Mobilidade populacional e expansão da cidade em Vargem Grande - Ma: Uma análise a partir de narrativas orais.

Eva Rosa do Lago1 [email protected]

O presente artigo apresenta reflexões acerca do processo da expansão da cidade de Vargem Grande no Maranhão, nas últimas décadas do século XX, tendo como marco inicial a década de 1980, momento em que se nota uma expressiva aceleração da expansão da cidade se comparado aos anos anteriores. Nota-se ainda, que essa expansão se deu majoritariamente pela mobilidade de populações de áreas rurais para a área urbana do município. Muitas destas experiências podem ser observadas em relatos de sujeitos que vivenciaram esse processo e ainda daqueles que residem na cidade. Essa mobilidade é responsável pela nova dinâmica da vida na cidade, criando novas relações sociais, com destaque para a formação de novos bairros, bem como o crescimento populacional dos já existentes. Nesta perspectiva, o estudo se apoiará em autores como Lefebvre, Harvey, Lima, entre outros. Utilizar-se-á ainda de fontes orais a partir de diálogos com sujeitos imersos no processo, com ênfase na metodologia de história oral, analisando as experiências desses sujeitos.

Palavras-chave: Cidade, Experiências. Expansão Urbana. Redes familiares. Mobilidade.

INTRODUÇÃO

O município de Vargem Grande, situado na Mesorregião norte Maranhense, na microrregião do , possui uma área total de 1.957,751 Km² limitando-se ao Norte com os municípios de e São Benedito do Rio Preto, ao Sul com os municípios de e Coroatá, ao Leste com e ao Oeste com Cantanhede e , encontrando-se às margens da BR-222. O município conta com uma população de 56.510 habitantes estimada para 2019 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Vargem Grande, é um município imerso historicamente em mobilidades populacionais, uma vez que sua história é relatada a partir de passagens de boiadeiros que, tocando boiadas seguiam rumo aos municípios vizinhos. Cabe salientar a relevância da cidade

1 Mestranda em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) enquanto detentora de boas pastagens e por isso lugar de relativa movimentação em seus primeiros anos de expansão. Face ao exposto, o estudo que ora se propõe a respeito da cidade nos últimos anos do século XX, faz-se relevante para compreensão de seu processo de expansão, percebendo as especificidades que permeiam sua historicidade atualmente. Desta forma, a cidade é compreendida enquanto intrínseca à sociedade, pois apoia-se em Lefebvre (2001), que afirma:

