Valdir Denardin Cinthia Maria de Sena Abrahão Diomar Augusto de Quadros (Organizadores)

LITORAL DO PARANÁ – REFLEXÕES E INTERAÇÕES

MATINHOS Editora UFPR Litoral 2011 VALDIR FRIGO DENARDIN CINTHIA MARIA DE SENA ABRAHÃO DIOMAR AUGUSTO DE QUADROS (Organizadores)

LITORAL DO PARANÁ – REFLEXÕES E INTERAÇÕES

Revisão técnica: Afonso Takao Murata; Arlete Motter; Carlos Alberto Cioce Sampaio; Clynton Lourenço Corrêa; Daniel Fleig; Edmilson Paglia; José Lannes; Liliani Tiepollo; Luciana Ferreira; Manoel Flores Lesama; Maurício Fagundes Revisão do texto: dos autores Revisão final: dos organizadores Projeto gráfico e Editoração eletrônica: Monica Ardjomand Capa: Carlos Weiner

Catalogação na fonte

Litoral do Paraná: reflexões e interações / Organizadores: Valdir Frigo Denardin; Cinthia M. de Sena Abrahão; Diomar Augusto de Quadros. Matinhos: Editora UFPR Litoral, 2011. 268 p. ISBN 978-85-63839-08-4 (digitalizada) ISBN 978-85-63839-09-1 (impressa)

1.Litoral do Paraná. I. Denardin, Valdir Frigo. II. Abrahão, Cinthia M. de Sena. III. Quadros, Diomar Augusto de. CDD 981.62

Fernando Cavalcanti Moreira, CRB 9/1665

Editora UFPR LITORAL

Universidade Federal do Paraná Setor Litoral R. , 512 – Caiobá CEP 83260-000 - Matinhos, PR - Brasil © UFPR Litoral, 2011 Sumário

Prefácio 5

Apresentação 8

Parte I - Diálogos de Pesquisa e Extensão 12

Terra inválida, gente invisível: o caso das comunidades rurais extrativistas do litoral paranaense 13 Marcia Regina Ferreira | Raquel Rejane Bonato Negrelle| Rafael Augusto Ferreira Zanatta

Violência doméstica contra mulheres no Litoral do Paraná: olhares a partir um projeto de ensino/pesquisa/extensão 39 Nadia Terezinha Covolan | Daniel Canavese de Oliveira | Marcos Claudio Signorelli

Agroindústria familiar no Litoral paranaense: o caso das casas de farinha 50 Valdir Frigo Denardin | Luiz Fernando de Carli Lautert | Mayra Taiza Sulzbach | Claudinei Pedroso Ribas | Humberto Handchuka Piccin | Rosilene Komarchescki | Cecilia Hernandes Cury

Jovens e cultura política em Matinhos 71 Dione Lorena Tinti | Rodrigo Rossi Horochovski | Emerson Joucoski

Um diálogo entre Teoria e Prática, Arte e Ciência no ensino contemporâneo da Arte 93 Carlos Weiner M. de Souza

Periferias urbanas – território de complexidades: o caso da Vila Santa Maria em Paranaguá 111 Cinthia Maria de Sena Abrahão Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná: análise do quadro atual das associações de resíduos sólidos e suas relações 140 Cinthia Maria de Sena Abrahão | Lucia Helena Alencastro

Vivência no acampamento José Lutzenberger: análise da segurança alimentar e nutricional 163 Diomar Augusto de Quadros | Rafael Pantarolo Vaz | Murilo Carzino de Alcântara | Sirlândia Schappo | Eduardo Harder

Ações empreendedoras no meio rural: a comunidade pantanal do assentamento Nhundiaquara no litoral paranaense 184 Elsi do Rocio Cardoso Alano

Parte II - Diálogos de Pesquisa e Ensino 198

Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor: uma experiênia pedagógica na Universidade Federal do Paraná (Setor Litoral) 199 Cristiane Rocha-Silva | Marcia Regina Ferreira

Enfoque fisioterapêutico na saúde da criança matinhense 228 Luize Bueno de Araujo | Vera Lúcia Israel | Magda Maciel Ribeiro Stival

Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica 246 Daniela Gallon | Anna Raquel Silveira Gomes Prefácio Diante dos desafios de conciliar desenvolvimento e conservação ambiental, o Litoral Paranaense apresenta uma diversidade de experiên- cias que nos permite refletir sobre várias teorias, abordagens e realida- de, entre elas as interações entre sistemas sociais e ecológicos - em que a população interage com a natureza -, e na própria relação homem- homem. Fundamentalmente, este livro Litoral do Paraná: Diálogos e Intera- ções remete às dimensões humanas do desenvolvimento, compreendido à escala humana, como diria o ecossocioeconomista Manfred Max-Neef. O Litoral Paranaense constitui uma das franjas aluviais, senão conti- nentais, mais contínuas de Floresta Atlântica, resultado também de uma política de criação de Unidades de Conservação federais e estaduais. O território possui vulnerabilidade socioeconômica devido às au- sências históricas de políticas públicas, que evidentemente não con- tribuíram para o fortalecimento da cidadania e do tecido social carac- teristicamente marcado pela identidade territorial. Tal panorama com- promete a perspectiva de futuro quanto ao desenvolvimento territorial sustentável construído por e para quem vive e, ainda, viverá no local, compreendendo as dinâmicas ecossistêmicas. Dos sete municípios que compõem o litoral paranaense, cinco de- les – Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, e Paranaguá - es- tão abaixo da média estadual do Índice de Desenvolvimento Huma- no (IDH) Municipal. Da mesma forma, se encontram os sete municípios do Vale do Ribeira Paranaense, território também compreendido pelo Projeto Político Pedagógico da UFPR-Litoral – Adrianópolis, Bocaiúva do Sul, Cerro Azul, , Itaperuçu, e Tunas do Paraná. Matinhos e Pontal do Paraná, apenas estão um pouco acima dessa média. Um dos três critérios do IDH que puxa este índice para baixo é a ren- da per capita, sendo que todos os municípios estão abaixo da média do

5 Estado. Quanto ao índice de Gini, que mede a concentração de renda, retrata que não há um problema de concentração de renda no litoral. Até se pode sugerir que há falta de riqueza, no entanto na realidade em- pírica se verifica falta de acesso inclusivo à políticas públicas. No entanto, a conjuntura socioeconômica não é provocada pela criação de Unidades de Conservação dos últimos 20 anos, embora tam- bém haja controversas sobre o quanto que uma restrição ambiental pode desfavorecer comunidades tradicionais. Sob a visão bio ou ecocêntrica (o mito da natureza intocada) não há desenvolvimento que não impacte ambientalmente. Há que se questio- nar, sob o ponto de vista antropocêntrico, o quanto de desenvolvimento pode ser considerado territorialmente sustentável. Isso porque o que se convencionou chamar de desenvolvimento, - sobretudo pela perspec- tiva urbana-industrial-consumista-, mais se assemelha ao “mau” desen- volvimento, que se alicerça na desigualdade socioeconômica entre pa- íses com alto, médio e baixo índice de desenvolvimento humano. Além da própria contradição de que quanto maior o IDH maior é, geralmente, a pegada ecológica. Têm-se, então, dúvidas se a sociedade democrática é uma prerrogativa para a sustentabilidade. Baseando-se na política de bem-estar social europeu, se diria que não. Sob tal argumento, os modos de vida de populações tradicionais e híbridas do litoral do Paraná se aproximam mais do que se pode esperar do conceito de sustentabilidade, embora haja controvérsias quanto ao mito do bom selvagem. O que se quer ressaltar são as possibilidades de articulação entre os saberes, tanto dos acertos como dos equívocos do conhecimento científico e tradicional, no tratamento da relação homem e natureza. Embora o litoral paranaense represente pequena parcela da super- fície do Estado, há muitos modos de vida tradicionais ali inseridos. Esses modos de vida se confundem com as próprias comunidades tradicio- nais, que podem ser definidas por critérios geográficos - território iso- lado -, culturais - compartilhando costumes, usos e tradições, hábitos -, ou por funções socioeconômicas – variando por modos de produção.

6 Comunidades e modos de vida se confundem e se identificam no litoral paranaense - e, por extensão, do Vale do Ribeira - como extrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais, pequenos agricultores familiares, povos originários e quilombolas. Tais comunidades, mesmo que pos- suam descaracterizações, são ainda identificadas como tradicionais por conservarem padrões de subsistência, valores e costumes, o que pos- sibilita encontrar, no seu âmbito, o principal atrativo: a convivência de inspiração solidária, característica exótica atualmente do modo de vida urbano-consumista. Neste contexto, surge o setor litoral da Universidade Federal do Paraná, mais conhecida por UFPR Litoral, sob a inspiração da chamada educação é nossa praia, na qual ensino, pesquisa e extensão são compre- endidos como um todo sistêmico, no qual não é possível dissociar suas partes. Os capítulos aqui organizados refletem diálogos e interações entre o corpo docente e discente da UFPR-Litoral, na qual contam seus esfor- ços de conhecimento, compreensão, proposição e ação no território do litoral paranaense. Não querendo roubar o protagonismo dos organizadores, finalizo convidando aos leitores a realizarem esta viagem para conhecer o litoral do Paraná, sob a organização dos amigos Valdir Frigo Denardin e Dio- mar Augusto de Quadros e a amiga Cinthia Maria de Sena Abrahão, que foram meus colegas na minha rápida passagem pela UFPR-Litoral, no entanto muito intensa de felicidades.

Prof. Dr. Carlos Alberto Cioce Sampaio Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná Pesquisador do CNPq.

7 Apresentação

Este livro é resultante de um conjunto de reflexões produzidas em atividades de extensão e pesquisa universitária realizadas pela comu- nidade acadêmica e colaboradores da Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral (UFPR Litoral). Sua principal expressão consiste no com- prometimento dessa universidade com o seu entorno, o que reflete o propósito da criação da unidade educacional no litoral, com sede em Matinhos/PR. A temática “Litoral Paranaense” tem sido iluminadora das ações da universidade desde sua instalação em 2005. Ao mesmo tempo em que há o desafio de propor aos membros da comunidade acadêmica que aportem contribuições para a sociedade, existe a necessidade de conhe- cer de forma mais profunda essa porção do território brasileiro. O litoral do Paraná congrega sete municípios e um conjunto denso de questões instigadoras para aqueles que se inspiram na idéia de construção de uma sociedade mais justa e equilibrada. A diversidade de abordagens e de temáticas traduz uma amostra do mosaico de ações e de reflexões que derivam dos primeiros cinco anos de existência da UFPR Litoral. A partir da temática norteadora que se traduz no título “Litoral do Paraná: Interações e Reflexões” o livro foi organizado em duas partes. A primeira congrega os capítulos que realizam o que chamamos de “Di- álogos de pesquisa e extensão”, de forma geral são reflexões e relatos originados de trabalhos desenvolvidos em um dos municípios, em uma comunidade ou em um grupo de municípios. A segunda parte denomi- namos “Diálogos de pesquisa e ensino”, congrega capítulos nos quais os autores dialogam com as práticas sociais imprimidas pela universida- de no processo de repensar os cursos de graduação. Na primeira parte do livro denominada Diálogos de pesquisa e extensão, o primeiro texto “Terra inválida, gente invisível: o caso das co- munidades rurais extrativistas do litoral paranaense”, de Márcia Regina Ferreira, Raquel Negrelle e Rafael Zanatta, discute o caso das comunida-

8 des extrativistas do litoral paranaense e sua invisibilização no contexto contemporâneo. Fruto de uma profunda pesquisa sobre a temática, o texto traz substância teórico-prática para repensar a política ambiental brasileira à luz da realidade sociocultural sobre a qual ela se aplica. O segundo texto intitula-se “Violência doméstica contra mulheres no litoral do Paraná: olhares a partir de um projeto de ensino/pesquisa/exten- são”, de Nádia Covolan, Daniel Canavese e Marcos Signorelle, discute as- pectos derivados do mapeamento e estabelecimento de redes de cons- cientização, defesa dos direitos das mulheres e no combate à violência doméstica nos municípios do litoral do Paraná. A apuração de dados e as reflexões contidas nesse texto resultam de um trabalho que se estendeu entre os anos de 2007 e 2009. O terceiro texto, ‘Agroindústria familiar no litoral paranaense: o caso das casas de farinha”, de Valdir Frigo Denardin, Luiz Fernando de Carli Lautert, Mayra Sulzbach, Claudinei Ribas, Humberto Piccin, Rosilene Ko- marchescki e Cecília Cury, apresenta um amplo diagnóstico acerca da agroindústria de farinha de mandioca. O propósito central da pesqui- sa está na geração de subsídios para intervenções nesse segmento que congrega funções econômicas, sociais e culturais, definindo parte da identidade territorial das comunidades tradicionais do litoral. O quarto texto trata a temática da política e juventude sob o título “Jovens e cultura política em Matinhos”, de Dione Tinti, Rodrigo Horocho- vski e Emerson Joucoski. A reflexão dos autores é fruto de uma pesqui- sa de campo realizada em 2008, que possibilitou a análise comparativa entre a realidade local, a partir do recorte do município de Matinhos e a nacional. O texto seguinte, de Carlos Weiner M. de Souza, intitulado “Um diá- logo entre teoria e prática, arte e ciência no ensino contemporâneo de arte – análise do projeto Vila Educação e Arte em Paranaguá”, traz um conjunto de reflexões sobre a prática docente e seus desafios no campo da arte, a partir de resultados do projeto Vila Educação e Arte desenvolvido atra- vés da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), entre 2008 e 2010.

9 Em seguida, Cinthia Maria Sena Abrahão apresenta o texto “Perife- rias urbanas – território de complexidades: o caso da Vila Santa Maria em Paranaguá”, no qual realiza uma abordagem histórico-geográfica das ci- dades e da periferia urbana na modernidade, tendo em vista destacar o caso das periferias no contexto brasileiro. A partir daí busca elementos para discutir os resultados da pesquisa sobre a ocupação da Vila Santa Maria, porção territorial da periferia de Paranaguá. O texto “Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná”, de Cinthia Maria Sena Abrahão e Lucia Alencastro, discute os resultados da pesquisa desenvolvida pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), que diagnos- ticou a situação atual dos resíduos sólidos nos municípios do litoral pa- ranaense. O foco da análise são as associações de coletores/separadores de resíduos, que representam os atores para os quais a ITCP tem voltado mais fortemente suas ações desde sua implantação na UFPR Litoral. Na sequência está o texto “Vivência no acampamento José Lutzen- berger: análise da segurança alimentar e nutricional”, de Diomar Augusto de Quadros, Rafael Pantarolo Vaz, Murilo Carzino de Alcântara, Sirlândia Schappo e Eduardo Harder. Esse texto entrelaça a discussão da seguran- ça alimentar e nutricional à questão do acesso a terra, a partir do vivên- cia realizada no acampamento José Lutzenberger em Antonina. A primeira parte do livro encerra-se com o texto de Elsi do Rocio Cardoso Alano, intitulado “Ações empreendedoras no meio rural: a Comu- nidade Pantanal do assentamento Nhundiaquara no litoral paranaense”, que busca analisar o espaço rural e suas possibilidades empreende- doras, a partir de pesquisa realizada com as famílias do Assentamento Nhundiaquara – Gleba Pantanal, situado no município de Morretes/PR. A segunda parte do livro intitula-se Diálogos de pesquisa e ensino. O primeiro texto, “Educação e desenvolvimento na formação do empre- endedor: uma experiência pedagógica na Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral”, de Cristiane Rocha e Márcia Regina Ferreira, traz à tona as mudanças paradigmáticas na formação de gestores e seus reflexos na estruturação do curso de Gestão e Empreendedorismo.

10 O segundo texto, “Enfoque sistêmico na saúde da criança matinhen- se”, de Luize Bueno de Araujo, Vera Lúcia Israel e Magda Maciel Ribeiro Stival, em que destacam a necessidade da construção de indicadores de saúde, com foco na questão do desenvolvimento infantil, contribuindo com as políticas e programas de melhoria das condições de desenvolvi- mento humano da região. Encerrando essa parte do livro, o texto “Aspectos biológicos do pro- cesso de envelhecimento e atividade física”, de Daniela Gallon e Anna Ra- quel Silveira Gomes analisa a questão do envelhecimento a partir dos aspectos neuromusculares, cardiorrespiratórios e composição corporal no envelhecimento e, a partir de então, sensibilizar para reorientação da gestão pública para desenvolver avaliações, métodos, técnicas e instru- mentos relacionados a melhora da qualidade de vida e do desenvolvi- mento sustentável da comunidade do Litoral do Paraná. Finalizando esta apresentação, registramos nossos agradecimentos à equipe de revisores, ao artista visual Carlos Weiner pela produção da capa, a Monica Ardjomand pela diagramação do livro. À UFPR Litoral nosso muito obrigada pelo abrigo às atividades de pesquisa e extensão na real perspectiva da indissociabilidade.

Matinhos, novembro de 2011.

Valdir Denardin Cinthia Maria de Sena Abrahão Diomar Augusto de Quadros Organizadores

11 Parte I

Diálogos de Pesquisa e Extensão

12 Terra inválida, gente invisível: o caso das comunidades rurais extrativistas do litoral paranaense1

Marcia Regina Ferreira2 Raquel Rejane Bonato Negrelle3 Rafael Augusto Ferreira Zanatta4

“A justiça, a lei não veio para ajudar, para nós ela veio para acabar. Só chega aos pequenos, pois os grandes não sofrem com a força ambiental. A gente agora tá assim, gosta e quer produzir porque a gente é igual à terra, mas a nossa terra tá inválida e a gente também” Sebastião Almeida, membro da Comunidade São Joãozinho

Introdução - O Embate entre as Perspectivas Preservacionistas e Socioambientais no Tocante as Áreas de Proteção Ambiental e os Reflexos para as Comunidades Rurais A questão da conservação ambiental tem tomado a agenda dos atores governamentais nos últimos anos, principalmente pela política mundial contemporânea de fomento à criação de unidades de conserva- ção, no âmbito das diferentes categorias de manejo. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), instituído no Brasil através da Lei 9.985/2000, estabelece critérios definidos e normas para a implantação e gestão das unidades de conservação. Os objetivos do SNUC, explicitados em seu art. 4°, praticamente coincidem com aqueles estabelecidos pela União Internacional para Conservação da Natureza (UICN). Neste viés

1 Esta é uma versão ampliada do artigo Levando os Caiçaras a Sério: O caso da invisibilidade das Comunidades Extrativistas do Litoral Paranaense publicado no Encontro de Administração Pública e Governança da ANPAD realizado em Vitória/ES – 28 a 30 de novembro de 2010. 2 Administradora, Doutora em Agronomia e Professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 3 Biológa, Pós Doutora em Gestão Sustentável de Recursos Florestais Não- Madeiráveis e Professora do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]. 4 Bacharel em Direito e Mestrando em Direito na Universidade de São Paulo – E-mail: [email protected].

13 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Santilli (2005), assevera que este sistema de proposta de conservação é pautado em uma perspectiva socioambiental, que privilegia a interface entre biodiversidade e sociobiodiversidade, permeada pelo multicultu- ralismo e pela plurietnicidade; diferente da orientação preservacionista, que não atenta para as exigências e necessidades humanas concretas, preocupando-se apenas com o valor de espécies e ecossistemas. O conceito de bens socioambientais está presente e consolidado por todo o SNUC do Brasil, apoiando a tese do jurista José Afonso da Sil- va (2004) de que a defesa do meio ambiente não se reduz à proteção da fauna, flora e do meio físico, mas inclui também a proteção do próprio ser humano, através de suas atividades culturais e materiais. Ampliando o debate acerca das Unidades de Conservação, Vianna (2008) corrobo- ra Santilli (2005) ao sustentar que a aplicação do SNUC poderá propi- ciar que as populações rurais tradicionais, que vivem em unidades de conservação, saiam da posição de invisíveis e tornem-se protagonistas. Isso, por meio da valorização da sociodiversidade e o fortalecimento da organização das populações tradicionais, conferindo-lhes visibilidade e inclusão social, gerando também exercício da cidadania e promoção da justiça social. Nesse estudo, entende-se que as unidades de conser- vação de uso sustentável como as APAs - Área de Proteção Ambiental – podem ter um papel importante na busca por um desenvolvimento socialmente justo e equitativo, o que ainda não ocorre no Paraná, em razão de diversos fatores que serão apontados adiante. Arruda (1999) argumenta que não é só possível, mas é necessário, o caminho da inclusão das populações rurais no conceito de conservação e o investimento no reconhecimento de sua identidade. Tal inclusão se daria por meio de políticas que valorizem o seu saber e contribuam para a melhoria de suas condições de vida, bem como na garantia de sua participação na construção de uma política de conservação que tenha também como beneficiários as próprias comunidades rurais com ativi- dades extrativistas. Ming (1997), ao estudar as florestas e sua conservação, reconhece que as comunidades tradicionais conservam em seu próprio e específico

14 Terra inválida, gente invisível processo de manejo as mais diferentes espécies úteis. O uso de tecno- logias agrícolas menos agressivas por essas comunidades - no caso dos caiçaras, apenas a enxada -, permitiu a conservação das florestas nativas. Algumas regiões de Mata Atlântica no Paraná (as porções mais bem con- servadas desse ameaçado bioma) são exemplos dessa interação entre comunidades tradicionais/conservação do ambiente. O conhecimento e a valorização dessas tecnologias são fundamentais para que sejam es- tabelecidas propostas de políticas públicas visando o desenvolvimento sustentável dessas regiões e suas populações. No entanto, um grande problema no campo da gestão do território brasileiro (como a floresta atlântica) decorre da crescente internaciona- lização dos circuitos econômicos, financeiros e tecnológicos do capital mundializado, os quais, de um modo geral, debilitam os centros nacio- nais de decisão e dificultam o comando sobre os destinos de qualquer espaço brasileiro. Villa Verde (2004) argumenta que o território está su- jeito ao aparato público e jurídico em que estão estabelecidas relações de domínio distintas. Como é sabido, a divisão política e administrativa do Estado Brasileiro está organizada em três níveis: federal, estadual e municipal. Esses níveis, legitimados pela esfera pública, impõem-se como o primeiro recorte territorial. Esse recorte ignora a questão das et- nias e culturas e acaba por não reconhecer a condição do outro, daquilo que é distinto, genuíno. Junto a isso, soma-se à gestão do território, sua regulação, as quais são cada vez mais, segundo Santos (2000), domina- das pelas instâncias econômicas. O caso do litoral paranaense não é diferente. No desenvolvimento da pesquisa-ação por meio do Projeto de Extensão da Universidade Fe- deral do Paraná – Setor Litoral intitulado “Cultura e identidade: elemen- tos necessários na prática pedagógica e fortalecimento do local”, coor- denado pela Professora Marcia Regina Ferreira, foi possível identificar o sentimento de opressão que essas comunidades caiçaras rurais vêm sofrendo nas últimas décadas na Área de Proteção Ambiental de Guara- tuba. A declaração do caiçara Sebastião de Almeida, da Comunidade de São Joãozinho, é emblemática: “Antes a gente preparava o material para a pesca e fazia a roça que a gente queria. Aqui todo mundo trabalhava li-

15 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações berto, as famílias em 1940 até 1960, era muito livre. A pessoa trabalhava à vontade. Plantava seu arroz, plantava seu aipim, tinha cana de açúcar, farinha e pescava para comer. Agora é tudo diferente, nem farinha para a gente por no prato tem”. Quando se resgata a história política de nosso país, verifica-se que os governantes militares da década de setenta não levaram em conside- ração a grande perda da sociobiodiversidade brasileira provocada pelo interesse por um desenvolvimento econômico meramente industrial. Esse período foi marcado por incentivos fiscais mantidos para que gran- des grupos ocupassem áreas nativas – a Mata Atlântica do Paraná é um exemplo – com plantação de pinus. Tais programas de incentivos fiscais (Lei 5.106/1966) alteraram o espaço vivido das famílias rurais que preci- saram mudar sua forma de vida5. Perante esse legado pautado na exploração territorial com fins eco- nômicos, Villa Verde (2004) contra-argumenta que o território precisa ser visto com a possibilidade de ser o lugar de todos, sem excluir quem quer que seja. Nesse sentido, a responsabilidade pública deve prevalecer para que as desigualdades não sejam agravadas. E, por outro lado, cabe ao Estado o papel de gestor, planejador, regulamentador que defende os interesses da sociedade como um todo, e não de segmentos. Ao contextualizar a importância do Estado e o papel do ator go- vernamental acerca da conservação na perspectiva socioambiental, o objetivo do presente artigo firma-se em analisar, primeiro, as visões e percepções dos atores governamentais sobre as comunidades rurais extrativistas - de produtos florestais não madeiráveis (PFNM) - estabe- lecidas em unidades de conservação e, segundo, examinar como as ins- tituições governamentais enxergam as políticas públicas do Estado do Paraná. Conhecendo a visão destes atores sobre a conservação e sobre as comunidades tradicionais caiçaras, visou-se contribuir para a amplia- ção do diagnóstico sobre o meio de vida sustentável para as famílias extrativistas no contexto do desenvolvimento rural. 5 De 1966 até o inicio do século XXI o Brasil incentivou os monocultivos florestais (pinus e eucalipto) em grandes aéreas por meio de grandes empreendimentos e grandes proprietários. A extração da madeira que leva de 12 a 15 anos para o corte vem sendo apresentado aos pequenos agricultores como uma fonte segura: a poupança verde.

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Metodologia de Pesquisa - Como Organizar os Dados? Este estudo de caso (YIN, 2001) do litoral paranaense teve como base o método da teoria substantiva ou grounded theory (STRAUS; COURBIN, 2008). A partir dele delinearam-se estratégias para coleta de dados, com pesquisa documental e entrevistas semi-estruturadas com distintos atores da esfera governamental relacionados às questões am- bientais e agrárias (Quadro 1). Quadro 1. Instituições e atores governamentais entrevistados.

Municipal Estadual Federal Departamento de Secretaria da Agricultura e DFDA-PR - Delegacia Federal Agricultura do Abastecimento Estado do do Paraná do Ministério do Paraná (SEAB). Desenvolvimento Agrário Departamento de Secretaria do Meio Ambiente MPA - Ministério da Pesca Meio Ambiente e recursos hídricos (SEMA) e Aqüicultura - Superinten- Dep. Sociobiodiversidade dência Federal no Paraná. Secretaria do Secretaria de Estado do Pla- IBAMA Responsável da Uni- Bem Estar Social nejamento e coordenação dade geral (SEPL) do Paraná. Paraná Biodiversidade Secretaria da Instituto Ambiental Paraná ICMBIO- Instituto Chico Educação (IAP) – litoral/Regional Mendes da biodiversidade Atores Estaduais EMATER - Instituto Paranaense com atuação no de assistência técnica e exten- município. são rural. EMATER – Instituto IAP- Instituto Ambiental do EMBRAPA Floresta Paranaense de Paraná/Departamento socio- assistência técnica e ambiental extensão rural IAP- atua no Mun. de Guaratuba-PR. IAPAR – Instituto Agronômico BPflo – Batalhão da do Paraná EMBRAPA Floresta Policia Ambiental -Força Verde Fonte: Ferreira (2010). A coleta de dados pela análise documental deu-se por meio de pes- quisa em projetos, decretos, leis e outras fontes secundarias de dados, ocorrendo em vários momentos. No primeiro, para identificar possíveis entrevistados e os projetos desenvolvidos no Estado do Paraná, depois, para verificar os programas existentes. As entrevistas semi-estruturadas foram aplicadas (outubro a novembro de 2009) a atores governamentais

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(n=19) das distintas esferas (municipal, estadual e federal), previamente identificados na pesquisa documental como representantes de institui- ções que idealizam, formulam e executam ações aplicadas no litoral do Paraná. As entrevistas foram precedidas pela apresentação do pesquisador e proposta de trabalho. Os atores governamentais assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, garantindo a proteção e sigilo das in- formações fornecidas, bem como a interrupção de sua participação a qualquer tempo da pesquisa. A entrevista seguiu roteiro semi-estrutu- rado e também contou com comentários registrados por meio de gra- vação consentida. Como resultados das transcrições das dezenove entrevistas, obtive- ram-se oitenta e cinco laudas. Esse material foi submetido às análises de conteúdo (BARDIN, 1988) e substantiva (STRAUS; COURBIN, 2008), na qual os dados são analisados até a saturação para elucidar as categorias. O tratamento dos dados respeitou o processo de categorização com a identificação da visão dos atores governamentais em relação às ativida- des extrativistas, políticas públicas e comunidades que vivem na Mata Atlântica, a partir da agricultura de subsistência. Essas análises foram consubstanciadas nas abordagens de Scoones (1998) sobre nova ecolo- gia e Bebbington (2005) pelo meio de vida rural sustentável em relação à importância das instituições.

As Percepções dos Atores Governamentais em Relação às Comunidades Caiçaras Rurais Há mais de dez anos, Arruda (1999) apontou que as comunidades tradicionais, embora corporificassem um modo de vida tradicionalmente mais harmonioso com o ambiente, eram persistentemente desprezadas e afastadas de qualquer contribuição que poderiam oferecer à elabora- ção de políticas públicas regionais. Até hoje, de fato, pouca coisa mudou. As comunidades extrativistas ainda permanecem “invisíveis” para o Poder Público, em razão de seu fraco poder econômico e ausência de organiza-

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ção e representatividade política. No contexto deste trabalho, entende-se por comunidades caiçaras populações litorâneas que apresentam ligações com a terra por meio da lavoura de subsistência, pesca e extrativismo, através da relação de parentesco e ajuda mútua (DIEGUES, 1983). Bebbington (2005), discutindo os processos de desenvolvimento rural sustentável, aponta que as instituições e estruturas sociais tanto fortalecem como fragilizam o ambiente destas famílias. Outros autores indicam que a situação de pobreza no meio rural está diretamente alia- da à negação de direitos, capacidades e oportunidades (ADAMS, 2002; DRUMMOND, 2002; SCOONES, 1998, 1999; BEBBINGTON, 1999, 2005). Neste âmbito, o Estado e sua infra-estrutura devem viabilizar, fomentar e reforçar mecanismos de sobrevivência digna in loco, através da pos- sibilidade de alterar regras e relações dominantes estabelecidas para o controle e distribuição dos recursos (DRUMMOND, 1996; BEBBINGTON, 1999; 2005; PINHEIRO, 2002). Além de se considerar o papel público e jurídico do Estado, é importante analisar as forças da economia de mer- cado capitalista com relações distintas de domínio público e privado em suas diversas escalas (SCOONES, 1999). Long; Ploeg (1994) inserem o conceito de agência e estrutura, com papel central no estudo da origem e manipulação de informações no en- tendimento do desenvolvimento rural, tendo como princípio o modo que as pessoas categorizam, codificam, processam e imputam significado às suas experiências. Assim, Guivant (1997) pondera sobre a gestão do ter- ritório e a importância da heterogeneidade de conhecimentos nesses es- paços, com a aceitação de que o conhecimento é relativo às situações de interface com os atores. Essa interface com os atores governamentais não é encontrada quando se analisa as comunidades caiçaras (BEGOSSI, 1999), embora se compreenda a importância delas para as análises microssociais a fim de abandonar noções causais simplificadoras do território. Em relação ao território, especial cuidado deve ser dedicado às com- plexas áreas de Unidades de Conservação (UC), em razão da riqueza em sociodiversidade e biodiversidade, bem como pelos diversos conflitos ambientais e sociais relativos ao uso da terra (ADAMS, 2000a; SANTILLI,

19 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

2005). Com a criação das UCs, percebe-se a valorização em relação à con- servação da biodiversidade e o esquecimento sobre a riqueza cultural das pessoas locais (DUMORA, 2006). Embora Organizações Não Governamen- tais (ONGs) atuem nessas áreas interagindo com as populações rurais, o quadro de desigualdade não se altera devido à ênfase aos trabalhos de conservação (DIEGUES, 2008; ADAMS; 2000, 2000b, 2002). Exemplo desta dinâmica intrincada é encontrado na Área de Prote- ção Ambiental de Guaratuba no Paraná, com 92% da área deste município estabelecida desde 1992 como APA. Uma região com rica biodiversidade, com número significativo de famílias e heterogeneidade agrícola, onde coexistem a agricultura tradicional e comercial, em meio a complexida- des sociais agravadas pela pobreza das populações caiçaras (IAP, 2006). Na agricultura tradicional ocorre o cultivo de milho e mandioca para o consumo próprio, em áreas de um hectare, vindo o extrativismo comple- mentar a renda da unidade doméstica, existindo diferenças entre os que dependem do extrativismo dos PFNMs para sobrevivência e aqueles que o utilizam para reforçar o ganho mensal familiar (SONDA, 2002; BALZON, 2006; NOGUEIRA et al., 2006; FERREIRA, 2010). Dentre os estudos disponíveis sobre o extrativismo dos PFNMs na APA de Guaratuba, destacam-se os que enfatizam a cadeia produtiva (BALZON, 2006; NOGUEIRA et al., 2006), o enfoque etnobotânico (NEGRELLI; FORNA- ZZI, 2007, VALENTE, 2009) e ecológico de regeneração dos recursos utili- zados (VALENTE, 2009). Porém, pouco, ou quase nada, foi estudado sobre o impacto sócio-cultural-econômico e sua real sustentabilidade em rela- ção às famílias caiçaras. No entanto, esta informação não é nova. Adams (2000b), ao realizar um levantamento sobre os estudos acadêmicos, tam- bém identificou que os trabalhos publicados sobre conservação poucos tratavam o tema relativo às comunidades caiçaras. No litoral do Paraná, em especial na APA de Guaratuba, constata-se, ainda, que em relação à escala de interações das comunidades caiçaras em relação ao âmbito municipal e estadual, encontra-se uma verdadeira afronta aos princípios de participação e informação, que são o arcabou- ço valorativo e jurídico que sustentam as formas de participação da so-

20 Terra inválida, gente invisível ciedade nos processos de tomada de decisão coletiva (FERREIRA, 2010). Ademais, o próprio Poder Público, em suas diversas esferas, reconhece sua dificuldade em lidar com os problemas das comunidades tradicio- nais e fomentar a participação de tais comunidades na formulação de políticas públicas. Em razão de tal realidade, a pesquisa identificou a percepção dos atores governamentais acerca das comunidades tradicionais extrativis- tas na Área de Proteção Ambiental no Paraná e constatou um quadro grave com relação ao desenvolvimento de políticas públicas que sejam efetivas na garantia dos direitos constitucionais. Nesse estudo, as visões foram distribuídas em quatro classes – de- terminista indiferente, propositivo, favorável, desfavorável -, variando de acordo com a esfera de atuação política dos atores governamentais no âmbito Estadual e Municipal, conforme Figura 1. Para a melhor compreensão do posicionamento apresentado grafi- camente, deve-se analisar pontualmente o que cada uma dessas classes comportamentais, ou percepções acerca da realidade das comunidades extrativistas, por parte dos atores governamentais representa em sua dimensão político-social. Determinista indiferente: reconhece as limitações do Estado e estag- nação das comunidades rurais extrativistas. Alguns manifestam apatia sobre a situação de comunidades empobrecidas, quanto à dificuldade de operacionalização e desenvolvimento de ações no Estado. Eles reconhe- cem uma abordagem de planejamentos desenvolvida com alternativas elaboradas por técnicos, cabendo a atores estaduais e federais do Estado fazer cumprir essas determinações. Muitas decisões sobre conservação da Mata Atlântica são ideais, principalmente pela visão dos que são ex- ternos aos trabalhos no Paraná. A experiência demonstra o pouco inte- resse por caminhos, frente à realidade encontrada pelos atores governa- mentais que decidam diariamente sobre comunidades rurais tradicionais e conservação da natureza. Os funcionários afirmaram que não são con- sultados quando do planejamento de ações políticas e inclusão social.

21 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Figura 1. Distribuição percentual do posicionamento dos atores governamentais em relação às comunidades rurais extrativistas. Estadual Municipal

29% 41% 17% 43% 0% 17% 28% 25%

Determinista indiferente Propositivo Determinista indiferente Propositivo Favorável Desfavorável Favorável Desfavorável Fonte: Ferreira (2010).

Propositivo: favorável à manutenção das famílias no campo, reco- nhece as limitações do Estado, apresenta propostas para mudança pela perspectiva socioambientalista e revela constrangimento durante os diálogos e reflexões. O conhecimento, mesmo que histórico, sobre a realidade das comunidades caiçaras empobrecidas e o entendimento sobre o funcionalismo do Estado nos planejamentos de políticas terri- toriais geram desconforto profissional. Eles concordam e reconhecem que existem diversas dimensões: ambiental, cultural, espacial, demo- gráfica e econômica, e mesmo assim o Estado acaba sendo regulado pela dimensão econômica. Essas informações não são estáticas e rígi- das. Uma ação diferenciada poderá mudar o cenário de indiferença pre- senciado e manifestado. Favorável: considera importante a existência das comunidades na floresta para sua manutenção e do território com perspectiva so- cioambientalista. Destacam que as políticas públicas poderiam ser de- senvolvidas na retomada da presença do Estado, evitando que o poder paralelo constituído e atuante das ONGs e igrejas continuem a crescer nesses espaços empobrecidos. No entanto, não apresentam propostas nos diálogos ocorridos. Desfavorável: é contra a permanência de comunidades na floresta. Possui visão preservacionista e conservacionista, com atenção maior à preservação da floresta sem interação humana. O mito da Floresta como intocada.

22 Terra inválida, gente invisível

As visões e percepções demonstradas pelos atores governamen- tais do Paraná sobre as comunidades rurais extrativistas estabelecidas em unidades de conservação apresentaram um posicionamento (Figu- ra 1) que, embora num primeiro momento pareça favorável em rela- ção às comunidades caiçaras, é pessimista, tendente à concepção de aniquilamento das comunidades tradicionais em razão da organização e estrutura do Estado. Isto pois, no litoral do Paraná existem diversas instituições e estruturas sociais que fragilizam e impactam as comuni- dades caiçaras, tais como as ONGs; o Estado pela sua falta de atenção a essas populações; o sistema capitalista, por meio dos interesses de terra e preocupação ambiental; e a cultura, por sua história de subordinação e ênfase na abordagem preservacionista que prega a dicotomia confli- tante entre homem e natureza. Os atores governamentais envolvidos em pesquisa, extensão, fis- calização e desenvolvimento de programas de governo, apontam fra- gilidades e necessidades dos caiçaras paranaenses que vivem na Mata Atlântica, em relação ao seu modo de vida atual e futuro. Os elementos apontados emergem de uma posição dos atores governamentais, tanto do âmbito municipal, estadual quanto no federal (Quadro 2). Entre os atores governamentais, o Município mostrou-se favorável aos investimentos em relação à valorização da cultura caiçara e sua per- manência na Mata Atlântica. O Município foi, ao mesmo tempo, quem pontuou o quanto é difícil para o local desenvolver políticas de apoio e acesso a essas comunidades, pois o poder municipal atua atendendo demandas mais urgentes, e estas estão alocadas em grupos urbanos da cidade e grupos organizados do rural. Dentro desse cenário, os atores municipais, embora cientes da importância dessas comunidades, não conseguem ver alternativas para uma ação a partir do local. Além disso, os atores apresentaram que as políticas desenvolvidas nos últimos dez anos foram de intensificação da fiscalização e cuidado do meio ambiente por meio de leis ambientais, as quais não favorece- ram a agricultura familiar ou campesina dos caiçaras em regiões trans- formadas em área de proteção ambiental. Destacam ainda que essas

23 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações leis, por meio da intensificação da fiscalização, acabaram por excluir as comunidades tradicionais. As ações são de controle e coerção; e não de inclusão ou em educação para o desenvolvimento comunitário.

Quadro 2. Percepções dos atores nos âmbitos local, estadual e federal sobre o presente e o futuro das populações caiçara. Instituições Fragilidades das comunidades caiçaras do litoral paranaense Federal Não há interesse do Estado em dispensar atenção a essas populações caiçaras. Pois, existem instrumentos, na sociedade civil e internacional que protegem direitos humanos e deveriam ser aplicados na biodi- versidade. ONG A falta do Estado cria um Estado paralelo e surgem outros princípios em nome do meio ambiente. As populações caiçaras tradicionais em áreas transformadas em APA podem ser expulsas para a criação de RPPN. Município Não tem recursos para isso, nem estrutura, não tem pessoal técnico capacitado para operacionalizar essas ações. A gestão municipal é mais voltada para o urbano e o espaço rural organizado. Política Ação preser- A fragilidade deles está na ênfase na questão ambiental aliada à infra- vacionista estrutura precária unificada a omissão do Estado, o qual não tem in- vestimento e nem fundo cultural para essas comunidades. Os caiçaras rurais encontram-se em uma situação preocupante, porque o olham para eles como separados da natureza. Capitalismo O capitalismo faz com que elas percam a identidade, e os meios de trabalho. Fonte: Ferreira (2010). Os atores responsáveis pela fiscalização que atuam no âmbito do Município de Guaratuba acreditam que a criação da APA amplia a visibi- lidade dessas famílias e promove uma melhoria na sua condição de vida, embora exija também maior fiscalização. No entanto, identificou-se um desconhecimento dos próprios atores municipais em relação à APA, pois uma Secretaria indicou que a criação da APA melhorou muito a vida das famílias rurais extrativistas, o que demonstra uma falta de conhecimen- to da realidade. Ocorreu um forte investimento na APA em relação ao aparato do equipamento público para a fiscalização da área protegida (instalações novas, carros, equipamentos e uniformes). Alguns entrevistados revela- ram que, em nome do meio ambiente, o modo de vida dessas comuni- dades tem sido destruído, pois não há investimento na melhoria da qua-

24 Terra inválida, gente invisível lidade de vida, apenas na fiscalização para a conservação da natureza, voltada para a repreensão dessas comunidades. Afirmam que deveriam existir investimentos privados e públicos a fim de melhorar as condições de vida das comunidades residentes na APA. Os investimentos que ocorreram no Paraná no período de 1997 a 2007, por meio de um programa chamado Pró-Atlântica, financiado pelo banco alemão KFW, tiveram como objetivo a preservação e conservação da Floresta Atlântica. Foi escolhido o litoral do Paraná justamente por ser um dos locais maiores e mais bem conservados da Floresta Atlântica no Brasil, e por ser uma das unidades de conservação com rica biodiversi- dade. Foi um investimento de mais de cinqüenta milhões de euros, em dez anos. A política estabelecida por meio desse investimento privado teve como finalidade o controle e regulação sobre as famílias caiçaras, principalmente em relação ao seu modo de vida. A melhoria no modo de vida das famílias caiçaras, no entanto, so- mente será possível se as instituições públicas desenvolverem uma visão socioambiental em relação aos territórios ocupados por elas (SANTILLI, 2005). As relações estabelecidas atualmente ocorrem por meio de um distanciamento das realidades dessas comunidades, sendo que o Esta- do apenas aparece como instituição de regulação (como por exemplo, por meio do IAP) ou de controle e multa (por meio da Polícia Ambiental Força Verde). Essas ações culminam também em limite para ação extra- tivista sustentável pela falta de diálogo, entre as comunidades e Estado, para o estabelecimento de regras claras, e também pela necessidade que as famílias possuem de acessos a outros recursos, além dos naturais disponíveis na Mata Atlântica. Esse cenário oportuniza para que as famí- lias tornem-se ainda mais marginalizadas e exploradas pelos intermedi- ários, permanecendo em um ciclo perverso de pobreza (BELCHER, 2005, BALZON, 2006, VALENTE, 2009, FERREIRA, 2010). A partir dos estudos do projeto de extensão “Cultura e Identidade”, identificaram-se os mesmos elementos que Cristina Adams encontrou no litoral paulista. Adams (2002) relatou que as populações locais da Flo- resta Atlântica sempre ocuparam uma posição político-econômica peri-

25 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações férica e, nas últimas décadas, sofrem com a perda do seu modo de vida (agricultura, pesca e artesanato) devido aos processos de criação das Unidades de Conservação. As mudanças na paisagem rural promovem o fortalecimento da exclusão histórica e sócio-ambiental das comunida- des rurais litorâneas. No tocante à forma que estão estruturados os acessos para os di- álogos das comunidades com as instituições governamentais e como eles enxergam as políticas públicas do Estado do Paraná, observa-se que os atores governamentais consideram que essas políticas impactaram mais negativamente que positivamente nessas comunidades. A questão das políticas públicas voltadas para o litoral paranaense na análise dos próprios autores foi mais danosa que benéfica, quando ocorreram. O principal problema apontado está na falta de entendimen- to do Estado em relação à lógica do caiçara. A realidade do modo de vida e dos laços sociais que a permeiam, assim como as características específicas que os caiçaras possuem, precisa ser considerada na elabora- ção das políticas públicas. No entanto, os atores institucionais não con- seguem desenvolver esse diálogo necessário. Evidenciou-se que apenas dois programas do governo estadual apresentaram impactos positivos (Quadro 3). Quadro 3. Evidências do papel das políticas e seus impactos nas comunidades. Ações Frases das entrevistas Impacto Interferência do Estado Este projeto trabalha na área social e produtiva na ideia Positivo Projeto do Mutirão, estudar como funciona e propor para eles a Universidade partir da prática e não da lógica de mercado. Promove o Sem Fronteiras diálogo e reforça nas pessoas do meio rural a capacidade de acessar recursos. Paraná 12 meses. Política de cima para baixo, sem integra- Negativo Falta de ção. Seria necessário analisar a realidade para entrar com Integração projetos com aceitação da comunidade. Porém é muito difícil de trabalhar desse modo, não temos funcionários. O Estado está ausente e despreparado para atuar nas co- Negativo Ausência do munidades tradicionais. E quando intervém como política Estado pública geralmente ele é mais danoso do que benéfico. Fonte: Ferreira (2010), continua

26 Terra inválida, gente invisível

Ações Frases das entrevistas Impacto Interferência do Estado Falta gente para dialogar com esse pessoal mais distan- Negativo Diálogo por te, é preciso uma correlação de formas de organização meio de para formar conselhos e associações. E o que é ruim, é associação que quanto maior a condição de pobreza menor é o po- tencial de reivindicação. Fiscalização As restrições para o atendimento de demanda ambiental Negativo Falta de e privado sem diálogo com as comunidades tradicionais diálogo acarretam punição aos caiçaras a fim de prevenções in- fundadas para a proteção do meio ambiente. A cada 40 profissionais na fiscalização (federais e estadu- Negativo ais), temos no Estado 3 profissionais (entre agrônomo do Município e técnico da EMATER) para práticas agrícolas. Tarefa de Muitos para fiscalizar e poucos para fomento. É preciso repressão mudar isso. A tarefa tem sido de repressão do que integração, menos Negativo de conscientização sobre a preservação de uso sustentável. Política social Ação do Estado positiva em Serro Azul (PR). Existe um Positivo Políticas conjunto de agricultores organizados que se beneficiam organizadas das políticas específicas. Quando se organiza, consegue acessar o Estado. Precariedade no Há precariedades no acesso às estradas; comunicação, Negativo atendimento ás saúde, escolas e assistência técnica não chegam a essas comuni­dades comunidades, mas a fiscalização se faz presente. do campo Unidade de conservação e Legislação ambiental Facilitador Os acessos às políticas promovem desenvolvimento nas Negativo do acesso as comunidades, mas ficam apenas limitadas ao que já tem. políticas Porém, essas políticas não têm a abrangência necessária. Dicotomia ho- O método de subsistência tradicional serve para ali- Negativo mem e nature- mentar a família. No entanto, isso é visto como forma de za dificultam degradação ambiental pela legislação. É preciso que o a sustentabili- Estado mude o jeito de conceber o rural. dade cultural e ambiental Sociedade civil e perfil da comunidade caiçara Projetos in­ O técnico costuma aplicar projetos que não se adequam Negativo coe­­­­­rentes com à lógica de sobrevivência caiçara. a realidade e falta de infor- mação Clientelismo e personalismo nas ações políticas. As pes- Negativo Representati- soas empobrecidas têm dificuldades na escolha de seus vidade representantes; o voto virou moeda de troca. Outra forte influência é a igreja, gerando movimento de organização. Fonte: Ferreira (2010). 27 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Os impactos negativos foram relacionados à falta de integração, di- álogo, falta de associação e conscientização política das comunidades caiçaras, ou seja, uma invisibilidade sobre a realidade dessas famílias e também por uma falta de acesso para o desenvolvimento de suas capa- cidades (BEBBINGTON, 1999). No entanto, para esses atores municipais, o Município é pequeno demais para o planejamento e a organização do desenvolvimento rural, porém o Estado também não tem condições de conhecer todas as ne- cessidades e as heterogeneidades existentes no litoral do Paraná. Dessa forma, salienta-se a falta de diálogo entre esses atores, o que leva a de- senvolver políticas públicas de gabinetes por planejadores que desco- nhecem as especificidades locais. Quanto a esse cenário, os atores municipais expressaram que os problemas relacionados à eficiência das políticas públicas encontram-se principalmente em relação ao acesso e conhecimento das famílias no li- toral (Figura 2) e à falta de funcionários para estabelecer esses processos, tanto de comunicação com as famílias, como com os órgãos do Estado.

