ANDRÉ APARECIDO GARCIA

ORLANDO FURIOSO DE LOBATO: UMA OBRA INCONCLUSA

Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção do Título de mestre em Educação. Área de Concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte.

Orientadora: Profa. Dra. Norma Sandra de Almeida Ferreira

Campinas 2010

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© by André Aparecido Garcia, 2010.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade de Educação/UNICAMP Bibliotecário: Rosemary Passos – CRB-8ª/5751

Garcia, André Aparecido. G165o Furioso de Lobato: uma obra inconclusa / André Aparecido Garcia. –- Campinas, SP: [s.n.], 2010.

Orientador: Norma Sandra de Almeida Ferreira.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Lobato, Monteiro, 1882-1948. 2. Adaptação. 3. Livros. 4. Leitura. I. Ferreira, Norma Sandra de Almeida. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

10-200/BFE

Título em inglês: de Lobato: an inconclusive work Keywords: Lobato, Monteiro, 1882-1948; Adaptation; Books; Reading Área de concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte Titulação: Mestre em Educação Banca examinadora: Profª. Drª. Norma Sandra de Almeida Ferreira (Orientadora) Profª. Drª. Lilian Lopes Martin da Silva Profª. Drª. Lázara Nanci De Barros Amâncio Data da defesa: 09/06/2010 Programa de pós-graduação : Educação e-mail : [email protected]

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Título: Orlando Furioso de Lobato: uma obra inconclusa

Autor: André Aparecido Garcia Orientadora: Norma Sandra de Almeida Ferreira Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida por André Aparecido Garcia e aprovada pela Comissão Julgadora. Data: 09 de junho de 2010

COMISSÃO JULGADORA:

Profa. Dr. Lilian Lopes Martin da Silva

Profa. Dr. Lázara Nanci De Barros Amâncio

2010

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Capa do Orlando Furioso 1895 vi

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À minha mãe Maria Garcia; à minha esposa Luciana de Paula e aos meus filhos Octávio e Maria Fernanda, pela nossa história de amor e cumplicidade, pelos meus erros e acertos em nossa trajetória. “São mínimas coisas entrançando a vida: o passo no corredor, a mão que acalma, o corpo que arde e apazigua. O sono. O sonho. Silêncios. Solidões.” (LUFT; LYA. Um brinde à vida. 1997)

À minha orientadora, Profa. Dra. Norma Sandra de Almeida Ferreira, por toda a sua dedicação e pelo tanto que me ensina. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento da História. (FREIRE, PAULO. 2008, p. 136) vii

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AGRADECIMENTOS

Neste espaço tenho a oportunidade de agradecer a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a concretização deste trabalho, fazendo-me acreditar sempre que “[...] Sonhar é possível, transformar é preciso.” (SERRÃO; BALLEIRO, 1999, p. 55) À minha mãe, Maria Garcia, por estar sempre ao meu lado, apoiando-me e cuidando de mim. Você é exemplo de caráter e dignidade. Sinto-me extremamente feliz por tê-la em minha vida. Obrigada por tudo; sempre... À minha querida esposa Luciana, pelos sonhos compartilhados, por sempre acreditar em mim... Sua coragem, determinação, bondade e humildade são admiráveis. Aos meus queridos filhos Octávio e Maria Fernanda, por tornarem meus dias mais alegres, pelo carinho dedicado sempre e por toda colaboração para a realização deste estudo. À minha orientadora Profa. Dra. Norma Sandra de Almeida Ferreira, por toda sua competência, cumplicidade, respeito, profissionalismo e determinação; por sempre me atender prontamente. Acima de tudo, por acreditar na concretização deste trabalho. Aos meus familiares queridos que brilhem por intermédio das estrelas, em especial, Maria Garcia Vilalva, minha tia amada, que tornou minha infância mais feliz e iluminada; À amiga Doraci Rodrigues por sempre me ouvir e apoiar, pela amizade presente e sincera. Aos meus amigos e minhas amigas da Faculdade de Educação da Unip – Limeira e do Colégio Objetivo de Cosmópolis, pela convivência, pelo aprendizado, pelos momentos de descontração e pelas trocas de experiências. Aos meus alunos e minhas alunas dos cursos de graduação em Pedagogia, do colégio Objetivo de Cosmópolis, pela convivência agradável e pelos conhecimentos compartilhados. Aos professores e professoras com quem tive a oportunidade de conviver ao longo de minha trajetória escolar, por compartilharem comigo seus conhecimentos e valores. viii

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Aos professores e colegas do curso de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação/Unicamp. Aos integrantes do grupo de Alfabetização, Leitura e Escrita (ALLE), especialmente, Maria das Dores Soares Maziero e Maria Lygia Cardoso Kopke Santos pela leitura da dissertação e pelo incentivo. À Profa. Dra. Lilian Lopes Martin da Silva, à Profa. Maria Rosa Rodrigues Martins Camargo, à Profa. Lázara Nanci de Barros Amâncio e à Profa Rosalia de Ângelo Scorsi, pelas valiosas contribuições apresentadas na ocasião do Exame de Qualificação. Aos funcionários da Unicamp, sobretudo, da Faculdade de Educação, pelas orientações e pelos atendimentos prestados. Enfim, obrigada a todos, de coração, por fazerem parte da minha história! Em especial, a Deus, pela vida... [...] Você verá que é mesmo assim Que a história não tem fim Continua sempre que você Responde "sim" [...] (ARANTES. Brincar de viver. 2008.)

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RESUMO

O trabalho que aqui se apresenta tem como objetivo principal ou intenção primeira apresentar a obra Orlando Furioso de Xavier da Cunha, editada pela Companhia Editora Nacional de Lisboa no ano de 1895, arquivada no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE)/Unicamp, buscando compreender não só a trajetória desta edição, como também os aspectos tipográficos e textuais que a configuram. Ainda tem como objetivo investigar os vestígios deixados por Monteiro Lobato, de forma manuscrita, nesta edição de Orlando Furioso, colocando como questões: quais são as intervenções editoriais e textuais que Lobato lança mão com um possível desejo de publicá-la com um livro clássico infantil? Que representação de leitor infantil parece orientar tais intervenções? Que representação do gosto de leitor infantil parece orientar a visão de Lobato como editor nessas intervenções. Essa pesquisa se enquadra no conjunto de trabalhos do grupo de pesquisa Alfabetização, Leitura e Escrita (ALLE) no que diz respeito à investigação dos procedimentos postos e praticados pelo polo da produção, tendo em vista a representação que autores e editores constroem a respeito do público, a qual se destina as obras publicadas, na perspectiva metodológica fornecida pela História Cultural.

Palavras-Chave: Adaptação. Orlando Furioso. Monteiro Lobato. Leitura. Livro.

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ABSTRACT

The main aim of this material or its first intention is to present the work of Orlando Furioso de Xavier da Cunha, printed by Companhia Editora Nacional de Lisboa, in the year of 1895, filed in Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE)/Unicamp, trying to understand not only the several steps of this printing, but also the textual and typographic aspects which set it up. It still has as aim to investigate remains left by Monteiro Lobato in a manuscript way in this publishing of Orlando Furioso, asking the following questions: what are the publishing and textual interventions used by Lobato as a possible wish to publish it as a childish classic book? What sort of direction is taken by Monteiro Lobato, concerning the expectation of his readers? This research is fitted in the set of works from “grupo de pesquisa, Alfabetização, Leitura e Escrita (ALLE) about the investigation of the proceedings taken and practiced by the production pole_, considering the representation that authors and publishers build about the public, to which the work is directed in the methodological perspective supplied by the Cultural History.

Keywords: Adaptation. Orlando Furioso. Monteiro Lobato. Reading. Book.

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SUMÁRIO 1- Considerações Iniciais 12

PARTE I: Apresentação de Ariosto 18 2 – A Itália na Renascença 19 2.1 - Ferrara: corte de Boiardo e de Ariosto 24 2.2 - Ariosto: vida e obra 27 2.3 - A criação do Orlando Furioso 31 2.5.4 - Orlando Furioso: edições realizadas após a morte de Ariosto 36 2.5 - Difusão do Orlando Furioso 39 2.5.1- França 40 2.5.2 - Inglaterra 41 2.5.3 – Espanha 42 2.5.4 – Portugal 50 2.5.5 – Brasil 57

PARTE II: A obra Orlando Furioso de Xavier da Cunha encontrada no CEDAE

3- A trajetória do Orlando Furioso 62 3.1- Das gavetas e dos armários para as mãos do arquivista 63 3.2- O encontro com o Orlando Furioso: eu e o livro 66 4 - A Capa da obra Orlando Furioso 74 4.1- A tipologia das letras 81 5- A editoração da página de rosto do Orlando Furioso 83 5.1- A casa editorial Corazzi e Justino Guedes 86 5.2- O ilustrador: Gustave Doré 89 5.3- O tradutor: Xavier da Cunha 91 5.4- gênero: Romance Cavaleiresco 92

Parte III: Orlando Furioso: seu processo adaptativo

6 - Monteiro Lobato: as adaptações para crianças 96 6.1- Uma proposta de criação de Lobato na obra Orlando Furioso 99 6.2- A organização do trabalho 101 6.3- A transcrição da página de cinco do Orlando Furioso 104 6.4- Procedimento textual: encurtamento 107

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6.4.1- Supressão de parágrafos 108 6.4.2- Supressão de orações, expressões e palavras 111 6.5 - Procedimento textual: remodelação 113 6.5.1- Substituição e atualização da linguagem 113 6.5.2- Acréscimos: operação de reescrita com coerência 118 6.5.3- Invenção e Conservação 120 6.6- Procedimentos tipográficos 122 6.7- Ilustração: escolha e encurtamento 124

7- Considerações finais 133 Referências Bibliográficas 136 Anexo I 142 Anexo II

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1 Considerações Iniciais

De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro. (SABINO, 1999, p.145)

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A obra Orlando Furioso de pertence à tradição literária italiana, tendo sido composta dentro das características do gênero épico1, semelhante à obra Os Lusíadas de Luis Vaz de Camões, poeta da Renascença Portuguesa. As histórias do imperador Carlos Magno, de Orlando e de seus paladinos, de Rugiero e foram descobertas por mim de forma fragmentada: - ora pelas aulas de história no período escolar, ora pelas citações de escritores da literatura brasileira. Na minha infância e adolescência, lia muitas histórias de cavalaria, de imperadores e aquelas que misturavam religiosidade e guerreiros. Entre elas, Os Cavaleiros do Graal, Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, Camelot, a cidade ideal, e as obras de Monteiro Lobato. Gostei muito das viagens de Gulliver, das aventuras de Crusoé, das peripécias de Emília, Narizinho e Pedrinho. Inesquecíveis foram as “desaventuras” de Dom Quixote, narradas pela voz de Dona Benta. Deliciava-me com as aventuras, os desencontros, as batalhas entre heróis e vilões, vividos através do estilo de Lobato. Na juventude, afastei-me completamente das histórias de cavalaria e de Monteiro Lobato. As minhas experiências de leitura adentraram o universo religioso cristão, católico, através da teologia da libertação de Leonardo Boff, Dom Pedro Casaldaglia e outros. As minhas preocupações no campo da leitura eram mais filosóficas e teológicas. Parafraseando Machado de Assis na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas2: unamos agora os pés e saltemos por cima do período do seminário - o qual frequentei por três anos - para esquecermos a morte de minha querida avó, o adoecimento de minha mãe, os problemas econômicos. Aproveitemos para saltar o período da graduação e cheguemos, enfim, em 1995, ano em que iniciei o meu professorado.

1Um poema épico, ou epopéia é um poema heroico narrativo extenso, uma coleção de feitos, de fatos históricos, de um ou de vários indivíduos, reais, lendários ou mitológicos. A epopéia eterniza lendas seculares e tradições ancestrais, preservadas ao longo dos tempos pela tradição oral ou escrita. Os primeiros grandes modelos ocidentais de epopéia são os poemas homéricos a Ilíada e a Odisseia, os quais têm a sua origem nas lendas sobre a guerra de Tróia. A epopéia pertence ao género épico, mas embora tenha fundamentos históricos, não representa os acontecimentos com fidelidade, geralmente reveste os acontecimentos relatados com conceitos morais e atos exemplares que funcionam como modelos de comportamento.

2 Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma obra publicada por Machado de Assis em folhetim no ano de 1880 e em forma de livro em 1881. Nela o narrador-personagem Brás Cubas, no mundo dos mortos, resolve contar a história de sua vida. 13

Como professor de Literatura no ensino médio, reencontrei-me com alguns vultos do passado, entre eles Monteiro Lobato. Foi um reencontro um pouco superficial: o material comercialmente chamado de Objetivo e Anglo apresentava Lobato restrito ao Jeca Tatu, personagem presente em Urupês. A personagem era apresentada primeiramente como a culpada pelo atraso econômico do Brasil, depois vítima do subdesenvolvimento brasileiro e, finalmente, transformada em Zé Brasil, homem consciente de sua injusta realidade social e econômica. Em 2003, ao decidir retomar minha caminhada acadêmica tentando o mestrado, desejava pesquisar autores como Monteiro Lobato, Piaget, Vigotsky, Antônio Candido, Camões, Álvares Azevedo; livros como Dom Quixote, Abelardo e Heloísa ou temas ligados ao cinema, à filosofia, ao teatro, à teologia - entre outros. Nesse mesmo ano, conheci o professor Alexandre Carneiro, do Instituto de Estudos da Linguagem/Unicamp, que me recomendou uma visita ao CEDAE (Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio). Conheci a biblioteca lobatiana e o arquivo Monteiro Lobato. Lá, encontrei cartas inéditas de Lobato, mas também suas pinturas, primeiras edições de suas obras e, entre tantas novidades, o Orlando Furioso traduzido por Xavier da Cunha, em 1895, pela editora Companhia Editora Nacional de Lisboa. Segundo informações de Flávia Carneiro Leão, supervisora do CEDAE, tudo levava a crer que Lobato havia iniciado uma adaptação do Orlando Furioso para as crianças brasileiras. Dom Quixote das crianças, Orlando Furioso, Ludovico Ariosto eram nomes que faziam parte do meu imaginário infantil. Parecia que a voz de Dona Benta conduzia-me novamente às aventuras dos cavaleiros andantes. Diante de vários documentos históricos, senti vontade de dedicar atenção e estudar manuscritos literários. Assim, me vi diante de algumas paixões: adaptação, histórias de cavalaria e Monteiro Lobato. Eu tinha em mãos uma obra - Orlando Furioso - com marcas feitas a lápis, realizadas pelo próprio punho de Lobato. No ano de 2004, com o projeto de mestrado “Adaptação do Orlando Furioso: análise crítica de Lobato”, iniciei os estudos de História e Teoria literária como aluno regular da pós graduação do IEL/Unicamp, sob orientação da professora Marisa Lajolo. No período de 2004 a 2006 fiz várias disciplinas: Tópicos especiais em História I, Crítica I, Seminário de orientação em historiografia literária, Tópicos em história

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VIII, Seminários de orientação em literatura e outras produções culturais I, Grande Autor em Língua Portuguesa, Seminários de orientação em historiografia literária I, A mensagem cinematográfica: problematização e realização, Roteirização: teoria e prática, A visão sincrética no processo de filmagem. Por motivos de natureza diversa, não concluí o mestrado em 2006, prazo limite para o encerramento. Em 2007, elaborei outro projeto intitulado “Pesquisa e análise do livro Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, ed. Lisboa, que se encontra no arquivo Monteiro Lobato, CEDAE, a fim de compreender as interferências de Monteiro Lobato no processo de reescritura e reelaboração da obra, bem como averiguar a possibilidade de realização de uma adaptação”, me submetendo ao processo seletivo para o mestrado na Faculdade de Educação/Unicamp - no grupo Alfabetização, Leitura e Escrita (ALLE). O novo projeto foi elaborado na perspectiva da História Cultural, adotada pelo grupo ALLE - tendo como referencial teórico Roger Chartier, Peter Burke, Michael Certeau. Aprovado na seleção, em 2008, iniciei minha pesquisa com o desejo de entender como uma história tão antiga (século XVI) poderia interessar às crianças e jovens do século XX, assim como investigar as estratégias editoriais e textuais de que Lobato, como escritor e editor, lançou mão para criar e manter este interesse do público. A minha pesquisa se enquadra no conjunto de trabalhos e estudos do ALLE, já concluídos ou em processo, cujas preocupações temáticas se situam no âmbito da leitura e da literatura infantil e juvenil, no que diz respeito à investigação dos procedimentos postos em prática pelo polo da produção, tendo em vista a representação que autores e editores constroem a respeito do público ao qual destinam as obras produzidas. Os estudos de Melo (2004) Ferreira (2006) e outros colaboraram para a compreensão do processo que envolve a produção, circulação e recepção de impressos destinados à escola, especialmente ao leitor infantil. Dentro desses estudos, pode-se citar de Maziero (2006) e o de Magro (2002), a adaptação de obras inicialmente escritas para um público adulto e que, por razões diversas, são transformadas, adequadas e conformadas a uma nova configuração que as torne acessíveis a crianças e jovens. Em busca de possíveis respostas e entendimentos, elaborei alguns caminhos investigativos: a) conhecer e apresentar os leitores deste trabalho, o “ambiente histórico e

15 social” em que aparece a primeira edição de Orlando Furioso, bem como a criação e circulação das edições do Orlando Furioso pelos países da Europa (França, Inglaterra, Espanha e Portugal) e no Brasil; b) focar na edição encontrada no CEDAE, percorrendo pistas sobre sua trajetória até chegar ao centro de Documentação, descrever sua materialidade (capa, página de rosto, número de páginas, etc.); c) investigar os vestígios deixados de forma manuscrita na obra Orlando Furioso - traduzida por Xavier da Cunha para a editora portuguesa Companhia Nacional Editora de Lisboa – de modo a levantar as concepções de leitor infantil e de obra clássica que orientaram Lobato nessas marcações. O trabalho que aqui se apresenta encontra-se dividido em três partes: Na primeira, busco fazer uma contextualização histórico-literária da obra Orlando Furioso, traçando um pouco de seu itinerário pelo mercado literário europeu e brasileiro. Também trago a obra de Matteo Maria Boiardo, Orlando Enamorado, e a de Luigi Pulci, O , obras que possivelmente inspiraram Ariosto na escrita de seu poema épico Orlando Furioso. Na segunda parte, há uma descrição da capa e da página de rosto da edição de Orlando Furioso existente no CEDAE. Imagino a história da editoração da obra Orlando Furioso, traduzida por Xavier da Cunha, a partir dos nomes encontrados nela (capa e página de rosto): editor, ilustrador, tradutor, impressor, mas também dedico-me, um pouco, ao gênero literário ao qual ela pertence, analisando-a quanto ao aspecto tipográfico e outros dados relevantes. A confecção do Orlando Furioso por pessoas encarregadas de produzir, dentro de determinados padrões literários e gráfico-estéticos, uma obra destinada à divulgação comercial, ajuda-nos a entender o projeto editorial e o tipo de leitor do Orlando Furioso - almejado pela Companhia editora Nacional de Lisboa no final do século XIX e inicio do XX. Nessa viagem com Orlando, Rugiero, Bradamante e Angélica, personagens presentes no enredo do Orlando Furioso, também fiquei “louco”. Assim como eles, enfrentei os perigos da floresta, abandonei batalhas e persegui sombras as quais representavam achados e conclusões que não eram o que pareciam ser.

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Desenvolvi um breve estudo sobre a literatura adaptativa de Lobato. Acredito que, mesmo sendo uma breve reflexão, as produções literárias feitas por ele ajudam-me a entender o Lobato escritor e editor, mas também me aproximam do Orlando Furioso, adaptação almejada por ele. Quanto à terceira parte, ela pode ser considerada o foco central de minha pesquisa. Nela fiz um levantamento das intervenções presentes no texto e na ilustração da edição em estudo, indagando: por que essas e não outras? Que intervenções são essas? Que concepção de leitor e de obra literária orientam ou podem ter orientado tais intervenções, em diálogo com o que estaria circulando naquele momento? Como Orlando, que perdeu o siso por amor a Angélica, também, às vezes, deixei que a razão fosse enganada pela emoção e corri atrás de imagens que mostravam a minha paixão por Lobato. Sem ponto final, finalizo parafraseando Fernando Pessoa (ele mesmo), ao brincar com o poeta, cujo coração sofre nas calhas da roda: O poeta é um fingidor finge tão completamente Que chega a fingir que é do Aquilo que deveras sente E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve Mas só a que eles não têm E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração3.

3 Fernando (António Nogueira) Pessoa nasceu em 1888, em Lisboa. Em 1912, publicou seu primeiro artigo, "A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada", na revista A Águia. Em 1914, escreveu os primeiros poemas dos heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, aos quais daria personalidades complexas. Sob o nome de Bernardo Soares, Fernando Pessoa escreveu os fragmentos mais tarde reunidos em O livro do desassossego. No ano seguinte, com escritores como Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro, lançou a revista de poesia de vanguarda Orpheu, marco do modernismo em Portugal e que daria grande projeção ao poeta. O único livro de poesia em português que publicou em vida foi Mensagem (1934), marcado pela visão mística e simbólica da história lusa. Fernando Pessoa morreu em 1935, em Lisboa.

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PARTE I:

APRESENTAÇÃO DE ARIOSTO

Em suma, não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aqueles também complexos a que essa dá ensejo. Tais aspectos variam continuamente, decorrendo daí que cada onda é diferente de outra onda; mas da mesma maneira é verdade que cada onda é igual a outra onda, mesmo quando não imediatamente contígua ou sucessiva; enfim, são formas e seqüências que se repetem, ainda que distribuídas de modo irregular no espaço e no tempo. (CALVINO, 2002, p. 450)

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2-A Itália na Renascença

A primeira parte dessa pesquisa não só busca discorrer sobre o ambiente histórico e social em que aparece a primeira edição do Orlando Furioso, mas também a criação e a circulação desta (Orlando Furioso) pelos países da Europa (Itália, França, Inglaterra, Espanha e Portugal) e no Brasil. De acordo com Peter Burke na obra O Renascimento Italiano: cultura e sociedade na Itália, os séculos XV e XVI, na Itália, caracterizaram-se pelo crescimento de regimes monárquicos que se desenvolvem em quase toda a península. Os novos príncipes constroem Estados regionais em Milão, Roma, Florença, Veneza e Nápoles:

No começo do século XV, a Itália não era uma unidade social, nem cultural, embora o conceito de Itália existisse, e alguns homens educados de outras regiões entendessem a língua toscana. Era simplesmente uma expressão geográfica. (BURKE, 1999, p. 11) Essa nova organização política e social indica que a civilização italiana do Renascimento buscava uma expressão original que lhe fosse própria. O mapa italiano presente ilustra a posição geográfica de cada um dos Estados Regionais (Milão, Florença, Roma, Nápoles e Veneza) nas fronteiras:

maps.google.com.br 28/01/09

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Milão, Roma, Veneza, Florença e Nápoles são cidades cujas experiências históricas e geográficas permitiram a formulação de uma política, ora aventurosa, ora baseada em recuos, ora inspirada em grandes exemplos da Antiguidade. Em Milão, de 1401 a 1508, Francesco Sforza e depois Ludovico, o Mouro, reinam sobre um vasto território, com mais de um milhão de habitantes. Nesse principado, desenvolvem a economia; os humanistas e literatos são protegidos, permitindo, assim, o florescimento da literatura; a agricultura se moderniza e ainda se inicia a organização de uma indústria têxtil, além de manufatura de armas. Já em Nápoles, Afonso V, que assume o poder em 1442, revela-se um monarca autoritário. Fernando I, filho bastardo de Afonso V, seu sucessor, enfrenta e sufoca uma revolta dos senhores feudais e, além disso, tenta limitar os privilégios do clero. Mesmo diante de tantas dificuldades e adversidades, ainda consegue fomentar um desenvolvimento econômico em seu território. Enquanto isso, em Roma, com o Papado já ali instalado em 1443, há uma reorganização administrativa e a imposição da autoridade religiosa sobre as grandes famílias locais. Os papas, durante os séculos XV e XVI, reativam também a política cultural e atraem eruditos, arqueólogos e humanistas em torno dos monumentos históricos. São estabelecidos grupos de debates sobre as artes, notadamente as do período denominado clássico (império romano e grego). Neste período, o surgimento do Estado monárquico, em Veneza, possibilitou o florescimento do comércio, da indústria manufatureira, e a circulação de artistas pela corte. Florença, seguindo as iniciativas da família de Lourenço de Médici, Il Magnífico, não apenas se esforça em controlar o Estado, mas em manter a tradição familiar, orientando a vida cultural florentina, por exemplo, amparando artistas e escritores, ampliando a biblioteca e sustentando expedições que vão à procura de textos antigos. Lourenço de Médici, como patrono das artes em Florença, mantinha em torno de si um grande número de artistas e escritores, entre eles, os mais célebres foram Marsílio Ficino, Landino, Poliziano, Pico della Mirandola e os irmãos Luca e Luigi Pulci. Em todas essas cidades, o desenvolvimento de uma nova economia fortalecida pelo comércio, por uma agricultura mais moderna e pela indústria manufatureira propicia um ambiente cultural e artístico. Artistas de diferentes áreas (música, pintura e literatura) são

20 patrocinados e valorizados. As reflexões de Burke sobre o fazer poético na Itália apontam que:

Havia, porém, poetas de tempo integral que ganhavam a vida com sua ocupação,... esses cantores de histórias ou cantastoire, improvisadores de poesia épica que vagam de corte em corte na Itália do Renascimento, eram sobreviventes de uma cultura que tendemos a associar com as eras heróicas, como a Grécia de Homero. Em outras palavras, a produção de literatura ainda não era uma indústria na Itália do século XV, embora já estivesse chegando a isso em meados do século XVI. (Op. cit., p. 87)

E nas relações com o mecenato as reflexões indicam que:

Primeiramente havia o sistema doméstico: o homem rico recebe um artista ou escritor em sua casa durante alguns anos, dá-lhe alojamento, alimentação e presentes, e espera com isso ter atendidas suas necessidades artísticas e literárias. Segundo, o sistema sob medida: também uma relação pessoal entre o artista ou escritor e seu patrono (“cliente” pode ser um melhor termo), mas uma relação temporária, que dura apenas até a pintura ou o poema ser entregue. Terceiro, o sistema de mercado, no qual o artista ou escritor apresenta algo “já pronto” e tenta vender, seja diretamente ao público seja através de um comerciante. Esse terceiro sistema estava emergindo na Itália do período, embora os dois primeiros tipos fossem dominantes. O quarto e o quinto não existiam ainda: o sistema da academia (controle governamental por meio de uma organização formada por artistas e escritores confiáveis) e o sistema de subvenção (no qual uma fundação mantém os indivíduos criativos, sem se apossar do que produzem. (Op. cit., p.109)

Os artistas valorizam, em suas obras, as lendas heróicas germânicas, as narrativas de Artur e os seus cavaleiros. Luigi Pulci (1432-1484), por exemplo, publicou o Morgante, em italiano Maggiore, poema de cavalaria, a pedido de Lucrécia, mãe de seu mecena.

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Página de rosto retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon

(http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

______4-Na página de rosto acima da obra Morgante, temos na ilustração dois cavaleiros: Orlando à frente e logo atrás Rinaldo, personagens que compuseram o imaginário do mundo medieval.

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A obra Morgante5, de Pulci, é um poema épico composto em 23 cantos, em oitava, e versa em torno de Carlos Magno e seus paladinos – Orlando, Rinaldo, Uliviero (cunhado de Orlando), Arnolfo, (irmão de Rinaldo), Uggiero, traidor, que pactua com os pagãos. Morgante é um gigante que Orlando irá converter para a fé cristã e cujas aventuras compõem grande parte do enredo. Peter Burke analisa a obra de Pulci como uma literatura de persuasão política:

A literatura tinha uma papel potencial de persuasão política, os épicos em latim ou italiano, eram poemas em louvor de governantes por intermédio de seus ancestrais, reais ou imaginários, e de justificativas ao seu governo....Obras históricas, equivalentes em prosa dos poemas épicos, segundo a teoria literária renascentista, eram muitas vezes usadas para propósitos semelhantes... O famoso épico de Luigi Pulci, Morgante (1478), parece ser, entre outras coisas, um apelo por uma cruzada contra os turcos, atividade que o poeta sabidamente apoiava. (Op. cit.,163)

A reflexão apresentada revela que as cortes louvam feitos heroicos de grupos que, ao lado do papa, proclamavam guerra para recuperação de uma propriedade cristã ou em defesa da Cristandade contra inimigos externos ou internos.

______5-Na página de rosto da obra Morgante, pode-se perceber o aparecimento de Orlando e Rinaldo, personagens importantes das canções de gesta e no Orlando Furioso de Ludovico Ariosto, objeto de estudo deste capítulo. As canções de gesta eram poesias épicas que surgiram no raiar da literatura francesa e datam de fins do século XI e início do XII.

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2.1 Ferrara: corte de Boiardo e de Ariosto

Em Ferrara, comuna italiana, localizada próxima de Bolonha, o governador Ercole d‟Este, considerado patrono das artes pelo seu incentivo à literatura, arquitetura e pintura, transformou o poeta Matteo Maria Boiardo em seu ministro e, também, trouxe o jovem Ludovico Ariosto para o seu agregado familiar. Sob sua administração, Ferrara tornara-se uma das principais cidades da Europa, devido ao seu planejamento urbanístico e ao estímulo à produção cultural. No campo literário, o governador, Ercole d‟Este, dá suporte financeiro para traduções dos clássicos gregos e romanos, permitindo que se desenvolva uma poesia de caráter petrarquizante6. Ao mesmo tempo, são incentivados espetáculos na Corte, fazendo renascer o teatro. Pedro Ghirardi (2004, p. 11), em sua análise do Orlando Furioso, faz uma reflexão sobre a época histórico-cultural em que viveu Matteo Maria Boiardo (1441-1494), apresentando-o como descendente de família nobre, portador do estilo humanista e autor da obra-prima (Orlando Enamorado), na cidade de Veneza, no ano de 1486, em três livros, dando prolongamento à obra de Pulci e, ao mesmo tempo, reconstruindo-a. A obra Orlando Enamorado7 é divida em três partes: a primeira versa sobre as aventuras e a causa do enamoramento de Orlando; a segunda começa retratando a ação da empresa africana contra Carlos Magno, mas também ocorre a invenção de Rugiero, terceiro paladino e primogênito da casa D‟Este; e o terceiro livro conta as proezas de e ______6-Poesia petrarquizante está associada a Francesco Petrarca, poeta italiano da renascença italiana. A poesia de Petrarca consiste numa profunda sistematização formal, denominada Soneto (poesia com catorze versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos; seu versos são decassílabos e a rima do primeiro quarteto é semelhante a do segundo); no plano temático traz como tema principal o amor platônico. 7-A página de rosto do Orlando Enamorado apresentada foi vertida para o castelhano por Francisco Garrido de Vilhena em 1581 na cidade de Toledo e impressa pelo comerciante de livros Iuan Rodriguez. A versão circulada na Península Ibérica foi intitulada de Los tres libros de Matheo Maria Boyardo Conde de Scandiano. de outros cavaleiros, a libertação de Orlando e de outros paladinos e a genealogia de Rugiero.

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Página de rosto da Obra Orlando Enamorado de Boiardo retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

Pedro Ghirardi, (Op. cit., p. 15) tece vários comentários sobre a obra Orlando Enamorado, e dentre estes, a apresenta como uma obra que seguia as convenções do patronato italiano, ou seja, a busca de um antepassado ilustre. No Enamorado, Boiardo busca um antepassado para o seu conde e governador Ercole d‟ Este, por meio da figura de , filho de um cavaleiro cristão e de uma dama sarracena. A descendência do conde estará também ligada à de Heitor, personagem da “Ilíada” de Homero, como se pode perceber no movimento narrativo do livro III da obra referida, a qual fora apenas iniciada, uma vez que o falecimento de Boiardo a deixará ininterrupta. Segundo reflexões de Burke (Op. cit., p. 45), na Renascença italiana as obras buscavam para seus personagens históricos uma genealogia ilustre que fizesse os governantes descenderem de um grande herói mitológico ou histórico. Pedro Ghirardi (Op. cit., p. 11), apresenta a obra Enamorado, como uma reconstrução da obra Morgante de Pulci, pois a obra de Boiardo reúne aos temas guerreiros os paladinos carolíngios e a temática arturiana de aventuras amorosas (assunto presente no Morgante) um número bem maior de personagens e acrescenta duas novas figuras: Margutte (o gigante pícaro) e Astarotte (diabo, herege, cortês e sábio), refazendo assim as gestas de Carlos Magno.

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O Orlando Enamorado tempera uma intensa aventura com um ideal cortês, em meio a um mundo sobrenatural e mágico, numa mistura de sonho e realidade (GHIRARDI, Op. cit., p.12). O final do século XV, além de marcar a morte de Boiardo, também é tomado como ponto de virada na história da Itália, na verdade de toda a Europa, ocorrendo a dispersão de artistas e escritores (BURKE, Op. cit., p. 250). Por volta de 1494, o exército francês, sob o comando de Carlos VIII, invade a Península: é o momento em que a França e a Espanha disputam o território italiano, que se torna um grande palco de conflitos. São inúmeros os transtornos políticos e as mudanças de poder, vindo a acarretar problemas econômicos causados igualmente por saques e destruições. Nesse quadro, os artistas sofrem os efeitos da ruptura em relação ao momento de efervescência cultural, até porque, para fazerem frente às invasões, as monarquias se fortalecem belicamente, deixando a arte em segundo plano. Além disso, os salários são baixos e os príncipes já não prestigiam os artistas, que se tornam marginalizados. É nesse contexto de invasões e transformações que Ludovico Ariosto escreve a sua obra Orlando Furioso, resgatando o ambiente cultural que Ferrara já experimentara. As reflexões realizadas por Burke sugerem que as cortes italianas passaram a se organizar de forma diferente, alterando, assim, o papel do artista dentro dessa nova composição social

As cortes eram compostas por centenas de pessoas... essa população cortesã era heterogênea e abrangia desde grandes nobres ocupando postos como condestável, camareiro, mordomo ou mestre de cavalos, até cortesãos menores como valetes, secretários e pajens, até servos como corneteiros, falcoeiros, cozinheiros, barbeiros e jovens cavalariços... Mais difíceis de situar na hierarquia (na verdade eram profissionais de fora), mas geralmente à disposição para entreter o príncipe, estavam seus bobos e anões. A posição dos poetas não deve ter sido muito diferente daqueles que tinham a função de entreter o príncipe. (Op. cit., 251)

As cortes italianas formadas dessa população heterogênea eram também compostas por parentes, amigos, vassalos do senhor, que iam até lá por períodos mais ou menos

26 longos para honrá-lo, aproveitar seus favores e participar de suas diversões. Esses novos participantes davam à corte uma nova configuração.

2.2 Ariosto: vida e obra

Ludovico Ariosto nasceu na província Reggio nell' Emilia, em oito de setembro do ano 1474, filho primogênito de um militar. Após os estudos de Direito e de Letras, como convinha para sua futura carreira, ingressou na corte de Ercole d‟ Este, cidade de Ferrara, em 1497. Quando morreu seu pai, em 1500, ficou sem recursos e, tomando as ordens menores, tornou-se capitão da fortaleza de Canossa. Em 1504, ficou a serviço do cardeal Hipólito d'Este, o qual o encarregaria de diversas embaixadas, sendo algumas delas arriscadas. As relações entre Ludovico Ariosto e o conde Hipólito d‟Este sempre foram conturbadas e, um ano após a publicação do Orlando Furioso, Hipólito d‟Este foi nomeado para uma sede episcopal em Budapeste, onde sua família tinha feudos. O conde exige que Ariosto o acompanhe, mas o escritor se recusa, pois planejara casar-se com Alessandra Benucci8. A recusa obriga Ariosto a deixar a função de artista, tornando-o "gentiluomo di camera" (camarista), permanecendo nessa função entre os anos de 1503 a 1517.

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8- Segundo Margarida Periquito (2007), no capítulo introdutório do Orlando Furioso, Alessandra Benucci era mulher de Tito Strozzi, importante mercador da família dos banqueiros Strozzi, de Florença, mas que moravam em Ferrara, cuja corte freqüentavam, participando dos jantares, bailes e outros divertimentos em que Alessandra era admirada como a mais bela entre as belas. Ariosto conheceu-a, pois, nesse ambiente, e a admiração que ela lhe suscitava transformou-se em enamoramento. Em Junho de 1513, no dia de São João, Ariosto estava em Florença para assistir aos festejos do cardeal Hipólito. Alessandra chegou com o marido para as festas, ambos foram hóspedes da mesma casa. Nesse dia, Ludovico declarou o seu amor à mulher, que exercia sobre ele o fascínio de uma revelação. Inicia-se então, entre eles uma relação secreta, mas que havia de perdurar para sempre. Tito Strozzi morreu repentinamente em 1515, mas, se Alessandra, se casasse outra vez perderia o usufruto dos bens do marido e a tutela dos filhos, que eram seis. Quanto a Ludovico, este não podia renunciar de ânimo leve aos benefícios que adquirira em 1503, ao tomar as ordens menores. Sendo assim, vivia cada um em sua casa, em Ferrara. Só mais tarde, numa data imprecisa entre 1528 e 1530, eles celebraram, secretamente, matrimônio. Nem os cônjuges e nem os poucos amigos que estiveram presentes à cerimônia secreta revelaram tal fato, e Ludovico e Alessandra continuaram a viver separadamente (Apud Periquito, ano 2007, pp. 5- 7). 27

Pedro Ghirardi, ao comentar a aridez do novo emprego, evidencia que Ariosto não renunciou à poesia e à criação artística

São desse período duas comédias que o tornaram um dos maiores nomes do teatro renascentista italiano: Cassaria e I Suppositi. Outras viriam depois, entre as quais Il Negromante. Foi ainda nesse período que o poeta criou sua obra-prima, o Orlando Furioso, cuja primeira edição, com 40 cantos, é de 1516. (Op. cit., 11)

Ariosto publicou poemas épicos, comédia, autos. Foi o poema épico Orlando Furioso que deu fama e glória ao escritor de Ferrara. De acordo com Ghirardi (Op. cit., 13), a preparação do poema levou mais de 10 anos. Em 1507, o poema já estava parcialmente escrito e, em um gesto cortês, Ariosto lê alguns episódios à marquesa de Mântua. Em 1515, Ariosto decide enviar o seu poema Orlando Furioso para impressão. Entregou o manuscrito a Giovanni Mazzoco, de Bondeno (cidade próxima de Ferrara), de cuja tipografia saiu a primeira edição, em abril de 1516. Os gastos do autor, com exceção do papel, foram providos pelo Cardeal Hipólito d‟Este, seu mecena. Hipólito d‟ Este não deu o devido apreço à obra. Em vez de louvores, Ariosto recebeu, dias depois, a seguinte pergunta: “Messer Ludovico, dove mai avete trovatotante corbellerie?” (“Senhor Ludovico, onde é que foi buscar tantos disparates?”) (CASADEI, 1993, p. 32). Embora o cardeal desse pouco valor à obra, a mesma caiu no gosto de outros públicos leitores. Pedro Ghirardi (Op. cit., p. 14) aponta que a obra conheceu um sucesso imediato em todas as cortes italianas, tendo em poucos anos saído da esfera aristocrática e conquistado o público de todos os estratos sociais. Carlos Cordié, na introdução da obra O Cortesão de Baldassare Castiglione (1997, p. nº XXXI), apresenta Ariosto como um perfeito cortesão, que sabia amar com pureza de espírito e ser leal, pois mesmo após ter sido despedido e desalojado pelo conde, ainda mantém a dedicatória a ele nas edições posteriores de Orlando Furioso, a começar pela de 1521, publicada um ano após a morte de seu antigo mecena. Depois de cinco anos, é organizada a segunda edição do Orlando Furioso, feita em fevereiro de 1521 e impressa por Giovan Battista de La Pigna, não apresenta nenhuma

28 alteração em relação ao conteúdo e a quantidade de cantos. Para Margarida Periquito, em sua obra Orlando Furioso (2007, p. 8), essa edição apresenta, porém, enormes melhorias em relação às construções lingüísticas presentes na primeira edição, carregada de marcas renascentistas (proposição, dedicatória, invocação, narração e epílogo) com uma linguagem cheia de regionalismos, fora dos padrões legitimados renascentistas. Em finais de 1521, a cidade de Ferrara era alvo de novas ameaças de guerra por parte do Papa romano. Afonso d‟Este, duque de Ferrara, substituto de Hipólito d‟Este, tomou as seguintes providências: recrutou exércitos, reforçou fortificações e deixou de auxiliar os cortesãos, entre eles Ariosto. Já que o Duque não podia prover-lhe o sustento de suas necessidades, Ariosto pede- lhe o cargo de governador de Garfagnana que, diante das circunstâncias políticas, econômicas e sociais causadas pela guerra contra o papa romano, o duque não tem como negar. A província de Garfagnana era um território nos confins do ducado, perdido no meio das gargantas dos Apeninos, onde os conflitos e o banditismo difundiam-se entre os habitantes. Era uma região que requeria um governador com mão de ferro e apresentava a necessidade de soldados para a composição das forças militares. Burke (Op. cit., p.257), ao refletir sobre as condições sociais e políticas dessa época, afirma: “Muitos dos conflitos políticos da época eram conflitos entre facções rivais, em outras palavras, entre grupos de patronos e dependentes.”. Margarida Periquito, na obra Orlando Furioso, analisa as dificuldades financeiras de Ariosto e revela que os desafios de governar Garfagnana seriam imensos; no entanto, as dificuldades financeiras que Ariosto enfrentava o obrigavam a aceitar, pois os honorários eram generosos:

Ariosto sabia que o cargo era difícil e que não se coadunava com o seu temperamento, e pesava-lhe muito afastar-se de casa e de Alessandra, sua esposa, mas os tempos eram maus e os honorários generosos. Assumiu-o, pois, tendo demonstrado dignidade e firmeza no seu desempenho. Depois de uma viagem de vários dias, chega a Castelnuovo di Garfagnana, onde permaneceu até junho de 1525, fazendo visitas a Ferrara mais ou menos de seis em seis meses, e voltando a partir sempre amargurado pelo afastamento e por não poder levar consigo Alessandra. (Op. Cit.; p.8)

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Em 1525, Ariosto voltou para Ferrara já em condições de se afastar definitivamente das empresas militares e das missões diplomáticas. Torna-se superintendente dos espetáculos da corte de Afonso d‟ Este e a tranquilidade financeira conquistada lhe permite voltar a escrever comédias, peças teatrais e a dar continuidade ao processo de revisão do Orlando Furioso para uma nova edição. Naquela época, um governante que prestigiasse as artes na forma de patronato era valorizado politicamente e demonstrava força. Por isso, mostrar-se na companhia de um grande poeta dava valor político ao governante. Deste modo, Ariosto era frequentemente chamado à corte para conversar com Afonso d‟Este ou para acompanhá-lo publicamente em algum deslocamento. No ano de 1532, onze depois da segunda edição, Ariosto organiza a terceira, enviando-a para a tipografia de Francesco Rosso da Valenza, em Ferrara. Essa nova edição havia sido ampliada em seis cantos, pois a segunda manteve os 40 cantos presentes na primeira. Compreendendo, então, 4842 oitavas, estrofes com 8 versos cada uma, chegando a aproximadamente 40.000 versos e acrescida com novos episódios como os de Olímpia, os do Castelo de Tristão, os de Margonor, os de Leone e, ainda, a menção às personagens ilustres contemporâneas (PERIQUITO, Op. cit., p. 14). A publicação de outras edições além da primeira, a preocupação em ampliar os cantos e torná-los mais atuais com novos personagens no enredo, podem explicar o sucesso que o Orlando Furioso alcançou junto ao público leitor. Pedro Ghirardi (Op. cit., p. 14) revela que essa edição revisada e com novos acréscimos foi a que passou para a posterioridade como uma obra emblemática da cultura do Renascimento. Em 1533, Ariosto morre com 58 anos, vítima de uma inflamação do intestino delgado causada por uma infecção viral ou bacteriana. No dia seguinte ao de sua morte, ao entardecer, o seu corpo foi transportado para o mosteiro de San Benedetto, onde foi sepultado com a maior simplicidade.

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2.3 - A criação do Orlando Furioso

Pedro Ghirardi (Op. cit., p. 13), em sua análise sobre a temática do Orlando Furioso, sugere que ela pode ser divida em três núcleos. O primeiro retrata como protagonista o guerreiro cristão e sobrinho de Carlos Magno, Orlando, que chega à crise da loucura por amor à bela Angélica, princesa oriental. Apresenta também o paladino , primo e companheiro de Orlando, que será transformado em arbusto pela sedutora feiticeira , mas que consegue voltar a ser o que era e salvar Orlando da loucura, voando à Lua para buscar-lhe juízo. O segundo núcleo tem como protagonista Rogério, jovem guerreiro muçulmano, criado pelo velho mago Atlante em um palácio posto no cume de montanhas altíssimas. É namorado da jovem guerreira cristã Bradamante, mas também é seduzido pela perigosa Alcina. No terceiro e último núcleo, Ariosto se concentra nas batalhas entre cristãos e muçulmanos nos tempos de Carlos Magno, século VIII e IX. Sobressaem aqui figuras como a do feroz capitão , que se voltará contra Rogério, e a dos amigos Cloridano e Medoro. A partir da descrição temática feita anteriormente, pode-se perceber que estes núcleos não estão estagnados, mas se relacionam continuamente, de tal modo que a circulação das personagens faz com que todos eles, interpenetrando-se, formem a trama narrativa. Margarida Periquito (Op. cit., p. 14) aponta que, na obra Orlando Furioso, há também episódios picantes e de grande erotismo, que contribuíram para que ela sofresse acusações de licenciosa e imoral até finais do século XVIII. O movimento narrativo do poema Orlando Furioso apresenta como pano de fundo as guerras entre os Mouros que invadiram Paris e Carlos Magno. No enredo, movimentam- se personagens ligadas ao ciclo carolíngio e ao ciclo bretão, todos pertencentes à tradição literária dos romances de cavalaria e das canções de gesta: assuntos que já não faziam mais parte do gosto do período do Renascimento (GHIRARDI, 2004, p. 12).

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Há, também, dentro do movimento narrativo um diálogo entre loucura e razão que pode ser percebido do começo ao fim do poema, já que o enlouquecimento de Orlando se inicia porque ele só quer ver as razões que tem para ser amado por Angélica. Pedro Ghirardi lembra que a loucura mora sempre conosco, mesmo com aqueles que são considerados sensatos, como se pode ver em Orlando que, por amor à Angélica, retorna aos arraiais de França e de Alemanha:

De Angélica formosa enamorado. Ficara Orlando, e por amores seus .Em Tartária, Índia e Média havia deixado inumeráveis e imortais troféus. Ei-lo agora com ela retornando. Ao Ocidente, ao pé dos Pirineus . Aos arraiais de França e de Alemanha. Convocados de Carlos à campanha. (Op. cit., p. 17 e 52)

Essa loucura de Orlando, derivada de sua paixão por Angélica, como ponto central da história, estabelece com a busca de sensatez e equilíbrio, promovida pelas personagens secundárias, uma espécie de jogo de forças, próprio do mundo renascentista (GHIRARDI, p. 15, 17). Michel Pastoureau, em sua obra No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda, capítulo dois (1989, p. 42), informa que, no momento em que Ariosto começa a escrever o Orlando Furioso, o mundo cavaleiresco servia apenas como cenário de fundo para que as figuras exprimissem livremente toda a diversidade e contrastes de sentimentos e comportamentos próprios da natureza humana, sem excluir a nota dissonante da loucura. Essa nova experiência vivida pelas personagens do Orlando Furioso, segundo Ghirardi (Op. cit., p. 20), revela uma mudança de significados, pois Orlando e seus companheiros deixam de ser figuras fechadas, somente interpretáveis pela sensatez do sistema de pensamento medieval, e passam a ser figuras abertas ao diálogo, apresentando, assim, a loucura como possibilidade inerente à condição humana. Giuseppe Petrônio, em sua obra Historia de La Literatura Italiana (1993, p. 273), aponta que a conturbada história da Itália, em especial a do tempo de Ariosto – englobando de modo particular as empresas e os reveses dos governantes de Ferrara – é tema constantemente abordado no poema Orlando Furioso, podendo-se determinar dois planos

32 temporais na narração: o tempo da fábula cavaleiresca e o tempo da história político-militar italiana. O Orlando Furioso exprime uma certa nostalgia por esse mundo perdido (tempo da fábula cavaleiresca), quando, por exemplo, condena as armas de fogo (PERIQUITO, p. 23), ou quando, no final do Canto IX (PERIQUITO, p. 23), Orlando destrói e atira em alto-mar o arcabuz e respectivas munições, revelando-nos que um disparo de espingarda não vale nada se comparado aos belos golpes de espada e à lança de um cavaleiro que luta pelo seu senhor, pela sua dama, pela sua religião, pelos oprimidos, ou apenas para obter a glória. Michel Pastoureau (Op. cit., 42) apresenta a cavalaria como instituição que se implantou no sistema feudal por volta do ano 1000 e uma definição de cavaleiro como todo homem de armas que se submete aos ritos de iniciação específica: a sagração do cavaleiro. Contudo, para ser cavaleiro não basta ter sido ordenado, deve-se também obedecer a certas regras e, sobretudo, seguir um modo de vida particular. E evidencia que os cavaleiros não formam uma classe jurídica, mas uma categoria social que reúne especialistas em combate de cavalaria - o único eficaz até o final do século XIII - e que dispõe dos meios de levar essa existência à parte, que é a vida do cavaleiro. Para os estudiosos sobre a cultura Renascentista: Burke (1999) e Pastoureau (1989), as obras desta época procuravam contar as aventuras dos cavaleiros, criando uma visão aristocrática do mundo e da sociedade para os demais grupos. Tais obras, além de servirem de modelo para os leitores da época, impondo uma certa “maneira de viver”, também proporcionavam uma visão sutil da sociedade em que viviam. A cavalaria não perde a significação em Ariosto, pois, de acordo com Ghirardi (Op. cit., p. 21), ela deixa de ter um sentido restrito, passando a ter um sentido universal: uma fonte criadora de um mundo mítico, que se torna chave para o conhecimento humano. Sendo assim, Ariosto consegue escapar da tentação de reduzir a poesia à celebração de acontecimentos ou valores exaltados pelos padrões de seu momento histórico. As reflexões de Ghirardi (2004) e Periquito (2007), tradutores e estudiosos do Orlando Furioso, afirmam que Ariosto retoma as personagens e as aventuras no momento exato em que Boiardo as deixara; no entanto, dando-lhes um novo movimento que revelou muito mais fluidez e elegância.

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Já para José da Costa Miranda (2001, p. 15), no artigo Camões de visita aos poetas épico-cavaleirescos italianos renascentistas, a crença de que a história de Orlando Furioso se assentava na continuação do Orlando Enamorado de Boiardo, como romance de cavalaria, deve ser repensada, pois, mesmo que a escrita do Orlando Furioso inicie com a derrota do Duque Namo na guerra de , assunto interrompido no capítulo IX do livro III de Orlando Enamorado de Boiardo, não garante que haja seguido, em realidade, o pensamento inicial. De acordo com José Miranda, Ariosto desenvolve, com o Furioso, um sentido que talvez não estivesse previsto no Enamorado. A denúncia de certas manifestações de loucura coletiva, às quais a corte não deixaria de ser sensível, de se sentir, talvez, beliscada. Os estudos comparativos entre os dois Orlandos (Enamorado e Furioso) realizado por Miranda (Op.cit., p. 5), apontam diferença, que não se pode negar, no problema de denúncia crucial da loucura como elemento central dos poemas. Em o Enamorado, a novidade reside no fato de a paixão amorosa, com todas as suas consequências nocivas se apoderar de Orlando que, impotente perante as artimanhas da voluptuosa e sedutora Angélica, deixa-se envolver nas teias de um invencível amor que lhe rouba toda a serenidade e o deixa incapaz de continuar à frente dos exércitos cristãos como seu chefe modelar e paladino. O Amor era mais poderoso que a constância de ânimo e, no caso, que o juramento de fidelidade feito à fé cristã. Já em o Furioso (sem qualquer esquema de desenvolvimento a ser seguido), Ariosto encaminhou-se, num primeiro tempo, para se alcandorar a uma situação de agreste aproveitamento da desequilibrada mente de Orlando. Nos primeiros versos da terceira edição do Orlando Furioso, percebe-se que Ariosto se propõe a revelar o que ainda ninguém revelou, isto é, mostrar alguém que sempre foi tido por sensato, mas que agora fora dominado pela loucura: “Direi de Orlando”, simultaneamente, O que nunca foi dito em prosa ou rima: por amor ficou furioso e demente...” (PERIQUITO, p. 40) A demência, de acordo com Ghirardi (Op. cit., 21), como tema central, está presente desde o título da obra até o quadragésimo sexto canto; todavia, é no vigésimo terceiro canto que Ariosto apresenta ao leitor o enlouquecimento de Orlando. No artigo publicado na

34 revista Estudos Italianos em Portugal, Margarida Periquito faz uma descrição poetizada do canto XXIII:

Orlando vagueia dois dias ao acaso por bosques cerrados em busca de Mandricardo, a fim de terminar um duelo interrompido. A busca é vã, e, nas suas deambulações, Orlando subitamente encontra-se num lugar aprazível, em que a erva tenra cresce junto a um riacho de águas cristalinas, onde há pastores e rebanhos e, sob um monte, uma gruta. Decide deter-se e repousar. Porém, passeando o olhar em volta, apercebe-se de que nas árvores há palavras, nomes e monogramas gravados. Um olhar mais apurado revela-lhe a caligrafia de Angélica, que bem conhece. Mas logo procura explicações aleatórias para aquilo que tem diante dos olhos, e que se recusa a aceitar. Tenta por todos os modos alterar a realidade e enganar-se a si próprio. Chega por fim perto da gruta e desmonta. Era aquele o lugar onde Angélica e Medoro se abrigavam e se amavam nas horas mais quentes do dia, encontrando-se coberto de inscrições, tanto no interior quanto no exterior. (PERIQUITO, 2008, P. 15)

Para Margarida Periquito (2007, p. 13), as novidades, que Orlando Furioso trazia em relação ao Enamorado, não estariam somente co-relacionadas com as personagens, mas também com uma preocupação em burilar a linguagem, pois seu antecessor (Boiardo) apresentava uma linguagem áspera, rude e pouco maleável. O aspecto formal do poema apresenta um modelo de estrofe chamado oitava rima, o qual possibilita fluidez, musicalidade e um ritmo propulsor, dando à narrativa um movimento incessante. Pedro Ghirardi, ao comentar sobre a estruturação do Orlando Furioso, sugere que:

A estrutura formal do poema traduz o equilíbrio alcançado pelo artesão que tem domínio matemático dos recursos métricos e que os sabe tornar inteiramente dóceis à expressão das exuberantes imagens da fantasia. É na construção primorosa do verso e da estrofe que começa o diálogo entre razão e loucura. (Op. cit., p. 25)

Para Ghirardi (2004) e Periquito (2007), a versificação do poema é estruturada em torno dos decassílabos (hendecassílabos para os italianos), entre os quais se costumam distinguir os de acentuação dupla ou heróicos, e os de acentuação tripla ou sáficos; porém, pode-se encontrar um verso de acentuação tripla, chamado de anapésico, que apresenta 35 acentos na sétima sílaba, diferenciando-se do sáfico, que apresenta na oitava. A utilização do decassílabo anapésico em Orlando Furioso confere aos versos uma surpreendente irregularidade, permitindo assim, no plano métrico, a permanência do tema central, ou seja, a do constante diálogo entre razão e loucura. As edições do Orlando Furioso são apresentadas como se fossem uma continuidade ou intertextualidade das edições do Orlando Enamorado. Essa criação, recriação, ampliação de uma obra em relação à outra podem ser mais amplamente estudadas; no entanto, o que interessa aqui é que a obra se mantém em diferentes edições e projetos editoriais através dos autores distintos durante os séculos, o que sugere a intertextualidade entre eles.

2.4 Orlando Furioso: edições realizadas a após a morte de Ariosto

No período de dez anos, após a morte de Ariosto, na Itália, são feitas quatro edições do Orlando Furioso. De acordo com o catálogo informativo da Biblioteca Nazionale Centrale di Roma (http://www.bncrm.librari.beniculturali.it – 07/01/2009), em 1535 ocorreu uma edição póstuma do Orlando Furioso na casa editorial de Luigi Torti em Veneza, no dia 21 de março, tendo como impressor Aluise Torti. Essa edição fora feita em moldura retangular, apresentando informações biográficas e notas explicativas de Agnelli – Ravegnani. No início do mês de janeiro do ano de 1536, contendo 246 páginas, ocorre uma nova edição com o acréscimo do retrato de Ariosto, na mesma cidade de Veneza, por Nicolo d‟ Aristotile, na casa de Niccolo Zoppino. Após três anos, mudando somente a casa editorial, agora de Augustino de Bindoni,1539, ocorre a reedição do Orlando Furioso. A editora de Pedro Nicolini de Sabbio, em 1540, reimprime em Veneza, mantendo as informações e notas de Agnelli -Ravegnani, o Orlando Furioso. Em 1542, a casa editorial de Gabriele Giolito, uma das principais tipografias de Veneza, edita o Orlando Furioso, com intervenções (acréscimo e supressão) no movimento textual da edição de 1532. Dolce, autor, editor e tradutor veneziano, inclui, além do retrato

36 de Ariosto, acrescido na edição de 1536, informações e comentários sobre a vida do autor e de sua obra. As edições do Orlando Furioso, ocorridas após o falecimento de seu respectivo autor, revelam intervenções de seus editores e tradutores não só na organização física (materialidade) da obra, mas também no próprio movimento textual ao acrescentar comentários e notas.

Página de rosto retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009) 37

A edição do Orlando Furioso de Gabriele Giolito de 1542, cuja página de rosto foi apresentada anteriormente, segundo María de las Nieves Muñiz9, informação obtida na página da internet - projeto Bóscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009), será aquela que servirá como ponto de partida para as traduções inglesas, francesas e espanholas.

2.5 - Difusão do Orlando Furioso

A obra Orlando Furioso inspirou inúmeras outras obras do período quinhentista, segundo Pedro Ghirardi (Op. cit., p. 23), como La Hermosura de Angélica, de Lopes de Vega, e Farie Queene, de Spenser, com também inúmeros autores como Camões, Cervantes, escritor de novelas de cavalaria, e outros. No período artístico-literário denominado Barroco, século XVII, o poema de Ariosto serviu de inspiração para muitas óperas, entre as quais Orlando Furioso de Antonio Vivaldi; e Alcina, e Orlando de Handel. As traduções do Orlando Furioso para o Inglês, Francês, Espanhol e Português, que serão apresentadas, são aquelas que, no decorrer do tempo, tiveram na sua organização editorial intervenções significativas tanto no aspecto físico (materialidade) quanto na temática ou, ainda, se foram consideradas como úteis para um escritor no processo de tradução de um idioma para o outro.

______9- María de las Nieves Muñiz é professora da Universidade de Barcelona e idealizadora do projeto Bóscon que tem como objetivo a catalogação e sistematização da obras italianas que circularam pela Espanha na Renascença.

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2.5.1 França

Pedro Ghirardi (Op. cit., p. 27), ao comentar a difusão do Orlando Furioso pelo território europeu, afirma que em 1543, dez anos depois da morte de Ariosto, aparecia uma tradução francesa anônima. Em relação à tradução francesa anônima, a informação mais próxima até agora, que temos, conforme pesquisa no catálogo da Bibliothèque Nationale de France (http://www.bnf.fr – 07/01/2009), é de uma versão realizada pela editora Lyon, em 1582, em verso, tendo como tradutor Estienne Michel. Durante o século XIX, houve várias traduções importantes para a língua francesa, conforme catálogo da Bibliothèque Nationale de France (07/01/2009. Por volta de 1815, em Avignone – Paris, ocorre a versão do impressor Fr. Seguin Ainé; Em 1822, também em Paris, a versão da editora Nepveu. Essa edição, traduzida pelo conde de Tressan, apresentava notas, resumos e uma mesa decorada com gravuras, após os desenhos do deputado Colin. Na cidade parisiense, no ano de 1834, ocorre a tradução do Barão Frenilly, pela casa impressora de Michaud. Essa foi acompanhada de uma visão geral da poesia italiana e um trecho do Orlando Enamorado de Boiardo. No ano de 1839, em Paris, o escritor e tradutor Mazuy verte o Orlando Furioso para o francês, acrescentando a biografia de Ariosto. Em 1844, na mesma cidade, Madelaine verte o Orlando para o idioma francês a partir do original italiano, impresso pela editora de Giolito no ano de 1542. Em 1849, cinco anos depois, a editora Charpentier, na cidade parisiense, publica o poema de Ariosto com tradução de Pankouche. A tradução de Desseteaux, pela editora M. Lévy Frères, na mesma cidade, ocorre no ano de 1865. Depois de aproximadamente dez anos, 1876, a editora Garnier verterá o Orlando de Ariosto para o Francês com introdução e notas de Hippeau. Essa edição francesa é a mais próxima da edição do Orlando Furioso existente no CEDAE, a qual foi editada em 1895 em Portugal pela Companhia Editora Nacional de Lisboa e traduzida por Xavier da Cunha.

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2.5.2 Inglaterra

No final do século XVI, conforme Ghirardi (Op. cit., p. 27), era publicada a tradução inglesa de John Harington, impressa por Richard Field para John Norton Simon Waterson em 1591. A página de rosto, que pertence à edição inglesa de 1607, apresenta, ao lado do título Orlando Furioso, os seguintes dizeres: versão heróica de John Haryngton,político e escritor da corte britânica e, logo abaixo, o retrato de Haryngton feito por W. Rogers.

A partir dessa tradução de John Haryngton, outros tradutores, ingleses, até mesmo na contemporaneidade, reeditaram o Orlando Furioso.

Página de rosto retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

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2.5.3 Península Ibérica – Espanha

O escritor, poeta e tradutor espanhol Jerónimo de Urrea, ao verter o Orlando Furioso para o castelhano, semelhante a Ludovico Dolce, na edição de Giolito, apresenta intervenções no campo semântico e estrutural, de acordo com informação obtida no projeto Bóscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009). Pedro Ghirardi (Op. cit., p. 27) comenta que essa tradução de Jerónimo de Urrea, além de contribuir para consagrar na Península Ibérica as oitavas de Ariosto, como metro épico, tornou muito conhecidos diversos episódios do Orlando Furioso. A história editorial do Orlando Furioso de Urrea será apresentada, pelas páginas de rosto, como resultado das múltiplas impressões realizadas no decorrer do século XVI. Segundo Muñiz (op. cit., p. 9), a primeira impressão do Orlando Furioso saiu em 25 de agosto de 1549, na cidade de Amberes, pelo impressor Martin Nucio, um editor atento às traduções de obras italianas.

Página de rosto retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

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As edições castelhanas apresentadas a seguir foram impressas por diferentes casas editoriais, de acordo com o projeto Bóscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009), no entanto, tiveram como texto para impressão a tradução de Jerónimo de Urrea de 1549, ora na sua íntegra, ora com algumas modificações. E todas as edições foram dedicadas ao príncipe Dom Philippe, rei da Espanha. A composição das páginas de rosto do Orlando Furioso, em língua castelhana, no século XVI, apresenta, respectivamente, o título da obra, depois a quem ela foi dedicada e por último quem a editou. Na sua feitura, podem-se ver ilustrações que, necessariamente, não estão relacionadas com o enredo. De acordo com Roger Chartier (1994 p. 55),em sua obra A ordem dos livros: leitores, autores, e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, capítulo três, as diversas e diferentes edições de uma obra, durante o século XVI, trazem semelhanças no formato editorial. Em 1550, na cidade de Lyon, a casa editorial de Mathias Bonhomme, Guillaume Roville imprime novamente o Orlando Furioso com algumas modificações destinadas a atrair o público: novas xilogravuras, inspiradas livremente na edição de Giolito, serão feitas para ilustrar o texto. Os cantos II e III se dividem para terem uma equivalência com os 46 do original. As interpretações morais de Lodovico Dolce, tradutor italiano, apresentadas na introdução da edição italiana de 1549 foram antepostas a cada canto.

Página de rosto retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

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Em 1553, o impressor Giolito, com a ajuda do editor espanhol Afonso de Ulloa, apresenta ao público italiano, que mora na Espanha, uma reedição do Orlando Furioso, de Jerónimo de Urrea, de 1549, com os argumentos de moralidade, incluindo um vocabulário bilíngue de 32 páginas e uma regra de fonética castelhana para o leitor interessado em aprender o espanhol.

Página de rosto retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

A edição de Lyon de 1550, não só ignorou as erratas declaradas na de 1549, como acrescentou outras. Esses mesmos descuidos, sucessivamente, ocorreram na de Amberes, 1554, e na de Salamanca, 1578.

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Página de rosto, edição de Amberes de 1554, retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

Página de rosto, edição de Salamanca de 1578, retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

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Em 1583, Guillerme Milis edita, na cidade de Bilbao, uma tradução espanhola do Orlando Furioso, a partir de uma versão em língua toscana. Nessa tradução, o editor também apresenta as intervenções de diferentes autores, entre eles: Lodovico Dolce, Pigna e Fausto da Longiano.

Página de rosto retirada do Catálogo de las traducciones españolas de obras italianas (hasta 1939): Projeto Boscon (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

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Conforme informação presente no projeto Bóscon

La versión de Urrea no fue sólo la indiscutible vía de acceso al poema de Ariosto en España, sino un producto naturalizado en su cultura durante buena parte del Siglo de Oro. De su rápida conversión en “vulgata” da idea el saqueo a que fue sometida por los autores de romances y de glosas, que le hurtaron estancias enteras, las resumieron y parafrasearon, o mezclaron el plagio y la invención con traducciones de (prueba ulterior de la subordinación del original a la copia incluso entre lectores que tenían a su alcance la fuente primaria). (http://www.ub.edu/boscan - 28/01/2009)

No ano de 1878, houve uma edição importante do Orlando Furioso pela editora Ilustracion. Essa edição, traduzida pelo poeta espanhol, Dom Francisco J. Orellana, teve como ilustrador o famoso pintor Gustave Doré. Essas ilustrações (pinturas) são importantes, pois elas estarão presentes no Orlando traduzido pelo Xavier da Cunha em 1895. A tradução do Orlando Furioso feita por Dom Francisco J. Orellana é a primeira a receber ilustrações (pintura). As traduções do Orlando Furioso, antes, eram compostas pelo processo técnico denominado xilogravuras10. Abaixo, reprodução da capa de rosto do Orlando Furioso de Francisco J. Orellana, primeira obra a conter as ilustrações de Doré dentro e fora do texto.

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10- A xilogravura é um processo de gravação em relevo, iniciado no século XVI, que utiliza a madeira como matriz e possibilita a reprodução da imagem gravada sobre papel ou outro suporte adequado.

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Página de rosto da obra Orlando Furioso editora Ilustracion 1883 Barcelona presente na Biblioteca Miguel Cervantes

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2.5.4 Portugal

Pedro Ghirardi (Op. cit., p.36) revela que os portugueses do século XVI e até meados do XIX leram o Orlando Furioso, não somente por meio da tradução de Jerónimo de Urrea (1549), mas também por outras castelhanas, como a de Augusto de Burgos (Barcelona, 1846), em silvas, e a de Vicente de Medina y Hernández, em oitavas11 (Barcelona, 1878). Ou no italiano e, até mesmo, por intermédio da tradução francesa. Todas as traduções portuguesas do Orlando Furioso são do século XIX, algumas das quais hoje perdidas. Em 1844, João Vieira Caldas verte o Orlando de Ariosto para a Língua Portuguesa, produzindo uma versão em versos livres12 (GHIRARDI, 2004, p. 41). Margarida Periquito (op. cit., p. 26) aponta que, em 1889, Gomes Leal, poeta, jornalista e escritor da obra Claridade do Sul, publica pela editora Bertrand uma versão em língua portuguesa do Canto I do Orlando Furioso, a partir de uma versão francesa da época13.

______11-Como o nome já sugere, a oitava é composta de oito versos, ou oito linhas ou duas quadras. Em relação ao Orlando Furioso de Vicente de Medina y Hernández temos um modelo de oitavas que seguem o padrão clássico ( estrofes com oito versos cada uma. E os versos são decassílabos. 12- versos livres não possuem restrição métrica nem em rima ou nas estrofes. São versos introduzidos pelo modernismo e não se baseiam em critérios predefinidos, mas em decisões que o poeta toma intuitivamente ou em normas por ele criadas. 13- As edições francesas, realizadas durante o século XIX, apresentadas anteriormente, sugerem uma possibilidade do Orlando Furioso de Gomes de Leal ter sido traduzido a partir de uma delas.

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catálogo da editora Frenesi (07/01/2009)

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Somente em 1895 (PERIQUITO, Op. cit., p. 26) é que o Orlando Furioso foi publicado no espaço lusitano na íntegra, tendo como tradutor Xavier da Cunha, importante escritor de obras clássicas, como por exemplo, a de Júlio Verne (1828-1905). Xavier da Cunha, ao verter o poema épico Orlando Furioso para o idioma português, foi o primeiro a transformar a composição poética de Ariosto em um texto narrativo. Os outros tradutores também produziram intervenções; no entanto, mantiveram- no no estilo estrutural poético (oitavas, versos livres e silvas). De acordo com Ghiardi (Op. cit., 43) a tradução em prosa do Orlando retira o diálogo entre a razão (a estrutura formal - poema composto em oitavas -) e a loucura vivida pelas personagens (temática do poema). Com o propósito de exemplificar as afirmações de Ghirardi será transcrita uma cena do Orlando Furioso que retrata o episódio da batalha de Paris, do canto XIV. É a cena em que os mouros erguem escadas, tentando tomar de assalto a cidade, onde se concentram as tropas de Carlos Magno. No esforço de escalar as muralhas, os guerreiros se amontoam a cada degrau, incitados pelo rei de Argel, o feroz Rodomante, que nem ao poder divino se curva. Em italiano: Sono appoggiate a um tempo Mille scale, Che non han men di dua per ogni grado. Spinge il second quell ch‟ innanzisale; Che „l terzo lui ontar fa suo mal grado. Chi per virtù, chi per paura vale; Convien ch‟ ognun per forza entri nel guado; Che qualunque s‟ adagi, Il re d‟ Algiere, Rodomonte crudele, uccide o fere. Ognun dunque si sforza di salire Tra Il fuoco e Le ruine in su Le mura. Ma tutti gli altri guardano, se aprire Vegggiano passo ove sai poça cura: Sol Rodomonte sprezza di venire,

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Se non dove La via meno è sicura. Dove nel caso disperato e rio Gli altri fan voti, egli bestemmia Dio14

Em Xavier da Cunha: Num dado momento encostam os Mouros às muralhas não menos de mil escadas, em cada degrau das quais há simultaneamente lugar para dois homens. Os que marcham na dianteira vão sendo empurrados pelos que seguem na retaguarda. Ali não há que hesitar: quer seja a coragem que os anima, quer seja o medo que os obriga, forçoso lhes é afrontarem o perigo, sob pena de ali mesmo os ferir ou matar a própria mão do rei de Argel, a mão do feroz Rodomante. Trepar ao alto das muralhas, passando incólume por entre o fogo e os destroços, é a mira dos assaltantes. Com essa mira, sorri-lhes a idéia de verem se por algum ponto mais acessível ou menos defendido poderão realizar o assalto naquela perigosa ascensão. Rodomante é o único a estabelecer exceção neste sentimento geral. Empresa que não seja arriscadíssima, só lhe inspira desdéns. Em casos de aperto e desespero, quando todos os outros imploram a proteção divina, Rodomonte blasfema o nome de Deus!

A análise de Pedro Ghirardi (Op. cit., p.43) permite observar que Ariosto não diz que nos degraus da escada “há simultaneamente lugar para dois homens”. O que diz, isto sim, é que em cada degrau estão dois homens, ou até mais “ Che non há men di dua per ogni grado”. Assim, a tradução cria outra imagem diferente da original, apresentando degraus amplos onde Ariosto nos faz ver aglomeração. Xavier cria nesse trecho, uma outra possibilidade de leitura.

______14- O exemplo apresentado em italiano foi retirado da edição de Orlando Furioso publicada em Milão no ano de 1954.

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O descuido da métrica original, de acordo com Ghirardi (Op. cit., p. 45), acaba sempre por prejudicar o próprio conteúdo de informações. No trecho citado, o esquema de rimas traduz o diálogo entre razão e loucura ao alternar rimas pobres e ricas. José Paulo Paes (2005, p.13) em seu artigo O tradutor e a formação do leitor de poesia orienta que a tradução deve deixar transparecer, sem prejuízo de sua vernaculidade, um certo grau de estranheza que dê a perceber a condição estrangeira do original. Nesse sentido é sempre recomendável que as traduções sejam publicadas em edições bilíngues. Se o poema Orlando Furioso apresenta um conteúdo de informações que devem ser preservadas, é preciso lembrar que também se devem preservar as informações relacionadas ao trabalho artístico. A tradução de Xavier da Cunha de 1895 circulou durante todo o século XX ao lado das espanholas e francesas. As versões italianas desde o século XVI também circularam em Portugal. Somente no ano de 2007, ocorre uma tradução, seguindo uma estruturação formal que diferenciasse da de Xavier da Cunha, em verso do Orlando Furioso de Ariosto com introdução, notas e resumo de Margarida Periquito, professora, intérprete e tradutora. A obra foi editada pela editora portuguesa Cavalo de Ferro. Na capa não há nenhuma referência ao nome da tradutora, e do ilustrador Gustave Doré15. Apresenta, somente, o nome da obra Orlando Furioso e de seu escritor Ludovico Ariosto. A primeira edição saiu em novembro de 2007, tendo 752 páginas e aproximadamente 450 ilustrações de Doré. A cena que ilustra a capa é a passagem do canto XXXIV, isto é, a viagem de Astolfo indo à Lua com São João Evangelista. Margarida Periquito (2007), em sua análise, comenta que essa viagem interplanetária tem como objetivo recuperar o juízo de Orlando, pois na Lua encontram-se tudo quanto os homens perdem na Terra.

______15-A capa do Orlando Furioso de Margarida Periquito, diferencia-se da capa de Xavier da Cunha, publicada no ano de 1895, pois a de Cunha traz em evidência o nome do Ilustrador Gustave Doré, a do tradutor e indica o gênero literário ao qual a obra pertence.

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Entre uma imensa parafernália de coisas perdidas pelos homens ao longo dos séculos, Astolfo encontra a ampola que contém o siso do paladino; e, de passagem, cai-lhe sob o olhar uma ampola com o seu nome, que contém uma parte do seu juízo que ele nunca se apercebera de ter perdido. Isabel de Almeida, em seu artigo publicado pela revista Estudos Italianos em Portugal, ao referir-se à tradução de Margarida Periquito, comenta que nenhum leitor luso poderá alegar que não domina o italiano para fugir à leitura do romance ferrarês (Ludovico Ariosto):

Gostaria que a edição fosse bilíngüe, facilitando a comparação imediata do italiano e da versão portuguesa, que, com todo o seu esmero, não o substitui... Margarida Periquito que nos oferece, em moldes formais análogos aos que Ariosto abraçou, uma transposição e, com ela, uma interpretação de Orlando Furioso; e assim chegaremos ao canto de Ariosto, rei de um xadrez que a edição portuguesa de 2007 nos incita a jogar. (ALMEIDA, 2008, p. 34)

Cada tradução traz consigo a marca do tempo e da História, ou seja, mudanças (temáticas, formais e de suporte de apresentação da obra) provocadas pelo tradutor, editor, ilustrador na intenção de atualizá-la aos olhos de um outro leitor.

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(www.cavalodeferro.com.br – 07/01/2009)

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2.5.5 - Brasil

Não teria essa obra (Orlando Furioso) circulado no Brasil pelos caminhos oficiais? Em português? A obra Os Caminhos dos livros, de Márcia Abreu (2003), que procura estudar a circulação dos livros no Brasil - colônia entre 1769 e 1826, como atividade regulada pelos censores, aos quais competiam conceder licença para o envio de livros de Portugal para a colônia, não faz nenhuma menção ao Orlando, de Ariosto. Pedro Ghirardi (2004) em suas reflexões sobre a presença do Orlando Furioso no Brasil informa que, durante o período colonial, o escritor Ariosto foi recebido pelos leitores como autor de sátiras e de poema épico. A obra Orlando Furioso é citada na literatura brasileira como uma inspiradora de outras. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, em seu livro Capítulos de literatura Colonial (1991, p. 109) aponta a personagem Olímpia do Orlando Furioso como uma das inspiradoras da Moema de Santa Rita Durão16. De acordo com Pedro Ghirardi (2004), a obra Orlando Furioso, durante o período colonial, circulou em língua francesa e italiana. Artur Motta, em sua obra História da literatura brasileira (1930), revela que, durante o século XVIII, houve uma tradução de Ariosto feita por Miguel Eugênio da Silva Mascarenhas, poeta mineiro, participante da inconfidência mineira, porém não esclarece se a tradução seria do Orlando, ou das sátiras e nem se foi feita em verso. Silvestre Pinheiro Ferreira, em sua obra Preleções Filosóficas (1970), apresenta Ariosto na lista dos poetas do século XIX, cuja leitura é indispensável a todo homem do século XIX, que quer formar o gosto sobre os diferentes gêneros da poesia.

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16- Frei Santa Rita Durão é escritor brasileiro do século XVIII. Um dos seguidores do estilo clássico camoniano. Escreveu em 1781 o poema épico Caramuru. O poema relata o amor da índia Moema e do branco conquistador Diogo Álvares Correia.