A cidade sempre teve relações com a sociedade no seu conjunto, com sua posição e seu funcionamento, com seus elementos constituintes [...] com sua história. Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu conjunto. Entretanto, as transformações da cidade não são os resultados passivos da globalidade social, de suas modificações. A cidade depende também e não menos essencialmente das relações de imediatice, das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõem a sociedade. (LEFEBVRE, 2001, p.51-52) Nesta perspectiva apontada pelo autor, enfatiza-se a relação mutua entre a cidade e os grupos que a formam, e que as mudanças que ocorrem em seu interior são frutos da dinâmica social que a compõem. Desta forma, a percepção sobre a expansão da cidade de Vargem Grande, faz-se essencialmente pela discussão das dinâmicas populacionais dos sujeitos que se encontram em mobilidade e de suas singularidades espaciais que os conduzem, pois elementos da vida social constituem as transformações que se passou a observar na cidade, objeto da pesquisa. Neste sentido, as mudanças nos cenários urbanos são estimuladas pelas ações humanas ao passo em que estes transformam o ambiente em que habitam e o regulam a partir de suas experiências individuais e coletivas no espaço. Assim, Ultramari e Silva (2017) destacam que, Mudanças no cenário urbano brasileiro podem ser identificadas por fenômenos específicos tais como a aprovação de novas legislações, reversões econômicas com impacto no perfil contábil das administrações municipais, novas relações institucionais entre as instâncias de poder e novos modos sociais advindos sejam de políticas urbanas, sejam de processos exógenos. Se observarmos tais fenômenos como origem e marcos das mudanças no cenário de nossas cidades, eles podem ser identificados de modo específico no tempo. Todavia, seus impactos certamente se mostram processuais, longos, inacabados e não lineares no nível da concretude dos fatos. Assim, tais mudanças paradoxalmente convivem com permanências, sem uma existir sem a outra. (ULTRAMARI & SILVA, 2017, p. 3) A despeito de outros fenômenos, a cidade, que segundo Harvey (2014) é “um direito coletivo”, encontra-se enquanto acolhedora de infinidades de sujeitos advindos de espaços outros, constituindo uma dinâmica migratória, logo, a cidade torna-se destino de uma demanda populacional que, ainda com condições de moradias inadequadas, fixa-se neste espaço. A respeito das situações de moradia, um estudo acerca das condições das cidades brasileiras de Rolnik e Klink (2011) apontam que, Em 1991 revelou um país cujas cidades apresentavam baixas condições de urbanidade, menos de 23% de domicílios totalmente adequados e cerca de metade dos municípios com 0% de domicílios totalmente adequados. Embora indicasse avanços, o retrato das condições de urbanização em 2000 ainda permanecia preocupante. Apenas 33% dos domicílios do Brasil eram totalmente adequados, 30,5 milhões de domicílios tinham alguma inadequação e nenhum município apresentava 100% de seus domicílios plenamente adequados. (ROLNIK & KLINK, 2011, p.95-96) Assim, ainda que, com condições inadequadas de moradias, o que é uma realidade não só do município de Vargem Grande como da grande maioria das cidades brasileiras, a cidade passa a acolher inúmeros moradores em seus bairros, pois a exemplo de outras cidades apresenta um nível de crescimento populacional que não é acompanhado pelos serviços de urbanização adequados para atender a estas populações, como exemplificado por Rolnik e Klink (2011). Face ao exposto, cabe salientar que a cidade de Vargem Grande, expandiu-se à revelia dos serviços necessários para seu desenvolvimento socioeconômico e cultural. Diante disso, o presente trabalho pretende iniciar uma discussão a respeito das condições de expansão da cidade de Vargem Grande, bem como das relações sociais dos sujeitos que nela passam a residir, muitos deles advindos de áreas rurais do município, o que favorece ainda uma análise das redes socioculturais que vão se formando em torno dessa relação entre os espaços – rural e urbano, compreendendo a dinâmica da cidade diante da expansão que se apresenta enquanto uma realidade local no período mencionado. Assim, a formação de novos bairros, bem como a grande expansão dos já existentes, abrem janelas para uma percepção ampliada dos aspectos mencionados. Portanto, uma análise acerca dos aspectos da expansão da cidade de Vargem Grande, compreende antes de tudo uma percepção das experiências individuais, que são percebidas a partir das fontes orais que balizam a pesquisa, pois são sujeitos que fazem parte de uma coletividade que articulada em seus espaços criam condições de sobrevivência próprios. A percepção destes aspectos com suas determinações, bem como as articulações possíveis em meio às mais variadas condições sociais é interessante para visualizar uma historicidade rica em detalhes na cidade, foco da pesquisa. A pesquisa de cunho qualitativo, utilizar-se-á de fontes orais a partir de diálogos com sujeitos imersos no processo, com ênfase na metodologia de história oral, analisando as experiências desses sujeitos, compreende inicialmente, neste artigo, a análise do relato oral de um sujeito do sexo masculino, com faixa etária de 70 anos, este escolhido por sua experiência de vida na cidade e por presenciar e vivenciar essa mobilidade, o mesmo nos apresenta questões a serem discutidas no processo de pesquisa bem como na composição desta narrativa escrita. Cabe salientar que, este artigo, sendo uma parte integrante da pesquisa de mestrado ainda em andamento, apresenta inicialmente a percepção de um entrevistado, dado o processo metodológico que se encontra ainda em desenvolvimento, porém, espera-se não haver comprometimento da narrativa, uma vez que se pretende apenas uma pequena mostra do texto ainda em construção, neste sentido, outros sujeitos aparecerão futuramente.