Figura 2. Fatores que contribuem para a ineficiência das políticas públicas nas comuni- dades rurais litorâneas e posicionamento dos atores governamentais.

30% 33% 30%

40% 67%

Estudo distante das comunidades Determinista Propositivo Fraqueza institucional Política Vertical Fonte: Ferreira (2010).

Como resultado, observa-se no Município falta de estrutura e capaci- tação técnica dos atores governamentais locais e atenção a essas comuni- dades desassistidas. No Estado do Paraná, a falta de funcionários técnicos para estabelecer essas alianças, assim como as mudanças de governo, inibe a continuidade de programas em escala regional e nacional. No go-

28 Terra inválida, gente invisível verno Federal, as elaborações de políticas púbicas padronizadas não con- sideram a heterogeneidade das comunidades litorâneas do Paraná. Na perspectiva socioambiental, para a formulação de políticas públi- cas mais próximas da realidade caiçara, é necessário o reconhecimento da floresta cultural. Este conceito parte do pressuposto que as famílias caiça- ras secularmente vivem na floresta com diversas práticas sociais, as quais merecem ser reconhecidas e valorizadas pelos poderes públicos ao pla- nejar políticas para o território. Dentro deste conceito de floresta cultural, Furlan (2006) apresenta que as florestas culturais ou sociais, aquelas mane- jadas pelas populações locais, compreendem-se como espaço onde essas populações vivem a sua territorialidade e usam seus recursos por meio de práticas passadas entre gerações. No entanto, observa-se que ainda nos dias de hoje essa territorialidade não é reconhecida nos instrumentos le- gais de proteção e conservação de florestas, embora se saiba que as flo- restas nunca foram espaços vazios. O reconhecimento da floresta cultural e a identidade das comunidades caiçaras direcionam-se para a construção de uma gestão da floresta como um todo e implica reconhecer também a importância da multifuncionalidade no ecossistema florestal. É preciso que os agentes envolvidos nessas políticas consigam en- xergar a multifuncionalidade também das famílias na Mata Atlântica, pois seu reconhecimento envolve dimensões que contribuem para o futuro do território, como a dimensão econômica, sociocultural, institucional e ambiental. Os agentes governamentais não podem considerar apenas a dimensão econômica, mas sim aquela que melhor representa o modo de vida dessas comunidades. Para a ação extrativista de forma sustentável pelas comunidades rurais, torna-se necessário que ela ocorra como complementaridade no orçamento da Unidade familiar desenvolvida dentro de diversas outras atividades. Por isso, o conceito de pluriatividade torna-se tão importante, assim como de multifuncionalidade das famílias no meio rural, como cui- dadores da floresta e portadores de uma herança cultural de um modo de vida. Infelizmente, hoje os interesses dos atores governamentais se vol- tam apenas para agricultores organizados dentro de uma perspectiva de produção agrícola empresarial, com pouca manifestação comunicacional

29 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações no local para se conhecer e estudar as possibilidades de melhoria de vida dessas famílias extrativistas. Embora exista a questão ambiental e agrícola nessas regiões con- sideradas como Unidades de Conservação de uso sustentável, as aten- ções e as políticas estão centradas no quesito conservação da natureza e exclui o ser humano, já que a UCs como APA têm sua atenção na biodi- versidade e não na sociodiversidade. Nesse sentido, considera-se que a conservação da natureza foi tam- bém alterada por essa política de incentivo à formação de florestas de Pinus e eucaliptos, ocasionando uma mudança no território (em sua bio- diversidade e sociodiversidade) das famílias caiçaras. Essa ênfase dada às empresas de reflorestamento, com o enfoque no crescimento econômico do país na década de setenta, desconsiderou as comunidades rurais que ocupavam há tempos essas áreas. Tais políticas tiraram das famílias o aces- so ao recurso natural – as terras - para o cultivo de diversas culturas. Isso também gerou uma relativa instabilidade psicossocial nas famílias, no to- cante ao significado de seu trabalho e sua vida (FERREIRA, 2010). Há uma clara distância entre o ideal e o real na percepção dos ato- res governamentais, manifestada sobre as políticas públicas necessárias e possíveis às comunidades rurais com atividades extrativistas a fim de que as mesmas possam permanecer na Mata Atlântica (Figura 3). Isso de- monstra que o caminho para uma possível visibilidade das comunidades caiçaras depende, em grande parte, de uma nova postura do Estado.

Figura 3. Sugestões dos atores governamentais sobre políticas públicas necessárias às comunidades com atividades extrativistas.

17,24% 10,34% 12,08%

60,34%

Nova postura do Estado Geração de emprego e renda Educação diferenciada Acesso a direito e a cidadania Fonte: Ferreira (2010).

30 Terra inválida, gente invisível

Os atores governamentais acreditam que, em primeiro lugar, é pre- ciso realizar uma mudança na postura do Estado em relação às comu- nidades rurais extrativistas, como: revisões na legislação ambiental, re- gularização fundiária, divulgação do conhecimento tradicional, políticas públicas que incentivem e financiem pesquisas voltadas para a concilia- ção da permanência de agricultores familiares com as UCs, trabalhos de parceria entre Universidade e Estado e decisão em relação à erradicação da pobreza no meio rural. Com relação às sugestões dos atores governamentais sobre políticas públicas necessárias às comunidades com atividades extrativistas, consta- ta-se uma postura acomodada por parte dos agentes estatais, eis que, em última instância, eles são agentes do Estado e “sabem muito bem o que fazem”, conforme expressão do filósofo contemporâneo Zizek (1992). No tocante à abordagem proposta por Bebbington (2005) sobre os programas, leis e políticas de desenvolvimento criados pelos dirigentes das instituições estaduais - e como elas afetam o meio de vida dessas co- munidades rurais -, observou-se que, no caso em análise do Paraná, o Go- verno Federal gerou impacto nas famílias caiçaras por conta de ações es- tabelecidas na década de setenta. Nesse período foram criadas políticas de desenvolvimento via programas de incentivos fiscais (Lei 5.106/1966), voltadas para a valorização de florestas plantadas como a depinus . Essas políticas fomentaram mudanças de paisagem na Mata Atlântica em rela- ção ao uso da terra pelas famílias caiçaras, que hoje estão encurraladas pelas empresas de reflorestamento na APA de Guaratuba. Em suma, no Paraná, a conservação da natureza foi primeiramente alterada em razão da política de incentivo à formação de florestas de pinus, ocasionando severas mudanças no nível local (território da famí- lia). Em outros termos: não foram as populações locais que alteraram a paisagem da Mata Atlântica, mas o próprio Estado, ao atender aos inte- resses econômicos de grupos internacionais. Corona (2006), ao estudar a vida comunitária rural da região me- tropolitana de Curitiba-PR, encontra transformações semelhantes no território ocasionadas pela interferência de grupos econômicos com

31 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações investimento em derrubada de mata nativa para o reflorestamento (Comfloresta – Grupo Brascam do Brasil), somado à presença opressora da fiscalização nas áreas protegidas. Independente da região, as ações das instituições sempre impactam na vida das famílias no meio rural, seja positiva ou negativamente. No litoral paranaense, segundo Gruntowski (2005), a parceria finan- ceira entre o Governo da Alemanha, por meio de seu agente financiador – o Banco KFW – e o do Paraná até o ano de 2004, gerou um investimento no valor de R$ 40 milhões para o programa de preservação, conservação e recuperação da Floresta Atlântica paranaense. A área de abrangência do Programa corresponde a uma área de 12 mil quilômetros quadrados, incluindo no programa quinze Municípios do Paraná. Todos na perspec- tiva de fiscalização e controle, pois o programa não previa investimentos para processos sócio-educativos com as comunidades em uma perspec- tiva de troca de saberes acerca da floresta e sua conservação. Segundo Santos (1997), um Estado-regulador precário na organiza- ção e conhecimento da administração pública no estabelecimento de suas ações desenvolve uma assimetria em relação aos serviços prestados e à informação para o uso do dessas ações. Os recursos provenientes da criação da APA, como o repasse do ICMS-Ecológico, não são acessados ou utilizados pelas comunidades da floresta, embora o exercício efetivo da cidadania exija o fomento da capacidade de publicizar as instituições governamentais e estabelecer práticas democráticas cotidianas (LOU- REIRO et al., 2004). A falta de um programa específico e transparência no uso dos repasses financeiros para as UCs possibilitam que tais recursos sejam utilizados nas despesas gerais do Município. A ênfase dos recursos está na fiscalização, diminuindo os investimentos em infra-estrutura ou processos de organização das comunidades. Os investimentos públicos, nesse setor, são direcionados à fiscalização, à formação de conselhos e a discussões sobre os planos de conservação. Por fim, a pesquisa desenvolvida nos últimos três anos com as co- munidades locais e no ano de 2009 com os atores governamentais, apresentou um cenário de invisibilidade das famílias caiçaras que, em

32 Terra inválida, gente invisível grande parte, também está relacionada com a situação de opressão des- tas famílias nas últimas décadas. O fato dos membros da Comunidade serem posseiros e iletrados - valendo-se apenas da oralidade, dos cos- tumes e da boa-fé - acaba por limitar as possibilidades de organização social para a formulação de políticas públicas que objetivem maiores mudanças à longo prazo. Isso implica que, no complexo sistema político de formulação e execução de políticas públicas por parte do Estado (que inclui os diversos interesses de grupos privados organizados), os caiça- ras não possuem força suficiente para terem suas demandas atendidas. Por outro lado, os atores governamentais mostram-se (até certo ponto) sensíveis às condições de vida dos caiçaras, reconhecendo os conflitos atuais, porém, atuam conforme uma agenda que objetiva apenas a fis- calização e respostas às demandas urgentes, formuladas por grupos de interesses organizados frente ao Estado. Diante deste quadro, é preciso perseverar o estudo sobre a mútua relação entre a distribuição econômica, a distribuição ecológica e a dis- tribuição do poder político. Enfim, avançar nos estudos da ecologia polí- tica (MARTÍNEZ ALIER, 1998), com o escopo de reverter tal cenário social através do empoderamento dos caiçaras, mediante a aproximação entre a universidade e as comunidades tradicionais, e conseqüente conscien- tização dos agentes governamentais acerca de tal realidade através da publicização dos problemas e assimetrias aqui discutidos.

Considerações Finais: Identificado o Problema, Como Mudar o Cenário Atual? O propósito central deste artigo foi o de analisar as percepções e visões dos atores governamentais do âmbito local, Estadual e Federal sobre as comunidades rurais com atividades extrativistas, estabelecidas em Unidades de Conservação, assim como o seu entendimento sobre as políticas públicas existentes e seus impactos nessas famílias caiçaras. Ao privilegiar o prisma destes agentes pouco investigados pela lite- ratura, o presente estudo procurou inverter o enfoque tradicionalmente

33 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações utilizado para a investigação acerca do meio de vida rural sustentável. Com esta inversão investigativa foi possível problematizar diversos as- pectos ressaltados pela literatura em relação ao comportamento gover- namental diante da questão ambiental e das comunidades tradicionais caiçaras. Neste sentido, o primeiro aspecto apresentado neste estudo de campo, pautado pela abordagem da Teoria Fundamentada, foi a consta- tação que a aplicação do SNUC como instrumento poderá propiciar às populações rurais tradicionais, que vivem em unidades de conservação, uma possível noção de protagonismo, ou seja, que saiam da situação de invisíveis que hoje se encontram. No entanto, a pesquisa apresenta que este é um longo caminho, já que esses grupos pertencentes a comuni- dades rurais com atividades extrativistas, não conseguem participar da formação da Agenda, ou seja, ainda não possuem mobilização política necessária para manifestar suas demandas. Com efeito, foi possível identificar que a valorização da sociodiversi­ dade e o fortalecimento da organização das populações tradicionais, conferindo-lhes visibilidade, inclusão social, exercício da cidadania e a promoção da justiça social, ainda não estão contemplados por meio de programas do Estado do Paraná ou por meio de políticas locais de valo- rização da cultura caiçara. Essa situação reflete o paradigma da moderni- dade abordado por Santos (1997), onde o Estado manifesta uma tensão dialética entre a regulação social e a emancipação social dividindo-se ora como Estado-regulador, ora Estado-providência. Embora as unidades de conservação de uso sustentável tenham sido consideradas como institutos importantes para a interação ho- mem-ambiente em determinados territórios, como apresentado nas narrativas dos atores governamentais, a busca de seu fortalecimento e a construção de espaços que desenvolvam processos que envolvam as comunidades, a fim de se alcançar um meio de vida socialmente justo e equitativo, ainda não foram contemplados. Por fim, urge a elaboração de políticas públicas de longo prazo pau- tadas na educação e participação política dessas comunidades caiçaras, caso o Paraná deseje, de fato, promover justiça social e ambiental. Esta

34 Terra inválida, gente invisível pode ser pautada no envolvimento sustentável apresentado por Viana (1999), no qual se destaca a importância do dialogo legitimo para a con- servação das florestas pelo reconhecimento e valorização das comu- nidades caiçaras. A inércia dos agentes governamentais pode resultar em graves danos a essas comunidades rurais, já desestruturadas pelas limitações produtivas e pela perda de identidade, em especial com seus tradicionais vínculos com a terra. É preciso levar os caiçaras a sério e agir.

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38 Violência doméstica contra mulheres no Litoral do Paraná: olhares a partir um projeto de ensino/pesquisa/extensão

Nadia Terezinha Covolan1 Daniel Canavese de Oliveira2 Marcos Claudio Signorelli3

Introdução O presente artigo discute aspectos de um projeto de ensino/pes- quisa/extensão intitulado “Mapeamento e estabelecimento de redes de conscientização e defesa dos direitos das mulheres no combate à vio- lência doméstica nos municípios do Litoral do Paraná”, implantado no biênio 2007-2009 por docentes e discentes da UFPR Litoral e profissio- nais recém graduados. A violência está hoje entre as maiores causas de morbidade e mor- talidade de muitos países do mundo, incluído nesse grupo o Brasil (WAISELFISZ, 2008). Em meio a diversas formas de violência, discutimos neste texto, uma das manifestações da violência de gênero: a violência doméstica contra mulheres. Oliveira (2005) relata que a violência se apresenta de forma diferen- te para homens e mulheres. Argumenta que o homem sofre a violência majoritariamente nas ruas, nos espaços públicos, em geral, praticada por outros homens que lhe são estranhos. Enquanto isso, as mulheres sofrem predominantemente a violência masculina, ou seja, perpetra- da por homens, dentro de casa, no espaço privado. Seus agressores são com frequência o namorado, marido, companheiro ou ex-cônjuge. 1 Enfermeira, Filósofa, Doutora em Ciências Humanas e Professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 2 Odontólogo, Mestre em Saúde Coletiva e Professor da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 3 Fisioterapeuta, Mestre em Fisiologia e Professor da UFPR Litoral. E-mail: [email protected].

39 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Nesse caso é chamada “violência por parceiro íntimo”, pois é praticada no interior de uma relação conjugal. Alguns autores, como Schraiber et al. (2005), consideram o termo “violência doméstica”, pois comumente ocorre no espaço doméstico, no seio das relações familiares. Importante ressaltar que mulheres com orientação sexual homossexual ou bissexu- al também podem ser vítimas de violência doméstica ou violência por parceira íntima (DONOVAN et al., 2006), embora os relacionamentos he- terossexuais parecem refletir uma maior assimetria de poder entre ho- mens e mulheres, resultando em sérios agravos à essas mulheres. A violência doméstica contra as mulheres é tema antigo, grave e persistente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que uma en- tre três mulheres no mundo é, já foi ou será um dia vítima de violência doméstica (KRUG et al., 2002). A invisibilidade do problema e os desca- sos com as graves conseqüências, que atentam a elementares direitos humanos, são frutos da naturalização da submissão feminina que per- passa a sociedade sexista, heteronormativa e homofóbica. Questões de poder, de poderes, permeiam as relações e as representações dos gêne- ros, influenciando fortemente a violência contra mulheres nos âmbitos doméstico, urbano, no trabalho, dentre outros. Essa violência física e moral, naturalizada por muitos séculos, tem sido denunciada e visibilizada nos últimos anos, decorrente especial- mente das lutas feministas e de direitos humanos. Diversos grupos, liga- dos ou não a instituições de defesa de direitos, por exemplo, Academia, Organizações Não-Governamentais (ONGs), ou mulheres e homens in- dividualmente, têm contribuído para a exposição desse drama humano que necessita ser extinto. Refere-se que, ao lado da visibilização, o que está ocorrendo é um aumento de registros de casos de violência contra mulheres, o que torna essa reflexão e abordagem o fulcro de qualquer proposta de desenvolvimento ou de projeto de melhoria de qualida- de de vida com justiça de gênero. Assim, iniciamos contextualizando o tema de nosso trabalho. O cenário de desenvolvimento desse projeto é o Litoral do Paraná. A região abrange sete municípios, a saber: Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e Pontal do Paraná e uma

40 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHERES NO LITORAL DO PARANÁ população estimada em cerca de 300.000 habitantes. Nesse panorama surgiu, em 2005, a Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral (UFPR Litoral). O projeto pedagógico da UFPR Litoral incorpora nova perspec- tiva de promoção da educação e busca consolidar-se por meio da tríade ensino/pesquisa/extensão como agente promotor e indutor do desen- volvimento local, com vistas ao exercício da cidadania e bem-estar. Sen- sibilizados com a questão da violência doméstica mediante relatos de professoras, professores e estudantes4, propusemos e elaboramos, no segundo semestre de 2007, o projeto “Mapeamento e estabelecimen- to de redes de conscientização e defesa dos direitos das mulheres no combate à violência doméstica nos municípios do Litoral do Paraná”. Este projeto, financiado pela Secretaria de Estado de Ciência, Tecnolo- gia e Ensino Superior (SETI) e integrante do Programa Universidade Sem Fronteiras, contou com seis estudantes bolsistas, dois bolsistas recém- graduados e três docentes, compondo uma equipe interdisciplinar. A equipe participou durante dois anos de atividades englobando ensino/ pesquisa/extensão. Nesse texto, buscamos relatar alguns dos aspectos mais significativos dessa experiência e os principais resultados. Argu- mentamos sobre alguns êxitos e os muitos desafios. Esperamos, assim, fornecer subsídios para fomentar o debate e socializar estratégias de mi- nimização da violência doméstica contra mulheres.

Olhares de um Projeto de Ensino/Pesquisa/Extensão sobre a Violência Doméstica Contra Mulheres no Litoral do Paraná No contexto da violência que assola nosso país, importantes estudos apontam para o agravamento da violência doméstica, especialmente contra as mulheres (GARCIA-MORENO et al. 2006; SCHRAIBER; D’OLIVEIRA, 2002). Assim, a abordagem dessa problemática no seu amplo espectro na sociedade em geral e no núcleo familiar, em particular, é urgente.

4 Planejamos e executamos o projeto “Refletindo Gênero na Escola: a importância de repensar conceitos e preconceitos”, em parceria Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), UFPR Litoral e Secretaria Municipal de Educação de Matinhos, no ano de 2007 (Edital MEC/SECAD – Programa Brasil Sem Homofobia). O projeto contemplou curso de capacitação para mais de cem profissionais da educação da região litorânea. Nessa ocasião, ouvimos diversos relatos de violência doméstica contra mulheres na realidade dessa região, o que nos motivou ao desenvolvimento deste projeto para enfrentamento da violência domestica. 41 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

No Litoral do Paraná, a tradição dicotômica público/privado classi- fica fortemente espaços femininos e masculinos, compreendendo he- gemonicamente o espaço doméstico como esfera do privado. Neste es- paço, geralmente os agravos perpetrados são invisibilizados, ignorados, escondidos e considerados como não tendo relação com as violências urbana, institucional e social. Visibilizar e politizar os discursos sobre vio- lência doméstica contra mulheres fortalecem a cidadania e diminuem a violência em geral. Nesse sentido, constituímos o projeto estruturado em quatro eixos principais (Quadro 1).

Quadro 1. Eixos estruturantes do projeto “Mapeamento e estabelecimento de redes de conscientização e defesa dos direitos das mulheres no combate à violência doméstica nos municípios do litoral do Paraná” (2007). Eixos Objetivos 1. Mapeamento Cartografar as instituições e atores relacionados ao tema enfrenta- da temática mento à violência doméstica contra mulheres. Identificar as repre- sentações da temática pela comunidade universitária. 2. Análise do Refletir acerca dos principais resultados observados no eixo ante- mapeamento rior, visando planejar as ações subsequentes. 3. Sensibilização Realizar diferentes estratégias de abordagem da temática com para o tema pessoas, instituições e comunidades. 4. Sistematização Organizar sítio da internet, compilar materiais educativos e conso- e consolidação lidar a formação de redes intersetoriais. Fonte: Elaborado pelos autores. No primeiro eixo mapeamos atores e instituições com alguma trajetória no enfrentamento da violência doméstica contra mulheres no litoral paranaense. Isso foi realizado mediante atividades de campo, como visitas, reuniões e entrevistas. Nessa etapa contatamos órgãos pú- blicos, privados e organizações do terceiro setor das cidades envolvidas, marcando o início da formação de rede intersetorial. Elaboramos, também, pesquisa quali-quantitativa sobre as repre- sentações da violência doméstica contra mulheres na comunidade uni- versitária da UFPR Litoral. A escolha do Setor Litoral como campo da pesquisa se deu pelo fato de ela congregar pessoas oriundas dos sete municípios alvo do projeto. A pesquisa quantitativa emergiu a partir da elaboração de instrumento especialmente desenvolvido pelo grupo, aplicado por meio de formulário anônimo em cabines privativas indivi- duais. A aplicação foi feita em abril de 2008 e participaram da pesquisa

42 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHERES NO LITORAL DO PARANÁ

364 pessoas, entre estudantes, funcionários (as) e docentes da Universi- dade – homens e mulheres. Com base nos resultados da pesquisa quan- titativa, somados a uma etapa qualitativa realizada posteriormente (que não será abordada neste artigo), analisamos representações acerca da violência doméstica contra mulheres nesta realidade. É importante destacar que todas as etapas tanto da pesquisa, quan- to do projeto como um todo, estiveram de acordo com os preceitos éticos/bioéticos preconizados internacionalmente e também pelo Con- selho Nacional de Ética em Pesquisa. Alguns resultados serão apresen- tados a seguir. A pesquisa revelou que aproximadamente 70% dos(as) pesquisa­­ dos(as) conhecem alguma mulher que é ou já foi vítima de violência doméstica (Figura 1). Estes dados são bem superiores aos resultados de uma pesquisa realizada em âmbito nacional, pelo Instituto Brasilei- ro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) em parceria com o Instituto Patrícia Galvão (JORDÃO, 2006). Em tal pesquisa, que entrevistou 2002 pessoas (homens e mulheres), de todos os estados brasileiros, capitais e alguns municípios do interior (totalizando 146 municípios), 51% dos(as) entrevistados(as) declararam conhecer ao menos uma mulher que é ou foi agredida por seu companheiro. Nesse sentido, na pesquisa realiza- da com a comunidade universitária do Litoral do Paraná verificamos um possível indicativo de maior prevalência do problema nessa realidade.

Figura 1. Conhecimento da comunidade da UFPR Litoral a respeito de mulheres vítimas de violência doméstica. Você conhece alguma mulher que já sofreu violência doméstica? Não Sim

Fonte: Autores do Projeto.

43 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Outra questão buscava saber se eram ou já tinham sido vítimas de violência doméstica. Aproximadamente 10% das e dos pesquisados afir- mou estar sendo ou já ter sido vítima dessa manifestação. Os resultados contrastam com estudo realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Garcia-Moreno et al. (2006) conduziram tal estudo em 15 lugares de 10 diferentes países, entre eles o Brasil, entrevistando 24.097 mulhe- res de 15 a 49 anos (cerca de 1.500 por localidade). O estudo revelou que a prevalência de violência física ou sexual (ou ambas) praticada por parceiro íntimo, varia entre 15% (Japão, cidade de Yokohama) e 71% (in- terior da Etiópia). A maioria dos lugares apresentou prevalência de vio- lência entre 29% e 62% das mulheres. Já o recorte brasileiro da pesquisa, conduzida no país por Schraiber et al. (2007), mostrou que os índices de mulheres que relataram violência doméstica ao menos uma vez na vida é de, respectivamente, na cidade de São Paulo e na Zona da Mata de Pernambuco, 41,8% e 48,9% (para violência psicológica), 27,2% e 33,7% (para violência física) e 10,1% e 14,3% (para violência sexual). Dos dados encontrados em nossa pesquisa refletimos sobre quais seriam as concepções de violência doméstica da comunidade univer- sitária? Incluiriam tais concepções as noções de violência psicológica, física e sexual, ou apenas a violência física? Por outro lado, observamos também que 10% das pessoas afirmaram existir situações que justificam o companheiro ou a companheira agredirem a mulher. Tal resposta de- monstra como a tradição da cultura patriarcal permanece forte, fazendo com que as mulheres tenham suas consciências agenciadas por essas assimetrias de gênero. A pesquisa ainda demonstrou, em relação ao enfrentamento da vio- lência doméstica contra mulheres, que 90% dos(as) pesquisados(as) não conhecem, no Litoral do Paraná, serviços que ofereçam alguma forma de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica (Figura 2). Nesse sentido, realizamos ainda nesse primeiro eixo, a cartografia das instituições e seus atores atuantes na temática na região. Os compo- nentes deste projeto realizaram contatos prévios em cada um dos mu- nicípios, para em seguida, in loco, entrevistá-los. Paralelamente o projeto foi apresentado aos prefeitos dos sete municípios do Litoral, em sessão

44 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHERES NO LITORAL DO PARANÁ solene da Associação dos Municípios do Litoral do Paraná (AMLIPA). Dentre as principais instituições e atores cartografadas, destacamos os gestores e gestoras de saúde, educação e assistência social dos municí- pios, delegados, juíza, trabalhadores(as) de instituições de saúde, polícia civil, militar, guarda municipal, corpo de bombeiros, conselho tutelar e demais pessoas da comunidade interessadas na temática, entre outros. Figura 2. Conhecimento da comunidade da UFPR Litoral a respeito de locais no litoral do Paraná que ofereçam alguma forma de atendimento às mulheres que sofrem vio- lência doméstica.

Conhece algum local, no litoral do Paraná, que ofereça alguma forma 1 0,28% de atendimento à mulher que sofre violência doméstica?

Mulher 20 Não 5,65% Sim 210 Nulo 59,32% Gênero 0 0,00%

17 Homem 4,80%

106 29,94%

0 50 100 150 200 250 Número de respostas válidas Fonte: Autores do Projeto. Nota: Os dados estão agrupados em categorias de gênero: mulheres - barras acima – e homens – barras abaixo. Desenhado o “estado da arte” acerca da violência doméstica contra mulheres nos municípios em questão, iniciamos o terceiro eixo. Esse visou promover a sensibilização, interação de experiências nos mais di- versos cenários e divulgação da Lei nº 11.340 (2006), conhecida como “Lei Maria da Penha”, que trata especificamente de mecanismos para pre- venir e coibir a violência doméstica e familiar contra mulheres (BRASIL, 2006). Assim, realizamos várias oficinas para mulheres e homens sobre as nuances da violência doméstica contra as mulheres, enfatizando estra- tégias de prevenção e minimização do problema. Essas atividades foram

45 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações oferecidas para a comunidade mapeada nas etapas anteriores e também para a comunidade universitária abordada na pesquisa quantitativa. Tais atividades contaram com adesão significativa de membros da comuni- dade e também de estudantes dos mais diferentes cursos da UFPR Litoral (Serviço Social, Fisioterapia, Técnico em Enfermagem, entre outros). Imbuídos ainda dos objetivos desse eixo, promovemos um encon- tro que congregou representantes da comunidade mapeados nas eta- pas anteriores, interessados em refletir e agir na temática, culminando com a construção coletiva da “Carta Atlântica”. O nome que batizou o documento foi em função de a Região foco do projeto ser brindada de um lado pelo Oceano Atlântico e do outro pela Serra do Mar, permeada por um dos últimos grandes remanescentes da Mata Atlântica do Brasil. Como principais encaminhamentos propostos e pactuados na Car- ta pelo grupo estão: sensibilização e problematização de temáticas rela- cionadas aos preconceitos de gênero, que são colocadas como primeiro passo para mudanças e proposição de ações sociais; ampliação e divul- gação de mapeamentos das ocorrências de violência (notificação com- pulsória); estabelecimento de uma agenda de prioridades, planejando e discutindo estratégias coletivamente com os múltiplos e diferentes agentes envolvidos; organização e sistematização de dados referentes à violência, publicando e socializando as informações; constituição e ou fortalecimento de redes de políticas públicas e sociais intersetoriais; pu- blicização e divulgação da Lei Maria da Penha. O quarto eixo contemplou a sistematização de informações e re- sultados, compilação e confecção de materiais informativos e didáticos, tais como banners, manuais, exposição de fotos, cartazes e a construção de um sítio específico na internet5 para disseminar informações, incen- tivando iniciativas similares. Dessa forma, esperamos propiciar a forma- ção e consolidação da rede intersetorial, fomentando a continuidade dos objetivos desse projeto. É interessante ressaltar que as fases foram planejadas e descritas didaticamente em quatro eixos, porém não foram estanques, se interrelacionando em todo processo. 5 A página do projeto encontra-se no endereço eletrônico:

46 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHERES NO LITORAL DO PARANÁ

Considerações Finais Neste texto relatamos brevemente o desenvolvimento de um pro- jeto que buscou agregar o tripé da educação superior “ensino/pesquisa/ extensão” de maneira imbricada e com participação interdisciplinar de estudantes, professores e profissionais de distintas áreas do conheci- mento. O projeto se concretizou em uma abordagem intersetorial em torno de temática extremamente complexa: a violência doméstica con- tra mulheres. Ao longo da execução da proposta foram celebradas algumas par- cerias entre a Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral e as pre- feituras dos municípios envolvidos, por meio de suas Secretarias de Assistência Social, Saúde, Educação e Segurança Pública. Em conjunto com homens e mulheres oriundos desses locais, somados à de outras instituições públicas e também de instituições privadas e membros da comunidade, buscamos refletir sobre o tema no seu contexto regional, no sentido de agregar sensibilização e pró-atividade com vistas ao en- frentamento da violência doméstica no local. A partir de uma cartografia da problemática no cenário do projeto, que desvelou diversas facetas do problema no Litoral paranaense, bus- camos propor e executar atividades que congregassem diferentes ato- res/agentes membros da comunidade local. Tais atividades, realizadas em constante diálogo esses atores, tinham como propósito a constru- ção e fortalecimento de uma rede intersetorial de instituições e pessoas sensibilizadas e colaborativas para atuar na redução, prevenção e elimi- nação da violência doméstica contra mulheres nessa Região. Diferentes produtos foram gerados ao longo desse processo, tais como materiais didáticos, informativos, dentre outros. Merecem desta- que: a elaboração de uma página do projeto na Internet, com os conta- tos de todas as instituições e pessoas que compõem a rede de políticas sociais, para facilitar o acesso e diálogo entre os diferentes atores; a de- nominada “Carta Atlântica”, que consistiu em uma pactuação construída coletivamente entre os agentes envolvidos nesse processo, com propos-

47 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações tas de ações e desdobramentos permanentes, mesmo após o término do projeto. Almejamos que a Carta Atlântica norteie a continuidade de ações conjuntas e que nos próximos anos seja acumulado maior back- ground teórico, a fim de que se possa compreender como se dá esse pro- cesso dentro da organização social e política dessa realidade regional. Percebemos que para tratar desse intricado agravo exige-se primei- ro o (re)conhecimento do problema, para o posterior mapeamento das instituições quanto aos seus respectivos programas, projetos, serviços e à sua estrutura e dinâmica organizacional, que possam impulsionar ações e re-ações no intuito de prevenir e coibir as violências domésticas contras as mulheres. Para que as políticas públicas propostas neste sen- tido, nos últimos anos, sejam de fato implementadas e tenham eficácia é necessário fomentar a capacidade organizativa e reivindicativa das co- munidades, ou seja, unir esforços para que essa construção seja efetiva e permanente.

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49 Agroindústria familiar no Litoral paranaense: o caso das casas de farinha1

Valdir Frigo Denardin2 Luiz Fernando de Carli Lautert3 Mayra Taiza Sulzbach4 Claudinei Pedroso Ribas5 Humberto Handchuka Piccin6 Rosilene Komarchescki7 Cecilia Hernandes Cury8

Introdução No Litoral do Paraná, a ocupação humana e a conseqüente forma- ção do espaço geográfico têm alguns milhares de anos. Sua historia é um enigma que não tem respostas concretas, pois além de não ser li- near, tem sua memória presente principalmente nas representações so- ciais do mundo dos Guaranis com o portal das águas, com os caboclos no mundo das florestas, com os herdeiros das terras do Batuva, quilom- bolas em Guaraqueçaba, entre outras manifestações principalmente na memória simbólica local, expressa em contos e lendas. Os vestígios de presença humana no litoral paranaense são encon- trados bem antes, dos guaranis, europeus, caboclos e quilombolas, nos chamados sambaquis, formados por concheiros que datam de aproxi-

1 Versão preliminar deste artigo foi apresentada no 47º Encontro da SOBER – Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural, realizado de 26/07 a 30/07/2009, em Porto Alegre (RS). 2 Economista, Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade e professor da UFPR Litoral. E-mail: v [email protected]. 3 Geógrafo, Doutor em Geografia e professor da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 4 Economista, Doutora em Desenvolvimento Econômico e professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 5 Engenheiro Agrônomo e Instrutor do SENAR-PR. E-mail: [email protected] ; 6 Administrador de Empresas e Técnico em Turismo e Hospitalidade. E-mail: [email protected]. 7 Gestora Ambiental e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento – MADE/UFPR. E-mail: [email protected]. 8 Gestora Ambiental. E-mail: [email protected].

50 AGROINDÚSTRIA FAMILIAR NO LITORAL PARANAENSE madamente 6.500 anos. Os primeiros habitantes viviam em pequenos grupos e eram nômades, migrando constantemente em busca de ali- mento. Até hoje não há evidencias concretas do desaparecimento dos sambaquieiros, mas estes podem ter migrado ou ainda ter-se misturado ao tronco tupi-guarani. O litoral do Paraná pertencia a duas capitanias hereditárias: São Vi- cente, ao norte de Paranaguá, e Santana, ao sul. Em 1.531 houve uma bandeira para explorar a Baia de Paranaguá, no entanto a instalação de- finitiva do colonizador ocorreu somente em 1614, com a concessão de uma sesmaria na região do Superagui. No entanto, a colonização somen- te se intensificou a partir da descoberta de ouro nos rios da Baia de Para- naguá, período conhecido como ciclo do ouro (SCORTEGAGNA, 2005). Os sete municípios que compõem o litoral, segundo Esteves (2005), podem ser agrupados em três grupos: os portuários (Paranaguá e Anto- nina), os rurais (Morretes e Guaraqueçaba) e os praiano-turísticos (Mati- nhos, Pontal do Paraná e Guaratuba). As principais atividades econômi- cas associadas aos três grupos são: o turismo, a agropecuária, a pesca, e o extrativismo vegetal, com ênfase para o palmito. A atividade portuária merece destaque na região, sendo o Porto de Paranaguá um dos maio- res do Brasil e o maior exportador de grãos da América do Sul. Para Andriguetto Filho; Marchioro (2002) e Raynaut et al. (2002) as heterogeneidades ambientais e sócio-econômicas da zona costeira paranaense são marcantes e de grande complexidade, podendo, resu- midamente, serem caracterizadas como: i) uma grande variedade de ecossistemas, dos ambientes marinhos aos refúgios vegetacionais de altitude; ii) existência de pelo menos 11 atividades agropecuárias ou extrativistas geradoras de renda, além de atividades de transformação como agroindústrias caseiras; iii) uma variedade de situações culturais, no meio urbano e rural; iv) diferentes situações de acesso aos recursos, condicionadas pela posse da terra, capital, complexa legislação ambien- tal e grau de participação no mercado; e v) forte polarização industrial e urbana, com a presença do complexo portuário de Paranaguá e das áreas urbano-turísticas da orla sul.

51 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

A complexidade e heterogeneidade apresentada no Litoral dão ori- gem, segundo Estades (2003), a duas fortes contradições: de um lado, o valor da Região como patrimônio natural e para a proteção da biodiver- sidade e, de outro, um quadro de subdesenvolvimento que não corres- ponde aos potenciais regionais e ao sucesso de algumas atividades. A Região, segundo Andriguetto Filho; Marchioro (2002, p. 159), “é marcada por uma série de problemas de gestão do desenvolvimento e da conservação, com graves conflitos fundiários, conflitos entre ativida- des econômicas, e entre práticas humanas e proteção ambiental”. O litoral do Paraná foi a primeira região do Estado a ser coloniza- da. Porém, o fato de ter sido colonizada há séculos, não significa que a região se desenvolveu. Pelo contrário, o litoral paranaense é tido como uma região deprimida economicamente e que apresenta sérios proble- mas socioeconômicos. Andriguetto Filho; Marchioro (2002) e Estades (2003) afirmam que o litoral do Paraná é uma das regiões mais pobres do Estado e paradoxalmente, a região vem se apresentando como a última fronteira de desenvolvimento econômico do Paraná. Entre os produtos cultivados pelos agricultores familiares no Litoral paranaense, pode-se afirmar que a produção de mandioca (aipim) atua como uma “atividade amortecedora” em dois aspectos: contribui para a segurança alimentar das famílias no meio rural e apresenta-se como atividade com potencial para gerar renda, podendo ser comercializada in natura ou industrializada sob a forma de farinha de mandioca, biju, fécula, aipim chips, polvilho e aipim congelado. O capítulo tem como objetivo apresentar informações que possam subsidiar as atividades de intervenção nas agroindústrias de farinha de mandioca (farinheiras) no litoral paranaense. Para tal, se faz necessário: i) criar um mapa com a distribuição espacial das agroindústrias familiares de mandioca no litoral paranaense; ii) classificar as farinheiras existentes no litoral em termos de tecnologia utilizada; ii) identificar e caracterizar os fluxos de destino da produção desde o produtor até o consumidor fi- nal; e iv) identificar os pontos fortes e os fatores limitantes e/ou gargalos durante o processo produtivo.

52 AGROINDÚSTRIA FAMILIAR NO LITORAL PARANAENSE

Por fim, é importante mencionar que o texto apresenta os principais resultados do projeto “Estudo da cadeia produtiva da mandioca como estratégia para o desenvolvimento da agroindústria familiar no litoral paranaense”, desenvolvido no ano de 2008 com o apoio da Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia em Ensino Superior (Programa Univer- sidade sem Fronteiras); da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC) e do Setor Litoral, em especial a Central de Transporte.

Material e Métodos Num primeiro momento, a equipe realizou visitas a unidades pro- dutivas para se familiarizar com a terminologia utilizada pelos agricul- tores e principalmente compreender o processo de produção da farinha de mandioca, bem como reconhecer os diferentes equipamentos uti- lizados no processo produtivo. O período de reconhecimento das fari- nheiras, juntamente com as leituras sobre o tema, permitiu que o grupo elaborasse um questionário semi-estruturado para ser aplicado nas uni- dades produtivas visitadas. O mapa com a distribuição espacial das agroindústrias familiares de mandioca no litoral paranaense foi elaborado a partir da localização das farinheiras, com visitas in loco, em suas respectivas comunidades, nos sete municípios. No momento da visita, a propriedade teve sua locali- zação determinada com GPS (Sistema de Posicionamento Global), bem como sua unidade de produção foi fotografada. Além disso, foi aplica- do um questionário em trinta e nove unidades produtivas que permi- tiu classificar as farinheiras em termos de tecnologia utilizada, matriz energética, uso e manejo de dejetos, bem como possibilitou identificar e caracterizar os fluxos de destino da produção. O conjunto de questões permitiu, também, identificar os pontos fortes e fatores limitantes (gar- galos) relacionados a atividade. Para identificar as unidades produtivas no interior dos municípios contou-se com o apoio dos técnicos da EMATER/PR. Antes de se iniciar as visitas fazia-se uma reunião com o técnico e construía-se um croqui

53 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações com informações mínimas que permitiam localizar as farinheiras no mu- nicípio. Além disso, os próprios agricultores atuaram como informantes. Foram identificadas no total 133 farinheiras, as quais foram classificadas em ativas, inativas, de auto-consumo e comunitárias.

Resultados e Discussões: Farinheiras no Litoral do Paraná O Litoral Norte, assim denominado, engloba os municípios de An- tonina, Guaraqueçaba e Morretes. Nestes municípios, como em todo o litoral paranaense, há uma quantidade considerável de casas de farinha (farinheiras), totalizando sessenta e três (63) farinheiras visitadas, as quais estão classificadas como ativas, inativas, auto-consumo e comu- nitárias. As farinheiras ativas caracterizam-se por serem agroindústrias que produzem farinha para o consumo da família, bem como para co- mercialização (Figura 1). Fonte: Arquivo pessoal dos autores. Arquivo Fonte:

Figura 1. Farinheira ativa em Antonina/PR. Figura 2. Farinheira de auto-consumo em Guaratuba/PR. As farinheiras de auto-consumo caracterizam-se por serem agroin- dústrias que produzem farinha para o consumo próprio das famílias, po- dendo ser comercializado uma pequena parte, porém em quantidade inexpressiva (Figura 2). As farinheiras inativas caracterizam-se por serem agroindústrias que não produzem mais farinha, porém ainda existem os equipamentos e a instalação (Figura 3). Em sua maioria, as farinheiras inativas estão em propriedades de pessoas idosas que não possuem condições físicas para realizar as atividades relacionadas à produção de farinha (farinhar).

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Por fim, as farinheiras comunitárias caracterizam-se por serem agroindústrias que foram construídas através de políticas públicas (p. ex. Paraná doze meses), visando atender a um grupo de famílias. São farinheiras que possuem uma boa infra-estrutura física, construídas em alvenaria, e buscavam atender as exigências da legislação sanitária em vigor na época (Figura 4). A partir da Tabela 1 é possível constatar que os municípios de Anto- nina e Guaraqueçaba possuem predominantemente farinheiras de au- to-consumo. O mesmo não ocorre no município de Morretes, que possui um maior número de farinheiras ativas, voltadas para o mercado. Quan- to as farinheiras inativas, nota-se que nos municípios de Guaraqueçaba e Morretes há um total de cinco (5) unidades, em contrapartida no mu- nicípio de Antonina não há presença das mesmas. Quanto a existência de farinheiras comunitárias, constatou-se oito (8) no total. O município de Guaraqueçaba apresenta quatro (4) unidades, destas nenhuma está em funcionamento. O município de Morretes, por sua vez, possui duas (2) unidades, as quais estão sendo utilizadas pela comunidade local. Fonte: Arquivo pessoal dos autores. Arquivo Fonte:

Figura 3. Farinheira inativa em Guaratuba/ Figura 4. Farinheira comunitária do PR. Açungui em Guaraqueçaba/PR. Entre os municípios do Litoral Norte, Morretes é o que apresenta melhores condições para a comercialização do produto. O município in- vestiu no turismo gastronômico, tendo como prato típico o barreado, e associou a venda de produtos da agricultura familiar a uma feira que ocorre aos sábados e domingos, escoando boa parte da produção dos derivados da mandioca. Além disso, realiza anualmente a “Festa Feira”

55 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações que também contribui para o escoamento da produção dos derivados da mandioca. Entre os municípios do Litoral Norte merece atenção o município de Guaraqueçaba, o qual apresenta o maior número de farinheiras. Nas visitas foram mapeadas trinta unidades, principalmente nas comunida- des da Potinga, Açungui, Tagaçaba, Tagaçaba de Cima e Pedra Chata. Parte do município, de difícil acesso, não foi visitado, ou seja, estima-se que existe um número igual ou superior de farinheiras ainda não identi- ficadas. As farinheiras localizadas em locais de difícil acesso são, em sua maioria, de auto-consumo, a distância dos centros urbanos dificulta a comercialização do produto. O Litoral Sul, por sua vez, engloba os municípios de Guaratuba, Matinhos, Paranaguá e Pontal do Paraná. Nestes municípios, há uma quantidade considerável de farinheiras, totalizando setenta (70) unida- des (Tabela 1). O município de Guaratuba possui uma predominância acentuada, em relação aos demais municípios, de farinheiras de auto- consumo. Somando-se as farinheiras do Litoral Norte com as do Litoral Sul, totalizam-se 133 farinheiras (Tabela 1 e Figura 5).

Tabela 1. Situação das farinheiras, quanto ao seu funcionamento, no litoral do Paraná. Municípios Ativas Auto-consumo Inativas Comunitárias Total Antonina 8 11 0 0 19 Litoral Norte Guaraqueçaba 10 13 3 4 30 Morretes 7 3 2 2 14 Guaratuba 17 27 3 1 48 Matinhos 2 1 0 0 3 Litoral Sul Paranaguá 9 1 6 1 17 Pontal do Paraná 1 0 1 0 2 Total 54 56 15 8 133 Fonte: Elaborada pelos autores. Entre os sete municípios que compõem o litoral do Paraná, Mati- nhos e Pontal do Paraná são os que apresentam o menor número de fa- rinheiras. Tal fato justifica-se em função da reduzida área agrícola destes municípios, fatores climáticos, qualidade do solo e perda da cultura de produzir de alimentos.

56 AGROINDÚSTRIA FAMILIAR NO LITORAL PARANAENSE

O Processo de Produção de Farinha No litoral paranaense as etapas do processamento para a produção de farinha, após a colheita, são o descascamento e lavagem, a ralação, a prensagem, o esfarelamento, a torração e a embalagem do produto. a) Descascamento e Lavagem O descascamento pode ser manual ou mecânico. O descascamento manual é realizado com facas afiadas, tomando-se os devidos cuidados para que não fique pedaços de cascas e para que se removam os pontos pretos (pequenos nódulos e manchas) existentes na mandioca, fatores esses que tem grande relevância, pois influenciam na qualidade do pro- duto final (Figura 6). No descasque manual as mandiocas são lavadas duas vezes, logo que chegam da lavoura para retirar o excesso de terra e logo após a conclusão do descasque. Figura 5. Mapa das farinheiras no litoral do Paraná.

Fonte: Elaborado pelos autores. O descascamento mecânico é realizado em cilindros de madeira ou metal rotacionado por um motor elétrico (Figuras 6 e 7). As mandiocas que estão no interior do cilindro atritam-se contra as paredes do mesmo

57 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações propiciando que a casca seja removida. Durante esse processo ocorre a pré-lavagem, em alguns casos parte do cilindro fica submerso com água, em outros a água é jogada em cima do cilindro. Depois de retirada do cilindro, as mandiocas passam por uma vistoria para retirar cascas e manchas remanescentes e sofrem uma última lavagem. Fonte: Arquivo pessoal dos autores. Arquivo Fonte:

Figura 6. Descascamento manual de Figura 7. Descascador mecânico de mandioca. mandioca.

O Descasamento é uma fase muito importante no processo, se ele não for bem feito, a farinha apresenta grânulos pretos que são percebi- dos pelos consumidores. Nas casas de farinha do litoral, o descasque manual ocorre em 56% das unidades produtivas (Tabela 2). Tal informação indica a necessidade de investimento em mecanização desta parte do processo produtivo. Tabela 2. Métodos utilizados no descasque da mandioca no litoral do Paraná.