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As indagações de Margarida Periquito (Op. cit., p. 22) sobre a circulação do Orlando durante o século XIX, no Brasil, indicam que as primeiras traduções do Orlando Furioso foram a de Salustiano da Silva Alves de Araujo Susano, em prosa, publicada no Rio de Janeiro em 1833; e uma, em oitavas, de alguns episódios soltos, em 1843, feita por Luiz Vicente De – Simoni, incluída numa antologia de poetas italianos. Pedro Ghirardi (Op. cit., p 38) sugere a possibilidade de haver traços da leitura de Ariosto em alguns romances do século XIX na história da literatura brasileira. Para dar exemplo, aponta a obra A Luneta Mágica, de Joaquim Manuel de Macedo, ao comparar a luneta com o anel mágico, utilizado pela personagem Bradamante com o propósito de desmascarar a feiticeira Alcina, que impede a todo custo que as personagens parem para pensar se estão felizes ou não. O crítico literário Araripe Junior (1848-1911) em seu livro Obra crítica, escrita nas últimas décadas do século XIX, faz uma menção ao Orlando Furioso ao tentar estabelecer uma relação entre a razão equilibrada do escritor e a loucura poetizada em sua obra:

[...] o gênio do autor do Orlando Furioso uniu e sistematizou tudo isto, realizando um poema sem igual, em que as enargueias, em perfeita continuidade, dilataram- se ao infinito, transformaram-se em todos os sentidos, e como um caleidoscópio, ou como pensamento em toda liberdade cerebral, produziam os mais surpreendentes efeitos, acomodando-se a todas as exigências de uma alma irrequieta. (1958, vol.II, pp. 30-31)

Pedro Ghirardi (Op. cit., p. 39), ao analisar os comentários de Araripe Junior, indica que a maioria das referências de Araripe ao Orlando Furioso remonta ao final da década de 1880, ou seja, há alguns anos anteriores à publicação de Xavier da Cunha. A obra Dom Casmurro (1899, p. 49), de Machado de Assis, apresenta uma indicação ao poeta Ariosto na passagem em que descreve a imaginária chegada do imperador à casa de D. Glória, onde salva Bentinho de separar-se da amada Capitu. A suposta visita é criação do próprio Bentinho, cuja fantasia chega a vencer a do poeta: “Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que as das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus.”.

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Ao comentar a presença do nome de Ariosto na obra Dom Casmurro, Pedro Ghirardi (Op. cit., 39) chega a sugerir a possibilidade de Machado de Assis ter lido o Orlando Furioso traduzido por Xavier da Cunha, devido à proximidade das duas obras. Segundo Pedro Ghirardi (Op. cit., p.42), nas primeiras décadas do século XX, houve uma tradução dos seguintes episódios do Orlando Furioso “Angélica e ” e “Cloridano e Medoro”, feita pelo poeta De-Simoni. Os episódios vêm precedidos de ligeira notícia biográfica do poeta. Essa tradução faz parte de uma coletânea intitulada Biblioteca Internacional de Obras Célebres, obra composta por vinte e quatro volumes, publicada pela sociedade Internacional (Lisboa, Rio de Janeiro, São Paulo, Londres, Paris). E, em 1944, em São Paulo, as Edições Cultura editam o Orlando de Xavier da Cunha em dois volumes, num formato de 10 cm por 17 cm, contendo 662 páginas, com notas e apresentação; no entanto, sem as ilustrações de Doré. Essa edição pertence à série Clássica Universal – “Os Mestres do Pensamento”. O escritor e crítico literário, Otto Maria Carpeaux, em 1947, em sua obra História da Literatura Ocidental, faz um breve comentário sobre o Orlando Furioso, tentando estabelecer uma relação entre a forma como foi escrito e aquilo que ele se propõe a dizer. No ano de 1980, a editora Tecnoprint publica uma coletânea intitulada Clássicos Jackson e nela inclui o episódio do Orlando Furioso “Encontro de Angélica com Sacripante”, traduzido pelo poeta De-Simoni. Periquito (Op. cit.,p. 23) informa que, em 2002, pela Ateliê Editorial foi publicada no Brasil uma tradução parcial, em rima, do Orlando, respeitando a métrica original das oitavas de Ariosto. A tradução de Pedro Garcez Ghirardi, professor de Literatura italiana na Universidade de São Paulo, foi composta pelos oito primeiros cantos e mais alguns episódios soltos ( Canto XXXIV (As harpias na Itália – Astolfo na lua), Canto XXXV (Quem roubou o juízo de Ariosto – O outro lado da História), Canto XLIII (A taça dos maridos traídos), Canto XLVI (O navio de Ariosto) ). Ghirardi também elaborou as notas e a introdução.

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www.atelie.com.br – 07/01/2009

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2° Parte: A obra orlando furioso encontrada no CEDAE

É neste aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis. (CALVINO, 1979, p. 45)

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3 - A trajetória do Orlando Furioso de Lobato

Antes de apresentar os aspectos que compõem a materialidade tipográfica (capa, tipo de papel, página de rosto, número de páginas, entre outros) e os vestígios deixados por Monteiro Lobato de forma manuscrita na edição de 1895 de Orlando Furioso, traduzida por Xavier da Cunha, realizada pela Companhia Editora Nacional de Lisboa, é relevante debruçar sobre algumas indagações: Qual o caminho percorrido pela obra (Orlando Furioso) até ser catalogada como manuscrito literário17 pelo CEDAE (Centro de Documentação Alexandre Eulálio), ou seja, como ela chegou ao CEDAE? Carlo Ginzburg, na obra Sinais: raízes de um paradigma indiciário, orienta que “esses detalhes aparentemente marginais e irrelevantes são formas essenciais de acesso a uma determinada realidade e que esses detalhes é que podem dar a chave para redes de significados sociais e psicológicos mais profundos e inacessíveis.” (2004, p.17).

______17-António Cândido em sua obra Noções de análise histórico-literário (2005, p. 23) aponta dois tipos de manuscritos: Autógrafo: aquele que é feito de letra de mão pelo próprio escritor e o Apógrafo: aquele que é traslado, isto é, cópia de um escrito original. Em relação ao Orlando Furioso de Lobato temos um manuscrito autógrafo, pois Lobato, a lápis, impingiu marcas de modificações (acréscimos, alterações, deslocamentos...)

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3.1- Das gavetas e dos armários para as mãos do arquivista

De acordo com nota informativa, presente especificamente no arquivo Monteiro Lobato e na biblioteca Lobatiana, localizada no Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio – CEDAE, em maio de 1999, a Dra. Marisa P. Lajolo dirigiu-se ao referido Centro de Documentação para propor a realização de um evento em torno das comemorações dos cinqüenta anos da morte do escritor José Bento Monteiro Lobato. Na ocasião, sua orientanda, Cilza Carla Bignotto, aluna de pós-graduação em Teoria Literária do IEL, havia localizado, em Santos, uma coleção de livros, folhetos e periódicos de e sobre Monteiro Lobato, que foi adquirida pelo CEDAE com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP e da Unicamp. Por ocasião da incorporação de tal acervo à Universidade, a presença dos herdeiros de Monteiro Lobato (Sra. Joyce Lobato Campos e Sr. Jorge Kornbluh) à cerimônia permitiu a negociação acerca da transferência também da documentação do escritor, que se encontrava em posse dos seus herdeiros. Esta negociação chegou a bom termo no final de 2001 (05/12/2001), com a documentação sendo oficialmente incorporada ao CEDAE, órgão vinculado ao Instituto de Estudos da Linguagem, IEL. O processo de negociação entre Unicamp e os familiares de Monteiro Lobato em relação ao acervo particular do autor de “Urupês” durou quase dois anos. Segundo Flávia Carneiro Leão, supervisora do CEDAE, é um acordo de comodato, com promessa de doação. Uma cláusula do contrato determina que, se em cinco anos os documentos não estiverem organizados, os familiares terão autorização para retomá-los. (Edição nº 33 10/04/2002 – jornal da Unicamp - online 03 de janeiro de 2009); no entanto, há uma promessa de que, se o acordo for cumprido, o restante da herança será doado à Unicamp. De acordo com Joyce Campos Kornbluh, neta de Monteiro Lobato, a documentação e os pertencentes de Lobato que ficaram ainda em suas mãos são: algumas fotos, a mobília da fazenda Buquira, herdada por Lobato em 1911, algumas aquarelas e alguns livros

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Fiquei com seis aquarelas, que me lembram coisas. A de uma torre da igreja de Campos do Jordão, outra que mostra um urubu secando as asas em cima de um telhado. Esta ficou comigo porque houve um episódio em São José dos Campos com meu avô, que me marcou. Fomos ao mercado e ele me comprou uma fieira de lambaris – aquela armação de bambu, redonda, onde os peixes ficam espetados. Ele amarrou uma cordinha e eu vim puxando pela terra, como se fosse um carrinho. Nisso fui atacada por um bando de urubus, que queriam meus peixinhos. Meu avô morria de rir, foi realmente uma cena muito engraçada. Os urubus tentavam voar, puxavam de um lado e eu do outro. E não é que eles ganharam? Foi o maior escândalo. Chorei, chorei e ganhei um pedaço de rapadura para chupar. Fiquei também com alguns álbuns e espero que, até a minha morte, um dos herdeiros se interesse em ficar com eles. Até agora, ninguém foi ver. (Edição nº 33 10/04/2002 – jornal da Unicamp - online 03 de janeiro de 2009)

A neta de Monteiro Lobato, em entrevista ao jornal da Unicamp em abril de 2002, conta que toda a documentação transferida para o CEDAE estava em São Paulo, na casa de Maria Pureza Lobato, esposa de Monteiro Lobato. Com a morte da esposa, em 1958, todos os documentos ficaram com a filha mais nova, Ruth Monteiro Lobato, que faleceu em 1972, passando então para Martha Lobato Campos, mãe de Joyce Campos Kornbluh:

“Meu pai chamou o Jorge, meu marido, para dar uma mão, porque ele já estava aposentado. Aí quando acabou a família, porque a família foi acabando, o Jorge, quando tinha um tempinho, ia ajudando. Ele orientava, ele é ótimo em contratos, e eu fui ajudando na parte artística”. (Edição nº 40 - 25/3/2004 – sinpro SP online 06 de outubro de 2008)

Com a morte de Jurandyr Ubirajara Campos, pai de Joyce Campos Kornbluh, toda a documentação que estava em posse dele, da tia e da mãe passaram para ela: “Era muita coisa. Realmente, eu enfiei num lugar, fechei a porta e nunca mais olhei.”(Edição nº 33 10/04/2002 – jornal da Unicamp - online 03 de janeiro de 2009). Segundo informações do Jornal da Unicamp, a documentação doada pela família de Lobato em maio de 2001 constitui-se de: Convite de casamento de Monteiro Lobato com Maria Pureza da Natividade, em 28 de março de 1906; Cartas de amor trocadas com Purezinha, como ele chamava a mulher; Carta de Oswald de Andrade, mostrando a proximidade entre ele e Lobato; Cartas de escritores que tiveram obras editadas por Lobato, como a de

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Chrysanthémi, feminista da década de 20; Cartas de Érico Veríssimo, admirador de Lobato; Cartas de Belmont, ilustrador de grande parte das obras do escritor; Aquarelas, nanquins, desenhos; Fotos de Purezinha; Edição de “O Minotauro” corrigida a lápis pelo escritor (há páginas inteiras canceladas por ele e, na capa, uma pequena indicação: “revisto por Monteiro Lobato”; Originais de contos sobre Pedrinho; Cartas com ilustrações (Lobato sempre fazia para Purezinha um desenho do local onde se encontrava); Livros da biblioteca pessoal, obras com dedicatórias, como a de Olavo Bilac; Foto da festa de formatura da neta Joyce Campos, em São Paulo, na qual foi encenado o “Sítio do Picapau Amarelo”, em 1940; O primeiro desenho do Saci, feito por Lobato; Fotos da campanha do petróleo; Reproduções de ilustrações em que são retratados o Visconde de Tremembé, avô de Lobato, e Maria Belmira de França, a avó viscondessa; Desenho feito por Lobato ainda menino, com lápis de cor; Foto de um ex-escravo da Fazenda Buquira, herdada em 1911 por Lobato, depois da morte do Visconde de Tremembé; Pintura reproduzindo a filha Marta ainda criança; Carta escrita a Purezinha na solitária, em papel de pão, durante o Estado Novo; Correspondências trocadas com Mário de Andrade; A biblioteca do escritor. A listagem do material e suas embalagens que foram depositadas no CEDAE, não apresentam a Obra Orlando Furioso de Ludovico Ariosto, traduzido por Xavier da Cunha em 1895 pela Companhia Editora Nacional de Lisboa e ilustrado pelo artista Gustavo Doré, como manuscrito literário, mas como um volume que pertence à biblioteca do escritor. O Orlando, de Xavier da Cunha, foi catalogado, depois, como produção intelectual de Lobato, com o título, atribuído, Adaptação de Orlando Furioso de Luigi Ariosto, apresentando data de registro de 1947 e ao lado dela (data) um ponto de interrogação. No Orlando Furioso, traduzido por Xavier da Cunha, pode se perceber marcas, vestígios e intervenções do escritor e editor Lobato. O escritor e pesquisador Robert Darton na obra O Beijo de Lamourrette revela que “os livros se recusam a ficar confinados dentro de limites pré-determinados, eles não respeitam os limites organizacionais.” (1990, p. 124). Na verdade eles são censurados de diversas maneiras: pela estante (aberta ou fechada) em que se encontra o livro, pela seção da biblioteca, ou do arquivo, em que foi catalogado, pelas noções de privilégio das salas reservadas e das coleções especiais, por diretrizes oficiais baseadas no que a sociedade julga “adequado” ou “valioso”, por regras burocráticas cujas justificativas perdem-se no

63 calabouço do tempo, por questões de orçamento, volume e disponibilidade, por questões de ética e de gosto dos bibliotecários e arquivistas dão forma ao acervo. Marisa Lajolo, em seu artigo Monteiro Lobato e Dom Quixote: viajantes nos caminhos de leitura (2006, p. 7), faz uma breve indicação sobre a presença do volume Orlando Furioso de Ariosto, com a caligrafia de Lobato, no acervo lobatiano e sugere a hipótese de ele (Lobato) ter iniciado a adaptação da obra. De fato, ao folhear as páginas da obra e ler também a correspondência escrita por Lobato, facilmente conclui-se que a letra é da mesma pessoa. As marcas deixadas pela mão de Lobato no volume de Xavier da Cunha (Ginzburg, 2004) são indícios, vestígios que relacionados entre si e com outras informações, permite- nos formar uma imagem una e coerente, isto é construir significados e pensar sobre o significado desta obra neste acervo (CEDAE).

3.2- O encontro com o Orlando Furioso: eu e o livro

Estive por diversas vezes no CEDAE em busca do livro Orlando Furioso, de Ariosto, traduzido por Xavier da Cunha em 1895. Encontros premeditados, agendados, esperados. Entre preencher o formulário de solicitação para consultá-lo e recebê-lo pelas mãos do funcionário, são criadas expectativas. O que novo, de novo, posso encontrar ainda não visto ou não registrado? O que ajustar, completar, confirmar do já visto e registrado? Quanta vezes estarei, com ele, manuseando-o com o cuidado que ele merece para não danificá-lo? Ponho as luvas dadas também pelo funcionário e o levo para a mesa. Eu, em silêncio, observo e me surpreendo mais uma vez com o volume dele. Elegantemente, ele se (ex) põe a minha exploração. É um livro de tamanho incomum em relação aos editados atualmente. De formato largo aproximadamente 39 cm por 30 cm e pesado. São, portanto, mais de 717 páginas. As ilustrações são feitas sem a identificação das páginas. O livro exige que eu o segure com as duas mãos e que seja manuseado de forma pousada na mesa. Não é um livro que se segure de forma vertical, à altura dos nossos olhos.

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Grande, majestoso, não é uma edição de baixo custo. O papel em que foi confeccionado é o branco brilhante, de espessura meio grossa. No corpo da obra, as páginas, que foram inteiramente ilustradas, apresentam papel de seda, protegendo a ilustração. Passo os dedos no dorso/lombada de mais ou menos 5 cm, e sinto os fiapos de pano esgarçados com o tempo. Páginas coladas, costuradas e abraçadas por esta capa dura. Na lombada o nome da Obra. Quando abro o livro, folhas rajadas em tons esverdeados e amarelos, cobrem, protegem-no. A página seguinte, em tom alaranjado, cobre toda a primeira página. Rasgada, pelo manuseio e pelo tempo, leva-me a pensar que este pode ter sido adquirido por Lobato já usado ou que teve um percurso agitado!? Outros leitores o manusearam, além de Lobato? Quantos e quais leitores (se) foram? Quantos meses, anos, ele permaneceu fechado? Por quantos e quais lugares foi levado e “deixado”? Tento estabelecer conexões, a inventar histórias, a associar um fragmento rememorado a um outro. Na segunda página, amarelada pelo tempo, anotações feitas à caneta por Lobato:

“Luiz Ariosto - Reggio – Itália 1474 - 1533”. Monteiro Lobato indica a cidade e o país em que nasceu Ariosto, a data de nascimento e morte. No entanto, troca o nome de Ludovico por Luiz. Talvez seja um erro de Lobato? Será que Lobato confundiu com outro escritor italiano? Ou por que o nome Ludovico vem de Luigi que se aproxima na língua portuguesa de Luiz? Viro mais uma página também amarelada, outras marcas mais escuras de “bolor” e tenho, do lado esquerdo, um selo da editora Companhia Nacional de Lisboa e do lado direito, o início da história de Orlando Furioso. Não há um prefácio, estimulando uma relação explicativa histórico-literária. As biografias do autor e do tradutor não são

65 apresentadas. A terceira página marcada por manchas de bolor, aspecto envelhecido, nos surpreende com uma dedicatória ao Jurandyr. Assinada e datada por Lobato com os seguintes dizeres: “Ao Jurandyr nas vésperas da minha ida p: a Argentina Monteiro Lobato 2.6.946”. Por que esta obra que pertence ao fundo Monteiro Lobato é dedicada a uma outra pessoa? Teria sido presenteada por Lobato, e depois ele teria pedido de volta? Joyce Lobato Campos ao entregar os documentos referentes ao Lobato, seu avô, teria, sem perceber, entregue uma obra da biblioteca de seu pai, Jurandyr Ubirajara de Campos ? Jurandyr Ubirajara Campos nasceu em São Paulo no dia 07 de fevereiro de 1903 e veio a falecer em 21 de junho de 1972. Tornou-se genro de Lobato, casando-se com Martha Monteiro Lobato. Jurandyr trabalhou no New York Times, foi ilustrador do Almanaque Biotônico Fontoura e ilustrou alguns livros de Monteiro Lobato no ano de 1935, por exemplo, Viagem ao Céu. De acordo com os catálogos da editora Brasiliense (apud Saccheta, 1997, p. 353), no decorrer dos anos de 1940 a 1945 Lobato entregou nas mãos de seu genro, Jurandir Ubirajara Campos, a coleção completa de suas Obras infantis para que as ilustrasse. Cassiano Nunes, em sua obra Monteiro Lobato: o editor no Brasil (2000, p. 25), informa que Lobato, depois de ter concluído a revisão de suas Obras completas, em 1946, pede ao seu genro, Jurandyr, que acompanhe o processo de editoração que será realizado pela editora Brasiliense. Talvez Lobato quisesse incorporar o Orlando nas Obras Completas? Será que Lobato, diante do desejo de viajar o mais rápido para a Argentina18, não entregou nas mãos de Jurandyr o compromisso de editoração do Orlando Furioso para os leitores brasileiros? No entanto, sua obra completa saí, em 1946, publicada pela Editora Brasiliense, sem o Orlando Furioso. Em 1947, Lobato regressa da Argentina e vem a falecer no dia 04 de julho de 1948.

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18- Desde 1941, quando é perseguido pelo DOPS. Lobato já havia manifestado o desejo de ir para a Argentina. Em 1946, Lobato, já recuperado da operação e sem mais esperanças no Brasil, achando que por aqui tudo andava podre e que seriam necessárias inúmeras gerações para reparar o mal feito ao país, com a ditadura do Estado Novo, o escritor pensa em exilar-se. A Argentina agora é uma ideia fixa.

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No manuseio rápido, (Cuidado para não estragar!), vejo muitas intervenções feitas, tanto no texto verbal quanto nas ilustrações, por Lobato, especialmente nas primeiras 42 páginas. São intervenções circulares ao lado do texto parecem indicar trechos importantes, riscos em perpendiculares indicando possíveis cortes, páginas inteiras riscadas, como por exemplo, da 31 a 33, provavelmente seriam excluídas em uma possível publicação lobatiana. A obra foi escrita numa composição – texto em prosa – e incluída na categoria gênero: romance cavaleiresco, substituindo o tom poético de Ariosto pela narrativa (prosa). Informação que obtive muito tempo depois quando me encontrei com a análise do Orlando Furioso feita por Pedro Ghirardi. Cada capítulo iniciado e finalizado é emoldurado por imagem. Uma abertura pictórica do que será narrado, ou resumo do que já aconteceu. Essas imagens e parecem orientar o leitor para a compreensão do texto que abaixo seguirá. Uma espécie de resumo. Acompanhando o texto verbal há várias imagens (ilustrações) que ocupam lugares diferentes na página (em cima, embaixo, ao lado) e de tamanhos também distintos (ocupando toda a página, ou meia página, ou apenas acompanhando o texto). As imagens que ocupam a página inteira são separadas por um papel de seda. A tradução, no entanto, apresenta erros crassos de revisão e de impressão, alguns apontados na antepenúltima página da obra e outros ignorados pelo revisor, mas percebidos pela leitura criteriosa de Monteiro Lobato quando, na página 467, ele escreve um resumo das páginas 469 e 470 que não foram impressas. O resumo de Lobato20, no corpus literário do Orlando Furioso, permite-nos pensar que Lobato, por meio de outra obra, já havia lido o Orlando Furioso. Que obra seria? Que edição? Será que leu em português? Em espanhol? Em inglês? Em francês? Em italiano?

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20- Transcrição do resumo feito por Lobato entre as páginas 469 e 470 na obra Orlando Furioso, traduzida por Xavier da Cunha: Aqui falta a folha (469/470) que trata da apresentação do rei Astolpho, homem de grande beleza – de Jocundo, outro rapaz bonito, que acaba de se casar e de seu irmão fausto. O rei Astolpho sabendo do casamento de Jocundo, faz-lhe presente de terras e para conhecel-o convida-o a visitar o seu reino. Penhorado com presente prepara-se Jocundo para fazer a viagem, e a bisca da mulher se põe a lastimar...

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Imagem da página 467 da obra Orlando Furioso, traduzida por Xavier da Cunha em 1865 pela Companhia Editora Nacional de Lisboa. Esta obra pertence ao arquivo CEDAE, responsável pela organização e sistematização dos escritos (ativos e passivos) de Monteiro Lobato.

Há, ainda, outras formas de intervenção, pode-se dizer outros vestígios de Lobato no texto de Xavier da Cunha, como por exemplo em alguns parágrafos tem-se a marca de um “x”. Talvez marcas de leitura, ou escolhas de parágrafos com o propósito de dar continuação aos quatro primeiros capítulos. As últimas páginas escritas trazem a Errata e o Collocação que indica as páginas onde se encontra as ilustrações de Gustave Doré.

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Depois são as páginas em branco amareladas pelo tempo, coladas com fita crepe a cobrir o fechamento da obra, como as primeiras o fizeram na abertura. A capa, a de trás, estampa uma imagem que remete a dois cavaleiros com armaduras medievais. Talvez Orlando e Rinaldo. E um brasão em sua magnitude. A capa amarronzada dá um aspecto de sujo, de envelhecido. Fecho o livro. Ao olhar para o lado contrário à lombada, vejo que as páginas assim fechadas, juntas, ganham um acabamento em tom dourado. Uma descoberta nova.

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Despeço-me mais uma vez dele. O que importa é ter estado com ele naquele momento. Em volta o silêncio e o vazio da sala. Eu e o livro. Devolvo-o para a mesma pessoa que me entregou e debruço o último olhar sobre a capa. Não foi um olhar de adeus, de alívio! As inquietações continuam a me incomodar! Quem são as personagens (pessoas) que possivelmente a folhearam, além de Lobato? Quem são as pessoas (personagens) destacadas na capa e na página de rosto? O que faziam no momento em que o livro foi publicado? Quem é a pessoa para quem Lobato dedica este exemplar? Lembro-me das falas do narrador-personagem dom, Casmurro de Machado de Assis, após ter terminado a reconstrução da casa onde viveu a infância: “Aí vindes outra vez, inquietas sombras...? (ASSIS, 1999, p. 15)

4 – Capa do Orlando Furioso

A qualidade da capa salta aos olhos. Edição sofisticada, capa dura, lombada larga, gasta pelo tempo, com bordas amassadas. Para Cláudio Ferlauto (2002, p.52) a capa do livro consiste na proteção do volume e na identificação do conteúdo; costuma-se atribuir à imagem da capa a parte principal, os atributos primordiais do livro. A capa de cor alaranjada, com tons amarelados, sugere fogo, chamas. Talvez padrão estético literário da época. No centro dela, a cor amarelada, efeito dourado, dá um efeito de profundidade, talvez de mistério. É uma capa que remete o leitor há um tempo distante dos que viveram no século XIX e XX. A capa traz monstros do imaginário do século XV e XVI, por exemplo, uma serpente de cauda, um castelo, ao fundo, no meio da névoa, uma mulher presa a uma pedra, um hipogrifo sobrevoando. O que significa essa capa no enredo do livro? De que mundo a obra trata? Esses protocolos de leitura, por meio da imagem da capa, sugerem ao leitor uma forma de ler este obra? Logo abaixo, é apresentada a capa do Orlando Furioso – traduzida por Xavier da Cunha e editada pela Companhia editora Nacional de Lisboa. Obra presente no Fundo Monteiro Lobato – CEDAE- IEL – Unicamp.

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Capa do Orlando Furioso, traduzida por Xavier da Cunha, 1895

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A ilustração da capa pertence ao conjunto de ilustrações realizadas por Gustave Doré no Orlando Furioso. Nela (ilustração) vemos, no lado esquerdo, Angélica acorrentada a um rochedo, Ela está desamparada, perdida em lugar desconhecido. Gustave Doré apresenta Angélica, no primeiro plano, nua e sensual, de costas para o monstro. É possível pensar que a nudez e a sensualidade de Angélica são realçadas pelas curvas e pela delicadeza de sua pele. Embaixo, sob os pés dela (Angélica) o mar revolto e espumante. O monstro marinho aparece de corpo inteiro, ocupando quase todo o espaço inferior com sua cauda, mostrando sua enorme língua e seus dentes ameaçadores. Atrás do rochedo, à direita, nota-se a presença do herói, Rogério, montado em seu hipogrifo (animal alado), sobrevoando o mar, que com sua lança, em diagonal, busca afastar o monstro marinho de Angélica. Há uma Atmosfera sombria, sem grandes contrastes cromáticos, com uma paisagem ao fundo (castelo) e uma grande mancha escura à esquerda, ocupando mais da metade do fundo da cena. O que parece, por parte do ilustrador, um desejo de concentrar a cena nos três personagens, destacando-os, por meio da luminosidade e do tratamento minucioso, sobre o fundo marrom escuro, pouco definido. A ilustração de Gustave Doré escolhida para compor a capa da obra Orlando Furioso, provavelmente foi construída a partir da relação entre os capítulos VIII e X da obra respectiva. Nesse momento, ocorre um jogo de antecipação, faz-se um convite ao leitor. Nesses capítulos temos Angélica sendo raptada pelo monge Atlante e levada para a ilha de Ebuda, para servir de alimento para o monstro marinho, e a sua fuga (fuga de Angélica) ajudada por Rogério, montado no hipogrifo, que antes pertencia ao mago Atlante. A região de Ebuda está localizada ao oeste do mar de Tramontana, além da Irlanda. É um lugar de escassa gente. Conta-se que nesta ilha o rei mandou matar a própria filha, uma moça formosa, pois esta foi seduzida por Proteu, uma serpente marinha com asas, e acabou grávida de (Proteu). Quando Proteu, senhor e rei do mar, ficou sabendo que sua amada e seu filho, antes de nascer, foram mortos pelo rei, convoca s monstros (orca, focas e outros animais marinhos) para atacarem a população. Muralhas são erguidas por toda parte em busca de proteção. Pessoas dia e noite carregam armas. As lavouras são

74 desamparadas. Então um oráculo propõe que seria preciso achar uma donzela com a mesma formosura daquela que fora morta e que esta seja oferecida junto à praia, a Proteu, para que cessassem as punições. E assim donzelas eram oferecidas com o objetivo de acalmar Proteu. E ele devorava-as vorazmente com ânsia de sempre querer mais.

(books.google.com.br/books?isbn=8574800759 (20/05/2010)

Para estabelecer uma relação intertextual, há ao lado do capítuloVIII uma xilogravura de página inteira feita por Doré, ilustrando a temática de Rogério salvando Angélica.

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lIustração de Gustave Doré presente no interior da obra Orlando Furioso - traduzida por Xavier da Cunha, 1895

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A posição das personagens nessa xilogravura em relação às personagens da capa é de ordem invertida: Angélica está localizada no lado direito, enquanto Rugiero o lado esquerdo. Há uma proximidade maior de Rugiero com o monstro marinho, na capa ele sobrevoa, enquanto na xilogravura ele luta com o monstro. Angélica é apresentada em nu frontal. Além de estar interligada com o conteúdo da obra, a xilogravura de Doré estabelece uma relação semântica e pictórica com a pintura Rogério livra Angélica de Jean Auguste Dominique Ingres (1780-1863,) realizada em 1819. Nela pode se ver cena do Orlando Furioso, presente no capítulo X, em que Rugiero, montado no Hipogrifo, salva Angélica do monstro marinho.

www.rositour.it/.../Ingres.htm

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A forma como Doré ilustra a capa e produz a xilogravura é muito próxima à pintura de Ingres, possibilitando aproximações na forma de ver ler a obra de Ariosto.A temática Angélica acorrentada é um tema do século XVI, assim como o equivalente clássico, Perseu libertando Andrômeda21. Angélica e Andrômeda são donzelas capturadas, presas a rochedos e salvas por heróis. Abaixo, apresentamos a pintura de Gustave Doré, ilustrando o clássico Perseu libertando Andrômeda

"Andrômeda" litografia, 35 x 22,2 cm presente na Escola Nacional de Belas Artes, em São Paulo

21-Perseu, o lendário fundador de Micenas, depois de ter derrotado medusa, criatura monstruosa alada, que tinha cabelos de serpente e um olhar que transformava as pessoas em pedra, sobrevoa em seu cavalo alado a costa da Etiópia e vê abaixo uma linda princesa atada numa rocha. Esta era Andrômeda, cuja fútil mãe Cassiopéia tinha incorrido na ira de Posídon ao espalhar que era mais bonita do que as filhas do deus do mar, Nereu. Para puni-la, Posídon enviou um monstro marinho para devastar o reino; apenas poderia ser parado se recebesse a oferenda da filha da rainha, Andrômeda, que foi assim colocada na orla marítima para esperar o terrível destino. Perseu apaixonou-se imediatamente, matou o monstro marinho e libertou a princesa. Os pais dela, em júbilo, ofereceram Andrômeda como esposa a Perseu, e os dois seguiram na jornada para Sérifo.

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A pintura que Doré faz para ilustrar o clássico Perseu e Andrômeda, apresenta a mesma temática de Rogério e Angélica; no entanto, no aspecto pictórico, há vários nuances que possibilitam semelhanças e diferenças em relação à capa. A xilogravura feita para Perseu e Andrômeda são muito próximas da ilustração presente no capítulo X, por exemplo, Andrômeda apresenta-se em nu frontal, Perseu ataca o monstro marinho pelo lado direito.

4.21 – A tipografia das letras

Segundo Paulo Heitlinger22 ( http://tipografos.net/tipos/egipcios-1.html ), a partir de 1800 ocorreu uma explosão de letras novas – caixas altas e baixas, outras profusamente decoradas com sombreados ou arabescos, com motivos antropomórficos ou vegetais. No século XIX, já não são exclusivamente os tipógrafos (como era nos séculos anteriores, desde Gutenberg) os profissionais que faziam letras, agora são os artistas gráficos que criam letras novas – mais grossas, mais imponentes, mais largas, mais contrastadas. Mas os novos desenhos de letras já não estão condicionados pelo rigor técnico da gravura de punções; imprime-se por litografia, por exemplo, uma técnica que permite lançar as letras de modo livre e artístico, usando pincéis. Os pintores de tabuletas – importante classe profissional do século XIX – começaram a ratificar as elegantíssimas, mas demasiadamente frágeis letras neoclassicistas (Bodoni, Didot, Walbaum) que para uma tabuleta, não ofereciam boa visibilidade e muito menos facilidade de execução.

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22- No dia 11 de junho de 2010, Paulo Heitlinger, envia para mim, por meio de e-mail, uma breve análise da capa : são letras desenhadas à mão, não penso que seja uma fonte. Em todo caso, será uma variante de letra gótica, muito fantasiosa, pois mistura formas de letras góticas com unciais. Deixe-me comentar que deve ser uma edição muito especulativa, «popular», pois acharam oportuno por uma capa em estilo gótico- medieval para um tema que é renascentista (depois da Idade Média).

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Estas dificuldades levaram os pintores de tabuletas a alargar os traços das letras e a alterar as pastilhas – quer eliminando-as radicalmente, quer dando-lhes um traço massivo e retangular. O essencial era que as novas letras oferecessem excelente visibilidade e que pudessem ser facilmente escaladas a grandes dimensões, a tamanhos totalmente desconhecidos na impressão de livros. O novo tipo de letra é, mais que tudo, uma letra comercial. O comércio e a publicidade penetram violentamente no universo tipográfico. As serifas-grossas são letras cem por cento vocacionadas para a publicidade. A sua missão é impactar, chamar a atenção do consumidor – se necessário, em altos brados! Na obra Orlando Furioso, os desenhos de letras que compõem a capa aproximam-se especialmente de dois tipos de letras: a gótica rotunda e a romana. O nome da obra foi dividido em duas partes e escrito na cor preta em posição diagonal. A palavra Orlando, escrita em caixa alta, está acima da pedra onde Angélica está acorrentada, e a palavra Furioso, escrita em caixa baixa, está próxima ao corpo dela (Angélica). Tanto a palavra Orlando quanto Furioso aproximam-se da letra gótica rotunda. Um tipo de fonte tipográfica mais grossa, mais imponente, mais larga, mais contrastada. Um estilo parecido com aquele realizado em obras sagradas. Uma letra que valoriza cada palavra individualmente e tende a ter maior peso e presença para os olhos. Chamando a atenção, já que parece mais limpa. A letra O maiúscula da palavra Orlando é feita com um desenho ao fundo. Um desenho que possibilita imaginar uma cabeça descarnada, uma caveira. Essa imagem povoa o universo gótico. O sobrenome do autor vem grafado em caixa alto no frontispício em formato que também se aproxima do gótico. O nome da editora “Companhia Editora Nacional de Lisboa” segue uma formatação de fonte parecida com a utilizada na escrita do sobrenome do autor e é grafada envolta do rabo do dragão. Entre as palavras Orlando e Furioso, aparece o nome do ilustrador com abreviação “G” e o sobrenome “Doré” em caixa alta, permitindo pensar no formato de uma assinatura, pois ao mesmo tempo que estamos diante de uma capa de livro também temos a sensação de estarmos diante de uma tela pictórica.

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5 – A Editoração da página de rosto do Orlando Furioso

Na página de rosto do Orlando Furioso de Xavier da Cunha há, respectivamente, na perspectiva vertical, o nome do escritor, Ariosto, em vermelho; o nome da obra, Orlando Furioso, na cor preta e em negrito e a letra O maiúscula da palavra Orlando funde-se ao brasão da editora; o gênero literário a que pertence a obra, Romance Cavaleiresco, na cor preta; o nome do tradutor, Xavier da Cunha, em vermelho; o do ilustrador, Gustave Doré, também em vermelho; o da editora na cor preta e, no final, o nome dos proprietários em vermelho. Cores, formas, letras dispostas para produzir efeitos estéticos no leitor. Essas marcas tipográficas indicam o quê? Quem são essas pessoas nomeadas neste lugar? Destaque? Destacam com maior força o quê? O diferente? O consagrado? Cláudio Ferlauto (2002) em suas reflexões sobre a arte tipográfica permite pensar que a alternância na cor vermelha e preta na composição dos caracteres tipológicos da página de rosto do Orlando apresenta um propósito editorial e mercadológico. O título, nome da obra grafada com letras bem maiores, por exemplo, em relação ao nome de Ariosto, possibilita pensar que a obra já construiu um gosto e uma tradição na recepção de um público. A obra era mais conhecida, e, portanto, será por meio dele (título) que a editora buscará seduzir o leitor de Ariosto. Roger Chartier orienta

que os livros não são de modo nenhum escritos, são manufaturados por escribas e outros artesãos, por mecânicos e outros engenheiros, e por impressoras e outras máquinas. E continua, os dispositivos que resultam da passagem a livro ou a impresso, produzidos pela decisão editorial ou pelo trabalho da oficina, tendo em vista leitores ou leituras que podem não estar de modo nenhum em conformidade com os pretendidos pelo autor, no momento da criação da obra. (Op. cit., 126)

Robert Darton (1990, p. 169), ao falar das análises feitas pelos bibliográficos, aponta que a disposição tipográfica de um texto pode determinar, a um grau considerável, a forma como era lido.

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Os textos têm propriedades tipográficas que guiam a reação do leitor. As indicações da capa, da página de rosto, ou seja, o formato todo do livro pode ser decisivo para que a obra encontre, chegue às mãos de seu leitor.

Página de rosto retirada da obra Orlando Furioso, Ed. Companhia Editora Nacional de Lisboa, 1895. ______23-Descrição das informações contidas na página de rosto na ordem em que foram impressas: nome do autor (Ariosto); nome da obra (Orlando Furioso); o gênero literário (Romance Cavaleiresco); o nome do tradutor (Xavier da Cunha), e anteposto a ele a expressão “vertido em linguagem Portuguesa por”; logo após o nome do tradutor há uma informação referente à pessoa dele “conservador da biblioteca de Lisboa”; ao nome do ilustrador (Gustavo Doré) é anteposto uma expressão adjetiva “ilustrado com as monumentais composições”; o nome da editora e de seus proprietários são apresentados respectivamente: Companhia Editora Nacional – David Corazzi – Justino Guedes; e por último a indicação da cidade em que ocorreu a impressão (Lisboa) .

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5.1 - A Casa Editorial David Corazzi e Justino Guedes

No final da página de rosto, os nomes de David Corazzi e Justino Guedes são apresentados como sucessores (herdeiros) da Companhia Nacional Editora de Lisboa. Comecemos pelo editor David Corazzi que esteve presente de forma intensa no mercado editorial brasileiro e português, principalmente nos finais do século XIX e início do XX (Hallewell, 1985). David Corazzi ficou órfão de pai aos quinze anos, tornou-se funcionário público e, mais tarde, com um pequeno capital, deu início ao seu próprio negócio, vendendo os direitos autorais da obra Novo Consultador Médico-Cirúrgico escrito pelo seu pai, o médico cirurgião David Antonio Caetano Corazzi. Com o dinheiro arrecadado criou a empresa Horas Românticas em 1870, iniciando, assim, uma publicação de romances em fascículos. De acordo com Manuela Domingos, em seu artigo Estudos de Sociologia da Cultura, Livros e Leitores no século XIX (1985, p. 22), Davi Corazzi publicou em Portugal a obra de Fernandes y Gonzáles, El Rei Maldito, que já havia sido publicada em Madrid, em um novo formato: fascículo em oito páginas e gravuras, para ser vendido por dez réis. A obra de Fernandes y Gonzáles tornou-se um sucesso de venda, possibilitando, conforme catálogo de 1884 da Editora Corazzi (apud Domingos, 1985, pp. 64-65), no decorrer dos anos 80 do século XIX, que a empresa de David Corazzi prosperasse. Com a ampliação das instalações, foram criadas oficinas de composição, impressão e estereotipia, oficina de alçado, dobragem e brochura, oficina de encadernação e um depósito para suas publicações. Segundo Manuela Domingos (1985), a casa Editorial Corazzi publicou muitos outros romances impressos no mesmo formato de El Rei Maldito. Também foi responsável, nas duas últimas décadas do século XIX, pela publicação das obras completas de Julio Verne em 39 volumes (1883); do Dicionário do Povo (1881); de Biografia de Homens Célebres (1883), a qual apresentava 32 páginas com capa colorida e retrato e gravuras dos biografados; Geografia Moderna (1883); Método simultâneo de leitura e escrita (1883); Manual teórico e Prático de ginástica; História alegre de Portugal (1883); Química na

83 cozinha (1883); Monumentos e lendas de Santarém (1883), o qual fora dedicado ao rei D. Luiz I; Almanaque do Horticultor (1883) com 56 gravuras e Coleção das obras primas de Portugal e do Mundo (1881), por exemplo, o Orlando Furioso de Xavier da Cunha. Giselle Martins Venâncio, em seu artigo intitulado Lisboa – Rio de Janeiro – Fortaleza: os caminhos da coleção Biblioteca do Povo e das Escolas traçados por Davi Corazzi, Francisco Alves e Gualter Rodrigues (2001, p.6), informa que, em 1881, inicia-se no Brasil a publicação da coleção Biblioteca do Povo e das Escolas pela editora portuguesa David Corazzi. A coleção Biblioteca do Povo e das Escolas é composta exclusivamente de livros científicos obteve grande êxito, junto com o lançamento do Dicionário de Geografia Universal - o novo Atlas de Geografia Moderna. Jorge Carvalho do Nascimento, em seu artigo Nota prévia sobre a palavra impressa no Brasil do século XIX (2001, p. 153), coloca que o sucesso editorial da Biblioteca do povo e das escolas e dos Dicionários do povo no Brasil levou o editor Corazzi a abrir uma filial no Rio de Janeiro, no início do ano de 1882, na rua da Quitanda, 40. No ano de 1889, em Portugal, a casa editorial Corazzi muda-se para o endereço: Rua: Largo do Conde Barão, Lisboa, número 50, agora em instalações mais amplas. Em suas reflexões, Jorge do Nascimento (Op. cit., p. 153), aponta que a editora David Corazzi deixou de funcionar em 1889, a partir da criação da Companhia Nacional Editora de Lisboa (fusão da editora David Corazzi com a editora Justino Guedes). A enfermidade de David Corazzi, nos finais dos anos 80, obriga-o a abandonar os trabalhos editoriais, permitindo que Justino Guedes o substitua em suas funções. Em 28 de Novembro de 1896 morre David Corazzi e a Companhia Nacional Editora passa a ser administrada somente pelo seu sócio, o qual manterá no seu catálogo as mesmas publicações anteriores. Justino Guedes nasceu na cidade de Minde – Portugal e, no ano de 1869, trabalhou em uma oficina de arte (indústria litográfica) localizada na Rua São Paulo, número 3, na frente da papelaria, que havia sublocada do seu antigo patrão Vicente Carvalho. Como desejava desenvolver e ampliar a oficina de arte, mudou-se para a Rua Vasco da Gama com novas máquinas compradas no estrangeiro para os trabalhos litográficos.

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Segundo o jornal Portomozense de 5 de junho 1903, “instalando-a agora n'uma casa, cuja amplitude seria proporcional à sua evolutiva atividade industrial. Efetivamente, esta oficina litográfica tomou tal incremento, que era talvez a primeira do país.” (www.portomozense.com.br 28/01/2009) Jorge do Nascimento, em seus estudos sobre as editoras em Portugal (Op. cit., 155), informa que, durante aproximadamente treze anos, Justino Guedes esteve à frente da Companhia Editora Nacional de Lisboa, mantendo a mesma administração e projetos editoriais de David Corazzi. Em 1902, Justino Guedes interrompeu o funcionamento da Companhia Editora Nacional com o propósito de transformá-la em outra empresa, passando a chamá-la de A Editora. A partir de 1909, a Editora mudou para novo endereço, na Rua do Ouvidor, 166. No mesmo ano, foram abertos os escritórios de São Paulo e Belo Horizonte. O paulista, na Rua São Bento, 65 e o mineiro, na Rua Bahia. A partir do ano de 1913, a comercialização das obras e das coleções, no Brasil, passou a ser feita pelo editor e livreiro Francisco Alves. Gisele Venâncio, em suas reflexões sobre o mercado editorial português (Op. cit., p. 13), coloca que, no ano de 1913, Francisco Alves, livreiro e editor português, compra A Editora, unificando-a com a editora francesa Aillaud e a portuguesa Bertrand, que já havia adquirido.

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5.2- O ilustrador: Gustavo Doré

Gustavo Doré é um outro nome inscrito na página de rosto e foi apresentado, em destaque, com centralidade, e tipografado em vermelho. Seu nome vem logo abaixo do tradutor e acompanhado pela expressão “Ilustrado com as monumentais composições”. Pode-se perceber, de acordo com as reflexões de Darton (1990), que a centralidade e a expressão mencionada revelam a importância de Doré no mercado editorial português e brasileiro. Gustavo Doré nasceu no dia 06 de janeiro de 1832 e veio a falecer em 23 de janeiro de 1883. É considerado pela crítica como um artista de grande talento e imaginação, contribuindo significativamente para o florescimento da ilustração no século XIX. Nesse século (XIX), os artistas (pintores e ilustradores) eram contratados pelos jornais e editoras para darem uma melhor compreensão dos fatos e dos enredos por meio de seus desenhos. A partir dos estudos de Roger Chatier em sua obra História Cultural: entre práticas e representações (1996, p. 129) pode-se perceber que a ilustração, nesse momento, serve como uma estratégia editorial utilizada para seduzir o leitor e orientá-lo na construção de sentidos do texto verbal. Trata-se de uma estratégia editorial para leitores não virtuosos, familiarizados com leituras mais fragmentadas e de menor densidade textual. De acordo com Ana Beatriz de Araujo Linardi (2007, p. 73), em sua dissertação de doutorado VT PICTVRA: Dom Quixote e Dalí, o repertório de ilustrações de Gustave Doré conta com quase duzentas obras que obtiveram muito êxito da crítica e do público, a ponto de o artista ter chegado a empregar em seu ateliê mais de quarenta gravadores para trabalhar em suas ilustrações, alguns deles co-assinando grande parte de sua obra, como Pisan, Pannemarker e Jonnard. Seu primeiro trabalho de ilustração foi a Divina Comédia publicada em 1862. Suas ilustrações do Inferno, de acordo com Ana Linardi (Op. cit., 66), tiveram grande repercussão e a crítica da época chegou a mencionar o jovem como o maior ilustrador de Dante desde Sandro Botticelli. Entre os mais de cem volumes que ilustrou, incluem-se as obras completas de Rabelais (1854), o Inferno de Dante (1862), o Dom Quixote (1863), a Bíblia (1866). Linardi (Op. cit., 66) comenta que todas as ilustrações são dotadas de grande efeito dramático e que Gustavo Doré, além das ilustrações, realizou também muitas pinturas e 86 esculturas. Entre estas, destaca-se o grupo para o monumento a Alexandre Dumas, em Paris. Ana Linardi (Op. cit., p. 65), em sua análise sobre a pintura de Doré, apresenta-o como um artista que dominou a arte da gravura popular do século XIX. Com seu desenho preciso, detalhista, e sua grande capacidade de manipular texturas e matizes, conseguiu imprimir às ilustrações e gravuras uma atmosfera quase sobrenatural por meio dos jogos fascinantes de luz e sombra. A pesquisadora afirma que, mesmo no auge do Realismo, Doré conseguiu atender ao desejo da burguesia que ainda cultuava a estética romântica. Foi no ano de 1878, que Doré ilustrou a obra Orlando Furioso que teve como tradutor o poeta espanhol Dom Francisco J. Orellana. Esta edição espanhola foi editada por Font Y Torrens em Barcelona pela editora Ilustracion, apresentando ilustrações sobrepostas dentro e fora do texto. De acordo com Margarida Periquito (2007, p.25), as 650 ilustrações que Doré compôs para a obra Orlando Furioso não foram produzidas de uma só vez. No decorrer dos meses de 1878 e 79, outras ilustrações foram feitas e anexadas à obra. Algumas edições repetem; outras cortam. A única edição que apresenta as 650 ilustrações de Doré é a de 1879, editada pela editora francesa Hachete.

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5.3 – O tradutor: Xavier da Cunha

Em letra vermelha e de tamanho menor em relação ao de Doré, o nome Xavier da Cunha, tradutor do Orlando Furioso, não é apresentado na capa, somente na página de rosto. Quem é Xavier da Cunha? Ele foi um autor que alcançou sucesso no Brasil? Essas indagações ajudam a entender a importância do nome Xavier da Cunha no cenário editorial português e brasileiro. Xavier da Cunha (1840-1920), de acordo com o Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, foi médico, poeta e bibliógrafo. Licenciado pela Escola Médico- Cirúrgica de Lisboa, em 1865, com a tese Algumas Palavras sobre Aneurismas da Artéria Glútea, tem colaboração dispersa por revistas da especialidade, designadamente a Revista Médica Portuguesa (1864-1865) e o Jornal das Ciências Médicas de Lisboa (1875). Em 1902, foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa, cargo que ocupou até a implantação da República Portuguesa. Colaborou no Arquivo Pitoresco, na Gazeta de Portugal (quarenta e nove folhetins reunidos pelo título "Revista da semana"), na Revista do Século (1865), na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil (1864-1865), entre outras publicações periódicas. Uma boa parte dessa sua produção, tal como das suas Poesias Líricas (1910), foi subscrita com o pseudônimo Olímpio de Freiras. Dos seus inúmeros trabalhos crítico- bibliográficos devem destacar-se os que dedicou às edições de textos de Bernardim Ribeiro e Camões, que prefaciou, ao passo que das suas traduções salientamos as Viagens e Aventuras através do Mundo Solari de Júlio Verne (1878), O Inferno de Dante (1887) e a tradução do Orlando Furioso, de Ariosto (1895). O tradutor do Orlando Furioso colaborou também no Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de Caldas Aulete (1881) e no Dicionário Popular (1878), de Pinheiro Chagas, nomeadamente, neste último, com textos de informação biográfica.

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5.4 – gênero: Romance cavaleiresco

A obra Orlando Furioso alcançou sucesso com o grande público desde as suas primeiras edições, com grande circulação por vários países europeus, como já tentamos apresentar nesta pesquisa. Portanto, a obra faz parte do cânone letrado e que vem editado em diferentes formas e traduções, desde meados do século XVI. Nas edições espanholas, italianas e francesas, a obra Orlando Furioso foi apresentada ao seu público como novela de cavalaria. Na inglesa como versos heróicos. A página de rosto do Orlando Furioso traduzido por Xavier da Cunha traz a informação de que esta edição de Orlando Furioso é um Romance Cavaleiresco. Como se sabe, o Orlando Furioso e suas edições ganham adaptações não só na linguagem, mas também na diversidade de ilustrações e gêneros discursivos. Na edição, espanhola, de Orellana, de 1878, ilustrada por Doré, o Orlando Furioso é apresentado como um poema heróico, aqui, na de Xavier da Cunha, como um Romance Cavaleiresco. O poema épico teve muito sucesso de público durante os séculos XVI, XVII e XVIII, contando em versos as aventuras de personagens ilustres. A partir do século XIX, os enredos, em forma de romance e prosa, ganham força, principalmente para o público feminino (ABREU, 2003 p. 35). A definição do gênero como Romance Cavaleiresco é apresentada logo abaixo do título Orlando Furioso, antes mesmo dos nomes do tradutor e do ilustrador, em letra preta. De acordo com o Dicionário temático do Ocidente Medieval, organizado por Jacques Le Goff (2002, pp. 185-215), o adjetivo cavaleiresco remete-nos ao substantivo cavalaria, que traz, no primeiro momento, um sentido militar à palavra: um grupo de guerreiros de elite atacando de lança ou espada em punho, em todos os campos de batalha da Europa medieval. A essa significação militar liga-se um segundo sentido, mais frequente, de termos franceses e latinos. Fazer cavalaria significa, tanto atacar quanto realizar grandes feitos de armas, proezas cavaleirescas. A nobreza controla e comanda a cavalaria, empresta-lhe sua ideologia a ponto de, a partir do fim do século XII, a cavalaria aparecer como expressão militar da nobreza que a considera território particular e alicia seus membros. Desde então, um cavaleiro não é

89 somente um guerreiro a cavalo, mas um membro reconhecido da aristocracia. Cavaleiro torna-se um título nobiliário. Segundo Le Goff (Op. cit., 188), ao longo da Idade Média, e desde seu surgimento, as literaturas em língua vulgar celebram a cavalaria e transformam-na em mitologia. As canções de gesta que nasceram na França no início do século XII e cuja popularidade vai até o século XIV, apossaram-se para sempre da personagem ideal do bravo cavaleiro, heróico até o exagero como Rolando, valente e sábio como Olivier, ou infatigável defensor do rei e da fé como Guilherme. Através da diversidade dos modelos sociais que preconizam, é sempre a cavalaria que elas (as canções de gesta) exaltam. A terminologia romance, conforme Ian Watt na obra A ascensão do romance (1996, pp.34-35) nasceu no início do século XVII, sendo o precursor deste gênero o Dom Quixote de La Mancha. Na tentativa de parodiar a novela de cavalaria, Miguel Cervantes não só escreveu um dos grandes clássicos da literatura, mas ajudou a consolidar o gênero literário que viria substituir a epopéia, gênero que agonizava e desapareceria no século XVIII, com o advento da era industrial. Ian Watt, em suas análises (Op. cit. 43), remete a um conceito de romance de cavalaria que advém da Idade Média, o qual apresenta uma estrutura narrativa que, geralmente, gira em volta do mesmo assunto e movimenta as mesmas personagens. De caráter místico e simbólico, relata aventuras penetradas de espiritualidade cristã e subordina-se a um ideal místico, que sublima o amor profano. Em seus estudos sobre romance de cavalaria publicados no artigo Estudos Luso- Italianos. Poesia Épico-Cavaleiresca e Teatro Setecentista (1990, pp. 48-59), José da Costa Miranda lembra que os autores portugueses do final do século XVI, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Antonio Prestes, mencionam as personagens ariostescos, também nos gêneros literários (teatro, carta e romances). De acordo com José Miranda, não houve, porém, em Portugal no período quinhentista, seiscentista, setecentista e oitocentista comentários nem discussões que se propusessem a indicar ou definir miudamente o que o romance de cavalaria significou naquele momento.

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Antes da circulação do Orlando Furioso, em Portugal, como romance de cavalaria, havia dois romances que se ligavam a ele intertextualmente: a Crônica do Imperador Clarimundo, de João de Barros (1522) e o Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos (1567). José Miranda, em seus comentários, apregoa que (Op. cit., 238), tanto João de Barros como Jorge Ferreira de Vasconcelos, embora em graus diferentes, consideraram a obra Orlando Furioso importante na construção de seus romances de cavalaria. Roger Chartier, em seus estudos sobre a história dos gêneros textuais e tipográficos, na obra História Cultural: entre práticas e representações (1996, p. 132) chama a atenção para as identificações explícitas, que designam e classificam os textos, criando ( em relação eles ) expectativas de leitura, antecipações de compreensão. O gênero aproxima o texto de outros já lidos, aponta ao leitor o pré-saber e onde inscrevê-lo.

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PARTE 3 ORLANDO FURIOSO: seu processo adaptativo

Caminha-se por vários dias entre árvores e pedras. Raramente o olhar se fixa numa coisa, e, quando isso acontece, ela é reconhecida pelo símbolo de alguma outra coisa: a pegada na areia indica a passagem de um tigre; o pântano anuncia uma veia de água; a flor do hibisco, o fim do inverno. O resto é mudo e intercambiável - árvores e pedras são apenas aquilo que são.

Ítalo Calvino cidades Invisíveis, 1972

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6 - Monteiro Lobato: as adaptações para as crianças

Na obra A Barca de Gleyre, livro que reúne a correspondência literária de 40 anos de Lobato com o amigo mineiro e também escritor Godofredo Rangel, pode-se perceber que os dois jovens (Lobato e Rangel), quando ainda ensaiavam suas carreiras literárias, costumavam trocar notas sobre suas leituras e produções iniciais ao comentar o enredo, a construção narrativa e o estilo delas:

Atenta neste belo clarão de Fialho: „Tomou as mãos do agonizante, um mármore molhado.‟ A minoria entrepara, atônita com essa beleza. A maioria não pára, passa, mas admira, porque não entendeu – o ininteligível é o supremo pasmo das multidões. Vejamos agora isso dito no estilo bunda: „Tomou as mãos do agonizante: estavam geladas por um suor frio‟. O clarão da frase de Fialho vira aqui luzinha de vela de sebo; entendem-na todos; a clareza democrática atinge o apogeu – mas que analidade! [...] O escaravelho da adjetivação dessorada pelo advérbio. O adjetivo sempre médio (porque in medio virtus! O in medio em tudo na vida só dá o medíocre). Nunca o adjetivo extremo [...] Andas com tempo disponível? Estou precisando de um D. Quixote para crianças, mais correntio e mais em língua da terra que as edições do Garnier e dos portugueses. Preciso do D. Quixote, do Gulliver, do Robinson, do diabo! Posso mandar serviço? É uma distração e ganhas uns cobres. Quanta coisa tenho vontade de fazer e não posso! Meu tempo é curto demais. [...] As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta. Como tenho um certo jeito para impingir gato por lebre, isto é, habilidade por talento, ando com idéia de iniciar a coisa. É tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil que nado acho para iniciação de meus filhos. Mais tarde só poderei dar-lhes o Coração de Amicis – um livro tendente a formar italianinhos. (LOBATO,1962, p. 52, 276 e 350)

Neste fragmento extraído da Obra A Barca de Gleyre, Lobato expõe uma reflexão sobre a função do adjetivo, que, segundo ele, quanto menos houver e mais cru e só estiver o texto, melhor o seu efeito, da necessidade de produção de uma literatura voltada para criança. Reflexões de teor estilístico ou semântico como essas, ajudam a conhecer o editor no escritor Lobato que, guiado por uma representação de leitor infantil, promove intervenções nos textos que deseja escrever, traduzir ou adaptar. Essa sua vontade torna-se mais explícita em outra carta, quando indica a Rangel

93 uma espécie de conduta que o escritor de obras infantis deve seguir: “Para bem escrever para as crianças é preciso tê-las como juízes supremos. Ora, você tem em casa uma juizinha. Vá fazendo e lendo-lhe. O que ela não gostar não presta. O que ela gostar, está ótimo e todas as mais crianças gostarão.” (LOBATO, 1962, p.63) O gosto e o desejo do leitor infantil orientam o processo de escrita de Lobato, já que adaptações realizadas para elas (crianças) não os levavam em consideração. Utilizando, às vezes, a obra O Sítio do Picapau Amarelo como introdutora do material desse novo jeito de produzir literatura para as crianças, Lobato, por meio da narração da personagem Dona Benta, matriarca do sítio, vai abrasileirando, reaproveitando e transformando narrativas, que, segundo ele, não apresentavam uma linguagem compreensível para o universo infantil, isto é, estruturas da oralidade, um jeito de escrever “brasileiro”. O ensejo de produzir uma literatura que não só agradasse o mercado editorial infantil, mas que pudesse contribuir com o desenvolvimento escolar da criança, conduz Lobato na busca contínua de construir um estilo literário que atingisse os seus propósitos. A carta a Rangel permite entender esse anseio, pois em tom de aconselhamento, vai tecendo comentários sobre a melhor maneira de realizar uma adaptação que agradasse as crianças: “... o livro deve ser escrito como o CAPINHA VERMELHA, de Perrault, estilo. ultra direto, sem nenhum grânulo de “literatura”.4 e continua “... linguagem bem simples, sempre na ordem direta e com toda a liberdade. Não te amarres ao original em matéria de forma – só em matéria de fundo.” (LOBATO, 1962, p. 60) Monteiro Lobato busca em suas adaptações valorizar o conteúdo; conta a história com nova roupagem para que haja maior envolvimento com o leitor infantil. A concepção lobatiana de adaptação faz referência à temática da oralidade, pois para ele, o adaptador deve reescrever a obra como quem ouve uma história, contando-a com palavras suas, possibilitando, assim, ao leitor infantil uma acessibilidade à produção literária de maneira mais fácil e clara:

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Um defeito, meu, teu, nosso; damos espaços demais ao cenário, com prejuízo das figuras. Em Camilo quase não há cenário; as almas vão logo entrando em cena. Shakespeare pinta-o com uma palavra. Nós nos perdemos nas “mignardises” da paisagem, a copiar até as perninhas dos carrapatos – vício que vem do tempo em que o Naturalismo zolaiesco nos seduziu. Tu tens paisagens belíssimas, mas estragadas pela abundância dos detalhes. Queres descrever tudo, quando o certo é apenas sugerir – é dar um rápido relevo de estereoscópio com meia dúzia de pinceladas rápidas e manhosas. Pinceladas-carrapicho nas quais se enganchem as reminiscências do leitor. Forçamo-lo assim a colaborar conosco – ele vê mil coisas que não dissemos, mas que com os nossos carrapichos soubemos acordar dentro dele. O segredo de escrever bem está aí. O leitor é um túnel. O escritor tem de atravessá-lo com seu comboio de idéias. Se as idéias não vão uma depois da outra, uma bem engatadinha na outra, fica na porta do túnel Olha, Rangel, enquanto te preocupares com o estilo, não o terás. Estilo é jeito de gente. E todo jeito artificialmente procurado desajeita uma pessoa. Que preocupação há nesse Camilo que transcrevi? E que estilo! (LOBATO, 1962, pp. 56; 65 e 68)

Monteiro Lobato indica pistas de como deveria ser o estilo de escrita para as crianças: sem longas descrições de cenários, para que o leitor infantil possa imaginar, criar, “enganchar suas reminiscências”. O estilo não pode ser copiado, imitado. De acordo com Lobato há de se produzir estilo liberto, ter o próprio estilo. Deve haver, segundo Lobato, uma colaboração do leitor, produzir junto (escritor, leitor). Para Lobato, o autor percorre, constrói um caminho, um andar para chegar ao leitor, atravessá-lo – neste atravessar vai construindo uma idéia após a outra -, interligações feitas cuidadosamente. O texto é um comboio de idéias, o leitor um túnel e o autor aquele que coloca o comboio a percorrer o túnel. As reflexões de Eliane Marta Teixeira Lopes, na obra Lendo e escrevendo Lobato (2001 pp. 35-36), sobre a produção literária lobatiana, refletem a liberdade que o escritor do Urupês sempre se deu na condição de leitor, autor e editor. Revelam também os dispositivos, as estratégias textuais e editoriais lançadas por ele (Lobato) na confecção da obra, pois, em sua época, havia pouca literatura infantil em circulação no Brasil, e aquelas que existiam eram impreterivelmente difíceis para o leitor infantil. As recomendações, aconselhamentos e orientações de Lobato para a produção de obras infantis eram: a) considerar o gosto, a apreciação do leitor infantil, ouvi-lo; b) produzir um estilo direto, uma linguagem simples; c) o escritor deve prender-se ao enredo, ao conteúdo; d) evitar descrições, tirar os detalhes, dar pinceladas; e) escrever pressupondo um leitor que compartilha a leitura, um leitor que produz a história junto com o escritor.

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É a partir dessa liberdade (visão mercadológica) – do que seu público necessita, do que ele sabe fazer – que o autor Lobato cria seus livros, ou os encomenda aos amigos.

6.1- Uma proposta de criação de Lobato na obra Orlando Furioso

A obra Orlando Furioso de Ludovico Ariosto, edição de 1895, traduzida por Xavier da Cunha, traz muitas marcas feitas pelo próprio punho de Lobato, provavelmente com a intenção de adaptá-la para uma publicação brasileira, que atendesse ao público infantil, conforme anúncio feito na obra Dom Quixote das Crianças pela voz da personagem Dona Benta: “– Isso mesmo – confirmou Dona Benta. – Eram os cavaleiros andantes. Depois de lermos o DOM QUIXOTE havemos de procurar o ORLANDO FURIOSO, do célebre poeta italiano Ariosto – e vocês vão ver que coisa tremenda eram os tais cavaleiros andantes” (LOBATO, 1964, p. 16 ) Monteiro Lobato aproxima dois cavaleiros – Dom Quixote e Orlando Furioso - sonhadores, apaixonados e justos. Personagens de duas obras que fazem parte da cultura humanística e, segundo ele (Lobato), merecem ser conhecidas pelas crianças, no interior de um projeto de educação do leitor à leitura de clássicos. A diversidade das intervenções, feitas por Lobato no Orlando Furioso, permite-nos indagar: Que conjunto de intervenções Lobato faz? Por que essas e não outras? Que representação de leitor infantil orienta as intervenções que Lobato faz? Que representação de obra infantil Lobato parece ter? Qual era o projeto editorial de Lobato para essa edição de Xavier da Cunha? Segundo Roger Chartier, em sua obra História Cultural: entre práticas e representações (1996, p.131), os textos escritos por autores, são também manufaturados por editores, por revisores, por impressores, pelo sistema – programação de edição dado pelo computador – criação de outras formas materiais para se chegar ao leitor. A partir das reflexões de Chartier, é possível pensar em dois tipos de dispositivos: 1- Dispositivos textuais: aqueles que decorrem do estabelecimento do texto,ou seja, das estratégias de escrita, das intenções do autor;

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2- Dispositivos tipográficos: aqueles que decorrem do resultado da passagem do texto ao impresso, produzidos pela decisão editorial, pelo impressor e outros. As intervenções de Lobato apontam para várias direções: nas imagens e no conteúdo do texto. Nas imagens podem-se perceber as intenções de intervenções tipográficas, pois Lobato busca selecionar algumas (imagens). Depois de selecionadas propõe encurtar o tamanho delas (imagens). A ação de encurtar é uma decisão editorial, pois é realizado com o propósito de reduzir o tamanho das páginas e até mesmo a quantidade de folhas de impresso. Essas intervenções são orientadas pela imagem do livro impresso que Lobato tinha, já que ele era um editor consagrado na época. No entanto, não há o livro (Orlando Furioso) impresso, impossibilitando saber de fato que intervenções tipográficas (materiais e comerciais) ocorreriam ou seriam acrescentadas. A estratégia de intervenção textual, segundo Chartier (1996, p. 127) é orientada pelas representações que os escritores e editores têm das competências e das expectativas culturais de seus leitores. Essas intervenções são de três tipos: 1- encurtamento dos textos (suprime-se capítulos, episódios, retira-se as divagações e as considerações supérfluas); 2- dividem o texto criando novos capítulos, multiplicando novos parágrafos, acrescentando-se títulos, resumos, realizando-se substituições e atualizações, 3- Censuram-se blasfemas morais e religiosas. A primeira estratégia pode ser considerada como uma espécie de enxugamento e a segunda e a terceira como remodelamento.

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6.2 - A organização do trabalho

Cotejar o texto de Xavier da Cunha e o texto reconstruído por Lobato, consciente de toda a história por eles acarretada, impõe uma tarefa de organização sistemática dos textos. Sendo este o objetivo, decidi marcar as alterações do editor e autor Lobato sobre a versão de Xavier da Cunha. Parece que desse modo pode-se ver mais claramente como a recriação de Lobato se apresenta na “tessitura lingüística” do texto de Xavier da Cunha. Conhecer as duas versões. Cotejá-las procurando compreender por quais critérios Lobato era orientado para reescrever o texto, ou seja, produzir um novo texto literário. É o primeiro desafio. Uma das possibilidades de comparar as duas versões era utilizar a ferramenta “controlar alterações”, disponível no programa Word. Essa ferramenta contrasta automaticamente dois documentos, destacando por meio de marcas de revisão formatadas pelo usuário todas as diferenças encontradas: sinais de pontuação, acréscimos de palavras ou frases, supressões, substituições, etc. Nesse caso, porém, essa técnica moderna e automática não se aplica de modo tão simples e fácil quanto possa parecer, pois poderia alterar, em alguns momentos, as próprias intervenções de Lobato. Realizei também a tarefa manual de marcar linha a linha as variantes encontradas entre o texto lobatiano e o de Xavier Cunha. Adotei a velha e idônea técnica da caneta e do papel. Busquei reproduzir o ato do escritor Lobato substituindo, suprimindo, deslocando, reduzindo e invertendo a ordem literária estabelecida por Xavier da Cunha. As alterações lobatianas ficaram impressas em tinta vermelha, Times New Roman, e a seguinte legenda de sinais para as classificações adotadas:

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---- (tachado) supressão (palavras e expressões) ___ (sublinhado) substituição (palavras e expressões e pontuação) < > acréscimo ~ inversão / / deslocamento (aparecem em pares no período para orientar a ocorrência do deslocamento) # # mudança de parágrafo

Outra forma utilizada por mim, para melhor visualização das modificações ocorridas, foi a organização dos parágrafos em tabelas: Sendo (A) para Xavier da Cunha, (B) para o Orlando Furioso com as modificações de Monteiro Lobato e (C) para a possível adaptação de Lobato. Nas tabelas, o olhar pode transitar de forma mais pertinente nas intervenções realizadas por Monteiro Lobato. Essas duas formas de organização do trabalho são apresentadas em anexo para que o leitor(a) possa, se desejar, observar. As intervenções foram organizadas da seguinte forma: redução, simplificação, acréscimos, atualização da linguagem, inversão no posicionamento das palavras, conservação de parágrafos, condensação de episódios e escolha de ilustração. E, elas (intervenções) foram colocadas lado a lado, ou seja, de um lado o texto de Xavier da Cunha e de outro as anotações de Lobato. A digitalização da página cinco do capítulo um, apresentada a seguir, mostra Lobato impingindo seu lápis no texto de Xavier da Cunha, ou seja, exercendo a sua função de escritor e adaptador. Logo após, a transcrição, seguindo as indicações da tabela acima (legenda).

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Fun do Monteiro Lobato – CEDAE – IEL - Unicamp

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6.3- Transcrição da página cinco do Orlando Furioso

Mas enquanto o despeitadíssimo Ferragudo vai prolongando as suas pesquisas, surge-lhe do meio das águas o busto ameaçador de um cavaleiro, 26. Revestiam-lhe o corpo todo armas defensivas, - o corpo todo, com exceção da cabeça: e na mão direita segurava ele o próprio capacete de Ferragudo, aquele que o sarraceno inutilmente se demorara por tão largo espaço a procurar. Dirigindo-lhe n‟um tom irado, as palavras que disse ao cavaleiro pagão foram estas: [ -Perjuro e traidor! porque é que te aflige deixares-me aqui o elmo que há tanto tempo me devias? 27. Recorda-te, infiel, de que, na ocasião de matares o irmão de Angélica (sou eu próprio esse irmão!), (cujo sou), prometeste-me lançar, dentro em poucos dias, ao rio, juntamente com as outras armas este capacete: não te revoltes pois contra a Fortuna porque ela realizou à medida dos meus desejos aquilo que tu não quiseste cumprir. Entendes que deves revoltar-te? revolta-te contra ti próprio que faltaste às tuas promessas. 28. “E, se cobiças possuir um elmo fino, trata de buscar outro, mas trata de ganhá-lo mais honrosamente. Semelhante a este, encontrarás um na cabeça do paladino Orlando; e outro, talvez ainda melhor, na de Reinaldo: pertença de Almonte foi um d‟eles, e de Mambrino o outro dos dois. Faze por conquistar valorosamente algum d‟esses; mas este, que prometeste deixar-me, convirá que efetivamente m‟o deixes.” 29. Perante esta inesperada aparição, [ Ferragudo sente arripiarem-se-lhe os cabelos todos; e empallidece-lhe o rosto; a voz embarga-se-lhe na garganta.E ao reconhecer em quem o afronta increpando-o por quebras de lealdade, aquele mesmo Argalia que por suas próprias mãos ele havia morto, – simultaneamente lhe enche pungem n‟alma a vergonha e a cólera. < e jura >

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30. E, porque lhe não acodem razões que invoque para desculpas, antes reconhecendo verdade enquanto acabava de ouvir, deixa-se ficar silencioso e mudo. Mas a vergonha que sente o obriga a jurar pela vida de Lanfusa que nunca mais em sua cabeça quererá outro elmo senão aquele que Orlando ganhou outr‟ora /a Mambrino/, em Aspramonte 31. Esse juramento soube ele cumpri-lo melhor do que o outro que primeiro fizera. E ei-lo que / E /dali parte, descontente, descontentissimo, a ponto de não sem encontrar sossego durante muitos dias, A sua Com a preocupação constante é ver se descobre onde possa / de /encontrar-se com o paladino. 32. Poucos passos tinha andado Reinaldo, quando repentinamente lhe aparece aos saltos pinotes o seu impetuoso corcel. – “Pára ai, meu Bayardo, pára ai! / que / sem ti não posso eu passar!” Mas o corcel, completamente surdo à voz de Reinaldo, do dono em vez de lhe obedecer, continua a galopar cada vez mais veloz.Reinaldo o que faz é correr traz segue atrás d‟elle. [ E Acompanhemos entretanto Angélica ? , na sua fuga. 33. Por florestas sombrias e medonhas, por lugares desabitados e completamente selvaticos, vai ela fugindo. O rumorejar da folhagem < e as sombras > nos carvalhos, nas faias e nos olmeiros, não faz senão inspirar-lhe inspiram súbitos pavores, e obriga- a seguir desnorteadamente estranhíssimos carreiros: sombras que lhe apareça na montanha ou no vale, acometem-n‟a logo receios de que seja Reinaldo a persegui-la. 34. Faz lembrar Lembra uma corça ou uma cabrinha, que, por entre os folheados do bosque em que houvesse nascido, vendo um leopardo estrangular-lhe a mãe, ou matar-lh‟a rasgando-lhe as entranhas, fugisse de moita em moita, para longe da fera cruel, tremendo trêmula de susto, e no auge da inquietação, cuidando em cada raiz que topa encontrar ver as faces do leopardo a devorarem-n‟a. da fera. 35. E assim prossegue vagueando ao acaso, todo esse dia, toda essa noite, e ainda metade do dia seguinte. Por fim foi dar a um bosquezinho encantador, delicioso, bafejado pela frescura de uma suave brisa por brisa frescas, < onde dois > Dois regatos claríssimos, que lhe deslizam em torno serpeavam, conservam sempre viçosa a vegetação. d‟esse lugar aprazível, e , com a linfa a escoar se brandamente por entre pedrinhas, fazem as

102 delícias de quem lhes escuta o murmúrio. < Julgando-se em segurança naquele encantador retiro, resolve repousar > 18 A página é um exemplo ilustrativo do processo de intervenção de Lobato. Nela, pode se ver os riscos, os sinais de parênteses, círculos em palavras, colchetes, flechas, palavras nas margens, em cima e abaixo das linhas... . São intervenções que sugerem retiradas de frases, de expressões, às vezes de parágrafos inteiros com o intuito de encurtar, condensar. São substituições de uma palavra por outra, como por exemplo, no parágrafo trinta e dois “pinotes” por “saltos”; “encontrar” por “ver” no parágrafo trinta e quatro, talvez mais próximas ao vocabulário do leitor que ele, Lobato, pretende alcançar. Ocorrem modificações verbais com intuito de resumir como “inspirar-lhe” por “inspiram”, como no parágrafo trinta e três e “Faz lembrar” por “Lembra”no trinta e quatro. Acréscimos com finalidade de resumir o desejo das personagens que aparecem no comentário do narrador “Julgando-se em segurança naquele encantador retiro, resolve repousar” no parágrafo trinta e cinco. ” Cada página, tal como esta indicada acima, traz muitas intervenções: supressões, acréscimos, deslocamentos de palavras no interior do texto, substituições, inversão da posição das palavras dentro da oração e a substituição de um termo por outro. Monteiro Lobato promove uma leitura cuidadosamente orientada por uma representação do seu leitor infantil. A quantidade de intervenções é reveladora de um Lobato laborioso na construção de sua escrita, um obcecado pela busca de um sentido melhor da palavra, do texto.

______18- Transcrição do capítulo I dos parágrafos 25 a 35, de acordo com a legenda de sinais apresentada anteriormente.

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6.4 – Procedimentos textuais: encurtamento

O procedimento de encurtamento (estratégia de supressão) realizado por Lobato, no movimento textual de Xavier da Cunha, consiste na retirada de episódios, orações e parágrafos que podem, segundo sua percepção, desviar a atenção do leitor do eixo principal do enredo, pois deixam o enredo mais lento, cheio de detalhes. Trata-se de uma intenção de enxugamento, estratégia para que o leitor seja enredado na parte aventuresca da obra Orlando Furioso. Segundo Chartier, em suas reflexões sobre as publicações da Biblioteca Azul dos editores de Troyes,

Na sua maioria, com efeito, as edições de Troyes encurtam o texto que reproduzem, fazendo-o de duas maneiras. A primeira consiste em desbastar o texto, em abreviar alguns dos seus episódios, em efetuar cortes por vezes drásticos. Nos romances passados a livros de cordel, tais reduções amputam os textos de relatos julgados supérfluos, e, sobretudo, das descrições das características sociais ou dos estados psicológicos das personagens, consideradas como inúteis para o desenrolar da ação. (Op. cit., p. 175)

Na intenção de encurtar o texto para facilitar a leitura, os adaptadores, tradutores, escritores e editores, tais como Lobato, Godofredo Rangel, Ana Maria Machado e outros, utilizam o procedimento de encurtamento (estratégia de supressão). Uma intervenção realizada no interior do texto, que busca eliminar aquilo que possa constituir em entrave para o entendimento imediato dos fatos narrados.