A expansão da cidade e o processo migratório: motivos e motivações

Uma análise do processo de expansão da cidade de Vargem Grande exige que se pense na dinâmica urbana de modo geral, pois sua complexidade abrange aspectos múltiplos da vida em sociedade, nos levando a refletir que “as relações sociais nunca são simples” (LEFEBVRE, 1999, p. 51). Assim, a expansão se dá mediante uma dinâmica migratória repleta de experiências individuais que compreende toda uma especificidade local deste processo. Neste sentido, diante da fala dos sujeitos que vivenciaram esse processo pode-se perceber que diversos fatores implicaram nas dinâmicas migratórias que impulsionam a saída das pessoas do campo e a vinda destas, para a cidade. Face ao exposto, as motivações mais acentuadas neste processo migratório no município de Vargem Grande são de caráter socioeconômico, sendo que, os indivíduos que migraram relatam as dificuldades encontradas para sobrevivência no meio rural, especialmente no que se refere a oferta de serviços públicos básicos pelo município, a saber, a educação, por exemplo, como podemos observar quando o sr. José Ribamar, relata que,

Nós mudamos para cá, de muda mesmo, em 1983. A educação, não era muito assim, era meio fraca, né! Porque é como eu lhe digo, as moças que estavam no colégio assim, eu acho que elas não tinham muito interesse, logo os pagamentos eram devagar, bem elas não recebiam também, né! E era obrigado elas faltar muito pra fazer outro serviço qualquer, mas tinha, né! começou lá, mas assim pra criancinha novinhas de 4 anos, né! mas a gente achou que lá não ia em frente, né! o que podia fazer era colocar no lugar como aqui mesmo, na cidade, porque aqui é pra todo mundo, depende querer, né! foi esforço, trouxemos por isso aí mais. É pela educação, eu fiquei com pena deles assim, só a esperança do futuro melhor assim com educação, com saber, se não for, ninguém alcança um futuro melhor, sem ter um estudo, né! é o que eu tinha vontade assim, só que não foi como eu queria, como Deus quer mesmo, porque eles não aprende, todos não se formaram, né! mas entretanto, todos estão colocados, dei oportunidade pra tudinho, graças a Deus! (COSTA, 2019)2 O sr. José Ribamar, em seu relato nos apresenta uma realidade vivenciada por ele e por sua família quando moradores da zona rural, pois segundo ele as professoras eram mal remuneradas e por isso, tinham outros empregos e se ausentavam muito da escola no seu

2 “As moças” as quais o sr. José se refere neste trecho da conversa são as professoras que lecionavam no povoado. povoado, e, diante das necessidades de seus filhos de frequentarem uma escola, segundo ele “de qualidade” que só na cidade poderia ser encontrada, eles resolveram mudar de residência. Diante das “condições de expulsão” do sr. José Ribamar, nota-se que elementos socioeconômicos foram condicionantes e que o levaram a optar pela moradia na cidade, abandonando o campo e suas mazelas, infortúnios da classe trabalhadora rural. Outro motivo para o abandono das áreas rurais e a “opção” pela área urbana apresenta-se timidamente na fala do sr. José Ribamar, que é a questão que envolve os proprietários de terras, segundo ele,

Porque saíram todas as pessoas, por causa de problemas com os donos das propriedades, né! achava que não estava bem e saíram todo mundo... que eu sei informar assim, questão da lavoura deles que as criações do patrão comiam, né! o gado invadia a roça, aí foi o primeiro, né! que aí só tinha aquele futuro da roça, a criação comia, o cara não cooperava, aí não é fácil conviver num lugar desses assim, né! desistiram, desistiram... porque aconteceu isso mesmo até nós fomos prejudicados muitas vezes, mas não chegou a ter confusão, não! (COSTA, 2019) O sr. José Ribamar não dá muita ênfase aos proprietários de terras e suas disputas com seus agregados, em contrapartida, ele prefere enfatizar a questão educacional como fator determinante de muitos abandonarem o campo e vir para a cidade, no entanto, vai-se desenhando a questão agrária como grande ponto a ser analisado nas motivações das migrações rurais-urbanas ocorridas no município de Vargem Grande no período mencionado, pois diante de um cenário nacional e estadual em que grandes quantidades de terras são disputadas isso não deixa de interferir na vida daquelas que residem em pequenos municípios. Nesta perspectiva, a migração interna em Vargem Grande apresenta-nos, como afirma Gonçalves (2001, p.173) “o lado visível de fenômenos invisíveis” pois, para além de fatores sociais, como a má qualidade da oferta de educação e saúde aos que moram nas áreas afastadas do centro urbano, o fator econômico também é determinante para o crescimento do número de pessoas que deixam o campo e migram para a cidade. Face ao exposto, Gonçalves (2001) afirma ainda que,

