cujo caso o paciente inconscientemente age no sen- vaziar e esterilizar totalmente a eficácia interpreta- tido de impedir a capacidade perceptiva do seu tiva, por mais exatas que as interpretações estejam analista. Esta última forma de ataque aos vínculos sendo do ponto de vista de entendimento daquilo pode resultar de uma maciça invasão de identifica- que está se passando com o paciente. Assim, pode ções projetivas na mente do terapeuta, de modo a acontecer que as interpretações resultem infrutífe- provocar-lhe fortes e bloqueadores efeitos ras, no caso de o analista se mantiver formulando contratransferenciais de confusão, irritação, tédio, em um nível de pensamento simbólico, enquanto o impotência, paralisia, etc. estado mental do paciente estiver, por exemplo, em É útil esclarecer que a indução deste dificílimo um nível de “equação simbólica”, ou dominado pela estado contratransferencial provém da “parte sua “parte psicótica da personalidade”, em cujo psicótica da personalidade” do analisando e tanto caso haverá predominância obstrutiva de onipotên- pode funcionar como uma importante forma de cia, onisciência, prepotência, alucinose, excessivas comunicação de sentimentos primitivos e inoni- identificações projetivas, evitação das verdades mados (quando predomina a pulsão de vida) como substituindo-as pelas diversas formas de negação, também pode estar a serviço de uma obstrução falsificações e mentiras, etc. destrutiva, por vezes definitiva e irreversível, quan- No presente capítulo, vamos nos limitar à par- do houver uma acentuada predominância de um ticipação do analisando no processo de esteriliza- arrogante triunfo narcisista aliado à pulsão de morte. ção das interpretações, o qual, de forma inconscien- Da mesma maneira, em situações analíticas mais te, está a serviço da mais séria forma resistencial, corriqueiras, todos conhecemos bem o quanto de- que é a resistência às mudanças verdadeiras. É terminadas organizações caracterológicas podem claro que este processo obstrutivo pode acontecer desviar a finalidade da interpretação para outro fim, episódica e periodicamente em qualquer análise de que não o da aquisição de um insight afetivo. As- evolução exitosa, no entanto em muitos analisandos sim, há uma forte possibilidade de que analisandos ela pode adquirir uma rígida estruturação perma- de forte predominância obsessiva utilizem as in- nente, como é no caso daqueles que são portadores terpretações como um modo de reforçar o seu ar- de uma forte organização narcisística patológica. senal defensivo; ou de os fóbicos se relacionarem Um exemplo disto é o fenômeno de reversão da com elas de maneira evasiva e evitativa; pacientes perspectiva, tal como Bion o conceituou, e que negativistas que desqualificam todas as interpreta- consiste no fato de que o analisando nestas condi- ções do analista, muitas vezes com um propósito ções de couraça narcisista costuma concordar ma- inicial de uma diferenciação estruturante de sua nifestamente com as colocações do seu analista, individuação, a exemplo da criança que ensaia o enquanto latentemente ele as desvitaliza, reverten- exercício do “não”, ou do adolescente que se posi- do-as às suas próprias premissas de crenças e valo- ciona contra tudo que vem dos seus pais; de forma res. Um outro exemplo pode ser o de um paciente análoga, pacientes paranóides e masoquistas em- em estado regressivo-simbiótico-parasitário que prestarem, sistematicamente, uma significação 388 DAVID E. ZIMERMAN superegóica que faz substituir a aquisição de insight ser considerado, nas fantasias da criança (ou do por uma atitude defensiva contra o que ele julga paciente, na situação analítica) pelo viés de suas estar sendo acusações ou cobranças por parte do funções fisiológicas (por exemplo, o leite materno seu analista e assim por diante. nutre ou envenena?) Esta última possibilidade deve levar em conta a hipótese – nada rara – de que, subjacente à inter- pretação formal, o analista esteja realmente cobran- INTERPRETAÇÃO E TRANSFERÊNCIA do, acusando ou exigindo do paciente, tal como foi explicitado antes, no tópico referente a uma possí- Conquanto algumas considerações já foram vel patogenia do estilo de o analista formular as antes mencionadas sobre este importante tema, aqui suas interpretações. cabe ressaltar a importância de diferenciarmos a Ainda vale destacar uma outra forma comum, ineterpretação da transferência quando formulada embora pouco referida, de o paciente anular o seu na (dentro da) situação transferencial, daquela ou- penoso confronto com interpretações mudancistas, tra que podemos chamar de “transferencialismo e que consiste no fato de que ele expõe as suas reducionista”. A última expressão designa aquela crenças (geralmente de natureza narcisística, em- atitude estereotipada do analista – ainda bastante bora disfarçadas por uma auréola de vítima da freqüente – de reduzir tudo o que ele ouve de seu incompreensão e inveja dos outros) de uma forma paciente a um sistemático “isto é aqui-agora-comi- bastante convincente e categórica, com o propósi- go-como lá e então” a ponto de representar um sé- to inconsciente de forçar efeitos no analista para rio risco de que as interpretações se transformem que este concorde com as suas teses, assim conse- em chavões frios e mecânicos, em pouco tempo guindo não só um importante aliado, mas, também, detectadas pelo analisando, e esta condição pode impede o aporte das antíteses ressignificadoras que lhe conferir um controle sobre o seu analista, com estariam contidas no processo dialético do ato a possibilidade de induzir este a interpretá-lo mal interpretativo do terapeuta. ou a formular as interpretações justamente com o Aprendemos com Freud (1937) que a simples conteúdo que ele, paciente, quer ouvir e, antecipa- concordância do paciente com a interpretação não damente já conhece. Além disso, em pacientes mais é válida como critério de êxito, e vice-versa. Penso regressivos este tipo de interpretação pode refor- ser útil repisar que a adequação da interpretação çar a fantasia de uma díade simbiótica entre ambos deve ser medida não tanto pelos critérios se ela foi e assim dificultar a necessária passagem pelas eta- dinâmicamente correta, mas sim pela sua capaci- pas de diferenciação-separação-individuação. dade de promover auto-indagações, reflexões, Um outro incoveniente do “transferencialismo” ressignificações, reconhecimento do desempeho de decorre do fato de que para muitos pacientes con- papéis e, seguindo a Bion, a passagem de um esta- vêm que o analista seja um objeto unicamente trans- do mental a outro (cesura) acompanhado de uma ferencial porquanto isto evita ter de experimentá- difícil condição psíquica (mudança catastrófica), lo como um objeto novo e imprevisível, daí po- como um indispensável trânsito para um crescimen- dendo resultar uma alta possibilidade de uma aná- to mental (Bion prefere esta expressão no lugar de lise enfadonha e estéril. “cura”), consubstanciada no desenvolvimento da Sumarizando: além do fato de conceder um função psicanalítica da personalidade. controle ao paciente, os outros possíveis inconve- Ainda com relação ao destino que a interpreta- nientes de um automático transferencialismo redu- ção toma dentro da mente do paciente, convém cionista ao “aqui-agora...” dizem respeito à artifi- acrescentar mais dois aspectos: 1) É aquele que cialização do processo analítico (muitas vezes o Racker (1959, p. 92) assinala como sendo a fanta- analista insiste no “aqui...”, enquanto o paciente sia inconsciente que está determinado o tipo de re- ainda nem “está aí”) o fato de que este clichê defi- lação que se estabelece entre a interpretação que o ne e encerra o insight, assim dificultando a abertu- analista está “dando” (como é o leite da mãe para a ra de novos vértices e inibindo o pensar, além de criançinha) e como o paciente a recebe (da mesma que diminui a importância da realidade exterior e forma como o lactente; que tanto pode sugar o ali- exclui os assinalamentos extra-transferenciais; re- mento com prazer, ou com voracidade, ou com um força a condição do analista de sujeito-suposto- negativismo, cerrando a boca, vomitando, evacuan- saber (terminologia de Lacan). do com diarréia, etc. 2) De forma análoga, Bion Penso que um bom exemplo desse reducionismo (1957) destaca que o seio nutridor da mãe (ou do empobrecedor pode ser observado na utilização analista) mais do que um órgão anatômico, deve muitas vezes abusiva da “interpretação” daquilo que FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 389 conhecemos como “angústia de separação”, a qual mencionada de que, de fato, o analisando conse- obviamente existe de forma corrente nas situações gue funcionar muito bem com o seu lado seguro e psicanalíticas e necessita ser devidamente reconhe- autônomo. cida e interpretada. Antes, estou me referindo àque- O que estamos querendo enfatizar – à guisa de las situações nas quais não poucos analistas inter- conclusão – é que não cabe mais na psicanálise con- pretam mecânicamente quase tudo que escutam dos temporânea a interpretação pura e simples daquilo pacientes como sendo manifestações da falta que que o “material verbal” aportado pelo paciente su- estes sentiram dele (se forem as primeiras sessões gere para o entendimento e devolução por parte do da semana) ou como uma angústia antecipatória analista, tampouco se justificando o uso pasteuri- devido à separação que se avizinha (se forem as zado de “interpretações-clichês” (como a da “an- últimas sessões, ou se for véspera de feriados; no gústia com a separação do fim de semana”, nas con- caso de férias, então...). dições em que foram exemplificada) aplicadas; an- Reconheço que utilizei um tom algo jocoso, mas tes, é necessário observar e interpretar de forma isto não deve diminuir a importância do fato que prioritária, como é e como funciona o estado men- muias vezes o analista que assim procede sistema- tal do psiquismo do analisando durante o ato ticamente pode estar desqualificando a condição interpretativo, como ele se liga às interpretações e adulta de seu paciente, que não só pode viver mui- de como ele influencia o estado mental com que o to bem longe dele (no caso de predominar uma re- psicanalista exerce a sua atividade compreensiva e cíproca confiabilidade na relação analítica), como interpretativa. ainda representa uma separação inevitável, neces- Muitas vezes, com pacientes em alto grau de sária e estruturante. Por conseguinte, não adianta regressividade, que não apresenta condições de interpretar a “angústia de separação” de uma for- processar a significação simbólica das interpreta- ma genérica e estereotipada, pelas razões de que: ções, ou que por outras razões as ignoram, é indis- essa angústia tem muitas formas e significados, sen- pensável que mais do que simplesmente des-velar do que muito mais importante que a concreta sepa- o inconsciente reprimido, o analista construa a in- ração por si mesma, é a possível significação que a terpretação juntamente com o seu paciente. O mo- mesma gera na realidade psíquica do analisando e delo que me ocorre para esta última assertiva é o que necessita ser analisada; em segundo lugar por- do jogo do rabisco, de Winnicott (“...faço um ra- que o analista fica insistindo que o analisando “não bisco e você o modifica; depois é a sua vez de con- quer reconhecer que ficou angustiado com a falta tinuar e sou eu que vou modificá-lo...”); ou seja, que ele sentiu dele, analista”, quando, na realida- de forma análoga, creio que naquelas condições de, esse hipotético paciente não sentiu mesmo nada regressivas ou defensivas, podemos construir a in- disto, pela simples razão de que é justamente con- terpretação através de um jogo dialético com o tra tais sentimentos que ele está se defendendo e paciente, um jogo do rabisco verbal. erigiu a sua couraça defensiva além de que tam- bém não devemos descartar a possibilidade antes

CAPÍTULO ções devam ser consideradas dentro da totalidade de cada contexto em particular. A excessiva ampliação conceitual desse fenô- meno tornou-o muito diluído e, logo, menos com- preensivo na sua esencialidade. Creio que, apesar 36 das dificuldades semânticas do termo acting, ele pode ser definido, a partir da situação psicanalíti- ca, como toda forma de conduta, algo exagerada, que se manifesta como uma maneira única de subs- tituir algum conflito ou angústia, que não conse- As Atuações (Actings) gue ser lembrada, pensada, conhecida, simboliza- da ou verbalizada. Tais significados, que serão dis- criminados ao longo deste capítulo, estão direta ou indiretamente contidos nos trabalhos de autores de Na literatura psicanalítica, o fenômeno acting distintas correntes psicanalíticas, sendo que, a se- (neste capítulos os termos “acting” e “atuação” guir, serão mencionadas as contribuições de alguns serão empregados indistintamente) aparece defini- deles, separadamente. do de forma imprecisa e designando distintas sig- nificações. O inegável é que ele se constitui como um dos aspectos mais importantes do processo psi- FREUD canalítico, quer pelos múltiplos significados que comporta, como também pela sua alta freqüência. Em 1901, em Psicopatologia da vida cotidia- Assim, pode-se dizer que alguma forma de “atua- na, ao referir-se aos “atos falhos”, que poderiam ção” surge em toda e qualquer análise, seja de for- ser entendidos como tendo uma origem incons- ma benéfica ou maléfica, manifesta ou oculta, dis- ciente, Freud falou pela primeira vez em “atuar”, creta ou acintosa, dentro (acting-in) ou fora (acting- empregando o termo handein com o significado out) do consultório. de um simples ato-sintoma, que substituía alguma Nas primeiras formulações de Freud, o concei- repressão que estava “proibida” de ser recordada. to de acting aludia tão somente a uma modalidade Mais tarde, ele passou a utilizar a expressão agieren, de resistência que o paciente empregava, com a que no original alemão é bem menos coloquial que finalidade inconsciente de impedir que as repres- a anterior, e que foi traduzida para o inglês com o sões tivessem acesso à consciência, correndo o ris- verbo to act (acting-out) e para o português por co de elas serem lembradas. Constituía-se, portan- atuação. to, em um fenômeno essencialmente pertinente ao Em 1905, no Caso Dora ele introduziu esse ter- processo analítico que, como tantos outros, deve- mo de forma mais explícita, chegando a atribuir a ria ser comprendido e interepretado pelo analista. interrupção da análise por parte da paciente Dora a Aos poucos, esse conceito nodal foi sofrendo am- um “atuar” dela, de certas fantasias não percebidas pliações e sucessivas transformações, de tal sorte por Freud e, portanto, não interpretadas por ele. que adquiriu um significado moralístico, denegri- Textualmente ele admite que... “Dora vingou-se de tório, algo ligado à perversão, chegando ao extre- mim como quis vingar-se do Senhor K, e me aban- mo de designar e se confundir com toda forma de donou como acreditava ter sido abandonada e impulsividade, psicopatia, drogadicção ou delin- enganada por ele. Assim, ela “atuou” uma parte quência. essencial de suas lembranças e fantasias em lugar Embora esse ranço moralístico ainda persista de relatá-las no tratamento”. em alto grau no meio analítico, assim como tam- Em 1912, nas Novas recomendações..., ele bém fora dele, é inegável que a maioria dos analis- emprega esse termo em um contexto das relações tas da atualidade tende a comprender o surgimento existentes entre o “atuar” com os fenômenos da de “atuações” a partir de seus inúmeros outros vér- resistência e o da transferência. tices, e a considerar que um entendimento dos Em 1914, no trabalho Recordar, repetir, elabo- actings permite utilizá-los como um importante rar, o conceito de “atuar” aparece como uma forte instrumento analítico. Esta última possibilidade tendência de se repetir o passado esquecido, sendo implica a necessidade de que o terapeuta sempre que no processo psicanalítico o paciente “atua”, leve em conta a condição básica de que as atua- como forma de resistência, repetindo a experiên- cia emocional reprimida, transferida sobre o ana- 392 DAVID E. ZIMERMAN lista. Nesse texto, Freud assevera que... o paciente AUTORES KLEINIANOS não recorda nada daquilo que esqueceu e repri- miu, porém o atua; ele reproduz não como lem- Em 1930, no trabalho A importância da for- brança, mas como ação, repete-o sem, naturalmen- mação de símbolos, M. Klein estabelece que exis- te, saber que o está repetindo... Por exemplo, o te uma equivalência entre o mundo externo e o cor- paciente não diz que estava acostumado a ser re- po da mãe, sendo que a criança espera encontrar, belde e crítico em relação à autoridade dos pais; dentro do corpo da mãe, fezes, pênis do pai, bebês em vez disso, ele se comporta dessa mesma ma- e outros tesouros. Essa equivalência simbólica en- neira com o analista. tre a fantasia do cenário materno e a realidade do É interessante registrar que, já nesse trabalho, mundo externo permite inferir algo que cerca a Freud intuíra que há um tipo especial de experiên- metapsicologia do fenômeno “atuação”, no senti- cias, para a qual lembrança alguma, via de regra, do de que muitas pessoas podem passar a vida in- pode ser recuperada. Trata-se de experiências que teira “atuando”, como uma forma compulsiva de ocorreram em infância muito remota e não foram alcançar a algo, ou alguém, que é inalcançável. compreendidas na ocasião, mas que subseqüente- Sobretudo a partir da sua concepção de “iden- mente foram compreendidas e interpretadas..., sen- tificação projetiva”, formulado em 1946, é que M. do que elas podem ser convincentemente compro- Klein abriu as portas para um mais amplo e mais vadas pelos sonhos e pela própria estrutura da claro entendimento de como se processam os neurose. actings, por meio de estudos que foram desenvol- Em 1920, a partir de Além do princípio do pra- vidos por outros autores, seguidores dela, Bion prin- zer, a “atuação” será considerado por Freud como cipalmente. um fenômeno ligado ao da “compulsão à repeti- Da mesma forma, as conceituações de M. Klein ção”, portanto inerente à “pulsão de morte”. É bem a respeito das “posições esquizoparanóide e possível que essa conexão entre atuação e pulsão depressiva”, com as respectivas interações entre de morte tenha contribuído para que os psicanalis- ambas, possibilitou uma compreensão de que uma tas a tenham significado sistematicamente com algo das principais razões do surgimento da “atuação” destrutivo do setting analítico e da própria análise. consiste em uma forma de fuga do paciente ante o Em 1938, no seu Esboço de psicanálise, pare- seu temor de enfrentar as dores psíquicas que acom- ce que Freud propõe limitar o termo “atuação” para panham a entrada na posição depressiva. as condutas do paciente que se processam fora da Igualmente, os conceitos kleinianos relativos à situação analítica, porém intimamente ligadas a ela, precoce e terrível “angústia de aniquilamento”, à conforme se depreende de sua afirmativa de que... presença no psiquismo do bebê de objetos parciais é muito indesejável que o paciente atue fora da em permanente interação, e assim como relativos transferência em vez de recordar...isso acarreta ao funcionamento de primitivos mecanismos de- problemas em relação à realidade externa do pa- fensivos, permitiu que, indo muito além de “uma ciente, isto é, para aquilo que lhe sucede durante forma de resistência às repressões”, como foi as outras vinte e três horas do dia. enfatizado por Freud, os psicanalistas passassem a De forma resumida: para Freud, a atuação ocu- considerar que sentimentos como inveja, ansieda- pa o lugar da recordação. Convém lembrar que a des pré-edípicas, aspectos negados, dissociados e palavra “recordar”, de acordo com a sua etimolo- projetados também fossem os responsáveis por gia latina (“re” quer dizer “uma volta ao passado” muitas formas de “atuação”. No mesmo contexto, e “cor, cordis”, significa “coração”), mais precisa- cabe acrescentar a conceituação de M. Klein, de mente do que uma simples lembrança ab-reativa, que a memória não se restringe unicamente a fatos, designa o fato de que antigas experiências emocio- mas, sim, também pode ser uma “memória de sen- nais estão sendo revividas, conscientizadas e timentos” (memory in feelings, 1957), as quais, pro- ressignificadas na situação analítica. Essa postu- vavelmente, podem expressar-se pelos actings. lação de Freud continua a representar uma signifi- Em 1964, o analista kleiniano Rosenfeld traz cativa importância no processo analítico, tendo em uma importante colaboração ao referir-se à exis- vista que “a melhor maneira de esquecer é lem- tência de dois tipos de actings: um, de natureza brar”. parcial, que pode representar ser útil para o pro- cesso analítico e outro de natureza total, ou regres- sivo, que pode ser ameaçador para a preservação do setting da análise. Segundo esse autor, ambos os tipos de “atuação” dependem fundamentalmen- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 393 te do grau de hostilidade de como o paciente, tal desenvolvimento emocional primitivo, en- como quando era criança, distanciou-se dos seus contrar um adequado “continente” que os objetos primitivos, isto é, do seio materno (p. 228). auxiliasse a suportar as frustrações provin- das de dentro e de fora, e, por isso, desen- volveram um ódio contra a necessidade de BION dependência de outra pessoa, substituindo essa angústia por uma série de mecanismos Ao longo da obra de Bion, podemos depreender primitivos, dentre os quais, cabe destacar o quanto as suas originais concepções ampliam sig- nificativamente o entendimento e utilização do fe- a hipertrofia de uma onipotência (que se nômeno acting. De forma resumida, penso que os instala no lugar de “pensar”, já que esse seguintes aspectos devam ser destacados: paciente imagina que “pode” tudo); uma onisciência (no lugar do indispensável 1) Acting como uma forma de evacuação de “aprendizado com as experiências”, já que elementos-beta. Para os que não estão fa- ele imagina “saber” tudo); uma prepotência miliarizados com as idéias de Bion, vale (na verdade, uma “pré-potência” que mas- acentuar que “elementos-beta” referem-se cara sua impotência, assim substituindo o a “protopensamentos”, isto é, a primitivas reconhecimento de seu estado de desam- sensações e experiências emocionais que paro e de fragilidade); um excessivo uso ainda não puderam ser, de fato, pensadas de identificações projetivas, as quais au- pela criancinha, e que, por isso mesmo, mentam à medida que não encontram um somente podem ser “evacuadas”, tanto para continente acolhedor e transformador; um dentro de si mesmo, sob a modalidade de terror sem nome, que refere a fortes angús- “somatizações”, ou para fora de seu corpo, tias desconhecidas (pelo menos, não re- via uma ação motora, que no bebê adquire conhecidas pelo paciente) e que, se não fo- a forma de choro, esperneio, vômitos e, no rem devidamente nomeadas, serão atuadas. adulto, caracteriza as “atuações” na con- 4) Acting como resultante da função “-K”. Faz duta. Essa evacuação dos desprazerosos parte da aludida “parte psicótica da perso- elementos-beta estão à espera de um “con- nalidade” o estabelecimento de um ódio às tinente” da mãe – ou do analista, na situa- verdades penosas, tanto as externas como ção analítica – que, mercê de uma “função- as internas, sob a forma que Bion designou alfa”, em um processo de verdadeira “alfa- com a sigla negativa de K (inicial da pala- betização emocional”, possibilite que aque- vra knowledge, no original em inglês). As- les possam ser pensados, em vez de atua- sim, um paciente cuja mente está saturada dos. por um estado mental tipo “não sei, não 2) quero saber e tenho ódio de quem sabe” Acting como uma forma de comunicação fatalmente estará propenso a substituir o primitiva. Acredito que essa concepção de conhecimento por várias formas de nega- Bion constitua-se como uma importantís- ção, incluída a de acting. Também o “-K” sima contribuição à prática analítica, ten- é responsável pelas diversas formas de do em vista que ela descaracteriza aquilo mentiras, falsificações e mistificações que que costumava provocar um julgamento podem ser empregadas pelo paciente como antecipado do analista, de enfoque negati- uma modalidade de atuação. vo, depreciativo ou moralístico, e possibi- 5) Acting por meio da comunicação verbal. lita-lhe ficar num estado mental de procu- A partir dos estudos de Bion sobre a lin- rar comprender o que o paciente não está guagem e comunicação, os analistas pas- conseguindo dizer com as palavras, porém saram a perceber mais claramente que nem o está comunicando pela linguagem não- sempre o discurso verbal está a serviço para verbal da “atuação”. realmente “comunicar” algo ao interlocu- 3) Acting como manifestação da “parte psi- tor; pelo contrário, o seu propósito incons- cótica da personalidade”. Determinados ciente pode justamente estar visando a uma pacientes não conseguiram, durante o seu 394 DAVID E. ZIMERMAN

não-comunicação, por meio de um “ataque do amado e desejado e, portanto, que ele aos vínculos perceptivos” do analista. Nes- existe!” (Tal como aparece nos capítulos se caso, o terapeuta pode ficar confuso, 14 e 37 deste livro). A recíproca pode ser sonolento, irritado, etc., tudo isso constitu- verdadeira, isto é, um sujeito pode atuar, a indo-se em um acting, porquanto adquire partir de um regressivo refúgio em uma a estrutura de uma tenaz e ativa resistência autarquia narcisista, como uma forma dele ao trabalho analítico. fugir de uma temida sexualidade edípica. 3. A possibilidade de que a atuação possa estar representando alguma forma de OUTRAS CAUSAS E FORMAS DE ATUAÇÃO crescimento. Particularmente, considero esse aspecto interessante e importante, não As modalidades destacadas podem ser resumi- só porque ele não aparece com freqüência das no fato de que o acting se processa como uma na literatura psicanalítica, mas, principal- forma de substituição de uma (ou mais de uma) mente, pelo fato de que, se o analista não dessas incapacidades: para recordar, pensar, sim- estiver suficientemente atento, poderá in- bolizar, conhecer, verbalizar e, inclusive, a de, li- vremente, poder fantasiar. Ademais, vale acrescen- terpretar com um enfoque negativo aquilo tar mais algumas outras possibilidades nos modos que, embora oculta por uma aparência en- de manifestação, assim como nas causas da forma- ganadora, esteja indicando alguma forma ção de actings, como são os seguintes: importante de “mudança psíquica”. Um primeiro exemplo que me ocorre, rela- 1. Uma forma de reexperimentar, no curso tivo a isso, é o de uma paciente que, nos da análise, velhas experiênciais emocio- primeiros tempos de análise, mostrava-se nais mal resolvidas. Muitos autores con- como uma excelente cumpridora de todas sideram que os precursores do acting-out as combinações do setting: era assídua, pon- originam-se no período pré-verbal e na pré- tual, pagava rigorosamente em dia e nas ra- capacidade para pensar, de sorte que o pa- ras vezes que tinha de se atrasar ou faltar, ciente adulto regride a essa etapa evolutiva, telefonava-me a tempo; após alguns anos, a na qual o ato impulsivo-motor da criança paciente começou a chegar atrasada ou a fal- era o seu único meio de obter gratificação tar seguidamente, sem razões justificáveis e e ajuda. Igualmente, o acting pode estar sig- deixou de me comunicar isso por telefone. nificando uma tentativa de preenchimento Contive a tentação de interpretar essa indis- de lacunas afetivas, logo a busca de uma cutível atuação como sendo um ataque dela, reestruturação. Pode servir como exemplo resistência à análise ou algo equivalente, por- dessa eventualidade o fato de que algumas que um sentimento intuitivo alertava-me de vezes uma atuação homossexual, em um pa- que algo importante estava se passando com ciente masculino, esteja significando uma a paciente. De fato, ela ganhara com a aná- irrefreável “busca de um faltante e lise suficiente confiança básica, nela e em estruturante pênis paterno”, por meio de mim, a ponto de fazer um movimento in- uma incorporação anal, tal como apontam consciente de testar se as suas característi- autores seguidores de Lacan. cas de sair-se bem em tudo que fazia, de- 2. Uma fuga de um estado mental para ou- viam-se a uma obediência ao ideal do ego tro. Explico melhor com o exemplo dos ca- plantado por seus pais ou se eram dotes au- sos de “don-juanismo”, cuja intensa atua- tênticos e livres. O interessante é que após a ção na conquista de mulheres pode aparen- análise desses aspectos que motivavam o seu tar uma forte resolução edípica, quando, na acting, aparentemente de rebeldia, e que se verdade, ela pode estar representando não prolongou por muitos meses, a paciente re- mais do que uma “pseudogenitalidade”, tomou a sua atitude de cumpridora das com- que encobre profundas feridas narcísicas binações do enquadre analítico, com a dife- que reclamam uma imperiosa necessidade rença de que, agora, ela o fazia não compe- de “reconhecimento” de que ele está sen- lida por uma ritualística obsessiva, mas, sim, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 395

com um sentimento de liberdade, e quando lise, com a sua versão pessoal, assim conse- ocasionalmente me telefonava era, não por guindo manifestações desqualificatórias por uma obediência decorrente de sua intimida- parte de uma outra pessoa, que, por sua vez, ção, mas sim, por uma consideração a mim. leve adiante o denegrimento do analista, en- Embora esse exemplo de acting que, no quanto o analisando simplesmente faz o re- caso, representava um movimento de cres- lato na sessão, de uma forma algo “ingênua”, cimento analítico possa parecer por demais porém com um discreto toque de triunfo. banal, acredito que ele tenha uma signifi- Exemplos como esse, no qual o paciente faz cação profunda, porque ele se reproduz um jogo de intrigas enquanto permanece com múltiplas variantes equivalentes, no protegido pelo obrigatório sigilo do analis- dia-a-dia do consultório de cada um de nós. ta, poderiam ser multiplicados, sendo que, 4. Uma forma de dramatização do mundo muitas vezes, esses actings processados por interno. Essa modalidade de atuação, tam- meio de outras pessoas que se prestam a esse bém sutil e bastante freqüente, consiste no jogo podem adquirir características malig- fato de que o paciente aciona outras pesso- nas. as a desempenharem e “representarem” de- 6. Acting devido às inadequações do ana- terminados papéis que correspondem ao lista. Bem mais freqüente do que possa pa- script de seu drama original, no qual os per- recer, vou limitar-me a apontar duas cau- sonagens que interagem são os seus objetos sas, nas quais as falhas reais do terapeuta primitivos, sendo o cenário o espaço da sua resultam em alguma forma de atuação do mente inconsciente. É interessante assinalar paciente. A primeira, acontece principal- que as palavras “drama”, “dramatização” mente com pacientes em estado regressi- vêm do grego “drama”, que tem o signifi- vo, quando ele não se sentiu compreendi- cado de “sentimentos que se concretizam em do pelo analista, ou, mais gravemente ain- figuras que agem com movimento e ação” da, quando, somado a isso, ele ainda rece- (conforme citação de Turilazzi, 1979). be “interpretações” que o fazem sentir-se Para ficar em um único exemplo, vale lem- culpado e desqualificado. A segunda pos- brar o quanto a dramatização na situação psi- sibilidade, lamentavelmente não tão rara, canalítica, que aparece nos pacientes de ca- concerne ao fato de que certos desejos proi- racterísticas marcadamente histéricas, ma- bidos e reprimidos no inconsciente do ana- nifesta-se não somente por meio de um “es- lista, por meio da sua linha interpretativa, tilo dramático” e “hiperbólico”, de como eles às vezes com um propósito, não reconhe- fazem suas comunicações verbais, como, cido por ele, de exibicionismo ou voyeuris- também, de regra, virtualmente todas as ses- mo, ou don-juanismo, por exemplo, serão sões desses pacientes são pontuadas pelo satisfeitos por esse analista, por algum relato do “drama do dia”, cuja essência, em acting praticado pelo seu paciente. todos eles, é a mesma, embora os persona- 7. Acting em crianças. Transcrevo um trecho gens envolvidos variem bastante. de um trabalho de B.S. Francisco (1995, p. 5. Uma “escolha” de pessoas que atuam pelo 140) com o qual pretendo sintetizar o pre- paciente. Essa modalidade de atuação nem sente item: “Achamos que constitui um pro- sempre é perceptível pelo analista, porquan- blema específico da psicanálise de crian- to o paciente mantém-se “inocente”, enquan- ças discriminar actig-outs de atos, pois a to ele induz outras pessoas a atuarem por transição de um para o outro é sutil, dife- ele. Todo analista conhece aquele paciente rentemente do adulto, em quem o controle que, como “alguém que não quer nada”, su- da motricidade e o uso predominante da lin- tilmente introduz o assunto sobre analistas, guagem verbal faz com que o ato se desta- mesmo em rodas sociais, de modo a colher que. O analista de crianças tem que pres- informações íntimas de seu terapeuta. Da tar-se a brincar, representar, aceitar, limi- mesma forma, é comum que esse tipo de pa- tar fisicamente, até que as possibilidades ciente atuador conte algum episódio da aná- de mentalização possam ocorrer em seus 396 DAVID E. ZIMERMAN

pacientes. Nesses casos a elaboração de um atuação, isso pode ser um sinal preocupante, conflito – como ocorre no acting-out de porquanto ou esse paciente está exagera- adultos – coincide com o trabalho de ela- damente escudado em uma couraça caracte- boração-instauração da própria mente”. rológica obsessiva, ou o analista está deixan- 8. Acting e mitologia pessoal. No excelente do de perceber algo nesse sentido. artigo acima mencionado (Francisco, p. • Muitos textos psicanalíticos descrevem se- 138), o autor, a partir do mito de Atalanta, paradamente acting-out de acting-in; no traça um intressante paralelo com os mitos entanto, como a essência de ambas situações pessoais que, com configurações distintas, é exatamente a mesma, optamos por denomi- cada indivíduo porta dentro de si. Esse tra- ná-las genericamente de actings. balho conclui afirmando que “...em tais • O que importa ser bem distinguido é a dife- casos a análise mostra que o acting-out não rença que existe entre “atuação”, tal como é um ato isolado, mas, sim, uma concate- está sendo conceituado no contexto deste ca- nação de atos, que se articulam entre si, pítulo, daquilo que não é mais do que uma como o roteiro de um conto, de uma histó- “ação impulsiva”. ria. É na repetição do conto e na articula- • Até há poucas décadas, o surgimento de al- ção de seu encadeamento que se descobre gum acting era mal recebido pelo analista e a revelação, sob forma de metáfora, como sempre era significado como sendo nocivo ocorre na mitologia”. à análise. No entanto, da mesma forma como 9. Contra-acting. É relativamente freqüente ocorreu com os fenômenos da “resistência”, a possibilidade de que o paciente mobili- “transferência” e “contratransferência”, que ze, no analista, um despertar de emoções, igualmente, por longo tempo, foram consi- que o deixem confuso, invadido que ele fica derados por Freud e seguidores como preju- por sentimentos contratransferenciais que diciais à análise, e aos poucos foram reco- nem sempre são perceptíveis, porém que nhecidos como excelentos instrumentos para podem acioná-lo a agir de alguma forma a prática analítica, também o acting está sen- antianalítica. Essas “contra-atuações” tan- do reconhecido como uma importante via de to podem ser discretas e inócuas como po- acesso ao inconsciente. dem atingir o desvirtuamento do setting ins- • A partir das inter-relações que Freud esta- tituído, ou alguma transação comercial, beleceu entre a “resistência” e a “transferên- uma excessiva intimidade social, o extre- cia” cabe dizer que o acting constitui-se mo de um grave envolvimento sexual, etc. como alguma forma particular de resistên- De qualquer forma, um “contra-acting” do cia contra a dor psíquica, ao mesmo tempo terapeuta sempre tem relevância na prática em que também representa ser alguma mo- analítica, como a seguir será enfocado. dalidade de transferência. • Da mesma maneira que aqueles fenômenos acima mencionados, a existência da atuação IMPLICAÇÕES NA PRÁTICA. O PAPEL DO na situação analítica tanto pode ser maléfi- ANALISTA ca, inócua ou benéfica. Ela é maléfica (no sentido de “destrutiva”) quando, pela sua in- Antes de entrar no papel propriamente dito do tensidade, qualidade maligna e uma condi- analista diante do surgimento de actings no decur- ção de se mostrar refratária às interpretações, so da terapia analítica, é útil voltar a pontuar al- em um grau extremo, pode se constituir em guns pontos básicos: uma resistência poderosa que funcione como • As atuações, por parte do paciente, em grau um sério empecilho e, inclusive, pode de- maior ou menor, de uma maneira ou outra, sembocar em um irreversível “impasse psi- motivado por alguma das diversas razões canalítico”, situação que ocorre mais fre- possíveis, inconscientes ou conscientes, qüentemente com pacientes portadores de ocorrem em toda e qualquer análise. Na hi- fortes traços psicopáticos ou perversos. pótese que nunca ocorra alguma forma de FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 397

Todavia, na sua grande maioria, as atuações que nesta última situação a indispensável co- são inócuas porque não representam maior locação de limites deve ser feita por meio de preocupação; e elas se constituem como be- interpretações e somente quando essas se re- néficas (“construtivas”) nas situações em que velarem inoperantes, ao mesmo tempo em que representam uma tentativa de mudança, o grau máximo de “continente” do analista es- como, por exemplo, é o caso de um paciente tiver esgotado é que fica justificada a sua to- exageradamente obsessivo que se permite mada de uma medida extrema de proibição ex- testar a realidade com alguma forma de plícita, dos perigosos actings, inclusive com o acting, em vez de ficar em uma eterna rumi- direito de o analista condicionar isso à conti- nação obsessiva. Assim por diante, exemplos nuação ou à interrupção da análise. equivalentes poderiam ser multiplicados. • As causas mais comuns que disparam o gati- • A “atitude analítica interna” do terapeuta, di- lho dos actings, dizem respeito a alguma for- ante das atuações do paciente, não deve estar ma de o paciente estar revivendo, na situação impregnada e saturada de preconceitos (pré- analítica, as primitivas experiências de “trau- conceitos) de ordem moralística, que, além mas”, com as respectivas sensações penosas de fazer soar a palavra “atuação” como um de “desamparo”. Algumas dessas situações “nome feio”, ainda lhe confere uma conotação mais costumeiras, no curso do processo ana- pejorativa e mobiliza um rechaço. Nesses ca- lítico, se referem ao eventual surgimento de sos, o analista pode estar deixando de reco- “angústia de separação”; a penosa “renúncia nhecer uma possível mensagem inconsciente às ilusões narcisísticas”; a transição para o do paciente, acerca de uma busca dele de vir estado psíquico de uma “posição depressiva”; a conseguir satisfações, ou punições, e espe- assim como os momentos “catastróficos” (se- cialmente como uma importante forma de co- gundo Bion) que acompanham as verdadei- municação primitiva. Além disso, também há ras mudanças psíquicas do paciente. Em to- a possibilidade, antes aludida, de que o ana- dos esses casos, os pacientes estão avidamente lista, devido à saturação da sua mente, não buscando a objetos substitutos que possam consiga perceber quando a atuação esteja sig- preencher os vazios que as referidas vivências nificando algum movimento construtivo. de desamparo provocam no paciente. • Não obstante, é inegável que determinados • A identificação projetiva é considerada como actings adquirem uma perigosa natureza sendo o mecanismo essencial do acting, sen- psicótica, maníaca, perversa ou psicopática, do que a importância disso é complementada assim representando um grave risco de que pelo fato de que ela pode provocar equiva- eles possam comprometer de forma destru- lentes contra-identificações no analista e, por tiva não somente a imagem e a integridade conseguinte, induz a respostas contratrans- do próprio paciente, como também das pes- ferenciais, contra-resistenciais e a contra- soas que ele consegue envolver, inclusive a actings, sendo que a própria interpretação, do analista, e a deterioração da sua análise. eventualmente, possa estar a serviço de al- • Como decorrência imediata disso, cabe levan- guma atuação do analista. tar uma importante questão: está justificado • Finalmente, é imprescindível que se leve em que, em certos casos, imponha-se a necessi- conta a distinção entre o que é contra-acting dade de o analista tomar uma atitude categó- do analista, provocado pelo paciente, e aqui- rica, diretiva, até mesmo proibitiva, incluída lo que está sendo acima de tudo um acting a possibilidade de chamar os familiares desse do analista, provindo unicamente do incons- paciente e partilhar com eles as responsabili- ciente dele próprio, e que pode levar o ana- dades pelas preocupações daquelas graves lisando a contra-atuar. Da mesma forma, atuações que ele tomou conhecimento por também devemos considerar a possibilida- meio do sigilo da situação analítica? Creio que de nada incomum de que a análise possa es- a resposta é afirmativa, sempre que o analista tar contaminada por um, inconsciente e ina- consiga discriminar se a significação da atua- parente, conluio de atuações, entre ambos ção é inócua, construtiva ou destrutiva, sendo do par analítico.

CAPÍTULO Identificações defeituosas. 12) A presença de um contra-ego (é a denominação que venho propondo e que alude a uma “organização patológica” que está instalada no próprio self e boicota o cresci- mento do indivíduo). 13) A presença de inter-rela- 37 ções entre Narciso e Édipo. Em relação ao complexo de Édipo, todos co- nhecemos suficientemente bem as clássicas postu- lações de Freud, para quem as diferentes configu- rações da constelação edípica universal, origina- A Face Narcisista das entre os três e cinco anos (posteriormente, em 1920, Freud reformulou para “dos 2 aos 5 anos”), da Sexualidade Edípica invariavelmente constituíam-se como a essência nuclear de qualquer neurose, mais notadamente, nas histerias. É útil lembrar que Freud plantou muitas semen- Este capítulo também poderia ser titulado “a tes conceituais acerca das inter-relações entre Édipo pseudogenitalidade”, eis que tentará estabelecer as e Narciso. Podem servir como exemplo dessa diversas causas e formas como se apresenta a sexua- afirmativa a sua descrição acerca de Leonardo Da lidade em pacientes adultos que estejam fortemen- Vinci (1910), na qual transparece a díade simbió- te radicados na posição narcisista e que funcionam tico-narcisística que o menino Leonardo mantinha como um simulacro da genitalidade adulta. com a sua mãe como o principal fator etiológico Tanto as denominações “Narciso” como “Édi- do seu transtorno sexual, tal como aparece no se- po” admitem um universo conceitual. Para os pro- guinte trecho: “Assim, como todas as mães insatis- pósitos do presente capítulo, é útil conceituá-los feitas, ela tomou o filhinho em lugar do marido, e, separadamente, de uma forma extremamente resu- pela maturação demasiado precoce do erotismo mida. dele, despojou-o de parte de sua masculinidade”. Para o primeiro deles, utilizarei a terminologia Da mesma forma, em seu célebre Sobre o nar- de posição narcisista (ver capítulo 13) com a qual cisismo, de 1914, Freud estudou as modalidades designo um estado que fundamentalmente caracte- que determinam a escolha de objetos nos casos de riza-se por algum forte grau de indiferenciação, homossexualidade, cuja natureza, vale recordar, tanto entre o “eu” e o “outro”, como também entre pode ser anaclítica (uma busca de fusão com o os diferentes estímulos procedentes das distintas objeto primário) ou narcisística (caso em que, o partes do próprio self. Nessa conceituação, a posi- objeto escolhido representa o que o indivíduo é, já ção narcisista (PN) não se constitui a partir da agres- foi ou quer vir a ser). são, tal como é o caso da posição esquizoparanói- Igualmente em 1931, com o seu trabalho sobre de de M. Klein, mas, sim, precede essa última e os “tipos libidinais”, Freud aludiu ao tipo “erótico- constitui-se em uma forma de assegurar e perpetu- narcísico” como o mais freqüente de todos e no ar a unidade simbiótica, indiscriminada e fusionada qual predomina a necessidade de ser amado sobre com a mãe primitiva. o amar ao outro. No capítulo acima mencionado, destaco as se- Não é demais destacar que, ao contrário do que guintes características da PN que podem ser ob- muitos ainda hoje confundem, Freud não utilizou servadas, de forma total ou parcial, em muitos de o termo “sexualidade” como sinônimo de “geni- nossos pacientes: 1) O predomínio de uma indife- talidade” ou unicamente como um desejo de man- renciação e indiscriminação. 2) Um permanente ter relações sexuais. Em termos genéricos, para estado de ilusão em busca de uma completude. 3) Freud “sexualidade” alude a pulsões libidinais a Negação das diferenças. 4) A presença da, assim serviço do instinto de vida, e ele próprio nos ofere- denominada por Bion (1967), “parte psicótica da ce um convincente modelo disto quando se refere personalidade”. 5) Permanência de núcleos de que o bebê pratica o ato da mamada no seio em simbiose e ambigüidade. 6) Uma lógica do tipo dois atos: o primeiro é para saciar a sua necessida- bipolar. 7) Escala de valores centradas no ego ide- de vital pelo alimento leite; em um segundo mo- al e no Ideal do ego. 8) A busca de fetiches. 9) mento, embora já plenamente saciado, o bebê de- Escolha de objetos reforçadores da ilusão narcisis- mora-se no contato da sua mucosa bucal com o bico ta. 10) Um constante jogo de comparações. 11) do seio da mãe, sendo que a este “plus” de prazer 400 DAVID E. ZIMERMAN que nada tem a ver inicialmente com um desejo de Lacan, por sua vez, abordou a estruturação ter relação sexual com a mãe, é conceituado como edípica mediante as três etapas que evoluem desde “sexualidade”. o narcisismo original até o ingresso na situação As concepções originais de Freud ficaram bas- edípica propriamente dita. Como essa abordagem tante descaracterizadas pelas contribuições de M. fundamenta em grande parte o presente capítulo, Klein (1928) acerca do “Édipo precoce”, com as fez-se necessário explicitar um pouco mais detida- respectivas relações objetais parciais, fantasias in- mente a concepção desse autor. conscientes, ansiedades e defesas primitivas. Como Assim, para Lacan, o complexo de Édipo pro- sabemos, ao longo de toda a sua importante obra cessa-se em três etapas, durante o período que se M. Klein fez raríssimas alusões ao termo “narci- estende dos 6 aos 18 meses de vida. A primeira é o sismo”, embora ela aborde essa sua conceituação a estágio do espelho, durante o qual a criança identi- partir de outros vértices, como é a sua conceitua- fica-se com o imaginário, isto é, com algo que ela ção de um refúgio das angústias persecutórias para ainda não é. Isso se deve ao fato de que a criança um objeto que está introjetado como altamente idea- mantém uma relação diádica, fusional, com a mãe lizado. Dentre os autores de raízes kleinianas é justo e, por isso, acredita ser aquilo que o espelho (o destacar os nomes de Bion e de Rosenfeld, sendo olhar da mãe) lhe reflete como sendo. Nesse está- que este último (1971) deu importantes contribui- gio, a criança tem a vivência de seu corpo estar ções ao estudo das causas e efeitos do narcisismo, “despedaçado” em fragmentos corporais que ain- sendo sobremaneira importante para a prática psi- da não estão integrados entre si (este estado de “não- canalítica a sua descrição sobre o que ele denomi- integração”, tal como nos alertou Winnicott, não na “gangue narcisista”. deve ser confundido com o de “desintegração”). Bion (1963) estudou os diferentes aspectos do Em uma segunda etapa a criança, ainda em um mito de Édipo, não tanto pela óptica da sexualida- registro imaginário, identifica-se com o desejo da de, mas, sim, pela perspectiva dos vínculos, essen- mãe. Dizendo de outro modo: ela deseja ser o falo cialmente o do conhecimento (K e -K), presentes da mãe (é útil lembrar que falo não é sinônimo de em cada um dos personagens que aparecem sepa- pênis, porquanto a sua conceituação alude a uma radamente nas interações grupais entre todas as significação de poder, o qual, eventualmente, pode pessoas e circunstâncias da tragédia de Sófocles. ser o órgão anatômico pênis). Portanto, nesse está- Igualmente importante é a postulação que Bion faz gio, o primordial desejo da criança é a de ser o acerca do ataque ao conhecimento (-K) que a crian- desejo do desejo da mãe, o que muitas vezes con- ça pode fazer contra a pré-concepção edípica e, figura-se como um papel de funcionar como sendo por conseguinte, tal como assinala Junqueira Mattos o falo da mãe narcisista desejante. (1996), leva às distorsões da função-alfa, bem como Na terceira etapa desse processo de transfor- à primitiva defesa de um splitting forçado, o qual mação, em situações normais, a criança assume a consiste em manter uma dissociação pela qual a castração paterna (aqui, o conceito de castração criança continua se alimentando no seio materno, não significa uma privação ou corte do pênis, mas, porém o faz sem sentimentos amorosos; pelo con- sim, é uma alusão à função do pai como o portador trário, ela coisifica a mãe e a usa como se esta fos- da lei que interdita e normatiza os limites da rela- se um objeto inanimado. À medida que aumenta a ção diádica da mãe com o filho). A aceitação dessa deterioração da função-alfa, aumenta a prolifera- castração, por parte do filho, constitui o registro ção dos elementos-beta, o que acarreta o uso ex- simbólico, o ingresso no triângulo edípico propria- cessivo de identificações projetivas e o impedimen- mente dito, e representa o grande desafio às ilu- to do desenvolvimento da capacidade para pensar sões narcisistas que foram forjadas no registro ima- A partir daí, ainda segundo Junqueira, a criança ginário da etapa do espelho. nega as importantes perdas (seio, leite, pênis...) Psicanalistas contemporâneos, como Joyce promovidas pelos seus ataques desvitalizadores, ao McDougall (1983) e Janine Ch. Smirgel (1992), mesmo tempo em que pode passar o resto da vida em seus estudos que se referem mais particular- em uma desesperada busca por esses objetos per- mente aos desvios da sexualidade, também enfa- didos, sendo que esse estado mental oriundo de uma tizaram as causas de natureza narcisística. Assim, incapacidade para pensar as experiências emocio- a primeira delas descreve a “sexualidade aditiva” nais vai se manifestar por um aumento, cada vez como uma forma de sobrevivência psíquica, me- maior, de uma voracidade insaciável e maldire- diante o refúgio no outro (fusão) e para o outro (o cionada, que pode assumir a forma de perversões. qual é utilizado como uma espécie de “droga”), pela via dos genitais, em busca de um falo idealizado. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 401