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6.4.1- Supressão de Parágrafos

Na intenção de dar mais rapidez e movimento às ações das personagens no interior da narrativa, Lobato suprime até mesmo parágrafos inteiros. É o caso do parágrafo vinte e quatro do primeiro capítulo, no qual há a descrição da ação de Ferragudo, que deixa de perseguir a amada Angélica pela floresta e decide ir atrás do elmo que havia caído na água. Este parágrafo é totalmente suprimido por Lobato:

Quer dizer: - Ferragudo foi dar ao mesmo ponto da ribeira, em que o elmo lhe tinha caído n‟água. E agora, - uma vez que já pela idéia lhe não pode passar o encontrar a dama, atrás de quem corria, - ocorre-lhe ao menos aproveitar o ensejo de reaver o elmo tombado na ribeira: para isso vai ele ... descendo pela riba úmida... Mas o elmo achava-se tão enterrado na areia, que decerto há de custar-lhe bastante a retira-lo de lá. (CUNHA,1895, p. 4)

O que Lobato suprime? Toda a reflexão (descrição explicativa) que o narrador realiza, nesse momento, sobre o desejo de Ferragudo de encontrar o elmo. Dos parágrafos 59 a 68 o narrador relata o duelo entre os dois cavaleiros – Sacripante e a guerreira moura. Neste relato, muitos sentimentos das personagens e comentários entre parênteses do narrador são cortados, muitas figuras de comparação são suprimidas. O parágrafo 66, por exemplo, descreve o sentimento de vergonha, do combatente Sacripante, diante de sua derrota frente à amada, há uma situação em que um raio devassa animais, plantas ao seu redor, este é também inteiramente suprimido:

Imagine-se um lavrador que, sentindo estalar-lhe um raio aos pés, cai atordoado enquanto os bois com que lavrara sucumbem fulminados, e que depois, ao levantar- se, ainda assombrado, vê rachado e sem folhagem o pinheiro que em distância estava habituado a contemplar: - é o que fazia lembrar o cavaleiro pagão quando logrou reerguer-se perante a formosa Angélica, testemunha da sua triste aventura. (CUNHA, 1895, p. 9)

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Segundo Lobato, na obra A Barca de Gleyre (1962, 62), a narrativa precisa andar a galope. Então, é preciso retirar os detalhes sobre os sentimentos, pensamentos do herói, para que a narrativa seja apreendida pelo leitor infantil de forma rápida, direta e sem preâmbulos. O parágrafo sessenta e sete é quase todo cortado, conforme indica o tachado (ferramenta presente no Word) realizado na transcrição, para que o desfecho da luta anunciado no parágrafo sessenta e quatro possa ser compreendido pelo leitor infantil de maneira mais clara e objetiva:

Suspira e geme: Não porque o aflijam dores de pé deslocado ou braço fraturado; mas porque a punge a vergonha, a ponto de que nunca em sua vida lhe subiram tão vermelhas cores ao rosto, vergonha tanto mais pungente, quanto ao desaire da queda acresceu tornar-se lhe preciso que a sua dama o ajudasse a libertar se da grande opressão com que o cadáver do cavalo lhe só pesava no corpo! E de vergonha... nem talvez ousaria falar, se não fora ela a primeira a dirigir-lhe a palavra. (CUNHA, 1895, p. 9)

No trecho suprimido por Lobato tem-se a emoção de Sacripante descrita, que, após ter desafiado o cavaleiro que ali chegara e ter sido derrotado por ele, geme e suspira morto de vergonha diante da amada. Há também uma supressão realizada no interior do texto de Xavier Cunha que produz o apagamento do trecho em que o escritor engrandece o seu mecena, conforme se pode ver no parágrafo três do capítulo primeiro:

E vós, ó generoso descendente de Hércules, ornamento e esplendor do século em que vivemos, vós, ó Hipólito, dignai vos acolher o único preito que o vosso humilde servo pode tributar-vos. Preito de palavras, que de outro modo não posso agradecer o que vos devo! E não m‟o rejeiteis por mesquinho, que n‟ele vai tudo quanto cabe em minhas débeis forças (CUNHA, 1895, p. 3)

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Neste caso, a supressão da dedicatória ao mecenas Hipólito d‟ Este, governador de Ferrara, faz com que o adaptador retire as características da epopéia clássica, que tem como objetivo uma linguagem mais pomposa, um tratamento mais cerimonioso do autor ao seu mecenas (vós). Esse aspecto formal presente nos textos clássicos (dedicatória) faz parte dos chamados epítetos: construções textuais que qualificam pessoas e objetos, um modo de dizer próprio da cultura clássica grega, como se pode perceber também no trecho extraído do quarto parágrafo do texto de Xavier da Cunha:

Entre os mais dignos heróis que me proponho louvar, encontrareis memorado aquele Rogério que de vós e de vossos ilustres antepassados foi tronco. Se honrar-me quiserdes escutando-me, ouvireis a narrativa de seu alto valor e de suas brilhantes proezas: possa o vosso alto pensamento inclinar-se um pouco e merecer-lhe favor este escrito meu.(CUNHA, 1895, p. 3)

Monteiro Lobato suprime os epítetos. Parece que eles se tornam desnecessários quando transpostos para essa nova modalidade textual, dirigida a um público que precisa ser guiado durante a leitura para se garantir uma apreensão do sentido pretendido pelo autor, evitando assim, que o leitor infantil se desinteresse pela obra, ou seja, abandone a leitura.

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6.4.2- Supressão de orações, expressões e palavras

Outra forma de supressão (encurtamento do texto) é a retirada de algumas orações como se pode perceber nos parágrafos treze, catorze e quinze do primeiro capítulo. Nestes parágrafos, Xavier da Cunha conta o encontro de Angélica com Rinaldo, um dos paladinos de Carlos Magno; sua fuga desesperada pela floresta e apresenta a personagem Ferragudo, o guerreiro mouro. Monteiro Lobato, diante dessas três cenas (encontro de Angélica com Rinaldo; fuga pela floresta e encontro de Angélica com Ferragudo) suprime, no parágrafo treze, a oração que apresenta a ação desesperada de Angélica, que foge daquele que fora outrora seu amor, Rinaldo: “voltando-lhe a garupa do palafrem, e correndo a toda a brida, nem sequer pensava em buscar no bosque a vereda mais fácil e mais desafrontada.”. Ele, Lobato, promove o encurtamento das orações, reduz a cena, retirando dela, detalhes descritivos “e correndo a toda a brida”, frases explicativas “nem sequer pensava em buscar no bosque a vereda mais fácil e mais desafrontada”, com o propósito de dar ao texto mais ação, dinamicidade. No parágrafo catorze, Lobato suprime a locução adjetiva coberto de poeira que ajuda a compor a imagem de Ferragudo banhada de suor “Na margem da ribeira, quem havia de ela encontrar? Ferragudo, banhado em suor e coberto de poeira...”. E no parágrafo quinze, Lobato retira a descrição de como Angélica corria, antes de encontrar com o guerreiro mouro: “A donzela ia correndo quanto podia e soltando gritos...”. Visando à economia textual e a uma leitura mais rápida, menos densa para quem lê (leitor infantil), Lobato retira, da versão que deseja adaptar, orações e palavras que trazem informações a respeito do estado psicológico das personagens, colocados na maioria das vezes com comparações de estados de espíritos, e outras situações que podem acontecer no dia a dia. No parágrafo setenta e oito do primeiro capítulo, as supressões revelam a retirada de palavras, expressões e orações que caracterizam as ações e os sentimentos que tornam o enredo mais embrenhado e, portanto, menos claro para o leitor infantil.

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A causa d‟aquela recíproca mudança está em duas fontes cujas águas desfrutam virtudes opostas. Destas duas fontes, ambas em Ardenne e com uma pequenina distância a separá-las, uma tem nas águas o condão de suscitar a flux nos corações a mais impetuosa ardência de amor: quem pelo contrário, acerta de beber na outra, fica de tal ardência curado, e transformado em gelo o que era fogo amoroso. Rinaldo que bebeu da primeira, e está hoje consumido de amor; da segunda bebeu Angélica, e e aí esta agora o motivo do seu ódio e da sua esquivança (CUNHA, 1895, p. 12)

As supressões de detalhes sobre a localização mais precisa do local e sobre a impetuosa ardência de amor fazem com que uma se transforme na outra. No parágrafo anterior ao setenta e oito, o narrador inicia a cena no momento em que Rinaldo encontra-se com Angélica e ambos apresentam sentimentos distintos um pelo outro. Assim, no parágrafo 79, o narrador explica a mudança de amor de Angélica, que passa a odiar o cavaleiro Rinaldo:

Aquela água, em que há misturado um veneno secreto, que transforma em ódios as paixões de amor, faz com que os serenos olhos de Angélica se turvem subitamente quando Reinaldo, se lhe depara e em frente corra a voz trêmula e a tristeza espelhada no rosto, suplica ela a Sacripante e encarecidamente lhe pede para sem mais delongas fugirem ambos, antes que deles se aproxime o recém-chegado guerreiro. (CUNHA, 1895, p.12)

As supressões de orações “Aquela água, em que há misturado um veneno secreto, que transforma em ódios as paixões de amor, faz com que” de palavras “deles” realizadas por Lobato no texto de Xavier da Cunha, buscam, como se pode perceber, no fragmento descrito acima, uma intervenção que busca a valorização da ação,e uma narrativa mais objetiva. Desse modo, orienta-se o leitor infantil pressuposto para o conhecimento da obra preferencialmente pelos fatos principais da ação, fundamentais para o entendimento e apreensão da obra, de forma rápida e sem muito esforço.

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6.5 – Procedimento textual: remodelamento

De acordo com Chartier (Op. cit., p. 100), nessa tarefa de adequar a obra ao leitor, o trabalho do editor e do escritor consiste em remodelar as estruturas textuais para responder às necessidades do público a que se destinam. Então, eles (editores, escritores) dividem o texto criando novos capítulos, multiplicando parágrafos, acrescentando títulos, resumos, substituições e atualizações e, às vezes, censuram blasfemas morais e religiosas.

6.5.1- Substituição e Atualização da linguagem:

É o procedimento que o editor, o escritor, utiliza para tornar a linguagem mais simples, através do corte de adjetivos, da substituição de termos difíceis por outros mais próximos da competência linguística do leitor que deseja atingir. Segundo Chartier (1996, p. 175)

Um segundo conjunto de transformações redutoras situa-se à escala da própria frase, com a modernização de fórmulas envelhecidas ou difíceis , a contracção das frases, depuradas das suas orações relativas ou intercalares, a supressão de numerosos adjetivos ou advérbios. A leitura capaz de aprender apenas enunciados simples, lineares, concisos. As distancias aparentemente insignificantes, entre os textos das edições de cordel e os das edições letradas, que eles retomam, traduzem a maneira como os impressores de Troyes (ou os que para eles trabalham) concebem as capacidades lexicais, limitadas e particulares, do grande número dos seus leitores potenciais.

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Na adaptação de obras adultas para o universo infantil ocorrem estes procedimentos, ao que parece, porque editores e escritores demonstram ter uma ideia muito direcionada a respeito da capacidade lexical e semântica de seus leitores. Nesse desejo de substituição e atualização da linguagem, Lobato produz intervenções, em sua maioria na: a) Utilização de verbos coloquiais; b) Modificação de tempos verbais e c) Troca de uma palavra por outra.

a) Utilização de Verbos Coloquiais:

A forma verbal “assentara” utilizada na expressão construída por Xavier da Cunha, no parágrafo cinco: “... onde o rei Carlos assentara arraiaes com seu guerreiros” exprime um fato passado já concluído, tomado em relação a outro fato também passado. No entanto, na linguagem coloquial, tem-se empregado com maior frequência o pretérito mais que perfeito composto “tinha assentado”, forma que Lobato utiliza para substituir o verbo assentar. No parágrafo seis do capítulo um, que retrata as estratégias de guerra utilizadas pelo exército mouro e o de Carlos Magno, “... por haverem tido a louca audácia um de trazer d‟África tudo quanto lá encontrou em condições de manejar espadas ou lanças ...” Lobato substituí a locução verbal - por haverem tido - pela – por ter tido - , já que o verbo haver na linguagem coloquial é substituído pelo ter. A mesma busca pela coloquialidade verbal, realizada por Lobato, ocorre quando ele reconta a derrota de Carlos Magno e dos cristãos frente ao exército mouro, parágrafo nove, pois substitui na expressão “... sobre os quais desabou tremenda uma derrota...”, o verbo desabar pelo sofrer. Desabar indica desmoronar, apresentando uma maior tonicidade, enquanto sofrer, mais perto da coloquialidade indica mais suavidade àquilo que aconteceu ao exército franco e, logo, maior entendimento ao público infantil. Maria Antonieta Antunes Cunha, em sua obra Literatura infantil: teoria e prática ,comenta a importância de renovar a linguagem dos textos, ou seja, modernizá-la: “... a renovação da linguagem, das próprias palavras, das ações verbais e dos seus contextos, para libertá-las dos clichês e mistificações que carregam consigo através das décadas, na medida em que se tornam conchas esvaziadas da vida que antigamente talvez tenham abrigado....” (1995, p. 56)

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As intervenções de Lobato no texto de Xavier da Cunha apresentam um desejo de descomplicá-lo para seu leitor, torná-lo uma versão mais palatável. b) Modificação de Tempos Verbais:

As substituições, realizadas por Lobato no interior do texto de Xavier da Cunha, não se limitam apenas a substituir uma palavra verbal por outra. Essa estratégia de intervenção textual, promovida por Lobato, apresenta também várias substituições relacionadas com o tempo verbal. Intervenções que dão presentificação à narrativa em alguns momentos e, em outros, mais movimentação, como se pode ver na descrição do parágrafo quinze do capítulo primeiro:

A donzela ia correndo quanto podia e soltando gritos. O sarraceno, ao escutar-lhe a voz, ergue-se a contemplá-la, e reconhece-a logo Ao vê-la o sarraceno reconheceu a formosa Angélica, não obstante a palidez e o medo que lhe transtornava as feições. : apesar mesmo de haver já decorrido muito tempo que não ouvira notícias d‟ela... é certo, certíssimo ter na sua frente a formosa Angélica. (CUNHA, 1895, p. 3)

Monteiro Lobato, ao retratar o desespero de Angélica fugindo de Reinaldo, substitui o tempo verbal - presente do indicativo - descrito por Xavier da Cunha pelo imperfeito do indicativo, dando mais movimentação à ação das personagens. Essa modificação do tempo verbal do presente para o passado em Lobato permite perceber que a ação narrativa é que determina as alterações, pois esta é o recurso narrativo mais adequado, segundo ele, ao público que quer atingir. Maria Teresa Gonçalves Pereira, em seu artigo Os Clássicos universais: de como as adaptações servem a tradição e a permanência de Dom Quixote, comenta

Toda e qualquer palavra, toda e qualquer construção lingüística pode figurar no texto e literalizá-lo ou, ao contrário, deliteralizá-lo. Dependerá do maestro, do artesão. As situações em que ele (re)organiza seu material, a relação que as palavras estabelecem com o contexto é que contam e não o uso de um ou outro tipo de linguagem, nem o registro culto ou coloquial, palavras fáceis ou difíceis. (2005, p. 20)

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Segundo, a pesquisadora, toda estratégia de intervenção no texto, com o propósito de adaptá-lo, deve levar em consideração a relação que a palavras estabelecem com o contexto. c) Troca de uma palavra por outra:

O parágrafo cinco relata o lugar onde Orlando se encontra e com quem - região dos Pirineus - ao lado de sua amada “... e passara a residir na falda dos Pyrineos, onde o rei Carlos....” Os Pirineus são uma cordilheira localizada no sudoeste da Europa, cujos montes formam uma fronteira natural entre a França e a Espanha. O nome Pirineus vem de uma personagem da mitologia grega, Pirene, amante de Hércules, filha de Bébrix: Hércules, após a morte de Pirene, teria erguido uma tumba à altura de seu amor, isto é, a cordilheira, onde repousa sua amada. O amor de Orlando é do tamanho da cordilheira. O ódio de Angélica também. Nesse (parágrafo) pode-se perceber que Lobato substitui a palavra “falda” pela palavra “montes”. A escolha lexical de Lobato não altera o aspecto semântico da palavra, mas torna a imagem da paisagem mais acessível à imaginação de seu leitor infantil. No parágrafo doze, Xavier da Cunha apresenta a chegada do valoroso paladino de Carlos Magno como o filho de Aymon, senhor de Montalvão. Utilizando a estratégia de substituição, Lobato apresenta-o como Rinaldo: “O recém-chegado era nem mais, nem menos, do que o valoroso paladino, filho de Aymon, e senhor de Montalvão...” O nome de Reinaldo no enredo aproxima afetivamente o leitor lobatiano de sua personagem. Esse tipo de substituição possibilita pensar uma certa intimidade do narrador em relação à personagem que apresenta ao seu leitor, que provavelmente seria inteligível, ou poderia oferecer um grau de dificuldade para o leitor do tempo contemporâneo. Um outro exemplo pode ser visto no parágrafo treze do mesmo capítulo, quando Lobato substitui a palavra “alheada” por “desvairada”: “A dama, voltando-lhe a garupa do palafrem, e correndo a toda brida... pálida e trêmula, completamente alheada...”. Tal estratégia dá ao texto uma linguagem mais próxima à do leitor e pode criar uma imagem mais forte na caracterização da personagem. Ana Maria Machado, na obra “Como e por que ler os clássicos universais desde cedo”, ao contar um pouco de sua história de leitora, indica algumas pistas, ajuda a pensar

113 sobre as estratégias utilizadas por Lobato no processo de remodelamento da obra Orlando Furioso para o público infantil:

Nesse ponto, meu pai parou, com um ar de desamparo hesitante. Pelo amor de Deus, o que acontecia depois? Eu devia estar tremendo de frustração excitada, tremendo mesmo. O pai interrompeu a leitura, diz que faltava alguma coisa, finge que não entendia o que está escrito, era preciso decifrarem juntos. Segura o dedo dele, vão lendo juntos, repetem a leitura, sílaba após,sílaba, consultando o dicionário quando necessário. (2002, p. 30)

Pode-se pensar que Lobato, por meio das palavras de Ana Maria Machado, faz o exercício de ler junto com o seu leitor o clássico italiano “Orlando Furioso”. Lobato procura propiciar ao leitor infantil um primeiro encontro com obras que fazem parte da tradição literária. Talvez Lobato estivesse pensando como Ana Maria Machado (Op. cit., 2002, p. 13) “Se o leitor travar conhecimento com um bom número de narrativas clássicas desde pequeno, (...) terá possibilidade de vir a acontecer quase naturalmente depois, no final da adolescência.”

6.5.2 - Acréscimos: operação de reescrita com coerência

Roger Chartier (Op. cit., p. 130) orienta que a estratégia de acréscimo de palavras, frases e orações pelos escritores e editores nas obras que buscam adaptar funciona, às vezes, com títulos antecipadores ou resumos recapitulativos, os quais funcionam como protocolos de leitura ou lugares de memória do texto.

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Em alguns momentos, os acréscimos realizados por Lobato têm como objetivo retomar as ideias que foram suprimidas, servindo como espécie de resumo, que retoma algumas informações que ele optou por cortar, evitando longas descrições, tanto dos locais quanto das personagens. O resumo constrói um enredo mais enxuto e cria uma estratégia de escrita coesa, ligando os fatos e as ideias. O acréscimo, em síntese, utilizado por Lobato, consiste em interligar a narrativa reconstruída por ele, e, em outros momentos, apenas, apresentar palavras que expressem com mais clareza os fatos narrativos. Nos dois primeiros parágrafos do primeiro capítulo da obra de Xavier da Cunha, Lobato, após realização das estratégias de atualização da linguagem e supressão, acrescenta o nome de Ariosto como narrador dessa história de amores e de façanhas que ocorrem na época de Carlos Magno “Aqui conta Ariosto de damas e cavaleiros”. É possível pensar que Lobato esteja buscando uma apresentação do autor italiano ao seu leitor, semelhante ao que foi feito por dona Benta na obra Dom Quixote das crianças ao explicar o nome de Miguel de Cervantes aos leitores do Sítio do Picapau Amarelo

Este livro – disse ela – é um dos mais famosos do mundo inteiro. Foi escrito pelo grande Miguel Cervantes Saavedra. Quem riscou o segundo a de Saavedra... Esta edição foi feita em Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de Castilho e pelo Visconde de Azevedo... (LOBATO, 1964, p.12)

No momento em que o narrador descreve o encontro de Angélica e Ferragudo, após sua decisão de fugir, já que temia a derrota de Carlos Magno diante dos sarracenos, Lobato acresce junto ao nome de Ferragudo a expressão guerreiro mouro, possivelmente buscando explicar ao seu leitor quem é este cavaleiro. Remetendo, também, ao mundo da religião, pois este assunto – cristãos versus mulçumanos – é de grande relevância ao enredo do Orlando Furioso:

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Na margem da ribeira, Ali, quem havia de ela encontrar? Ferragudo, < o guerreiro mouro, que > banhado em suor e coberto de poeira, devorado por uma sede ardente fatigadíssmo. Por matar tal sede e por descansar um deixara a batalha e viera descansar e beber, acontecendo-lhe cair n‟água o seu elmo precioso. pouco, tinha ele, uns momentos antes, arredado pé da batalha; mas sucedera lhe demorar-se mais do que desejava, em conseqüência de lhe ter caído n‟água o elmo, e não haver podido ainda reavê-lo.

Monteiro Lobato, no sexto parágrafo do capítulo primeiro da narrativa de Xavier da Cunha, acrescenta ao nome “Carlos” o adjetivo “Magno”: “Carlos Magno pretendia dar uma severa lição...”. Talvez, ele (Lobato) tinha como propósito aproximar o leitor do Orlando Furioso da obra Carlos Magno e os doze pares da França, obra muito conhecida no Brasil, especialmente no século XIX e XX (ABREU, 2003). Portanto, os acréscimos são estratégias de esclarecimentos dos fatos históricos, das personagens, provavelmente desconhecidos do leitor contemporâneo. Uma estratégia de ensinar, formar a criança.

6.5.3– Inversão e Conservação: operação de remodelação da frase, das orações e do parágrafo

A inversão é mudar, deslocar uma palavra de um lugar para outro. Em Lobato, essa estratégia produz um efeito semântico e lingüístico como se pode perceber na descrição do trecho que apresenta as armas de Reinaldo:

Trazia ele couraça e elmo: na cinta a espada, no braço o escudo ; ~ espada à cinta, o escudo no braço ~. < E >corria pela floresta mais ligeiro do que se fora um vilão semi nu a disputar n‟algum jogo de corridas o prêmio da velocidade. Angélica, apenas o viu, imediatamente soltou deu rédeas ao cavalo, ~ e fugiu ~ mais ligeira também do que fugira uma tímida pastorinha se em frente lhe surgisse uma que topasse horrível serpente. (CUNHA, p. 2)

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Como se pode ver, além das supressões, substituições, a fim de dar mais objetividade à narrativa, há também a inversão no posicionamento da seguinte expressão “na cinta a espada; no braço o escudo”. Xavier da Cunha valorizou o lugar em que se encontram as armas; enquanto Lobato “espada à cinta, o escudo no braço” valoriza as armas. Uma outra forma, de realização da estratégia de inversão ocorre no nono parágrafo do texto de Xavier da Cunha, quando Lobato coloca a expressão “em prêmio” depois do verbo dar:

O que fez foi prometer-lhes que em prêmio a daria /em prêmio/ mais tarde àquele dos dois que em tão importante jornada campanha exterminasse maior número de infiéis, e pelo valor de seu braço mais se distinguisse. < A sorte da guerra >, O êxito, porém, é que não correspondeu aos votos dos guerreiros cristãos, sobre os quais desabou tremenda que sofreram uma derrota:, /figurando/ na multidão dos prisioneiros figurou o próprio duque, e a sua cuja tenda ficou abandonada. (CUNHA, 1895, p.2)

A substituição, supressão e inversão como se pode perceber no trecho acima, indica uma valorização da ação, recurso próprio das narrativas que buscam na oralidade formas de aproximação do texto escrito de seu leitor. O adaptador ou tradutor e o editor de uma obra não se preocupam apenas em cortar, fracionar, reduzir, encurtar ou simplificar o texto primeiro, buscando adequá-lo ao seu público leitor. Eles também conservam alguns parágrafos, sem os quais a história perderia o sentido. De acordo com Michel Foucault (2004), conservação é uma estratégia que prevê a manutenção de determinadas características da obra fundante, sob pena de a adaptação perder sua ligação com ela. Então, o que se pergunta é: Quais os motivos que levaram o adaptador, Lobato, a conservar somente os parágrafos cinquenta a setenta e dois do quarto capítulo do Orlando Furioso? Seria, talvez, a falta de tempo? Já que nos três primeiros capítulos, ele não realiza a estratégia de conservação.

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Monteiro Lobato, a partir dos parágrafos cinquenta a setenta e dois do quarto capítulo do Orlando Furioso de Xavier da Cunha, mantém os parágrafos, somente retirando a numeração ordinária deles, possibilitando pensar que havia o desejo de conservá-los em sua adaptação, ou seja, transcrever a totalidade deles, para que o seu texto não perdesse a ligação com a obra fundante – o Orlando Furioso. Logo abaixo, transcrição do parágrafo sessenta e dois do quarto capítulo na forma de tabela, buscando exemplificar a estratégia de conservação realizada por Lobato. Na primeira coluna foi colocado o texto de Xavier da Cunha; na segunda o parágrafo com a pequena supressão de Lobato e, na última coluna, como ficaria o texto de Lobato:

Xavier da Cunha Intervenção de Lobato Adaptação de Lobato

62. E a riqueza do dote! E a 62. E a riqueza do dote! E a E a riqueza do dote! E a grandeza grandeza da posição? E a gratidão da posição? E a gratidão d‟El-Rei grandeza da posição? E a d‟El-Rei pelo fato de lhe pelo fato de lhe reabilitardes sua gratidão d‟El-Rei pelo fato de reabilitardes sua honra (que hoje honra (que hoje perdida esta quase) perdida esta quase) Não Não constituirá isso tudo elementos lhe reabilitardes sua honra constituirá isso tudo elementos para ficardes feliz. As próprias leis (que hoje perdida esta quase) para ficardes feliz. As próprias da cavalaria vos estão impondo a leis da cavalaria vos estão obrigação de vingar contra Não constituirá isso tudo impondo a obrigação de vingar semelhante perfídia uma donzela elementos para ficardes feliz. contra semelhante perfídia uma que, na opinião publica, passa por donzela que, na opinião publica, um modelo de verdadeira castidade. As próprias leis da cavalaria passa por um modelo de vos estão impondo a verdadeira castidade. obrigação de vingar contra semelhante perfídia uma donzela que, na opinião publica, passa por um modelo de verdadeira castidade.

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6.6 - Procedimentos Tipográficos

Segundo Chartier (Op. cit., 178), os procedimentos tipográficos equivalem a uma estratégia editorial que dá aos objetos fórmulas próprias, que organiza os textos de acordo com dispositivos específicos, traçando a genealogia, classificando os conteúdos. O texto Orlando Furioso, não chegou a ser publicado por Lobato, por isso uma análise dos procedimentos tipográficos não são possíveis, já que para compreender os significados implica claramente o regresso ao próprio impresso, na sua materialidade. Poder-se-ia imaginar o texto Orlando Furioso adaptado por Lobato, pois, de acordo com Chartier (Op. cit., 174), os editores propõem ao seu público textos que originam séries, quer pela identidade do seu gênero, quer pela sua temática encontradas em formas diferentes. São assim criadas redes de textos, que por vezes remetem explicitamente uns para os outros, que trabalham sobre os mesmos motivos, reproduzidos, alterados ou invertidos, e cujas relações não são de modo algum fundamentalmente diferentes das que existem no interior de um dado texto. As intervenções tipográficas de Lobato, como já foi dito, estão relacionadas com as ilustrações, pois nelas têm-se o desejo de Lobato de seleção (escolha) e de encurtamento. Roger Chartier, em seus estudos sobre a escolha da ilustração apresenta-a como uma estratégia editorial utilizada para seduzir o leitor e orientá-lo na construção de sentidos do texto verbal.

Se a imagem é única, encontra-se quase sempre ou nas primeiríssimas páginas o livro, ou na última de todas. Instaura-se assim uma relação entre ilustração e o texto no seu todo, e de forma nenhuma entre a imagem e esta ou aquela passagem particular. Colocada à cabeça, a ilustração induz uma leitura, fornecendo uma chave que indica através de que figura deve ser entendido o texto, quer a imagem leve a compreender a totalidade do livro pela ilustração de uma das suas partes, quer ela proponha uma analogia que irá orientar a decifração. Colocada na última página, a imagem tem outra função, uma vez que permite fixar e cristalizar, em torno de uma representação única aquilo que foi uma leitura entrecortada e muito fraccionada. Fornece assim memória e a moral do texo. (Op. Cit.; 186)

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As imagens (ilustração) assumem um papel muito mais significativo quando se juntam ao texto, pois produzem outros sentidos. A ilustração e o texto em sua materialidade cruzam-se, contaminam-se, aproximam e se distanciam no momento da produção de sentidos pelo leitor. A imagem (ilustração) mais do que dialogar com o texto, junto a ele permite uma leitura diferente daquela realizada apenas a partir do texto ou apenas da ilustração.

6.7- Ilustração: escolha e encurtamento

As imagens (ilustrações) de Gustavo Doré na obra Orlando Furioso de Xavier da Cunha totalizam aproximadamente 450, as quais podem ser divididas em três categorias: gravuras horizontais de tamanho mediano, vinhetas e gravura de página inteira. Ana Beatriz de Araujo Linardi, em sua tese de Doutorado VT Pictvra Poesis: Dom Quixote e Dalí (2007), apresenta a seguinte definição destas categorias: a) Gravuras horizontais de tamanho mediano: constituiem desenhos elaborados de cenas e tramas, geralmente uma espécie de resumo gráfico de cada capítulo. Faz, na maioria das vezes, referência ao título do capítulo, e sempre vêm acompanhadas de uma legenda recortada do texto. b) Vinhetas: pequenos desenhos apresentados em recorte. Retratam, em sua maioria, personagens secundários. Encontramos também alusões metafóricas. c) Gravuras de página inteira: grandes gravuras meticulosamente construídas que formam o conjunto principal da obra. Essas gravuras contam a história, reproduzindo os acontecimentos principais.

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Monteiro Lobato apresenta marcas de redução de tamanho em 10 imagens, das 30 que estão entre os capítulos quatro e vinte e oito do texto de Xavier da Cunha. As imagens (ilustrações) presentes nos capítulos indicados acima são: Um barco em meio a tempestade, Rugiero na floresta de Alcina; Monstros de Alcina; Alcina em seu trono de rainha; Alcina; Rosto envelhecido de Alcina; Maruges na gruta; Monstro que tenta matar Orlando; O rapto de Angélica e Merlim. Nove, das escolhidas por Lobato, apresentam uma proposta de redução para onze centímetros e as outras três para quatro centímetros. Talvez essa redução para tamanhos diferentes, proposta por Lobato, esteja relacionada com sua experiência na organização das ilustrações de outras adaptações que fez para o mercado infantil como, por exemplo, nas apresentadas nas obras Dom Quixote, de Miguel Cervantes e Viagens de Gulliver, de J. Swift, e outras. A escolha de Lobato parece seguir o caminho determinado pelo enredo. Elas (ilustrações) estão diretamente ligadas aos textos que as circundam. As (imagens) ilustrações revelam os monstros, os perigos do mar, as tempestades, as feiticeiras, os desejos idílicos e bucólicos, as aventuras e os encontros amorosos. Esses temas estão relacionados com as personagens principais: Rugiero, Orlando, Reinaldo, Angélica, Bradamante e Alcina. Parece que para uma obra infantil, a imagem é tão importante quanto o texto. Ambas as linguagens - iconográfica e textual- dialogam entre si, provocando sentidos no leitor. Possibilita pensar que o leitor infantil gosta de se aventurar pelo texto e acompanhar a narrativa pelas imagens. Monteiro Lobato, provavelmente, sabia disso e cuidava de ambas as linguagens, em seu novo projeto editorial. Maria das Dores Soares Maziero, em sua dissertação sobre Mitos Gregos na Literatura Infantil: que Olimpo é esse? (2006, p. 99), aponta que as ilustrações contribuem para completar esteticamente o sentido, pois ajudam a compor o contexto da obra. É de se indagar por que essas imagens (ilustrações) e não outras trazem anotações de Lobato. São as mais importantes ao enredo? A proposta de redução de tamanho está relacionada com a importância da ilustração ao enredo ou ao projeto editorial? Será que as anotações nas ilustrações são comentários, apreciações que marcam a leitura de Lobato ou uma marcação que o ajudará na publicação da obra para as crianças? Ou ambas? Ele (Lobato) está expressando sua opinião sobre as imagens ou escolhendo algumas para

121 acompanhar o texto adaptado, orientado, no entanto, pelo que considera interessante pelo seu público leitor? No quarto capítulo, precisamente na página quarenta e três, Lobato faz a primeira intervenção pictórica ao marcar na gravura horizontal de tamanho mediano uma redução para onze centímetros. Esta ilustração remete a um navio em meio ao oceano, enfrentando uma tempestade, possivelmente uma construção imagética do parágrafo trinta ao quarenta e dois do capítulo referido. Nesse capítulo Orlando é pelo amor à Angélica. E (Orlando) tem um sonho premonitório que lhe adverte do perigo que corre sua amada, e, disfarçado, abandona o exército de Carlos Magno em busca de Angélica. Durante seu caminho tem notícias de que Angélica está presa na região de Ebuda e embarca rapidamente para lá. Para Guto Lins (2002, p. 31), a imagem é a materialização daquilo que o texto escrito deseja contar. A junção do texto e da imagem daria ao leitor a possibilidade de criar a sua própria história: “O texto escrito conta uma história de imagens nas linhas e nas entrelinhas. A imagem completa e enriquece esta história a ponto de cada imagem poder gerar diversas histórias. O texto e a imagem juntos dão ao leitor o poder de criar na sua cabeça a única história que realmente interessa, a história dele.”

Observa-se a força da imagem! Um navio a enfrentar um mar agitado, um céu escuro. Uma imagem que anuncia aventura, perigos. Os perigos enfrentados pelas personagens (Reinaldo, Orlando e Rugiero) em busca de sua amada (Angélica).

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Enquanto, a inoportuna tempestade altera a rota do navio de Orlando para a Holanda, Rugiero, cavaleiro mouro, procura Angélica na ilha de Alcina19:

______19- Essa ilustração apresenta marcas de redução, para onze centímetros, encontra-se no sexto capítulo. Ela é uma gravura de página inteira com o propósito de apresentar pictoricamente Rugiero em meio à floresta de Alcina.

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Ruggiero pretende ir para o reino de Logistilla, e encontra-se em meio à floresta, mas os monstros barram-lhe o caminho. É seduzido e guiado para o reino de Alcina, uma poderosa bruxa, uma feiticeira. A imagem (ilustração) mostra a ilha de Alcina, que segundo alguns viajantes situa- se perto da costa do Japão, e, outros no Caribe. Trata-se de uma ilha grande, do tamanho da Sicilia, com floresta luxuriante: bosques de loureiros, palmeiras, cedros. Murtas e laranjeiras lançam sua sombra sobre as colinas e campos. Fauna escassa: lebres, coelhos, cervos, cabras e alguns monstros. A situação política é um tanto complexa. Após a morte do rei anterior, a filha legítima, Logistilla tornou-se a herdeira do trono. Porém, o rei tinha duas filhas com outra mulher, Alcina e Morgana, ambas instruídas na ciência da feitiçaria. Alcina e Morgana lutaram contra Logistilla e lhe deixaram apenas uma estreita faixa de terra entre um grande golfo e um monte escarpado. Alcina satisfazia sua luxúria, trazendo para a ilha inumeráveis amantes que depois transformava em pedras ou plantas. Ela comandava um exército de monstros masculinos, femininos e hermafroditas – centauros, homens-gatos, homens-macacos e homens-cães – e, com sua magia construiu uma cidade esplêndida, capital da ilha, cercada por uma imensa muralha de ouro, e um palácio, provavelmente o mais lindo e alegre do mundo (MANGUEL, 2003, p. 14)

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Na página sessenta e sete há uma vinheta selecionada por Lobato. Nela há uma indicação de redução para onze centímetros. Lobato parece querer destacar esses monstros que barram Ruggiero em seu caminho para o reino de Logistilla. É uma espécie de close up, conforme a (imagem) ilustração apresentada abaixo. São personagens que povoam o universo mental infantil. Uma mistura de tempo real e fantasia. Para Maria Maziero (2006), as ilustrações oferecem ao leitor a possibilidade de completar a leitura do livro, contribuindo para a formação de uma cultura visual, mas também dando elementos (mundo dos feitiços, encantamentos) para fomentar o imaginário infantil.

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Essa imagem (ilustração) presente no sétimo capítulo entre as páginas setenta e seis e setenta e sete, no formato gravura horizontal, também escolhida por Lobato para ser reduzida para onze centímetros, apresenta a imagem de Alcina descrita em seu reino de encantos e de lúxuria. A imagem (ilustração) é apresentada ao leitor com os seguintes dizeres “A formosura de seu corpo era tal, que a fantasia dos pintores não saberia inventar quem lha a excedesse” que vem logo abaixo da gravura. A personagem Alcina assemelha-se a uma outra personagem presente no clássico grego de Homero, a Odisséia. No livro X, Ulisses visita uma outra ilha na qual habita uma feiticeira chamada Circe, que com poderosa bruxaria, tinha o dom de transformar homens em animais, transformando os companheiros de Ulisses em porcos, porém foi vencida pela esperteza do grego que consegue desencantá-los.

www.submerina.wordpress.com/.../circe-as-strength/

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Rugiero, seduzido pela beleza de Alcina, torna-se seu amante, mas graças a um anel mágico, descobre que a feiticeira era, de fato, velha e feia. Refugiou-se então no pequeno reino de Logistilla, enquanto outra feiticeira, , retransformava os amantes anteriores de Alcina em homens. Liderando seu exército de monstros, Alcina entrou em batalha contra sua meia-irmã, mas foi derrotada por Rugiero, graças a um escudo encantado com o poder de ofuscar e derrubar seus oponentes (MANGUEL,2003,p. 14).

No sexto capítulo, na página oitenta e cinco, Lobato escolhe uma outra vinheta e propõe uma redução para quatro centímetros. Nesta (vinheta) tem-se Alcina apresentada sem a formosura e a beleza, sem o encantamento que fizera para si mesma, uma ilusão metafórica. É uma imagem disforme, assustadora.

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Considerações finais

Toda pesquisa parte do desejo de buscar algo, de chegar a algum lugar. A pesquisa é a superação de obstáculos, os quais, às vezes, apesar de se apresentarem como muito complicados, nunca podem ser intimidadores. As dificuldades que me propus a enfrentar foram basicamente três: fazer um levantamento, de forma mais panorâmica, da criação e da difusão, pela Europa, entre os séculos XVI e XIX e, no Brasil, durante os séculos XVIII, XIX e XX do Orlando Furioso de Ariosto; elaborar uma reflexão sobre os aspectos tipográficos do Orlando Furioso vertido para a Língua Portuguesa por Xavier da Cunha no ano de 1895 e, finalmente, buscar entender as estratégias textuais e editoriais utilizadas por Lobato no processo de adaptação do Orlando Furioso - traduzido por Xavier da Cunha - para o leitor infantil. A adaptação do Orlando Furioso que estava sendo realizada por Lobato, conta, conforme tradição nas obras adaptadas para o público infantil, com a figura de um mediador, incumbido da simplificação do texto através de cortes, supressão de episódios, atualização e adequação da linguagem. Este mediador é a figura do adaptador, que não apenas exclui, mas também conserva determinados parágrafos considerados essenciais para a compreensão da trama que dá coerência e coesão ao texto num processo de intertextualidade e desafio de (re)escrita do dia. As histórias de amor impossível (Orlando por Angélica e Rugiero por Bradamante), e de guerra (cristãos contra muçulmanos), ainda despertam interesse nos leitores, apesar das transformações sofridas pela sociedade, pela escola e pelo mercado editorial responsável pela divulgação da literatura infantil (ZILBERMAN, 2003). Segundo Maziero (2006), o que parece pairar acima de todas as escolhas editoriais ligadas à publicação de adaptações das obras consideradas clássicas é a necessidade de iniciar a inserção das crianças no universo de uma cultura humanística, reconhecida e valorizada pelos adultos responsáveis pela educação das novas gerações. As intervenções textuais e tipográficas realizadas por Lobato no processo de recriação do Orlando Furioso são pistas daquilo que o Lobato editor considerava importante do ponto de vista da linguagem, do enredo e da ilustração para conquistar o seu leitor.

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Para Lobato, o que é importante? Uma linguagem mais fácil, mais próxima do leitor de seu tempo. Uma linguagem coloquial. Um enredo mais ágil, com mais ação nas cenas e menos descrições. Ilustrações que revelem o conteúdo dos parágrafos, identificando as personagens principais e secundárias. De acordo com Chartier (1996), ao comentar as estratégias (textuais e tipográficas) dos editores na coleção de livros de cordel, estas têm a função de desbastar o texto, de abreviar alguns episódios, de efetuar cortes e amputar relatos julgados supérfluos evitando, sobretudo, as descrições das características sociais. Do conjunto das 450 ilustrações de Gustave Doré na obra estudada 30 apresentam intervenções de Lobato de diferentes naturezas. Um tipo é de propor uma diminuição no tamanho de ilustração na página, adequando-se a um modelo de livro menor. Um outro tipo de intervenção é a seleção de uma quantidade menor de imagens com a intenção possivelmente de diminuir o volume de páginas do livro a ser publicado. As imagens selecionadas estão diretamente ligadas às cenas de aventura e de romance dos personagens principais de enredo. Tais intervenções no texto verbal ou na ilustração não são meramente formais ou estruturais. Qualquer alteração na forma está intimamente relacionada ao conteúdo que se escreve, configurando assim a criação de uma nova obra. As anotações de Lobato, quer no enredo, quer nas imagens, produzem novas condições enunciativas que são constitutivas da obra para outros leitores que não são mais aqueles previstos por Xavier da Cunha. A análise das estratégias, realizadas por Lobato no corpus textual do Orlando Furioso mostrou-me que provavelmente o Orlando estaria dentro do projeto editorial de Lobato de produzir e reescrever obras clássicas para as crianças no Brasil, embora não tenha sido editada por ele e por nenhum outro. Consulta aos catálogos do período de 1960 a 2008 das editoras Scipione, Melhoramentos e Ediouro - empresas editoriais que trabalham com adaptações estrangeiras e nacionais – revelou que ainda não houve a transformação da obra Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, em adaptação. Em 1960, de acordo com Ghirardi (2004), Ítalo Calvino, em italiano, reconta, em forma de adaptação em prosa, o Orlando Furioso para o público infantil. Durante toda a

130 década de 90 do século XX e início do século XXI, o grupo O Sobrevento vem apresentando o espetáculo teatral Orlando Furioso, com bonecos movimentados por vergalhões de ferro. Conforme página de propaganda na internet (http://teatro-de- bonecos.blogspot.com/2009/02/orlando-o-furioso.html - 13/01/2010), trata-se de um espetáculo destinado ao público adulto. Embora, muitos clássicos estrangeiros tenham sido adaptados por Lobato (Viagens de Gulliver, Robinson Crusoé e outros) e pelas editoras que trabalham com adaptações (Ilíada, Os Lusíadas, Odisséia e outras), o Orlando Furioso ainda não teve uma publicação impressa para o público infantil. Em 2002, Ana Maria Machado publica, pela editora Objetiva, Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, uma obra que é um passeio pelos grandes textos da literatura universal. O texto apresenta várias orientações e dicas de leitura para que adultos - pais e professores, em especial - indiquem para as crianças. A autora faz um mergulho no que, segundo ela, já se produziu em literatura infantil, mas não apresenta nenhuma referência ao Orlando Furioso, nem mesmo na indicação de um capítulo denominado Eternos e sempre novos, no qual indica obras da literatura clássica. Portanto, essa história de amor e guerra, em língua portuguesa, ainda não foi adaptada para o público infantil, ou seja, “ainda não está ao alcance da compreensão imatura da garotada”. (MACHADO, 2002, p. 12). Finalizo, sem o desejo de terminar, com a mesma curiosidade do Visconde, personagem do sítio do Picapau Amarelo: Será que nos 110 volumes presentes na biblioteca de Maria Luiza não haveria o Orlando Furioso? Já terminado, editado e pronto para as crianças brasileiras? “Emília, que estava ao meu lado, leu também sua carta e disse: “ Sim senhor! Está aqui uma menina que bem merecia morar no sítio de dona Benta e tomar parte nas nossas aventuras”... O Visconde também ficou assanhado quando soube que a biblioteca de Maria Luiza tem 110 volumes... 22”

______22- Trecho de carta escrita por Lobato, em resposta a sua interlocutora infantil, Maria Luísa – que contava ao escritor ter uma biblioteca com 110 volumes - em 4 de março de 1936. Documento pertencente ao arquivo CEDAE/IEL/Unicamp.

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CATÁLOGO:

Catálogo Informativo da Biblioteca Nazionale Centrale di Roma, 12 de dezembro 2008. Catálogo da Bibliothèque Nationale de França, 12 de dezembro de 2008. Catálogo da Biblioteca Miguel Cervantes, 12 de dezembro de 2008. Catálogo da Biblioteca Frenesi, 12 de dezembro de 2008. Catálogo da revista Scipione e Ática

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Anexo 1: transcrição das interferências de Lobato na obra Orlando Furioso de Xavier da Cunha

Capítulo 1

1-Damas e cavaleiros, combates , amores, galanteios, ousados empreendimentos do tempo em que os Mouros d‟África atravessaram o mar e tanto estrago produziram na França, estimulados pela cólera e pelos ímpetos juvenis de seu rei Agramante, que na pessoa do rei Carlos, imperador de Roma, se gabava de vingar a morte de Troiano, - tudo isso vai o leitor encontrar aqui. < Ano 770 Idade Média > 2 Simultaneamente contarei eu de Orlando o que nunca ninguém contou ainda em prosa ou verso: e o leitor ficará sabendo como foi que perante o amor se tornou louco-furioso um cavaleiro que em tempos tinha desfrutado a reputação de sensatíssimo. (Oxalá queira aquela que também quase tão louco me tornou, e que de dia para dia vai consumindo o meu espírito já fraquíssimo, consentir-me d‟ele uns restos suficientes para eu levar a cabo o que ora aqui prometo! ) Aqui conta Ariosto de damas e cavaleiros, amores e façanhas desmedidas, tradições e generosidades acontecidos no tempo do imperador Carlo Magno; e conta de como o paladino Orlando, se fez louco furioso por amor de Angélica; e de Rogério, e de Bradamente, e de toda uma legião de guerreiros e donzelas famosas. 3. E vós, ó generoso descendente de Hércules, ornamento e esplendor do século em que vivemos, vós, ó Hipólito, dignai vos acolher o único preito que o vosso humilde servo pode tributar-vos. Preito de palavras, que de outro modo não posso agradecer o que vos devo! E não m‟o rejeiteis por mesquinho, que n‟ele vai tudo quanto cabe em minhas débeis forças. 4. Entre os mais dignos heróis que me proponho louvar, encontrareis memorado aquele Rogério que de vós e de vossos ilustres antepassados foi tronco. Se honrar-me quiserdes escutando-me, ouvireis a narrativa de seu alto valor e de suas brilhantes proezas: possa o vosso alto pensamento inclinar-se um pouco e merecer-lhe favor este escrito meu. 5.Orlando, que desde há muito se achava enamorado da formosa Angélica, - e por esse amor trocara os troféus imortais que na Índia, na Média, e na Tartaria, lhe competiam, - regressara com ela às regiões do Ocidente, e passara a residir na falda dos aos montes Pyrineos, onde o imperador rei Carlos assentadora com seus guerreiros de França e de Alemanha. 6. Que pretendia Carlos: dar Carlos Magno pretendia dar uma severa lição ao no rei Marsílio e ao rei Agramante, por haverem por ter tido a louca audácia, um de trazer d‟África tudo quanto < homens > lá encontrou em condições de manejar espadas < e outra no rei Agramante >, ou lanças, o outro de haver arrastado a Espanha contra o belo reino da França. N‟isto Chegou Orlando muito a propósito, 7-Mais lhe valera, porém, que não mas antes não tivesse chegado! porque em breve lhe seria tinha de ser-lhe raptada a sua dama (e assim é que às vezes tresvaria o juízo dos homens). Aquela que do Oriente ao Ocidente ele havia sempre valorosamente defendido... ei-la raptada agora, na sua própria terra, em pleno grêmio de tantos amigos seus, sem mesmo ocasião a ele oferecer-se de sua espada desembainhar! sem que lhe pudesse desembainhar a espada! O sábio Imperador, que desejava apagar um violento incêndio, esse foi quem lh‟a raptou.

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8. < O caso foi assim. > Entre o conde Orlando e seu primo Reinaldo suscitara-se poucos dias antes uma contenda, porque ambos ardiam de amorosos desejos por tão rara beldade. Carlos, < Magno >, a quem tal essa rivalidade não convinha, porque d‟eles lhe resultaria ficar menos garantida a coadjuvação, – tratou de mandou raptar-lhes a donzela, entregando-a nas mãos do duque de Baviera. 9. O que fez foi prometer-lhes que em prêmio a daria /em prêmio/ mais tarde àquele dos dois que em tão importante jornada campanha exterminasse maior número de infiéis, e pelo valor de seu braço mais se distinguisse. < A sorte da guerra >, O êxito, porém, é que não correspondeu aos votos dos guerreiros cristãos, sobre os quais desabou tremenda que sofreram uma derrota:, /figurando/ na multidão dos prisioneiros figurou o próprio duque, e a sua cuja tenda ficou abandonada. 10. A donzela, destinada para prêmio d‟aquele dos dois que na luta mais proezas praticasse achava-se a cavalo já, tempo antes que a batalha se decidisse. , E, quando lhe palpitou que n‟aquele dia a fortuna das armas seria adversa contraria aos Cristãos, e tratou de fugir, embrenhando-se < a cavalo > n‟um bosque., Ali n‟uma vereda estreita, < no qual > deparou-se lhe encontrou um guerreiro caminhando a pé. 11. Trazia ele couraça e elmo: na cinta a espada, no braço o escudo ; ~ espada à cinta, o escudo no braço ~. < E >corria pela floresta mais ligeiro do que se fora um vilão semi nu a disputar n‟algum jogo de corridas o prêmio da velocidade. Angélica, apenas o viu, imediatamente soltou deu rédeas ao cavalo, ~ e fugiu ~ mais ligeira também do que fugira uma tímida pastorinha se em frente lhe surgisse uma que topasse horrível serpente. 12. O recém-chegado era guerreiro encontrado / era / nem mais, nem menos, do que o valoroso paladino, Reinaldo, filho de Aymon, e senhor de Montalvão, :por um singularismo caso extraviara-se lhe o que andava à procura do seu corcel Baiardo. Apenas ele de longe avistou a dama, reconheceu logo, apesar da distância, o angélico semblante d‟aquella da que o trazia tão enredado o trazia em laços de amor. 13. A dama < ,pálida > voltando-lhe a garupa do palafrem, e correndo a toda a brida, nem sequer pensava em buscar no bosque a vereda mais fácil e mais desafrontada. Pálida e trêmula, completamente alheada desvairada, < voltou-lhe as costas >, e confiando ao cavalo, em que monta a escolha do caminho, que deva seguir, - subindo aqui, descendo acolá, tantas voltas deu pela floresta que veio parar junto a uma ribeira. 14. Na margem da ribeira, Ali, quem havia de ela encontrar? Ferragudo, < o guerreiro mouro, que > banhado em suor e coberto de poeira, devorado por uma sede ardente fatigadíssmo. Por matar tal sede e por descansar um deixara a batalha e viera descansar e beber, acontecendo-lhe cair n’água o seu elmo precioso. pouco, tinha ele, uns momentos antes, arredado pé da batalha; mas sucedera lhe demorar-se mais do que desejava, em conseqüência de lhe ter caído n‟água o elmo, e não haver podido ainda reavê- lo. 15. A donzela ia correndo quanto podia e soltando gritos. O sarraceno, ao escutar-lhe a voz, ergue-se a contemplá-la, e reconhece-a logo Ao vê-la o sarraceno reconheceu a formosa Angélica, não obstante a palidez e o medo que lhe transtornava as feições. : apesar mesmo de haver já decorrido muito tempo que não ouvira notícias d‟ela... é certo, certíssimo ter na sua frente a formosa Angélica.

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16. Cortez, e de coração inflamável não menos que como os dos dois primos, - Ferragudo ofereceu logo à dama todo o auxílio possível., Corajoso e ousado, como se nem o elmo lhe faltasse, puxou da espada e puxando a espada, /ameaçadoramente/, correu ameaçador para Reinaldo, < com o qual > que d‟ele pouco se temia também: ambos se tinham já por várias vezes visto, e por várias vezes < já se tinha > encontrado com as armas na mão. 17. Travou-se entre eles o combate à espada: < trocando > ambos a pé, e ambos furiosos: golpes, capazes de fender atravessar bigornas. que fariam em simples couraças e em finas malhas de ferro?... < Mas > E enquanto ambos, um contra o outro, < assim > mutuamente se encarniçam encarniçavam... eis que o palafrem de Angélica se lhes esquiva porque ela o estimula quanto pode , a galopar < loucamente>, através da floresta e pelos campos fora. 18. Depois que por um largo espaço os dois guerreiros de < longa peleja em que > se cansaram debalde, esforçando-se por mutuamente se derribarem, sem que de um < dominares > o ou de outro se pronunciasse inferioridade, foi o senhor de < Reinaldo > Montalvão quem primeiro dirigiu a palavra ao sarraceno,. em tom de quem sente o coração inflamadíssimo a ponto de já não poder mais suportar semelhante ardência. 19- E disse ele ao pagão: O empenho com que procuras causar-me dano, a ti próprio causa t‟o também. Tudo isto porque? porque sentes inflamado o teu coração nos fulgurantes raios d‟aquele novo sol. Mas ... que vantagem colhes tu em fazer me aqui demorar? [Cuidas que, se conseguires matar-me ou aprisionar-me, ficará sendo tua a formosa dama? Não vês que nos foge, enquanto nós aqui nos demoramos? 20- Visto que também lhe tens amor, não seria melhor que lhe fosses embargar a carreira,? tolhendo-a de se nos escapar para mais longe? Quando a tivéssemos em bom recato, poderíamos então decidir pelas armas a qual dos dois deveria pertencer. Não sendo assim, arriscamo‟-nos ambos a colher da nossa mútua teimosia funestíssimos males.” 21- Não desagradou ao sarraceno a proposta do seu rival. Adiou-se o combate, e veja se n‟isto como facilmente esquecem o ódio e a cólera! ajustaram-se entre elles tréguas tão cavaleirosasheirescas, que o pagão, ao afastar-se da fresca ribeira, não consentiu que seguisse a pé o filho de Aymon: graciosamente o Reinaldo convida e o instaou a montar na garupa. E lá vão < se > foram ambos galopando em perseguição da formosa Angélica. 22- Note se como era acentuada a bondade dos antigos cavaleiros! Rivais e professando religião diferente, molestados de mais a mais pela rudeza dos golpes com que reciprocamente se haviam agredido, - não hesitavam entretanto em caminhar na companhia um do outro, sem a mínima desconfiança, através de sombrias selvas e por veredas tortuosas. N‟isto, eis que, estimulado pelas quatro esporas, dos dois guerreiros, o rápido corcel chegou a um sítio em que a estrada se dividia em duas. 23- E, porque os dois como os perseguidores da donzela ignoravam ignorassem < o > qual dos dois caminhos teria a fugitiva, seguido (visto que em ambos se reconheciam frescos e perfeitamente idênticos sinais de patas de cavalo), resolveram confiar-se à ao arbítrio da sorte: Reinaldo tomou seguiu por um lado, e o sarraceno por outro. D’est’arte Deste modo Ferragudo, após depois de haver por muito tempo divagado pela floresta, acabou por ir ter ao mesmo voltando ao sitio, d’onde primeiro havia partido. em companhia de Reinaldo. < Já que não podia encontrar a dama, queria ao menos reaver o elmo caído n‟água.>

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24- Quer dizer: - Ferragudo foi dar ao mesmo ponto da ribeira, em que o elmo lhe tinha caído n‟água. E agora, - uma vez que já pela idéia lhe não pode passar o encontrar a dama, atrás de quem corria, - ocorre-lhe ao menos aproveitar o ensejo de reaver o elmo tombado na ribeira: para isso vai ele ... descendo pela riba úmida... Mas o elmo achava-se tão enterrado na areia, que decerto há de custar-lhe bastante a retira-lo de lá. 25- N‟este apuro lembra-lhe arrancar d‟uma árvore um comprido esgalho, afeiçoá-lo em guisa de sonda, e com ele tentear o fundo da ribeira, buscando e rebuscando por todos os pontos o que deseja recuperar. Cortou uma vara e com ela estava a sondar o fundo do rio, Mas enquanto o despeitadíssimo Ferragudo vai prolongando as suas pesquisas, surge-lhe do meio das águas o busto ameaçador de um cavaleiro, 26. Revestiam-lhe o corpo todo armas defensivas, - o corpo todo, com exceção da cabeça: e na mão direita segurava ele o próprio capacete de Ferragudo, aquele que o sarraceno inutilmente se demorara por tão largo espaço a procurar. Dirigindo-lhe n‟um tom irado, as palavras que disse ao cavaleiro pagão foram estas: [ -Perjuro e traidor! porque é que te aflige deixares-me aqui o elmo que há tanto tempo me devias? 27. Recorda-te, infiel, de que, na ocasião de matares o irmão de Angélica (sou eu próprio esse irmão!), (cujo sou), prometeste-me lançar, dentro em poucos dias, ao rio, juntamente com as outras armas este capacete: não te revoltes pois contra a Fortuna porque ela realizou à medida dos meus desejos aquilo que tu não quiseste cumprir. Entendes que deves revoltar-te? revolta-te contra ti próprio que faltaste às tuas promessas. 28. “E, se cobiças possuir um elmo fino, trata de buscar outro, mas trata de ganhá-lo mais honrosamente. Semelhante a este, encontrarás um na cabeça do paladino Orlando; e outro, talvez ainda melhor, na de Reinaldo: pertença de Almonte foi um d‟eles, e de Mambrino o outro dos dois. Faze por conquistar valorosamente algum d‟esses; mas este, que prometeste deixar-me, convirá que efetivamente m‟o deixes.” 29. Perante esta inesperada aparição, [ Ferragudo sente arripiarem-se-lhe os cabelos todos; e empallidece-lhe o rosto; a voz embarga-se-lhe na garganta.E ao reconhecer em quem o afronta increpando-o por quebras de lealdade, aquele mesmo Argalia que por suas próprias mãos ele havia morto, – simultaneamente lhe enche pungem n‟alma a vergonha e a cólera. < e jura > 30. E, porque lhe não acodem razões que invoque para desculpas, antes reconhecendo verdade enquanto acabava de ouvir, deixa-se ficar silencioso e mudo. Mas a vergonha que sente o obriga a jurar pela vida de Lanfusa que nunca mais em sua cabeça quererá outro elmo senão aquele que Orlando ganhou outr‟ora /a Mambrino/, em Aspramonte 31. Esse juramento soube ele cumpri-lo melhor do que o outro que primeiro fizera. E ei-lo que / E /dali parte, descontente, descontentissimo, a ponto de não sem encontrar sossego durante muitos dias, A sua Com a preocupação constante é ver se descobre onde possa / de /encontrar-se com o paladino. 32. Poucos passos tinha andado Reinaldo, quando repentinamente lhe aparece aos saltos pinotes o seu impetuoso corcel. – “Pára ai, meu Bayardo, pára ai! / que / sem ti não posso eu passar!” Mas o corcel, completamente surdo à voz de Reinaldo, do dono em vez de lhe obedecer, continua a galopar cada vez mais veloz.Reinaldo o que faz é correr traz segue atrás d‟elle. [ E Acompanhemos entretanto Angélica ? , na sua fuga.

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33. Por florestas sombrias e medonhas, por lugares desabitados e completamente selvaticos, vai ela fugindo. O rumorejar da folhagem < e as sombras > nos carvalhos, nas faias e nos olmeiros, não faz senão inspirar-lhe inspiram súbitos pavores, e obriga- a seguir desnorteadamente estranhíssimos carreiros: sombras que lhe apareça na montanha ou no vale, acometem-n‟a logo receios de que seja Reinaldo a persegui-la. 34. Faz lembrar Lembra uma corça ou uma cabrinha, que, por entre os folheados do bosque em que houvesse nascido, vendo um leopardo estrangular-lhe a mãe, ou matar-lh‟a rasgando-lhe as entranhas, fugisse de moita em moita, para longe da fera cruel, tremendo trêmula de susto, e no auge da inquietação, cuidando em cada raiz que topa encontrar ver as faces do leopardo a devorarem-n‟a. da fera. 35. E assim prossegue vagueando ao acaso, todo esse dia, toda essa noite, e ainda metade do dia seguinte. Por fim foi dar a um bosquezinho encantador, delicioso, bafejado pela frescura de uma suave brisa por brisa frescas, < onde dois > Dois regatos claríssimos, que lhe deslizam em torno serpeavam, conservam sempre viçosa a vegetação. d‟esse lugar aprazível, e, com a linfa a escoar se brandamente por entre pedrinhas, fazem as delícias de quem lhes escuta o murmúrio. < Julgando-se em segurança naquele encantador retiro, resolve repousar > 36. E n‟esse lugar que, por se julgar em segurança, como se de Reinaldo a separassem centros de léguas, Angélica se resolve a repousar um pouco do cansaço em que vinha,exacerbado ainda pela ardência do calor estival. Apeia-se entre flores; e deixa o palafrem desbriado, vagueando paste solto à beira dos / regatos / límpidos regatos, atapetada por fresquíssima herva. 37. Não longe d‟ali, vê Angélica uma graciosa moita de rosas brancas e vermelhas, que debruçadas escondida no liquido espelho das ondas, encontraram-na à sombra dos altos carvalhos abrigo contra a < das > ardências do sol calor solar. Em meio d‟essa moita depara-se à recém-chegada um fresco retiro, oculto pelo umbríferos folhedos: ramos e frondes são ali tão entrelaçados, que nem os raios do sol penetram lá nem o olhar de quem passe. 38. No interior da moita suavidade tenra das relvas está convidando a repousar ali quem quer que se apresente. E ali se reclina a bela Angélica, e ali adormece. Pouco tempo Mas pouco lhe dura entretanto esse repouso, porque logo se lhe figura sentir sente passos que se aproximam. Ergue-se, cautelosamente, e descortina e vê á beira do regato um cavaleiro armado, que n‟aquele momento ali acabava de chegara. 39. Se é um amigo ou um inimigo, não o sabe ela. Mas o receio e a esperança agitam-lhe simultaneamente o coração opresso. Aguardando o desfecho de tal aventura, o que faz é nem sequer soltar o mais leve suspiro. Entrementes o O cavaleiro, descendo até a orla do regato, e, com a face melancolicamente apoiada n‟uma das mãos, deixa-se por tal forma absorver em cogitações profundas que chega aparecer transformado num insensível mármore. < Depois, respeitando, lamenta-se nestes termos: > 40. Pensativo e com a fronte inclinada para o chão, ficou o pesaro o cavaleiro o por mais de uma hora. Afinal, n‟um tom que revelava angústias e desditas, começou ele a desatar-se em suavíssimos lamentos, capazes de abrandar pedras duras que o escutassem, capazes até de inspirarem piedade ao tigre mais cruel. E, suspirando, chorava por forma que nas faces se diria uma torrente de lágrimas e no peito um vulcão. 142

41. Pensando ( dizia ele ) que gelas e simultaneamente inflamas o meu coração causando n‟ele a dor vivíssima que o vai roendo e minando! Que devo eu fazer, visto que cheguei tarde e outrem outro se me antecipou na colheita do fructo? Enquanto eu obtive apenas uma palavra doce, e um doce olhar esse outro alcançaráou todo o mais tudo... Oh! se nem as flores nem os frutos me podem pertencer porque há de o meu coração aflingir-se ainda por aquela beldade 42. Uma donzelinha é semelhante á uma rosa que num belo no jardim tranqüila apesar de sozinha repousa na haste< materna; > natal respeitam-n‟a pastores e rebanhos, a brisa fagueira, o orvalho da aurora, a água e a terra, tudo se harmoniza para lhe favorecer o frescor. E vêm então os namorados e as namoradas colhê-la, para com ela < se > enfeitarem. a fronte e o peito. 43. Logo porém, que da haste materna a separaramm e do verde ramúsculo aí d‟ela! Porque murcha em suas pétalas imediatamente se lhe dissipa tudo quanto por sua graça e beleza despertava nos homens e no próprio céu a mais palpitante ardente interesse! Assim a virgem que deixa murchar essa outra, flor em cuja conservação mais se deve esmerar que na da própria formosura e na da própria existência perde irremissivelmente no coração de seus adoradores toda a sua grã valia.

44. Vil para os outros, e amada unicamente por aquele a quem tão rendida ficou! [ Oh! fortuna cruel! Fortuna ingrata! Enquanto os outros triunfam morro eu a míngua! Mas... dar- se-á o caso de já me não ser querida aquela mulher? Poderei eu porventura abandonar aquilo em que a minha própria vida consiste? Ah! Antes morrer n‟este momento que ficar vivendo sem amá-la! 45. Querem saber quem é que junto as águas do Quem junto ao regato derramava tão copioso pranto. , era Era nem mais nem menos que, o afamado Sacripante, rei da Circassia, e < outra > vítima do infaustoa amor. Na paixão / por Angélica. /que o devorava consistia a causa prima e única de suas mágoas: d‟essa paixão era Angélica o objeto, Angélica por quem Sacripante logo ali foi reconhecido. 46. Arrastado por tão pelo violento amor, viera Sacripante lá do extremo Oriente às regiões em que o sol se esconde. Na Índia tinha ele sabido, com grande mágoa sua, que Angélica partira em companhia de Orlando para as terras ocidentais. Mais tarde, em França, haviam- lhe dito que o Imperador tratara de a pôr em bom recato, no intuito de oferecê-la por prêmio aquele que na batalha mais proezas praticasse. 47. Sacripante chegara a tempo de presenciar aquela a medonha derrota experimentada pelo rei imperador . Carlos Depois... procurara em vão diligenciara encontrar aquela a vestígios da bela Angélica; e mas baldado empenho foi esse, que em parte nenhuma se lhe depararam. E aí está porque ora o vemos penar de amores, aflitíssimo, lamentando-se com tais < acerbas > expressões de angustia, que seria capaz o Sol se o escutasse, de suspender enternecido a sua carreira. 48. Enquanto ele se aflige e < Sacripante > se lastima, e reduz os olhos a uma fonte perene de copioso pranto, proferindo as exclamações que já ficaram mencionadas e muitas outras que seria ocioso referir, -permite um feliz acaso que as escute o ouça a própria Angélica. E ai está como ás vezes n‟uma hora, n‟um momento, vem a realisar-se um passo que em mil anos ou mais não seria de esperar! 49. Atento é o gesto com que a bela dama observa as lágrimas, as expressões, a fisionomia enfim d‟aquele que por caso nenhum deixa de amá-la: e todavia não Não é a primeira vez 143 que tal amor se lhe revela. Mais dura, porém, mais fria do que uma coluna de o mármore, Angélica não se digna descer desce a sentimentos de piedade, como orgulho de todos desdenha e não achando ninguém acha digno de se lhe aproximar. 50. Entretanto a consideração de estar sozinha em meio d‟aqueles bosques sugere-lhe a idéia de o aceitar por guia, Que faz quem esta imerso n‟água te ao pescoço e prestes a morrer afogado? Clama por auxílio, não é assim? Angélica entra a considerar que, se deixa perder este ensejo, arrisca-se a nunca mais deparar-se lhe um auxílio tão leal, visto que por longa experiência tinha já reconhecido ser aquele rei o mais fiel de todos os seus adoradores. 51. Mas nem essa mesma consideração a induz leva a consolar os tormentos d‟ alma que afligem Sacripante. dando-lhe por indenização das passadas mágoas aquele dulcíssimo prazer que todo o amante mais ambiciona. O que ela se propõe é tramar um fingimento qualquer, com que o entretenha n‟uma enganosa esperança enquanto o seu auxílio lhe seja indispensável, – e depois... volver à insensibilidade habitual, a acostumada arrogância! 52. Saindo então d‟entre-a da moita, umbrífera Angélica surge subitamente aos olhos do cavaleiro em todo o esplendor da sua beleza, . como se fora Diana ou a própria Vênus que surgisse de uma floresta ou de uma gruta. [“Salve! Disse ela. Diz ela. Permita Deus defender por vossa intervenção a minha honra! Permita ele também que não façais indevidamente de mim um conceito falsíssimo falso < ! >53. Imagine-se a alegria inefável de mãe amorosa, quando, após haver já pranteado a morte do filho que supunha haver-lhe morrido na guerra, logra a ventura de tornar a vê- lo- cheio de vida! Por maior que seja o alvoroço e o jubilo de tal situação, certo que não igualará < Imenso foi > o jubilo e o alvoroço do príncipe Sarraceno ao ver inesperadamente aparecer-lhe radiante de formosura, imponente no aspecto, e sedutora de meiguice, a idolatrada Angélica. 54. Com doce e amoroso afeto meigo alvoroço correu ele a à sua dama, à sua divindade, que lhe lança ao pescoço os braços, fagueira amorosos como certamente lá no Cathay se não teria nunca mostrado. E Angélica, então, animada com a proteção que se lhe depara, sente representarem se lhe vivíssimas no espírito as recordações do reino paterno, seu país natal, e de súbito lhe acode a esperança de breve tornar a ver sua opulenta residência 55. E conta depois Angélica ao Sarraceno todas as aventuras acontecidas desde que ele, para servi-la, foi pedir no Oriente auxílio ao rei da Sericana. Conta-lhe como Orlando a salvou freqüentemente da morte e da desonra, e de variadíssimos apuros. < deixando entrever > Finalmente lhe relata que < destarte > lograra ela conservar ilesa aquela a flor virginal com que o a < dotara > a Natureza. adotara no seio materno. 56. Verdades puras eram talvez quanto n‟esse particular Seria verdade pura < o que > Angélica lhe afirmava, difíceis embora de acreditar para quem pensasse nas cousas com verdadeira serenidade de espírito. Mas ele, que tão perturbado trazia a razão, facilmente acreditou possível o que se lhe asseverava. É que o amor tem d‟estas cousas: afigura invisível o que realmente se esta vendo, e faz ver o que não é visível. Sacripante deu por conseqüência crédito ao que Angélica lhe disse. Admiram-se? Qual é o infeliz que não acredita facilmente n‟aquilo que deseja? < Mas difícil de verificar, Sacripante, porém, deu-lhe crédito imediato e pensou consigo :>

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57. “ Se o cavaleiro de Anglante deixou por sua tolice escapar o momento oportuno, queixe-se ele de si, que nunca a fortuna volvera a oferecer-lhe tão próspero ensejo! < mas não pretendo imitá-lo > (Assim pensava Sacripante). >Ah! mas n‟isso é que estou longe de imitá-lo! Havia eu desaproveitar o grande bem que ora se me oferece? Para quê? Para depois dolorosamente me queixar de mim próprio! 58. Colherei portanto a rosa fresca e matinal, que mais tarde me arriscaria a perder. < E, > Depois pergunto eu,: - Há há porventura cousa que mais agrade a uma dama, muito embora se mostre ela primeiro despeitada, muito embora se mostre ela < e > depois triste e lacrimosa? Por mim, juro que nem repulsas, nem cóleras fingidas serão capazes de estorvar-me na realização do meu intento. 59. Fazia ele consigo tacitamente estas reflexões, . Mas... enquanto se apresta para pôr em prática as suas intenções, do bosque próximo < quando > lhe vem aos ouvidos um grande rumor, . que o faz, com grande mágoa sua, desistir da empresa. E, < O sarraceno > como sempre tinha por costume andar completamente armado, põe o elmo na cabeça, enfreia o corcel, monta-lhe < e põe-se em guarda > na sela e ei -lo ai vai de lança em riste. 60. Pelo bosque vem vindo outro cavaleiro, de aspecto feroz guapo e fero. < Traz > penacho branco < e > a armadura que veste faz lembrar a alvura da neve por cimeira traz um penacho branco. Sacripante, furioso por vir aquele do do contratempo, interromper- lhe a agradável diversão que projetava, fixa no recém-chegado um olhar colérico e feroz < e logo que ele > 61. E, quando o importuno-interruptor se lhe aproxima, logo o Sarraceno desafia-o crente em que fácil lhe será será fácil lhe levá-lo de vencida. Mas o raptado, que em menos conta se não tem a si próprio, responde-lhe às ameaças dando imediatamente de esporas ao cavalo e enristando a lança. Por sua parte Sacripante, investe com tempestuoso ímpeto. E lá correm um para o outro. 62. Nem leões, nem touros seriam capazes de mutuamente se acometerem com tanto furor como estes dois guerreiros no seu bravíssimo assalto. Rotos os escudos de ambos na primeira investida, tremeram tremeram < os vales e os montes > abalados por tamanho pelo estrépito < do choque > os verdes vales e os escalvados montes de em-redor os verdes vales e os escalvados montes de em-redor. Que fora dos dois combatentes, se de ambos não abrigassem o peito fortíssimo couraças?! 63. Na recíproca investida os corcéis fizeram exatamente lembrar o que se observa entre dois carneiros quando mutuamente se acometem. O cavalo do guerreiro pagão ( que soberbo animal aquele!) morreu ali de prompto: < tombando sobre o corpo do cavaleiro; > o do outro guerreiro foi também a terra caiu, mas reergueu-se apenas sentiu cravarem-lhe as esporas nos ilhaes, . em quando o do príncipe sarraceno ficou estendido com todo o seu peso por sobre o corpo do dono. 64. O campeão incógnito, que logrará não ser derrubado naquela investida, e que via o adversário em terra, entendeu não dever prosseguir na luta. Correndo a toda a brida pela floresta , dentro, em < breve se sumiu. > caminho direito, cuidou em alongar-se quanto possível; - e antes que o sarraceno consiga desvencilhar-se daquele aperto, já ele se lhe adeanta numa distância enorme. 65. Imagine-se um lavrador que, sentindo estalar-lhe um raio aos pés, cai atordoado enquanto os bois com que lavrara sucumbem fulminados, e que depois, ao levantar-se, ainda assombrado, vê rachado e sem folhagem o pinheiro que em distância estava habituado a contemplar: - é o que fazia lembrar o cavaleiro pagão quando logrou reerguer- se perante a formosa Angélica, testemunha da sua triste aventura. 145

66. Suspira e geme: Não porque o aflijam dores de pé deslocado ou braço fraturado; mas porque a punge a vergonha, a ponto de que nunca em sua vida lhe subiram tão vermelhas cores ao rosto, vergonha tanto mais pungente, quanto ao desaire da queda acresceu tornar- se lhe preciso que a sua dama o ajudasse a libertar se da grande opressão com que o cadáver do cavalo lhe só pesava no corpo! E de vergonha... nem talvez < Sacripante, morto de vergonha, suspira e geme e não > ousaria falar, se não fora ela < Angélica > a primeira a dirigir-lhe a palavra. [ 67. Não vos desconsoleis, senhor! (lhe disse ela). Da queda, que destes, a culpa é exclusivamente do vosso cavalo; em vez de o terdes feito entrar metido em novo combate, mais conveniente lhe houvera sido pastar e repousar. Nem o vosso contendor se deve gloriar por tal gloriou do sucesso, ele próprio, a meu ver, se confessa vencido, pois que se apressou em ser o primeiro a deixar o campo da contenda. 68. E, Eenquanto d‟est‟arte Angélica procura consolar o Sarraceno, surge-lhes, galopando, n‟um rocim, de buzina e bolsa a tiracolo, um mensageiro, com todos os visos de aflito e cansado. < , o qual pergunta > Chegado que foi cerca de Sacripante, perguntou-lhe se tinham visto passar pela floresta um cavaleiro de escudo branco e penacho branco. 69. [ - Foi esse mesmo, lhe respondeu Sacripante, quem me colocou aqui na pôs nesta < triste > situação, em que me vês retirando-se logo em seguida. Agora, para eu ficar sabendo quem foi que me derrubou, preciso me que digas seu nome. A curiosidade que tendes ( volveu-lhe o mensageiro), vou sem delongas satisfazer- vossa-: ficai sabendo que ao alto valor de uma nobre donzela devestes o serdes derrubado. < Quem é ele, dizei-mo? >70. E continuou: < É > valente e lindíssima a vossa contendora. Brandamente se chama aquela que ora a donzela que vos arrebatou quanta honra e glória tendes logrado conquistar. [ Depois de assim dizer, solta a rédea, retira-se e foge o mensageiro, deixando o sarraceno em grandíssimo a descontentamento e perplexidade < e > não menor com a vergonha estampada no rosto. 71. Sacripante, encarando a situação de haver sido derrubado por uma mulher, sente mais e mais crescer-lhe a dor à proporção que medita n‟aquelle caso. Depois, . Silencioso e taciturno, sem palavras dizer, trata < ele > de colocar suavemente na garupa a bela Angélica, reservando para mais tranquila estância melhor ocasião o delicioso intento que trazia em mira 72. Mas Dduas milhas não tinham certamente andado, quando em torno d‟ ambos entra < de súbito > a floresta entra a ressoar com tal estrépito, como se toda ela tremesse. E logo um fogoso corcel lhes surge à vista, ricamente ajaezado com de ouro, um corcel que briosamente vai galgando a galgar sebes e riachos, espedaçando árvores, e levando de vencida tudo quanto encontra em à frente. de si. 73 Diz então a formosa Angélica: - Se o entrelaçamento do folhedo e a cerração das brumas me não tolhem a agudez da vista... < ou muito me engano, ou > aquele corcel que tão estrepitosamente vai rompendo caminho pela floresta é com certeza Baiardo! é o meu Bayardo... Não tem que há duvidar... é o próprio Bayardo: acabo agora mesmo de o reconhecer. É ele que adivinhou.não ser cômodo para dois cavaleiros um cavalo só, e que nos vem resolver a dificuldade oferecendo-nos seus préstimos. Vem oferecer-me os seus préstimos.