Os grandes deslocamentos humanos, via de regra, precedem ou seguem mudanças profundas, seja do ponto de vista econômico e político, seja em termos sociais e culturais. Os maremotos históricos provocam ondas bravias que deslocam em massa populações e povos inteiros. Numa palavra, a mobilidade humana é em geral um sintoma de grandes transições. Quando ela se intensifica, algo ocorreu ou está para ocorrer, ou melhor, algo está ocorrendo nos bastidores da história. (GONÇALVES, 2001, p. 173). Seguindo a lógica apresentada pelo autor mencionado, de que a mobilidade populacional está condicionada a grandes mudanças nos cenários envolvidos, a migração em Vargem Grande está intimamente ligada a fatores ‘macros’ de transformação das relações de produção no campo, bem como da organização social daí resultante.

Situando o sujeito da migração: um perfil geral

Para situar os sujeitos da migração rural-urbana, consequentemente os mais envolvidos na expansão da cidade, é fundamentalmente importante esboçar um perfil social e cultural destes indivíduos, revelando diversas faces do processo. Por certo, as falas dos sujeitos sugerem uma aproximação entre os contextos vivenciados pelos diversos indivíduos, quando de sua mudança para a cidade, mas apresentam em outros momentos, suas singularidades. Com efeito, as experiências individuais dos migrados apresentam uma multiplicidade de sentidos dados aos mais diversos contextos que vivenciaram tanto no espaço rural quanto posteriormente no espaço urbano e, junto à essas experiências agrega-se as de cunho coletivo que em quaisquer situações de mobilidade populacional condicionam-se também a fatores mais gerais, neste sentido, cabe salientar a discussão de Lima (2008, p.82) sobre a produção do espaço urbano, onde a mesma afirma que, “há uma legião de sujeitos sociais em permanente processo de produção do espaço urbano. É, pois, na luta conflitiva pela garantia da moradia e da implantação de serviços públicos que a cidade vai se produzindo e se expandindo”. Assim, a autora enfatiza o protagonismo dos diversos sujeitos na produção do espaço urbano, pois este é forjado a partir da dinâmica dos sujeitos que nele residem e que, diante dos conflitos sociais estabelecidos no cotidiano é que a cidade vai se reformulando a partir destas condições de produção que lhes são impostas, pois junto à luta dos sujeitos por melhores condições de moradia e demais serviços públicos segue o processo de expansão da cidade à revelia destes aspectos. Destarte, o processo de migração ocorrido da área rural para a urbana em Vargem Grande, no período supracitado, foi realizado majoritariamente por sujeitos que viviam de agricultura e praticavam essa lavoura como modo de subsistência. Percebe-se, portanto, que o perfil social dos migrados em geral é formado predominantemente por famílias de baixa renda que se aventuram na mudança de espaço de moradia em busca de novas expectativas de vida, sendo, portanto, que grande parte destes não possuíam uma residência própria na cidade, necessitando ficar em casas de parentes ou amigos “conhecidos” por um bom período de tempo. Percebemos assim, elementos que nos apontam quem é o sujeito migrado nessa dinâmica do processo migratório em Vargem Grande, quando na fala do sr. José Ribamar, ele descreve sua vida, relatando que, O trabalho era muito forte, trabalhava de lavoura e o serviço que tem no interior, todos eles a gente fazia, que é o trabalho de roça, criação, criação de porco, galinha, fazer carvão, fazia para usar e para vender, assim, no caso, não queria perder material, né! Que tinha, que a gente não sabia tá parado, né! Movimentando todo tempo, para ter, para não faltar as coisas para a gente, né! E arrumar para quem precisasse também, né! Tinha que se dá. (COSTA, 2019) Com isso, a relevância que o sr. José Ribamar demostra na sua fala às dificuldades que encontrava no trabalho que desenvolvia no espaço rural, reflete a sua condição social do momento, condicionando a sua busca por melhores condições de vida. Diante disso, as variações da dinâmica social descrita pelo sr. José Ribamar em seu espaço de moradia de outrora – na área rural - apresenta uma vertente polissêmica da vida em sociedade e de sua funcionalidade prática em seu grupo, neste sentido, sua identidade é forjada em meio à convivência com outros moradores de seu povoado e essa aproximação com o outro o define. Por conseguinte, o contexto específico do sr. José Ribamar aponta para a percepção sobre as formas de trabalho no seu ambiente – o campo - a luta diária para conseguir o mínimo para sobreviver, bem como as formas de solidariedade no seu coletivo, no momento em que ele destaca a necessidade de ajudar aqueles que precisavam, mostrando em sua fala uma prática típica de pequenos grupos que residem e trabalham em conjunto, compartilhando experiências de vida e mutuamente ajudando-se nos momentos de maiores dificuldades. Ao migrarem para a cidade, alguns costumes se mantem, pois, analogicamente ao caso de Vargem Grande, na cidade de , estudada por Lima (2008) também apresenta elementos que dialogam com as questões que ora se apresentam pois segundo a autora, “tinha- se a impressão de que ali na cidade havia uma extensão do rural, ou seja, da manutenção de elementos que eram intrínsecos à identidade dessas famílias” (LIMA, 2008, p.27). Neste sentido, a permanência de aspectos rurais na vivência em meio ao urbano são uma questão comum em várias cidades em que ocorrem esses movimentos. De forma que, a dicotomia rural e urbano perde o sentido, pois a relação estabelecida entre eles apresenta elementos que elimina as tentativas de diferenciação destes polos. Diante disso e na tentativa de que aqui se evite apresentar generalizações, percebemos alguns traços característicos que, diante do exposto, apontam majoritariamente os migrantes da cidade de Vargem Grande como trabalhadores rurais com renda mínima, que diante das dificuldades encontradas no seu local de origem deslocam-se para a cidade em busca de outras alternativas de vida. Em vista disso e a partir da análise de elementos apresentados individualmente pelo sr. José Ribamar, podemos montar de forma abstrata um contexto mais geral da situação vivenciada pelos sujeitos envolvidos no processo. Pois, nesta perspectiva, Bensa (1998, p.15) explica que, “o detalhe vale pelas fatias de realidade que revela, pelo peso das circunstâncias e das motivações que suporta, pela compreensão dos contextos aos quais introduz”, assim, o relato de vivências individuais faz-nos perceber focos de situações mais gerais que a sociedade rural estava inserida naquele dado momento.