Por sua vez, Smirgel menciona que o amor da or- ou se a sua presença é tirânica, frágil, conivente, ganização edipiana genital é, ao mesmo tempo, etc. Particularmente relevante é o fato de como o fundamentado sobre o duplo modelo do amor pri- pai está representado no psiquismo da mãe, por- mário e do amor edipiano, sendo que o impulso quanto essa será a imagem que ela transmitirá à passional, além de suas fontes edipianas, provém criança, não sendo raro que essa imagem do mari- da simultaneidade com a revivescência dos trauma- do seja depreciativa e venha acompanhada de um tismos de separação (p. 47). discurso denegritório dele, enquanto ela vai refor- Assim, enquanto Freud destacou a harmonia (ou çando um vínculo de aliança simbiótica com o fi- desarmonia) entre a união do afeto e da sexualida- lho, com um crescente esvaziamento e exclusão do de, na psicanalise contemporânea os psicanalistas pai. Na face narcisista da sexualidade quase sem- estão mais atentos à existência de uma harmonia, pre vamos encontrar um pai que foi ausente, mes- ou não, entre os níveis fusionais (narcísicos) e os mo quando estava fisicamente presente. Da mes- genitais, tanto no que se refere ao amor quanto à ma forma, virtualmente sempre deparamos com relação sexual em si. uma mãe que falhou como continente; pior do que Resumidamente, pode-se dizer que, na atuali- isso, comumente ela usou a criança para que essa dade, os psicanalistas consideram o complexo de contivesse as próprias identificações projetivas Édipo como uma estrutura triádica, regida, por- dela, mãe, em uma etapa em que o ego da criança tanto, pelas leis da dinâmica interacional psíquica, não tinha as condições necessárias mínimas para sendo importante sublinhar que nessa estrutura o processá-las essencial é a distribuição de papéis de cada um, Assim, independentemente se o complexo tanto os conscientes quanto os inconscientes. edípico vai se organizar como “positivo” ou “ne- Como exemplificação desta última afirmativa, gativo”, sobretudo é importante a posição do “ter- sempre sob o enfoque de uma possível normalida- ceiro excluído”, cujo papel pode caber a cada um de ou patologia do desenvolvimento edípico, nas dos três personagens do drama edípico, com o ine- diversas combinações que se formam, pode-se vitável acompanhamento de formação de “alian- aventar a hipótese de que a criança queira, ou não, ças” de dois contra um e com o acompanhamento abdicar do paraíso exclusivo que contraiu com a virtualmente sempre presente de algum grau de mãe; se, na cena primária, ela quer destronar e ocu- angústia de castração. par o lugar na cama de um dos genitores; se a crian- É claro que poderíamos aventar outras inúme- ça está tendo um acesso a ambos pais sob a égide ras e múltiplas formas combinatórias entre os per- do olhar amoroso de cada um deles, ou o contrário sonagens da tríade edípica. O importante, no en- disso, etc, etc. tanto, é frisar que qualquer que seja o arranjo da Igualmente, em relação ao papel da mãe, é fun- constelação edípica, ela sempre se organiza a par- damental estabelecer uma diferença se essa última tir de uma prévia posição narcisística, ancorada em vai ser capaz de exercer uma função de continente “sua majestade, o bebê”, para usar a conhecida para o lactente, sem abdicar de, ao mesmo tempo, expressão empregada por Freud (1914). É útil re- continuar a normal vida amorosa com o seu mari- pisar que o conceito de narcisismo, aqui adotado, do ou se ela vai se adonar do filho, nos moldes de não é anobjetal, tal como está implícito na concep- uma “gravidez eterna”, com a exclusão do pai do ção de narcisismo primário de Freud, mas, sim, ele campo afetivo. Além dessa possibilidade de a mãe constitui-se, desde o nascimento (ou durante a ges- utilizar o seu filho como uma extensão narcisística tação, como advogam muitos autores, entre eles, dela própria, também é bastante freqüente que ela Bion), como uma relação objetal, embora a noção exerça uma constante estimulação erótica, mani- de PN aluda a um alto grau de indiscriminação, festa ou disfarçada, seguida de rechaços humilha- sincretismo e fusão com o objeto. tórios para a criança. Portanto, o complexo de Édipo não é unicamen- O papel do pai na estruturação do psiquismo te um desenvolvimento pulsional, com as respecti- do filho, que ultimamente vinha sendo relegado a vas fantasias inconscientes e angústias. Também um plano secundário, voltou a adquirir uma decisi- existe uma forte influência do contexto sociofami- va importância, principalmente a partir dos traba- liar e cultural, pela inseminação de valores com os lhos de Lacan. Assim, é indispensável saber se o respectivos significantes e significados. Tais pai é uma figura fisicamente ausente ou presente e significantes, provindos dos relacionamentos inter neste último caso, se de uma forma amorosa, valo- e transpessoais, com repercussão direta nos intra- rizada e exercendo o seu papel de “lei”, como uma pessoais, dizem respeito aos desejos, expectativas, cunha interditora no romance do filho com a mãe, predições, mandamentos e interdições que provêm 402 DAVID E. ZIMERMAN da família e da cultura vigente e que vão compor a já estão povoando o inconsciente da criança. As- estrutura edípica singular, de cada pessoa em sepa- sim, vale afirmar que o velho paradigma de que o rado. sexual biológico organiza o gênero sexual já não é A determinação do gênero sexual da criança aceito na atualidade; pelo contrário, predomina a pode servir como um exemplo da assertiva acima. idéia de que a organização do gênero, a partir das Como sabemos, o “complexo de castração” impli- expectativas dos pais, precede a fase fálico-edípica ca necessariamente o fato de que todo indivíduo – e em grande parte determina as fantasias que rela- independentemente se o seu sexo biológico é mas- cionam-se com a sexualidade culino ou feminino – sofre, ao longo de sua vida, Em resumo, pode-se dizer que o narcisismo não um temor a vir perder algo, ou tudo, daquilo que é somente uma etapa do desenvolvimento do ser ele tenha conquistado. A psicanálise clássica ensi- humano; é também um modelo de estrutura psíqui- nava que a diferença básica no desenvolvimento ca, uma modalidade de vínculo em um registro ima- do complexo de castração no menino ou na meni- ginário, que poderá operar ao longo de toda a vida. na, consistiria na concepção de que no primeiro o Da mesma forma, a passagem pela conflitiva complexo de castração mobiliza uma capacidade edípica promove a introdução do registro simbóli- reativa e eficaz contra a ameaça castratória, cons- co, o qual poderá atenuar ou modificar o registro tituindo-se como um atributo de atividade, genui- das ilusões imaginárias, porém nunca consguirá namente próprio do gênero masculino. Na menina, acabar totalmente com elas. no entanto, o complexo de castração adquiriria uma natureza mais de finalidade reparatória, configu- rando a passividade, como um protótipo feminino. OS VÍNCULOS NA SITUAÇÃO EDÍPICA Hoje predomina a constatação de que nos vínculos amorosos, geralmente a angústia da mulher é a de Do afirmado, pode-se depreender que a situa- vir a ser abandonada, de cair em um vazio, enquanto ção edípica adquire sempre uma configuração vin- que comumente a angústia que predomina no ho- cular, intra e interpessoal, de tal sorte que nela es- mem é a de ele ficar aprisionado, isto é, a de vir a tão permanentemente presentes e interagindo os cair em uma armadilha. quatro vínculos: os clássicos de amor e de ódio, o Na atualidade atribui-se uma expressiva impor- do conhecimento, tal como foi estudado por Bion tância, na determinação da configuração edípica, e por ele designado pela letra “K”, e mais o víncu- não somente ao sexo biológico com que a criança lo do reconhecimento, o qual eu me permito pro- nasce, mas também à formação do seu gênero se- por aos colegas. xual, o qual vai depender fundamentalmente dos Como os três primeiros vínculos já são suficien- desejos inconscientes que os pais alimentam quan- temente conhecidos, vou me alongar um pouco mais to às suas expectativas em relação à conduta e ao detidamente no último deles. Assim, tal como está comportamento do filho, ou da filha. Essa indução, mais explicitado no capítulo 13, considero o vín- por parte dos pais, na determinação do gênero se- culo do reconhecimento em quatro acepções: xual das crianças, costuma ser feito a partir da com- binação de fatores influenciadores, como são al- 1) Como um re-conhecimento (voltar a conhe- guns apontados por Graña (1995), que destaca a cer) das verdades preexistentes contidas nas atribuição de nomes próprios ambíguos, o uso de pré-concepções (conforme Bion), nas pri- roupas que provocam confusões e indefinições no mitivas inscrições das representações-coi- contexto social em que a criança está inserida, o sas (conceito de Freud) e nas lembranças tipo de brinquedos e de brincadeiras, a forma como reprimidas ou dissociadas. Esta conceitua- os pais designam os genitais, o tipo de esporte que lização está intimamente conectada com o estimulam nos filhos, a idealização ou denegri- “K “de Bion e, portanto, alude mais direta- mento de certos atributos masculinos ou femini- mente aos problemas referentes às verda- nos, etc. Parece evidente que tais agentes modeladores des, falsidades e mentiras. do gênero sexual, provindos do meio exterior, 2) Um reconhecimento do outro como uma incidem tanto naquilo que Freud conceitualizou pessoa autônoma, separada e diferente dele, como “disposição bissexual inata no homem” (e embora possa estar junto com ele. Essa que ele afirmava estar refletida na identificação do condição implica em algum grau de rom- masturbador com ambos os sexos no mesmo ato), pimento do narcisismo especular. como também incidem no mundo de fantasias que FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 403

3) Ser reconhecido ao outro, como uma pos- ção do incesto, como uma forma cultural de conter sível manifestação de gratidão. Este esta- as respectivas fantasias de parricídio, matricídio, do psíquico constitui-se como uma condi- fratricídio e filicídio. Uma observação mais atenta ção inerente à passagem para a posição permite verificar uma íntima conexão entre ambas depressiva; tomamos como referencial a leis. concepção de M. Klein. 4) Uma necessidade imprescindível de o in- ÉDIPO E NARCISO NA SITUAÇÃO ANALÍTICA divíduo ser reconhecido pelos outros, como sendo alguém que é valorizado, amado, Na atualidade, mudou o perfil do paciente que desejado e que, de fato, ele existe. Essa procura tratamento psicanalítico. Já não se trata última acepção é a que representa uma co- tanto de “puros” histéricos, obsessivos ou fóbicos nexão mais clara com as necessidades vi- que constituíam a clínica dos psicanalistas pionei- tais da posição narcisista e, por conseguin- ros; pelo contrário,a demanda nos dias de hoje cons- te, com as múltiplas e diversas manifesta- titui-se por pessoas que nos procuram por proble- ções da sexualidade pré genital, como será mas relativos aos transtornos de auto-estima, a fal- abordado mais adiante. Por vezes é tão in- ta de um definido senso de identidade, o descon- tensa a necessidade da criança (ou do pa- forto de ser um falso self, assim como também a ciente adulto em posição narcisista) em ser psicanálise tem aberto as suas portas para um con- tingente de pacientes bastante regressivos, como reconhecido como sendo alguém muito costumam ser os psicóticos, borderline, caracte- especial, que pode acontecer que ela não ropatas, somatizadores e, dentre outros mais, tam- pode compreender aos outros, nem ser bém aos portadores de alguma forma de perver- compreendida pelos outros, ou tampouco são. fazer como os outros, porquanto isso seria Ademais, é consensual entre os psicanalistas nivelar-se aos demais, o que representa uma hodiernos o fato de que uma análise dos pacientes profunda ferida narcísica. Como conse- considerados unicamente como “neuróticos” deve, qüência, pode resultar uma saída na trans- necessariamente, transitar pela “parte psicótica da gressão dos costumes habituais da família personalidade”, composta por núcleos bastante re- e da sociedade, inclusive os sexuais. gressivos, e da qual todo e qualquer indivíduo é portador, em algum grau e modalidade. Em caso O importante, todavia, é o fato de que na psica- contrário, se esses núcleos regressivos e primiti- nálise contemporânea o principal enfoque não é vos não tiverem sido suficientemente analisados, o tanto a oposição entre o amor versus o ódio, mas, mínimo que se pode afirmar é que o referido pro- sim, a presença concomitante dos quatro vínculos, cesso analítico foi incompleto. com a predominância maior ou menor de um ou de Tudo isso converge para o fato de que se impõe outro, e a forma de como eles interagem e se arti- ao psicanalista a necessidade de trabalhar com os culam entre si. Igualmente, deve ser levado em conflitos manifestos – incluídos os sexuais, obvia- conta se eles estão sinalizados com sinal positivo mente – em uma dimensão que precede a conflitiva (+) ou negativo (-), tal como propôs Bion, sendo do complexo de Édipo típico. Ou seja, é impres- que a sua contribuição mais notável em relação a cindível que tenhamos um profundo conhecimento isso diz respeito ao vínculo -K, o qual representa da normalidade e patologia do narcisismo, e as in- uma mutilação da curiosidade sadia e estruturante, fluências do mesmo na estruturação edípica, sendo assim como também significa um ataque contra a que a recíproca também é verdadeira. percepção ligada aos mistérios do nascimento (por- Na psicanálise contemporânea, indo além do tanto da sexualidade) e morte. clássico propósito da interpretação do confito psí- É imprescindível levar em conta que o conflito quico em termos de pulsões versus defesas, o psi- entre os vínculos em grande parte assenta-se em canalista também deve permanecer atento às per- duas leis fundamentais que regem o determinismo manentes oscilações intrapsíquicas que se proces- psíquico do ser humano e que estão virtualmente sam na vincularidade entre os princípios do pra- presentes em todas as culturas: a primeira delas zer-desprazer e o da realidade; a posição esquizopa- alude ao fato de que, de uma forma ou de outra, ranóide e a depressiva; a parte psicótica e a não- todo sujeito sente-se compelido a fugir de um esta- psicótica da personalidade; o verdadeiro e o falso do de desamparo; a segunda lei refere-se à proibi- self, etc. 404 DAVID E. ZIMERMAN

Da mesma forma, adquire uma fundamental confusional própria do narcisismo e ingressando importância para a prática psicanalítica uma aten- num socialismo, representado pelo triângulo edí- ção especial para as inter-relações entre Narciso e pico. No contexto acima, foi tomado como refe- Édipo, muito particularmente para a observação do, rencial o modelo kleiniano da “posição depressiva”, latente, ego narcísico que está ocultado pela mani- mas é claro que poderiam servir outros modelos de festa, e às vezes enganadoramente florida, confi- diferentes correntes psicanalíticas que permitem guração edípica dos quadros clínicos que atende- compreender a alteridade, como é a concepção de mos no cotidiano de nossas clínicas. M. Mahler (1975) acerca do “nascimento psicoló- Por tudo isso, é útil considerar a passagem, pro- gico” da criança por meio dos processos de dife- gressiva, de Narciso a Édipo, e a – regressiva – de renciação, separação e individuação; a postulação Édipo a Narciso. Assim, no mito de Narciso, tal de Lacan a respeito dos processos da “alienação”, como consta na “Metamorfosis” de Ovídio, pode- a de Winnicott em sua abordagem dos “fenômenos se depreender que é necessário que morra Narciso transicionais”, e assim por diante. (a díade especular) para que ele possa se transfor- Em termos clínicos, é nas histerias, e sobretudo mar em Édipo. No entanto, por mais que se dê a nas perversões, que se observa mais claramente um transformação para a genitalidade adulta – própria articulação da estrutura edípica com a estrutura de um Édipo suficientemente bem resolvido – sem- narcísica. Em relação às histerias é justo lembrar pre haverá a presença ativa de vestígios de Narci- que Fairbairn (1954) já destacava o seu parecer de so, sendo que ambos, de alguma forma, interagem que a sexualidade do histérico é no seu fundo ex- durante toda a vida de qualquer indivíduo. Para uma tremamente oral e que a sua oralidade básica representação gráfica que traduza este estado de manifesta-se de forma acentuadamente genital, permanente interação entre Narciso e Édipo creio sendo que podemos considerar altamente signifi- que caberia empregar o modelo de Bion nas situa- cativa a sua afirmativa de que “ainda não analisei ções em que ele utiliza uma flecha bidirecional, nenhum histérico, homem ou mulher, que, no fun- como por exemplo na recíproca e permanente do, não fosse um inveterado buscador do seio interação entre as posições depressiva e a esqui- materno”. Aliás, em seu artigo “Observações so- zoparanóide. bre a Natureza dos Estados Histéricos”, o autor Para ocorrer na criança essa transformação e nos brinda com essa bela passagem que bem ilus- passagem evolutiva de Narciso para Édipo, são ne- tra o que aqui estamos enfocando: “É notável que cessários, no mínimo, dois fatores: o primeiro de- o interesse psicanalítico sobre a clássica história les é a presença de um pai forte e seguro que inter- de Édipo tenha se concentrado sobre os atos fi- ponha-se entre a mãe e o filho, promovendo uma nais do drama. No entanto, como uma unidade, é castração (simbólica) nas fantasias onipotentes do importante reconhecer que o Édipo que mata a seu filho, ou filha, que imagina ter a posse absoluta da pai e desposa sua mãe começou sua vida exposto mãe. É claro que esse imaginário fantasmático cres- em uma montanha, e assim esteve privado de cui- ce na proporção direta das estimulações erotizadas dados maternais (o grifo é meu) em todos seus as- ou narcisizadas por parte de uma mãe excessiva- pectos, durante uma etapa na qual sua mãe deve- mente simbiótica e que, ainda por cima, esvazia e ria constituir-se no seu objeto essencial e exclusi- desqualifica a imagem do seu marido perante o fi- vo”. lho. Mais notadamente no caso das perversões, o O segundo fator, antes mencionado como ne- elemento fundamental que permite passar da es- cessário para uma exitosa transformação, consiste trutura narcísica para a estrutura de natureza edípica na capacidade da criança em ingressar na posição é a presença do fetiche, o qual se comporta como depressiva, tal como ela foi descrita por M. Klein. uma espécie de ponte entre o imaginário e o sim- Podemos ir mais longe e afirmar que é a aquisição bólico (não confundir com o objeto transicional, da posição depressiva que determina e inaugura o de Winnicott, que no desenvolvimento evolutivo complexo de Édipo. De fato, entre outros aspectos normal, de forma transitória, também cumpre esta inerentes a essa posição, vale destacar quem é ela função). Isso constitui-se como uma condição para que possibilita a criança a discriminar e a separar- a transmutação de valores: aquilo que está ausente se do objeto, ganhando para si e concedendo para do pensamento e do conhecimento do sujeito por- o outro uma relativa autonomia, assim efetivando tador de estrutura perversa, devido ao seu maciço um reconhecimento da existência real de uma ter- uso de “desmentida” da castração (essa modalida- ceira pessoa, logo, do pai, no contexto edipiano. de defensiva de negação também é conhecida pela Assim, a criança está saindo da díade fusional e sinonímia de “renegação”, “denegação” ou “recu- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 405 sa”), deverá estar presente em algum outro lugar, gens significativas: a primeira alude à cena em que dentro ou fora do indivíduo. aparece uma mãe sensual exibindo o seu corpo Neste último caso, ele parte em uma busca de- desnudo ao personagem quando ainda bebê, que a sesperada pelo que lhe falta no registro imaginário mirava extasiado; portanto, trata-se de uma preco- das ilusões e, para tanto, procura parceiros que ce erotização em plena vigência de uma etapa possam executar esse papel, por meio de diversas narcísica. O segundo aspecto interessante do filme vias, sendo que a da sexualidade manifesta pelos diz respeito ao uso maciço da defesa de tipo “des- genitais adquire uma extraordinária relevância em mentida” por parte do personagem, a ponto de ele tais situações, configurando uma pseudo genita- apresentar uma nítida confusão de identidade. O lidade. terceiro e mais ilustrativo aspecto é o que aparece Não cabe aqui esmiuçar mais detalhadamente na cena final na qual o personagem após ter sido as diversas formas de manifestações clínicas de obrigado a admitir que não era um verdadeiro “Don perversões ligadas aos desvios da sexualidade Juan”, abandona a sua postura anterior de uma apa- (transexualismo, travestismo, homossexualismo, rência de homem forte e potente, com olhar bri- fetichismo, exibicionismo-voyeurismo, sadismo- lhante e conquistador, jeito insinuante e uma certa masoquismo, pedofilia, bestialismo...) e, tampou- arrogância, e a substitui pela posição postural de co, cabe estudar a estruturação genético-dinâmica um pobre menino frágil e assustado. Aliás, esta cena de cada uma delas. No entanto, é útil que nos dete- final está encadeada e confirma a cena inicial na nhamos mais atentamente nos pacientes portado- qual aparece esse personagem sendo socorrido por res de uma intensa e compulsória atividade don- causa de seu intento suicida, que foi motivado pela juanesca, no caso de homens, ou ninfomaníaca, sua profunda decepção por ele ter sido rejeitado no caso de mulheres, independentemente se o diag- por uma mulher por quem ele nutria uma “profun- nóstico for de histeria, psicopatia, perversão, psi- da paixão e desejo sexual”, enquanto que ela nem cose... sabia da existência dele. A experiência clínica de cada um de nós com- Esta última assertiva nos introduz no importan- prova que essa aparente hiperatividade genital está te problema da terrível angústia de desamparo, invariavelmente vinculada a transtornos de nature- intimamente ligado à estrutura narcisística. Des- za narcisista, sendo que em relação à pseudogeni- tarte, aquilo que em uma visão mais superficial talidade histérica vale acrescentar que a hiperva- possa parecer como sendo uma busca de objeto lorização e a erotização do corpo, assim como uma sexual e amor, mais profundamente constitui não permanente atitude de sedução, estão a serviço de mais do que uma busca desesperada, freqüentemen- uma irrefreável necessidade dessa pessoa de obter te pelos genitais, de uma fuga do desamparo e de um – insaciável – reconhecimento de que ela está uma reafirmação de si mesmo. sendo vista, valorizada e, sobretudo, desejada, en- A angústia de desamparo (Hilflosigkeit é o ter- quanto que o real pleno gozo sexual fica relegado mo original de Freud) é a angústia mais temida, a um segundo plano. não só pela razão da falta de apoio e de extrema O conhecido personagem Don Juan pode ser- dependência que ela acarreta, mas, principalmen- vir como um protótipo de Narciso travestido de te, pela ameaça de uma desorganização do ego. Essa Édipo, tanto que nos diversos contextos literários última ameaça acontece devido ao fato de que o em que ele aparece há uma falta de amor pelo ou- estado de desamparo original incidiu na criança em tro. Don Juan somente “ama” a quem o ama, e o uma idade em que o seu ego ainda não tinha condi- seu gozo verdadeiro, embora tenha se especializa- ções neurobiológicas para processar os estímulos do na arte de desempenhar (ou aparentar) um ex- e angústias. Isso lembra o que Freud afirmou: “A celente desempenho genital, consiste no sabor de organização precária do ego não tinha condições uma nova conquista que lhe reassegure o reconhe- para enfrentar a potência desorganizadora do id” cimento pelo outro de que ele é potente, um aman- (1926). te insuperável e, ao mesmo tempo, que ele tem um Portanto, mais do que a angústia de castração, cacho de mulheres à sua permanente espera e dis- estamos aqui enfatizando a presença da angústia ponibilidade incondicional, e com isso ele faz a de desamparo e desvalia; mais do que a problemá- “desmentida” de que no fundo sente-se um menino tica dos desejos, impõe-se a das necessidades bá- frágil e invariavelmente sobressaltado pelo pavor sicas; mais do que uma dolorosa frustração decor- de vir a ficar desamparado. rente da exclusão da criança do triângulo edípico, Aqueles que assistiram ao filme “Don Juan de estamos aludindo à questão essencial da sobrevi- Marco” hão de recordar de, no mínimo, três passa- vência psíquica e à constituição do ego, com os 406 DAVID E. ZIMERMAN seus limites e sua identidade primitiva e corporal. maneira. São múltiplas as formas de fugas desses Pode-se dizer que as inibições afetivas ligadas às vazios e vale assinalar de forma esquemática as fixações narcisísticas tendem a reforçar o registro seguintes, que mais comumente aparecem: para imaginário e a impedir o registro simbólico da dentro do outro (pelas maciças identificações pro- conflitiva edípica e, por conseguinte, das elabora- jetivas, ocasiona uma dependência simbiótica ções genitais. cronificada, ao mesmo tempo com submissão e com Resumidamente: a patologia de Édipo é indis- um intenso controle onipotente sobre a pessoa hos- sociada de Narciso. Assim, clinicamente falando, pedeira); para dentro de si mesmo (resulta em so- antes do que a disjunção alternativa de Narciso ou matizações, estados autísticos...); fuga do outro Édipo, é muito mais útil a conjunção copulativa (constrói uma autarquia narcisista); fuga da vida Narciso e Édipo, sendo que cada um deles pode (tóxicos, intentos suicidas, estado mental de “de- funcionar como um refúgio do outro. No entanto, sistência”...); por meio do outro (conluios perver- uma regressão narcisista nem sempre resulta de uma sos com a busca de pessoas que se prestem ao pa- fuga de Édipo (e vice-versa) e nem como uma for- pel de reasseguradores das suas ilusões narcisis- ma de resistência contra a progressão até Édipo. tas); fuga no outro, pelos genitais, constituindo uma Pelo contrário, essa regressão pode representar um “sexualidade adictiva”, tal como será mais bem necessário e estruturante retorno às origens, a fim explicitado a seguir. de recomeçar tudo de novo, de uma maneira mais Em relação à conduta sexual deste tipo de paci- sadia e em um ambiente mais adequado, como é o ente que está fixado na PN e que estabelece víncu- espaço da experiência psicanalítica. los amorosos de natureza simbiótica, observa-se Em Narciso, a relação é diádica, enquanto em uma gama de dois extremos: uma intensa e com- Édipo ela é triangular (no Édipo excessivamente pulsiva atividade genital ou uma total ausência dela. narcisisado, a relação pode ser triádica, mas não No primeiro caso, o mais comum é que as relações triangular, se levarmos em conta que são três pes- sexuais ficam exageradamente centralizadas nas soas, mas que uma está excluída afetivamente e, pré-genitais, práticas eróticas preliminares, enquan- por isso, não existe). No mito de Narciso, o que to a relação genital propriamente dita é breve e prevalece não é o amor por si próprio, mas sim a parece constitui-se mais como um pretexto daque- con-fusão com a mãe (identificação primária de las práticas pré-genitais. A explicação disso con- Freud) e a falta de discriminação e consideração siste no fato de que o vínculo narcisístico excessi- pelos demais, enquanto que em Édipo já há o reco- vamente simbiótico tende a uma união que visa, nhecimento de um terceiro, além da capacidade de sobretudo, atingir ao modelo de uma fusão pré-na- discriminação com os demais. tal. Daí resulta que a atividade genital adulta tor- Como o Narcisismo incipiente não se estrutura na-se incompatível com uma demanda tão excessi- por meio de repressões, tal como se processa em va por gratificações pré-genitais, acrescidas por Édipo, ocorre que, ao contrário do que acontece uma irrefreável necessidade deste indivíduo por neste último, em condições altamente regressivas, infindáveis reafirmações de que ele é amado e de- não há lembranças, mas sim uma “memória de sejado (na base de um insaciável “então prova que sentimentos”(expressão de M. Klein, 1957) atra- me amas... “), e isso se constitui um claro atestado vés de um “terror sem nome”(Bion, 1967), porque de que existe uma compulsória demanda de que as primeiras faltas básicas e as sensações de de- ele está sendo reconhecido pelo outro como sendo samparo foram sendo impressas e semantizadas na capaz de inspirar desejo e amor e, portanto, como mente da criancinha como uma ameaça de aniqui- alguém que, de fato, existe e está amparado.. lamento, físico e psíquico. Nesses casos, é comum acontecer que: 1) Haja O objetivo do amor do indivíduo que está sob a a inclusão de um terceiro, na figura de um(a) aman- égide da posição narcisista é obter a completude te, cujo papel, inconsciente, visa complementar a do prazer, e para tanto, ele necessita da obtenção e ausência básica de cada um dos personagens da da posse dos objetos que propiciem esse prazer, tríade. 2) Um uso de técnicas de controle, domínio porquanto não lhe basta o produto “leite nutridor”, e poder, como uma forma de impedir as perdas ele quer a posse da fonte de produção do leite: o dolorosas e assim reassegurar a sensação de seio todo. simbiose ou a ilusão de uma absoluta independên- No entanto, a impossibilidade de alcançar a cia, 3) Essas técnicas de controle, quando levadas completude narcisista pode ocasionar a formação em graus excessivos, configuram relações de um de vazios existenciais profundamente dolorosos e recíproco sadomasoquismo, que cumprem a fun- dos quais o indivíduo procura fugir de qualquer ção de assegurar a união e, ao mesmo tempo, fugir FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 407 por afastamento e se diferenciar do outro. 4) Como Resistências um substituto do fracasso genital, costuma aconte- cer uma super valorização do dinheiro e consu- A principal resistência nesses casos não é tanto mismo, que se constituem como fetiches de um seio a oposição a um acesso às repressões edípicas com farto e generoso para os dois do casal sadomaso- as correspondentes fantasias ligadas à cena primá- quista, ou mais comumente num dos dois (enquan- ria, como habitualmente era entendido pelos ana- to o outro fica no papel de provedor), assim ali- listas. Pelo contrário, a resistência está muito mais mentando a ilusão de poder mamar eternamente. ligada a um aferramento a essa suposta conflitiva 5) Uma outra possibilidade é a presença de uma edípica, como um véu encobridor e protetor das anorgasmia nele ou nela. Isso se deve ao fato de ilusões próprias do mundo narcista que o paciente que o orgasmo para eles equivale a uma perda de inconscientemente, e muitas vezes conscientemen- controle sobre si e sobre o outro e, por isso, ele te, procura manter a todo custo. No exemplo de deve ser infinitamente postergado, ou ser vivido don juanismo, antes aludido, tal resistência torna- pelo gozo do parceiro, a quem ele(a) delega a pro- se particularmente mais tenaz ainda, porquanto essa curação de sua genitalidade adulta. 6) É importan- forma de pseudogenitalidade está altamente idea- te estabelecer uma diferença entre a regressão sen- lizada pelo próprio analisando e, freqüentemente, sual do amor maduro que se manifesta sob uma pelos outros. forma de sexualidade polimorfa, e a regressão É alto o risco de o psicanalista desenvolver uma simbiótica-narcisística de duração permanente. A contra-resistência nos mesmos moldes do paciente primeira implica em uma capacidade intra-psíqui- e, por conseguinte, existe a possibilidade de que se ca de suportar a perda dos limites que tal regressão formem conluios inconscientes, de uma recíproca desperta, enquanto a segunda provoca um medo fascinação narcisista por exemplo, que funcionará de um engolfamento recíproco, vindo acompanha- como um obstáculo à possibilidade de uma verda- da com distintas modalidades de fugas diante do deira transformação do mundo imaginário em di- terror da perda total dos limites. reção ao simbólico. Na situação psicanalitica propriamente dita vale Uma outra causa de resistência tenaz à mudan- fazer algum registro dos diversos elementos que ça consiste no fato de que o reconhecimento da compõem a vincularidade do campo psicanalíco. autonomia do outro representa ser uma ameaça à onipotente auto-suficiência narcisista. A resistên- cia dos pacientes com predominância da PN lem- Setting bra um provérbio espanhol: “Antes morrer do que mudar”. Esses analisandos que apresentam uma pseudo- Em razão das múltiplas resistências – freqüen- genitalidade, ancorados que eles estão em profun- temente de natureza fóbica – que esse paciente ma- das e revoltas águas narcisísticas, têm uma tendên- nifesta diante do processo psicanalítico desven- cia tanto ao acting-out, em uma incansável busca dador e transformador, não é nada raro que ele faça erotizada do “príncipe encantado” ou da “fada interrupções, seguidas de retomadas da análise, madrinha”, como tambem ao acting-in, sob a for- configurando aquilo que Nogueira (1996) denomi- ma de tentar obter alguma forma de privilégio es- na “psicanálise em capítulos”, muitas vezes neces- pecial por parte do seu psicanalista. sárias e inevitáveis. Por conseguinte, há um sério risco de se insta- lar um desvirtuamento das combinações contrata- das e, por isso mesmo, a preservação do setting, ao Transferências máximo possível, constitui-se como uma importante recomendação técnica. Toda transferência tem um resto narcísico, da Também pode ocorrer uma situação em um ex- primitiva unidade diádico-simbiótica. A análise da tremo oposto, a qual consiste no fato de o psicana- transferência visa permitir a separação desse obje- lista desenvolver uma atitude algo fóbica contra as to de necessidade, para constituí-lo como um ob- manobras de envolvimento do analisando, razão por jeto de desejo, edípico. Há, portanto, uma diferen- que ele mantém um distanciamento e uma evitação ça entre a transferência narcísica de colorido eróti- da parte regressiva de seu paciente por meio de um co e que guarda uma natureza especular e a trans- setting excessivamente rígido e de interpretações ferência erótica propriamente dita, com desejos de de natureza superegóica. cunho edípico triangular, não sendo incomum que ambas formas se superponham e se alternem. 408 DAVID E. ZIMERMAN

Um aspecto particularmente importante diz res- de que eles não são aquilo que pensavam que eram, peito ao fato de que uma transferência positiva pode vai acontecer que, por meio de um ataque aos vín- estar sendo, na verdade, uma transferência ideali- culos perceptivos, a elaboração fica impedida e, zada, em cujo caso a fé ocupa o lugar da confiança conseqüentemente, há um grande risco de que não básica e a sugestão substitui o penoso processo de aconteçam verdadeiras mudanças psicanalíticas, pensar as experiências emocionais do vínculo ana- embora possam ser análises de longo curso e apa- lítico. rentemente exitosas. Em contrapartida, a transferência negativa, na estrutura edípica, pode estar significando a rivali- dade própria de uma situação triangular e, por con- Contratransferência seguinte, com a presença do sentimento de que al- guém está sendo excluído, enquanto que, na estru- É fácil perceber que tamanhas cargas de neces- tura narcisista, a transferência negativa pode estar sidades e ansiedades primitivas venham a provo- representando uma finalidade diferente daquela. car fortes impactos contratransferenciais, os quais Assim, ela tanto pode estar repetindo um antigo tanto podem se constituir em enredamentos pato- vínculo simbiótico por meio de uma interminável lógicos, como também podem servir como uma transferência de natureza sadomasoquística (daí o excelente bússola empática para o psicanalista. sério risco de que se forme um conluio transfe- Provavelmente o mais perturbador desses impac- rencial-contratransferencial desse tipo), como tam- tos contratransferenciais seja aquele que decorre bém a transferência de aparência negativa pode dos freqüentes actings, muitas vezes de natureza estar representando uma tentativa justamente opos- maligna. Não cabe aqui detalhar as múltiplas e ta, isto é, que a hostilidade do analisando esteja protéicas respostas contratransferenciais; no entan- visando romper com os vínculos de domínio, pos- to, vale consignar um ou dois aspectos que por ve- se, especularidade e falsidade. A partir dessa pers- zes passam desapercebidos. pectiva, a transferência negativa deve ser consi- Assim, não é infreqüente que, após mais ou derada como altamente positiva, e é ela que vai menos uns dois anos de evolução de uma análise permitir uma análise verdadeira que possibilite que parece ser muito promissora e gratificante com transformações psíquicas. este tipo de paciente, o psicanalista perceba que o Aqueles pacientes nos quais se mantêm a díade processo esteja estagnado e que suas interpretações fusional com a mãe (analista) sem que tenha se es- resultem estéreis, fato que pode ocasionar uma tabelecido a discriminação “eu-outro”, que pade- contratransferência altamente desfavorável. cem de um déficit de simbolização e cuja modali- Um outro aspecto que me parece útil consignar dade de sofrimento se expressa pela angústia de diz respeito ao fato de que este paciente pode pro- desamparo e desvalia, costumam manifestar as se- vocar no analista uma forte sensação de descon- guintes características na situação psicanalítica: 1) forto, como se esse estivesse decepcionando e frau- Uma tendência a desenvolver uma transferência dando o analisando.. Isso se deve à identificação especular – para utilizar uma terminologia e con- projetiva, dentro do psicanalista, de uma mãe nar- ceituação de Kohut (1971) – nas três possibilida- cisista que enganou o filho, por fazê-lo crer como des que este autor aventa, ou seja, a fusional, a sendo verdade aquilo que na realidade não passa- gemelar e a especular propriamente dita. Assim, va de meras ilusões infantis. costuma haver um estado de extrema dependência Uma prova difícil para o psicanalista com esse do objeto necessitado, embora muitas vezes dis- tipo de paciente é o surgimento nada incomum de farçado por uma conduta de aparente independên- uma contratransferência de natureza erótica. Da cia e auto-suficiência. 2) Essa modalidade transfe- mesma forma que diante de outras respostas rencial costuma evidenciar um pensamento algo contratransferenciais difíceis (ódio, medo, parali- confuso e ambíguo, expressando.se comumente por sia, impotência, tédio...) também nessa situação é uma linguagem somática (hipocondria, conversões, imprescindível que o psicanalista reconheça e as- somatizações...), ou pela linguagem da ação. Nes- suma com naturalidade, para si mesmo, o desejo ses casos, falha a função de “angústia-sinal” do ego erotizado que lhe foi despertado, de modo a poder e, mais do que antecipar um perigo, o indivíduo pensar essa experiência emocional e assim poder recorre a actings, impulsivamente e pseudogeni- revertê-la a serviço da empatia; caso contrário, talmente. 3) Como a transferência desses pacien- aumenta o risco de alguma modalidade de contra- tes caracteriza-se pela tendência à evitação do con- atuação. tato com a penosa realidade psíquica (-K, de Bion) FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 409

Atividade Interpretativa lista propicie, para esse tipo de paciente, o desen- volvimento da capacidade de pensar as experiên- A primeira observação que necessita ser feita é cias emocionais, tanto as primitivas como as atu- a de que comumente o psicanalista deixa-se sedu- ais, como um evoluído recurso de ego que substi- zir pelo belo e atraente “material sexual” trazido tua as habituais formas de negar, evitar e atuar, com pelo paciente e que parece estar “pedindo” para que este paciente costuma se defender. ser interpretado num plano edípico. É possível que, Tal como foi aludido, é especialmente impor- em muitas ocasiões, tais interpretações satisfaçam tante que o analista esteja atento ao destino que as ambos do par analítico, porém há o risco de que suas interpretações tomam dentro da mente dos elas resultem inférteis porquanto a aludida sexua- analisandos em PN porquanto eles costumam lidade edipiana pode estar fortemente ancorada em desvitalizá-las, de modo que embora corretas, as fixações narcisistas não-resolvidas. interpretações resultam ineficazes. Nesses casos, o Da mesma forma, creio ser recomendável que paciente pode não estar interessado no valor da o psicanalista não se detenha de modo prioritario e interpretação, mas, sim, se ela lhe causa prazer ou sistemático na interpretação única dos conflitos desprazer. Da mesma forma, o ato de interpretar resultantes dos desejos e fantasias com as angústias equivale para o analisando a uma experiência de correspondentes. Também é desejável que a ativi- castração e de desilusões e, portanto, remete a sen- dade interpretativa dirija-se à forma de como o timentos de perda, abandono, incompletude e o analisando utiliza os seus recursos de ego, de como penoso reconhecimento da sua angústia de desam- ele pensa as suas experiências emocionais, de como paro e de sua necessidade do outro. ele utliza a função K ou -K diante das penosas ver- dades internas e externas, o seu juízo crítico, a sua capacidade de fazer discriminações, as conexões Elaboração que ele faz entre partes contraditórias de sua per- sonalidade, e assim por diante. Além da importân- É muito difícil para esse tipo de analisando a cia do conteúdo e forma das interpretações, são aquisição de um autêntico crescimento mental, igualmente relevantes a finalidade e o destino que como fruto de um trabalho de elaboração de suces- as mesmas tomam dentro do analisando. sivos insights parciais, porquanto tudo isso impli- Particularmente com esses pacientes pseudoge- ca sentir uma profunda dor psíquica. Talvez não nitais é importante que as interpretações sejam de haja dor mais difícil de suportar do que aquela que natureza disruptiva, isto é, que elas promovam uma implica em ter que se renunciar às ilusões do mun- egodistonia naquilo que o paciente se assegura de do do “faz de conta”. Não se trata unicamente de forma egossintônica, tal como acontece nos seus sentir dor, mas, principalmente, como ensina Bion, núcleos de falso self e de sua autarquia de ilusões da capacidade de sofrer (elaborar) a dor, tendo em narcísicas. Igualmente relevante é o fato que as vista que o paciente com pseudogenitalidade deve interpretaçoes devem visar, acima de tudo, às des- substituir a sua costumeira atitude de evadir as ver- identificações, seguidas de neo-identificações – a dades pela de enfrentá-las, única forma de conse- partir do modelo da função-alfa do seu psicanalis- guir efetivar transformações, em direção a uma ver- ta – para a construção de um verdadeiro senso de dadeira e harmônica genitalidade edípica. identidade. Ou seja, é fundamental que o psicana-