Mecânico (cilindro de Municípios Manual madeira ou ferro) Total Antonina 7 1 8 Guaraqueçaba 2 6 8 Guaratuba 7 1 8 Matinhos 2 0 2 Morretes 3 4 7 Paranaguá 1 5 6 Total 22 17 39 % do total 56 44 100 Fonte: Elaborada pelos autores.

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b) Ralação A ralação manual da mandioca pode ser feito em ralador simples de inox, utilizado nas residências. No litoral paranaense, este processo ocorre em algumas farinheiras de auto-consumo. Há também o método de ralação manual feito com uma roda que está fixada, através de um eixo, em uma estrutura de madeira, denominada “cevadeira” (Figura 8). A ralação mecânica, por sua vez, é realizada por um motor que rotaciona um cilindro de madeira revestido com aço cheio de ranhuras (Figura 9). Quando a mandioca é atritada contra o cilindro, ocorre a ralação da mes- ma, resultando em uma massa branca que cai em um cocho (recipiente para armazenar a massa, geralmente de madeira). Fonte: Arquivo pessoal dos autores. Arquivo Fonte:

Figura 8. Ralador manual de mandioca e Figura 9. Ralador mecânico. cocho. Referente à ralação, foi constatado que a grande maioria, 87% das fa- rinheiras, utiliza ralador mecânico (Tabela 3). Este dado está ­coerente com as falas dos agricultores quando mencionam que esta etapa do processo, se efetuada manualmente, demanda muito tempo e esforço físico. c) Prensagem Esta etapa do processamento da mandioca pode ser manual ou me- cânica (Tabela 4). A prensagem manual pode ser feito através de prensa de madeira ou metal (Figura 10 e 11). Esta prensa possui uma estrutura com formato de “trave de futebol”, de madeira, sendo feito artesanal- mente em sua parte superior uma rosca na madeira, a qual vai dar en-

59 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações caixe a um parafuso de madeira de 1,5m aproximadamente, denomina- do “fuso”, também confeccionado manualmente. Nesta prensa coloca-se a massa proveniente da ralação em sacos com pequenas perfurações (em alguns casos se utiliza o “tipiti”, cesto construído com bambu), exer- cendo pressão sobre os mesmos para a retirada da água da massa.

Tabela 3. Métodos utilizados para a ralação da mandioca na produção de farinha no litoral do Paraná.

Municípios Manual Mecânico Total Antonina 1 7 8 Guaraqueçaba 0 8 8 Guaratuba 2 6 8 Matinhos 1 1 2 Morretes 1 6 7 Paranaguá 0 6 6 Total 5 34 39 % do total 13 87 100 Fonte: Elaborada pelos autores. Fonte: Arquivo pessoal dos autores. Arquivo Fonte:

Figura 10. Prensa manual de ferro com Figura 11. Prensa de madeira com três fusos. três “fusos”.

Este processo é realizado lentamente, ou seja, vai se apertando o “fuso” aos poucos e este exerce pressão sobre a massa e com o passar do tempo a água vai sendo eliminada pelas perfurações do saco. Esta água que é liberada da massa é denominada “manipueira” e na região é conhecida como “mandiquera”. Alguns agricultores usam este líquido como adubo, para controle de plantas espontâneas (mato) e insetos.

60 AGROINDÚSTRIA FAMILIAR NO LITORAL PARANAENSE

A prensagem mecânica tem a mesma lógica de funcionamento, po- rém é feita com uma prensa de metal hidráulica, que faz a prensagem da massa sem a força humana. A prensa “burro” é o método mais artesanal existente no litoral, estando presente em apenas uma farinheira.

Tabela 4. Métodos utilizados para prensagem da mandioca na produção de farinha no litoral do Paraná. Prensa Prensa Prensa manual de Prensa Prensa Municípios manual de manual de madeira e burro hidráulica Total madeira metal metal Antonina 5 2 0 1 0 8 Guaraqueçaba 3 3 2 0 0 8 Guaratuba 3 2 1 0 2 8 Matinhos 0 2 0 0 0 2 Morretes 0 4 2 0 1 7 Paranaguá 1 5 0 0 0 6 Total 12 18 5 1 3 39 % do total 31 46 13 2 8 100 Fonte: Elaborada pelos autores. d) Esfarelamento Esta etapa do processo pode ser mecânica ou manual e consiste basicamente em soltar a massa que foi prensada, na fase anterior. No esfarelamento manual retira-se a massa da prensa, abrem-se os sacos que foram prensados e despeja-se a massa prensada, que está compac- tada, em um cocho, e com as mãos se faz a descompactação da massa e na seqüência a massa é peneirada. O esfarelamento mecânico também consiste em desagregar a massa prensada, porém a massa é colocada em uma estrutura de metal que possui em seu interior hastes, que giram e fazem a desagregação da massa. O esfarelamento manual é o mais utilizado, sendo realizado por 67% das farinheiras (Tabela 5). e) Torração Esta fase do processo é realizada em forno, alimentados por lenha, podendo ser o processo de mexer a massa realizado manualmente ou mecanicamente (Figuras 12 e 13). Este processo consiste basicamente em retirar a água existente no produto e torrar o mesmo. A massa prove- niente do cocho, que está esfarelada, é colocada em um forno, com fogo

61 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações mais alto, para realizar a ”vivuia”, como é denominada localmente. A vi- vuia consiste em fazer uma pré-torração. Após a vivuia a massa retorna ao forno com fogo mais baixo, onde é realizada a torração até atingir o ponto ideal do produto. No processo manual, a massa é mexida com pás de madeira, já no processo mecânico, a massa é mexida por um agitador de madeira, que gira rente ao forno mexendo a massa. Este agitador é rotacionado por um motor elétrico.

Tabela 5. Métodos utilizados para o esfarelamento da massa de mandioca no processo de fabricação de farinha no litoral do Paraná. Municípios Manual Mecânico Total Antonina 8 0 8 Guaraqueçaba 7 1 8 Guaratuba 4 4 8 Matinhos 2 0 2 Morretes 4 3 7 Paranaguá 4 2 6 Total 29 10 39 % do total 67 33 100 Fonte: Elaborada pelos autores. Fonte: Arquivo pessoal dos autores. Arquivo Fonte:

Figura 12. Forno manual. Figura 13. Forno com agitador me- cânico. Nas farinheiras do litoral 53% realizam a torração pelo sistema me- cânico (Tabela 6). No entanto, um número expressivo de unidades pro- dutivas ainda realiza este processo manualmente (41%). Tal etapa do processo é considerada pelos agricultores como sendo o mais desgas- tante, principalmente em dias quentes.

62 AGROINDÚSTRIA FAMILIAR NO LITORAL PARANAENSE

Tabela 6. Métodos utilizados para a torração da farinha de mandioca no litoral do Paraná. Municípios Manual Mecânico Manual e Mecânico Total Antonina 6 1 1 8 Guaraqueçaba 0 8 0 8 Guaratuba 5 2 1 8 Matinhos 2 0 0 2 Morretes 2 5 0 7 Paranaguá 1 5 0 6 Total 16 21 2 39 % do total 41 53 6 100 Fonte: Elaborada pelos autores. f) Embalagem do Produto Esta é a última etapa do processamento e no litoral paranaense esta fase é realizada em sua totalidade manualmente. Esta etapa consiste em colocar o produto final (farinha) em embalagem plástica transparente de 1 Kg. Após estes sacos de 1 kg são agrupados e colocados em emba- lagens maiores, geralmente contendo 20 ou 40 sacos de 1 kg. A partir das entrevistas, foi possível identificar quatro variedades de granulometria de farinha de mandioca classificadas visualmente pelos produtores, sem o uso de peneiras. A farinha classificada como média representa 46% do total produzido, enquanto a farinha fina aparece em 24% dos casos (Tabela 7).

Tabela 7. Classificação da farinha de mandioca pelos produtores, quanto a sua granulo- metria no litoral do Paraná. Média e Fina, Municípios Fina Média Grossa Prova de Média e prova de média e Total leite (1) grossa leite grossa Antonina 3 3 2 0 0 0 0 8 Guaraqueçaba 2 4 0 0 1 0 0 8 Guaratuba 1 3 3 0 1 0 0 8 Matinhos 0 1 0 0 0 0 1 2 Morretes 2 4 0 1 0 0 0 7 Paranaguá 1 2 0 0 1 1 0 6 Total 9 17 5 1 3 1 1 39 % do total 24 46 13 3 8 3 3 100 Fonte: Elaborada pelos autores Nota: (1) – Farinha prova de leite é uma farinha que se aproxima do polvilho.

63 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Apenas 26% dos produtores rotulam seus produtos (Tabela 8). No entanto, os rótulos encontrados não contêm as informações exigidas pelos órgãos fiscalizadores e em alguns casos as informações contidas são ilegíveis. A falta do rótulo dificulta a comercialização da farinha, pois o comprador pode não confiar no produto por não saber sua procedên- cia, data de fabricação e validade, por exemplo. Muitos produtores não gostam de falar sobre o assunto, acreditam que ao rotularem seu produ- to a fiscalização os localizará.

Tabela 8. Farinheiras do litoral do Paraná que possuem rótulo na embalagem.

Não Municípios Sim Não responderam Total Antonina 0 6 2 8 Guaraqueçaba 3 2 3 8 Guaratuba 1 3 4 8 Matinhos 0 2 0 2 Morretes 5 2 0 7 Paranaguá 1 4 1 6 Total 10 19 10 39 % do total 26 49 25 100 Fonte: Elaborada pelos autores.

Infra-Estrutura das Casas de Farinha Praticamente a metade (46%) dos produtores de farinha do litoral paranaense já construiu pisos de cimento em suas farinheiras, denotan- do a aproximação, mesmo que lenta, da adequação das mesmas às nor- mas exigidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Por outro lado ainda há um grande número de farinheiras em que o piso é de chão batido, fato que demonstra a acentuada rusticidade ainda pre- sente nas unidades produtoras de farinha da região (Tabela 9). É importante salientar que as 39 farinheiras pesquisadas são ativas, portanto, produzem para comercializar. A precariedade da infra-estrutu- ra existente aumenta quando se trata de farinheiras de auto-consumo.

64 AGROINDÚSTRIA FAMILIAR NO LITORAL PARANAENSE

Tabela 9. Estrutura do piso das farinheiras do litoral do Paraná.

Cimento e Municípios Chão batido Cimento Cerâmica cerâmica Total Antonina 3 4 1 0 8 Guaraqueçaba 1 5 1 1 8 Guaratuba 6 2 0 0 8 Matinhos 1 0 1 0 2 Morretes 3 3 1 0 7 Paranaguá 2 4 0 0 6 Total 16 18 4 1 39 % do total 41 46 10 3 100 Fonte: Elaborada pelos autores. Assim como ocorre com o piso, ainda existe um grande número de farinheiras (51%) no litoral do Paraná em que as paredes são de madeira, sendo mais uma característica da rusticidade das construções. O número de unidades produtoras que já construíram paredes de alvenaria é bem significativo e vem crescendo devido à necessidade visualizada pelos pro- dutores de enquadramento às normas exigidas pela ANVISA (Tabela 10). Observou-se nas visitas e entrevistas que muitas farinheiras vêm deixan- do de produzir justamente pelo fato de não se enquadrarem nas normas e não terem condições financeiras de adaptar suas unidades produtivas.

Tabela 10. Estrutura das paredes das farinheiras no litoral do Paraná.

Madeira e Municípios Alvenaria Madeira alvenaria Não possui Total Antonina 4 3 0 1 8 Guaraqueçaba 2 3 2 1 8 Guaratuba 1 7 0 0 8 Matinhos 0 2 0 0 2 Morretes 4 2 0 1 7 Paranaguá 2 3 1 0 6 Total 13 20 3 3 39 % do total 33 51 8 8 100 Fonte: Elaborada pelos autores. As coberturas das casas de farinha do litoral do Paraná são basica- mente feitas de telhas de barro ou amianto (43,5% e 48,7%, respectiva- mente). Porém, foram observados em alguns casos telhados mistos de

65 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações amianto e telha de barro, e até telhados confeccionados com guaricana – palmácea utilizada para cobrir os galpões (Tabela 11).

Tabela 11. Tipos de cobertura das farinheiras no litoral do Paraná.

Telha de Telha de barro Municípios barro Amianto Guaricana e amianto Total Antonina 3 3 2 0 8 Guaraqueçaba 3 5 0 0 8 Guaratuba 6 2 0 0 8 Matinhos 0 2 0 0 2 Morretes 3 4 0 0 7 Paranaguá 2 3 0 1 6 Total 17 19 2 1 39 % do total 43,5 48,7 5,1 2,7 100 Fonte: Elaborada pelos autores. A maior parte das farinheiras do litoral paranaense (87%) não possui forro em suas estruturas, o que denota mais uma vez o teor rústico das construções. Outra demanda da vigilância sanitária é a presença de la- vatório para mãos. Neste quesito, a grande maioria das farinheiras, 67%, não o possuem. Outra exigência é a divisão, na unidade produtiva, da área limpa onde ocorrem a prensagem, esfarelamento, secagem e embalagem da farinha da área suja, local em que ocorra lavagem e o descasque da mandioca. No litoral, apenas 21% das farinheiras apresentam tal separa- ção (Tabela 12).

Tabela 12. Freqüência de farinheiras do litoral do Paraná que possuem divisão entre área suja e limpa em sua estrutura produtiva.

Municípios Sim Não Total Antonina 2 6 8 Guaraqueçaba 2 6 8 Guaratuba 0 8 8 Matinhos 0 2 2 Morretes 4 3 7 Paranaguá 0 6 6 Total 8 31 39 % do total 21 79 100 Fonte: Elaborada pelos autores.

66 AGROINDÚSTRIA FAMILIAR NO LITORAL PARANAENSE

Dificuldades Enfrentadas pelos Produtores de Farinha A atividade de fazer farinha sofre com diversos problemas no litoral do Paraná. Um dos problemas que foi detectado é a distância das fari- nheiras até o mercado consumidor, somado a isso e agravando ainda mais a situação esta as condições ruins das estradas por onde é escoado o produto final. Essa situação de difícil acesso ao mercado consumidor foi constatada com maior evidência e com maior gravidade nos municí- pios do Litoral Norte, principalmente em Antonina e Guaraqueçaba. Devido as longas distâncias dos centros consumidores, alguns pro- dutores de farinha, notadamente os menos estruturados, têm que de- sembolsar e gastar com o pagamento de frete para escoar o seu pro- duto, reduzindo, assim, seus ganhos. Em Guaraqueçaba, o pagamento com frete é uma realidade para a maioria dos agricultores visitados, em contrapartida, nos outros dois municípios do Litoral Norte este proble- ma está menos presente. Em Antonina os produtores de farinha levam o seu produto até o mercado consumidor via ônibus de linha, prática ainda permitida, porém em Guaraqueçaba a empresa que realiza o transporte coletivo não permi- te mais o transporte do produto em quantidades relativamente grandes. No Litoral Sul somente Guaratuba possui problemas com distância ao mercado consumidor e estradas de difícil acesso, para os demais mu- nicípios não foram detectados estes problemas. Outro empecilho para a produção de farinha está relacionado a dis- ponibilidade de área para o plantio da matéria-prima, a mandioca. Mu- nicípios como Guaratuba e Guaraqueçaba possuem grandes Áreas de Preservação Permanentes, nas quais não se pode fazer o plantio, ficando os produtores com espaços restritos para o cultivo de mandioca. Nos outros municípios este problema de área de plantio é menos acentuado, porém está presente em algumas propriedades. No município de Morretes, principalmente, constata-se a concor- rência desleal com a farinha proveniente de outras regiões e estados. Os produtores argumentam que a farinha que vem de outras regiões é

67 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações de menor qualidade, desvalorizando o produto local. Para enganar os consumidores, os embaladores, que compram a farinha de outras re- giões, embalam a farinha em sacos plásticos transparentes, na maioria das vezes sem rótulos, e utilizam a mesma técnica dos agricultores para amarrar os pacotes. Embora a comercialização de produto de outras regiões seja con- centrada no município de Morretes, os demais municípios também aca- bam sofrendo influência deste fato, desestruturando e prejudicando a comercialização e a valorização do produto local. Com tantas adversidades, como a falta de incentivos para a produ- ção de mandioca; ciclo longo da cultura; perda de lavouras por proble- mas climáticos (principalmente enchentes); trabalho pesado tanto na lavoura como na produção de farinha; várias famílias estão deixando a atividade e migrando para o meio urbano. O êxodo rural ocorre princi- palmente com pessoas mais jovens, restando no campo somente pes- soas com idade avançada. Com a ida dos jovens para a cidade, instala-se um quadro alarmante para os próximos anos, pois muitas destas fari- nheiras serão desativadas. Nas visitas presenciou-se que a maioria das farinheiras é operacionalizada por pessoas com idade avançada e mui- tos mencionaram que seus filhos não aprenderam e não têm interesse em dar continuidade na atividade.

Vantagens Competitivas das Farinheiras do Litoral Levantado os problemas no item anterior, cabe destacar as qualida- des do produto em questão e a partir destas desencadear ações para o fortalecimento da atividade de fazer farinha no litoral do Paraná. Uma característica que deve ser trabalhada, potencializada, é o fato da matéria-prima ser produzida, em sua grande maioria, sem a adição de insumos químicos. As lavouras geralmente estão em áreas de pre- servação, nas quais não é recomendável o uso de químicos, o que gera um produto mais saudável, com melhor qualidade e com menor risco à saúde humana.

68 AGROINDÚSTRIA FAMILIAR NO LITORAL PARANAENSE

Deve-se levar em consideração também que o produto é provenien- te da agricultura familiar, produzido de forma artesanal, que mantém as pessoas no campo, sendo responsável por grande parte da produção de alimentos, garantindo a soberania alimentar e contribuindo para a redução do êxodo rural. Portanto, a farinha do litoral paranaense possui forte identidade cultural, sendo vendida em quantidades consideráveis em Curitiba, por exemplo, que é um mercado consumidor exigente. Essa identidade cul- tural/territorial faz com que a farinha do litoral seja conhecida popular- mente como “Farinha Da Boa” ou “Farinha da Terra”, potencialidade que deve ser trabalhada para o fortalecimento da imagem do produto pe- rante o mercado consumidor.

Conclusões O litoral da Paraná é formado por apenas sete municípios distribuí- dos em uma área geográfica relativamente pequena. Nesse espaço ge- ográfico foram identificadas 133 farinheiras, distribuídas entre o Litoral Norte (63) e o Litoral Sul (70). A proximidade geográfica não permite concluir que exista uma homogeneidade nos processos produtivos, ao contrário, constatou-se uma elevada heterogeneidade. Existem fa- rinheiras extremamente artesanais, com processo totalmente manual, farinheiras intermediárias, com parte do processo manual e parte mecâ- nico e, por fim, farinheiras totalmente mecanizadas. As farinheiras mais rústicas são aquelas que produzem para o auto-consumo. As principais dificuldades enfrentadas pelos agricultores são a con- corrência desleal com a farinha vinda de outras regiões, a dificuldade em ampliar a área de cultivo e a falta de infra-estrutura para escoar a produ- ção para o mercado local/regional. Por outro lado, o produto apresenta atributos que lhe permitem se diferenciar do produto industrializado, ou seja, é um produto artesanal, da agricultura familiar, que utiliza ma- téria-prima produzida, quase que na totalidade, sem o uso de insumos químicos. Portanto, pode-se afirmar que a farinha de mandioca do lito- ral do Paraná é um produto que possui “identidade cultural”.

69 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Para amenizar as dificuldades e ressaltar os atributos, faz-se neces- sário um conjunto de atividades que devem ser desencadeadas pelas instituições que atuam no litoral do Paraná. A titulo de exemplo, pode- se criar um rótulo para identificar o produto local, permitindo que o con- sumidor identifique a origem do produto que está adquirindo. Portanto, se faz necessário adotar medidas eficientes de interven- ção que visem superar os gargalos e impulsionar as potencialidades das agroindústrias familiares. Desta forma, tem-se a possibilidade de evitar o desaparecimento da atividade de fazer farinha, farinhar, que possui grande importância socioeconômica e cultural no litoral do Paraná.

Referências ANDRIGUETTO FILHO, J. M.; MARCHIORO, N. P. X. Diagnóstico e problemática para a pesquisa. In: Raynaut, C. et al. (ed.). Desenvolvimento e meio ambiente: em busca da interdisciplinaridade. Curitiba: ed. da UFPR, 2002. p. 159-194. ESTADES, N. P. O litoral do Paraná: entre a riqueza natural e a pobreza social. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, n. 8, p. 25-41, jul./dez. 2003. ESTEVES, Cláudio J. O. Ocupação do litoral paranaense. In: Scortegana et al. (Orgs). Paraná – espaço e memória: diversos olhares histórico-geográficos. Curitiba: Bagozzi, 2005, p. 57-81. RAYNAUT, C. et al. O desenvolvimento sustentável regional: o que proteger? Quem desenvolver? In: RAYNAUT, C. et al. (ed.). Desenvolvimento e meio ambiente: em busca da interdisciplinaridade. Curitiba: ed. da UFPR, 2002. p. 235-248. SCORTEGAGNA, A. et al. (Orgs). Paraná espaço e memória: diversos olhares históricogeográficos. Curitiba: Editora Bagozzi, 2005. 408 p.

70 Jovens e cultura política em Matinhos1

Dione Lorena Tinti2 Rodrigo Rossi Horochovski3 Emerson Joucoski4

Introdução No Brasil dos anos 2000, os jovens ultrapassaram as crianças como maior estrato populacional, sendo este um dos variados efeitos do en- velhecimento da população experimentado pelo país. Os brasileiros en- tre 15 e 24 anos são filhos de décadas anteriores, quando eram maiores as taxas de fecundidade. As pressões resultantes são as mais diversas e despertam interesse social, midiático e científico na medida em que o grupo em questão protagoniza uma série de fenômenos centrais na atualidade: trata-se do maior contingente de desempregados (SINGER, 2005, p. 28), eleitores e vítimas da violência (KRISCHKE, 2005, p. 324), para citar apenas alguns aspectos. O crescimento da importância de es- tudos sobre este grupo é evidente e, com efeito, multiplicam-se pesqui- sas e pesquisadores a ela dedicados. Juventude é um tema multidisciplinar que envolve disciplinas e áre- as como medicina, direito, psicologia, economia e as ciências sociais em geral. Este texto insere-se neste último campo, especificamente numa sociologia política da juventude. Dentro das inúmeras possibilidades,

1 O presente texto é uma versão revisada de artigo apresentado pelos dois primeiros autores à Área Temática – Cultura política e Democracia, no 6º Encontro da ABCP – Associação Brasileira de Ciência Política, realizado de 29/07 a 1/08/2008, em Campinas (SP). Agradecemos às bolsistas Francielle da Silva, Thaísa da Motta Oliveira, Miriam Cristina Lopes e Ivonise Aglaé Marques (estudantes do curso de Serviço Social) e à socióloga Sueli Amaral que colaboraram na pesquisa de campo. O leitor que deseje acesso aos nossos bancos de dados e instrumentos de pesquisa pode solicitá-los por e-mail. 2 Socióloga, Doutora em Sociologia Política e Professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 3 Cientista Político, Doutor em Sociologia Política e Professor da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 4 Físico, Mestre em Física, Doutorando do Programa Interunidades em Ensino de Ciências (USP) e Professor da UFPR Litoral. E-mail: [email protected].

71 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações destacamos como foco de nossas análises o tema da cultura política, ten- do, como objeto, jovens de Matinhos, município do litoral do Paraná5. Tema controverso, cuja importância para a qualidade das democra- cias não raro é posta em questão6, o conceito de cultura política tem a ver com as disposições valorativas e atitudinais dos indivíduos com respeito à política. Aqueles que a tomam como categoria central asseve- ram tratar-se de variável fundamental para explicar o comportamento de indicadores de participação, capital social e sofisticação política e, ato contínuo, das possibilidades de democratização das diferentes arenas públicas, incluindo logicamente o Estado. Em geral, as pesquisas sobre cultura política, ao menos no Brasil, têm alcance nacional ou são realizadas em grandes cidades. Pesquisas locais em pequenos municípios, por exemplo, são pouco frequentes. A realização deste tipo de estudo é, no entanto, importante para se ter uma visão mais ampla e comparativa das diversas realidades de um país como o Brasil. É neste ponto que se posiciona esta pesquisa. O texto está organizado da seguinte forma: inicialmente, apresentamos breve revisão teórica e descrevemos os procedimentos de coleta de dados. A seguir, analisamos os resultados e discutimos possíveis desdobramen- tos do estudo.

Jovens e Cultura Política: Aspectos Teóricos e Metodológicos Cultura política é um conjunto de condutas e orientações politica- mente referenciadas, tanto em direção ao sistema e suas várias partes quanto em direção ao papel do indivíduo dentro do sistema (ALMOND; VERBA, 1989). Com o conceito assume-se que orientações subjetivas dos indivíduos – valores, conhecimentos e crenças – afetam o funcio- namento e a própria qualidade dos sistemas políticos, ultrapassando, assim, seus aspectos puramente procedimentais (BAQUERO, 2003).

5 De acordo com ABRAMO (1997), são recentes os estudos que consideram os próprios jovens e suas experiências, suas percepções, formas de sociabilidade e atuação. 6 Ver, nesse sentido, SANTOS (2004).

72 JOVENS E CULTURA POLÍTICA EM MATINHOS

A maior parte da cultura política dos indivíduos constitui-se em sua socialização (DAHL, 1971), daí a importância das instituições com que crianças e jovens se deparam em suas primeiras décadas de vida. As ca- racterísticas familiares, comunitárias, nacionais, religiosas, do sistema escolar, entre outras afetarão as crenças básicas, inclusive com respeito à política, sendo, por isso, relevantes na formação de sujeitos que adiram à democracia. A partir de estudos empíricos, ALMOND; VERBA (1989) estabelecem três tipos ideais de cultura política: paroquial, súdita e cívica ou parti- cipativa, dentro dos quais os indivíduos orientam-se em relação a três objetos: papéis ou estruturas do sistema político, quem se incumbe desses papéis e processos de formação das políticas públicas e decisões sobre elas. Por tratar-se de tipos ideais, raramente aparecem de modo isolado, sendo comuns combinações entre eles nas quais um ou outro tipo se destaca, o que, com efeito, se verificou em nossa investigação. Na cultura política paroquial, os indivíduos são completamente aliena- dos de todos os objetos acima (p. ex. o familismo amoral); na segunda, apresentam aderência ao sistema e suas decisões, mas estão alijados do processo de formação das políticas, obedecendo às determinações do sistema e de seus incumbentes. A cultura cívica implica engajamento nas três classes de objetos, ou seja, ela pressupõe indivíduos razoavelmente informados e participati- vos, que acreditam nos requisitos do sistema democrático, apoiando-o inclusive por meio da participação em suas decisões, seja em eleições ou outras arenas participativas. Uma cultura cívica exige níveis expressi- vos de capital social, ou seja, de relações de confiança interpessoal, nas normas, instituições e sistemas que, quando reforçadas, incrementam a eficácia dos grupos sociais (COLEMAN, 1988). Com isso, adensa-se a participação política e a aceitação das regras democráticas, incluindo a tolerância à diversidade de opiniões e interesses (BAQUERO, 2001). Conceito associado a esta discussão é o de sofisticação política, que se refere a fatores cognitivos acerca de conteúdos normativos, procedi- mentais e éticos com que os indivíduos avaliam e apreendem racional-

73 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações mente o conteúdo dos processos políticos, de modo a comportar-se politicamente com o maior grau de consciência em relação aos seus interesses e valores (REIS; CASTRO, 2001). Em suma, trata-se da capaci- dade de fazer escolhas políticas (KRISCHKE, 2004). Este autor, com base em pesquisa de Moisés (1995) acerca do apoio dos brasileiros à demo- cracia, aponta a escolaridade como fator preponderante da sofisticação política e a relação entre esta (afetada pela urbanização) e o referido apoio. Carreirão (2002) é outro autor que associa sofisticação política e escolaridade. Uma perspectiva pessimista afirma que, nos casos brasileiro e latino-americano, apesar dos avanços institucionais das últimas déca- das, persiste uma “cultura política fragmentada, com predisposição ao individualismo e a pouca valorização do coletivo, gerando um cenário prejudicial para a materialização de uma base normativa que valorize a democracia institucional” (BAQUERO, 2003, p. 7). Contribui para a prevalência dessa cultura a subsistência de um Estado oligárquico ao longo dos processos de transição democrática, responsável pela manutenção de características como clientelismo, pa- ternalismo, patrimonialismo e personalismo. A conseqüência é a dificul- dade de ultrapassar um modelo democrático minimalista, mediante a construção de um sistema de maior qualidade, voltado para a dimensão social da democracia. Para Baquero, o eleitor brasileiro em geral descrê da política, des- confia dos políticos e é tipicamente personalista e pragmático, quan- do não apático e cínico. Para agravar, em sua maioria, os eleitores têm pouco conhecimento dos temas gerais da política – revelando pouca sofisticação, em função não apenas dos referidos traços culturais, mas também pela manutenção de uma estrutura econômico-social caracte- rizada pela profunda desigualdade de acesso a recursos materiais e edu- cacionais. Como resultado, subjaz à institucionalidade democrática uma cultura política autoritária (REIS; CASTRO, 2001; BAQUERO, 2003). Carvalho (1998) aponta diversos déficits, dentre os quais o baixo nível de confiança em relação às instituições, sobretudo entre jovens.

74 JOVENS E CULTURA POLÍTICA EM MATINHOS

Haveria um sentimento generalizado de baixa eficácia (REIS; CASTRO, 2003), com o qual os indivíduos consideram-se politicamente pouco relevantes ou competentes. A conseqüência é a redução nos níveis de participação em tudo o que se relaciona a política, quando a base de comparação é o período de transição política dos anos 1970 e 80, situ- ação que Baquero (2001), talvez exagerando nas tintas, descreve como de desconsolidação democrática. Há, contudo, quem discorde das aná- lises pouco animadoras do comportamento político dos brasileiros, em especial dos jovens. Questiona-se, primeiramente, a noção de um jovem alienado, individualista, preocupado apenas com questões paroquiais e imediatas. Em vez disso, novas formas de participação se constituiriam diferenciadas das modalidades tradicionais e convencionais (KRISCHKE, 2005), fato constatado em Matinhos. Nesta pesquisa, averiguamos esses diferentes aspectos, como ve- remos adiante. A maior surpresa foi justamente não haver grandes sur- presas: os principais achados das pesquisas de maior alcance se repe- tem de modo praticamente inalterado. Antes, porém, de comentar os resultados, descrevemos como esta fase da pesquisa foi feita e o perfil dos informantes. Coletamos os dados primários por meio de dois procedimentos: o primeiro, um survey e o segundo, entrevista em profundidade com gru- po focal. Em ambos os casos, a população investigada era composta por jovens com idade entre 15 e 24 anos residentes no município de Mati- nhos, litoral do Paraná. O grupo de idade utilizado como recorte para o universo da pesquisa foi aquele que vem se tornando convenção no Brasil para a abordagem demográfica sobre juventude. Usamos como referência a concepção de juventude bem como a metodologia utilizada em pesquisa nacional sobre o tema (ABRAMO; BRANCO, 2005)7, na medida em que ela permite levantar dados relacio- nados às variáveis relacionadas a cultura política, destacadas pela litera- tura compulsada e que nos interessavam, como atitudes e crenças em relação ao sistema político bem como a sofisticação política. Na cons- 7 Doravante, quando nos referirmos à pesquisa nacional estamos nos remetendo a esta obra, salvo indicação em contrário.

75 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações trução de nosso roteiro, optamos pelas perguntas da pesquisa nacio- nal que permitissem traçar o perfil dos jovens matinhenses e analisar o comportamento dessas variáveis. Assim, enquanto o roteiro da pesquisa nacional comportava 160 perguntas, o nosso elencou 33, sendo 14 so- bre o perfil do entrevistado, quatro sobre assuntos de seu interesse e 19 sobre política. O survey ocorreu em maio e junho de 2008. Para adaptar a meto- dologia da pesquisa nacional ao universo investigado no município de Matinhos, definimos um procedimento de amostragem aleatória dividi- da em duas fases: 1) com base nos dados do IBGE (censo de 2000), rea- lizamos um sorteio entre os 52 setores censitários urbanos (agregados populacionais), selecionando seis setores para a realização da coleta de dados; 2) em cada um dos seis setores foi estimada uma amostra aproxi- mada de 25 entrevistas domiciliares, num total de 1368. A entrevista com o grupo focal, por sua vez, teve a intenção de apro- fundar a compreensão sobre alguns resultados. Realizada em março de 2009, contou com nove participantes que, mediados e supervisionados por nós, puderam conversar e expressar seus pontos de vista sobre tópi- cos relacionados à política, à cidade e às suas aspirações.

Os Jovens de Matinhos: Perfil e Cultura Política A cidade de Matinhos localiza-se no litoral do Paraná, a cerca de cem quilômetros da capital do Estado, Curitiba, e tinha, em 2007, uma população residente de aproximadamente 23 mil habitantes. Duran- te as férias de verão a população mais que decuplica, em função das centenas de milhares de veranistas que para lá se dirigem. Juntamente com Pontal do Paraná e Guaratuba, Matinhos forma o conjunto de mu- nicípios praiano-turísticos da região litorânea (ESTADES, 2003). Por suas

8 Segundo a Contagem Populacional (IBGE 2007), o município de Matinhos-PR possuía uma população de 23.357 habitantes. Como a Contagem não apresenta dados sobre a divisão da população por faixas etárias, utilizamos como critério, para estimar a população entre 15 e 24 anos, a distribuição populacional do Censo de 2000 que, definiu a participação dessa faixa etária em 18,5% do total do município ou, aproximadamente, quatro mil pessoas.

76 JOVENS E CULTURA POLÍTICA EM MATINHOS características geográficas, climáticas e culturais, esses municípios histo- ricamente desenvolveram uma vocação econômica voltada ao turismo massivo de verão, que abarca praticamente todas as principais ativida- des que ali se desenvolvem, como a pesca, o artesanato, a construção civil e os serviços. Como resultado desfavorável da dinâmica econômica local, a ge- ração de trabalho e renda concentra-se em apenas três meses do ano. Tal sazonalidade impõe um forte déficit de empregos formais vis-à-vis a população economicamente ativa, sobretudo nos períodos de baixa temporada, acarretando problemas sociais os mais diversos. Se, como vimos, a juventude é a vítima principal do desemprego no país, em Ma- tinhos a questão, somada à falta de opções culturais e de lazer9, ganha contornos dramáticos, com implicações diretas nas visões e atitudes dos jovens da cidade. Antes de tratar disso, vamos traçar o perfil desse estra- to populacional. Os jovens de Matinhos compartilham algumas características socio- demográficas, como raça, trabalho e renda, muito semelhantes às dos jovens brasileiros em geral, sendo ociosa uma discussão aprofundada. Entretanto, algumas particularidades merecem análise mais detida. A maioria não nasceu no município. Suas famílias para lá acorre- ram atraídas pelas oportunidades abertas pelas temporadas de verão. À época da pesquisa, pouco mais de 50% nele habitavam há menos de 10 anos (Tabela 1) e um em cada seis, estava há menos de um ano na cidade. Este quadro – fruto da dinâmica demográfica de uma cida- de que, diferentemente da quase totalidade dos pequenos municípios paranaenses, experimenta incremento populacional robusto desde os anos 1980 – certamente afeta a sociabilidade, o capital social e conse- qüentemente as possibilidades de ação coletiva e participativa, mor- mente no campo político.

9 Apesar de Matinhos ser uma cidade praiana, o que já representa uma opção de lazer para os jovens mesmo durante o inverno, pois muitos se dedicam à prática do surf, não há equipamentos culturais como cinema, teatro ou museus (o que é comum ser pouco presentes na maioria dos municípios conforme constatação de pesquisa do IBGE sobre distribuição de equipamentos culturais, citada por BRENNER; CARRONO; DAYRELL (2005, p. 179). De qualquer forma, até mesmo os aparelhos mais disseminados como biblioteca pública, clubes e ginásios esportivos ou são raros ou inexistem no município.

77 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Tabela 1. Tempo de moradia – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos. Tempo de moradia n % Menos de um ano 24 18,00% 1 – 5 anos 18 13,00% 5 – 10 anos 21 18,00% 10 – 15 anos 30 22,00% 15 – 20 28 21,00% >20 9 7,00% Não sabe/não respondeu 3 2,00% Total 136 100,00% Fonte: Pesquisa de campo. Reflexo das transformações nos costumes e representações sociais sobre as instituições da família e do casamento, a quantidade de jovens que simplesmente moram com seus parceiros é várias vezes maior que a dos formalmente casados (Tabela 2). O processo é ainda mais acentuado do que vem ocorrendo no país, apesar de se esperar algum provincianis- mo em uma cidade de pequeno porte como Matinhos10. Tabela 2. Situação conjugal – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil. Matinhos Brasil Situação conjugal n % % Solteiro 96 71,00% 78,00% Mora/Amigado(a) 32 24,00% 14,00% Casado(a) 5 4,00% 7,00% Separado(a) 2 1,00% 1,00% Viúvo(a) 0 0,00% 0,00% Outra 1 1,00% 0,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005). Os jovens matinhenses beneficiaram-se mais dos recentes avanços na educação básica, com a universalização do ensino fundamental e a massificação do ensino médio, do que os jovens brasileiros em geral (Ta- bela 3), ao menos em relação às quantidades. Por outro lado, perdura o desafio da democratização do acesso à universidade, o que deve mudar no curto prazo, pois em 2005 instalou-se uma unidade da Universidade Federal do Paraná. Isso é relevante, pois a se assumir a relação entre edu- cação e sofisticação política salientada por Carreirão (2002) e Krischke 10 Há que se considerar, neste caso, as características peculiares de Matinhos, especialmente o fato de esta ser uma cidade turística, com grande fluxo de pessoas da capital e do interior do Paraná e de estados e países vizinhos. 78 JOVENS E CULTURA POLÍTICA EM MATINHOS

(2004), é de se antever implicações importantes no comportamento po- lítico dos jovens com o crescimento da escolaridade. Tabela 3. Escolaridade – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil. Matinhos Brasil Escolaridade n % % Não freqüentou 1 1,00% 0,00% Até a 3ª série do fundamental 3 2,00% 4,00% 4ª série/primário completo 21 15,00% 4,00% 5ª a 7ª série/ginásio incompleto 20 15,00% 22,00% 8ª série/fundamental completo 42 31,00% 11,00% 1ª ou 2ª série/médio incompleto 43 32,00% 25,00% 3ª série/médio completo 4 3,00% 27,00% Superior (completo ou incompleto) ou pós-gradução 1 1,00% 6,00% Outro 1 1,00% 0,00% Não sabe/não respondeu 1 1,00% 0,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005). Quanto à religião, destaca-se o fato de o catolicismo não constituir uma crença majoritária (Tabela 4). Embora isoladamente apresente o maior número de fiéis, tem em Matinhos pouco mais da metade da pro- porção do país. O vertiginoso crescimento das denominações evangéli- cas o explica, numa reprodução da atual dinâmica religiosa das regiões metropolitanas brasileiras. Embora esteja a cerca de cem quilômetros de Curitiba e não seja um de seus municípios metropolitanos, Matinhos a ela se vincula cultural e economicamente, reproduzindo muitas de suas periferias. Tabela 4. Religião – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil. Matinhos Brasil Religião n % % Católica 49 36,00% 65,00% Evangélica 43 32,00% 22,00% Outras respostas 16 12,00% 1,00% não sabe/não resp. 13 10,00% 0,00% Acredita em Deus, mas não tem religião 8 6,00% 10,00% Ateu 3 2,00% 1,00% Espírita/Kardecista/Candomblé/Umbanda 2 1,00% 3,00% mais de uma 2 1,00% 0,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005).

79 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

No que concerne mais diretamente a temas políticos, os jovens de Matinhos também seguem o perfil nacional, presente em Abramo; Bran- co (2005). A juventude da cidade forma um grupo relativamente homo- gêneo. Variáveis socioeconômicas como gênero, idade, cor, escolarida- de ou mesmo renda aparentemente não afetam de modo significativo as variáveis de comportamento político consideradas aqui11. Ao contrário de afirmação recorrente na cidade (e de resto, no país inteiro), os jovens matinhenses preocupam-se com problemas contem- porâneos. O desemprego e a situação financeira estão entre os temas mais citados, o que também constatamos no grupo focal. Este permitiu, aliás, explorar com mais profundidade as possibilidades abertas pelos resultados do survey. Pudemos, por exemplo, levantar as percepções sobre o local onde vivem. Todos os participantes afirmaram gostar de morar em Matinhos, principalmente por causa das belezas naturais, mas também porque a percebem como uma cidade tranqüila, onde é possível locomover-se de bicicleta e onde agora há uma universidade. Isso não os impediu de apontar a existência de diversos problemas, tais como falta de segurança e de policiamento, enchentes, lixo nas ruas, precariedade da saúde e a “fama” de poluição das praias. Os nascidos na cidade apresentam forte sentimento de pertenci- mento e disseram não gostar quando ouvem falar mal dela, mesmo re- conhecendo seus problemas. Todos apontaram a necessidade de mudar várias coisas, principalmente na área da cultura e do lazer, pois não há teatro, cinema e nem “baladas”. Na área de educação, pedem mais cur- sos profissionalizantes e na de esportes, assinalam a falta de incentivo, pois realizam atividades apenas na escola ou nos finais de semana. Voltando ao survey, os jovens matinhenses reconhecem a impor- tância da política. Número expressivo a considera muito importante, tal como acontece entre os jovens brasileiros em geral. Entre os que justifi-

11 Para inferi-lo, empregamos o teste qui-quadrado em praticamente todos os cruzamentos possíveis. Como resultado, encontramos um número pequeno de relações em que as diferentes categorias que formam as variáveis (por exemplo, gênero – masculino e feminino) poderiam representar diferenciações significativas, mesmo reduzindo-se as categorias ao mínimo possível (duas, por exemplo) por agrupamento. Por um lado, isso sugere a referida homogeneidade dentro do grupo estudado; por outro, indica a necessidade de ampliação da amostra e de estudos longitudinais que propiciem uma quantidade maior de dados, uma redução no erro amostral e a maior possibilidade de aberturas e cruzamentos entre variáveis.

80 JOVENS E CULTURA POLÍTICA EM MATINHOS caram suas respostas, a maior parte remete-se à escolha dos governan- tes, à formação e manutenção do país e às possibilidades de melhorar a vida das pessoas, desde o município até o plano nacional. Quase todos creem na capacidade de os jovens mudarem o mundo e praticamente dois terços disseram que a política influi em suas vidas (Tabela 5). Tabela 5. Influência da política – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil.

Matinhos Brasil A política influi na sua vida n % % Muito 62 46,00% 37,00% Pouco 32 24,00% 32,00% Não influi 39 29,00% 29,00% Não sabe/não respondeu 2 1,00% 2,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005). Ao mesmo tempo em que reconhecem a influência da política em suas vidas, muitos dos jovens ouvidos afirmam não influir na política, em linha com a pesquisa nacional (Tabela 6). A maioria não soube di- zer a razão, mas entre os que indicaram motivo, as respostas mais co- muns foram ainda não votar e um sentimento de ineficácia na medida em que não se é ouvido. Poucos acreditam influir muito e quase todas as menções nesse sentido relacionam-se ao ato de votar. O grupo focal, realizado em condições mais propícias à escavação de dados mais pro- fundos, trouxe elementos adicionais. Alguns entrevistados crêem poder influenciar outras pessoas, por exemplo, numa conversa durante o pe- ríodo eleitoral, ou na rua e no bairro onde moram. Uma fala chamou a atenção: “não se faz política só sendo político, política é também ajudar na comunidade”. Tabela 6. Influência da política – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil.

Matinhos Brasil Você influi na política n % % Muito 24 18,00% 16,00% Pouco 37 27,00% 27,00% Não influi 69 51,00% 55,00% Não sabe/não respondeu 6 4,00% 2,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005).

81 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Malgrado o sentimento mais ou menos generalizado de que não contam muito politicamente, os jovens de Matinhos aderem à democra- cia, apesar do expressivo número dos que aceitariam uma ditadura ou são indiferentes (Tabela 7). Aqui também o grupo focal permitiu explorar melhor o tema. Quando sugerimos debater democracia, constatamos que os mais novos tinham mais dificuldades para responder e os mais velhos, alguns estudantes da UFPR, relacionaram-na à liberdade de esco- lha e ao direito de eleger representantes. Isso sugere que experiência de vida e a escola influem na relação das pessoas com temas políticos. Tabela 7. Adesão à democracia – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil. Matinhos Brasil Frase n % % A democracia é sempre a melhor forma de governo 87 64,00% 53,00% Tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura 26 19,00% 22,00% Em certas ocasiões, é melhor uma ditadura do que um regi- 19 14,00% 16,00% me democrático Não Sabe/não respondeu 4 3,00% 8,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005). Algumas questões sugerem uma adesão à democracia permeada de ambiguidades. Poucos defendem que a atuação de um líder forte, que co- loque as coisas no lugar, é o melhor para resolver os problemas do Brasil e um contingente duas vezes maior prefere a participação da população nas decisões importantes do governo. A maioria, contudo, preconiza as duas coisas (Tabela 8). Ou seja, embora a participação popular seja con- siderada importante pela maioria, o mesmo pode-se dizer da atuação de um líder forte, sinalizando simpatias por um padrão populista, que pode representar um contraponto às instituições da democracia formal. Tabela 8. O melhor para resolver os problemas do Brasil. Matinhos Brasil Frase n % % A atuação de um líder forte que coloque as coisas no lugar 17 13,00% 19,00% A participação da população nas decisões importantes do 36 26,00% 59,00% governo As duas coisas 75 55,00% 19,00% Não sabe/não respondeu 8 6,00% 3,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005).

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Em que pese os partidos políticos aparentemente serem uma insti- tuição desacreditada no Brasil, a maioria dos jovens de Matinhos os con- sidera muito importantes (Tabela 9). Tal reconhecimento recai, inclusive, sobre o próprio grupo pesquisado, na medida em que quase 80% dos in- formantes disseram que os partidos são importantes para os jovens. Aqui também os resultados são semelhantes aos de Abramo; Branco (2005). Tabela 9. Importância dos partidos – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil.

Importantes Matinhos Brasil Importantes Matinhos Brasil para o país n % % para os jovens n % % Muito 70 51,00% 47,00% Muito 45 33,00% 39,00% Mais ou menos 46 34,00% 41,00% Mais ou menos 60 44,00% 43,00% Nada 11 8,00% 9,00% Nada 27 20,00% 16,00% Não sabe/ 9 7,00% 3,00% Não sabe/ 4 3,00% 3,00% não respondeu não respondeu Total 136 100,00% 100,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005). A maior parte é favorável à existência de vários partidos, ainda que entre estes entrevistados a maioria preferisse que houvesse menos par- tidos que atualmente (Tabela 10). No entanto, número expressivo dis- corda do pluripartidarismo e disse preferir que houvesse apenas um ou nenhum partido. Cruzamos estes resultados com a adesão à democracia. Sessenta por cento dos que disseram que às vezes uma ditadura é me- lhor preferiam que houvesse apenas um ou nenhum partido no Brasil. Entre os que responderam que a democracia é sempre a melhor opção, este número cai pela metade. Nesse caso, nossos jovens demonstram razoável coerência. Tabela 10. Posição sobre o número de partidos no Brasil – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil.

Matinhos Brasil Frase n % % É bom para o Brasil ter muitos partidos como tem hoje 29 21,00% 24,00% Seria melhor ter vários partidos, mas menos do que tem hoje 50 37,00% 36,00% Seria melhor se tivesse um único partido 25 18,00% 20,00% Seria melhor se não existisse partido nenhum 23 17,00% 14,00% Não sabe/não respondeu 9 7,00% 6,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005).