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74. Tais palavras ouvindo, o circassiano apeia-se,-- e, aproximando-se do recém-chegado corcel, julga poder facilmente procura deitar-lhe as mãos. O corcel, porém, volta-se rápido como um relâmpago, e despindo-lhe e despede-lhe uma furiosa parelha de coices, que, por felicidade, de Sacripante, o não alcançamou E Ttriste d‟ele, se o alcançassem!... tinha Bayardo nas patas um vigor tão assombroso que nem uma alta montanha de metal que fosse, lograria resistir-lhe! 75. Mas é este mesmo fogoso corcel que < vai, > manso agora e submisso, e respeitoso, vai oferecer-se à donzela, como poderia fazer um cão perante o ao seu o dono. de quem por dois ou três dias houvesse andado longe. Bayardo conservava ainda memória lembrava-se que outr‟ora, em Albraca, Angélica por suas próprias mãos lhe dava de comer, no tempo em que tão apaixonadamente ela amava Reinaldo, e em que este era para ela cruelmente ingrato. por ele desprezada 76. Tomando-lhe na mão esquerda Angélica toma as rédeas com a direita e o afaga. E Baiardo,(e Sacripante) que possuía um maravilhoso instinto, sujeita-se dócil como se fora um cordeiro. Sacripante vai entrementes aproveitando o ensejo de montar disfarçadamente no fogoso corcel agora domesticado. Angélica, n‟aquele que montava, passa da garupa a ocupar a sela. E Sacripante consegue enfim montá-lo. 77. Mas volvendo os olhos em derredor... eis que ela avista um guerreiro alto, caminhando a pé e fazendo ruidosamente ressoar as peças da sua armadura. Inflamada em despeito e cólera, Angélica reconheceu logo o filho do duque Aymon. < [ – Reinaldo > está Está apaixonado por ela, e tem-lhe mais amor do que á própria vida, no tanto que ela < mas Angélica > profundamente o odeia, e d‟ele foge foge dele como foge um grou de um falcão < a pomba foge de gavião >. E todavia houve já tempos em que sucedia o contrário: tinha-lhe ela amor, ele à donzelas um ódio de morte. 78. A causa d‟aquela recíproca da mudança está em duas fontes cujas águas desfrutam possuem virtudes opostas. Destas duas fontes, ambas em Ardenne e com uma pequenina distância a separá-las, uma tem nas águas o condão de suscitar a flux nos corações a mais impetuosa ardência de amor: quem pelo contrário, acerta de beber na outra, fica de tal ardência curado, e transformado < Uma provoca nos corações o mais ardente amor. A outra porém, transforma > em gelo o que era fogo amoroso. Reinaldo que bebeu da primeira, e está hoje consumido de amor; da segunda bebeu Angélica, e < é todo ódio > e aí esta agora o motivo do seu ódio e da sua esquivança 79. Aquela água, em que há misturado um veneno secreto, que transforma em ódios as paixões de amor, faz com que < Assim, > os serenos olhos de Angélica se turvem turvam subitamente quando < vê > Reinaldo, se lhe depara e em frente corra < com > a voz trêmula e a tristeza espelhada no rosto, suplica ela a Sacripante e encarecidamente lhe pede para sem mais delongas fugirem ambos, antes que deles se aproxime o recém-chegado o ex-amado guerreiro. 80. [Pelo que vejo, respondeu o Sarraceno, em tão pequena conta me haveis, que me julgais incapaz de vos defender. ! Já vos não recordareis das batalhas de Albraca? nem tão pouco d‟aquela noite em que, por vosso respeito, lograrei sozinho e desarmado resistir a todos os guerreiros de Agricane? 81. Não lhe responde Angélica, nem mesmo sabe o que faça, porque já Reinaldo vem chegando perto d‟ela, Reinaldo que rompeu logo em ameaças contra o sarraceno, apenas deu com a vista no seu próprio corcel e reconheceu a Angélica fisionomia de quem tão amoroso incêndio lhe acendera no peito. Mas... no capítulo seguinte veremos o que se passou entre dois soberbos guerreiros. 147

Capítulo 2

1.Que injusto que tu es Amor! Porque será que tão raras vezes correspondes aos nossos desejos? Porque será que te comprazes pérfido em lanças a discórdia nos corações? Porque será que, em vez de nos deixares atravessar um regato límpido e manso, nos arrastas para um sorvedouro sombrio e profundo? Porque será que nos afastas d‟aquilo em que se deleita o nosso coração querendo que amemos e adoremos quem nos odeia? 2. És tu. Amor, que fazes com que Angélica pareça formosa a Reinaldo, e este lhe pareça a ela feio e desagradável. No tempo em que se lhe afigurava formoso e lhe inspirava extremos, acontecia então ser ele quem a odiava com todas as faculdades de sua alma. E agora é Reinaldo que debalde se aflige e padece tormentos. Paga mais proporcionada ao débito nunca se viu! A versão que Angélica sente pelo seu adorador é tal que antes morrer do que vir a pertencer-lhe. 3. No tom do mais acentuado violento orgulho, dirige diz Reinaldo estas palavras a Sacripante: [ - Desce, ladrão; desce do meu cavalo! Se cuidas que Não estou habituado a consentir me tirem o que é meu me pertence fica sabendo que, bem pelo contrário, costumo fazer pagar caríssimos muito caro esses atrevimentos. Nem tão pouco julgues que te permito levares a essa dama em tua companhia. A um ladrão, como tu, não compete uma dama tão ilustre nem um corcel tão brioso. 4. Responde-lhe, não menos altivo, o sarraceno: [ - Chamares-me ladrão, é mentir, Quem mais quem tal te chamasse é que (segundo ouço a fama) apregoar não andaria longe da verdade. Provar Mas provar podemos nós aqui agora qual dos dois é mais digno ficar possuindo esta com a dama e o este corcel, se bem que a respeito d‟ela concorde eu contigo em que nada n‟este mundo se lhe pode comprar. 5. Imaginem-se Como dois cães raivosos, que, excitados pelo ciúme ou pelo ódio, se investem-se arreganhando os dentes, esbugalhado os olhos, eriçando medonhos os pêlos do dorso, e finalmente esmordaçando-se dançando com ardente fúria: é assim que Sacripante e Reinaldo acabam por converter em golpes de espada e gritos e as afrontas. os dois guerreiros. 6. A pé está um deles Um está a pé, outro a cavalo, o outro. Que vantagem pensa o leitor então que o sarraceno tem com isso! Nenhuma absolutamente, pois que, Mas de nada valia o Sacripante estar montado em, para melhor dizer, na situação em que se acha, vale menos que o mais inexperto pajem! E o motivo esta em que porque Bayardo, o brioso corcel, instintivamente se recusava a prejudicar seu dono: nem com as rédeas, nem com as esporas, lograva Sacripante Sarraceno fazê-lo obedecer. Empacava, corcoveava escoiceava e 7. Queria o circassiano fazê-lo avançar? Parava. Queria sopeá-lo? Galopava ou trotava. Logo depois... baixava a cabeça... levantava a garupa... e era coice que fervia! Percebendo então não ser o momento impróprio aquele momento azado para domar semelhante fera, Sacripante resolve apear-se. O combate começa. 8. E foi conseguindo assim ver-se livre da invencível fúria de Bayardo, o sarraceno deu princípio a um combate realmente digno do seu valente rival. Retinem, cruzando-se no ar, as espadas dos dois heróis campeões: Quem tal presenciassem, diria menos violentos e mais tardonho o martelo de Vulcano quando nas fumegantes forjas bate na bigorna os raios de Júpiter.

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9. Ora em fintas, ora em golpes diretos, os dois contendores mostram-se ambos exímios no jogo das armas; era avançando com altivez um para o outro, ora negando-se; aqui descobrindo-se acolá pondo-se em guarda; já investindo, já simplesmente parando os golpes do adversário; e, em todo o caso, espreitando ambos o ensejo de levar a melhor n‟aquele duelo. 10.Por fim Por fim Reinaldo cai com todo o peso de sua espada sobre Sacripante, rompendo-lhe o escudo Ao golpe de Reinaldo opõe o adversário o seu escudo de osso forrado por uma lamina d‟aço de finíssima têmpera. Apesar porém de espesso, abre-o em dois a espada de Orlando, e o faz voar em hastilhas estilhas. ressoa a floresta com o fragor do golpe, que deixa meio derreado o braço do sarraceno. 11. Quando a A tímida donzela repara no notando o resultado medonho deste violentíssimo golpe, preste se-lhe presente transtorna-a serenidade fisionômica, tal qual sucede a um condenado ao aproximar-se do suplício. E considera então que só lhe resta a fuga, caso alvitre de fuga, uma vez que não queira ficar sendo a presa de Reinaldo escapar, d‟aquele Reinaldo que que tanto a amava e que ela tanto odiava, enquanto ele correspondia a esse ódio com tão ardente amor. 12. Virando de rédea, e metendo o cavalo a galope na selva espessa, por um carreiro estreito áspero, Angélica foge vai de quando em quando olhando para traz, muito pálida, com a na desconfiança de que Reinaldo a venha atrás d‟ela perseguindo-a. E vai correndo até que se lhe Nisto... quando pequena distância tinha ainda percorrido... depara-se-lhe n‟um vale um eremita de barba crescida ate o meio do peito, aspecto venerável e devoto longas barbas brancas, a 13. Macerado pelos anos e pelos jejuns, caminharva ele e vagarosamente montado n‟um jumento. Dir-se ia, ao vê-lo, um tipo excepcional de consciência escrupulosa e severa, como em pessoa viva não seria possível encontrar. Quando ele o eremita atentou nas formosas feições da linda donzela, que lhe ia ao encontro, - apesar de velho e debilitado, sentiu-se alvoroçardo nos de vivos sentimentos de caridade. 14. Angélica, dirigindo-se ao eremita a ele e pergunta-lhe qual o que caminho por onde lhe cumpra seguir, que a levea a porto marítimo, visto que seu ato resumia-se sua tenção é agora em sair de França, para nunca mais ouvir falar de Reinaldo. O monge, que era entendido em práticas nigromânticas, desfaz-se todo em palavras de animação para com a donzela, prometendo-lhe à donzela que prontamente a livrará de qualquer perigo. 15.O Ttira do bolso um livro... um livro de efeitos miraculosos tão miraculosos que milagrosos, tão maravilhoso livro que tinha apenas uma apenas lida a primeira pagina lhe surge como por encanto um espírito sob forma de escudeiro e a quem O o eremita dá- lhe ordens e o obediente servo se comunica suas ordens . Obediente as intimações do espírito mágico, o evocado escudeiro dirige-se ao lugar em que onde os dois cavaleiros continuavam brigando encarniçadamente no bosque. a barter-se. 16. Metendo-se audazmente de permeio, entre os dois diz-lhes ele: [ - Muito gostava eu de saber que vantagem cuida tirara aquele de vos que matar o outro! ao seu adversário! Enquanto vos fatigais desperdiçandois ao vossos brios, o conde Orlando, sem ter que sustentar combate algum, nem romper uma simples malha do saio, vai caminho de Paris com a formosa dama, por quem aqui vos empenhais!

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17.A mil passos do lugar em que estamos, daqui os encontrei eu rindo e motejando de vós ambos, que infructiferamente lutais um contra o outro. Talvez que o O melhor de tudo seria, lhes uma vez que perto os podereis ainda encontras, seguirdes-lhes a pista . , Olha que, porque se Orlando consegue apanhar Angélica em Paris, nunca mais a tornareis a ver. 18. Ao ouvirem escutarem tais palavras, ficaram atônitos os dois cavaleiros, e, no auge da consternação, culpando se de desespero, culparam-se de cegos e de loucos por se verem ambos assim burlados em proveito do seu rival comum. Depois o valente Reinaldo, soltando suspiros que pareciam saídos de uma fragua incandescente, e ao mesmo tempo transbordando em rancorosa cólera, cratera de rancor e paixão, jura ali que se logra apanhar o amor colher as mãos a pessoas de Orlando, lhe, há de arrancar-lhe do peito o coração. os fígados pela boca. 19.Prestes Rápido montando no seu cavalo, Bayardo, ei-lo que parte a galopar. O seu adversário, pouco lhe importa deixá-lo sem um lugar-lhe oferecer na garupa, sem adeus lhe dizer sequer. E lá vai na sua fogosa carreira o impetuoso Bayardo corcel, esporeando pelo dono, saltando fossos, passando rios, vencendo penedos fragas, derrubando tudo quanto se lhe depara em frente, sem obstáculos encontrar em fim que lhe tolham ir por deante. o ímpeto. 20. Espanto causar talvez Talvez espanto causará que Reinaldo montasse no seu corcel agora com tanta facilidade no seu corcel Bayardo. quando poucos dias antes andava inutilmente correndo atrás d‟ele, sem poder lançar-lhe as mãos a rédea. Advirta-se, porém É que Bayardo possuía uma inteligência finíssima e obrigando o seu dono a percorrer uma tão grande distância, o cavalo tivera simplesmente em mira procurando apenas aproximá- lo de Angélica, por quem Reinaldo andava vivia soltando tantos suspiros. 21. Quando ela fugira do pavilhão, bem a tinha visto Bayardo, e bem lhe espreitara os passos, livre e solto como então estava (por d‟ele haver-se apeado Reinaldo para combater com um valoroso barão ); e por fim seguir-lhe de longe as pisadas, - tudo no ardente empenho de vir a entregá-la em mãos de quem tanto a adorava. 22. Para isso Depois, desejando chamar o dono para o sitio em que Angélica estava foi sahira –lhe ao caminho, através da grande floresta, mas e fazia-se perseguir sem se deixar - se montar, com receio de que Reinaldo o obrigasse a galopar noutro sentido. E assim logrou fazer com que Reinaldo por duas vezes encontrasse Angélica, sem daqui lhe resultar, todavia sem vantagem alguma porquanto porém, porque da primeira vez lhe embargara os passos Ferragudo e na da segunda o circassiano (como dito fica). 23. Agora, entretanto o Demônio que tinha dado a Reinaldo falsas indicações acerca do destino de Angélica trazia também enganado o inteligente corcel. Bayardo, oferecendo-se dócil aos manejos do frenético e amorosos cavaleiros, deixa-se ir correndo a toda a brida, caminho de Paris. O desejo, que vai n‟alma de Reinaldo é por tal forma impaciente, que talvez morosa lhe parecia a carreira quando mesmo em lugar de um rápido corcel, transportasse o vento! 24. De noite suspende ele a jornada, na com idéia de encontrar-se com o senhor de Anglante, crente como estava em de que lhe falara a verdade o mentiroso mensageiro do sagaz nigromante; mas, logo que amanhece... ei- lo de novo a galopar incansável! Nem para um momento enquanto se lhe não descobrem E só para quando alcance a planície à vista os plainos parisienses, onde o rei Carlos Magno, depois de vencido, e derrotado, se acolhera com os restos as relíquias do seu exército.

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25. Receoso que viesse o Rei d‟África oferecer-lhe batalha, ou por-lhe cerco tratava Carlos Magno de reunir um corpo, bom de guerreiros e abastecer-se de mantimentos, reparar suas muralhas e guarnecer-se abrir de trincheiras. E neste sentido fez sem delongas tudo quanto lhe pareceu conveniente. Ocorreu-lhe mesmo também, reclamar de Inglaterra tropas que o coadjuvassem. de auxilio. 26. Porque a verdade era esta: Carlos Magno propunha-se entrar de novo em campanha e de novo a tentar de novo a sorte da guerra. Com estas idéias nomeia ele por seu delegado o cavaleiro Reinaldo, encarregando-lhe dando-lhe a missão de ir à Bretanha que é como se chamava Inglaterra se chamou depois aquele país naquele tempo. O paladino lastima-se de ter que empreender semelhante viagem, não porque lhe desagrade a terra a que o destinam mas porque El-Rei lhe dá ordem de partir logo sem um dia único ter de descanso em Paris. 27. Nunca houve coisa que Reinaldo com menos vontade fizesse fizesse com menos vontade. O cumprimento da ordem regia importava a impossibilidade de ir em busca do formosíssimo rosto que tão apaixonado o tornava. Mas, por obedecer a Carlos pôs-se imediatamente a caminho; e, horas depois, em Calais, d‟onde e nesse mesmo dia embarcou em direção a costa da para a Bretanha. 28. Não houve marinheiro que não tentasse dissuadi-lo de tamanha temeridade, semelhante visto que a profunda agitação do mar anunciavar-se uma terrível tormenta. Mas o desejo vivíssimo de cumprir prestes a sua missão, para também prestes estar de volta faz com que Reinaldo e regressar quanto antes fê-lo teimarsse no seu desígnio propósito. Embarcou, e logo o vento como indignado com a ante a desdenhosa teimosia do guerreiro, desencadeou furosíssima a tempestade, alcantilando raivosamente as vagas em torno do navio. 29. Cautelosos e experimentados, os tripulantes tratam de amainar as velas, e pensam mesmo em virar de bordo em volver ao porto d‟onde tão importunamente haviam levantado ferro. O vento parecia dizer-lhes: Não serei eu que tolere semelhante audácia da vossa parte. E em corroboração d‟este aviso, ei-lo assobiando e, ei-lo oferecendo-lhes a ameaça de um naufrágio caso tentem afrontar-lhes as iras. 30. Dobra e redobra de violência aquele medonho temporal. Com as velas, colhidas os marinheiros bordejando deixam ir o navio caminho do mar alto....Deixemos, entretanto por um passo o valoroso Reinaldo a lutar contra a fúria dos elementos; e falemos de Bradamante. 31. Bradamante, se chamava a inédita donzela por quem foi derrubado o rei Sacripante Digna digna irmã de Reinaldo, era filha do duque Aymon e de Beatriz. Sua grande valentia e assombrosa coragem, por freqüentes vezes demonstrada na presença de Carlos Magno e de toda a França, hombreavam na reputação com o afamado valor do bravo Reinaldo. 32. Amada por um cavaleiro que d‟África viera d’África em companhia do rei Agramante e que provinha dos amores entre Rogério e a desditosa filha de Agolante, Bradamante a donzela guerreira, que não possuía a índole ferina de um urso nem de um leão, sentiu-se atraída para esse que quem apaixonadamente a representava verem-se a falar com o outro, era o que a fortuna porém só ainda uma vez lhes tinha sido possível. 33. E lá andava Bradamante em busca do apaixonado (Reinaldo se chamava ele também com seu pai ) caminhava, caminhando sozinha mas tão segura tão e confiava em si, como se para guarda-la tirar a escoltassem mil esquadrões.

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O que ela fez ao rei da Circassia, já os leitores sabem. Depois disso, (perseguindo em seu caminho sozinha), Bradamante atravessaria uma floresta, galgou um dos montes limítrofes e chegou por fim a uma nascente d´água. 34. Esta nascente corria para no meio de um prado á sombra de antiqüíssimo arvoredo com grande do meio dia ...... de suas limpinhas dar-se-boa que estava ali de propósito convidando a beber e a descançar um pouco! Abreava-te-e a esquerda uma cedinha de terras cultivadas, que por tem parte construída também para amansar a calmas do meio dia. Bradamante apenas ali chegou, deu logo com os olhos num cavaleiro, que 35. Há caçador da fonte e montado a sombra de um pequenino bosque no chão seivoso cuja verde alcatifa flores de variado nariz o cavaleiro estava silencioso e pensativo, de cabeça baixa e olhos umedecidos, denunciando cansaço e tristeza. Escudo e capacete pendiam- lhe, a pouca distancia, de uma feixe árvore a cujo tronco quisesse o cavalo. 36. A compaixão move, O sentimento coração pois que o gênero humano se caracteriza em referência as desventura do paganismo fez com que a donzela a indagarsse do cavaleiro o motivo de seus desgostos. Correspondendo a sua curiosidade da interrogante e impressionado pela cortesia de suas palavras, assim como e pelo aspecto valoroso e nobre de quem á primeira vista se tome afirmou um guapíssimo, guerreiro tudo ele lhe contou. 37. Principiou assim Conduzia eu, disse sob meu comando um certo número de peões e cavaleiros em direção ao campo em que onde El-Rei Carlos Magno estava á espera de Marsílio, no intuito de lhe embargar os passos ao descer das montanhas: vinha comigo uma formosa jovem, por quem ardo de amores. Quando cheguei ás cercanias perto de Rodonna, avistei um personagem armado, que montava um cavalo com azas. 38. Simples mortal, ou criatura horrenda saída do Inferno, salteador, apenas deu com os olhos na minha querida amante, fez como faria um falcão para agarrar à presa: lança as mãos arranca-na dos braços e e minha gentil companheira,e, raptando a, lá vai voando com ela no tal cavalo das asas. E Ttão de relance aconteceu isto, que só dei pelo rapto quando senti ouvi nos ares os gritos da dama. minha gentil companhia. 39. Fiquei precisamente na mesma situação em que fica uma pobre galinha quando um milhafre lhe leva algum dos pintos. A desgraçada, o que é que faz? Aflingir-se pela sua inadvertência, e chamá-lo debalde com seus inúteis cacarejos! Encerrado entre montanhas, na falda de um rochedo escarpado posso eu porventura caminhar traz de quem voa pelos are? O próprio corcel, em que monto, acha-se tão fatigado, que mal poderá ele mover-se por caminhos ásperos e pedregosos como estes d´entorno. 40. Mas a A comoção que experimentei ao vê-me sem a minha querida beldade, assim sonhando, foi tal, que mais valera me arrancassem do peito o coração! Deixei portanto os meus guerreiros continuarem sozinhos a sua jornada. E pelas mais praticáveis e por estas abruptas brutas montanhas, vim eu seguindo o caminho que Amor me indicava, na direção em que me pareciaeu houvesse o raptador salteador conduzido aquela que é a alegria e o consolo da minha alma. 41. Seis dias andei eu sem descansar, através de escarpados penhascos, e à beira de precipícios horríveis, sem vereda encontrar nem vestígios de pisada humana. Por fim cheguei a um vale inculto e selvatico, circundado por de abruptas penedias e grutas medonhas. Em meio desse Vale, sobre uma rocha, erguia-se um castelo de formoso aspecto, o admiravelmente fortificado.

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42. Visto de longe, figurava-se-me parecia brilhar como se fora uma chama, num tijolo, nem mármore parecia que entravam na sua construção. Quanto mais me aproximava de tão resplandecentes muralhas, mais aquela fabrica se me antiolhava bela e maravilhosa. Mais tarde vim eu, a saber, que os Demônios industriosos, movidos pelo por meio de encantamentos de palavras mágicas, haviam forrado o aquele belíssimo castelo com aço forjado e temperado nas águas do Estyge, 43 De aço forjado e polido, aço tão polido que nada há capaz de o enferrujar ou de fazer- lhe perder o brilhantismo o brilho, acham-se forradas as torres todas. É ali que o raptador da minha bela vem habitualmente abrigar-se, depois de andar infestando com suas correrias as terras circunvizinhas; contra a fúria das suas devastações não há quem resista; lágrimas e maldições, que podem contra? Ele? E la me tem ele enclausurado o objeto do meu amor, ou, para melhor dizer, o meu próprio coração. Perdida trago E perdido tenho a esperança de o recuperar jamais. o objeto do meu amor. 44. Efetivamente... que posso eu mais fazer do que olhar de longe para a escarpada rocha em que o meu bem esta enclausurado? Acho-me no caso da raposa que sente cá de baixo o filhote a gemer nas garras da águia, e que volteia espavorida, inconscientes, sem asas que lhe permitam subir a semelhante altura! A um penhasco d‟ aqueles, a um castelo por aquella forma talhado a pique, só efetivamente poderá subir quem tenha condição de voar como as aves. 45. Estava eu um dia seismando no caso, quando me aparecem dois cavaleiros guiados por um anão. Esperanças que, ao encontrar-me com eles, cobrou o meu desejo, ai de mim! – ficaram completamente baldadas. Eram dois guerreiros de grande valentia: um d‟ eles Gradasso, rei da Sericana; o outro por nome Rogério, um mancebo valoroso e tido em grande conta na corte d‟ África. 46. [ - “ Vêem ambos, disse-me o anão, para provarem sua valentia contra o possuidor d‟ este castelo, guerreiro que desfruta o estranho e inaudito condão de montar a um quadrúpede com azas. - “Ah! Senhores (exclamei eu), tende compaixão das minhas tristes circunstância!s Sorte; se; como espero, ficardes vencedores, suplico-vos a restituição da minha dama. 47. E narrei-lhes entre lágrimas, a maneira como ficara privado d‟ aquela que eu tanto amava. a minha história Prometendo auxiliar-me, começaram eles a descer a montanha alpestre e escarpada. Eu, por mim, fiquei de longe observando, e pedindo a Deus que lhes concedesse a vitória. Por baixo de castelo havia uma explanada esplanada, cuja extensão mediria duas vezes a distancia a que pode atirar uma de um tiro de pedra, a mão de um homem. 48. Chegados que foram ambos ao pé da rocha, cada um d‟eles queria ser o primeiro a travar combate. Mas ou porque decidissem a sorte, ou porque Rogério desistisse da primazia , a verdade é que a sorte decidiu e, foi Gradasso quem principiou. O rei da Sericana, embocando a trombeta, fez com que os sons d‟ ela retinir de baixo a cima o rochedo e o castelo. Da A porta saiu logo o castelo montado no cavalo das de azas. 49. E começou pouco e pouco a elevar-se, fazendo lembrar os grous de arribação que principiam por correr depois e elevam acima da terra uma ou duas braças, e só desenvolvem toda a rapidez do seu poderoso vôo quando conseguem tomar completamente o vento nas azas. Assim logra o nigromante subir e subiu a uma altura tal, que só águias seriam capazes de lá chegar.

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50. Por fim, quando lhe parece azado o momento, fez sinal ao cavalo para de fechar as azas: e ei-lo fedendo os ares a prumo, à semelhança de um falcão adestrado quando vê levantar-se lhe um pato ou um pombo cae sobre uma pomba. ou um pombo. Com a lança em riste, o cavaleiro vem rompendo estrodonsamente caminho. Gradasso quase que não da por tal, tão rápidoa é descer de seu adversário a descida senão depois de sentir ferido. 51. Enquanto o mágico rompe a lança de encontro a Gradasso, este o mais que faz é esgrimire debalde contra o ar e o vento. Por sua parte o voador abre novamente as azas, e de novo se eleva. A violência do embate faz ir ao chão a vigorosa Alfana, Alfana como se chamava a formosíssima égua de Gradasso, uma égua formosíssima, e certamente a melhor que poderia imaginar-se. 52. Reerguendo o vôo até as estrelas, o nigromante repetiu a descida, caindo agora sobre Rogério que, desprevenido, correra em auxílio de Gradasso. Rogério cede à violência do golpe, e seu corcel recuou mais de um passo: quando o companheiro do rei da Sericana se voltou para responder à semelhante agressão, já o seu adversário estava outra vez a grande altura. 53. E assim continua o guerreiro volante, já ferindo Gradasso, já ferindo Rogério, agora na cabeça, logo depois no peito, em seguida no dorso; e por que aos seus golpes pretendam eles responder, Gradasso ou Rogério, baldado é o empenho, d„este que porque logo o mágico lhes escapa num volver d‟ olhos. Nos ares vai ele descrevendo largos círculos, - e, quando se calcula vir atacar de preferência um dos dois cavaleiros, é precisamente sobre o outro que ele descarrega o seu golpe. Gradasso e Rogério sentem-se tão desnorteados, que já nem atinam em se precaver. 54. Entre os dois guerreiros terrestres e o seu aéreo inimigo, durou o combate sem cessar, te a até a hora em que um o véu obscuro da morte se desdobraou ou por sobre a terra, e esconde a cor de tudo quanto há formoso e belo. As cousas se passaram-se como acabo de vos contar; credo que não exagero. Assisti, testemunha ocular, a tudo isto e entretanto confesso que sinto hesitação em repeti-lo, porque semelhante maravilha, parece mais parece uma fábula do que um fato verdadeiro. ... Por fim, Gradasso e Rogério caíram. 55. O cavaleiro aéreo trazia o escudo envolvido n‟uma seda belíssima: nem sei como ele assim o conservou por tanto tempo em tal invólucro, - porque a verdade é que tão depressa o despe ele da seda que o envolve, quem para o escudo olhar fica irremediavelmente ofuscado, e cai redondamente no chão como se fora um corpo morto, à mercê completa do nigromante. 56. É que resplandece aquele escudo à semelhança de um carbúnculo, e não há luz que em brilhantismo se lhe compare. Inibidos de lhe encararem o fulgor, Gradasso e Rogério caíram por terra. Por terra desacordados e foram aproximados pelo mágico sem acordo. Eu próprio, apesar da distância em que estava, perdi temporariamente os sentidos, e só mui tarde os recuperarei. Quando tornei a mim, já não encontrei os guerreiros nem o anão: na minha frente via-se apenas o campo de batalha desocupado, e em volta imersas na sombra a montanha e a planície. 57. “Pensei, portanto que o mágico teria empolgado os seus dois adversários, e que, por condão do seu rutilantíssimo escudo, lhes haverá roubado a eles a liberdade e a mim a esperança. N‟este sentido me despedi d‟aquele lugar em que jazia enclausurado o meu coração. Em vista agora de quando vos contei, vede se há tormento de amor, que possa comparar-se a este meu. 154

58.E Ddepois de assim falar, o cavaleiro recaiu na sua profunda tristeza. Era ele o conde Pinabel, filho de Anselmo de Alta-ripa, da casa de Moguncia. Entre os malvados da sua raça, em vez de querer constituir-se exceção por seu cavalheirismo e lealdade, proferiu não só égua tal os mais inclusivamente excedê-los a todos na abominável grosseira dos vícios. 59. Bradamante, a formosa dama, deixou perceber no semblante impressões variadas à proporção que ia escutando silenciosa a narrativa do cavaleiro moguntino. Primeiro, quando se tratou de Rogério, e sua fisionomia seu rosto acusou grande alegria; mas, quando depois veio, a saber, que ele Rogério estava cativo, transbordaram-lhe transbordou sua alma de deram-lhe amargosamente n‟alma sentidas mágoas inspiradas no mais extremoso amor. E fez repetir a Pinabel por várias vezes a narrativa. 60. Quando afinal ficou perfeitamente inteirada do caso, disse-lhe ela [. Cavaleiro, disse- lhe ela, podeis tranquilizar-vos, porque talvez a circunstância de me encontrardes vos seja favorável: talvez o dia de hoje venha a parecer-vos venturoso, caminhemos ambos em direção ao castelo, em que se acha enclausurando um tesouro tão rico, porventura o empreendimento não será ocioso, mas vez que a fortuna me coadjuve conforme espero.) 61. Responde-lhe o cavaleiro, [ Desejais então que outra vez atravesse aquelas montanhas para vos mostrar o caminho do castelo? Por mim, confesso que pouco se me dá de perder as passadas, visto que perdido está aquilo em que o meu bem se resumia. Vós, porém, atendei a que, tentando semelhantes precipícios e rochas tão medonhas, ides expor-vos a ficar encarcerada. Assim o quereis? Não me lanceis depois as culpas a mim, que vos preveni a tempo. 62. Tornando a Mmontando no corcel, aí vai agora o conde por como guia da valorosa dama, que em prol de Rogério se expõe a ser aprisionada ou morta pelo nigromante. E enquanto caminhavam, eis que atrás d‟eles aparece surge o um mensageiro, aparecido a Sacripante gritando:, - . Alto! alto! Era nem mais, nem menos do que o mesmo indivíduo por quem Sacripante entrará no conhecimento de haver sido vencido pela formosa Bradamente. 63. E agora Vvem ele trazer à bela dama notícias de Montpellier e de Narbonna que, juntamente com todo litoral vizinho, haviam arvorado o estandarte de Castela. Marselha, na ausência de Bradamante ( que tinha a seu cargo defendê-la) achava-se desanimada, e enviava-lhe em mensageiro a pedir-lhe conselho e socorro. 63. E agora Vvem ele trazer à bela dama notícias de Montpellier e de Narbonna que, juntamente com todo litoral vizinho, haviam arvorado o estandarte de Castela. Marselha, na ausência de Bradamante ( que tinha a seu cargo defendê-la) achava-se desanimada, e enviava-lhe em mensageiro a pedir-lhe conselho e socorro. 64- Aquelas cidades, bem como o território que n‟uma área de muitas milhas se estende até ao mar entre Var e o Rodono, tinham sido dadas à filha do duque Aymon pelo Imperador, que depositava n‟ela uma grandíssima esperança e confiança, desde que, vendo-a a viu combater, com inigualável esforço lograra admirar-lhe a valentia. Vinha então de Marselha aquele mensageiro em procura de quem auxílios tão valiosos podia prestar. 65- Indecisa, a nobre donzela hesita primeiro se deverá ou não voltar ; volver sobre seus passos: a honra e o dever estimulam-na por chamam-na por um lado; por outro o incêndio do amor que a devora impele-a para outro. Por fim determina-se a prosseguir no empreendimento que encetara: livrar da torre encantada o seu Rogério, ou pelo menos, caso lhe não chegue o valor para tanto, ficar prisioneira com ele. Mas vence o amor e 66-aApresentando uma desculpa ao com que o mensageiro, pareceu ficar satisfeito aponto de não insistir mais, Bradamante continua a caminhar em companhia de Pinabel. Este é 155 que por sua parte não parecia contente, porque n‟aquele momento acabava de saber que a dama era de uma família à qual os seus quem, tanto em particular como em público, ele consagravam um grande ódio. E já lhe acodem ao espírito os perigos que o ameaçam quando ela acaso reconheça nele um moguntino. 67- Entre a casa de Moguncia e a de Clermont havia ódios inveterados e violenta inimizade, a ponto de terem por vezes sustentado terríveis guerras entre si, guerras assinaladas por copiosos derramamento de sangue. Não admira, pois que o pérfido conde estivesse já no íntimo d‟alma cuidando de em atraiçoar a incauta donzela, ou, no primeiro ensejo, que lhe oferecesse abandoná-la sozinha . e seguir ele por outro caminho. 68-O ódio, a hesitação e o medo absolviam –no por tal forma, que, sem dar por isso, veio a sair da estrada e acabou por se achar n‟uma floresta, onde em meio da qual havia um monte e no com um árido cimo d‟esse monte num duro penhasco no cimo. Atrás dele vai sempre seguindo, sem deixar, a filha do Duque de Dordona. 69- Quando o O moguntino, achando reparou no sitio em que estava, pareceu-lhe azado o momento para se descartar da dama. E disse-lhe: [ - Antes que escureça, mais, parece-me acertado procurarmos um albergue. Para lá d‟este monte, no vale lhe fica ao pé, existe ( se a memória me não falha ) um riquíssimo castelo. Espera-me vós aqui, enquanto eu vou, no ao alto d‟aquele escalvado penhasco, verificar em que rumo fica a caso por meus próprios olhos. 70- Pronunciadas que foram estas palavras, lá vai caminhando para o cimo do solitário monte, e tudo é observar se por algum lado descortina uma vereda qualquer que o ajude a fazer com que a dama não logra seguir-lhe os vestígios. De E vai; e de repente lá chegando, dá com os olhos numa caverna, que desce aprofunda pelo rochedo mais de trinta braças, talhada artificialmente a pique e lá Nno fundo há uma porta., que dá 71- Por essa porta é um amplo acesso para uma sala enorme; e onde se percebia-se um clarão intenso como de facho que lá no âmago da gruta estivesse ardendo. E Eenquanto o traidor pérfido olhava perplexo, Bradamante ( que receosa de perder-lhe a companhia, caminhara sempre atrás dele ) aproximou do cavaleiro.dele. 72-Mas o pérfido traidor, vendo frustrados por então os seus desígnios de a abandonar ali, ou de fazê-la morrer, trata logo de formular um novo plano: vai ao encontro d‟ela, pede-lhe que suba ao sítio em que o monte se achava escavado, e acaba por lhe dizer que lá em baixo tinha ele avistado uma donzela de fisionomia agradabilíssima. 73. Mas lhe diz que pela beleza das feições e pela riqueza do vestuário denunciava não ser de humilde nobre estirpe, assim e que parecia como também acrescenta que o seu ar perturbado e triste inspira suspeitas de não estar ali a donzela por sua livre vontade. Enfim lhe declara que, no intuito de averiguar sua condição, tinha já tentado penetrar n‟aquele recinto; mas no interior da gruta havia sabido um desconhecido, o qual, com gestos de fúria, levara consigo para dentro a infeliz. 74. Bradamante, animosa como era, e não suspeitando que pudesse aquella ser uma narrativa falsa, antes desejando socorrer a donzela, de que Pinabel lhe falava, só trata de estudar a maneira de chegar lá abaixo. N‟isto, volvendo os olhos em derredor, dá com a vista em longo um esgalho de frondoso olmeiro: com a espada o decepa n‟um só golpe, e o deixa pender pelo alcantil abaixo.

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75. Feito isto, o dá a segurar a Pinabel pela extremidade mais grossa e agarrando-se com os braços ao pendurado tronco, vai prestes deixando-se escorregar por ele ao longo do abismo. Pinabel, que a vê n‟esta situação sorri traiçoeiramente, e senão quando.E soltando o esgalho que sustinha com as mãos e, exclama: [ - Oxalá contigo estivessem aqui todos os teus, que assim se lhes e a toda raça a exterminasse a raça. eu! 76. Mas a inocente dama escapou à sorte que Pinabel lhe desejava. o O esgalho, ao precipitar-se no abismo, d‟aquella rápida queda, foi primeiro bater no chão com a extremidade inferior, por de forma que esta ao quebrar-se quebrou também amorteceu a violência do choque, esperando e assim logrou logrando Bradamante não morrer ali despedaçada. Atordoada, sim, atordoada ficou por algum tempo, como se dirá no capitulo seguinte.

Capítulo 3

1-O assunto, em que vou entrar, é um d‟aqueles que por sua alta nobreza reclama um elevadíssimo estilo. Oxalá tivesse eu asas com que pudesse remontar-me com a pena à encantada região dos meus desejos! Tudo quanto represente fogoso entusiasmo de coração, tudo aqui se me torna indispensável, visto que o presente capítulo vai dedicado ao excelso Príncipe, cujos avós ilustradíssimos ora pretendo enumerar. 2. D‟entre todos os famosos príncipes, a quem o Céu incumbe de governar a terra, nenhum há que pertença a uma família mais gloriosa, que na guerra, quer na paz; nenhum, cuja nobreza haja conservado mais lustre. E o lustre, que ora conserva essa ilustre raça, conservá-lo-á (estou certo de que me não iludem n‟isto fantasias poéticas), observá-lo-á em quando o mundo for mundo. 3. Para devidamente lhe entoar louvores, seria preciso empunhar não a lira de um mortal, mas aquela especialíssima lira com que o próprio Phebo celebrou os triunfos do soberano Júpiter quando este levou de vencida as fúrias dos Titãs. Assim eu pudesse ao menos talhar no mármore, com escopro assaz digno, os vultos que me proponho celebrar. Fraco é o cinzel de que disponho: buscarei entretanto apurar, quanto possível me seja, o lavor de que pretendo ocupar-me. 4. Entremos, porém, na matéria do presente capítulo. Ocupemo-nos d‟aquele pérfido, cujo peito não haverá escudo nem couraça que defender possam. Volvamos ao moguinino Pinabel, o qual em seus sinistros designos, tinha em vista nada menos que fazer morrer a valorosa Bradamante. 5. E que ela efetivamente morrera, quando despenhada no precipício, chegou o traidor a imaginar. Com a palidez estampada no rosto, Assim aconteceu, mas assim não o previa Pinabel e certo de haver trucidado a valorosa Bradamante afastou-se então d‟aquela da triste caverna, enodoada agora por seu negro crime, e tratou de montar outra vez à cavalo. como se não Por fim como se lhe não bastasse um delito apenas, ocorreu-lhe a depravada idéia de o secundar levando roubado roubou ainda o seu corcel de Bradamante. 6. Deixemos, porém esse vil que, enquanto anda urdindo enganos contra a vida alheia, esta inconscientemente preparando a sua morte. E voltemos a ver a donzela que, vítima d‟aquele traiçoeiro delito, por um triz não encontrou a um tempo morte e sepultura. Bradamante, ao reerguer-se atordoadíssima da queda, que deu encaminhou-se para a porta que dava ingresso a numa espaçosa gruta. interior, muitíssimo espaçosa. 157

7. Era uma sala quadrada, com todas as feições d‟uma igreja aspecto de templo, devota e venerável. Sustentavam-lhe o teto colunas de alabastro dispostas n‟um belíssimo estilo de arquitetura. Sustentavam o teto e ao. Ao meio erguia-se um altar onde brilhava e em frente d‟ele uma lâmpada acesa, cuja brilhante chama derramava em derredor o mais o vivo clarão. 8. Bradamante, ao ver-se a um lugar sagrado e piedoso ajoelhou-se com devota humildade – e começando, em pensamento e palavras e rezar uma oração. N‟isto, abre-se em frente uma porta pequenina, com estridente ranger de gonzos, dando passagem a uma criatura feminil, descalça, de cabelos soltos, e soltas as vestes na cintura 9. – Generosa Bradamante, diz ela, saudando por seu nome a donzela ajoelhada é mister que saibas saberes que a tua entrada aqui se não se efetuou sem que concorresse para isso concorrer a vontade divina. O espírito profético de Merlim tinha-me anunciado já, que virias tu por um caminho insólito visitar suas relíquias santas: e aqui tenho estado a tua espera , no fito a fim de te revelar o que a teu respeito os Céus determinaramnam. 10. É esta a E nesta gruta memorável, e antiqüíssima edificada pelo sábio encantador Merlim, de quem (certamente algumas vezes terás ouvido falar). N‟estas gruta que o enganou a Dama do Lago. E aqui se conserva o sepulcro: onde jazem corruptos seus restos mortais, sepulcro em que ele, por condescender com a enganadora se deitou vivo e morto ficou. 11. De envolta como Junto ao, cadáver porém habita lhe porem vivíssima a sua alma imortal, e vivas e de envolta com o cadáver habitará até que retina a trombeta do anjo para lhe marcar a estância derradeira. Vivas se conservam não menos as falas de Merlim, tão vivas que poderás claramente ouvi-las sair de dentro do mármoreo, tumulo, revelando e quem consulta sobre cousas passadas ou futuras, nunca ele deixou de responder. 12. de De muito longe vim eu buscar este sarcófago, para que Merlim me ajudasse a esclarecer um alto mistério. Mas, porque senti desejos de te ver, deixei-me aqui ficar; um mês a mais do que tencionava demorar-me, Merlim, que nunca me falou senão verdades, tinham-me profetizado ser para hoje o dia da tua chegada. 13. Escutando tais palavras, a filha de Aymon ficara atônita, silenciosa, imóvel. Perante o que em torno dela se passa, ignora se está sonhando ou acordada. Afinal, vergonhosa e modesta, com os olhos timidamente baixos, responde assim: [ - Que mérito há em mim para que profetas se dignem ocupar-se de profetizarem a minha chegada 14. E, então jubilosa por de tão extraordinária aventura, foi seguindo traz da maga que prontamente a conduziu a junto dá sepultura onde se achava enclausurado o corpo e a alma de Merlim. Era um sepulcro de pedra dura polida, luzidia de cor vermelha semelhante a chamas: o clarão que espargia, bastava para completamente alumiar a sala, embora lá não penetrasse um raio sequer da luz solar. onde outra luz não entra. 15. Ou porque seja natural em certos mármores a condição de dissiparem as trevas como se fossem verdadeiros fachos. -_ ou porque se houvesse aqui recorrido ( o que mais verossímil se me afigura) a sufumigações, a encantamentos, a sinais em fim colhidos na observação dos astros, _ o que é certo é que o sobrevidito clarão deixava reconhecer os variadíssimos primores de escultura e pinturas, com que por todos os lados estava ornamentado um lugar tão venerável.

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16- Bradamante apenas penetrou naquele secreto santuário, ouviu ressoar sentiu dentre os despojos mortais falar-lhe em voz claríssima ao vivo espírito de Merlim. Queria a fortuna proteger, disse-lhe, todos os seus desejos, ó casta e nobilíssima donzela! Terás por descendência uma ilustre raça, que honrará não só a Itália mas o mundo todo. 17- O antigo sangue troiano, do qual em ti se reuniram as duas correntes mais puras há de vir um dia a ser o ornamento, a flor, o júbilo de quantas ilustres famílias alumia o sol desde as margens do indo até as do rio Tejo, desde as do Nilo te as do Danúbio, no espaço que se estende entre o pólo ártico e o antártico. Choverão sobre os teus descendentes as honras supremas: haverá neles marqueses, duques, imperadores. 18. Capitães e cavaleiros serão uns: e por sua espada e por seu conselho , restituirão eles a Itália o antigo esplendor da invencibilidade. Outros empenharão o soberano cetro de príncipes justos que é semelhança do sábio Augusto e do sábio numa farão reviver com seu governo suave e bondoso a felicidade dos séculos áureos. 19- E para que em ti se execute a vontade do Céu que desde todo e sempre te há escolhido por para esposa de Rogério, prossegue tu intrepidamente no caminho que encetaste, porque obstáculo nenhum será capaz de tolher-te no desempenho da tua missão nem impedir que ao primeiro impulso derrubes o salteador odioso, em cujo poder se acha retido todo o teu bem. 20. Calou-se a voz de Merlim, depois de proferidas estas palavras, - ficando á maga o encargo de patentear revelar a Bradamante a série ilustre de dos seus descendentes. Grande número de espíritos haviam sido nesse intuito escolhidos (se do inferno provenientes ou qualquer outro sítio, quem é que sabe dizê-lo?): diversos no aspecto, achavam-se todos reunidos agora no mesmo lugar. 21. E lá vai a maga levando outra vez Bradamante para a igreja, onde previamente havia descrito traça no chão um circulo, que pudesse conter-lhe o corpo todo entendido; com um palmo ainda de sobre excedente: como prevenção contra qualquer malefício dos espíritos, coloca-lhe por sobre a cabeça um pentáculo; depois recomenda-lhe que se conserve atenta e silenciosa, e por fim abre o livro mágico e entra em palestra com os demônios surjam estes da 22. Lá vem, entretanto saindo a primeira caverna um grupo numeroso que e mais e mais se acumulam em torno do círculo sagrado penetrar nele é que não podem, porque lhes tolhe ingresso a linha circunferencial como se fora um forte num ou fosso profundo E, depois que em torno do circulo deram as três voltas convencionais, foram os espetos passados para o recinto em que existia o suntuoso tumulo do grande profeta. 23. Disse então a maga a Bradamante: [ - Se eu fora a enumerar-te disse a maga os nomes e proezas de todos aqueles que, por intermédio dos espíritos encantados, aqui te aparecem antes mesmo de entrados na vida, terrestre, confesso-te que não sei quando poderias, partir, porque, verdade, verdade, uma só noite não bastaria para tanto. O que farei, por conseqüência, é escolher d‟entre eles, segundo a ordem cronológica, os que me parecer oportuno apontar-te. mais lustre darão ao teu amor. 24. Repara naquele primeiro que ali vês, e que tantas semelhanças oferece contigo já na fisionomia, já no aprazível do porte. Representante do teu sangue e representante do sangue de Rogério, na Itália será ele da tua família o chefe. Por sua mãe ficará cor-de-sangue a terra de Poitiers, e por seu braço vingada a traição e a injuria de quem lhe houver morto o pai.

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25. Por seu valor deixará ele arruinado Desiderio, rei dos Lombardos; e em recompensa o Imperador lhe dará os senhorios d‟Este e Calaon. Logo adiante aquele que estás observando é teu sobrinho Humberto, um valoroso guerreiro que será a gloria da Hesperia e que mais de uma vez defenderá contra os Bárbaros a santa Igreja. 26. Lá está em seguida o invicto capitão Alberto, que lhe há de ornar com troféu um grande numero de templos. – A par dele vem Hugo, seu filho, que alcançara o domínio de Milão e por timbre usará uma serpente.- Aquele outro é Azzo, que por morte do irmão, herdará o reino dos Insubrios.-Albertazzo nos aparece depois; aos sábios conselhos d‟est deverá a Itália ver-se livre de Berengario e de seu filho: seus méritos lhe darão em recompensa a mão de Alda, filha do imperador Othon. 27. Cá temos um segundo Hugo, famoso não menos: gloriosa descendência que não degenera do valor paterno! Defensor de uma causa justa, competir-lhes- há reprimir o orgulho dos soberbos Romanos, libertar das mãos deles o imperador Othon III e o Pontífice, finalmente pôr termo a um assedio calamitoso. 28. Segue-se Folco: cedendo ao irmão todos os seus domínios no território italiano, irá possuir em meio dos Alemães, um grão-ducado; levantará a casa de Saxônia quando prestes a extenguir-se por um dos ramos, e conserva-la-a por seus descendentes herdeiros da linha materna. 29. Surge-nos a figura do segundo Azzo, mais inclinado a galanteios do que a empresas guerreiras. Ladeiam-n‟o seus dois filhos, Bertoldo e Albertazzo. Por um d‟esses será vencido o imperador. È desfiou uma série numeríssima de heróis que por intermédio de Bradamante viriam ao mundo – reis, príncipes, guerreiros, uma descendência tão ilustre como de poucas alguém poderá se orgulhar. Henrique II, e Parma terão ocasião de ver seus campos horrivelmente inundados de sangue alemão. O outro dos dois terá por consorte a gloriosa e prudente, e casta, condessa Matilde. 30. Altíssimos merecimentos de Bertoldo o farão digno de tal consorcio, que não é honra pouco estimável o receber por dote, com a mão da sobrinha de Henrique I, metade quase da Itália.- A Reinaldo, filho querido de Bertoldo, caberá a glória de pôr a salvo das mãos do ímpio Frederico Barba roxa a santa Igreja de Roma. 31. Terceiro Azzo nos aparece agora: caber-lhe-á por partilha o belo território de Verona: o imperador Oton IV e o papa Honório II constituir-lhe-ão no território anconez um arquezado. – Ah! mas que longo seria se te eu quisesse apontar quantos do teu sangue hão de ilustrar-se empunhando o pendão do Consistório e ganhando vitórias em prol da Igreja Romana. 32. Ai tens Obizzo e Folco: ai tens outros Azzoz e outros Hugos: ai tens os dois Henrique, filho e pai ambos filiados no partido guelfo; subjulgara um deles a Úmbria; nos ombros do outro desdobrar-se-á o manto ducal de Spoleto.- Queres saber quem é que há de estancar o sangue e cicatrizar as chagas da Itália aflita? É Azzo V, por quem Ezzelino será vencido, e aprisionado, e morto. 33. Se há tirano feroz, que por suas atrocidades inculque ser filho de Demônio, Ezzelino esta perfeitamente n‟esse caso: imolando seus súbitos e devastando o belo território da Ausonia, tais atos praticará, que, postos em confronto com ele, Mario e Sylla, Marco Antonio, Nero e Caio Calígula, mereceriam o epíteto de clementes.

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34. Azzo V logrará o ensejo também de vencer e completamente derrotar o imperador Frederico II. Ditosos dias correrão sob o cetro do vencedor para aquele belo país situado a beira do rio onde Phebo pranteou a morte de Phaetonte, e onde a Fabula conta que foram transformadas em âmbar as lagrimas das Heliades, onde finalmente Cycno acabou por se revestir de plumagem alvissima. Com o governo d‟esse país lhe premiará seus relevantes serviços a Sé apostólica. 35. Já me ia esquecendo mencionar-te Aldobrandino, o irmão de Azzo V. Em seu tempo avançará te junto do Capitólio o imperador Othon IV e o exercício gibellino, cujas armas deixarão subjugados os habitantes da Úmbria. Aldobrandino, querendo auxiliar n‟esta conjuntura o soberano Pontífice, não poderá faze-lo sem grossas quantias de dinheiro, e para obtê-las recorrerá aos Florentinos. 36. Mas, sem jóias nem penhores mais valiosos que depositar como caução do empréstimo, deixar-lhes-á entregue por fiador seu próprio irmão: depois, erguendo vitorioso o estandarte,levará de vencida o exercito germânico, restabelecerá o governo da Santa Sé, mandará supliciar os condes de Celano, e, sempre em serviço do Sumo Pontífice, morrerá na flor dos anos 37. Do território que decorre entre o mar e os Apenninos, desde Troento até o Isauro, deixará ele a sucessão na pessoa de seu irmão Azzo, que simultaneamente lhe herdará dotes altíssimos de magnanimidade, fidelidade, e virtude, - qualidades estas superiores sem duvida ao ouro e ás pedras preciosas, visto que as riquezas materiais pode a fortuna dá-las ou tirá-las conforme lhe apraza, mas... sobre a virtude é que ela não tem poder algum. 38. E ali verás agora Reinaldo, cujo valor não será por certo menos brilhante, uma vez que a morte ou a invejosa fortuna se não oponham a que ele concorra para a gloriosa exaltação da sua ilustre família. D‟aqui lhe estou escutando já os lamentos, por ele soltos em Nápoles, onde ficará por fiador de seu pai. 39. Obizzo, que em seguida vemos, sucedera a sua avô, sendo eleito príncipe em anos mui verdes; em seus belos domínios incorporar-se-á a risonha cidade de Rogério e a altiva Modena: pelas valorosas quanlidades de Obizzo, os povos unanimemente o escolherão para governa-los. Azzo VI, um dos filhos de Obizzo, um dos ganfaloneiros da Santa Cruzada, presidirá ao ducado de Andria juntamente com a filha de Carlos II rei da Sicília. 40. Naquele grupo formoso e amável, que ali vês, está o escol dos príncipes ilustres: Obizzo, Aldobrandino, Nicolau por cognome o coxo, e o clementissimo Alberto. Para não me alongar excessivamente é que te não digo a forma por que eles conseguirão incorporar na sua bela soberania Faenza e Adria, sobretudo Adria, que mereceu as honras de dar seu nome ás águas salgadas do mar vizinho. 41. Lograrão eles também possuir: a povoação que pela abundancia de suas rosas obteve na língua dos gregos o nome encantador de Rhodigio; a cidade que em meio de piscosas lagoas esta de continuo ameaçada pela inundação das bocas do Pó, e onde habita gente sempre desejosa de ver agitado o mar pela fúria dos ventos; finalmente Argenta e Lugo, e mil outras fortalezas, e mil outras cidades populosíssimas. 42. Ai nos surge agora Nicolau: ainda criança, caber-lhe-á ser aclamado soberano; de encontro a ele quebrar-se-ão írritos e nulos os desígnios de Thadeu, na guerra civil que este lhe promover. De pequenino se acostumará aos fadigosos lavores do combate, e se irá dispondo para se tornar notável entre os mais notáveis guerreiros.

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43. Conjurações de seus súbditos rebeldes, saberá ele sufoca-las, com grande perda para os vencidos. Iludir-lhe o espírito sagaz será porventura dificílimo: disto se convencerá, mas quando já for tarde bastante, o cruel tirano de Règio e de Parma, Othon III, a quem Nicolau tirará simultaneamente os domínios e a própria vida 44. Ira sempre esta ilustre família crescendo em poderio, e sempre caminhando na estrada da retidão, - sem nunca a ninguém fazer mal, salvo a hipótese de provocantes injurias com que a hostilizem. Por isso o Criador do Mundo permitirá que ela vá durando e prosperando cada vez mais, enquanto durar a máquina do Universo. 45. Vira depois Leonel, - E vira o primeiro duque, o inepto Borso, que será dos seus tempos honra e gloria. Governando em paz, alcançara triunfo maior que todos quantos por conquista logrem assenhorear-se de territórios estranhos. Manietando as fúrias de Marte, empenhará todos os cuidados em que viva feliz o seu povo. 46. Vira Hercules em seguida, com justos motivos queixoso de seus vizinhos. O auxilio que lhes prestou valorosamente em Budrio merecia acaso que, em recompensa, o viessem hostilizar?! Confesso que não sei decidir onde é que este príncipe ganhará mais gloria, se na paz, se na guerra. 47. Os povos da Apulia, da Calábria e da Lucania, conservarão por longo tempo lembrança de suas façanhas naqueles campos em que o rei dos Catalães há de conceder-lhe pela primeira vez a honra gloriosa do combate singular. Por mais de uma Victoria logrará ficar seu nome inscrito entre os dos capitães invictos; seu mérito lhe proporcionará entrar no gozo efetivo de uma soberania, que mais de trinta anos antes lhe pertencerá por direito. 48. Grandíssimos favores lhe deverá seu povo. E não me refiro nisto a conversão dos pântanos em campos fertilíssimos; nem aos melhoramentos de Ferrara, defendida por ele com obras de fortificação, adornada com templos, com palácios, com teatros. 49. Também me não refiro á valentia com que saberá defendel-a contra as garras potentes do Leão de S. Marcos, - nem á prudência com que logrará conserva-la no doce remanso da paz, sem temores, sem angustias, sem contribuições de guerra, no tempo em que todo o resto da bela Itália andar a ferro e a fogo por causa da França. 50. Tudo isso é de pouca monta perante o que país lhe ficará tão somente devendo na inclita prole de tão ilustre príncipe. O justo Affonso e o benévolo Hipólito merecerão comparar-se aos dois lendários filhos do Cysne de Tyndaro, cada um dos quais alternadamente se privava da luz celestial para temporariamente furtar o outro ás trevas mortais. Hipógrifo e Affonso estarão sempre promptos, um pelo outro, a corajosamente afrontarem a morte.

51. A intima afeição dos dois dará em resultado para seu povo uma segurança maior do que se lhe coubesse ter guarnecido pela mão de Vulcano com uma dupla cinta de ferro as muralhas da cidade. Bondade e sabedoria aliar-se-ão por tal forma em Affonso, que no século seguinte há de haver quem suponha ter sido ali o segundo reinado de Astréa. 52. Prudência e valor, tais quais tinha seu pai, precisará de ter este príncipe, - que por um lado se encontrará a braços com os Venezianos, e por outro com uma potencia, á qual não sei se ele mais deva chamar madrasta do que a mãe (se é mãe, confessemos que faz lembrar para com Affonso o procedimento de Medéa ou de Progne para com os filhos). 53. Sempre que ele de Ferrara sair, á testa de seus súbditos fieis, triunfará brilhantemente de seus inimigos, quer seja de dia ou de noite, quer seja por terra ou por mar. Nisto hão de por fim atentar os povos da Romanha, imprudentemente induzidos a hostilizarem a um país

162 vizinho que primeiro havia sido aliado seu; o território que medeia entre o Pó, o Santerno, e o Zanniolo, ficará banhado com o sangue deles. 54. Por semelhante provação hão de passar os Hespanhoes assoldadados pelo Sumo Pontífice quando Affonso lhes retomar Bastia, por eles anteriormente raptada com a aleivosa morte do respectivo castelão. Em castigo desse ato infamíssimo, não dará a ninguém, começando no comandante e acabando no infimo dos soldados, para que de todos nem um sobreviva que possa levar a Roma noticia de sua desforra. 55. Á sua prudência e ao valor de seu braço caberá nos campos da Romanha a honra de fazer com que o exercito francês fique vitorioso contra o Pontífice e contra a Hespanha. Sangue humano correrá em abundancia tal, que inundará toda a planície, nadando nele os cavalos sobreviventes: chegarão mesmo a ficar cadáveres insepultos, por faltar quem os enterre, de Alemães, de Gregos, de Hespanhoes, de Italianos, de Franceses. 56. Aquele que, em vestes pontificais, traz na cabeça o chapéu de púrpura, e o liberal, magnânimo e sublime Hipólito, cardeal da Igreja Romana, e merecedor de quem em todas as línguas eternamente o elogiem tanta em prosa como um verso. O justo Céu quer que no seu tempo floresça um Virgilio, como aquele que floresceu em tempo do imperador Augusto. 57. Hipólito, abrilhantando pelos feitos próprios a sua ilustre família, será comparável ao Sol que, iluminando a maquina do mundo, resplende com fulgor incomparável entre os mais astros. Com pequeníssima comitiva de peões, e mais pequena ainda de cavaleiros, irá triste quando sair de Ferrara, mas volvera radiante por trazer como presa de guerra um espantoso numero de embarcações, entre elas quinze galés. 58. Lá temos depois os dois Sigismundo. – Lá temos os cinco filhos queridos de Affonso, cuja fama nem montes nem mares impedirão de chegar a todos os pontos do mundo; um d‟esses, Hercules II, será genro do rei da França: outro, por nome Hipólito, igualara seu tio no primor de suas ações. 59. Francisco se chama o terceiro; Affonso é o nome dos dois restantes.- Mas.... conforme te disse já, se eu fora a mostrar-te da tua descendência os ramos todos que tanto lustre acrescentarão pelo seu valor, crê que por muitos dias e muitas noites me ficarias aqui escutando. Não julgas acertado que encerremos n‟este ponto a exposição, e que deixemos os espectros retirar-se? 60. Com o assentimento de Bradamante, a maga fechou o livro. E logo as sombras dos espectros volveram precipitadamente ao recinto em que se achava o sepulcro de Merlim. Bradamante, apenas lhe foi concedido falar, perguntou: - “ Quem eram aquele dois tão tristes que notei entre Hipólito e Affonso?” 61. “ Suspirando, e com fronte inclinada para o chão, dir-se-ia que lhes faltava a coragem. Afigurou-se-me ate, que seus irmãos desviavam deles o olhar, como esquivando-se-lhes. Transtornaram-se as feições da maga, ao escutar tal pergunta. E, lavada em lagrima, exclamou: São infelizes, cujo infortúnio vem a filiar-se na perniciosa instigação de homens perversos! 62. Oxalá que o seu delito não consiga estorvar a clemência por que tanto se distingue a generosa prole do benévolo Hercules! Para com aqueles dois desgraçados, que pertencem a essa mesma família, Oxalá que o rigor da justiça fique substituído pela compaixão! E a maga acrescentou em voz mais baixa: Finda a revelação, a maga disse: [ - Não queiras saber o resto; deixa-te ficar com a doce impressão das glorias que apontei, nem te pese que eu me esquive a amargurar-ta.

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63. Logo que no céo despontem os primeiros alvores, hás de ir comigo pelas mais curta vereda que d‟aqui nos conduza ao luzente castelo em que Rogério está encarcerado. Servir- te-ei de companheira e de guia até que fiques livre da emaranhada floresta. E, quando chegarmos á beira-mar, ensinar-te-ei o caminho por de forma que dele neste não possas extraviar-tes errar. 64. Assim passou a noite a intrépida Bradamante, empregando parte dela em escutar os conselhos de Merlim, que a persuadiu a quanto antes ir em busca do meu amável Rogério.E Qquando no céu raiaram os primeiros rubores da aurora, saiu ela então Bradamante da caverna, subterrânea por um caminho escuro e secreto, em companhia da maga. 65. Assim chegaram ambas a um precipício oculto entre montanhas, que para o comum dos mortais eram realmente inacessíveisl. E um o dia todo, sem descansar, andaram trepando fragas e atravessando torrentes. Para disfarçar o enfado inerente da a semelhante jornada, e para em certo modo suavizar a aspereza dos caminhos, entretinham-se discorrendo agradavelmente sobre o que mais interessa lhes poderia despertar em discorrer sobre a façanhas do nigromante. 66. E a conversação teve especialmente por assunto o modo por que Bradamante devia por em pratica suas astúcias. - Pallas ou Marte que tu fosse, lhe dizia a maga, e quando mesmo e ainda sua trouxesse comitiva maior de guerreiros maior que a do que o próprio rei Carlos Magno, ou o rei Agramante fica certa de que não lograrias resistir pela força a um nigromante daqueles. Seu 67. Se o não sabes dir-te-ei: o seu inexpugnável castelo assenta n‟um rochedo altíssimo, circundado por de muralhas de aço. O corcel em que ele monta, salta e galopa nos ares. Junta-se a isto o celebre / escudo, mortais cujo fulgor possui o condão de ofuscar estontear e fazer perder os sentidos aquém nele fita os olhos, ( ao acaso o dono o põe a descoberto). 68. Replicar-me-ás talvez que, para escapar fugir a esse perigo, conservarás fechados os olhos, em enquanto combateres. Mas ... como poderias então calcular as tuas paradas e as tuas respostas. os teus golpes? Para evitares o efeito mortal daquele do escudo deslumbrante e bem assim para neutralizares todos os mais encantamentos de semelhante mágica, há um talismã que vou indicar-te, único infalível em todo o mundo. 69. Esse talismã é um anel, roubado em tempos na Índia a uma rainha indiana, e dado por Agramante, rei da África, a um de seus barões, chamado , o qual poucas milhas se acha distante de nós. Quem traz possui no dedo esse anel, está completamente a coberto contra-o de malefício dos encantamentos. 70. Brunello, que é possuidor de tão maravilhoso talismã, pode considerar-se em aptidões para enganos a furtos perfeitamente comparável no nigromante do escudo no que respeita a malefícios de magia. Pelas praticas de sua astúcia Brunello recebeu de Agramante o encargo de ir, com o auxilio do anel, restituir a liberdade a Rogério: assim o prometeu ele a seu amo, para quem a pessoa de Rogério representa objeto da mais de partícula estima. 71. Porem,.. para que o teu Rogério fique devendo a ti somente, o não ao rei Agramante o, favor de sua libertação, ensinar-te-ei os meios de que te cumpre lançar mão. Escuta-me: hás de ir durante três dias costeando as areias litorais da praia que em breve descobriremos; ao terceiro dia encontra-te hás numa pousada um pouso com o possuidor dono do anel. 72. Para que os reconheças, te vou dar dele os sinais: Brunello tem a estatura inferior a seis palmos; cabelos, preto e sobremaneira crespo; crespas as sobrancelhas também; face pálida, e fusca, muito barbada; olhos opados e um tanto envesgado; nariz deprimido: e... ( para que nada falte dizer-te) vestuário estreito e curto, fazendo lembrar o de um correio. 164

73. Não faltará o ensejo de conversares com ele em assunto de sobre encantamentos: podes dizer-lhe que tens (como é verdade) grandíssimo desejo de brigar com o mágico do castelo; mas livra-te de lhe dares a entender que sabes da existência do anel. Há de ele então oferecer-se para te a ensinar o caminho te junto a da rocha em que mora o nigromante. 74. Aceitando-lhe a companhia, caminharás atrás dele. E, quando avistares a rocha, trata de o matar: para isso, é mister que ponhas de parte os sentimentos compassivos, e que o teu companheiro e não adivinhe teus os intentos, - porque, se lhe desses tempo de recorrer ao talismã, vê-lo ias imediatamente desaparecer-te da vista, apenas o tal anel mágico lhe tocasse na boca. 75. Assim conferenciando concertando, chegaram as duas ao sitio em que desemboca, a pouca distancia de Bordeus, o Garonna. Ai, consagrandoram ambas á sua mutua a despedida algumas lagrimas e separaram-se, finalmente. Sem descançar de noite, nem de dia, lá vai seguindo seu caminho a filha de Aymon, unicamente preocupada com a idéia de libertar o amante: ao fim de três dias em constante jornadear, foi ter a uma estalagem, onde já Brunello estava albergado. assustado. 76. Pela descrição que lhe feita tinham feito do homem logo ela o reconhece: pergunta-lhe de onde vem e para onde vai; Brunello responde-lhe mentindo em tudo quanto diz; Bradamante, por seu lado, prevenida como estava, não faz também senão dissimular e mentir, e trata de completamente o iludir com respeito a pátria, família, religião, nome e sexo de sua pessoa. 77. Entretanto vai lhe amiudadas vezes fixando nas mãos um olhar perscrutador, sempre com o receio de ser por ele roubada: informada como esta de seus procedentes nem mesmo consente que ele vá colocar-se-lhe ao lado. Estavam Brunello e Bradamante em frente um do outro, quando súbito chegou aos ouvidos de ambos um inesperado rumor...

Capítulo 4

1-Censurável embora, e quase sempre indicativa de um espírito malévolo a dissimulação certo e que muitas vezes presta evidentes benefícios; muitas vezes nos evita situações danosas ou vergonhosas; e em certos casos até nos livras da morte: amigos nem sempre se encontram nesta vida terrena, em que a escuridão da inveja é mais comum do que a serenidade leal. 2. A um verdadeiro amigo, que por ventura se nos depare em longas provações, poderemos sem desconfiança patentear o nosso intimo pensamento. Mas Era esse o caso da formosa amante de Rogério ante aquele Brunello? Tinha-lho a maga pintado, não como sincero e franco, mas como fingido e mentiroso. 3. Por isso Bradamante se vê obrigada também a dissimular perante aquele refinadíssimo impostor, adestrado em quanto gênero possa imaginar-se de mestre em toda a sorte de fingimento, e conforme dito ficou, muitas e muitas vezes fita a jovem os olhos nas mãos de Brunello. E dissimulava, e disfarçava sempre de olho no anel, quando lhe chega aos ouvidos um estranho clamor Mas, de repente... chega-lhe aos ouvidos um estrepitoso rumor. - Virgem Santíssima! Exclama Bradamante a donzela. Que será isto, Deus do Céu?! E ei-la a correr para o sitio donde parecia vir vinha o estrepito 4. Que há de ela ver? O estalajadeiro com toda a família toda uns a janela, outros fora da porta, olhandovam pasmado para cima, como se no firmamento houvesse que ver um 165 eclipse ou um se tivesse aparecido um cometa!...O prodígio que Bradamante descontinua... toca os limites do incrível! Imagine-se Mas o prodígio era outro. Um grande corcel com de azas, que vai fedendendo os ares, montado por e sobre o cavalo um cavaleiro, armado. 5. Grandes e diversamente coloridas eram as azas do corcel; de brilhante e luminosa a armadura, do cavaleiro que o montava. Caminhavam Voava na direção do poente, Por fim e por fim embaixando o vôo, acabaram por desapareceramu atrás das montanhas. Dizia o estalajadeiro que já o vivia voar muitas vezes, cavalgando pelo nigromante o qual se ergue até as estrelas ou voa-riz-vez da terra, raptando as (n‟isso não se enganava) que era um nigromante, aquela prodigiosa digressão apresentava-se amiudadas vezes dali ora em maior distância, ora mais ao perto. 6. Já erguendo até as estrelas o vôo já quase rez-vez-da terra, o cavaleiro vai sempre raptando e levando consigo as mulheres bonitas que se encontra nestas regiões. D‟aqui resulta que as míseras donzelas, quando sejam são formosas em cuidar sê-lo tratam de conservar-se muito escondidinhas em casa enquanto faz sol. 7. Mais dizia o estalajeiro que a residência do nigromante era, nos Pyreneos, um castelo encantado, todo feito de aço, mui luzente e belo, como não havia outro no mundo. E acrescentava ele: [ - Já muitos cavaleiros lá tem ido, ao seu castelo, mas nenhum ainda se gabou de haver podido voltar: quer-me portanto parecer que lá ficaram prisioneiros, se o que ou o nigromante os não matou 8. Bradamante, vai escutando esta narrativa toda Animavam-na esperanças, de que o anel maravilhoso lhes servirá para triunfar do castelo e do castelão. Animava de esperanças, diz o estalajeiro: Voltando para o estalajadeiro, diz lhe: [ - Desencanta-me tu arranja- me alguém que me guie ao castelo, melhor do que eu, conheça o caminho para lá, porque não descanso enquanto não medir minhas forças com semelhante mágico. 9. Pois se careceis de um guia, observou Brunello irei eu convosco. Trago marcado por escrito o itinerário E e de outros elementos sou também possuidor, que vos tomarão agradável a minha companhia. Referia-se n‟isto Brunello á posse do anel, mas por cautela... exprimia-se d‟est‟arte misteriosamente. Agradável Agradabilíssima, por certo, respondeu-lhe Bradamante, me será a vossa companhia, respondeu Bradamante pensando no anel vossa. Referia-se ela ao anel, do qual contava apoderar-se 10. E o que lhe convinha dizer, disse-o, mas o que lhe pareceu inconveniente sabe-lo o sarraceno, deixou-o Bradamante em silencio. Tinha o estalajeiro um cavalo, próprio tanto para combate como para jornada. Bradamante comprou-lho. E Nno dia seguinte, ao romper d‟alva, partiu, fazendo caminho partiram, tomando por um vale estreito. Brunello ia marchando também, umas vezes na dianteira, outras vezes atrás 11. De montanha em montanha, e de bosque em bosque, lograram chegaram ambos a um dos píncaros Pyraneas, dos Pirineus d‟onde se podes quando límpido o horizonte, avistar ao mesmo tempo a França e a Espanha, e o arenoso litoral de dois mares, tal qual sucede a quem dos Apeninos avista simultaneamente o Mar Adriático e o Mar Toscano, se escolhe por ponto de observação o píncaro próximo ao celebre convento dos Frades Beneditinos. 12. Seguindo um desfiladeiro escabroso, podia-se dali descer descia-se a um profundo Vale . Em em meio do qual desse vale havia um penhasco, cingido no cume por uma de bela muralha de aço. e tão elevado, que sobrepuja tudo quanto o circunda. Quem não tiver azas não pense em querer lá penetrar, que é trabalho perdido. [- É ali, disse Ali disse Brunello, é onde que o mágico retém seus cativos, 166

13. Talhada a pique em suas quatro faces, a rocha elevava-se perfeitamente vertical, sem vereda nem escadaria que lhe facultasse o acesso. Percebia-se pois, que só um animal com azas poderia fazer daquele castelo a sua habitação. 14. Bradamante calculou que era chegado o momento de se apoderar doa anel. Mas ... mas pensou também que matar Brunello representaria um ato menos decoroso, por equivalia a macular-se com o sangue de um homem desarmado; e resolveu ocorreu-lhe que poderia assenhorar-se do tomar o anel sem matar o possuidor. tanto mais, que Brunello não cuidava então em acautelar-se. Que fez Bradamante? Agarrou-o, prendeu-o amarrou-o ao tronco de um abeto uma arvore, e em seguida tirou-lhe do dedo o anel. 15. E enquanto Brunello chorou, gemeu se, lamentou-se lamentava-se... Mas Bradamante foi o deixando ficar atado ao tronco da árvore,- e serenamente desceu a montanha, até chegar a planície onde em que assentava se erguia a torre. Depois, para que o mágico aparecesse, Aí levou a buzina á boca, e, tendo-a feito ressoar, e chamou com gritos de ameaça o adversário, desafiando-o para combate. 16. O nigromante, ouvindo a buzina, e sentindo os gritos, prestes logo se apresentou lá vem ele montado no corcel das asas, fendendo os ares, ao encontro daquele que aparentemente figura um guerreiro feroz. Bradamante sente-se tranqüilizada, calculando que pouco mal lhe fará o antagonista, porquanto lhe não vê lança, espada, nem maça d‟armas. 17. O que Só lhe vê é no braço esquerdo um escudo envolvido em seda vermelha e na direita um livro, por cuja leitura auxiliado conseguia praticar grandes maravilhas mágico, com auxílio do qual consegue suas grandes maravilhas. Assim uma vezes é que ás vezes figurava investir ás lançadas, o que tinha obrigado já vários os guerreiros a cerrarem os olhos; outras vezes – dir-se-ia que manejava espada ou maça: e, todavia-se achava-se a uma grande distância, completamente desarmado! 18. O corcel é que não era imaginário, mas real e muito real. Filho de uma égua e de um grifo, assemelhava-se ao pai nas penas e nas asas, nas patas dianteiras, na cabeça, e nas garras; no resto assemelhava-se á mãe. Chamava-lhe Era o Hipogrifo, animaes d‟estes não são vulgares; mas animal raro, que se encontravam-se nos montes Ripheus, muito para lá dos mares glaciais. 19 nigromante havia tinha feito vir o seu estranho corcel, que amansava de modo a, por virtude de seus encantamentos. E, apenas lhes chegou, tratou de adestrar por forma, que dentro num mês a poder, de cuidados e fadigas, lograva já brida-lo sela-lo, monta-lo, cavalgando e - o sem dificuldades por terra ou pelo ar, para onde quer que lhe aprouvesse . Nisso e que não havia ficção alguma de encantamentos: era um fato, incontestável, que todos presenciavam como testemunhas oculares. Não havendo nisso encantamento nenhum Enquanto ao resto, sim, enquanto ao resto, pode dizer-se que os fingimentos do nigromante é que figuravam em tudo: assim, por exemplo, o amarelo fazia o ele parecer, vermelho; etc;etc; 20. Mas o anel, porém que Bradamante levava consigo, garantia-lhe imunidade contra as illusões ópticas providas pelo do adversário. E ora entra ela se a esgrimire no vácuo, ora entra ela a encaminhar o cavalo neste ou naquele sentido, manobrando conforme as instruções que recebera. 21.Exercitados que foram alguns d‟estes manejos deliberava-se Bradamante a apear-se, no intuito de melhor desempenhar o que previdente maga lhe tinha aconselhado... quando Por fim o nigromante se resolveu lançar mão do seu recurso derradeiro, crente como estava no 167 irresistível poder do seu escudo mágico, . Descobrindo o escudo, conta ele que imediatamente por terra, deslumbrado por tão ofuscante fulgor, quem se atrever a resistir- lhe. 22. Ora o nigromante podia muito bem, logo desde principio, descobrir o escudo, sem estar com tais delongas a enganar os adversários. Mas comprazia-se naquela espécie de brinquedo: agradava-lhe vê-los brandir a lança ou manejar a espada; fazia nisto lembrar um gato que se diverte primeiro a brincar com o rato, - e que só quando se enfada do divertimento, se resolve enfim a cravar-lhe os dentes e mata-lo. 23. Esta comparação da gato e do rato (fique bem assentado) entende-se apenas para o caso dos combates que o mágico tinha antecedentemente sustentado.) Para o caso presente, em que Bradamante possuía o anel talismã, mudavam sobremaneira as circunstancia. Toda atenta Mas a donzela, atenta aos seus movimentos, do nigromante, para não só deixar levar de vencida, quando vai vê que ele ia descobrir o escudo, fecha fechou os olhos e deixa deixou-se cair por terra. Procedendo 24-Não se imagine que a ofusca o fulgor do reluzente metal, como sucedia a todos os outros adversários do mágico: Bradamante, procedendo assim, teve mira fazer o que o terrível nigromante por aquela forma iludido, se apeasse apear-se do Hipogrifo e se aproximasse aproximar-se dela e acertadamente andou, por que logo o animal, acelerando o movimento das azas e descrevendo largos circuitos, veio pousar no chão. E foi o que sucedeu. 25. O cavaleiro, deixando no arção o escudo, que já novamente envolvera no véu, apeia-se e aproxima-se de Bradamante, que o espreita a semelhança de um cabritinho a espreitar o lobo escondido, no manto. Quanto o pilha ao alcance das mãos, Bradamante ergue-se n‟um prompto, e vigorosamente o agarra. O misero tinha deixado cair no chão o livro nigromântico, em que residia toda a origem do seu poderio! 26. Trazia na cinta um grilhão, com que se propunha acorrentar Bradamante pela mesma forma que estava habituada a como acorrentara aos outros adversários, seus Mas d‟estas vez... a donzela tinha prestes derrubado o mágico. E, se ele não buscava defender-se, desculpem-no: que havia de fazer um débil velho contra quem dispunha de tão excepcional vigor?! 27. Bradamante, dispondo para dispunha-se a lhe cortar a cabeça, vai para levantar a mão vitoriosa. mas fitando os olhos no. Mas ao fitar o rosto do nigromante, - suspende-se o golpe como desdenhando desdenhosa de uma vingança tão baixa vulgar. Na pessoa do vencido vê dia um velho de aspecto venerando e fisionomia merencória, rugas nas faces e cabelos brancos, indicando tudo ser um homem de setenta anos ou pouco menos. 28. Mas E o velho exclamava, entre irado e despeitado:... Tirai-me a vida, por Deus! Bradamante, porém mostrou desejos de saber quem era o nigromante ele, com que fim tinha ele edificado naquele sítio selvático o encantado castelo, e por que motivo andava assim perseguindo a humanidade. 29. Resposta do velho, todo lacrimoso: Na construção deste castelo, respondeu ele. não houve da minha parte intento maligno intento; nem as minhas ações representam a avidez de um ladrão. Em mim Queria acentuou apenas o empenho afetuoso de proteger contra o um perigo extremo que lhe esta iminente, um gentil cavaleiro, de quem o céu me revelou que em breve tempo morreria, depois de convertido ao cristianismo, por traição. 30. Tão belo, tão prestimoso, não há outro a quem o sol possa alumiar. Chama-se Rogério. Criei-o desde pequenino. Atlante é o meu nome. Devorado pela sede da glória, e impelido por seu cruel destino, o meu pupilo entrou em França na comitiva do rei Agramante. E eu, 168 que sempre lhe tive mais amor do que se fora seu próprio pai, procuro, desviando-o de França, desvia-lo do perigo. 31. Esta bela fortaleza, se a edifiquei, foi para guardar nela seguro o meu Rogério, de quem me apoderei pela mesma forma que esperava apoderar-me hoje de vós. Depois, tratei de lhe trazer damas e cavaleiros, pessoas todas de nobilíssima estirpe (como tereis ocasião de ver) afim de que tão brilhante companhia o destruísse de sua clausura da prisão 32. Só o que lhe não lhe permitia era sair do castelo. enquanto a proporcionar-lhe toda a casta de prazeres, ficava isso completamente a meu cuidado. Musica, rico vestuários, jogos divertidíssimas iguarias das mais finas, tudo quanto pode imaginar-se de melhor e de mais agradável, tudo quanto pode o coração desejar ou a boca pedir, tudo ali se encontrava naquela residência. Da boa semente, que eu lançara na terra, estava colhendo o fruto, mas Mas tudo vieste vós inutilizar num simples momento... 33. Se a beleza do vosso rosto corresponde a beleza da vossa alma, espero que não ponhais o obstáculo ao embaraceis o meu louvável desígnio. Aqui tendes vos ofereço o meu escudo, eu vo-lo ofereço que, como vos ofereço este corcel que tão rapidamente voa pelos ares. e o meu corcel que voa. Mmas não vos ocupeis do que vai por aquele castelo, eu, quando muito, levai convosco um ou dois de vossos amigos, mas deixai os restantes. Quereis mesmo liberta-los a todos, pois libertai-os, mas concedei-me um favor: deixar-me ficar o meu Rogério. 34. “Porerá, se apesar de tudo, temais em tirar-mo, então... antes de o levardes para a França... acabe por uma vez comigo, libertando minha alma aflita deste invólucro mortal que prestes está já a desfazer-se!” Respondeu-lhe Bradamante. Rogério, respondeu-lhe Bradamante é precisamente a pessoa que me proponho restituir a liberdade. Podes tu improvisar aí quantas histórias quiseres te venham a imaginativa... mas é escusado e pretenderes captar-me com a oferta do corcel e do escudo, que são já propriedade minha e não tua. 35. Sempre, todavia te direi que, muito embora estivesse o teu arbítrio dispor do escudo e do corcel, nem mesmo assim eu aceitaria a proposta. Dizes me que se, reténs enclausuradas a pessoa de Rogério, e porque pretendes salvaguarda-lo contra a maligna influência dos astros. Mas, de duas umas: ou ignoras o que o Céu realmente determinou acerca de Rogério, ou se o sabes não podes evita-lo. Quando não pudeste prever a atua própria desgraça iminente, como te julgas habilitado a prevenir os infortúnios futuros de ontem? 36. Não me peças que te mate, porque seriam baldadas as tuas rogativas. Se estas deveras com desejos de morrer, - inda que todos neste mundo se apostem a contrariar-te, sabes perfeitamente que um espírito vigoroso tem sempre ao teu alcance maneira de acabar com a vida. Antes, porém que dês esse passo, exijo que restituas a liberdade aos teus prisioneiros todos. Assim falou a donzela, e preso conduzindo ela o nigromante acorrentado em direção ao penhasco. 37. Atlante ia ligado com seu próprio grilhão: á ilharga do velho caminhava Bradamante, – desconfiada sempre, apesar do aspecto humilde que apresentava o dono do castelo. Poucos passos tinham dados, e ei-lo ambos no sopé chegam ao sopé da rocha em que assentava a fortaleza. Atlante ( que assim se chamava ele) em dado momento se agachava, 38. Atlante agachando-se rapidamente arranca do solo uma pedra em que se achavam gravados certos caracteres e signos de estranhos e quebra esses estranha feição. Arrancada a pedra, aparecem por debaixo uns vasos fumegantes que a pedra encobria encerram dentro em si fogos ocultos. 169