CAPÍTULO sight cognitivo promove uma egodistonia, e é essa que vai propiciar o passo seguinte. 3. Insight afetivo. Pode-se dizer que aí co- meça o insight propriamente dito, tendo em 38 vista que a cognição, muito mais do que uma mera intelectualização, passa a ser acompanhada por vivências afetivas, tanto as atuais como as evocativas, e possibilita o estabelecimento de correlações entre elas. Insight – Elaboração – 4. Insight reflexivo. Representa um impor- tante e decisivo passo adiante. Esse insight Cura institui-se a partir das inquietações que fo- ram promovidas pelo insight afetivo e que levam o analisando a refletir, a fazer-se in- dagações e a estabelecer correlações entre A atividade interpretativa do psicanalista leva os paradoxos e as contradições de seus sen- aos insights do analisando, sendo que a lenta ela- timentos, pensamentos, atitudes e valores; boração desses é que vai possibilitar a obtenção de mudanças psíquicas, objetivo maior de qualquer entre aquilo que ele diz, o que faz e o que, análise. A importância do insight no processo cu- de fato, ele é! Esse insight é de natureza rativo de um tratamento analítico justifica que se binocular, isto é, o paciente começa a olhar- pormenorizem e discriminem algumas de suas par- se a partir de duas perspectivas: a sua pró- ticularidades. Assim, proponho uma diferenciação pria e a que é oferecida pelo analista e, da na qualidade do insight, segundo a escala a seguir: mesma forma, quando ele adquire condi- 1. Insight intelectivo. Neste caso, talvez não ções de observar, simultaneamente, ao con- se justifique o uso do termo insight, tendo vívio de aspectos contraditórios seus, como em vista que, enquanto intelectivo, ele não é o caso de sua parte infantil contrapondo- só é inócuo como pode ser prejudicial em se à parte adulta, etc. É essa “visão bino- alguns casos, como é, por exemplo, a pos- cular” que, mais eficazmente, propicia a sibilidade de que venha unicamente a re- transição da posição esquizoparanóide para forçar o arsenal defensivo de pacientes que a posição depressiva. são marcantemente intelectualizadores, 5. Insight pragmático. Vale a afirmativa de como, por exempo, os obsessivos ou nar- que uma bem-sucedida elaboração dos cisistas. insights obtidos pelo paciente, ou seja, as 2. Insight cognitivo. Cognição não é o mes- suas mudanças psíquicas, devem necessa- mo que intelectualização; antes, refere-se riamente ser traduzidas na práxis de sua a uma clara tomada de conhecimento, por vida real exterior, e que a mesma esteja sob parte do paciente, de atitudes e caracterís- o controle de seu ego consciente, com a ticas suas, que até então estavam egossin- respectiva assunção da responsabilidade tônicas. É muito comum que a aquisição pelos seus atos. deste nível de insight venha seguida da per- gunta por parte do paciente: “e agora, o que CONCEITUAÇÃO DE “CURA” PSICANALÍTICA é que eu faço com isso?”. Creio que que esse insight cognitivo deve ser valorizado, Os termos “cura” e “psicanalítica” do título, e um tipo de resposta, sincera, que me pa- guardam entre si uma certa imprecisão conceitual rece adequada àquela pergunta, é algo as- e semântica e, por essa razão, é necessário esclare- sim: “É um bom começo de nossa cami- cer o vértice que, aqui, está sendo adotado. nhada; vamos ver o que vais fazer com essa Dessa forma, o conceito do que está sendo con- tua tomada de conhecimento de como su- siderado como “analítico” não se prende exclusi- e desqualificas a tua mulher...”. O in- vamente ao formalismo das combinações conven- cionais do setting analítico (mínimo de quatro ses- 412 DAVID E. ZIMERMAN sões semanais; uso indispensável do divã; rigor na Os “benefícios terapêuticos”, antes descritos, livre associação de idéias; neutralidade absoluta; são mais próprios do processo que habitualmente interpretação sistemática e exclusiva no “aqui-ago- se denomina (às vezes de forma pejorativa, por ra-comigo” da neurose de transferência; etc). Em- parte de alguns) “psicoterapia”, enquanto o “resul- bora a essência da instalação do setting deva ser tado analítico”, tal como foi referido, seria restrito mantida, neste capítulo estamos considerando o unicamente ao que denominamos “psicanálise”. termo “psicanalítica” a partir do marco de referên- Assim, a maioria dos psicanalistas considera que o cia que prioritariamente leva em conta os objetivos uso do termo “psicanálise” somente adquire legiti- terapêuticos a serem alcançados. midade quando vier preencher as condições míni- Como forma esquemática, creio que se pode mas do setting clássico, antes aludido. Particular- dizer que a obtenção de um objetivo terapêutico se mente, incluo-me entre os que pensam que o cum- processa de duas maneiras: 1) a de um benefício primento desse formalismo não deva ser o critério terapêutico; 2) a de um resultado analítico. diferencial mais importante, a despeito da convic- O benefício terapêutico pode atingir uma gama ção de que o emprego do termo “psicanalítico” deva distinta de objetivos que guarda uma certa hierar- transitar pelas seguintes condições básicas: ser quia entre si, como são os seguintes: exercida por um técnico cuja formação de base psicanalítica tenha sido feito numa instituição re- a) A resolução de crises situacionais agudas conhecida segundo os padrões vigentes; visa, (pode ser obtida em prazo curto e, se bem prioritariamente, à obtenção de resultados analíti- manejadas, costumam ser de excelente cos, constantes de modificações da estrutura inter- prognóstico). na do paciente; essas mudanças devem ser profun- b) O esbatimento de sintomas (se não estive- das, estáveis e permanentes; se possível (mas não rem organizados em uma cronificação, tam- obrigatoriamente), o estabelecimento do setting bém são de bom prognóstico). (enquadre) deve seguir as recomendações vigentes c) Um melhor reconhecimento e utilização de na análise standard, sempre que essa indicação algumas capacidades sadias do ego, que prioritária não representar um descompasso com a estavam latentes, ou bloqueadas, e a possí- realidade, ou uma imposição do analista, na base do “dá ou desce”, como sendo a única saída possí- vel liberação das mesmas. vel para o paciente. Por razões óbvias, os tratamen- d) Uma melhor adaptação interpessoal (tan- tos psicanalíticos que são inerentes aos institutos to no plano da vida familiar, como na pro- de psicanálise, filiadas à IPA – tanto as análises fissional e na social). Não obstante o gran- pessoais dos candidatos, como as que esses reali- de mérito que representa esse benefício te- zam com pacientes, com a finalidade de supervi- rapêutico, deve ser levado em conta que são curricular – devem seguir obrigatoriamente o mesmo quando resulta uma inequívoca modelo clássico, que estiver vigente, e não permi- melhora no padrão de ajuste inter-relacio- tem uma flexibilização maior. nal, essa meelhora pode ser algo instável, O conceito de “cura”, por sua vez, vai muito sujeita a recaídas, quando ela não tiver sido além do significado latente que essa palavra suge- construída com os alicerces das profundas re (uma prestação de cuidados, como aparece em “cura” de uma paróquia; curador; pro-curador; cu- modificações da estrutura interna do indi- rativo; des-curar, etc.), da mesma forma que tam- víduo. bém vai além do seu habitual significado manifes- O resultado psicanalítico, por sua vez, é uma to (como é empregado na medicina, onde designa expressão que pressupõe o preenchimento de uma uma resolução completa de alguma doença). Em condição básica: a de uma modificação nas rela- terapia psicanalítica o conceito de “cura” deve alu- ções objetais internas do paciente e, portanto, de dir mais diretamente ao terceiro significado que essa sua estrutura caracterológica. Isso, necessariamente, palavra sugere, qual seja, o de uma forma de ama- implica em trabalhar com as primitivas pulsões, durecimento (tal como é empregado para caracte- necessidades, demandas e desejos que estão em- rizar um queijo que está maturado, sazonado), o butidos nas fantasias inconscientes, com as respec- que equivale ao trabalho de uma lenta elaboração tivas ansiedades e defesas; porém não fica unica- psíquica que permita a obtenção de mudanças psí- mente nisso, pois existem outros aspectos estrutu- quicas estáveis e definitivas. rantes provindos da terapia analítica, que serão es- Justamente com o propósito de evitar essa am- tudados mais adiante. bigüidade conceitual que o termo “cura” permite, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 413 principalmente o clássico significado que ele ad- sos maníacos, de um “falso self”, ou de uma quiriu na medicina – de um término, com a remo- superproteção obsessiva. ção total dos sintomas ou transtornos orgânicos – é 8. Uma diminuição das expectativas impos- que Bion propõe a evitação desse termo em psica- síveis de serem alcançadas, as quais são nálise, substituindo pela noção de “crescimento provindas tanto por parte de um ego ideal mental”, que, ao contrário do “fechamento” implí- quanto de um ideal do ego. cito na cura, mais bem sugere continuadas “novas aberturas”. 9. Um abrandamento do superego, sempre que este for de natureza arcaica, rígido, punitivo e todo-poderoso. Nesse caso, a CRITÉRIOS DE “CURA” ANALÍTICA mudança consiste em transformar esse tipo de superego em um “ego auxiliar”, isto é, Segue uma enumeração, em forma muito resu- que ele conserve as indispensáveis funções mida, dos principais aspectos que, na atualidade, delimitadoras, de proteção e de princípios caracterizam numa verdadeira mudança psíquica. éticos, a serviço do ego. 1. Uma modificação na qualidade das rela- 10. Uma libertação das áreas autônomas do ções objetais, as internas e, a partir daí, as ego, que possibilite um uso mais adequado externas. de suas nobres funções de: percepção, pen- 2. samento, linguagem, juízo crítico, conhe- Um menor uso de mecanismos defensivos cimento, comunicação, ação e criatividade. primitivos, notadamente as excessivas ne- 11. A aceitação da condição de dependência, gações, dissociações, identificações proje- a partir do insight de que depender dos tivas, idealizações e um controle onipoten- outros é, em princípio, sadio e inerente à te. condição humana. O medo do paciente de 3. Uma renúncia às ilusões de natureza sim- “ficar dependente da análise e do analista” biótico-narcisísticas. expressa, em verdade, que ele sofre de uma 4. A aquisição de uma capacidade em fazer “dependência má” (devido às decepções e (re)introjeções – e, daí, novas identifica- humilhações sofridas), a qual deve ser ções – de renovados modelos, tanto de ob- transformada em uma “dependência boa” jetos como de funções psíquicas, de valo- (tecida com confiança, respeito, amizade, res e de papéis. etc.). 5. A recuperação e integração de partes suas, 12. A utilização da linguagem verbal, em subs- que foram profundamente rechaçadas, re- tituição à não-verbal, a qual, muitas vezes, primidas e cindidas, e que estão projetadas especialmente em pacientes muito regres- em outras pessoas, ou ocultas dentro dele sivos, se expressa por meio de actings ma- mesmo. lignos e por somatizações, assim como por 6. A obtenção de uma capacidade em supor- uma contratransferência difícil, por vezes tar frustrações, absorver perdas e fazer um paralisante. Da mesma forma, em pacien- luto pelas mesmas, através da assunção do tes borderline e psicóticos, constitui-se seu quinhão de responsabilidades, e even- como uma importante mudança psíquica a tuais culpas, pelo destino de seus objetos utilização de símbolos (em lugar das equa- importantes, assim como também pelo des- ções simbólicas) e de abstrações. tino que ele deu às capacidades do seu ego. 13. A aquisição de uma “função psicanalítica 7. A isso deve seguir-se a consideração da personalidade”. Esta expressão, origi- (Winnicott utiliza o termo “concern”) pe- nalmente empregada por Bion, designa que las outras pessoas, e a capacidade de repa- o analisando fez uma adequada identifica- ração pelos possíveis danos inflingidos aos ção com as funções do seu psicanalista, o objetos. e a si mesmo. Não é demais lem- que vai possibilitá-lo a prosseguir a sua brar a importante diferença entre a verda- auto-análise pelo resto de sua vida. deira e a falsa reparação, sendo que essa 14. Uma ruptura com os papéis estereotipa- última pode-se processar através de recur- dos. Este é um ponto muito importante e 414 DAVID E. ZIMERMAN

que, parece-me, nem sempre tem mereci- seja, ele passa a existir, a ser um ente; daí, do a devida atenção por parte dos psicana- entidade). listas. De fato, muito comumente, o códi- 16. A obtenção de uma autenticidade e de uma go de valores e a conduta dos indivíduos é autonomia. A importância de que o pacien- repetitiva e estereotipada, e isso se deve ao te adquira uma autonomia está contida na fato de que essa conduta é comandada por própria etimologia dessa palavra. Assim, uma espécie de “computador interno” que, ela se forma a partir de auto (próprio) e de desde bebezinho, foi-lhe programado pela nomos (étimo grego, que tanto designa cultura de seu habitat sociofamiliar. Nessa “nome” como “lei”). Dessa forma, por meio programação, deve merecer um registro do que Lacan denomina o nome do pai, ou especial os valores, conflitos e expectati- a lei do pai, o analisando consegue des- vas dos pais, tanto os conscientes quanto, simbiotizar da mãe, ou seja, sair de uma e principalmente, os inconscientes. Sabe- condição de ser um sujeitado, ou um mos que os papéis designados pelos pais sujeitador, e adquirir o estatuto de um su- ao seu filho são os mais variados possíveis jeito, livre, a partir de uma liberdade inter- (por exemplo: o de nunca deixar de ser uma na, o que he faculta ser possuidor de um eterna criança; o papel de “gênio” ou o de nome próprio e de leis próprias a serem “bode expiatório”, etc., etc.), podendo tais cumpridas. Essa liberdade é indissociável papéis adquirirem uma forma imperativa e do “amor às verdades” e são elas que vão categórica. Nesses casos, os pais conven- permitir a passagem para um novo nível de cem a criancinha “quem” ela é e “como” mudança psíquica: a do exercício da auto- ela deve vir a ser (ou não ser) para garantir nomia, criatividade, aceitação dos limites o amor deles, sendo que, em caso de deso- e limitações, bem como do direito ao uso- bediência, tais pessoas serão acusadas, des- fruto de prazeres e lazeres. A propósito dis- de dentro de si mesmas, e para sempre, de so, vale lembrar a referência de Freud, em crime de infidelidade e de alta traição. Essa um rodapé de O ego e o id (1923): “A aná- é uma das principais razões da eclosão de lise se dispõe a dar ao ego a liberdade para estados depressivos diante de situações de decidir por um meio ou por outro”. um êxito pessoal que tenha sido construído 17. Ao mesmo tempo que o sujeito adquire o em moldes diferentes das expectativas em direito de sentir-se livre das expectativas e que o indivíduo foi programado. mandamentos dos outros (especialmente 15. A aquisição de um sentimento de identida- dos que moram dentro dele), ele também de, consistente e estável. Sabemos que a deve ser capaz de experimentar relações formação da identidade resulta da combi- afetivas com outras pessoas, reconhecen- nação de múltiplas identificações e que ela do-as como livres, inteiras, diferentes e se- se processa em vários planos, como o se- paradas dele, ao mesmo tempo em que xual, de gênero, de geração, social, profis- possa suportar sentimentos ambivalentes sional, etc. Por outro lado, vale assinalar em relação a tais pessoas. que a morfologia da palavra “identidade” compõe-se de idem (quer dizer: “igual”, ou seja, implica a manutenção de uma mesma ALGUNS ASPECTOS DE TÉCNICA maneira básica de o sujeito ser) e de enti- dade (que se forma quando a criança, ou o Além dos conhecidos procedimentos técnicos paciente, resolve a simbiotização, a qual se e táticos que visam promover as mudanças psíqui- caracteriza por uma indiferenciação entre cas, creio ser útil enfatizar, entre muitos elementos que constituem o campo analítico, alguns pontos o “eu” e o outro, sendo que a partir daí, o que conferem uma feição atualizada à prática psi- sujeito faz uma separação e adquire uma canalítica e que, como uma breve síntese do que individuação; assim, ele nasce psicologi- está contido nos capítulos deste livro sobre a técni- camente, como diz M. Mahler (1973), ou ca, são os seguintes: FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 415

• Natureza da ação curativa da terapia ana- no ego, tem merecido uma crescente impor- lítica. O critério de mudança psíquica per- tância e valorização por parte dos psicana- mite ser visto por diversos planos inerentes listas de todas as correntes. É claro que, se à vida do sujeito, os quais nem sempre coin- fôssemos aprofundar as funções do ego, po- cidem, pois o crescimento mental não se pro- deríamos desdobrar aquela sentença em ou- cessa de forma uniforme e, tampouco, é tras, do tipo “onde houver processo primá- abrangente de forma concomitante para todo rio, deve ficar o secundário”; “onde houver o mapa da mente humana. Ademais, o crité- o princípio do prazer, deve ficar o da reali- rio de “cura” também depende de quem ava- dade”, etc. 4) Do ponto de vista evolutivo, lia e, muito especialmente, do objetivo a que uma atualização dos fundamentais estudos a análise se propôs, o qual depende direta- sobre o complexo de Édipo e sobre o Narci- mente do paradigma vigente para uma de- sismo, justifica a seguinte máxima: “Onde terminada época deste primeiro século da houver Narciso, deve estar Édipo” (uma ciência psicanalítica. outra formulação deste princípio, seguindo Assim, somente para exemplificar, vale rea- uma terminologia de Lacan seria “onde hou- valiar os sucessivos aforismos que caracte- ver a lei do desejo (de fusão com a mãe) deve rizam, em Freud, a natureza da ação curati- ficar o o desejo da lei (de um pai que se in- va da psicanálise, conforme o estágio evolu- terponha entre a criança e a mãe). E, assim tivo de sua obra: 1) “O neurótico sofre de por diante, os aforismos relativos à cura ana- reminiscências e a cura consiste em rememo- lítica, provindos de outros importantes au- rá-las” (formulada a partir do ponto de vista tores, poderiam, aqui, sofrer um processo de da “teoria do trauma”). Este aforismo baseia- reavaliação atual. se na premissa correta de que a “melhor for- • Via “di porre” e via “di levare”. Em 1905, ma de esquecer é lembrar” e, assim, libertar inspirado em Da Vinci, Freud postulou a bela as energias psíquicas que estão a serviço da metáfora de que a cura analítica poderia se- repressão. Sabemos hoje que esse princípio, guir a dois modelos: o da via di porre, a embora válido em sua essência, não repre- exemplo de um pintor que cria a sua obra de senta mais do que uma pequena parcela do arte pondo as suas tintas em uma tela em processo curativo, sendo que essa própria branco, ou a via di levare, que corresponde formulação da importância das aludidas à criação artística de um escultor que, remo- rememorações é entendida na atualidade sob vendo (“levando” embora) pedaços de uma o vértice de que “o que mais importa na aná- peça de mármore, pode trazer o “nascimen- lise, a partir das recordações espontâneas do to” de figuras que, ocultas no seu interior, paciente (é útil lembrar que, etimologica- estavam como que “pedindo para nascer”, mente, re-cordar alude ao que vem do cora- como atestam as magníficas esculturas ção) consiste na possibilidade de que ele “Moisés”, “David”, ou a série dos “Escra- possa ressignificar o passado, a partir do vos”, todas elas de Michelângelo. presente. 2) O segundo aforismo de Freud Freud utilizou o modelo da “via di porre” relativo ao mecanismo curativo da psicaná- para caracterizar aqueles tratamentos, não lise: Tornar consciente o que é inconscien- psicanalíticos, que consistiam nas diversas te” (ponto de vista da “teoria topográfica”) técnicas sugestivas, como a hipnose, mode- deve ser entendido, na atualidade, que não lo esse que ficou desprezado na psicanálise, se trata unicamente de passar de uma sim- embora, na atualidade, considere-se que al- ples zona para uma outra, mas sim adquire o guma forma de sugestão é inevitável e ine- significado de que o paciente consiga esta- rente ao método psicanalítico. Assim, a psi- belecer um livre canal de comunicação en- canálise passou a ser regida pela “via di tre essas duas regiões da mente. 3) “Onde levare”, isto é, pela ideologia psicanalítica houver id (e superego) deve estar o ego” de que o papel do analista se restringiria a caracteriza a “teoria estrutural” de Freud. “retirar” os excessos neuróticos e psicóticos Este aforismo, por colocar o acento tônico do paciente para que então pudesse nascer e 416 DAVID E. ZIMERMAN

resplandescer a personalidade sadia que está ativo, tendo em vista que o mesmo pressu- oculta ou congelada dentro dele. Conquanto põe uma sintonia afetiva (empatia), intuitiva essa última afirmativa, genericamente, este- (que está subjacente à sensorial) e cognitiva, ja absolutamente correta, ela não deve inva- desde que a mente do terapeuta não esteja lidar que para certos pacientes em grau ex- saturada de pre-conceitos. 5) A regra do tremo de regressão, ela é insuficiente, por- amor às verdades, ainda que não esteja quanto tais pacientes podem estar requeren- explicitada com este nome na obra de Freud, do que o terapeuta ponha algo que eles nun- pode ser depreendida claramente em inúme- ca tiveram, e que foram substituídos pelos ras passagens de seus escritos sobre técnica. vazios dos “buracos negros” do seu self. O que importa, como um fator curativo, é • As cinco regras técnicas legadas por que “amor às verdades” designa uma atitude Freud. Acompanhando as transformações da analítica, por parte do analista, de veracida- teoria, técnica e objetivos terapêuticos da de, dele ser verdadeiro – e assim ser introje- psicanálise, as clássicas “recomendações” de tado pelo paciente – e que esse amor às ver- Freud também devem ser ressignificadas na dades não deve ser confundido com uma caça atualidade, tal como foi detalhado no capí- obsessiva às, supostas, verdades absolutas. tulo específico do presente livro. De uma • Elementos do campo analítico. Na atuali- forma extremamente reduzida, aqui, cabe dade não se concebe uma análise que seja dizer que, na atualidade: 1) A regra funda- unidirecional (o paciente traz o “material” mental (também conhecida como a da “livre enquanto caberia ao analista a função única associação de idéias”) deve ser entendida, de interpretá-lo); pelo contrário, o processo não como uma obrigação, mas sim como um analítico repousa em uma permanente direito à liberdade para o paciente verbalizar, vincularidade recíproca, o que constitui a ou não, tudo o que lhe vier à mente. 2) A formação do “campo analítico”. Assim, den- regra da netralidade não deve ser entendi- tro da concepção, que estamos adotando, de da no sentido de que o analista comporte-se que “cura” analítica, muito mais que um rigorosamente como uma mera superficie fria esbatimento de sintomas e remissão de trans- de um epelho que reflita tão-somente o que tornos caracterológicos, consiste em um cres- o paciente nele depositar; pelo contrário, cimento das capacidades mentais, os seguin- “neutralidade” deve ser conceitualizada tes oito elementos fundamentais também vêm como sendo uma arte em que o analista deve sofrendo as necessárias transformações téc- se envolver (empatia), sem, no entanto, fi- nicas, que, aqui, vão ser resumidas em uma car envolvido (nas malhas de uma contra- ou duas frases para cada um deles, visto que transferência patológica). 3) A regra da abs- eles estão especificamente estudados nos tinência indica que o terapeuta deve se abs- capítulos específicos: 1) Insight: vai muito ter de gratificar tanto os seus próprios dese- além de uma combinação de regras e deta- jos como os do analisando; na atualidade, lhes práticos, e constitui-se como um novo, cabe acrescentar que vale, sim, gratificar ao singular e apropriado espaço para o pacien- paciente, desde que fique claro que a me- te reexperimentar velhas experiências emo- lhor gratificação para ele não é a de ser aten- cionais que foram mal solucionadas no pas- dido em seus desejos, mas, sim, a de ser en- sado. 2) Resistência: contrariamente a de tendido pelo seu analista. 4) A regra da aten- como era considerada como um obstáculo à ção flutuante corresponde ao “sem memó- boa marcha de uma análise, os analistas de ria, sem desejo e sem ânsia de compreen- hoje reconhecem que elas servem como uma são” de Bion. Esta recomendação de Freud excelente amostragem de como o ego do continua sendo penamente vigente; no en- paciente se defende diante dos seus medos tanto, vale realçar que uma atenção flutuan- diante da vida. 3) Contra-resistência: O as- te não deve sugerir uma passividade e muito pecto mais importante a ser destacado é o da menos um desligamento por parte do analis- possibilidade da formação de conluios in- ta. Pelo contrário, trata-se de um processo conscientes (os conscientes é mais adequa- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 417 do denominá-los como “pactos corruptos”) “interpretação” de “atividade interpretativa”, entre as necessidades e desejos do paciente sendo que esta última sugere mais diretamen- com o seu analista e vice-versa. 4) Transfe- te um exercício dialético entre analista e pa- rência: um tratamento analítico, que não ciente, no qual as interpretações resultam, transitou pela, assim chamada, “transferên- em grande parte, de uma “construção” de cia negativa” não pode ser considerado uma ambos. 8) Insight e elaboração: esse aspec- análise completa pois ela não propiciou um to abrange todas as considerações presentes importante fator curativo, qual seja, o de neste capítulo, sendo útil ressaltar que a efi- reexperimentar e ressignificar os sentimen- cácia curativa das mesmas depende funda- tos agressivos. Pode-se dizer que a transfe- mentalmente da condição de que o analisan- rência “negativa” é “positiva”, se ela for bem do tenha conseguido atingir a posição entendida e manejada pelo analista. 5) Con- depressiva, segundo a concepção de M. tratransferência: o importante é que o tera- Klein, sendo que isso costuma vir acompa- peuta faça uma indispensável discriminação nhado de algum sofrimento psíquico. Nos e um reconhecimento entre o que, realmen- casos em que existe uma total evitação da te, é uma contratransferência (como resul- dor psíquica que é inerente à posição de- tante dos efeitos das identificações projeti- pressiva e que, ainda assim, o paciente ma- vas do paciente, dentro da sua mente) e aqui- nifesta melhoras, é necessário que o analista lo que não é mais do que a “transferência” fique atento à possibilidade de que se trate do próprio analista (em cujos casos, o pa- de uma pseudomelhora, constituindo aquilo ciente é, no máximo, um detonador). Da mes- que Bion denomina cura cosmética, isto é, ma forma, o processo curativo de uma análi- o paciente desenvolve uma série de cama- se, notadamente com pacientes bastante das bonitas, que estão encobrindo a perma- regredidos, depende fundamentalmente do nência de uma feiúra interna. A única forma destino que a contratransferência tomará na de o paciente enfrentar a dor mental, no cur- pessoa do analista: ela tanto pode servir como so da análise, é quando houver uma adequa- um importante meio de comunicação primi- da “atmosfera analítica”. tiva do paciente e como uma útil bússola • Atmosfera analítica. Esta expressão, aqui, empática, como também ela pode resultar designa o clima afetivo que se estabelece nas como patológica e confusionante. 6) Comu- sessões, a partir da atitude interna do psica- nicação: numa análise atual, de característi- nalista, sendo que a mesma é entretecida cas vinculares e dialéticas, é evidente que a pelos seus atributos genuínos e essenciais, forma de comunicação recíproca entre o par tais como as capacidades de empatia e de analítico, tanto a verbal, como a não-verbal, continência, entre tantas outras mais. Parto assume uma alta relevância. Em relação à do princípio de que toda e qualquer técnica verbal, o que mais importa é que o paciente analítica gira em torno de dois eixos funda- adquira a condição de discriminar quando o mentais, sendo que ambos são indissociados seu discurso está servindo para comunicar e complementares entre si. Vale traçar uma algo, ou se, pelo contrário, é para confundir representação gráfica disso, segundo o mo- e nada comunicar. Quanto à comunicação delo cartesiano, de duas coordenadas per- não-verbal, (principalmente a que se traduz pendiculares, sendo que o eixo vertical, da por actings e somatizações), faz parte do “atividade interpretativa”, é mais importan- processo curativo que o analisando possa te nos analisandos que têm uma melhor pensar as experiências emocionais e ex- integração do ego, enquanto o eixo horizon- pressá-las através do pensamento verbal. 7) tal, da “atmosfera analítica”, cresce em rele- Interpretação: é óbvio que análise sem in- vância na proporção direta do grau de terpretações não é análise e não pode pro- regressividade dos pacientes. Este último gredir; contudo, tampouco é concebível uma caso deve ser entendido a partir do inequí- análise que seja baseada exclusivamente em voco fato de que os atributos do psicanalista interpretações. Também é útil diferenciar também se constituem como um fator cura- 418 DAVID E. ZIMERMAN

tivo, porquanto eles exercem a função indi- os mesmos são indispensáveis até a conclu- reta de preencher as lacunas que resultaram são da obra, e depois são retirados. de uma deficiente maternagem original. Nes- • Neo-Identificações. Partindo do princípio de sas condições, é válida a analogia de que a que todo analisando é, em grau distinto, por- amamentação se compõe tanto do conteúdo tador de identificações patógenas, impõe-se (leite-interpretação) quanto da forma (a ati- como uma tarefa analítica imprescindível, tude da mãe-analista, em relação à maneira como fator curativo, o difícil processo de de segurar, alimentar, olhar e falar com o seu realizar des-identificações. É como se fosse filho-paciente, sua calidez, amor, etc.), des- uma “decantação”(termo da química que de que o analista não confunda a sua função designa a operação que separa duas substân- de preencher as lacunas primitivas da for- cias diferentes, como pode ser dois líquidos, mação do self desse tipo de paciente com a ou um líquido de um sólido, que estão mis- de substituir o papel da mãe ou do pai. turados e confundidos em uma mesma solu- • Funções do ego. A tendência atual é a de ção); trata-se, portanto, de uma decantação considerar que tão ou mais importante do que entre as diferentes identificações parciais, as a clássica descodificação das fantasias in- boas e as patógenas, que estão imbricadas conscientes, com as respectivas pulsões, an- no interior de cada sujeito. As desidentifi- siedades e defesas, consiste na necessidade cações abrem espaços dentro do ego, que de o analista priorizar a maneira de como o devem ser preenchidas com neo-identifica- seu analisando está utilizando as suas fun- ções, sendo que a pessoa do psicanalista, ções congnitivas do ego. Em outras palavras: como pessoa real, também funciona como como se processa a percepção do paciente um importante modelo para as novas identi- em relação aos fatos e às pessoas do mundo ficações do paciente, e isso se constitui um exterior; como ele utiliza a sua (in)capacida- importante fator curativo, creio que mais de para pensar; ele consegue formar símbo- importante do que é habitualmente conside- los e, daí, tem capacidade para as abstrações rado. e conceituações ou o paciente está detido no • Neo-Significações. Desde bebê, a estru- âmbito de equações simbólicas e, portanto, turação do inconsciente de todo indivíduo os seus pensamentos são concretos ?; e como vai se impregnando dos significantes veicu- é o seu juízo crítico ?. Da mesma forma, lados pelo discurso dos pais e da sociedade. valeria perguntar, até que ponto a sua fun- Tais significantes, ao se combinarem com as ção de conhecimento está mais voltada para fantasias inconscientes originais, vão com- o não conhecimento (-K, de Bion) das ver- pondo novas e profundas formações fantas- dades penosas; como é a sua comunicação, máticas que acabam regendo a vida dos nos- com qual tipo de linguagem; como são as sos pacientes. Por exemplo: uma mãe fóbica suas ações, no plano da conduta, etc. Sabe- emprestará um significado de “perigo” – e a mos que em pacientes detidos em níveis pri- necesidade de evitação – a tudo que estiver mitivos, tais funções do ego não se desen- acontecendo com o seu filho, e assim está volveram adequadamente de forma que, nes- seguramente fabricando um novo fóbico na ses casos, uma das tarefas do analista é a de família; o mesmo pode-se dizer em relação que, durante algum tempo da análise, ele ao doutrinário discurso dos pais, com signi- “empreste” ao paciente aquela função do ego ficações paranóides, obsessivas ou narcisis- que ele possui, mas que falta ao paciente (por tas e assim por diante. A exemplo do que exemplo, em muitos momentos, pensar pelo antes foi dito em relação às identificações, paciente e, assim, ensiná-lo a pensar). Para também é uma tarefa muito importante do que essa atividade do analista se constitua analista a de promover as des-significações, como um fator curativo, ela deve ser transi- seguidas de neo-significações. tória: o modelo que me ocorre é o dos anda- • Estereotipia de papéis. Aí temos um bom imes de uma construção, tendo em vista que exemplo de como a psicanálise pode se en- riquecer com a utilização de conceitos pro- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 419

vindos de outras áreas. A teoria sistêmica – a) No lugar de evadir as frustrações peno- viga-mestra das terapias do grupo familiar – sas, o paciente deve adquirir condições para aprofundou os estudos referentes ao inter- enfrentar essas frustrações inevitáveis e, as- jogo dos papéis e posições que cada mem- sim, modificar não só as formas de como bro de uma família é impelido a desempe- tentar solucioná-las, como também a possi- nhar, e que, muitas vezes, prolonga-se ao bilidade de obter uma modificação da fonte longo de sus vidas. A ruptura com o impera- geradora das frustrações. b) Suportar a dor tivo categórico desses valores e papéis cons- psíquica é o único caminho que permite a tituem-se como momentos críticos do trata- passagem da posição esquizoparanóide para mento psicanalítico, muito especialmente a depressiva e, como decorrência, de uma quando se trata de pacientes que são fortes aprendizagem com as experiências emocio- portadores daquilo que poderíamos denomi- nais. c) Bion estabelece uma significativa nar “parte simbiótica da personalidade”. diferença entre sentir a dor (pain) e sofrer a Durante o período de “dessimbiotização” e dor (suffering), em cujo caso o paciente está de transição de papéis rigidamente estereo- elaborando e processando os insights adqui- tipados para outros de natureza mais livre e ridos, muitas vezes dolorosos. d) O analista autônoma, tais pacientes podem apresentar deve estar atento para a possibilidade de que sintomas confusionais e depressivos, às ve- uma mudança significativa do estado men- zes com queixas hipocondríacas e de desper- tal do paciente venha acompanhada de uma sonalização. Se o psicanalista observar com dor psíquica muito intensa, que Bion deno- atenção, perceberá que o estado depressivo mina mudança catastrófica, a qual consiste do analisando, que está rompendo com a tra- na possibilidade de o analisando mostrar-se dição dos papéis que lhe foram imputados, confuso, deprimido, desesperançado, fazer tem uma forte tonalidade de um sentimento acusações ao analista de que está muito pior de traição (não é por nada que os termos do que antes da análise, não sendo rara a “tradição” e “traição” procedem de uma possibilidade de surgir uma ideação suicida. mesma raiz etimológica). Creio ser muito Apesar da dramaticidade do quadro clínico, relevante o terapeuta conhecer e estar atento é bem possível que ele seja temporário e re- ao surgimento de uma crise na análise do presente o preço pago por uma significativa paciente, justamente quando ele está proce- melhora e um expressivo crescimento men- dendo a uma ruptura com certos papéis, a tal. ponto de, pelo menos em meu entendimen- Embora todo crescimento psíquico tenha to, em situações mais extremas, essa situa- algo de doloroso porque vai contra uma ten- ção pode constituir uma das quatro causas dência do ser humano em sua busca do para- principais do surgimento da temida “reação íso narcisista, isso não deve ser levado ao pé terapêutica negativa” (as outras três causas, da letra, porquanto acredita-se, cada vez como já foi referido em outro capítulo, são: mais, que a busca de novas relações, de am- uma inveja excessiva do sucesso do analis- pliação do conhecimento, do sucesso de rea- ta; um superego altamente punitivo quando lizações, é uma função inata, natural e praze- o êxito analítico do paciente lhe representa rosa do ego. ser um triunfo edípico; e o encontro do • Parte psicótica da personalidade. Este ter- paciente com uma terrível depressão subja- mo, como já vimos, pertence a Bion, que o cente, onde jazem feridos e mortos que o emprega para caracterizar que todo sujeito, proíbem de ser feliz). em maior ou menor grau, é portador de nú- • A dor mental. É inevitável a presença de cleos bastante regressivos, remanescentes algum grau de dor psíquica, no curso de uma dos primitivos períodos evolutivos, como análise que promova verdadeiras mudanças onipotência, onisciência, uso excessivo de psicológicas. O autor que mais profundamen- identificações projetivas, etc., etc. Um pro- te estudou esse aspecto foi Bion, e cabe des- cesso analítico que não transitou por esses tacar alguns dos aspectos por ele abordados: núcleos psicóticos, deve ser considerada, no 420 DAVID E. ZIMERMAN

mínimo, incompleta, porquanto é a análise do que tenha sido o tratamento. Prefiro con- dessa “parte psicótica” que possibilita a cria- figurar como tendo sido um “término”, ou ção de um espaço mental no paciente no qual: seja, a conclusão de uma importante etapa 1) A onipotência seja substituída pela capa- da vida, e isso abre as portas para uma pos- cidade para pensar. 2) A onisciênca dê lu- sível reanálise, para um outro momento da gar à formação de uma capacidade para vida do analisando. Se tomarmos o prefixo aprender com as experiências. 3) No lugar latino “in”, no sentido de uma interiorização, da prepotência (pré-potência) deve ficar um e não de uma negativa, que é o seu outro reconheccimento da dependência, desampa- significado habitual, podemos dizer, a partir ro e impotência. 4) Um habitual estado men- de um vértice etimológico, que uma análise tal de confusão deve ser substituído por uma torna-se terminável quando ela fica inter- capacidade para fazer discriminações, entre minável. Em outras palavras, um tratamento o que é verdadeiro e o que é falso; entre uma analítico termina quando o analisando, mer- parte da personalidade que se opõe a uma cê de uma boa introjeção da função psicana- outra, etc. 5) A curiosidade arrogante e lítica do seu analista, está equipado para intrusiva deve ceder lugar a uma curiosida- prosseguir a sua, eterna, função auto-analí- de sadia. 6) Um estado mental de arrogân- tica e, dessa forma, continuar fazendo reno- cia deve ser subsituído por um orgulho de si vadas mudanças psíquicas. Um critério de próprio. 7) No lugar de um uso excessivo de resultado analítico exitoso, segundo Bion, identificações projetivas, deve haver o de- não é o de o paciente vir a ficar igualzinho senvolvimento de uma capacidade de empa- ao analista e estar curado igualzinho ao ana- tia e de continência. 8) A costumeira moda- lista, mas, sim, o de vir a tornar-se alguém, lidade transferencial de uma exagerada idea- que está se tornando alguém. lização ou de denegrimento deve ser subs- Partindo do princípio que o analista é uma es- tituída por uma harmônica introjeção da pécie de arquiteto – que, juntamente com o cliente, “função psicanalítica da personalidade” do lida com os espaços mentais, modificando-os, analista, de tal sorte que possibilite ao pa- abrindo paredes, emprestando mais luz, cores, har- ciente o desenvolvimento de uma “função monia e funcionalidade – quero concluir o espírito auto-analítica”. deste capítulo, com a citação de uma frase de um • Término da análise. Desde Freud (1937) eminente arquiteto inglês, a qual considero muito sabemos que existe uma velha polêmica: a tocante e que, poeticamente, sintetiza e define o análise é terminável ou ela é sempre inter- espírito deste texto. Diz Denys Lasdun (entre pa- minável? Sou dos que pensam que ela nunca rênteses, eu intoduzo alguns termos que remetem à é totalmente terminável, levando em conta situação analítica, e os grifos são meus): Nosso papel é proporcionar ao cliente, dentro do tempo que a cura analítica é bem diferente da cura, e custo (e capacidades) disponíveis, não o que ele ou “alta”, em clínica médica. Por essa ra- quer (pelo menos, no início da análise), mas o que zão, e pelo risco de que de que possa ser ele nunca sonhou em querer, e, quando ele tem o uilizada como um atestado de plena e com- produto (resultado analítico) final, o reconhece pleta saúde emocional, evito utilizar o ter- como sendo exatamente o que ele queria o tempo mo “alta” em análise, por mais bem-sucedi- todo. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 421

CAPÍTULO sem maiores pretensões didáticas, em uma seqüên- cia um tanto quanto livre, uma série de temas teóri- co-clínicos encadeados ou não entre si. Assim tó- picos, tais como a palavra, a ação, os sonhos, a sexualidade, os pais,o campo, a clínica, etc., pode- 39 riam ser abordados em uma espécie de associação livre de total responsabilidade de quem escreve. Desnecessário dizer que opto pela segunda pos- sibilidade que me apresentei, com a qual, sem dú- vida, me divirtirei (no sentido winnicottiano, de jo- Fundamentos Psicanalíticos gar) mais. com Crianças e Adolescentes A PSICANÁLISE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EXISTE ? Frederico Seewald* Respondida negativamente esta pergunta, é óbvio que este capítulo não teria nenhum sentido. Uma reflexão atual sobre a psicanálise das No entanto, não pensem que se deva simplesmente crianças e dos adolescentes não se apresenta como dar por acentado algo que, no nivel do domínio uma tarefa sem complicações. A tendência mais público pareça não apresentar dúvidas. É sabido natural, uma espécie de curso a seguir, talvez acon- que de parte de muitos psicanalistas que trabalha- selhasse uma revisão histórica que tratasse de apon- va com adultos existia, e ainda existe, uma forte tar, neste final de século, os desdobramentos mais resistência em considerar as crianças e adolescen- importantes que marcaram o surgimento,a evolu- tes como pacientes potencialmente semelhantes aos ção e o reconhecimento dessa espécie de especia- seus crescidos clientes. Um ar de certa desconside- lidade psicanalítica.Esta seria a opção mais natu- ração sempre foi perceptível na apreciação da ati- ral, mais fisiológica e, de certo modo, mais sim- vidade, principalmente clínica, dos colegas que se ples e menos comprometedora para o autor. Prin- dedicavam ao tratamento analítico destas criaturas cipiaria, naturalmente, por Juanito, para estabele- que se encontravam em suas duas primeiras déca- cer um marco. Dedicaria-me, talvez exaustiva e des- das de vida. Diga-se de passagem que não se trata necessariamente, com a aparição das duas escolas de fenômenos isolados, parecendo obedecer a uma mais importantes comandadas por Melanie Klein e ordem muito mais geral, tanto no sentido insti- Anna Freud. Trataria de reconhecer o valor de suas tucional como da cultura onde estamos inseridos. contribuições, seus fundamentos principais Institucional porque, por paradoxal que pareça, a e,inevitavelmente, suas incompatibilidades ainda psicanálise de criancas e adolescentes como for- mais drasticamente reforcadas por seus seguido- mação regular, dentro das sociedades oficiais da res.Teria, por certo, que descrever os novos hori- IPA, com exceção de um ou outro pico histórico zontes, as ampliações, decorrentes do trabalho de mais ou menos bem localizados (Inglaterra, Argen- muitos outros analistas, Ballint, Winnicott, Mahler, tina, principalmente) nunca se constitui em algo Jacobson, Aberastury,Meltzer, Tustin, para citar só sólido e bem-estabelecido e, na opinião de alguns, alguns, que de muitas formas aprofundaram nos- tendendo ao desaparecimento. Estaria equivocado sos conhecimentos não apenas do funcionamento K.Abraham quando, em 1924, comentando um tra- da mente de nossos jovens pacientes como, em balho de M.Klein (“Uma Neurose Obsessiva em decorrência, nas possibilidades de aproximarmo- uma Crianca”) profetizou que “o futuro da psica- nos deles.Ao final teria dito tudo o que já foi dito. nálise reside na técnica de jogo”? Talvez não. Não Sempre existiria a possibilidade do mérito de uma existe nenhuma dúvida que grande parte dos avan- revisão bem feita e a sensação de tarefa cumprida. ços do conhecimento psicanalítico, ao longo de seus Uma outra possibilidade, bem mais complexa quase 100 anos, são derivados das investigações e de maior risco para o autor, seria a de repensar, das mentes privilegiadas, e da sensibilidade apri- morada, de uma leva de psicanalistas que teve nas criancas e adolescentes suas principais fontes de *Médico Psiquiatra. Membro Efetivo e Psicanalista observação e inspiração. Nem sempre, entretanto, didata da SPPA. Psicanalista de crianças e adolescen- o fruto desta árvore caiu sob os galhos da árvore tes. 422 DAVID E. ZIMERMAN institucional. Anna Freud teve a publicação de seu Ainda assim, ou por tudo isto, a complexidade livro O tratamento psicanalítico de crianças, adi- deste campo fascina. As investigações na área dos ado por quase 20 anos na Inglaterra por problemas bebês e os estudos transgeracionais, para citar dois essencialmente políticos derivados de seus confli- exemplos, apontam para o futuro, para uma psica- tos com M.Klein e seu principal defensor, Ernest nálise renovada, dinâmica, criativa, revolucionária Jones. A Senhora Klein, por seu turno, teve de pas- como em sua essência. sar a vida afirmando que sua psicanálise era a psi- Em um contraponto, permitir-me-ia questionar: canálise de Freud quando eram por demais eviden- existe uma psicanálise que não seja a das crianças tes – sem qualquer atribuição de valor – seus des- e dos adolescentes? vios metapsicológicos. D.Winnicott, com toda a sua capacidade criativa e contribuições inovadoras, não encontrava lugar dentro da Sociedade Britânica DO BRINCAR COMO TÉCNICA AO para dar seus seminários uma vez que não perten- BRINCAR COMO CAMPO cia a nenhum dos dois principais grupos. D.Meltzer foi afastado da IPA, F. Tustin,etc., etc., etc... O fru- Ainda que a Dra. H.Hug Hellmuth, em 1921, to, mesmo caído longe do pé, quando se mostrou tenha se utilizado de brinquedos na sua técnica de doce, logo foi incorporado às receitas oficiais. análise de crianças foi, sem dúvida, a genialidade Talvez os analistas de crianças vivam social- de M.Klein que soube lhe dar um novo sentido e mente uma condição semelhante à destinadas a aplicabilidade. Desde o princípio ela deu-se conta outras classses que se dedicam à população jovem. que, para tornar possível a análise de crianças, im- Pediatras foram, e as vezes ainda são, considera- punha-se uma estratégia que pudesse transpor a bar- dos “subespecialistas” por outros profissionais da reira da linguagem. Para tanto, observando o mais medicina. Jardineiras, professoras de pré-escola e óbvio, como convém a todas as grandes descober- educadores de primeiro e segundo grau, em um tas, percebeu que as crianças expressavam suas fan- gradiente que obedece à etapa cronológica, são, de tasias, seus desejos e experiências de um modo sim- fato, menos preparados e têm menor remuneração bólico por meio de brinquedos e jogos. Relacio- que os profissionais que trabalham com adultos. nou isso, de imediato, com os mesmos meios de Na psicanálise tornou-se comum a observação de expressão arcaica, filogenéticos, a mesma lingua- que era inevitável uma deserção progressiva dos gem que era familiar ao estudos dos sonhos, como analistas de crianças e adolescentes em direção a realizados por Freud. Ressaltou – e isto me parece uma clientela adulta. Uma vez, em um congresso, da maior importância – que o simbolismo era só uma experiente colega do Rio de Janeiro comen- uma parte desta linguagem. tou que trabalhar com crianças implicava em con- Com isso, ela pretendia ressaltar os múltiplos dições “geográficas e ortopédicas”. Geográficas significados que um único brinquedo, ou parte de porque o consultório exigia um “plus”, a sala de um brinquedo, pode ter, decorrendo que só com- crianças. Ortopédicas porque nenhuma coluna ver- preenderemos seu significado se conhecemos sua tebral resistia imune à passagem dos anos, acaban- conexão adicional e a situação analítica global na do por ser sucateada pelos jogos, dramatizações e, qual se produziu. por vezes, imposições de limites físicos a esses jo- O brinquedo tem proximidade com o sonho, esta vens pacientes. Trata-se de uma maneira graciosa foi então uma de sua primeiras e principais conclu- de, ao meu ver, criar uma representação para o li- sões. Haviam diferenças fundamentais. Os sonhos mite do ofício analítico. Os problemas “geográfi- dispensam as palavras, como já foi dito, assim como cos e ortopédicos”, vistos de outra maneira, pode- o brinquedo,mas enquanto nos sonhos a matéria- riam ser considerados problemas de “espaço e de prima de sua construção repousa sobre as imagens tempo”. O espaço e a condição físicos, talvez não visuais, no brinquedo torna-se fundamental a ação. sejam mais do que uma metáfora do espaço mental Na criança, mas também no adolescente, a ação, e da maleabilidade somato-psíquica para a manu- que é mais primitiva que o pensamento e a palavra, tenção de um standard analítico “suficientemente constitui a parte mais importante de sua conduta. bom”. O refúgio em condições de menor exigência Da mesma forma que foi transcedental a obser- – o setting analítico clássico – garantiria uma es- vação feita por Klein de que o brincar implicava a pécie de descanso ou aposentadoria das turbulên- expressão de fantasias, desejos, que, portanto, era cias do front de batalha com as crianças, os adoles- impreganado de significados e simbolismos, o que centes e, não esqueçamos, com os seus pais. entre tantas derivações permitia a estruturação de um método analítico de aproximação – a técnica FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 423 lúdica – foi decisivo que surgisse alguém como A COMPLEXIDADE IRREDUTÍVEL Winnicott para apontar para uma outra dimensão do brincar. Ele, na sua exposição teórica sobre o Utilizo-me aqui de um conceito da biologia mo- brincar (1971), irá nos alertar que os psicanalistas derna. Michael Behe, bioquímico da Pensilvânia, tenham estado mais ocupados com a utilização do escreveu recentemente um livro – A caixa preta de conteúdo da brincadeira do que em olhar a criança (1996) – no qual questiona, em suma, algu- que brinca e escrever sobre o brincar como uma mas aplicações do conceito darwiniano da evolução coisa em si. Com isto, em um salto qualitativo, natural. Em um dado momento utiliza-se de um Winnicott propunha que o brincar precisava ser modelo teórico que denominou de complexidade estudado como um tema em si mesmo, suplemen- irredutível. Esta consiste, basicamente, em duas eta- tar o conceito de sublimação do instinto. Isto acar- pas. O primeiro passo para determinar a complexi- retará uma espécie de turning point no trabalho dade irredutível consiste em especificar a função do psicanalítico, uma vez que em uma de sua exten- sistema e todos os seus componentes. Um objeto sões permite concluir que o que se diga sobre o irredutivelmente complexo será composto de várias brincar de crianças aplica-se também aos adultos. partes, todas as quais contribuem para a função. O Na análise desses, manifesta-se, por exemplo, na segundo passo consiste em perguntar se todos os escolha das palavras, nas inflexões de voz e, na componentes são necessários à função. Para verdade, como lembra Winnicott, no senso de hu- comprender bem a conclusão de que um sistema é mor. irredutivelmente complexo e, por conseguinte, não Mas, na verdade, processei aqui um desvio ao tem precursores funcionais, o autor citado propõe qual devo retornar mais tarde. Estava falando de uma distinção entre precursor físico e precursor precursores do pensamento e da linguagem – a ação, conceitual, que são temas muito interessantes para em contraposição com as imagens oníricas do so- um aprofundamento do assunto e para os quais re- nho. De um lado essas pérolas do tesouro psicana- meto os mais curiosos à leitura do livro. lítico, uma das vias régias para o inconsciente, pe- Por ora basta-nos que fique claro o conceito de ças nobres que ornamentam as mais belas páginas complexidade irredutível. Em um vôo de imagina- da nossa literatura analítica. Condição prínceps para ção tomemos um sistema extremamente complexo a descrição dos estados mais elaborados da mente – talvez o mais complexo de todos – a mente huma- e para o exercício joalheiro de microscopia de nos- na e tentemos decompô-la nos seus componentes sas especulações teóricas mais refinadas. De ou- mais elementares. Teríamos de listar em primeiro tro, o brincar simbólico, representativo, psicanalí- lugar a senso-percepção, seguida dos afetos e da tico por assim dizer, a menininha cuidando de suas conduta. A memória, o pensamento, a linguagem, a bonecas, o menininho enfrentando inimigos com inteligência, o juízo crítico, etc., são todos desen- sua espada, etc. Infelizmente, a atividade motora, volvimentos posteriores, o que não significa que a conduta em geral, não parece querer nos conce- menos importantes. Tomemos um feto diante de uma der apenas flores. Ela traz consigo uma outra inde- amniocentese como modelo. Ele “percebe” algo es- sejável dimensão que inclui a força bruta, a nature- tranho em seu entorno, recua, encolhe-se e, por exem- za desenfreada, o boxeador com sua luvas tentan- plo, põe o dedo na boca. Não me perguntem, agora, do impor-se à regulagem desse delicado relógio como um feto processa essas espécies de “proto-sen- analítico.Todas aquelas atividades “indesejáveis”, sações”, apenas não acreditem que a cesura do nas- consideradas obstrutivas porque escapam da com- cimento é que viabilize formas de sentir coisas. preensão mais direta e que são rotuladas com al- Se tomarmos o aparelho psíquico na sua forma gum cunho pejorativo e as vezes quase religioso, mais elementar, em sua degradação máxima, os ele- de atuações. Esquece-se, comodamente, de que o mentos básicos exigidos seriam esses. Percebe-se signo é o precursor do símbolo. algo, sente-se algo e age-se em relacão ao percebi- Neste início de considerações sobre o campo do e sentido. Caso retiremos qualquer um desses abro destaque para o brincar (forma de ação sofis- três componentes, mínimos, não acredito que po- ticada, representativa, simbólica) mas, também, deríamos falar de aparelho psíquico, na forma como para todas as outras formas de conduta menos com- o comprendemos. Mesmo em uma das condições preensíveis e, portanto, menos toleradas, que cons- psicopatógicas mais graves e limitantes como o tituem o âmbito do trabalho com crianças e adoles- autismo infantil (psicogênico) primário, no qual centes. tudo pode parecer atrofiado, subsedesenvolvido, te- Poder-se-ia dizer que este é um campo onde se ríamos ainda muito mais do que esses tres primei- privilegiaria uma metapsicologia da ação. ros elementos. 424 DAVID E. ZIMERMAN