O rural e o urbano: articulação de redes familiares

As relações estabelecidas em meio à passagem do homem do campo para a cidade ocorrem em muitos casos mediante a articulação de redes familiares, que diante de um motivo ou uma motivação, desloca-se um membro e de modo subsequente outros o acompanham ainda que em momentos diversos e por razões diferenciadas. Diante disso, nem sempre a família migra em conjunto, o que ocorre são migrações parceladas, em que um determinado membro da família parte e este, em contato com os demais, os trazem para perto de si, situação que segundo Assis (2007) caracteriza enquanto redes sociais, pois a partir do contato das famílias com seus membros, estas se articulam de modo que passam a atrair os que deixaram para trás. Por meio desse processo acentua-se ainda mais a eliminação da dicotomia rural/urbano, pois segundo Monte-mór (2005)

Velhas formas dicotômicas de organização do espaço social, tendo na cidade/campo sua expressão fundante e mais clara, deixam de existir em sus formas puras. Difícil falar hoje de cidade ou de campo como formas e/ou processos socioespaciais antagônicos, na medida em que seus limites, naturezas e características estão cada dia mais difusos e integrados. (MONTE-MOR, 2005, p. 443) Nesta perspectiva, a relação entre esses dois espaços vai se tornando cada vez mais fluidas ao passo em que se tornam próximos, de modo que, elementos do urbano encontram-se no rural e vice-versa. Assim, o município de Vargem Grande, imerso em um contexto de expansão da cidade, que se encontra intimamente articulado à dinâmica migratória torna-se perceptível essas redes sendo formadas ao sabor de grandes movimentos populacionais, uma vez que muitos dos que aqui vieram para morar, após algum tempo, a partir dos contatos contínuos com seus familiares, os demais membros deixam seus espaços outrora vivenciados para residir no âmbito da cidade com seus familiares que aqui já se encontram. Neste sentido, Assis (2007) em uma pesquisa sobre mulheres migrantes, aponta que,