83 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

No grupo focal, debatemos o tema dos partidos e constatamos difi- culdades para diferenciar siglas. À exceção de dois jovens, que se disseram simpatizantes do PT, nenhum outro se identifica com qualquer partido. Além do desconhecimento dos programas, uma das entrevistadas citou a dificuldade de reconhecer identidades partidárias quando interesses próprios estão em primeiro lugar. Embora seja uma fala singular, ilustra a crise dos partidos e de seu descolamento da sociedade civil no Brasil. As dificuldades na identificação das diferenças entre os partidos repetem-se, como era de se esperar, no tocante ao espectro político- ideológico. No survey, muitos não souberam dizer onde se encontram entre a extrema-esquerda e a extrema-direita (Tabela 11). Quando sou- beram, seguiram padrão recente de investigações nacionais que reve- lam uma suposta guinada à direita da população brasileira nos últimos anos12. Pedimos para os informantes justificarem suas respostas13 e che- gamos talvez a um de nossos mais interessantes achados. Praticamente todos ou não souberam justificar ou deram respostas de difícil classifi- cação, muito distantes do que a teoria política convencionou chamar de esquerda, direita, centro etc. – tome-se, por exemplo, a classificação de Bobbio (1995). Nem mesmo a recorrente confusão com as posições perante o executivo (oposição/situação) aparece. Tabela 11. Posição no espectro político-ideológico – jovens entre 15 e 24 anos – Mati- nhos e Brasil. Matinhos Brasil Posição n % % Extrema-esquerda 10 7,00% 5,00% Esquerda 20 15,00% 11,00% Centro-esquerda 5 4,00% 11,00% Centro 28 21,00% 23,00% Centro-direita 3 2,00% 12,00% Direita 17 13,00% 14,00% Extrema-direita 8 6,00% 6,00% Não sabe 45 33,00% 17,00% Total 136 100,00% 100,00% Fonte: Pesquisa de campo; Abramo; Branco (2005).

12 Segundo pesquisa do Datafolha, realizada em 2006, 47% dos brasileiros seriam de direita, contra 20% de centro e 30%, de esquerda (DATAFOLHA, 2006). 13 Esta pergunta não constava da pesquisa nacional em que a presente investigação se baseia.

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Por um lado, esses números refletem um nível muito tímido de in- formação e sofisticação política nos termos de Reis; Castro (2001), talvez decorrente da baixa participação em atividades ligadas à política. Disso é possível inferir a existência de dificuldades para ações coerentes no campo político, em especial em relação a decisões mais distantes do dia a dia. Por outro lado, não se pode negligenciar que nas últimas décadas atenuaram-se, em alguma medida, as fronteiras que diferenciam as posi- ções no espectro político-ideológico. Estas passaram a se interpenetrar, sobretudo no cotidiano da política e nas representações/imagens que os partidos ativam nas campanhas eleitorais. Com isso, ter-se-ia tornado mais difícil às pessoas de diferentes estratos socioeconômicos reconhe- cerem e definirem as diferentes posições. Outro conjunto de questões atesta o baixo grau de sofisticação po- lítica de nossos jovens (Tabela 12). Inquirimos inicialmente qual era a primeira coisa que lhes vinha à cabeça quando ouviam falar em cidada- nia, pergunta que não havia na pesquisa nacional. Muitos não souberam responder e, entre os que o fizeram, parte expressiva mencionou a po- pulação de um país ou cidade. O termo “direitos” pouco apareceu, em- bora a maioria soubesse identificar pelo menos um direito de cidadania (quando insistíamos para mencionar um segundo direito, o resultado foi consideravelmente menos favorável). Tabela 12. Cidadania e direitos jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil. Cidadania (vem Identificou Identificou Resposta alguma coisa à cabeça) um direito dois direitos N % n % n % Sim 85 63,00% 96 71,00% 59 43,00% Não 51 38,00% 40 29,00% 77 57,00% Total 136 100,00% 136 100,00% 136 100,00% Fonte: Pesquisa de campo. Em Matinhos os jovens pesquisados adotam atitudes pouco partici- pativas em direção a ações mais tradicionalmente relacionadas à política (Tabela 13), tal como ocorre entre os jovens brasileiros em geral. Analisa- da em conjunto com os dados sobre informação política, esta constata- ção poderia reforçar o diagnóstico pessimista de Baquero (2001), acerca das possibilidades da democracia brasileira.

85 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 % pondeu - Não res % 92 96 88 87 86 86 84 80 69 51 35 Nunca Brasil 6 3 % 10 10 10 10 11 15 16 39 51 em De vez De vez quando 2 1 2 3 4 4 5 5 % 15 10 14 Sempre 0 0 1 0 2 1 1 1 1 0 1 % pondeu - Não res 0 0 1 0 3 2 1 1 1 0 1 n 8 % 78 85 70 85 84 83 74 74 76 37 n Nunca 95 49 11 106 115 115 114 113 101 101 104 % 19 13 22 Matinhos 12 12 13 19 13 19 48 63 em De vez De vez n 26 18 30 16 16 17 26 17 26 quando 64 86 3 2 7 4 2 3 6 4 % 13 15 28 4 3 5 3 4 8 5 n Sempre 10 17 20 38 Participa de reuniões de partidos de reuniões Participa políticos atividade de alguma outra Participa política Faz pedido para políticos ou políticos pedido para Faz funcionários públicos Participa de manifestações a favor ou a favor de manifestações Participa por alguma causa o governo contra Participa de movimento ou causa social causa ou movimento de Participa Participa de associações ou grupos ou grupos de associações Participa ou do bairro problemas resolver para da cidade Quando há eleição, trabalha como como trabalha Quando há eleição, ou algum candidato para voluntário partido Assina manifestos de protesto ou de protesto manifestos Assina reivindicações Nas eleições, tenta convencer os outros os outros convencer tenta Nas eleições, em seus candidatos a votar Conversa com outras pessoas sobre pessoas sobre outras com Conversa política Lê ou assiste noticiário sobre política noticiário sobre ou assiste Lê Atividade . Frequência de realização de atividades ligadas à política – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil. entre ligadas à política – jovens de atividades de realização 13 . Frequência Tabela (2005). Branco de campo; Abramo; Pesquisa Fonte:

86 JOVENS E CULTURA POLÍTICA EM MATINHOS

As únicas atividades de que a maioria toma parte, ainda que ocasio- nalmente, são ler ou assistir noticiário sobre política e conversar sobre o tema. Estes dois resultados poderiam relativizar diagnósticos de uma juventude desinteressada. No entanto, trata-se de atividades menos participativas, realizadas em arenas privadas. O grupo focal propiciou compreensão mais ampla sobre o que sig- nifica falar de política. As conversas ocorreriam somente nos períodos eleitorais – à exceção de dois jovens, uma menina que tem políticos na família e um menino cujo pai é aficionado em política. Nesse ponto da entrevista surgiu fala das mais importantes para esta investigação: os entrevistados disseram ser comum que as crianças cresçam ouvindo que os políticos são corruptos e esta seria a razão principal para o desin- teresse posterior por política, num efeito antipedagógico. Isso corrobora as asserções de Dahl (1971) sobre a importância do processo de sociali- zação para o comportamento político. De todo modo, o survey revelou que ações mais proativas sempre apresentam resultados mais modestos. Para análise dessas atividades as dividimos segundo o nível, maior ou menor de participação, em dois blo- cos. No primeiro bloco, reunimos ações que envolvem pelo menos um quinto dos informantes, somando-se as respostas sempre e de vez em quando. No segundo, ações que não atingem esta proporção (Tabela 14). Tabela 14. Freqüência de realização de atividades participativas – jovens entre 15 e 24 anos – Matinhos e Brasil. Matinhos Brasil Atividade n* % % Faz pedido para políticos ou funcionários públicos 40 29,00% 12,00% Quando há eleição, trabalha como voluntário para algum candi- 34 25,00% 16,00% dato ou partido Nas eleições, tenta convencer os outros a votar em seus candidatos 34 25,00% 31,00% Assina manifestos de protesto ou reivindicações 31 23,00% 20,00% Participa de reuniões de partidos políticos 30 22,00% 8,00% Participa de alguma outra atividade política 21 15,00% 4,00% Participa de associações ou grupos para resolver problemas do 21 15,00% 14,00% bairro ou da cidade Participa de manifestações a favor ou contra o governo por 21 15,00% 13,00% alguma causa Participa de movimento ou causa social 19 14,00% 14,00% * Soma das respostas sempre e de vez em quando Fonte: Pesquisa de campo

87 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Os resultados permitem mais de uma interpretação. Ao agrupamos as respostas sempre e de vez em quando, constatamos que, embora não seja majoritária, a participação política, ainda que ocasional, não é de modo algum insignificante. Entretanto, de um ponto de vista da racio- nalidade dos agentes, ações que geram benefícios seletivos e mais dire- tos aos sujeitos atraem maior participação, confirmando as hipóteses de Olson (1999) sobre o comportamento político de indivíduos e grupos. Um exemplo é a razoável proporção de jovens que já fizeram pedidos a políticos e funcionários públicos. Não perguntamos a natureza dos pedidos nesta investigação, mas em estudo anterior com outro estrato populacional no mesmo município, um de nós o fez e quase a totalidade dos pleitos é de pedidos pessoais ou para familiares, rareando deman- das por benefícios coletivos, cuja obtenção independe do movimento de sujeitos específicos. Outra interpretação, mais relacionada à linha adotada neste tra- balho, destacaria o caráter clientelístico das relações entre cidadãos e agentes estatais, em face da distância que separa o Estado brasileiro, em todos os níveis de governo, de uma democracia consolidada, em que o exercício da cidadania por todos seja efetivo. Alguns jovens envolvem-se, ainda que ocasionalmente, na dinâmi- ca eleitoral da cidade. Em municípios pequenos, eleições são grandes chamarizes, o que não deixa de ser interessante do ponto de vista da consolidação da democracia. Por outro lado, nesses locais de economia pouco dinâmica parece ser mais direta a dependência das pessoas dos resultados eleitorais para satisfação de seus interesses particularistas. Atividades voltadas a benefícios coletivos e menos devotadas a neces- sidades imediatas têm a adesão de menor número de indivíduos. Ape- sar de óbvia, a constatação é importante, pois de alguma forma ajuda compreender a preferência que os partidos e políticos dão às questões mais concretas e específicas da política, o que resulta em indiferencia- ção ideológica, ao menos no plano das mensagens – embora as políticas públicas propostas e executadas difiram conforme a posição no espec- tro ideológico.

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Considerações Finais Os resultados descritos nas seções anteriores mostram que os jo- vens de Matinhos não diferem muito dos brasileiros em geral, retratados em volume organizado por Abramo; Branco (2005) e em cujo instrumen- tal esta investigação se baseou. Por um lado, os indivíduos entre 15 e 24 anos desse pequeno município reproduzem o padrão pouco participati- vo e, em larga medida, distante da ação política mais direta, embora re- conheçam o papel determinante da política e de suas instituições e, em sua maioria, adiram à democracia e a alguns de seus princípios, como pluripartidarismo e participação popular nas decisões do governo. A percepção do que seja participar, no entanto, praticamente se resume ao voto, rareando menções à possibilidade de estes jovens influencia- rem a política por meio de formas mais ativas e diretas. Enfim, à luz da tipologia de Almond; Verba (1989), o que emerge é um retrato ambíguo, em que à primeira vista parece haver certa pre- valência de uma cultura política paroquial, ainda que elementos das outras duas, súdita e cívica, também estejam presentes. Por outro lado, assim como os jovens brasileiros de todas as regiões, nossos informan- tes destoam em parte da imagem de alienação em relação a temas polí- ticos. As preocupações com desemprego, questões ambientais e sociais, com a violência que grassa no país, demonstram que, de alguma forma, esses sujeitos não estão descolados de seu contexto político e econô- mico, muito pelo contrário. Tal inferência é reforçada pelo fato de que os jovens que participaram tanto do survey quanto do grupo focal são otimistas com relação ao futuro e crêem que podem mudar o mundo. As dificuldades em responder algumas questões ligadas àcida- dania e à ideologia política sugerem antes, que a informação escassa pode estar dificultando o acesso desses jovens a um comportamento mais ativo em relação a atividades relacionadas à política. Eles mesmos o reconhecem. Ainda que considerem os jovens de hoje mais esclare- cidos, admitem precisar ler mais e conhecer mais de política e história, por exemplo. O problema, dizem, é não saber o que fazer para mudar

89 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações e nem como colocar em prática. Além disso, acreditam não ter muito crédito por parte dos adultos. Todo este quadro indica a busca de for- mas não convencionais, inovadoras de viver a política, identificada por Krischke (2005). As novas tecnologias da informação e da comunicação, que propiciam as redes sociais, poderiam ser os veículos de uma nova sociabilidade política em gestação, cuja percepção pelas instituições e atores políticos ainda é bastante tímida. Essas análises, malgrado sejam formuladas a partir de amostras pouco extensas, permitem-nos afirmar que o fato de Matinhos ser um município de pequeno porte não afeta substancialmente a cultura po- lítica de seus habitantes, inclusive os jovens, quando se compara com o restante do país. Uma possível continuidade da pesquisa poderá reforçar tal constatação. De todo modo, aparentemente outras clivagens dentro da própria juventude têm vigor explicativo, o que demanda a realização de amostras mais amplas, incluindo outros municípios da região, e de estudos longitudinais que permitam maiores aberturas.

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92 Um diálogo entre Teoria e Prática, Arte e Ciência no ensino contemporâneo da Arte

Carlos Weiner M. de Souza1

Introdução Realizamos aqui uma reflexão acerca da combinação teoria-prática, e dos caminhos que estabelecem o diálogo entre arte e ciência no ensi- no da arte. O objetivo central é discutir a relação ensino e aprendizagem da arte na perspectiva contemporânea que envolve os novos meios de produção, veiculação e recepção de imagens. Trazemos para a análise elementos de um estudo de caso que revelam a atuação do professor a partir de um projeto, cujo suporte foi a produção fotográfica, no contex- to das novas tecnologias de produção da imagem. Nesse caso, a cidade surgiu como tema da experiência educativa em arte que buscou fundir teoria e prática no processo criativo. Levamos em consideração que o contexto no qual se inserem a maior parte dos professores corrobora para a desmotivação da prática criativa, bem como contribui para a prática copiadora, reprodutora de formula- ções que dão ao professor a falsa sensação de que possam ser aplicadas em lugares distintos, independentemente de suas especificidades. Entendemos que um dos elementos que norteia o propósito de for­ mação de professores está na construção do pensar crítico, que envolve uma relação dialética entre pensar-fazer, na aproximação teórico-prática, e em uma orientação que supere a falsa dicotomia entre arte e ciência. A questão se coloca de forma proeminente no momento atual em que o uso das novas tecnologias da informação, produção e veiculação de ima- gens, tem assumido um papel muito relevante para a compreensão da

1 Licenciado em Artes, especialista em Música no século XX – Computação Sônica e Mestrando em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Artes da USP. E-mail: [email protected]. 93 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações produção artística contemporânea, por conseguinte, para os caminhos da arte/educação. Tal reflexão no ensino da arte deve necessariamente repensar a orientação de origem moderna que levou a prática docente ao gerenciamento do laissez faire, bem como a lógica tradicional hierar- quizada, que ligou secularmente professores e alunos. A experiência analisada é fruto do desenvolvimento de um projeto educacional de cunho sociocultural, protagonizado pelo programa de ex- tensão Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da UFPR Lito- ral (ITCP Litoral), que intitulamos de Projeto Vila Educação e Arte (Projeto Vila)2. Representou uma das ações desenvolvidas pela ITCP junto à comu- nidade da Vila Santa Maria em Paranaguá entre 2008 e 2010. No caso do projeto Vila, o foco eram os adolescentes, cujas famílias trabalham funda- mentalmente com a reciclagem de resíduos obtidos no Lixão da cidade. Compreendemos que a experiência educacional em arte vivenciada no Projeto Vila, com um grupo de 25 adolescentes, comporta elementos suficientemente ricos para suscitar as discussões às quais nos propomos. O projeto educativo utilizou-se dos meios técnicos inerentes à fotografia digital e, dos recursos computacionais de tratamento da imagem, am- bos tomados como veículo de mediação com a cidade e suas múltiplas formas de se apresentar aos sentidos do homem. O conceito de educa- ção estética como educação da percepção e, do acesso à arte como um direito deram a substância teórica e as motivações sociais necessárias ao seu desenvolvimento. Vale destacar que o elemento que nos conduziu à eleição da cidade como eixo articulador do processo foi a condição de exclusão do grupo de estudantes em relação aos seus espaços. Essa escolha possibilitou trabalhar a ideia de pertencimento ou não ao lugar, e de perceber as paisagens3 que se nos apresentam no cotidiano em relação às paisagens internas que construímos no exercício da subjetividade.

2 As etapas do projeto, bem como o acervo das imagens produzidas podem ser acessadas pelo blog . 3 O conceito de paisagem aqui tratado encontra-se na formulação de Milton Santos (1997, p.64), “paisagem é o domínio do visível e não se forma apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc. É o conjunto de objetos que nosso corpo alcança e identifica”. Para o autor, a dimensão da paisagem é a mesma da percepção, segundo a crucial atuação do aparelho cognitivo. Desta feita, pessoas diferentes apresentam versões diferentes do mesmo fato.

94 UM DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA, ARTE E CIÊNCIA NO ENSINO CONTEMPORÂNEO DA ARTE

Desafios para a Arte-educação É inerente ao contexto contemporâneo impor um sem número de desafios para que a arte possa de fato contribuir plenamente para a for- mação de indivíduos livres, autônomos e mais criativos. Um desses de- safios é exatamente a formatação pedagógica a que estão habituados muitos dos professores, dentre eles, os professores de arte. Tal forma- tação implica em uma postura reprodutivista de atividades, freqüente- mente, baseada em conteúdos apostilados, prontos para serem imple- mentados em qualquer contexto, a qualquer hora. Contemporaneamente o ensino da arte perdeu a tônica moderna baseada na auto-expressão, na qual o papel do professor estava foca- do no processo de facilitação do contato espontâneo do aluno com os meios expressivos e técnicas produtivas da arte. Assumiu assim uma perspectiva complexa que exige um diálogo intenso entre professor e aluno, seja na mediação com os produtos e significados da cultura, seja com os modos de pesquisa e produção em arte. Para Moraes (2000) o abismo entre o novo e a prática docente irre- fletida e sem significação constitui o desafio interposto ao processo de formação de professores no contexto atual. Ação e reflexão tornam-se os dois lados do processo educativo, criador e transformador na forma- ção em arte, o que promove uma ressignificação da profissão do arte- educador. Revela-se a necessidade de uma pedagogia que envolva a relação dialética do aprender-fazendo através do trabalho criador. A partir da práxis inerente ao fazer artístico, baseado na articulação entre as dimensões técnica, cognitiva e comunicativa, podemos con- textualizar o caso analisado nesse artigo. Interessante destacar que tal experiência fundamentada no campo da fotografia digital, no ensino da arte a partir dos novos meios eletrônicos, buscou a resignificação da co- nexão teórico-prática, das relações entre arte e ciência, a partir de novos procedimentos, novas associações e conhecimentos. O que contribui para pensarmos sobre o papel das novas tecnologias e suas influências sobre o cotidiano, sobre a produção artística, e, por conseguinte sobre a prática pedagógica.

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O processo criativo entendido como elemento central da produção artística constitui atualmente, a nosso ver, a contribuição substantiva da arte para o campo da educação. Levar os estudantes a questionamentos sobre os percursos da criação a partir de perguntas4: como o fotógrafo fez isso? Que técnicas foram utilizadas? Qual o seu ponto de vista? Por que razão fez essas opções? Como tratou as imagens no processo de mani- pulação através do meio computacional? Que conhecimentos científicos estão por traz dos equipamentos utilizados? Para defender que ideias? Por que essa fotografia é arte? São imprescindíveis para que reconheçam que uma fotografia não é apenas um ato mecânico, valorizando assim, o trabalho e o pensamento que a ela estão subjacentes. Consideramos a fotografia como a base conceitual, tecnológica e, ideológica de todas as mídias contemporâneas. Arlindo Machado (2008, p.1) afirma que “compreendê-la, defini-la é um pouco também compre- ender e definir as estratégias semióticas, os modelos de construção e percepção, as estruturas de sustentação de toda a produção contempo- rânea de signos visuais e auditivos, sobretudo daquela que se faz através de mediação técnica”. Percebemos que isso vai ao encontro do papel da Universidade como “espaço de elucidação das relações entre o “fazer” e o “saber” artís- ticos” (PLAZA, 1998, p.38). Para Plaza, o que há de novo nessa proposição é o fato de que recoloca criticamente a discussão entre arte e ciência sob novos termos e sob novo enfoque. Nas relações entre arte e ciência podemos perceber o jogo do cientista com as regras, já para o artista é o jogo com as possibilidades perceptivas (utiliza-se aqui o “raciocínio perceptual”, entendido por Ar- nheim -1980: 265 - como trabalho criativo com as relações entre quali- dades sensíveis) e qualitativas da luz, vale dizer, com as suas aparências concretas. Já para o cientista, interessa a sua natureza ou essência, cor- puscular ou ondulatória, ou ambas, é dizer, seu código ou linguagem (PLAZA, 1998, p.39).

4 Tais questões percorrem a orientação aristotélica a propósito da existência dos fenômenos, que implicam na existência de algo. Causas materiais, formal, operacional ou eficiente e final (ARISTÓTELES, 1984).

96 UM DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA, ARTE E CIÊNCIA NO ENSINO CONTEMPORÂNEO DA ARTE

Em síntese, o que Plaza (1998) traduz é que a crise contemporânea vivenciada tanto pela ciência, como pela arte, possuem ao menos um ponto de encontro fundamental. Esse, por sua vez, está expresso no fato de que os modelos de representação e determinação do conhecimento, bem como da sensibilidade historicamente dicotomizados tornaram-se visivelmente inadequados. A crise, todavia, abre uma janela de possibili- dades de reconexão e diálogo entre ciência e arte. A livre expressão tão cara ao ensino moderno da arte e a ideia de “linguagem própria do artista”, por conseguinte, representam caminhos que estão na contramão dessa possibilidade de reconexão, na medida em que negam à arte essa interlocução. Em contraponto, Plaza (1998) aponta que o ato criador artístico e o científico têm em comum a ca- pacidade de formular hipóteses, imagens, idéias, tanto no processo de colocação de problemas, como nos métodos infralógicos5. Contudo, o distanciamento entre arte e ciência é irrefutável nos procedimentos de realização, análise e síntese. Acrescemos ainda, que o fazer artístico a partir das proposições de Pareyson (1997) une fazer e formar, “para ele, formar significa fazer in- ventando ao mesmo tempo o modo de fazer” (PLAZA; TAVARES, 1998, p. 87). O processo criativo com base na formatividade defendida pelo au- tor, por sua vez, dialoga com as mudanças tecnológicas. Na relação arte e tecnologia se tornam evidentes as provocações que as tecnologias da comunicação interpõem à inovação no campo da arte. Tanto mais rele- vante se torna, quanto maior o grau de interatividade possível a partir das novas tecnologias de base eletrônica na contemporaneidade. Para Plaza (2000, p. 2):

... quando em 1922, Moholy Nagy decide pintar um quadro por telefone, inaugura-se, de forma pioneira, o universo da interatividade. Posteriormente, Bertold Brecht pensava a interatividade dos meios de comunicação em uma sociedade democrática e plural. Entretanto, é necessário fazer um levantamento conceitual das interfaces, tendências e dispositivos que se situam na linha de raciocínio da inclusão do espectador na obra de arte, que - ao que tudo indica - segue esta linha de percurso: participação passiva

5 O nível infralógico é tomado como aquele em que os sistemas de pensamento são baseados na imediaticidade, pendentes à contradição.

97 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

(contemplação, percepção, imaginação, evocação etc.), participação ativa (exploração, manipulação do objeto artístico, intervenção, modificação da obra pelo espectador), participação perceptiva (arte cinética) e interatividade, como relação recíproca entre o usuário e um sistema inteligente.

A apreensão crítica do contexto que foi se desnudando ao longo do século XX e atingiu, de certa forma, um ponto alto no seu último quartel fundamenta o que Umberto Eco (1989) chama de “obra aberta”. Para Pla- za (2000, p.5), essa é compreendida como “pluralidade de significados em um só significante”. A era eletrônica, baseada nas tecnologias digi- tais, potencializa de forma inimaginável a exploração daquilo que Plaza (2000) chama de “campo dos possíveis”. Percebemos que a fotografia digital se encontra dentro desse con- texto que se materializa por intermédio de uma nova relação homem/ máquina. Referindo-se ao campo da infografia, Moles afirma que essa constitui “uma relação ativa do homem com as coisas, mais-valia da vida...: não é mais uma continuidade espontânea do movimento da mão, mas uma vontade da forma...” (Plaza, 2000, p.13). No caso da fotografia digital também percebemos esse novo processo reformatando a lógica da produção do signo fotográfico. Na medida em que contextualizamos a fotografia no ambiente di- gital, passamos a vê-la como elemento presente na produção interativa dos significados em arte contemporaneamente. Para Santaella (2007),

... com o desenvolvimento da computação, o adjetivo “virtual” tornou-se voz corrente e, nesse contexto, significa uma matriz de valores numéricos que, estocados na memória do computador, por meio de cálculos e procedimentos formalizados, permite que execuções indefinidamente variáveis de um modelo sejam executadas.[...] No computador, a informação não é armazenada em sistemas fechados, mas é imediatamente recuperável e assim livremente variável.

Se na fotografia analógica, com base em procedimentos químicos, a imagem captada significava a irreversibilidade de seu registro, na digi- tal tudo pode ser modificado, tanto em sua totalidade quanto em cada elemento particularizado. “No mundo digital, todos os parâmetros da informação são instantaneamente variáveis” (SANTAELLA, 2007).

98 UM DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA, ARTE E CIÊNCIA NO ENSINO CONTEMPORÂNEO DA ARTE

A pesquisa no campo da educação na contemporaneidade, em es- pecial na arte-educação, não pode se isentar da reflexão e da experi- mentação das novas tecnologias. A partir desse pressuposto é que foi possível definir a fotografia digital como um caminho para o Projeto Vila. A opção se comprovou apropriada na medida em que a facilidade dos jovens na absorção de novas tecnologias apresenta-se como uma porta aberta para o aprendizado, através da construção de significados.

A Teoria e a Prática na Experiência do Projeto Vila Educação e Arte A experiência desencadeada a partir do aprendizado relacionado à fotografia digital foi implementada com um grupo de 25 adolescentes, com idade em sua maioria entre 10 e 14 anos, moradores da periferia da cidade de Paranaguá/PR, ente os anos de 2008 e 2010. O objetivo inicial da ação foi focado no desenvolvimento da percepção estética, no aprendizado das questões da arte, mas também na observância crítica dos aspectos socioculturais da cidade. Tomamos como ponto de partida a linguagem fotográfica. Através dela buscamos perceber como os atores representam os espaços vivi- dos, e como os signos construídos a partir dessas experiências são repre- sentativos em seu processo circulatório, em sua mobilidade. Portanto, na relação identitária complexa com os diversos espaços da cidade. A imagem fotográfica foi trabalhada em seus aspectos estéticos, ideológicos e técnicos. Entendemos que tal caminho contribui para pro- mover a desmistificação dos novos meios de produção da imagem, na medida em que explicita tanto os aspectos históricos de seu desenvolvi- mento, quanto seus usos nas várias dimensões da vida. Os caminhos adotados ao longo da experiência se apoiaram na ideia de ação coletiva, do fazer com o outro, e no exercício da subjeti- vidade em relação à percepção e representação do espaço. A partir daí buscamos a ênfase na abordagem do espaço como elemento da cons-

99 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações trução de significado, tornando-o interlocutor do que Barbosa (2009, p. 61) classifica como “um contextualismo esclarecedor que amplia a noção de experiência e lhe dá uma densidade cultural”. Tomamos o conceito de experiência a partir de Dewey (2010, p. 128), para quem a experiência em arte representa a união entre “agir e sofrer, entre a energia de saída e a de entrada”. Nesse sentido, expressa uma relação complexa que coloca o indivíduo como produtor e espectador, como promotor e receptor, permitindo acessar uma extensão mais pro- funda de seu contato com o meio. No caso em análise, a realização da experiência contou com visita- ções fotográficas, a vivência dos espaços, exercícios e discussões temá- ticas sobre a cidade. O caráter lúdico e de lazer, combinado à estimu- lação da curiosidade e instigador do desejo de conhecer provocaram os participantes no sentido de indagar a existência e a importância de cada um daqueles espaços, em princípio distantes de sua realidade, em vários sentidos. A aparência visível da fotografia é um fragmento do mundo da vida que se pretendeu apresentar, uma tentativa de preservar o passado, o instante vivido, uma representação que passa pelos filtros culturais e afetivos do sujeito. Um signo, que ao ser colocado à disposição da per- cepção do sujeito torna-se capaz de desencadear processos de resigni- ficação do mundo. A produção fotográfica, oriunda do trabalho com o grupo, gerou dois conjuntos de imagens que traduziram posturas distintas em rela- ção ao ato fotográfico. O primeiro conjunto derivou da percepção e in- terrelação oferecida pela paisagem urbana, pela vivência dos conjuntos arquitetônicos históricos, praças, vias públicas da cidade (Figuras 1, 2, 3 e 4). A ênfase nos aspectos formais, a captação criativa dos ângulos e da perspectiva, a busca do elemento cromático e seus diálogos com as estruturas da arquitetura, têm maior destaque nas imagens produzidas na região central da cidade. Percebe-se um maior nível de abstração e a definição de uma orientação poética nesse conjunto.

100 UM DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA, ARTE E CIÊNCIA NO ENSINO CONTEMPORÂNEO DA ARTE

Figura 1. Fotografia. Autor: Camila Bueno, Figura 2. Fotografia. Autor: Juliano 2008. Santos, 2008.

Figura 3. Fotografia. Autor: Douglas Silva, 2008.

Figura 4. Fotografia. Autor: Ana Caroli- ne, 2008. O segundo conjunto, por sua vez, trouxe um novo universo de re- lações, conexões de sentidos que as pessoas constroem com o espaço onde residem, a proximidade, a humanização representada na leitura autobiográfica, uma proposição documental da Vila. O elemento huma- no tem destaque através dos retratos ou da sua relação com os espaços de convivência (Figuras 5, 6, 7, e 8). Para Tuan (1980, p.18), “os espaços

101 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações do homem refletem a qualidade dos seus sentidos e sua mentalidade”. O que consolida a idéia de que o espaço reside não apenas fora, mas também dentro do ser humano. A imagem fotográfica é o adensamento dessas intencionalidades, é a representação do espaço a partir de uma realidade corpórea. Fonte: Projeto Vila Projeto Fonte:

Figura 5. Foto: Residências na Vila. Figura 6. Foto: Residências na Vila. Autor: Alessandra Dias (13 anos). Autor: Cristofer Luiz (14 anos).

Figura 7. Foto: Moradores da Vila. Figura 8. Foto: Crianças brincando. Autor: Cristofer Luiz (15 anos). Autor: Alessandra Dias (14 anos).

É fundamental destacar que o espaço nos dois conjuntos de ima- gens é afetivo, edificante, reflete o elemento de identidade homem- espaço, o espaço em sua faceta concreta, aquela que se traduz na pai- sagem humana. Segundo Kozel (2007, p. 120), “a apreensão do espaço relaciona-se às diferentes perspectivas que se fazem presentes na visão de cada ser humano. As experiências que os seres humanos têm com os elementos do espaço se constituem diferencial no momento de sua representação”.

102 UM DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA, ARTE E CIÊNCIA NO ENSINO CONTEMPORÂNEO DA ARTE

Consideramos que o produto resultante do projeto educativo é bas- tante significativo em sua capacidade expressiva de significados múlti- plos, de ordem estética, mas também de ordem social e cultural. Revela também as possibilidades processuais disponibilizadas para o ensino da arte a partir de meios como a fotografia, em especial a fotografia digital, onde as possibilidades de manipulação das imagens, e, portanto, de sua resignificação se fazem presentes.

O Signo Fotográfico O senso comum tem fortemente a fotografia associada a uma idéia de realidade, fundamentalmente porque somos em parte atores e au- tores da experiência, tanto como capturadores das imagens, como cap- turados nelas. Kossoy (2002, p.137) desconstrói essa leitura afirmando que o passado é o lugar de toda fotografia, e se o passado é momento vivido ele é irreversível. A abordagem desse autor traz elementos para refutar o estigma ainda presente sobre a fotografia, que desde seu surgi- mento no século XIX mantém a condenação de Baudelaire que separou arte/fotografia concedendo à primeira, lugar na imaginação criativa e na sensibilidade humana, enquanto a segunda teria um papel meramente documental da realidade (DUBOIS, 1992). Para Kossoy (2002), todas as intencionalidades, sensações, emoções que vivemos naquele instante são registradas em nossas intimidades em forma de impressões.

A fotografia, obviamente, não guarda essas impressões – elas situam-se ao nível do invisível, além da imagem. São emoções que não podem ser gravadas materialmente: residem em nosso ser e só a nós pertencem. São emoções que não apenas sentimos, mas que também imaginamos, sonhamos e, portanto, vemos (KOSSOY, 2002, p.37).

A fotografia é um signo, que ao ser colocado à disposição da percep- ção do sujeito desencadeará os processos de resignificação do mundo. Mesmo que a princípio a realidade da imagem fotográfica aparente ser a do recorte visível de uma realidade material, o que se nos apresenta é

103 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações outra realidade, a do documento que remete ao seu referente, ou ao do- cumento estético, que instiga os sentidos, que evoca nossa relação com o espaço, o tempo, a cor, a forma e às múltipas possibilidades de leitura que a abertura da imagem oferece. Kossoy (2002, p.37) afirma que deve- mos considerar que “o assunto uma vez representado na imagem é um novo real: interpretado e idealizado”. O processo de construção do signo fotográfico implica necessaria- mente a criação documental de uma realidade concreta. A representação fotográfica é uma recriação do mundo físico ou imaginado, tangível ou intangível; o assunto registrado é produto de um elaborado processo de criação por parte de seu autor. O fotógrafo constrói o signo, a representa- ção (KOSSOY, 2002, p. 42). A fotografia digital, por sua vez, potencializa o que Kossoy aponta como característica inerente à fotografia, a de produção signica. Nesse sentido, torna-se cada vez mais independente da fotografia tradicional. A ênfase está na importância do processo criativo e nos percursos uti- lizados pelo autor da fotografia, que perpassam pela produção, pelas formas de manipulação e reprodução dessa imagem. Exatamente pela difusão e acessibilidade que a fotografia digital apresenta é que constitui, a nosso ver, um dos importantes meios de referência para reflexão sobre os processos criativos no ambiente edu- cacional. O professor de arte tem hoje a seu dispor o mundo da informação e das tecnologias digitais; pode interagir dentro dele, criar e recriar, traduzir e manipular a informação através desses meios. Tanto o professor como os estudantes de arte possuem neles, e em particular na fotografia digital, um caminho aberto para compreender o objeto artís- tico a partir dos percursos do seu criador. Na criação contemporânea em arte o computador aparece, fazendo uma analogia ao termo “obra aberta” de Eco (1962), como uma máquina aberta. Máquina onde as informações são renovadas entre o “input” e o “output”, em forma de nova informação, novos signos que podem estar à disposição por eles mesmos, ou como partes-meios para outros pro- cessos criativos.

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Se na fotografia analógica existia um tempo entre o ato fotográfico e a visualização da imagem, na captação digital esse intervalo pratica- mente inexiste, permitindo que o fotógrafo possa instantaneamente vi- sualizar, apagar, corrigir, ou refazer a imagem. Entender essas questões implica numa condição que envolva a disposição de professores e alu- nos para refletir sobre a relação entre teoria e prática dentro do processo de produção das imagens técnicas6. Sem essa capacidade podemos di- zer que incorremos nos riscos de uma recepção acrítica, alienada e vazia, que o universo imagético contemporâneo oferece.

A Cidade Através do Olhar Nas imagens que apresentamos aqui a cidade aparece como um elemento norteador. Deriva daí a busca de significados e de elabora- ção/reelaboração da vivência nesse espaço heterogêneo. Identidade, memória e valor em relação à cidade são elementos subjacentes e sub- jetivos com os quais trabalhamos ao longo da experiência, e que estão impressos nas escolhas estéticas dos alunos. Argan (1995, p. 231) ratifica as possibilidades que se abrem na perspectiva do indivíduo-sujeito em sua relação profunda com a cidade. A partir da percepção tornam-se incontáveis as formas e valores simbólicos que podem fluir do contato visual do habitante com a cidade. De acordo com Benévolo (1991, p. 13) um dos sentidos da cidade é configurar a representação da situação física da sociedade. As caracte- rísticas do espaço que se conformam no organismo da cidade tendem a subverter o tempo e persistir, em geral mais que a própria forma de organização da sociedade. Nesse sentido, a cidade representa um con- junto de artefatos artificiais, introduzidos pelo homem em uma porção do ambiente natural. Constitui também a expressão cultural de uma or- ganização social, uma organização de experiências (BENÉVOLO, 1991).

6 Conceito trabalhado em “Filosofia da Caixa Preta”, de Vilém Flusser (2005). São imagens que são produzidas de forma mais ou menos automática, ou melhor, de forma programática, através da mediação de aparelhos de codificação.

105 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Há um caráter de mosaico que caracteriza o espaço de Paranaguá, cidade observada pelos participantes do Projeto “Vila Educação e Arte”. Suas contradições, suas marcas do tempo estão expressas nas ruelas, nos monumentos, no conjunto do patrimônio material, bem como em sua extensa periferia, em contraponto a aparência tecnológica expressa pelo moderno mobiliário portuário. Exatamente por isso, o próprio es- paço da cidade tornou-se ofertante de um conjunto muito variado de possibilidades para a pesquisa fotográfica. A fotografia digital oferece os recursos da máquina, esquemas pré- estabelecidos. O ato de fotografar, a busca do instante decisivo é ape- nas um momento. A imagem digitalizada e alterada em programas de computador compõe uma nova infografia. Esse procedimento constitui uma pós-produção de sentido, sendo que o fotógrafo tem em seu po- der totais possibilidades de transformação da imagem, criando o seu próprio real. A princípio é plausível dizer que aquele que fotografa atua dentro de categorias programadas pelo aparelho fotográfico. No entan- to, o universo oferecido pelas tecnologias digitais é apenas o princípio do percurso de criação. Esta forma de proceder é intrínseca ao desenvolvimento do trabalho criativo com os meios eletrônicos onde é preciso vencer a complexidade tecnológica que lhes é própria, procurando descobrir as qualidades e as virtualidades deste instrumental, a serem utilizadas como potencial de criação (PLAZA; TAVARES, 1998).

Seria possível estabelecer, diante do conjunto das imagens produzidas no decorrer do Projeto Vila, um agrupamento que pudesse ser analisado sob a perspectiva de vários percursos. Porém, detemo-nos nas imagens que evidenciam a intencionalidade de uma poética. A escolha do caminho foi fundada num olhar construtivo, trabalhado, que busca a informação estética. Um olhar onde a arquitetura é registrada em função de suas relações cromáticas, da estrutura de seus ornamentos e/ou nas relações entre figura e fundo (procedimento ressaltado a partir do tratamento computacional das imagens – brilho e contraste). Essa forma operativa oferece a possibilidade da imagem ser percebida, a princípio, sem uma relação contextual clara com seu referente. É possível perceber elementos tais como a fachada, a torre sineira da igreja ou a estrutura de um edifício, porém, tais elementos parecem menos importantes que as relações formais que a imagem oferece.

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Mesmo que a poética possibilite a interpretação da imagem como se referenciando a um objeto específico, o que por sua vez permite ao receptor significar a imagem a partir do acionamento do seu repertó- rio, ela não se revela instantaneamente como em um registro com in- tencionalidades jornalísticas, por exemplo. Os caminhos trilhados pelos fotógrafos vão se revelando aos poucos, e as descobertas por parte dos receptores vão construindo novas significações, inclusive em suas rela- ções com o espaço da cidade. Do ponto de vista da recepção estética, relação entre espectador e obra, podemos dizer que além da recriação da obra por parte do leitor, da pluralidade de significados que pode ofe- recer, tornam-se ampliadas as possibilidades da resignificação contextu- al do espaço e do objeto a que a imagem se refere. Torna-se importante esclarecer, que dentre os procedimentos pe- dagógicos adotados no Projeto, a cada incursão pela cidade os objetivos se diversificavam. Hora aspectos puramente estéticos, hora aspectos so- ciais assumiam a prevalência. Sendo que no final a escolha do caminho a ser percorrido para formação do conjunto que comporia a exposição7 ficou sob a livre escolha dos participantes. O registro final foi resulta- do de um processo de criação. Processo que partiu da intencionalidade do olhar, tanto na captação e registro da imagem, como no tratamento digital da informação, chegando à escolha da forma e tamanho da im- pressão. Nesse sentido, percebe-se que não apenas na captação da ima- gem, mas na edição da mesma houve participação do modo de criação, de composição, o que leva à geração de uma imagem nova. Observa-se que não é possível pensar a edição como uma simples manipulação de ferramentas. O que nos remete à afirmação de Flusser (2002), segundo o qual o criador é aquele que conhece completamente o funcionamento da máquina e consegue transpor seus limites. A imagem fotográfica tem sua forma de expressão peculiar, que di- fere essencialmente das outras representações gráficas e pictóricas. A

7 Em dezembro de 2008 realizamos uma exposição na sede da Caixa Econômica Federal de Paranaguá. As fotografias que a compuseram foram selecionadas pelo grupo e retratam os dois conjuntos, olhares sobre a cidade e sobre a Vila. Também fizeram parte da exposição um grupo de imagens históricas da cidade, obtidas junto ao Instituto Histórico Geográfico de Paranaguá e que foram objeto de estudo ao longo do curso.

107 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações sua decodificação deve ir além da própria imagem e explorar a ambigüi- dade de informações. Ao apreender os limites da máquina os fotógrafos passam a ser compelidos, através da problematização dos exercícios de criação, à ruptura desses limites.

Apontamentos Finais A discussão que trazemos aqui está muito distante de ser esgota- da, na medida em que pretendemos situá-la no contexto propositivo de novas posturas e perspectivas para a docência em artes. A experiência do projeto Vila Educação e Arte conduzida a partir de um projeto do professor não constitui um modelo transponível de forma acrítica, mas um caminho propositivo, este sim passível de difusão. Os diversos componentes do projeto envolveram a lógica propositi- va, e a intencionalidade crítica em relação aos processos teórico-­­práticos da produção de imagem na contemporaneidade. Desde a escolha dos meios até a condução dos exercícios, as discussões sobre produção e recepção estética foram orientadas em função do diálogo a partir dos novos meios de produção e veiculação contemporânea de imagens. O que implica dizer que o próprio caminho de condução proposto pelo professor representa uma obra aberta (ECO, 1969), que comporta a plu- ralidade de significados e se completa na relação com o outro. Torna-se fundamental para o ensino da arte a compreensão de que os percursos do professor estarão cada vez mais mediados pelas interfaces técnicas que colocam a ação da máquina como novo e decisivo agente de instau- ração estética (LEVY, 2000). A capacidade de lidar com essas questões de maneira crítica torna-se premente na ação consciente do professor em relação a uma prática que compreenda as intersecções entre arte e ci- ência, entre as esferas ideológica, cognitiva, artística e técnica no campo da dimensão cultural.

108 UM DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA, ARTE E CIÊNCIA NO ENSINO CONTEMPORÂNEO DA ARTE

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110 Periferias urbanas – território de complexidades: o caso da Vila Santa Maria em Paranaguá

Cinthia Maria de Sena Abrahão1

A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado... a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas das mãos, escritos no ângulo das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras (CALVINO, 1990, p. 14-15).

Introdução As cidades latino-americanas, em especial as brasileiras, expressam as marcas do processo de colonização, que se configurou a partir do sé- culo XVI. O ‘transplante’ da cultura européia adquiriu vida própria e valo- res simbólicos específicos, podemos dizer que ainda insuficientemente explorados até o presente. O estudo da cidade de Paranaguá condensa vários aspectos deste processo; trata-se de um núcleo urbano organi- zado sob a vigência do sistema colonial, que ainda preserva seu núcleo histórico citadino; ao mesmo tempo expressa o sentido da colonização latino-americana voltada para fora (para os interesses da metrópole). Possui contemporaneamente um porte de cidade média, exercendo também centralidade regional no litoral do estado do Paraná. Por fim, mas não menos relevante para compor o quadro descritivo da cidade em questão, está sua especialização na atividade portuária, atividade econômica que exerce um papel sobremodo importante na definição da identidade da cidade ao longo de sua história e que persiste marcan- te na atualidade (GODOY, 1998).

1 Economista, Mestre em Ciências Humanas (História Econômica), Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Paraná e Professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected].

111 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Em contraponto a este conjunto de elementos delimitadores do objeto de análise está a obscura relação entre este núcleo urbano e a área rural que o circunda. Expressa ainda a relação entre as atividades urbanas e o ambiente rural do estado do Paraná, tendo em vista que a atividade portuária reflete as dinâmicas da agricultura exportadora. O processo de crescimento urbano típico das cidades brasileiras de porte médio reverteu, no pós-segunda Guerra Mundial, o perfil demográfico da população, passando da predominância rural à urbana. Isto ocorreu de forma espacialmente concentrada em regiões e aglomerados urba- nos mais dinâmicos. Um objeto que tem sido alvo de um número maior de estudos so- cioespaciais refere-se aos reflexos de tais transformações sobre as me- trópoles brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, dentre outras. Os efeitos das mudanças produtivas e espaciais sobre as cidades de porte médio, por sua vez, ainda são relativamente pouco estudados. O que nos interessa destacar é o estudo de cidades médias, situadas no litoral brasileiro2, numa perspectiva que permita compreender suas no- vas dinâmicas e conteúdos. Partimos do pressuposto de que a inversão demográfica, entre o rural e o urbano, traz a aparência de uma mudança mais drástica do que realmente ocorreu. É possível que a hegemonia da cultura urbana, in- dustrial, individualista, não tenha suprimido a cultura rural tradicional brasileira. Alude-se que tenha havido, isto sim, uma espécie de composi- ção entre ambas, o que constitui também um traço distinto, e em muitos aspectos criativo, da realidade brasileira, senão na forma ao menos no conteúdo produzido por esta interação (DURHAM, 2004). Neste sentido, é provável que a periferia urbana, por sua relação espacial de interstício, reflita de forma mais clara ou mais evidente esta complexidade. Vale dizer que no trabalho de pesquisa e extensão realizado a partir da Incubadora de Cooperativas Populares da UFPR Litoral (ITCP) pude-

2 Os centros urbanos situados no litoral brasileiro aparecem em relevo em nossa pesquisa, tanto em função do papel histórico que assumiram desde a colonização brasileira, traduzido em marcas socioespaciais muito precisas, como também pela extensão da costa brasileira e a densidade demográfica muito expressiva no contexto atual.

112 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES mos coletar informações e realizar observações que alimentaram a re- flexão aqui proposta. Por conseguinte, a reflexão teórico-histórica vem alimentando o conjunto de ações de extensão universitária que vêm sendo desenvolvidas na cidade de Paranaguá, tanto no campo da cultu- ra, como no processo de geração de trabalho e renda. Considerando este conjunto de elementos, nos permitimos indagar às teorias do urbanismo moderno e contemporâneo sobre a explicação dos fenômenos que afligem a realidade brasileira e latino-americana. Em que medida os modelos de teorização sobre a cidade e sobre o campo permitem compreender esta complexa e específica realidade interativa? Em busca de alguns elementos elucidativos é que nos lançamos a esta reflexão, cuja estrutura segue a seguinte ordem: na primeira par- te procuramos recuperar o sentido histórico do urbano no ocidente, na tentativa de compreender elementos similares que vieram a se refletir na história latino-americana; na segunda parte discutimos a cidade no Brasil em sua relação orgânica com o campo; por fim, na terceira parte trazemos o caso da cidade de Paranaguá, bem como a análise de alguns indicadores obtidos na pesquisa sobre sua periferia. Dispomos nesta etapa final do artigo, enquanto amostra desta porção territorial, da aná- lise de dados colhidos em uma porção da zona periférica, Vila Santa Ma- ria, realizado a partir de um projeto desenvolvido pela ITCP.