Mediante potenciais de desdobramento infini- que nos apresentam as crenças, por um lado, e o tos, com a passagem do tempo, ele nos permitirá delírio, por outro. operar com números, construir cidades, decifrar o O predomínio do ato sobre a palavra: atuações, código genético, escrever novelas, compor sinfo- adicções, psicossomática, etc. nias, jogar xadrez, etc., etc., etc... Em ambos os casos, como se depreende, apa- Neste momento é bem possível que o leitor es- recem excessos de referentes fáticos e difculdades teja perguntando-se onde pretendo chegar com este com as metáforas. Ainda assim, é fundamental con- tema da complexidade irredutível e do aparelho psí- siderar – e diferenciar – elementos que podem ter quico. Minha resposta, junto às desculpas pelo ca- uma qualidade patológica de outros que são parte minho talvez excessivamente longo percorrido, é natural dos processos de estruturação psíquica. pretender salientar a importância da conduta, da Nesta segunda visão, o gesto ou o ato são tão ação, dentro da estrutura básica da mente. Mas isto significantes quanto a palavra. Até porque será en- todos sabem, corro o risco de ouvir. Certo, todos tre o corpo e a palavra que se processará a simbo- sabem, menos, às vezes, parece, o método analíti- lização. co. Não se discute a primazia e o destaque dos ca- Pareceria que a reavaliação dos signos nos re- nais sensoperceptivos – umas das definições que meteria à consideração de que o icônico não deveria mais me agrada de nosso ofício é justamente a de ser encarado como um momento inferior do desen- se buscar diminuir todas as formas de ataque à volvimento progressivo, como várias outras noções sensopercepção – nem, muito menos o papel dos em psicanálise (algumas das quais me referirei mais afetos na estruturação da vida psíquica e na pró- adiante), como símbolos degradados, mas, sim, como pria condução e viabilidade dos tratamentos analí- tendo uma qualidade, um caráter próprio, definidores ticos. Mas e com relação à ação, à conduta, à de um espaço-tempo da evolução humana. Esta é motricidade, observamos a mesma consideração? uma visão, imagino que percebam, que restabelece E a regra da abstinência, e a associação livre, e a valor a determinados fenômenos que só são perce- “cura pela palavra”, o que privilegia a psicanálise? bidos pelo lado da patologia. No âmbito da estruturação psíquica, então, apa- recem como em uma espiral e, simultaneamente, SIGNOS E SÍMBOLOS momentos icônicos, iniciais e simbólicos. São reflexões como estas que um novo olhar Eu falava antes de uma metapsicologia da ação. sobre a clínica nos impõe, onde se destaca a im- Se a palavra é o destino final onde o símbolo ad- portância da imagem, do perceptivo, que abarca quire seu real estatuto, não nos podemos esquecer todo o sensorial e que, na maioria de nós, evoluirá de que a criança comunica-se preferencialmente para a constituição da linguagem e do discurso. brincando, ela diz, fazendo. A ação e o ato neces- Apenas que, para alguns, não. sitam ser encarados, por isto, como parte de seu discurso e precisam ser vistos pela psicanálise como conceitos fundamentais e não como resgates de uma CAMPO LINGÜÍSTICO E CAMPO VISUAL distorção. Apenas por meio de uma reconsideração de critérios, uma reavaliação ao ato, torna-se pos- Oliver Sacks, professor de neurologia clínica sível representar as patologias atuais. no Albert Einstein College de Nova Iorque, consi- A simbolização nos capacita dar sentido a mui- derado um dos grandes escritores clínicos do sécu- tos sintomas, lapsos, sonhos, etc., mas esbarra nos lo, rende homenagem a Temple Grandin, uma mu- limites dos signos que se apresentam como fenô- lher autista extraordinária, que se descrevia como menos não capturáveis para um possível entendi- “um antropólogo em Marte”, dando a um de seus mento analítico. livros exatamente esse título (1995). Temple, licen- M.Pereda (1997), num trabalho sobre investi- ciada em zoologia, professora da Universidade do gação em metapsicologia, considera que, em ge- Estado do Colorado e com um negócio de sucesso ral, existe coincidência na noção de déficit ou trans- na atividade privada, não tinha a menor idéia de tornos da simbolização, sendo possível agruparem- que era capaz de desenhar e de fazer projetos até se duas principais características: os 28 anos. Aí conheceu um desenhista e “vi como Transtornos de pensamento, que mostram uma fazia. Fui e comprei exatamente os mesmos instru- pobre discriminação da fantasia-realidade. Neste mentos e lápis que utilizava – uma Pentel HB 0,5 – grupo abrir-se-ia o impreciso limite das convicções e comecei a fingir que era ele. O desenho se fez sozinho e, quando o acabei, não acreditava que o FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 425 havia feito. Não tive que aprender a desenhar ou com um objeto. Um prejuízo na área bidimensional projetar, fingia que era David, apropriei-me dele, acarretaria transtornos evidentes no aprendizado de sua maneira de desenhar e de tudo o mais...” uma vez que necessitamos de uma espécie de ade- “Como você pensa?”, não deixava de perguntar são ou aderência a pessoas ou teorias, em um pri- a Oliver. “Se você pensa em termos visuais, é mais meiro momento, para, em uma espécie de osmose, fácil identificar-se com os animais. Se todos seus incorporarmos sua idéias e proposições. processos de pensamento se realizam lingüisti- Minha proposta, em síntese, é que devemos nos camente, como vai imaginar a maneira de pensar de habituar a pensar e enfatizar mais as diferenças, uma vaca? Porém se pensa em imagens... “ No nível cada sistema tem seu eixo próprio e, dentro de cada do sensório-motor, do concreto, do imediato, do eixo, deveremos poder examinar as peculiaridades animal, Temple não possuía dificuldade alguma”. e potencialidades envolvidas. Isto inclui, entre ou- Se nos detivermos um pouco para observarmos tras coisas, um cuidado especial com a categori- e não “comprendermos” o que as crianças e ado- zação (diagnósticos e prognósticos feitos habitual- lescentes fazem, seremos obrigados a concluir que mente nas avaliações de crianças e adolescentes), há muito mais de dramatização do que de relato, uma vez que se pretende, as vezes, estabelecer uma mais demonstração do que narração, e terá que se correlação apressada que atribui, por exemplo, uma dar mais importância ao olhar do que a escuta, que, curabilidade otimista às neuroses e um desânimo de resto, é o que propunha J.Lacan em 1963. O pessismista com relação aos problemas de condu- plano se processará mais no nível do acting out do ta, borderlines, transtornos de gênero e psicoses. que da associação livre, continuará ele, e seu tem- po próprio não será o desenvolvimento diacrônico do relato, no qual um significante remete aos se- DO CAMPO COMO “FORT DA” guintes ou aos anteriores, senão o deslisamento sincrônico da imagem, instantânea, fugaz, e por isto Todos recordam da “brincadeira do carretel” mesmo instável, deslocada não já no tempo, senão descrita por Freud. Observando seu neto(?), ocu- no espaço. pando-se com a ausência da mãe, detectou um Parece-me um erro comum – e desastroso cli- momento-clave do desenvolvimento. Por intermé- nicamente – considerar-se simplesmente as opera- dio do ir e vir do carretel permitia-se uma forma ções provenientes do campo da ação/imagem com elaborada de lidar com a díade básica da existên- sendo justapostas ou conflitivas com as operações cia: a presença e a ausência do outro. Por muito do campo linguístico. Seria mais ou menos o equi- anos, e até hoje, esse jogo do aparecimento/desa- valente a desconsiderar-se o narcisismo primário parecimento ficou consagrado como sendo a ma- freudiano ou a posição esquizoparanóide kleiniana nifestação da atividade lúdica em sua forma mais como entidades indesejáveis. Mais do que isso, a básica, ao mesmo tempo em que a primeira função noção de um aparelho psíquico dialético, em cons- designável como “brinquedo”. Seu significado era tante interação com suas próprias instâncias e com eloquente, viabilizava nada menos do que poder outros aparelhos – usando de todas as suas poten- simbolizar um desaparecimento, uma perda, dar re- cialidades – parece-me a forma mais adequada de presentação à ausência. É em torno dessa noção se apreciar esse complexo sistema. Assim, a tri ou que Winnicott iria desenvolver, mais tarde, uma de tetradimensionalidade não reduz a pó os fenôme- suas mais brilhantes contribuições, a dos objetos e nos uni ou didimensionais. Explico melhor: a ca- fenômenos transicionais. pacidade evoluída de operar com identificações As relações humanas, e aí se inclui o contato (sejam introjetivas, como no caso da intuição, se- analítico, alternam-se entre estes dois extremos: o jam projetivas na busca de formas básicas de co- júbilo (pelo encontro) e o desamparo (pela ausên- municação), procedimentos tipicamente tridimen- cia) intermediados indelevelmente, por toda a vida, sionais; ou, ainda, aperceber-se da passagem do pela fenomenologia transicional. O analista e seu tempo e da inevitabilidade da morte, formas de método, objeto e campo, têm sua maior eficiência pensar tetradimensionais da mente, não excluem e justamente quando encarados assim. Em uma oca- nem mesmo reduzem a importância das operações sião, Winnicott (1979) considerou três tipos de pos- uni ou bidimensionais. Isto porque, por exemplo, a sibilidade de encontro entre o profissional e seu ausência de recursos unidimensionais nos impedi- paciente; na primeira, analista e pacientes sabem ria, entre outras coisas, de conciliar o sono ou en- (e podem) jogar, sendo possível então a psicanáli- tão de termos um orgasmo, circunstâncias nas quais se clássica (representações, símbolos, associações temos de admitir um retorno a um estado de fusão livres, sonhos, etc.). Na segunda, o paciente não 426 DAVID E. ZIMERMAN sabe jogar, e para que a análise seja uma possibili- fica, por muitos colegas, negado pela manutenção dade ele deverá acessar esta condição previamente do título de inanalisáveis para tais pacientes). A (com o auxílio de seu analista). A terceira é quan- outra conseqüência, não menos desastrosa, é o aban- do o analista não sabe jogar e, aí, não há o que dono da psicanálise como método de escolha e de fazer. possível ajuda. Não se trata de negar que outras A primeira e a terceira eventualidades não me correntes, com outros referenciais, possam ter mui- interessam neste momento. Convido o leitor a re- tas contribuições a dar na abordagem da clínica fletir sobre a segunda. Ela aponta exatamente para atual, apenas que seria injusto com a própria psica- esta categoria de pacientes, talvez a maioria da clí- nálise, por todas as possibilidades que intrinsi- nica atual, que se transformam, com grande facili- camente contém, que ela ficasse de fora deste cam- dade, em candidatos a multiplos atendimentos. Nas po. crianças e adolescentes são os fracassos escolares, Para tanto, não se fazem necessários apenas a os “síndromes de déficit de atenção”, os borders, intuição e a coragem. Nesse sentido, temos muitos os abusos de droga, as anorexias, bulimiais, psico- e belos exemplos de “extravagâncias” clínicas para ses,etc., que, invariavelmente, já possuem um cur- nos deleitar. Alguns meses atrás tive contato, por rículo de busca de auxílio em vários consultórios, exemplo, com um livro de T. Ogden, autor que ad- com profissionais de todas as abordagens e com miro muito, em que entre tantos casos narra o de resultados muito insatisfatórios. um paciente, com bastante experiência prévia de Talvez a primeira providência diante dessa clí- análise, que, quando chega a ele estabelece uma nica seria a de saltar, com escreve Foucault, para o condição para iniciar novo tratamento: que sem- interior da consciência mórbida buscando ver o pre, em cada sessão, quem deveria começar a falar mundo patológico com os olhos do próprio pa- seria Ogden. Ele aceita e, agora, não importa o ciente. desenvolvimento dessa análise e de suas motiva- ções para acordar com essa espécie de cláusula contratual. Apenas que, algo aparentemente inusi- UMA CLÍNICA PRÉVIA AO BRINCAR tado, estranho, fora do padrão convencional, é absolutamente comum – ainda que não expressado O trabalho já de muitos anos com um grande lingüisticamente – no dia-a-dia com esses jovens a número de pacientes, as inúmeras avaliações, a ri- quem me referia antes. Com muitos deles não ape- queza de historiais clínicos trazidos por colegas nas seremos quem tomará a iniciativa de falar, mas, para discussão em supervisão tem se encarregado e por muito tempo, seremos os portadores dos có- de orientar-me decisivamente para esta nova espé- digos verbais, verdadeiros designadores e registra- cie de clínica. São aquelas crianças agitadas apa- dores dos fatos e dos sentimentos. Então, como rentando mais déficit do que conflito, são os laten- dizia, não se trata apenas de intuição e de coragem, tes que parecem “não se ter dado conta”de que en- embora essas sejam fundamentais, mas de uma dis- traram na latência, são púberes famintas que triun- posição para repensar nossos modelos, e se novos fam sobre suas próprias necessidades, jovens ado- se mostrarem mais úteis, adotá-los sem constran- lescentes que, ao lado de um considerável consu- gimento. mo de drogas, praticam todos os outros rituais de Os modelos, nossos conceitos e nossas teorias, autodestruição, e assim por diante. Parece que es- como já propunha R.Rodulfo (1990) em O brincar taria na hora, ou até estamos atrasados, de perder- e o significante, são iguais aos brinquedos, para mos o costume de referirmo-nos a essa população utilizá-los deve-se poder quebrá-los, deve-se po- como sendo de pacientes graves. Estes são os pa- der sujá-los, perder o respeito por eles. Nossa pro- cientes que a demanda nos oferece, é deles que te- dução científica é pródiga em repetir monotona- mos de nos ocupar e quanto menos adjetivações, mente conceitos, diz-se o que já foi dito à exaustão, melhor. Aproximemo-nos de suas limitações e im- em lugar de fazer os conceitos “trabalharem”, da- pedimentos, pulemos para dentro e, talvez, possa- rem de si, desdobrarem-se produzindo novos co- mos observar o mundo como eles percebem e isso nhecimentos. crie novas expectativas para o trabalho com eles. Rodulfo, por exemplo, fala de evidências de O risco de nos mantermos imóveis, apresentan- funções do brincar anteriores ao fort da, funções do nossas ferramentas de trabalho e tentando trazê- que se podem ver desdobrar, em seu estado mais los, a qualquer custo, para dentro do nosso méto- fresco, ao longo do primeiro ano de vida, relativas do, tem como resultado óbvio um fracasso da psi- à constituição libidinal do corpo. canálise como forma de tratamento (o que ainda FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 427

A FABRICAÇÃO DE UM CORPO terna não se instala com o parto e tampouco mes- mo com a gravidez. Muito antes de que um filho “Eu sou o Outro”, já antecipava Lacan, o eu se seja concebido, essa mulher já o concebeu em sua constrói a partir do outro. A matéria-prima essen- subjetividade, constituindo o que Piera Aulagnier cial nesse processo é o corpo do outro, é dele que se chamou de corpo imaginário, primeira representa- retira a substância básica. Pelo brincar, e antes mes- ção do filho como um ser unificado, sexuado e au- mo dele, toda criança deve tratar de construir um tônomo. De certa maneira, o primeiro espelho onde corpo e isto só se torna possível pelo ambiente que a vai se olhar o bebê. circunda. Tudo o que faz o ambiente possibilita ou O bebê, como todos sabem, não se separa com- inibe, acelera ou bloqueia, ajuda para a construção pletamente da mãe com o nascimento. Não seria ou ajuda para a destruição de certos processos do exagero dizer-se que continua fazendo parte do sujeito. Não se creia com isso que uma criança seja corpo materno mesmo não estando mais no seu in- uma espécie de esponja, de mata-borrão, onde tudo terior. Com isso, inicialmente, o corpo da mãe não é absorvido ou fica impresso indiscriminadamente. é um outro corpo, mas, sim, o seu próprio corpo. As especifidades próprias de cada um, inseridas den- Esse espelho que compõe a função materna não é tro do mito familiar, da estruturação do casal pater- tão-somente um olhar concreto, senão que a pulsão no, da circulação do desejo garantem as possibilida- escópica inclui todos aqueles significantes que vão des de produção de diferenças. posicionar esse olhar (mitos familiares, etc., que Como propunha Winnicott (1988), o bebê cria logo voltarei a abordar). O mais importante, aqui, o seio, e por meio deste primeiro ato criativo co- é que o lactente começa a estruturar-se e a susten- meça a criar o mundo. Trata-se de um processo es- tar-se por meio de um eixo oral e visual. Esse mo- sencialmente ativo onde o meio cumpre um papel mento de “loucura” materna que envolve uma iden- coadjuvante, embora essencial. Quando nos depa- tificação maciça com a imaturidade de seu bebê, e ramos com passividade em lugar de atividade algo que inclui suportar-se em um estado de regressão a muito sério está ocorrendo, seja no nível orgânico, serviço da vida, necessita ser protegido pelo am- seja uma forma de depressão ou estado autista biente que a circunda. Nem sempre isso acontece incipiente. A atividade é sinônimo de espontanei- ou é possível. dade e de saúde e nenhuma mãe ou pai poderão Temos mães que não conseguem aproximar-se apropriar-se ilicitamente de algo que é inerente a de seu filho, como Carolina, que, nos primeiros seis cada bebê. Uma mãe ou um pai poderão, no máxi- meses de vida de André, não conseguiu tocá-lo mo, seduzir o filho para a vida, colocando à sua (nem, certamente, olhá-lo), culpando-se muito, disposição sua própria (e de certa maneira imper- depois, pelo funcionamento border do filho. Ou- ceptível) atividade. tras, como Regina, tiveram contratempos terríveis Eventualmente o meio torna-se muito “ativo”, no início de vida de Carlos; estava longe de seu seja por fazer-se perceptível demasiadamente cedo, país natal, extremamente exigida por uma tese de seja por força de versões míticas (fantasmas fami- doutoramento e, infortunadamente, recebeu a notí- liares) com inusitados poderes. Deixemos tais ques- cia do falecimento de sua própria mãe. Carlos, tões, tão interessantes quanto intrigantes, que di- quando o vi, contava com uns dois anos e meio e zem respeito à transgeracionalidade para um pou- era um pequeno autista, menos mal que na forma co mais adiante e nos concentremos na primeira que os descreveu Hans Asperger (embora tivesse hipótese, a do anúncio prematuro da existência do prejuízos nas três áreas básicas afetadas pelo outro. autismo – interação social, comunicação verbal e Winnicott (1971), baseando-se em parte no es- atividade lúdica e elaborativa – mantinha uma in- tudo de Lacan sobre o estádio do espelho, onde teligência superior, com algumas habilidades es- esse estabelecia que a percepção da própria ima- pecíficas extraordinariamente desenvolvidas, como gem no espelho era acompanhada por um senti- foi possível comprovar pela passagem do tempo). mento de júbilo por inaugurar-se uma noção do eu, Em uma outra família, que acompanhei por in- foi adiante e retirou da concretude dos espelhos termédio de um colega, os três filhos apresenta- comuns e correntes esta função. Com sua longa vam comprometimentos importantes, a maior com carreira de pediatra, e após ter observado milhares um comportamento anti-social e mitomania, a se- de bebês com sua mães, propôs que o primeiro lu- guinte com uma estranha (e inexplicável) deficiên- gar em que se olha a criança é o rosto materno. O cia intelectual e o menor frequentando uma insti- rosto da mãe, então, é o primeiro espelho. Porém, tuição especializada em crianças autistas. Nos in- todo esse processo já começa antes, a função ma- teressamos, o colega e eu, em investigar mais pro- 428 DAVID E. ZIMERMAN fundamente o que poderia se passar com esse gru- não só se instaura uma espacialidade, senão que, po e um dos achados que fizemos era de que ocor- além do mais, ela é concomitante a uma nova di- ria um importante e precoce afastamento da mãe mensão de tempo, começando a surgir no psiquismo de seus bebês logo que se completassem duas ou noções de antes e depois. Tal condição, conquista- três semanas de vida. Isso ocorria, talvez não ex- da, de demarcação temporal, fica grandemente pre- clusivamente, por uma postura rígida e exigente do judicada, por exemplo, nas psicoses, mas, também, pai que a solicitava, desde o nascimento dos be- nos border, adicções, transtornos alimentares, etc... bês, para que ocupasse, rapidamente, o seu lugar A fabricação de intermediários (que vão permitir a de mulher, não sustentando nenhuma condição de separação e a ausência do objeto originário) quan- suporte para que ela permanecesse, regressiva e do não se desenvolve adequadamente remete a so- saudavelmente, ao lado dos filhos recém-nascidos. luções menos eficazes para uma noção de tempo e Algo muito interessante – e que ilustra muito bem espaço. A criação de conchas autistas, a recorrência a complexidade de nosso aparelho mental – é como ao somático e o próprio objeto de fetiche são al- a diversidade manifesta-se frente a um aparente guns exemplos. A impossibilidade de processar mesmo estímulo. As simplificações, a linearidade, relações empáticas com os outros, a alexitimia e a o reducionismo, definitivamente não têm lugar na intolerância a constação da incompletude e da au- nossa área. sência são decorrências de tais fracassos precoces, Os exemplos se multiplicariam, bastaria dispo- cada qual contendo, em suas especifidades, formas sição para narrá-los. No entanto, vocês todos cer- particulares de lidar com o espaço e o tempo. tamente têm uma experiência semelhante como Poderíamos pensar que nessas fases iniciais, e ouvintes da natureza humana. O que busco salien- graças a um circuito positivo com o meio circun- tar são as espécies de marcas ou registros que se dante, é gerado um tipo de triunfo onipotente so- processam durante essas fases primitivas da for- bre a imensa desvalia que nos é imposta pela nossa mação do psiquismo e que têm sua ocorrência nes- prematuridade. Se vocês se puserem a imaginar que ses instantes precursores do fort da, época em que um bebê de algumas semanas ou poucos meses já o brincar configura-se pela constituição libidinal se torna capaz de utilizar recursos (criados por ele do corpo. O colpaso do eixo oral visual criará, ine- a partir de um meio propiciador) para suportar a vitavelmente, um roteiro próprio, individual por ausência de um cuidador, quando é notório que a certo, mas indelevelmente presente. falência do cuidador determinaria a falência do bebê, devemos concluir que existe uma atitude muito corajosa, uma espécie de salto no escuro, OS DEFEITOS DE FÁBRICA que é privilégio do bebê humano. Talvez por isso, Winnicott tenha insistido tanto que a primeira fun- Os espaços e o tempo não nascem dados, são ção da mãe é sobreviver. Sem sua sobrevivência conquistas preciosas do desenvolvimento e se es- não se cria essa onipotência para enfrentar a vida, tabelecem como resultado de todas estas etapas o salto no escuro é o salto para a garganta de um prévias do brincar e do fort da propriamente dito. precipício. Sami-Ali, a partir do trabalho de Freud, proporá Desde muito cedo temos de aprender a esque- que a operação fort da, uma vez constituída, dei- cer, ocultar, bloquear percepções, que, de outro xará de ser uma imagem particular de uma situa- modo, tornari-se-iam intoleráveis e impeditivas de ção dada para converter-se em um esquema de re- seguirmos adiante. Isso implica questionarmos que presentação que modelará todas as situações de se- tipo de memória é própria da nossa espécie. Exis- paração. Examinemos, com um pouco mais de de- tem muitas hipóteses sobre isso, dentro e fora da talhe, particularidades desse processo para nos aper- psicanálise, e várias vocês devem conhecer, mas, cebermos das repercussões fundamentais, uma es- recentemente, lendo Damasio, em O erro de Des- pécie de falha nas engrenagens, que resultarão em cartes, encontrei uma proposta intrigante. Dizia ele: um outro tipo de aproximação com o mundo. “As imagens não se armazenam como cópias das Sami-Ali, no El espacio imaginario, diz que coisas, acontecimentos, palavras ou frases. O cére- “aparece uma nova dimensão do espaço, o espaço bro não arquiva polaróides de pessoas, objetos e imaginário de profundidade. Ao lançar o carretel paisagens; tampouco armazena fitas K-7 de músi- para longe, a criança define-se simultaneamente cas ou discursos; tampouco armazena películas com aqui onde se econtra e situa-se com relação a um cenas de nossa vida... Em resumo, não parece que fora que só existe como correlato com uma inten- conserve-se permanentemente imagens de nada, ção agressiva que parte daqui. A partir desse jogo, nem sequer em miniatura, nem microfichas, nem FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 429 microfilmes, nem nenhum tipo de cópia” E, ainda um presente e de um futuro que, inevitavelmente, assim, assinala Damasio, isso “deve conciliar-se encerra-se com a própria morte. com a sensação... de que podemos evocar tais re- Talvez muitos de vocês já tiveram a experiên- produções ou cópias”. cia de atender ou conviver por algum período com uma criança autista. É impressionante o efeito que lhes causa qualquer modificação, por pequena que EVOCAR E ESQUECER seja, no entorno. Imersas em seu encapsulamento, aparentemente tão desligadas de tudo, há um re- Tão essencial como podermos lembrar, ou ter- gistro preciso de cada detalhe, dos ambientes que mos a impressão de lembrar alguma coisa, surge a freqüentam. Com a mínima alteração de algo pare- capacidade de sermos capazes de esquecer. Sem ce que o universo se transformou, que se rompeu a essa, a separação, a ausência, as perdas tornar-se- ordem das coisas, que poderá sobrevir uma des- iam insuportáveis. Permito-me retornar ao exem- graça iminente. É que a simples idéia de uma trans- plo de Temple, a autista descrita por O.Sacks. Ape- formação implica, já, em uma condição de se acei- sar de ter um ouvido perfeito para a música, ela tar a passagem do tempo, que algo era assim, que não conseguia “entender”a música, não via que agora não é mais, etc. A circularidade temporal “sentido”tinha”. Havia uma pobreza em sua res- característica do mundo autista não permite acei- posta emocional ou estética a muitas cenas visuais: tar este tipo de evolução. Transformação, quem podia descrevê-las com grande exatidão, porém isso sabe, seja sinônimo de rompimento, despedaça- não parecia corresponder a nenhum estado de âni- mento, desestruturação, desintegração. Tudo tem mo profundamente sentido, nem tampouco evocá- de estar eternamente igual, essa é a regra de segu- lo. A explicação, que ela própria formulava, era rança. simples e mecânica: “O circuito da emoção não está Neste momento, um paciencioso leitor que conectado..., esta é a falha. Por essa mesma razão acompanhou o texto até aqui pode estar se pergun- “não tem” inconsciente, como ela diz; não reprime tando o que essas condições tão extremas, como as as lembranças e os pensamentos como as pessoas de Temple ou de pequenos autistas, têm a ver com normais. “Na minha memória não há arquivos que o trabalho comum, do dia-a-dia, no consultório ou estejam reprimidos”, afirmava. “Vocês têm arqui- em uma clínica. vos que estão bloqueados. Não há segredos, não A clínica mudou, mas não tanto, me assegura- existem portas fechadas, nada está oculto”. riam. É verdade. Mas não toda. Trata-se de um exemplo dramático e, ao mes- mo tempo, esclarecedor dessas perturbações mui- to primitivas, que denominei “defeitos de fábrica”, LEVANTANDO, OU CONSTRUINDO uma vez que permitem incluir aí complexas intera- BARREIRAS? ções de fatores, genéticos, transgeracionais, intra- uterinos, cuidados pós-natais,etc... Essas pequenas criaturas, com suas singulares A história, diferente do passado, é o que torna construções próprias, que se aproximam do mun- possível o esquecimento, este esquecimento impres- do e das pessoas por meio de fenômenos estranhos cindível para poder funcionar, para poder viver. J. e inequivocamente distantes da metapsicologia psi- Lacan, em 1954, já propunha que a história não era canalítica clássica permitiram, entretanto, repensar o passado, que a história era o passado historizado funcionamentos da mente. Não somente de suas no presente, historizado no presente porque foi vi- mentes, mas do funcionamento da mente em geral. vida no passado. Na verdade, então, o que permite Recordem-se de que uma das premissas básicas do historizar é o esquecimento, é ele quem vai favore- método que Freud descobriu era a tentativa de le- cer uma dimensão de tempo, uma noção de que vantarem-se as repressões. A partir da hipnose, pas- algo aconteceu. Isto, concordando em parte com sando pelo método catártico até as associações li- Damasio, permite-nos concluir que não existe pos- vres e os sonhos, o propósito sempre foi o mesmo. sibilidade de uma história total, tampouco uma his- Mudou-se o método, mas o objetivo final perma- tória objetiva e nem por último, uma história defi- necia inalterado; buscar algo subjacente, oculto, ao nitiva. No entanto, a convicção de que somos ca- qual o paciente não tinha acesso e que, entretanto, pazes de evocar algo é o que dá a qualidade neuró- era responsável pelo seus sofrimentos (entendidos tica de nossas vidas. Caracteriza uma temporalidade aqui, principalmente, como sintomas). Erguidas as linear, irreversível, composta de uma passado, de barreiras, transpostos os obstáculos, a cura. 430 DAVID E. ZIMERMAN

É quase desnecessário dizer que estou usando e que tipo de influência isto estaria produzindo no de uma simplificação extrema sobre o método psi- campo. canalítico. O próprio Freud muito se inquietou com Assim, fica muito mais difícil, como já assina- a eficácia do instrumento que havia criado, os avan- lei, a categoria de inanalisável. Invertamos a pro- ços sobre as identificações como matrizes do de- posta, se não conseguimos nenhum sucesso no con- senvolvimento, os estudos sobre os tipos de cará- tato com algum tipo de paciente responsabilizemos ter,etc., imprimiam crescimento ao conhecimento as limitações nossas e de nosso método. Racioci- psicanalítico, mas, ao mesmo tempo, criavam no- nemos: todos sabemos que por mais aberrante, es- vos problemas com relação aos seus resultados tranho, inacessível que possa nos parecer o mundo como forma de tratamento. no qual circula determinada pessoa, sempre encon- A microscopia do processo tornou-se o grande traremos alguém (ou algo) que parece ter acesso a objetivo durante muitas décadas. Os estudos deta- isso que nos soa como inalcançável. Uma anoréxica lhados sobre a transferência, a contratransferência com seu diário, um adicto com seu parceiro de “via- e o setting foram levados à exaustão. As análises gem”, um border com seu motorista e até mesmo o tornaram-se mais ambiciosas, mais prolongadas, em menininho autista com seu cachorro (há autistas que uma espécie de imagem que corresponderia à de têm cachorros, como os cegos, para que os ajudem um cientista em seu laboratório. Esse ainda é o em suas percepções, no caso percepções sociais. modelo adotado por grande parte dos analistas do Eles utilizam os animais para “ler” as mentes e as mundo inteiro e, ainda que o instrumento tenha sido intenções dos visitantes, algo que eles mesmos po- muito aperfeiçoado, o objetivo mantém-se quase dem se sentir incapazes de fazer), são alguns rápi- que na forma original: desvendarem-se as motiva- dos exemplos que me ocorrem de interações possí- ções inconscientes (ainda que isto ocorra, predo- veis. Se para alguém (ou para algo) é possível, sem- minantemente, sob a forma de identificações). pre teremos que concluir que nós é que não temos Um outro grupo de psicanalistas, influenciados a chave para acessá-los. Fundamentalmente por- por um teoria de campo (mesmo que muitos não que trata-se de algo que ultrapassa, de longe, a pura digam, ou não se dêem conta), que teve em W. idéia de eliminarem-se defesas e ter contato com o Baranger um inspirador por meio de seus estudos reprimido. Até mesmo porque justamente às vezes sobre o campo analítico, puderam começar a pen- o que falta aqui é o reprimido e as chamadas defe- sar o processo em outros termos. É certo que sas construídas pelo ego têm um caráter de sobre- Winnicott (1971), por exemplo, quando definia a vivência. Assim, seria um absurdo, por exemplo, psicanálise como a justaposição entre as áreas de falar-se em romper a cápsula autista de um pacien- jogo do paciente e do psicanalista ou, então, quan- te, como bem lembrou Tustin, porque seria o equi- do aplicava o squiggle game (jogo do rabisco), nada valente a tirar um prematuro de uma incubadora, estava descrevendo além da construção de um cam- deixando-o exposto a todos os tipo de perigos. Esta po. É que W. Baranger elaborou uma teorização noção de sobrevivência psíquica encontrou resso- que, se não chegou a ser exaustiva, forneceu a base nância em alguns psicanalistas, como J.McDougall, necessária para alertar os psicanalistas em relação J.C.Smirgell e C.Bollas, entre outros, que soube- a uma disposição diferente de papéis que se eviden- ram dimensionar o quanto era indispensável para ciariam no processo. Rompe-se o suposto saber ana- determinadas pessoas a manutenção de funciona- lítico, e tanto as resistências (baluartes) como os mentos estranhos, bizarros, longe de um padrão insights e as interpretações passam a ser encaradas “normótico”. como produtos da dupla. É um forma toda nova de Com isso tudo altera-se radicalmente a idéia de examinar-se o encontro, o vínculo, o par analítico. um processo e, concomitantemente, a idéia de cura. Fundamentalmente de maior responsabilização do Talvez mais freqüentemente deveríamos perguntar- analista, tornando mais desconfortável a solução nos ou redefinir os conceitos de “saúde” e “doen- simplista (e simplória) de atribuir aos pacientes as ça”, evitando toda norma rigidamente definida e impossibilidades de sucesso do método. O campo pensando muito mais em termos da capacidade do é um campo de responsabilidades recíprocas. Tal- organismo para criar uma nova organização e uma vez exatamente aí se encontre o maior mérito do nova ordem que encaixe com suas disposições e último grande livro publicado sobre psicanálise suas exigências tão especiais e alteradas. Ver o infantil, escrito por Ferro (1995). Frente a qual- mundo com os olhos do paciente, como se dizia quer acontecimento estranho e repetitivo nas ses- antes, até mesmo porque estamos cheios de exem- sões de seus pacientes, ele jamais deixa de se per- plo de “defeitos”, “doenças”e “transtornos” que guntar sobre o seu próprio funcionamento mental costumam apresentar uma qualidade paradoxal, re- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 431 velando capacidades, desenvolvimento, evoluções, dade e verdade em psicanálise. Não há dúvida de formas de vida latente, que poderiam não ser vis- que o trans ou intergeracional faz parte do arcaico, tos nunca ou sequer serem imaginados na ausência que sua presença seja universal, que tenha efeitos daqueles. Este é o novo paradoxo com o qual te- estruturantes ou alienantes, o que não significa, mos de nos deparar, o potencial criativo subjacente todavia, que lhe seja atribuído todo o seu valor por a cada “desvio” da, pretensa, normalidade. grande parte do establishment psicanalítico. O que De toda forma, o que pretendo salientar, neste se passa, então? momento, é que o modelo clássico do processo De certa forma é compreensível diante das di- psicanalítico – levantar repressões – já não tem mais ficuldades que cercam o tema. Como teorizar so- a mesma utilidade em uma tipo de clínica onde os bre aquilo que não integra a memória retornável ? fenômenos parecem exatamente o do oposto, o da Ou, como se indaga H. Faimberg (1993), como ausência de repressões (ou mecanismos equivalen- podem duas pessoas falar de uma coisa quando a tes, mais evoluídos). primeira – o paciente – não crê que lhe pertença, e quando a segunda – o analista – a ignora? Temos um espaço dentro de nossa metapsicologia para TRANS(E)GERACIONAL encaixar tais fenômenos ? Ou seria preferível pen- sar, como Baranes (1993), que essa clínica analíti- Suzanna Tamaro (1994), escritora italiana, au- ca parece convidar a uma reflexão e, talvez, a uma tora de vários livros, entre eles Vá dove ti porta il revisão de conceitos metapsicológicos e até, para cuore (Vai onde o coração te leve), conta-nos a alguns, forjar uma nova tópica, da clivagem e do comovente história de uma avó que, próxima à sua intersubjetivo. morte – e depois de uma vida de silêncios –, escre- Com isto, a aventura psicanalítica já não é, des- ve à sua neta adolescente uma longa carta contan- de um bom tempo, uma simples neurose de trans- do a história de sua vida. Em um relato pungente ferência, os mistérios são maiores e a responsabili- tece a teia de três gerações. Preenche vazios, apon- dade do psicanalista multiplica-se no desenvolvi- ta buracos, nomeia os sentimentos em uma profun- mento de uma análise. Frente a cada vazio, buraco da convicção de que os verdadeiros inimigos são ou ausência e a sensação de que o paciente esteja os segredos que deslizam pelas sombras da alma. em outra parte ele deverá obrigatoriamente lem- Em um dado momento, assim reflete a vovó: “Por brar que aquilo que parece demasiadamente vazio, haver vivido muito e e ter deixado atrás de mim em realidade, pode estar demasiadamente cheio. tantas pessoas, agora sei que os mortos não pesam Dizia, no início deste capítulo, que considera- tanto por sua ausência, senão por aquilo que – en- va os estudos transgeracionais como fazendo parte tre eles e nós mesmos – não foi dito”. do futuro da psicanálise. Sem se tomar em conta os Nos últimos 15 ou 20 anos tem conquistado al- mitos familiares,as criptas, os fantasmas, os visi- gum espaço dentro de uma pequena parcela da co- tantes do ego – muitas maneiras de descreverem- munidade psicanalítica (principalmente França e se fenômenos semelhantes – a clínica psicanalítica Argentina) o interesse por fenômenos estranhos, de crianças e adolescentes (e não só ela) tende a mas nem por isto modernos, que estão disponíveis ser subtraída de uma ampliação tão cheia de misté- para quem queira observá-los na clínica. Os pri- rios como de riquezas. meiros analistas que mais corajosamente passaram Mário tinha apenas 4 anos quando o vi pela a descrever tais processos estavam ligados ao tra- primeira vez. Seus pais haviam decidido procurar- balho com famílias, crianças, grupos e psicóticos. me “preventivamente”, segundo diziam, porque Na verdade, desde Freud, o prefixo UR apontava achavam-no quieto, um pouco retraído e porque aquilo que escapava ao abarcável da experiência temiam que pudesse ser uma criança deprimida. Em analítica (URzenen, URphantasien, URverdran- todo o resto parecia um menino normal, tinha um gung, URvater; cenas originais, fantasias originais, desenvolvimento dentro do esperado, era sensível, repressão originária, o pai primordial). Reflexionar inteligente e muito estimulado pelo casal. Único sobre o inabarcável leva-nos, inevitavelmente, a filho, nasceu depois de uma longa espera e de enor- indagar sobre a trama constituinte do ser humano: mes dificuldades, que incluíram muitas investiga- pulsão e objeto, sexualidade e narcisismo, estatuto ções e tratamentos infrutíferos. Quando, aparente- do corpo e o infantil, processos identificatórios e mente, haviam desistido da idéia e para aliviarem- transmissão transgeracional. se de um período de sofrimento e angústia viaja- Simultaneamente a proposição destas questões ram para o exterior, sobrevém o atraso menstrual amplia o debate sobre as noções de fantasia, reali- anunciador da gestação de Mário. Recordo-me que 432 DAVID E. ZIMERMAN considerei um pouco excessivo o receio desses pais, que, educadamente, foram aceitas. Só posso, para nada parecia demasiadamente preocupante, tanto não me alongar demais, dar uns poucos detalhes Mário quanto eles eram criaturas afáveis, desper- para serem acrescentados ao que vocês já sabem e tavam empatia e a primeira conclusão, e certamen- que possibilitam refletir sobre algumas possíveis te a mais simplória, era de que depois de tanta es- alternativas. Suzana, a mãe, confessa que sempre pera e tantas dúvidas, esse filho altamente investi- conviveu com um medo extremo de engravidar, que do mereceria todas as atenções, cuidados, medidas seguramente isto deveria ter influenciado para que preventivas, etc... Duas ou três pequenas coisas, durante tantos anos este fato não se concretizasse. no entanto, ficaram registradas na minha memória. A razão principal desse medo, em suas palavras, Um uso, um tanto quanto abusivo, de um “urso era de que pudesse ter um filho homem e que ele se transicional”, fedorento, encardido, que pratica- tornasse homossexual. Que, na realidade, a viagem mente o acompanhava por toda parte e que tive o para o exterior que emprenderam e da qual voltou prazer de conhecer quando veio para as sessões de grávida de Mário se deveu, em grande parte, a um avaliação. A segunda lembrança era de uma amiga trabalho de luto. O país e a cidade que se fixaram imaginária, Maria (!), com quem tinha um ritual mais tempo havia sido o local onde vivera seu ir- diário de encontros, mais ou menos no mesmo ho- mão mais moço, artista e homossexual, até dois anos rário, coincidindo com a ausência de ambos os pais. antes, quando morrera por Aids. Viveu com muita A babá, que o acompanhava desde o nascimento culpa esee desenlace e, em seguida, fortaleceu-se surprendia-se com o estado de excitação de Mário muito por meio de ajuda religiosa. nessas ocasiões e comentava o assunto com algu- Estranho paradoxo com o qual terá de conviver ma freqüência com os pais. Um terceiro detalhe, Mário. Uma história que não é a sua é a sua histó- aparentemente solto, tinha tido origem em uma frase ria. Desnecessário dizer que ele desconhece tudo da mãe, ao final de nossos encontros. Sem relação isto que o antecede. Ao mesmo tempo, tudo o que alguma com tudo o que estava sendo discutido per- ele não sabe é parte essencial do que ele é. Quais gunta, subitamente: “Tu achas que podemos ficar os mitos familiares, as criptas, os fantasmas, nos tranqüilos com a condição de menino, de Mário?”. quais está incluído Mário? Não deixem de consi- Ingenuamente, como logo verão, respondi-lhes que derar que se a história pessoal de Mário é, de lon- não via nenhum problema. ge, insuficiente para que se saiba quem é Mário, a Dois anos depois telefonam-me e combinam ampliação do espectro com esses dados que foram uma revisão para Mário. Ficou acertado que eu o acresentados pela mãe ainda, também, são apenas veria, por uma sugestão deles, antes mesmo da en- algumas peças a mais dentro deste grande quebra- trevista com os pais. Tive uma surpresa ao encontrá- cabeças – que jamais estará totalmente completo – lo na sala de espera com a babá. Certamente não mas que deveria incluir, no mínimo, uma investi- era o mesmo Mário de dois anos antes. Sorriu ao gação mais detalhada sobre a família de origem de me ver, mas seu sorriso era diferente, assim como Suzana. Estou resumindo, não pensem que seu comportamento, como logo tratou de me mos- desconsidero o papel do pai dentro de tudo isso, o trar. Não carregava mais seu urso, mas, em com- tipo de relação que estabelece com Mário, e com pensação, estava muito mais agitado, cheio de sua mulher, questões relacionadas com suas pró- maneirismos e afetação. Nos jogos e desenhos eram prias origens, etc. Apenas pretendo exemplificar o evidentes as identificações femininas de Mário que, que todos vocês já sabem; a complexidade, o mis- também, manifestamente declarava que queria ser tério, a beleza do nosso trabalho. uma menina. Os pais, para minha segunda surpre- Por quais vias, por quais formas de discurso, sa, pareciam menos preocupados do que da pri- por quais atalhos, se infiltram estas marcas? Como meira vez. Com um discurso articulado, que os se questiona H.Faimberg, nos encontramos frente colocava mais à distância e menos acessíveis do a um duplo problema teórico: que antes, diziam que estavam dispostos a aceitar o que o destino lhes reservasse, que não eram pes- – Como explicar a transmissão de uma histó- soas moralistas nem preconceituosas e que se Má- ria que não pertence a vida do paciente, ao rio viesse a optar pela escolha homossexual, teria, menos em parte, e que clinicamente revela neles sempre uma atitude de acatamento e compre- ser organizadora do psiquismo do paciente. ensão. – Como dar conta dessa dupla condição, con- Determinado a não lhes impor nada, mas que- traditória de um psiquismo vazio e, ao mes- rendo entender um pouco mais da estranha trajetó- mo tempo, “demasiadamente cheio”. Em ria de Mário, propus-lhes algumas entrevistas mais, outros termos, no paciente existe, por um la- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 433

do, uma falta de reconhecimento da relação jamais poderemos ter a pretensão de capturá-lo, ou de objeto e, por outro, um objeto “em dema- de apreendê-lo em todo o seu significado. Falar dos sia”, que nunca se ausenta. mitos familiares, e de seus mistérios, não implica, entretanto – jamais – conceber a pré-história como Ela chama esse processo, que envolve pelo uma maldição. Toda a “realidade histórica” fami- menos três gerações, de telescopagem geracional, liar poderia ser concebida como uma forma de re- que são complexos processos identificatórios que construção. Sabe-se, também, que nos segredos de congelam o psiquismo em um sempre, que é um família o mais importante nunca reside no próprio caráter do inconsciente, considerado atemporal. Por segredo, mas nas múltiplas estratégias empregadas isso que a telescopagem põe em evidência um tem- pelas gerações sucessivas para acomodarem-se a po circular, repetitivo, ao contrário das diferenças ele. Lembremo-nos, também, que sempre é o ex- de gerações que implica em um curso, em uma ad- cesso que indica a presença da desordem ou o ris- missão da passagem do tempo. co de sua irrupção. Com isso, depois de mais de 20 Nada impede, e, ao contrário, tudo indica, que anos de trabalho clínico, posso olhar para trás e em todas as análises de crianças e adolescentes (e afirmar que nunca me foi possível perceber que o dos adultos também) tenha que se ter em mente poder do mundo das fantasias tenha sido suficiente tais fenômenos, pelo seu caráter universal, que es- para gerar uma psicose ou um transtorno de gêne- tão tanto ligados aos impedimentos às mudanças – ro. Ainda hoje, entretanto, mas felizmente cada vez que significariam desidentificações – como na fre- menos, sobrevivem teorias que buscam entender qüência que se encontram as chamadas “reações esses quadros graves como processos autogerados, terapêuticas negativas”. como se tudo fosse possível por um simples exer- cício da imaginação. Dou um pequeno exemplo,oriundo da física, LIVRE PENSAR É SÓ PENSAR extraído do livro Dos ritmos ao caos, de P. Bergé, Y. Pomeau e M. Dubois-Gance (1994). No último Nossa vida mental apóia-se, consciente e in- item, do último capítulo, eles fazem uma proposta: conscientemente, sobre teorias que, às vezes, en- O caos: faça você mesmo. Convencidos de que contram-se instaladas pela força da ideologia ou nada é melhor do que fazer por si mesmo as expe- da ilusão. Os mistérios da nossa profissão, na rea- riências para entender os fenômenos físicos, os lidade, permitem a transição para um espaço men- autores propõem a realização de uma experiência tal mais amplo, embora às custas de um processo simples, porém profunda. Precisamos apenas de extremamente doloroso, inclusive terrorrífico, pois uma bússola e de um pêndulo onde vai ficar implica pôr em cheque crenças e teorias. A ciência suspenso, na ponta de uma linha de costura, um é uma atividade nobre capaz de gerar uma feroz ímã. Lancemos o pêndulo e coloquemos a bússola, lealdade e, embora a lealdade seja louvável, ela não inicialmente, a uns 20 cm do plano de oscilação do constitui por si um argumento. Felizmente a ciên- pêndulo. A bússola oscila debilmente a uma fre- cia atual não busca mais uma visão de mundo to- qüência que fica muito próxima da do pêndulo que talmente explicativa, tudo o que ela produz é par- a estimula. Aproximemos progressivamente a bús- cial e provisório. sola do pêndulo oscilante. Como fica evidente, a Dizer que algo nos escapa, que não temos con- influência do pêndulo magnético sobre a bússola dições para fornecer uma explicação para determi- aumenta. Em seguida, abaixo de uma certa distân- nados fenômenos, não significa imobilidade. Pelo cia, aparecem movimentos extremamente irregu- contrário. Nunca serão demais os esforços para lares, com a bússola começando a girar num senti- afastar da psicanálise todo esquema causal linear. do, detendo-se, oscilando de novo e depois giran- Seria, portanto, um erro fantástico considerar o do em sentido inverso, sem que possamos prever trans ou intergeracional, a pré-história ou os mitos que nova fantasia vai surgir. O movimento tornou- familiares, como destinos irreversíveis, espécies de se impredizível, embora sendo o de um sistema fatalidades geradoras de “mal-formações” psíqui- muito simples: trata-se realmente de caos. cas. Se assim fosse, para nada adiantaria a psica- Se substituirmos a bússola por um bebê ou por nálise e sua função se tornaria equivalente a de um uma criança, e o pêndulo com o íma por um grupo geólogo detectando e datando diversos fenômenos familiar, teremos um modelo muito interessante e momentos históricos em uma parede rochosa. para ser pensado em termos de influências e con- É natural que nas múltiplas possibilidades de seqüências. Se o “ruído de fundo” – a presença do caminhos pelos quais transborda o inconsciente íma – for muito alto e muito próximo – as reper- 434 DAVID E. ZIMERMAN cussões tornam-se consideravelmente maiores. OS PAIS, OU AOS PAIS Lembremo-nos, igualmente, das considerações de Winnicott sobre a função materna. Em um pólo po- O primeiro impacto emocional que eu tive ao deríamos contar com a presença da “mãe suficien- trabalhar com pais foi de medo. Medo de que me temente boa” ou respeitando mais suas concepções, confrontassem com minhas insuficiências em po- a “mãe devotada comum”, fundamentalmente não- der resolver os problemas de seus filhos, medo de invasiva, não intrusiva. Em um outro pólo, supo- que questionassem meus métodos de tratamento, nho, encontraríamos aquelas pobres mulheres in- medo de que me destiuíssem do papel de terapeuta capazes de entregar-se para este estado regressivo de seus filhos. Não fui eu quem resolvi meus me- puerperal e que abandonariam seus bebês à pró- dos, foram eles. No início, por me aperceber da pria sorte, o que significa marasmo ou hospitalismo, fragilidade deles, de suas intensas culpas e recri- se não forem substituídas por alguém. Em uma minações, depois, por percebê-los como meus me- posição intermediária, pensando no negativo, en- lhores aliados. É comum, quase voz corrente, ou- contraríamos um outro grupo, muito chamativo e vir-se das dificuldades que os pais opõem aos tra- de conseqüências desastrosas, as chamadas mães tamentos, suas resistências às melhoras dos filhos, imprevisíveis. Como costumo comentar com meus sua rivalidade e ciúme com quem ousa tomar seu colegas e alunos, é relativamente simples para al- lugar, suas retrações e obstáculos conduzindo a guém preparar-se para se enfrentar com um objeto impasses incontornáveis, etc... Não é esta a minha sistematicamente ruim ou mau, ele é assim, sabe- experiência. Não por não ter passado por ocasiões se o que esperar – ou não esperar – dele. O proble- nas quais incompatibilidades de várias espécies ma surge quando se é incapaz de prever o que sur- impediram um fluxo normal do processo, mas, sim- girá por parte do outro. Frente a um mesmo estí- plesmente, porque na imensa maioria das vezes suas mulo, por exemplo, pode-se ter como resposta a dúvidas e inseguranças somadas às minhas dúvi- indiferença ou o entusiasmo, o sorriso ou a palma- das e inseguranças conseguiram promover mais da, e assim por diante. Isso enlouquece. Vocês to- efeitos positivos e terapêuticos, despertando uma dos conhecem a piada da mãe judia que presen- espécie de solidariedade e parceria indispensáveis teou o filho no dia de seu aniversário com duas para o tratamento de seus filhos. Nem sempre isso gravatas, uma vermelha e outra azul. No domingo precisou ocorrer de uma maneira manifesta, plásti- seguinte ele a visitou trajando a gravata vermelha ca, concreta. Muitos pais de adolescentes, por e ela quando o viu comentou: “Não gostou da gra- exemplo, nem cheguei a conhecer. O que não sig- vata azul que a mamãe te deu, não é? No outro nificou que com o andamento do processo suas re- domingo ele voltou à sua casa, desta vez com a lações comigo, e as minhas com eles, não se altera- gravata azul, ao que ela observou: “ Agora estás ram significativamente. Com outros privei de uma mostrando a verdade, gostaste da azul e não gos- intimidade, alegrias, dores, totalmente comparáveis taste da vermelha”. No terceiro fim de semana ele à privacidade do paciente individual. Com a pas- retorna usando as duas gravatas ao mesmo tempo. sagem do tempo algo muito simples se traduziu: eu Ela exclama: “Agora sim estou entendendo tuas in- preciso deles e eles precisam de mim. tenções, estás querendo enlouquecer a mamãe”. Procuro estar atento ao seu discurso, à transfe- Mas tal como acontece com a bússola, que rea- rência que desenvolvem, porque essa não é proprie- ge imprevisivelmente – enlouquecidamente – existe dade exclusiva de seus filhos – e, principalmente, uma larga margem de possibilidades de respostas, a tolerância, tão indispensável para o nosso méto- que estão na dependência do foro íntimo de cada do, às mudanças de papéis. Aqui são importantes um. Isso é o que torna tudo muito mais complexo, tanto fatores quantitativos como qualitativos. Quan- mas também mais atraente. Livre pensar é só pen- titativos no sentido de serem capazes de aceitar que sar, exatamente por isso. Toda trama transgera- a “doença”do filho, que serve a todos por muitos cional, de início, é muito pouco perceptível, não mecanismos projetivos, possa, em alguma medida, podemos esperá-la como uma dádiva que se apre- retornar e ser redistribuída entre todos os membros senta como um conto ou uma história, ele terá de da família. Qualitativos, reflexionando sobre alguns ser deduzido, extraído das entranhas, fazermos par- padrões mais evidentes – e outros nem tanto – de te dele para que ele comece a ter algum sentido. identificações. Com isso estou me referindo exata- Esse é um dos motivos, mas não o único, pelos quais mente àqueles discursos identificatórios descritos dependemos tanto dos pais nesta proposta de tra- antes dentro do tema da transgeracionalidade e que balho com crianças e adolescentes. podem se apresentar de forma singela ou inocente: “O fulaninho é em tudo parecido com seu tio...”, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 435