Os migrantes contemporâneos, diferentemente de seus antecessores, contam com um sistema de comunicações e transporte mais barato e eficiente, o que diminuiu as distâncias e tornou mais frequentes os contatos entre a sociedade de origem e a sociedade de destino. (ASSIS, 2007, p. 750) Logo, a autora enfatiza que na contemporaneidade as distâncias são diminuídas a partir das novas formas de comunicação que ao diminuírem as distâncias e deixarem as pessoas em constante contato fazem com que estas possam planejar novas vivências, mesmo que estejam muito distantes uns dos outros esses contatos frequentes geram uma aproximação a partir das relações sociais estabelecidas entre quem parte e quem fica. A partir dessa dinâmica de relações sociais a partir do contato constante entre os pares, nota-se que “os que ficaram para trás por algum motivo, aos poucos vão chegando, juntando-se àqueles que já chegaram e conseguiram se estabelecer.” (LIMA, 2008, p.121) diante desses contatos efetivos, a mobilidade populacional continua de forma que grande parte das famílias se encontram reunidas no espaço da cidade. As redes que se formam condicionam futuros movimentos migratórios que a partir de então passam a fazer parte da organização social destes sujeitos. Diante disso, podemos perceber uma efetividade dessas relações quando na fala do sr. José Ribamar, ele apresenta como foi sua relação com a família quando da sua mudança para a cidade, na qual afirma que,

Até mesmo meus irmãos, [...] e tem um aqui que veio nesse tempo, hoje ele tá aqui, mas deu certo também pra ele. Hoje os filhos dele tudo aqui empregado, né! A situação minha também foi assim, até assim mesmo que a família dele estudava junto com os meus no interior, no mesmo colégio. (COSTA, 2019) Em vista disso, as relações do sr. José Ribamar com seus familiares foram marcadas em meio as necessidades compartilhadas por ambos os irmãos que, segundo ele, a partir de sua decisão de migrar para a cidade, foi um condicionante para que outros de sua família o acompanhasse posteriormente e decidissem igualmente abandonar o espaço rural em busca de novos alternativas na cidade. Em suma, esses aspectos das relações sociais estabelecidas entre os diversos membros das famílias que migram em diversos espaços, são notadamente relevantes para que se compreenda dimensões do processo migratório em que famílias inteiras deixam o espaço rural e fixam moradia no espaço urbano, ainda que “esses trabalhadores e suas famílias se deparam com muitas situações, tanto de sentir a cidade como estranha, como de se sentirem estranhos em relação à ela. ” (LIMA, 2008, p.135), pois quando de sua chegada ao espaço da cidade, estes se veem distante de sua vivência anterior, fato que agrega novos elementos à sua identidade bem como surge a necessidade de uma organização social que lhe possibilite sobreviver em um novo espaço - a cidade.

Espaços de vivências compartilhadas: Como se deu sua (re) organização social?

Os movimentos populacionais de sentido campo-cidade ocasionam um complexo processo de expansão da cidade, o qual ocorre de maneira acelerada e muitas vezes desordenadas, sendo que os novos habitantes das cidades passam, em alguns casos a viver às margens da sociedade e nas “periferias” destas, fato que acentua ainda mais as diferenças sociais. Diante disso, Rolnik (2015) destaca as especificidades de moradores de áreas periféricas da cidade, que segundo ela,