Quebra–os o nigromante... E logo de sobre o penhasco se desvanece por encantamento a perspectiva do castelo... 39. Desaparece da vista o nigromante, e com ele instantaneamente a encantada fábrica das muralhas de aço. Ficam porém desfrutando (em) liberdade quantas (todas) damas e quantos (todos) cavaleiros existiam nos magníficos aposentos do castelo, dispersos agora naquele selvático ermo, lamentam muitos deles a perdida clausura: porque a liberdade obtida os priva dos grandes prazeres que tinham (ali) gozavam. 40. Entre os libertados figura Gradasso, figura Sacripante, figura Prosildo (nobre cavaleiro que do Levante veio com Reinaldo) e figura também Iroldo (amigo íntimo de Prosildo). Por fim, aos olhos da bela Bradamante, depara o desejo Rogério, o qual apenas a reconheceu, lhe fez o mais grato e amável acolhimento. Mas aparecem, em liberdade, todos os prisioneiros, entre os quais Gradasso Sacripante, o cavaleiro Prosildo e por fim Rogério, o qual fez a Bradamante o mais amoroso acolhimento. 41. E que Bradamante representava para Rogério um ente a quem ele mais amava do que a luz de seus próprios olhos, mais até de que o próprio coração e á própria vida, desde o dia em que, a pedido seu, ela tirou da cabeça o elmo, resultando-lhe dai o ficar ferida. Contar com isso foi, quem a feriu, etc. etc, seria longo, longuíssimo, - e longuíssimo também descrever o tempo que andaram ambos á procura um do outro em floresta emaranhadas, noite e dia, sem terem nunca, senão agora, tornado a encontrar-se. 42. Agora que ele finalmente volve a encontra-la e De muito que este a procurava e agora que a encontra e reconhece ter sido ela a sua única libertadora, transborda-lhe do coração a alegria e considera-se o mais venturoso dos homens. Descendo juntos o rochedo, acharam-se então todo no vale em que Bradamante vencera o mágico: e aí se lhe deparou o Hipogrifo, conservando ainda sobre si o escudo envolvido no veio escarlate. 43. Bradamante dispõe-se a lançar-lhe as mãos á rédea; mas ele, erguendo o vôo, foge-lhe e vai pousar a pouca distância. A donzela busca novamente apanha-lo; e novamente ele se lhe esquiva, pela mesma forma, fazendo lembrar uma gralha quando perseguida por um cão, em árido areal. 44. Rogério, Sacripante, Gradasso e todos os cavaleiros mais enfim que da clausura tinham saído, acham se agora empenham-se em correr de um para outro lado, ora trepando ao píncaro dos morros, ora descendo as grotas a verem-se aos úmidos Algarves profundamente situados entre as fragas, tudo no intuito de verem se acertam com o sítio em que porventura onde venha a poupar o Hipogrifo. Este, porem depois de os ter inutilmente fatigado, fatigado os ter inutilmente acaba por fixar-se no lugar em que estava Rogério. 45. Tudo isto eram ainda manobras inspiradas do velho Atlante, que no seu piedoso afeto persiste em querer livrar o querido Rogério do grande perigo iminente. Só isso o preocupa e o aflige: e ahi esta porque ele ora exerce a influencia de que ainda dispõe, fazendo com que o Hyppogrypho, vá de propósito colocar-se ao alcance de Rogério, para que assim com artifício logre desviá-lo da Europa. Rogério, lançando-lhe as mãos, procura levá-lo pela rédea; mas o Hipogrypho recusa obedecer-lhe. E conseguiu-o, pois 46.Rogério, então com toda a coragem, decida-se a apear-se do Frontino (assim se chamava o corcel em que montava / e saltar para cima do Hyppogripho, cravando-lhe impetuosamente as esporas. O Hippogrypho corre ainda uns instantes pelos chão, mas depois, o abrindo as azas, ergue ligeiro o vôo pelo espaço aéreo, mais rápido que um falcão solto pelo caçador em frente da caça. 170

47. A bela dama, vendo erguido a uma altura d‟aquelas e em tanto perigo o seu Rogério, fica atônita, por um grande espaço mal dando podendo realmente dar acordo de si. O que em tempos ouvira contar de Ganymedes (rapto para as regiões do Olimpo) afigura-se-lhe possível repetir-se, na presente aventura, com respeito a Rogério, não menos belo, não menos belo, não menos formosos do que o mitológico Ganymedes. 49. Para que ninguém se atreva a chamar-lhe seu, e para que ela possa um dia restituí-lo a seu legitimo dono, resolve Bradamante não abandonar o cavalo. E entretanto vai o Hippogrypho subindo, subindo sem que Rogério logre-se-lhe senhor dos rédeas sem que Rogério consiga sofre-lo .Tão alto vai e tão baixa se lhe afiguram as montanhas que o cavaleiro consegue diferenciar dos montes os vales. E vejamos o que faz Rinaldo. 50. Chegado que foi um a uma enormíssima altura (tão enorme, que se alguém cá de baixo olhasse para lá, cuidaria distinguir apenas um simples ponto no espaço), o Hippogrypho dirige seu vôo para a região em que o Sol costuma esconder-se quando entra no signo de câncer. A maneira por que ele funde os ares faz lembrar o rápido andamento de um navio quando lhe sopra vento propicio. Deixemo-lo ir seu caminho, e voltemos ao paladino Reinaldo. 51. Sacudido pela procela, Reinaldo percorreu durante dois dias um grande espão de mar, já na direção do poente, já na direção do norte. E os ventos sempre e sempre assobiando furiosos!...Afinal conseguiu aproar á Escócia, desembarcando em praia convizinha da celebre floresta Caledonia, onde amiúde, por entre os folhados de antiqüíssimo carvalhos, se ouve ressoar o estridor das armas. 52. Vagueiam n‟aquella selva cavaleiros-andantes, afamadíssimos, não só de toda a Bretanha e dos paises circunvizinhos, mas inclusivamente dos que mais afastados ficam, tais como França, Noruega e Alemanha. Quem não possuir grande valor, escusa de lá ir, - porque, em vez da glória, arrisca-se a encontrar a morte. Lançarote e Arthur, e Tristão, e vários outros cavaleiros da celebre Távola Redonda, ali se distinguiram por suas inclitas proezas. 53. Restam d‟esse tempo ainda em comemoração monumentos e troféus pomposos. Reinaldo, saltando em terra com seu cavalo e suas armas, despede os marinheiros e dá ordem para que vão esperá-lo no porto de Berwick. 54. Sem escudeiro e sem guia, o cavaleiro embrenha-se por aquella selva imensa, aqui seguindo uma vereda, tomando acolá por outra, e contando sempre com as mais extraordinárias aventuras. No primeiro dia chegou ele a um mosteiro, onde partes dos rendimentos costumam os frades consumir na bela hospedagem com que recebem quantas damas e quantos cavaleiros ali acodem das cercanias. 55. Tanto o abade como os outros monges dispensaram a Reinaldo o mais grato acolhimento. Depois de restaurar o estomago com as excelentes iguarias que lhe ofereceram em refeições, perguntou-lhes Reinaldo como era que n‟aquele território haviam podido proporcionar-se aventuras, e qual o sitio em que seria mais fácil demonstrar, por algum feito notável, o alto valor da cavalaria. 56. responderam-lhe por que entre aqueles bosques poderiam deparar-se-lhe estranhas aventuras; que os feitos gloriosos ficam ás vezes obscuros, como as localidades, unicamente por não ter d‟elles transpirado noticia. E disseram-lhe: - Procurai vós os sítios em que tiverdes a certeza de que não ficam ignorados os atos que praticardes; passadas os perigos e as fadigas, a Fama celebrara condignamente as vossas proezas. 171

57. Quereis dar provas de vossa valentia? Agora se vos oferece a mais gloriosa empresa que já em tempo algum se deparou a cavaleiro. É o caso que a filha do nosso rei esta precisamente n‟esta ocasião carecendo de quem a socorra e defenda contra o barão Lurcanio: vai n‟isso a vida e a honra da princesa. 58. Este Lurcanio (por ódio talvez mais do que por verdade) foi declarar a El-Rei, que tinha surpreendido uma noite a princesa no ato criminoso de fazer entrar pela janela um amante. As leis do reino sentenciam-n‟a a morrer na fogueira, se no intervalo de um mês (e o prazo esta quase a expirar!) não tiver ela encontrado um campeão que se preste a desmentir o injusto acusador. 59. Na Escócia a severidade das leis assim o determina: toda a mulher, de qualquer condição a quem acusem de ter tido amores comum homem, sem com ele estar casada, é irrevogalmente condenada a morte. E nada a pode salvar, exceto se algum valoroso guerreiro quiser, por defendel-a, sustentar que tal mulher esta inocente de semelhante calúnia e por conseguinte não merece castigo. 60. El-Rei, verdadeiramente consternado pelo caso que se dá com a bela Genebra (Genebra se chama à princesa) mandou deitar pregão por cidades e vilas, convidando quem se preste a pugnar em prol da infeliz, e prometendo a quem logre triunfar d‟aquella odiosa calúnia (uma vez que seja guerreiro de família nobre) não só a mão da própria princesa, mas inclusivamente as honrarias todas condignas de um dote adequado a semelhante consórcio. 61. Se no intervalo do mês ninguém aparecer a sustentar a inocência da bela genebra, ou quando por infelicidade o seu defensor não logre triunfar de quem a acusa, a desditosa perecerá infalivelmente. Ora não vos parece mais própria uma empresa d‟estas, que andar errante pelos bosques em busca de aventuras? Alem da honra e da glória, que eternamente ficarão engrinaldando o vosso nome, tereis por premio a flor de quantas beldades há por esse mundo a contar na Índia e a terminar nos confins ocidentes da Europa. 62. E a riqueza do dote! E a grandeza da posição? E a gratidão d‟El-Rei pelo fato de lhe reabilitardes sua honra (que hoje perdida esta quase) Não constituirá isso tudo elementos para ficardes feliz. As próprias leis da cavalaria vos estão impondo a obrigação de vingar contra semelhante perfídia uma donzela que, na opinião publica, passa por um modelo de verdadeira castidade. 63. Reinaldo esteve uns instantes refletindo, e afinal respondeu: - Há de uma donzela ser condenada á morte, unicamente por ter correspondido aos fogosos desejos do mancebo que a adora. Maldito seja quem semelhante lei decretou! E maldito quem não resolve derrogá- lo! Morrer... merecerá a mulher cruel que se não compadece do amante! Nunca a mulher sensível que se presta a fazê-lo viver em gozos!

64. Verdadeiro ou falso que seja o que dizem de Ginebra... poucos me importa! Não serei eu quem lhe irrogue censura pelo fato de que a incriminam. Eu aqui... só tardo de me constituir seu campeão. Prestai-me vós um guia que me leve á presença de quem a acusa: e espero em Deus que hei de salvar a princesa. 65. Não irei de negar o fato de que se trata, - porque, não tendo provas decisivas, arrisca-me a ir afirmar uma falsidade. Mas sustentarei que só de um espírito injusto ou desvairado e que poderia partir a idéia de uma lei tão iníqua, - lei que deve suprimir-se, substituindo-a por outra mais sensata. 66. Se no coração feminino existe inato o mesmo sentimento de amor que existe no do homem, e se ambos identicamente propendem para aquella intimidade de afetos que o vulgo ignaro taxa de grave delito,- que direito há para exigir da mulher umas 172 responsabilidades a que o homem se forta? Acaso o que para este fica impune, e ate chega a constituir motivo de vangloria, deve acaso considera-se n‟aquella um crime? 67. É uma desigualdade injustíssima com que a vossa lei agrava a condição feminil! Com o favor de deus, espero demonstrar o amor que houve em tal-a conservado a vigorar por tão largo espaço de tempo. Concordaram todos, com Reinaldo, em que os antigos haviam sido realmente injustos e desarrazoados por consentirem como lei uma iniqüidade semelhante: e chegaram não menos á conclusão de que mal procederia ao rei, se, podendo, lhe não pusesse o remédio. 68. No dia seguinte, quando sobre o hemisfério se desdobraram rutilantes os clarões da aurora, Reinaldo saiu armado e montado no seu Baiardo, levando por guia um escudeiro que andou com ele pela floresta léguas e léguas, em direção ao lugar onde tinha de se decidir pelas armas a culpabilidade ou a inocência da donzela. 69. Para encurtar caminho, tinham os dois viajantes largados a estrada ordinária e seguido por um atalho... n‟isto, sentiram elles a pequena distancia gemidos que repercutiam pela floresta em redor. Picam ambos de esporas na direção do Valle em que lhes parecia serem os gemidos... E eis se lhes depara entre dois malfeitores uma donzela, que de longe parecia ser mui formos 70. Formosas realmente, mas lavada em lagrimas e aflitíssima! Os dois malfeitores, com o ferro erguido, dispunham-se para derramar o sangue da infeliz. Entretanto com suas reiteradas súplica diligenciava a triste retardar o momento fatal, esperançada em que afinal se compadecem d‟ela... Foi n‟este ponto que Reinaldo chegou. Mal percebeu de que se tratava, correu altos gritos e terríveis ameaças. 71. Por seu lado os malfeitores, tão depressa deram com os olhos na inesperada aparição, desataram a fugir e foram esconder-se no mias profundo recesso do Valle. O paladino nem sequer pensa em correr traz d‟elles: dirige-se á dama, desejoso de indagar que delito é o d‟ela para lhe quererem dar um castigo assim. Para abreviar tempo ordena ao escudeiro que ponha a dama na garupa: e volve a seguir seu caminho. 72. Depois... quanto mais a contempla, mais bela lhe vai parecendo; e mui discreta se lhe afigura, posto que ainda influenciada um pouco pelo terror do transe a que estivera exposta. Quando Reinaldo lhe manifestou o desejo de saber os motivos d‟aquella infeliz ocorrência, a donzela começou com voz suave e meiga a narrativa de suas aventuras.

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Anexo 2 (transcrição em forma de tabela: A= Texto Xavier da Cunha; B Texto com as marcações de Lobato; c) Possível adaptação de Lobato

Capítulo 1

A B C 1-Damas e cavaleiros, combates, 1-Damas e cavaleiros, combates , Aqui conta Ariosto de damas e amores, galanteios, ousados amores, galanteios, ousados cavaleiros, amores e façanhas Ano empreendimentos do tempo em empreendimentos do tempo em desmedidas, tradições e que os Mouros d‟África atravessaram que os Mouros d’África generosidades acontecidos no tempo 770 o mar e tanto estrago produziram na atravessaram o mar e tanto do imperador Carlo Magno; e conta Idade França, estimulados pela cólera e estrago produziram na França, de como o paladino Orlando, se fez Média pelos ímpetos juvenis de seu rei estimulados pela cólera e pelos louco furioso por amor de Angélica; Agramante, que na pessoa do rei ímpetos juvenis de seu rei e de Rogério, e de Bradamente, e de Carlos, imperador de Roma, se Agramante, que na pessoa do rei toda uma legião de guerreiros e gabava de vingar a morte de Troiano, Carlos, imperador de Roma, se donzelas famosas. - tudo isso vai o leitor encontrar aqui. gabava de vingar a morte de 2- Simultaneamente contarei eu de Troiano, - tudo isso vai o leitor Orlando o que nunca ninguém encontrar aqui. contou ainda em prosa ou verso: e o 2 Simultaneamente contarei eu de leitor ficará sabendo como foi que Orlando o que nunca ninguém perante o amor se tornou contou ainda em prosa ou verso: e o louco-furioso um cavaleiro que em leitor ficará sabendo como foi que tempos tinha desfrutado a reputação perante o amor se tornou louco- de sensatíssimo. (Oxalá queira furioso um cavaleiro que em tempos aquela que também quase tão louco tinha desfrutado a reputação de me tornou, e que de dia para dia vai sensatíssimo. (Oxalá queira aquela consumindo o meu espírito já que também quase tão louco me fraquíssimo, consentir-me d‟ele uns tornou, e que de dia para dia vai restos suficientes para eu levar a consumindo o meu espírito já cabo o que ora aqui prometo!) fraquíssimo, consentir-me d‟ele uns restos suficientes para eu levar a cabo o que ora aqui prometo! )

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3-E vós, ó generoso descendente de 3. E vós, ó generoso descendente de Supressão Hércules, ornamento e esplendor do Hércules, ornamento e esplendor do século em que vivemos, - vós, ó século em que vivemos, vós, ó Hipólito, dignai- vos acolher o único Hipólito, dignai vos acolher o único preito que o vosso humilde servo preito que o vosso humilde servo pode tributar-vos. Preito de palavras, pode tributar-vos. Preito de palavras, que de outro modo não posso que de outro modo não posso agradecer o que vos devo! E não agradecer o que vos devo! E não m‟o rejeiteis por mesquinho, que m‟o rejeiteis por mesquinho, que n‟ele vai tudo quanto cabe em n‟ele vai tudo quanto cabe em minhas débeis forças. minhas débeis forças.

4- Entre os mais dignos heróis que 4. Entre os mais dignos heróis que Supressão me proponho louvar, encontrareis me proponho louvar, encontrareis memorado aquele Rogério que de memorado aquele Rogério que de vós e de vossos ilustres antepassados vós e de vossos ilustres antepassados foi tronco. Se honrar-me quiserdes foi tronco. Se honrar-me quiserdes escutando-me, ouvireis a narrativa escutando-me, ouvireis a narrativa de seu alto valor e de suas brilhantes de seu alto valor e de suas brilhantes proezas: possa o vosso alto proezas: possa o vosso alto pensamento inclinar-se um pouco e pensamento inclinar-se um pouco e merecer-lhe favor este escrito meu. merecer-lhe favor este escrito meu.

5-Orlando, que desde muito se 5.Orlando, que desde há muito se Orlando, que há muito se achava achava enamorado da formos achava enamorado da formosa enamorado da formosa Angélica, Angélica,-e por esse amor trocara os Angélica, - essa princesa viera e com essa princesa viera aos troféus imortais que na Índia, na por esse amor trocara os troféus montes Pyrineus, onde o imperador Média, e na Tartaria, lhe imortais que na Índia, na Média, e na Carlos Magno tinha assentado os competiam,-regressara com ela às Tartaria, lhe competiam, - regressara seus arraiaes guerreiros. regiões do Ocidente, e passara a com ela às regiões do Ocidente, e residir na falda dos Pyrineos, onde passara a residir na falda dos aos o rei Carlos assentara arraiaes com montes Pyrineos, onde o imperador seus guerreiros de França e de rei Carlos Magno tinha assentadora Alemanha. os seus arraiaes com seus guerreiros de França e de Alemanha.

6-Que pretendia Carlos? Dar uma 6. Que pretendia Carlos: dar Carlos Carlos Magno pretendia dar uma severa lição ao rei Marsílio e ao rei Magno pretendia dar uma severa severa lição no rei Marsílio por ter Agramante, por haverem tido a lição ao no rei Marsílio e ao rei tido a louca audácia de trazer louca audácia, um de trazer d‟África Agramante, por haverem por ter d‟África quantos homens encontrou tudo quanto lá encontrou em tido a louca audácia, um de trazer em condições de manejar espadas, e condições de manejar espadas ou d‟Africa tudo quanto homens lá outra no rei Agramante, por haver lanças, o outro de haver arrastado a encontrou em condições de manejar arrastado a Espanha contra o belo Espanha contra o belo reino da espadas e outra no rei Agramante, reino da França. Chegou Orlando França. N‟isto Chegou Orlando, ou lanças, o outro de haver arrastado muito a propósito, muito a propósito. a Espanha contra o belo reino da França. N‟isto Chegou Orlando muito a propósito,

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7-Mais lhe valera, porém, que não 7-Mais lhe valera, porém, que Mas antes não tivesse chegado! tivesse chegado! porque em breve tinha não mas antes não tivesse porque em breve lhe seria raptada a de ser lhe raptada a sua dama (e assim chegado! porque em breve ele sua dama sem que ele pudesse é que às vezes tresvaria o juízo dos seria tinha de ser-lhe raptada a desembainhar a espada!... homens). Aquela que do Oriente ao sua dama (e assim é que às Ocidente ele havia sempre vezes tresvaria o juízo dos valorosamente defendido... ei-la raptada homens). Aquela que do Oriente agora, na sua própria terra, em pleno ao Ocidente ele havia sempre grêmio de tantos amigos seus, sem valorosamente defendido... ei-la mesmo ocasião a ele oferecer-se de sua raptada agora, na sua própria espada desembainhar! terra, em pleno grêmio de tantos O sábio Imperador que desejava apagar amigos seus, sem mesmo ocasião um violento incêndio, esse foi quem lh‟a a ele oferecer-se de sua espada raptou. desembainhar! sem que lhe pudesse desembainhar a espada! O sábio Imperador, que desejava apagar um violento incêndio, esse foi quem lh‟a raptou.

8-Entre o conde Orlando e seu primo 8. O caso foi assim. Entre o O caso foi assim. Entre o conde Reinaldo suscitara-se poucos dias antes conde Orlando e seu primo Orlando e seu primo Reinaldo uma contenda, porque ambos ardiam de Reinaldo suscitara-se poucos suscitara-se poucos dias antes uma amorosos desejos por tão rara beldade. dias antes uma contenda, porque contenda, porque ambos ardiam de Carlos, - a quem tal rivalidade não ambos ardiam de amorosos amorosos desejos por tão rara convinha, porque d‟eles lhe resultaria desejos por tão rara beldade. beldade. Carlos Magno, a quem essa ficar menos garantida a coadjuvação, – Carlos, - Magno, a quem tal essa rivalidade não convinha, mandou tratou de raptar-lhes a donzela, rivalidade não convinha, porque raptar-lhes a donzela, entregando-a entregando-a nas mãos do duque de d‟eles lhe resultaria ficar menos nas mãos do duque de Baviera. Baviera. garantida a coadjuvação, – tratou de mandou raptar-lhes a donzela, entregando-a nas mãos do duque de Baviera.

9-O que fez foi prometer-lhes que em 9. O que fez foi prometer-lhes O que fez foi prometer-lhes que a prêmio a daria mais tarde àquele dos que em prêmio a daria em daria em prêmio ao que em tão dois que em tão importante jornada prêmio mais tarde àquele ao dos importante campanha exterminasse exterminasse maior número de infiéis, e dois que em tão importante maior número de infiéis. A sorte da pelo valor de seu braço mais se jornada campanha exterminasse guerra, porém, não correspondeu aos distinguisse. O êxito, porém, é que não maior número de infiéis, e pelo votos dos guerreiros cristãos, que correspondeu aos votos dos guerreiros valor de seu braço mais se sofreram tremenda derrota, cristãos, sobre os quais desabou distinguisse. A sorte da figurando na multidão dos tremenda uma derrota: na multidão dos guerra, O êxito, porém, é que prisioneiros o próprio duque, cuja prisioneiros figurou o próprio duque, e a não correspondeu aos votos dos tenda ficou abandonada. sua tenda ficou abandonada. guerreiros cristãos, sobre os quais desabou tremenda que sofreram uma derrota:, figurando na multidão dos prisioneiros figurou o próprio duque, e a sua cuja tenda ficou abandonada.

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10-A donzela, destinada para prêmio 10. A donzela, destinada para A donzela, antes que a batalha se d‟aquele dos dois que na luta mais prêmio d‟aquele dos dois que na decidisse, palpitou que a fortuna proezas praticasse achava-se a cavalo já, luta mais proezas praticasse das armas seria contraria aos tempo antes que a batalha se decidisse. achava-se a cavalo já, tempo Cristãos, e tratou de fugir, E, quando lhe palpitou que n‟aquele dia antes que a batalha se decidisse. , embrenhando-se a cavalo num a fortuna das armas seria adversa aos E, quando lhe palpitou que bosque, no qual encontrou um Cristãos, tratou de fugir embrenhando-se n‟aquele dia a fortuna das armas guerreiro caminhando a pé. n‟um bosque. Ali n‟uma vereda estreita, seria adversa contraria aos deparou-se-lhe um guerreiro Cristãos, e tratou de fugir, caminhando a pé. embrenhando-se a cavalo n‟um bosque., Ali n‟uma vereda estreita, no qual deparou-se lhe encontrou um guerreiro caminhando a pé.

15- A donzela ia correndo quanto podia 15. A donzela ia correndo quanto Ao vê-la o sarraceno reconheceu a e soltando gritos. O sarraceno, ao podia e soltando gritos. O formosa Angélica, não obstante a escutar-lhe a voz, ergue-se a contemplá- sarraceno, ao escutar-lhe a voz, palidez e o medo que lhe la, e reconhece-a logo não obstante a ergue-se a contemplá-la, e transtornava as feições. palidez e o medo que lhe transtorna as reconhece-a logo Ao vê-la o feições: apesar mesmo de haver já sarraceno reconheceu a decorrido muito tempo que não ouvira formosa Angélica, não obstante notícias d‟ela... é certo, certíssimo ter na a palidez e o medo que lhe sua frente a formosa Angélica. transtornava as feições. : apesar mesmo de haver já decorrido muito tempo que não ouvira notícias d‟ela... é certo, certíssimo ter na sua frente a formosa Angélica.

16-Cortez, e de coração inflamável não 16. Cortez, e de coração Cortez, e de coração inflamável menos que os dois primos, -Ferragudo inflamável não menos que como como o dos dois primos, Ferragudo ofereceu logo à dama todo o auxílio os dos dois primos, - Ferragudo ofereceu logo à dama todo o auxílio possível. Corajoso e ousado, como se ofereceu logo à dama todo o possível, e puxando a espada, nem o elmo lhe faltasse, puxou da auxílio possível., Corajoso e ameaçadoramente, correu para espada e correu ameaçador para ousado, como se nem o elmo lhe Reinaldo, com o qual por várias Reinaldo, que d‟ele pouco se temia faltasse, puxou da espada e vezes já se tinha encontrado com também: ambos se tinham já por várias puxando a espada, armas na mão. vezes visto, e por várias vezes ameaçadoramente, correu encontrado com as armas na mão. ameaçador para Reinaldo, com o qual que d‟ele pouco se temia também: ambos se tinham já por várias vezes visto, e por várias vezes já se tinha encontrado com as armas na mão.

17-Travou-se entre eles o combate à 17. Travou-se entre eles o Travou-se violento combate, espada: ambos a pé, e ambos furiosos: violento combate à espada: trocando ambos golpes capazes golpes, capazes de atravessar bigornas trocando ambos a pé, e ambos de fender bigornas. Mas enquanto que fariam em simples couraças e em furiosos: golpes, capazes de assim, mutuamente se finas malhas de ferro?... E enquanto fender atravessar bigornas. que encarniçavam... eis que o palafrem ambos, um contra o outro, mutuamente fariam em simples couraças e em de Angélica dispara com ela, a se encarniçam... eis que o palafrem de finas malhas de ferro?... Mas E galopar loucamente, pelos campos Angélica se lhes esquiva, porque ela o enquanto ambos, um contra o fora. estimula quanto pode a galopar através outro, assim mutuamente se

177 da floresta e pelos campos fora. encarniçam encarniçavam... eis que o palafrem de Angélica se lhes esquiva porque ela o estimula quanto pode dispara com ela, a galopar loucamente, através da floresta e pelos campos fora. 18-Depois que por um largo espaço os 18. Depois que por um largo Depois de longa peleja em que se dois guerreiros se cansaram debalde, espaço os dois guerreiros de cansaram debalde, sem que um esforçando-se por mutuamente se longa peleja em que se dominares o outro, Reinaldo dirigiu derribarem, sem que de um ou de outro cansaram debalde, esforçando-se a palavra ao sarraceno. se pronunciasse inferioridade, - foi o por mutuamente se derribarem, senhor de Montalvão quem primeiro sem que de um dominares o ou dirigiu a palavra ao sarraceno, em tom de outro se pronunciasse de quem sente o coração inflamadíssimo inferioridade, foi o senhor de a ponto de já não poder mais suportar Reinaldo Montalvão quem semelhante ardência. primeiro dirigiu a palavra ao sarraceno,. em tom de quem sente o coração inflamadíssimo a ponto de já não poder mais suportar semelhante ardência.

19- E disse ele ao pagão: O empenho 19- E disse ele ao pagão: O Cuidas que, se conseguires matar- com que procuras causar-me dano, a ti empenho com que procuras me ou aprisionar-me, ficará sendo próprio t‟o causa também. Tudo isto causar-me dano, a ti próprio tua a formosa dama? Não vês que porque? porque sentes inflamado o teu causa t‟o também. Tudo isto nos foge, enquanto nós aqui nos coração nos fulgurantes raios d‟aquele porque? porque sentes inflamado demoramos? novo sol. Mas... que vantagem colhes tu o teu coração nos fulgurantes em fazer - me aqui demorar? Cuidas raios d‟aquele novo sol. Mas ... que, se conseguires matar-me ou que vantagem colhes tu em fazer aprisionar-me, ficará sendo tua a me aqui demorar? [Cuidas que, formosa dama? Não vês que nos foge, se conseguires matar-me ou enquanto nós aqui nos demoramos? aprisionar-me, ficará sendo tua a formosa dama? Não vês que nos foge, enquanto nós aqui nos demoramos?

20-Visto que também lhe tens amor, não 20- Visto que também lhe tens Visto que também lhe tens amor, seria melhor que lhe fosses embargar a amor, não seria melhor que lhe não seria melhor que lhe fosses carreira, tolhendo-a de se nos escapar fosses embargar a carreira,? embargar a carreira? Quando a para mais longe? Quando a tivéssemos tolhendo-a de se nos escapar tivéssemos em bom recato, em bom recato, poderíamos então para mais longe? Quando a poderíamos então decidir pelas decidir pelas armas a qual dos dois tivéssemos em bom recato, armas a qual dos dois deve deveria pertencer. Não sendo assim, poderíamos então decidir pelas pertencer. arriscamo‟-nos ambos a colher da nossa armas a qual dos dois deveria mútua teimosia funestíssimos males.” pertencer. Não sendo assim, arriscamo‟-nos ambos a colher da nossa mútua teimosia funestíssimos males.”

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21-Não desagradou ao sarraceno a 21- Não desagradou ao sarraceno Não desagradou ao sarraceno a proposta do seu rival. Adiou-se o a proposta do seu rival. Adiou-se proposta do seu rival. Adiou-se o combate, e (veja se n‟isto como o combate, e veja se n‟isto como combate, e ajustaram-se entre eles facilmente esquecem o ódio e a cólera!) facilmente esquecem o ódio e a tréguas tão cavalheirescas, que o ajustaram-se entre eles tréguas tão cólera! ajustaram-se entre elles pagão, ao afastar-se da ribeira, que cavaleirosas, que o pagão, ao afastar-se tréguas tão segue graciosamente convidou da fresca ribeira, não consentiu que cavaleirosasheirescas, que o Reinaldo e o instou a montar na seguisse a pé o filho de Aymon: pagão, ao afastar-se da fresca garupa. E lá se foram ambos graciosamente o convida e o insta a ribeira, não consentiu que galopando em perseguição da montar na garupa. E lá vão ambos seguisse a pé o filho de Aymon: formosa Angélica. galopando em perseguição da formosa graciosamente o convidou Angélica. Reinaldo convida e o instaou a montar na garupa. E lá vão se foram ambos galopando em perseguição da formosa Angélica.

22-Note se como era acentuada a 22- Note se como era acentuada N‟isto, eis que, estimulado pelas bondade dos antigos cavaleiros! Rivais a bondade dos antigos quatro esporas, o rápido corcel e professando religião diferente, cavaleiros! Rivais e professando chegou a um sítio em que a estrada molestados de mais a mais pela rudeza religião diferente, molestados de se dividia em duas. dos golpes com que reciprocamente se mais a mais pela rudeza dos haviam agredido, - não hesitavam golpes com que reciprocamente entretanto em caminhar na companhia se haviam agredido, - não um do outro, sem a mínima hesitavam entretanto em desconfiança, através de sombrias caminhar na companhia um do selvas e por veredas tortuosas. outro, sem a mínima N‟isto, eis que, estimulado pelas quatro desconfiança, através de esporas dos dois guerreiros, o rápido sombrias selvas e por veredas corcel chegou a um sítio em que a tortuosas. estrada se dividia em duas. N‟isto, eis que, estimulado pelas quatro esporas, dos dois guerreiros, o rápido corcel chegou a um sítio em que a estrada se dividia em duas.

23-E, porque os dois perseguidores da 23- E, porque os dois como os E como os perseguidores da donzela donzela ignoravam qual dos dois perseguidores da donzela ignoravam ignorassem o d caminho que teria caminhos teria a fugitiva seguido (visto ignorassem qual dos dois caminhos tomado a fugitiva, resolveram que em ambos se reconheciam frescos que teria tomado a fugitiva, seguido confiar-se à sorte: Reinaldo seguiu e perfeitamente idênticos sinais de patas (visto que em ambos se reconheciam por um lado, e o sarraceno por outro. frescos e perfeitamente idênticos de cavalo), resolveram confiar-se ao sinais de patas de cavalo), Deste modo Ferragudo, depois de arbítrio da sorte: Reinaldo tomou por resolveram confiar-se à ao arbítrio haver por muito tempo vagado pela um lado, e o sarraceno por outro. da sorte: Reinaldo tomou seguiu floresta, acabou voltando ao sitio D‟est‟arte Ferragudo, após haver por por um lado, e o sarraceno por outro. d‟onde partira. Já que não podia muito tempo divagado pela floresta, D‟est‟arte Deste modo Ferragudo, encontrar a dama, queria ao menos acabou por ir ter ao mesmo sitio, d‟onde após depois de haver por muito reaver o elmo caído n‟água. primeiro havia partido em companhia de tempo divagado pela floresta, Reinaldo. acabou por ir ter ao mesmo voltando ao sitio, d‟onde primeiro

havia partidora. em companhia de Reinaldo. Já que não podia encontrar a dama, queria ao menos reaver o elmo caído n’água.

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24- Quer dizer: - Ferragudo foi dar ao 24- Quer dizer: - Ferragudo foi Supressão mesmo ponto da ribeira, em que o elmo dar ao mesmo ponto da ribeira, lhe tinha caído n‟água. E agora, - uma em que o elmo lhe tinha caído vez que já pela idéia lhe não pode n‟água. E agora, - uma vez que passar o encontrar a dama, atrás de já pela idéia lhe não pode passar quem corria, - ocorre-lhe ao menos o encontrar a dama, atrás de aproveitar o ensejo de reaver o elmo quem corria, - ocorre-lhe ao tombado na ribeira: para isso vai ele... menos aproveitar o ensejo de descendo pela riba úmida... Mas o elmo reaver o elmo tombado na achava-se tão enterrado na areia, que ribeira: para isso vai ele ... decerto há de custar-lhe bastante a descendo pela riba úmida... Mas retira-lo de lá. o elmo achava-se tão enterrado na areia, que decerto há de custar-lhe bastante a retira-lo de lá.

25-N‟este apuro lembra-lhe arrancar 25- N‟este apuro lembra-lhe Cortou uma vara e com ela estava d‟uma árvore um comprido esgalho, arrancar d‟uma árvore um a sondar o fundo do rio, eis senão afeiçoá-lo em guisa de sonda, e com ele comprido esgalho, afeiçoá-lo em quando, surge-lhe do meio das águas tentear o fundo da ribeira, buscando e guisa de sonda, e com ele tentear o busto ameaçador de um cavaleiro, rebuscando por todos os pontos o que o fundo da ribeira, buscando e trazendo na mão o capacete. O deseja recuperar. rebuscando por todos os pontos o vulto encarou-o e disse-lhe em tom Mas enquanto o despeitadíssimo que deseja recuperar. Cortou irado: Ferragudo vai prolongando as suas uma vara e com ela estava a pesquisas, surge-lhe do meio das águas sondar o fundo do rio, Mas o busto ameaçador de um cavaleiro. enquanto o despeitadíssimo Ferragudo vai prolongando as suas pesquisas, eis senão quando, surge-lhe do meio das águas o busto ameaçador de um cavaleiro, trajando na mão o capacete. O vulto encarou-o, disse-lhe em irado tom:

26-Revestiam-lhe o corpo todo armas 26. Revestiam-lhe o corpo todo [ Perjuro e traidor! porque te aflige defensivas, o corpo todo, com exceção armas defensivas, - o corpo todo, deixares-me aqui o elmo que há da cabeça: e na mão direita segurava ele com exceção da cabeça: e na tanto tempo me devias? o próprio capacete de Ferragudo, aquele mão direita segurava ele o que o sarraceno inutilmente se demorara próprio capacete de Ferragudo, por tão largo espaço a procurar. aquele que o sarraceno Dirigindo-se-lhe n‟um tom irado, as inutilmente se demorara por tão palavras que disse ao cavaleiro pagão largo espaço a procurar. foram estas: Dirigindo-lhe n‟um tom irado, as - Perjuro e traidor! porque é que te aflige palavras que disse ao cavaleiro deixares-me aqui o elmo que há tanto pagão foram estas: tempo me devias? [ -Perjuro e traidor! porque é que te aflige deixares-me aqui o elmo que há tanto tempo me devias?

28-“E, se cobiças possuir um elmo fino, 28. “E, se cobiças possuir um E, se cobiças possuir um elmo fino, trata de buscar outro, mas trata de elmo fino, trata de buscar outro, trata de ganhá-lo mais ganhá-lo mais honrosamente. mas trata de ganhá-lo mais honrosamente. Semelhante a este, Semelhante a este, encontrarás um na honrosamente. Semelhante a encontrarás um na cabeça do cabeça do paladino Orlando; e outro, este, encontrarás um na cabeça paladino Orlando; e outro, talvez talvez ainda melhor, na de Reinaldo: do paladino Orlando; e outro, melhor, na de Reinaldo.

180 pertença de Almonte foi um d‟eles, e de talvez ainda melhor, na de Mambrino o outro dos dois. Faze por Reinaldo: pertença de Almonte conquistar valorosamente algum d‟esses; foi um d‟eles, e de Mambrino o mas este, que prometeste deixar-me, outro dos dois. Faze por convirá que efetivamente m‟o deixes.” conquistar valorosamente algum d‟esses; mas este, que prometeste deixar-me, convirá que efetivamente m‟o deixes.”

29-Perante esta inesperada aparição, 29. Perante esta inesperada [ Ferragudo sente arripiarem-se-lhe Ferragudo sente arripiarem-se-lhe os aparição, [ Ferragudo sente os cabelos e empalidece; a voz cabelos todos; empalidece-lhe o rosto; a arripiarem-se-lhe os cabelos embarga-se-lhe na garganta. voz embarga-se-lhe na garganta. E ao todos; e empallidece-lhe o rosto; Reconhece o cavaleiro Argalia que reconhecer em quem o afronta a voz embarga-se-lhe na por suas mãos havia morto, enche- increpando-o por quebras de lealdade, garganta.E ao reconhecer o se de vergonha e cólera e jura aquele mesmo Argalia que por suas cavaleiro em quem o afronta próprias mãos ele havia morto, - increpando-o por quebras de simultaneamente lhe pungem n‟alma a lealdade, aquele mesmo Argalia vergonha e a cólera. que por suas próprias mãos ele havia morto, – simultaneamente lhe enche-se de pungem n‟alma a vergonha e a cólera. e jura

30-E, porque lhe não acodem razões que 30. E, porque lhe não acodem pela vida de Lanfusa que nunca mais invoque para desculpas, antes razões que invoque para em sua cabeça quererá outro elmo reconhecendo verdade enquanto acabava desculpas, antes reconhecendo senão aquele que Orlando ganhou a de ouvir, deixa-se ficar silencioso e verdade enquanto acabava de Mambrino, em Aspramonte. mudo. Mas a vergonha que sente o ouvir, deixa-se ficar silencioso e obriga a jurar pela vida de Lanfusa que mudo. Mas a vergonha que sente nunca mais em sua cabeça quererá outro o obriga a jurar pela vida de elmo senão aquele que Orlando ganhou Lanfusa que nunca mais em sua outr‟ora em Aspramonte. cabeça quererá outro elmo senão aquele que Orlando ganhou outr‟ora a Mambrino, em Aspramonte.

31-Esse juramento soube ele cumpri-lo 31. Esse juramento soube ele E dali parte, descontentíssimo, sem melhor do que o outro que primeiro cumpri-lo melhor do que o outro encontrar sossego durante muitos fizera. E ei-lo que dali parte, que primeiro fizera. E ei-lo que dias, Com a preocupação constante descontente, descontentíssimo, a ponto E dali parte, descontente, de encontrar-se com o paladino. de não encontrar sossego durante muitos descontentissimo, a ponto de não Entretanto sucedia uma aventura dias, A sua preocupação constante é ver sem encontrar sossego durante também ao bravo Reinaldo, que se descobre onde possa encontrar-se muitos dias, A sua Com a por outra estrada dirigira seus com o paladino. preocupação constante é ver se passos. Entretanto sucedia uma aventura descobre onde possa de também ao bravo Reinaldo, que por encontrar-se com o paladino. outra estrada dirigira seus passos. Entretanto sucedia uma aventura também ao bravo Reinaldo, que por outra estrada dirigira seus passos.

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32-Poucos passos tinha andado 32. Poucos passos tinha andado Poucos passos tinha andado Reinaldo, quando repentinamente lhe Reinaldo, quando Reinaldo, quando repentinamente aparece aos saltos o seu impetuoso repentinamente lhe aparece aos lhe aparece aos pinotes o seu corcel. – “Pára ai, meu Bayardo, pára ai! saltos pinotes o seu impetuoso impetuoso corcel. – “Pára ai, meu sem ti não posso eu passar!” Mas o corcel. – “Pára ai, meu Bayardo, Bayardo, que sem ti não posso corcel, completamente surdo à voz de pára ai! que sem ti não posso eu passar!” Mas o corcel, surdo à voz, Reinaldo, em vez de lhe obedecer, passar!” Mas o corcel, do dono, continua a galopar cada continua a galopar cada vez mais completamente surdo à voz de vez mais veloz.Reinaldo segue atrás veloz.Reinaldo o que faz é correr traz Reinaldo, do dono em vez de lhe d‟elle. d‟elle. obedecer, continua a galopar E Angélica ? E acompanhemos entretanto cada vez mais veloz.Reinaldo o Angélica ? , na sua fuga. que faz é correr traz segue atrás d‟elle. E Acompanhemos entretanto Angélica ? , na sua fuga.

33-Por florestas sombrias e medonhas, 33. Por florestas sombrias e Por florestas sombrias e lugares por lugares desabitados e medonhas, por lugares medonhos vai ela fugindo.O rumor completamente selváticos, vai ela desabitados e completamente da folhagem e as sombras inspiram fugindo. O rumorejar da folhagem nos selvaticos, medonhos vai ela súbitos pavores, receios de que seja carvalhos, nas faias e nos olmeiros, não fugindo. O rumorejar da Reinaldo a persegui-la. faz senão inspirar-lhe súbitos pavores e folhagem e as sombras nos obriga a seguir desnorteadamente carvalhos, nas faias e nos estranhíssimos carreiros: sombras que olmeiros, não faz senão inspirar- lhe apareça na montanha ou no vale, lhe inspiram súbitos pavores, e acometem-n‟a logo receios de que seja obriga- a seguir Reinaldo a persegui-la. desnorteadamente estranhíssimos carreiros: sombras que lhe apareça na montanha ou no vale, acometem-n‟a logo receios de que seja Reinaldo a persegui-la.

34- Faz lembrar uma corça ou uma 34. Faz lembrar Lembra uma Lembra uma cabrinha, que vendo cabrinha, que, por entre os folheados do corça ou uma cabrinha, que, por um leopardo estrangular-lhe a mãe, bosque em que houvesse nascido, vendo entre os folheados do bosque em fugisse de moita em moita, trêmula um leopardo estrangular-lhe a mãe, ou que houvesse nascido, vendo um de susto, cuidando em cada raiz que matar-lh‟a rasgando-lhe as entranhas, leopardo estrangular-lhe a mãe, topa ver as faces da fera. fugisse de moita em moita, para longe ou matar-lh‟a rasgando-lhe as da fera cruel, tremendo de susto, e no entranhas, fugisse de moita em auge da inquietação, cuidando em cada moita, para longe da fera cruel, raiz que topa encontrar as faces do tremendo trêmula de susto, e no leopardo a devorarem-n‟a. auge da inquietação, cuidando em cada raiz que topa encontrar ver as faces do leopardo a devorarem-n‟a. da fera.

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35-E assim prossegue vagueando, ao 35. E assim prossegue vagueando ao E assim prossegue vagueando ao acaso todo esse dia, toda essa noite, e acaso, todo esse dia, toda essa noite, acaso todo esse dia, toda noite, e ainda metade do dia seguinte. Por fim foi e ainda metade do dia seguinte. Por metade do dia seguinte. Por fim foi dar a um bosquezinho encantador, fim foi dar a um bosquezinho dar a um bosque delicioso, bafejado bafejado pela frescura de uma suave encantador, delicioso, bafejado pela por brisa frescas, onde dois regatos brisa. Dois regatos claríssimos, que lhe frescura de uma suave brisa por serpeavam, conservando sempre deslizam em torno conservam sempre brisa frescas, onde dois Dois viçosa a vegetação. Julgando-se em viçosa a vegetação. d‟esse lugar aprazível, regatos claríssimos, que lhe segurança naquele encantador retiro, e, com a lympha a escoar se brandamente deslizam em torno serpeavam, resolve repousar. por entre pedrinhas, fazem as delícias de conservamndo sempre viçosa a quem lhes escuta o murmúrio. vegetação. d‟esse lugar aprazível, e, com a linfa a escoar se brandamente por entre pedrinhas, fazem as delícias de quem lhes escuta o murmúrio. Julgando-se em segurança naquele encantador retiro, resolve repousar.

36-E n‟esse lugar que, por se julgar em 36. E n‟esse lugar que, por se julgar Apeia-se entre flores; e deixa que segurança, como se de Reinaldo a em segurança, como se de Reinaldo o palafrem paste solto à beira dos separassem centros de léguas, Angélica se a separassem centros de léguas, regatos que murmuravam entre resolve a repousar um pouco do cansaço Angélica se resolve a repousar um pedrinhas. em que vinha, exacerbado ainda pela pouco do cansaço em que ardência do calor estival. Apeia-se entre vinha,exacerbado ainda pela flores; e deixa o palafrem desbriado, ardência do calor estival. Apeia-se vagueando à beira dos límpidos regatos, entre flores; e deixa que o palafrem atapetada por fresquíssima herva. desbriado, vagueando paste solto à beira dos regatos que murmuravam entre pedrinhas. límpidos regatos, atapetada por fresquíssima herva.

37-Não longe d‟ali, vê Angélica uma 37. Não longe d‟ali, vê Angélica Não longe d‟ali, vê Angélica uma graciosa moita de rosas brancas e uma graciosa moita de rosas brancas graciosa moita de rosas brancas e vermelhas, que debruçadas no liquido e vermelhas, que debruçadas vermelhas, escondida à sombra espelho das ondas, encontraram-na escondida no liquido espelho das dos altos carvalhos das ardências do sombra dos altos carvalhos abrigo contra ondas, encontraram-na à sombra sol . Em meio d‟essa moita a ardência do calor solar. Em meio dos altos carvalhos abrigo contra a d‟essa moita depara-se à recém-chegada das ardências do sol calor solar. Em um fresco retiro, oculto pelo umbríferos meio d‟essa moita depara-se à folhedos: ramos e frondes são ali tão recém-chegada um fresco retiro, entrelaçados, que nem os raios do sol oculto pelo umbríferos folhedos: penetram lá nem o olhar de quem passe. ramos e frondes são ali tão entrelaçados, que nem os raios do sol penetram lá nem o olhar de quem passe.

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38-No interior da moita suavidade tenra 38. No interior da moita suavidade se reclina a bela Angélica, e ali das relvas está convidando a repousar ali tenra das relvas está convidando a adormece Mas pouco lhe dura esse quem quer que se apresente. E ali se repousar ali quem quer que se repouso, porque logo sente passos reclina a bela Angélica, e ali adormece. apresente. E ali se reclina a bela que se aproximam. Ergue-se, Pouco tempo lhe dura entretanto esse Angélica, e ali adormece. Pouco cautelosa e vê á beira do regato um repouso, porque logo se lhe figura sentir tempo Mas pouco lhe dura cavaleiro, que acabava de chegar. passos que se aproximam. Ergue-se, entretanto esse repouso, porque logo cautelosamente, e descortina à beira do se lhe figura sentir sente passos que regato um cavaleiro armado, que n‟aquele se aproximam. Ergue-se, momento ali chegara. cautelosamente, e descortina e vê á beira do regato um cavaleiro armado, que n‟aquele momento ali acabava de chegara.

39-Se é um amigo ou um inimigo, não o 39. Se é um amigo ou um inimigo, O cavaleiro desce até a orla do sabe ela. Mas o receio e a esperança não o sabe ela. Mas o receio e a regato, e, com a face agitam-lhe simultaneamente o coração esperança agitam-lhe melancolicamente apoiada n‟uma opresso. Aguardando o desfecho de tal simultaneamente o coração opresso. das mãos, deixa-se por tal forma aventura, o que faz é nem sequer soltar o Aguardando o desfecho de tal absorver em cogitações profundas mais leve suspiro. aventura, o que faz é nem sequer que chega aparecer transformado Entrementes o cavaleiro, descendo até a soltar o mais leve suspiro. num insensível mármore. Depois, orla do regato, e, com a face Entrementes o O cavaleiro, respeitando, lamenta-se nestes melancolicamente apoiada n‟uma das descendo até a orla do regato, e, com termos: mãos, deixa-se por tal forma absorver em a face melancolicamente apoiada cogitações profundas que chega aparecer n‟uma das mãos, deixa-se por tal transformado num insensível mármore. forma absorver em cogitações profundas que chega aparecer transformado num insensível mármore. Depois, respeitando, lamenta-se nestes termos:

40-Pensativo e com a fronte inclinada 40. Pensativo e com a fronte Supressão para o chão, ficou o pesaro o cavaleiro o inclinada para o chão, ficou o pesaro por mais de uma hora. Afinal, n‟um tom o cavaleiro o por mais de uma hora. que revelava angústias e desditas, Afinal, n‟um tom que revelava começou ele a desatar-se em suavíssimos angústias e desditas, começou ele a lamentos, capazes de abrandar pedras desatar-se em suavíssimos lamentos, duras que o escutassem, capazes até de capazes de abrandar pedras duras inspirarem piedade ao tigre mais cruel. E, que o escutassem, capazes até de suspirando, chorava por forma que nas inspirarem piedade ao tigre mais faces se diria uma torrente de lágrimas e cruel. E, suspirando, chorava por no peito um vulcão. forma que nas faces se diria uma torrente de lágrimas e no peito um vulcão.

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41-Pensando (dizia ele) que gelas e 41. Pensando ( dizia ele ) que gelas e Que devo fazer, visto que cheguei simultaneamente inflamas o meu coração simultaneamente inflamas o meu tarde e outro se antecipou na colheita causando n‟ele a dor vivíssima que o vai coração causando n‟ele a dor do fruto? Enquanto eu obtive apenas roendo e minando! vivíssima que o vai roendo e uma palavra doce, esse outro Que devo eu fazer, visto que cheguei minando! Que devo eu fazer, visto alcançou tudo... tarde e outrem se me antecipou na que cheguei tarde e outrem outro se colheita do fruto? Enquanto eu obtive me antecipou na colheita do fructo? apenas uma palavra doce e um doce Enquanto eu obtive apenas uma olhar, outro alcançará todo o mais. Oh! se palavra doce, e um doce olhar esse nem as flores nem os frutos me podem outro alcançaráou todo o mais pertencer porque há de o meu coração tudo... Oh! se nem as flores nem os aflingir-se ainda por aquela beldade. frutos me podem pertencer porque há de o meu coração aflingir-se ainda por aquela beldade.

42-Uma donzelinha é semelhante a uma 42. Uma donzelinha é semelhante á Uma donzelinha é semelhante à rosa rosa que num belo jardim tranqüila apesar uma rosa que num belo no jardim que no jardim repousa na haste de sozinha repousa na haste natal tranqüila apesar de sozinha repousa materna; natal respeitam-n‟a respeitam-n‟a pastores e rebanhos, a brisa na haste materna; natal respeitam- pastores e rebanhos, a brisa fagueira, o orvalho da aurora, a água e a n‟a pastores e rebanhos, a brisa fagueira, o orvalho da aurora, a água terra, tudo se harmoniza para lhe fagueira, o orvalho da aurora, a água e a terra, tudo se harmoniza para lhe favorecer o frescor. E vêm então os e a terra, tudo se harmoniza para lhe favorecer o frescor. E vêm então os namorados e as namoradas colhê-la, para favorecer o frescor. E vêm então os namorados colhê-la, para com ela se com ela enfeitarem a fronte e o peito. namorados e as namoradas colhê-la, enfeitarem. para com ela se enfeitarem. a fronte e o peito.

43-Logo, porém, que da haste materna a 43. Logo porém, que da haste Logo, porém, que da haste a separam separaram e do verde ramúsculo ai d‟ela! materna a separaramm e do verde ai d‟ela! Porque murcha em suas Porque imediatamente se lhe dissipa tudo ramúsculo aí d‟ela! Porque murcha pétalas tudo quanto despertava nos quanto por sua graça e beleza despertava em suas pétalas imediatamente se homens ardente interesse! nos homens e no próprio céu a mais lhe dissipa tudo quanto por sua palpitante interesse! Assim a virgem que graça e beleza despertava nos deixa murchar essa outra, flor em cuja homens e no próprio céu a mais conservação mais se deve esmerar que na palpitante ardente interesse! Assim da própria formosura e na da própria a virgem que deixa murchar essa existência perde irremissivelmente no outra, flor em cuja conservação mais coração de seus adoradores toda a sua grã se deve esmerar que na da própria valia. formosura e na da própria existência perde irremissivelmente no coração de seus adoradores toda a sua grã valia.

44-Vil para os outros, e amada 44. Vil para os outros, e amada Oh! fortuna cruel! Fortuna ingrata! unicamente por aquele a quem tão rendida unicamente por aquele a quem tão Enquanto os outros triunfam morro ficou! rendida ficou! [ Oh! fortuna cruel! eu a míngua! Ah! Antes morrer Oh! fortuna cruel! Fortuna ingrata! Fortuna ingrata! Enquanto os outros n‟este momento que ficar vivendo Enquanto os outros triunfam morro eu a triunfam morro eu a míngua! Mas... sem amá-la! míngua! Mas... dar-se-á o caso de já me dar-se-á o caso de já me não ser não ser querida aquela mulher? Poderei eu querida aquela mulher? Poderei eu porventura abandonar aquilo em que a porventura abandonar aquilo em que minha própria vida consiste? Ah! Antes a minha própria vida consiste? Ah! morrer n‟este momento que ficar vivendo Antes morrer n‟este momento que sem amá-la! ficar vivendo sem amá-la!

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45-Querem saber quem é que junto às 45. Querem saber quem é que junto Quem junto ao regato derramava tão águas do regato derramava tão copioso as águas do Quem junto ao regato copioso pranto, era o afamado pranto. Era nem mais nem menos que, o derramava tão copioso pranto. , era Sacripante, rei da Circassia, outra afamado Sacripante, rei da Circassia, e Era nem mais nem menos que, o vítima da infausta paixão por outra vítima do infausto amor. Na paixão afamado Sacripante, rei da Circassia, Angélica. que o devorava consistia a causa prima e e outra vítima do infaustoa amor. Na única de suas mágoas: d‟essa paixão era paixão por Angélica. que o devorava Angélica o objeto, Angélica por quem consistia a causa prima e única de Sacripante logo ali foi reconhecido. suas mágoas: d‟essa paixão era Angélica o objeto, Angélica por quem Sacripante logo ali foi reconhecido. 46-Arrastado por tão violento amor viera 46. Arrastado por tão pelo violento Arrastado pelo violento amor, viera Sacripante lá do extremo Oriente às amor, viera Sacripante lá do extremo do extremo Oriente às regiões em regiões em que o sol se esconde. Na Índia Oriente às regiões em que o sol se que o sol se esconde... tinha ele sabido, com grande mágoa sua, esconde. Na Índia tinha ele sabido, que Angélica partira em companhia de com grande mágoa sua, que Orlando para as terras ocidentais. Mais Angélica partira em companhia de tarde, em França, haviam-lhe dito que o Orlando para as terras ocidentais. Imperador tratara de a pôr em bom recato, Mais tarde, em França, haviam-lhe no intuito de oferecê-la por prêmio àquele dito que o Imperador tratara de a pôr que na batalha mais proezas praticasse. em bom recato, no intuito de oferecê-la por prêmio aquele que na batalha mais proezas praticasse.

48-Enquanto ele se aflige e se lastima,e 48. Enquanto ele se aflige e Enquanto Sacripante se lastima, reduz os olhos a uma fonte perene de Sacripante se lastima, e reduz os permite um feliz acaso que o ouça a copioso pranto, proferindo as olhos a uma fonte perene de copioso própria Angélica. exclamações que já ficaram mencionadas pranto, proferindo as exclamações e muitas outras que seria ocioso referir, que já ficaram mencionadas e muitas permite um feliz acaso que as escute a outras que seria ocioso referir, - própria Angélica. E aí está como às vezes permite um feliz acaso que as escute n‟uma hora, n‟um momento, vem a o ouça a própria Angélica. E ai está realisar-se um passo que em mil anos ou como ás vezes n‟uma hora, n‟um mais não seria de esperar! momento, vem a realisar-se um passo que em mil anos ou mais não seria de esperar!

49-Atento é o gesto com que a bela dama 49. Atento é o gesto com que a bela Não é a primeira vez que tal amor se observa as lágrimas, as expressões, a dama observa as lágrimas, as lhe revela. Mais dura, porém, mais fisionomia enfim d‟aquele que por caso expressões, a fisionomia enfim fria do que o mármore, Angélica não nenhum deixa de amá-la: e todavia não é d‟aquele que por caso nenhum deixa desce a sentimentos de piedade não a primeira vez que tal amor se lhe revela. de amá-la: e todavia não Não é a achando ninguém digno de se lhe Mais dura, porém, mais fria do que uma primeira vez que tal amor se lhe aproximar. coluna de mármore, Angélica não a revela. Mais dura, porém, mais fria sentimentos de piedade, não achando do que uma coluna de o mármore, ninguém digno de se lhe aproximar. Angélica não se digna descer desce a sentimentos de piedade, como orgulho de todos desdenha e não achando ninguém acha digno de se lhe aproximar.

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50- Entretanto a consideração de estar 50. Entretanto a consideração de Entretanto a consideração de estar sozinha em meio d‟aqueles bosques estar sozinha em meio d‟aqueles sozinha em meio d‟aqueles bosques sugere-lhe a idéia de o aceitar por guia. bosques sugere-lhe a idéia de o sugere-lhe a idéia de o aceitar por Que faz quem esta imerso n‟água até ao aceitar por guia, Que faz quem esta guia, visto que por longa experiência pescoço e prestes a morrer afogado? imerso n‟água te ao pescoço e tinha já reconhecido ser aquele rei o Clama por auxílio, não é assim? Angélica prestes a morrer afogado? Clama por mais fiel de todos os seus entra a considerar que, se deixa perder auxílio, não é assim? Angélica entra adoradores. este ensejo, arrisca-se a nunca mais a considerar que, se deixa perder deparar-se lhe um auxílio tão leal, visto este ensejo, arrisca-se a nunca mais que por longa experiência tinha já deparar-se lhe um auxílio tão leal, reconhecido ser aquele rei o mais fiel de visto que por longa experiência tinha todos os seus adoradores. já reconhecido ser aquele rei o mais fiel de todos os seus adoradores.

51-Mas nem essa mesma consideração a 51. Mas nem essa mesma Mas nem essa mesma consideração a induz a consolar os tormentos d‟ alma que consideração a induz leva a consolar leva a consolar os tormentos que afligem Sacripante, dando-lhe por os tormentos d‟ alma que afligem afligem Sacripante. O que ela se indenização das passadas mágoas aquele Sacripante. dando-lhe por propõe é tramar um fingimento dulcíssimo prazer que todo o amante mais indenização das passadas mágoas qualquer, com que o entretenha ambiciona. O que ela se propõe é tramar aquele dulcíssimo prazer que todo o n‟uma enganosa esperança enquanto um fingimento qualquer, com que o amante mais ambiciona. O que ela se o seu auxílio lhe seja indispensável, entretenha n‟uma enganosa esperança propõe é tramar um fingimento – e depois... volver à sua enquanto o seu auxílio lhe seja qualquer, com que o entretenha insensibilidade habitual. indispensável, – e depois... volver à n‟uma enganosa esperança enquanto insensibilidade habitual, acostumada o seu auxílio lhe seja indispensável, arrogância! – e depois... volver à sua insensibilidade habitual, a acostumada arrogância!

52-Saindo então d‟entre a moita, 52. Saindo então d‟entre-a da moita, Saindo então da moita, Angélica umbrífera Angélica surge subitamente aos umbrífera Angélica surge surge aos olhos do cavaleiro em todo olhos do cavaleiro em todo o esplendor da subitamente aos olhos do cavaleiro o esplendor da sua beleza. Salve! sua beleza, como se fora Diana ou a em todo o esplendor da sua beleza, . Diz ela. Permita Deus defender por própria Vênus que surgisse de uma como se fora Diana ou a própria vossa intervenção a minha honra! floresta ou de uma gruta.Salve!Disse ela. Vênus que surgisse de uma floresta Permita ele também que não façais Permita Deus defender por vossa ou de uma gruta. [“Salve! Disse ela. de mim um conceito falso! intervenção a minha honra!” Diz ela. Permita Deus defender por Permita ele também que não façais vossa intervenção a minha honra! indevidamente de mim um conceito Permita ele também que não façais falsíssimo! indevidamente de mim um conceito falsíssimo falso!

53-Imagine-se a alegria inefável de mãe 53. Imagine-se a alegria inefável de Imenso foi o jubilo do príncipe amorosa, quando, após haver já pranteado mãe amorosa, quando, após haver já Sarraceno ao ver inesperadamente a morte do filho que supunha haver-lhe pranteado a morte do filho que aparecer-lhe radiante de formosura e morrido na guerra, logra a ventura de supunha haver-lhe morrido na sedutora de meiguice, a idolatrada tornar a vê- lo- cheio de vida! Por maior guerra, logra a ventura de tornar a Angélica. que seja o alvoroço e o jubilo de tal vê- lo- cheio de vida! Por maior que situação, certo que não igualará o jubilo e seja o alvoroço e o jubilo de tal

187 o alvoroço do príncipe Sarraceno ao ver situação, certo que não igualará inesperadamente aparecer-lhe radiante de Imenso foi o jubilo e o alvoroço do formosura, imponente no aspecto, e príncipe Sarraceno ao ver sedutora de meiguice, a idolatrada inesperadamente aparecer-lhe Angélica. radiante de formosura, imponente no aspecto, e sedutora de meiguice, a idolatrada Angélica.

54-“Com doce e amoroso afeto correu ele 54. Com doce e amoroso afeto “Com meigo alvoroço corre à sua a sua dama, à sua divindade, que lhe meigo alvoroço correu ele a à sua dama, que lhe lança ao pescoço os lança ao pescoço os braços, fagueira dama, à sua divindade, que lhe lança braços, amorosos. E Angélica, como certamente lá no Cathay se não teria ao pescoço os braços, fagueira animada com a proteção que se lhe nunca mostrado. E Angélica, então, amorosos como certamente lá no depara,...” animada com a proteção que se lhe Cathay se não teria nunca mostrado. depara, sente representarem se lhe E Angélica, então, animada com a vivíssimas no espírito as recordações do proteção que se lhe depara, sente reino paterno, seu país natal, e de súbito representarem se lhe vivíssimas no lhe acode a esperança de breve tornar a espírito as recordações do reino ver sua opulenta residência. paterno, seu país natal, e de súbito lhe acode a esperança de breve tornar a ver sua opulenta residência. 55-E conta depois Angélica ao Sarraceno 55. E conta depois Angélica ao conta ao Sarraceno todas as todas as aventuras acontecidas desde que Sarraceno todas as aventuras aventuras acontecidas desde que ele, ele, para servi-la, foi pedir no Oriente acontecidas desde que ele, para para servi-la, foi pedir auxílio ao rei auxílio ao rei da Sericana. Conta-lhe servi-la, foi pedir no Oriente auxílio da Sericana. Conta-lhe como como Orlando a salvou freqüentemente da ao rei da Sericana. Conta-lhe como Orlando a salvou da morte e da morte, da desonra, e de variadíssimos Orlando a salvou freqüentemente da desonra, deixando entrever que apuros. Finalmente lhe relata que morte e da desonra, e de destarte lograra conservar ilesa a lograra ela conservar ilesa aquela flor variadíssimos apuros. deixando flor virginal com que o dotara a virginal com que o a Natureza adotara no entrever Finalmente lhe relata que Natureza. seio materno. destarte lograra ela conservar ilesa aquela a flor virginal com que o a dotara a Natureza. adotara no seio materno.

56-Verdades puras eram talvez quanto 56. Verdades puras eram talvez Seria verdade pura o que Angélica n‟esse particular Angélica lhe afirmava, quanto n‟esse particular Seria afirmava, mas difícil de verificar, difíceis embora de acreditar para quem verdade pura o que Angélica lhe Sacripante, porém, deu-lhe crédito pensasse nas cousas com verdadeira afirmava, difíceis embora de imediato e pensou consigo: serenidade de espírito. Mas ele, que tão acreditar para quem pensasse nas perturbado trazia a razão, facilmente cousas com verdadeira serenidade de acreditou possível o que se lhe espírito. Mas ele, que tão perturbado asseverava. É que o amor tem d‟estas trazia a razão, facilmente acreditou cousas: afigura invisível o que realmente possível o que se lhe asseverava. É se esta vendo, e faz ver o que não é que o amor tem d‟estas cousas: visível. Sacripante deu por conseqüência afigura invisível o que realmente se crédito ao que Angélica lhe disse. esta vendo, e faz ver o que não é Admiram-se? Qual é o infeliz que não visível. Sacripante deu por acredita facilmente n‟aquilo que deseja? conseqüência crédito ao que Angélica lhe disse. Admiram-se? Qual é o infeliz que não acredita facilmente n‟aquilo que deseja? Mas difícil de verificar, Sacripante, porém, deu-lhe crédito imediato e pensou consigo:

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57- “Se o cavaleiro de Anglante deixou 57. “ Se o cavaleiro de Anglante “Se o cavaleiro de Anglante deixou por sua tolice escapar o momento deixou por sua tolice escapar o escapar o momento oportuno, oportuno, queixe-se ele de si, que nunca a momento oportuno, queixe-se ele de queixe-se de si, mas não pretendo fortuna volvera a oferecer-lhe tão si, que nunca a fortuna volvera a imita-lo...” próspero ensejo! (Assim pensava oferecer-lhe tão próspero ensejo! Sacripante). mas não pretendo imita-lo (Assim Ah! mas n‟isso é que estou longe de pensava Sacripante). imitá-lo! Havia eu desaproveitar o grande >Ah! mas n‟isso é que estou longe bem que ora se me oferece? Para quê? de imitá-lo! Havia eu desaproveitar Para depois dolorosamente me queixar de o grande bem que ora se me oferece? mim próprio!” Para quê? Para depois dolorosamente me queixar de mim próprio!

58-Colherei portanto a rosa fresca e 58. Colherei portanto a rosa fresca e Colherei portanto a rosa fresca e matinal, que mais tarde me arriscaria a matinal, que mais tarde me arriscaria matinal, que mais tarde me arriscaria perder “Depois pergunto eu: - Há a perder. E, Depois pergunto eu,: - a perder. porventura cousa que mais agrade a uma Há há porventura cousa que mais E, pergunto eu, há porventura cousa dama, muito embora se mostre ela agrade a uma dama, muito embora que mais agrade a uma dama, muito primeiro despeitada, muito embora se se mostre ela primeiro despeitada, embora se mostre despeitada, e mostre ela depois triste e lacrimosa? Por muito embora se mostre ela e depois depois triste e lacrimosa? mim, juro que nem repulsas, nem cóleras triste e lacrimosa? Por mim, juro que fingidas serão capazes de estorvar-me na nem repulsas, nem cóleras fingidas realização do meu intento. serão capazes de estorvar-me na realização do meu intento.

59-Fazia ele consigo tacitamente estas 59. Fazia ele consigo tacitamente Fazia ele consigo estas reflexões, reflexões. Mas... enquanto se apresta para estas reflexões, . Mas... enquanto se quando lhe vem aos ouvidos um pôr em prática as suas intenções do apresta para pôr em prática as suas grande rumor. O sarraceno como bosque próximo lhe vem aos ouvidos intenções, do bosque próximo sempre tinha por costume andar um grande rumor, que o faz, com grande quando lhe vem aos ouvidos um completamente armado, põe o elmo mágoa sua, desistir da empresa. E, como grande rumor, . que o faz, com na cabeça, enfreia o corcel, monta e sempre tinha por costume andar grande mágoa sua, desistir da põe-se em guarda de lança em riste. completamente armado, põe o elmo na empresa. E, O sarraceno como cabeça, enfreia o corcel, monta-lhe na sela sempre tinha por costume andar e ei -lo aí vai de lança em riste. completamente armado, põe o elmo na cabeça, enfreia o corcel, monta- lhe e põe-se em guarda na sela e ei - lo ai vai de lança em riste.

60-Pelo bosque vem vindo outro 60. Pelo bosque vem vindo outro Pelo bosque vem vindo outro cavaleiro, de aspecto guapo e fero. A cavaleiro, de aspecto feroz guapo e cavaleiro, de aspecto feroz. Traz armadura que veste faz lembrar a alvura fero. Traz penacho branco e a penacho branco e a armadura que da neve por cimeira traz um penacho armadura que veste faz lembrar a veste lembra a alvura da neve. branco. Sacripante, furioso por vir aquele alvura da neve por cimeira traz um Sacripante, furioso do contratempo, contratempo interromper-lhe a agradável penacho branco. Sacripante, furioso fixa no recém-chegado um olhar diversão que projetava, fixa no recém- por vir aquele do do contratempo, colérico e logo que ele chegado um olhar colérico e feroz. interromper-lhe a agradável diversão que projetava, fixa no recém-

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chegado um olhar colérico e feroz e logo que ele

61-E, quando o importuno interruptor se 61. E, quando o importuno- se lhe aproxima, desafia-o crente lhe aproxima, logo o Sarraceno o desafia interruptor se lhe aproxima, logo o que será fácil lhe levá-lo de vencida. crente em que fácil lhe será levá-lo de Sarraceno desafia-o crente em que E lá correm um para o outro. vencida. Mas o raptado, que em menos fácil lhe será será fácil lhe levá-lo conta se não tem a si próprio, responde- de vencida. Mas o raptado, que em lhe às ameaças dando imediatamente de menos conta se não tem a si próprio, esporas ao cavalo e enristando a lança. responde-lhe às ameaças dando Por sua parte Sacripante, investe com imediatamente de esporas ao cavalo tempestuoso ímpeto. E lá correm um para e enristando a lança. Por sua parte o outro. Sacripante, investe com tempestuoso ímpeto. E lá correm um para o outro.

62-Nem leões, nem touros seriam capazes 62. Nem leões, nem touros seriam Nem leões, nem touros seriam de mutuamente se acometerem com tanto capazes de mutuamente se capazes de se acometerem com tanto furor como estes dois guerreiros no seu acometerem com tanto furor como furor. Rotos os escudos na primeira bravíssimo assalto. Rotos os escudos de estes dois guerreiros no seu investida, tremeram os vales e os ambos na primeira investida, tremeram bravíssimo assalto. Rotos os escudos montes abalados pelo estrépito do abalados por tamanho estrépito os de ambos na primeira investida, choque. verdes vales e os escalvados montes de tremeram tremeram os vales e os em redor. Que fora dos dois combatentes, montes abalados por tamanho pelo se de ambos não abrigassem o peito estrépito do choque tremeram fortíssimo couraças?! tremeram os vales e os montes abalados por tamanho pelo estrépito do choque os verdes vales e os escalvados montes de em-redor os verdes vales e os escalvados montes de em-redor. Que fora dos dois combatentes, se de ambos não abrigassem o peito fortíssimo couraças?!

63-Na recíproca investida os corcéis 63. Na recíproca investida os corcéis O cavalo do guerreiro pagão morreu fizeram exatamente lembrar o que se fizeram exatamente lembrar o que se de prompto: tombando sobre o corpo observa entre dois carneiros quando observa entre dois carneiros quando do cavaleiro; o do outro guerreiro mutuamente se acometem. O cavalo do mutuamente se acometem. O cavalo também caiu, mas reergueu-se guerreiro pagão (que soberbo animal do guerreiro pagão ( que soberbo apenas sentiu cravarem-lhe as aquele!) morreu ali de prompto: o do animal aquele!) morreu ali de esporas nos ilhaes. outro guerreiro foi também a terra, mas prompto: tombando sobre o corpo reergueu-se apenas sentiu cravarem-lhe as do cavaleiro; o do outro guerreiro foi esporas nos ilhaes, em quando o do também a terra caiu, mas reergueu- príncipe sarraceno ficou estendido com se apenas sentiu cravarem-lhe as todo o seu peso por sobre o corpo do esporas nos ilhaes, . em quando o do dono. príncipe sarraceno ficou estendido com todo o seu peso por sobre o corpo do dono.

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66-Suspira e geme: Não porque o aflijam 66. Suspira e geme: Não porque o Sacripante, morto de vergonha, dores de pé deslocado ou braço fraturado; aflijam dores de pé deslocado ou suspira e geme e não ousaria falar, se mas porque a punge a vergonha, a ponto braço fraturado; mas porque a punge não fora Angélica a primeira a de que nunca em sua vida lhe subiram tão a vergonha, a ponto de que nunca em dirigir-lhe a palavra. vermelhas cores ao rosto, vergonha tanto sua vida lhe subiram tão vermelhas mais pungente, quanto ao desaire da cores ao rosto, vergonha tanto mais queda acresceu tornar-se lhe preciso que pungente, quanto ao desaire da a sua dama o ajudasse a libertar se da queda acresceu tornar-se lhe preciso grande opressão com que o cadáver do que a sua dama o ajudasse a libertar cavalo lhe só pesava no corpo! E de se da grande opressão com que o vergonha... nem talvez ousaria falar, se cadáver do cavalo lhe só pesava no não fora ela a primeira a dirigir-lhe a corpo! E de vergonha... nem talvez palavra. Sacripante, morto de vergonha, suspira e geme e não ousaria falar, se não fora ela Angélica a primeira a dirigir-lhe a palavra.

67-Não vos desconsoleis, senhor! (lhe [ 67. Não vos desconsoleis, senhor! Não vos desconsoleis, senhor! Da disse ela). Da queda, que destes, a culpa é (lhe disse ela). Da queda, que queda, que destes, a culpa é do vosso exclusivamente do vosso cavalo; em vez destes, a culpa é exclusivamente do cavalo; em vez de o terdes metido de o terdes feito entrar em novo combate, vosso cavalo; em vez de o terdes em novo combate, mais conveniente mais conveniente lhe houvera sido pastar feito entrar metido em novo lhe houvera sido pastar e repousar. e repousar. Nem o vosso contendor se combate, mais conveniente lhe Nem o vosso contendor se gloriou deve gloriar por tal sucesso, ele próprio, a houvera sido pastar e repousar. Nem do sucesso, pois que se apressou em meu ver, se confessa vencido, pois que se o vosso contendor se deve gloriar deixar o campo da contenda. apressou em ser o primeiro a deixar o por tal gloriou do sucesso, ele campo da contenda. próprio, a meu ver, se confessa vencido, pois que se apressou em ser o primeiro a deixar o campo da contenda.