“Na nossa família todos os primogênitos são um BARANES, J-J. (1993). “Devenir sí-mismo: avatares y sucesso...”, “Demos a ele o mesmo nome de seu estatuto de lo transgeracional”. In: R. Kaes et al., irmãozinho que havia falecido um ano antes...” e Transmisión de la vida psíquica entre generaciones. assim por diante. As vias de desidentificação, úni- Buenos Aires: Amorrortu Editores. ca saída possível para alguns destes “destinos”, BARANGER, M.,BARANGER,W. (1961-62). “La situación analítica” In: Problemas del campo podem apresentar-se absolutamente bloqueadas se psicanalitico. Buenos Aires: Kargieman, 1969. não dispusermos de sua colaboração. Isto porque BEHE, M. (1996). A caixa preta de Darwin. Rio de Ja- – e tenho certeza de que vocês entendem – não é neiro: Jorge Zahar Editor. plausível imaginar que frente a um intenso “ruído BERGÉ,P.,POMEAU,Y.,DUBOIS-GANCE,M. (1994). de fundo”que teve como conseqüência uma psico- Dos ritmos aos caos. São Paulo: Editora UNESP. se infantil, possamos acreditar, apenas, nas capaci- DAMÄSIO, A. (1994). O erro de Descartes. São Paulo: dades de desidentificar-se desse pequeno pacien- Companhia das Letras. te. Talvez isto mais tarde, durante a adolescência, FAIMBERG, H. (1993). “El telescopaje [encaje] de las fosse mais viável, mas na primeira infância, com generaciones (Acerca de la genealogia de ciertas todos os graus de dependência somados à imaturi- identificaciones)” In: R.Kaes et al., Transmisión de la vida psíquica entre generaciones. Buenos Aires: dade e à incompletude do desenvolvimento, torna- Amorrortu Editores. se uma tarefa pouco provável de ser bem-sucedi- FERRO, A. (1995). A técnica na psicanálise infantil. da. E aí, como em tantas outras ocasiões, nos acer- Rio de Janeiro: Imago. quemos dos pais ou então nos deixemos esmagar KLEIN, M. (1990). El psicoanalisis de niños. Buenos pelo desânimo ou pela soberba da conclusão de Aires: Paidós. inanalisabilidade. É neles que encontraremos mui- LACAN,J. (1963). Las formaciones del inconsciente. tas respostas para os mistérios e com eles sofrere- Buenos Aires: Nueva Vision. mos, se permitirmos, o impacto do “estranho”. OGDEN, T. (1966). Os sujeitos da psicanálise. São Pau- Em resumo, deixemo-nos assustar com o estra- lo: Casa do Psicólogo. nho, não o evitemos, mantenhamos com ele a rela- PEREDA, M. (1997). Investigación en Metapsicologia. Simbolización en Psicoanálisis. Trabalho Apresen- ção de proximidade possível, permitamos que ele tado no II Simpósio Brasileiro de Observação da nos ensine o que de certo modo possa nos ser “fa- Realação Mãe-Bebê. Gramado,1997. Mímeo. miliar”. RODULFO, R. (1990). O brincar e o significante. Por- Esta, enfim,é a nossa tarefa, uma eterna recon- to Alegre: Artes Médicas. ciliação com o desconhecido, que é o que já pro- SACKS. O. (1995). Un antropologo en marte. Barcelo- punha um antigo poema árabe, muito curto, que na: Editorial Anagrama. descreve dois homens, um velho e um jovem, olhan- SAMI-ALI. (1979). El espácio imaginário. Buenos do a noite tranqüila, a cidade adormecida, o deser- Aires: Paidós. to ao longe. O jovem diz: “Que silêncio”. O velho TAMARO,S. (1995). Donde el corazón te lleve. Buenos retruca: “Não diga, que silêncio, diga não ouço Aires: Atlantida. WINNICOTT. D. (1979). O ambiente e os processos de nada”. A todo instante poderíamos dizer, e este é maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. em síntese o recado que gostaria de deixar, “não WINNICOTT. D. (1971). O brincar e a realidade. Rio diga, que vazio, que escuridão. Diga, não enxergo de Janeiro: Imago. nada”. WINNICOTT. D. (1988). Natureza humana. Rio de Ja- neiro: Imago.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASPERGER, H. (1991). “Autistic Psycopathy” in Childhood > In: Uta Frith,ed., Autism and Asperger Syndrome. New York: Cambridge University Press.

CAPÍTULO UMA BREVE VISÃO HISTÓRICO-EVOLUTIVA Pode-se dizer que as grupoterapias estão co- memorando o seu primeiro centenário de existên- 40 cia. Isto se deve ao fato de que a inauguração desse recurso grupoterápico começou com J. Pratt, um tisiologista americano que, a partir de 1905, em uma enfermaria com mais de 50 pacientes tuber- culosos criou, intuitivamente, o método de classes coletivas, as quais consistiam em uma aula prévia Psicoterapia Analítica de sobre a higiene e os problemas da tuberculose, se- guida de perguntas dos pacientes e da sua livre dis- Grupo cussão com o médico. Esse método, que mostrou excelentes resultados na aceleração da recupera- ção física dos pacientes, está baseado na identifi- cação deles com o carisma do médico, compondo Dentre as diversas modalidades de psicotera- uma estrutura familiar-fraternal de apoio recípro- pias, é imprescindível incluir aquela que tem uma co. Embora realizada em bases empíricas, o méto- dimensão grupalística, a qual, comprovadamente, do serviu como modelo para outras organizações tem revelado-se eficaz e de grande abrangência, similares, como, por exemplo, a prestigiosa “Al- porém que, em nosso meio brasileiro, ainda não coólicos Anônimos”, iniciada em 1935 e que ain- encontrou um campo de aplicação clínico mais sis- da se mantém com uma popularidade crescente. temático e consistente. A bem da verdade, as gru- Igualmente, a essência do velho método de Pratt poterapias sequer têm encontrado um respaldo mais está sendo revitalizada e bastante aplicada na atua- sólido e convincente por parte dos responsáveis lidade, justamente onde começou, ou seja, no cam- pelo seu ensino nas diversas instituições formado- po da medicina, sob a forma de grupos homogêne- ras de técnicos especializados na área do atendi- os de auto-ajuda. mento psicológico, psiquiátrico e psicanalítico. Embora Freud nunca tenha trabalhado direta- Igualmente, as cúpulas políticas das mais variadas mente com grupoterapias, ele trouxe valiosas con- instituições, em todos os cantos do País, não só tribuições específicas à psicologia dos grupos hu- recusam prestar o apoio necessário aos programas manos, fazendo tanto de uma forma implícita (pe- de atendimento psicoterápico grupal, como ainda los ensinamentos fundamentais contidos em toda a muitas vezes boicotam o trabalho que vinha sendo sua obra), como também de forma explícita, pelos desenvolvido por dirigentes anteriores. seus cinco conhecidos trabalhos: As perspectivas Conquanto tudo isto continue ocorrendo na futuras da terapêutica psicanalítica (1910), Totem atualidade, também é verdade que aos poucos, em e tabu (1913), Psicologia das massas e análise do uma forma ainda algo desorganizada, a psicotera- ego (1921), O futuro de uma ilusão (1927) e Mal- pia de grupo vem abrindo um progressivo espaço estar na civilização (1930), sendo o de 1921 o mais de valorização e aplicação. O propósito deste ca- importante deles como contribuição às psicotera- pítulo é situar o leitor nos principais aspectos que pias de grupo. dizem respeito às grupoterapias e, para tanto, se- No mencionado Totem e tabu, por meio do mito guiremos um roteiro constante dos seguintes subtí- da horda selvagem, Freud faz a importante obser- tulos: 1) Uma breve visão histórico-evolutiva. 2) vação de que, por intermédio do inconsciente, a Conceituação de grupo. 3) Classificação das humanidade transmite as suas leis sociais, assim grupoterapias. 4) Fundamentos teóricos. 5) Fun- como essas produzem a cultura. No entanto, o seu damentos técnicos. 6) Indicações e contra-indica- trabaalho de 1921 é considerado particularmente ções. Alcances e limitações. 7) Condições neces- como o mais importante para o entendimento da sárias para a função de coordenador de grupo. 8) psicodinâmica dos grupos. Nele Freud traz as se- Estado atual e perspectivas futuras das grupote- guintes contribuições teóricas: uma revisão sobre rapias. sobre a psicologia das multidões; os grandes gru- pos artificiais (igreja e exército); os processos identificatórios (projetivos e introjetivos); as lide- ranças e as forças que influem na coesão e na desa- gregação dos grupos. Nesse mesmo trabalho pos- 438 DAVID E. ZIMERMAN tulou a sua crença de que “a psicologia individual periências com grupos realizadas em um hospital e a social não diferem em sua essência”, isto é, as militar durante a Segunda Guerra Mundial e na relações entre o indivíduo e o grupo são indisso- Tavistock Clinic, de Londres, criou e difundiu con- ciáveis e complementárias, o que reforça o que já ceitos totalmente originais acerca da dinâmica do profetizara, que “o êxito que a terapia passa a ter campo grupal. no indivíduo, haverá de obtê-lo na coletividade”. Entre as suas contribuições, vale destacar a sua Outros autores importantes que pavimentaram concepção de que qualquer grupo movimenta-se o movimento das grupoterapias foram J. Moreno em dois planos: o primeiro, que ele denomina como (médico romeno que em 1930 introduziu as “téc- “grupo de trabalho”, opera no plano do conscien- nicas psicodramáticas”); K. Lewin (desde 1936, te e está voltado para a execução de alguma tarefa; utilizou as vertentes sociológicas e introduziu a subjacente a esse, existe em estado latente, o gru- noção de “campo grupal”, tendo se dedicado ao po de “pressupostos básicos”, o qual está radicado estudo das minorias raciais); S. H. Foulkes (psica- no inconsciente e suas manifestações clínicas nalista britânico que, desde 1948, introduziu con- correspondem a um primitivo atavismo das pulsões ceitos eminentemente psicanalíticos à dinâmica de e de fantasias inconscientes. grupo, os quais serviram como principal referencial Bion formulou três tipos de supostos básicos: o de aprendizagem a sucessivas gerações de grupo- de dependência (exige um líder carismático que terapeutas, sendo que ele é considerado o líder inspire a promessa de prover as necessidades exis- mundial da “psicoterapia analítica de grupo”); tenciais básicas, dos indivíduos e do grupo), o de Pichon Rivière (psicanalista argentino altamente luta e fuga (de natureza paranóide, requer uma li- conceituado que aprofundou o entendimento do derança de natureza tirânica para enfrentar o su- campo grupal com algumas concepções originais, posto inimigo ameaçador) e o de apareamento além de ser o criador da teoria e prática dos “gru- (também conhecido como “acasalamento”, alude à pos operativos”); W. R. Bion, (cujas contribuições formação de pares no grupo, que podem se acasalar à grupoterapia analítica, pela sua importância, se- e gerar um messias salvador; portanto, é um supos- rão mais alongadamente detalhadas um pouco mais to inconsciente que, para se manter, exige um líder adiante). Também é necessário destacar o vigor que que tenha algumas características místicas). psicanalistas argentinos (como Grimberg, Rodrigué Além disso, Bion muito contribuiu para o en- e M.Langer) emprestaram à psicoterapia analítica tendimento da relação que um indivíduo portador de grupo, além de, também, ressaltar que na atuali- de idéias novas – que ele chama de “místico” (ou dade psicanalistas franceses, como D. Anzieu e R. de “gênio”) – trava com o establishment, no qual Käes, abrindo novos vértices de compreensão e está inserido. Essa última concepção tem se reve- estão procurando definir uma “identidade” própria lado de imprescendível importância para a com- à dinâmica grupal. No Brasil, a psicoterapia de gru- preensão dos problemas que cercam as instituições. po de inspiração psicanalítica teve começo com Pela importância que Bion representa para a Alcion B. Bahia, sendo que outros nomes impor- grupoterapia psicanalítica, cabe mencionar alguns tantes e pioneiros são os de Walderedo Ismael de dos aspectos que postulou: Oliveira e Werner Kemper, no Rio de Janeiro; Bernardo Blay Neto, Luís Miller de Paiva e Oscar • O grupo precede o indivíduo, isto é, as ori- Rezende de Lima, em São Paulo e Cyro Martins, gens da formação espontânea de grupos têm David Zimmermann e Paulo Guedes, em Porto suas raízes no grupo primordial, tipo a horda Alegre. Na atualidade, há no Brasil uma série de selvagem, tal como Freud a estudou. pessoas, em diversas e múltiplas áreas, trabalhan- • Os supostos básicos, antes aludidos, repre- do ativamente em busca de novos caminhos e de sentam um atavismo dos grupos primitivos, uma assistência mais ampla e abrangente com a incluídos os do reino animal (dependência aplicação dos recursos da dinâmica grupal. durante certo tempo; luta e fuga contra os predadores; acasalamento para a sobrevivên- cia da espécie) que, no curso de séculos, aca- CONTRIBUIÇÕES DE BION inseridos na mentalidade e na cultura grupal. Durante a década de 40, este eminente psicana- • A cultura grupal consiste em uma permanen- lista da Sociedade Britânica de Psicanálise – forte- mente influenciado pelas idéias de M. Kein, com te interação entre o indivíduo e o seu grupo, quem se analisava na época –, partindo de suas ex- ou seja, entre o narcisismo e o socialismo. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 439

• No plano “transubjetivo”, esse atavismo gru- constante dialética entre a busca de sua identidade pal aparece sob a forma de mitos grupais, individual e a necessidade de uma identidade grupal como são, por exemplo, os mitos de Eden, e social. Um conjunto de pessoas constitui um gru- Babel, Esfinge, Édipo. po, um conjunto de grupos constitui uma comuni- • A cultura exige uma organização, a qual é dade um conjunto interativo de comunidades con- figura uma sociedade. processada por meio da instituição de nor- A importância do conhecimento e a utilização mas, leis, dogmas, convenções e um código da psicologia grupal decorre justamente do fato de de valores morais, éticos e estéticos. que todo indivíduo passa a maior parte do tempo • O modelo que Bion propôs para a relação de sua vida convivendo e interagindo com distin- que o indivíduo tem com o grupo é o da re- tos grupos. Assim, desde o primeiro grupo natural lação continente-conteúdo, a qual comporta que existe em todas as culturas – a família nuclear três tipos: “parasitário”, “comensal “ e “sim- – onde o bebê convive com os pais, avós, irmãos, biótico”. babás, etc. e, a seguir, passando por creches, esco- • A relação que o establishment mantém com las maternais e bancos escolares, além de inúme- o indivíduo místico, ou seja, com aquele su- ros grupos de formação espontânea e os costumei- jeito que é sentido como sendo uma ameaça ros cursinhos paralelos, a criança estabelece vín- culos grupais diversificados. Tais grupamentos vão – por ser um portador de idéias novas – ad- se ampliando e renovando na vida adulta, com a quire uma dessas formas, tal como é possí- constituição de novas famílias e de grupos associa- vel encontrar freqüentemente nas mais dis- tivos, profissionais, esportivos, sociais, etc. tintas instituições: 1) simplesmente vetam a Assim como o mundo interior e o exterior são a sua entrada; 2) o expulsam, geralmente em continuidade um do outro, da mesma forma o indi- função do papel que lhe é imputado de “bode vidual e o social não existem separadamente; pelo expiatório” das mazelas da instituição; 3) contrário, eles se interpenetram, complementam e ignoram a sua presença; 4) desqualificam as se confundem entre si. Com base nessas premis- suas idéias e atividades; 5) há, uma manifes- sas, é legítimo afirmar que todo indivíduo é um ta aceitação desse indivíduo que ameaça a grupo (na medida em que, no seu mundo interno, estabilidade do grupo diretivo do establish- um grupo de personagens introjetados, como os pais, irmãos, etc., convivem e interagem); da mes- ment, porém, no fundo, um, latente, esvazi- ma forma, pode-se dizer que todo grupo pode com- amento de suas idéias, de sorte que ele é co- portar-se como uma individualidade (ele adquire optado, pela atribuição de funções adminis- uma identidade e caracterologia singular e própria). trativas, muitas vezes de aparência honrosa; Existem grupos de todos os tipos e uma pri- 6) outras vezes, completa Bion (1965), de- meira subdivisão que se faz necessária é a que que corrido algum tempo, alguém do establish- diferencia os grandes grupos (pertencem à área da ment adota as suas idéias, porém divulgam- macrossociologia) dos pequenos grupos (micro- nas como se elas tivessem partido dos pró- psicologia). No entanto, vale adiantar que, em li- homens da cúpula diretiva. nhas gerais, os microgrupos – como é o caso de um • A estruturação de qualquer indivíduo, neces- grupo terapêutico – costumam reproduzir, em mi- sariamente, requer a sua participação em di- niatura, as características sócio-econômicas e po- líticas e a dinâmica psicológica dos grandes gru- ferentes grupos, onde ele sempre sofre a in- pos. fluência dos outros, ao mesmo tempo em que O que caracteriza um grupo propriamente dito, ele também é um agente ativo de transfor- quer psicoterápico ou operativo, o preenchimento mações. das seguintes condições básicas: • Um grupo não é um mero somatório de indi- CONCEITUAÇÃO E IMPORTÂNCIA DE GRUPO víduos; pelo contrário, ele se constitui como uma nova entidade, com leis e mecanismos O ser humano é gregário por natureza e ele so- próprios e específicos. mente existe em função dos seus inter-relaciona- • Todos os integrantes estão reunidos, face a mentos grupais. Sempre, desde o nascimento, o face, em torno de uma tarefa e de um objeti- indivíduo participa de diferentes grupos, em uma vo comum ao interesse de todos eles. 440 DAVID E. ZIMERMAN

• O tamanho de um grupo não pode exceder o nalidade para a qual eles foram criados e compos- limite que ponha em risco a indispensável tos. preservação da comunicação, tanto a visual, Por esta razão, dentro do vasto leque de aplica- como a auditiva e a conceitual. ções da dinâmica dos grupos, a classificação que • Deve haver a instituição de um enquadre aqui estou propondo fundamenta-se no critério das finalidades a que se destina o grupo, e ela parte de (setting) e o cumprimento das combinações uma divisão genérica nos dois seguintes grandes nele feitas. Assim, além de ter os objetivos ramos: operativos e psicoterápicos. claramente definidos, o grupo deve levar em Cada um destes ramos, por sua vez, subdivide- conta a preservação do espaço (os dias e o se em outras ramificações. Assim, os grupos ope- local certo das reuniões), de tempo (horá- rativos (como indica o nome, visa “operar” em uma rios, tempo de duração das reuniões, plano determinada tarefa, sem que haja uma precípua fi- de férias, etc) e a combinação de regras e nalidade psicoterápica) cobrem os seguintes qua- outras variáveis que delimitem e normatizem tro campos: 1.Grupos de ensino-aprendizagem (a a atividade grupal proposta. ideologia fundamental desse tipo de grupo é que o • O grupo é uma unidade que se comporta essencial é “aprender a aprender” e o seu lema pode como uma totalidade e vice-versa. Cabe uma ser resumido na frase de que “mais importante do que encher as cabeças com conhecimentos é for- analogia com a relação que existe entre as mar cabeças). 2. Institucionais (estão sendo cres- peças separadas de um quebra-cabeças e centemente aplicados em escolas, sindicatos, em- deste com o todo a ser armado. presas, instituições, etc., com a finalidade de pro- • Apesar de um grupo constituir-se como uma mover uma integração entre os diferentes escalões nova entidade, com uma identidade grupal e ideologias, especialmente no que diz respeito ao própria e genuína, é também indispensável dificílimo problema da comunicação). 3. Comuni- que fiquem claramente preservadas, separa- tários (consistem em programas voltados para a damente, a identidade específica de cada um promoção da saúde mental de comunidades, como dos indivíduos componentes do grupo. pode ser exemplificado com grupos de crianças ou • Nos grupos sempre vai existir uma hierár- adolescentes normais, gestantes, pais e filhos, lí- quica distribuição de posições, e de papéis, deres da comunidade, etc., etc.). 4. Terapêuticos. Tal como esta denominação sugere, os grupos de distintas modalidades e intercambiáveis operativos terapêuticos visam fundamentalmente a entre si. uma melhoria de alguma situação de patologia dos • É inerente à conceituação de grupo, a exis- indivíduos, quer seja estritamente no plano da saú- tência entre os seus membros de alguma for- de orgânica, quer na do psiquismo, ou em ambos ma de interação afetiva, a qual costuma as- ao mesmo tempo. A forma mais utilizada desta sumir as mais variadas e múltiplas formas. modalidade grupal é conhecida sob o nome de Gru- • É inevitável a formação de um campo grupal pos de auto-ajuda e ela consiste em comumente dinâmico, onde gravitam fantasias, ansieda- ser um grupo de formação espontânea entre pesso- des, mecanismos defensivos, fenômenos re- as que se sentem identificadas por algumas carac- sistenciais e transferenciais, etc, além de al- terísticas semelhantes entre si, unificando-se quan- guns outros fenômenos que são próprios e do dão-se conta que têm condições de se ajudarem reciprocamente, quer pela ajuda de algum técnico específicos dos grupos, tal como pretendo coordenador, ou não. Vale citar como exemplo deste desenvolver mais adiante, no subtítulo que tipo, a enorme expansão dos grupos que são co- alude aos “Fundamentos Teóricos”. nhecidos sob o rótulo de “anônimos” (alcoolistas, tabagistas, neuróticos...). A forma mais utilizada desta modalidade grupal de auto-ajuda – também CLASSIFICAÇÃO GERAL DOS GRUPOS conhecida como grupos de ajuda mútua – está se processando no campo da medicina, quer como É válido partir do princípio de que, virtualmen- suporte para pacientes com doenças cronificantes, te, a essência dos fenômenos grupais é a mesma como diabéticos, reumáticos, hipertensos, etc., quer em qualquer tipo de grupo e o que determina as como forma de reabilitação para infartados, óbvias diferenças entre os distintos grupos, é a fi- colostomizados, mutilados, mulheres mastectomi- zadas, etc, e assim por diante, permitindo uma ex- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 441 tensa utilização e vêm comprovando resultados Freud a estudou. Aliás, em certo momento de sua bastante animadores. obra, Freud chegou a postular a existência do que Os grupos psicoterápicos, por sua vez, também ele denominou como “instinto social” de tal modo podem ser subdivididos em quatro linhas de utili- que um indivíduo não existe sem um grupo – e a zação da dinâmica grupal, cada uma delas obede- recíproca é verdadeira. cendo a uma distinta corrente teórica-técnica. As- Da mesma maneira, como foi antes menciona- sim, temos: 1. A corrente psicodramática, que vem do, em qualquer grupo constituído, se forma um ganhando um significativo espaço em nosso meio. campo grupal dinâmico, o qual se comporta como O psicodrama foi criado por J. Moreno e na atuali- uma estrutura que vai além da soma de seus com- dade ele conserva os seus princípios essenciais, que ponentes, de forma análoga a uma melodia que re- consta da utilização dos seguintes seis elementos sulta não da soma das notas musicais, mas, sim, da básicos: cenário, protagonista, diretor, ego auxili- combinação e do arranjo entre elas. Também é útil ar, público, cena a ser apresentada. As principais realçar que, embora ressalvando as óbvias diferen- cenas da vida de cada um e de todos são revividas ças, em sua essência, as leis da dinâmica psicoló- por meio de dramatizações, e a psicoterapia con- gica são as mesmas em todos os grupos. Como um siste em ressignificá-las durante a dramatização. 2. esquema de exposição, vale destacar os seguintes Teoria sistêmica. Os praticantes dessa corrente aspectos de fundamentação teórica, que estão ati- partem do princípio de que os grupos funcionam vamente presentes no campo grupal: como um sistema, ou seja, que há uma constante interação, complementação e suplementação dos • Em todo grupo coexistem duas forças con- distintos papéis que lhes foram atribuídos e que traditórias permanentemente em jogo: uma cada um dos componentes se vê impelido a desem- tendente à sua coesão e a outra à sua desin- penhar. A melhor e mais ampla utrilização prática tegração. deste tipo de psicoterapia é a terapia de família e a • A dinâmica grupal de qualquer grupo se pro- terapia com casais. 3. Cognitivo-comportamental. cessa em dois planos, tal como nos ensinou O tratamento preconizado pelos seguidores da cor- Bion: um é o da intencionalidade consciente rente comportamentalista (behavioristas) visam a (“grupo de trabalho”); o outro é o que alude três objetivos principais: uma reeducação-em ní- à interferência dos fatores inconscientes de vel consciente – das concepções errôneas do pa- cada um e de todos (“grupo de supostos bá- ciente; um treinamento de habilidades comporta- sicos”). É claro que, na prática, esses dois mentais (por exemplo, um obeso desenvolver táti- cas para evitar o consumo exagerado de alimen- planos não são rigidamente estanques; pelo tos...) e uma modificação no estilo de viver. 4. contrário, costuma haver uma certa flutua- Corrente psicanalítica. Embora sejam muitas as ção, interação e superposição entre eles. correntes teórico-técnicas dentro da própria psica- • Sempre há a presença permanente – mani- nálise, não é menos verdade que todas elas conver- festa, disfarçada ou oculta – de pulsões – gem para os tres princípios básicos que Freud for- ibidinais, agressivas e narcisísticas – que se mulou como constituindo o cerne da psicanálise: a manifestam sob a forma de necessidades, presença das resistências, da transferência e o da desejos, demandas, etc. interpretação. A seguir, este capítulo vai se res- • No campo grupal circulam ansiedades – as tringir aos principais aspectos que cercam a psico- quais podem ser de natureza persecutória, terapia de grupo de fundamentação analítica. depressiva, confusional, aniquilamento, en- golfamento, perda de amor ou a de castra- FUNDAMENTOS TEÓRICOS ção-que resultam tanto de conflitos internos como podem emergir em função das inevi- Vale repisar que a tendência à grupalização é táveis e necessárias frustrações impostas pela imanente ao ser humano, ou seja, ela é inata, es- realidade externa. sencial, indissociável e permanente, em qualquer • Por conseguinte, para contra-restar a tais an- cultura e geografia. Autores como Bion vão mais siedades, cada um do grupo e ele como um longe e afirmam que, historicamente, o grupo pre- todo mobilizam mecanismos defensivos, que cede o indivíduo, ou seja, que as origens da forma- tanto podem ser os muito primitivos (nega- ção espontânea dos grupos têm suas raízes no gru- ção, controle onipotente, dissociação, pro- po primordial, tipo a horda selvagem, tal como jeção, idealização, defesas maníacas,etc.) 442 DAVID E. ZIMERMAN

como também circulam defesas mais elabo- tal como elas aparecem nos casais, famílias, radas, como a repressão, o deslocamento, o grupos e instituições. isolamento, a formação reativa, etc. Um tipo • No campo grupal, costuma aparecer um fe- de defesa que deve merecer uma especial nômeno específico e típico: a ressonância, atenção por parte do coordenador o grupo é que, como o nome sugere, consiste no fato a que diz respeito às diversas formas de ne- de que, tal como acontece num jogo de gação de certas verdades penosas (dene- diapasões acústicos ou de bilhar, a comuni- gação, forclusão...). cação trazida por um membro do grupo vai • A dinâmica grupal propicia perceber a pre- ressoar em um outro, o qual, por sua vez, vai sença dos conflitos estruturais, ou seja, aque- transmitir um significado afetivo equivalen- les que resultam da desarmonia das instân- te, ainda que, provavelmente, venha embu- cias do id, ego, superego, (delas entre si ou tido em uma narrativa de embalagem bem com a realidade externa); assim como tam- diferente e assim por diante. bém devemos incluir as subestruturas do ego • O campo grupal constitui-se como uma ga- ideal, ideal do ego, ego real, alter ego e con- leria de espelhos, onde cada um pode refle- tra-ego (esta última é uma denominação que tir e ser refletido nos e pelos outros. Particu- venho propondo para aludir à presença de larmente nos grupos psicoterápicos, essa aspectos que a aprtir de dentro do self do oportunidade de encontro do self de um in- sujeito organizam-se de forma patológica e divíduo com o de outros configura uma pos- agem contra as capacidades do próprio ego, sibilidade de discriminar, afirmar e consoli- tanto em relação ao crescimento de cada in- dar a própria identidade pessoal. divíduo em particular como, também, nas • Um grupo coeso e bem constituído, por si situações grupais, como um boicote ao cres- só, tomado no sentido de uma abstração, cimento do grupo como uma totalidade). exerce uma importantíssima função, qual seja • Um outro aspecto de presença importante no a de ser um continente das angústias e ne- campo grupal é o surgimento de um campo cessidades de cada um e de todos. Isso ad- ativo de identificações, tanto as projetivas quire uma importância especial quando se como as introjetivas, ou até mesmo as “ade- trata de um grupo composto por pessoas bas- sivas”. O problema das identificações avul- tante regressivas. ta de importância na medida em que elas se • É importante destacar a relação do sujeito e constituem como o essencial elemento for- do grupo com a cultura na qual estão inseri- mador do sentimento de identidade. dos. Explico melhor com um exemplo tira- • A comunicação, nas suas múltiplas formas do da minha prática como grupoterapeuta, de apresentação – as verbais e as não-ver- para ilustrar o fato de que, diante da mesma bais – representa um aspecto de especial situação – a vida genital de uma mulher jo- importância na dinâmica do campo grupal. vem e solteira – foi vivenciada de forma to- • Igualmente, o desempenho de papéis, em es- talmente diferente em duas épocas, distan- pecial os que adquirem uma característica tes uns 25 anos uma da outra. Assim, na dé- de repetição estereotipada em determinados cada 60, uma jovem estudante de medicina indivíduos do grupo – como, por exemplo, levou mais de uma ano para “confessar” ao o papel de bode expiatório – é uma excelen- grupo que mantinha uma atividade sexual te fonte de obsevação e manejo por parte do com o seu namorado, devido às suas culpas coordenador de grupo. e ao pânico de que sofreria um repúdio ge- • Está sendo cada vez mais valorizada a for- neralizado pela sua transgressão aos valores ma como os vínculos (de amor, ódio, conhe- sociais vigentes naquela época. Em contra- cimento e reconhecimento), no campo gru- partida, em um outro grupo, agora em fins pal, manifestam-se e articulam entre si. Da da década 80, uma outra moça, também le- mesma maneira, há uma forte tendência em vou um longo tempo até poder partilhar com trabalhar com as configurações vinculares, os demais o seu sentimento de vergonha e temor de vir a ser ridicularizada e humilha- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 443

da pelo fato de que ainda se mantinha vir- do composto? (Trata-se de um grupo de ensino- gem. Em resumo, o modo de agir foi total- aprendizagem? De auto-ajuda? De saúde mental? mente oposto, mas a natureza do conflito De família?). Para quem este grupo se destina? (São (medo, vergonha, culpa,etc.) foi a mesma; o pessoas que estão motivadas? São crianças, ado- que variou foi o tipo da pressão cultural. lescentes, adultos, gestantes, psicóticos, empresá- rios, alunos, neuróticos mistos, etc.? Houve algum Todos os elementos teóricos do campo grupal definido critério de seleção?...). Como ele funcio- enumerados somente adquirem um sentido de exis- nará? (Será de tipo homogêneo ou heterogêneo?, tência e de validade se encontrarem um eco de re- Aberto ou fechado? Com ou sem co-terapia?, qual ciprocidade no exercício da técnica e prática grupal. será o “enquadre” relativo ao número de partici- Igualmente, a técnica também não pode prescindir pantes, o número de reuniões semanais, o tempo da teoria, de maneira que ambas interagem e evo- de duração das mesmas, será acompanhado ou não luem de forma conjugada e paralela. Pode-se afir- por um supervisor?, etc.). Onde, em em quais cir- mar que a teoria sem a técnica vai resvalar para cunstâncias e com quais recursos? (No consultó- uma prática abstrata, com uma intelectualização rio privado? Em uma instituição e, nesse caso, tem acadêmica, enquanto a técnica sem uma fundamen- o apoio da cúpula administrativa? Vai conseguir tação teórica corre o risco de não ser mais do que manter a necessária continuidade de um mesmo um agir intuitivo ou passional. local e dos horários combinados com o grupo?, etc.). Como uma tentativa de sintetizar, vale afirmar FUNDAMENTOS TÉCNICOS que a primeira recomendação técnica para quem vai organizar um grupo é a de que ele tenha uma Conquanto os fundamentos teóricos e as leis idéia bem clara do que ele pretende com esse gru- da dinâmica grupal que presidem os grupos, de for- po e de como vai operacionalizar esse seu intento; ma manifesta ou latente, sempre estejam presentes caso contrário, é muito provável que o seu grupo, e sejam da mesma essência em todos eles, é inegá- mais cedo ou mais tarde, patinará em um clima de vel que as técnicas empregadas são muito distintas confusão, incertezas e mal-entendidos. e variáveis, de acordo, sobretudo, com a finalida- de para a qual determinado grupo foi criado. Dian- te do fato de que existe um vasto polimorfismo Seleção e Grupamento grupalístico e que, por conseguinte, também há uma extensa e múltipla possibilidade de variação nas Os grupoterapeutas não são unânimes quanto estratégias, táticas e técnicas, torna-se impossível aos critérios de seleção dos indivíduos para a com- pretender, em um único capítulo, esgotar ou fazer posição de um grupo terapêutico. Alguns preferem um detalhamento minucioso de todas elas. Por essa aceitar qualquer pessoa que manifestar um interes- razão, vamos nos limitar a enumerar, de forma ge- se em participar de um determinado grupo em for- nérica, os principais fundamentos da técnica que mação, ou em andamento, sob a alegação de que dizem respeito ao cotidiano da prática grupal de os possíveis contratempos serão resolvidos duran- finalidade terapêutica. te o seu próprio funcionamento. Outros, no entan- to, entre os quais eu me filio, preferem adotar um certo rigorismo na seleção, ancorados nos argumen- Planejamento tos que seguem: • É muito importante e delicado o problema O primeiro passo por parte de um grupotera- das indicações e contra-indicações, como peuta quanto à sua tomada de decisão de formação de um grupo é o de traçar um planejamento quanto será melhor explicitado mais adiante. aos objetivos do mesmo; como ele fará sua seleção • Uma motivação por demais frágil de algum e composição – com as respectivas indicações e indivíduo selecionado acarreta uma alta pos- contra-indicações – assim como ele deverá estar sibilidade de uma participação pobre ou a apto a responder outras perguntas, como as seguin- de um abandono prematuro dele. tes: • Este tipo de abandono causa um mal-estar e Ele crê que reúne as condições mínimas neces- uma sensação de fracasso tanto no indiví- sárias de embasamento teórico-técnico e prático? duo que não ficou no grupo, bem como no Para o que e para qual finalidade o grupo está sen- 444 DAVID E. ZIMERMAN

grupoterapeuta e em cada um dos compo- tante elemento técnico porque representa, ativamen- nentes da totalidade grupal. Além disso, o te, as seguintes e importantes funções: grupo que permanece vai ficar sobrecarre- • A criação de um novo espaço para reexperi- gado com sentimentos de culpa e com um mentar e ressignificar fortes e antigas expe- estado de indignação por sentir-se desrespei- riências emocionais. tado e violentado, não unicamente pelo in- • Uma forma de estabelecer uma necessária truso que teve acesso à intimidade dos parti- delimitação de papéis e de posições, de di- cipantes e fugou, mas também contra a ne- reitos e deveres, entre o que é desejável e o gligência do grupoterapeuta. que é possível, etc. • Um outro prejuízo possível é o da composi- • Este último aspecto ganha relevância nos ção de um inadequado “grupamento”. Esse grupos com pacientes regressivos, como, por último termo alude a uma gestalt, ou seja, à exemplo, os borderline, porquanto eles cos- forma de como o indivíduo selecionado tumam apresentar uma “difusão de identida- interagirá com os demais do seu grupo espe- de” por ainda não estarem claramente deli- cífico. É importante assinalar o fato de que mitadas as diferenças entre si mesmo e os um mesmo indivíduo pode funcionar muito outros, portanto com um acentuado prejuízo mal em um determinado grupo, enquanto da noção de limites; daí é fácil perceber a uma experiência posterior pode comprovar razão por que é tão importante a instalação e que ele consegue participar muito proveito- a preservação de um enquadre. samente em um outro grupo para cujo “gru- • O enquadre está sob uma contínua ameaça pamento” ele foi adequamente selecionado. de vir a ser desvirtuado pelas pressões oriun- • Além destes, podem acontecer outros incon- das do interior de cada um e de todos, sob a venientes, como a possibilidade de um per- froma de demandas insaciáveis, distintas manente estado de desconforto contratrans- manobras de envolvimento, pela ação de ferencial, assim como também podem ocor- actings, algumas formas resistenciais e trans- rer certas situações constrangedoras quan- ferenciais, etc. do, por exemplo, muito cedo fica patente • Um aspecto que merece a atenção do grupo- entre as pessoas selecionadas como compo- terapeuta refere-se ao grau de ansiedade no nentes do “grupamento”, um acentuado des- qual o grupo vai trabalhar, de maneira a que nível entre eles, de cultura, inteligência, pa- não haja uma angústia excessiva, no entan- tologia psíquica, etc. to, uma total falta de ansiedade deve ser dis- criminada do que pode estar sendo um con- formismo com a tarefa, uma apatia. Enquadre (Setting) • Ainda um outro elemento inerente ao enqua- dre é o que podemos denominar “atmosfera Uma importante recomendação de técnica grupal” a qual depende basicamente da ati- grupalística consiste no estabelecimento de um tude afetiva interna do grupoterapeuta, do enquadre e a necessidade de sua preservação. O enquadre é conceituado como a soma de todos os seu estilo pessoal de trabalhar, dos seus procedimentos que organizam, normatizam e pos- referenciais teórico-técnicos, etc. sibilitam o funcionamento grupal. Assim, ele re- • Os principais elementos a serem levados em sulta de uma conjunção de regras, atitudes e com- conta na configuração de um setting grupal binações, como, por exemplo, o local das reuniões, são os seguintes: os horários, a periodicidade, o plano de férias, os – Trata-se de um grupo homogêneo (uma honorários (na eventualidade de que haja alguma mesma categoria de patologia ou de ida- forma de pagamento, a combinação desse aspecto de, sexo, grau cultural, etc) ou heterogê- deve ficar bem claro), o número médio de partici- neo (comporta variações no tipo e grau pantes, etc. Todos esses aspectos formam as “re- da doença, etc.)? gras do jogo”, mas não o jogo propriamente dito. – É um grupo fechado (uma vez composto O setting não se comporta como uma situação me- ramente passiva; pelo contrário, ele é um impor- o grupo, não entra mais ninguém) ou ele FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 445