Ensinamentos da Civilização Ocidental: Urbanidade e Civilização Na ‘Ideologia Alemã’, Marx; Engels (1991, p. 77-78) chamam atenção para o significado da separação entre campo e cidade. Nesta acepção, a separação campo-cidade representou a maior divisão entre o trabalho material e o intelectual. Os autores identificaram a oposição como sen- do o marco da transição da barbárie à civilização. Longe do ufanismo da cidade, os autores procuraram ler através de sua materialidade, um dos significados do fenômeno do urbano, enquanto expressão daquilo que foi consolidado como civilização. Reiteram o conceito que articula

113 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações cidade e civilização ao estado adiantado da cultura. Na medida em que a cidade concentra população, instrumentos de produção, prazeres e necessidades, rompendo o isolamento característico do campo, implica, por conseguinte, a necessidade da organização comunal na política. Ainda neste sentido, Velho (1986, p. 49) reflete sobre a vida urbana enquanto palco através do qual a divisão social do trabalho e as diversas formas de sociabilidade propiciam a densificação, mas também a frag- mentação em muitos “mundos”, que coexistem com ou sem fronteiras espaciais tangenciáveis. É fato que os primeiros povos que construíram e viveram em cidades estavam no Oriente. No entanto, foi no ocidente que a civilização urbana assumiu uma espécie de força centrífuga que levou suas influências para o novo continente da América. De que momento então provém esta urbanidade que impôs tal for- ça para além do continente europeu? Conforme Le Goff (1992), no baixo medievo europeu, apogeu da cidade medieval, germinou a civilização urbana que se tornou hegemônica na era moderna. Na França do século XIII ocorreu a primeira tomada de consciência urbana, suplantando a ló- gica da cidade amorfa, do lugar sem identidade, oriundo da ação de di- versos grupos que buscavam se proteger dos senhores (LE GOFF, 1992, p. 3). Tal cidade, a medieval, originariamente em muito se distinguia da cidade antiga fundada com o propósito estadista, político e militar. A cidade medieval, em função de seu crescimento orgânico ao lon- go da Idade Média, e da capacidade de gestar a classe social que revolu- cionaria o modo de produção, oferece alguns fundamentos instigantes para a reflexão sobre a cidade. Em primeira instância, vale observar que grande parte dos moradores da cidade medieval eram oriundos e inti- mamente vinculados ao rural, camponeses por excelência. Em geral, a curta distância era a característica dos fluxos migratórios ocorridos no período. De acordo com Le Goff (1992, p. 10), as cidades francesas do Séc. XIII eram semi-rurais. É no nível dos homens, da cotidianidade, que se dava a interpenetração do rural com o urbano. É nessa instância que foi vivenciada a redefinição e permanência dos hábitos e valores. Rede- finição que não seguiu o ritmo de fatos econômicos e sociais.

114 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES

O traço mais marcante da cidade medieval foi, sem dúvida, a mu- ralha que possuía importância militar, mas que estabelecia de forma muito clara o limite entre o urbano e o rural. A muralha não é uma ex- clusividade do medievo, a não ser na sua materialidade física. A cidade antiga, bem como a moderna, estabeleceram cisões em relação ao cam- po, embora nem sempre visíveis. A cidade antiga manteve a rusticidade do campo no exterior, banida dos avanços da urbis. A cidade industrial, por sua vez, avançou no sentido de devorar o campo, industrializando-o (LE GOFF, 1992). As distintas tipificações temporais da cidade guardam um segredo comum, a presença dos subúrbios desde a cidade antiga. De acordo com Sposito (2004, p. 119), a suburbanização, como reflexo da expansão urbana, não consiste em fenômeno recente. Trata-se, portanto, de um indicador relevante da hegemonia urbana ao longo da história, consi- derando que a expansão urbana seja a expressão da passagem de po- der do rural para o urbano. Ainda assim, deve-se destacar que inexiste precedente histórico para o vulto assumido pelo fenômeno migratório, de aglomeração e suburbanização ocorrido a partir da Revolução Indus- trial, em especial ao longo do século XX. O desequilíbrio provocado pelo processo de expansão urbana ex- pressa o que Argan (1984, p. 74) chama de desproporcionalidade na re- lação entre quantidade e qualidade, o que se tornou o centro do proble- ma urbano ocidental para o autor. Argan (1984) se refere às ‘civilizações’ características do medievo como artesanais. Estas teriam sido capazes de cultivar, no ambiente urbano, uma combinação entre quantidade e qualidade. Afinal, a cidade medieval foi herdeira de uma história longa, que permitiu acomodação espacial, o que se tornou naturalmente im- possível na cidade moderna. Tanto mais quando se trata do processo de urbanização acelerado dos países América Latina. A cidade moderna na Europa criou, de forma muito concentrada no tempo, uma necessidade de mão-de-obra para atender às atividades in- dustriais que provocou um fluxo contínuo e vultoso de trabalhadores do meio rural para o urbano. O solo urbano tornou-se alvo da valorização

115 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações especulativa, aspecto que mais contribuiu para dar nova forma às cida- des (DOIS, 1979, p. 51). Tal processo fez surgir enormes bairros operários e de migrantes, destituídos dos equipamentos que a tecnologia urbana possibilitara, mas que não se tornaram disponíveis a todos. A dispari- dade em questão promoveu a ascensão da relação centro-periferia ao centro da análise urbana. Sem dúvida, a sociedade burguesa assumia uma configuração específica do ponto de vista espacial. Já no século XX, a partir das contribuições da Escola de Chicago, a complexidade da estruturação urbana que extrapola a relação centro- periferia passou ao centro das discussões (SPOSITO, 2004, p. 120). Na medida em que a cidade é uma construção, sendo esta sua característi- ca essencial, o ponto de partida para a sua análise deve ser a construti- bilidade, tanto no sentido físico do termo, como na subjetividade a que se relaciona. No clássico The City3, Robert Park fez uma provocação à ciência em geral, especialmente ao campo das ciências sociais, para pensar a com- plexidade da cidade enquanto objeto. A predominância e concentração das civilizações urbanas fizeram emergir uma série de novas demandas e possibilidades transformadoras. O ambiente urbano assumiu, ele mes- mo, a característica de palco das contradições que perpassam e são re- construídas ao longo da história humana (PARK, 1967).

The organization of the city, the character of the urban environment and of the discipline which it imposes is finally determined by the size of the population, its concentration and distribution within the city area. For this reason it is important to study the growth of cities, to compare the idiosyncrasies in the distribution of city populations (PARK, 1967, p.6).

A história européia-ocidental das cidades traz à tona, sobretudo a partir do século XIX, a relação campo-cidade em sua contradição e con- flito, expressa na suburbanização ou periferização4. Não por acaso, o ur- banismo do século XX assumiu, na Europa e nos EUA, um papel crucial para reduzir as tensões sociais e avançar no sentido da incorporação das

3 Originalmente a obra foi editada em 1925. 4 Daqui em diante tomaremos como padrão o termo ‘periferia’, tendo em vista o significado sociopolítico que este assumiu para a América Latina.

116 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES demandas populares, que se expressam de forma mais intensa no espa- ço urbano onde prevalece a lógica da contradição. Esta civilização carregada de suas contradições se estendeu à Amé- rica, levando em troca da usurpação de suas riquezas nativas, o contato com sua ‘civilidade’, sua urbanidade. Como Velho (1986, p. 49) pensa- mos que no Brasil aparecem situações que podem nos remeter a Lon- dres e Berlim da Revolução Industrial, ou mesmo Chicago do início do século XX, ou ainda, haja similaridades profundas com as configurações contemporâneas de Calcutá e Cidade do México. Mas, não se pode obs- curecer aquilo que lhe é peculiar, inclusive no sentido da espacializa- ção de diversos fenômenos ocorridos em momentos distintos. Há uma relação dialética e delicada entre o transplante, absorção e redefinição espacializada.

A Cidade Brasileira: Novos e Velhos Conteúdos Os centros históricos das cidades latino-americanas quase sempre coincidem com os distritos centrais das cidades coloniais. Nessas podem ser vistas as influências da teoria e a prática do urbanismo europeu dos séculos XVII e XVIII transferido para a América (HARDOY, 1986, p. 129). Em função da hegemonia de um Brasil rural, moldado sob a lógica da economia colonial, até 1850/1860 as cidades ‘históricas’ mantiveram seu traçado muito próximo ao original. A constituição das cidades no Brasil, em sua origem, não foi resul- tante de um processo endógeno e gradual de transferência de poder do campo para a cidade. Entre meados do século XVI e o século XVII surgiram, de forma planejada, as primeiras cidades, sob o traço dos en- genheiros militares. Dentre elas estão Salvador, Belém do Pará e São Luiz do Maranhão (RIBEIRO, 1995, p. 194). Trata-se de uma cidade que comanda o campo, mas expressando as relações arquitetadas pelo co- lonizador que deram forma à economia agrário-exportadora escravis- ta. Organizadas como sede do domínio colonial, as cidades brasileiras

117 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações se transformaram paulatinamente em sede da elite rural no século XIX (MOREIRA, 2005). A ocupação territorial do Brasil colônia consistiu de um empreen- dimento cuja viabilidade se deu através da combinação entre grandes porções de terra, que originaram o latifúndio; a mão-de-obra escrava; e, a produção de bens para exportação, enquanto objetivo derradeiro, que finca a tradição da agricultura monocultora. As cidades coloniais não poderiam deixar de expressar, sob a forma da espacialização das relações sociais, a estrutura sobre a qual foi moldado este território colo- nial (SANTOS, 1988, p. 26). A construção do território do Brasil colônia, a partir do elemento rural, não destituiu a Coroa portuguesa da busca permanente por fontes de metais preciosos. Este foi o motor do avanço para a porção sul, abaixo de Cananéia / São Paulo, onde eram controversos os limites designados através do Tratado de Tordesilhas5. A mineração justificou a ocupação da região litorânea do território que hoje representa o estado do Paraná, mas também justificou o avanço para o interior até Minas Gerais. Em ambos os sentidos, foram organizados núcleos urbanos, como é o caso de Paranaguá e Ouro Preto. A exploração de ouro em Paranaguá não foi duradoura, sinal mais evidente de sua baixa viabilidade econômica está expresso no fecha- mento da Casa dos Quintos em 1735 (LICCARDO; SOBANSKI II; CHODUR, 2004, p. 47). Por outro lado, foi selada a vocação portuária que acom- panhou a cidade ao longo de sua história. O primeiro porto, situado às margens do rio Itiberê, vivenciou o fluxo de escoamento derivado dos ciclos da erva-mate e da madeira no século XIX, rearticulando o litoral e o interior. A mudança para a chamada Ponta do Gato, cujos estudos tiveram início na década de 1870, representou um avanço significativo em termos de estrutura portuária (GODOY, 1998). Vinculado ao urbano organizado ao sabor dos interesses coloniais de controle e administração havia um rural organizado e submisso à lógi-

5 O Tratado de Tordesilhas foi assinado em 1494 por portugueses e espanhóis, mas as controvérsias sobre a dualidade dos documentos cartográficos ainda persistem.

118 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES ca espoliativa do comércio colonial. A estrutura definida nesse período não sofreu rupturas radicais a partir do encerramento do domínio por- tuguês, momento que marca a independência política e a constituição da nação brasileira. Vale destacar a perpetuação do regime escravista até o último quartel do século XIX. A inacessibilidade da terra aos trabalhadores, antes e depois do tér- mino do estatuto da escravidão, bem como a desvalorização do trabalho manual, típica da sociedade escravista, fez crescer a cidade como válvula de escape. As cidades brasileiras já eram bastante densas quando no século XIX, mais especificamente no pós-18706, teve início o processo de transição para o capitalismo. A intensificação do fluxo migratório para as cidades já revelava sua função de ‘válvula de escape’ para os pobres. No início do século XX, as principais cidades brasileiras eram assoladas por epidemias as mais diversas, dentre elas, a febre amarela, varíola, malária. Refletiam, pois, já neste momento o aparecimento do desequilíbrio en- tre quantidade e qualidade a que se refere Argan (1984). A cidade continuava a refletir as características essenciais da socie- dade brasileira, que se firmou no século XIX, elitista e subjugadora da grande massa que advém das camadas de baixo na ordem escravista co- lonial. Embora já tivesse dimensões continentais, o Brasil independente impediu o acesso dessa população à terra, como seria justo e plausível, transportando para a contemporaneidade questões que a ordem capita- lista na Europa e na América do Norte solucionou no próprio século XIX. Restando aos deserdados do sistema colonial as piores terras, aquelas onde não havia interesse mercantil de qualquer ordem, enquanto assim permanecesse, e a migração para a cidade, onde aparentemente a vida é mais amena. A concentração de terras está, sem dúvida, na origem do desequilíbrio urbano no Brasil, inclusive precedendo às pressões que seriam agravadas pelo processo de industrialização.

6 A edificação e consolidação do modo capitalista de produção e a construção do Estado capitalista no Brasil foram processos desencadeados em momentos distintos. Pode-se dizer que o primeiro tenha principiado por volta da década de 1870 com a introdução da relação de assalariamento viabilizada pela imigração subvencionada, que proveu a cafeicultura paulista de mão-de-obra abundante. O segundo processo, no entanto, foi ainda mais tardio, tendo seu início já no século XX, mais especificamente a partir da década de 1930 quando as instituições do Estado oligárquico começaram a ser suplantadas efetivamente, decorrendo disto a centralização política e a ascensão dos movimentos nacionalistas (MELLO, 1982).

119 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Em que pese reconhecermos que a problemática urbana no Brasil precede à era industrial no país, por outro lado, não podemos deixar de destacar a mudança de poder que decorre da industrialização. Transfe- rindo, aí sim, a hegemonia para os grupos urbano-industriais. A partir da década de 1930, e especialmente na segunda metade do século XX, foi possível testemunhar esta alteração através do processo conhecido como industrialização por substituição de importações. A crise do Estado oligár- quico brasileiro possibilitou que de suas fissuras brotasse um movimento antagônico à especialização agrícola, que sustentava o poderio agrário.

Em 1936, ao fazer um balanço das etapas decisivas do desenvolvimento brasileiro, Vargas argumentava que a especialização primária do país não significava “vocação”, como muitos afirmavam, mas um problema, pois disso decorria que “sofrêssemos as conseqüências da crise generalizada nas oscilações depressivas de nosso intercâmbio comercial”. Em outra ocasião, ainda no mesmo ano, elogiava seu governo afirmando: “Já não somos um país exclusivamente agrário, jungido à luta pelos mercados consumidores de matérias-primas e esmagado pelo peso das aquisições de produtos industriais” (VARGAS, 1936, p. 210-211 apud FONSECA, 2000, p. 10).

No caso brasileiro, a transferência de poder do rural para o urbano, da elite herdeira do modelo escravista-colonial para o modelo moder- no-industrial, não significou enfrentar a questão agrária. A terra concen- trada assumiu outras funções sociais perversas sob a égide do capitalis- mo. De tal forma que a cidade transformou-se geograficamente numa máquina atrativa de pobres, dispondo espacialmente a miséria para que ela mesma se reproduza e se sinta culpada por sua existência.

Essas grandes extensões de terras estão concentradas nas mãos de inúmeros grupos econômicos porque, no Brasil, estas funcionam ora como reserva de valor, ora como reserva patrimonial. Ou seja, como instrumentos de garantia para o acesso ao sistema de financiamentos bancários, ou ao sistema de políticas de incentivos governamentais. Assim, estamos diante de uma estrutura fundiária violentamente concentrada e, também, diante de um desenvolvimento capitalista que gera um enorme conjunto de miseráveis (OLIVEIRA, 2001).

A problemática relativa à concentração agrária apenas voltou a ter ressonância efetiva sobre as políticas públicas no início da década de 1960, período em que as teses de Celso Furtado, Caio Prado Júnior e

120 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES

­Ignácio Rangel7 trouxeram reflexões fundamentais. Por outro lado, a criação da Escola de sociologia e política na USP em 1933 contribuiu para criar um ambiente reflexivo sobre a questão urbana. Compatível com a expectativa e o ufanismo do desenvolvimentismo8, da superiori- dade urbana, estava a influência do modernismo na produção urbanista dos anos 1950 e 1960 (FERNANDES, 2004, p. 24). O golpe militar de 1964 interrompeu um movimento crescente de pressões políticas e discussões teóricas, especialmente acerca da ques- tão agrária. Em contrapartida, os estudos urbanos tiveram espaço duran- te o regime militar. O propósito governamental passou a ser o de reduzir a força atrativa das grandes cidades, onde se concentravam os tensiona- mentos sociais, redirecionando o fluxo para as cidades médias. Em 1968, o IBGE publicou o ‘Subsídios para a Regionalização’, visando dar suporte para uma política pública centrada na dinâmica urbano-industrial, cuja pretensão estava na implementação de ações de desconcentração es- pacial (ALMEIDA, 2004). De acordo com Steinberger; Collet (2001), falar em cidades médias nos anos 1970 e 1980 era sinônimo de política pública focada na des- concentração dos grandes centros urbanos. Ainda segundo as autoras, se tomamos como referência o crescimento expressivo dos núcleos ur- banos com 50.000 a 500.000 habitantes podemos concluir que os ob- jetivos de criação de novos atrativos foram bem sucedidos. Ocorre que tal política pública, aparentemente moderna, esconde a faceta tradicio- nalista e perversa da sociedade brasileira, na medida em que postergou por mais duas décadas o debate efetivo sobre a concentração de terras. Contemporaneamente, os estudos sobre o ambiente urbano pare- cem revelar que a predominância desse modelo, que desequilibrada- mente direcionou fluxos crescentes de pessoas para as cidades, trouxe diversas conseqüências. Intensificou-se a construção de novos territórios a partir dos fluxos desencadeados por um processo intenso e concentra-

7 Nos anos 1950 e 1960, os debates foram muito intensos no sentido de trazer contribuições para compreender o significado da questão agrária no Brasil, bem como os problemas decorrentes dela. 8 O termo desenvolvimentismo está associado às políticas econômicas focadas na ampliação do aparelho produtivo, cujo suporte teórico adveio das teses da CEPAL nos anos do pós-guerra.

121 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações do no tempo de expulsão da população campesina. Conforme Haesbaert (2007, p. 222) são territórios construídos pelo movimento que revelam a desterritorialização como processo de desencantamento do mundo, ou a fragilização da vida comunitária presente no campo e subsumida na cidade. Ocorre assim uma substituição pela cultura individualista e mas- sificada, características tipicamente modernas. Para Durham (2004, p. 379) “condições de vida semelhantes [dão] origem a características culturais próprias’, que por sua vez, podem ser vistas sempre que as mesmas condições se reproduzem. O que explica comportamentos semelhantes em territórios tão distintos do ponto de vista de sua herança histórica específica. O território das periferias assume uma característica própria que interliga as diversas periferias espalhadas pelo país, guardadas suas peculiaridades. Compreendemos a complexi- dade e riqueza possível de ser extraída a partir da leitura das periferias das cidades, na medida em que potencialmente são reveladoras dos novos elementos culturais e de seus laços com o ambiente rural, seja física ou culturalmente. Paralelo à implantação das políticas públicas ratificadoras da hege- monia urbana, entre as décadas de 1960 e 1970, foram implementadas as medidas voltadas para o que se chamou de modernização da agricul- tura brasileira. A tônica produtivista, centrada nos aspectos da técnica de produção, manteve o viés conservador que deixou intocada a estrutura agrária original. Articulada de forma mais complexa ao mercado interna- cional, a agricultura brasileira de grande porte assumiu ares de moderni- dade. A grande responsável por esta transformação foi a implantação do pacote tecnológico que ficou conhecido como ‘Revolução Verde’. Assim, foi nessa etapa do último quartel do século XX, que o pro- cesso de industrialização adentrou o campo de forma definitiva, articu- lando a produção rural como uma etapa de uma cadeia produtiva mais sofisticada, que contém elementos ex-ante e ex-post no setor industrial.

A propriedade fundiária desfruta de um intenso processo de valorização, constituindo-se num bem com reserva de valor, o que Kageyama et alii de- nominou de “territorização do capital”, acentuando a concentração fundiá- ria. Com o aumento do valor da terra, a pequena produção fica fragi­lizada frente às pressões do capital e, assim, muitos dos seus agricultores foram

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obrigados a abdicar de suas terras. Muitos deles “optaram” em viver em ci- dades (estimula-se que trinta milhões de brasileiros deixaram o campo pela cidade neste período). Uma outra parcela deles transforma-se em assala- riados permanentes ou temporários nas empresas modernizadas. Uma per- centagem das pequenas propriedades familiares consegue se capitalizar e penetrar no circuito da agroindústria, integrando-se aos CAIs, mas em com- pensação, perde grande parte de sua independência (ERTHAL, 2006, p.5).

A partir dos anos 1970 todos os estados das regiões sudeste e sul apre- sentaram crescimento populacional líquido negativo. O esvaziamento foi tanto mais expressivo, quanto maior a proximidade dos núcleos urbanos atraentes. Mesmo ampliando a capacidade de absorção econômica das cidades médias persistiu o processo de adensamento desproporcional das grandes cidades. Ao mesmo tempo, as cidades médias passaram a herdar as mazelas dos desequilíbrios sociais, até então restritas aos maio- res núcleos urbanos. Os dados da pesquisa ‘Crescimento Econômico e Desenvolvimento Urbano’, publicada em 1998 pelo IPEA9, já ratificavam tal análise. As cida- des médias brasileiras em 1950 concentravam 20% do total da população do país, sendo que sob esta classificação estavam 23 centros urbanos. Até 1970, esta representatividade das cidades médias decresceu, enquanto as grandes cidades cresceram o que reflete o poder de atração das últi- mas. Em contrapartida, os dados de 1991 demonstraram uma reversão desta tendência. De acordo com o censo demográfico desse ano, os 293 centros urbanos de porte médio já concentravam 34,66% da população brasileira. Deve-se ainda tomar em consideração o fato de que o ritmo de crescimento populacional decresceu no período, o que leva a concluir que o crescimento destas cidades se deveu fundamentalmente ao fluxo migratório (ANDRADE; SERRA, 1998, p. 9). De acordo com Andrade; Santos; Serra (2000), entre 1970 e 1991, houve um fluxo considerável de pessoas para as cidades médias, especial- mente concentrado na região sudeste. Os autores destacam ainda que, ao longo do mesmo período, houve um paulatino deslocamento de dinâmi- ca econômica e populacional para o sul, absorvendo a região metropoli- tana de Curitiba. 9 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, atualmente vinculado ao Ministério de Planejamento Orça- mento e Gestão.

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Entre 1980 e 1991, Curitiba perdeu apenas para São Paulo, Belo Ho- rizonte e Porto Alegre em termos de saldo migratório recebido. Ocorre que a dinâmica populacional das cidades médias do estado do Paraná está intimamente vinculada à da metrópole, na medida em que se ve- rifica um processo de concentração e distribuição (ANDRADE; SANTOS; SERRA, 2000). Estes fluxos aparecem como marca do crescimento das metrópoles brasileiras. Evadida do campo ou de cidades sem capacida- de de retenção, a população tende a fazer o caminho rumo à capital, sugada pelas expectativas de sua pujança econômica, para depois, ao menos em parte, migrar para cidades de porte médio. Houve, ao longo do período em questão, um redesenho das rela- ções urbano-rurais, tendo na periferia urbana um ponto de conver- gência de tensões, enquanto espaço de disputa pelo solo. Na medida em que ocorreu a industrialização da agricultura, ocorreu um reforço da hegemonia urbana. A forma desigual através da qual se efetivou o processo de ‘modernização’, manteve a atividade agrícola centrada nas culturas exportadoras. Além disso, o acesso mais efetivo às políticas pú- blicas ficou circunscrito às grandes propriedades e foi apropriado por produtores capitalistas capazes de perceber e prospectar oportunida- des de mercado.

Assim, a chamada modernização da agricultura não vai atuar no sentido da transformação dos latifundiários em empresários capitalistas, mas, ao contrá- rio, transformou os capitalistas industriais e urbanos - sobretudo do Centro-Sul do país - em proprietários de terra, em latifundiários. A política de incentivos fiscais da Sudene e da Sudam foram os instrumentos de política econômica que viabilizaram esta fusão. Dessa forma, os capitalistas urbanos tornaram-se os maiores proprietários de terra no Brasil, possuindo áreas com dimensões nunca registradas na história da humanidade (OLIVEIRA, 2001, p. 186).

Nesse sentido, é possível afirmar que a retomada da discussão so- bre políticas públicas para o desenvolvimento rural não pode ser des- conectada da historicidade do problema. De certa forma, tornou-se inviável, ou pelo menos, pouco eficaz, a proposição de políticas que atuem sobre o ambiente rural de forma isolada do urbano. Tal perspec- tiva reflete, na verdade, que se tome o rural como setor de produção, isto é, uma visão setorial que esconde o aspecto territorial. O concei-

124 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES to de território, capaz de englobar o aspecto político, social, cultural e também o econômico, torna-se um guia mais efetivo para refletir so- bre os dois ambientes isoladamente, bem como em suas inter-relações. Conforme Haesbaert (2007, p. 79),

fica evidente neste ponto a necessidade de uma visão de território a partir da concepção de espaço como um híbrido - híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e “idealidade”; numa complexa interação tempo-espaço ... Tendo como pano de fundo esta noção “híbrida” (e, portanto, múltipla, nunca indiferenciada) de espaço geográfico, o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente culturais.

Em termos oficiais, no caso brasileiro a partir dos critérios do Insti- tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há pouco cuidado em definir as distinções entre o urbano e rural. Consideram-se as áreas ca- racterizadas por construções, arruamentos e intensa ocupação huma- na, onde se situa a sede do município ou da vila, como sendo urbanas. Trata-se de um critério político-administrativo, que é ainda mais evasivo no que tange ao rural, que consiste em tudo o que não se enquadre em tal definição. Da mesma forma, o conceito de cidades de porte médio, no qual se enquadra o município pesquisado e de cuja reflexão se ocu- pa o artigo, advém do critério demográfico. A escassez conceitual tanto reflete a tendência funcionalista no que tange ao direcionamento das políticas públicas, como escamoteia uma falsa neutralidade destas polí- ticas desviando-as do tratamento mais profundo das questões inerentes ao território na contemporaneidade.

Paranaguá: Rural e Urbano se Entrelaçam no Tempo e no Espaço A atividade portuária assumiu desde o início uma posição de cen- tralidade na economia e na definição da organização do espaço urba- no de Paranaguá, litoral do estado do Paraná. Segundo Godoy (1998, p. 102), cidade e porto estiveram intimamente vinculados no ordenamen- to espacial na primeira etapa da ocupação do núcleo de povoamento.

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O posicionamento do porto à beira do Rio Itiberê, em torno do qual se formou a Vila, os negócios realizados na rua principal (Rua General Car- neiro, hoje rua do centro histórico) permitiram concluir que não havia distinção espacial entre as atividades portuárias e as demais atividades da cidade. A abertura das novas instalações do Porto D. Pedro II, por sua vez, alterou a configuração do município, separando porto e cidade. Tal processo se tornou evidente na medida em que as novas instalações foram localizadas em lugar não habitado, distante do centro da cidade (GODOY, 1998). A atividade portuária esteve tradicionalmente relacionada à expor- tação de bens agrícolas, como uma herança econômica, mas também socioespacial do Brasil colônia. O fato de as novas instalações portuárias terem sido inauguradas na década de 1930, marcada por uma das mais graves crises da economia agrário-exportadora brasileira, torna-se espe- cialmente relevante. Os anos que sucederam à Crise de 1929 represen- taram um período de timidez econômica e instabilidade política para o Brasil. O que justifica que apenas lentamente a situação de ostracismo à qual ficou relegada a economia local tenha sido rompida. A expansão da fronteira do café para o norte do Paraná, bem como a organização da infraestrutura ligando o interior e o litoral do estado contribuíram de maneira decisiva para tal mudança. Dessa forma, ao final da década de 1950, o estado do Paraná já era o principal produtor de café e o porto de Paranaguá havia se tornado seu escoadouro (GODOY, 1998, p. 109). Segundo Godoy (1998), quando a atividade portuária passou a es- tar centrada na exportação de café foram desencadeadas alterações profundas na organização da cidade. Isto teria ocorrido em função da demanda de estruturas de suporte comercial, bem como de mão-de- obra. Dada a base tecnológica característica dos anos 1950, a requisição de mão-de-obra operacional foi substantiva, o que gerou um fluxo de pessoas maior que o fluxo de renda. É provável que a atração de mão- de-obra tenha sido desproporcional à riqueza que a atividade econômi- ca fez circular, tendo em vista a geração de um número muito grande de empregos pouco qualificados. O trabalho de manuseio (desde rece- bimento, seleção e embarque) do café era realizado praticamente sem

126 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES auxílio de máquinas (inclusive porque faltava energia elétrica na época), exigindo, conseqüentemente, grande quantidade de pessoas (GODOY, 1998, p. 110). Nesse período, Godoy (1998) explicita duas ordens de pressão so- bre o ambiente urbano de Paranaguá. A primeira delas se relaciona à ne- cessidade de infra-estrutura, oferta de energia elétrica, estrutura viária (de transporte urbano e interurbano) e de comunicação. Todos estariam ligados ao exercício das atividades direta ou indiretamente vinculadas ao porto. Por outro lado, a própria atração de novos trabalhadores ge- rou pressões relacionadas ao crescimento da população, resultando em desequilíbrios sociais e novas pressões urbanas, em termos de serviços públicos e moradia. O deslocamento físico-espacial do porto de Paranaguá assumiu nos anos 1950 um papel crucial na redefinição da ocupação urbana. Na me- dida em que a estrutura técnica dos negócios portuários neste período gerava uma demanda significativa de mão-de-obra pouco qualificada, foi intensificado o fluxo migratório e a ocupação do entorno. Isto se tor- nou viável em função da posição física do porto, deslocado do centro original da cidade. Isto é, o posicionamento periférico da estrutura por- tuária possibilitou aos trabalhadores migrantes ocuparem o entorno da cidade, áreas caracterizadas por terrenos menos valorizados, mais dis- tantes do núcleo urbano central e destituídas de infra-estrutura. Movimento distinto ocorreu nos anos 1960. Conforme Godoy (1998, p. 113), o deslocamento da função de armazenagem de café para o in- terior do estado do Paraná impactou diretamente a cidade, dado que ocorreu uma mudança no perfil das atividades desempenhadas. Conti- nuaram crescendo as exportações e, por conseguinte, a movimentação portuária para escoamento. Contudo, foram reduzidas as atividades rea- lizadas no município (armazenagem, embalagem, dentre outras), em es- pecial aquelas que absorviam a camada menos qualificada de trabalha- dores, até então atraídos pelo excesso de demanda de mão-de-obra. Na medida em que se consolidou a substituição espacial das funções produtivas, passando parte das atividades a serem realizadas na origem

127 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações de produção do bem destinado à exportação, ocorreu uma redução da posição central do porto no processo de geração de emprego e ren- da na cidade. As melhorias nos sistemas de comunicação e transporte tornaram desnecessária a permanência da carga para manipulação em período que antecedesse ao embarque (GODOY, 1998, p. 115). Desta for- ma, muitas das estruturas que haviam sido organizadas no entorno, de forma acessória ao porto, foram progressivamente se tornando ociosas. Embora a reestruturação da atividade portuária não mais voltasse a ser geradora massiva de empregos, tal como fora ao longo da década de 1950, permaneceu o estigma de atividade atraente de pessoas. Assim sendo, o fluxo delas para a cidade persistiu elevado. De acordo com os dados do censo demográfico do IBGE, a população de Paranaguá em 1960 havia crescido em 46% se comparada à população residente no município em 1950. Já o Censo de 1970 apontou uma população 159% superior àquela que residia em 1950. Até a década de 1970, Paranaguá se encontrava entre os quatro municípios com maior densidade urbana no estado do Paraná (MOURA, 2004, p. 33). A decorrência deste processo migratório na definição da organiza- ção físico-espacial da cidade tornou-se cada vez mais evidente, sob a forma de ocupação das áreas ambientalmente vulneráveis. De acordo com os estudos de CANEPARO (1999, p. 49) vários são os fatores que ameaçam as áreas de manguezais na baía de Paranaguá, dentre eles as atividades portuárias e industriais, além da recepção da população ex- pulsa do meio rural, para a qual os espaços urbanos melhor equipados são inacessíveis. De fato, sobretudo a partir dos anos 1970, torna-se vi- sível a transformação de porções importantes do território dominado pelo ecossistema manguezais em áreas de favelas, degradadas ambien- tal e socialmente. A década de 70 trouxe ainda mais redefinições para a atividade por- tuária em Paranaguá. A política de modernização da agricultura brasi- leira, a partir do modelo da Revolução Verde, expandiu suas ações para o sul do Brasil e trouxe consigo um novo modo de produzir, acompa- nhado de um distinto portfólio de produtos de exportação. Entraram em

128 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES pauta os grãos, em especial a soja e o trigo, produtos que receberam um volume maior de estímulos a partir das políticas públicas. A partir daí e para se conectar a este conjunto de mudanças, o porto passou por um novo processo de modernização e adequação de sua estrutura, tendo em vista atender às exportações graneleiras (BASTOS, 2006). Articulada ao processo de modernização da agricultura e à redefi- nição da pauta de exportações esteve a construção do corredor de ex- portação que equipou a estrada de rodagem (BR-277), cujo eixo final adentra o pátio do Porto de Paranaguá (GODOY, 1998, p. 120). Além dos impactos físicos decorrentes da travessia de cargas pelo interior da ci- dade, há também o social. Embora não seja um dado quantificado, a percepção e a vivência da cidade permitem identificar uma significati- va parcela da população vivendo dos resíduos das cargas, coletadas ao longo deste trajeto. Muitas destas pessoas provocam o derrame de uma parcela dos grãos, que se espalham ao longo da rodovia, tornando ainda mais grave o dano ambiental. A modernização da agricultura brasileira no período pós-anos 1960, em especial na década de 70, significou mudanças também na cadeia produtiva, implicando em reduções substanciais da necessidade de ab- sorção de mão-de-obra nas várias pontas do processo. Godoy (1998, p. 122) fala da redução da ordem de 67% da mão-de-obra ligada a ativida- de portuária de exportação do café, sendo que o complexo-grãos não foi capaz de absorver tal contingente. Outro fenômeno conexo foi o au- mento da presença de empresas, em especial multinacionais, que passa- ram a utilizar espaço para armazenagem e movimentação de cargas. Ao longo dos anos 80, com as políticas governamentais de apoio a exporta- ção, a atividade portuária assumiu novas feições, bem mais sofisticadas. Expandiu sua área de domínio territorial, conectando parques empresa- riais, estrategicamente montados para ampliar os ganhos na atividade de comércio exterior. Os impactos urbanos tornaram-se evidentes, ao longo das décadas de 1970 e 1980, em cidades cujo núcleo dinâmico da economia está centrado na atividade portuária. Essa, por sua vez, é uma atividade que

129 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações podemos considerar ‘reflexa’, nos termos em que Celso Furtado (1976) adotou para se referir à própria economia exportadora brasileira. O sen- tido de economia reflexa talvez nos permita compreender a fragilidade da economia moldada a partir de uma atividade que responde às de- mandas de outros setores, determinados por contextos territoriais que lhe são alheios. Sendo assim, o município que se enquadrou nesta posição suporta a carga de refletir as demandas e sofrer os impactos das mudanças da- queles que utilizam sua estrutura de escoadouro. Reverter este quadro requer um esforço sócio-político efetivo no sentido de construir estrutu- ras sociais e de infra-estrutura capazes de ampliar os efeitos positivos e minimizar os negativos. Entre as décadas de 1940 e 1990, Paranaguá sofreu uma inversão no perfil de sua população, que se pode dizer consoante com a maior parte dos municípios brasileiros. A população urbana, que representava 45,4% da população total em 1940 passou a 86,5% em 1996, de acordo com os dados do IBGE. O censo de 2000 apontou o percentual de urbanização da ordem de 96,08%, sendo que neste momento não chegava a 10% o número de municípios do estado com índice de urbanização superior a 90%, considerados os critérios oficiais de definição do ambiente urbano (MOURA, 2004, p. 36). Em contraponto, a atividade econômica principal, a portuária, não apenas sofreu ampliações consideráveis, mas também passou por so- fisticação tecnológica significativa. A abertura comercial brasileira nos anos 1990 trouxe os impactos e as demandas relativas a uma nova divi- são internacional do trabalho. A pressão por introdução de tecnologias mais avançadas, mais flexíveis e mais permissíveis aos interesses do ca- pital nacional e internacional se reflete no contexto atual sobre todas as cidades portuárias. Reiteradamente, a relação entre a baixa inserção do Brasil no comércio internacional se relaciona, através do discurso hege- mônico, à baixa competitividade dos portos brasileiros. É factível dizer que a especialização comercial mais que a condição geográfica natural tenha exercido papel predominante na definição de

130 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES uma agricultura pouco desenvolvida. Em contrapartida, conviveram por muito tempo o núcleo urbano, vinculado a regiões mais distantes em função de sua atividade econômica central, e a agricultura cabocla de seu entorno. Representa, por assim dizer, os traços das variantes da cultura tradicional que persistiram em várias porções do território bra- sileiro, e, que explicam uma dicotomia permanente no próprio meio ru- ral. Tal dicotomia se processa entre áreas dinâmicas, mobilizadas para a produção dentro de um circuito mercantil e posteriormente capitalista, em detrimento daquelas que se fecharam em si mesmas, voltadas para a subsistência. O caboclo do litoral originalmente esteve ligado à agricultura de subsistência e à pesca de curta distância. Os costumes e a forma de or- ganização da economia que dessa relação se originaram, não se asse- melham àquelas verificadas nas sociedades indígenas, nem mesmo às moderno-industriais. Sendo assim, assumem especificidades inerentes a uma comunidade que institui relações próprias com o espaço a partir de suas formas de organização (ADAMS, 2000). De que forma este gru- pamento teria sofrido com as transformações que articulam a moderni- zação da agricultura brasileira e paranaense ao crescimento da cidade de Paranaguá? Em que medida, no atual contexto de mudanças na ati- vidade portuária a atratividade da cidade continuará sugando as forças dessa agricultura tradicional? E mais, para colocar sua população em que condições, para absorvê-la de que modo? Eis alguns dos questionamen- tos para os quais buscamos respostas na investigação dos conteúdos da periferia de Paranaguá. A pesquisa vem demonstrando que a cidade também gerou uma força de atração da população tradicional do litoral para o seu núcleo urbano. Reiterando, porém, o processo de desequilíbrio urbano que assola as cidades latino-americanas a tem colocado à margem, embre- nhada predominantemente em uma dinâmica espacial perversa, ex- pressão do processo de exclusão social. Preenchem os conteúdos de parte das zonas periféricas da cidade, ocupando, como já dissemos an- teriormente, as áreas ambientalmente mais vulneráveis, os ambientes mais degradados.

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Lefebvre (1991) aborda o surgimento desse novo agente social que é o morador da periferia urbano-industrial. Na medida em que a indus- trialização, e no sentido mais amplo o modo de produção capitalista, transforma o espaço em mercadoria, em produto, aos pobres ela se tor- na cada vez menos acessível. O contraponto do processo se expressa na proliferação da periferia, bem como seu padrão de construção, basea- do na autoconstrução familiar. Ainda que se mercantilize, o que de fato ocorre, a lógica de mercantilização do espaço não é comandada pelo capital imobiliário. De acordo com a teoria lefebvriana, o crescimento da cidade segue o curso da mancha de óleo, de onda, promovendo a hegemonia urbana, através de seus valores, dos hábitos de consumo, do ufanismo do indiví- duo, engolindo assim o campo. Assim, o campo no Brasil que guarda a herança de dominação da sociedade agrária, assentada em novos moldes, vai paulatinamente assumindo a cultura urbana. Contudo, o que se percebe no Brasil, so- bretudo nas cidades médias, é movimento dialético da interpenetração urbano-rural. O campo se urbaniza, mas os hábitos da cultura rural tradicional permanecem arraigados por trás das cidades em que ele se transforma (MOREIRA, 2005). Dentre tais traços estão a relação de mando e subor- dinação entre grandes e pequenos proprietários, bem como o papel do cultivo para o autoconsumo. Os resultados da abordagem dos moradores de uma porção da periferia de Paranaguá trazem indícios bastante interessantes da inter- penetração do urbano e rural10. A pesquisa realizada na comunidade da Vila Santa Maria tomou como base uma amostragem desse grupo, de- finida a partir da distribuição espacial das famílias. Atualmente cerca de 1.200 pessoas residem na Vila, tendo sido identificados 310 domicílios, dos quais 81 participaram da amostra. Na primeira etapa da pesquisa, a abordagem foi quantitativa e teve o objetivo de traçar um perfil socioe- conômico e espacial da Vila. Contudo, algumas informações levaram os 10 Os dados discutidos neste artigo sobre a Vila Santa Maria foram produzidos pela equipe da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade Federal do Paraná - Litoral, em 2008.

132 PERIFERIAS URBANAS – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADES pesquisadores a reverem parcialmente os pressupostos, em especial, o que considerava a população completamente imersa na lógica urbana. A análise espacial da Vila Santa Maria explicita as características de precariedade próprias da periferia. Tal precariedade é profundamente agravada pela proximidade do Lixão municipal, que por sua vez, foi o fator determinante para o adensamento populacional na região. A maior parte das famílias residentes na Vila está ligada à economia do lixo, ob- tendo renda a partir do processo de catação, separação e venda de resí- duos urbanos. São combinados ao processo de ocupação os elementos responsá- veis pela exclusão dessa parcela da população. A partir dos dados cole­ tados identificou-se que em 50% dos domicílios pesquisados não há qualquer pessoa inserida no mercado formal de trabalho. Trata-se de uma população que se movimentou nos últimos anos, especialmente em busca de trabalho. O que confirma a lógica dos territórios construídos pelo movimento a que se refere Haesbaert (2007). Os dados referentes à migração ainda fornecem algo importante, en- quanto 26% residem na Vila desde que nasceram, 53% são da cidade de Paranaguá. Percebe-se que a cidade cresceu atraindo pessoas que não foram absorvidas e passaram a compor os territórios das periferias. Há no caso da Vila Santa Maria, um indicador do movimento que leva a população “periférica” para outro centro, mas que promove o retorno posteriormente, em ambos os sentidos as pessoas se movem predominan- temente em busca de ocupação/trabalho. Configurando assim o que se chama de movimento pendular, de fluxo e refluxo de populações desterri- torializadas, cuja vida é bastante precarizada. A ocupação, por sua vez, está relacionada predominantemente ao que chamamos de economia do lixo. Haesbaert (2007, p.311-312) trata como desterritorialização a fluidez e a imprevisibilidade a que parecem ser induzidas as massas crescentes de despossuídos. Observa-se para os grupos fragilizados ou segregados o fenômeno da instabilidade territorial que se traduz na ocupação precária de espaços públicos. O mesmo autor utiliza o conceito de “aglomerados de exclusão” com o intuito de traduzir a dimensão espacial da questão.

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Na análise da pobreza enquanto condição de carência de recursos que impede a participação social, o território assume um papel funda- mental. A exclusão ou precarização do território constitui uma faceta da exclusão social. Condição que, por sua vez, não deixa de ser imbuída de uma contextualidade complexa e muitas vezes dual. O próprio fato de que existe um processo historicamente recente de urbanização promove através dessas camadas populacionais uma interpenetração entre práti- cas urbanas e rurais. Nesse sentido, o que observamos na amostra analisada é uma so- breposição de camadas temporais. Para Santos (2008), os processos de combinação e fusão quantitativa e qualitativa das mudanças econômi- cas, sociais e culturais variam conforme o lugar. Concedem assim, a espe- cificidade local. “O espaço dos países subdesenvolvidos é marcado pelas enormes diferenças de renda na sociedade, que se exprimem, no nível regional, por uma tendência à hierarquização das atividades” (SANTOS, 2008, p.21). Expressão desta localidade, por assim dizer, está no próprio fato de que, em que pesem as condições ambientais profundamente comprome- tidas em função da proximidade do Lixão, a pesquisa permitiu observar que ainda é relevante o percentual de famílias que possuem algum tipo de produção de alimentos. São 28% dos domicílios produzindo para auto- consumo permanentemente, sendo que destes, 5% possuem algum exce- dente para comercialização ou possuem criação de animais, em especial porcos (UFPR LITORAL, 2008). No que se refere à criação de suínos, assim como para o sustento familiar, o Lixão é uma fonte de insumos básicos. O adensamento populacional, a presença industrial e o próprio Lixão caracterizam a área como expansão urbana. Por outro lado, o nível de subsistência a que estão submetidos os moradores se soma à herança rural que se consolida no uso do espaço. Dentre os moradores, cerca de 30% declaram vir do meio rural (UFPR LITORAL, 2008). Além disso, a Vila se mistura a uma antiga colônia de produtores rurais, cujas propriedades foram sendo invadidas, tanto pelos migrantes, como pelos setores públi- co e privado, que passaram a utilizar parte da área como depósito de lixo urbano e parte com área industrial.

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Os moradores mais antigos descreveram atividades agrícolas carac- terísticas do período original da ocupação. De acordo com os relatos, no período de ocupação na década de 1950, não superava dez o número de famílias vivendo ali (UFPR LITORAL, 2008), sob modo de vida tipica- mente rural, tanto no sentido da dedicação à atividade agrícola, como em função da baixa densidade demográfica característica das áreas ru- rais. O modo de vida, segundo a descrição dos entrevistados, guardava as características das organizações relacionadas à agricultura tradicional, voltadas para a subsistência. A mandioca e a criação de porcos e galinhas representavam os principais cultivos. Em parte os sitiantes ainda coabi- tam e mantêm estruturas produtivas. A Vila Santa Maria representa uma amostra da periferia urbana de Paranaguá, através da qual podemos perceber uma interface complexa da expansão urbana, e com ela de todos os seus signos e símbolos, arti- culada à tradição da pequena propriedade rural brasileira, voltada para a subsistência do núcleo familiar. Nesse caso, o próprio nível de pobreza da população constitui um empecilho para o abandono de práticas rurais, em especial aquelas relacionadas à produção de alimentos.

Apontamentos Finais A observação espacial da cidade de Paranaguá permite vislumbrar as diversas camadas de ocupação antrópica sobrepostas, refletindo as mudanças no perfil da economia local. Encontramos aqui, em sentido muito próprio, as rugosidades a que se refere Santos (2006, p. 92).

Chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço cons- truído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, super- posição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como arranjos. É dessa forma que elas são uma parte desse espaço-fator.

Em função da característica própria de sua ocupação, voltada para a atividade portuária, a relação entre urbano e rural assume por origem certa complexidade. Na aparência, o rural foi sempre pouco relevante,

135 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações na essência se relaciona fortemente com a cidade, na medida em que articula o rural distante, assumindo reflexos de mudanças na atividade agrícola em diversos espaços, bem como o rural próximo, de seu entor- no vinculado à agricultura cabocla. É na periferia que aparentemente se encontram e amalgamam par- te importante dos fluxos provenientes das diversas pressões exercidas sobre o ambiente rural. Nesse sentido, nos parece bastante pertinente a inquisição sobre os conteúdos desta periferia, que sujeitos habitam tal espaço, que articulação possuem. Os elementos objetivos e subjetivos que movem a construção da cidade contemporânea continuam sendo pouco compreendidos, tanto na realidade latino-americana, como es- pecificamente na brasileira. Percebemos na periferia da cidade média marcas espaciais da forma de ocupação do território, da modernização da agricultura brasileira, do aceleramento do processo de urbanização, da postura elitista de uma sociedade que não se preocupou com a redução dos níveis de desigual- dade. A articulação desses elementos, no entanto, permanece obscure- cida, na medida em que se superpõem problemas de diversas ordens. Refletir sobre um fragmento do espaço, em condições temporais es- pecíficas, tal como se dá no caso de Paranaguá, contribui para enrique- cer a compreensão sobre o significado e a interpenetração do urbano e rural no caso brasileiro. Torna-se ainda mais instigante pelo fato de que se trata de um núcleo urbano, que segundo o critério demográfico e por sua característica de cidade portuária, atividade tipicamente urbana, poderia ser considerada inequivocamente urbana. O conjunto de questionamentos sobre os quais discorremos no ar- tigo se impuseram como desafios permanentes para a equipe de inter- venção da ITCP ao realizar ações na Vila Santa Maria. O foco do desen- volvimento territorial, da inclusão, da geração de trabalho e renda não possui um receituário incontestável e reaplicável da mesma maneira em realidades distintas. O crivo da história do lugar, da cultura e da inserção econômica dialoga velada e permanentemente com o processo de in- tervenção quaisquer que sejam suas perspectivas e objetivos.