68- E, enquanto d‟est‟arte Angélica 68. E, Eenquanto d‟est‟arte Angélica Enquanto Angélica procura consolar procura consolar o Sarraceno, surge-lhes, procura consolar o Sarraceno, surge- o Sarraceno, surge-lhes, galopando, galopando n‟um rocim, de buzina e bolsa lhes, galopando, n‟um rocim, de de buzina e bolsa a tiracolo, um a tiracolo, um mensageiro, com todos os buzina e bolsa a tiracolo, um mensageiro aflito e cansado, o qual visos de aflito e cansado. Chegado que foi mensageiro, com todos os visos de pergunta se tinham visto passar um cerca de Sacripante, perguntou-lhe se aflito e cansado. , o qual pergunta cavaleiro de penacho branco. tinha visto passar pela floresta um Chegado que foi cerca de cavaleiro de escudo branco e penacho Sacripante, perguntou-lhe se tinham branco. visto passar pela floresta um cavaleiro de escudo branco e penacho branco. 69-Foi esse mesmo, lhe respondeu 69. [ - Foi esse mesmo, lhe Foi esse mesmo, responde Sacripante, quem me colocou aqui na respondeu Sacripante, quem me Sacripante, quem me pôs nesta situação, em que me vês retirando-se colocou aqui na pôs nesta triste triste situação, retirando-se logo em logo em seguida. Agora, para eu ficar situação, em que me vês retirando- seguida. Quem é ele, dizei-mo? sabendo quem foi que me derrubou, se logo em seguida. Agora, para eu preciso me que digas seu nome. A ficar sabendo quem foi que me curiosidade que tendes (volveu-lhe o derrubou, preciso me que digas seu mensageiro), vou sem delongas satisfazer nome. A curiosidade que tendes ( vossa: ficai sabendo que ao alto valor de volveu-lhe o mensageiro), vou sem uma nobre donzela devestes o serdes delongas satisfazer- vossa-: ficai derrubado. sabendo que ao alto valor de uma nobre donzela devestes o serdes derrubado. Quem é ele, dizei-mo?

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7470-TaisE continuou: palavras É ouvindo, valente e o lindíssima circassiano a 7470.. TaisE continuou: palavras É ouvindo, valente o e TaisÉ valente palavras e ouvindo, lindíssima o circassiano a vossa apeiavossa- se,contendora.- e, aproximando Brandamente-se do se recémchama- circassianolindíssima a vossa apeia -se, contendora.-- e, apeiacontendora.-se, e, Brandamente aproximando se- se chama do chegadoaquela que corcel, ora vos julga arrebatou poder quanta facilmente honra aproximandoBrandamente- se se do chama recém aquela-chegado que recéma donzela-chegado que vos corcel, arrebatou procura quanta deitare glória-lhe as tendes mãos. log Orado corcel, conquistar. porém, corcel,ora a donzelajulga que poder vos facilmente arrebatou deitarhonra- lhe e asglória mãos. O tendes corcel, logradoporém, voltaDepois-se de rápido assim como dizer, um solta relâmpago, a rédea, e procuraquanta honra deitar e glória-lhe astendes mãos. logrado O voltaconquistar.-se rápido Depois como de um assim relâmpago, dizer, retira-se o mensageiro, deixando o conquistar. [ Depois de assim dizer, solta a rédea, e foge o mensageiro, sarraceno em grandíssimo solta a rédea, retira-se e foge o deixando o sarraceno em descontentamento e perplexidade não mensageiro, deixando o sarraceno grandíssima perplexidade e não menor com a vergonha estampada no em grandíssimo a descontentamento menor vergonha estampada no rosto. rosto. e perplexidade e não menor com a vergonha estampada no rosto.

71-Sacripante, encarando a situação de 71. Sacripante, encarando a situação Silencioso e taciturno, sem palavras haver sido derrubado por uma mulher, de haver sido derrubado por uma dizer, trata ele de colocar na garupa sente mais e mais crescer-lhe a dor, à mulher, sente mais e mais crescer- a bela Angélica, reservando para proporção que medita n‟aquele caso. lhe a dor à proporção que medita melhor ocasião o delicioso intento Depois, silencioso e taciturno, sem n‟aquelle caso. Depois, . Silencioso que trazia em mira. palavras dizer, trata de colocar e taciturno, sem palavras dizer, trata suavemente na garupa a bela Angélica, ele de colocar suavemente na garupa reservando para mais tranqüila estância o a bela Angélica, reservando para delicioso intento que trazia em mira. mais tranquila estância melhor ocasião o delicioso intento que trazia em mira.

72-Mas duas milhas não tinham 72. Mas Dduas milhas não tinham Duas milhas não tinham andado, de certamente andado, quando em torno d‟ certamente andado, quando em torno súbito a floresta entra a ressoar ambos entra a floresta ressoar com tal d‟ ambos entra de súbito a floresta com tal estrépito, como se toda estrépito, como se toda ela tremesse. E entra a ressoar com tal estrépito, tremesse. E logo um fogoso corcel logo um fogoso corcel lhes surge à vista, como se toda ela tremesse. E logo lhes surge à vista, ricamente ricamente ajaezado com ouro, um corcel um fogoso corcel lhes surge à vista, ajaezado de ouro, a galgar sebes e que briosamente vai galgando sebes e ricamente ajaezado com de ouro, um riachos, espedaçando árvores, e riachos, espedaçando árvores, e levando corcel que briosamente vai galgando levando de vencida tudo quanto de vencida tudo quanto encontra em a galgar sebes e riachos, encontra à frente. frente de si. espedaçando árvores, e levando de vencida tudo quanto encontra em à frente. de si.

73-Diz então a formosa Angélica: - Se o 73 Diz então a formosa Angélica: - Diz então a formosa Angélica: ou entrelaçamento do folhedo e a cerração Se o entrelaçamento do folhedo e a muito me engano, ou aquele corcel é das brumas me não tolhem a agudez da cerração das brumas me não tolhem o meu Bayardo... Não há dúvida... é vista... aquele corcel que tão a agudez da vista... ou muito me o próprio Bayardo: acabo de o estrepitosamente vai rompendo caminho engano, ou aquele corcel que tão reconhecer. Vem oferecer-me os pela floresta é com certeza Baiardo!... estrepitosamente vai rompendo seus préstimos. Não tem que duvidar... é o próprio caminho pela floresta é com certeza Bayardo: acabo agora mesmo de o Baiardo! é o meu Bayardo... Não reconhecer. É ele que adivinhou não ser tem que há duvidar... é o próprio cômodo para dois cavaleiros um cavalo Bayardo: acabo agora mesmo de o só, e que nos vem resolver a dificuldade reconhecer. É ele que adivinhou.não oferecendo-nos seus préstimos. . ser cômodo para dois cavaleiros um cavalo só, e que nos vem resolver a dificuldade oferecendo-nos seus préstimos. Vem oferecer-me os seus préstimos.

192 despindo-lhe uma furiosa parelha de corcel, porém, volta-se rápido como e despede-lhe uma furiosa parelha coices, que, por felicidade de Sacripante, um relâmpago, e despindo-lhe e de coices, que, por felicidade, o não o não alcançam E triste d‟ele, se o despede-lhe uma furiosa parelha de alcançou. Triste d‟ele, se o alcançassem!... tinha Baiardo nas patas coices, que, por felicidade, de alcançasse... tinha Bayardo nas patas um vigor tão assombroso que nem uma Sacripante, o não alcançamou E um vigor tão assombroso que nem alta montanha, de metal que fosse, Ttriste d‟ele, se o alcançassem!... uma alta montanha de metal lograria resistir-lhe! tinha Bayardo nas patas um vigor lograria resistir-lhe! tão assombroso que nem uma alta montanha de metal que fosse, lograria resistir-lhe!

75-Mas é este mesmo fogoso corcel 75. Mas é este mesmo fogoso corcel Mas este mesmo fogoso corcel vai que, manso agora e submisso, e que vai, manso agora e submisso, e manso e respeitoso, oferecer-se à respeitoso, vai oferecer-se à donzela, respeitoso, vai oferecer-se à donzela, donzela, como faz um cão ao seu o como poderia fazer um cão perante o como poderia fazer um cão perante o dono. Bayardo lembrava-se que dono, de quem por dois ou três dias ao seu o dono. de quem por dois ou outr‟ora, em Albraca, Angélica por houvesse andado longe. Baiardo três dias houvesse andado longe. suas próprias mãos lhe dava de conservava ainda memória que Bayardo conservava ainda memória comer, no tempo em que tão outr‟ora, em Albraca, Angélica por lembrava-se que outr‟ora, em apaixonadamente ela amava suas próprias mãos lhe dava de Albraca, Angélica por suas próprias Reinaldo, e era por ele desprezada. comer, no tempo em que tão mãos lhe dava de comer, no tempo apaixonadamente ela amava em que tão apaixonadamente ela Reinaldo, e em que este era para ela amava Reinaldo, e em que este era cruelmente ingrato. para ela cruelmente ingrato. por ele desprezada

76- Tomando-lhe na mão esquerda 76. Tomando-lhe na mão esquerda Angélica toma as rédeas e o afaga. E as rédeas, com a direita o afaga. E Angélica toma as rédeas com a Sacripante consegue enfim montá-lo. Baiardo, (e Sacripante) que possuía direita e o afaga. E Baiardo,(e um maravilhoso instinto, sujeita-se Sacripante) que possuía um lhe dócil como se fora um cordeiro. maravilhoso instinto, sujeita-se dócil Sacripante vai entrementes como se fora um cordeiro. aproveitando o ensejo de montar Sacripante vai entrementes disfarçadamente no fogoso corcel aproveitando o ensejo de montar agora domesticado. Angélica, disfarçadamente no fogoso corcel n‟aquele que montava, passa da agora domesticado. Angélica, garupa a ocupar a sela. n‟aquele que montava, passa da garupa a ocupar a sela. E Sacripante consegue enfim montá- lo.

77-Mas volvendo os olhos em 77. Mas volvendo os olhos em Mas volvendo os olhos em derredor... eis que ela avista um derredor... eis que ela avista um derredor... eis que avista um guerreiro alto, caminhando a pé e guerreiro alto, caminhando a pé e guerreiro alto, caminhando a pé e fazendo ruidosamente ressoar as fazendo ruidosamente ressoar as fazendo ruidosamente ressoar as peças da sua armadura. Inflamada peças da sua armadura. Inflamada peças da sua armadura. Inflamada

193 em despeito e cólera, Angélica em despeito e cólera, Angélica em despeito e cólera, Angélica reconheceu logo o filho do duque reconheceu logo o filho do duque reconheceu logo o filho do duque Aymon. Aymon. [ – Reinaldo Aymon. Reinaldo está apaixonado Está apaixonado por ela, e tem-lhe está por ela, e tem-lhe mais amor do que mais amor do que à própria vida, no Esta apaixonado por ela, e tem-lhe à própria vida, mas Angélica o tanto que ela profundamente o mais amor do que á própria vida, no odeia, e foge dele como a pomba odeia, e d‟ele foge como foge um tanto que ela mas Angélica foge de gavião. E todavia houve já grou de um falcão. E todavia houve profundamente o odeia, e d‟ele foge tempos em que sucedia o contrário: já tempos em que sucedia o foge dele como foge um grou de um tinha-lhe ela amor, ele à donzelas contrário: tinha-lhe ela amor, ele à falcão a pomba foge de gavião. E um ódio de morte. donzelas um ódio de morte. todavia houve já tempos em que sucedia o contrário: tinha-lhe ela amor, ele à donzelas um ódio de morte.

78-A causa d‟aquela recíproca 78. A causa d‟aquela recíproca da A causa da mudança está em duas mudança está em duas fontes cujas mudança está em duas fontes cujas fontes cujas águas possuem virtudes águas desfrutam virtudes opostas. águas desfrutam possuem virtudes opostas. Uma provoca nos corações Destas duas fontes, ambas em opostas. Destas duas fontes, ambas o mais ardente amor. A outra porém, Ardenne e com uma pequenina em Ardenne e com uma pequenina transforma em gelo o que era fogo distância a separá-las, uma tem nas distância a separá-las, uma tem nas amoroso. Reinaldo bebeu da águas o condão de suscitar a flux nos águas o condão de suscitar a flux nos primeira, e está hoje consumido de corações a mais impetuosa ardência corações a mais impetuosa ardência amor; da segunda bebeu Angélica, e de amor: - quem pelo contrário, de amor: quem pelo contrário, acerta é todo ódio. acerta de beber na outra, fica de tal de beber na outra, fica de tal ardência curado, e transformado em ardência curado, e transformado gelo o que era fogo amoroso. Uma provoca nos corações o mais Reinaldo que bebeu da primeira está ardente amor. A outra porém, hoje consumido de amor; da segunda transforma em gelo o que era fogo bebeu Angélica, e aí esta agora o amoroso. Reinaldo que bebeu da motivo do seu ódio e da sua primeira, e está hoje consumido de esquivança. amor; da segunda bebeu Angélica, e é todo ódio e aí esta agora o motivo do seu ódio e da sua esquivança.

79-Aquela água, em que há 79. Aquela água, em que há Assim, os serenos olhos de Angélica misturado um veneno secreto, que misturado um veneno secreto, que se turvam subitamente quando vê transforma em ódios as paixões de transforma em ódios as paixões de Reinaldo, e com a voz trêmula e a amor, faz com que os serenos olhos amor, faz com que Assim, os tristeza espelhada no rosto, suplica a de Angélica se turvem subitamente serenos olhos de Angélica se turvem Sacripante para sem mais delongas quando Reinaldo, se lhe depara em turvam subitamente quando vê fugirem ambos, antes que se frente. Com a voz trêmula e a Reinaldo, se lhe depara e em frente aproxime o ex-amado tristeza espelhada no rosto, suplica corra com a voz trêmula e a tristeza ela a Sacripante e encarecidamente espelhada no rosto, suplica ela a lhe pede para sem mais delongas Sacripante e encarecidamente lhe fugirem ambos, antes que deles se pede para sem mais delongas aproxime o recém-chegado fugirem ambos, antes que deles se guerreiro. aproxime o recém-chegado o ex- amado guerreiro.

80-Pelo que vejo, respondeu o 80. [Pelo que vejo, respondeu o Pelo que vejo, respondeu o Sarraceno, em tão pequena conta me Sarraceno, em tão pequena conta me Sarraceno, em pequena conta me haveis, que me julgais incapaz de haveis, que me julgais incapaz de haveis, que me julgais incapaz de vos defender. Já vos não recordareis vos defender. ! Já vos não vos defender! Já vos não recordareis das batalhas de Albraca? nem tão recordareis das batalhas de Albraca? das batalhas de Albraca? nem pouco d‟aquela noite em que, por nem tão pouco d‟aquela noite em d‟aquela noite em que, por vosso

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vosso respeito, lograrei sozinho e que, por vosso respeito, lograrei respeito, lograrei sozinho e desarmado resistir a todos os sozinho e desarmado resistir a todos desarmado resistir a todos os guerreiros de Agricane? os guerreiros de Agricane? guerreiros de Agricane?

81-Não lhe responde Angélica, nem 81. Não lhe responde Angélica, nem Supressão mesmo sabe o que faça, porque já mesmo sabe o que faça, porque já Reinaldo vem chegando perto d‟ela, Reinaldo vem chegando perto d‟ela, Reinaldo que rompeu logo em Reinaldo que rompeu logo em ameaças contra o sarraceno, apenas ameaças contra o sarraceno, apenas deu com a vista no seu próprio deu com a vista no seu próprio corcel e reconheceu a Angélica corcel e reconheceu a Angélica fisionomia de quem tão amoroso fisionomia de quem tão amoroso incêndio lhe acendera no peito. incêndio lhe acendera no peito. Mas... no capitulo seguinte veremos Mas... no capítulo seguinte o que se passou entre dois soberbos veremos o que se passou entre dois guerreiros. soberbos guerreiros.

Capítulo II

A B C 1-Que injusto que tu és, Amor! Porque 1.Que injusto que tu és, Amor! Supressão será que tão raras vezes correspondes Porque será que tão raras vezes aos nossos desejos? Porque será que te correspondes aos nossos desejos? comprazes pérfido em lançar a Porque será que te comprazes pérfido discórdia nos corações? Porque será em lançar a discórdia nos corações? que, em vez de nos deixares atravessar Porque será que, em vez de nos um regato límpido e manso, nos arrastas deixares atravessar um regato límpido para um sorvedouro sombrio e e manso, nos arrastas para um profundo? Porque será que nos afastas sorvedouro sombrio e profundo? d‟aquilo em que se deleita o nosso Porque será que nos afastas d‟aquilo coração, querendo que amemos e em que se deleita o nosso coração, adoremos quem nos odeia? querendo que amemos e adoremos quem nos odeia?

2-És tu, Amor, que fazes com que 2. És tu, Amor, que fazes com que Supressão Angélica pareça formosa a Reinaldo, e Angélica pareça formosa a Reinaldo, este lhe pareça a ela feio e e este lhe pareça a ela feio e desagradável. No tempo em que se lhe desagradável. No tempo em que se lhe afigurava formoso e lhe inspirava afigurava formoso e lhe inspirava extremos, acontecia então ser ele quem extremos, acontecia então ser ele a odiava com todas as faculdades de sua quem a odiava com todas as alma. E agora é Reinaldo que debalde faculdades de sua alma. E agora é se aflige e padece tormentos. Paga mais Reinaldo que debalde se aflige e proporcionada ao débito nunca se viu! padece tormentos. Paga mais A versão que Angélica sente pelo seu proporcionada ao débito nunca se viu! adorador é tal que antes morrer do que A versão que Angélica sente pelo seu vir a pertencer-lhe. adorador é tal que antes morrer do que vir a pertencer-lhe.

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3-No tom do mais acentuado orgulho, 3. No tom do mais acentuado violento No tom do mais violento orgulho, diz dirige Reinaldo estas palavras a orgulho, dirige diz Reinaldo estas Reinaldo a Sacripante: [ - Desce, Sacripante: palavras a Sacripante: [ - “Desce, ladrão; desce do meu cavalo! Não -“ Desce, ladrão; desce do meu cavalo! ladrão; desce do meu cavalo! Se estou habituado a consentir me tirem o Se cuidas que estou habituado a cuidas que Não estou habituado a que é meu e, costumo fazer pagar consentir me tirem o que me pertence... consentir me tirem o que é meu e, me muito caro esses atrevimentos. Nem fica sabendo que, bem pelo contrário, pertence... fica sabendo que, bem pelo tão pouco julgues que te permito costumo fazer pagar caríssimos esses contrário, costumo fazer pagar levares essa dama em tua companhia. atrevimentos. Nem tão pouco julgues caríssimos muito caro esses A um ladrão, como tu, não compete que te permito levares tu essa dama em atrevimentos. Nem tão pouco julgues uma dama tão ilustre nem um corcel tua companhia. A um ladrão, como tu, que te permito levares tu essa dama tão brioso. não compete uma dama tão ilustre nem em tua companhia. A um ladrão, um corcel tão brioso”. como tu, não compete uma dama tão ilustre nem um corcel tão brioso”.

4-Responde-lhe, não menos altivo, o 4. Responde-lhe, não menos altivo, o Responde-lhe, não menos altivo, o sarraceno: - “Chamares-me ladrão, é sarraceno: [ - “Chamares-me ladrão, é sarraceno: [ - Chamar-me ladrão, é mentir. Quem tal te chamasse é que mentir., Quem mais quem tal te mentir, mais quem tal te chamasse (segundo ouço a fama apregoar) não chamasse é que (segundo ouço a (segundo ouço a fama) não andaria andaria longe da verdade. Provar fama) apregoar) não andaria longe da longe da verdade. Mas provar podemos nós aqui agora qual dos dois é verdade. Provar Mas provar podemos agora qual dos dois é mais mais digno ficar possuindo esta dama e podemos nós aqui agora qual dos dois digno de ficar com a dama e o corcel. este corcel, se - bem que a respeito é mais digno de ficar possuindo esta d‟ela concorde eu contigo em que nada com a dama e o este corcel,. - se bem n‟este mundo se lhe pode comparar.” que a respeito d‟ela concorde eu contigo em que nada n‟este mundo se lhe pode comparar.”

5-Imaginem-se dois cães raivosos, que, 5. Imaginem-se Como dois cães Como dois cães raivosos, excitados excitados pelo ciúme ou pelo ódio, se raivosos, que, excitados pelo ciúme pelo ciúme ou pelo ódio, investem-se investem arreganhando os dentes, ou pelo ódio, se investem-se os dois guerreiros. esbogalhando os olhos, eriçando arreganhando os dentes, esbogalhando medonhos os pêlos do dorso, e os olhos, eriçando medonhos os pêlos finalmente esmordaçando-se com do dorso, e finalmente ardente fúria: - é assim que Sacripante e esmordaçando-se com ardente fúria: Reinaldo acabam por converter em é assim que Sacripante e Reinaldo golpes de espada os gritos e as afrontas. acabam por converter em golpes de espada os gritos e as afrontas. os dois guerreiros.

6-A pé está um d‟eles, e a cavalo o 6. A pé está um d‟eles, e Um está a Um está a pé, outro, a cavalo. Mas de outro. Que vantagem pensa o leitor pé, outro. a cavalo o outro. Que nada valia o Sacripante estar montado, então que o sarraceno tem com isso! vantagem pensa o leitor então que o porque Bayardo, o brioso corcel, Nenhuma absolutamente, pois que, para sarraceno tem com isso! Nenhuma instintivamente se recusava a melhor dizer, na situação em que se absolutamente, pois que, Mas de prejudicar seu dono: nem com as acha, vale menos que o mais inexperto nada valia o Sacripante estar rédeas, nem com as esporas, lograva o pagem! E o motivo está em que montado, para melhor dizer, na sarraceno fazê-lo obedecer. Empacava, Baiardo, o brioso corcel, situação em que se acha, vale menos corcoveava, escoiceava e instintivamente se recusava a prejudicar que o mais inexperto pagem! E o seu dono: nem com as rédeas, nem com motivo está em que porque Baiardo, as esporas, lograva Sacripante fazê-lo Bayardo, o brioso corcel, obedecer. instintivamente se recusava a prejudicar seu dono: nem com as

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rédeas, nem com as esporas, lograva Sacripante o sarraceno fazê-lo obedecer. Empacava, corcoveava, escoiceava e

7-Queria o circassiano fazê-lo avançar? 7. Queria o circassiano fazê-lo Queria o circassiano fazê-lo avançar? parava. Queria sopeá-lo? galopava ou avançar? parava. Queria sopeá-lo? parava. Queria sopeá-lo? galopava ou trotava. Logo depois... baixava a galopava ou trotava. Logo depois... trotava. Logo depois... baixava a cabeça... levantava a garupa... e era baixava a cabeça... levantava a cabeça... levantava a garupa... e era coice que fervia! Percebendo então não garupa... e era coice que fervia! coice que fervia! Percebendo então não ser aquele o momento azado para domar Percebendo então não ser o momento ser o momento impróprio para domar semelhante fera, Sacripante resolve impróprio aquele o momento azado semelhante fera, Sacripante resolve apear-se. para domar semelhante fera, apear-se. O combate começa. Sacripante resolve apear-se. O combate começa.

8-E, conseguindo assim ver-se livre da 8. E, conseguindo assim ver-se livre Retinem as espadas dos dois heróis. invencível fúria de Baiardo, o sarraceno da invencível fúria de Baiardo, o deu princípio a um combate realmente sarraceno deu princípio a um combate digno do seu valente rival. Retinem, realmente digno do seu valente rival. cruzando-se no ar, as espadas dos dois Retinem, cruzando-se no ar, as campeões: quem tal presenciasse, diria espadas dos dois heróis. campeões: menos violento e mais tardonho o quem tal presenciasse, diria menos martelo de Vulcano quando nas violento e mais tardonho o martelo de fumegantes forjas bate na bigorna os Vulcano quando nas fumegantes raios de Júpiter. forjas bate na bigorna os raios de Júpiter.

9-Ora em fintas, ora em golpes diretos, 9. Ora em fintas, ora em golpes Ora em fintas, ora em golpes diretos, os dois contendores mostram-se ambos diretos, os dois contendores mostram- mostram-se exímios no jogo das exímios no jogo das armas; ora se ambos exímios no jogo das armas; armas; avançando com altivez um para o outro, ora avançando com altivez um para o ora negando-se; aqui descobrindo-se outro, ora negando-se; aqui acolá pondo-se em guarda; já descobrindo-se acolá pondo-se em investindo, já simplesmente parando os guarda; já investindo, já simplesmente golpes do adversário; e, em todo o caso, parando os golpes do adversário; e, espreitando ambos o ensejo de levar a em todo o caso, espreitando ambos o melhor n‟aquele duelo. ensejo de levar a melhor n‟aquele duelo.

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10-Por fim Reinaldo cai com todo o 10.Por fim por fim Reinaldo cai com por fim Reinaldo cai com todo o peso peso de sua espada sobre Sacripante. todo o peso de sua espada sobre de sua espada sobre Sacripante, rompe- Ao golpe de Reinaldo opõe o adversário Sacripante. , rompe-lhe o escudo, Ao lhe o escudo, e o faz voar em estilhas. o seu escudo de osso forrado por uma golpe de Reinaldo opõe o adversário o lâmina d‟aço de finíssima têmpera. seu escudo de osso forrado por uma Apesar porém de espesso, abre-o em lâmina d‟aço de finíssima têmpera. dois a espada de Orlando, e o faz voar Apesar porém de espesso, abre-o em em hastilhas; ressoa a floresta com o dois a espada de Orlando, e o faz voar fragor do golpe, que deixa meio em hastilhas; estilhas. ressoa a derreado o braço do sarraceno. floresta com o fragor do golpe, que deixa meio derreado o braço do sarraceno.

11-Quando a tímida donzela repara no 11. Quando a A tímida donzela repara A tímida donzela notando o resultado resultado medonho d‟este violentíssimo no notando o resultado medonho medonho d‟este violentíssimo golpe, golpe, prestes se lhe transtorna a d‟este violentíssimo golpe, prestes se- pressente que só lhe resta a fuga, caso serenidade fisionômica, tal qual sucede lhe pressente transtorna-a serenidade queira escapar d‟aquele Reinaldo que a um condenado ao aproximar-se do fisionômica, tal qual sucede a um tanto a amava e que ela tanto odiava. suplício. E considera então que só lhe condenado ao aproximar-se do resta o alvitre de fugir, uma vez que não suplício. queira ficar sendo a presa de Reinaldo, E considera então que só lhe resta o a d‟aquele Reinaldo que ela tanto odiava, fuga, caso alvitre de fugir, uma vez enquanto ele correspondia a esse ódio que não queira ficar sendo a presa de com tão ardente amor. Reinaldo escapar d‟aquele Reinaldo que que tanto a amava e que ela tanto odiava . , enquanto ele correspondia a esse ódio com tão ardente amor.

12-Virando de rédea, e metendo o 12. Virando de rédea, e metendo o Virando de rédea, e metendo o cavalo cavalo a galope na selva espessa, por cavalo a galope na selva espessa, por a galope na selva espessa, por um um carreiro estreito e áspero, Angélica um carreiro estreito e áspero, carreiro áspero, Angélica foge, vai de quando em quando olhando para Angélica foge, vai de quando em olhando para trás, na desconfiança de trás, muito pálida, com a desconfiança quando olhando para trás, muito que Reinaldo a venha perseguindo. E de que Reinaldo venha atrás d‟ela pálida, com a na desconfiança de que vai correndo até que se lhe depara perseguindo-a. N‟isto... quando Reinaldo a venha atrás d‟ela n‟um vale um eremita de aspecto pequena distância tinha ainda perseguindo-a. . E vai correndo até venerável e longas barbas brancas, a percorrido... depara-se-lhe n‟um vale que se lhe N‟isto... quando pequena um eremita de barba crescida até meio distância tinha ainda percorrido... do peito, aspecto venerável e devoto. depara-se-lhe n‟um vale um eremita de barba crescida até meio do peito, aspecto venerável e devoto. longas barbas brancas, a

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13-Macerado pelos anos e pelos jejuns, 13. Macerado pelos anos e pelos caminhar vagarosamente montado caminhava ele vagarosamente montado jejuns, caminharva ele n‟um jumento. n‟um jumento. Dir-se-ia, ao vê-lo, um vagarosamente montado n‟um Quando o eremita atentou nas feições tipo excepcional de consciência jumento. Dir-se ia, ao vê-lo, um tipo da linda donzela, apesar de velho, escrupulosa e severa, como em pessoa excepcional de consciência sentiu-se alvoroçado de vivos viva não seria possível encontrar. escrupulosa e severa, como em pessoa sentimentos de caridade. Quando ele atentou nas formosas viva não seria possível encontrar. feições da donzela, que lhe ia ao Quando ele o eremita atentou nas encontro, - apesar de velho e debilitado, formosas feições da linda donzela, sentiu alvoroçarem- n‟o vivos que lhe ia ao encontro, - apesar de sentimentos de caridade. velho e debilitado, sentiu-se alvoroçarem-n‟o alvoroçado de vivos sentimentos de caridade.

14-Angélica, dirigindo-se ao eremita, 14. Angélica, dirigindo-se ao eremita, Angélica, dirigindo-se a ele e pergunta-lhe qual o caminho por onde a ele e pergunta-lhe qual o que pergunta-lhe que caminho, leva a lhe cumpra seguir, que a leve a porto caminho, por onde lhe cumpra seguir, porto marítimo, visto que sua tenção é marítimo, - visto que seu fito resumia- que a levea a porto marítimo, - visto agora sair de França, para nunca mais se agora em sair de França, para nunca que seu fito resumia-se sua tenção é ouvir falar de Reinaldo. mais ouvir falar de Reinaldo. agora em sair de França, para nunca O monge, que era entendido em O monge, que era entendido em mais ouvir falar de Reinaldo. práticas nigromânticas, desfaz-se em práticas nigromânticas, desfaz-se todo O monge, que era entendido em palavras de animação, prometendo à em palavras de animação para com a práticas nigromânticas, desfaz-se todo donzela que prontamente a livrará de donzela, prometendo-lhe que em palavras de animação, para com a qualquer perigo. prontamente a livrará de qualquer donzela, prometendo-lhe à donzela perigo. que prontamente a livrará de qualquer perigo.

20. Espanto causará talvez Talvez 20-Espanto causará talvez que Reinaldo causará espanto que Reinaldo Talvez causará espanto que Reinaldo montasse agora com tanta facilidade no montasse agora no seu corcel agora montasse agora no seu corcel com seu corcel Baiardo quando poucos dias com tanta facilidade, no seu corcel tanta facilidade, quando poucos dias antes andava inutilmente correndo atrás Baiardo, quando poucos dias antes antes andava inutilmente correndo d‟ele sem poder mesmo lançar-lhe as andava inutilmente correndo atrás atrás d‟ele. É que Bayardo possuía mãos à rédea. Advirta-se, porém, que d‟ele. sem poder mesmo lançar-lhe as uma inteligência finíssima e obrigando Baiardo possuía uma inteligência mãos á rédea. Advirta-se, porém, É o dono a percorrer uma tão grande finíssima; obrigando o seu dono a que Baiardo Bayardo possuía uma distância, o cavalo procurava apenas percorrer uma tão grande distância, o inteligência finíssima; e obrigando o aproximá-lo de Angélica, por quem cavalo tivera simplesmente em mira seu dono a percorrer uma tão grande Reinaldo vivia soltando suspiros. aproximá-lo de Angélica, por quem distância, o cavalo tivera Reinaldo andava soltando tantos simplesmente em mira procurava suspiros. apenas aproximá-lo de Angélica, por quem Reinaldo andava vivia soltando tantos suspiros.

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21. Quando ela fugira do pavilhão, bem 21. Quando ela fugira do pavilhão, Supressão a tinha visto Baiardo, e bem lhe bem a tinha visto Baiardo, e bem lhe espreitara os passos, livre e solto como espreitara os passos, livre e solto então estava (por d‟ele haver-se apeado como então estava (por d‟ele haver-se Reinaldo para combater com um apeado Reinaldo para combater com valoroso barão); e por fim seguira-lhe um valoroso barão); e por fim de longe as pisadas, - tudo no ardente seguira-lhe de longe as pisadas, - tudo empenho de vir a entregá-la em mãos no ardente empenho de vir a entregá- de quem tanto a adorava. la em mãos de quem tanto a adorava.

22-Depois, desejando chamar o dono 22. Para isso Depois, desejando Para isso saia-lhe ao caminho, e fazia- para o sitio em que Angélica estava, foi chamar o dono para o sitio em que se perseguir, sem se deixar montar, sair-lhe ao caminho, através da grande Angélica estava, foi saira-lhe ao com receio de que Reinaldo o floresta, mas sem deixar - se montar, caminho, através da grande floresta, obrigasse a galopar noutro sentido. E com receio de que Reinaldo o mas e fazia-se perseguir, sem se assim logrou fazer que Reinaldo por obrigasse a galopar n‟outro sentido. E deixar - se montar, com receio de que duas vezes encontrasse Angélica, sem assim logrou fazer com que Reinaldo Reinaldo o obrigasse a galopar vantagem porém, porque da primeira por duas vezes encontrasse Angélica, n‟outro noutro sentido. E assim vez lhe embargara os passos Ferragudo sem d‟aqui lhe resultar todavia logrou fazer com que Reinaldo por e da segunda o circassiano. vantagem alguma, porquanto da duas vezes encontrasse Angélica, sem primeira vez lhe embargara os passos d‟aqui lhe resultar todavia sem Ferragudo e na segunda o circassiano vantagem alguma, porquanto porém, (como dito fica). porque da primeira vez lhe embargara os passos Ferragudo e na da segunda o circassiano. (como dito fica).

23-Agora o Demônio, que tinha dado a 23. Agora, entretanto o Demônio, que Agora, entretanto, o Demônio que tinha Reinaldo falsas indicações acerca do destino tinha dado a Reinaldo falsas indicações dado a Reinaldo falsas indicações acerca do de Angélica, trazia também enganado o acerca do destino de Angélica, trazia destino de Angélica, trazia também inteligente corcel. Baiardo, oferecendo-se também enganado o inteligente corcel. enganado o inteligente corcel. Bayardo, dócil aos manejos do frenético e amoroso Baiyardo, oferecendo-se dócil aos oferecendo-se aos manejos do amoroso cavaleiro, deixa-se ir correndo a toda a manejos do frenético e amoroso cavaleiro, cavaleiro, deixa-se ir correndo a toda a brida, caminho de Paris. O desejo, que vai deixa-se ir correndo a toda a brida, brida, caminho de Paris. n‟alma de Reinaldo, é por tal forma caminho de Paris. O desejo, que vai impaciente, que talvez morosa lhe pareceria n‟alma de Reinaldo é por tal forma a carreira, quando mesmo em lugar de um impaciente, que talvez morosa lhe rápido corcel, o transportasse o vento! pareceria a carreira quando mesmo em lugar de um rápido corcel, o transportasse o vento!

24-De noite suspende ele a jornada, na idéia 24. De noite suspende ele a jornada, na De noite suspende ele a jornada, com idéia de encontrar-se com o senhor de Anglante, com idéia de encontrar-se com o senhor de encontrar-se com o senhor de Anglante, crente como estava em que lhe falara de Anglante, crente como estava em de crente de que lhe falara a verdade o verdade o mentiroso mensageiro do sagaz que lhe falara a verdade o mentiroso mentiroso mensageiro do nigromante; mas, nigromante; mas, logo que amanhece...ei- lo mensageiro do sagaz nigromante; mas, logo que amanhece... ei-lo de novo a de novo a galopar incansável! nem pára um logo que amanhece... ei- lo de novo a galopar incansável! E só pára quando momento enquanto se lhe não descobrem à galopar incansável! nem pára um alcança a planície parisiense, onde Carlos vista os plainos parisienses, onde o rei momento enquanto se lhe não descobrem Magno, depois de vencido, se acolhera com Carlos, depois de vencido e derrotado, se E só pára quando alcança a planície à os restos do seu exército. acolhera com as relíquias do seu exército. vista os plainos parisienses, onde o rei Carlos Magno, depois de vencido, e derrotado, se acolhera com os restos as relíquias do seu exército.

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25-Receoso de que viesse o Rei 25. Receoso de que viesse o Rei Receoso de que viesse o Rei d‟África d‟África oferecer-lhe batalha ou por lhe d‟África oferecer-lhe batalha, ou por- oferecer-lhe batalha, tratava Carlos cerco, tratava Carlos de reunir um lhe cerco, tratava Carlos Magno de Magno de reunir corpos de guerreiros e corpo bom de guerreiros e abastecer-se reunir um corpos, bom de guerreiros e abastecer-se de mantimentos, reparar de mantimentos, reparar suas muralhas abastecer-se de mantimentos, reparar muralhas e abrir trincheiras. Ocorreu- e guarnecer-se de trincheiras. E n‟este suas muralhas e guarnecer-se abrir de lhe, também, reclamar de Inglaterra sentido fez sem delongas tudo quanto trincheiras. E n‟este sentido fez sem tropas de auxílio. lhe pareceu conveniente. Ocorreu-lhe delongas tudo quanto lhe pareceu mesmo reclamar de Inglaterra tropas conveniente. Ocorreu-lhe, mesmo que o coadjuvassem. também, reclamar de Inglaterra tropas que o coadjuvassem. de auxílio.

26-Porque a verdade era esta: Carlos 26. Porque a verdade era esta: Carlos Porque a verdade era esta: Carlos propunha-se entrar de novo em Magno propunha-se entrar de novo Magno propunha-se a tentar de novo a campanha e de novo tentar a sorte da em campanha e de novo a tentar de sorte da guerra. Com estas idéias guerra. Com estas idéias nomeia ele por novo a sorte da guerra. Com estas nomeia seu delegado o cavaleiro seu delegado o cavaleiro Reinaldo, idéias nomeia ele por seu delegado o Reinaldo, dando-lhe a missão de ir à encarregando-lhe a missão de ir à cavaleiro Reinaldo, encarregando-lhe Bretanha que é como se chamava Bretanha (Inglaterra se chamou depois dando-lhe a missão de ir à Bretanha Inglaterra naquele tempo. aquele país). que é como se chamava (Inglaterra O paladino lastima-se de ter que se chamou depois aquele país). empreender semelhante viagem, não naquele tempo. por que lhe desagrade a terra a que o O paladino lastima-se de ter que destinam, mas por que El-Rei lhe dá empreender semelhante viagem, não ordem de partir logo, logo, sem um dia por que lhe desagrade a terra a que o único ter de descanso em Paris. destinam, mas por que El-Rei lhe dá ordem de partir logo, logo, sem um dia único ter de descanso em Paris.

27-Nunca houve cousa que Reinaldo 27. Nunca houve cousa que Reinaldo Nunca houve cousa que Reinaldo com menos vontade fizesse. O com menos vontade fizesse. fizesse fizesse com menos vontade. Mas, pôs- cumprimento da ordem régia importava com menos vontade. O cumprimento se imediatamente a caminho; e, horas a impossibilidade de ir em busca do da ordem régia importava a depois, achava-se em Calais, e nesse formosíssimo rosto, que tão apaixonado impossibilidade de ir em busca do mesmo dia embarcou para a Bretanha o tornava. Mas, por obedecer a Carlos, formosíssimo rosto, que tão pôs-se imediatamente a caminho; e, apaixonado o tornava. Mas, por horas depois, achava-se em Calais, obedecer a Carlos, pôs-se d‟onde n‟esse mesmo dia embarcou em imediatamente a caminho; e, horas direção à costa da Bretanha. depois, achava-se em Calais, d‟onde e n‟esse mesmo dia embarcou em direção à costa da para a Bretanha.

28-Não houve marinheiro que não 28. Não houve marinheiro que não Não houve marinheiro que não tentasse dissuadi-lo de temeridade tentasse dissuadi-lo de tamanha tentasse dissuadi-lo de tamanha semelhante, visto que a profunda temeridade semelhante, visto que a temeridade, visto anunciar-se uma agitação do mar anunciava uma terrível profunda agitação do mar terrível tormenta. Mas o desejo tormenta. Mas o desejo vivíssimo de anunciavar-se uma terrível tormenta. vivíssimo de cumprir a sua missão, e cumprir prestes a sua missão, para Mas o desejo vivíssimo de cumprir regressar quanto antes fê-lo teimar no

201 também prestes estar de volta fez com prestes a sua missão, para também propósito. que Reinaldo teimasse no seu desígnio. prestes estar de volta fez com que Embarcou, e logo o vento, indignado Embarcou: e logo o vento, como Reinaldo e regressar quanto antes com a teimosia do guerreiro, indignado ante a desdenhosa teimosia fê-lo teimarsse no seu desígnio. desencadeou furosíssima a tempestade. do guerreiro, desencadeou a propósito. tempestade, alcantilando Embarcou:, e logo o vento, como raivosamente as vagas em torno do indignado com a ante a desdenhosa navio. teimosia do guerreiro, desencadeou furosíssima a tempestade,.

alcantilando raivosamente as vagas em torno do navio. 29-Cautelosos e experimentados, os 29. Cautelosos e experimentados, os Supressão. tripulantes tratam de amainar as velas, e tripulantes tratam de amainar as velas, pensam mesmo em virar de bordo, em e pensam mesmo em virar de bordo, volver ao porto d‟onde tão em volver ao porto d‟onde tão inorportunamente haviam levantado inoportunamente haviam levantado ferro. O vento parecia dizer-lhes: - ferro. O vento parecia dizer-lhes: “Não serei eu que tolere semelhante “Não serei eu que tolere semelhante audácia da vossa parte”. E, em audácia da vossa parte.” E, em corroboração d‟este aviso, ei-lo corroboração d‟este aviso, ei-lo assobiando e roncando, ei-lo assobiando e roncando, ei-lo oferecendo-lhes a ameaça de um oferecendo-lhes a ameaça de um naufrágio, caso tentem afrontar-lhe as naufrágio, caso tentem afrontar-lhe as iras. iras.

30-Dobra e redobra de violência aquele 30. Dobra e redobra de violência Deixemos o valoroso Reinaldo a lutar medonho temporal. Com as velas, aquele medonho temporal. Com as contra a fúria dos elementos; e falemos colhidas os marinheiros bordejando velas colhidas, os marinheiros de Bradamante. deixam ir o navio caminho do mar bordejando, deixam ir o navio alto... caminho do mar alto... Deixemos entretanto por um pouco o Deixemos entretanto por um pouco o valoroso Reinaldo a lutar contra a fúria valoroso Reinaldo a lutar contra a dos elementos; e falemos de fúria dos elementos; e falemos de Bradamante. Bradamante.

31-Bradamante se chamava a inclita 31. Bradamante, se chamava a inclita Bradamante, digna irmã de Reinaldo, donzela por quem foi derrubado o rei donzela por quem foi derrubado o rei era filha do duque Aymon e de Beatriz. Sacripante. Digna irmã de Reinaldo, Sacripante. Digna digna irmã de Sua assombrosa coragem, por vezes era filha do duque Aymon e de Reinaldo, era filha do duque Aymon e demonstrada na presença de Carlos Beatriz. Sua grande valentia e de Beatriz. Sua grande valentia e Magno e de toda a França, hombreava assombrosa coragem, por freqüentes assombrosa coragem, por freqüentes com o afamado valor do Reinaldo. vezes demonstrada na presença de vezes demonstrada na presença de Carlos e de toda a França, Carlos Magno e de toda a França, hombreavam na reputação com o hombreavam na reputação com o afamado valor do bravo Reinaldo. afamado valor do bravo Reinaldo.

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32- Amada por um cavaleiro que 32. Amada por um cavaleiro que Amada por um cavaleiro que d‟África viera em companhia do rei d‟África viera d’África em viera d‟África em companhia do Agramante (e que provinha dos amores companhia do rei Agramante (e que rei Agramante, a donzela entre Rogério e a desditosa filha de provinha dos amores entre Rogério e guerreira, que não possuía a Agolante), - Bradamante, que não a desditosa filha de Agolante), índole de um urso nem de um possuía a índole ferina de um urso nem Bradamante, a donzela guerreira, leão, sentiu-se atraída para de um leão, sentiu-se atraída para esse que não possuía a índole ferina de um quem apaixonadamente a que apaixonadamente a requestava. urso nem de um leão, sentiu-se atraída requestava. Verem-se a falar um Verem-se a falarem com o outro, eis o para esse que quem apaixonadamente com o outro, só uma vez lhes que a fortuna porém só ainda uma vez a requestava. Verem-se a falarem com tinha sido possível. lhes tinha permitido. o outro, eis o que a fortuna porém só ainda uma vez lhes tinha permitido. sido possível.

33-E lá andava Bradamante em busca 33. E lá andava Bradamante em busca E lá andava Bradamante em do apaixonado (Reinaldo se chamava do apaixonado (Reinaldo se chamava busca do apaixonado ele também como seu pai): caminhava ele também como seu pai): caminhava caminhando sozinha, mas tão sozinha, mas tão segura, tão confiada caminhando sozinha, mas tão segura segura e confiada em si, como em si, como se para guardá-la a tão e confiada em si, como se para se a escoltassem mil escoltassem mil esquadrões. guardá-la a escoltassem mil esquadrões. O que ela fez ao rei da Circassia, já os esquadrões. O que ela fez ao rei da leitores sabem. Depois d‟isso, O que ela fez ao rei da Circassia, já Circassia, já os leitores sabem. prosseguindo em seu caminho, os leitores sabem. Depois d‟isso, Depois d‟isso, Bradamante Bradamante atravessou uma floresta, prosseguindo em seu caminho, atravessou uma floresta, galgou galgou um dos montes limítrofes, e Bradamante atravessou uma floresta, um monte e chegou a uma chegou por fim a uma nascente d´água. galgou um dos montes limítrofes, e nascente d´água. chegou por fim a uma nascente d´água.

34-Esta nascente corria pelo meio de 34. Esta nascente corria pelo no meio Esta nascente corria no meio de um prado á sombra de antiqüíssimo de um prado à sombra de um prado à sombra de arvoredo: com o grato murmúrio de antiqüíssimo arvoredo: , e com o grato antiqüíssimo arvoredo, e suas linfas dir-se-ia que estava ali de murmúrio de suas linfas dir -se ia - Bradamante, apenas ali chegou, propósito convidando os transeuntes a que estava ali de propósito deu logo com os olhos n‟um beber e a descansar um pouco! Alteava- convidando os transeuntes a beber e a cavaleiro, que se-lhe à esquerda uma colina de terras descansar um pouco! Alteava-se-lhe à cultivadas, que por sua parte contribuía esquerda uma colina de terras também para amenizar as calmas do cultivadas, que por sua parte meio dia. contribuía também para amenizar as Bradamante, apenas ali chegou, deu calmas do meio dia. Bradamante, logo com os olhos n‟um cavaleiro. apenas ali chegou, deu logo com os olhos n‟um cavaleiro. , que

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35-Sobranceiro ao límpido cristal da 35- Sobranceiro ao límpido cristal da estava silencioso e pensativo, fonte, e sentado à sombra de um fonte, e sentado à sombra de um de cabeça baixa e olhos pequenino bosque, no chão relvoso cuja pequenino bosque, no chão relvoso umedecidos, denunciando verde alcatifa esmaltavam flores de cuja verde alcatifa esmaltavam flores cansaço e tristeza. Escudo e variado matiz, o cavaleiro estava de variado matiz, o cavaleiro estava capacete pendiam-lhe, a pouca silencioso e pensativo, de cabeça baixa silencioso e pensativo, de cabeça distância, de uma árvore, cujo e olhos umedecidos, denunciando baixa e olhos umedecidos, tronco amarrara o cavalo. cansaço e tristeza. Escudo e capacete denunciando cansaço e tristeza. pendiam-lhe, a pouca distância, de uma Escudo e capacete pendiam-lhe, a faia, cujo tronco prendera o cavalo. pouca distância, de uma faia árvore, cujo tronco prendera amarrara o cavalo.

36-O sentimento compassivo por que o 36. A compaixão moveu, O A compaixão moveu, a donzela gênero humano se caracteriza em sentimento compassivo por que o a indagar do cavaleiro o motivo referência as desventuras do próximo gênero humano se caracteriza em de seus desgostos. fez com que a donzela indagasse do referência às desventuras do próximo, Correspondendo à sua cavaleiro o motivo de seus desgostos. fez com que a donzela a indagarsse curiosidade, e impressionado Correspondendo à curiosidade da do cavaleiro o motivo de seus pela cortesia de suas palavras, e interrogante, e impressionado pela desgostos. Correspondendo à sua pelo aspecto valoroso e nobre cortesia de suas palavras, assim como curiosidade, da interrogante, e de quem à princípio lhe pelo aspecto valoroso e nobre de quem impressionado pela cortesia de suas parecera um guapíssimo, tudo à primeira vista se lhe afigurou um palavras, assim como e pelo aspecto ele contou. guapíssimo guerreiro, tudo ele lhe valoroso e nobre de quem à primeira contou. vista lhe afigurou princípio lhe parecera um guapíssimo, guerreiro, tudo ele lhe contou. 37-Principiou assim: - “conduzia eu sob 37. Principiou assim: “ – [ Conduzia [Conduzia eu, disse, sob meu o meu comando um certo número de eu, disse, sob o meu comando um comando um certo número de peões e cavaleiros em direção ao campo certo número de peões e cavaleiros peões e cavaleiros em direção em que el-Rei Carlos estava à espera em direção ao campo em que onde ao campo onde el-Rei Carlos de Marsílio, no intuito de lhe embargar el-Rei Carlos Magno estava à espera estava à espera de Marsílio, no os passos ao descer das montanhas: de Marsílio, no intuito de lhe intuito de lhe embargar os vinha comigo uma formosa jovem, por embargar os passos ao descer das passos ao descer das quem ardo de amores. Quando cheguei montanhas: vinha comigo uma montanhas: vinha comigo uma às cercanias de Rodonna, avistei um formosa jovem, por quem ardo de formosa jovem, por quem ardo personagem armado, que montava um amores. Quando cheguei às cercanias de amores. Quando cheguei cavalo com azas. perto de Rodonna, avistei um perto de Rodonna, avistei um personagem armado, que montava um personagem armado, que cavalo com azas.” montava um cavalo com azas.

38-Simples mortal, ou criatura horrenda 38. Simples mortal, ou criatura Simples mortal, ou criatura saída do Inferno, aquele salteador, horrenda saída do Inferno, aquele horrenda saída do Inferno, apenas deu com os olhos na minha salteador, apenas deu com os olhos na aquele salteador, apenas deu querida amante, fez como faria um minha querida amante, fez como faria com os olhos na minha querida falcão para agarrar a presa: lança as um falcão para agarrar a presa: lança amante, fez como faria um mãos às minha gentil companheira, e, as mãos arranca-m’a dos braços e à falcão à presa: arranca-m‟a dos raptando-m‟a, lá vai voando com ela no minha gentil companheira,e, raptando braços e voa com ela no tal tal cavalo das asas. m‟a, lá vai voando com ela no tal cavalo das asas. E tão de relance aconteceu isto, que só cavalo das asas. Tão de relance aconteceu isto, dei pelo rapto quando senti nos ares os E Ttão de relance aconteceu isto, que que só dei pelo rapto quando gritos da dama. só dei pelo rapto quando senti ouvi ouvi nos ares os gritos da nos ares os gritos da dama. minha minha gentilcompanheira. gentil companheira.

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39.Encerrado entre montanhas, na falda 39. Fiquei precisamente na mesma Supressão. de um rochedo escarpado, posso eu situação em que fica uma pobre porventura caminhar traz de quem voa galinha quando um milhafre lhe pelos ares? O próprio corcel, em que leva algum dos pintos. A monto, acha-se tão fatigado, que mal desgraçada, o que é que faz? poderá ele mover-se por caminhos Afligir-se pela sua inadvertência, e ásperos e pedregosos como estes chamá-lo debalde com seus inúteis d‟entorno. cacarejos! Encerrado entre montanhas, na falda de um rochedo escarpado posso eu porventura caminhar traz de quem voa pelos ares? O próprio corcel, em que monto, acha-se tão fatigado, que mal poderá ele mover-se por caminhos ásperos e pedregosos como estes d‟entorno.

40-Mas... a comoção que experimentei 40. Mas... a A comoção que A comoção que experimentei ao ver-me sem a minha querida experimentei ao ver-me sem a minha ao ver-me, assim roubado foi beldade, foi tal que mais valera me querida beldade, assim roubado foi tal, que mais valera me arrancassem do peito o coração! Deixei tal, que mais valera me arrancassem arrancassem do peito o coração! portanto os meus guerreiros do peito o coração! Deixei portanto os Deixei portanto os meus continuarem sozinhos a sua jornada. E, meus guerreiros continuarem sozinhos guerreiros continuarem pelas mais praticáveis d‟estas abruptas a sua jornada., E, pelas mais sozinhos a sua jornada, e por montanhas, vim eu seguindo o caminho praticáveis e por d‟estas abruptas estas brutas montanhas, vim que Amor me indicava, na direção em brutas montanhas, vim eu seguindo o seguindo o caminho que Amor que me parecia houvesse o raptador caminho que Amor me indicava, na me indicava, na direção em conduzido aquela que é a alegria e o direção em que me pareciaeu que me pareceu houvesse o consolo da minha alma. houvesse o raptador salteador salteador conduzido a alegria e conduzido aquela que é a alegria e o o consolo da minha alma. consolo da minha alma.

41-Seis dias andei eu sem descansar, 41. Seis dias andei eu sem descansar, Seis dias andei sem descansar, através de escarpados penhascos, e à através de escarpados penhascos, e à através de penhascos, e à beira beira de precipícios horríveis, sem beira de precipícios horríveis, sem de precipícios horríveis, sem vereda encontrar, nem vestígios de vereda encontrar, nem vestígios de encontrar vestígios de pisada pisada humana. Por fim cheguei a um pisada humana. Por fim cheguei a um humana. Por fim cheguei a um vale inculto e selvático, circundado por vale inculto e selvatico, circundado vale inculto e circundado de abruptas penedias e grutas medonhas. por de abruptas penedias e grutas abruptas penedias e grutas Em meio d‟esse vale, sobre uma rocha, medonhas. Em meio d‟esse vale, medonhas. Em meio d‟esse erguia-se um castelo de formoso sobre uma rocha, erguia-se um castelo vale, sobre uma rocha, erguia- aspecto e admiravelmente fortificado. de formoso aspecto. e admiravelmente se um castelo de formoso fortificado. aspecto.

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42-Visto de longe, figurava-se-me 42. Visto de longe, figurava-se-me Visto de longe, parecia brilhar como se brilhar como se fora uma chama; nem parecia brilhar como se fora uma fora uma chama. Mais tarde vim a tijolo, nem mármore parecia que chama.; nem tijolo, nem mármore, saber que os Demônios industriosos, entravam na sua construção. Quanto parecia que entravam na sua por meio de encantamentos mágicos, mais me aproximava de tão construção. Quanto mais me haviam forrado o castelo com aço resplendentes muralhas, mais aquela aproximava de tão resplendentes temperado nas águas do Estyge, aço fabrica se me antolhava bela e muralhas, mais aquela fábrica se me maravilhosa. Mais tarde vim eu a saber antolhava bela e maravilhosa. Mais que os Demônios industriosos, movidos tarde vim eu a saber que os Demônios pelo encantamento de palavras mágicas, industriosos, movidos pelo por meio haviam forrado aquele belíssimo castelo de encantamentos de palavras com aço forjado e temperado nas águas mágicos, haviam forrado o aquele do Estyge. belíssimo castelo com aço forjado e temperado nas águas do Estyge., aço

43-De aço forjado e polido, tão polido 43 De aço forjado e polido, aço tão aço tão polido que nada há capaz de o que nada há capaz de o enferrujar ou de polido que nada há capaz de o enferrujar ou de fazer-lhe perder o fazer-lhe perder o brilhantismo, acham- enferrujar ou de fazer-lhe perder o brilho. É ali que o raptador da minha se forradas as torres todas. É ali que o brilhantismo, o brilho. acham-se bela vem habitualmente abrigar-se, raptador da minha bela vem forradas as torres todas. É ali que o depois de andar infestando as terras habitualmente abrigar-se, depois de raptador da minha bela vem vizinhas; contra a fúria das suas andar infestando com suas correrias as habitualmente abrigar-se, depois de devastações não há quem resista; terras circunvizinhas; contra a fúria das andar infestando com suas correrias as lástimas e maldições, que podem suas devastações não há quem resista; terras circunvizinhas; contra a fúria contra? E perdida tenho a esperança de lastimas e maldições, que podem contra das suas devastações não há quem recuperar jamais o objeto do meu amor. ele? E lá me tem ele enclausurado o resista; lástimas e maldições, que objeto do meu amor, ou, para melhor podem contra ele? E la me tem ele dizer, o meu próprio coração. Perdida enclausurado o objeto do meu amor, trago a esperança de o recuperar jamais! ou, para melhor dizer, o meu próprio coração. Perdida trago E perdida tenho a esperança de o recuperar jamais! o objeto do meu amor.

44-Efetivamente... que posso eu mais 44. Efetivamente... que posso eu mais Supressão. fazer do que olhar de longe para a fazer do que olhar de longe para a escarpada rocha em que o meu bem está escarpada rocha em que o meu bem enclausurado? Acho-me no caso da está enclausurado? Acho-me no caso raposa que sente cá de baixo o filhitos a da raposa que sente cá de baixo o gemer nas garras da águia, e que volteia filhitos a gemer nas garras da águia, e espavorida, inconsciente, sem asas que que volteia espavorida, inconsciente, lhe permitam subir a semelhante altura! sem asas que lhe permitam subir a A um penhasco d‟ aqueles, a um castelo semelhante altura! A um penhasco d‟ por aquela forma talhado a pique, só aqueles, a um castelo por aquella efetivamente poderá subir quem tenha forma talhado a pique, só condição de voar como as aves. efetivamente poderá subir quem tenha condição de voar como as aves.

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45-Estava eu cismando no caso, quando 45. Estava eu um dia cismando no Estava um dia cismando no caso, me aparecem dois cavaleiros guiados caso, quando me aparecem dois quando me aparecem dois cavaleiros por um anão. Esperanças que, ao cavaleiros guiados por um anão. guiados por um anão. Eram dois encontrar-me com eles, cobrou o meu Esperanças que, ao encontrar-me com guerreiros de grande valentia: Gradasso, desejo, -ai de mim!- ficaram eles, cobrou o meu desejo, -ai de rei da Sericana; o outro por nome completamente baldadas. Eram dois mim! – ficaram completamente Rogério, um mancebo valoroso e tido guerreiros de grande valentia: um d‟ baldadas. Eram dois guerreiros de em grande conta na corte d‟ África. eles Gradasso, rei da Sericana; o outro, grande valentia: um d‟ eles Gradasso, por nome Rogério, um mancebo rei da Sericana; o outro, por nome valoroso e tido em grande conta na Rogério, um mancebo valoroso e tido corte d‟ África. em grande conta na corte d‟ África.

46- - “Vêem ambos (disse-me o anão) 46. [ - “ Vêem ambos, (disse-me o [ - “ Vêem ambos, disse-me o anão, para provarem sua valentia contra o anão), para provarem sua valentia para provarem sua valentia contra o possuidor d‟ este castelo, guerreiro que contra o possuidor d‟ este castelo, possuidor d‟ este castelo, guerreiro que desfruta o estranho e inaudito condão de guerreiro que desfruta o estranho e desfruta o inaudito condão de montar montar n‟um quadrúpede com azas.” inaudito condão de montar n‟um um quadrúpede com azas.” - Ah! senhores (exclamei eu), tende quadrúpede com azas.” - “Ah! senhores (exclamei eu), tende compaixão das minhas tristes - “Ah! senhores (exclamei eu), tende compaixão da minha triste sorte; circunstâncias! Se, como espero, compaixão das minhas tristes se,como espero, ficardes vencedores, ficardes vencedores, suplico-vos a circunstâncias! sorte; se, como suplico-vos a restituição da minha restituição da minha dama.” espero, ficardes vencedores, suplico- dama. vos a restituição da minha dama.”

47-E narrei-lhes, entre lágrimas, a 47. E narrei-lhes, entre lágrimas, a E narrei-lhes a minha história. maneira como ficara privado d‟ aquela maneira como ficara privado d‟ Prometendo auxiliar-me, começaram a que eu tanto amava. Prometendo aquela que eu tanto amava. a minha descer a montanha escarpada. Eu fiquei auxiliar-me, começaram eles a descer a história. Prometendo auxiliar-me, de longe observando, e pedindo a Deus montanha alpestre e escarpada. Eu, por começaram eles a descer a montanha que lhes concedesse a vitória. Por baixo mim, fiquei de longe observando, e alpestre e escarpada. Eu, por mim, do castelo havia uma esplanada, cuja pedindo a Deus que lhes concedesse a fiquei de longe observando, e pedindo extensão mediria duas vezes a distância vitória. Por baixo do castelo havia uma a Deus que lhes concedesse a vitória. de um tiro de pedra. explanada, cuja extensão mediria duas Por baixo do castelo havia uma vezes a distância a que pode atirar uma explanada esplanada, cuja extensão pedra a mão de um homem. mediria duas vezes a distância a que pode atirar uma de um tiro de pedra. a mão de um homem. 48-Chegados que foram ambos ao pé da 48. Chegados que foram ambos ao pé Chegados que foram ao pé da rocha, rocha, cada um d‟eles queria ser o da rocha, cada um d‟eles queria ser o cada um d‟eles queria ser o primeiro a primeiro a travar combate. Mas, ou primeiro a travar combate. Mas, ou travar combate. Mas a sorte decidiu e porque decidissem à sorte, ou porque porque decidissem à sorte, ou porque foi Gradasso quem principiou. O rei da Rogério desistisse da primazia , a Rogério desistisse da primazia , a Sericana, embocando a trombeta, fez verdade é que foi Gradasso quem verdade é que a sorte decidiu e foi retinir de baixo a cima o rochedo e o principiou. O rei da Sericana, Gradasso quem principiou. O rei da castelo. À porta saiu logo o castelão embocando a trombeta, fez, com os Sericana, embocando a trombeta, fez, montado no cavalo de azas. sons d‟ ela, retinir de baixo a cima o com os sons d‟ ela, retinir de baixo a rochedo e o castelo. Da porta saiu logo cima o rochedo e o castelo. Da À o castelão montado no cavalo das azas. porta saiu logo o castelão montado no cavalo das de azas.

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49-E começou pouco e pouco a elevar- 49. E começou pouco e pouco a E começou pouco e pouco a elevar-se, e se, fazendo lembrar os grous de elevar-se, fazendo lembrar os grous de subiu a uma altura tal, que só águias arribação que principiam por correr, arribação que principiam por correr, seriam capazes de lá chegar. depois se elevam acima da terra uma ou depois se elevam acima da terra uma duas braças, e só desenvolvem toda a ou duas braças, e só desenvolvem toda rapidez do seu poderoso vôo quando a rapidez do seu poderoso vôo quando conseguem tomar completamente o conseguem tomar completamente o vento nas azas. vento nas azas. Assim logra o nigromante subir a uma Assim logra o nigromante subir e altura tal, que só águias seriam capazes subiu a uma altura tal, que só águias de lá chegar. seriam capazes de lá chegar. 50-Por fim, quando lhe pareceu azado o 50. Por fim, quando lhe pareceu azado Por fim, quando lhe pareceu o momento, fez sinal ao cavalo para o momento, fez sinal ao cavalo para de momento, fez sinal ao cavalo de fechar fechar as azas: e ei-lo fendendo os ares a fechar as azas: e ei-lo fendendo os ares as azas: e ei-lo fendendo os ares a prumo, à semelhança de um falcão a prumo, à semelhança de um falcão prumo, à semelhança de um falcão adestrado quando vê levantar-se lhe um adestrado quando vê levantar-se lhe adestrado quando vê cai sobre uma pato ou um pombo. Com a lança em um pato ou um pombo. cai sobre pomba. Com a lança em riste, o riste, o cavaleiro vem rompendo uma pomba. Com a lança em riste, o cavaleiro vem rompendo estrodonsamente caminho. Gradasso cavaleiro vem rompendo estrodonsamente caminho. Gradasso quase que não dá por tal (tão rápido é o estrodonsamente caminho. Gradasso quase não dá por tal, tão rápida é a descer de seu adversário!) senão depois quase que não dá por tal, (tão rápidoa descida, senão depois de sentir-se de sentir-se ferido. é o descer de seu adversário!) a ferido. descida, senão depois de sentir-se ferido.

51- Enquanto o mágico rompe a lança 51. Enquanto o mágico rompe a lança Enquanto o mágico rompe a lança de de encontro a Gradasso, este o mais que de encontro a Gradasso, este o mais encontro a Gradasso, este esgrime faz é esgrimir debalde contra o ar e o que faz é esgrimire debalde contra o ar debalde contra o ar e o vento. Por sua vento. Por sua parte o voador abre e o vento. Por sua parte o voador abre parte o voador abre novamente as azas, novamente as azas, e de novo se eleva. novamente as azas, e de novo se eleva. e de novo se eleva. A violência do A violência do embate faz ir ao chão a A violência do embate faz ir ao chão a embate faz ir ao chão a vigorosa Alfana, vigorosa Alfana (Alfana se chamava a vigorosa Alfana, (Alfana se chamava como se chamava a formosíssima égua égua de Gradasso, uma égua a formosíssima égua de Gradasso, de Gradasso. formosíssima, e certamente a melhor uma égua formosíssima, e certamente que poderia imaginar-se). a melhor que poderia imaginar-se).

52- Reerguendo o vôo até às estrelas, o 52. Reerguendo o vôo até às estrelas, o Reerguendo o vôo até às estrelas, o nigromante repetiu a descida, caindo nigromante repetiu a descida, caindo nigromante repetiu a descida, caindo agora sobre Rogério que, desprevenido, agora sobre Rogério que, agora sobre Rogério que correra em correra em auxílio de Gradasso. Rogério desprevenido, correra em auxílio de auxílio de Gradasso. Rogério cede à cede à violência do golpe, e o seu corcel Gradasso. Rogério cede à violência do violência do golpe, e quando o recuou mais de um passo; quando o golpe, e o seu corcel recuou mais de companheiro do rei da Sericana se companheiro do rei da Sericana se um passo; quando o companheiro do voltou para responder à agressão, já o voltou para responder a semelhante rei da Sericana se voltou para seu adversário estava outra vez a grande agressão, já o seu adversário estava responder a semelhante agressão, já o altura. outra vez a grande altura. seu adversário estava outra vez a grande altura.

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53-E assim continua o guerreiro volante, 53. E assim continua o guerreiro E assim continua o guerreiro volante, já já ferindo Gradasso, já ferindo Rogério, volante, já ferindo Gradasso, já ferindo ferindo Gradasso, já ferindo Rogério, agora na cabeça, logo no peito, em Rogério, agora na cabeça, logo depois agora na cabeça, depois no peito, em seguida no dorso: por mais que aos seus no peito, em seguida no dorso:; e por seguida no dorso; e por mais que aos golpes pretendam responder Gradasso mais que aos seus golpes pretendam seus golpes pretendam eles responder, ou Rogério, baldado é o empenho eles responder Gradasso ou Rogério, baldado é o empenho, porque logo o d„estes, que logo o mágico lhes escapa baldado é o empenho d„estes, que mágico lhes escapa num volver d‟ n‟um volver d‟ olhos. Nos ares vai ele porque logo o mágico lhes escapa olhos. descrevendo largos círculos, - e, quando n‟um volver d‟ olhos. Nos ares vai ele se calcula vir atacar de preferência um descrevendo largos círculos, - e, dos dois cavaleiros, é precisamente quando se calcula vir atacar de sobre o outro que ele descarrega o seu preferência um dos dois cavaleiros, é golpe. Gradasso e Rogério sentem-se precisamente sobre o outro que ele tão desnorteados, que já nem atinam em descarrega o seu golpe. Gradasso e se precaver. Rogério sentem-se tão desnorteados, que já nem atinam em se precaver.

54-Entre os dois guerreiros terrestres e o 54. Entre os dois guerreiros terrestres e Entre os dois guerreiros terrestres e o seu aéreo inimigo, durou o combate sem o seu aéreo inimigo, durou o combate aéreo inimigo, durou o combate sem cessar, até a hora em que um véu sem cessar, até a hora em que um o cessar, até que o véu da morte se obscuro se desdobra por sobre a terra e véu obscuro da morte se desdobraou desdobrou por sobre a terra. As cousas esconde a cor de tudo quanto há por sobre a terra e esconde a cor de se passaram como acabo de vos contar; formoso e belo. As cousas passaram-se tudo quanto há formoso e belo. As e entretanto confesso que sinto como acabo de vos contar: crede que cousas se passaram-se como acabo de hesitação em repeti-lo, porque não exagero. Assisti, testemunha ocular, vos contar:; crede que não exagero. semelhante maravilha mais parece a tudo isto: e entretanto confesso que Assisti, testemunha ocular, a tudo isto: fábula do que um fato verdadeiro. ... Por sinto hesitação em repeti-lo, porque e entretanto confesso que sinto fim, Gradasso e Rogério caíram por semelhante maravilha, parece mais uma hesitação em repeti-lo, porque terra desacordados e foram aprisionados fábula do que um fato verdadeiro... semelhante maravilha, parece mais pelo mágico. parece uma fábula do que um fato verdadeiro... Por fim, Gradasso e Rogério caíram pó terra desacordados e foram aprisionados pelo mágico.

55-O cavaleiro aéreo trazia o escudo 55. O cavaleiro aéreo trazia o escudo Supressão envolvido n‟uma seda belíssima: nem eu envolvido n‟uma seda belíssima: nem sei como ele assim o conservou por eu sei como ele assim o conservou por tanto tempo em tal invólucro, - porque a tanto tempo em tal invólucro, - porque verdade é que, tão depressa o despe ele a verdade é que, tão depressa o despe da seda que o envolve, quem para o ele da seda que o envolve, quem para escudo olhar fica irremediavelmente o escudo olhar fica irremediavelmente ofuscado, e cai redondamente no chão ofuscado, e cai redondamente no chão como se fora um corpo morto, à mercê como se fora um corpo morto, à mercê completa do nigromante. completa do nigromante.

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56-É que resplandece aquele escudo à 56. É que resplandece aquele escudo à Por terra desacordados e foram semelhança de um carbúnculo, e não há semelhança de um carbúnculo, e não aprisionados pelo mágico. luz que em brilhantismo se lhe compare. há luz que em brilhantismo se lhe Inibidos de lhe encararem o fulgor, compare. Inibidos de lhe encararem o Gradasso e Rogério caíram por terra fulgor, Gradasso e Rogério caíram por sem acordo. Eu próprio, apesar da terra. distância em que estava, perdi Por terra desacordados e foram temporariamente os sentidos, e só mui aprisionados pelo mágico sem tarde os recuperarei. Quando tornei a acordo. Eu próprio, apesar da distância mim, já não encontrei os guerreiros nem em que estava, perdi temporariamente o anão: na minha frente via-se apenas o os sentidos, e só mui tarde os campo de batalha desocupado, e em recuperarei. Quando tornei a mim, já volta imersas na sombra a montanha e a não encontrei os guerreiros nem o planície. anão: na minha frente via-se apenas o campo de batalha desocupado, e em volta imersas na sombra a montanha e a planície.

57-“Pensei portanto que o mágico teria 57. “Pensei portanto que o mágico Supressão empolgado os seus dois adversários, e teria empolgado os seus dois que, por condão do seu rutilantíssimo adversários, e que, por condão do seu escudo, lhes haveria roubado a eles a rutilantíssimo escudo, lhes haveria liberdade e a mim a esperança. N‟este roubado a eles a liberdade e a mim a sentido me despedi d‟aquele lugar em esperança. N‟este sentido me despedi que jazia enclausurado o meu coração. d‟aquele lugar em que jazia Em vista agora de quanto vos contei, enclausurado o meu coração. Em vista vede se há tormento de amor, que possa agora de quanto vos contei, vede se há comparar-se a este meu.” tormento de amor, que possa comparar-se a este meu.”

58-E depois de assim falar, o cavaleiro 58.E Ddepois de assim falar, o Depois de assim falar, o cavaleiro recaiu na sua profunda tristeza. cavaleiro recaiu na sua profunda recaiu na sua profunda tristeza. Era ele o conde Pinabel, filho de tristeza. Era ele o conde Pinabel, filho de Anselmo de Alta-ripa (da casa de Era ele o conde Pinabel, filho de Anselmo de Alta-ripa, da casa de Moguncia). Entre os malvados da sua Anselmo de Alta-ripa, (da casa de Moguncia. raça, em vez de querer constituir-se Moguncia). Entre os malvados da sua exceção por seu cavalheirismo e raça, em vez de querer constituir-se lealdade, preferiu não só igualá-los exceção por seu cavalheirismo e mais inclusivamente excedê-los a todos lealdade, preferiu não só igualá-los os na abominável grosseria dos vícios. mais inclusivamente excedê-los a todos na abominável grosseria dos vícios.

59-Bradamante, a formosa dama, deixou 59. Bradamante, a formosa dama, Bradamante, a formosa dama, deixou perceber no semblante impressões deixou perceber no semblante perceber no semblante impressões variadas à proporção que ia escutando impressões variadas à proporção que variadas à proporção que ia escutando silenciosa a narrativa do cavaleiro ia escutando silenciosa a narrativa do a narrativa. Primeiro, quando se tratou moguntino. Primeiro, quando se tratou cavaleiro moguntino. Primeiro, quando de Rogério, seu rosto acusou grande de Rogério, a sua fisionomia acusou se tratou de Rogério, a sua fisionomia alegria; mas, quando veio a saber que grande alegria; mas, quando depois veio seu rosto acusou grande alegria; mas, Rogério estava cativo, transbordou a saber que ele estava quando depois veio a saber que ele su‟alma de mágoas inspiradas no mais cativo,transbordaram-lhe Rogério estava cativo, transbordaram- extremoso amor. amargosamente n‟alma sentidas mágoas lhe transbordou su’alma de inspiradas no mais extremoso amor, e amargosamente n‟alma sentidas fez repetir a Pinabel por várias vezes a mágoas inspiradas no mais extremoso narrativa. amor, e fez repetir a Pinabel por várias

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vezes a narrativa.

60. Quando afinal ficou perfeitamente 60. Quando afinal ficou perfeitamente [ - Cavaleiro, disse-lhe ela, podeis inteirada do caso, disse-lhe ela: - “ inteirada do caso, - disse-lhe ela: - [ - tranquilizar-vos, porque talvez o dia de Cavaleiro, podeis tranquilizar-vos, Cavaleiro, disse-lhe ela, podeis hoje venha a parecer-vos venturoso. porque talvez a circunstância de me tranquilizar-vos, porque talvez a Caminhemos ambos em direção ao encontrardes vos seja favorável; talvez o circunstância de me encontrardes vos castelo, que porventura o dia de hoje venha a parecer-vos seja favorável; talvez o dia de hoje empreendimento não será ocioso. venturoso. Caminhemos ambos em venha a parecer-vos venturoso. direção ao castelo em que se acha Caminhemos ambos em direção ao enclausurado um tesouro tão rico; castelo em que se acha enclausurado porventura o empreendimento não será um tesouro tão rico; porventura o ocioso, uma vez que a fortuna me empreendimento não será ocioso, uma coadjuve conforme espero.” vez que a fortuna me coadjuve conforme espero.)

61- Responde-lhe o cavaleiro: - 61. Responde-lhe o cavaleiro: - Supressão “Desejais então que outra vez atravesse “Desejais então que outra vez aquelas montanhas para vos mostrar o atravesse aquelas montanhas para vos caminho do castelo? Por mim, confesso mostrar o caminho do castelo? Por que pouco se me dá de perder as mim, confesso que pouco se me dá de passadas, visto que perdido está aquilo perder as passadas, visto que perdido em que o meu bem se resumia. Vós, está aquilo em que o meu bem se porém, atendei a que, tentando resumia. Vós, porém, atendei a que, semelhantes precipícios e rochas tão tentando semelhantes precipícios e medonhas, ides expor-vos a ficar rochas tão medonhas, ides expor-vos a encarcerada. Assim o quereis? Não me ficar encarcerada. Assim o quereis? lanceis depois as culpas a mim, que vos Não me lanceis depois as culpas a preveni a tempo.” mim, que vos preveni a tempo.”

62-Tornando a montar no seu corcel, aí 62. Tornando a montar [ - Montando Montando no seu corcel, vai o conde vai agora o conde por guia da valorosa no seu corcel, aí vai agora o conde por como guia da valorosa dama, que em dama, que em prol de Rogério se expõe como guia da valorosa dama, que em prol de Rogério se expõe a ser a ser aprisionada ou morta pelo prol de Rogério se expõe a ser aprisionada ou morta pelo nigromante. nigromante. aprisionada ou morta pelo nigromante. E enquanto caminhavam, eis que surge E enquanto caminhavam, eis que atrás E enquanto caminhavam, eis que atrás o mensageiro, aparecido a Sacripante d‟eles aparece um mensageiro d‟eles aparece surge o um mensageiro gritando - Alto! alto! gritando: - “Alto! alto!” aparecido a Sacripante gritando: - Era nem mais, nem menos do que o “Alto! alto!” mesmo indivíduo por quem Sacripante Era nem mais, nem menos do que o entrará no conhecimento de haver sido mesmo indivíduo por quem Sacripante vencido pela formosa Bradamente. entrará no conhecimento de haver sido vencido pela formosa Bradamente.

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63- E agora vem ele trazer à bela dama 63. E agora Vvem ele trazer à bela Vem ele trazer à bela dama notícias de notícias de Montpellier e de Narbonna, dama notícias de Montpellier e de Montpellier e de Narbonna, que, que, juntamente com todo litoral Narbonna, que, juntamente com todo juntamente com todo litoral vizinho, vizinho, haviam arvorado o estandarte litoral vizinho, haviam arvorado o haviam arvorado o estandarte de de Castela. Marselha, na ausência de estandarte de Castela. Marselha, na Castela. Marselha, na ausência de Bradamante (que tinha a seu cargo ausência de Bradamante ( que tinha a Bradamante (que tinha a seu cargo defendê-la) achava-se desanimada, e seu cargo defendê-la) achava-se defendê-la) achava-se desanimada, e enviava-lhe um mensageiro a pedir-lhe desanimada, e enviava-lhe um enviava-lhe um mensageiro a pedir-lhe conselho e socorro. mensageiro a pedir-lhe conselho e conselho e socorro. socorro.

64-Aquelas cidades, bem como o 64- Aquelas cidades, bem como o Aquelas cidades tinham sido dadas à território que n‟uma área de muitas território que n‟uma área de muitas filha do duque Aymon pelo Imperador, milhas se estende até ao mar entre o milhas se estende até ao mar entre o que depositava n‟ela uma grandíssima Var e o Rhodono, tinham sido dadas à Var e o Rhodono, tinham sido dadas à confiança, desde que a viu combater filha do duque Aymon pelo Imperador, filha do duque Aymon pelo Imperador, com inigualável esforço. que depositava n‟ela uma grandíssima que depositava n‟ela uma grandíssima esperança e confiança, desde que, esperança e confiança, desde que, vendo-a combater, lograra admirar-lhe vendo-a a viu combater, com a valentia. Vinha então de Marselha inigualável esforço. lograra aquele mensageiro em procura de quem admirar-lhe a valentia. Vinha então de auxílios tão valiosos podia prestar. Marselha aquele mensageiro em procura de quem auxílios tão valiosos podia prestar.