é de natureza aberta (sempre que houver ser desmascardo, etc.) ou é de natureza depressiva? vaga podem ser admitidos novos mem- (No caso de uma grupoterapia psicanalítica é co- bros)? mum surgir o medo de enfrentar o respectivo qui- – A combinação é a de que o grupo terá uma nhão de responsabilidades, eventuais culpas e o duração limitada (em relação ao tempo medo de confrontar-se com um mundo interno des- truído e sem possibilidade de fazer reparações, o previsto para a existência do grupo ou da temor de ter que renunciar ao mundo das ilusões permanência máxima de cada indivíduo narcisísticas...). nesse grupo, que é o caso como comu- Vale acrescentar mais duas observações: a pri- mente ocorre nas instituições) ou ele será meira é a possibilidade de que a resistência do gru- de duração ilimitada (como pode ser no po possa estar significando uma natural, e até sa- caso de grupos abertos)? dia, reação contra as possíveis inadequações do – Quanto ao número de participantes, po- grupoterapeuta na sua forma de conceber e de con- derá variar desde um pequeno grupo com duzir o grupo. A segunda, igualmente importante, três participantes – ou dois, no caso de diz respeito à possibilidade de que, a partir de uma uma terapia de casal –, ou pode se tratar equivalente contra-resistência do grupoterapeuta, de um grupo denominado “numeroso”, forme-se um – inconsciente – “conluio resistencial” entre ele e os demais componentes do grupo, diri- que comporta dezenas de pessoas. gido contra o desenvolvimento de certos aspectos – Da mesma forma, também abrigam uma da tarefa na qual estão trabalhando. ampla gama de variações – conforme o tipo e a finalidade do grupo – outros as- pectos relevantes do enquadre grupal, Manejo dos Aspectos Transferenciais como é o caso do número de reuniões se- e Contratransferenciais manais (ou quinzenais...), o tempo de du- ração de cada reunião e assim por diante. Da mesma forma como foi referido em relação às resistências, é necessário frisar que, diante do inevitável surgimento de situações transferenciais, Manejo das Resistências e um manejo técnico adequado consiste em reconhe- Contra-Resistência cer e discriminar as suas distintas formas de apare- cimento e de significação. Assim, cabe afirmar que O melhor instrumento técnico que um grupote- o surgimento de um movimento transferencial está rapeuta pode ter para enfrentar as resistências que muito longe de representar que esteja havendo a surgem no campo grupal é uma clara idéia da fun- instalação de uma “neurose de transferência”, ou ção que elas estão representando para um determi- seja, é legítimo afirmar que no campo grupal, in- nado momento da dinâmica psíquica do seu grupo. clusive no grupanalítico, há transferência em tudo, Assim, uma primeira observação que se impõe é a mas nem tudo é transferência a ser trabalhada. que diz respeito à necessidade de ele discriminar No campo grupal, as manifestações transferen- entre as resistências inconscientes que, de fato, são ciais adquirem uma complexidade maior do que obstrutivas e que visam impedir a livre evolução no individual, porquanto nele surgem as assim de- exitosa do grupo, e aquelas outras resistências que nominadas “transferências cruzadas”, que indicam são bem-vindas ao campo grupal, porquanto estão a possibilidade da instalação de quatro tipos e ní- dando uma clara amostragem de como o self de veis de transferência grupal: de cada indivíduo para cada um e de todos aprendeu a se defender na vida, com os seus pares; de cada um em relação à figura contra o risco de serem humiulhados, abandona- central do grupoterapeuta; de cada um para o gru- dos, mal-entendidos, etc. po como uma totalidade e do todo grupal em rela- Da mesma forma, é útil que o grupoterapeuta ção ao terapeuta. possa reconhecer contra quais ansiedades emergen- Um aspecto que está adquirindo uma crescente tes no grupo uma determinada resistência se orga- importância técnica é o fato de os sentimentos trans- niza: ela é de natureza paranóide (medo da situa- ferenciais não representarem exclusivamente uma ção nova, de não ser reconhecido como um igual mera repetição de antigas experiências emocionais aos outros e de não ser aceito por esses, do risco de com figuras do passado: eles podem também estar vir a passar por vergonhas e humilhações, de vir a refletindo novas experiências que estão sendo 446 DAVID E. ZIMERMAN vivenciadas com a pessoa real do grupoterapeuta e ta de actings malignos, como são, por exemplo, os de cada um dos demais. de natureza psicopática. Em relação aos sentimentos contratransfe- Há uma forma de atuação que, embora muitas renciais, o importante é que o coordenador do gru- vezes passa despercebida, apresenta uma repercus- po saiba que eles são de surgimento inevitável; que são deletéria, devendo, por isso, ser bem percebi- o segredo do êxito técnico consiste em não permi- da e trabalhada pelo grupoterapeuta: é a que se re- tir que tais sentimentos despertados invadam a sua fere à quebra do sigilo, à divulgação para fora do mente, de modo a se tornarem patogênicos; pelo grupo de alguma situação muito sigilosa e privati- contrário, a sua competência será medida pela sua va da intimidade deste. Não custa repetir que uma capacidade de utilizar os sentimentos contratrans- adequada seleção e grupamento na composição de ferencias como um instrumento de empatia e que, um grupo terapêutico minimiza o risco de atuações finalmente, ele esteja atento para o risco de, incons- malignas. cientemente, poder estar envolvido em algum tipo de conluio com o grupo, o qual pode ser de nature- za sadomasoquista, de uma recíproca fascinação Comunicação narcisista, etc. Partindo da afirmativa de que o grande mal da humanidade é o problema do mal-entendido, pode Manejo dos Actings aquilatar-se a importância que os aspectos da nor- malidade e patologia da comunicação nos grupos Todos os técnicos que trabalham com grupos representa para a técnica e prática grupalística. reconhecem que a tendência ao acting (“atuação”) Assim, o grupo é um excelente campo de observa- é de curso particularmente freqüente e que a inten- ção de como são transmitidas e recebidas as men- sidade deles crescerá em uma proporção geométri- sagens verbais, com as possíveis distorções e rea- ca com a hipótese de que indivíduos de caracte- ções por parte de todos. Um aspecto da comunica- rologia psicopática tenham sido incluídos na sua ção verbal que merece atenção especial é o que composição. Do ponto de vista de ser utilizado aponta para a possibilidade de que o discurso este- como um instrumento técnico, é necessário que o ja sendo usado, de fato, não para comunicar algo, grupoterapeuta reconheça que os actings represen- porém, pelo contrário, que ele esteja a serviço da tam uma determinada conduta que se processa como incomunicação. uma forma de substituir sentimentos que não con- Por outro lado, não é unicamente a comunica- seguem se manifestar no plano consciente. Isso ção verbal que importa, porquanto, cada vez mais, costuma ocorrer devido a uma das seguintes cinco torna-se significante a importância das múltiplas condições: quando os sentimentos represados formas de linguagem não-verbais (gestos, tipo de correspondem a fatos, fantasias e ansiedades que roupas, maneirismos, somatizações, silêncios, cho- estão reprimidas e que não são recordadas (como ros, actings...). Freud ensinou) ou que não são pensadas (segundo Bion), ou que não são comunicadas pela verbali- zação, ou que não conseguem ficar contidas den- Atividade Interpretativa tro do próprio indivíduo e, finalmente, o importan- te aspecto de que o acting pode estar funcionando Utilizo a expressão “atividade interpretativa” como um recurso muito primitivo de comunicação. em lugar de “interpretação”, pelo fato de esta últi- As atuações adquirem um extenso leque de ma ser classicamente entendida no plano de um manifestações; no entanto, o que de fato mais im- sitemático reducionismo ao plano do “aqui-agora- porta é a necessidade de o grupoterapeuta saber comigo...”, enquanto a primeira expressão permite discriminar com segurança quando se trata de supor uma maior abrangência de recursos utiliza- actings benignos (como é o caso das conversas pré dos pelo grupo terapeuta, como é o caso de uso de e pós reuniões, encontros sociais entre os partici- perguntas que instiguem reflexões; clareamentos; pantes, às vezes acompanhados dos respectivos assinalamentos de paradoxos e contradições; con- cônjugues, assim como o exercício de alguma ação fronto entre a realidade e o imaginário; abertura de transgressora, mas que, no fundo, pode estar signi- novos vértices de percepção e significação de uma ficando uma saudável tentativa de quebrar alguns determinada experiência emocional, etc. Com “ati- tabus e estereotipias obsessivas) e de qundo se tra- vidade interpretativa” também estou englobando toda participação verbal do grupoterapeuta que, de FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 447 alguma forma, consiga promover a integração dos transparência do desempenho de papéis e posições aspectos dissociados dos indivíduos, da tarefa e do por parte de cada um dos componentes. A impor- grupo. tância desse fenômeno grupal consiste no fato de Assim concebida, a atividade interpretativa no que o indivíduo também está executando esses grupo constitui-se como o seu principal instrumento mesmos papéis nas diversas áreas de sua vida, como técnico, sendo que não existem fórmulas acabadas a familiar, o social, o profissional, etc. e “certas” de como e o que dizer, pois as situações É um dever do grupoterapeuta estar atento à práticas são muito variáveis e, além disso, cada possibilidade de estar ocorrendo uma fixidez e uma grupoterapeuta deve respeitar o seu estilo peculiar estereotipia de papéis patológicos (como é, por e autêntico de formular as suas intervenções e de exemplo, o de “bode expiatório”, etc) exercidos ele ser, de verdade. No caso das grupoterapias psi- sempre pelas mesmas pessoas, como se elas esti- canalíticas, a questão mais polêmica gira em torno vessem programadas para assim agir ao longo de daqueles grupoterapeutas que preferem interpretar toda a sua vida. Um bom exemplo de como a atri- sempre se dirigindo ao grupo como una totalidade buição e a assunção de papéis pode representar um gestáltica (“o grupo está me dizendo que...”), en- recurso técnico por excelência é o que pode ser quanto outros advogam que a interepretação pode confirmado pelos terapeutas de família, que tão bem (ou deve) ser dirigida aos indivíduos separadamen- conhecem o fenômeno do “paciente identificado” te, desde que ela venha articulada com a dinâmica (a família inconscientemente elege alguém dentre da totalidadedo grupo. eles para servir como depositário da doença laten- Um outro vértice a considerar é que da mesma te e oculta de todos os demais). forma de como se passa nas psicoterapias indivi- duais, também as interpretações grupais, devem levar em conta aos seguintes cinco aspectos: o con- Vínculos teúdo (o que interpretar), a forma (como formu- lar), a oportunidade (quando), a finalidade (pre- Cada vez mais, os técnicos da área da psicolo- tende atingir a qual propósito?), e o destino que as gia estão valorizando a configuração que adqui- interpretações tomam dentro da mente de cada um rem as ligações vinculares entre as pessoas. Indo e de todos. muito além do clássico e exclusivo conflito do vín- culo de amor contra o de ódio, na atualidade con- sidera-se mais importante a observação atenta de Funções do Ego como se manifestam as diferentes formas de amar, de agredir e as interações entre ambas. Além dis- A situação do campo grupal propicia o sur- so, Bion introduziu o importantíssimo vínculo do gimento de funções do ego, inclusive as conscien- conhecimento (que ele designa com a letra “K”, tes, isto é, de como os indivíduos utilizam as suas inicial de knowledge), o qual possibilita um me- capacidades de percepção, pensamento, conheci- lhor manejo técnico com os problemas ligados às mento, juízo crítico, discriminação, comunicação, diversas formas de “negação” que explicam a gê- ação, etc.; por essa razão, trabalhar com tais as- nese de muitos quadros de psicopatologia, assim pectos é parte muito importante da instrumentação como também favorece ao técnico uma maior cla- técnica. Para dar um único exemplo, vale mencio- reza na compreensão da circulação das verdades, nar que a essência de uma terapia de casal, de fa- falsidades e mentiras no campo grupal. Particular- mília ou de qualquer outra grupoterapia consiste mente, tenho proposto a existência de um quarto basicamente em “ensinar” os participantes a usa- vínculo, o do reconhecimento, pelo qual é possível rem as funções de saber escutar o outro (isso é di- ao grupoterapeuta perceber o quanto cada indiví- ferente de simplesmente “ouvir”), de poder pensar duo necessita, de forma vital, ser reconhecido pe- no que está escutando, nas experiências emocio- los demais do grupo como alguém que, de fato, nais pelas quais eles estão passando, e asim por existe e que é aceito como pertencendo ao grupo (é diante. o fenômeno grupal conhecido como “pertencên- cia”), assim como também esse vínculo alude à necessidade de que cada um reconheça ao outro Papéis como alguém que tem o direito de ser diferente e emancipado dele. Convém enfatizar que uma das características Tendo por base esses quatro vínculos, e as inú- mais relevantes que permeiam o campo grupal é a meras combinações e arranjos possíveis entre eles, 448 DAVID E. ZIMERMAN que determinam os mais variados tipos de configu- salva, é claro, que para outros casos, a recíproca é rações vinculares, a compreensão e o manejo dos verdadeira), fator que deve ser considerado na ava- mesmos tornam-se um excelente recurso técnico liação dos critérios de prioridade de indicações. no trato de casais, famílias, grupos e instituições. Uma outra indicação que está adquirindo um gra- dativo consenso de prioridade de atendimento grupal é o que se refere ao tratamento de pacientes Término do Grupo bastante regressivos, como podem ser os psicóti- cos, borderline, deprimidos graves, somatizadores, Pode haver duas possibilidades: uma é a de que etc., desde que este tratamento se processe em gru- o grupo termine ou por uma dissolução dele, ou pos homogêneos. para cumprir uma combinação prévia, como é no caso dos “grupos fechados”. A segunda eventuali- dade é a de que determinada pessoa encerre a sua Contra-Indicações participação, embora o grupo continue, como é no caso dos “grupos abertos”. Saber terminar algo, Partindo da hipótese de que o grupo em forma- que pode ser uma tarefa, um tratamento, um casa- ção seja de finalidade para uma grupoterapia ana- mento, etc. representa um significativo crescimen- lítica, e que ele seja misto, isto é, sem a homogenei- to mental. Daí considermos que deve haver por dade acima mencionada, as seguintes contra-indi- parte do coordenador de qualquer grupo uma fun- cações podem ser enumeradas, tendo em vista os damentação técnica que possibilite uma definição pacientes que: de critérios de término, bem como um manejo ade- quado para cada situação em particular, sempre • Estejam mal motivados, tanto em relação à levando em conta a possibilidade de um risco de sua real disposição para um tratamento lon- que os resultados alcançados possam ter sido en- go e difícil, quanto ao fato de ser especifica- ganadores. mente em grupo. Não é raro que algumas pessoas procurem um grupoterapeuta sob a alegação de que querem ter a oportunidade INDICAÇÕES E CONTRA-INDICAÇÕES de “observar como funciona um grupo”, ou DAS GRUPOTERAPIAS que vão unicamente em busca de um grupo social que lhes falta, e assim por diante. Eu, Indicações particularmente, não os incluiria em um gru- po analítico, porquanto, como respeito a eles A grupoterapia é, lato senso, extensiva a todos próprios, aos demais que participam árdua e os pacientes que não estiverem enquadrados nas seriamente no grupo, e a mim mesmo, tomo contra-indicações abordadas logo a seguir. Em sen- como critério mínimo que o pretendente es- tido stricto, pode-se dizer que em algumas situa- teja comprometido com o reconhecimento ções a grupoterapia constitui-se como o tratamen- de sua necessidade de tratamento psicote- to de escolha. Assim, muitos autores que têm uma rápico e com a seriedade do compromisso sólida experiência no tratamento com pacientes que ele vai assumir. adolescentes, tanto individualmente como em gru- pos, preeconizam a indicação prioritária destes úl- • Aqueles que sejam excessivamente deprimi- timos. dos, paranóides ou narcisistas. Os primeiros Outra indicação que pode ser prioritária é quan- porque exigem uma atenção e preocupação do o próprio consulente demonstra uma inequívo- concentradas exclusivamente em si própri- ca preferência por um tratamento grupal. Da mes- os; os segundos pela razão de que a sua exa- ma forma sabemos que determinados pacientes não gerada distorção dos fatos, assim como a sua conseguem suportar o enquadre de uma terapia atitude defensivo-beligerante, pode impedir individual, devido ao incremento de temores, como, a evolução normal do grupo; os terceiros por exemplo, os de natureza simbiotizante com o devido à sua compulsiva necessidade de que terapeuta. o grupo gravite em torno de si, o que os leva A experiência clínica ensina que tais pacientes a se comportarem como “monopolistas crô- que fracassaram em terapias individuais podem funcionar muito bem em grupoterapia (com a res- nicos”. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 449

• Aqueles que apresentam uma forte tendên- deve caber uma comparação com a psicanálise in- cia a actings de natureza maligna, muitas dividual, pois ambas têm muitos pontos em comum vezes envolvendo outras pessoas do mesmo e tantos outros totalmente distintos. grupo, como é o caso, por exemplo, das psicopatias. • Inspiram uma acentuada preocupação pela CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA A FUNÇÃO possiibilidade de graves riscos, principal- DE GRUPOTERAPEUTA mente o de suicídio. É impossível dissociar um adequado manejo Apresentam um déficit intelectual, ou uma • técnico em qualquer modalidade de grupoterapia, elevada dificuldade de abstração e, por essa sem que haja uma simultânea atitude psicanalítica razão, dificilmente poderão acompanhar o interna na pessoa real do grupoterapeuta. Assim, ritmo de crescimento da grupoterapia. além do clássico tripé composto pelos necessários • Estão no cume de uma séria situação crítica, conhecimentos (provindos de muito estudo e per- aguda, e que por isso representam o risco de manentes leituras), de habilidades (adquiridas com uma impossibilidade de partilhar os interes- treinamento e supervisões) e de atitudes (um trata- ses em comum com os demais. mento de base psicanalítica, individual ou grupal, • Pertencem a uma certa condição profissio- ajuda muito), também deve ser levado em conta nal ou política que representam sérios riscos uma série de atributos e de funções que constituem por uma eventual quebra de sigilo. as condições necessárias mínimas para a qualifica- ção de um grupoterapeuta. Dentre elas, vale desta- Apresentam uma história de terapias anteri- • car as seguintes: ores interrompidas, e que nos autoriza a pen- sar que se trate de “abandonadores compul- • Ele deve gostar e acreditar em grupos. sivos”. Nesses casos há um forte risco de que • Ser continente (capacidade para conter as an- esse tipo de paciente faça um novo abando- gústias e necessidades dos outros, e também no prematuro, com uma acentuada e incove- as suas próprias). niente frustração de todo o grupo, menos tal- • Empatia (poder colocar-se no lugar do ou- vez para ele mesmo. tro e assim manter uma sintonia afetiva). • Capacidade de discriminação (para não fi- car perdido no cipoal das, cruzadas e per- Alcances e Limitações manentes, identificações projetivas e intro- jetivas). O potencial psicoterápico da dinâmica das • Funcionar como um novo modelo de identi- grupoterapias parece-me ser bem maior do que ficação (contribui para a importante função habitualmente ele é considerado em nosso meio e, de desidentificação e dessignificação de ex- naturalmente, ao mesmo tempo, ele também tem periências antigas, assim abrindo espaço para claras limitações. Em relação aos alcances, é ne- neo-identificações e neo-significações. cessário reconhecer que a utilização dos grupos, • Capacidade de comunicação (tanto como na atualidade, extrapola em muito a sua utilização emissor ou receptor, com a linguagem ver- unicamente como terapia de fundamentação analí- tica voltada exclusivamente para a aquisição de bal ou a não-verbal, com a preservação de insight, embora essa seja uma meta perfeitamente um estilo próprio, e como uma forma de atingível. Na verdade, as grupoterapias estão al- modelo de comunicação adequada, para os cançando uma larga abrangência de aplicações, que demais do grupo). de forma direta ou indireta representam resultados • Ser verdadeiro (se o grupoterapeuta não ti- psicoterápicos, como são os grupos que foram an- ver um amor às verdades e preferir não en- tes mencionados na classificação geral dos grupos. frentá-las, não poderá servir como um mo- Dentre as limitações é necessário reconhecer que delo para o seu grupo, e o melhor será trocar ainda não contamos, até o momento, com um nú- de profissão). mero de técnicos suficientemente bem treinados • Senso de humor (um grupoterapeuta pode – para uma aplicação grupoterápica analítica de uma ou deve – ser firme sem ser rígido, flexível dimensão social mais ampla. Por outro lado, não sem ser frouxo, descontrair, rir e brincar sem 450 DAVID E. ZIMERMAN

perder o seu papel e tampouco a manuten- apesar de ela ter se mostrado comprovadamente ção dos necessários limites). eficiente? (Deve ficar bem claro que tomamos o • Capacidade para integração e síntese (isso vetor do recurso econômico apenas para reforçar alude à capacidade dele extrair o denomina- uma situação extrema, de natureza social, embora dor comum das aparentemente diferentes longe de significar que a indicação para um trata- mento em grupoterapia analítica siga basicamente mensagens emitidas pelos diversos compo- tal critério). E o decênio 2000? nentes do grupo – as quais funcionam como Penso que em muitas instituições psicanalíti- se fosse uma “livre associação de idéias” – e cas, no mundo todo, o ensino e o emprego das de integrá-las em um todo coerente e unifi- grupoterapias continuam sendo proscritas e enca- cado, sem artificialismos forçados). radas como uma via desviada da prática psicanalí- • Outros atributos que ainda poderiam ser des- tica. No entanto, nos últimos tempos parece que tacados referem-se à: coerência (entre o que tem havido em diversos cantos do mundo uma par- ele diz, faz e o que, de fato, ele é !); paciên- ticipação, cada vez mais numerosa, de psicotera- cia (não confundir com passividade; trata- peutas em atividades de grupo, como o da terapia se de um processo ativo que consiste em sa- familiar, muitas vezes com o emprego de técnicas ber esperar e suportar a passagem de muitos psicodramáticas. Da mesma forma há um conside- rável desenvolvimento de institutos de psicanálise períodos que parecem caóticos); senso de que começam a se questionar quanto a validade das ética (conquanto seja uma condição indis- terapias de fundamentação psicanalítica em grupos, pensável para qualquer tipo de terapeuta, ela principalmente com determinadas categorias de adquire uma importância vital nas situações pacientes que não costumam responder bem às te- grupoterápicas). rapias psicanalíticas individuais. Igualmente os congressos de psiquiatria dinâmi- ca, e os de psicanálise, ultimamente, têm aberto um ESTADO ATUAL E PERSPECTIVAS FUTURAS espaço significativamente maior para a apresenta- DAS GRUPOTERAPIAS ção e discussão de trabalhos sobre grupoterapias; também existem muitos mais, e melhores, revistas e De forma bastante resumida pode-se dizer que publicações especializadas acompanhando um cres- os grupos terapêuticos, não os de funcionamento cente número de leitores interessados; há um pro- estritamente analítico, têm revelado um significa- gressivo e intensivo intercâmbio de idéias em âmbi- tivo desenvolvimento e uma progressiva demanda. to internacional; existem sinais indicadores quanto São exemplos: o emprego crescente de terapias de a uma possível abertura dos institutos psicanalíticos casal, de família, grupos com psicóticos hospitali- e de instituições responsáveis pela formação de zados ou egressos, grupos homogêneos com pa- psicoterapeutas, para o ensino e valorização da prá- ciente bastante regressivos, grupos psicodramáticos tica grupoterápica assim como parece estar haven- e, sobretudo, os grupos de auto-ajuda. Estes últi- do a expansão do aproveitamento da dinâmica grupal mos vêm revelando nesta última década uma ex- em outras áreas que não as diretamente ligadas aos pansão e aproveitamento notáveis, sobretudo em campos da psicologia e da psicopatologia. infindáveis aplicações na área da medicina. Assim, não resta dúvidas de que há um largo e Em relação à psicoterapia analítica de grupo belo campo que representa um desafio para pes- propriamente dita, não se observa o mesmo cresci- quisas e investigações, isto é, a dinâmica grupal mento que o descrito nos grupos anteriores. Pelo ainda tem muito para se desenvolver porquanto ela contrário, após o início de sua aplicação noa anos inclui fenômenos que ainda são incógnitas, além 50 e o vigoroso florescimento nos 60, as décadas de outros fenômenos conhecidos que estão à espe- 70 e 80 foram marcadas por um progressivo declí- ra de outros paradigmas teóricos, da psicanálise e nio. A década 90 ainda não respondeu à mesma de outras ciências. pergunta que há bastante tempo todos os grupotera- Igualmente, também sou dos que crêem que no peutas se fazem: por que, em um país como o nos- futuro os estudiosos da sociologia e da psicologia so, em que há uma escassez de técnicos e em que do ser humano perguntar-se-ão, perplexos: como é há uma imensa fatia da população, de prevalência que há mais tempo nós não nos interessamos por jovem, que poderia se beneficiar com tratamento grupos se vivemos e convivemos em uma perma- de base analítica, mas que a ele não tem acesso nente, intensa, extraordinária e complexa relação econômico, não prospera a grupoterapia analítica, do indivíduo com o seu mundo? FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 451

CAPÍTULO o indivíduo estabelece consigo próprio e com os demais. A importância que está sendo creditada às con- dições emocionais da pessoa do analista, ao longo de todo o processo de um tratamento analítico, le- 41 vou Bion a postular que cada analista deve ter em mente, de modo claro, quais são as condições mí- nimas necessárias (CMN), para si mesmo, nas quais ele e o seu paciente podem fazer o trabalho (1992, p.75). Por ser o autor que, segundo creio, Condições Necessárias mais enfatizou a participação do terapeuta, por meio de seu modelo continente-conteúdo, e de tantas para um Analista outras concepções originais, este capítulo será es- sencialmente baseado em Bion e, para tanto, usa- rei o recurso de mencionar frases originais dele, e tecer considerações a partir delas, sendo meus os Na atualidade, é impossível a compreensão dos eventuais grifos das transcrições. fenômenos psíquicos a aprtir de um enfoque 1. Formação do analista. Assim, Bion costu- centrado unicamente no indivíduo. Pelo contrário, mava afirmar em seus seminários clínicos que a impõe-se, cada vez mais, a convicção de que, des- prática da psicanálise é muito difícil. A teoria é de os primeiros estágios evolutivos até o pleno fun- simples. Se o analista tem boa memória poderá cionamento em todas áreas de sua vida, o psiquismo ler todos esses livros e decorá-los com facilidade. de cada sujeito interage permanentemente com Daí poderão dizer: que bom analista é tal pessoa; outras pessoas, sofrendo influências, às vezes pas- sabe todas essas teorias. Mas isto não equivale a sivamente, ao mesmo tempo em que ele também é ser um bom analista. Um bom analista está sem- um, ativo, agente modificador do seu entorno fa- pre lidando com uma situação desconhecida, miliar, social, profissional... imprevisível e perigosa. (Revista IDE, 14, 1987, p. Portanto, não é mais admissível que uma análi- 5). Essa frase nos introduz à condição de que mais se funcione unicamente com o método ultrapassa- do que uma necessária bagagem de conhecimentos do, no qual ao paciente cabia o papel de trazer o (provindos de seminários e estudos continuados), seu “material”, enquanto o papel do psicanalista de uma, igualmente necessária, competente habili- limitava-se a observar e “interpretar” o aludido ma- dade (resultante de supervisões), o analista deve terial, com uma atitude de neutralidade absoluta, possuir uma adequada atitude psicanalítica (mer- na qual, como um “espelho” opaco frente aos seus cê de seus atributos naturais, e aqueles desenvolvi- pacientes, ele refletiria tão-somente aquilo que vi- dos pela análise pessoal), sendo que esta última esse das “livres associações de idéias” do anali- consiste exatamente na posse do analista das “con- sando. Entre os analistas de hoje existe um con- dições mínimas necessárias” para enfrentar as an- senso, virtualmente absoluto, de que um processo gústias e os imprevistos de uma longa viagem pe- analítico repousa, sobretudo, na dinâmica que existe los meandros do inconsciente do paciente e dele no campo analítico (termo de Baranger, 1961), mesmo. estabelecido pelas influências recíprocas entre o par 2. Par analítico. A posição, acima, de Bion, analítico. fica confirmada com a sua afirmativa de que...a Ferenczi, desde seus trabalhos iniciados em única coisa que parece ser básica não é tanto aqui- 1931, pode ser considerado o precursor de autores lo que fazemos, mas aquilo que vivemos, aquilo como Balint, Winnicott, Guntrip, Kohut, Baranger que somos...(1992a, p. 46). Em outros momentos, e tantos outros que estudaram, aplicaram e divul- ele diz que, em análise, a coisa mais importante garam trabalhos analíticos, como essencialmente não é aquilo que o analista e o paciente podem centrados na inter-relação analista-paciente. Bion, fazer, mas o que a dupla pode fazer, onde a unida- seguiu nessa mesma linha, até porque os seus pri- de biológica é dois, e não um (p. 62)..., o ser hu- meiros passos na carreira que o levaram a ser o mano é um animal que depende de um par; em terceiro gênio da psicanálise começaram com tra- análise, é um par temporário (p. 95)..., sendo que balho com “grupos” e seguiram de forma ininter- todo o analista precisa ser temerário e reunir a rupta, privilegiando, cada vez mais, os vínculos que tenacidade e a coragem que acompanham a te- meridade, para poder insistir no direito de ser ele 452 DAVID E. ZIMERMAN mesmo e de ter a sua própria opinião a respeito nidade de aprender algo e não permitir que o pa- dessa estranha experiência que ocorre quando se ciente, ou quem quer que seja, insista que ele é está consciente de que há outra pessoa na sala uma espécie de deus que conhece todas as respos- (p.74). É importante observar que a postulação de tas. É desesperante sentir que se se está condena- que uma análise exige uma comunhão entre analis- do a ser, de algum modo, a um “grande pai” ou ta e paciente, não deve significar que o analista “grande mãe” ou o “grande que seja”. O que toda perca o seu lugar, a sua autonomia, e muito menos pessoa deve querer é ter espaço para viver como que fiquem borradas as diferenças e a manutenção um ser humano que comete erros (1992b, p. 13). dos necessários limites entre ambos. Embora possamos depreender quão importan- Bion, entre outros tantos autores, é um dos que te é o fato de o analista reconhecer que ele tem mais destaca o fato de que a simples presença do limites, limitações e tem direito a cometer enganos psicanalista promove alterações no setting. Isso está e erros, como todo mundo, impõe-se enfatizar que de acordo com o “princípio da incerteza”, uma con- isso não é a mesma coisa que ele adotar uma pos- cepção de Eisenberg, que Bion freqüentemente tura analítica de indulgência ou negligência, tal mencionava, e que consiste no fato de que o obser- como fica confirmado nessa posição de Bion: na vador muda a realidade do fenômeno observado, Inglaterra não se pode iniciar uma ação legal con- conforme for o seu estado mental durante uma de- tra o médico porque ele tenha fracassado em cu- terminada situação, a exemplo do que se passa na rar a um paciente; o fracasso na cura não é um física quântica, subatômica, na qual uma mesma crime, nem mesmo se for o caso de um médico in- energia num dado momento é “onda” e noutro é competente. O que, sim, é um crime, é a negligên- “partícula”. Assim, Bion foi um dos que mais con- cia. Em psicanálise, a obrigação do analista é a tribuiu para desmistificar a posição de infalibilida- de intentar ajudar, não se pode estar na obriga- de do analista, como um privilegiado observador ção de conseguir ajudar (p. 39)...O único contra- neutro e perfeitamente sadio, investido como auto- to de que o analista participa é aquele que estabe- ridade e juiz supremo daquilo que é o certo e o lece que ele fará o melhor que ele pode, mas não verdadeiro, e o considerou como um ser humano, a obrigação de que terá êxito (p.69). certamente mais bem preparado que o seu anali- Destarte, destaco como uma das mais profun- sando, porém também tensionado por angústias e das e belas palavras de Bion as que estão nesta fra- incertezas. Ele completa esse seu pensamento di- se: em algum lugar da situação analítica, sepulta- zendo que a incerteza não tem cheiro, não é pal- da sob massas de neuroses, psicoses e demais, há pável, mas ela existe. Se existe algo que é certo, é uma pessoa que pugna por nascer. O analista está que a certeza é errada (1992b, p. 202). Pelo con- comprometido em uma tarefa de tentar ajudar a trário, diz Bion, referindo-se ao ritmo da análise: criança a encontrar a pessoa adulta que palpita na prática, devemos ter uma percepção acerca do dentro dele e, por sua vez, também mostrar que a que o paciente pode suportar. Nosso comporta- pessoa adulta que ele é, ainda é uma criança. O mento tem que sustentar certo compromisso; o ana- ideal é que ambas partes diferentes convivam em lista deve ter consideração para com o paciente, um criativo vínculo do tipo “simbiótico” (1992b, para quem essa é uma experiência atemorizante. p. 49). No entanto, insistindo na necessidade de o ana- 3. Pessoa real do analista. Penso que freqüen- lista reconhecer as suas próprias limitações, além tes afirmativas de Bion, como, por exemplo, a de daquelas do paciente, Bion nos alerta que certos que o paciente faz algo para o analista e o analis- pacientes não são analisáveis. Pode não ser culpa ta faz algo para o paciente não é apenas uma fan- do analista, nem do paciente, senão que simples- tasia onipotente (1992a, p.79), comprovam que mente ainda não sabemos o suficiente (p.32). ele valorizava o fato de que o psiquismo do analis- ta, como pessoa real, mais do que unicamente uma 4. Visualisar as diferentes partes do pacien- pantalha transferencial, exerce uma importante in- te. Para Bion, faz parte da atitude psicanalítica do fluência nos destinos da análise. Assim, ele insiste terapeuta, em relação ao aspecto transferencial, que na tecla de que em toda situação analítica devem a situação mental do paciente não seja vista unica- existir duas pessoas angustiadas e, completava mente como espaçada no tempo – passado, pre- jocosamente, espera-se que uma menos que a ou- sente e futuro –, mas que, no lugar disso, o analista tra... Dentro desse contexto, cabe destacar a sua poderia considerar a mente do paciente como um afirmativa de que cada analista deve esperar se- mapa militar, no qual tudo está retratado em sua guir melhorando, de modo igual ao paciente. Por superfície plana, ligada com vários contornos. Isso isso é bom que o analista dê a si mesmo a oportu- significa que falar com uma pessoa é sempre “aqui FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 453 e agora”, desde que o analista consiga distinguir panha e vice-versa. Do mesmo modo, cada cura uma parte da outra (1992a, p. 30). Em outros mo- tem um mal que a acompanha (p. 156). mentos, Bion utiliza a mesma metáfora da mente Ainda dentro desse mesmo contexto, Bion traz humana comportando-se como um mapa, e, assim outra metáfora, igualmente bonita, qual seja a de entendi, ele traz a importante noção de que nem comparar a mente humana com uma orquestra sempre o comportamento humano será uniforme, (p.179), na qual diferentes instrumentos (parte in- pelo contrário, suas emoções podem proceder das fantil, adolescente, adulta...) tocam uma mesma suas zonas glaciais, ou temperadas e até mesmo as partitura. Ele conclui suas analogias, perguntando: tórridas do seu equador mental, podem ser de su- de que zona do mapa do self, o paciente não quer perfícies lisas e planas ou de zonas montanhosas e saber absolutamente nada?. de escalada perigosa, de mares pacíficos ou turbu- Todos esses aspectos nos conduzem àquilo que lentos, sofrendo a possível influência dos niños Bion denomina “visão binocular” (outras vezes dentro dele, com borrascas e profundas alterações ele denomina como visão “multifocal”), ou seja, do clima emocional, etc. Partindo de um outro vér- uma capacidade de o analista abrir novos vértices tice, Bion emprega essa imagem do mapa da men- de observação de um mesmo fato psíquico, de pro- te humana para compará-la com os pontos cardiais piciar ao paciente o desenvolvimento de uma con- de uma “rosa de ventos”, que podem servir como dição de estabelecer correlações entre as partes dis- indicadores de direção para progressão, regressão, tintas dele, entre um pensamento e outro pensamen- transgressão, e, creio que cabe acrescentar, tam- to, um sentimento com outros sentimento, uma idéia bém possibilita que o paciente adquira condições com um sentimento, e assim por diante. Essa for- para conhecer e locomover-se de um ponto para ma de abrir uma outra forma de autovisualização outro de sua geografia mental. tem uma extraordinária importância na psicanálise O que importa é que, na situação analítica, o atual, e ela está baseada no fato de que, assim como relacionamento do paciente não deve ser entendi- a criança forma a imagem de si mesma nos moldes do unicamente com a pessoa do analista, mas, sim, de como a mãe lhe vê, também o paciente está em também do próprio paciente consigo mesmo, como, grande parte condicionado à visão que o analista por exemplo, de seu consciente com seu inconsci- tem dos potenciais dele. ente, de sua parte infantil com a adulta, da parte 5. Respeito. A afirmativa acima implica a ne- “psicótica” com a “não psicótica”, daquela que é cessidade de que o analisando seja aceito pelo ana- verdadeira com a outra parte dele que falsifica e lista, tal como, de fato, ele é, ou pode vir a ser, e mente, etc., Bion enfatiza a necessidade de que o não como o terapeuta gostaria que ele fosse, desde analista reúna condições para poder discriminar a que fique claro que respeitar as limitações do paci- essas diferentes partes e procurar integrá-las. As- ente não é o mesmo que se conformar com elas. sim, ele afirma que o objetivo essencial da ativida- Ser “bom” não é o mesmo que “ser bonzinho”, com- de interpretativa do analista é a de promover a aber- pleto eu. tura de novos vértices de observação e a de intro- A etimologia mostra-nos que o atributo de “res- duzir o paciente na pessoa mais importante que peito” tem um significado muito mais amplo e pro- ele jamais poderá lidar, ou seja, ele mesmo (1992a, fundo do que aquele usualmente empregado. Res- p. 13). Isso pode ser exemplificado com essa inter- peito vem de “re” (de novo) e “spectore” (olhar), pretação que Bion propõe para um paciente, no ou seja, é a capacidade de o psicanalista (e, a partir curso de uma supervisão: essa pessoa que você diz daí, ser desenvolvida no paciente) voltar a enxer- que foge e essa pessoa que é muito agressiva, são gar o ser humano que está à sua frente, como ou- a mesma pessoa. Penso que seja você mesmo (p. tros olhos, com outras perspectivas, sem a miopia 179). Ou essa outra interpretação: está havendo um repetitiva dos rótulos e papéis que desde criancinha casamento entre você e você; um casamento entre foram incutidos no paciente. O desenvolvimento seus sentimentos e pensamentos. Igualmente pode dessa capacidade de “res-peitar” só será possível servir de exemplo essa sua frase: todo gordo tem se o analista (tal como a mãe, no passado) possuir um magro que pugna por sair... (1992b, p. 22), a as capacidades de empatia e a de rêverie, ou seja, qual, examinada detidamente revela uma sensível de continência. profundidade. Da mesma forma, ainda cabe mais Bion alerta para os riscos de que o analista re- essa outra bonita citação de Bion: existe o termo pita aquilo que os pais de muitos pacientes fize- panteão (lugar de todos os deuses), mas também ram, condenando-os de alguma forma a viverem existe o termo pandemônio (lugar de todos os de- para cumprir as exectativas grandiosas deles, pais. mônios); cada demônio tem um santo que o acom- O que a pessoa quer, diz ele, é comportar-se como 454 DAVID E. ZIMERMAN uma pessoa comum, é ter um espaço para viver menos perturbador do que a possibilidade de res- como um ser humano que comete erros. gate (1992a, p. 152). Talvez não tenha experiência mais frustrante 7. Capacidade de ser continente. Partindo de para um paciente do que aquela na qual, graças a sua original concepção de que a todo conteúdo (car- um enorme esforço ele consegue fazer uma confi- ga de necessidades e angústias da criança, ou do dência guardada de longa data ou apresentar uma paciente) deve corresponder um estado de conti- pequena melhora, bastante significativa para ele, nente (da mãe, ou do analista), Bion concebeu como embora possa parecer invisível ou banal do ponto uma das “condições necessárias mínimas” a fun- de vista de um observador externo, e não ser com- ção de o analista acolher as projeções daquilo que prendido por seu analista, o que lhe reforça anti- é intolerável para o paciente, descodificá-las, gos sentimentos de estar sendo des-respeitado. transformá-las, dar-lhe um significado, um senti- Serve como exemplo disso a observação de Bion do e um nome, para somente após devolvê-las ao de que no amor de uma pessoa por outra do mes- paciente, devidamente desintoxicadas, sob a froma mo sexo qualquer sugestionamento, por parte do de assinalamentos ou interpretações, em doses ade- analista, de comportamento homossexual, mata a quadas, ao ritmo que cada paciente em particular pequena planta que está nascendo, pois ser capaz consegue suportar. de amar a alguém que é igual a si mesmo pode ser A função “continente” alude, portanto, a um um passo no caminho para amar a alguém distin- processo ativo, e não deve ser confundido com um to. “recipiente”, em cujo caso trata-se de um mero 6. Empatia. Conquanto raramente Bion tenha depósito passivo. Um aspecto que me parece parti- empregado esse termo diretamente, resulta evidente cularmente importante em relação a essa função a importância que ele deu a esse atributo do analis- de continência é o que eu costumo denominar fun- ta, tal como nos demonstra a etimologia dessa pa- ção custódia, ou seja, o paciente deposita aspectos lavra. “Empatia” é composta das raízes gregas “em” seus, dentro da mente do analista, à espera de que (quer dizer: dentro de) e “pathos” (significa: sofri- esse, tal como se passa em um depósito de bens mento); portanto, alude à capacidade de o analista materiais a serem custodiados, na forma de uma colocar-se no papel do paciente, isto é, entrar den- moratória, contenha durante algum tempo (pode ser tro dele para, junto, sentir o seu sofrimento. Isso é de vários anos, especialmente com pacientes bas- muito diferente de “simpatia”, que se forma a par- tante regredidos) para depois devolver ao pacien- tir do prefixo “sim”, que designa “ao lado de” e te, seu legítimo dono, quando ele tiver condições não “dentro de”. A empatia resulta da capacidade de resgatá-los. de o analista poder utilizar as fortes cargas das iden- Um aspecto muito desafiador para a condição tificações projetivas, como uma forma de comuni- de “continente”, do analista, alerta Bion, é quando cação primitiva do paciente. O extremo oposto se- o paciente projeta uma carga agressiva exagerada, ria o de um estado mental do analista de apatia (a- particularmente aquela que tem um cunho desqua- patia), ou seja, ele não se mantém sintonizado com lificatório. Assim, certos pacientes, de qualquer o sofrimento do paciente, e, nesses casos a análise modo, tentam provar que o analista está equivo- não vai além de um processo protocolar, monóto- cado; consideram o analista tão ignorante que este no e estéril, porque nesses casos a apatia contami- não lhes pode brindar nenhuma ajuda, ou que ele na a ambos do par analítico. é tão inteligente que poderia fazer o seu trabalho Nesses últimos casos, Bion recomenda que o sem nenhuma assistência deles, pacientes. Mais analista deve ter a coragem para se aperceber que adiante (p. 114) completa: haveria algo de muito a aparente harmonia e tranqüilidade da situação errado com o seu paciente caso ele não pudesse analítica não é mais do que uma estagnação estéril, fazer o seu analista de bobo. Ao mesmo tempo há a qual ele denomina como calma do desespero e algo de muito errado com o analista que não con- que, a partir dessa percepção, o analista possa pro- segue tolerar ser feito de bobo; caso possa tolerar vocar uma turbulência emocional. Assim, diz Bion, isso, se você puder suportar ficar irritado, então estabelecendo uma comparação com náufragos que você pode aprender algo. estão em uma balsa, aparentemente calmos (na ver- 7. Paciência. Essa “condição mínima necessá- dade, resignados) até que aparece um avião de sal- ria” está diretamente ligada à anterior, porém como vamento, e eles entram em um estado de turbulên- a sua raiz etimológica mostra (a palavra “paciên- cia: a pessoa deseperada não manifesta nenhum cia” vem de pathos que, em grego significa “sofri- sentimento particularmente marcado e algumas mento”), ela exige que o analista suporte a dor de vezes preferiria ficar nesse estado porque resulta FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 455 uma espera, enquanto não surge uma luz no fosso que uma tentativa de o analista aliviar a sua própria do túnel depressivo do paciente. Também Freud angústia, “preenchendo” o vazio daquilo que ele está exaltou a virtude da “paciência”, como se vê no ignorando. De forma equivalente, pode acontecer “caso Dora”, no qual ele cita um trecho de Fausto, que o analista não tenha a capacidade para conter a de Goethe: “Nem só a arte e a ciência servem: no sua ânsia de não frustrar o paciente, e com isso ele trabalho deve ser mostrado paciência” (1905, p. faz interpretações prematuras, embora elas possam 19). ser corretas, de forma que que ele pode estar assas- Deve ficar bem claro que “paciência” não sig- sinando a curiosidade do paciente, ao mesmo tem- nifica uma atitude passiva, de resignação ou coisa po em que, completo, ele pode estar assassinando a parecida; pelo contrário, ela consiste em um pro- sua própria capacidade intuitiva. cesso ativo dentro do analista. Como diz Bion: de Como um derivado direto da condição de “ca- início, o analista desconhece o que está ocorren- pacidade negativa” por parte do analista, Bion pos- do; caso sejamos honestos, temos que admitir que tulou a recomendação técnica de um estado mental não temos a menor idéia do que está ocorrendo. do terapeuta no transcurso de uma sessão analíti- Mas, se ficarmos, se não fugirmos, se continuar- ca: um estado de sem-memória, sem-desejo e sem- mos observando o paciente “ vai emergir um pa- compreensão. A finalidade maior de que a mente drão” (1992a, p. 172). Esta última expressão, que não fique saturada com a memória, desejos e a Bion gostava de utilizar, é uma menção a Freud necessidade de compreensão imediata, é para que que, por sua vez, a tomou emprestada de Charcot. os órgãos dos sentidos não fiquem tão predomi- Em um outro momento (1992b, p. 100), Bion nantes e, assim, não dificultem a emergência da ca- afirma que o analista deve dar um bom tempo para pacidade de intuição do analista. o paciente manifestar plenamente os sentimentos de 9. Intuição. Trata-se de uma condição neces- desespero, depressão, inadequação, ou de uma in- sária para o analista, que não tem nada de transce- satisfação ressentida com a análise e com o analis- dental, como muitas vezes se pensa. Antes, alude à ta (assim como a mãe deve abrir um espaço para uma capacidade da mente do terapeuta para ele não acompanhar a depressão do filho); portanto, com- utilizar exclusivamente os seus órgãos dos senti- pleta ele, não devemos ser demasiado prematuros dos para captar algo importante da esfera afetiva. em dar uma interpretação “tranqüilizadora”. Ali- A etimologia do verbo “intuir” procede dos étimos ás, às vezes, Bion comparava a análise com um pro- latinos “in” (dentro) e “tuere” (olhar), ou seja, Bion cesso de gestação, de modo que ele referia que utiliza novamente um modelo da analogia visual, Sócrates costumava dizer que muitas vezes ele fa- para definir, parece-me, uma capacidade de se olhar zia o papel de “parteira”: atendia ao “nascimento com um terceiro olho, não sensorial, com uma vi- de uma idéia” e que, da mesma forma, os analistas são para dentro ou partindo desde dentro do sujei- podem ajudar a que um paciente nasça, a que ele to. Uma metáfora de Bion esclarece melhor: ele emerja do ventre do pensamento (1992b, p. 182). recomenda que o analista lance sobre sua própria Green (1986, p. 134) reforça a importância do visão um facho de escuridão, para que se possa atributo de “paciência” ativa do psicanalista, como ver melhor, assim como esclarece a metáfora de se depreende dessa citação: Não há um só analista que “as estrelas ficam mais visíveis na escuridão que mantenha a ilusão de que se ele interpretar da noite” (Rezende, 1993). uma determinada atitude, esta desaparece. Para De forma análoga, uma imagem que me ocorre mim, por exemplo, a atitude do paciente pode du- para caracterizar a importância da capacidade de rar, digamos...15 anos. A análise é um trabalho de intuição é aquela que pode ser extraída do jogo Penélope – todos os dias você tece a teia e, logo conhecido como “olho mágico”, que consiste no que o paciente o deixa, ela se desfaz. Se não esti- fato de, se o observador olhar de uma forma espe- vermos preparados para ver a análise assim, é me- cial, diferente da habitual, a uma folha plana com lhor mudar de profissão... certas figuras impressas, terá uma impressionante 8. Capacidade negativa. Este termo alude a visão de uma terceira dimensão, que só se tornou uma – positiva – condição, minimamente necessá- possível quando ele relaxou o hábito de olhar unica ria, de o terapeuta conter as suas próprias angústi- e fixamente com o órgão sensorial que é o seu olho. as decorrentes do seu não saber aquilo que está se Dentro dessa mesma idéia, Bion costumava uti- passando na situação analítica, porquanto temos um lizar uma citação que ele fazia do poeta Milton: horror ao vazio, nós odiamos estar ignorantes. “Observar coisas invisíveis para um mortal”, ou Na ausência dessa capacidade, as interpretações seja, dizia Bion, o analista deve saber escutar não dadas ao paciente poderão representar nada mais do só as palavras e os sons, mas também a música. 456 DAVID E. ZIMERMAN

Igualmente ele seguidamente mencionava a con- Todas essas condições necessárias para um ana- cepção do filósofo Kant de que “intuição sem con- lista de forma alguma excluem o fato de que, antes ceito é cega; conceito sem intuição é vazio”, sen- de tudo, ele é “gente também”, e como todo ser do que cabe ao analista promover um casamento humano tem sentimentos, fraquezas e idiossin- entre a intuição e o conceito, de tal modo que ge- crasias. Isso está admiravelmente expresso de for- rem um pensamento moderno completo. ma poética porpor Clara Cyro Feldman Martins (1983):– notável psicanalis- ta, escritor, mestre e figura humana –, a quem pres- 10. Ser verdadeiro. Esse aspecto, de o analis- to uma saudosa e sentida homenagem, com a trans- ta ter amor às verdades, constitui-se em uma das crição de sua poesia: CNM, mais enfatizadas por Bion, não obviamente no sentido dele ter a posse de conhecimentos que CONVITE julga serem as verdades absolutas, mas, sim, que “PoisPOESIA fica decretado ele seja verdadeiro consigo mesmo, portanto que, a partir de hoje, “Pois fica decretado como condição sine qua non, ele tenha uma atitu- que terapeuta é gente também. a partir de hoje, de analítica de querer conhecer e enfrentar as ver- Sofre, chora, que terapeuta é gente também. dades, as dele, as do paciente e as do vínculo entre ama e sente Sofre, chora, eles, por mais penosas que elas sejam. e, às vezes, precisa falar. ama e sente A essa função do conhecimento Bion conside- O olhar atento, e, às vezes, precisa falar. rou como sendo um dos vínculos essenciais, que o ouvido aberto, O olhar atento, ele designou com a letra “K”, ou, se estiver a servi- escutando a tristeza do outro, o ouvido aberto, ço de negar e evitar o conhecimento, a designação quando, às vezes, a tristeza escutando a tristeza do outro, é “-K”. Assim, podemos depreender de Bion, ser maior está dentro do seu peito. quando, às vezes, a tristeza verdadeiro vai muito além de um dever ético, é uma Quanto a mim, maior está dentro do seu peito. imposição técnica mínima, a ser transmitida ao fico triste, fico alegre Quanto a mim, analisando, e a ser dirigida em profundidade, em e sinto raiva também. fico triste, fico alegre uma busca das verdades originais. Sou de carne e sou de osso e sinto raiva também. Esse aspecto, que estamos abordando, tem uma e quero que você saiba isto de Sou de carne e sou de osso profunda repercussão na prática analítica, porquan- mim. to alude diretamente ao vínculo do par analítico e, e quero que você saiba isto de conseqüentemente, diz respeito à atividade inter- Emim. agora, que já sabes que sou gente, pretativa e aos critérios de crescimento mental do E agora, quer falar de você para mim?” paciente. Assim, diz Bion, quando um paciente que já sabes que sou gente, procura um analista, isso sugere que ele necessita quer falar de você para mim?” de uma injeção poderosa de verdade, mesmo que ele não goste dela, no entanto o medo de conhecer as verdades pode ser tão poderoso que as doses de Um aspecto particularmente importante em re- verdade são letais (1992-a, p.61). Isso, quero crer, lação à condição mínimamente necessária de o ana- constitui um alerta para o analista não confundir lista ser verdadeiro consiste no risco, durante o pro- “amor às verdades” com um estado mental de uma cesso analítico, de uma formação de conluios in- permanente “caça obsessiva às supostas verdades”, conscientes dodo analistaanalista comcom as falsificações do até mesmo porque a busca da liberdade, bem maior analisando. Assim, Bion adverte para o fato de que que uma análise pode propiciar, é indissociável da há pacientes que tentam limitar a liberdade de pen- verdade, tal como aparece na sabedoria milenar da samento e, por conseguinte, de interpretação, do bíblia, no trecho que reza que “só a verdade vos analista. Ele compara isso com situação de uma libertará”. paciente ir a um médico e dizer: “Doutor, apare- Assim, impõe-se mencionar essa profunda e ao ceu um inchaço no meu seio; agora, eu não quero mesmo tempo poética frase de Bion, que estabele- ouvir nada sobre câncer ou qualquer treco desse ce uma íntima correlação entre o amor, a verdade e tipo” (1992-a, p.260).p.260). IssoIsso nãonão diferedifere fundamen-fundamen- a liberdade: amor sem verdade não é mais do que talmente dodo fatofato dede queque umum analistaanalista possa ficar paixão; verdade sem amor não passa de cruelda- conluiado, submetido àquele tipo de paciente que de. Isso me faz recordar dessa outra frase do poeta quer baixar leis sobre aquilo que o analista vai Yeats, igualmente bela e profunda, e que pode ser- pensar ou sentir a respeito dele. São pacientes que vir como uma luva para nós, analistas: por favor, querem impor o “não quero ouvir que há algo de pisa devagar, porque estás pisando nos meus mais errado comigocomigo”” (p.(p. 30). 30). queridos sonhos... FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 457

Da mesma forma, Bion também alerta para que • ouvir não é o mesmo que escutar; o analista precavenha-se contra a formação de um • olhar é diferente de ver, enxergar; conluio com pacientes que preferem o que ele de- • entender não é o mesmo que compreender; nomina uma cura cosmética, muitas vezes de apa- • ter a mente saturada com a posse das verda- rência bonita, porém que é superficial e instável, des é bem distinto de um estado mental de porquanto ela é encobridora daquilo que é sentido amor pelas verdades; pelo paciente como uma feiúra interna, sendo que isso é próprio daqueles analisandos que não que- • simpatia não é o mesmo que empatia; rem se desfazer dos seus, protéicos, disfarces men- • recipiente não é o mesmo que continente; tais. • ser “bonzinho” não deve ser confundido com À guisa de uma síntese do que foi exposto nes- ser bom; te capítulo, pode-se dizer que a formação de uma • interpretar corretamente não significa que indispensável “atitude psicanalítica interna”, resul- houve um efeito eficaz; tante da aquisição das “condições mínimas neces- • adivinhar ou palpitar não é a mesma coisa sárias”, implica na condição de que o analista dis- que intuir; crimine as seguintes transformações na situação • falar não é o mesmo que dizer; analítica: • saber não é o mesmo que, de fato, ser!