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139 Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná: análise do quadro atual das associações de resíduos sólidos e suas relações1*

Cinthia Maria de Sena Abrahão2 Lucia Helena Alencastro3

Introdução O presente artigo resulta do trabalho de intervenção e realização do diagnóstico realizado pela Incubadora Tecnológica de Cooperati- vas Populares – ITCP/UFPR Litoral e busca trazer contribuições para o desenvolvimento e sustentabilidade de empreendimentos populares vinculados ao setor de resíduos sólidos, instalados nos municípios do litoral do Estado do Paraná. Para tanto, trazemos à tona as informações concernentes ao diagnóstico acerca da situação destas associações, bem como as respectivas ações públicas relacionadas a resíduos sólidos. Cabe ressaltar que o trabalho da ITCP inscreve-se no marco teórico da economia solidária, que representa um modo de produção alternativo e includente, cujos princípios básicos resultam na propriedade coletiva ou associada do capital e dos meios de produção.

1 Participaram da pesquisa e da produção do relatório final os estudantes Bruna Barros, Letícia Albuquerque, Silvia Bonfada, Victor Castagnara e William Calixto. 2 Economista, Mestre em Ciências Humanas (História Econômica), Doutora em Geografia pela Universidade Fe- deral do Paraná, Professora Orientadora na ITCP e Professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 3 Psicóloga, Mestre em Educação, Professora Orientadora na ITCP e Professora da UFPR Litoral. E.mail: [email protected].

140 Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná

Segundo Singer (2002), pode-se considerar que o ressurgimento da economia solidária no Brasil ocorreu nas décadas de 1980 e 1990, momento de crise da indústria, acarretando altos índices de desempre- go. O programa de economia solidária fundamenta-se na tese de que as contradições inerentes ao próprio sistema capitalista potencializam oportunidades de organizações econômicas que renegam seus funda- mentos, em especial a propriedade privada e a lógica individual. Singer afirma ainda que:

O avanço da economia solidária não prescinde inteiramente do apoio do Estado e do fundo público, sobretudo para o resgate de comunidades miseráveis, destituídas do mínimo de recursos que permitam encetar algum processo de auto-emancipação (SINGER, 2002, p. 112).

No caso das associações de coletores fica evidente a necessidade de políticas públicas capazes de dar suporte ao processo de estruturação organizacional. Implementadas nesta perspectiva, tais políticas podem combinar avanços ambientais e sociais, visto que há uma grande parcela de trabalhadores dependentes da coleta e venda de materiais recicláveis. Neste sentido, observa-se o entrelace de dois problemas graves, espe- cialmente para o ambiente urbano, a necessidade de gestão eficiente dos resíduos e a erradicação da pobreza. Atuando desde 2007 com associações de coletores através da forma- ção para o cooperativismo, por meio do trabalho realizado pela ITCP, foi possível identificar que a fragilidade socioeconômica a que estão subme- tidos seus agentes constitui elemento obstaculizador do ponto de vista da estruturação das organizações solidárias. Ademais, as características econômicas e físicas dos municípios litorâneos, que em parte sofrem os reveses da sazonalidade relacionada ao movimento turístico, o baixo volume e a qualidade dos resíduos também se mostraram influentes no processo de enfraquecimento das associações. Acresce ainda a incipiên- cia das políticas públicas municipais, bem como as relações conflituosas observadas entre poder público local e associações de recicladores. Em que pese existir um quadro geral percebido pela equipe da ITCP ficou nítido que seria necessário aprofundar o diagnóstico acerca das re- lações entre os diversos agentes, que se articulam em função da desti-

141 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações nação de resíduos comercializáveis. Esse, por sua vez, foi desencadeado a partir da proposição de identificar a estrutura física e de gestão das as- sociações, seus elos comerciais, bem como suas potencialidades. Neste sentido, considera-se que é possível fornecer subsídios para as políticas de geração de trabalho e renda vinculada à lógica da economia solidária voltadas para o segmento. Deve-se destacar que as desigualdades sociais brasileiras continu- am repercutindo na configuração territorial. Pode se dizer que a ativida- de econômica que melhor expressa esta desigualdade é retratada pelo contingente de pessoas que vivem do lixo. Este, por sua vez, transforma a paisagem das periferias urbanas, sobretudo das grandes cidades, em um território específico de convivência do trabalho e da vida em meio à degradação promovida pelo volume crescente de objetos descartáveis da sociedade de consumo. O circuito de negócios possíveis a partir da reinserção de resíduos em novos ciclos produtivos representa uma alternativa de mercado para a re- dução do impacto ambiental do ciclo de consumo. Mas, também alimenta a idéia de que o mercado é capaz de encontrar soluções otimizadas para todos os problemas que emergem da convivência social. Contudo, o con- traponto desta idéia está no fato de que ele o faz para alguns itens e de formas distintas de acordo com o perfil econômico da região, benefician- do de forma desigual e subjugando à miséria aqueles que se propõem a abrir o funcionamento da cadeia, isto é, a atuar no seu primeiro elo. Observa-se que o problema socioambiental relacionado aos resídu- os sólidos não assume uma solução pacífica sem a intervenção do Esta- do. Ademais é importante frisar que o mesmo assume dimensões distin- tas a depender do lugar. Neste sentido, reitera-se aqui a velha questão que moveu a teoria econômica desde o século XIX, polarizada em torno da real necessidade da ação do Estado. Sobretudo, quando se refere à questão do equilíbrio do trabalho e à superação da visão trabalho-mer- cadoria (POLANYI, 2000). Pode se dizer ainda, que ao realizar o diagnóstico no litoral do Pa- raná a equipe ITCP buscou não apenas evidenciar o caráter territorial e

142 Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná específico do conjunto de relações sociais e econômicas que se desen- volvem neste ambiente, como trazer à tona a importância e a poten- cialidade da gestão pública. Neste sentido, significa conscientemente abordar um elemento inserido em um conjunto de alta complexidade. Este, por sua vez, envolve as diversidades territoriais brasileiras, como os dois brasis (litoral x interior); a ausência de investimentos em infraestru- turas ao longo de décadas, contraposta à privatização desencadeada a partir dos anos 1990 (RUCKERTT, 2007); a tradição clientelista da gestão municipal em contraponto ao papel crescente desta instância a partir da Constituição Federal de 1988. Sem dúvida, fatores intervenientes na dinâmica própria do recorte espacial da pesquisa, e por conseguinte das soluções que vêm se organizando ao longo do tempo. Vale dizer ainda, que o diagnóstico também possibilita à ITCP, en- quanto um agente de intervenção e comprometido com a transforma- ção da realidade social, trazer elementos que enriquecem a discussão acerca das ações consorciadas entre municípios. Partindo do pressupos- to de que as ações intermunicipais vêm sendo fomentadas pelo Gover- no Federal depreende-se que exista viabilidade técnica e econômica para que os municípios do litoral caminhem nesse sentido. Importante ressaltar que até então as ações conjuntas têm sido circunscritas à ma- nutenção de aterros sanitários consorciados.

Metodologia de Diagnóstico Tendo em vista atender aos objetivos de intervenção da ITCP, no sentido de fortalecer as ações econômicas sociais e solidárias voltadas para associações de coletores de materiais recicláveis, o roteiro metodo- lógico envolveu cinco etapas. Na primeira etapa da pesquisa foram rea- lizados levantamentos de dados e referenciais bibliográficos vinculados ao tema. Na segunda etapa foi realizado o mapeamento dos agentes envolvidos com resíduos sólidos nos municípios, quais sejam as associa- ções, seus compradores locais e regionais, e, o poder público municipal representado pelas ações das Secretarias de Meio Ambiente. Na tercei-

143 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações ra etapa foi realizada aplicação de roteiros de levantamento de infor- mações que envolveram um volume maior de detalhamento no que se refere às associações, na medida em que interessava compreender a es- trutura e funcionamento das mesmas. Na quarta etapa foi identificado, a partir das informações, o conjunto de relações de compra e venda que caracterizam os fluxos entre os agentes envolvidos. A unidade básica de análise é o município a partir do qual levanta- se a existência e caracterização das associações, bem como a existência de política e/ou ações públicas vinculadas a resíduos sólidos que favore- çam ou desfavoreçam as associações. Conforme Vieira; Hossne (1998) é possível fundamentar a análise teoricamente na comparação de grupos, desde que ocorra a seleção adequada dos sujeitos que serão objeto da pesquisa. Foram combinados aqui a aplicação de questionário tendo em vista apuração de produtos vendidos, preços, dentre outras informa- ções, com a observação e desenho do espaço. Além destas, utilizou-se o recurso das entrevistas, com transcrição literal das falas de entrevistados e posterior análise e checagem das informações. Tendo em vista o que afirma Biasoli-Alves (1995), as entrevistas rotei- rizadas incluíram os cuidados referentes a construção do roteiro, registro literal pós-aplicação, sistematização dos dados e redação. A aplicação dos instrumentos a partir dos agentes associações e prefeituras munici- pais possibilitou o mapeamento das empresas compradas, que por sua vez foram divididas em locais e regionais, conforme a localização de sua sede. Tais agentes intervenientes na dinâmica dos resíduos sólidos tam- bém foram entrevistados em busca de informações mais precisas sobre a destinação dos materiais vendidos a partir das associações.

O Contexto Regional A região do litoral paranaense é formada por sete municípios, cujo perfil sócio-econômico apresenta especificidades relevantes para o ob- jeto de pesquisa. O município de Paranaguá representa a cidade mais densamente povoada e de economia mais complexa da região. Trata-se

144 Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná de uma região ocupada ainda no século XVII, preservando parte da me- mória espacial através do patrimônio histórico das cidades de Parana- guá, Antonina e Morretes. As cidades de Paranaguá e Antonina possuem perfil portuário, em especial a primeira, que se conecta de forma bastan- te acentuada à economia do Estado e representa seu grande canal de ligação com a economia internacional. Os municípios de Pontal, Guaratuba e Matinhos assumiram o perfil de balneários turísticos, cuja valorização territorial se acentuou desde a década de 1980. Basicamente, o fluxo turístico característico para a região é composto por visitantes residentes no Estado, em especial oriundos da cidade de Curitiba, capital do Paraná. O turismo de segunda residência possui elevada expressão nestas cidades, o que explica um índice expres- sivo de moradias utilizadas em períodos muito específicos do ano. A sazonalidade da atividade econômica afeta sobremodo a dinâmi- ca econômica dos municípios cuja economia está voltada para a ativi- dade turística. Ao mesmo tempo, e, por conseguinte, a sazonalidade é responsável por promover um fluxo demográfico ao longo do ano que altera também o processo de geração de resíduos de forma bastante contundente. De tal forma que é possível pensar não apenas em ter- mos quantitativos, isto é, existe uma oscilação vultosa na quantidade de resíduos gerados em função do inchaço sazonal das cidades balneário, mas também em termos qualitativos em função da variação de renda e hábitos de consumo. Os municípios de Guaraqueçaba e Morretes, por outro lado, são aqueles que apresentam o mais forte perfil agrícola, sendo que esta atividade divide espaço com a atividade turística. Morretes é o único município da região que apresenta atrativos distintos do tradicional sol e praia, em função de sua localização fora da faixa litorânea. Guaraque- çaba, por sua vez, está localizada em uma área com diversos atrativos naturais, que se encontram sob proteção ambiental, além de um baixo grau de acessibilidade, o que impediu que fosse absorvida pelo mesmo movimento que tornou as demais cidades litorâneas, exceto Paranaguá, altamente dependentes da atividade turística sazonal.

145 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Vale ressaltar que Guaraqueçaba representa o município com pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), observado na Tabela 1. É possível intuir que para este município estejam abertas outras possibili- dades de desenvolvimento, em perspectiva distinta daquela que cursa- ram os municípios vizinhos, mas que ainda não promoveu um processo efetivo de inclusão com qualidade de vida para a população da cidade. Tabela 1. Dados sócio-econômicos dos municípios do litoral do Paraná. Município Domicílio Domicílio População PIB IDH particulares particulares ocupados não ocupados Antonina 7032 1950 17581 183449 0,77 Guaratuba 7424 11829 30793 286609 0,76 Guaraqueçaba 2136 1114 7732 36484 0,66 Matinhos 6986 20904 23357 272362 0,79 Morretes 4195 1663 16198 87577 0,76 Paranaguá 34665 6002 133559 4125923 0,78 Pontal do Paraná 42323 17495 14323 172106 0,79 Fonte: Cadernos dos Municípios, IPARDES, 2009. Em que pese a diversidade econômica e demográfica dos sete mu- nicípios, no que tange ao processo de gestão de resíduos sólidos tam- bém existe uma diversidade considerável. Contudo, não se pode dizer que o investimento público maior ou mais eficaz na gestão do problema siga necessariamente uma hierarquia de porte da economia local. En- contramos municípios pequenos com iniciativas interessantes, ao pas- so que muitos municípios melhor dotados de recursos financeiros têm apresentado resultados exíguos.

Panorama Nacional de Políticas Públicas para Resíduos Sólidos O Brasil é um país com graves problemas relacionados à questão dos resíduos, principalmente no que diz respeito à sua destinação final. Se- gundo dados do IBGE (2000), 37,5% dos resíduos são destinados a aterros controlados, e apenas 0,5% são incinerados. O mais grave neste cenário é que ainda se tem 21,5% dos resíduos despejados em lixões a céu aberto.

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De outro lado, ainda é importante questionar acerca da manuten- ção dos aterros sanitários. Para muitos municípios é difícil realizar a ma- nutenção de forma correta, seguindo as normativas federais e especifi- cações técnicas. Isto porque além de muito cara, a destinação adequada é muito trabalhosa e criteriosa.

A Política Nacional dos Resíduos Sólidos Discutida de forma bastante ampla, a Lei 12.305/10 (BRASIL, 2010) que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) traz um avan- ço importante ao definir a obrigatoriedade da instalação dos aterros sa- nitários em todo o território nacional. Segundo a PNRS, serão três anos de adaptação para que os municípios possam adequar suas estruturas de gestão voltadas para a questão. Pode-se dizer que dois conceitos de gestão são elementos chave da PNRS, a logística Reversa e a Responsabilidade Compartilhada. Ambos convergem para a cadeia produtiva, pois buscam a sustentabilidade do processo. A logística reversa propõe que os geradores de resíduos de- verão ser responsáveis pela sua correta destinação, com ênfase para os resíduos de agrotóxicos, pilhas, baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâm- padas e eletroeletrônicos. Esta correta destinação deverá ter sua respon- sabilidade compartilhada com os atores da cadeia produtiva, ou seja, to- dos movidos em função da limpeza pública. Sendo importante destacar a responsabilização dos geradores como fundamento da legislação. A PNRS prevê também o apoio aos novos, bem como aos já exis­ tentes consórcios intermunicipais, tal como ocorre entre Matinhos e Pontal do Paraná no Consórcio Intermunicipal de Aterros Sanitários (CIAS). Os municípios consorciados passam a ter efetiva preferência pelo financiamento em obras públicas referentes ao gerenciamento de resí- duos sólidos. Vale dizer ainda que o acesso ao conjunto de medidas de apoio financeiro público para implantação da PNRS em nível dos municípios depende da existência do Plano de Gerenciamento de resíduos sólidos

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(PGRS). Enquanto ferramenta de gestão o PGRS possibilita o controle e monitoramento da produção e destinação. Isto por sua vez, potenciali- za a gestão de soluções de reutilização e de novas destinações de uma forma geral.

Ações Públicas em Resíduos Sólidos no Litoral A maior parte dos sete municípios do litoral do Paraná ainda não possui o seu Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, tal que adé- que o gerenciamento à legislação vigente. Desses apenas três, Mati- nhos, Pontal do Paraná e Guaratuba, destinam seus resíduos a aterros sanitários. Em que pese a destinação ser realizada para aterros deve-se lembrar que são exatamente estes três municípios que sofrem os maio- res impactos com a oscilação de população, em função da característica de balneários. Através da pesquisa foram identificadas oito associações, legal- mente constituídas, destinadas à reciclagem de resíduos sólidos. Estas associações exercem as atividades de separação e comercialização de material reciclado. Ressalta-se que as dificuldades econômicas que mar- cam este agente da cadeia produtiva têm sido um obstáculo para que as mesmas assumam uma nova personalidade jurídica mais adequada ao seu perfil comercial, em especial o de cooperativa. O Quadro 1 apresenta um panorama geral das ações diretamente relacionadas a Políticas Públicas de Resíduos Sólidos em desenvolvi- mento no Litoral do Paraná. Analisa-se como prática comum a todos os municípios a proposição de ações voltadas à educação ambiental, fre- quentemente tais ações se vinculam a rede de escolas públicas. Em que pese a presença de tai ações, observa-se ainda um baixo grau de arti- culação entre as mesmas, o que não permite configurá-las exatamente como parte de um projeto de gestão de resíduos. Ressalta-se também que o apoio às associações por parte dos gestores públicos aparece com forte destaque em todos os municípios pesquisados, a exceção de Gura- queçaba, onde inexiste a categoria de trabalhadores atuando com lixo.

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Contudo, estas mesmas ações ganham, em alguns casos, um caráter de cunho assistencialista, sem qualquer identificação à proposição de polí- ticas públicas voltadas a gestão de resíduos dos municípios. Quadro 1. Gestão de resíduos sólidos nos municípios do litoral do Paraná.

Gestão de Antonina Guara- Guara- Matinhos Morretes Parana- Pontal resíduos tuba queçaba guá do Pa- sólidos raná Política Municipal de R.S. Plano de Gerencia­ mento (PGRS) Educação Ambiental Coleta de Materiais Perigosos Destinação especial para resíduos de saúde Apoio a coletores associados Investimento na Coleta Seletiva Destinação Final para Aterros Sanitários Fonte: Secretarias Municipais do Meio Ambiente. Organização ITCP, UFPR Litoral Vale destacar ainda alguns aspectos que ficaram bastante eviden- tes no que se refere ao conjunto de ações do poder público municipal nas cidades pesquisadas. O primeiro deles se refere aos vários níveis de enfrentamento da questão dos resíduos. No caso de Guaratuba houve

149 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações investimento na construção de uma usina equipada, em funcionamento há dois anos, enquanto Antonina e Guaraqueçaba ainda estão iniciando ações neste sentido. Por outro lado, fica muito evidente a necessidade de atuação do Estado no incremento das ações públicas dos municípios balneários durante o período de aumento da geração de resíduos, espe- cialmente nas temporadas de verão. Há casos de desproporcionalidade entre a capacidade de gestão do município e a dimensão dos problemas relacionados aos resíduos. Em especial esta afirmação é cabível para os municípios de Guaraque- çaba e Paranaguá. No primeiro caso, o município não tem conseguido dar respostas adequadas para o problema de coleta e destinação dos resíduos das ilhas. Já no caso do segundo, a atividade portuária gera um impacto ambiental muito grande sobre o município, especialmente em função da especialidade graneleira. Há uma desproporção entre a dimensão econômica e ambiental da atividade portuária que não está efetivamente sob a gestão da municipalidade e, a dimensão econômi- ca das demais atividades exercidas no município. A implementação do plano de gerenciamento de resíduos no porto é algo que não está sob a alçada do município, mas do estado do Paraná através da Administração dos Portos Paranaguá e Antonina. Em termos gerais é possível considerar que os indicadores inves- tigados e apresentados na tabela supracitada demonstram aspectos positivos da atuação dos gestores públicos em seus respectivos muni- cípios. No entanto, torna-se necessário considerar a parcialidade da in- formação, posto que se refira a dados isolados, levantados a partir de um dos atores envolvidos no processo. A experiência da ITCP junto às organizações de coletores, bem como o aprofundamento do presente trabalho permite inferir que as ações desenvolvidas pelos oito municí- pios, a exemplo de investimentos na coleta seletiva, demonstram fragi- lidade política. Tal fato comprova-se facilmente ao observar as lacunas sócio-econômicas existentes nas associações existentes nos municípios estudados, como veremos a seguir.

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A Cadeia Produtiva Vista a Partir do seu Primeiro Elo: Associações ou Cooperativas de Coletores e Separadores de Recicláveis do Litoral do Paraná Dentre os municípios pesquisados apenas Guaraqueçaba ainda não tem organização de coletores de resíduos, nos demais casos as organiza- ções assumem a figura jurídica de associação. Este dado já é um indica- dor de fragilidade jurídica que é conseqüência da fragilidade econômica dos mesmos. Ao todo são oito associações, sendo que em Matinhos e Paranaguá foram identificadas duas em cada município.

Gestão das Associações O primeiro aspecto que chama atenção no que se refere à estrutura administrativa das associações de coletores é que a dinâmica da com- posição da diretoria é praticamente a mesma em todas elas. Verificou- se que embora formalmente mantenham-se sempre preenchidos todos os cargos exigidos pela legislação, os cargos de presidente, tesoureiro e fiscal apresentam permanência, enquanto os demais (vice-presidente, vice-tesoureiro, secretário e vice-secretário) possuem um grau elevado de rotatividade. Observa-se que todas as associações apresentam grau elevado de dificuldade para compor a diretoria, especialmente no tocante ao exer- cício da gestão compartilhada. Em algumas das associações estudadas fica evidente a centralização das informações, o que reforça o desinte- resse dos demais associados na participação. Também foi constatado um grau de rotatividade elevado de pessoas nas associações, bem como um número relativamente baixo de participantes efetivos em todos os processos relativos à vida organizacional. Neste sentido, cabe destacar que um dos aspectos centrais da con- solidação de organizações de economia solidária é a gestão democrática ou autogestão. Para que a autogestão exista na prática é necessário que todos os sócios mantenham uma rede de informações precisas sobre os aspectos administrativos, participando ativamente dos problemas e criando soluções. É possível considerar que um dos grandes obstáculos

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à consolidação da autogestão resida no desinteresse dos sócios sobre a gestão da organização. Infere-se que no caso das associações estudadas este desinteresse pode estar relacionado ao baixo nível de escolarização da maioria dos trabalhadores deste setor. Em momento algum pode-se afirmar que exista centralização das informações, ao contrário, percebe- se um sistema bastante simples de controles administrativos e econô- micos, acessível a todos. Contudo, sugere-se a forte presença do fator comodismo, que se justifica pela lei do menor esforço e pela falta de aparatos técnicos para efetiva participação. O segundo elemento que destacamos no item gestão diz respeito ao planejamento das atividades que apresenta diferenças importantes entre as associações. O planejamento não figura como algo importante no cotidiano das associações, apenas em Guaratuba encontramos res- postas positivas no que se refere à cultura de realizar o planejamento participativo das ações. No que se refere a gestão de despesas é possível afirmar que apenas duas associações arcam com os custos de energia elétrica; uma delas arca também com os gastos de água; três com os de telefone e em uma delas foi detectado o item manutenção e transporte.Vale destacar que as “anotações em caderno” aparecem como uma forma de controle de gastos bem freqüente. O arquivamento de notas é realizado por apenas duas associações; três possuem planilha de gastos e receitas e em dois casos não há qualquer forma de controle. Fica claro, do ponto de vista fi- nanceiro, tanto a precariedade da gestão, como o papel do poder públi- co como provedor de parte das despesas, o que ocorre em praticamente todos os casos. De acordo com as respostas obtidas, os conflitos em geral são moti- vados pela questão financeira. A própria dificuldade de participação ati- va na gestão, em especial no que se refere a assumir responsabilidades, pode ser notada na dificuldade de manter a diretoria de forma integral pelo período correspondente ao mandato para qual foi eleita. Este afas- tamento gera uma relação de desconfiança que se torna mais evidente quando as questões financeiras vêm à tona, em especial quando não correspondem às expectativas dos indivíduos participantes do grupo.

152 Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná

Há uma indicação clara da necessidade de investimento no proces- so formativo em gestão associativa, especialmente focada na questão da responsabilidade coletiva e no fortalecimento dos mecanismos de transparência no que tange à gestão financeira.

Estrutura Física e Equipamentos O desempenho produtivo satisfatório de uma associação requer alguns equipamentos essenciais para o processo de separação e en- fardamento. A partir do levantamento dos equipamentos existentes e utilizados pelas associações observou-se a precariedade dos mesmos, muitas vezes com condições limitadas de funcionamento, comprome- tendo de forma contundente a produtividade e, sobretudo a segurança dos trabalhadores. Os equipamentos básicos para a execução das atividades das as- sociações consistem na existência de um galpão/barracão, mesa sepa- radora, balança e prensa. Contudo, observou-se que a qualidade dos equipamentos exerce influência direta sobre os resultados e a capaci- dade de processamento das associações. Em alguns casos, a mesa se- paradora é um espaço improvisado e que não guarda as condições de segurança dos trabalhadores. Entre as associações pesquisadas apenas uma delas possui a estru- tura de usina, tendo equipamentos maiores e mais potentes para dar continuidade aos processos posteriores ao enfardamento, por exemplo, à lavagem e picotamento do plástico, agregando valor ao material. No entanto, é possível inferir que a estrutura foi superdimensionada para atender às necessidades do município, pois se torna visível a ­presença de equipamentos não utilizados pela negligência à equação estrutura física x demanda de resíduos gerados. A exceção da associação de Anto- nina, todas as demais associações possuem um espaço para a realização do trabalho. Já no que se refere à adequação deste espaço existem di- ferenças consideráveis. O espaço mais precário é o de uma das associa- ções de Paranaguá em função da proximidade do Lixão do município.

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Em termos de equipamentos para proteção dos trabalhadores há uma evidente insuficiência que é comum em todos os casos pesquisa- dos. ­Apenas duas associações afirmaram, no momento da realização da pesquisa, possuir equipamentos de proteção individuaI (EPIs) em quan- tidade e qualidade adequadas para atender às necessidades dos asso- ciados no processo de produção. Também merece destaque o fato de que praticamente todas as associações possuem estrutura de carrinhos para a coleta na rua, exceto associação de Paranaguá. Em alguns casos, os carrinhos são fornecidos também a coletores de rua não associados, mas que se tornam for­necedores. Esta possibilita a associação realizar uma parceria com tal grupo de trabalhadores, que representa um for- necedor importante. Ao mesmo tempo, a aproximação dos catadores não associados em relação ao grupo associado, ainda que seja apenas na relação comercial, tende a garantir um tratamento mais digno e um preço mais justo para os primeiros.

Estrutura Financeira A fragilidade financeira das associações representa um elemento fundamental para colocar as associações numa condição especial den- tro da cadeia produtiva de resíduos sólidos. Na verdade, elas espelham uma condição da sociedade brasileira, que transforma um ramo de ne- gócios em questão social. Ou seja, aquilo que poderia ser uma opor- tunidade empreendedora comum sob a lógica privada transforma-se aqui em empreendimento por absoluta necessidade. Em geral, as pes- soas que participam destas organizações, com raras exceções, o fazem em função da ausência de alternativas de sobrevivência. Decorre disto o fato de que o empreendimento não conta com requisitos elemen- tares de investimento, muitas vezes nem mesmo o conhecimento efetivo do processo de produção, que está fundamentalmente ligado ao processo de separação nesta etapa. Daí que o apoio financeiro por parte do poder público se transforme em elemento que representa um entrelace da política ambiental e social na gestão dos resíduos.

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As vendas são realizadas com pagamento a vista em todas as asso­ ciações pesquisadas, ainda que varie muito a freqüência de realiza- ção das mesmas. De toda forma, o pagamento dos associados é, para a maior parte das associações, vinculado ao fechamento da carga. De acordo com a declaração dos entrevistados, a média de ganho é de R$ 155,00. Constituindo, por sua vez, a contrapartida quase imediata e ­integral da efetivação da venda. A exceção fica a cargo de uma das associações que afirma realizar pagamentos diários. Estas informações, por sua vez, permitem observar que o fluxo de despesas e receitas nor- malmente inviabilizam a formação de capital de giro.

Perfil dos Materiais Comercializados Entre os materiais mais comercializados pelas associações estão o plástico grosso, plástico fino, alumínio, jornal e papel branco. Sen- do que o alumínio apresenta melhor preço de compra, chegando a R$ 2,60/kg. Outro material cujo preço também é relativamente elevado para compra é o PET que fica em torno de R$ 0,65/kg para as associa- ções da região. Quando falamos em venda de materiais o preço mais alto também é do alumínio, sendo que o alumínio representa o único produto que possui preço e giro altos. Esses preços, no entanto, são muito variáveis, já que dependem da tabela de preços dos compradores e até do forne- cimento da cidade relacionada a essa associação. Importante destacar que quando a cidade possui muitas empresas geradoras de resíduos esse número aumenta. Os materiais que apresentam os menores valo­­ res de venda variam entre as associações. Destacam-se entre eles, o ­jornal comercializado a R$ 0,05 e o vidro a R$ 0,10 o quilo. Há diferentes períodos para o recebimento de materiais, sendo que alguns são freqüentes em todas as associações, como o alumínio, o pa- pel e o plástico, recebidos diariamente, enquanto outros são esporádi- cos, chegando a uma ou duas vezes por mês.

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Compradores do Litoral e da Região de Abrangência Os Compradores do Litoral A segunda etapa da pesquisa envolveu o levantamento e o conta- to direto com os compradores de recicláveis das associações4 que estão localizados nas cidades do litoral. Foram identificadas cinco empresas atuando neste ramo, três destas estão situadas na cidade de Paranaguá, uma em Morretes e uma em Guaratuba. Além destas, foi identificada uma empresa especializada em compra e venda de sucatas, que figurou entre os compradores até 2009, ligada à associação de Morretes. De um modo geral, predominam empresas identificadas pelo nome do pro- prietário, denotando um caráter ainda precário da estrutura empresarial neste segmento no litoral. Dentre as empresas identificadas duas aparecem como empresas que atuam no segmento há bastante tempo e são formalizadas como ferro-velho. Uma terceira empresa também formalizada, embora não o seja como ferro-velho, foi identificada em Guaratuba. Neste caso, a em- presa funciona junto a um bar, ambos pertencentes à mesma pessoa. Em Paranaguá ainda foi identificado um comprador atuando dentro da Vila Santa Maria, cuja empresa é identificada pelo nome do proprietário, bastante conhecido pelos coletores e associações do litoral. Em termos de geração de empregos diretos, as empresas declararam trinta empregados ao todo, com uma média de seis por empresa. As 04 empresas entrevistadas indicaram que realizam atividades de compra, processamento, venda e transporte de recicláveis. Sendo que o raio de influência de todas elas está circunscrito às associações e coletores do litoral. Neste sentido, a partir da quantidade de funcionários percebe-se que todas as empresas podem ser classificadas como microempresas. A agregação de valor ao material reciclável não vai muito além da- quela realizada pelas associações. Na verdade o que existe é um refina-

4 Além das empresas aqui referenciadas ainda foram citadas algumas outras que não puderam ser identificadas por insuficiência de informações, bem como existem aqueles que compram especificamente de catadores individuais.

156 Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná mento deste trabalho e a realização do mesmo quando o fornecedor, seja ele o catador individual ou a empresa doadora/vendedora do resí- duo, não o faz. Neste sentido, a estrutura física das empresas também é similar, três delas possuem barracão, prensa e balança industrial. Apenas uma empresa não possui prensa em função de sua especialidade de co- mercialização exclusiva de sucatas (materiais metálicos).

Relações Comerciais No que se refere aos fornecedores de resíduos todas as empresas declararam comprar tanto de associações, como de catadores individu- almente. Três destas compram também de outros de tipos de associa- ções, bem como de empresas da cidade. Todas elas afirmam efetuar o pagamento à vista, sendo que apenas duas afirmaram utilizar cheque para os pagamentos. Os materiais mais comercializados por três destas empresas são o PET e o papelão, exceto as empresas focadas em sucata. Foram unâni- mes em afirmar que os preços dos recicláveis têm sido uma dificuldade para o negócio. Além desta dificuldade, foram mencionadas as dificul- dades de relação com os fornecedores e funcionários. Vale dizer ainda, que há uma oscilação na relação de compra e venda, alguns comprado- res variam conforme a época do ano. Observa-se não existe muita diversidade no perfil de compra dos compradores entrevistados. Contudo, percebe-se que o raio de influên- cia deles está bem delimitado pela cidade em que a empresa se instalou e suas proximidades. Assim, a empresa instalada em Guaratuba compra de associações de Guaratuba e Matinhos. Já o comprador instalado na Vila Santa Maria comprava até o final de 2009 de associações de Mati- nhos (Vila Nova), Paranaguá (Assepar) e Pontal (Aconrespp). Já na atuali- zação recente apenas a Assepar continua indicando este comprador. Como já afirmado anteriormente, os resíduos mais ofertados nos mu- nicípios do litoral são o papel, o alumínio e o plástico. Por outro lado, este conjunto de itens talvez possa sinalizar uma dificuldade de destinação de resíduos cuja relação custo- benefício exija ganhos de escala, como é

157 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações o caso do isopor, que nem mesmo aparece como item comercializado. Considerando que todos os compradores possuem caminhão e três deles também contratam frete para transportar os resíduos até os compradores regionais, sejam eles atacadistas ou indústrias, é natural que optem por itens mais rentáveis e que apresentem menor valor de transporte. Observa-se através das relações comerciais identificadas que a lo- calização geográfica é importante quando se trata da comercialização na etapa seguinte. A área delimitada na pesquisa, entre a região me- tropolitana de Curitiba/PR e Joinville/SC acabou se confirmando como aproximativa da extensão das relações econômicas. De acordo com os dados mais recentes, relativos ao primeiro semes- tre de 2010, dentre os cinco compradores do litoral apenas três especifica- ram com quem comercializam. Apenas um destes compradores afirmou vender fora da área delimitada como “área de influência” da cadeia de resíduos do litoral. Neste caso para uma empresa localizada no município de São Paulo. Também merece destaque o fato de que dois compradores vendem para a fábrica de papel de Morretes, que se apresentou como um elemento relevante na cadeia produtiva, tendo em vista que o papel e papelão são resíduos significativos na oferta geral dos municípios. Além destes compradores foram localizados quatro outros sediados na Região metropolitana de Curitiba e um que veio recentemente de Santa Catarina e está organizando uma instalação permanente no mu- nicípio de Paranaguá. Além destes, há um comprador oriundo do mu- nicípio de Otacílio Costa /Santa Catarina, em processo de instalação no litoral do Paraná. Este último comprador já possui uma rede industrial de clientes e empresas instaladas no estado de Santa Catarina. De uma maneira geral, os compradores que atuam no litoral, os se- diados nos municípios e aqueles que estão em outros municípios, mas que também compram das associações vendem para empresas grandes. Grande parte das empresas que estão na etapa seguinte são indústrias, como a fábrica de papel Induspel, que possui unidade em Morretes; a Polysite Indústria, que produz resinas termoplásticas; a Heidrich S.A., a Induma e a Klabin que são fabricantes de produtos de papel e papelão,

158 Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná tais como palmilhas de calçados nos dois primeiros casos e papéis em geral no último caso.

Considerações Finais O estudo de cadeias produtivas permite visualizar as relações de co- nectividade e complementaridade econômica, tecnológica, e também social. Em geral este conceito aparece vinculado à políticas públicas de fomento à inovação, bem como aos elementos tradicionais de fomento ao desenvolvimento (PROCHNIK, 2001). No caso da cadeia de resíduos no Brasil há um vínculo essencial com a questão da exclusão social. Nas metrópoles brasileiras relaciona-se ao grau mais aviltado de exclusão social, sendo alternativa de geração de renda para grande parte dos moradores de rua. Neste sentido, como afirma Jacobi; Teixeira (1997, p.5):

(...) aos que antes eram caracterizados como mendigos, pedintes e até mesmo desequilibrados mentais que perderam seus laços familiares, ganhou nova conotação ao se observar na população de rua a presença de famílias inteiras que passaram a desenvolver alguma atividade econômica relacionada com o que a rua pode lhes oferecer.

Dentre as atividades que a rua pode oferecer, aquela que é mais visível e que se estende para as periferias das cidades grandes, médias e parte das pequenas, sem dúvida é a que se relaciona à coleta e comer- cialização dos recicláveis. O estudo da cadeia produtiva de resíduos sólidos do litoral do Para- ná, por sua vez, permitiu compreender alguns elementos que explicam a dinâmica econômica e social relacionada à comercialização dos resí- duos. Fica bastante evidente o papel das associações de recicladores, tanto no que se refere à questão ambiental, como enquanto solução para o problema do desemprego e da insuficiência de renda que atinge uma parcela considerável de pessoas que atuam no mercado do lixo. Contudo, submetidas às regras de mercado, estas associações têm tido baixa capacidade de gestão e aproveitamento de oportunidades.

159 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Por outro lado, fica evidenciada a capacidade ainda exígua dos mu- nicípios de implementar políticas públicas complexas, que operem so- bre a problemática ambiental e social. Tal comportamento faz com que a questão dos resíduos sólidos continue sendo vista mais como proble- ma que alternativa no campo da gestão das cidades. Tanto mais no que se refere às ações conjuntas, como a comercialização em rede enquanto estratégia de superação das fragilidades individuais de cada município. A relevância da discussão sobre o tema está justamente em trazer subsídios para alimentar as políticas de ordenamento territorial, pen- sadas e executadas a partir de uma perspectiva ampla dos problemas socioambientais. Desta forma, a realização deste diagnóstico passou a subsidiar um conjunto de ações desenvolvidas pela Incubadora. A pri- meira delas se refere à organização de um evento5, tendo em vista arti- cular os diversos atores envolvidos na cadeia produtiva, como primeiro passo para instaurar o diálogo para a busca de soluções negociadas e consorciadas entre os municípios, que conte com a proatividade das as- sociações. A segunda está relacionada à execução de um programa de qualificação das associações nos aspectos administrativos-financeiros, que se apresentaram como barreira para uma melhor inserção destas organizações no conjunto de suas relações comerciais. Qualificação esta que cumpre os princípios da economia solidária buscando, sobretudo fortalecer a autogestão e conseqüentemente as associações de catado- res do Litoral do Estado. Não obstante, o presente estudo indica a necessidade de avanços na proposição e execução de políticas públicas capazes de pensar a questão dos resíduos levando em consideração os seguintes aspectos: • As associações de coletores, individualmente nos seus municí- pios, sobretudo em face ao fator sazonalidade, encontram difi- culdade de comercialização, com valores de venda defasados em relação aos centros urbanos maiores. Neste sentido, a organiza- ção em redes de cooperação entre os municípios, principalmente com objetivo de agregar maior valor à comercialização dos resí-

5 O Evento “I Encontro da Cadeia Produtiva de Resíduos” foi realizado em 14 de agosto de 2010 e contou com 200 participantes.

160 Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná

duos poderá representar um passo importante para a sustentabi- lidades dos grupos; • O investimento na educação ambiental com ações voltadas ao comprometimento da sociedade civil em ações de separação dos resíduos sólidos representa um desafio a ser enfrentado por to- dos os municípios; • O período da temporada de verão exige ações diferenciadas e maior intervenção por parte do Estado em estrutura para coleta seletiva e campanhas de separação dos resíduos sólidos; • Os investimentos para estruturação da coleta seletiva e devida separação de resíduos sólidos não se concretiza em ações isola- das, permeadas por influências assistencialistas, mas por projetos de gestão de resíduos capazes de articular aspectos sociais e am- bientais de forma responsável.

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162 Vivência no acampamento José Lutzenberger: análise da segurança alimentar e nutricional

Diomar Augusto de Quadros1 Rafael Pantarolo Vaz2 Murilo Carzino de Alcântara 3 Sirlândia Schappo4 Eduardo Harder5

Introdução O Acampamento José Lutzenberger encontra-se localizado na co- munidade Rio Pequeno, dentro da jurisdição do município de Antoni- na/PR, aproximadamente 78 km de Curitiba. Em 2007 o local contava com aproximadamente 20 famílias organizadas por meio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A comunidade é receptora do Projeto de Extensão “Conhecer, Compreender, Propor e Agir no Pro- jeto de Acampamento Agroflorestal José Lutzenberger: Vivenciando a Proposta Pedagógica da UFPR Litoral” desde 2006. O projeto visou pro- mover a ação conjunta de diferentes áreas do conhecimento, a fim de fomentar o desenvolvimento sustentável local, por meio de atividades que integrem saúde, educação e manejo dos recursos naturais. Partindo do pressuposto de que a Segurança Alimentar e Nutricio- nal depende da integridade dos serviços e bens ambientais e tomando-

1 Nutricionista, Mestre em Tecnologia de Alimentos, Supervisor dos Bolsistas de Extensão Universitária / Fundação Araucária no período 2008-2009 e Professor da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 2 Gestor Ambiental e Bolsista de Extensão Universitária / Fundação Araucária no período 2008-2009. E-mail: [email protected]. 3 Fisioterapeuta e Bolsista de Extensão Universitária / Fundação Araucária no período 2008-2009. E-mail: [email protected]. 4 Assistente Social, Mestre em Sociologia Política, Doutora em Sociologia; Coordenadora do Projeto de Extensão Universitária no período 2008-2009, Ex-Professora da UFPR Litoral e Atualmente Professora na UFSC. E-mail: [email protected]. 5 Bacharel e Mestre em Direito, Vice-coordenador do Projeto de Extensão Universitária no período 2008- 2009 e Professor da UFPR Litoral. E-mail: [email protected].

163 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações se como base a promoção da qualidade de vida, objetivou-se promover ações educativas e de difusão da informação em dois eixos de trabalho distintos, porém complementares: o manejo, acesso e uso dos Recursos Naturais pela comunidade, como pressupostos básicos para a SAN; e ações educativas de SAN como forma de prevenção em saúde. Devido ao fato da área do acampamento se encontrar dentro dos limites da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, local de alta relevância ecológica por abrigar parte remanescente da Floresta Atlântica Brasileira (degrau) um dos eixos teve a perspectiva de orientar a comunidade quanto ao manejo dos recursos naturais, em especial a água como bem essencial ao patrimônio público. Por outro lado, o eixo da saúde visou trabalhar a segurança ali- mentar e nutricional por meio de ações educativas, utilizando o Guia Alimentar para a População Brasileira (BRASIL, 2006b) como referência básica. Também procurou-se fortalecer e incentivar os mecanismos de mo- bilização, participação e controle social na elaboração, monitoramento e avaliação das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional sustentável, respeitando as demandas específicas da comunidade. O princípio da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) conside- ra o acesso permanente a alimentos suficientes para uma vida ativa e saudável de uma população (HOFFMANN, 1994). Sua efetivação possui estreita ligação com o acesso e manejo dos recursos naturais como um todo, sendo comuns os nexos entre segurança alimentar e ambiente e, mais ainda, entre insegurança alimentar e insustentabilidade ambiental (BRASIL, 2004). Esta descrição indica que a segurança alimentar e nutri- cional está intimamente ligada com a qualidade dos alimentos, as con- dições ambientais para a produção, o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população (FREITAS; PENA, 2007). Por outro lado, a promoção de saúde está crescendo no quesito importância e é uma estratégia fundamental para enfrentar os proble- mas do processo saúde-doença. A concepção de promoção de saúde é delineada pela Carta de Ottawa e citada por SANTOS (2005), como o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua

164 Vivência no acampamento José Lutzenberger qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no contro- le deste processo. Assim, é fundamental a prática de ações de educação alimentar e nutricional, visto que este tema é reconhecidamente rele- vante no contexto da promoção de práticas alimentares saudáveis. O acesso a terra, para quem vive no campo, é condição para o aces- so aos demais recursos necessários para uma vida digna, sendo a re- forma agrária um dos instrumentos de promoção de desenvolvimento econômico com crescente inclusão social, manifestado através de seu potencial de geração de trabalho e renda. Uma política nacional de SAN oferece um marco de referência que permite combinar a utilização de recursos ociosos de terra e de força de trabalho com a demanda reestru- turada de alimentos (BRASIL, 2004). Devido a seu fácil entendimento e por ser produzido para o fim da educação é que o Guia Alimentar para a População Brasileira foi escolhi- do para ser abordado com as famílias do Acampamento José Lutzenber- ger. O Guia contém as diretrizes alimentares para a população brasileira, tratando de assuntos de interesse público, sobre como prevenir as doen- ças causadas por deficiências nutricionais, reduzir os índices de doenças crônicas não-transmissíveis (diabetes, hipertensão arterial e obesidade), além de mostrar um panorama epidemiológico do consumo alimentar da população brasileira.

Caracterização da Área de Ação O município de Antonina localiza-se na região litoral do Estado do Paraná a aproximadamente 78 km de Curitiba, sendo o município lito- râneo mais próximo a Curitiba, capital do Estado. O clima da região é definido segundo o modelo de classificação climática de Köeppen (IA- PAR, 1978 apud FOGAÇA; ARANHA; ESPER, 2003), como clima tropical superúmido, sem estação seca e isento de geadas. As maiores taxas de precipitação pluviométrica ocorrem no mês de fevereiro enquanto as menores ocorrem no mês de julho, com temperatura média anual va- riando de 17 a 21º C, sendo a média de 28º C no mês mais quente e de 12º C no mês mais frio. Quanto à precipitação do município, são regis-

165 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações trados altos níveis pluviométricos, variando de 1700 a 2500 mm anual, conforme a altitude (IAPAR, 2000). Segundo o Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Antonina/PR possui 19.174 habitantes, com uma taxa de crescimento geométrico de 1,31%. A taxa de pobreza estimada é de 33,88% (pessoas com renda familiar per capita de até 1/2 salário mínimo) e a densidade demográfica do município é de 20,06 hab/km² (IPARDES, 2009). O Acampamento José Lutzenberger se estabeleceu no dia 31 de março de 2004, sendo uma das comunidades situadas às margens do Rio Pequeno. Segundo BORSATTO (2007b), o local situa-se a aproxima- damente oito quilômetros, em trecho de terra, da estrada que liga a sede do município de Antonina/PR à Usina Hidrelétrica Parigot de Souza. BORSATTO (2007a), em sua dissertação de mestrado, apresenta um histórico detalhado da consolidação do acampamento:

(...) as histórias começam a serem contadas a partir de meados da década de 1980; nesta época a área onde se localiza o acampamento era uma fa- zenda de gado (...). Dentro da propriedade existia uma vila onde moravam aproximadamente 50 famílias de posseiros que conviviam de forma apa- rentemente harmoniosa com o fazendeiro. (...) ele vendeu a propriedade (...). Com a chegada deste novo proprietário, a situação dos posseiros se complicou drasticamente. (...) Iniciou-se um processo de pressão sobre os posseiros para que estes abandonassem as suas terras (...). Mas com a in- tensificação do conflito, e com a iminência de sua expulsão, representan- tes das famílias dos posseiros foram até a sede do município de Antonina à procura de ajuda. Estabeleceram contatos iniciais com filiados do Partido dos Trabalhadores, que indicaram contatos do MST que poderiam ajudá- los. Após este contato o MST passou a dar apoio à luta dos posseiros, por meio de assessoria jurídica, articulação política e apoio organizacional. (...) No dia 31 de março de 2004, contra a instrução do MST, os acampados decidiram por ocupar a Agropecuária São Rafael (...). Do dia para a noite, a Agropecuária São Rafael que possuía somente três funcionários, passou a ter 50 famílias em sua área. Estabeleceu-se o acampamento José Lutzem- berger (BORSATTO, 2007a, p. 110-113).

O local onde estão inseridos possui aproximadamente 300 hecta- res, estando dentro dos limites da APA de Guaraqueçaba, a qual abriga um dos trechos remanescentes de Mata Atlântica.

166 Vivência no acampamento José Lutzenberger

Segundo a proposta de Projeto de Assentamento Agroflorestal José Lutzenberger, desenvolvido pela Cooperativa de Trabalhadores em Re- forma Agrária (COTRARA, 2006), o uso atual da terra no Acampamento divide-se da seguinte forma: 45,72% correspondem a Floresta Ombrófila Densa, 3,78% a Áreas de Preservação Permanente, 50,06% a pastagem cultivada e 0,44% a áreas construídas (sede e estrada).