65-Indecisa, a nobre donzela hesita 65- Indecisa, a nobre donzela hesita Indecisa, a nobre donzela hesita se primeiro se deverá ou não volver sobre primeiro se deverá voltar ou não: deverá voltar ou não: a honra e o dever seus passos: a honra e o dever volver sobre seus passos: a honra e o chamam-na para um lado; o incêndio estimulam-n‟a por um lado; por outro, dever estimulam-n‟a por chamam-na do amor impele-a para outro. Mas o incêndio do amor que a devora. Por para um lado; por outro, o incêndio vence o amor, e fim determina-se a prosseguir no do amor que a devora impele-a para empreendimento que encetara: livrar da outro. Por fim determina-se a torre encantada o seu Rogério, ou pelo prosseguir no empreendimento que menos, caso lhe não chegue o valor para encetara: livrar da torre encantada o tanto, ficar prisioneira com ele. seu Rogério, ou pelo menos, caso lhe não chegue o valor para tanto, ficar prisioneira com ele. Mas vence o amor, e

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66-Apresentando uma desculpa com 66-aApresentando uma desculpa ao apresentando uma desculpa ao que o mensageiro pareceu ficar com que o mensageiro pareceu ficar mensageiro, continua a caminhar em satisfeito aponto de não insistir mais, satisfeito aponto de não insistir mais, companhia de Pinabel. Bradamante continua a caminhar em Bradamante continua a caminhar em Este é que não parecia contente, companhia de Pinabel. companhia de Pinabel. porque acabava de saber que a dama Este é que, por sua parte, não parecia Este é que, por sua parte, não parecia era de uma família à qual os seus contente, porque n‟aquele momento contente, porque n‟aquele momento consagravam um grande ódio. acabava de saber que a dama era de uma acabava de saber que a dama era de família à quem, tanto em particular uma família à qual os seus quem, como em público, ele consagrava um tanto em particular como em público, grande ódio. E já lhe acodem ao espírito ele consagravam um grande ódio.. E os perigos que o ameaçam quando ela já lhe acodem ao espírito os perigos acaso reconheça n‟ele um moguntino. que o ameaçam quando ela acaso reconheça n‟ele um moguntino.

67-Entre a casa de Moguncia e a de 67- Entre a casa de Moguncia e a de Entre a casa de Moguncia e a de Clermont havia ódios inveterados e Clermont havia ódios inveterados e Clermont havia violenta inimizade, a violenta inimizade, à ponto de terem por violenta inimizade, à ponto de terem ponto de terem por vezes sustentado vezes sustentado guerras entre si, por vezes sustentado terríveis terríveis guerras entre si. Não admira, guerras assinaladas por copioso guerras entre si, guerras assinaladas pois, que o pérfido conde estivesse já no derramamento de sangue. Não admira, por copioso derramamento de sangue. íntimo cuidando de atraiçoar a incauta pois que o pérfido conde estivesse já no Não admira, pois, que o pérfido conde donzela, ou, no primeiro ensejo, íntimo d‟alma cuidando em atraiçoar a estivesse já no íntimo d‟alma abandoná-la sozinha . incauta donzela, ou, no primeiro ensejo cuidando de em atraiçoar a incauta que se lhe oferecesse abandoná-la donzela, ou, no primeiro ensejo, que sozinha e seguir ele por outro caminho. se lhe oferecesse abandoná-la sozinha . e seguir ele por outro caminho.

68-O ódio, a hesitação, e o medo, 68-O ódio, a hesitação, e o medo, O ódio, a hesitação, e o medo absolviam absolviam –no por tal forma, que, sem absolviam –no por tal forma, que, sem –no por tal forma, que, sem dar por dar por isso, veio a sair da estrada e dar por isso, veio a sair da estrada e isso, veio a sair da estrada e acabou por acabou por se achar n‟uma floresta, em acabou por se achar n‟uma floresta, se achar n‟uma floresta, onde havia um meio da qual havia um monte e no onde em meio da qual havia um monte, com um árido penhasco no árido cimo d‟esse monte num duro monte, e no com um árido cimo cimo. penhasco. d‟esse monte num duro penhasco no Atrás dele vai sempre seguindo, sem o cimo. deixar, a filha do duque de Dordona. Atrás dele vai sempre seguindo, sem o deixar, a filha do duque de Dordona.

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70-Pronunciadas que foram estas 70- Pronunciadas que foram estas E vai; e de repente lá chegando, dá com palavras, lá vai ele caminhando para o palavras, lá vai ele caminhando para o uma caverna, que desce pelo rochedo cimo do solitário monte, e tudo é cimo do solitário monte, e tudo é mais de trinta braças, talhada observar se por algum lado descortina observar se por algum lado descortina artificialmente a pique. No fundo há uma vereda qualquer que o ajude a fazer uma vereda qualquer que o ajude a uma porta, que dá com que a dama não logre seguir-lhe os fazer com que a dama não logre vestígios. seguir-lhe os vestígios. De repente dá com os olhos n‟uma De E vai; e de repente lá chegando, caverna, que aprofunda pelo rochedo dá com os olhos n‟uma caverna, que mais de trinta braças, talhada desce aprofunda pelo rochedo mais de artificialmente a pique: lá no fundo trinta braças, talhada artificialmente a uma porta. pique:. lá Nno fundo há uma porta., que dá

71-Por essa porta é o amplo acesso para 71- Por essa porta é o amplo acesso acesso para uma sala enorme onde se uma sala enorme; e percebia-se um para uma sala enorme; e onde se percebia um clarão intenso. clarão como de facho que lá no âmago percebia-se um clarão intenso. como Enquanto o traidor olhava perplexo, da gruta estivesse ardendo. de facho que lá no âmago da gruta Bradamante aproximou-se dele. E, enquanto o pérfido olhava perplexo, estivesse ardendo. Bradamante ( que, receosa de perder-lhe E, Eenquanto o traidor pérfido a companhia, caminhara sempre atrás olhava perplexo, Bradamante ( que, d‟ele ) aproximou-se do cavaleiro. receosa de perder-lhe a companhia, caminhara sempre atrás d‟ele ) aproximou-se do cavaleiro.dele. 72-Mas o traidor, vendo frustrados por 72-Mas o pérfido traidor, vendo Mas o pérfido, vendo frustrados os seus então os seus desígnios de a abandonar frustrados por então os seus desígnios desígnios de a abandonar ali, fazê-la ali ou de fazê-la morrer, trata logo de de a abandonar ali, ou de fazê-la morrer, trata logo de formular um novo formular um novo plano: vai ao morrer, trata logo de formular um plano: vai ao encontro d‟ela, pede-lhe encontro d‟ela, pede-lhe que suba ao novo plano: vai ao encontro d‟ela, que suba ao sítio em que o monte se sítio em que o monte se achava pede-lhe que suba ao sítio em que o achava escavado, e acaba por lhe dizer escavado, e acaba por lhe dizer que lá monte se achava escavado, e acaba por que lá em baixo tinha ele avistado uma em baixo tinha ele avistado uma lhe dizer que lá em baixo tinha ele donzela donzela de fisionomia agradabilíssima. avistado uma donzela de fisionomia agradabilíssima 73-Mas lhe diz que pela beleza das 73. Mas lhe diz que pela beleza das que pela beleza das feições e riqueza do feições e pela riqueza do vestuário feições e pela riqueza do vestuário vestuário denunciava ser de nobre denunciava não ser de humilde estirpe; denunciava não ser de humilde nobre estirpe, e que parecia não estar ali por assim como também acrescenta que o estirpe; , assim e que parecia como sua livre vontade. seu ar perturbado e triste inspira também acrescenta que o seu ar suspeitas de não estar ali a donzela por perturbado e triste inspira suspeitas de sua livre vontade. Enfim lhe declara não estar ali a donzela por sua livre que, no intuito de averiguar sua vontade. Enfim lhe declara que, no condição, tinha já tentado penetrar intuito de averiguar sua condição, n‟aquele recinto; mas que do interior da tinha já tentado penetrar n‟aquele gruta havia saído um desconhecido, o recinto; mas que do interior da gruta qual, com gestos de fúria, levara havia saído um desconhecido, o qual, consigo para dentro a infeliz. com gestos de fúria, levara consigo para dentro a infeliz.

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74-Bradamante, animosa como era, e 74. Bradamante, animosa como era, e Bradamante, animosa como era, e não suspeitando que pudesse aquela ser não suspeitando que pudesse aquella desejando socorrer a donzela, trata de uma narrativa falsa, antes desejando ser uma narrativa falsa, antes estudar a maneira de chegar lá abaixo. socorrer a donzela, de que Pinabel lhe desejando socorrer a donzela, de que N‟isto, volvendo os olhos em derredor, falava, só trata de estudar a maneira de Pinabel lhe falava, só trata de estudar dá com a vista em um galho de frondoso chegar lá abaixo. N‟isto, volvendo os a maneira de chegar lá abaixo. olmeiro: com a espada o decepa e o olhos em derredor, dá com a vista em N‟isto, volvendo os olhos em deixa pender pelo alcantil abaixo. longo esgalho de frondoso olmeiro: com derredor, dá com a vista em longo um a espada o decepa n‟um só golpe, e o esgalho de frondoso olmeiro: com a deixa pender pelo alcantil abaixo. espada o decepa n‟um só golpe, e o deixa pender pelo alcantil abaixo.

75-Feito isto, o dá a segurar a Pinabel 75. Feito isto, o dá a segurar a Pinabel Feito isto, o dá a segurar a Pinabel pela pela extremidade mais grossa, - e, pela extremidade mais grossa, - e, extremidade mais grossa e deixa-se agarrando-se com os braços ao agarrando-se com os braços ao escorregar por ele ao longo do abismo. pendurado tronco, vai prestes deixando- pendurado tronco, vai prestes Pinabel sorri traiçoeiramente, e senão se escorregar ao longo do abismo. deixando-se escorregar por ele ao quando, solta o galho e exclama: [ - Pinabel, que a vê n‟esta situação, sorri longo do abismo. Oxalá contigo estivessem todos os teus, traiçoeiramente. E, soltando o esgalho Pinabel, que a vê n‟esta situação, sorri e a toda raça a exterminasse eu! que sustinha com as mãos, exclama: - traiçoeiramente, e senão quando.E, “Oxalá contigo estivessem aqui todos os soltando o esgalho que sustinha com teus, que assim se lhes exterminasse a as mãos, e, exclama: [ - “Oxalá raça!” contigo estivessem aqui todos os teus, que assim se lhes e a toda raça a exterminasse a raça!” eu!

76-Mas a inocente dama escapou à sorte 76. Mas a inocente dama escapou à Mas a inocente dama escapou à sorte que Pinabel lhe desejava o esgalho, ao sorte que Pinabel lhe desejava:. o O que Pinabel lhe desejava. O galho, ao precipitar-se n‟aquela rápida queda, foi esgalho, ao precipitar-se no abismo, precipitar-se no abismo, foi primeiro primeiro bater no chão com a n‟aquella rápida queda, foi primeiro bater no chão com a extremidade extremidade inferior, por forma que esta bater no chão com a extremidade inferior, de forma que amorteceu a ao quebrar-se quebrou também a inferior, por de forma que esta ao violência do choque, logrando assim violência do choque, e assim logrou quebrar-se quebrou também Bradamante não morrer despedaçada. Bradamante não morrer ali despedaçada. amorteceu a violência do choque; Atordoada, sim, atordoada ficou por logrando e assim logrou Bradamante algum tempo, como se dirá no capítulo não morrer ali despedaçada. seguinte. Atordoada, sim, atordoada ficou por algum tempo, como se dirá no capítulo seguinte.

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Capítulo III

A B C 1-O assunto, em que vou entrar, é um 1-O assunto, em que vou entrar, é um supressão d‟aqueles que por sua alta nobreza reclama d‟aqueles que por sua alta nobreza um elevadíssimo estilo. Oxalá tivesse eu reclama um elevadíssimo estilo. Oxalá asas com que pudesse remontar-me com a tivesse eu asas com que pudesse pena à encantada região dos meus desejos! remontar-me com a pena à encantada Tudo quanto represente fogoso entusiasmo região dos meus desejos! Tudo quanto de coração, tudo aqui se me torna represente fogoso entusiasmo de indispensável, visto que o presente capítulo coração, tudo aqui se me torna vai dedicado ao excelso Príncipe, cujos indispensável, visto que o presente avós ilustradíssimos ora pretendo capítulo vai dedicado ao excelso enumerar. Príncipe, cujos avós ilustradíssimos ora pretendo enumerar.

2. D‟entre todos os famosos príncipes, a 2. D‟entre todos os famosos príncipes, Supressão. quem o Céu incumbe de governar a terra, a quem o Céu incumbe de governar a nenhum há que pertença a uma família terra, nenhum há que pertença a uma mais gloriosa, que na guerra, quer na paz; família mais gloriosa, que na guerra, nenhum, cuja nobreza haja conservado quer na paz; nenhum, cuja nobreza mais lustre. E o lustre, que ora conserva haja conservado mais lustre. E o essa ilustre raça, conservá-lo-á (estou certo lustre, que ora conserva essa ilustre de que me não iludem n‟isto fantasias raça, conservá-lo-á (estou certo de que poéticas), observá-lo-á em quando o me não iludem n‟isto fantasias mundo for mundo. poéticas), observá-lo-á em quando o mundo for mundo.

3. Para devidamente lhe entoar louvores, 3. Para devidamente lhe entoar Supressão seria preciso empunhar não a lira de um louvores, seria preciso empunhar não mortal, mas aquela especialíssima lira com a lira de um mortal, mas aquela que o próprio Phebo celebrou os triunfos especialíssima lira com que o próprio do soberano Júpiter quando este levou de Phebo celebrou os triunfos do vencida as fúrias dos Titãs. soberano Júpiter quando este levou de Assim eu pudesse ao menos talhar no vencida as fúrias dos Titãs. mármore, com escopro assaz digno, os Assim eu pudesse ao menos talhar no vultos que me proponho celebrar. Fraco é o mármore, com escopro assaz digno, os cinzel de que disponho: buscarei entretanto vultos que me proponho celebrar. apurar, quanto possível me seja, o lavor de Fraco é o cinzel de que disponho: que pretendo ocupar-me. buscarei entretanto apurar, quanto

possível me seja, o lavor de que pretendo ocupar-me.

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4. Entremos, porém, na matéria do presente 4. Entremos, porém, na matéria do Entremos, porém, na matéria do capítulo. Ocupemo-nos d‟aquele pérfido, presente capítulo. Ocupemo-nos presente capítulo. Ocupemo-nos cujo peito não haverá escudo nem couraça d‟aquele pérfido, cujo peito não haverá d‟aquele pérfido, cujo peito não que defender possam. escudo nem couraça que defender haverá escudo nem couraça que Volvamos ao moguinino Pinabel, o qual possam. defender possam. em seus sinistros desígnios, tinha em vista Volvamos ao moguinino Pinabel, o nada menos que fazer morrer a valorosa qual em seus sinistros designos, tinha Bradamante. em vista nada menos que fazer morrer a valorosa Bradamante.

5. E que ela efetivamente morrera, quando 5. E que ela efetivamente morrera, Assim aconteceu, mas assim não o despenhada no precipício, chegou o traidor quando despenhada no precipício, previa Pinabel e certo de haver a imaginar. chegou o traidor a imaginar. trucidado a valorosa Bradamante Com a palidez estampada no rosto, Com a palidez estampada no rosto, afastou-se da triste caverna, afastou-se então d‟aquela triste caverna, Assim aconteceu, mas assim não o enodoada agora por seu negro enodoada agora por seu negro crime, e previa Pinabel e certo de haver crime, tratou de montar outra vez à cavalo. trucidado a valorosa Bradamante e como se não bastasse um delito Por fim como se lhe não bastasse um delito afastou-se então d‟aquela da triste apenas roubou ainda o seu corcel . apenas, ocorreu-lhe a depravada idéia de o caverna, enodoada agora por seu secundar levando roubado o corcel de negro crime, e tratou de montar outra Bradamante. vez à cavalo. como se não Por fim como se lhe não bastasse um delito apenas, ocorreu-lhe a depravada idéia de o secundar levando roubado roubou ainda o seu corcel de Bradamante. 6. Deixemos, porém esse vil que, enquanto 6. Deixemos, porém esse vil que, Bradamante, ao reerguer-se anda urdindo enganos contra a vida alheia, enquanto anda urdindo enganos contra atordoadíssima da queda, esta inconscientemente preparando a sua a vida alheia, esta inconscientemente encaminhou-se para a porta que morte. E voltemos a ver a donzela que, preparando a sua morte. E voltemos a dava ingresso a uma espaçosa vítima d‟aquele traiçoeiro delito, por um ver a donzela que, vítima d‟aquele gruta triz não encontrou a um tempo morte e traiçoeiro delito, por um triz não sepultura. encontrou a um tempo morte e Bradamante, ao reerguer-se atordoadíssima sepultura. da queda, que deu encaminhou-se para a Bradamante, ao reerguer-se porta que dava ingresso numa gruta atordoadíssima da queda, que deu interior, muitíssimo espaçosa. encaminhou-se para a porta que dava ingresso a numa espaçosa gruta. interior, muitíssimo espaçosa.

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7. Era uma sala quadrada, com todas as 7. Era uma sala quadrada, com todas Era uma sala quadrada, com aspecto feições d‟uma igreja, devota e venerável. as feições d‟uma igreja aspecto de de templo, colunas de alabastro. Sustentavam-lhe o teto colunas de templo, devota e venerável. Sustentavam o teto e ao meio alabastro dispostas n‟um belíssimo estilo Sustentavam-lhe o teto colunas de erguia-se um altar onde brilhava de arquitetura. Ao meio erguia-se um altar alabastro dispostas n‟um belíssimo uma lâmpada acesa, e em frente d‟ele uma lâmpada acesa, cuja estilo de arquitetura. Sustentavam o brilhante chama derramava em derredor o teto e ao. Ao meio erguia-se um altar mais o vivo clarão. onde brilhava e em frente d‟ele uma lâmpada acesa, cuja brilhante chama derramava em derredor o mais o vivo clarão.

8. Bradamante, ao ver-se a um lugar 8. Bradamante, ao ver-se a um lugar Bradamante, ajoelhou-se com sagrado e piedoso ajoelhou com devota sagrado e piedoso ajoelhou-se com devota humildade e começando, humildade – começando, em pensamento devota humildade – e começando, em em pensamento e palavras e rezar e palavras e rezar uma oração. pensamento e palavras e rezar uma uma oração. N‟isto, abre-se em frente uma porta oração. pequenina, com estridente ranger de N‟isto, abre-se em frente uma N‟isto, abre-se em frente uma porta gonzos, dando passagem a uma criatura porta pequenina, com estridente pequenina, passagem a uma criatura feminil, descalça, de cabelos soltos, e ranger de gonzos, dando passagem a feminil, descalça, de cabelos soltos, soltas as vestes na cintura. uma criatura feminil, descalça, de e soltas as vestes na cintura. cabelos soltos, e soltas as vestes na cintura.

9. – Generosa Bradamante, diz ela, 9. – Generosa Bradamante, diz ela, – Generosa Bradamante, diz ela, é saudando por seu nome a donzela saudando por seu nome a donzela mister que saibas que a tua ajoelhada é mister saberes que a tua ajoelhada é mister que saibas saberes entrada aqui não se efetuou sem entrada aqui se efetuou sem para isso que a tua entrada aqui se não se que concorresse a vontade divina. concorrer a vontade divina. O espírito efetuou sem que concorresse para O espírito profético de Merlim profético de Merlim tinha-me anunciado isso concorrer a vontade divina. O tinha-me anunciado que virias tu já, que virias tu por um caminho insólito espírito profético de Merlim tinha-me por um caminho insólito visitar suas visitar suas relíquias santas: e aqui tenho anunciado já, que virias tu por um relíquias santas: e aqui tenho estado estado a tua espera , no fito de te revelar caminho insólito visitar suas relíquias a tua espera , a fim de revelar o que o que a teu respeito os Céus determinaram. santas: e aqui tenho estado a tua a teu respeito os Céus determinam. espera , no fito a fim de te revelar o que a teu respeito os Céus determinaramnam.

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10. É esta a gruta memorável, e 10. É esta a E nesta gruta memorável, É nesta gruta memorável, edificada antiqüíssima edificada pelo sábio e antiqüíssima edificada pelo sábio pelo sábio encantador Merlim, que encantador Merlim, de quem (certamente encantador Merlim, de quem o enganou a Dama do Lago. E aqui algumas vezes terás ouvido falar). N‟esta (certamente algumas vezes terás se conserva o sepulcro: onde jazem gruta o enganou a Dama do Lago. E aqui ouvido falar). N‟estas gruta que o corruptos seus restos mortais, se conserva o sepulcro: onde jazem enganou a Dama do Lago. E aqui se sepulcro em que ele, por corruptos seus restos mortais, sepulcro em conserva o sepulcro: onde jazem condescender com a enganadora se que ele, por condescender com a corruptos seus restos mortais, deitou vivo e morto ficou. enganadora se deitou vivo e morto ficou. sepulcro em que ele, por condescender com a enganadora se deitou vivo e morto ficou.

11. De envolta como cadáver habita lhe 11. De envolta como Junto ao, Junto ao, cadáver porém habita sua porem vivíssima a sua alma imortal, e de cadáver porém habita lhe porem alma imortal, e vivas se conservam envolta com o cadáver habitará até que vivíssima a sua alma imortal, e vivas e as falas de Merlim, tão vivas que retina a trombeta do anjo para lhe marcar a de envolta com o cadáver habitará até poderás ouvi-las sair de dentro do, estância derradeira. Vivas se conservam que retina a trombeta do anjo para lhe tumulo, revelando cousas passadas não menos as falas de Merlim, tão vivas marcar a estância derradeira. Vivas se ou futuras, que poderás claramente ouvi-las sair de conservam não menos as falas de dentro do marmóreo, tumulo, revelando e Merlim, tão vivas que poderás quem consulta sobre cousas passadas ou claramente ouvi-las sair de dentro do futuras, nunca ele deixou de responder. mármoreo, tumulo, revelando e quem consulta sobre cousas passadas ou futuras, nunca ele deixou de responder.

12. De longe de muito longe vim eu buscar 12. de De muito longe vim eu buscar De muito longe vim buscar este este sarcófago, para que Merlim me este sarcófago, para que Merlim me sarcófago, para que Merlim me ajudasse a esclarecer um alto mistério. ajudasse a esclarecer um alto mistério. ajudasse a esclarecer um alto Mas, porque senti desejos de te ver, deixei- Mas, porque senti desejos de te ver, mistério. Mas, porque senti desejos me aqui ficar; um mês a mais do que deixei-me aqui ficar; um mês a mais de te ver, deixei-me aqui ficar; tencionava demorar-me, Merlim, que do que tencionava demorar-me, Merlim, que nunca me falou senão nunca me falou senão verdades, tinham-me Merlim, que nunca me falou senão verdades tinham-me profetizado ser profetizado ser hoje o dia da tua chegada. verdades, tinham-me profetizado ser para hoje o dia da tua chegada. para hoje o dia da tua chegada.

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13. Escutando tais palavras, a filha de 13. Escutando tais palavras, a filha de 13. Escutando tais palavras, a filha Aymon ficara atônita, silenciosa, imóvel. Aymon ficara atônita, silenciosa, de Aymon ficara atônita, sonhando Perante o que em torno dela se passa, imóvel. Perante o que em torno dela ou acordada. ignora se está sonhando ou acordada. se passa, ignora se está sonhando ou Afinal, vergonhosa e modesta, com os acordada. olhos timidamente baixos, responde assim: Afinal, vergonhosa e modesta, com os - Que mérito há em mim para que profetas olhos timidamente baixos, responde se dignem ocupar-se de profetizarem a assim: [ - Que mérito há em mim minha chegada? para que profetas se dignem ocupar-se de profetizarem a minha chegada?

14.E, então jubilosa por tão extraordinária 14. E, então jubilosa por de tão E, jubilosa de tão extraordinária aventura, foi seguindo traz da maga que extraordinária aventura, foi seguindo aventura, foi seguindo maga que prontamente a conduziu a junto dá traz da maga que prontamente a prontamente a conduziu a junto à sepultura onde se achava enclausurado o conduziu a junto dá sepultura onde se sepultura de Merlim. Era um corpo e a alma de Merlim. Era um sepulcro achava enclausurado o corpo e a alma sepulcro de pedra polida, de cor de pedra dura polida, luzidia de cor de Merlim. Era um sepulcro de pedra vermelha semelhante a chamas: o vermelha semelhante a chamas: o clarão dura polida, luzidia de cor vermelha clarão que espargia, bastava para que espargia, bastava para completamente semelhante a chamas: o clarão que completamente alumiar a sala, alumiar a sala, embora lá não penetrasse espargia, bastava para completamente embora lá não penetrasse um raio um raio sequer da luz solar. alumiar a sala, embora lá não sequer da luz solar. onde outra luz penetrasse um raio sequer da luz solar. não entra. onde outra luz não entra.

15. Ou porque seja natural em certos 15. Ou porque seja natural em certos supressão mármores a condição de dissiparem as mármores a condição de dissiparem as trevas como se fossem verdadeiros fachos. trevas como se fossem verdadeiros -_ ou porque se houvesse aqui recorrido ( o fachos. -_ ou porque se houvesse aqui que mais verossímil se me afigura) a recorrido ( o que mais verossímil se sufumigações, a encantamentos, a sinais me afigura) a sufumigações, a em fim colhidos na observação dos astros, encantamentos, a sinais em fim _ o que é certo é que o sobrevidito clarão colhidos na observação dos astros, _ deixava reconhecer os variadíssimos o que é certo é que o sobrevidito primores de escultura e pinturas, com que clarão deixava reconhecer os por todos os lados estava ornamentado um variadíssimos primores de escultura e lugar tão venerável. pinturas, com que por todos os lados estava ornamentado um lugar tão venerável.

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16- Bradamante apenas penetrou naquele 16- Bradamante apenas penetrou Bradamante ouviu ressoar sentiu secreto santuário, sentiu dentre os naquele secreto santuário, ouviu dentre os despojos mortais falar-lhe despojos mortais falar-lhe em voz ressoar sentiu dentre os despojos em ao vivo espírito. claríssima ao vivo espírito de Merlim. mortais falar-lhe em voz claríssima Queria a fortuna proteger, disse-lhe, todos ao vivo espírito de Merlim. os seus desejos, ó casta e nobilíssima. Queria a fortuna proteger, disse-lhe, Terás por descendência uma ilustre raça, todos os seus desejos, ó casta e que honrará não só a Itália mas o mundo nobilíssima donzela! todo. Terás por descendência uma ilustre raça, que honrará não só a Itália mas o mundo todo.

17- O antigo sangue troiano, do qual em ti 17- O antigo sangue troiano, do qual Supressão. se reuniram as duas correntes mais puras em ti se reuniram as duas correntes há de vir um dia a ser o ornamento, a flor, mais puras há de vir um dia a ser o o júbilo de quantas ilustres famílias alumia ornamento, a flor, o júbilo de quantas o sol desde as margens do indo até as do ilustres famílias alumia o sol desde as rio Tejo, desde as do Nilo te as do margens do indo até as do rio Tejo, Danúbio, no espaço que se estende entre o desde as do Nilo te as do Danúbio, no pólo ártico e o antártico. Choverão sobre espaço que se estende entre o pólo os teus descendentes as honras supremas: ártico e o antártico. Choverão sobre os haverá neles marqueses, duques, teus descendentes as honras supremas: imperadores. haverá neles marqueses, duques, imperadores.

18. Capitães e cavaleiros serão uns: e por 18. Capitães e cavaleiros serão uns: e supressão. sua espada e por seu conselho , restituirão por sua espada e por seu conselho , eles a Itália o antigo esplendor da restituirão eles a Itália o antigo invencibilidade. Outros empenharão o esplendor da invencibilidade. Outros soberano cetro de príncipes justos que é empenharão o soberano cetro de semelhança do sábio Augusto e do sábio príncipes justos que é semelhança do numa farão reviver com seu governo suave sábio Augusto e do sábio numa farão e bondoso a felicidade dos séculos áureos. reviver com seu governo suave e bondoso a felicidade dos séculos áureos.

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19- E para que em ti se execute a vontade 19- E para que em ti se execute a E para que em ti se execute a do Céu que desde todo e sempre te há vontade do Céu que desde todo e vontade do Céu que te há escolhido escolhido por esposa de Rogério, sempre te há escolhido por para para esposa de Rogério, prossegue prossegue tu intrepidamente no caminho esposa de Rogério, prossegue tu tu intrepidamente no caminho que que encetaste, porque obstáculo nenhum intrepidamente no caminho que encetaste, porque obstáculo nenhum será capaz de tolher-te no desempenho da encetaste, porque obstáculo nenhum será capaz de tolher-te no tua missão nem impedir que ao primeiro será capaz de tolher-te no desempenho desempenho da tua missão nem impulso derrubes o salteador odioso, em da tua missão nem impedir que ao impedir que ao primeiro impulso cujo poder se acha retido todo o teu bem. primeiro impulso derrubes o salteador derrubes o salteador odioso, em odioso, em cujo poder se acha retido cujo poder se acha retido o teu bem. todo o teu bem.

20. Calou-se a voz de Merlim, depois de 20. Calou-se a voz de Merlim, depois Calou-se a voz de Merlim, depois proferidas estas palavras, - ficando á maga de proferidas estas palavras, - ficando de proferidas estas palavras, - o encargo de patentear a Bradamante a á maga o encargo de patentear revelar ficando á maga o encargo de revelar série ilustre de seus descendentes. Grande a Bradamante a série ilustre de dos a Bradamante a série ilustre dos número de espíritos haviam sido nesse seus descendentes. Grande número de seus descendentes. intuito escolhidos (se do inferno espíritos haviam sido nesse intuito provenientes ou qualquer outro sítio, quem escolhidos (se do inferno provenientes é que sabe dizê-lo?): diversos no aspecto, ou qualquer outro sítio, quem é que achavam-se todos reunidos agora no sabe dizê-lo?): diversos no aspecto, mesmo lugar. achavam-se todos reunidos agora no mesmo lugar.

21. E lá vai a maga levando outra vez 21. E lá vai a maga levando outra vez E lá vai a maga levando outra vez Bradamante para a igreja, onde Bradamante para a igreja, onde Bradamante para a igreja, traça no previamente havia descrito um circulo, que previamente havia descrito traça no chão um círculo, que pudesse pudesse conter-lhe o corpo todo entendido; chão um circulo, que pudesse conter- conter-lhe o corpo todo entendido com um palmo ainda de sobre excedente: lhe o corpo todo entendido; com um coloca-lhe por sobre a cabeça um como prevenção contra qualquer malefício palmo ainda de sobre excedente: pentáculo; recomenda-lhe que se dos espíritos, coloca-lhe por sobre a cabeça como prevenção contra qualquer conserve silenciosa, e por fim abre um pentáculo; depois recomenda-lhe que malefício dos espíritos, coloca-lhe por o livro mágico e entra em palestra se conserve atenta e silenciosa, por fim sobre a cabeça um pentáculo; depois com os demônios surjam estes da abre o livro e entra em palestra com os recomenda-lhe que se conserve atenta demônios. e silenciosa, e por fim abre o livro mágico e entra em palestra com os demônios surjam estes da

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22. Lá vem, entretanto saindo a primeira 22. Lá vem, entretanto saindo a caverna e mais e mais se acumulam caverna um grupo numeroso que mais e primeira caverna um grupo numeroso em torno do círculo sagrado mais se cumula em torno do círculo que e mais e mais se acumulam em sagrado penetrar nele é que não podem, torno do círculo sagrado penetrar nele porque lhes tolhe ingresso a linha é que não podem, porque lhes tolhe circunferencial como se fora um forte num ingresso a linha circunferencial como ou fosso profundo E, depois que em torno se fora um forte num ou fosso do circulo deram as três voltas profundo E, depois que em torno do convencionais, foram os espetos passados circulo deram as três voltas para o recinto em que existia o suntuoso convencionais, foram os espetos tumulo do grande profeta. passados para o recinto em que existia o suntuoso tumulo do grande profeta.

23. Disse então a maga a Bradamante: - Se 23. Disse então a maga a Bradamante: [ - Se eu fora a enumerar-te disse a eu fora a enumerar-te os nomes e proezas [ - Se eu fora a enumerar-te disse a maga os nomes e proezas de todos de todos aqueles que, por intermédio dos maga os nomes e proezas de todos aqueles que, por intermédio dos espíritos encantados, aqui te aparecem aqueles que, por intermédio dos espíritos encantados, aqui te antes mesmo de entrados na vida, terrestre, espíritos encantados, aqui te aparecem aparecem antes mesmo de entrados confesso-te que não sei quando poderias, antes mesmo de entrados na vida, na vida, , confesso-te que uma só partir, porque, verdade, verdade, uma só terrestre, confesso-te que não sei noite não bastaria para tanto. O que noite não bastaria para tanto. O que farei, quando poderias, partir, porque, farei, por conseqüência, é escolher por conseqüência, é escolher d‟entre eles, verdade, verdade, uma só noite não d‟entre eles, os que mais lustre segundo a ordem cronológica, os que me bastaria para tanto. O que farei, por darão ao teu amor. parecer oportuno apontar-te. conseqüência, é escolher d‟entre eles, segundo a ordem cronológica, os que me parecer oportuno apontar-te. mais lustre darão ao teu amor. 24. Repara naquele primeiro que ali vês, e 24. Repara naquele primeiro que ali supressão. que tantas semelhanças oferece contigo já vês, e que tantas semelhanças oferece na fisionomia, já no aprazível do porte. contigo já na fisionomia, já no Representante do teu sangue e aprazível do porte. Representante do representante do sangue de Rogério, na teu sangue e representante do sangue Itália será ele da tua família o chefe. Por de Rogério, na Itália será ele da tua sua mãe ficará cor-de-sangue a terra de família o chefe. Por sua mãe ficará Poitiers, e por seu braço vingada a traição e cor-de-sangue a terra de Poitiers, e por a injuria de quem lhe houver morto o pai. seu braço vingada a traição e a injuria de quem lhe houver morto o pai.

25. Por seu valor deixará ele arruinado 25. Por seu valor deixará ele arruinado supressão Desiderio, rei dos Lombardos; e em Desiderio, rei dos Lombardos; e em recompensa o Imperador lhe dará os recompensa o Imperador lhe dará os senhorios d‟Este e Calaon. Logo adiante senhorios d‟Este e Calaon. Logo aquele que estás observando é teu sobrinho adiante aquele que estás observando é Humberto, um valoroso guerreiro que será teu sobrinho Humberto, um valoroso a gloria da Hesperia e que mais de uma vez guerreiro que será a gloria da Hesperia defenderá contra os Bárbaros a santa e que mais de uma vez defenderá Igreja. contra os Bárbaros a santa Igreja.

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26. Lá está em seguida o invicto capitão 26. Lá está em seguida o invicto supressão. Alberto, que lhe há de ornar com troféu um capitão Alberto, que lhe há de ornar grande numero de templos. – A par dele com troféu um grande numero de vem Hugo, seu filho, que alcançara o templos. – A par dele vem Hugo, seu domínio de Milão e por timbre usará uma filho, que alcançara o domínio de serpente.- Aquele outro é Azzo, que por Milão e por timbre usará uma morte do irmão, herdará o reino dos serpente.- Aquele outro é Azzo, que Insubrios.-Albertazzo nos aparece depois; por morte do irmão, herdará o reino aos sábios conselhos d‟est deverá a Itália dos Insubrios.-Albertazzo nos aparece ver-se livre de Berengario e de seu filho: depois; aos sábios conselhos d‟est seus méritos lhe darão em recompensa a deverá a Itália ver-se livre de mão de Alda, filha do imperador Othon. Berengario e de seu filho: seus méritos lhe darão em recompensa a mão de Alda, filha do imperador Othon.

27. Cá temos um segundo Hugo, famoso 27. Cá temos um segundo Hugo, supressão. não menos: gloriosa descendência que não famoso não menos: gloriosa degenera do valor paterno! Defensor de descendência que não degenera do uma causa justa, competir-lhes- há reprimir valor paterno! Defensor de uma causa o orgulho dos soberbos Romanos, libertar justa, competir-lhes- há reprimir o das mãos deles o imperador Othon III e o orgulho dos soberbos Romanos, Pontífice, finalmente pôr termo a um libertar das mãos deles o imperador assedio calamitoso. Othon III e o Pontífice, finalmente pôr termo a um assedio calamitoso.

28. Segue-se Folco: cedendo ao irmão 28. Segue-se Folco: cedendo ao irmão supressão todos os seus domínios no território todos os seus domínios no território italiano, irá possuir em meio dos Alemães, italiano, irá possuir em meio dos um grão-ducado; levantará a casa de Alemães, um grão-ducado; levantará a Saxônia quando prestes a extenguir-se por casa de Saxônia quando prestes a um dos ramos, e conserva-la-a por seus extenguir-se por um dos ramos, e descendentes herdeiros da linha materna. conserva-la-a por seus descendentes herdeiros da linha materna.

29. Surge-nos a figura do segundo Azzo, 29. Surge-nos a figura do segundo È desfiou uma série numeríssima de mais inclinado a galanteios do que a Azzo, mais inclinado a galanteios do heróis que por intermédio de empresas guerreiras. Ladeiam-n‟o seus que a empresas guerreiras. Ladeiam- Bradamante viriam ao mundo – dois filhos, Bertoldo e Albertazzo. Por um n‟o seus dois filhos, Bertoldo e reis, príncipes, guerreiros, uma d‟esses será vencido o imperador. Albertazzo. Por um d‟esses será descendência tão ilustre como de Henrique II, e Parma terão ocasião de ver vencido o imperador. poucas alguém poderá se orgulhar. seus campos horrivelmente inundados de È desfiou uma série numeríssima de sangue alemão. O outro dos dois terá por heróis que por intermédio de consorte a gloriosa e prudente, e casta, Bradamante viriam ao mundo – condessa Matilde reis, príncipes, guerreiros, uma descendência tão ilustre como de poucas alguém poderá se orgulhar. Henrique II, e Parma terão ocasião de ver seus campos horrivelmente inundados de sangue alemão. O outro dos dois terá por consorte a gloriosa e prudente, e casta, condessa Matilde. 224

30. Altíssimos merecimentos de Bertoldo o 30. Altíssimos merecimentos de supressão. farão digno de tal consorcio, que não é Bertoldo o farão digno de tal honra pouco estimável o receber por dote, consorcio, que não é honra pouco com a mão da sobrinha de Henrique I, estimável o receber por dote, com a metade quase da Itália.- A Reinaldo, filho mão da sobrinha de Henrique I, querido de Bertoldo, caberá a glória de pôr metade quase da Itália.- A Reinaldo, a salvo das mãos do ímpio Frederico Barba filho querido de Bertoldo, caberá a roxa a santa Igreja de Roma. glória de pôr a salvo das mãos do ímpio Frederico Barba roxa a santa Igreja de Roma.

31. Terceiro Azzo nos aparece agora: 31. Terceiro Azzo nos aparece agora: supressão. caber-lhe-á por partilha o belo território de caber-lhe-á por partilha o belo Verona: o imperador Oton IV e o papa território de Verona: o imperador Honório II constituir-lhe-ão no território Oton IV e o papa Honório II anconez um arquezado. – Ah! mas que constituir-lhe-ão no território anconez longo seria se te eu quisesse apontar um arquezado. – Ah! mas que longo quantos do teu sangue hão de ilustrar-se seria se te eu quisesse apontar quantos empunhando o pendão do Consistório e do teu sangue hão de ilustrar-se ganhando vitórias em prol da Igreja empunhando o pendão do Consistório Romana. e ganhando vitórias em prol da Igreja Romana.

32. Ai tens Obizzo e Folco: ai tens outros 32. Ai tens Obizzo e Folco: ai tens supressão. Azzoz e outros Hugos: ai tens os dois outros Azzoz e outros Hugos: ai tens Henrique, filho e pai ambos filiados no os dois Henrique, filho e pai ambos partido guelfo; subjulgara um deles a filiados no partido guelfo; subjulgara Úmbria; nos ombros do outro desdobrar- um deles a Úmbria; nos ombros do se-á o manto ducal de Spoleto.- Queres outro desdobrar-se-á o manto ducal de saber quem é que há de estancar o sangue e Spoleto.- Queres saber quem é que há cicatrizar as chagas da Itália aflita? É Azzo de estancar o sangue e cicatrizar as V, por quem Ezzelino será vencido, e chagas da Itália aflita? É Azzo V, por aprisionado, e morto. quem Ezzelino será vencido, e aprisionado, e morto.

33. Se há tirano feroz, que por suas 33. Se há tirano feroz, que por suas Supressão atrocidades inculque ser filho de Demônio, atrocidades inculque ser filho de Ezzelino esta perfeitamente n‟esse caso: Demônio, Ezzelino esta perfeitamente imolando seus súbitos e devastando o belo n‟esse caso: imolando seus súbitos e território da Ausonia, tais atos praticará, devastando o belo território da que, postos em confronto com ele, Mario e Ausonia, tais atos praticará, que, Sylla, Marco Antonio, Nero e Caio postos em confronto com ele, Mario e Calígula, mereceriam o epíteto de Sylla, Marco Antonio, Nero e Caio clementes. Calígula, mereceriam o epíteto de clementes.

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34. Azzo V logrará o ensejo também de 34. Azzo V logrará o ensejo também vencer e completamente derrotar o de vencer e completamente derrotar o imperador Frederico II. Ditosos dias imperador Frederico II. Ditosos dias correrão sob o cetro do vencedor para correrão sob o cetro do vencedor para aquele belo país situado a beira do rio onde aquele belo país situado a beira do rio Phebo pranteou a morte de Phaetonte, e onde Phebo pranteou a morte de onde a Fabula conta que foram Phaetonte, e onde a Fabula conta que transformadas em âmbar as lagrimas das foram transformadas em âmbar as Heliades, onde finalmente Cycno acabou lagrimas das Heliades, onde por se revestir de plumagem alvissima. finalmente Cycno acabou por se Com o governo d‟esse país lhe premiará revestir de plumagem alvissima. Com seus relevantes serviços a Sé apostólica. o governo d‟esse país lhe premiará seus relevantes serviços a Sé apostólica.

35. Já me ia esquecendo mencionar-te 35. Já me ia esquecendo mencionar-te Supressão. Aldobrandino, o irmão de Azzo V. Em seu Aldobrandino, o irmão de Azzo V. tempo avançará te junto do Capitólio o Em seu tempo avançará te junto do imperador Othon IV e o exercício Capitólio o imperador Othon IV e o gibellino, cujas armas deixarão subjugados exercício gibellino, cujas armas os habitantes da Úmbria. Aldobrandino, deixarão subjugados os habitantes da querendo auxiliar n‟esta conjuntura o Úmbria. Aldobrandino, querendo soberano Pontífice, não poderá faze-lo sem auxiliar n‟esta conjuntura o soberano grossas quantias de dinheiro, e para obtê- Pontífice, não poderá faze-lo sem las recorrerá aos Florentinos. grossas quantias de dinheiro, e para obtê-las recorrerá aos Florentinos.

36. Mas, sem jóias nem penhores mais 36. Mas, sem jóias nem penhores mais valiosos que depositar como caução do valiosos que depositar como caução empréstimo, deixar-lhes-á entregue por do empréstimo, deixar-lhes-á entregue fiador seu próprio irmão: depois, erguendo por fiador seu próprio irmão: depois, vitorioso o estandarte,levará de vencida o erguendo vitorioso o estandarte,levará exercito germânico, restabelecerá o de vencida o exercito germânico, governo da Santa Sé, mandará supliciar os restabelecerá o governo da Santa Sé, condes de Celano, e, sempre em serviço do mandará supliciar os condes de Sumo Pontífice, morrerá na flor dos anos. Celano, e, sempre em serviço do Sumo Pontífice, morrerá na flor dos anos.

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37. Do território que decorre entre o mar e 37. Do território que decorre entre o supressão. os Apenninos, desde Troento até o Isauro, mar e os Apenninos, desde Troento deixará ele a sucessão na pessoa de seu até o Isauro, deixará ele a sucessão na irmão Azzo, que simultaneamente lhe pessoa de seu irmão Azzo, que herdará dotes altíssimos de simultaneamente lhe herdará dotes magnanimidade, fidelidade, e virtude, - altíssimos de magnanimidade, qualidades estas superiores sem duvida ao fidelidade, e virtude, - qualidades ouro e ás pedras preciosas, visto que as estas superiores sem duvida ao ouro e riquezas materiais pode a fortuna dá-las ou ás pedras preciosas, visto que as tirá-las conforme lhe apraza, mas... sobre a riquezas materiais pode a fortuna dá- virtude é que ela não tem poder algum. las ou tirá-las conforme lhe apraza, mas... sobre a virtude é que ela não tem poder algum.

38. E ali verás agora Reinaldo, cujo valor 38. E ali verás agora Reinaldo, cujo supressão. não será por certo menos brilhante, uma valor não será por certo menos vez que a morte ou a invejosa fortuna se brilhante, uma vez que a morte ou a não oponham a que ele concorra para a invejosa fortuna se não oponham a gloriosa exaltação da sua ilustre família. que ele concorra para a gloriosa D‟aqui lhe estou escutando já os lamentos, exaltação da sua ilustre família. por ele soltos em Nápoles, onde ficará por D‟aqui lhe estou escutando já os fiador de seu pai. lamentos, por ele soltos em Nápoles, onde ficará por fiador de seu pai.

39. Obizzo, que em seguida vemos, 39. Obizzo, que em seguida vemos, supressão. sucedera a sua avô, sendo eleito príncipe sucedera a sua avô, sendo eleito em anos mui verdes; em seus belos príncipe em anos mui verdes; em seus domínios incorporar-se-á a risonha cidade belos domínios incorporar-se-á a de Rogério e a altiva Modena: pelas risonha cidade de Rogério e a altiva valorosas quanlidades de Obizzo, os povos Modena: pelas valorosas quanlidades unanimemente o escolherão para governa- de Obizzo, os povos unanimemente o los. Azzo VI, um dos filhos de Obizzo, um escolherão para governa-los. Azzo VI, dos ganfaloneiros da Santa Cruzada, um dos filhos de Obizzo, um dos presidirá ao ducado de Andria juntamente ganfaloneiros da Santa Cruzada, com a filha de Carlos II rei da Sicília. presidirá ao ducado de Andria juntamente com a filha de Carlos II rei da Sicília.

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40. Naquele grupo formoso e amável, que 40. Naquele grupo formoso e amável, supressão. ali vês, está o escol dos príncipes ilustres: que ali vês, está o escol dos príncipes Obizzo, Aldobrandino, Nicolau por ilustres: Obizzo, Aldobrandino, cognome o coxo, e o clementissimo Nicolau por cognome o coxo, e o Alberto. Para não me alongar clementissimo Alberto. Para não me excessivamente é que te não digo a forma alongar excessivamente é que te não por que eles conseguirão incorporar na sua digo a forma por que eles conseguirão bela soberania Faenza e Adria, sobretudo incorporar na sua bela soberania Adria, que mereceu as honras de dar seu Faenza e Adria, sobretudo Adria, que nome ás águas salgadas do mar vizinho. mereceu as honras de dar seu nome ás águas salgadas do mar vizinho.

41. Lograrão eles também possuir: a 41. Lograrão eles também possuir: a supressão. povoação que pela abundancia de suas povoação que pela abundancia de suas rosas obteve na língua dos gregos o nome rosas obteve na língua dos gregos o encantador de Rhodigio; a cidade que em nome encantador de Rhodigio; a meio de piscosas lagoas esta de continuo cidade que em meio de piscosas ameaçada pela inundação das bocas do Pó, lagoas esta de continuo ameaçada pela e onde habita gente sempre desejosa de ver inundação das bocas do Pó, e onde agitado o mar pela fúria dos ventos; habita gente sempre desejosa de ver finalmente Argenta e Lugo, e mil outras agitado o mar pela fúria dos ventos; fortalezas, e mil outras cidades finalmente Argenta e Lugo, e mil populosíssimas outras fortalezas, e mil outras cidades populosíssimas.

42. Ai nos surge agora Nicolau: ainda 42. Ai nos surge agora Nicolau: ainda supressão. criança, caber-lhe-á ser aclamado criança, caber-lhe-á ser aclamado soberano; de encontro a ele quebrar-se-ão soberano; de encontro a ele quebrar- írritos e nulos os desígnios de Thadeu, na se-ão írritos e nulos os desígnios de guerra civil que este lhe promover. De Thadeu, na guerra civil que este lhe pequenino se acostumará aos fadigosos promover. De pequenino se lavores do combate, e se irá dispondo para acostumará aos fadigosos lavores do se tornar notável entre os mais notáveis combate, e se irá dispondo para se guerreiros. tornar notável entre os mais notáveis guerreiros.

43. Conjurações de seus súbditos rebeldes, 43. Conjurações de seus súbditos supressão. saberá ele sufoca-las, com grande perda rebeldes, saberá ele sufoca-las, com para os vencidos. Iludir-lhe o espírito sagaz grande perda para os vencidos. Iludir- será porventura dificílimo: disto se lhe o espírito sagaz será porventura convencerá, mas quando já for tarde dificílimo: disto se convencerá, mas bastante, o cruel tirano de Règio e de quando já for tarde bastante, o cruel Parma, Othon III, a quem Nicolau tirará tirano de Règio e de Parma, Othon III, simultaneamente os domínios e a própria a quem Nicolau tirará vida. simultaneamente os domínios e a própria vida

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44. Ira sempre esta ilustre família 44. Ira sempre esta ilustre família supressão. crescendo em poderio, e sempre crescendo em poderio, e sempre caminhando na estrada da retidão, - sem caminhando na estrada da retidão, - nunca a ninguém fazer mal, salvo a sem nunca a ninguém fazer mal, salvo hipótese de provocantes injurias com que a a hipótese de provocantes injurias hostilizem. Por isso o Criador do Mundo com que a hostilizem. Por isso o permitirá que ela vá durando e Criador do Mundo permitirá que ela prosperando cada vez mais, enquanto durar vá durando e prosperando cada vez a máquina do Universo. mais, enquanto durar a máquina do Universo.

45. Vira depois Leonel, - E vira o primeiro 45. Vira depois Leonel, - E vira o supressão. duque, o inepto Borso, que será dos seus primeiro duque, o inepto Borso, que tempos honra e gloria. Governando em será dos seus tempos honra e gloria. paz, alcançara triunfo maior que todos Governando em paz, alcançara triunfo quantos por conquista logrem assenhorear- maior que todos quantos por conquista se de territórios estranhos. Manietando as logrem assenhorear-se de territórios fúrias de Marte, empenhará todos os estranhos. Manietando as fúrias de cuidados em que viva feliz o seu povo. Marte, empenhará todos os cuidados em que viva feliz o seu povo.

46. Vira Hercules em seguida, com justos 46. Vira Hercules em seguida, com supressão. motivos queixoso de seus vizinhos. O justos motivos queixoso de seus auxilio que lhes prestou valorosamente em vizinhos. O auxilio que lhes prestou Budrio merecia acaso que, em recompensa, valorosamente em Budrio merecia o viessem hostilizar?! Confesso que não acaso que, em recompensa, o viessem sei decidir onde é que este príncipe hostilizar?! Confesso que não sei ganhará mais gloria, se na paz, se na decidir onde é que este príncipe guerra. ganhará mais gloria, se na paz, se na guerra.

47. Os povos da Apulia, da Calábria e da 47. Os povos da Apulia, da Calábria e supressão. Lucania, conservarão por longo tempo da Lucania, conservarão por longo lembrança de suas façanhas naqueles tempo lembrança de suas façanhas campos em que o rei dos Catalães há de naqueles campos em que o rei dos conceder-lhe pela primeira vez a honra Catalães há de conceder-lhe pela gloriosa do combate singular. Por mais de primeira vez a honra gloriosa do uma Victoria logrará ficar seu nome combate singular. Por mais de uma inscrito entre os dos capitães invictos; seu Victoria logrará ficar seu nome mérito lhe proporcionará entrar no gozo inscrito entre os dos capitães invictos; efetivo de uma soberania, que mais de seu mérito lhe proporcionará entrar no trinta anos antes lhe pertencerá por direito. gozo efetivo de uma soberania, que mais de trinta anos antes lhe pertencerá por direito.

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48. Grandíssimos favores lhe deverá seu 48. Grandíssimos favores lhe deverá supressão. povo. E não me refiro nisto a conversão seu povo. E não me refiro nisto a dos pântanos em campos fertilíssimos; nem conversão dos pântanos em campos aos melhoramentos de Ferrara, defendida fertilíssimos; nem aos melhoramentos por ele com obras de fortificação, adornada de Ferrara, defendida por ele com com templos, com palácios, com teatros. obras de fortificação, adornada com templos, com palácios, com teatros.

49. Também me não refiro á valentia com 49. Também me não refiro á valentia supressão. que saberá defendel-a contra as garras com que saberá defendel-a contra as potentes do Leão de S. Marcos, - nem á garras potentes do Leão de S. Marcos, prudência com que logrará conserva-la no - nem á prudência com que logrará doce remanso da paz, sem temores, sem conserva-la no doce remanso da paz, angustias, sem contribuições de guerra, no sem temores, sem angustias, sem tempo em que todo o resto da bela Itália contribuições de guerra, no tempo em andar a ferro e a fogo por causa da França. que todo o resto da bela Itália andar a ferro e a fogo por causa da França.

50. Tudo isso é de pouca monta perante o 50. Tudo isso é de pouca monta supressão. que país lhe ficará tão somente devendo na perante o que país lhe ficará tão inclita prole de tão ilustre príncipe. O justo somente devendo na inclita prole de Affonso e o benévolo Hipólito merecerão tão ilustre príncipe. O justo Affonso e comparar-se aos dois lendários filhos do o benévolo Hipólito merecerão Cysne de Tyndaro, cada um dos quais comparar-se aos dois lendários filhos alternadamente se privava da luz celestial do Cysne de Tyndaro, cada um dos para temporariamente furtar o outro ás quais alternadamente se privava da luz trevas mortais. Hipógrifo e Affonso celestial para temporariamente furtar o estarão sempre promptos, um pelo outro, a outro ás trevas mortais. Hipógrifo e corajosamente afrontarem a morte. Affonso estarão sempre promptos, um pelo outro, a corajosamente afrontarem a morte.

51. A intima afeição dos dois dará em 51. A intima afeição dos dois dará em supressão. resultado para seu povo uma segurança resultado para seu povo uma maior do que se lhe coubesse ter segurança maior do que se lhe guarnecido pela mão de Vulcano com uma coubesse ter guarnecido pela mão de dupla cinta de ferro as muralhas da cidade. Vulcano com uma dupla cinta de ferro Bondade e sabedoria aliar-se-ão por tal as muralhas da cidade. Bondade e forma em Affonso, que no século seguinte sabedoria aliar-se-ão por tal forma em há de haver quem suponha ter sido ali o Affonso, que no século seguinte há de segundo reinado de Astréa. haver quem suponha ter sido ali o segundo reinado de Astréa.

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52. Prudência e valor, tais quais tinha seu 52. Prudência e valor, tais quais tinha supressão. pai, precisará de ter este príncipe, - que seu pai, precisará de ter este príncipe, por um lado se encontrará a braços com os - que por um lado se encontrará a Venezianos, e por outro com uma potencia, braços com os Venezianos, e por á qual não sei se ele mais deva chamar outro com uma potencia, á qual não madrasta do que a mãe (se é mãe, sei se ele mais deva chamar madrasta confessemos que faz lembrar para com do que a mãe (se é mãe, confessemos Affonso o procedimento de Medéa ou de que faz lembrar para com Affonso o Progne para com os filhos). procedimento de Medéa ou de Progne para com os filhos).

53. Sempre que ele de Ferrara sair, á testa 53. Sempre que ele de Ferrara sair, á Supressão. de seus súbditos fieis, triunfará testa de seus súbditos fieis, triunfará brilhantemente de seus inimigos, quer seja brilhantemente de seus inimigos, quer de dia ou de noite, quer seja por terra ou seja de dia ou de noite, quer seja por por mar. Nisto hão de por fim atentar os terra ou por mar. Nisto hão de por fim povos da Romanha, imprudentemente atentar os povos da Romanha, induzidos a hostilizarem a um país vizinho imprudentemente induzidos a que primeiro havia sido aliado seu; o hostilizarem a um país vizinho que território que medeia entre o Pó, o primeiro havia sido aliado seu; o Santerno, e o Zanniolo, ficará banhado território que medeia entre o Pó, o com o sangue deles. Santerno, e o Zanniolo, ficará banhado com o sangue deles.

54. Por semelhante provação hão de passar 54. Por semelhante provação hão de Supressão. os Hespanhoes assoldadados pelo Sumo passar os Hespanhoes assoldadados Pontífice quando Affonso lhes retomar pelo Sumo Pontífice quando Affonso Bastia, por eles anteriormente raptada com lhes retomar Bastia, por eles a aleivosa morte do respectivo castelão. anteriormente raptada com a aleivosa Em castigo desse ato infamíssimo, não morte do respectivo castelão. Em dará a ninguém, começando no castigo desse ato infamíssimo, não comandante e acabando no infimo dos dará a ninguém, começando no soldados, para que de todos nem um comandante e acabando no infimo dos sobreviva que possa levar a Roma noticia soldados, para que de todos nem um de sua desforra. sobreviva que possa levar a Roma noticia de sua desforra.

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55. Á sua prudência e ao valor de seu 55. Á sua prudência e ao valor de seu Supressão braço caberá nos campos da Romanha a braço caberá nos campos da Romanha honra de fazer com que o exercito francês a honra de fazer com que o exercito fique vitorioso contra o Pontífice e contra a francês fique vitorioso contra o Hespanha. Sangue humano correrá em Pontífice e contra a Hespanha. Sangue abundancia tal, que inundará toda a humano correrá em abundancia tal, planície, nadando nele os cavalos que inundará toda a planície, nadando sobreviventes: chegarão mesmo a ficar nele os cavalos sobreviventes: cadáveres insepultos, por faltar quem os chegarão mesmo a ficar cadáveres enterre, de Alemães, de Gregos, de insepultos, por faltar quem os enterre, Hespanhoes, de Italianos, de Franceses. de Alemães, de Gregos, de Hespanhoes, de Italianos, de Franceses.

56. Aquele que, em vestes pontificais, traz 56. Aquele que, em vestes pontificais, Supressão. na cabeça o chapéu de púrpura, e o liberal, traz na cabeça o chapéu de púrpura, e magnânimo e sublime Hipólito, cardeal da o liberal, magnânimo e sublime Igreja Romana, e merecedor de quem em Hipólito, cardeal da Igreja Romana, e todas as línguas eternamente o elogiem merecedor de quem em todas as tanta em prosa como um verso. O justo línguas eternamente o elogiem tanta Céu quer que no seu tempo floresça um em prosa como um verso. O justo Céu Virgilio, como aquele que floresceu em quer que no seu tempo floresça um tempo do imperador Augusto. Virgilio, como aquele que floresceu em tempo do imperador Augusto.

57. Hipólito, abrilhantando pelos feitos 57. Hipólito, abrilhantando pelos Supressão. próprios a sua ilustre família, será feitos próprios a sua ilustre família, comparável ao Sol que, iluminando a será comparável ao Sol que, maquina do mundo, resplende com fulgor iluminando a maquina do mundo, incomparável entre os mais astros. Com resplende com fulgor incomparável pequeníssima comitiva de peões, e mais entre os mais astros. Com pequena ainda de cavaleiros, irá triste pequeníssima comitiva de peões, e quando sair de Ferrara, mas volvera mais pequena ainda de cavaleiros, irá radiante por trazer como presa de guerra triste quando sair de Ferrara, mas um espantoso numero de embarcações, volvera radiante por trazer como presa entre elas quinze galés. de guerra um espantoso numero de embarcações, entre elas quinze galés.

58. Lá temos depois os dois Sigismundo. – 58. Lá temos depois os dois supressão. Lá temos os cinco filhos queridos de Sigismundo. – Lá temos os cinco Affonso, cuja fama nem montes nem mares filhos queridos de Affonso, cuja fama impedirão de chegar a todos os pontos do nem montes nem mares impedirão de mundo; um d‟esses, Hercules II, será genro chegar a todos os pontos do mundo; do rei da França: outro, por nome um d‟esses, Hercules II, será genro do Hipólito, igualara seu tio no primor de suas rei da França: outro, por nome ações. Hipólito, igualara seu tio no primor de suas ações.

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59. Francisco se chama o terceiro; Affonso 59. Francisco se chama o terceiro; supressão. é o nome dos dois restantes.- Mas.... Affonso é o nome dos dois restantes.- conforme te disse já, se eu fora a mostrar- Mas.... conforme te disse já, se eu fora te da tua descendência os ramos todos que a mostrar-te da tua descendência os tanto lustre acrescentarão pelo seu valor, ramos todos que tanto lustre crê que por muitos dias e muitas noites me acrescentarão pelo seu valor, crê que ficarias aqui escutando. Não julgas por muitos dias e muitas noites me acertado que encerremos n‟este ponto a ficarias aqui escutando. Não julgas exposição, e que deixemos os espectros acertado que encerremos n‟este ponto retirar-se? a exposição, e que deixemos os espectros retirar-se?

60. Com o assentimento de Bradamante, a 60. Com o assentimento de supressão. maga fechou o livro. E logo as sombras Bradamante, a maga fechou o livro. E dos espectros volveram precipitadamente logo as sombras dos espectros ao recinto em que se achava o sepulcro de volveram precipitadamente ao recinto Merlim. Bradamante, apenas lhe foi em que se achava o sepulcro de concedido falar, perguntou: - “ Quem eram Merlim. Bradamante, apenas lhe foi aquele dois tão tristes que notei entre concedido falar, perguntou: - “ Quem Hipólito e Affonso?” eram aquele dois tão tristes que notei entre Hipólito e Affonso?”

61. “ Suspirando, e com fronte inclinada 61. “ Suspirando, e com fronte supressão. para o chão, dir-se-ia que lhes faltava a inclinada para o chão, dir-se-ia que coragem. Afigurou-se-me ate, que seus lhes faltava a coragem. Afigurou-se- irmãos desviavam deles o olhar, como me ate, que seus irmãos desviavam esquivando-se-lhes. Transtornaram-se as deles o olhar, como esquivando-se- feições da maga, ao escutar tal pergunta. E, lhes. Transtornaram-se as feições da lavada em lagrima, exclamou: São maga, ao escutar tal pergunta. E, infelizes, cujo infortúnio vem a filiar-se na lavada em lagrima, exclamou: São perniciosa instigação de homens perversos! infelizes, cujo infortúnio vem a filiar- se na perniciosa instigação de homens perversos!

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62. Oxalá que o seu delito não consiga 62. Oxalá que o seu delito não consiga Finda a revelação, a maga disse: estorvar a clemência por que tanto se estorvar a clemência por que tanto se - Não queiras saber o resto; deixa- distingue a generosa prole do benévolo distingue a generosa prole do te ficar com a doce impressão das Hercules! Para com aqueles dois benévolo Hercules! Para com aqueles glorias que apontei, desgraçados, que pertencem a essa mesma dois desgraçados, que pertencem a família, Oxalá que o rigor da justiça fique essa mesma família, Oxalá que o rigor substituído pela compaixão! da justiça fique substituído pela E a maga acrescentou em voz mais baixa: compaixão! Não queiras saber o resto; deixa-te ficar E a maga acrescentou em voz mais com a doce impressão das glorias que baixa: Finda a revelação, a maga apontei, nem te pese que eu me esquive a disse: [ - Não queiras saber o amargurar-ta. resto; deixa-te ficar com a doce impressão das glorias que apontei, nem te pese que eu me esquive a amargurar-ta.

63. Logo que no céu despontem os 63. Logo que no céo despontem os Logo que no céu despontem os primeiros alvores, hás de ir comigo pelas primeiros alvores, hás de ir comigo primeiros alvores, hás de ir comigo mais curta vereda que d‟aqui nos conduza pelas mais curta vereda que d‟aqui nos ao luzente castelo em que Rogério ao luzente castelo em que Rogério está conduza ao luzente castelo em que está encarcerado. Servir-te-ei de encarcerado. Servir-te-ei de companheira e Rogério está encarcerado. Servir-te-ei companheira e guia até que fiques de guia até que fiques livre da emaranhada de companheira e de guia até que livre da emaranhada floresta. E, floresta. E, quando chegarmos á beira-mar, fiques livre da emaranhada floresta. quando chegarmos á beira-mar, ensinar-te-ei o caminho por forma que dele E, quando chegarmos á beira-mar, ensinar-te-ei o caminho de forma não possas extraviar-te. ensinar-te-ei o caminho por de forma que neste não possas. que dele neste não possas extraviar- tes errar.

64. Assim passou a noite a intrépida 64. Assim passou a noite a intrépida Quando no céu raiaram os primeiros Bradamante, empregando parte dela em Bradamante, empregando parte dela rubores da aurora, saiu Bradamante escutar os conselhos de Merlim, que a em escutar os conselhos de Merlim, da caverna, por um caminho persuadiu a quanto antes ir em busca do que a persuadiu a quanto antes ir em secreto, em companhia da maga. meu amável Rogério. busca do meu amável Rogério. E quando no céu raiaram os primeiros E Qquando no céu raiaram os rubores da aurora, saiu ela então da primeiros rubores da aurora, saiu ela caverna, subterrânea por um caminho então Bradamante da caverna, escuro e secreto, em companhia da maga. subterrânea por um caminho escuro e secreto, em companhia da maga.

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65. Assim chegaram ambas a um 65. Assim chegaram ambas a um Assim chegaram ambas a um precipício oculto entre montanhas, que precipício oculto entre montanhas, precipício oculto entre montanhas, para o comum dos mortais eram realmente que para o comum dos mortais eram que para o comum dos mortais eram inacessíveis. E um dia todo, sem realmente inacessíveisl. E um o dia realmente inacessível. E o dia todo, descansar, andaram trepando fragas e todo, sem descansar, andaram sem descansar, andaram trepando atravessando torrentes. Para disfarçar o trepando fragas e atravessando fragas e atravessando torrentes. Para enfado inerente a semelhante jornada, e torrentes. Para disfarçar o enfado disfarçar o enfado da jornada, para em certo modo suavizar a aspereza inerente da a semelhante jornada, e entretinham-se em discorrer sobre a dos caminhos, entretinham-se discorrendo para em certo modo suavizar a façanhas do nigromante. agradavelmente sobre o que mais interessa aspereza dos caminhos, entretinham- lhes poderia despertar se discorrendo agradavelmente sobre o que mais interessa lhes poderia despertar em discorrer sobre a façanhas do nigromante.

66..E a conversação teve especialmente por 66. E a conversação teve - Pallas ou Marte que tu fosse, lhe assunto o modo por que Bradamante devia especialmente por assunto o modo por dizia a maga, e ainda sua trouxesse por em pratica suas astúcias. que Bradamante devia por em pratica comitiva de guerreiros maior que a - Pallas ou Marte que tu fosse, lhe dizia a suas astúcias. do rei Carlos Magno, fica certa de maga, e quando mesmo trouxesse comitiva - Pallas ou Marte que tu fosse, lhe que não lograrias resistir pela força maior de guerreiros que o próprio rei dizia a maga, e quando mesmo e a um nigromante daqueles. Seu Carlos Magno, ou o rei Agramante fica ainda sua trouxesse comitiva maior certa de que não lograrias resistir pela de guerreiros maior que a do que o força a um nigromante daqueles. próprio rei Carlos Magno, ou o rei Agramante fica certa de que não lograrias resistir pela força a um nigromante daqueles. Seu

67. Se o não sabes dir-te-ei: o seu 67. Se o não sabes dir-te-ei: o seu inexpugnável castelo assenta n‟um inexpugnável castelo assenta n‟um rochedo inexpugnável castelo assenta n‟um rochedo altíssimo, circundado de altíssimo, circundado por muralhas de aço. rochedo altíssimo, circundado por de muralhas de aço. O corcel que ele O corcel em que ele monta, salta e galopa muralhas de aço. O corcel em que ele monta, salta e galopa nos ares. nos ares. Junta-se a isto o celebre / escudo, monta, salta e galopa nos ares. Junta- Junta-se a isto o celebre / escudo, mortais cujo fulgor possui o condão de se a isto o celebre / escudo, mortais cujo fulgor possui o condão de ofuscar estontear e fazer perder os sentidos cujo fulgor possui o condão de ofuscar ofuscar e fazer perder os sentidos aquém nele fita os olhos, ( ao acaso o dono estontear e fazer perder os sentidos aquém nele fita os olhos, o põe a descoberto). aquém nele fita os olhos, ( ao acaso o dono o põe a descoberto).

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68. Replicar-me-ás talvez que, para escapar 68. Replicar-me-ás talvez que, para Replicar-me-ás que, para fugir a a esse perigo, conservarás fechados os escapar fugir a esse perigo, esse perigo, conservarás fechados olhos, em enquanto combateres. Mas ... conservarás fechados os olhos, em os olhos, Mas ... como poderias como poderias então calcular as tuas enquanto combateres. Mas ... como então calcular os teus golpes? Para paradas e as tuas respostas. Para evitares o poderias então calcular as tuas paradas evitares o efeito mortal do escudo efeito mortal daquele escudo deslumbrante e as tuas respostas. os teus golpes? há um talismã que vou indicar-te, e bem assim para neutralizares todos os Para evitares o efeito mortal daquele único infalível em todo o mundo. mais encantamentos de semelhante mágica, do escudo deslumbrante e bem assim há um talismã que vou indicar-te, único para neutralizares todos os mais infalível em todo o mundo. encantamentos de semelhante mágica, há um talismã que vou indicar-te, único infalível em todo o mundo.

69. Esse talismã é um anel, roubado em 69. Esse talismã é um anel, roubado Esse talismã é um anel, roubado em tempos na Índia a uma rainha indiana, e em tempos na Índia a uma rainha tempos a uma rainha indiana, e dado por Agramante, rei da África, a um indiana, e dado por Agramante, rei da dado por Agramante, a um de seus de seus barões, chamado Brunello, o qual África, a um de seus barões, chamado barões, chamado Brunello, Quem poucas milhas se acha distante de nós. Brunello, o qual poucas milhas se traz no dedo esse anel, está a Quem possui no dedo esse anel, está acha distante de nós. Quem traz coberto de malefício dos completamente a coberto contra-o possui no dedo esse anel, está encantamentos. malefício dos encantamentos. completamente a coberto contra-o de malefício dos encantamentos.

70. Brunello, que é possuidor de tão 70. Brunello, que é possuidor de tão Brunello recebeu de Agramante o maravilhoso talismã, pode considerar-se maravilhoso talismã, pode considerar- encargo de ir, com o auxilio do em aptidões para enganos a furtos se em aptidões para enganos a furtos anel, restituir a liberdade a Rogério: perfeitamente comparável no nigromante perfeitamente comparável no assim o prometeu ele a seu amo, do escudo no que respeita a malefícios de nigromante do escudo no que respeita para quem a pessoa de Rogério magia. Pelas praticas de sua astúcia a malefícios de magia. Pelas praticas representa objeto de partícula Brunello recebeu de Agramante o encargo de sua astúcia Brunello recebeu de estima. de ir, com o auxilio do anel, restituir a Agramante o encargo de ir, com o liberdade a Rogério: assim o prometeu ele auxilio do anel, restituir a liberdade a a seu amo, para quem a pessoa de Rogério Rogério: assim o prometeu ele a seu representa objeto da mais partícula estima. amo, para quem a pessoa de Rogério representa objeto da mais de partícula estima.

71. Porém, para que o teu Rogério fique 71. Porem,.. para que o teu Rogério Porém, para que o teu Rogério fique devendo a ti somente, o não ao rei fique devendo a ti somente, o não ao devendo a ti somente, o favor de Agramante o, favor de sua libertação, rei Agramante o, favor de sua sua libertação, ensinar-te-ei os ensinar-te-ei os meios de que te cumpre libertação, ensinar-te-ei os meios de meios de que te cumpre lançar mão. lançar mão. Escuta-me: hás de ir durante que te cumpre lançar mão. Escuta-me: Escuta-me: hás de ir durante três três dias costeando as areias litorais que em hás de ir durante três dias costeando dias costeando as areias da praia breve descobriremos; ao terceiro dia as areias litorais da praia que em que breve descobriremos; ao encontra-te hás numa pousada com o breve descobriremos; ao terceiro dia terceiro dia encontra-te hás um possuidor do anel. encontra-te hás numa pousada um pouso com o dono do anel. pouso com o possuidor dono do anel.

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72. Para que os reconheças, te vou dar dele 72. Para que os reconheças, te vou dar Brunello tem a estatura inferior a os sinais: Brunello tem a estatura inferior a dele os sinais: Brunello tem a seis palmos; cabelos, preto e crespo; seis palmos; cabelos, preto e sobremaneira estatura inferior a seis palmos; crespas as sobrancelhas também; crespo; crespas as sobrancelhas também; cabelos, preto e sobremaneira crespo; face pálida, muito barbada; olhos face pálida, e fusca, muito barbada; olhos crespas as sobrancelhas também; face um tanto envesgado; nariz opacos e um tanto envesgado; nariz pálida, e fusca, muito barbada; olhos deprimido: deprimido: e... (para que nada falte dizer- opados e um tanto envesgado; nariz te) vestuário estreito e curto, fazendo deprimido: e... ( para que nada falte lembrar o de um correio. dizer-te) vestuário estreito e curto, fazendo lembrar o de um correio.

73. Não faltará o ensejo de conversares 73. Não faltará o ensejo de Não faltará o ensejo de conversares com ele em assunto de encantamentos: conversares com ele em assunto de com ele sobre encantamentos: podes dizer-lhe que tens (como é verdade) sobre encantamentos: podes dizer-lhe podes dizer-lhe que tens grandíssimo desejo de brigar com o que tens (como é verdade) grandíssimo desejo de brigar com o mágico do castelo; mas livra-te de lhe grandíssimo desejo de brigar com o mágico do castelo; mas livra-te de dares a entender que sabes da existência do mágico do castelo; mas livra-te de lhe lhe dares a entender que sabes do anel. Há de ele então oferecer-se para te a dares a entender que sabes da anel. Há de ele então oferecer-se ensinar o caminho te junto a rocha em que existência do anel. Há de ele então para te ensinar o caminho da mora o nigromante. oferecer-se para te a ensinar o rocha em que mora o nigromante. caminho te junto a da rocha em que mora o nigromante.

74. Aceitando-lhe a companhia, 74. Aceitando-lhe a companhia, Aceitando-lhe a companhia, caminharás atrás dele. E, quando avistares caminharás atrás dele. E, quando caminharás atrás dele. E, quando a rocha, trata de o matar: para isso, é mister avistares a rocha, trata de o matar: avistares a rocha, trata de o matar: que ponhas de parte os sentimentos para isso, é mister que ponhas de parte para isso, é mister que ponhas de compassivos, e que o teu companheiro e os sentimentos compassivos, e que o parte os sentimentos compassivos, e não adivinhe os intentos, - porque, se lhe teu companheiro e não adivinhe teus que o teu companheiro não desses tempo de recorrer ao talismã, vê-lo os intentos, - porque, se lhe desses adivinhe teus intentos, - porque, se ias imediatamente desaparecer-te da vista, tempo de recorrer ao talismã, vê-lo ias lhe desses tempo de recorrer ao apenas o tal anel mágico lhe tocasse na imediatamente desaparecer-te da vista, talismã, vê-lo ias imediatamente boca. apenas o tal anel mágico lhe tocasse desaparecer-te da vista, apenas o na boca. anel mágico lhe tocasse boca.

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75. Assim conferenciando , chegaram as 75. Assim conferenciando 75. Assim concertando, chegaram duas ao sitio em que desemboca, a pouca concertando, chegaram as duas ao as duas ao sitio em que desemboca, distancia de Bordeus, o Garonna. Ai, sitio em que desemboca, a pouca a pouca distancia de Bordeus, o consagrando ambas á sua mutua despedida distancia de Bordeus, o Garonna. Ai, Garonna. Ai, consagraram a algumas lagrimas separaram-se, consagrandoram ambas á sua mutua a despedida algumas lágrimas e finalmente. despedida algumas lagrimas e separaram-se, finalmente. Sem descançar de noite, nem de dia, lá vai separaram-se, finalmente. Sem descançar de noite, nem de dia, seguindo seu caminho a filha de Aymon, Sem descançar de noite, nem de dia, lá vai seguindo seu caminho a filha unicamente preocupada com a idéia de lá vai seguindo seu caminho a filha de de Aymon, unicamente preocupada libertar o amante: ao fim de três dias em Aymon, unicamente preocupada com com a idéia de libertar o amante: ao constante jornadear, foi ter a uma a idéia de libertar o amante: ao fim de fim de três dias em constante estalagem, onde já Brunello estava três dias em constante jornadear, foi jornadear, foi ter a uma estalagem, albergado. ter a uma estalagem, onde já Brunello onde já Brunello estava assustado. estava albergado. assustado.

76. Pela descrição que lhe tinham feito do 76. Pela descrição que lhe feita Pela descrição feita logo o homem logo ela o reconhece: pergunta-lhe tinham feito do homem logo ela o reconhece: pergunta-lhe de onde de onde vem e para onde vai; Brunello reconhece: pergunta-lhe de onde vem vem e para onde vai; Brunello responde-lhe mentindo em tudo quanto diz; e para onde vai; Brunello responde- responde-lhe mentindo em tudo Bradamante, por seu lado, prevenida como lhe mentindo em tudo quanto diz; quanto diz; Bradamante, por seu estava, não faz também senão dissimular e Bradamante, por seu lado, prevenida lado, prevenida como estava, não mentir, e trata de completamente o iludir como estava, não faz também senão faz também senão dissimular e com respeito a pátria, família, religião, dissimular e mentir, e trata de mentir, e trata de o iludir com nome e sexo de sua pessoa. completamente o iludir com respeito a respeito a pátria, família, religião, pátria, família, religião, nome e sexo nome e sexo de sua pessoa. de sua pessoa.

77. Entretanto vai lhe amiudadas vezes 77. Entretanto vai lhe amiudadas supressão. fixando nas mãos um olhar perscrutador, vezes fixando nas mãos um olhar sempre com o receio de ser por ele perscrutador, sempre com o receio de roubada: informada como esta de seus ser por ele roubada: informada como procedentes nem mesmo consente que ele esta de seus procedentes nem mesmo vá colocar-se-lhe ao lado. consente que ele vá colocar-se-lhe ao Estavam Brunello e Bradamante em frente lado. um do outro, quando súbito chegou aos Estavam Brunello e Bradamante em ouvidos de ambos um inesperado rumor... frente um do outro, quando súbito chegou aos ouvidos de ambos um inesperado rumor...