CAPÍTULO necessária reestruturação, sem perder a sua essen- cialidade. Esse corajoso enfrentamento pode ser eviden- ciado por meio de pronunciamentos públicos (em artigos em livros ou revistas da mais ampla e livre 42 circulação) ou relativamente privados (em publi- cações de circulação interna, principalmente os in- formes do The Newsletter of the International Psychoanalytical Association). Tais pronunciamen- tos têm partido de muitos de seus mais ilustres re- Epílogo: A Crise Atual e as presentantes, como é o caso de Otto Kernberg (atual presidente), H. Etchegoyen (presidente anterior), Perspectivas Futuras da Charles Hanly, J.MacDougall, A. Green, R. Wallerstein e tantos outros mais. Na verdade, exis- Psicanálise te atualmente na IPA um Comitê Ad Hoc sobre “A Crise da Psicanálise – Desafios e Perspectivas”, que vem demonstrando um trabalho sério e exaus- tivo, funcionando em regime sistemático e conti- A palavra “crise”, de acordo com a sua raiz nuado, apontando causas e sugerindo algumas ini- etimológica (deriva de “krinen” que, em grego, ciativas, sem fazer grandes mistérios em relação às designa “separar, decidir”), significa que algum feridas expostas. determinado processo (casamento, identidade pes- Baseados nos vários depoimentos pessoais de soal, movimento social, instituição...) atingiu um importantes autores, além de um relato das conclu- ponto culminante, onde ele vai sofrer um destes sões iniciais de um questionário que foi elaborado dois destinos possíveis: 1) tanto pode deteriorar até pelo referido Comitê, especialmente para o tema, e o ponto de terminar; 2) em um prazo, curto ou lon- que foi respondido por uma significativa parcela go, vai acontecer uma modificação importante, a de analistas de todo o mundo, podemos destacar qual pode representar ser um crescimento de natu- os pontos a seguir, relativos à crise da psicanálise, reza muito sadia, embora seja, quase sempre, bas- do psicanalista e das instituições psicanalíticas, tante dolorosa. sendo que, aqui, não tomarei posição, muito me- Quase ninguém contesta que a psicanálise, que nos um partido, e procurarei manter-me o mais fiel já nasceu em um estado de crise, esteja atravessan- possível ao relato dos fatos publicados. do na atualidade mais uma séria situação crítica, 1. Crise da psicanálise como teoria e técni- entre tantas outras que já enfrentou e superou. O ca. Como acontece em toda crise, as opiniões são que cabe questionar é se a atual crise é da psicaná- divergentes, embora virtualmente ninguém contes- lise (como ciência), dos psicanalistas (como pro- te o corpo de conhecimentos da psicanálise. As- fissionais), ou se ela é das instituições psicanalíti- sim, muitos psicanalistas, como A. Green (1996), cas (como responsáveis pela qualidade de forma- por exemplo, acreditam que a crise consiste exata- ção de novos psicanalistas e pela manutenção da mente no fato de que, na atualidade, os psicanalis- ideologia da psicanálise, no mundo todo). O mais tas se afastaram demasiado dos conceitos básicos provável é que a crise abranja estes três aspectos, e de teoria (ou seja, eles estão sobremodo valorizan- eles devem ser encarados e analisados, separada e do a angústia de separação, a relação continente- conjuntamente. conteúdo, o holding e outras valiosas teorias, po- Aliás, é justo reconhecer que nos últimos anos rém estão deixando de lado a sexualidade infantil, os dirigentes da IPA têm tido a coragem de enfren- o complexo de Édipo, etc.); igualmente, alguns tar a negação dos sintomas da crise – negação essa opinam que os analistas também estão se afastan- que durante muito tempo caracterizou as institui- do da técnica clássica (as interpretações estariam ções psicanalíticas oficiais – de forma a possibili- descurando da neurose de transferência; estão es- tar que a psicanálise viesse a se deitar no divã, para casseando as interpretações diretas que toquem o submeter-se a uma análise séria e profunda, quan- seio, o pênis, a boca, o ânus...; como resultado dis- to ao significado de seus sinais e sintomas, suas so, estariam ficando borrados os limites entre psi- causas e a aceitação dos desafios para um enfren- canálise e psicoterapia, etc.). tamento dos problemas, tendo em vista alguma Por outro lado, há inúmeros analistas opinam que, justamente ao contrário, a crise da psicanálise 460 DAVID E. ZIMERMAN consiste em que ela não está acompanhando devi- cia, a verdade é que, de forma geral, os pro- damente as mudanças da realidade do mundo atual, fessores responsáveis por outras disciplinas, e que é necessário que não se radicalize a defesa de forma deliberada ou, mais comumente, dos conceitos clássicos como se eles representas- inconsciente, sabotam as iniciativas de pro- sem as “sagradas escrituras”, pois existe um gran- pagação de uma imagem positiva da ideolo- de desafio para tornar a teoria e técnica eficazes gia e prática da psicanálise. para o contingente das “novas patologias”, sobre- tudo a predominância das perturbações narcisistas • Uma acirrada competição com outras mo- sobre os quadros neuróticos descritos por Freud, dalidades alternativas de tratamento. É ne- os casos borderline, patologias psicóticas, pacien- cessário, antes de mais nada, fazer uma dis- tes de difícil acesso, crianças com autismo secun- criminação entre essas “outras modalidades” dário, etc. porquanto elas tanto podem ser bastante be- néficas, como também elas podem ser inó- 2. Crise do psicanalista. A mesma refere-se basicamente à manutenção da “identidade psica- cuas, para não dizer maléficas. No primeiro nalítica” frente às inúmeras dificuldades provindas caso, ainda que de alcance limitado, vale de uma série de fatores, como os seguintes: exemplificar com as diversas formas de psi- coterapia de apoio, ou os recursos da mo- • Uma difícil situação econômica geral. Em- derna psicofarmacologia, da psicoterapia bora existam diferenças regionais, cada vez analítica de grupo, assim como a abertura menos pessoas, no mundo todo, dispõem-se de novos campos psicoterápicos, como é o a pagar o alto custo que representa uma aná- atendimento de casais e de famílias por mé- lise standard. todos da teoria sistêmica ou psicanalítica, • Os sistemas de seguros de saúde, tanto par- com resultados francamente positivos. No ticulares quanto os estatais, que dominam entanto, outras “terapias alternativas” podem amplamente a assistência de saúde física e não ser mais do que uma exploração da boa- mental em muitos países, como os Estados fé de pessoas necessitadas, pelo aceno de Unidos, por exemplo (e como, igualmente, recursos mágicos e esotéricos sob diversas está começando a se expandir no Brasil), formas, que todos nós conhecemos bem e costumam pagar tarifas muito baixas, às ve- que, como diz Etchegoyen (1996), “pululam zes aviltantes, além de limitarem as terapias em todas partes, como uma verdadeira en- a um número de sessões que não permitem fermidade social”. Na competição com es- uma análise. Ademais, tais empresas de saú- ses métodos alternativos, na maioria das ve- de não acreditam em um processo terapêuti- zes a psicanálise sai perdendo, porque, por co que não apresente resultados concretos e, definição, o seu método científico é bastan- de preferência, imediatos. te mais exaustivo, oneroso, demorado, doí- • Um denegrimento da imagem da psicanáli- do e de resultados que não podem ser previa- se, o que encontra respaldo nos órgãos da mente assegurados. mídia que, por diversas maneiras, descaracte- • O surgimento da psiquiatria biológica e sua rizam a psicanálise. Por esses meios de di- aplicação prática, a psicofarmacologia: vulgação, é bastante freqüente que os ata- Dentre os recursos benéficos, antes aludidos, ques mais virulentos partam de próprios psi- não resta dúvidas de que a associação, conco- canalistas que, de forma manifesta ou vela- mitante, de métodos farmacológicos e psi- da, estejam em litígio com suas instituições cológicos, tem sido exitoso no tratamento de psicanálise, ou os ataques procedem de ou- muitos sintomas, especialmente nas patolo- tras pessoas que se intitulam psicanalistas, gias das “doenças afetivas”, em alguns ca- quando na verdade não o são, e tudo isso sos de “angústia-pânico” e nas principais confunde o público. psicoses, como a esquizofrenia. • Uma hostilidade provinda do ambiente uni- • Os métodos terapêuticos baseados na psi- versitário. Talvez porque, durante muito tem- cologia da conduta, Quer-se dizer, daque- po, em muitos lugares, os próprios psicana- les dirigidos aos modelos do funcionamento listas se encastelaram em uma auto-suficiên- humano e que, embora limitados e sem a pro- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 461

fundidade a que uma psicanálise se propõe, • Um estado de desânimo e de angústia vem mostram resultados efetivos e se constituem surgindo crescentemente entre muitos psica- como métodos de tratamento relativamente nalistas – como decorrência disso tudo, sen- breves, simples e com o objetivo de influir do que as manifestações mais evidentes se diretamente nos pacientes. Também aí, ge- expressam por meio de uma angústia relati- nericamente falando, a competição torna-se va ao problema econômico e ao futuro da desfavorável para a metodologia altamente profissão. complexa da psicanálise, tendo em vista as 3. Crise das instituições psicanalíticas. Tam- particularidades do mundo moderno. bém neste aspecto há muitas divergências: por um • A cultura deste final de século, caracteriza- lado, muitas sociedades de psicanálise revelam uma da pelo fato de que as pessoas estejam mais clara vitalidade, com uma crescente demanda de interessadas nos problemas exteriores do que novos candidatos e um clima de trabalho de entu- propriamente na vida interior, e que uma siasmo e motivação, sendo que existe um aparente grande maioria se oriente mais para a obten- paradoxo entre a falta de pacientes, em geral, e um ção de metas concretas, de valores que gi- interesse que se mantém e, inclusive, tem crescido, ram em torno de prestígio, triunfo e riqueza. pela formação psicanalítica. Por outro lado, mui- Assim, nos inclinamos, cada vez mais para tas outras instituições demonstram uma apatia ge- uma espécie de capitalismo selvagem, onde neralizada a par de conflitos internos. Assim, mui- tos dos informes, especialmente os provindos de cresce uma impaciência pela obtenção de institutos e sociedades norte-americanas e latino- resultados a longo prazo, de sorte que ganha americanas, dão conta de que existem cisões inter- validade a afirmativa de Etchegoyen (1996): nas em comseqüência de divergências pessoais e/ “A psicanálise vai na contramão dos ideais ou ideológicas, com uma competição de diferentes da sociedade atual”. correntes psicanalíticas e com a concentração do • A diminuição do número de pacientes: Como poder em poucas mãos, juntamente com queixas uma resultante da crise econômica mundial, de que as cúpulas não estariam dando a devida aten- das mudanças socioculturais e da prolifera- ção a todo tipo de problemas externos. Os sinto- ção de métodos alternativos, atinge a todos mas mais transparentes da crise existente nessas os níveis de analistas, porém, fora de dúvi- instituições por último referidas consistem em: da, os candidatos e membros mais jovens são • Uma diminuição do interesse na formação os mais afetados pela crise. Além da dimi- psicanalítica: Assim, em muitos lugares, está nuição do número de pacientes, também é diminuindo o número de pessoas que postu- necessário considerar que naquela popula- lam aos institutos para se formarem como ção que busca a psicanálise como um trata- psicanalistas (certamente, não é o caso do mento de escolha há uma menor disposição Brasil), e isso se constitui como um dos sin- para aceitar um tratamento psicanalítico tomas mais importantes da crise. Em certos “clássico”, ou seja, de quatro ou cinco vezes lugares, como nos Estados Unidos, as disci- por semana. É interessante registrar que plinas relacionadas à área da psiquiatria, nas mesmo naquelas sociedades psicanalíticas, universidades, estão sendo ocupadas por psi- como, por exemplo, as da França e do Uru- quiatras de orientação biológica, em detri- guai, onde as exigências oficiais mínimas mento da orientação psicodinâmica, e essa permitem três sessões semanais, parece que falta de um modelo de identificação com um também diminui o interesse pela psicanálise professor que seja psicanalista também está standard. Os informes, provindos de todo o contribuindo para um desinteresse por uma mundo psicanalítico, também evidenciam formação psicanalítica. Igualmente existem que em muitos lugares, paralelamente à fal- evidências de que esteja mudando o perfil ta de pacientes para o enquadre clássico, se- dos postulantes à formação como psicana- gue existindo, ou vem aumentando, o inte- listas com uma crescente proporção da pre- resse pelas terapias psicanalíticas, mais bre- sença de mulheres, e com uma preponderân- ves e de menor freqüência semanal. cia de mais psicólogos e menos médicos psi- 462 DAVID E. ZIMERMAN

quiatras. De modo geral, prevalece a opinião são notórias as diferenças entre distintos cen- de que o nível intelectual e a qualificação tros psicanalíticos: muitos lamentam que dos aspirantes esteja melhorando. cada vez se ensina menos psicanálise nas • Uma petrificação do ensino: Trata-se de uma universidades, tanto nas faculdades de me- queixa que parte de alguns setores, porém dicina como nas de psicologia, nas escolas certamente ela não é unânime em todos lu- de assistentes sociais, etc., sendo que alguns gares. Os informes que responderam ao ques- criticam o isolamento de psicanalistas, in- tionário antes referido, quando são queixo- clusive em suas instituições, e apontam uma sos, responsabilizam a “rigidez do ensino” à arrogância e passividade de alguns deles, predominância de uma única escola, do que quando existiam filas de espera. Por outro resultaria um ensino unilateral, fechado; tam- lado, muitas outras sociedades, que não se bém responsabilizam a falta de renovação e declaram em crise, mostram que não tem relevo nos corpos-docentes, o que resultaria havido diminuição da presença dos psicana- em um ensino demasiado tradicional ou or- listas nas diversas faculdades de medicina e todoxo, com menos atrativos para os profis- psicologia, nem de sua importante atividade sionais mais criativos; uma exagerada exi- em centros psiquiátricos e comunitários, tam- gência nos critérios para o cumprimento da pouco a sua participação no diálogo com supervisão obrigatória, por parte dos candi- outras disciplinas e a vida cultural em geral. datos em formação; a obrigação de que a • A verdade é que está havendo, de modo ge- “análise didática” do postulante tenha que ral, uma significativa preocupação por parte ser feita exclusivamente com um analista das instituições psicanalíticas regionais que, autorizado pelo instituto, o que obriga, em acompanhando uma diretriz recente da IPA, alguns casos, a uma mudança de psicanalis- estão realizando grupos de discussão sobre ta; da mesma forma, o tempo de análise de o papel da psicanálise e do psicanalista nes- um aspirante com o seu analista, não-oficia- se final de milênio. lizado para fins de análise didática, mesmo que bastante longa e exitosa, não conta para nada, em termos das exigências estatutárias, DESAFIOS E PERSPECTIVAS FUTURAS e assim por diante, existem situações simila- res, que provocam um estado de “mal-estar”. Desafios • Uma das maiores acusações contra o ensino clássico consiste na opinião daqueles que Na atualidade, existem em torno de 10.000 mem- consideram que muitos dos maiores inimi- bros nos quadros da IPA, além de um expressivo gos da psicanálise são constituídos por can- número de aspirantes e candidatos em formação, didatos e analistas, desiludidos por haverem sendo que o movimento psicanalítico continua em ascenção, mais no hemisfério Sul do que no Norte, experimentado rigidez e esterilização da e, no Sul, é o Brasil apresenta um crescimento criatividade e autenticidade. maior. Tudo isso empresta uma responsabilidade • A existência de escolas de psicoterapia psi- maior aos órgãos dirigentes e aos institutos de for- canalítica. Nessas instituições é oferecido mação, no sentido de reconhecerem os diversos um treinamento menos exigente em termos sinais da crise e enfrentarem os conseqüentes de- de tempo e de análise pessoal, é um aspecto safios, consubstanciados nos seguintes pontos: mais complexo, já que resulta numa rivali- • Risco do desaparecimento do “espírito da dade competitiva com instituições da IPA, psicanálise”. Esse brado de alerta partiu de porém, ao mesmo tempo, pode ser uma fon- A. Green (1996) que texualmente afirma: “O te de possíveis candidatos que, ao terminar maior risco para o futuro da psicanálise é o a sua formação como psicoterapeutas, bus- declínio e o possível desaparecimento do cam uma formação mais completa como psi- espírito da psicanálise, do estado mental canalistas. específico que habita (corporiza-se em) o • Um diminuto intercâmbio com o ambiente psicanalista durante o seu trabalho e pen- acadêmico e cultural. Também nesse aspecto FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 463

samento. Nossa tarefa é manter esse espíri- se, tampouco aceitando alguma mudança de to vivo”. Com a expressão “espírito da psi- uma rígida “neutralidade” ou a utilização da canálise”, Green alude ao distanciamento dinâmica sistêmica de grupos e instituições, crescente dos psicanalistas em relação à fi- etc. delidade aos princípios essenciais dos clás- • Uma desinformação do público em relação sicos postulados teóricos e técnicos da psi- aos verdadeiros princípios, alcances e limi- canálise. tações dos objetivos da psicanálise, também • Em contrapartida, muitos outros setores da está representando um significativo desafio. psicanálise alertam quanto ao risco de a ciên- De fato, o público em geral recebe uma com- cia psicanalítica ficar demasiado presa aos pacta massa de informações, às vezes real- rigores de suas recomendações técnicas, sem mente esclarecedoras, porém, na sua maio- levar em conta as inequívocas e profundas ria, elas representam uma distorção e uma transformações socioculturais e econômicas, pressão mistificadora acerca da psicanálise. que, com uma velocidade vertiginosa, estão Isso acontece porque perdura uma certa fo- ocorrendo no mundo inteiro, além do fato bia entre os psicanalistas em ocuparem os de que mudou o perfil médio do paciente que espaços concedidos pela mídia, de modo que busca tratamento analítico, com a presença outras pessoas, entre leigos ou técnicos, nem de um contingente bem maior de portadores sempre devidamente qualificados, ocupam de condições emocionais extremamente re- os referidos espaços e dizem o que bem en- gressivas. A posição desses psicanalistas tendem. Além disso, uma proliferação de te- contestadores é a de que tudo isso obriga a rapeutas que se autodenominam psicanalis- uma adaptação ao princípio da realidade, a tas invadiram de tal maneira os meios de que se efetivem sensíveis modificações, ou comunicação que o público já não consegue pelo menos, uma maior flexibilização nos mais distinguir entre psicanálise e pseudo- procedimentos técnicos. psicanálise. • O primeiro grande desafio para os dirigen- • Uma reforma institucional, de natureza es- tes responsáveis pela psicanálise está sendo trutural, representa um sério desafio. As co- justamente este: atender simultaneamente os municações recebidas pelo “Comitê sobre a dois posicionamentos referidos, sem que um Crise da Psicanálise – Desafios e Perspec- necessariamente anule o outro. tivas”, com maior freqüência, apontam para • O relativo isolamento dos psicanalistas em a necessidade de os seguintes pontos serem relação às demais disciplinas, outras áreas reformulados: a) Democratização das socie- humanísticas em geral, outras escolas de for- dades regionais e da IPA. b) Reformas de mação de psicoterapeutas, outras formas de estatutos e regulamentos. c) Reformas do psicoterapias e aos avanços da psicobiologia ensino. Entre os vários aspectos importan- e psicofarmacologia, também está se consti- tes que estão implícitos nesse projeto de re- tuindo em um profundo desafio a ser enfren- formas, cabe destacar aquele que diz respei- tado, porquanto é fundamental que a psica- to à possibilidade de que os próprios institu- nálise não corra o risco de perder a essência tos de psicanálise filiados à IPA, além do de sua identidade. ensino da psicanálise clássica, também abram • Como resultante desse compreensível medo as portas para o ensino de psicoterapia psi- de perda, ou de borramento, do sentimento canalítica. Ao mesmo tempo, outros igual- de identidade ideológica e profissional, im- mente importantes setores da psicanálise portantes setores da psicanálise ainda teimam enfatizam a necessidade de que se resista à em permanecer indiferentes, quando não tentação de oferecer treinamento em psico- francamente hostis, a uma maior aproxima- terapia, assim como também à terapia com ção da psicanálise com as psicoterapias crianças, grupos, etc., a fim de evitar que a psicanalíticas, assim como também com o psicanálise fique diluída e também para que eventual uso simultâneo de psicofármacos não se estabeleça, no ensino, uma confusão durante o curso de uma determinada análi- 464 DAVID E. ZIMERMAN

de identidade entre psicanálise e psicotera- pre que essa for praticada por técnicos com pia. uma sólida formação psicanalítica (aliás, já • Como vemos, talvez o maior desafio consis- é possível perceber que muitos congressos te na necessidade de conciliar e harmonizar de psicanálise estão abrindo algum espaço as tendências de distintos setores da psica- especificamente reservado para temas da nálise que, às vezes, são diametralmente psicodinâmica dos grupos). opostas e contraditórias entre si. O aspecto • A crise da psicanálise deve-se, em grande alentador consiste em que: a) O movimento parte, a um egocentrismo dos psicanalistas, psicanalítico já enfrentou muitos outros de- que permanecem em uma atitude de espera safios e conseguiu superá-los. b) Nos pro- que as demais disciplinas (filosofia, etologia, nunciamentos encaminhados ao Comité pre- antropologia, lingüística, neurociências, domina uma atitude geral de “otimismo pru- psicoimunologia, etc.) a reverenciem e to- dente”, ao mesmo tempo em que há uma mem a iniciativa de chegar até ela. Isso está mobilização geral para uma atitude de hu- mudando, por meio de alguns movimentos mildade e autocrítica. c) Conforme afirma algo isolados e tímidos, mas certamente Kernberg (1996), “agora a psicanálise está modificará muito mais, como já está sendo suficientemente vigorosa como para tolerar observado em algumas áreas. distintas experiências em sua metodologia • Assim, a psicanálise deverá caminhar uni- educativa, sem que isso signifique por em damente com as indiscutíveis contribuições risco a sua unidade”. advindas das neurociências, como a moder- na psicofarmacologia é uma prova evidente. Aliás, é oportuno lembrarmos a profética Perspectivas Futuras afirmativa de Freud que, ao final de sua obra, mais exatamente em Esquema de psicanáli- Levando em conta todos aspectos menciona- se (1938), reafirmou a sua crença (que já dos e as diferentes opiniões emitidas pelas mais esboçara no seu Projeto..., de 1895) de que notórias figuras representativas e responsáveis pela o fator orgânico poderia ser o grande gera- psicanálise atual, creio ser cabível opinar que: dor do psiquismo, o que ele asseverou com • A psicanálise manterá a sua identidade es- a afirmativa de que um dia, aquilo que foi pecífica, porém será inevitável uma aproxi- descrito em termos psicológicos talvez vies- mação, cada vez maior, com as “psicotera- se a ser reconhecido como sendo resultante pias de fundamentação psicanalítica”, prin- da influência direta de substâncias quími- cipalmente quando esta última for praticada cas (o grifo é meu). por técnicos com um elevado e reconhecido • Também o campo da etologia é muito pro- grau de formação, em instituições filiadas ou missor, como pode ser exemplificado com o não à IPA. instigante fenômeno que os etólogos descre- • Para tanto, as sociedades psicanalíticas re- vem como imprinting, o qual consiste na gionais, de comum acordo com a IPA, deve- observação experimental de que, em algu- rão mirar com “bons olhos” essas institui- mas espécies animais, as influências ambien- ções paralelas, obviamente sempre que re- tais, durante um certo tempo, geralmente conhecidamente sérias e, se possível prestar curto, da vida evolutiva, ficam impressas de colaboração a elas. Existe uma grande pos- forma definitiva e indelével, assim determi- sibilidade de que, a médio prazo, muitos ins- nando toddo o futuro comportamento dos titutos oficiais abrirão um espaço para o en- filhotes. A especulação quanto à possibili- sino específico à formação de psicoterapeu- dade de que o mesmo fenômeno se processe tas. na espécie humana, no período que corres- • Igualmente, levando em conta a realidade so- ponde ao da “identificação primária”, talvez cial, será concedida uma maior valorização possa abrir um enorme horizonte de possi- à prática de grupoterapia psicanalítica, sem- bilidades para a compreensão de aspectos primitivos da estruturação da mente. Além FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 465

do imprinting, para ficarmos unicamente no Kachele, em Ulm (Alemanha), as da escola campo da etologia, vale destacar que Lacan, psicossomática de Paris, etc. para embasar os seus estudos sobre a • Entretanto, as modificações – oficiais – mais especularidade, utilizou os estudos de etólo- importantes na psicanálise que, tudo leva a gos que comprovam o fato de que uma pom- crer, ocorrerão em um futuro relativamente ba não ovula enquanto estiver só, mas, sim, próximo, dizem respeito à transformações na que a ovulação se dará em determinado mo- técnica e no ensino da psicanálise. Em rela- mento de seu ciclo, se ela for colocada junto ção à primeira, poucos duvidam da inevita- a uma outra pomba, ou frente à sua própria bilidade de que serão modificados alguns imagem refletida por um espelho. procedimentos técnicos, de modo a que os • Como prováveis exemplos de outras áreas analistas adaptem-se não só às novas condi- humanísticas e científicas que estão à espera ções sócio-econômicas e culturais, mas, tam- de uma maior aproximação da psicanálise, bém, ao novo perfil do paciente regressivo valeria mencionar as do psiquismo embrio- que necessita de um tratamento de fundamen- nário e fetal (como atestam Bion e A. Pion- tação psicanalítica. Embora essa provável telli, que já introduziram estudos interessan- transformação de aspectos da técnica deva tíssimos); da física quântica (com base em passar por uma maior flexibilização das clás- Planck); as concepções filosóficas (como, sicas combinações do setting habitual, tenho entre tantas outras, as de Kant, constantemen- uma firme convicção de que, nem de longe, te servindo de inspiração para Bion, ou como isso deva significar uma renúncia aos prin- o “princípio da incerteza”, de Heisenberg) e cípios essenciais das conhecidas regras téc- também as literárias (um bom exemplo é nicas e, muito menos, que venha a ser con- Shakespeare, com a densidade dos conflitos fundida com uma metodologia na base de inconscientes de seus personagens); da lin- um laissez faire. güística (como é concebida por Saussure); • Em relação às mudanças no ensino, o as- os modelos da cibernética, aplicados ao es- sunto ganha em complexidade, porquanto tudo dos sistemas sociais (como demonstram isso implica, por parte dos Institutos de psi- Bateson e colaboradores), e assim por dian- canálise, em realizar paralelamente algumas te. É provável que ganhe um grande incre- profundas modificações regimentais e estatu- mento aquilo que Blum (1996) denomina tárias, o que representa ser uma situação de- como Psico-história e que consiste na sua licada, tendo em vista que também é impres- concepção de que, partindo dos conceitos cindível que não se instale um borramento psicanalíticos, é possível realizar um útil dos necessários limites e de uma necessária enfoque psico-histórico sobre uma vasta es- hierarquia. No entanto, a maior modificação cala social, de modo a ser utilizada para ex- relativa ao ensino e à formação de psicana- plicar alguns fenômenos grupais, lendas, listas não reside tanto numa simples modifi- mitos e rituais, como os de iniciação e os cação curricular ou coisas do gênero, como fúnebres. O autor exemplifica com o tema aquelas, importantes, relativas à supervisão, edípico da inveja e os ciúmes dos pais e fi- etc. O grande desafio a ser vencido (e pare- lhos, que podem ser inferidos dos relatos ce que está sendo) é que o candidato não ve- bíblicos do sacrifício do filho, entre tantas nha a ser infantilizado, fazendo a sua forma- outras possibilidades que a sabedoria milenar ção como um aluno estudioso e bem com- propicia e faz por merecer um estudo mais portado, o que, muitas vezes custa o alto pre- aprofundado. ço de uma esterilização de uma criatividade, • Haverá um incremento das pesquisas no autonomia e liberdade de pensamento e ação. campo da psicanálise, com um rigor de meto- Em termos idealizados, creio que a forma- dologia científica, como já vem sendo feito ção psicanalítica venha a ser a mais próxima em muitos lugares, e que podem ser exempli- possível daquela que os mestres Zen dão aos ficadas com as investigações de Töma e seus discípulos, ou seja, eles não ensinam de forma determinada tal ou qual técnica; 466 DAVID E. ZIMERMAN

antes, eles deixam o discípulo aprender às Para finalizar, vou utilizar a seguinte afirmati- suas próprias custas, enquanto eles assistem va do presidente Kernberg, que reconhece a exis- de perto e acompanham o seu aprendizado, tência de uma crise no seio da psicanálise, e que até que ele adquira autonomia e construa o vale como uma espécie de síntese deste capítulo: seu próprio estilo. Na psicanálise, isso é fun- “A crise não se resume a uma situação única que possa resolver-se de uma vez e para sempre, se- damental, porquanto serve como um mode- não que se trata de um importante desafio históri- lo de identificação para que o analista possa co”. trabalhar com o seu analisando, com uma atitude psicanalítica interna voltada, sobre- tudo, para a verdade e liberdade. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 467

______(1962). Aprendendo com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1962. ______(1963). Elementos em psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1977. ______(1967). Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1988. ______(1970). Atenção e interpretação. Rio de Ja- neiro: Imago, 1970. ______(1973). Conferências brasileiras I. Rio de Janeiro: Imago, 1973. ______(1992). Conversando com Bion. Rio de Ja- Referências Bibliográficas neiro: Imago, 1992. BLEGER, J. (1967). Simbiosis y ambiguedad: estudio psicanalítico. Buenos Aires: Paidós, 1972. ______(1979). Temas de psicologia: entrevistas e ABRAHAM, K. (1919). Uma forma particular de resis- grupos. São Paulo: Martins Fontes, 1987. tência contra el método psicoanalítico. In: psicoa- BLEICHMAR, H. (1981). O narcisismo. Porto Alegre: nálisis clínico. Buenos Aires: Paidós, 1959. p.231- Artes Médicas Sul, 1972. 237. ______(1982). Depressão: um estudo psicanalítico. ______(1924). Un breve estudio de la evolucion de Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1982. la libido, considerada a la luz de los transtornos BLEICHMAR, N.; BLEICHMAR, C.L. (1989). A psi- mentales. In: Psicoanálisis clínico. Buenos Aires: canálise depois de Freud: teoria e clínica. Porto Paidós, 1959. Alegre: Artes Médicas Sul, 1992. ALEXANDER, F. (1946). Psychoanalytic therapy: BLEICHMAR, D. E. (1988). O feminismo espontâneo principles and aplication. Nova Iorque: Ronald da histeria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1988. Press. BLUM, A.P. (1981). The position and value of extrans- ALVAREZ, A. (1992). Companhia viva. Porto Alegre: ference interpretation. J. Amer. Psychoan. Ass., v.31, Artes Médicas Sul, 1994. n.3, p.587, 1983. ANDRADE, V.M. (1996). Sexo e vida em Freud. Rev. ______(1996). Psicoanálisis, historia y psicohistoria. Bras. de Psicanal.,v.30, p.4, 1996. The Newsletter of the International Psychoanalytical AULAGNIER, P. (1975). La violencia de la interpreta- Association, v.5, 1996. ción del pictograma al enunciado. Buenos Aires: BOFF, A.A. (1996). Da interpretação à interpretação Amorrotu, 1977. psicanalítica: introdução a uma pequena perspecti- BADARACCO, J.G. (1990). Las identificaciones y la va histórica do intricado epistemologia-hermenêu- identidad en el proceso analítico. Rev. de Psicoa- tica-psicanálise. Revista Projecto, n.5, p.6, 1996. nálisis., v.47, p.4, 1979. BOLLAS, C. (1992). A sombra do objeto. Porto Ale- BASCH, M.F. (1983). Empathic understanding: a review gre: Artes Médicas Sul, 1992. of the concept and some theoretical considerations. ______(1997). The fascist state of mind. In: Being a J. Amer. Psychoanalis. Assn., v.31, n.1, p.101, 1983. character. Nova Iorque: Hill and Wang, 1997. BARANGER, W.; BARANGER, M. (1961-62). La BOWLBY, J. (1980). Attachment and loss. Londres: The situación analítica. In: Problemas del campo psica- Hogarth Press, 1980. nalítico. Buenos Aires: Kargieman, 1969. BRANDÃO, J.S. O mito de Narciso. In: Mitologia gre- BARANGER, W. (1971). Posicion y objeto en la obra ga. v. II. Vozes, 1987. de Melanie Klein. Buenos Aires: Kargieman, 1977. CESIO, F. (1960). El letargo: contribución al estudio de BARANGER, M. (1979). Mesa-redonda “Ubicación de la reacción terapéutica negativa. Rev. de Psicoaná- la resistencia en el proceso analítico”. Rev. de lisis, v.17, n.3, p.289, 1960. Psicoanálisis, v.26, n.4, p.721, 1979. CHASSEGET SMIRGEL, J. (1973). O ideal do ego. ______(1992). La mente del analista: de la escucha a Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1978. la interpretación. Rev. de Psicoanálisis, v.49, p.2, ______(1991). Ética e estética da perversão. Porto 1992. Alegre: Artes Médicas Sul, 1991. BATESON, G. (1955). Play: its role in developement COMITÊ DA IPA (1993). Rev. Bras. de Psicanal., v.27, as evolution. Penguin: Hardmondsworth Middix, p.2, 1993. 1985. CORDIOLI, A.V. (1998). Psicoterapias: abordagens BICK, E. (1968). The experience of the skin in early atuais. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1998. object relations. Int. J. Psycho-Anal., v.49, p.484- COROMINAS, S.J. (1979). Dicionário crítico etimo- 486, 1968. lógico castellano hispânico. Madri: Gredos, 1980. BERGLER, E. (1959). La neurosis basica. Buenos Aires: CRUZ, J. G. (1996). A injeção de Irma, cem anos de- Paidós, 1959. pois: algumas considerações sobre a função dos so- BION,W.R. (1962). Experiências em grupos. Rio de nhos. Revista de Psicanálise da SPPA, v.III, p.1, Janeiro: Imago, 1970. 1996. 468 DAVID E. ZIMERMAN

DEUTSCH, H. (1926). Occult processus ocorring during ______(1905). (1904). Três O métodoensaios sobrepsicanalítico a teoria deda Freud,sexua- psycho-analysis. Int. Univ.Univ. Press,Press, 1953.1953. lidade,v.VII. v. VII. EISSLER, K. (1953). The effect of the structure of the ______(1905). (1905). Sobre Três ensaios a psicoterapia, sobre a teoria v.VII. da sexua- ego on psychoanaliticpsychoanalitic technique.technique. JAPAJAPA,, v.1,v.1, 1953. 1953. ______lidade, (1905).v. VII. Fragmentos da análise de um caso de EIZERICK, C. (1993). Entre a escuta e a interpretação: ______histeria (1905).(caso Dora), Sobre v.VII. a psicoterapia, v.VII. um estudo evolutivo da neutralidade psicanalítica. ______(1907).(1905). FragmentosDelírios e dasonhos análise na de Gradiva um caso de Revista de Psicanálise da SociedadeSociedade PsicanalíticaPsicanalítica Jensen,histeria (casov.IX. Dora), v.VII. de Porto Alegre, v.1,v.1, p.1,p.1, 1993.1993. ______(1909). (1907). Notas Delírios sobre e umsonhos caso nade neuroseGradiva ob-de EKSTERMAN, A. (1984). Abordagem psicodinâmica sessivaJensen, (ov.IX. homem dos ratos), v.X. dos sintomas somáticos. Rev. Bras. de Psicanal., ______(1909). (1909). Análise Notas sobre de uma um fobia caso emde neuroseum menino ob- v.28, p.1, 1994.1994. desessiva cinco (o anos homem (caso dos do ratos), menino v.X. Hans), v.X. ETCHEGOYEN, H. (1976). El impasse psicanalítico y ______(1910). (1909). Leonardo Análise de da uma Vinci fobia e uma em um lembrança menino las estrategias del yo. Rev. de Psicoanálisis, v.33, dade cincosua infância, anos (caso v. XI. do menino Hans), v.X. n.4, p.613, 1976. ______(1910).(1910). LeonardoAs perspectivas da Vinci futuras e uma lembrançada terapia ______(1987). (1987). Fundamentos Fundamentos dada técnica psicanalíti- psicanalítica,da sua infância, v.XI. v. XI. ca. Porto Alegre:Alegre: ArtesArtes MédicasMédicas Sul,Sul, 1987. 1987. ______(1911). (1910). Formulações As perspectivas sobre futurasos dois daprincípios terapia ______(1996). (1996). Entrevista Entrevista comcom Horácio Etchegoyen. dopsicanalítica, funcionamento v.XI. mental, v.XII. The Newsletter of the International Psychoanalytical ______(1911). (1911). Notas Formulações psicanalíticas sobre os sobre dois princípiosum relato Association, v.5, p.1,p.1, 1996.1996. autobiográficodo funcionamento de mental, um casov.XII. de paranóia (caso FAINBERG, H. (1995). Malentendidos y verdades ______Schreber). (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato psiquicas. Rev. de Psicoanálisis,Psicoanálisis, 1995.1995. ______autobiográfico (1912). deA umdinâmica caso de da paranóia transferência, (caso Schreber). v.XII. FAIRBAIRN, W.R.D. (1941). Estudio psicoanalítico de ______(1912).(1912). ARecomendações dinâmica da transferência, aos médicos v.XII. que la personalidad. Buenos Aires:Aires: Hormé,Hormé, 1962.1962. ______exercem (1912). a psicanálise, Recomendações v.XII. aos médicos que ______. . ObservacionesObservaciones sobresobre lala naturalezanaturaleza de los ______exercem (1912). a psicanálise, Totem e v.XII. tabu, v.XIII. estados histéricos. In: SAURI, J. Las histerias. ______(1913). (1912). Sobre Totem o einício tabu, dov.XIII. tratamento (novas Buenos Aires: NuevaNueva Vision,Vision, 1975.1975. p.215-250.p.215-250. ______recomendações (1913). sobreSobre a o técnica início dado psicanálise),tratamento (novas v.XII. FARIA, C.G. (1996). SexualidadeSexualidade e estruturaestrutura psíquica: ______recomendações (1914). Sobre sobre aa técnicahistória da do psicanálise), movimento v.XII. psi- a sexualidade na formação da estrutura e a estrutura ______canalítico, (1914). v.XIV. Sobre a história do movimento psi- como expressão da sexualidade. Rev. Bras. de Psica- ______canalítico, (1914). v.XIV. Sobre o narcisismo: uma introdução, nal., v.30, p.4, 1996.1996. ______v. XIV. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução, FELDMAN,FENICHEL, C.O. Convite. (1954). In:Teoria ______. psicoanalítica Construindo de las a ______v. XIV. (1914). Recordar, repetir e elaborar (novas relaçãoneurosis de. Buenos ajuda. Aires:1983. Nova, 1954. ______recomendações (1914). Recordar,sobre a técnica repetir da e elaborarpsicanálise, (novas II), FENICHEL,FERENCZI, S.O. (1913).(1954). EstadiosTeoria psicoanalítica en el desarrollo de dellas v.XII.recomendações sobre a técnica da psicanálise, II), neurosissentido .de Buenos la realidad. Aires: Nova,In: Sexo 1954. y psicoanálisis. ______v.XII. (1915). Observações sobre o amor transfe- FERENCZI,Buenos Aires: S. (1913). Paidós, Estadios 1959. en el desarrollo del ______rencial, (1915).v.XII. Observações sobre o amor transfe- ______sentido (1928). de la realidad.Elasticidade In: na Sexo técnica y psicoanálisis. analítica. In: ______rencial, (1915). v.XII. O inconsciente, v.XIV. EscritosBuenos Aires:Psicanalíticos. Paidós, Rio1959. de Janeiro: Taurus, 1988. ______(1915). (1915). As O pulsõesinconsciente, e suas v.XIV.vicissitudes, v.XIV. ______(1933). (1928). La Elasticidade confusión nade técnica lenguajes analítica. entre losIn: ______(1916). (1915). AsConferências pulsões e suas introdutórias vicissitudes, à v.XIV.psica- adultosEscritos Psicanalíticos.y el niño. In: RioProblemas de Janeiro: y Taurus,métodos 1988. del ______nálise, parte (1916). II, v.XVI.Conferências introdutórias à psica- ______psicoanálisis. (1933). Buenos La confusión Aires, 1966.de lenguajes cap. 13. entre los ______nálise, (1917).parte II, Luto v.XVI. e melancolia, v.XIV. ______adultos . Obrasy el niño. completas In: Problemas. São Paulo: y Martinsmétodos Fon- del ______(1918). (1917). DaLuto história e melancolia, de uma v.XIV. neurose infantil tes,psicoanálisis. 1992. Buenos Aires, 1966. cap. 13. ______(o homem (1918). dos lobos), Da história v.XVII. de uma neurose infantil ______FERRÃO, L.M..Obras (1974). completas O impasse. São Paulo: analítico. Martins Revista Fon- ______(o homem (1919). dos Linhaslobos), dev.XVII. avanço nas terapias psica- tes,Latino-americana 1992. de Psicoanálisis, v.1, n.1, p.55, ______nalíticas. (1919). Linhas de avanço nas terapias psica- FERRÃO,1974. L.M. (1974). O impasse analítico. Revista ______nalíticas. (1919). Uma criança é espancada, v.XVII. FRANCISCO,Latino-americana B.S.S. (1995).de Psicoanálisis, Acting-out : v.1,considerações n.1, p.55, ______(1919). (1919). O Uma sobrenatural, criança é espancada,v.XVII. v.XVII. 1974.teórico-clínicas. In: OUTEIRAL, J.E.; THOMAS, ______(1920). (1919). Além O sobrenatural, do princípio v.XVII. do prazer, v.XVIII. FRANCISCO,T. Psicanálise B.S.S. brasileira. (1995). Acting-outPorto Alegre:: considerações Artes Mé- ______(1921). (1920). AAlém psicologia do princípio de grupo do prazer, e a análise v.XVIII. do dicasteórico-clínicas. Sul, 1995. In: OUTEIRAL, J.E.; THOMAS, ______ego, v.XVIII. (1921). A psicologia de grupo e a análise do FREUD,T. Psicanálise A. (1936). brasileira. O ego e os Porto mecanismos Alegre: Artesde defesa Mé-. ______ego, v.XVIII. (1923). Dois artigos de enciclopédia: psica- Riodicas de Sul, Janeiro: 1995. Biblioteca Universal Popular, 1968. ______nálise e (1923).teoria da Dois libido, artigos v.XVIII. de enciclopédia: psica- FREUD, A.S. (1895).(1936). EstudosO ego e sobreos mecanismos a histeria. deIn: defesa Obras. ______nálise e(1923). teoria daO libido,ego e ov.XVIII. id, v.XIX. completas.Rio de Janeiro: Rio Bibliotecade Janeiro: Universal Imago, v.II,1968. Popular, 1968. ______(1924). (1923). Neurose O ego e eo psicose,id, v.XIX. v.XIX. ______FREUD, S. (1895; (1895). 1950). Estudos Projeto sobre paraa histeria. uma psicologiaIn: Obras ______(1924). (1924). A Neurose perda da e realidadepsicose, v.XIX.na neurose e na científica,completas. v.I. Rio de Janeiro: Imago, v.II,1968. ______psicose, (1924). v.XIX. A perda da realidade na neurose e na ______(1900). (1895; A1950). interpretação Projeto parados sonhos,uma psicologia v.V. ______psicose, (1924). v.XIX. O problema econômico do masoquis- ______científica, (1901). v.I. A psicopatologia da vida cotidiana, ______mo, v.XIX. (1924). O problema econômico do masoquis- ______v.VI. (1900). A interpretação dos sonhos, v.V. ______mo, v.XIX. (1925). A negação, v.XIX. ______(1904).(1901). AO psicopatologiamétodo psicanalítico da vida decotidiana, Freud, ______(1926). (1925). A A questãonegação, da v.XIX. análise leiga, v.XX. v.VI.v.VII. ______(1926). A questão da análise leiga, v.XX. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 469