Segurança Alimentar e Nutricional Segundo Batista-Filho; Rissin (1993), o lançamento do livro de Josué de Castro — “Geopolítica da Fome” — e a realização, nas décadas de 50 e 60, de vários inquéritos sobre a situação alimentar e nutricional de mui- tos países da África, Ásia e América Latina despertaram a consciência mundial para o grave quadro das deficiências globais e específicas de alimentos/nutrientes. Desde então, se instalou um novo modo de pensar e de agir frente à realidade alimentar e nutricional e também uma abordagem pioneira no dimensionamento da fome coletiva como um fenômeno geografica- mente universal (ARRUDA, 1997). Porém, apenas em 1986, o objetivo da segurança alimentar apare- ceu, pela primeira vez, dentre os elementos definidores de uma propos- ta de política de abastecimento alimentar (MALUF; MENEZES; VALENTE, 1996), mostrando o quão recente é a discussão sobre o tema no Brasil. Até esse momento, estes problemas foram abordados sem tratamen- to técnico-científico o qual pudesse compreender sua natureza, distri- buição, extensão, gravidade, distribuição populacional e geográfica. A partir de então, se iniciaram esforços mundiais a fim de definir políticas e programas sociais para redução de deficiências alimentares, agravos nutricionais e suas conseqüências para o quadro social e biológico. A relação entre as questões ambientais e a SAN teve grande impulso em 2003 com a realização da I Conferência Nacional do Meio Ambiente. No evento surgiu a proposta para que a agenda ambiental e o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) passassem a considerar a sus-

167 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações tentabilidade socioambiental como base de um projeto que englobasse a promoção de justiça, inclusão social, eqüidade de gênero e de etnias, bem como erradicação da fome e da miséria (BRASIL, 2004). As analogias entre a SAN e a integridade dos serviços e bens am- bientais se mostram através de formas sustentáveis de produção agroa- limentar, fortalecimento da agricultura familiar, proteção do patrimônio natural, água como alimento essencial, marco legal e regulatório de pre- servação da biodiversidade, dentre outros. O acesso à água de qualidade é pré-condição para a SAN, sendo ne- cessária a integridade das bacias hidrográficas, mananciais e aqüíferos com seus respectivos ecossistemas, como forma de promover a mesma. Programas especiais de seguridade hídrica devem ser implementados em áreas de escassez de águas, como forma de, também, se alcançar a justiça social (BRASIL, 2004). Ainda segundo BRASIL (2004), a qualidade da habitação e o sanea- mento básico são questão de SAN na medida em que contribuem para o aproveitamento biológico dos alimentos, evitando a proliferação de inú- meras doenças. No Brasil, 10% dos domicílios urbanos (3,8 milhões de moradias) não têm acesso aos serviços de abastecimento de água e 44% deles (16,6 milhões de moradias) não dispõem de esgotos sanitários. Após a chamada Revolução Verde6, gerou-se um quadro agravan- te de deterioração dos Recursos Naturais, diminuição da qualidade de alimentos e exclusão de grandes parcelas da população rural. Estima-se que 4,8 milhões de famílias formam hoje o contingente de sem-terras, passando fome e sem quaisquer alternativas para poderem viver uma vida digna (MALUF; MENEZES; VALENTE, 1996). É diante desta realidade que se fez necessário intervenções junto ao acampamento, buscando aliar o conhecimento tradicional com a preservação do ambiente, buscando melhores condições alimentares e garantia da segurança alimentar, passando pela necessidade de uti- lização de estilos de agricultura sustentável baseados nos princípios da

6 Segundo Almeida (2000), a Revolução Verde é a artificialização do meio natural através do “pacote tecnológico”, para viabilizar a capitalização do campo.

168 Vivência no acampamento José Lutzenberger

Agroecologia7, pois a agroecologia é um campo de conhecimento de natureza multidisciplinar que pretende contribuir na construção de es- tilos de agricultura de base ecológica e na elaboração de estratégias de desenvolvimento rural, tendo-se como referência os ideais da sustenta- bilidade numa perspectiva multidimensional de longo prazo (CAPORAL; COSTABEBER, 200?), o qual contribui para a promoção da SAN. Em 1999, o Governo Federal do Brasil homologou a Política Nacio- nal de Alimentação e Nutrição (PNAN), que tem por objetivo auxiliar o conjunto de políticas do governo voltadas à concretização do direito humano universal à alimentação e nutrição adequadas e à garantia da Segurança Alimentar e Nutricional da população. A PNAN tem como diretrizes a promoção de práticas alimentares saudáveis e a prevenção e o controle dos distúrbios nutricionais associa- dos à alimentação e à nutrição, o monitoramento da situação alimentar e nutricional da população brasileira, e a garantia da qualidade dos ali- mentos que são colocados na mesa dos brasileiros, além de estimular as ações intersetoriais da sociedade para criação de medidas que garantam o acesso à alimentação saudável a todos os brasileiros (BRASIL, 2003). O Ministério da Saúde criou o Guia Alimentar para a População Brasileira com a intenção de promover o consumo de uma alimentação saudável e adoção de uma vida mais saudável, e que ele pudesse ser utilizado como forma de educação em saúde. A promoção de práticas alimentares saudáveis tem início com o incentivo ao aleitamento ma- terno, exclusivo até o sexto mês e complementar até o segundo ano de vida, passa pelo resgate de hábitos e práticas alimentares regionais e pelos padrões alimentares mais variados, desde a primeira infância até a velhice (BRASIL, 2006b). As diretrizes apresentadas são de fácil entendimento e foram for- muladas para a aplicação prática no contexto familiar. O Guia foi criado em 2006 e é fruto de programas e ações do Ministério da Saúde que,

7 “A Agroecologia constitui um campo de estudos que pretende o manejo ecológico dos recursos naturais, para através de uma ação social coletiva de caráter participativo, de enfoque holístico e de uma estratégia sistêmica, reconduzir o curso alterado da co-evolução social e ecológica, mediante controle das forças produtivas que estanque seletivamente as formas degradantes e espoliadoras da natureza e da sociedade” (GUZMÁN; MOLINA, 1995, p. 12).

169 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações desde 1999 com a criação PNAN (Política Nacional de Alimentação e Nu- trição), vem desempenhando medidas para promoção e prevenção dos agravos da saúde, que advenham de uma alimentação insuficiente ou inadequada (BRASIL, 2006b). As ações intersetoriais ficam mais explícita ao analisarmos o concei- to de SAN definido pela lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006 que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada:

A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quan- tidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essen- ciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que res- peitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (BRASIL, 2006a).

Uma das ações intersetoriais que vem sendo desenvolvida pelo go- verno federal é a inserção dos componentes de alimentação e nutrição na atenção à saúde de grupos populacionais específicos, entre eles a da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais. As ações de promoção de saúde devem ser empreendidas por meio de um movimento articulado de políticas sociais que respondam aos problemas populacionais de cada grupo em um país e/ou região. Ma- chado et al. (2007) definem a promoção de saúde como o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo. Promoção de saúde não é de responsabilidade única do se- tor da saúde e sim de uma interação entre diversos setores do governo. Destaca-se a educação como forma de promoção e prevenção em saú- de, porém para educar em saúde é necessário estar aberto ao contorno geográfico, social, político e cultural da comunidade. Gazzinelli et al. (2005) enfatizam a importância de se observar o su- jeito em sua totalidade, envolvendo seus processos intelectuais, afetivos e culturais para tornar possível atingir maior efetividade em termos de mudança de conduta. Isto implica que o profissional reconheça que o sujeito é detentor de um conhecimento diferente do dele e que, portan-

170 Vivência no acampamento José Lutzenberger to, pode escolher outros meios para desenvolver suas práticas cotidia- nas. Deve haver uma postura de aprendiz em ambos os lados, gerando assim uma troca de aprendizagem no processo educativo.

Delineamento das Atividades de Extensão em Segurança Alimentar e Nutricional A metodologia utilizada para a realização deste estudo foi a da pesquisa-ação, a qual Thiollent (2002) define como um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita asso- ciação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. Nesse sentido, houve durante todo processo um acompanhamento das decisões, das ações e de toda a atividade interacional dos atores da situação, fazendo com as atividades não se limitem a uma forma de ação (risco de ativismo), visto que se pretende aumentar o conhecimento dos pesquisadores e o conhecimento ou o nível de consciência das pessoas e grupos considerados envolvidos. A pesquisa-ação vinculada ao desenvolvimento rural considera a organização social dos produtores de forma a se organizarem em torno dos problemas elencados como importantes, para assim adquirir uma capacidade coletiva de decisão e de controle quanto a utilização dos recursos (GOW; VANSANT, 1983 apud THIOLLENT, 2002). Desta forma, foram realizadas atividades em grupo a fim de aproxi- mar a comunidade acadêmica dos acampados. Estas atividades visaram o esclarecimento da situação observada, havendo um acompanhamento das decisões, das ações e de toda atividade interacional dos acampados. O eixo relacionado ao manejo dos recursos naturais trabalhou sob a perspectiva da água como elemento essencial ao patrimônio público (BRASIL, 1988) e sua qualidade como pré-condição para a SAN. Ao mes- mo tempo foi trabalho o manejo dos demais recursos naturais, com ên-

171 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações fase no agro-extrativismo. Também foi aplicado um modelo de ficha ob- servacional baseado no índice de qualidade de vida aplicado por Darolt (2000), onde foram diagnosticados aspectos relacionados aos sistemas de drenagem (água e esgotamento sanitário), e destino final de todos os resíduos produzidos na comunidade. De modo a uma melhor avaliação de fatores que poderiam vir a afe- tar a qualidade de vida dos acampados, foram incluídos aspectos rela- cionados ao acesso a serviços de educação, saúde e transporte por parte da comunidade. Como parte do diagnóstico ambiental local, ao mesmo tempo foi observado as condições do Rio Pequeno, como a conservação da Mata Ciliar e seu nível de assoreamento. Pelo eixo da saúde, foram realizadas diversas visitas ao acampamen- to de forma a reunir-se com a comunidade e junto a ela criar uma dinâ- mica de estudo. Assim, foi elaborado e aplicado um questionário que verificou a freqüência alimentar da comunidade quanto aos principais grupos de alimentos consumidor, baseado na o Guia Alimentar para a População Brasileira (BRASIL, 2006) e a procedência destes alimentos.

Acesso, Uso e Manejo dos Recuros Naturais como Pressuspostos Básicos para a Segurança Alimentar e Nutricional Os resultados obtidos durante o período de trabalho apontaram para um comprometimento da qualidade de vida devido ao fato da comuni- dade não possuir o direito legal a terra, fato que acaba comprometendo a organização social dos acampados. Fato este também observado por Borsatto (2007b), o qual comenta que o medo de serem, mais uma vez, ex- pulsos de suas posses também condicionam os acampados a limitarem os seus investimentos na lavoura, pois se isso acontece, terão que deixar para trás todo o trabalho despendido, fato já ocorrido nesse acampamento. Isto foi perceptível na falta de comunicação e articulação existente entre famílias e líderes da comunidade, sendo o trabalho individual so-

172 Vivência no acampamento José Lutzenberger breposto ao coletivo, fato este constatado com o insucesso de um banco de sementes8 coletivo no acampamento. Também não se com Sistemas Agroflorestais (SAF’s), esquema de plantio que consorcia diversas cultu- ras agrícolas a culturas florestais, muito embora esta seja uma demanda levantada por boa parte da comunidade. Ao mesmo tempo se perce- beu o desânimo referente a insegurança territorial quando observado a alta rotatividade e êxodo de famílias do acampamento. A utilização sustentável dos recursos naturais aliada à uma menor dependência de insumos externos que caracterizam este sistema de produção, resultam em maior segurança alimentar e economia, tanto para os agricultores, como para os consumidores (ARMANDO et al., 2002). As questões acima apontadas podem ser parcialmente interpreta- das como existentes devido a falta de medidas adotadas e pensadas a longo prazo pelos acampados. Problemas relacionados a própria sub- sistência estão estritamente relacionados ao não direito legal a terra, o que acaba por gerar grande rotatividade entre as famílias e fazendo com que sejam priorizadas medidas imediatistas em suas atividades, fato que acaba afetando a efetivação da segurança alimentar na comunidade. A partir do diagnóstico foi constatado que a água consumida pelas pessoas da comunidade é oriunda de mina nas proximidades do acam- pamento. O percurso entre nascente e o local de coleta não possui in- fluência de fatores antrópicos e a mata ciliar está em excelente estado de conservação. Porém, a forma como é conduzida até as residências pode interferir em sua potabilidade. A retirada da água se dá através de tubulações em muitos pontos enferrujadas e sem manutenção, o que pode vir a afetar sua qualidade e, consequentemente, a efetivação da SAN na comunidade, devido ao fato da água ser especialmente relacio- nada ao tema. O destino dos resíduos sólidos também não é adequado, com ex- ceção da matéria orgânica, normalmente reciclada nos lotes familiares através de compostagem, processo biológico de degradação da matéria

8 O banco de sementes tinha como objetivo a multiplicação de sementes e estabelecer sistemas de trocas entre as famílias, mantendo-as sob seu domínio. Porém, após a colheita as sementes não foram armazenadas para o próximo ano.

173 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações orgânica. O restante é queimado ou enterrado devido a falta de coleta no local pela prefeitura do município. Com relação ao esgotamento sanitário, devido a falta de saneamen- to básico, as águas residuárias são normalmente destinadas a valas, sem nenhum tipo de tratamento, o que “pode” indicar problemas relacio- nados ao meio ambiente, como contaminação do lençol freático e dos mananciais da região, além de riscos a saúde da comunidade, podendo ocorrer a disseminação de doenças relacionadas a veiculação hídrica. O acampamento possui um “banheiro seco”, banheiro este que evita o emprego de redes de esgoto através da compostagem de dejetos hu- manos. Esta é uma solução interessante para comunidades do meio ru- ral que não possuem saneamento básico, pois não contamina o solo e corpos d’água, porém, talvez devido a questão cultural, a comunidade pouco utiliza esse sistema implantado. É perceptível a degradação ambiental no acampamento, fato este que não se deve aos acampados, mas aos antigos proprietários da área. O curso do Rio Pequeno foi desviado, como consequência o mesmo até o momento das ações na comunidade não parece ter curso definido. A Mata Ciliar praticamente inexiste no trecho do acampamento, o que des- respeita o Código Florestal (Lei n° 4.771/1965) que considera as Florestas de Galeria como Área de Preservação Permanente (APP), estabelecendo uma área mínima de vegetação natural a ser preservada de acordo com a largura do curso d’água (BRASIL, 1965). Suas margens são em grande parte ocupada pela Braquiaria (Brachiaria spp.), devido ao fato do local ter sido por muito tempo utilizado para pastagem. Os esforços para a recuperação de parte da Mata Ciliar partiram dos próprios acampados, que procuram respeitar o ambiente natural a qual estão inseridos, ado- tando princípios agroecológicos, sendo proibido o uso de qualquer tipo de agrotóxico. O Quadro 1 apresenta a síntese dos resultados obtidos com as ativi- dades de diagnóstico da qualidade de vida realizadas no acampamento, representa basicamente as condições de habitação saneamento (rede de água, rede de esgoto e destino do lixo); locomoção (veículos) e aces- so a serviços (educação, saúde e transporte).

174 Vivência no acampamento José Lutzenberger

Por parte do acesso a serviços de educação, saúde e transportes, é perceptível o descaso do poder público municipal, principalmente nas condições da estrada que dá acesso ao acampamento, o que acaba por limitá-los em relação a estes serviços.

Quadro 1. Qualidade de vida no acampamento José Lutzenberger em Antonina/PR, 2008. Variáveis Condição atual Saneamento Água Mina d’água na localidade Esgoto S/ tratamento Lixo Lixo Orgânico Reciclado nos lotes e utilizado na unidade produtiva Lixo Comum Queimado ou enterrado nos lotes Meio APP’s * Em estado avançado de degradação ambiente Agrotóxicos Não é utilizado Locomoção Veículos Comunidade dependente do transporte público Acesso a Educação Serviço no município** serviços Saúde Serviço no município** Transporte Serviço na localidade** Fonte: Pesquisa de Campo. Nota: *Áreas de Preservação Permanente (Lei n° 4.771/1965); **Qualidade do serviço precária aos acampados devido ao descaso do poder público, um dos fatores estritamente ligados a insegurança territorial. As condições de acesso são precárias, sendo a estrada de terra e com muitos buracos. Assim, quando submetida a altos níveis pluviomé- tricos se torna de difícil travessia, podendo acarretar no atolamento dos carros. Somente no mês de outubro de 2008 a precipitação acumulada no mês foi de 288,1 mm para o Município, sendo 135,5mm superior a média observada em outros períodos (TEMPO AGORA, 2008). Embora tenha se objetivado a aplicação de um índice de qualidade de vida rural da comunidade, o mesmo não foi aplicado pois entendeu- se que os resultados poderiam mascarar a vulnerabilidade latente em termos de infra-estrutura (qualidade da água e esgotamento sanitário), afetando as condições de vida desta comunidade (BORGES; MARGARI- DO, 2006). Além disso, a qualidade de vida é um conceito subjetivo, que envolve as peculiaridades de cada sociedade, não podendo os mesmos valores aplicados em um assentamento, onde já se tem o direito à ter- ra assegurado, serem utilizados também em um acampamento, onde a condição de vida é oposta devido a insegurança territorial.

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Segurança Alimentar e Nutricional como Forma de Prevenção em Saúde A avaliação da freqüência com que alguns alimentos são consumi- dos pelas famílias avaliadas (todo dia, toda semana, a cada quinze dias, a cada trinta dias ou nunca), são observados no Quadro 2. Os resultados apontaram que a comunidade alimenta-se todo dia de produtos produzidos nos lotes familiares, tais como feijão (100%), frutas (85%), verduras (85%) e legumes (85%). Outros alimentos que também são consumidos diariamente pelas famílias, porém não são produzidos no acampamento são o arroz (100%) e o café (85%). De acordo com Norder (1998), o consumo de alimentos de comple- xos agro-industriais e comerciais em geral, mesmo no meio rural, está aumentando. Não existe separação espacial entre o local de produção e o de consumo, o trabalho e a moradia, o qual potencializa a capacidade dos assentados para a produção interna de uma alimentação adequada voltada para o consumo do grupo doméstico. Conforme Brandão (1981) apud Norder (1998), as práticas alimenta- res no meio rural são elaboradas a partir dos recursos naturais e sociais disponíveis para cada família e a possibilidade de intercâmbio com a cidade, faz com que uma parte da própria alimentação seja adquirida na cidade. Como fruto destes resultados constatou-se a necessidade de se abordar e disseminar as idéias trazidas pelo Guia Alimentar para a Po- pulação Brasileira. De acordo com o Brasil (2005), uma alimentação saudável deve: respeitar e valorizar as práticas alimentares culturalmente identificadas - os alimentos têm significações culturais que precisam ser estimuladas; garantir o acesso, o sabor e o custo acessível – ao contrário do que a mídia vem colocando, uma alimentação saudável não é cara e deve dar preferência por alimentos in natura produzidos regionalmente além de ser muito saborosa, como exemplo a mandioca que é um tubérculo muito saboroso, muito nutritivo, típico e de fácil produção em várias

176 Vivência no acampamento José Lutzenberger regiões brasileiras; variada – vários tipos de alimentos para fornecer os vários tipos de nutrientes; colorida – fomentar o consumo de legumes, frutas e verduras; harmoniosa – quantidade e qualidade para alcançar uma nutrição adequada; e segura – quanto a qualidade higiênico-sani- tária dos alimentos. Durante as atividades no acampamento também se objetivou a bus- ca por melhorias no acesso à saúde da comunidade, a qual possibilita a garantia da SAN. Pois assim como foi observado por Esteves (2002) em seu trabalho com assentados no Estado do Rio de Janeiro, existe uma dificuldade de acesso aos serviços de saúde, além da falta de qualidade do atendimento e a baixa resolutividade dos problemas apresentados na comunidade. Foi observado que o acesso a saúde é problemático, pois a comu- nidade é distante do centro do município de Antonina/PR, sendo que a linha de ônibus que serve a região só possui dois horários de saída da comunidade: às terças-feiras e aos sábados às 10 horas da manhã. Caso um morador necessite de atendimento médico e tiver que se deslocar de ônibus, quando o mesmo chegar ao centro do município, onde está instalado o Hospital Municipal, dificilmente haverá senhas para o atendimento. Esse é um dos fatores que levam os moradores a buscar atendimentos nas grandes cidades próximas a Antonina: Para- naguá e Curitiba. Para Brasil (2006), os grupos mais vulneráveis a SAN são justamente os que têm maior dificuldade em serem atendidos pe- los serviços públicos – seja por não conseguirem acesso físico, seja por outros impedimentos. Desta forma, as famílias da Comunidade do Rio Pequeno, sejam os acampados ou pequenos agricultores da região, são consideradas como grupos de risco e que devem ser priorizados nos programas que compõem uma Política de SAN. Para tentativa de melhorias neste atendimento foram feitas articula- ções com a Secretaria de Saúde do município de Antonina. O Secretário de Saúde se comprometeu a destinar cinco fichas para os moradores do acampamento às terças-feiras, desde que as mesmas fossem solicitadas previamente via telefone.

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Quadro 2. Frequência de consumo alimentar de sete famílias do acampamento José Lutzenberger em Antonina/PR, 2008.

Freqüência Alimentar Grupo alimentar Alimentos Diário Semanal Quinzenal Mensal Nunca Bebidas Café 6 1 0 0 0 Chá 4 1 1 1 0 Refrigerantes 1 1 1 2 2 Suco Artificial 1 2 0 2 2 Carnes, aves, pei- xes, ovos e nozes Carne Bovina 1 6 0 0 0 Frango 0 3 2 2 0 Mortadela 2 3 0 1 1 Ovos 3 2 1 0 1 Peixe 0 4 0 1 2 Frutas Frutas Diversas 6 0 0 0 1 Suco de fruta 3 4 0 0 0 Gorduras, óleos e açúcares Bacon 0 1 0 2 4 Catchup/Mostarda 1 1 0 2 3 Chocolate 0 0 1 1 5 Doces 2 1 1 0 3 Frituras 2 1 0 3 1 Geléia 0 0 1 1 5 Maionese 1 1 2 1 2 Margarina 3 2 1 0 1 Salgadinhos 0 0 0 3 4 Leite e derivados Iogurte 0 1 1 1 4 Leite 3 3 0 1 0 Queijo 2 2 0 2 1 Requeijão 0 0 2 2 3 Pães, cereais e massas Arroz 7 0 0 0 0 Bolacha 3 3 0 0 1 Bolo 0 3 2 1 1 Cereais 0 1 0 1 5 Feijão 7 0 0 0 0 Massas 3 2 2 0 0 Pão 4 3 0 0 0 Vegetais Alface/espinafre 5 1 0 1 0 Legumes diversos 6 0 1 0 0 Fonte: Organizado pelos autores.

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Por meio das atividades no acampamento foi possível observar que o acesso à saúde é precário devido a inúmeros motivos. Um deles é a falta de hospitais e postos de atendimento nas zonas rurais. O município de Antonina dispõe de um hospital municipal e algumas unidades de saúde. A unidade mais próxima do acampamento fica distante a cerca de uma hora de carro, sendo que durante todo o período de trabalho procurou-se estabelecer contato com os responsáveis pela unidade de saúde, porém sem sucesso, para saber quais eram os serviços oferecidos pela mesma e quais os horários de atendimento. Outro motivo que di- ficulta o acesso à saúde para quem é morador de zona rural é a falta de especialistas. Esse problema atinge a maioria das pequenas cidades e obriga quem mora em municípios menores a se deslocar até os grandes centros para buscar o atendimento necessário e especializado. E o terceiro e também grave motivo a complicar o acesso à saúde aos moradores de zona rural é a infra-estrutura das estradas brasileiras, sen- do que este ponto ficou bem evidenciado na comunidade em questão. Isso vem de encontro com o que Carneiro et al. (2008) consideram como um fator limitante para a melhora do perfil da saúde das populações rurais. Segundo os autores citados, limitações no acesso e na qualidade nos serviços de saúde no campo bem como uma situação deficiente de saneamento ambiental evidenciam um perfil de saúde mais precário na zona rural quando comparado com a urbana.

Considerações Finais Durante o período de trabalho, as atividades objetivaram a contri- buição para o manejo e a utilização adequada dos recursos naturais, vi- sando o acesso permanente a alimentos suficientes para uma vida ativa e saudável da comunidade, também se objetivou o tratamento da SAN como forma de prevenção em Saúde. Do ponto de vista ambiental, as informações sobre o entorno da área em que vivem, deve ser aliado a promoção de atividades de exten-

179 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações são e pesquisa que englobem o conhecimento tradicional da comuni- dade associado a biodiversidade, contribuindo na organização e siste- matização dos dados gerados. Sugere-se a utilização de técnicas de Sistemas Agroflorestais na comunidade, sendo que está atividade, quando aplicado a agricultura familiar, reúne vantagens tanto do ponto de vista econômico, como do ambiental. Os alimentos consumidos no Acampamento José Lutzenberger, em sua maioria, são alimentos regionais e produzidos em sua maioria nos lotes familiares, o que ajuda a garantir a segurança alimentar uma vez que as famílias não precisam se preocupar em ter que comprar a maior parte dos alimentos que serão consumidos no mês pela família. Quanto o acesso à saúde pode-se observar que o mesmo é precário devido a dificuldade de atendimento no hospital da cidade de Antoni- na. Seja pelas condições da estrada, seja pelos poucos horários de ôni- bus para chegar ao centro da cidade. A falta de acesso a terra associado ao descaso do poder público no oferecimento de serviços de saúde, educação e transporte colocam a comunidade a mercê dos serviços existentes, gerando uma constante perda de qualidade de vida e sensação de insegurança territorial entre a comunidade. Espera-se com o presente trabalho ter gerado subsídios para a continuidade de projetos relacionados a SAN no Acampamento José Lutzenberger, em comunidades do meio rural, como também para novas pessoas interessadas em trabalhar junto a movimentos sociais questões relacionadas a SAN, manejo dos recursos naturais, educação, saúde, acesso a serviços públicos, além de questões referentes a Reforma Agrária e demais assuntos que estejam estritamente ligados a vida campesina. Sobretudo, espera-se a continuidade das atividades até que a comunidade tenha, de fato, acesso legal a terra. Atingindo assim o posto de Assentamento de modo a garantir as necessidades básicas e, consequentemente, a segurança alimentar de maneira plena.

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181 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

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183 Ações empreendedoras no meio rural: a comunidade pantanal do assentamento Nhundiaquara no litoral paranaense1

Elsi do Rocio Cardoso Alano2

Introdução Partindo do pressuposto das questões que permeiam a subsistên- cia das famílias de agricultores familiares em que a qualidade de vida e a geração de renda são pontos factíveis deste processo, repensar o empreendedorismo sob a ótica do desenvolvimento local e da sus- tentabilidade, nada mais viável do que veicular energias nesse senti- do também para as diversas atividades existentes no espaço agrário, atrelando principalmente questões que culminem com a educação e com o trabalho em assentamentos rurais. Assim, o trabalho realizado junto às famílias do Assentamento Nhundiaquara – Gleba Pantanal, no litoral paranaense foi extremamente produtivo, pois desencadeou, a partir deste, uma série de avanços, tanto das famílias como da própria associação Prosperidade. A Associação retomou o seu papel e juntamente com seus associa- dos passou a ter um novo valor para a construção de cidadania, forta- lecimento e gestão dos processos que possibilitem avanços de forma coletiva e não individualizada. Repensar a adoção de sistemas econômicos ancorados em peque- nos negócios é algo promissor, contudo, neste caso, investiu-se nas

1 Este artigo contém parte (reformulada) da dissertação de Mestrado da autora e parte do trabalho apresentado no 5° Seminário sobre Sustentabilidade_UNIFAE, Curitiba, 2010. 2 Licenciada em Letras/Português, Mestre em Ciências Agronômicas e Professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected].

184 Ações empreendedoras no meio rural ações empreendedoras como sendo um dos movimentos necessário para a comunidade pesquisada, as quais já se encontravam em desen- volvimento, no entanto, não ainda percebidas pelos próprios membros da comunidade. O reconhecimento elevou o grau de produção e ao mesmo tempo ampliou as formas de trabalho o que viabiliza que novos mercados locais e globais possam ser almejados, pois após a pesquisa os próprios agri- cultores saíram em busca de novos espaços. Introduziram sua produção e produtos no mercado, ao mesmo tempo em que se fizeram presentes em feiras e demais eventos realizados na própria região de Morretes. O empreendedorismo, além de propiciar uma fonte de fomento de agentes nas diversas atividades que o espaço agrário proporciona, também contribui com às questões que envolvem, desde a sobrevi- vência das pessoas que vivem nesse espaço até a produtividade. O foco da investigação pautou-se em analisar as ações empreendedo- ras, diagnosticadas a partir de pesquisa realizada com as famílias do As- sentamento Nhundiaquara – Gleba Pantanal, situado no município de Morretes-PR. Subjacentemente, o Curso de Gestão e Empreendedoris- mo, do Setor Litoral da UFPR, possibilitou a escolha do presente estudo, pois a partir do Plano de Ação Docente, foi possível atrelar o presente estudo ao mesmo tempo em que foi possível abrir novos espaços para a produção de conhecimento e de reflexão entre os discentes, docentes e comunidade no seu todo, culminando assim com a necessidade de bus- ca e implementação de alternativas que promovam a sustentabilidade ambiental, econômica e social. A problemática em evidência pressupõe novas competências produ- tivas, organizacionais e a interação da agricultura familiar com as demais atividades desenvolvidas nesta Gleba, ao mesmo tempo em que promo- ve o fortalecimento da entidade existente: a Associação Prosperidade. Durante a investigação foi possível conhecer a situação local em que se encontrava a agricultura (gestão e recursos), o papel desempe- nhado pela família nesse contexto, seus desafios e suas potencialidades,

185 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações na perspectiva de fortalecer capacidade empreendedora e a agricultura local, considerando as histórias de vida, a realidade apresentada e as ex- pectativas das famílias assentadas. Concomitantemente foram analisadas as ações desenvolvidas no que diz respeito às iniciativas no sentido de apresentar sugestões de ações que poderiam reverter em benefícios para a coletividade de forma mais cooperada. As vertentes empreendedoras foram exploradas como meio para estabelecer relações com o empreendedorismo e diagnosti- car as ações empreededoras praticadas e não praticadas. Morretes apresenta-se como um grande laboratório de estudo nos aspectos: homem e natureza por ser uma região instigadora diante de sua diversidade cultural, social e biológica.

O Assentamento Nhundiaquara A constituição e os motivos de criação do Assentamento Nhundia- quara se deram a partir da desapropriação das áreas de terra que consti- tuíam a antiga Usina de açúcar de Morretes S/A de propriedade da Com- panhia Comercial São Paulo Paraná, terras estas que foram arrendadas pelos ex-funcionários da Usina e pequenos agricultores da região. Con- siderando, que o município de Morretes-PR teve posição de destaque no comércio, na indústria e no entroncamento rodoferroviário, devido aos dois Portos de relevância do Sul do País, os quais tinham seu funcio- namento em um passado próximo e que acabou por um esvaziamento econômico. Assim, os agricultores sem terra do município partiram para a implantação de um Projeto de Reforma Agrária. Borsatto (2007), nos traz a luz o espaço agrário que hoje se configu- ra como o Assentamento Nhundiaquara, ele relata que nos anos 40 foi instalada no município uma usina de açúcar, usina esta que de emprego para mais de mil e seiscentas pessoas sendo fechada no final dos anos 60. Após seu fechamento esta área foi desapropriada passando a se de responsabilidade do MDA/INCRA.

186 Ações empreendedoras no meio rural

Material e Métodos A metodologia utilizada foi a partir da pesquisa qualitativa, para a qual realizou-se: análise documental, levantamento de dados bibliográ- ficos em que foram pesquisados temas acerca da agricultura familiar, pluriatividade, agroecologia e empreendedorismo. A pesquisa de cam- po procedeu-se com entrevistas semi-estruturadas, considerando as próprias histórias de vida das famílias dos assentados entrevistados. O período compreendido entre início e final do estudo ao qual o presente artigo remete-se foi de março de 2007 até junho de 2008, con- tudo, após o segundo trabalho realizado com a mesma comunidade a partir do Projeto Sem Fronteiras, nos anos de 2009 e 2010, foi possível detectar os avanços das famílias no que diz respeito a qualidade de vida, desenvolvimento das atividades e participação nos fóruns de direito. A amostragem de um universo de 42 famílias foi de 11 (onze) famí- lias pesquisadas em que foi possível trazer como resultado as seguintes afirmações: as tarefas e atividades são exercidas pelas próprias famílias; suas produções se destinam ao consumo e ao mercado, desenvolvem atividades de agricultura, pecuária, artesanato. Num segundo momento foram estabelecidos alguns contatos com a comunidade antes do ingresso efetivo para a pesquisa de campo, ou me- lhor, da realização das entrevistas semi-estruturadas o que possibilitou compreender a situação local para a busca de novos conhecimentos. A entrevista semi-estruturada foi utilizada como um meio mais efi- caz, pois permite a espontaneidade dos entrevistados, gerando assim alguns momentos para a realização de uma entrevista informal como forma de se obter mais informações sobre a comunidade em geral. O embasamento teórico para a construção dos processos metodo- lógicos foram a partir da Pesquisa Qualitativa, em que Thiollent (2007) a ressalta como sendo um estudo de reflexão, pois a teoria em consonân- cia com as pesquisas semi-estruturadas possibilita a aproximação com a realidade. Corroborando, Minayo (2007) enfatiza que a pesquisa qualita- tiva oportuniza a interação e a compreensão entre homem e natureza.

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A Perspectiva Agroecológica como Alternativa para o Desenvol- vimento Rural Sustentável De acordo com Costabeber; Caporal (2002, p. 2), é possível abstrair o conceito oficial de Desenvolvimento Sustentável do Relatório Brun- dtland elaborado em 1987, em que enfatiza que o crescimento econô- mico deve estar presente na noção de sustentabilidade, e assim, para que o desenvolvimento possa ser sustentável deve estar atrelado ao crescimento econômico, a distribuição da riqueza e a preservação am- biental. Subjacentemente, os autores afirmam que o “desenvolvimento sustentável é aquele que satisfaz as necessidades da geração presen- te sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer suas próprias necessidades”. Os autores mencionados acima contribuem teoricamente com a visão de que a agroecologia e a sustentabilidade possibilitam a busca constante de novos pontos de equilíbrio para os possíveis conflitos, o que pode atribui-se ao processo de interação entre os assentados, pois a conhecimento, entendimento e compreensão diante das relações hu- manas perpassa por caminhos diversos antes mesmo de suas redistri- buição pelo INCRA ao mesmo tempo em que as dificuldades existentes na região não faziam parte de seus conhecimentos. Da mesma forma em que também não existia, ainda, a concepção de associativismo e coope- rativismo por algumas das famílias, as quais resistem em manter a indi- vidualidade em seus processos e serviços, dificultando assim os avanços para a comunidade de modo geral. As demandas oriundas do Programa de Reforma Agrária também é motivo de conflito em que alguns deles anseiam demais e outros vão assimilando lentamente estas questões. A sustentabilidade pode ser encarada por diversas formas, as al- ternativas de atividades advindas da própria agricultura familiar como forma de obter renda, porém respeitando o entorno que serve de sobre- vivência e sustentação das demais famílias e a busca pela alternativa de produção ecológica como forma de agregar valor às suas produções. No que se refere a agricultura familiar, ainda Costabeber; Caporal (2002) apontam características essenciais que a definem, como sendo a

188 Ações empreendedoras no meio rural família como executora das atividades, como pertencimento da posse em seus laços de parentesco ou mesmo matrimônio em caso de faleci- mento ou aposentadoria dos responsáveis pela produção, Portanto, há uma combinação entre valores de uso e de produção e reprodução, di- ferente da lógica existente na agricultura capitalista. Para Xavier; Dolores (2001), a agricultura depende dos recursos na- turais, dos processos ecológicos, do desenvolvimento técnico humano e do trabalho. Desta forma, a sustentabilidade na agroecologia se desen- volve a partir de dois componentes essenciais: a ambiental e a social. Do que se pode entender que depende tanto dos recursos físicos quanto dos recursos humanos. De acordo com Moreira; Carmo (2004), o desenvolvimento rural sustentável deve ser uma estratégia que nasça a partir da realidade e identidade de cada local, assim utilizar a agroecologia como forma de sustentabilidade poderá ser diferente em cada região, dependendo da identidade etnoecossistemica de cada região. Considerando ainda os autores mencionados no parágrafo anterior, o conceito de desenvolvimento rural baseia-se no descobrimento, sis- tematização, análise e fortalecimento dos elementos, os quais possam oferecer resistência local ao processo de modernização agroecológica fortalecida pela ação social coletiva. A idéia de sustentabilidade teve sua origem no entendimento de que os impactos ambientais gerados pelo desenvolvimento da socieda- de aceleraram-se a partir de meados da metade do século XX seguindo a partir daí uma trajetória crescente ao longo dos anos. Assim, o termo sustentável refere-se somente ao plano ambiental, “indicando a necessi- dade de as estratégias de desenvolvimento rural (como antes definido) incorporarem uma apropriada compreensão das chamadas ‘dimensões ambientais” (NAVARRO, 2001, p. 89). De acordo com Navarro (2001), o recorte rural urbano tende a de- saparecer por entender que o limite vai para além dos horizontes terri- toriais, pois o desenvolvimento rural ancora suas mudanças em diversas esferas da vida social.

189 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Apesar do conceito de sustentabilidade estar em alto grau de uso e com elevado grau de divulgação na contemporaneidade, a utilização do termo desenvolvimento sustentável na agricultura ainda está um tanto quanto obscuro. Porém, o que reflete é que há problemas de sustentabi- lidade da agricultura junto aos assentados da reforma agrária na região litorânea do Paraná, neste caso, mais precisamente em Morretes-PR, no Assentamento Nhundiaquara, Gleba Pantanal.

Resultados e Discussão

A Região de Morretes A fundação do povoado de Morretes foi em 1721, contudo já houve ocupação efetiva do seu território por mineradores e aventureiros pau- listas, no ano de 1646, período no qual foram descobertas jazidas de ouro na região (CARNEIRO, 2007). A partir de meados do século XVIII, os parnanguaras, capitão Antô- nio Rodrigues de Carvalho e sua mulher Maria Gomes Setúbal, estabe- leceram-se em Morretes, onde construíram uma capela dedicando-a a Nossa Senhora do Porto e Menino Deus dos Três Morretes, abençoada pelo padre Francisco de Meira Calassa em 21 de julho de 1769. No período compreendido entre 1811 à 1832, o comércio e a in- dústria, particularmente o beneficiamento de erva-mate e a indústria de aguardente, sobrepujavam as demais atividades. Em 1º de março de 1841, através da Lei Provincial n.º 16, Morretes foi elevada à categoria de município, com território desmembrado de Antonina. A instalação oficial se deu no dia 05 de julho de 1841. A partir da Lei Provincial n.º 188, de 24 de maio de 1869, Morretes foi elevado à categoria de cidade, porém sua denominação foi alterada para Nhun- diaquara, mas, pela Lei Provincial n.º 277, de 07 de abril de 1870, voltou a denominar-se Morretes (CARNEIRO, 2007).

190 Ações empreendedoras no meio rural

A denominação Morretes é de origem geográfica e refere-se aos pequenos morros (morretes) que circundam toda a cidade. Este nome é conhecido desde o tempo de sua primitiva colonização (CARNEIRO, 2007).

Os Agricultores de Morretes Diante das referências adotadas para um breve estudo sobre os agricultores de Morretes, percebe-se que há predominância do trabalho familiar, sendo que algumas famílias utilizam crédito rural e têm depen- dência do mercado, considerando-se assim a exploração familiar mer- cantil. Porém, constata-se também a exploração familiar de subsistência em que o trabalho familiar é fundamental, contudo, o nível de tecnifica- ção deste tipo de exploração é baixo. Considerando a exploração mercantil autônoma, é importante ob- ter crédito e a produção para a família torna-se o mais importante. Já a exploração agrícola empresarial entende a terra como um bem negoci- ável e a produção direcionada para o mercado. Para Marchioro (2002), os agricultores de Morretes podem ser tipi- ficados como: “exploração familiar mercantil, pois dependem do mer- cado para adquirir grande parte de seus insumos e para vender os seus produtos, sendo importante o papel da família, em torno da qual se dá a organização do trabalho”. O modelo de agricultura praticado pelos agricultores os torna de- pendentes das culturas mercantis, fato que segundo Rosset; Altieri (2002, p. 321-322), “diminui substancialmente o potencial da agricultura sustentável de enfrentar, com sucesso as causas básicas da crise socioe- conômica e ambiental que atingem a agricultura”. A maior parte da produção destes agricultores de Morretes é des- tinada à comercialização, índice que varia de 80% a 95% segundo os relatos coletados, e destinados majoritariamente para outras regiões do estado (principalmente Curitiba), ou exportação, como o caso do gengi- bre exportado para a Europa (MARCHIORO, 2002).

191 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Contrargumentando com o autor acima citado, em uma das vivên- cias realizadas com os assentados da Gleba Pantanal foi possível consta- tar que a elevada produção de Açafrão está relacionada ao fato de que existem produtores certificados e autorizados para exportação do pro- duto. Em grande parte, o destino dessa produção é a França. Diante do embasamento teórico ressaltado pelos autores supra cita- dos é bom considerar alguns dados atuais para visualisar o quanto houve de mudança nas questões agropecuárias da região e contextualizar o pre- sente estudo com a realidade em que se encontra este espaço regional. Assim, o quadro 1, apresenta, como resultado preliminar, alguns dados do município de Morretes-PR. Considera-se que o Censo Agro- pecuário supre a carência de informações sobre os aspectos econômi- cos, sociais e ambientas das atividades agropecuárias, seja da produção agrícola ou da pecuária brasileira que pode auxiliar nas pesquisas como forma de constituição de dados quantitativos. Quadro 1. Aspectos socioeconômicos e ambientais de Morretes/PR.

N.º de estabele­cimentos 689 Área dos estabelecimentos 14.113 agro­­­­pe­cuários estabelecimentos agropecuários hectares N.º de estabelecimentos com lavouras perma- 450 Área de lavouras 2.350 nentes estabelecimentos permanentes hectares N.º de estabelecimentos com lavouras tempo- 481 Área de lavouras 1.860 rárias estabelecimentos temporárias hectares Área de 121 N.º de estabelecimentos 1.853 pastagens naturais estabelecimentos com pastagens naturais hectares Área de Matas e 459 N.º de estabelecimentos 7.087 florestas estabelecimentos com matas e florestas hectares Total de pessoal ocupa- Total de pessoal ocupado do com laço de paren- 1351 pessoas sem laço de parentesco 380 tesco com o produtor com o produtor pessoas Fonte: Censo Agropecuário 2006.

Aspectos Socioeconômicos do Assentamento Algumas entrevistas foram feitas individualmente, outras com a presença de vários integrantes da mesma família.

192 Ações empreendedoras no meio rural

Foram 35 pessoas que compuseram as 11 famílias entrevistadas, as quais possuíam idades variando entre 0 a mais de 60 anos, sendo 16 do sexo feminino e 19 do sexo masculino. Considerando os membros das famílias e sua faixa etária, pode-se ressaltar que o índice maior de pessoas compreendia as idades entre 36 a 59 anos, um fator positivo para o desenvolvimento das diversas ativi- dades que permeiam a vida destas famílias. Nesta amostragem, cinco pessoas encontravam-se com 60 anos ou acima, porém desempenham um papel importante na comunida- de, visto que contribuiam com suas experiências e seus conhecimentos adquiridos ao longo da vida, o que supostamente daria sustentação e fortalecimento para os mais jovens. Das 35 pessoas, que compuseram as onze famílias entrevistadas, apenas 18 trabalhavam no lote, dez trabalhavam fora e sete eram crian- ças. As dez pessoas que trabalhavam fora do lote buscavam trazer ren- da para as famílias enquanto os demais membros da família procediam com o processo de construção das casas, fator este que dificultou a pro- dução e as demais atividades de geração de renda. Considerando que os jovens saiam do assentamento, seja por ne- cessidade de trabalho, de estudo ou até mesmo pela busca de novas conquistas, há que se ressaltar a importância destes para auxilio no de- senvolvimento das atividades das famílias. Com relação ao grau de instrução, contatou-se que a maioria dos pesquisados possuiam o primeiro grau (ensino fundamental) incom- pleto e 20% das pessoas pertencentes às 11 (onze) famílias não haviam ingressado no sistema escolar, enfatizando assim a necessidade de insti- tuir um campo educacional para esta população. Constatou-se algumas deficiências que os assentados enfrentavam, como a ausência de atendimento médico e veterinário. Dentre as 11 (onze) famílias pesquisadas, obteve-se um total de 15 atendimentos, os quais configuravam-se da seguinte forma: 7 famílias atendidas pelo técni- co da EMATER, 5 famílias atendidas por sanitaristas e três famílias atendi- das por agrônomos. É importante ressaltar que os atendimentos podem ser um, nenhum ou mais de um por família.

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A chegada dos recursos para a construção das casas foi pertinente para o momento, no entanto há uma contradição: enquanto o Programa da Reforma Agrária solicita produção agrícola nos lotes, também limita- se o prazo para a construção das casas. Diante a tal fato, o desenvolvi- mento das atividades dos assentados na construção de suas moradias dificultou o desenvolvimento das outras atividades que poderiam dar sustentação para alimentação, higiene e outros. Dentre os pesquisados a atividades desenvolvidas estavam em tor- no da agricultura, da pecuária e do artesanato, em que as culturas per- meavam o plantio de mandioca, de banana, de maracujá, de pimenta, de milho, de arroz, de feijão, de hortaliças e de frutas, como por exem- plo: o maracujá. Com relação aos recursos sanitários, ainda não possuíam nem água encanada e nem esgoto, contudo a instalação de energia elétrica já se findou em algumas localidades e em outras encontra-se em fase de ins- talação. Outra atividade desenvolvida é a piscicultura, a qual além de ser uma alternativa a mais para a geração de renda, contribui positivamente com a alimentação das famílias e desenvolve assim um novo hábito de alimentação, que é o peixe de água doce (carpa e tilápia). É factível perceber a pluriatividade existente neste assentamento, cujo caráter inicial é para suprir suas necessidades básicas, entretanto abre-se a oportunidade para geração de renda e ao mesmo tempo para o cooperativismo. No entanto, o fortalecimento do associativismo também poderá trazer uma nova concepção para a organização de produtos e ser- viços da comunidade com relevância para a comercialização da produção familiar, o que seria um benefício para todos, assim como a produção arte- sanal (doces, farinha de mandioca, mel, arroz integral), podem agregar va- lor para serem comercializados em Morretes, Curitiba e regiões próximas. Os maquinários necessários ainda não foram adquiridos visto que a falta de recursos financeiros inviabiliza a aquisição, entretanto o cuidado com a limpeza das propriedades baseia-se na não utilização de agrotó- xicos e/ou venenos.

194 Ações empreendedoras no meio rural

Diante do resultado obtido na pesquisa realizada foi possível diag- nosticar a necessidade da criação do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA - em Agroecologia, para esta região, pois contribuirá para o desenvolvimento das pessoas, para a permanência dos jovens nos assentamentos, para a multiplicação de conhecimento entre os adultos e para o fortalecimento dos diversos tipos de atividades praticadas atualmente e para a criação de novas frentes de trabalho e renda, sejam elas ligadas diretamente a agricultura ou em atividades relacionadas. Assim, o Setor Litoral da Universidade Federal do Paraná, como tam- bém a recente unidade do Instituto Federal do Paraná, instalados no ­litoral paranaense poderão contribuir também com o avanço educacio- nal dessa comunidade.

Considerações Finais Partindo das questões levantadas na pesquisa, os resultados podem ser interpretados de diferentes formas, isto vai depender da leitura ser economicista, mercantilista, produtivista, enfim, se considerar fatores isolados do ponto de vista da representação desta parcela de pessoas diante a uma realidade imposta pela sociedade. Desse modo, a inserção na comunidade foi extremamente impor- tante para que se pudesse observar e vivenciar situações do cotidiano. Assim, foi possível detectar as formas e a divisão de trabalho, as alternati- vas existentes ou não existentes em determinadas famílias e em determi- nados momentos, todas as variáveis possíveis sobre o modo de vida dos assentados, suas necessidades e as condições em que se encontravam. As Políticas Públicas são primordiais para o desenvolvimento de co- munidades assentadas, pois se inserem em um mundo em que sonham serem incluídos na sociedade, porém as formas encontradas no Progra- ma de Reforma Agrária não se encaixam para este tipo de população, pois as burocracias são muitas e este tipo de clientela muitas vezes é desprovido de conhecimento por não ter acesso à educação.