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Capítulo IV

A B C 1-Censurável embora, e quase 1-Censurável embora, e quase sempre Embora censurável, e indicativa sempre indicativa de um espírito indicativa de um espírito malévolo a de não caráter, muitas vezes a malévolo a dissimulação certo e dissimulação certo e que muitas vezes dissimulação se torna necessária que muitas vezes presta evidentes presta evidentes benefícios; muitas para o consentimento de um fim benefícios; muitas vezes nos evita vezes nos evita situações danosas ou honesto situações danosas ou vergonhosas; e em certos casos até nos vergonhosas; e em certos casos livras da morte: amigos nem sempre se até nos livras da morte: amigos encontram nesta vida terrena, em que a nem sempre se encontram nesta escuridão da inveja é mais comum do vida terrena, em que a escuridão que a serenidade leal. da inveja é mais comum do que a serenidade leal.

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2. A um verdadeiro amigo, que 2. A um verdadeiro amigo, que por supressão por ventura se nos depare em ventura se nos depare em longas longas provações, poderemos sem provações, poderemos sem desconfiança desconfiança patentear o nosso patentear o nosso intimo pensamento. intimo pensamento. Mas Era esse Mas Era esse o caso da formosa amante o caso da formosa amante de de Rogério ante aquele Brunello? Tinha- Rogério ante aquele Brunello? lho a maga pintado, não como sincero e Tinha-lho a maga pintado, não franco, mas como fingido e mentiroso. como sincero e franco, mas como fingido e mentiroso.

3. Por isso Bradamante se vê 3. Por isso Bradamante se vê obrigada Por isso Bradamante se vê obrigada também a dissimular também a dissimular perante aquele obrigada a dissimular perante perante aquele refinadíssimo refinadíssimo impostor, adestrado em aquele refinadíssimo impostor, adestrado em quanto quanto gênero possa imaginar-se de impostor,mestre em toda a sorte gênero possa imaginar-se de mestre em toda a sorte de fingimento, de fingimento, E dissimulava, fingimento, e conforme dito e conforme dito ficou, muitas e muitas e disfarçava sempre de olho no ficou, muitas e muitas vezes fita a vezes fita a jovem os olhos nas mãos de anel, quando lhe chega aos jovem os olhos nas mãos de Brunello. E dissimulava, e disfarçava ouvidos um estranho clamor Brunello. sempre de olho no anel, quando lhe - Virgem Santíssima! Exclama Mas, de repente... chega-lhe aos chega aos ouvidos um estranho a donzela. Que será isto, Deus ouvidos um estrepitoso rumor. clamor do Céu?! -Virgem Santíssima! Exclama Mas, de repente... chega-lhe aos ouvidos E ei-la a correr para o sitio Bradamante. Que será isto, Deus um estrepitoso rumor. donde vinha o estrépito. do Céu?! - Virgem Santíssima! Exclama E ei-la a correr para o sitio donde Bradamante a donzela. Que será isto, parecia vir o estrépito. Deus do Céu?! E ei-la a correr para o sitio donde parecia vir vinha o estrepito.

4. Que há de ela ver? O 4. Que há de ela ver? O estalajadeiro O estalajadeiro toda a família estalajadeiro com a família toda com toda a família toda uns a janela, olhavam pasmado para cima, uns a janela, outros fora da porta, outros fora da porta, olhandovam como se tivesse aparecido um olhando pasmado para cima, pasmado para cima, como se no cometa!... como se no firmamento houvesse firmamento houvesse que ver um eclipse Mas o prodígio era outro. Um que ver um eclipse ou um ou um se tivesse aparecido um grande corcel de azas, vai cometa!... cometa!... fedendendo os ares, montado O prodígio que Bradamante O prodígio que Bradamante por um cavaleiro, descontinua... toca os limites do descontinua... toca os limites do incrível! Imagine-se Um grande incrível! Imagine-se Mas o prodígio corcel com azas, que vai era outro. Um grande corcel com de fedendendo os ares, e sobre o azas, que vai fedendendo os ares, cavalo um cavaleiro, armado. montado por e sobre o cavalo um cavaleiro, armado.

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5. Grandes e diversamente 5. Grandes e diversamente coloridas de brilhante e luminosa a coloridas eram as azas do corcel; eram as azas do corcel; de brilhante e armadura Voava na direção do brilhante e luminosa a armadura, luminosa a armadura, do cavaleiro que poente, e por fim desapareceu do cavaleiro que o montava. o montava. Caminhavam Voava na das montanhas. Caminhavam na direção do direção do poente, Por fim e por fim Dizia o estalajadeiro que já o poente, Por fim embaixando o embaixando o vôo, acabaram por vivia voar muitas vezes, vôo, acabaram por desapareceram desapareceramu atrás das montanhas. cavalgando pelo nigromante o atrás das montanhas. Dizia o estalajadeiro que já o vivia voar qual se ergue até as estrelas ou Dizia o estalajadeiro (n‟isso não muitas vezes, cavalgando pelo voa-riz-vez da terra, raptando as se enganava) que era um nigromante o qual se ergue até as nigromante, aquela prodigiosa estrelas ou voa-riz-vez da terra, digressão apresentava-se raptando as (n‟isso não se enganava) amiudadas vezes dali ora em que era um nigromante, aquela maior distância, ora mais ao prodigiosa digressão apresentava-se perto. amiudadas vezes dali ora em maior distância, ora mais ao perto.

6. Já erguendo até as estrelas o 6. Já erguendo até as estrelas o vôo já mulheres bonitas que se vôo já quase rez-vez-da terra, o quase rez-vez-da terra, o cavaleiro vai encontra nestas regiões. D‟aqui cavaleiro vai sempre raptando e sempre raptando e levando consigo as resulta que as míseras donzelas, levando consigo as mulheres mulheres bonitas que se encontra nestas quando são formosas tratam de bonitas que se encontra nestas regiões. D‟aqui resulta que as míseras conservar-se muito regiões. D‟aqui resulta que as donzelas, quando sejam são formosas escondidinhas em casa enquanto míseras donzelas, quando sejam em cuidar sê-lo tratam de conservar-se faz sol. formosas em cuidar sê-lo tratam muito escondidinhas em casa enquanto de conservar-se muito faz sol. escondidinhas em casa enquanto faz sol.

7. Mais dizia o estalajeiro que a 7. Mais dizia o estalajeiro que a E acrescentava ele: [ - Já muitos residência do nigromante era, nos residência do nigromante era, nos cavaleiros tem ido, ao seu castelo, mas Pyreneos, um castelo encantado, Pyreneos, um castelo encantado, nenhum ainda se gabou de haver todo feito de aço, mui luzente e todo feito de aço, mui luzente e podido voltar: quer-me portanto belo, como não havia outro no belo, como não havia outro no parecer que lá ficaram prisioneiros, ou mundo. E acrescentava ele: - Já mundo. E acrescentava ele: [ - Já o nigromante os matou. muitos cavaleiros lá tem ido, mas muitos cavaleiros lá tem ido, ao nenhum ainda se gabou de haver seu castelo, mas nenhum ainda se podido voltar: quer-me portanto gabou de haver podido voltar: parecer que lá ficaram quer-me portanto parecer que lá prisioneiros, se o que o ficaram prisioneiros, se o que ou nigromante os não matou. o nigromante os não matou.

8. Bradamante, vai escutando esta 8. Bradamante, vai escutando esta Bradamante, Animava de esperanças, narrativa toda Animavam-na narrativa toda Animavam-na diz o estalajeiro: esperanças, de que o anel esperanças, de que o anel [ - arranja-me alguém que me guie ao maravilhoso lhes servirá para maravilhoso lhes servirá para castelo, porque não descanso enquanto triunfar do castelo e do castelão. triunfar do castelo e do castelão. não medir forças com semelhante Voltando para o estalajadeiro, diz Animava de esperanças, diz o mágico. lhe: - Desencanta-me tu estalajeiro: alguém que melhor do que eu, Voltando para o estalajadeiro, diz conheça o caminho para lá, lhe: [ - Desencanta-me tu porque não descanso enquanto arranja-me alguém que me guie não medir minhas forças com ao castelo, melhor do que eu, semelhante mágico. conheça o caminho para lá,

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porque não descanso enquanto não medir minhas forças com semelhante mágico.

9. Pois se careceis de um guia, 9. Pois se careceis de um guia, Pois se careceis de um guia, observou observou Brunello irei eu observou Brunello irei eu Brunello irei convosco. Trago escrito convosco. Trago marcado por convosco. Trago marcado por o itinerário e de outros elementos sou escrito o itinerário E de outros escrito o itinerário E e de outros possuidor, que vos tomarão agradável a elementos sou também possuidor, elementos sou também possuidor, minha companhia. que vos tomarão agradável a que vos tomarão agradável a Agradabilíssima, por certo, me será a minha companhia. Referia-se minha companhia. Referia-se vossa companhia, respondeu n‟isto Brunello á posse do anel, n‟isto Brunello á posse do anel, Bradamante pensando no anel mas por cautela... exprimia-se mas por cautela... exprimia-se d‟est‟arte misteriosamente. d‟est‟arte misteriosamente. Agradável, por certo, respondeu- Agradável Agradabilíssima, por lhe Bradamante, me será a certo, respondeu-lhe Bradamante, companhia, vossa. Referia-se ela me será a vossa companhia, ao anel, do qual contava respondeu Bradamante apoderar-se pensando no anel vossa. Referia- se ela ao anel, do qual contava apoderar-se 10. E o que lhe convinha dizer, 10. E o que lhe convinha dizer, No dia seguinte, ao romper d‟alva, disse-o, mas o que lhe pareceu disse-o, mas o que lhe pareceu partiram, tomando por inconveniente sabe-lo o inconveniente sabe-lo o sarraceno, deixou-o Bradamante sarraceno, deixou-o Bradamante em silencio. em silencio. Tinha o estalajeiro um cavalo, Tinha o estalajeiro um cavalo, próprio tanto para combate como próprio tanto para combate como para jornada. Bradamante para jornada. Bradamante comprou-lho. comprou-lho. E no dia seguinte, ao romper E Nno dia seguinte, ao romper d‟alva, partiu, fazendo caminho d‟alva, partiu, fazendo caminho por um vale estreito. Brunello ia partiram, tomando por um vale marchando também, umas vezes estreito. Brunello ia marchando na dianteira, outras vezes atrás também, umas vezes na dianteira, outras vezes atrás

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11.De montanha em montanha, e 11. De montanha em montanha, e 11. De montanha em montanha, e de de bosque em bosque, lograram de bosque em bosque, lograram bosque em bosque, chegaram ambos a chegar ambos a um dos píncaros chegaram ambos a um dos um dos píncaros dos Pirineus d‟onde Pyraneas, d‟onde se podes píncaros Pyraneas, dos Pirineus se, avista-o mesmo tempo a França e a quando límpido o horizonte, d‟onde se podes quando límpido Espanha, avistar ao mesmo tempo a França o horizonte, avistar ao mesmo e a Espanha, e o arenoso litoral de tempo a França e a Espanha, e o dois mares, tal qual sucede a arenoso litoral de dois mares, tal quem dos Apeninos avista qual sucede a quem dos Apeninos simultaneamente o Mar Adriático avista simultaneamente o Mar e o Mar Toscano, se escolhe por Adriático e o Mar Toscano, se ponto de observação o píncaro escolhe por ponto de observação próximo ao celebre convento dos o píncaro próximo ao celebre Frades Beneditinos. convento dos Frades Beneditinos.

12. Seguindo um desfiladeiro 12. Seguindo um desfiladeiro Seguindo um desfiladeiro escabroso, escabroso, podia-se dali descer a escabroso, podia-se dali descer descia-se a um profundo Vale em um profundo Vale . Em meio descia-se a um profundo Vale . meio do qual havia um penhasco, desse vale havia um penhasco, Em em meio do qual desse vale cingido de bela muralha de aço. cingido no cume por uma bela havia um penhasco, cingido no [- É ali, disse Brunello, que o mágico muralha de aço. e tão elevado, cume por uma de bela muralha de retém seus cativos, damas e cavaleiros. que sobrepuja tudo quanto o aço. e tão elevado, que sobrepuja circunda. Quem não tiver azas tudo quanto o circunda. Quem não pense em querer lá penetrar, não tiver azas não pense em que é trabalho perdido. querer lá penetrar, que é trabalho [- É ali, disse Ali disse Brunello, perdido. é onde que o mágico retém seus [- É ali, disse Ali disse Brunello, cativos, damas e cavaleiros. é onde que o mágico retém seus cativos, damas e cavaleiros.

13. Talhada a pique em suas 13. Talhada a pique em suas Supressão quatro faces, a rocha elevava-se quatro faces, a rocha elevava-se perfeitamente vertical, sem perfeitamente vertical, sem vereda nem escadaria que lhe vereda nem escadaria que lhe facultasse o acesso. Percebia-se facultasse o acesso. Percebia-se pois, que só um animal com azas pois, que só um animal com azas poderia fazer daquele castelo a poderia fazer daquele castelo a sua habitação. sua habitação.

14. Bradamante calculou que era 14. Bradamante calculou que era Bradamante calculou que era chegado chegado o momento de se chegado o momento de se o momento de se apoderar doa anel apoderar doa anel. apoderar doa anel. mas pensou também que matar Mas ... pensou também que Mas ... mas pensou também que Brunello equivalia a macular-se com o matar Brunello representaria um matar Brunello representaria um sangue de um homem desarmado, ato menos decoroso, por a ato menos decoroso, por tomar o anel sem matar o possuidor. macular-se com o sangue de um equivalia a macular-se com o Que fez Bradamante? Agarrou-o, homem desarmado ocorreu-lhe sangue de um homem desarmado; amarrou-o ao tronco de uma arvore, e que poderia assenhorar-se do e resolveu ocorreu-lhe que em seguida tirou-lhe do dedo o anel. anel sem matar o possuidor tanto poderia assenhorar-se do tomar mais, que Brunello não cuidava o anel sem matar o possuidor. então em acautelar-se. tanto mais, que Brunello não Que fez Bradamante? Agarrou-o, cuidava então em acautelar-se. prendeu-o ao tronco de um abeto Que fez Bradamante? Agarrou-o, , e em seguida tirou-lhe do dedo o prendeu-o amarrou-o ao tronco anel. de um abeto uma arvore, e em

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seguida tirou-lhe do dedo o anel.

15. Brunello chorou, gemeu, 15. E enquanto Brunello chorou, E enquanto Brunello se, lamentava- lamentou-se lamentava-se... Mas gemeu se, lamentou-se se... Bradamante e serenamente Bradamante foi o deixando ficar lamentava-se... Mas Bradamante desceu a montanha, até chegar a atado ao tronco da árvore, e foi o deixando ficar atado ao planície onde se erguia a torre. serenamente desceu a montanha, tronco da árvore,- e serenamente Aí levou a buzina á boca, e chamou até chegar a planície em que desceu a montanha, até chegar a com gritos de ameaça o adversário, assentava a torre. planície onde em que assentava desafiando-o para combate. Depois, para que o mágico se erguia a torre. aparecesse, levou a buzina á boca, Depois, para que o mágico e, tendo-a feito ressoar, e chamou aparecesse, Aí levou a buzina á com gritos de ameaça o boca, e, tendo-a feito ressoar, e adversário, desafiando-o para chamou com gritos de ameaça o combate. adversário, desafiando-o para combate.

16. O nigromante, ouvindo a 16. O nigromante, ouvindo a O nigromante, ouvindo a buzina, logo buzina, e sentindo os gritos, buzina, e sentindo os gritos, se apresentou montado no corcel das prestes se apresentou lá vem ele prestes logo se apresentou lá vem asas, Bradamante sente-se montado no corcel das asas, ele montado no corcel das asas, tranqüilizada, calculando que pouco fendendo os ares, ao encontro fendendo os ares, ao encontro mal lhe fará o antagonista, porquanto daquele que aparentemente figura daquele que aparentemente figura lhe não vê lança, espada, nem maça um guerreiro feroz. Bradamante um guerreiro feroz. Bradamante d‟armas. sente-se tranqüilizada, calculando sente-se tranqüilizada, calculando que pouco mal lhe fará o que pouco mal lhe fará o antagonista, porquanto lhe não vê antagonista, porquanto lhe não vê lança, espada, nem maça d‟armas. lança, espada, nem maça d‟armas.

17. O que lhe vê é no braço 17. O que Só lhe vê é no braço Só lhe vê no braço esquerdo um esquerdo um escudo envolvido esquerdo um escudo envolvido escudo envolvido em seda vermelha e em seda vermelha e na direita um em seda vermelha e na direita um na direita um livro, maravilhas livro, por cuja leitura auxiliado livro, por cuja leitura auxiliado mágico, com auxílio do qual consegue conseguia praticar grandes conseguia praticar grandes suas grandes maravilhas. Assim é que maravilhas maravilhas. Assim maravilhas mágico, com auxílio ás vezes figurava investir às lançadas, uma vezes figurava investir ás do qual consegue suas grandes o que obrigado os guerreiros a lançadas, o que tinha obrigado já maravilhas. Assim uma vezes é cerrarem os olhos; outras vezes – dir- vários guerreiros a cerrarem os que ás vezes figurava investir ás se-ia que manejava espada ou maça: e, olhos; outras vezes – dir-se-ia que lançadas, o que tinha obrigado já todavia-se acha a uma grande manejava espada ou maça: e, vários os guerreiros a cerrarem os distância, completamente desarmado! todavia achava-se a uma grande olhos; outras vezes – dir-se-ia que distância, completamente manejava espada ou maça: e, desarmado! todavia-se achava-se a uma grande distância, completamente desarmado!

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18. O corcel é que não era 18. O corcel é que não era O corcel é que não era imaginário, mas imaginário, mas real e muito real. imaginário, mas real e muito real. real e muito real. Filho de uma égua e Filho de uma égua e de um grifo, Filho de uma égua e de um grifo, de um grifo, assemelhava-se ao pai nas assemelhava-se ao pai nas penas e assemelhava-se ao pai nas penas e asas, nas patas dianteiras, na cabeça, e nas asas, nas patas dianteiras, na nas asas, nas patas dianteiras, na nas garras; no resto assemelhava-se á cabeça, nas garras; no resto cabeça, e nas garras; no resto mãe. Era o Hipogrifo, animal raro, que assemelhava-se á mãe. Chamava- assemelhava-se á mãe. Chamava- se encontravam-se nos montes lhe hipogrifo, animais d‟estes não lhe Era o Hipogrifo, animaes Ripheus, para lá dos mares glaciais. são vulgares; mas encontravam-se d‟estes não são vulgares; mas nos montes Ripheus, muito para animal raro, que se lá dos mares glaciais. encontravam-se nos montes Ripheus, muito para lá dos mares glaciais.

19. Daquelas regiões e que 19. Daquelas regiões e que Daquelas regiões e que nigromante nigromante havia feito vir o seu nigromante havia tinha feito vir o tinha feito vir o seu estranho corcel, estranho corcel, por virtude de seu estranho corcel, que que amansava de modo a, cavalga e - seus encantamentos. E, apenas amansava de modo a, por o sem dificuldades por terra ou pelo lhes chegou, tratou de adestrar virtude de seus encantamentos. E, ar, o havendo nisso encantamento por forma, que dentro num mês a apenas lhes chegou, tratou de nenhum poder, de cuidados e fadigas, adestrar por forma, que dentro lograva já bridá-lo selá-lo, montá- num mês a poder, de cuidados e lo, cavalgando e - o sem fadigas, lograva já brida-lo sela- dificuldades por terra ou pelo ar, lo, monta-lo, cavalgando e - o para onde quer que lhe sem dificuldades por terra ou pelo aprouvesse . Nisso e que não ar, para onde quer que lhe havia ficção alguma de aprouvesse . Nisso e que não encantamentos: era um fato, havia ficção alguma de incontestável, que todos encantamentos: era um fato, presenciavam como testemunhas incontestável, que todos oculares. presenciavam como testemunhas Enquanto ao resto, sim, enquanto oculares. Não havendo nisso ao resto, pode dizer-se que os encantamento nenhum fingimentos do nigromante é que Enquanto ao resto, sim, enquanto figuravam em tudo: assim, por ao resto, pode dizer-se que os exemplo, o amarelo fazia o ele fingimentos do nigromante é que parecer, vermelho; etc;etc; figuravam em tudo: assim, por exemplo, o amarelo fazia o ele parecer, vermelho; etc;etc;

20 anel, porém que Bradamante 20. Mas o anel, porém que Mas o anel, porém que Bradamante levava consigo, garantia-lhe Bradamante levava consigo, levava consigo, garantia-lhe contra as imunidade contra as ilusões garantia-lhe imunidade contra as ilusões ópticas do adversário. E ora ópticas providas pelo adversário. illusões ópticas providas pelo do entra ela a esgrime no vácuo, ora E ora entra ela se a esgrimir no adversário. E ora entra ela se a encaminha o cavalo neste ou naquele vácuo, ora entra ela a encaminhar esgrimire no vácuo, ora entra ela sentido, manobrando conforme as o cavalo neste ou naquele sentido, a encaminhar o cavalo neste ou instruções que recebera. manobrando conforme as naquele sentido, manobrando instruções que recebera. conforme as instruções que recebera.

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21.Exercitados que foram alguns 21.Exercitados que foram alguns Por fim o nigromante resolve lançar d‟estes manejos deliberava-se d‟estes manejos deliberava-se mão do seu recurso derradeiro, crente Bradamante a apear-se, no intuito Bradamante a apear-se, no intuito como estava no irresistível poder do de melhor desempenhar o que de melhor desempenhar o que seu escudo mágico, previdente maga lhe tinha previdente maga lhe tinha aconselhado... quando aconselhado... quando Por fim o nigromante se resolveu lançar nigromante se resolveu lançar mão do seu recurso derradeiro, mão do seu recurso derradeiro, crente como estava no irresistível crente como estava no irresistível poder do seu escudo mágico, . poder do seu escudo mágico, . Descobrindo o escudo, conta ele Descobrindo o escudo, conta ele que imediatamente por terra, que imediatamente por terra, deslumbrado por tão ofuscante deslumbrado por tão ofuscante fulgor, quem se atrever a resistir- fulgor, quem se atrever a resistir- lhe. lhe.

22. Ora o nigromante podia muito 22. Ora o nigromante podia supressão bem, logo desde principio, muito bem, logo desde principio, descobrir o escudo, sem estar com descobrir o escudo, sem estar tais delongas a enganar os com tais delongas a enganar os adversários. Mas comprazia-se adversários. Mas comprazia-se naquela espécie de brinquedo: naquela espécie de brinquedo: agradava-lhe vê-los brandir a agradava-lhe vê-los brandir a lança ou manejar a espada; fazia lança ou manejar a espada; fazia nisto lembrar um gato que se nisto lembrar um gato que se diverte primeiro a brincar com o diverte primeiro a brincar com o rato, - e que só quando se enfada rato, - e que só quando se enfada do divertimento, se resolve enfim do divertimento, se resolve enfim a cravar-lhe os dentes e mata-lo. a cravar-lhe os dentes e mata-lo.

23. Esta comparação do gato e do 23. Esta comparação da gato e do Mas a donzela, atenta aos seus rato (fique bem assentado) rato (fique bem assentado) movimentos, vê que ele ia descobrir o entende-se apenas para o caso entende-se apenas para o caso escudo, fechou os olhos e deixou-se dos combates que o mágico tinha dos combates que o mágico tinha cair por terra. Procedendo antecedentemente sustentado.) antecedentemente sustentado.) Para o caso presente, em que Para o caso presente, em que Bradamante possuía o anel Bradamante possuía o anel talismã, mudavam sobremaneira talismã, mudavam sobremaneira as circunstancia. Toda atenta as circunstancia. Toda atenta aos movimentos, do nigromante, Mas a donzela, atenta aos seus para não só deixar levar de movimentos, do nigromante, para vencida, quando vai que ele ia não só deixar levar de vencida, descobrir o escudo, fecha fechou quando vai vê que ele ia os olhos e deixa deixou-se cair descobrir o escudo, fecha fechou por terra. os olhos e deixa deixou-se cair por terra. Procedendo 24-Não se imagine que a ofusca o 24-Não se imagine que a ofusca o assim, teve mira fazer o nigromante fulgor do reluzente metal, como fulgor do reluzente metal, como iludido, apear-se do Hipogrifo e sucedia a todos os outros sucedia a todos os outros aproximar-se dela adversários do mágico: adversários do mágico: E foi o que sucedeu. Bradamante, procedendo assim, Bradamante, procedendo assim, teve mira que o terrível teve mira fazer o que o terrível nigromante por aquela forma nigromante por aquela forma iludido, se apeasse apear-se do iludido, se apeasse apear-se do Hipogrifo e se aproximasse dela Hipogrifo e se aproximasse e acertadamente andou, por que aproximar-se dela e

246 logo o animal, acelerando o acertadamente andou, por que movimento das azas e logo o animal, acelerando o descrevendo largos circuitos, veio movimento das azas e pousar no chão. descrevendo largos circuitos, veio pousar no chão. E foi o que sucedeu.

25. O cavaleiro, deixando no 25. O cavaleiro, deixando no O cavaleiro, deixando no arção o arção o escudo, que já novamente arção o escudo, que já novamente escudo, apeia-se e aproxima-se de envolvera no véu, apeia-se e envolvera no véu, apeia-se e Bradamante, que o espreita a aproxima-se de Bradamante, que aproxima-se de Bradamante, que semelhança de um cabritinho a o espreita a semelhança de um o espreita a semelhança de um espreitar o lobo escondido, no manto. cabritinho a espreitar o lobo cabritinho a espreitar o lobo Quanto o pulha ao alcance das mãos, escondido, no manto. Quanto o escondido, no manto. Quanto o Bradamante ergue-se n‟um prompto, e pilha ao alcance das mãos, pilha ao alcance das mãos, vigorosamente o agarra. O misero tinha Bradamante ergue-se n‟um Bradamante ergue-se n‟um deixado cair no chão o livro prompto, e vigorosamente o prompto, e vigorosamente o nigromântico, em que residia toda a agarra. O misero tinha deixado agarra. O misero tinha deixado origem do seu poderio! cair no chão o livro nigromântico, cair no chão o livro em que residia toda a origem do nigromântico, em que residia seu poderio! toda a origem do seu poderio!

26. Trazia na cinta um grilhão, 26. Trazia na cinta um grilhão, Trazia na cinta um grilhão, com que se com que se propunha acorrentar com que se propunha acorrentar propunha acorrentar Bradamante pela Bradamante pela mesma forma Bradamante pela mesma forma mesma forma que estava habituada a que estava habituada a acorrentar que estava habituada a como como acorrentara aos outros aos outros adversários, seus Mas acorrentara aos outros adversários, seus Mas d‟estas vez... a d‟estas vez... a donzela tinha adversários, seus Mas d‟estas donzela tinha prestes derrubado o prestes derrubado o mágico. E, se vez... a donzela tinha prestes mágico. E, se ele não buscava ele não buscava defender-se, derrubado o mágico. E, se ele não defender-se, desculpem-no: que havia desculpem-no: que havia de fazer buscava defender-se, desculpem- de fazer um débil velho contra quem um débil velho contra quem no: que havia de fazer um débil dispunha de tão excepcional vigor?! dispunha de tão excepcional velho contra quem dispunha de vigor?! tão excepcional vigor?!

27. Bradamante, dispondo para 27. Bradamante, dispondo para Bradamante, dispunha-se a lhe lhe cortar a cabeça, vai para dispunha-se a lhe cortar a cabeça, vai cortar a cabeça, mas fitando os levantar a mão vitoriosa. Mas ao para levantar a mão vitoriosa. mas olhos no rosto do nigromante, - fitar o rosto do nigromante, - fitando os olhos no. Mas ao fitar o suspende-se como desdenhosa suspende o golpe como rosto do nigromante, - suspende-se o de uma vingança tão vulgar. desdenhando uma vingança tão golpe como desdenhando desdenhosa baixa . Na pessoa do vencido vê de uma vingança tão baixa vulgar. Na dia um velho de aspecto pessoa do vencido vê dia um velho de venerando e fisionomia aspecto venerando e fisionomia merencória, rugas nas faces e merencória, rugas nas faces e cabelos cabelos brancos, indicando tudo brancos, indicando tudo ser um homem ser um homem de setenta anos ou de setenta anos ou pouco menos. pouco menos.

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28. E o velho exclamava, entre 28. Mas E o velho exclamava, entre Mas E o velho exclamava, entre irado e despeitado:... Tirai-me a irado e despeitado:... Tirai-me a vida, irado e despeitado:... Tirai-me a vida, por Deus! por Deus! vida, por Deus! Bradamante, porém mostrou Bradamante, porém mostrou desejos de Bradamante, porém mostrou desejos de saber quem era o saber quem era o nigromante ele, com desejos de saber quem era ele, nigromante, com que fim tinha ele que fim tinha ele edificado naquele sítio com que fim tinha ele edificado edificado naquele sítio selvático o selvático o encantado castelo, e por que castelo, e por que motivo encantado castelo, e por que motivo andava assim perseguindo a andava assim perseguindo a motivo andava assim perseguindo humanidade. humanidade. a humanidade.

29. Resposta do velho, todo 29. Resposta do velho, todo lacrimoso: Na construção deste castelo, lacrimoso: Na construção deste Na construção deste castelo, respondeu respondeu ele. não houve da castelo, não houve da minha parte ele. não houve da minha parte intento minha parte intento maligno ; maligno intento; nem as minhas maligno intento; nem as minhas ações nem minhas ações representam ações representam a avidez de um representam a avidez de um ladrão. Em a avidez de um ladrão. Queria ladrão. Em mim acentuou mim Queria acentuou apenas o apenas proteger contra o um apenas o empenho afetuoso de empenho afetuoso de proteger contra o perigo iminente, um gentil proteger contra o um perigo um perigo extremo que lhe esta cavaleiro, de quem o céu me extremo que lhe esta iminente, um iminente, um gentil cavaleiro, de quem revelou que em breve tempo gentil cavaleiro, de quem o céu o céu me revelou que em breve tempo morreria, depois de convertido me revelou que em breve tempo morreria, depois de convertido ao ao cristianismo, por traição. morreria, depois de convertido ao cristianismo, por traição. cristianismo, por traição.

30. Tão belo, tão prestimoso, não 30. Tão belo, tão prestimoso, não há Chama-se Rogério. Criei desde há outro a quem o sol possa outro a quem o sol possa alumiar. pequenino. Devorado pela sede alumiar. Chama-se Rogério. Chama-se Rogério. Criei-o desde da glória, e impelido por seu Criei-o pequenino. Atlante é o pequenino. Atlante é o meu nome. cruel destino, o meu pupilo meu nome. Devorado pela sede da Devorado pela sede da glória, e entrou em França na comitiva glória, e impelido por seu cruel impelido por seu cruel destino, o meu do rei Agramante. E eu, que destino, o meu pupilo entrou em pupilo entrou em França na comitiva do sempre lhe tive mais amor que França na comitiva do rei rei Agramante. E eu, que sempre lhe seu próprio pai, procuro, desvia- Agramante. E eu, que sempre lhe tive mais amor do que se fora seu lo do perigo. tive mais amor do que se fora seu próprio pai, procuro, desviando-o de próprio pai, procuro, desviando-o França, desvia-lo do perigo. de França, desvia-lo do perigo.

31. Esta bela fortaleza, se a 31. Esta bela fortaleza, se a edifiquei, Esta bela fortaleza, a edifiquei, edifiquei, foi para guardar nela foi para guardar nela seguro o meu para guardar o meu Rogério, de seguro o meu Rogério, de quem Rogério, de quem me apoderei pela quem me apoderei pela mesma me apoderei pela mesma forma mesma forma que esperava apoderar-me forma que esperava apoderar-me que esperava apoderar-me hoje de hoje de vós. Depois, tratei de lhe trazer hoje de vós. Depois, tratei de lhe vós. Depois, tratei de lhe trazer damas e cavaleiros, pessoas todas de trazer damas e cavaleiros, de damas e cavaleiros, pessoas todas nobilíssima estirpe (como tereis ocasião nobilíssima estirpe afim de que de nobilíssima estirpe (como de ver) afim de que tão brilhante tão brilhante companhia o tereis ocasião de ver) afim de que companhia o destruísse de sua clausura destruísse da prisão tão brilhante companhia o da prisão destruísse de sua clausura

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32. Só o que lhe não permitia era 32. Só o que lhe não lhe permitia era Só não lhe permitia sair do sair do castelo. enquanto a sair do castelo. enquanto a castelo. Mas tudo vieste proporcionar-lhe toda a casta de proporcionar-lhe toda a casta de inutilizar num momento... prazeres, ficava isso prazeres, ficava isso completamente a completamente a meu cuidado. meu cuidado. Musica, rico vestuários, Musica, rico vestuários, jogos jogos divertidíssimas iguarias das mais divertidíssimas iguarias das mais finas, tudo quanto pode imaginar-se de finas, tudo quanto pode imaginar- melhor e de mais agradável, tudo quanto se de melhor e de mais agradável, pode o coração desejar ou a boca pedir, tudo quanto pode o coração tudo ali se encontrava naquela desejar ou a boca pedir, tudo ali residência. Da boa semente, que eu se encontrava naquela residência. lançara na terra, estava colhendo o fruto, Da boa semente, que eu lançara mas Mas tudo vieste vós inutilizar num na terra, estava colhendo o fruto, simples momento... mas tudo vieste vós inutilizar num simples momento...

33. Se a beleza do vosso rosto 33. Se a beleza do vosso rosto Se a beleza do vosso rosto corresponde a beleza da vossa corresponde a beleza da vossa alma, corresponde a beleza da vossa alma, espero que não ponhais o espero que não ponhais o obstáculo ao alma, espero que não obstáculo ao meu louvável embaraceis o meu louvável desígnio. embaraceis o meu louvável desígnio. Aqui tendes o meu Aqui tendes vos ofereço o meu escudo, desígnio. Aqui vos ofereço o escudo, eu vo-lo ofereço que, eu vo-lo ofereço que, como vos ofereço meu escudo, e o meu corcel que como vos ofereço este corcel que este corcel que tão rapidamente voa voa. tão rapidamente voa pelos ares pelos ares. e o meu corcel que voa. Mas não vos ocupeis do que vai mas não vos ocupeis do que vai Mmas não vos ocupeis do que vai por por aquele castelo por aquele castelo, eu, quando aquele castelo, eu, quando muito, levai muito, levai convosco um ou dois convosco um ou dois de vossos amigos, de vossos amigos, mas deixai os mas deixai os restantes. Quereis mesmo restantes. Quereis mesmo liberta- liberta-los a todos, pois libertai-os, mas los a todos, pois libertai-os, mas concedei-me um favor: deixar-me ficar concedei-me um favor: deixar-me o meu Rogério. ficar o meu Rogério.

34. “Porerá, se apesar de tudo, 34. “Porerá, se apesar de tudo, temais Rogério, respondeu-lhe temais em tirar-mo, então... antes em tirar-mo, então... antes de o levardes Bradamante é precisamente a de o levardes para a França... para a França... acabe por uma vez pessoa que me proponho acabe por uma vez comigo, comigo, libertando minha alma aflita restituir a liberdade. Podes libertando minha alma aflita deste deste invólucro mortal que prestes está improvisar aí quantas histórias invólucro mortal que prestes está já a desfazer-se!” quiseres ... mas é escusado e já a desfazer-se!” Respondeu-lhe Bradamante. Rogério, pretenderes captar-me com a Respondeu-lhe Bradamante. respondeu-lhe Bradamante é oferta do corcel e do escudo, Rogério, é precisamente a pessoa precisamente a pessoa que me proponho que são já propriedade minha e que me proponho restituir a restituir a liberdade. Podes tu improvisar não tua. liberdade. Podes tu improvisar aí aí quantas histórias quiseres te venham quantas histórias te venham a a imaginativa... mas é escusado e imaginativa... mas é escusado e pretenderes captar-me com a oferta do pretenderes captar-me com a corcel e do escudo, que são já oferta do corcel e do escudo, que propriedade minha e não tua. são já propriedade minha e não tua.

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35. Sempre, todavia te direi que, 35. Sempre, todavia te direi que, muito Dizes me que , reténs a pessoa muito embora estivesse o teu embora estivesse o teu arbítrio dispor do de Rogério, porque pretendes arbítrio dispor do escudo e do escudo e do corcel, nem mesmo assim salvaguarda-lo contra a maligna corcel, nem mesmo assim eu eu aceitaria a proposta. Dizes me que se, influência dos astros. Mas, ou aceitaria a proposta. Dizes me que reténs enclausuradas a pessoa de ignoras o que o Céu realmente se, reténs enclausuradas a pessoa Rogério, e porque pretendes determinou acerca de Rogério, de Rogério, e porque pretendes salvaguarda-lo contra a maligna ou não podes evita-lo. Quando salvaguarda-lo contra a maligna influência dos astros. Mas, de duas não pudeste prever a atua influência dos astros. Mas, de umas: ou ignoras o que o Céu realmente própria desgraça iminente, como duas umas: ou ignoras o que o determinou acerca de Rogério, ou se o te julgas habilitado a prevenir os Céu realmente determinou acerca sabes não podes evita-lo. Quando não infortúnios futuros de ontem? de Rogério, ou se o sabes não pudeste prever a atua própria desgraça podes evita-lo. Quando não iminente, como te julgas habilitado a pudeste prever a atua própria prevenir os infortúnios futuros de desgraça iminente, como te julgas ontem? habilitado a prevenir os infortúnios futuros de ontem?

36. Não me peças que te mate, 36. Não me peças que te mate, porque Assim falou a donzela, porque seriam baldadas as tuas seriam baldadas as tuas rogativas. Se conduzindo o nigromante rogativas. Se estas deveras com estas deveras com desejos de morrer, - acorrentado em direção ao desejos de morrer, - inda que inda que todos neste mundo se apostem penhasco. todos neste mundo se apostem a a contrariar-te, sabes perfeitamente que contrariar-te, sabes perfeitamente um espírito vigoroso tem sempre ao teu que um espírito vigoroso tem alcance maneira de acabar com a vida. sempre ao teu alcance maneira de Antes, porém que dês esse passo, exijo acabar com a vida. Antes, porém que restituas a liberdade aos teus que dês esse passo, exijo que prisioneiros todos. restituas a liberdade aos teus Assim falou a donzela, e preso prisioneiros todos. conduzindo ela o nigromante Assim falou a donzela, e preso acorrentado em direção ao penhasco. conduz ela o nigromante em direção ao penhasco.

37. Atlante ia ligado com seu 37. Atlante ia ligado com seu próprio Poucos passos tinham dados, e próprio grilhão: á ilharga do velho grilhão: á ilharga do velho caminhava chegam ao sopé da rocha em caminhava Bradamante, – Bradamante, – desconfiada sempre, que assentava a fortaleza. desconfiada sempre, apesar do apesar do aspecto humilde que Atlante ( que assim se chamava aspecto humilde que apresentava apresentava o dono do castelo. Poucos ele) em dado momento se o dono do castelo. Poucos passos passos tinham dados, e ei-lo ambos no agachava, tinham dados, e ei-lo ambos no sopé chegam ao sopé da rocha em sopé da rocha em que assentava que assentava a fortaleza. Atlante ( que a fortaleza. assim se chamava ele) em dado momento se agachava,

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38. Atlante agachando-se 38. Atlante agachando-se rapidamente arranca do solo uma pedra em rapidamente arranca do solo uma arranca do solo uma pedra em que se que se achavam gravados certos pedra em que se achavam achavam gravados certos caracteres e caracteres e signos estranhos e gravados certos caracteres e signos de estranhos e quebra esses quebra esses vasos fumegantes signos de estranhos estranha estranha feição. que a pedra encobria feição. Arrancada a pedra, aparecem por E logo de sobre o penhasco Arrancada a pedra, aparecem por debaixo uns vasos fumegantes que a se desvanece por debaixo uns vasos fumegantes pedra encobria encerram dentro em si encantamento a perspectiva que a encerram dentro em si fogos ocultos. do castelo... fogos ocultos. Quebra–os o nigromante... E logo de Quebra–os o nigromante... E logo sobre o penhasco se desvanece por de sobre o penhasco se esvanece encantamento a perspectiva do castelo... por encantamento a perspectiva do castelo...

39. Desaparece da vista o 39. Desaparece da vista o nigromante, e Supressão nigromante, e com ele com ele instantaneamente a encantada instantaneamente a encantada fábrica das muralhas de aço. fábrica das muralhas de aço. Ficam porém desfrutando (em) Ficam porém desfrutando (em) liberdade quantas (todas) damas e liberdade quantas (todas) damas e quantos (todos) cavaleiros existiam nos quantos (todos) cavaleiros magníficos aposentos do castelo, existiam nos magníficos dispersos agora naquele selvático ermo, aposentos do castelo, dispersos lamentam muitos deles a perdida agora naquele selvático ermo, clausura: porque a liberdade obtida os lamentam muitos deles a perdida priva dos grandes prazeres que tinham clausura: porque a liberdade (ali) gozavam. obtida os priva dos grandes prazeres que tinham (ali) gozavam.

40. Entre os libertados figura 40. Entre os libertados figura Gradasso, Mas aparecem, em liberdade, Gradasso, figura Sacripante, figura Sacripante, figura Prosildo todos os prisioneiros, entre os figura Prosildo (nobre cavaleiro (nobre cavaleiro que do Levante veio quais Gradasso Sacripante, o que do Levante veio com com Reinaldo) e figura também Iroldo cavaleiro Prosildo e por fim Reinaldo) e figura também Iroldo (amigo íntimo de Prosildo). Por fim, aos Rogério, o qual fez a (amigo íntimo de Prosildo). Por olhos da bela Bradamante, depara o Bradamante o mais amoroso fim, aos olhos da bela desejo Rogério, o qual apenas a acolhimento. Bradamante, depara o desejo reconheceu, lhe fez o mais grato e Rogério, o qual apenas a amável acolhimento. reconheceu, lhe fez o mais grato e Mas aparecem, em liberdade, todos os amável acolhimento. prisioneiros, entre os quais Gradasso Sacripante, o cavaleiro Prosildo e por fim Rogério, o qual fez a Bradamante o mais amoroso acolhimento.

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41. E que Bradamante 41. E que Bradamante representava para supressão representava para Rogério um Rogério um ente a quem ele mais amava ente a quem ele mais amava do do que a luz de seus próprios olhos, que a luz de seus próprios olhos, mais até de que o próprio coração e á mais até de que o próprio coração própria vida, desde o dia em que, a e á própria vida, desde o dia em pedido seu, ela tirou da cabeça o elmo, que, a pedido seu, ela tirou da resultando-lhe dai o ficar ferida. Contar cabeça o elmo, resultando-lhe dai com isso foi, quem a feriu, etc. etc, seria o ficar ferida. Contar com isso foi, longo, longuíssimo, - e longuíssimo quem a feriu, etc. etc, seria longo, também descrever o tempo que andaram longuíssimo, - e longuíssimo ambos á procura um do outro em também descrever o tempo que floresta emaranhadas, noite e dia, sem andaram ambos á procura um do terem nunca, senão agora, tornado a outro em floresta emaranhadas, encontrar-se. noite e dia, sem terem nunca, senão agora, tornado a encontrar- se. 42. Agora que ele finalmente 42. Agora que ele finalmente volve a De muito que este a procurava e volve a encontra-la e reconhece encontra-la e De muito que este a agora que a encontra e ter sido ela a sua única procurava e agora que a encontra e reconhece ter sido ela a sua libertadora, transborda-lhe do reconhece ter sido ela a sua única única libertadora, transborda-lhe coração a alegria e considera-se o libertadora, transborda-lhe do coração a do coração a alegria e considera- mais venturoso dos homens. alegria e considera-se o mais venturoso se o mais venturoso dos Descendo o rochedo, acharam-se dos homens. homens. então no vale em que Descendo juntos o rochedo, acharam-se Descendo juntos o rochedo, Bradamante vencera o mágico: e então todo no vale em que Bradamante acharam-se todo no vale em que aí se lhe deparou o Hipogrifo, vencera o mágico: e aí se lhe deparou o Bradamante vencera o mágico: e conservando ainda sobre si o Hipogrifo, conservando ainda sobre si o aí se lhe deparou o Hipogrifo, escudo envolvido no veio escudo envolvido no veio escarlate. conservando ainda sobre si o escarlate. escudo envolvido no veio escarlate.

43. Bradamante dispõe-se a 43. Bradamante dispõe-se a lançar-lhe as Bradamante dispõe-se a lançar- lançar-lhe as mãos á rédea; mas mãos á rédea; mas ele, erguendo o vôo, lhe as mãos á rédea; mas ele, ele, erguendo o vôo, foge-lhe e foge-lhe e vai pousar a pouca distância. erguendo o vôo, foge-lhe e vai vai distância. A donzela busca A donzela busca novamente apanha-lo; pousar a pouca distância. A novamente apanha-lo; e e novamente ele se lhe esquiva, pela donzela busca novamente novamente ele se lhe esquiva, mesma forma, fazendo lembrar uma apanha-lo; e novamente ele se pela mesma forma, fazendo gralha quando perseguida por um cão, esquiva, fazendo lembrar uma lembrar uma gralha quando em árido areal. gralha perseguida por um cão, perseguida por um cão, em árido areal.

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44. Rogério, Sacripante, Gradasso 44. Rogério, Sacripante, Gradasso e Rogério, Sacripante, Gradasso e e todos os cavaleiros enfim que todos os cavaleiros mais enfim que da todos os mais empenham-se da clausura tinham saído, acham clausura tinham saído, acham se agora em correr de um para outro lado, se agora empenha em correr de empenham-se em correr de um para ora trepando ao píncaro dos um para outro lado, ora trepando outro lado, ora trepando ao píncaro dos morros, ora descendo as grotas a ao píncaro dos morros, ora morros, ora descendo as grotas a verem-se acertam com o sítio descendo aos úmidos Algarves verem-se aos úmidos Algarves onde venha a poupar o profundamente situados entre as profundamente situados entre as fragas, Hipogrifo. fragas, tudo no intuito de verem tudo no intuito de verem se acertam com Este, porem depois de se acertam com o sítio em que o sítio em que porventura onde venha a fatigado os ter inutilmente porventura venha a poupar o poupar o Hipogrifo. acaba por fixar-se no lugar Hipogrifo. Este, porem depois de os ter em que estava Rogério. acaba por fixar-se no lugar inutilmente fatigado, fatigado os em que estava Rogério. ter inutilmente acaba por fixar-se no lugar em que estava Rogério.

45. Tudo isto eram ainda 45. Tudo isto eram ainda manobras Tudo isto eram ainda manobras manobras inspiradas velho inspiradas do velho Atlante, que no do velho Atlante, que no seu Atlante, que no seu piedoso afeto seu piedoso afeto persiste em querer piedoso afeto persiste em querer persiste em querer livrar o livrar o querido Rogério do grande livrar Rogério do grande perigo querido Rogério do grande perigo perigo iminente. Só isso o preocupa e iminente. E conseguiu-o, pois iminente. Só isso o preocupa e o o aflige: e ahi esta porque ele ora aflige: e ahi esta porque ele ora exerce a influencia de que ainda exerce a influencia de que ainda dispõe, fazendo com que o dispõe, fazendo com que o Hyppogrypho, vá de propósito Hyppogrypho, vá de propósito colocar-se ao alcance de Rogério, para colocar-se ao alcance de Rogério, que assim com artifício logre desviá- para que assim com artifício logre lo da Europa. Rogério, lançando-lhe desviá-la Europa. Rogério, as mãos, procura levá-lo pela rédea; lançando-lhe as mãos, procura mas o Hipogrypho recusa obedecer- levá-lo pela rédea; mas o lhe. E conseguiu-o, pois Hipogrypho recusa obedecer-lhe.

46.Rogério, então com toda a 46.Rogério, então com toda a .Rogério, com toda a coragem, coragem, decida-se a apear-se do coragem, decida-se a apear-se do decida-se a apear-se do corcel em Frontino (assim se chamava o Frontino (assim se chamava o corcel que montava / e saltar para cima corcel em que montava / e saltar em que montava / e saltar para cima do Hyppogripho, cravando-lhe para cima do Hyppogripho, do Hyppogripho, cravando-lhe impetuosamente as esporas. O cravando-lhe impetuosamente as impetuosamente as esporas. O Hippogrypho corre uns instantes esporas. O Hippogrypho corre Hippogrypho corre ainda uns instantes pelos chão, depois, o abrindo as ainda uns instantes pelos chão, pelos chão, mas depois, o abrindo as azas, ergue ligeiro o vôo pelo mas depois abrindo as azas, ergue azas, ergue ligeiro o vôo pelo espaço espaço aéreo, mais rápido que um ligeiro o vôo pelo espaço aéreo, aéreo, mais rápido que um falcão solto falcão solto pelo caçador em frente mais rápido que um falcão solto pelo caçador em frente da caça. da caça. pelo caçador em frente da caça.

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47. A bela dama, vendo erguido a 47. A bela dama, vendo erguido a uma A bela dama, vendo erguido a uma altura d‟aquelas e em tanto altura d‟aquelas e em tanto perigo o uma altura d‟aquelas e em tanto perigo o seu Rogério, fica atônita seu Rogério, fica atônita, por um perigo o seu Rogério, fica atônita, por um grande espaço mal grande espaço mal dando podendo mal dando acordo de si. podendo realmente dar acordo de realmente dar acordo de si. O que em si. O que em tempos ouvira tempos ouvira contar de Ganymedes contar de Ganymedes (rapto para (rapto para as regiões do Olimpo) as regiões do Olimpo) afigura-se- afigura-se-lhe possível repetir-se, na lhe possível repetir-se, na presente aventura, com respeito a presente aventura, com respeito a Rogério, não menos belo, não menos Rogério, não menos belo, não belo, não menos formosos do que o menos belo, não menos formosos mitológico Ganymedes. do que o mitológico Ganymedes. 48. Com os olhos fitos no 48. Com os olhos fitos no firmamento, Com os olhos fitos no firmamento, Bradamante vai Bradamante vai seguindo com sua firmamento, Bradamante vai seguindo com sua vista o seu vista o seu amado, enquanto lhe é seguindo com sua vista o seu amado, enquanto lhe é licito licito distinguir-lhe a figura no alto amado,; depois, quando o olhar distinguir-lhe a figura no alto espaço; depois, quando o olhar não não pode já avistá-lo, continua espaço; depois, quando o olhar pode já avistá-lo, continua ainda a ainda a segui-lo com o não pode já avistá-o, continua seguí-lo com o pensamento, se dar pensamento, se dar tréguas aos ainda a segui-lo com o tréguas aos suspiros, aos gemidos,nem suspiros, nem ás lagrimas. pensamento, se dar tréguas aos ás lagrimas. E, quando por fim Rogério se lhe suspiros, aos gemidos,nem ás E, quando por fim Rogério se lhe torna completamente invisível, lagrimas. torna completamente invisível, deita deita os olhos no seu corcel E, quando por fim Rogério se lhe os olhos então para no seu corcel Frontino, e resolve toma-lo por si torna completamente invisível, Frontino, e resolve toma-lo por si como lembrança do seu amado. deita os olhos então para corcel como lembrança do seu amado. Frontino. 49. Para que ninguém se atreva a 49. Para que ninguém se atreva a E entretanto vai o Hippogrypho chamar-lhe seu, e para que ela chamar-lhe seu, e para que ela possa subindo, sem que Rogério sem possa um dia restituí-lo a seu um dia restituí-lo a seu legitimo dono, que Rogério consiga sofre-lo .Tão legitimo dono, resolve resolve Bradamante não abandonar o alto vai que o cavaleiro consegue Bradamante não abandonar o cavalo. E entretanto vai o diferenciar dos montes os vales. cavalo. E entretanto vai o Hippogrypho subindo, subindo sem E vejamos o que faz Hippogrypho subindo, subindo que Rogério logre-se-lhe senhor dos Rinaldo. sem que Rogério logre-se-lhe rédeas sem que Rogério consiga senhor dos rédeas.Tão alto vai e sofre-lo .Tão alto vai e tão baixa se tão baixa se lhe afiguram as lhe afiguram as montanhas que o montanhas que o cavaleiro cavaleiro consegue diferenciar dos consegue diferenciar dos montes montes os vales. os vales. E vejamos o que faz Rinaldo. E vejamos o que faz Rinaldo.

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50. Chegado que foi um a uma 50. Chegado que foi um a uma Chegado que foi um a uma enormíssima altura (tão enorme, enormíssima altura (tão enorme, que enormíssima altura (tão enorme, que se alguém cá de baixo se alguém cá de baixo olhasse para lá, que se alguém cá de baixo olhasse olhasse para lá, cuidaria distinguir cuidaria distinguir apenas um simples para lá, cuidaria distinguir apenas apenas um simples ponto no ponto no espaço), o Hippogrypho um simples ponto no espaço), o espaço), o Hippogrypho dirige dirige seu vôo para a região em que o Hippogrypho dirige seu vôo para a seu vôo para a região em que o Sol costuma esconder-se quando entra região em que o Sol costuma Sol costuma esconder-se quando no signo de câncer. A maneira por que esconder-se quando entra no signo entra no signo de câncer. A ele funde os ares faz lembrar o rápido de câncer. A maneira por que ele maneira por que ele funde os ares andamento de um navio quando lhe funde os ares faz lembrar o rápido faz lembrar o rápido andamento sopra vento propicio. andamento de um navio quando de um navio quando lhe sopra Deixemo-lo ir seu caminho, e lhe sopra vento propicio. vento propicio. voltemos ao paladino Reinaldo. Deixemo-lo ir seu caminho, e Deixemo-lo ir seu caminho, e voltemos ao paladino Reinaldo. voltemos ao paladino Reinaldo.

51. Sacudido pela procela, 51. Sacudido pela procela, Reinaldo Sacudido pela procela, Reinaldo Reinaldo percorreu durante dois percorreu durante dois dias um grande percorreu durante dois dias um dias um grande espão de mar, já espão de mar, já na direção do poente, grande espão de mar, já na direção na direção do poente, já na já na direção do norte. E os ventos do poente, já na direção do norte. direção do norte. E os ventos sempre e sempre assobiando E os ventos sempre e sempre sempre e sempre assobiando furiosos!...Afinal conseguiu aproar á assobiando furiosos!...Afinal furiosos!...Afinal conseguiu Escócia, desembarcando em praia conseguiu aproar á Escócia, aproar á Escócia, desembarcando convizinha da celebre floresta desembarcando em praia em praia convizinha da celebre Caledonia, onde amiúde, por entre os convizinha da celebre floresta floresta Caledonia, onde amiúde, folhados de antiqüíssimo carvalhos, se Caledonia, onde amiúde, por entre por entre os folhados de ouve ressoar o estridor das armas. os folhados de antiguíssimos antiqüíssimo carvalhos, se ouve carvalhos, se ouve ressoar o ressoar o estridor das armas. estridor das armas.

52. Vagueiam n‟aquella selva 52. Vagueiam n‟aquella selva 52. Vagueiam n‟aquella selva cavaleiros-andantes, cavaleiros-andantes, afamadíssimos, cavaleiros-andantes, afamadíssimos, não só de toda a não só de toda a Bretanha e dos paises afamadíssimos, não só de toda a Bretanha e dos paises circunvizinhos, mas inclusivamente Bretanha e dos paises circunvizinhos, mas dos que mais afastados ficam, tais circunvizinhos, mas inclusivamente dos que mais como França, Noruega e Alemanha. inclusivamente dos que mais afastados ficam, tais como Quem não possuir grande valor, afastados ficam, tais como França, França, Noruega e Alemanha. escusa de lá ir, - porque, em vez da Noruega e Alemanha. Quem não Quem não possuir grande valor, glória, arrisca-se a encontrar a morte. possuir grande valor, escusa de lá escusa de lá ir, - porque, em vez Lançarote e Arthur, e Tristão, e vários ir, - porque, em vez da glória, da glória, arrisca-se a encontrar a outros cavaleiros da celebre Távola arrisca-se a encontrar a morte. morte. Lançarote e Arthur, e Redonda, ali se distinguiram por suas Lançarote e Arthur, e Tristão, e Tristão, e vários outros cavaleiros inclitas proezas. vários outros cavaleiros da celebre da celebre Távola Redonda, ali se Távola Redonda, ali se distinguiram por suas inclitas distinguiram por suas inclitas proezas. proezas.

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53. Restam d‟esse tempo ainda 53. Restam d‟esse tempo ainda em Restam d‟esse tempo ainda em em comemoração monumentos e comemoração monumentos e troféus comemoração monumentos e troféus pomposos. Reinaldo, pomposos. Reinaldo, saltando em troféus pomposos. Reinaldo, saltando em terra com seu cavalo terra com seu cavalo e suas armas, saltando em terra com seu cavalo e e suas armas, despede os despede os marinheiros e dá ordem suas armas, despede os marinheiros e dá ordem para que para que vão esperá-lo no porto de marinheiros e dá ordem para que vão esperá-lo no porto de Berwick. vão esperá-lo no porto de Berwick. Berwick.

54. Sem escudeiro e sem guia, o 54. Sem escudeiro e sem guia, o Sem escudeiro e sem guia, o cavaleiro embrenha-se por aquella cavaleiro embrenha-se por aquella cavaleiro embrenha-se por aquella selva imensa, aqui seguindo uma selva imensa, aqui seguindo uma selva imensa, aqui seguindo uma vereda, tomando acolá por outra, vereda, tomando acolá por outra, e vereda, tomando acolá por outra, e e contando sempre com as mais contando sempre com as mais contando sempre com as mais extraordinárias aventuras. extraordinárias aventuras. extraordinárias aventuras. No primeiro dia chegou ele a um No primeiro dia chegou ele a um No primeiro dia chegou ele a um mosteiro, onde partes dos mosteiro, onde partes dos mosteiro, onde partes dos rendimentos costumam os frades rendimentos costumam os frades rendimentos costumam os frades consumir na bela hospedagem consumir na bela hospedagem com consumir na bela hospedagem com com que recebem quantas damas que recebem quantas damas e quantos que recebem quantas damas e e quantos cavaleiros ali acodem cavaleiros ali acodem das cercanias. quantos cavaleiros ali acodem das das cercanias. cercanias.

55. Tanto o abade como os outros 55. Tanto o abade como os outros Tanto o abade como os outros monges dispensaram a Reinaldo o monges dispensaram a Reinaldo o monges dispensaram a Reinaldo o mais grato acolhimento. Depois mais grato acolhimento. Depois de mais grato acolhimento. Depois de de restaurar o estomago com as restaurar o estomago com as restaurar o estomago com as excelentes iguarias que lhe excelentes iguarias que lhe excelentes iguarias que lhe ofereceram em refeições, ofereceram em refeições, perguntou- ofereceram em refeições, perguntou-lhes Reinaldo como lhes Reinaldo como era que n‟aquele perguntou-lhes Reinaldo como era era que n‟aqueles territórios território haviam podido que n‟aqueles territórios haviam haviam podido proporcionar-se proporcionar-se aventuras, e qual o podido proporcionar-se aventuras, aventuras, e qual o sitio em que sitio em que seria mais fácil e qual o sitio em que seria mais seria mais fácil demonstrar, por demonstrar, por algum feito notável, o fácil demonstrar, por algum feito algum feito notável, o alto valor alto valor da cavalaria. notável, o alto valor da cavalaria. da cavalaria.

56. responderam-lhe por que entre 56. responderam-lhe por que entre responderam-lhe por que entre aqueles bosques poderiam aqueles bosques poderiam deparar-se- aqueles bosques poderiam deparar-se-lhe estranhas lhe estranhas aventuras; que os feitos deparar-se-lhe estranhas aventuras; que os feitos gloriosos gloriosos ficam ás vezes obscuros, aventuras; que os feitos gloriosos ficam ás vezes obscuros, como as como as localidades, unicamente por ficam ás vezes obscuros, como as localidades, unicamente por não não ter d‟elles transpirado noticia. localidades, unicamente por não ter d‟elles transpirado noticia. E disseram-lhe: - Procurai vós os ter d‟elles transpirado noticia. E disseram-lhe: - Procurai vós os sítios em que tiverdes a certeza de que E disseram-lhe: - Procurai vós os sítios em que tiverdes a certeza de não ficam ignorados os atos que sítios em que tiverdes a certeza de que não ficam ignorados os atos praticardes; passadas os perigos e as que não ficam ignorados os atos que praticardes; passadas os fadigas, a Fama celebrara que praticardes; passadas os perigos e as fadigas, a Fama condignamente as vossas proezas. perigos e as fadigas, a Fama celebrara condignamente as celebrara condignamente as vossas proezas. vossas proezas.

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57. Quereis dar provas de vossa 57. Quereis dar provas de vossa 57. Quereis dar provas de vossa valentia? Agora se vos oferece a valentia? Agora se vos oferece a mais valentia? Agora se vos oferece a mais gloriosa empresa que já em gloriosa empresa que já em tempo mais gloriosa empresa que já em tempo algum se deparou a algum se deparou a cavaleiro. É o tempo algum se deparou a cavaleiro. É o caso que a filha do caso que a filha do nosso rei esta cavaleiro. É o caso que a filha do nosso rei esta precisamente n‟esta precisamente n‟esta ocasião carecendo nosso rei esta precisamente n‟esta ocasião carecendo de quem a de quem a socorra e defenda contra o ocasião carecendo de quem a socorra e defenda contra o barão barão Lurcanio: vai n‟isso a vida e a socorra e defenda contra o barão Lurcanio: vai n‟isso a vida e a honra da princesa. Lurcanio: vai n‟isso a vida e a honra da princesa. honra da princesa.

58. Este Lurcanio (por ódio talvez 58. Este Lurcanio (por ódio talvez Este Lurcanio (por ódio talvez mais do que por verdade) foi mais do que por verdade) foi declarar mais do que por verdade) foi declarar a El-Rei, que tinha a El-Rei, que tinha surpreendido uma declarar a El-Rei, que tinha surpreendido uma noite a princesa noite a princesa no ato criminoso de surpreendido uma noite a princesa no ato criminoso de fazer entrar fazer entrar pela janela um amante. As no ato criminoso de fazer entrar pela janela um amante. As leis do leis do reino sentenciam-n‟a a morrer pela janela um amante. As leis do reino sentenciam-n‟a a morrer na na fogueira, se no intervalo de um mês reino sentenciam-n‟a a morrer na fogueira, se no intervalo de um (e o prazo esta quase a expirar!) não fogueira, se no intervalo de um mês (e o prazo esta quase a tiver ela encontrado um campeão que mês (e o prazo esta quase a expirar!) não tiver ela encontrado se preste a desmentir o injusto expirar!) não tiver ela encontrado um campeão que se preste a acusador. um campeão que se preste a desmentir o injusto acusador. desmentir o injusto acusador.

59. Na Escócia a severidade das 59. Na Escócia a severidade das leis Na Escócia a severidade das leis leis assim o determina: toda a assim o determina: toda a mulher, de assim o determina: toda a mulher, mulher, de qualquer condição a qualquer condição a quem acusem de de qualquer condição a quem quem acusem de ter tido amores ter tido amores comum homem, sem acusem de ter tido amores comum comum homem, sem com ele com ele estar casada, é homem, sem com ele estar casada, estar casada, é irrevogalmente irrevogalmente condenada a morte. E é irrevogalmente condenada a condenada a morte. E nada a pode nada a pode salvar, exceto se algum morte. E nada a pode salvar, salvar, exceto se algum valoroso valoroso guerreiro quiser, por exceto se algum valoroso guerreiro guerreiro quiser, por defendel-a, defendel-a, sustentar que tal mulher quiser, por defendel-a, sustentar sustentar que tal mulher esta esta inocente de semelhante calúnia e que tal mulher esta inocente de inocente de semelhante calúnia e por conseguinte não merece castigo. semelhante calúnia e por por conseguinte não merece conseguinte não merece castigo. castigo.

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60. El-Rei, verdadeiramente 60. El-Rei, verdadeiramente El-Rei, verdadeiramente consternado pelo caso que se dá consternado pelo caso que se dá com consternado pelo caso que se dá com a bela Genebra ( Genebra se a bela Genebra (Genebra se chama à com a bela Genebra ( Genebra se chama a princesa) mandou deitar princesa) mandou deitar pregão por chama a princesa) mandou deitar pregão por cidades e vilas, cidades e vilas, convidando quem se pregão por cidades e vilas, convidando quem se preste a preste a pugnar em prol da infeliz, e convidando quem se preste a pugnar em prol da infeliz, e prometendo a quem logre triunfar pugnar em prol da infeliz, e prometendo a quem logre triunfar d‟aquella odiosa calúnia (uma vez que prometendo a quem logre triunfar d‟aquella odiosa calúnia (uma vez seja guerreiro de família nobre) não d‟aquella odiosa calúnia (uma vez que seja guerreiro de família só a mão da própria princesa, mas que seja guerreiro de família nobre) não só a mão da própria inclusivamente as honrarias todas nobre) não só a mão da própria princesa, mas inclusivamente as condignas de um dote adequado a princesa, mas inclusivamente as honrarias todas condignas de um semelhante consórcio. honrarias todas condignas de um dote adequado a semelhante dote adequado a semelhante consórcio. consórcio.

61. Se no intervalo do mês 61. Se no intervalo do mês ninguém Se no intervalo do mês ninguém ninguém aparecer a sustentar a aparecer a sustentar a inocência da aparecer a sustentar a inocência da inocência da bela genebra, ou bela genebra, ou quando por bela genebra, ou quando por quando por infelicidade o seu infelicidade o seu defensor não logre infelicidade o seu defensor não defensor não logre triunfar de triunfar de quem a acusa, a desditosa logre triunfar de quem a acusa, a quem a acusa, a desditosa perecerá infalivelmente. Ora não vos desditosa perecerá infalivelmente. perecerá infalivelmente. Ora não parece mais própria uma empresa Ora não vos parece mais própria vos parece mais própria uma d‟estas, que andar errante pelos uma empresa d‟estas, que andar empresa d‟estas, que andar errante bosques em busca de aventuras? errante pelos bosques em busca de pelos bosques em busca de Alem da honra e da glória, que aventuras? Alem da honra e da aventuras? Alem da honra e da eternamente ficarão engrinaldando o glória, que eternamente ficarão glória, que eternamente ficarão vosso nome, tereis por premio a flor engrinaldando o vosso nome, engrinaldando o vosso nome, de quantas beldades há por esse tereis por premio a flor de quantas tereis por premio a flor de quantas mundo a contar na Índia e a terminar beldades há por esse mundo a beldades há por esse mundo a nos confins ocidentes da Europa. contar na Índia e a terminar nos contar na Índia e a terminar nos confins ocidentes da Europa. confins ocidentes da Europa. 62. E a riqueza do dote! E a 62. E a riqueza do dote! E a grandeza E a riqueza do dote! E a grandeza grandeza da posição? E a gratidão da posição? E a gratidão d‟El-Rei da posição? E a gratidão d‟El-Rei d‟El-Rei pelo fato de lhe pelo fato de lhe reabilitardes sua pelo fato de lhe reabilitardes sua reabilitardes sua honra (que hoje honra (que hoje perdida esta quase) honra (que hoje perdida esta perdida esta quase) Não Não constituirá isso tudo elementos quase) Não constituirá isso tudo constituirá isso tudo elementos para ficardes feliz. As próprias leis da elementos para ficardes feliz. As para ficardes feliz. As próprias cavalaria vos estão impondo a próprias leis da cavalaria vos estão leis da cavalaria vos estão obrigação de vingar contra impondo a obrigação de vingar impondo a obrigação de vingar semelhante perfídia uma donzela que, contra semelhante perfídia uma contra semelhante perfídia uma na opinião publica, passa por um donzela que, na opinião publica, donzela que, na opinião publica, modelo de verdadeira castidade. passa por um modelo de passa por um modelo de verdadeira castidade. verdadeira castidade.

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63. Reinaldo esteve uns instantes 63. Reinaldo esteve uns instantes Reinaldo esteve uns instantes refletindo, e afinal respondeu: - refletindo, e afinal respondeu: - Há de refletindo, e afinal respondeu: - Há Há de uma donzela ser condenada uma donzela ser condenada á morte, de uma donzela ser condenada á á morte, unicamente por ter unicamente por ter correspondido aos morte, unicamente por ter correspondido aos fogosos fogosos desejos do mancebo que a correspondido aos fogosos desejos desejos do mancebo que a adora. adora. Maldito seja quem semelhante do mancebo que a adora. Maldito Maldito seja quem semelhante lei lei decretou! E maldito quem não seja quem semelhante lei decretou! decretou! E maldito quem não resolve derrogá-lo! Morrer... merecerá E maldito quem não resolve resolve derrogá-lo! Morrer... a mulher cruel que se não compadece derrogá-lo! Morrer... merecerá a merecerá a mulher cruel que se do amante! Nunca a mulher sensível mulher cruel que se não não compadece do amante! Nunca que se presta a fazê-lo viver em compadece do amante! Nunca a a mulher sensível que se presta a gozos! mulher sensível que se presta a fazê-lo viver em gozos! fazê-lo viver em gozos!

64. Verdadeiro ou falso que seja o 64. Verdadeiro ou falso que seja o que Verdadeiro ou falso que seja o que que dizem de Ginebra... poucos dizem de Ginebra... poucos me dizem de Ginebra... poucos me me importa! Não serei eu quem importa! Não serei eu quem lhe importa! Não serei eu quem lhe lhe irrogue censura pelo fato de irrogue censura pelo fato de que a irrogue censura pelo fato de que a que a incriminam. Eu aqui... só incriminam. Eu aqui... só tardo de me incriminam. Eu aqui... só tardo de tardo de me constituir seu constituir seu campeão. Prestai-me me constituir seu campeão. campeão. Prestai-me vós um guia vós um guia que me leve á presença Prestai-me vós um guia que me que me leve á presença de quem a de quem a acusa: e espero em Deus leve á presença de quem a acusa: e acusa: e espero em Deus que hei que hei de salvar a princesa. espero em Deus que hei de salvar de salvar a princesa. a princesa.

65. Não irei de negar o fato de 65. Não irei de negar o fato de que se Não irei de negar o fato de que se que se trata, - porque, não tendo trata, - porque, não tendo provas trata, - porque, não tendo provas provas decisivas, arrisca-me a ir decisivas, arrisca-me a ir afirmar uma decisivas, arrisca-me a ir afirmar afirmar uma falsidade. Mas falsidade. Mas sustentarei que só de uma falsidade. Mas sustentarei que sustentarei que só de um espírito um espírito injusto ou desvairado e só de um espírito injusto ou injusto ou desvairado e que que poderia partir a idéia de uma lei desvairado e que poderia partir a poderia partir a idéia de uma lei tão iníqua, - lei que deve suprimir-se, idéia de uma lei tão iníqua, - lei tão iníqua, - lei que deve substituindo-a por outra mais sensata. que deve suprimir-se, suprimir-se, substituindo-a por substituindo-a por outra mais outra mais sensata. sensata.

66. Se no coração feminino 66. Se no coração feminino existe inato Se no coração feminino existe inato o existe inato o mesmo o mesmo sentimento de amor que existe mesmo sentimento de amor que existe sentimento de amor que existe no do homem, e se ambos identicamente no do homem, e se ambos no do homem, e se ambos propendem para aquella intimidade de identicamente propendem para aquella identicamente propendem para afetos que o vulgo ignaro taxa de grave intimidade de afetos que o vulgo aquella intimidade de afetos delito,- que direito há para exigir da ignaro taxa de grave delito, que direito que o vulgo ignaro taxa de mulher umas responsabilidades a que o há para exigir da mulher umas grave delito que direito há para homem se forta? Acaso o que para este responsabilidades a que o homem se exigir da mulher umas fica impune, e ate chega a constituir forta? Acaso o que para este fica responsabilidades a que o motivo de vangloria, deve acaso impune, e ate chega a constituir

259 homem se forta? Acaso o que considera-se n‟aquella um crime? motivo de vangloria, deve acaso para este fica impune, e ate considera-se n‟aquella um crime? chega a constituir motivo de vangloria, deve acaso considera-se n‟aquella um crime?

67- É uma desigualdade 67. É uma desigualdade injustíssima É uma desigualdade injustíssima com injustíssima com que a vossa com que a vossa lei agrava a condição que a vossa lei agrava a condição lei agrava a condição feminil! feminil! Com o favor de deus, espero feminil! Com o favor de deus, espero Com o favor de deus, espero demonstrar o amor que houve em tal-a demonstrar o amor que houve em demonstrar o amor que houve conservado a vigorar por tão largo tal-a conservado a vigorar por tão em tal-a conservado a vigorar espaço de tempo. largo espaço de tempo. por tão largo espaço de tempo. Concordaram todos, com Reinaldo, em Concordaram todos, com Reinaldo, Concordaram todos, com que os antigos haviam sido realmente em que os antigos haviam sido Reinaldo, em que os antigos injustos e desarrazoados por realmente injustos e desarrazoados haviam sido realmente injustos consentirem como lei uma iniqüidade por consentirem como lei uma e desarrazoados por semelhante: e chegaram não menos á iniqüidade semelhante: e chegaram consentirem como lei uma conclusão de que mal procederia ao rei, não menos á conclusão de que mal iniqüidade semelhante: e se, podendo, lhe não pusesse o remédio. procederia ao rei, se, podendo, lhe não chegaram não menos á pusesse o remédio. conclusão de que mal procederia ao rei, se, podendo, lhe não pusesse o remédio. 68. No dia seguinte, quando 68. No dia seguinte, quando sobre o 68. No dia seguinte, quando sobre o sobre o hemisfério se hemisfério se desdobraram rutilantes os hemisfério se desdobraram desdobraram rutilantes os clarões da aurora, Reinaldo saiu armado rutilantes os clarões da aurora, clarões da aurora, Reinaldo saiu e montado no seu Baiardo, levando por Reinaldo saiu armado e montado no armado e montado no seu guia um escudeiro que andou com ele seu Baiardo, levando por guia um Baiardo, levando por guia um pela floresta léguas e léguas, em direção escudeiro que andou com ele pela escudeiro que andou com ele ao lugar onde tinha de se decidir pelas floresta léguas e léguas, em direção pela floresta léguas e léguas, armas a culpabilidade ou a inocência da ao lugar onde tinha de se decidir em direção ao lugar onde tinha donzela. pelas armas a culpabilidade ou a de se decidir pelas armas à inocência da donzela. culpabilidade ou a inocência da donzela.

69. Para encurtar caminho, 69. Para encurtar caminho, tinham os Para encurtar caminho, tinham os tinham os dois viajantes dois viajantes largados a estrada dois viajantes largados a estrada largados a estrada ordinária e ordinária e seguido por um atalho... ordinária e seguido por um atalho... seguido por um atalho... n‟isto, n‟isto, sentiram elles a pequena n‟isto, sentiram elles a pequena sentiram elles a pequena distancia gemidos que repercutiam pela distancia gemidos que repercutiam distancia gemidos que floresta em redor. Picam ambos de pela floresta em redor. Picam repercutiam pela floresta em esporas na direção do Valle em que lhes ambos de esporas na direção do redor. Picam ambos de esporas parecia serem os gemidos... E eis se lhes Valle em que lhes parecia serem os na direção do Valle em que lhes depara entre dois malfeitores uma gemidos... E eis se lhes depara entre parecia serem os gemidos... E donzela, que de longe parecia ser mui dois malfeitores uma donzela, que eis se lhes depara entre dois formosa. de longe parecia ser mui formosa. malfeitores uma donzela, que de longe parecia ser mui formosa.

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70. Formosas realmente, mas 70. Formosas realmente, mas lavada em 70. Formosas realmente, mas lavada lavada em lagrimas e lagrimas e aflitíssima! Os dois em lagrimas e aflitíssima! Os dois aflitíssima! Os dois malfeitores, malfeitores, com o ferro erguido, malfeitores, com o ferro erguido, com o ferro erguido, dispunham-se para derramar o sangue dispunham-se para derramar o dispunham-se para derramar o da infeliz. Entretanto com suas sangue da infeliz. Entretanto com sangue da infeliz. Entretanto reiteradas súplica diligenciava a triste suas reiteradas súplicas diligenciava com suas reiteradas súplicas retardar o momento fatal, esperançada a triste retardar o momento fatal, diligenciava a triste retardar o em que afinal se compadecem d‟ela... esperançada em que afinal se momento fatal, esperançada em Foi n‟este ponto que Reinaldo compadecem d‟ela... que afinal se compadecem chegou. Mal percebeu de que se tratava, Foi n‟este ponto que Reinaldo d‟ela... correu altos gritos e terríveis ameaças. chegou. Mal percebeu de que se Foi n‟este ponto que tratava, correu altos gritos e Reinaldo chegou. Mal percebeu terríveis ameaças. de que se tratava, correu altos gritos e terríveis ameaças.

71. Por seu lado os malfeitores, 71. Por seu lado os malfeitores, tão Por seu lado os malfeitores, tão tão depressa deram com os depressa deram com os olhos na depressa deram com os olhos na olhos na inesperada aparição, inesperada aparição, desataram a fugir e inesperada aparição, desataram a desataram a fugir e foram foram esconder-se no mias profundo fugir e foram esconder-se no mias esconder-se no mias profundo recesso do Valle. profundo recesso do Valle. recesso do Valle. O paladino nem sequer pensa em O paladino nem sequer pensa O paladino nem sequer correr traz d‟elles: dirige-se á dama, em correr traz d‟elles: dirige-se á pensa em correr traz d‟elles: desejoso de indagar que delito é o d‟ela dama, desejoso de indagar que dirige-se á dama, desejoso de para lhe quererem dar um castigo assim. delito é o d‟ela para lhe quererem indagar que delito é o d‟ela Para abreviar tempo ordena ao dar um castigo assim. Para abreviar para lhe quererem dar um escudeiro que ponha a dama na garupa: tempo ordena ao escudeiro que castigo assim. Para abreviar e volve a seguir seu caminho. ponha a dama na garupa: e volve a tempo ordena ao escudeiro que seguir seu caminho. ponha a dama na garupa: e volve a seguir seu caminho.

72. Depois... quanto mais a 72. Depois... quanto mais a contempla, Depois... quanto mais a contempla, contempla, mais bela lhe vai mais bela lhe vai parecendo; e mui mais bela lhe vai parecendo; e mui parecendo; e mui discreta se lhe discreta se lhe afigura, posto que ainda discreta se lhe afigura, posto que afigura, posto que ainda influenciada um pouco pelo terror do ainda influenciada um pouco pelo influenciada um pouco pelo transe a que estivera exposta. terror do transe a que estivera terror do transe a que estivera Quando Reinaldo lhe manifestou o exposta. exposta. desejo de saber os motivos d‟aquella Quando Reinaldo lhe manifestou o Quando Reinaldo lhe infeliz ocorrência, a donzela começou desejo de saber os motivos manifestou o desejo de saber os com voz suave e meiga a narrativa de d‟aquella infeliz ocorrência, a motivos d‟aquella infeliz suas aventuras. donzela começou com voz suave e ocorrência, a donzela começou meiga a narrativa de suas aventuras. com voz suave e meiga a narrativa de suas aventuras.

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