“periferia” e “favela” são ainda categorias urbanísticas e culturais fortes. Apesar dos investimentos acumulados nesses assentamentos, que contam muitas vezes com infraestruturas básicas e equipamentos sociais, eles ainda são marcados por precariedades – presentes na má qualidade dos serviços públicos, na escassez de urbanismo, na lista dos artefatos urbanos ainda por fazer ou obter – e por um estigma territorial persistente. As dinâmicas territoriais recentes têm desafiado as cidades a absorver o crescimento, melhorando suas condições de urbanização de modo a sustenta-lo do ponto de vista territorial. (ROLNIK, 2015, p. 266) Face ao exposto, cabe ressaltar a relevância de políticas públicas para atender essa parcela da sociedade, desenvolvendo ações que atendam às especificidades das cidades, tal qual salienta Moura, Oliveira e Pêgo (2018, p.43) “Cada porção do território, cada configuração espacial sob transformação, compondo a diversidade do urbano brasileiro, requer políticas e ações adequadas ao perfil de sua população, de sua conformação espacial e natureza”. Em vista disso, a chegada dos novos habitantes no espaço urbano requer dos mesmos uma aproximação aos modelos já existentes, mas para além disso, ações do poder público de modo a acompanhar o crescimento da cidade e desenvolver ações que possam articular crescimento com desenvolvimento. Diante da marginalização dos sujeitos oriundos do campo, na cidade, e uma vez que não conseguem uma vida digna, muitas vezes se veem imersos na sua individualidade fato que não facilita a sua aceitação no grupo ao qual agora se encontra, pois a diferenciação entre esses dois grupos (moradores da cidade e do campo) é acentuada pelo traços culturais que cada um carrega, ainda que, em diversos momentos, elementos destes espaços se confundam. Consequentemente, a nova dinâmica da cidade é permeada por novas relações sociais que se caracterizam por diferenciações tanto comportamentais quanto sociais entre os indivíduos, diante disso os recém emigrados carecem de um determinado tempo para se encaixarem na dinâmica de vida já existente na cidade, bem como os seus anfitriões precisam adaptar-se aos novos vizinhos. Sendo assim, emergem grupos com modos de vida diferentes, mas que buscam conviver harmoniosamente com as formas de organização social da cidade. A compreensão dos fatores que emergem das novas relações estabelecidas no espaço urbano condiciona as experiências dos sujeitos que passam a se perceber enquanto membros de uma nova coletividade. Diante disso, Montúfar (2008) salienta que,

la ciudad adquire desde esta perspectiva, un sentido existencial em la medida em que condiciona la experiencia del ser humano modelando no sólo aquella cotidianidad sobre la que se reproduce a nivel micro sino, además, en una construcción colectiva donde convergen múltiples sentidos. (MONTÚFAR, 2008, p. 23) Diante disso, como já apontado, a atração exercida pela cidade, se caracteriza para além da experiência individual e coletiva que condiciona a vinda de sujeitos com suas famílias, estas incidem ainda na dinâmica social como um todo, moldando-se ao sabor da nova organização social na qual se insere. Entretanto, a fala do sr. José Ribamar quanto a sua decisão de migrar para a cidade, sugere uma adaptação paulatina, pois ao passo em que planeja a mudança, se percebe ainda trabalhador no espaço rural cotidianamente, pois segundo ele, A vontade era só nossa mesmo, os meninos eram pequenos, não opinavam, mas os amigos e parentes por eles não tinha vindo, porque achavam difícil, uma vida difícil aqui, quem morava na cidade assim... pessoa pobre, ficar só morando na cidade, vai passar muito mal, vai passar fome, ai eu fiquei pensando não, acho que não, porque a produção eu tenho aqui (interior) eu vou ter do mesmo jeito porque eu vou vim trabalhar todo santo dia aqui, então acho que não vai mudar nada não. [...] Nós conseguimos uma casa, uma casa mesmo comum, de barro, madeira e barro, até de palha era coberta, casarão que eu vendi, que eu construir mas já vendi e nós fazia tudo pra dar certo, [...] foi uma vida de muito, assim, preocupação, trabalho, de muito interesse pra nós poder chegar no ponto que nós estamos, porque muitos achavam difícil sair. (COSTA, 2019)3 Assim sendo, percebe-se a mudança experimentada por ele e sua família quando decidiram vir para a cidade, bem como o receio dos seus familiares e amigos quanto à concepção de vida na cidade para aquelas pessoas que deixam o campo, eles apresentam uma concepção de que as dificuldades para sobreviver na cidade são enormes, especialmente para quem já tem uma estrutura de trabalho e organização social no espaço rural. Entretanto, o campo passa por transformações que fazem com que a vida neste espaço passa a ser questionada por seus moradores e o desejo de mudar de espaço para buscar novas oportunidades na cidade apresenta-se cada vez mais presente. Assim, o sr. José Ribamar, completa dizendo que, “É pela educação, eu fiquei com pena deles (os filhos), só a esperança do futuro melhor assim com educação, com saber, se não for, ninguém alcança um futuro melhor, sem ter um estudo, né!” relatando sobre suas motivações para sair do campo e vir para a cidade. Em outro momento falando das motivações das populações em geral, ele afirma que, “porque saíram todas as pessoas, por causa de problemas com os donos das propriedades, né! achava que não estava bem e saíram todo mundo...” Assim, as transformações socioeconômicas vivenciadas no espaço fazem os moradores deslocarem-se rumo à cidade, que apresenta características econômicas atrativas a estes sujeitos, pois segundo Becker (2013) “As cidades são entidades sociais criadas por processos econômicos”.