______(1926). Inibições, sintomas e angústia, v.XX. GRUMBERGER, B. (1979). El narcisismo. Buenos ______(1927). Fetichismo, v.XXI. Aires: Trieb, 1979. ______(1930). O mal-estar da civilização, v.XXI. HANLY, CH. (1984). Sobre subjetividade e objetivida- ______(1931). Tipos libidinais, v.XXI. de em psicanálise. Rev. Bras. de Psicanal., v.28, p.3, ______(1933). Novas conferências introdutórias à 1994. psicanálise, v.XXII. ______(1995). Informe apresentado no meeting da ______(1937). Análise terminável e interminável, Casa dos Delegados da IPA em 27/07/1995, em São v.XXIII. Francisco, no boletim The crisis of psychoanalisis. ______(1937). Construções em análise, v.XXIII. HARTMANN, H. (1939). Psicologia do ego e o proble- ______(1940). Clivagem do ego no processo de de- ma da adptação. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. fesa, v.XXIII. ______(1947). Ensayos sobre la psicologia del ego. ______(1940). Esboço de psicanálise, v.XXIII. México: Fondo de Cultura Económica, 1969. ______(1941). Achados, idéias, problemas, v. XXIII. HEKLER, E. et al. (1984). Dicionário morfológico da GABBARD, G. (1990). Psiquiatria psicodinâmica na língua portuguesa. São Leopoldo: Unisinos, 1984. prática clínica. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, v.3, p.3153. 1992. HEIMANN, P. (1950). On counter-transference. Int. J. GADINI, E. (1984). Cambios en los pacientes psicoana- Psychoanal., n.31, p.81-84, 1960. líticos hasta nuestros dias. Colección de Monografias HERMANN, F.(1995). Psicanalética. Revista IDE, n.27, da API, v.4, p.6-20, 1984. p.48, 1995. GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Pau- HORNSTEIN, L. (1983). Introdução à psicanálise. São lo: Companhia das Letras, 1989. Paulo: Escuta, 1989. GILL, M. (1979). El analisis de la transferência. Rev. de JACOBS, T. (1996). Sobre não ouvir e não ver: alguns Psicoanálisis, v.3, 1981. problemas na técnica e sua relação com o treinamento GLOVER, E. (1931). The therapeutic effect of inexact analítico. In: PELLANDA, N.; PELLANDA, L.E. interpretation: a contribution to the theory sugestion. Psicanálise hoje. Porto Alegre: Vozes, 1996. Int. J. Psychoanal., v.12, p.397-411. JACOBSON, E. (1954). El self y el mundo objetal. GOLDSTEIN, N. (1996). La perversión y el vinculo de Buenos Aires: Beta, 1969. apoderamiento.Trabalho apresentado em Maceió em JEAMMET, P. (1989). Manual de psicologia médica. 1996. Não-publicado. São Paulo: Durban, 1992. GOMES, R. (1998). Inveja e diferença: um estudo em JONES, E. Vida y obra de Sigmund Freud. Buenos Bion. Não-publicado. Aires: Nova, 1959. GRAÑA, R.(1995). Além do desvio sexual. Porto Ale- JOSEPH, B. (1975). O paciente de difícil acesso. Rev. gre: Artes Médicas Sul, 1995. Bras. de Psicanal., v.20, n.3, p.413, 1986. GREEN, A. (1976). Narcisismo de vida e narcisismo de ______(1985). Transferência como situação total. morte. São Paulo: Escuta, 1988. Libro Anual de Psicoanálisis. Londres-Lima, 1985. ______(1986). Entrevista concedida à Revista IDE. JUNQUEIRA MATTOS, J.A. (1996). Sexualidade e fun- São Paulo, n.13, p.9, 1986. ção alfa: um novo modelo para as perversões. Tra- ______(1988). Sobre a loucura pessoal. Rio de Ja- balho apresentado em Ribeirão Preto em 1996. neiro: Imago, 1988. p 53-76. ______(1996). Análise concentrada: três anos de ______(1995). Entrevista concedida à Revista da experiência. Rev. Bras. de Psicanal., v.30, p.2, 1996. Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Ale- KANTROWITZ, J. (1989). The relationship between the gre, n.2, p.1, 1995. resolution of the transference and the patient-analyst ______(1996). Que tipo de investigación para el match. Trabalho apresentado no 36º Congresso da psicoanálisis? Resposta a Robert Wallerstein. The IPA, Roma, 1989. Newsletter of the International Psychoanalytical KERNBERG, O. (1970). Factors in the psychoanalytic Association, v.5, p.1, 1996. treatment of narcisistic personalities. JAPA, v.18, n.1, GREENSON, R.R. (1967). A técnica e a prática da psi- p.511, 1970. canálise. Rio de Janeiro: Imago, 1981. ______(1983). A desonestidade na transferência. GRINBERG, L. (1956). Sobre algunos problemas de ______(1988). Desordens fronteirizos y narcisimo técnica psicoanalítica determinados por la identi- patológico. México. ficación y la contraidentificación proyetivas. Rev. de ______(1996). Entrevista com Otto Kernberg. The Psicoanálisis, v.13, n.4, 1956. Newsletter of the International Psychoanalitica ______(1963). Psicopatologia de la identificación y Association, v.5, p.1, 1996. de la contraidentificación projetivas y de la contra- KLEIN, M. (1930). La importáncia de la formación de transferencia. Rev. de Psicoanálisis, v.20, n.2, p.113, símbolos en el desarrollo del ego. In: Contribuciones 1963. al psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1964. ______(1963). Culpa y depresión. Buenos Aires: ______(1932). Psicanálise das crianças. Paidós, 1975. ______(1934). Una contribución a la psicogenesis ______(1971). Identidad y cambio. de los estados maníaco-depresivos. In: Contribu- ciones al psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós,1964. 470 DAVID E. ZIMERMAN

______(1946). Notas sobre os mecanismos esqui- MARTY, P.; M’UZAN, M. (1984). O pensamento ope- zóides. In: Os progressos da psicanálise. Rio de Ja- ratório. Rev. Bras. de Psicanal., v.28, p.1, 1984. neiro: Zahar, 1982. MATTE BLANCO (1986). Understanding Matte ______(1948). Contribuciones al psiconálisis. Blanco. Int. J. Psychoanal, v.67, p.251-254. Buenos Aires: Paidós, 1964. MELLO FRANCO FILHO, O. (1989). Lingugem e atu- ______. et al. (1952). Desarrollos em psicoanálisis. ação no processo analítico. Rev. Bras. de Psicanal., Buenos Aires: Paidós, 1962. v.23, p.3, 1989. ______(1952). As origens da transferência. Rev. Bras. MELTZER, D. (1967). El proceso psicanalítico. Buenos de Psicanal., v.4, p.618, 1969. Aires: Hormé, 1987. ______(1957). Envidia y gratitud. In: Las emocio- ______(1973). Estados sexuais da mente. Rio de nes básicas del hombre. Buenos Aires: Nova, 1960. Janeiro: Imago, 1979. KLEIN, M.; RIVIÈRE, J. Amor, ódio y reparación. In: ______(1975). Exploraciones sobre el autismo. Las emociones básicas del hombre. Buenos Aires: Buenos Aires: Paidós, 1979. Nova, 1960. ______(1975). Identificação adesiva. Jornal de Psi- KOEHLER, H.S. J. (1938). Pequeno dicionário esco- canálise, v.38, p.40-52. lar latino-americano. Porto Alegre: Globo, 1960. ______(1984). Dream life. KOHUT, H. (1971). Análise do self. Rio de Janeiro: ______(1989). O desenvolvimento kleiniano I: de- Imago, 1988. senvolvimento clínico de Freud. São Paulo: Escuta, ______(1977). The restoration of the self. Int. Univ. 1989. Press. MONEY-KYRLEY, R. (1956). Contratransferencia nor- LACAN, J. (1949-60). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, mal y algunas de suas desviaciones. Rev. Uruguaya 1998. de Psicoanálisis, v.4, p.1, 1961-1962. ______(1977). Algumas reflexões sobre o ego. Re- ______(1968). Desarrollo cognitivo. Revista de vista Uruguaya de Psicoanálisis, v.14, p.2, 1977. Psicoanálisis, v.27, p.4,1970. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.B. (1967). Vocabulá- MOSTARDEIRO, A.L.; PECHANSKY, I.; RIBEIRO, rio da psicanálise. Santos: Livraria Martins Fontes, R.P.; IBAÑEZ, S.R. (1974). O impasse psicanalíti- 1970. co. Revista Latino-americana de Psicoanálisis, v.1, LIBERMAN, D. Lingüística, interacción comunicativa n.1, p.17, 1974. y proceso psicoanalítico. Buenos Aires: Kargieman, NOGUEIRA, J. (1996). Histeria. Trabalho apresentado 1983. na SPPA. Não-publicado. LOEWENSTEIN, R. (1958). Remarks on some NOVAES, A. et al (1988). O olhar. São Paulo: Compa- variations in classical technique. Int. J. Psychoanal., nhia das Letras, 1988. v.39, p.2-210. OGDEN, T. (1966). Os sujeitos da psicanálise. São Pau- MABILDE, L.C. (1997). Palavras do presidente. Revis- lo: Casa do Psicólogo, 1966. ta de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de OSÓRIO, L.C. (1989). Grupoterapia hoje. Porto Ale- Porto Alegre, v.IV, p.1, 1997. gre, Artes Médicas, 1989. McDOUGALL, J. (1972). Em defesa de uma certa anor- PACHECO, M.A. (1983). Psicanálise de psicóticos. Rio malidade. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1983. de Janeiro: Plurarte, 1983. ______(1987). Um corpo para dois. Boletim Cientí- PETOT, J.M. (1988). Melanie Klein. São Paulo: Pers- fico da SBPRJ, v.1. pectiva, 1988. v. II. ______(1991). Entrevista concedida à Revista Trieb, PIAGET, J. (1954). La construcción de lo real en el niño. v.1, n.1, p.68-78, 1991. Buenos Aires: Protec, 1965. ______(1994). Corpo e linguagem: da linguagem do PICK, I. (1985). A elaboração na contratransferência. soma às palavras da mente. Rev. Bras. de Psicanal, In: Melanie Klein: evoluções. São Paulo: Escuta, v. 28, p.1, 1994. 1989. MAHLER, M. (1971). O nascimento psicológico da PIONTELLI, A.(1996). Observação de crianças desde criança: simbiose e individuação. Rio de Janeiro: antes do nascimento. In: PELLANDA, N.; PELLAN- Zahar, 1982. DA, L.E. Psicanálise hoje: uma revolução do olhar. MAIOLI, S.(1994). A comunicação não-verbal: impli- Petrópolis: Vozes, 1996. cações no trabalho psicoterapêutico. Trabalho de PLATÃO. Diálogos. Madrid: Espasa Calpe; S.P.: Ícone, Conclusão do Curso de Atualização em Psicotera- 1981. pia. Porto Alegre, 1993-1994. Não-publicado. PUGET, J. ; BERENSTEIN. I. (1994). Psicanálise do MARTINS, C.(1997). Poesia. In: Notícias de Família. casal. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994. Publicação da AGATEF (Associação Gaúcha de Te- RACKER, H. (1960). Estudios sobre técnica psicoa- rapia Familiar. v. 1, n. 1. Porto Alegre, 1997. nalitica. Buenos Aires: Paidós, 1973. MARTINS, M.(1969). Aspectos técnicos no tratamento RALLO, J. (1989). Los sueños en psicoanálisis. In: psicanalítico da depressão. In: Epilepsias e outros GRINBERG, L. Introducción a la teoria psicanalí- estudos psicanalíticos. Porto Alegre: Artes Médicas tica. Madri: Tecnopublicaciones, 1989. Sul, 1983. RANK, O. (1914). El reflejo, símbolo del narcisismo. Payot. cap.V, Don Juan y el doble. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 471

RASKOWSKY, A. (1972). Replanteos sobre el psicoa- SPILLIUS, E.B. (1991). A interpretação da inveja na aná- nálisis de adolescentes: aspectos teóricos y técnicos. lise. Rev. Brasil. de Psicanal., v.25, n.3, p.551, 1991. Revista Argentina de Psiquiatria y Psicoanálisis de ______(1995). Entrevista com Elisabeth Spillius e la infancia y de la adolescencia, v.3, p.239-249, David Tuckett. Revista de Psicanálise da Sociedade 1972. Psicanalítica de Porto Alegre, 1995. v.II. REICH, W. (1933). Análise do caráter. Lisboa: Publi- SPITZ, R. (1945). Analytic depression: the psychoana- cações Dom Quixote, 1979. litic study of the child, v.2, 1946. REIK, TH. (1945). La significación psicológica del si- ______(1957). No y si. Buenos Aires: Hormé, 1960. lencio. In: Como se llega a ser psicólogo. Buenos ______(1965). O primeiro ano de vida. São Paulo: Aires: Hormé, Paidós, 1975. Livraria Martins Fontes, 1980. REZENDE, A.M (1995). Wilfred R. Bion: uma psica- STERBA, R. (1932). O destino do ego no processo ana- nálise do pensamento. Campinas: Papirus, 1995. lítico. Rev. de Psicoanálisis, v.26, 1969. RIVIÈRE, J. (1936). Contribución al análisis de la STOLLER, R. (1968). Masculinidade e feminilidade: reacción terapeutica negativa. Rev. de Psicoanálisis, apresentações de gênero. Porto Alegre: Artes Mé- 1949. dicas Sul, 1993. ROCHA BARROS, E.M.; ROCHA BARROS, E.L. STRACHEY, J. (1934). The nature of therapeutic action (1995). A técnica psicanalítica da interpretação de of psycho-analysis. Rev. de Psicoanálisis, v. 5, 1947- inspiração kleiniana. In: OUTEIRAL, J.O.; THO- 1948. MAS, T. Psicanálise brasileira. Porto Alegre: Artes TUCKETT, D. (1995). Entrevista com Elizabeth Spillius Médicas Sul, 1995. e David Tuckett. Revista de Psicanálise da Socieda- ROCHA, F. (1988) A psicanálise e o paciente somati- de Psicanalítica de Porto Alegre, v.II, 1995. zante: introdução às iéias de Joyce McDougall. Rev. TURILAZZI, S.M. (1979). Interpretación de la actuación Bras. de Psicanal., v.22, p.1, 1988. y interpretación como actuacción. Rev. de Psicoaná- ______(1996). A sexualidade na teoria e prática psi- lisis, v.36, p.841, 1979. canalítica: sobre o complexo de Édipo e de castra- TUSTIN, F. (1981). Estados autistas em crianças. Rio ção. Rev. Bras. de Psicanal., v.30, p.4, 1996. de Janeiro: Imago, 1984. RODRIGUÉ, E. (1966). El contexto del processo analí- ______(1990). Barreiras autísticas em pacientes tico. Buenos Aires: Paidós, 1966. neuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul,1990. ROSENFELD, H. (1964). Investigação sobre a necessi- WALLERSTEIN, R.(1989). Psicoanálisis y psicotera- dade de os pacientes neuróticos e psicóticos realiza- pia: una perspectiva histórica. In: Libro Anual de rem atuações durante a análise. In: ROSENFELD, Psicoanálisis, 1989. H. Os estados psicóticos. Rio de Janeiro: Zahar, WINNICOTT, D. (1944). Textos selecionados: da pedi- 1968. atria à psicanálise. Livraria Francisco Alves, 1988. ______(1965). Os estados psicóticos. Rio de Janei- ______(1944). O ódio na contratransferência. In: ro: Zahar,1968. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Li- ______(1965). Da psicopatologia do narcisismo: uma vraria Francisco Alves,1988. aproximação clínica. In: ROSENFELD, H. Os esta- ______(1944). Desenvolvimento emocional primiti- dos psicóticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. vo. In: Textos selecionados: da pediatria à psicaná- ______(1978). A psicose de transferência no pacien- lise. Livraria Francisco Alves, 1988. te fronteiriço. Rev. Bras. de Psicanal., v.23, p.3, 1989. ______(1951). Objetos e fenômenos transicionais. ______(1971). Uma abordagem clínica à teoria psi- In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, canalítica das pulsões de vida e morte: uma investi- 1975. gação dos aspectos agressivos do narcisismo. In: ______(1958). A capacidade para estar só. In: O Melanie Klein: evoluções. São Paulo: Escuta, 1989. ambiente e os processos de maturação. Porto Ale- ______(1987). Impasse e interpretação. Rio de Ja- gre: Artes Médicas Sul, 1988. neiro: Imago, 1988. p.32. ______(1960). O ambiente e os processos de matu- SANDLER, J. (1983). Reflections on some relations ração. Porto Alegre: Artes Médicas Sul,1988. between psychoanalitic concepts and psychoanalitic ______(1960). Distorção de ego em termos de falso practice. Int. J. Psychoanal., v.64, p.5-47. e verdadeiro self. In: O ambiente e os processos de ______(1990). Entrevista concedida à Revista IDE. maturação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1988. São Paulo, v.19, n.19, p.62, 1990. ______(1967). O papel de espelho da mãe e da famí- SEGAL, H. (1954). Notas sobre a formação de símbo- lia no desenvolvimento infantil. In: O brincar e a los. In: A obra de Hanna Segal. Rio de Janeiro: Ima- realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. go, 1983. ______(1969). O uso de um objeto. Rev. Bras. de ______(1977). A contratransferência. In: A obra de Psicanal., 1971. Hanna Segal. Rio de Janeiro: Imago, 1982, cap.6. ______(1971). O brincar e a realidade. Rio de Ja- neiro: Imago, 1975. ______(1987). Citada por Horácio Etchegoyen. In: ______(1971). Therapeutic consultations in child Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Ale- psyhiatry. Londres: The Hogarth Press and the gre: Artes Médicas Sul, 1987. p.200. Institute of Psycho-Analysis, 1985. 472 DAVID E. ZIMERMAN

______(1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: ______(1996). A comunicação não-verbal. Revista Imago, 1990. do Centro de Estudos em Psicoterapia de Florianó- ZETZEL, E.(1956). The current concepts of transference. polis, v.2, 1996. Int. J. Psychoanalysis, v.37, p.369-376. ______(1996). O vínculo do reconhecimento. Rev. ______(1968). The so called good hysteric. Int. J. Bras. de Psicanal., v.30, p.3, 1996. Psychoanal., v.49, p.256-260, 1968. ______(1996). A posição narcisista. Revista de Psi- ZIMERMAN, D.E. (1987). Resistência e contra-resis- canálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Ale- tência na prática analítica. Trabalho apresentado na gre, v.III, p.2, 1996. SPPA em 1987. Não-publicado. ______(1997). A face narcisista da sexualidade ______(1988). Manejo técnico do paciente de difícil edípica. Rev. Bras. de Psicanal., v.XXI, p.2, 1997. acesso. Rev. Bras. de Psicanal., v.XXII, 1988. ______(1998). Psicoterapias de grupo. In: COR- ______(1991). O espelho na teoria e prática psicana- DIOLI, A.V. Psicoterapias: abordagens atuais. Por- lítica. Rev. Bras. de Psicanal, v.XXV, p.1, 1991. to Alegre: Artes Médicas Sul, 1998. ______(1991). A dimensão teórico-clínica na análi- ______(1998). A face narcisista da homossexualida- se de psicóticos no Brasil. Anais do XIII Congresso de: implicações na técnica. In: GRAÑA, R.B. Ho- Brasileiro de Psicanálise. São Paulo, 1991. mossexualidade: formulações psicanalíticas atuais. ______(1992). Etiopatogenia dos estados depressivos Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1998. no processo psicanalítico. Revista do CEP- ZIMERMAN, D.E.; OSORIO, L.C. (1997). Como tra- PA, v.1, p.1,1992. balhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas ______(1993). Fundamentos básicos das grupote- Sul, 1997. rapias. Porto Alegre: Artes Médicas Sul,1993. ZIMMERMANN, D. (1980). A influência da teoria e da ______(1994). Inveja: pulsão ou defesa? Revista de prática de psicoterapia sobre a formação psicanalíti- Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto ca. Rev. Bras. de Psicanal., v.14, p.1,1980. Alegre, v.1, p.2, 1994. ZUSMAN, W. (1984). A opção sígnica e o processo sim- ______(1995). Bion: da teoria à prática. Porto Ale- bólico. Rev. Bras. de Psicanal., v.28, p.1, 1984. gre: Artes Médicas Sul, 1995. ______(1995). Algumas reflexões sobre o conceito de cura psicanalítica. Revista da Sociedade Psica- nalítica de Porto Alegre, v.II, p.1, 1995. FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 473

Adler: 1; 3 Admiração: 12 Adolescência: 6; 14; 34; 39 (adolescente silencioso: 34) Alexander, F: 21 Aliança Terapêutica: 3; 18; 20; 24; 25; 31; 34 Alter-Ego: 11; 16 Alvarez, A.: 4; 8; 31 Ambiente Facilitador: 6 Ambigüidade: 13; 22 Amor (à verdade: 26; 29); (vínculo do: 14) (de transfe- rência: 26) Índice Remissivo Ana O. (1; 3; 31; 32) Anaclitica (escolha de objeto): 23; (depressão: 19) Anal (fase: 6; 17) (caráter: 6) Analisibilidade: 2; 3; 4; 24; 25 Um necessário esclarecimento prévio: levan- Analista (pessoa real do: 2); (erros do: 28); (formação do em conta que um dos objetivos deste livro é o do: 41); (transferência do: 31) (crise do: 42) de propiciar uma abordagem didática, entendi ser Angústia: 10; 17 (de castração: 3; 4; 6; 11; 17; 23); (au- tomática: 3; 10); (sinal: 3; 10; 37); (de aniquilamen- imprescindível incluir um índice remissivo, para to: 3; 4; 6; 20; 21; 36); de desamparo: 8; 10; 13; 23); facilitar a busca de esclarecimento de determina- (de despedaçamento: 6; 16) engolfamento: 17); (ca- dos termos e assuntos. No entanto, cabe fazer qua- tastrófica: 6; 10); (de separação: 14; 30; 35); (do tro ressalvas: 1): não me impuz a obrigatoriedade oitavo mês de vida: 6) de incluir absolutamente a todos os verbetes que Antianalisando: 4; 24; 30 aparecem ao longo do livro. 2) Para evitar que a Apoio (psicoterapia de: 2); (técnica de: 20) consulta resulte fastidiosa, no lugar de cumprir o Aprendizagem com a Experiência: 3; 20 hábito costumeiro de referir os verbetes pela nu- Arrogância: 29 meração das páginas em que eles aparecem, eu pre- Ataque aos Vínculos: 12; 13; 14; 20; 28; 29; 35; 36 feri utilizar uma licença, a de referenciá-los pela Atenção Flutuante: 26; 27; 29 Atitude (psicanalítica interna) 2; 4; 8; 18; 19; 35; 38 numeração dos capítulos em que eles constam de Atividade Interpretativa: 23; 32; 35; 37; 40 forma mais substanciosa. A possibilidade de que a Atmosfera Analítica: 20; 38 numeração de algum capítulo referenciado apare- Aulagnier, P.: 16; 26; 39 ça em negrito significa que nele o verbete mencio- Autarquia Narcisística: 28 nado aparece de forma principal. 3) Pelo fato de Autismo: 1; 4; 6; 8; 21 que a formação etimológica dos termos psicanalí- Autoanálise: 4; 32; 38 ticos cumpre uma função de esclarecimento e cos- Auto-Continência: 4; 32 tuma despertar um interesse particular do leitor, Autoerotismo: 4; 9 entendi especificar – no verbete “etimologia” – Auto-Estima: 14 aquelas palavras cuja formação consta em alguns Autonomia (primária e secundária do ego: 3; 5); (a ob- tenção de uma: 38) capítulos. 4) Para assumir a responsabilidade de alguns conceitos ou terminologia própria que eu proponho e que eventualmente aparecem no pre- B sente livro, os quais decidi incluir neste índice, e para alertar o leitor que não se trata de termos exis- Badaracco: 19 Baranger: 13; 14; 27; 29; 39; 41 tentes na literatura psicanalítica, eu os italizei. Bateson, G.: 14; Benefício Terapêutico: 25; 38 A Bick, E.: 10; 16 Abraham: 1; 3; 6; 11; 12; 17; 18; 25; 28; 39 Bion: aparece em quase todos capítulos. Ab-Reação (ou Catarse): 1 Bleger: 13; 27 Abstinência (regra da): 26; 27; 29 Bleichmar: 18; 19 Ação: 10; 39 Bollas: 4; 5; 24; 31 Acessibilidade: 2; 4; 24; 25 Borderline: 3; 18; 20; 33; 38 Acting: 3; 6; 16; 20; 21; 22; 27; 29; 30; 31; 33; 34; 36; Bowlby: 6; 8; 14; 19; 21 37; 40 (dos terapeutas: 32); (das crianças: 36); (dos Breuer: 1; 3 adolescentes: 34); (em grupos: 40). Brincar (e Brinquedos): 39 Adesividade: 4 Buracos Negros: 2; 4; 6; 8; Adicção: 22 Bússola Empática: 20; 32; 33; 35; 38 474 DAVID E. ZIMERMAN

C Culturalismo: 1 Cura: 4; 30; 35; 38; (cosmética: 41) Campo Analítico: 25; 27; 29; 31; 35; 38; 39; 41 (grupal: Curiosidade: 26 (sexual: 6) 40): Custódia (função de): 41 Capacidade (negativa: 3; 32; 35; 41); (de síntese: 10); (de pensar: 20; 27); (de simbolizar: 27); (para estar D só: 6); (de sobreviver: 39; 41) Cápsula (ou Concha) Autista: 4; 24; 39 Defesas (Mecanismos de): 6; 10; 15; 17; 18; 20; 22; 25 Caracter: 17 (resistência de: 28); (histérico: 18); (fálico- Demanda: 4; 9 narcisista: 18); (infantil: 18) Dependência: 3: 12; 13; 31 (má: 12; 31) Carretel (Jogo do: 16; 39) Depressão: 18; 19 (narcisista: 13; 18); (melancólica: 19) Caso Schreber: 3; 23 Desamparo (Estado de: 6; 7; 8; 13; 22; 23; 26; 27; 36 Castração (complexo de: 37); (simbolica: 6; 31; 34) Desejo: 3; 4; 9; 18; 35 Catéxis: 5; 9 Desenvolvimento Emocional Primitivo: 6; 28 Cena Primária: 3; 6 Desesperança (estado de; 8) Charcot (1; 18) Desidentificação: 19; 38 Chasseget Smirgel, J.: 12; 13; 22; 37 Desistência (Estado mental de): 4;; 6; 8; 21; 28; 29; 31; Ciúme: 12; 16; 23 34 Clivagem (do ego): 1 Dessignificação: 4; 38 Cognitivo-Comportamental: (corrente: 10; 40) Dessimbiotização: 38 Comitê (dos 7 anéis: 3); (de avaliação da terapia analíti- Dialética: 13; 35 ca: 2); (da IPA sobre “setting”: 28); (da IPA sobre “a Diferenças: 2; 12; 13 crise da psicanálise”: 42) Discurso (dos pais): 6; 7; 8; 11; 19; 22; 33; 34 Completude (estado de: 12; 19) Dissociação (do ego: 1; 18) (útil do ego: 32); (corpo- Complexo de Édipo: 6; 23 mente: 21) Complexo do Semelhante: 14 Divã (uso do): 2; 27 Compulsão à Repetição: 4; 5; 9; 19; 31; 36 Donjuanismo: 14; 22; 36; 37 Comunicação: 10; 15; 21; 27; 32; 33; 40 (não-verbal: 4; Dor mental: 38 16; 21; 26; 33; 34) Dora (caso): 1; 3; 18; 28; 31; 36; 41 Condições (para psicoterapeuta: 3; 41); (para grupote- Duplo: 7; 15; 16; 23; (duplo vínculo: 7; 33); (dupla rapeuta: 40); (de maternagem: 27) mensagem: 27) Configurações Vinculares: 25; 28; 40 Conhecimento: 10; 20; 26; 38 E Conluio: 20; 22; 23; 29; 31; 32; 41; (erotizado: 29); (per- Ecksterman: 21 verso: 29); (pseudo-agressivo: 29) Édipo: 3; 4; 6; 13; 14; 23; 37; (a face narcísica de: 37) Consciente (função do) 2; 4); (sistema: 5) Ego: 1; 3; 4; 5; 10; 16; 25; 32; (corporal: 21); (Ideal: 3; Contemporânea (psicanálise): 4 11; 12; 13; 19; 38) (auxiliar: 11); (funções do: 10; Continente (função: 4; 6; 7; 8; 16; 211; 24; 26; 27; 29; 38; 40; (do prazer purificado: 13 31; 32; 34; 40; 41); (relação continente-conteúdo: Eissler,: 25; 26; 27 4; 32; 40) Eizerick: 26 Contra-Acting: 27; 32; 36 Elaboração: 18; 23; 28; 34; 38 Contra-Ego: 5; 11; 24; 30 Elementos de Psicanálise (segundo Bion): 2; 3; (elemen- Contrafobia: 17 tos alfa e beta: 6; 7; 21) Contraidentificação Projetiva: 32 Elisabeth Von R.(1; 3) Contra-Resistência: 23; 23; 29; 31; 40 Empatia: 3; 4; 13; 20; 32; 41 Contrato Analítico: 18; 25; 26 Entrevista Inicial: 25; 29 Contratransferência: 4; 11; 14; 15; 18; 20; 21; 22; 23; Epílogo: 42 24; 32; 33; 37; 38; (complementar: 32; 34); (con- Equação “8 C”: 19 cordante: 32; 34); (patológica: 32); (erotizada: 32) Equação Etiológica (ou Série Complementar): 6 (somatizada:32) Equação Simbólica: 13; 33 Conversão: 18; 21; 23; 33 Erotismo: 29; 32; (transferencial positivo: 29); (auto- Cordioli, A: 40 erotismo; 5) Corpo: 3; 5; 6; 7; 9; 16; 18; 20; 21; (escuta do: 33); Escolas (as sete escolas de psicanálise: 3); (Psicosso- (imaginário: 39) mática de Paris: 15); (de Chicago: 21); (de psicote- Correa,F. (Prefácio) rapia psicanalítica: 42) Couraça Caracterológica: 4 Escuta: 33; (do corpo: 21) (intuitiva: 21) Crescimento Mental: 3; 35 Espaço: (do setting: 27); (transicional: 3); (uni, bi, tri e Crise: 1; 42 tetra dimensional, segundoMeltzer: 4) Cruz, Juarez: 15 Espelhamento: 20; 21 Culpas: 19; (emprestadas: 11) FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 475

Espelho: 7; 15; 16; 23; 31 (etapa do: 3; 6; 16; 37; 39); Função (alfa: 3; 21; (psicanalítica da personalidade: 16) (função de: 6; 7; 23); (sinal do: 16; 20); (metáfora Função (alfa: 3; 6; 21; 35) (de custódia: 41); (de mater- de Freud: 32); (ressignificador: 16); (pessoas-espe- nagem: 7; 25; 27); (psicanalítica da personalidade: lho: 16) 2; 3; 35; 38; (especular da mãe: 6; 16); (do sonho: Esquirol: 1 19); (cognitiva: 20) Estados da Mente (segundo Bion): 3; (psicótico: 20) Estilo (de interpretação): 4; 33; 34; 35; 36 G Estresse: 21 Gangue Narcisista: 4; 13; 24; 28; 30 Estrutura: 5; 9; 13; 14; 15; 24; 25; (familiar: 25); (da Garma, A.: 21 personalidade: 25); (tripartite da mente: 9; 10) Gênero Sexual: 18; 23; 37 Estrutural (teoria): 5; 28 Gill, M.: 31 Etchegoyen: 24; 25; 29; 30; 42 Goldstein, Nestor: 14; 22 Etimologia das Palavras: Adicto (22; 33). Adolescên- Gomes, Roberto: 12; 37 cia (6). Agredir (9; 31). Alexitimia (21). Angústia Graña, R.(23) (17; 21). (Apatia (41). Compreender (25) Comuni- Green: 3; 8; 13; 14; 15; 16; 18; 20; 26; 27; 35; 41; 42 cação (33). Concordante (32). Confusão (13); Crise Greenson: 28 (42) Desejo (12). Desenvolvimento (26). Deslum- Grinberg: 19; 32 brar (35). Desistência (28; 34). Descobrimento (38). Grupo: 3; 14; 16; 40; (Familiar: 7; 14;); (tipos de: 40) Despeito (12). Dramatização. Empatia (32; 38). Es- Grupoterapeuta: 40 tética (33). Estilo (33). Existência ((28) Histeria (18); Grupoterapia: 16; 40; 42 Histrionismo (18); Identidade (16); Impasse (30). Interpretação (35). Interminável (38). Intuição (32; 33; 35). Inveja (12). Lesbianismo (23). Metapsico- H logia (3). Narciso (16). Obsessivo (17). Paciência Hanly, CH. 2 (41). Perversão (22). Polissêmico (34). Prepotência Hans (o menino): 3; 17 (23). Puberdade (6). Rancor (12); Recordação (36). Hartmann: 3; 10 Resistência (28). Respeito (16; 41). Retaliação (28; Heimann, P. 3; 32 34). Topográfica (1) Transferência (31). Trauma (8). Heisenberg: 27 Vínculo (14). Violência (8) Heredo-Constitucionais (fatores): 6 Etologia: 42 Hermann,F.: 35 Experiência Emocional Transformadora: 35 Hipérbole (“movimento de “, segundo Bion: 14; 18) Extratransferência: 12; 35 Hipnotismo: 1 Hipocondria: 21 F Histerias: 18; (tipos de, segundo Zetzel: 18): Histórico (da psicanálise): 1; 21; 22; 42) Fairbairn: 3; 5; 9; 23; 37 Holding: 7; 21 Fálica (fase: 6; 17) Homem (dos ratos: 3; 26; 31); (dos lobos: 3; 15; 16; 17; Falo: 6; 12; 18; 23; 26) Falso Colaborador: 30; 31 Homossexualidade: 22; 23 Falso Self: 5; 13; 11; 14; 15; 26; 31; 33 Família: 7; 20; 23 Fantasia Inconsciente: 3; 21; (da “figura combinada”: I 23) Id: 1; 5; 9; 19; 25 Fase Perverso Polimorfa: 22; 23 Ideal do Ego: 3; 5; 7; 10; 11; 12; 13; 29; 30; 32 Fases do Desenvolvimento: 6; 17 Idealização: 11; 12 Fatores (Heredo-constitucionais: 6; 23 (Socioculturais- Identidade: (sentimento de: 6; 7; 10; 14; 16; 18; 20; 23; econômicos: 2; 7; 11; 23; 40); (ambientais: 6) 25; 40; (do analista: 2) Fenômenos Transicionais: 3 Identificação: (primária com a mãe: 6; 13; 16) (projeti- Ferenczi: 1; 3; 8; 15; 20; 28; 41 va: 3; 7; 10; 11; 13; 17; 20; 21; 23; 25; 31; 32); (com Ferrão: 28 o agressor: 10; 17 (com a vítima: 7; 10; 19;); (de- Ferro,A: 39 feituosa: 13; 16); (adesiva: 7); (patógena: 19); (com Fetiche: 2; 12; 13; 14; 22; 39 o analista: 35) Fetichismo: 1, 2; 10; 16; 22 Imago Parental Idealizada: 5 Fixação (pontos de: 5; 6; 13; 23; 28; (narcisista: 30) Impasse: 12; 13; 20; 28; 29; 30; 31; 32; 36: 31); (de Fobias: 17 transferência: 31 Forclusão: 3; 5; 10; 21 Impingement: 8 Francisco, Bruno S.: 36 Indicações E Contra-Indicações (para análise: 25); (para Freud, Ana: 1; 3; 11; 28; 31; 39 grupoterapia: 40) Freud, S. (em todos os capítulos) Indiferenciação: 13; 14 Frustração: 6; 7; 27 Insight: 14; 18 (tipos de: 31; 35; 38) 476 DAVID E. ZIMERMAN

Instinto (ver Pulsão) Mentiroso: 26; 30 Internalização Transmutadora: 2; 6; 31 Mesmerismo: 1 Interpretação: 14; 21; 22; 23; 28; 29; 31; 35 (elementos Metapsicologia: 3; 5; 12; 39 que compõem a: 35); (compreensiva: 25; 35) Método Analítico: prólogo; 3 Intuição: 6; 29; 32; 33; 41 Mitologia (e acting): 36 Inveja: 3; 4; 7; 12 (do pênis: 4; 12; 28; 30); (primária: 3) Mitos (de Narciso: 16; 23); (grupais: 40) Ipa: 1; 2; 3; 27; 38; 39; 42 Modelos: 4; 5; 6; 9; 15; 19; 21 Irmãos: 7 Motivação (para análise: 25; 28; 30) Isomorfia: 27 Mudança (psíquica: 36); (catastrófica: 21; 32; 35; 38) Mutismo: 34 J Jacobson, E.: 1; 3; 13 N Joseph, B.: 3; 4; 22; 23; 24; 25; 31 Não (analisibilidade: 31); (verdade: 28); (integração: 6; Judaismo (de Freud): 3 31); (seio: 6); (coisa: 4); (comunicar: 4) Jung: 1; 3; 9; 11 Narcisismo: 1; 3; 4; 5; 6;; 9; 13; 14; 17; 18; 37; (estrutu- Junqueira Mattos, J. A.: 27; 37 rante: 5); (introdução ao: 28) (escolha de objeto nar- cisista: 23); (face narcisista da sexualidade: 23) K Nascimento (trauma do: 8); (psicológico do bebê: 6; 8; 16) “K” e “-K” (vínculo): 5; 26; 31; 32; 36; 41 Neo-Identificações ou: Re-identificações): 19; 23; 35; 38 Kernberg: 20; 24; 30; 42 Neo-Significações (ou: Ressignificações): 1; 4; 23; 33; 38 Klein: aparece em quase todos capítulos Neotenia: 6; 12; 13 Kohut: 3; 5; 6; 8; 14; 16; 19; 28; 29; 31; 32; 37 Neurose (atual: 2; 8; 9; 17; 21); (de angústia: 17; 21); Kyrle, M.: 14; 20; 29; 32 (de transferência: 2; 21; 31; 35); (de contratransfe- rência: 32) (traumática: 8) L Neutralidade:; 26; 27; (regra da: 16) Lacan: 3; 5; 6; 10; 12; 13; 16; 18; 21; 28; 31; 33; 34; 35; Ninfomania: 14 38 Nogueira, Joel: 17 Laplanche y Pontalis: 16; 22; 35 Latência (fase de: 6) O Leonardo da Vinci: 22 Objeto: 6; 9; 13; 21; 31; (Transicional: 3; 31); (parcial: Lesbianismo: 23 21); (novo: 23) Liberdade: 2; 4; 11; 38; 39; 42 Obsessivo-Compulsiva (Neurose): 17 Liberman, D.: 18; 33 Ódio (na contratransferência: 3); (vínculo do: 14) Libido: 1; 9 Ogden,TH.: 39 Linguagem: 3; 6; 10; 14; 16; 20; 25; 33 (sígnica: 21; Olhar: 14; 15; 16; 33; (olhar-espelho: 8); (bom e mau da 33); (simbólica: 21; 33); (corporal: 6; 7) mãe: 14 Livre Associação de Idéias: 1; 26 Oral (fase: 6); (oralidade:”18) Lorenz, K: 6 Organização Patológica: 5; 13;; 24; 28; M Osório, L.C.: 40 Mabilde: 1 P MacDougall: 2; 4; 16; 21; 23; 24; 30; 32; 33; 37 Paciência: 3; 26; 31; 34 Mãe: 7; 17; 18; 20; 24; (fálica: 23); (suficientemente Paciente De Difícil Acesso: 222; 24; 25 boa: 6; 7; 39); (“morta”, segundoGreen: 8; 19); (his- Pai: 7; 18; 20; 22; 39); (Lei do: 16; 23) terogênica: 18) Paixão: 11; 14; 41 Mahler: 1; 3; 5; 6; 8; 10; 14; 16; 19; 23 Pânico (Doença do): 17; 21 Maioli, S.: 33 Papéis: 7; 11; 14; 17; 19; 20; 22; 23; 30; 32; 35; 38; 40; Martins, C.: 41 (do analista: 36) Martins, M.: 19 Par Analítico: 41 Masoquismo: 5; 6; 20; 22; 31 Paradigmas (da psicanálise: 4) Masturbação: 31 Parâmetros Técnicos: 4; 25; 26; 27; 35 Match: 25; 29; 31 Paranóia: 4 Matte Blanco: 20 Parte Psicótica da Personalidade: 3; 4; 11; 13; 20; 23; Melancolia: 19 28; 35; 36; 38 Meltzer: 3; 4; 8; 10; 12; 15; 18; 22; 28; 29; 31; 39 Pele Fina e Pele Grossa (segundo Rosenfeld: 13) Memória (de sentimentos): 21; 36 Pensamento (segundo Bion: 6) (operatório: 15; 21); (se- Mentira: 22; 26; 30 (tipos de: 33). gundo Piaget: 20 FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 477

Pensar (Função de): 4; 6; 10; 13; 15; 20; 21; 27; 30; 33; Recipiente: 4 35; 39 Reconhecimento (vínculo do): 7; 13; 14; 18; 34; 36; 37 Percepção: 10 Regra Fundamental: 5; 26; 29; 33 Pereda, M.: 39 Regras Técnicas: 16; 25; 26; 27; 29; 38 Personalidade: 6; 16; 18; 25; (fálico-narcisista: 18); (his- Regressão: 22; (a serviço do ego: 3; 6) térica: 18) Reich, 1,; 3; 4; 18; 34 Perspectivas Futuras: (da psicanálise: 42); (das grupote- “Relação Branca”: 21 rapias: 40) Reparação: 3; 11; 1319;; 30; 38; (verdadeira: 39) Perversão: 9; 22; 23; 35 (do self: 27); (da transferência: Representação: 5; 6; 7; 8; 10; 12; 13; 16; 20; 21; 25; 31; 22); (do setting: 27) 33; (esquema de: 39) Perverso-Polimorfa (etapa: 9; 22; 23) Repressão (1; 4; 31) Pessoa Real (do analista) 2; 3; 4; 29; 31; 32; 35; 41 Resistências: 13; 20; 22; 23; 28; 30; 36; 40; (do analis- Petot: 16 ta: 29; 31; 35); (de transferência: 31); (tipos de: 28); Piaget: 6; 13; 20 (incoercíveis: 30); (às mudanças: 35) Pinel (1) Respeito (condição do analista de: 16) “Ping-Pong” (estilo de interpretar): 35 Ressignificação (ver em “Neo-significação) Piontelli: 6; 42 Resultado Analítico: 25; 38 Platão: 14; 16 Retraimento: (estado mental de: 8) Posição: 4; 6; 11; 13; 14; (esquizoparanóide: 3; 10; 13; Rêverie: 7; 13; 33 18; 24); (depressiva: 3; 10; 13; 18; 19; 24); (narci- Reversão Da Perspectiva: 12; 13; 24; 33; 35 sista: 6; 11; 13; 18; 23; 37) Rezende,A.M.: 14; 30 Prática Analítica: virtualmentre, em todos capítulos. Rivière,J.: 11; 12; 28; 35; 30 “Prazer sem Nome”: 6 Rosenfeld: 3; 4; 5; 12; 13; 20; 24; 28; 30; 31; 32; 33; 35; Pré-Concepção: 6 36; 37 Pré-Genitalidade: 22; 37 Princípios: 2; 5; 12 (da incerteza: 4; 27); (da negativi- S dade: 4) Sachs: 1 Processo (Primário e Secundário): 5; 15 Sadismo: 5; 17; 20 (sadomasoquismo: 18; 19; 20; 29 Projeto (de uma psicologia científica: 3); (terapêutico: Sandler,J.: 27 25 Seewald,F.: Prólogo; 4; 39 Protesto (estado de mente): 8 Segal: 4; 10; 12; 13; 15; 32; 33; 35 Protopensamento: 36 “Seguro-Solidão”: 23 Pseudocolaborador (paciente: 3; 4; 28; 30; 31) Seleção de Pacientes: 29; 30 (para grupos: 40) Pseudodepressão: 19 Self: 3; 10; 24; (grandioso: 5; 13); (self-objetos: 5; 6; Pseudogenitalidade: 6; 14; 37 32); (psico-fisilógico: 1; 13) Pseudomadurez (segundo Meltzer: 28) “Sensibilômetro”: 33 Pseudópodos Mentais: 4 Séries Complementares (ou Equação etiológica): 5; 6 Pseudotransferência: 35 Sessões (número de: 2) Psicanalise: 2; 4 (ortodoxa: 4); (clássica: 4); (contempo- Setting (enquadre): 14; 20; 23 rânea: 4) (crise da: 1; 42) Setting (ou Enquadre): 2; 13; 14; 22; 23; 24; 26; 27; 28; Psicofisiologia: 15 29; 30; 31; 34 (grupal: 40) Psico-história: 42 Sexualidade: 18; 20; 24; 37; (aditiva: 37) Psicoimunologia: 21 Significações: 4; 7; 21 Psicólogos do Ego: 3; 12; 15; 34 Significado: 3; 33 Psicopatia: 22 Significante: 3; 33 Psicose de Transferência: 20; 24; 32 Silêncios: 20; 33; (tipos de: 34; 35) (do psicanalista: 34) Psicose: 20; Simbiose: 7; 13; 17 Psicossomatica: 15; 20; 21 Símbolo: 3; 10; 12; 13; 15; 16; 27; 39; (simbolismo do Psicoterapia Psicanalítica: 2; 42; (de apoio: 2) conflito: 33) Psiquismo Fetal: 5; 6; 42 Simetria: 25; 27 Puberdade: 6 Similaridade: 25; 27 Pulsão: 4; 5; 9; 11; 12; 31 Situação Analítica: 14; 17; 27; 33; 37 Somatização: 16; 19; 21; 33; 38 R Sonhos‘: 1; 4; 15; (interpretação dos: 3; 28); (traumáti- Rabisco (jogo do: 3; 35; 39; (rabisco verbal: 35) cos: 1; 8) Racker: 21; 29; 30; 31; 32; 35 Sonolência (estado de: 32) Rank: 1; 3; 8 Spillius: 1; 12 Reação Terapêutica Negativa: 11; 12; 19; 24; 28; 30; Spitz: 6; 16; 19; 21; 28 (do analista: 30; 38 Steckel: 1 478 DAVID E. ZIMERMAN

Steiner: 3; 24 “Tratamento Moral” (1) Stoller: 23 Trauma (1; 4; 5; 8) Sujeito Suposto Saber: (segundo Lacan: 3; 31; 35) Traumatofilia: 21 Superego: 1; 4; 5; 10; 11; 19; 23; 25; 31; 38 (analítico: Tuckett, D.: 1 2; 26; 32); (precursores do: 11) Tustin: 4; 6; 8; 27 Supra-Ego (ou: “Super”superego: 4; 11; 17; 20) V T “Vasos Comunicantes” (modelo tipo: 19) Talmud: 3; 15 Verdade: 4; 10; 14; 20; 36 (regra do amor à: 26; 27; 28; Técnica: (aparece, virtualmente, em todos capítulos) 29; 38; 41; 42) Teoria: do Trauma: 38; Topográfica (1; 5); Estrutural (1; Vértice (segundo Bion: 3; 10; 31; 41); (existencial-prag- 5; 28); (Econômica: 8; 9); (sistêmica: 38; 40) mático: 4) “Teorização Flutuante”: 26 “Via di Porre” e “Via di Levare”: 3; 35; 38 Terapia Psicanalítica: Prólogo); (ação curativa da: 38) Vínculos: 6; 8; 14; 31 (ataque aos: 7; 20; 28; 31; 32); Término (da análise): 38; (da grupoterapia analítica: 40) (duplo vínculo: 7; 33; 35); (psicanálise dos: 4; 37) “Terror sem Nome”: 3; 4; 36 (grupais: 40) (na situação edípica: 37) Timing (da interpretação: 34; 35; (na grupoterapia: 40) Visão Binocular: 3; 41 Topográfico:(Modelo): 5 Voracidade: 12 Transferência: 23; 31; 38; (fraterna: 31); (negativa: 20; Voz: 33; 35; 40 30; 31); (positiva: 31); (primitiva: 31); (amor de: 26; 28; 30; 31; 35); (neurose de: 31); (narcisista: 3; 14; W 23; 37); (idealizadora: 31) (especular: 3; 14; 16; 31); Wallerstein: 2; 42 (psicótica: 20; 31); (psicose de: 24; 30; 31); (erótica Winnicott: 2; 3; 5; 6; 7; 8; 10; 14; 16; 21; 22; 23; 27; 29; e erotizada: 31); (perversa: 31 (perversão da: 22; 23; 31; 32; 34; 35; 39 31); (de impasse: 31); (construção da: 31) (do ana- lista: 32) Transferencialismo: 31; 35 Z Transformações: 3; 15; 31; (das pulsões: 9); (na psica- Zetzel: 3; 18; 25; 31 nálise: 2; 3; 5) Zimerman: 18 Transgeracional: 10; 13; 14; 39 Zimmermann: 2 Transgeracionalidade (7; 10; 23) Zusman: 21; 33; 38