3 Quando o sr. José Ribamar afirma que a “vontade era só nossa mesmo” ele está se referindo à vontade de vir morar na cidade. Por outro lado, a chegada dos sujeitos aos novos espaços precisam ser encaradas pelo poder público como uma dinâmica humana que interfere de maneira significativa no processo de enriquecimento cultural e transformação das formas de existência estabelecidas pela sociedade, sem contudo, deixar de perceber as complicações que toda mudança traz, e as implicações para a reorganização dos espaços que recebem constantemente novos moradores, estando quase sempre despreparado para tal, fator que determina muitas vezes o tipo de habitação que estes novos habitantes terão disponíveis. Dessa maneira, o ato de migrar tem como consequência um certo desligamento do local de origem, fato que em geral acontece de forma lenta e gradual, uma vez que há uma perda cultural, bem como determinados laços sociais que os mesmos usufruíam em seu local de origem. A falta de proximidade de seus pares torna-se um desafio ainda mais doloroso para o migrante na cidade, pois o mesmo geralmente encontra-se distante daqueles a quem ele tem relações de amizade e muitas vezes parentescos.

Considerações finais

A partir das condições de expansão observadas no texto, percebemos que a mesma se deu na cidade de Vargem Grande por meio de diversos fatores que têm sido relevantes para a discussão que se propõe, destacando-se a mobilidade de sujeitos de espaços rurais para a área urbana. Diante disso, ocorre mudanças nos cenários tanto rurais quanto urbanos, tanto de ordem espacial quanto social, pois ao passo em que migram, os sujeitos se veem diante de novas realidades e passam a desenvolver novas práticas de socialização na cidade. Muitos migram sozinhos e após algum tempo, outros familiares veem a seu encontro, formando redes que se articulam ao sabor dos constantes contatos viabilizados pelas novas formas de comunicação. A partir do relato de sr. José Ribamar apresentado no decorrer da narrativa, podemos perceber a relação estabelecida entre os sujeitos que mudaram e como estes se (re) inventam em outro espaço, a cidade, por sua vez também passa por transformações que advém de toda essa dinâmica estabelecida no âmbito das relações sociais, econômicas e culturais. No caso de Vargem Grande, esse processo de mobilidade foi condicionante de muitas mudanças, para além dos cenários físicos há a mudança nos aspectos referentes às experiências que se fazem ainda mais marcantes quando se observa na fala de quem vivenciou esse momento. Em suma, a migração do homem do campo para a cidade causa grandes transformações na vida destes, bem como em seus locais de saída e de entrada. Desta forma, uma nova sociabilidade é inevitável e neste momento ele estará ao mesmo tempo dividindo e socializando num constante movimento de interação, o qual define sua nova (re) organização econômica, social e cultural. Reitero que o artigo apresentado reflete a dinâmica inicial de uma pesquisa que se caracteriza enquanto uma discussão proposta para a dissertação de mestrado ainda em desenvolvimento, sendo, pois, uma análise parcial de todo o processo que se pretende investigação mais profunda.

REFERÊNCIAS

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