195 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

A investigação possibilitou diagnosticar que o desenvolvimento das tarefas e demais atividades eram exercidas pela própria família, por- tanto o trabalho familiar auxilia no desenvolvimento das atividades e possibilita também a geração de renda para estas famílias. Durante as observações, as quais foram confirmadas com as en- trevistas semi-estruturadas, foi possível perceber que existia muita ex- pectativa com relação ao Programa do INCRA, contudo ainda falta mais credibilidade, pois não vêem a concretização de forma expressiva nas ações mais simples, por exemplo, melhorar as vias de acesso internas ao próprio assentamento para facilitar a entrada nos próprios lotes, escolas mais próximas, atendimento médico, apesar de existir um posto de saú- de um tanto próximo. Diante das principais atividades como: o plantio, a piscicultura, a criação de pequenos rebanhos, a produção frutífera e o beneficiamento e o processamento de produtos, desenvolvidas pelas famílias, possibili- tou traçar uma abordagem em torno da agricultura familiar e da pluria- tividade, apesar de suas produções serem sempre em pequena escala. Contudo há uma diversificação no que diz respeito às fontes de renda destes assentados, comprovados pela produção artesanal (farinha, do- ces, vinhos, entre outros). Há uma possibilidade bastante vasta para que se implante um pro- jeto de educação para estes assentados, visto que além desta Gleba existem mais outras cinco muito próximas que também poderiam se beneficiar de tal projeto. Isto poderia acolher e incluir os jovens; os quais poderiam permanecessem mais tempo com suas famílias, o que, além de auxiliar na agricultura familiar e demais atividades também lhes ser- viria como auto-estima; pois muitos anseiam por um futuro melhor. A organização dos assentados, a princípio se deu pelo sindicato criado com fim específico para “aquisição da terra”, posteriormente pela instituição da Associação Prosperidade, contudo, ainda no que diz res- peito às produções coletivas, há que se desenvolver e aprofundar temas o associativismo, o cooperativismo com foco na melhoria de geração de renda e acrescer de uma iniciativa da própria associação um investimen- to para a economia solidária.

196 Ações empreendedoras no meio rural

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197 Parte II

Diálogos de Pesquisa e Ensino

198 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor: uma experiênia pedagógica na Universidade Federal do Paraná (Setor Litoral)

Cristiane Rocha-Silva1 Marcia Regina Ferreira2

Introdução O colapso ambiental e sócio-cultural que vive a humanidade traz à tona a necessidade de repensar a forma de desenvolvimento e gestão da sociedade a partir de suas instituições, organizações e práticas. Esse contexto exige dos profissionais uma ampla visão do processo produ- tivo e das inter-relações institucionais, bem como dos impactos e po- tencialidades de negócios articulados com redes de desenvolvimento. A repercussão de tais exigências levanta desafios às universidades no que se referem à formação profissional as quais procuram adaptar seus currículos, técnicas de ensino e perfil docente para propiciar o desenvol- vimento de habilidades e competências aos estudantes. No entanto, o processo de formação profissional, embora preocupado com a inserção do egresso no mundo do trabalho, não deve pautar-se apenas em uma resposta imediata e sim, na internalização de valores e na reflexão sobre práticas e instrumentos profissionais, no contexto histórico e político do desenvolvimento das sociedades. Os estabelecimentos de ensino têm tido um papel importante na preparação e adaptação dos indivíduos segundo os interesses do capi- tal. Entretanto, com mudanças constantes e o colapso sócio-econômico

1 Administradora, Mestre em Administração e Professora na UFPR Litoral. E-mail: rochasilvacristiane@yahoo. com.br. 2 Administradora, Mestre em Administração, Doutora em Ciência e Professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected].

199 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações e ambiental que a humanidade vivencia, evidencia-se a necessidade de profissionais para repensar a gestão da sociedade como um todo e suas interações humanas e culturais. A Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral (UFPR Litoral) apre- senta na sua estrutura curricular uma composição diferenciada que pre- tende amenizar a fragmentação do conhecimento, a ênfase tecnicista na formação profissional e a visão unidimensional do ser humano, ou seja, propõe uma educação integral do ser humano. Em especial, o Curso de Gestão e Empreendedorismo visa desenvolver nos futuros profissionais uma visão sistêmica da gestão da sociedade contemporânea contextu- alizada no desenvolvimento histórico da humanidade. As características e os rótulos que envolvem os cursos de gestão e o conceito restrito de empreendedorismo como abertura de negócio próprio, levantam nos ingressos supostamente expectativas de um curso instrumental e po- tencializador de negócios individualizados, refletindo o valor utilitário- produtivista da sociedade contemporânea. No entanto, as expectativas dos ingressos no Curso de Gestão e Empreendedorismo, que em geral (para evitar repetição do termo no mesmo parágrafo) buscam técnicas e instrumentos imediatos da gestão de negócios carregados pela tradição passiva da escolarização anterior, levantam barreiras ao aprendizado e inquietação quanto à formação profissional, tanto no grupo de discentes quanto de docentes. Tal pro- cesso deve-se, em parte, ao rompimento com estereótipos da gestão econômico-administrativa, resultados de um processo de colonização ideológica do papel do gerente, subordinado aos interesses organiza- cionais, para coordenação e controle de seus pares. Ação essa legitima- da por meio de instrumentos tidos como objetivos e impessoais. A efetivação de uma abordagem mais crítica e capaz de estimular uma transformação do modelo atual passa por uma reflexão sobre o processo de ensino tradicional pautado na fragmentação e reprodução do conhecimento e na pseudo-apolitização e pacificação dos indivídu- os. O processo de negação do estabelecido em busca de alternativas não estabelecidas, por sua vez, levanta inquietações, resistências e críticas, em parte, por refutar mecanismos de pseudo-segurança para docentes

200 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor e discentes, como conteúdo disciplinar fixo e delimitado, avaliação pon- tual e quantitativa, relação dependente professor (sábio) e aluno (tábula rasa), passividade do ensino bancário. Nesse contexto, o presente trabalho traz o relato da experiência no módulo: “Educação e desenvolvimento do empreendedorismo local”, oferecido em 36 horas, na primeira fase, aos graduandos em Gestão e Empreendedorismo. A inclusão do módulo na primeira fase do curso visa apreender as expectativas dos estudantes ingressos e estimular reflexões sobre processos mentais naturalizados ideologicamente e re- fletidos nos valores internalizados no cotidiano, em particular sobre os temas empreendedorismo, educação e desenvolvimento. Espera-se com essas informações potencializar atividades na fase inicial do curso, referentes a introdução à profissão e ao mundo univer- sitário, desconstruindo estereótipos, ampliando a visão crítica dos estu- dantes quanto ao processo de gestão, assim como, uma nova aborda- gem no ensino da administração e do empreendedorismo, a qual pode ser caracterizada por uma pedagogia para a mudança (AKTOUF, 2005). Para tanto, tem-se como objetivo central do presente estudo iden- tificar a concepção do grupo sobre a relação entre as variáveis: educa- ção, desenvolvimento e empreendedorismo, verificando contradições e coerências no decorrer dos encontros a partir dos relatos escritos e orais. Nesse contexto, busca-se contribuir na análise da experiência do processo de ensino e aprendizagem de um módulo no curso de Gestão e empreendedorismo da UFPR - Setor Litoral - considerando a interação capital, sociedade e escola na construção do conhecimento do bacharel. O trabalho se estrutura em quatro partes, além da introdução e con- siderações finais, a saber: 1) A organização das leituras que fundamen- tam as análises sob a problemática das Instituições de Ensino Superior como agentes de socialização e preparação para o mercado, bem como a proposta da educação do século XXI através de seus pilares, saberes e a necessidade da abordagem existencial no ensino do empreendedoris- mo no ensino superior (As temáticas visam organizar o arcabouço con- ceitual para fundamentar a discussão acerca da experiência pedagógica

201 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações do curso de Gestão e Empreendedorismo.); 2) A descrição e organização do curso de Gestão e Empreendedorismo articulado com a proposta pe- dagógica do Setor Litoral, Universidade Federal do Paraná; e 3) A descri- ção das etapas metodológicas da experiência e coleta de informações. 4) Como resultado, evidenciou-se a contradição do discurso reflexivo e a internalização de valores e práticas, quando os estudantes reconstruí- ram o próprio discurso nos relatos orais e escritos. Por fim, a análise das atividades em sala permitiu a reflexão sobre o ensino do empreendedo- rismo e a elaboração de apontamentos diante do desafio educacional de formação profissional e educação integral do ser humano.

O Processo Educacional de Formação Profissional As discussões acadêmicas voltadas para a educação no ensino su- perior têm atraído atenção de inúmeros pesquisadores e docentes. Em particular, nos cursos de Gestão percebe-se um interesse pelos estudos quanto aos métodos e técnicas de ensino em sala de aula, as deficiên- cias cognitivas entre discentes, a composição de projetos pedagógicos coerentes com a formação de competências exigidas pelo mercado e o controle da evasão escolar (NUNES; FERRAZ, 2005; SILVA, 2005; OLI- VEIRA, MURITIBA; CASADO, 2005; GODOY et al., 2005; WALTER, TONTINI; DOMINGUES, 2005; ANTONELLO; DUTRA, 2005). Observa-se um predomínio de pesquisas as quais desconsideram a análise social e crítica que ultrapasse os temas de método e conteúdo tratados na sala de aula, em um âmbito mais profundo de análise. Isto desperta preocupação com a consciência de pesquisadores e docentes dos diversos setores culturais e sócio-econômicos ativamente influen- ciadores e presentes na atuação docente, no conteúdo e forma do cur- rículo e, consequentemente, nas limitações sócio-econômicas de eman- cipação de discentes e docentes. A desconsideração da análise crítica e social, na compreensão dos saberes e conteúdos da cultura escolar e da função do ensino como diferenciador de classes e papéis, reflete uma atitude ingênua ou naturalmente “positivista” (FORQUIN, 1993).

202 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor

A função dos estabelecimentos de ensino como agentes de so- cialização e preparação para o mercado de trabalho consolida-se na reprodução de valores que propiciam a adaptação e manutenção de estruturas sócio-econômicas estabelecidas. Dessa forma, questiona-se o instrumento escolar, desde conteúdos e métodos convencionais que propiciam certa “segurança” aos estudantes que obterão o diploma de bacharel. Entretanto, muitos diplomas são gerados do chamado “acordo de mediocridade educacional” em que “o aluno finge que aprende e o professor finge que ensina”. O sucesso desse processo está na alienação do estudante e do professor, com distanciamento da teoria e da prática e na separação da atuação profissional e o comprometimento com o desenvolvimento sócio-econômico ao seu redor. Tais questionamentos não são recentes, e diversos autores salientam a necessidade de rompi- mento com o processo de reprodução de conteúdos. No que diz respeito a conteúdos reprodutivos, na década de 60 des- tacaram-se os teóricos da Nova Sociologia ou Sociologia do Currículo (Inglaterra) e da Teoria da Correspondência (França). A escola enfrentou, nos anos 70, uma crise “deslegitimadora”, segundo Forquin (1993), com uma recuperação difícil e carregada de percalços nas décadas seguintes. O papel da escola é considerado eficaz, por Bourdieu (1998), na conser- vação do papel social ao fornecer legitimidade às desigualdades sociais e sancionar a herança cultural (capital cultural) como dons dos indiví- duos, ao contrário do discurso da “escola libertadora” que considera o sistema escolar como fator de mobilidade social. As críticas apontam a escola como aparelho estatal na função de legitimação e acumulação relacionando-se aos problemas centrais en- frentados pelo Estado e pelos meios de produção (APPLE, 1989). Nesta análise não podem ser desconsiderados os conflitos e contradições pre- sentes no próprio Estado, tampouco os interesses de diferentes grupos na difusão e fortificação de valores ideológicos que legitimem suas ações em meio à população. Assim, o Estado busca gerar um consenso entre os diversos grupos de interesse por meio de um processo contínuo de acordos e de luta ativa para manter a hegemonia (APPLE, 1989), acordos que levam a resultados, a reformas e a planos educacionais estatais os quais refletem os interesses de grupos dominantes.

203 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

O Estado aparece com um fator importante nos estudos da forma- ção ideológica nas escolas, pois atua sob pressões de instituições políti- cas e econômicas como mediador da acumulação do capital e ao mesmo tempo busca sua própria legitimidade, situação que propicia, segundo Apple (1989), a criação da hegemonia ideológica e a autonomia relativa da cultura. O processo de interação entre estado e capital e o reflexo no papel da escola está ilustrado na Figura 1. Figura 1. A interação Capital/Estado/Escola na reprodução do conhecimento

• Realiza investimentos sociais que amenizam as distor- ESTADO ções do ensino e focam o problema no indivíduo e não nos conflitos estruturais. Mediador do capital • Estratifica o conhecimento (mental e manual), clas- sifica os “desajustados” e aceita níveis de baixo rendimento desde que não • Acumulação e prejudiciais à geração de legitimação capital cultural . ESCOLA • Socializa cus- • Produz conhecimento tos e privatiza técnico-administrativo os lucros (cultura comercializável) e legitima por meio de experts a subordinação do trabalhador (“incapazes” de se organizarem) ao capital. • Reproduz conhecimento, valores, normas, padrões culturais, ideologias em favor da acumulação do capital (econômico e cul- tural). • Luta pela própria legitima- CAPITAL ção diante da população • Usufrui a reserva por meio da dissemina- de capital cultural e ção de uma ideologia de econômico e aloca os igualdade e mobilidade de indivíduos ajustados classe. pela escola

Fonte: ROCHA-SILVA, 2008

204 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor

O estado sofre pressões dos grupos dominantes para acumulação do capital que são refletidas em diversas instituições, inclusive na es- cola. Nesse processo, o currículo e a formação dos estudantes - embora existam resistência e conflitos - é alvo de programas de disseminação de ideologias coerentes com os interesses dos grupos dominantes. Exem- plos claros são citados por Apple (1989): os documentos governamen- tais Green Paper e Plano Ryerson, elaborados respectivamente no Reino Unido (1979) e nos Estados Unidos (sem data de publicação). Ambos os programas buscavam maior adesão da escola ao crescimento indus- trial. O primeiro, propondo uma melhor preparação da mão-de-obra industrial; o segundo, cooptar os professores para amenizar a cultura anti­­empresarial. Dessa forma, os estabelecimentos escolares assumem um impor- tante papel na transmissão ideológica. Tais ideologias envolvem valores, significados e normas filtradas e instigadas à reprodução. Forquin (1993) salienta que o indivíduo surge em um mundo preexistente que preci- sa se proteger do novo morador; para tanto, a transmissão dos valores culturais perpetuam sua existência. Ao mesmo tempo, o indivíduo ne- cessita se proteger do mundo. A socialização e a adequação aos valores culturais são imanentes e possibilitados pelas instituições (família, esco- la, etc.) nas quais o indivíduo se insere. Entretanto, os valores culturais reproduzidos da escola não se tratam do conjunto dos traços caracte- rísticos do modo de vida de uma sociedade. A cultura transmitida nos estabelecimentos escolares consiste na versão autorizada da cultura, ou seja, valores, qualidades e competências, valorados pela sociedade e que possibilita a inserção dos indivíduos “no mundo”. Os valores cul- turais transmitidos pela escola constituem o conteúdo substancial da educação, sua fonte e sua justificativa última (FORQUIN, 1993). O papel na transmissão de valores culturais/ideológicos não se dá de forma tão eficiente, como ressalta Apple (1989), pela existência de sub-culturas nas quais surgem resistências deliberadas ou não, nos dis- tintos grupos. A resistência informal se manifesta no ambiente escolar e no ambiente de trabalho e é compartilhada pelos membros do mes- mo grupo cujos elementos apresentam afinidades nos papéis sociais. A

205 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações aceitação desses valores reproduzidos pela escola ou no ambiente de trabalho levam os indivíduos a serem excluídos do âmbito social formal e contraditoriamente a se adequarem aos seus devidos papéis sociais perpetuando a estrutura dominante, na medida em que as resistências corroboram para a legitimação das diferenças. A Figura 2 apresenta a “Cultura na experiência vivida” dos grupos, segundo Aplle (1993), como resultados das resistências aos controles burocráticos para reprodução dos valores culturais/ideológicos e a ação das instituições e no interior nas mesmas. Figura 2. Cultura na experiência vivida

Normas de controle do trabalhador Alta gerência por meio de instrumentos burocrá- ticos de supervisão; separação do planejamento e execução e fragmen- tação do trabalho (automação).

Cultura do Cultura na experiência vivida trabalho segundo classe, raça e gênero.

Movimentos expressos como greves para aumento de salários

Escola: que pela Teoria da Correspondência Movimentos informais RESISTÊNCIA teria sucesso para maior controle do INFORMAL em adaptar trabalho e poder os indivíduos para aceitação Contestações não declaradas e passividade que interferem na produtividade frente aos e lucratividade do capital controles do capital.

Fonte: Elaborada pelas autoras baseada nos escritos de Apple (1989) A cultura do trabalho evidencia-se nas inter-relações informais no ambiente de trabalho e mostram a inexistência de um controle pleno do capital sobre o trabalhador. Os trabalhadores são obedientes às normas da organização (pontualidade, metas, autoridade); entretanto, uma re-

206 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor sistência calada acontece pela produtividade mínima ou abaixo do pos- sível, pelas cooperações de proteção em casos de quedas produtivas de indivíduos isolados, pelas contestações de autoridade com a queda na produção, ou ainda, pelo desvio de materiais da organização, entre ou- tros casos. Na escola, a resistência pode estar presente nos estudantes que dedicam o mínimo necessário aos estudos, ausentam-se frequente- mente das aulas ou manifestam falta de interesse pelos conteúdos. Os docentes manifestam resistências ao acrescentarem novos con- teúdos - ou suprimir outros - do plano pedagógico institucional e re- alizarem suas escolhas de conteúdo e forma do currículo como resul- tado dos próprios valores culturais assimilados (cultura na experiência vivida). Essa ação de “escolha” do docente, restrita ao ambiente em sala de aula, é limitada por inúmeros fatores sócio-culturais e econômicos, o que não desmerece os inúmeros estudos sobre como tornar mais efeti- vos os métodos de ensino-aprendizagem. Mesmo não desmerecendo seu valor, levanta-se o questionamento da real razão do baixo interesse dos alunos pelos conteúdos ou dos altos índices de evasão escolar. Nesse contexto de reflexão sobre o ensino e aprendizagem, prin- cipalmente, no que tange à formação do bacharel em gestão e o em- preendedorismo, aparecem iniciativas e propostas de novas vertentes de construção de conhecimento no enfoque do conceito e aplicação do estudo em empreendedorismo. Em especial, tanto a tese de Bueno (2005), ao propor que a consciência sobre o processo de reprodução do capital sobre as ações realizadas torna o trabalhador um empreendedor (BUENO, 2005), como a abordagem de Boava (2006) e Boava e Macedo (2006) sobre as dimensões epistemológicas do empreendedorismo e a necessidade dos estudos a partir da ontologia para evitar o reducio- nismo no tema ocorre também na tese de Souza-Neto (2008) acerca de se pensar o empreendedorismo a partir de nossas diferenças, na qual o autor contribui com elementos para um metamodelo de empreende- dorismo brasileiro. Tais construções de conhecimento sobre o empreen- dedorismo apontam para uma perspectiva do humanismo radical, em que se reconhece e trabalha-se com o conflito estrutural, os modos de dominação, a contradição e a emancipação.

207 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Esses estudos levantam o desafio da transformação sócio-econômi- ca vislumbrada a partir do questionamento e consciência do processo de formação profissional e os reais alicerces da estrutura social vigente. Essa visão aparece destoante do paradigma predominante nos estudos da área, segundo o qual o empreendedorismo aparece como criação de ri- queza por meio da inovação e crescimento econômico (DORNELAS, 2003) como ensino voltado para a formação de profissionais que irão buscar emprego no mercado de trabalho (DOLABELA, 1999), ou ainda como ca- racterísticas pessoais do comportamento do indivíduo (DRUCKER, 1987). Ademais, Dolabela (1999, p. 35) afirma que “...muitas das nossas institui- ções de ensino estão distanciadas dos ´sistemas de suporte´: empresas, órgãos governamentais, financiadores, associações de classe, entidades das quais os pequenos empreendimentos dependem para sobreviver. As relações universidade-empresa, essenciais na formação de empreende- dores, são incipientes no Brasil.” Tais definições contribuem na difusão ideológica, fortalecendo os gar- galos do sistema capitalista e legitimando valores individualistas e deter- ministas não questionadores do sistema sócio-econômico. Nesse sentido, o desenvolvimento, enquanto melhoria da qualidade de vida do grupo social, é camuflado pelo aumento no fluxo de riquezas com aumento da desigualdade socioeconômica. Ao contrário, o desenvolvimento endóge- no propicia a melhoria nas condições de vida da população, o acesso à educação e aos serviços de saúde, transporte, aos bens culturais e ma- teriais por meio das iniciativas de mobilização do grupo onde o funda- mento é o protagonismo e a autonomia da própria comunidade (ZAPATA, 2007), inclusive tomando parte nas decisões e planejamento de políticas públicas. A comunidade é aqui vista como local de conflitos e contradi- ções sociais ao contrário da visão muitas vezes romantizada dos laços de fraternidade. A interação na comunidade, da qual o estudante é membro atuante, deve se relacionar com o currículo profissional discutindo-se os problemas e as formas de intervenção, permitindo ao indivíduo relacio- nar seu saber com o conhecimento global. No intuito de despertar para a consciência dos desafios locais e importância dos traços regionais como fundamento do processo educacional do profissional cidadão.

208 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor

Universidade, Pilares, Saberes na Educação e a Formação do Empreendedor no Século XXI Ao discutir a educação e desenvolvimento na formação do bacharel de Gestão e Empreendedorismo no século XXI é importante ter como idéia guia a responsabilidade das universidades para com a sociedade. No entanto, os questionamentos sobre a universidade e sua missão são antigos. Bartholo (1992) apresenta que desde 1800, Humboldt discutia sobre o humanismo idealista (formação da autonomia ética) e trazia uma reflexão crítica sobre a educação científico-tecnológica do mundo moderno. Para ele, é no sistema educacional que se expressa o caráter moral de uma nação. No entanto, aqui a palavra “autonomia ética”, é para Humboldt, a permanente expressão de uma autoconstrução da pessoa, cuja autonomia espiritual pressupõe “solidão e liberdade” como metáfo- ras da “destutelarização do intelecto”. Assim, surge a importância do agir eticamente na formação universitária, sendo a ciência o caminho da au- toformação ética da pessoa, onde há uma unidade de ensino e pesquisa e uma liberdade de aprendizagem e, não simplesmente a liberdade de ensino que ocorre na escolarização da universidade. Bartholo (1992), ao estudar Humbold, observa que essas prescrições do Estado moderno introduziram imposições ou hábitos nas pessoas fazendo com que “esperem sempre mais ensinamento alheio, direção alheia, ajuda alheia do que elas próprias pensem caminhos alternativos”. A eliminação de um horizonte de possibilidade para uma formação da autonomia ética da pessoa na modernidade decorre da perversão da liberdade pela homogeneização e uniformização das situações, pois a liberdade de ação esvazia-se de conteúdo existencial quando fica su- jeita a uma pré-moldagem institucional que elimina a diversidade de situações diante dos quais os indivíduos agentes se defrontem. A universidade, segundo Sousa Santos (2004), precisa trabalhar a fa- vor das humanidades como eixo da cultura universitária e perceber que, enquanto instituição social, efetivamente incorpora uma missão civiliza- tória com responsabilidade perante a sociedade e a cultura. Nessa pers- pectiva, reforma democrática e emancipatória desenvolverá uma ação

209 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações renovada. Isso significa, para o autor, que a universidade terá de avançar além do desenvolvimento moral (como a universidade escolástica), do desenvolvimento cultural (como a universidade de arte-cultura) e do desenvolvimento econômico (como a universidade de pesquisa), para alcançar o verdadeiro desenvolvimento social sustentável. Isso implica, segundo Sousa Santos (2004), uma nova relação comunidade e univer- sidade, a troca de saber por meio da ecologia dos saberes, a pesquisa- ação e também uma reorientação solidária da universidade, tanto na formação dos estudantes como em suas atividades de pesquisa e exten- são. Por essa nova relação e pelo reforço de sua responsabilidade social, a universidade do século XXI será menos hegemônica, mas não menos necessária que foi em séculos anteriores. Nicolescu (1997), ao apresentar a universidade como agente do de- senvolvimento em uma perspectiva humanista, oferece uma nova visão sobre a construção do conhecimento nas universidades, destacando o caminho da autotransformação, orientação para si, para a unidade de conhecimento e para a criação de uma nova arte de viver. Esses novos pilares da educação para o século XXI envolvem o aprender a conhecer, aprender fazer, aprender a conviver e o aprender a ser. Esses quatro pilares da UNESCO e saberes apresentados por Morin (2001a, 2001b, 2004) são próximos aos postulados Humboldtiano da li- berdade para a aprendizagem, segundo os quais o estudo não é simples transmissão de saberes estruturados, mas sim um compartilhar de uma forma existencial que rompe com o ensino de simples acumulação quan- titativa do conhecimento. Para Bartholo (1992), o princípio que norteava Homboldt não era a quantidade de conhecimento que alguém domine, mas sim sua postura na busca da verdade. O recente relatório da UNESCO da Commission internationale sur l’education pour le vingt et unième siècle (Comissão internacional sobre a educação para o século XXI), presidida por Jacques Delors, enfatizou fortemente esses quatro pilares como um novo tipo de educação – a transdiciplinar - que não serve apenas para fornecer pessoas qualificadas ao mundo da economia, ou seja, não se destina ao ser humano enquanto agente econômico, mas enquanto fim último do desenvolvimento, conforme mostra o Quadro 1.

210 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor

Quadro 1. Os quatro pilares da educação e saberes envolvidos

Quatro pilares Tipos de conteúdos Saberes envolvidos Aprender a conhecer Fato, conceito, princípio Saber saberes Aprender a fazer Procedimento Saber fazeres Aprender a ser e a conviver Valores e atitudes Saber ser e saber ser no convívio com o outro Fonte: Quadro resumo criado a partir das formulações de Delors (1999) e Zabala (1998); Elaborado pelas autoras. Nesse sentido, os tipos de conteúdos da aprendizagem e seus sig- nificados são ampliados para além da questão do que ensinar e a cons- trução de conhecimentos, encontrando sentido na indagação sobre por que ensinar (FREIRE, 1996). Desse modo, acabam por envolver os obje- tivos educacionais, definindo ações no âmbito concreto do ambiente de aula, reconhecendo a importância de que o conhecimento precisa ser vivido e testemunhado pelo acadêmico. Esses conteúdos assumem o papel de envolver todas as dimensões da pessoa, caracterizando as seguintes tipologias de aprendizagem segundo Zabala (1998): factual e conceitual (o que se deve aprender?); procedimental (o que se deve fazer?); e atitudinal (como se deve ser?). Esse novo tipo de conteúdo, essas novas visões sobre a educação no século XXI, relacionam-se com um novo paradigma no estudo e na formação do bacharel em Gestão em Empreendedorismo, pois rompe- se com a visão tradicional positivista (tanto do viés econômico como comportamental) e parte-se para a noção do existencialismo. O existen- cialismo tem como característica a inclusão da realidade concreta do homem (sua mundanidade e angústia). Dito de outra forma, na abor- dagem existencial há o predomínio do humano, e por isso, o estudo e reflexão da realidade concreta são significativos para a construção do conhecimento do bacharel (Figura 3). A abordagem existencial e os pilares e saberes na educação do sé- culo XXI são os elementos direcionadores para a formação integral do ser humano e o respeito pela vida no projeto empreendedor. Torna-se importante o entendimento de que o conceitual é teoria, e como teoria é apenas uma ferramenta. Ser é vida (saberes, atitudes, procedimentos, renovação e emanação), envolve o agir, desenvolver suas próprias capa-

211 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações cidades, ou seja, “proceder de si mesmo” a partir de uma racionalidade substantiva (GUERREIRO RAMOS, 1983) e não apenas instrumental como os cursos de gestão acabam por desenvolver (AKTOUF, 2005). Figura 3. Elementos que contribuem na formação do bacharel em gestão e empreende- dorismo

ABORDAGEM EXISTENCIAL PILARES E SABERES DA EDUCAÇÃO DO SÉCULO XXI

PILARES Aprender a conhecer Aprender a fazer Dimensão Aprender a viver juntos Ambiental Aprender a ser

Dimensão Individual SABERES O conhecimento (erro e ilusão) Dimensão O conhecimento pertinente Grupal/ A identidade humana Organizacional A condição humana A incerteza Projeto Empre- A condição planetária endedor A antropo-ética

Fonte: Adaptada de Boava; Macedo (2006); Elaborada pelas autoras. Para Boava; Macedo (2006), o empreendedor não nasce empreende- dor, ele torna-se. Os fatores ambientais ou grupais/organizacionais são meio - não fins - para a realização do projeto empreendedor do ser. No entanto, autores apontam que isso não equivale dizer que a abordagem existencial seja preponderante ou mais adequada que as outras. Apenas indica que ela não está baseada em identificar perfis, congruências ou similitudes de empreendedores. A ênfase aqui é o fenômeno, deixando que ele se manifeste, visando compreender o ser que empreende. Nesse enfoque existencial, a face econômico-administrativa do campo é uma entre muitas. Para os autores, existe um reducionismo sobre empreen- dedorismo e empreendedor visto como “objetos”, ou seja, ao ser vistos

212 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor como objeto de estudo da economia, psicologia ou da administração, há uma redução sobre o fenômeno do empreendedorismo, e isso faz com que não haja uma compreensão holística. Assim, é imprescindível considerar que essa temática é própria do ser humano e é transdiscipli- nar. Isso porque o empreendedorismo busca fora de si mesmo respos- tas as suas indagações, fazendo emergir dados que proporcionam uma nova visão de sua natureza e realidade. No processo de ensino e aprendizagem nas instituições de ensino superior as questões de conflitos deveriam ser sempre refletidas em relação ao fenômeno estudado. Nesse sentido, os paradigmas socioló- gicos contribuem significativamente para a formação do bacharel em Gestão e Empreendedorismo. Burrell e Morgan (1979) apontam que a sociologia da regulação, como posição dominante no Ocidente, reflete a posição dos teóricos preocupados em explicar a unidade e coesão da sociedade. Já os teó- ricos da sociologia da mudança radical enxergam a sociedade moder- na caracterizada por conflitos, modos de dominação e contradição. A sociologia da mudança radical contrapõe-se à sociologia da regulação visto que seu interesse básico é descobrir explicações para a mudança radical, para o conflito estrutural profundamente arraigado, para os mo- dos de dominação e das contradições estruturais que os teóricos veem como caracterizador da moderna sociedade. É a sociologia interessada essencialmente na emancipação do homem, de suas estruturas que li- mitam e impedem seu potencial de desenvolvimento. As questões básicas que a sociologia da mudança radical enfatiza, focalizam a privação do homem, tanto material como psíquica. É fre- quentemente visionária e utópica, naquilo que olha como potencialida- de, muito mais do que como realidade presente; está interessada no que é possível, mais do que com o que a coisa é; com alternativas, mais do que com a aceitação do status quo. O Quadro 2 sumariza a situação. Essas correntes teóricas, arcabouço de reflexão para a concepção do ensino superior, visam romper com a “servidão intelectual”, como apresentado por Guerreiro Ramos (1983) em sua crítica à redução socio-

213 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações lógica, ao destacar que a administração no contexto brasileiro deveria delinear os rudimentos de uma sociologia especial de administração que fugisse da redução fenomenológica, ou seja, da redução socioló- gica. Dentro dessa perspectiva, torna-se válido e pertinente estudar o empreendedorismo a partir da ontologia e da transdisciplinaridade, visando despertar mudanças na concepção de mundo de forma mais ampla no futuro gestor. Quadro 2. A dimensão regulação - mudança radical Regulação Mudança radical tem a ver com: tem a ver com: (a) o status quo (a) mudança radical (b) ordem social (b) conflito estrutural (c) consenso (c) modos de DOMINAÇÃO (d) INTEGRAÇÃO e COESÃO social (d) CONTRADIÇÃO (e) solidariedade (e) emancipação (f) satisfação de necessidade (f) privação g) realidade presente (g) potencialidade Fonte: Burrell; Morgan (1979).

O Curso de Gestão e Empreendedorismo da UFPR Litoral O esgotamento do currículo na visão moderna revela um momento de transição paradigmática que propicia o emaranhado de acepções em torno da formação profissional, na qual predomina a ânsia pela ruptura com o modelo tecnicista de fragmentação do conteúdo e impessoalida- de da aprendizagem. Emerge uma concepção humanista e crítica que repercute na prática reflexiva e democrática nos espaços educativos. No entanto, a crítica ao currículo moderno se mostra mais eficaz no discurso do que na prática educativa. Os espaços de reflexão sobre o próprio ser estão cada vez mais es- cassos com o turbilhão de informações geradas a todo o momento e que precisam ser acessadas e distribuídas com eficácia e efetividade. Em especial nos cursos de Gestão, o reduzido tempo de formação e as expectativas na aquisição de habilidades adequadas à função no mer- cado de trabalho banalizam cada vez mais a reflexão sobre o próprio

214 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor ser (ROCHA-SILVA et al., 2008). Este processo - e até a construção de tais expectativas - não ocorre por acaso, se analisado sob a concepção freireana de homem histórico e social, portanto, decorrente dos proces- sos de socialização e das acepções adquiridas no contínuo processo de educação bancária que reproduz o comportamento mecânico e passivo beneficiando a manutenção dos grupos dominantes. Entretanto, o ser humano é um ser inacabado, e ainda que condicionado pelo meio, não é determinado por ele (FREIRE, 1983; 1987; 1996). Ao pensar o ser huma- no histórico e socialmente condicionado, porém passível de mudanças ao superar a consciência ingênua do mundo e questionar seus fatores condicionantes, aparece a concepção de ser humano que fundamenta a proposta pedagógica do Setor Litoral. A Universidade Federal do Paraná - Setor Litoral - arrisca-se no cam- po educacional a romper com alguns padrões de pseudo-segurança e supressão de conflitos no campo acadêmico, entre eles a ruptura dos limites disciplinares do conhecimento com a introdução de módulos temáticos, o processo classificatório de avaliação e o currículo rígido e técnico, com o espaço curricular de gestão do estudante mediado por um professor e a introdução no currículo da formação cultural humanís- tica. O currículo baseia-se em três fases: 1) Conhecer e compreender; 2) Compreender e propor; 3) Propor e agir (UFPR LITORAL, 2008). A primeira fase é destinada ao reconhecimento do Litoral com visitas in loco e levantamentos das demandas sociais bem como a reflexão do papel profissional nesse contexto. Compõem ainda essa faz - em especial o curso de graduação em Gestão e Empreendedorismo - os temas rela- cionados à introdução ao mundo universitário e ao profissional. Um dos módulos, articulado na primeira fase do curso “Conhecer e compreender”, é foco do presente relato e foi vivenciado no segundo semestre de 2007. A segunda fase relaciona-se à fundamentação do exercício profis- sional no preenchimento de lacunas do conhecimento, pautados na pesquisa e verificação nos campos de trabalho. A terceira fase ainda aparece como desafio de execução relacionada à inserção profissional ativa e crítica, superando o atual modelo concen- trado e muitas vezes adaptativo do estágio.

215 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

A organização do curso acontece no grupo de docentes e servido- res técnicos que recebe o nome de Câmara Técnica do curso de Gestão e Empreendedorismo. Os arquivos da Câmara Técnica apresentam o curso de Gestão e Empreendedorismo organizado nas três etapas da estrutura pedagógica do setor com algumas especificidades como são relatadas a seguir: • FASE 1 - CONHECER E COMPREENDER – Percepção crítica da rea- lidade – 2 semestres; • FASE 2 - COMPRENDER E PROPOR – Aprofundamento metodoló- gico científico – 4 semestres; • FASE 3 - PROPOR E AGIR – Transição para o exercício profissional 2 semestres. O perfil do egresso relatado consiste no profissional “agente de de- senvolvimento que analise, reflita e intervenha nos espaços privados, públi- cos e de organização da sociedade civil. O gestor atua de forma diferencia- da no gerenciamento de organizações, exercendo as habilidades de gestão e empreendedorismo com foco na sustentabilidade e ética social” (UFPR LITORAL, 2007). Para tal perfil, são saberes necessários no decorrer do curso:Concei - to amplo e crítico de desenvolvimento e sustentabilidade; Os setores; Pro- cessos de gerenciamento e empreendedorismo; Instrumentos: informática, coaching, análise; Ética, cultura. Durante o curso, o aluno é levado a desenvolver as competências seguintes: • elaborar e gerenciar de forma autônoma projetos em meios organi- zacionais privados, públicos e não governamentais; • dialogar e orientar instituições e organizações na elaboração, imple- mentação e avaliação de projetos de desenvolvimento sustentável; • colocar em funcionamento práticas de gestão e de boa governança favoráveis ao desenvolvimento da competitividade das empresas do setor privado; • avaliar projetos de gestão das organizações públicas;

216 EDUCAçãO E DESENVOLVIMENTO NA FORMAçãO DO EMPREENDEDOR

• aplicar conhecimentos científi cos necessários à análise, concepção, estabelecimento e avaliação de novas atividades públicas e priva- das (descentralização, regionalização, ofertas de serviços públicos, parcerias público-privadas); • colocar em funcionamento as estruturas requeridas a um aperfei- çoamento dos processos de gestão das ONGs e das instituições de micro-fi nanciamento. O curso de Gestão e Empreendedorismo dialoga com a arquitetura pedagógica do Setor Litoral, ao mesmo tempo em que busca espaços que confi gurem a formação do egresso. A Figura 4 demonstra a intera- ção entre os espaços de aprendizagem (Fundamentos teórico-práticos, projetos de aprendizagem e interações culturais e humanas) bem como salienta os pressupostos do espaço de Fundamentos teórico-práticos sob coordenação da Câmara Técnica do curso. São eles: a) a aprendiza- gem multidimensional com objetivos conceituais, atitudinais e instru- mentais; b) os eixos norteadores da segunda fase da formação (Mundo do trabalho, Produção e Mercado e Desenvolvimento territorial); e c) os princípios que devem nortear a condução dos eixos temáticos. Figura 4. Organização curricular do curso de graduação em gestão e empreendedorismo, UFPR Litoral

1. fase: Inserção no Mundo Universitário, Conceitual reconhecimento da realidade local Procedimental Educação e desenvolvimento local atitudinal 2. fase: • Histórico-crítico Fundamento Mundo de trabalho • ética teórico-prático Produção e mercado • cidadania Desenvolvimento territorial • Desenvolvimen- to coletivo Estrutura norteadora solidário 3. fase: Projeto Político- propor uma política pública Pedagógico da UFPR Litoral propor uma alternativa de Interação desenvolvimento local cultural Projetos de propor um plano de negócio humanística aprendizagem realização de estágio

Fonte: UFPR LITORAL (2007)

217 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

O Curso de Gestão e Empreendorismo, na sua organização curricu- lar, evidencia a intencionalidade e perspectiva abordadas coerente com a arquitetura pedagógica da UFPR Litoral, o diagnóstico das demandas sociais regionais e as contribuições da formação do quadro de servido- res que participam da organização do curso. A descrição da efetivação do processo deverá acontecer de acordo com as etapas de conclusão das novas turmas, o que deve acarretar inúmeras mudanças nas ideias planejadas e relatadas no ano de 2007. Entretanto, a descrição aqui apre- sentada coloca-se necessária para compor a memória de tal processo de construção em contínua transformação.

Relato da Experiência Pedagógica para a Mudança no Curso de Gestão e Empreendedorismo

Metodologia A pesquisa de trabalho fundamenta-se na perspectiva qualitativa, mesclando técnicas de coleta de informações no intuito de captar de- clarações escritas do grupo em estudo. A condução do módulo “Educa- ção e desenvolvimento do empreendedorismo local”, durante os meses de outubro e novembro de 2007, com 8 encontros de 4 horas, permitiu acompanhar as reflexões de 30 calouros do curso de Gestão e Empre- endedorismo, contribuindo para o processo cíclico de elaboração e va- lidação das análises por meio de debates e mecanismos de expressão dos estudantes. A coleta de dados escritos decorre do recorte de dois momentos no decorrer no citado módulo. Uma fase inicial com a elaboração de mapas de associação de ideias a partir do relato oral e posteriormente escrito, com o estabelecimento das palavras-chave: educação, empreendedoris- mo e desenvolvimento anterior e posterior às discussões e críticas pre- sentes nessa relação, a partir da definição de que “Mapas de associação de idéias são instrumentos de visualização cujo objetivo é subsidiar o pro- cesso de análise e interpretação dos dados da pesquisa, a fim de facilitar a comunicação dos resultados” (VERGARA, 2005, p.157)

218 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor

No momento posterior, houve a aplicação do teste de evocação de palavras com termos-chave relacionados à discussão do módulo para apreensão indireta das concepções incorporadas. Os termos incluídos nessa etapa foram: formação profissional, currículo, trabalho, empreen- dedorismo, comunidade, Estado e desenvolvimento.

O teste de evocação de palavras é um método de coleta de dados por meio do qual o pesquisador solicita aos sujeitos da pesquisa que mencionem oral- mente ou por escrito, um determinado número de palavras relacionadas a uma expressão indutora. (COUTINHO, 2001 apud VERGARA, 2005, p. 243)

A análise das informações possibilita conhecer a construção de sen- tidos da referida turma, na finalização do primeiro semestre letivo do curso, refletida nas representações compartilhadas pelo grupo na práti- ca discursiva do cotidiano acadêmico e profissional.

A Experiência sobre a Relação: Educação, Empreendedorismo e Desenvolvimento A partir da visão inicial dos estudantes, elaborou-se um esquema que reflete a relação natural dos conceitos-chave: Educação, Empreende- dorismo e Desenvolvimento, como consequência positiva, reforçando a presença de interesses de diferentes grupos como únicos e determinan- tes. A Figura 5 expressa a construção coletiva nesse primeiro momento.

Figura 5. A relação naturalizada educação / empreendedorismo / desenvolvimento

Propicia a instrumen- talização para renta- bilidde do negócio e aumento da riqueza? Empreendedorismo

Repassa o conhecimen- to necessário Educação Desenvolvi- para melhorar mento Consequência as condições espontânea do de vida por ­aumento de riqueza meio do e dos índices de ­trabalho? educação formal?

Fonte: dados da pesquisa.

219 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Uma relação aparentemente lógica ao considerarmos que a educa- ção formal prepara o indivíduo e o capacita para a gestão do empreen- dimento, consequentemente propiciando o desenvolvimento coerente com o papel da escola em uma perspectiva da adaptação ao mercado e negadora do conflito e da transformação (APPLE, 1989; FORQUIN, 1983; FREIRE, 1983; BOURDIEU, 1998). A desconstrução de tal lógica acontece na medida em que questionamos o papel da escola enquanto domesti- cadora e castradora da criatividade e autonomia do indivíduo – produ- tora, portanto, de subordinados e não de empreendedores, no máximo de gestores que não questionam as consequências sociais de suas ações e naturalizam os processos exploratórios e ideológicos do sistema eco- nômico. De tal forma, limita o processo de desenvolvimento, pois não propicia o espaço da ação cidadã e do protagonismo solidário de trans- formação nos grupos sociais; ao contrário, o individualismo e a reação acrítica da estrutura funcional fazem fortalecer as estruturas de poder e a divisão social existente. Desconsiderar a relação contraditória presente neste tripé consiste em reproduzir de formar acrítica mais um discurso de transformação na organização curricular sem confrontar os impactos na estrutura sócio- econômica da sociedade, consistindo, portanto, divagar sobre as dificul- dades da educação tradicional, utilizando o mesmo processo ideológico de artificialização da transformação. A partir da crítica à relação natura- lizada, procede-se à análise do texto escrito dos estudantes, cuja indi- cação era a relação: educação / empreendedorismo / desenvolvimento antes e depois do ingresso no curso da UFPR Litoral. Foi possível obser- var que 22 estudantes relataram o mesmo movimento na dinâmica da reflexão. Referente ao processo mencionado na Figura 6; os estudantes demonstraram já se incomodarem ou perceberem as críticas na relação educação / empreendedorismo / desenvolvimento e um estudante de- fendeu a relação na Figura 5 e manteve sua posição. Observa-se um mo- vimento de pensar sobre a realidade concreta, existencial, identificando conflitos e levantando consequências da pseudo-apolitização (BOAVA, 2006; NICOLESCU, 1997), bem como anseio por uma educação huma- nista que busque alternativas para a formação integral do ser para sua colocação no mundo do trabalho e responsabilização na transformação

220 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor social (SOUSA SANTOS, 2004; GUERREIRO RAMOS, 1983; MORIN, 2001b, 2004; DELORS, 1999). A reflexão a partir do texto escrito permitiu identi- ficar críticas e proposições referentes à relação: educação, empreende- dorismo e desenvolvimento organizado nos seguintes mapas de asso- ciação de ideias, apresentados na Figura 6. Figura 6. A relação crítica e propositiva entre educação/ empreendedorismo/desenvol- vimento

Acrítico reforça e Estimula Consciente e comprome- reproduz o sistema de a crítica, tido com a transformação valores econômicos criatividade e potencia- Empreendedorismo Prepara su- lidades do bordinados indivíduo e acríticos Empreendedorismo intervenção social

Educação Desenvolvi- mento Educação Desenvolvi- Ruptura na mento formação pro- fissional

Reflete no crescimento da concentração e Reflete no crescimento da con- fluxo de riquezas centração e fluxo de riquezas

Fonte: dados da pesquisa. Dessa forma, avalia-se a construção do mapa conceitual como uma contribuição da desconstrução da relação naturalizada dos termos como a consciência por parte dos estudantes dos processos de disseminação ideológica como legitimação dos interesses do capital. No entanto, a consciência de tal processo e a externalização no discurso articulado, oral e escrito, não estiveram presentes no teste de associação de palavras, revelando­ contradição nos valores internalizados e reproduzindo a relação de subordinação na formação e na construção do currículo segundo as exigências formais do mercado de trabalho. Explicitam essa subordinação as exigências do mercado de trabalho: a associação da formação com a instrumentalização e o caráter periférico da formação humana, política e cultural na formação profissional; o Empreendedorismo como associação das características individuais e não questionadoras do impacto sócio-

221 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações econômico ligadas ao interesse privado; o Estado como provedor da ordem e regulação da vida social. A percepção do currículo regionalizado como parte restrita da formação com a incorporação de informações locais ­reflete a visão de comunidade ligada à região e ao grupo de pes­soas, ressaltando a predominância na associação com características ideais de dignidade, humildade, solidariedade, respeito, amor, laços familiares, não aparecendo os conflitos e contradições presentes na comunidade, predo- minando as associações anteriores às discussões presentes na Figura 5. Quanto ao termo desenvolvimento, houve indício de diferenciação dos demais ocorrendo uma associação por parte de 6 estudantes com uma perspectiva de melhoria da qualidade de vida da comunidade, mas ainda em um movimento minoritário, se comparado à perspectiva de cresci- mento econômico e de superação individual de empregabilidade.

Considerações Finais

A ruptura entre ciência e cultura, que se manifestou há três séculos na uni- versidade, é uma das mais perigosas. Por um lado, há os detentores de co- nhecimento puro e sólido; por outro, os praticantes do conhecimento ambí- guo e superficial. Essa ruptura reflete-se inevitavelmente no funcionamento das universidades que favorecem o desenvolvimento acelerado da cultura científica a custo da negação do sujeito e do declínio do sentido. Tudo deve ser feito no sentido de reunir essas duas culturas artificialmente antagônicas – a cultura científica e a cultura literária ou artística – de forma que possam transpor para uma nova cultura transdisciplinar, condição preliminar para a transformação das mentalidades. (NICOLESCU, 1997).

O questionamento da formação profissional e as contradições pre- sentes na construção do currículo universitário de Gestão e Empreende- dorismo da Universidade Federal do Paraná - Setor Litoral - exacerbam a necessidade de reflexão sobre a prática docente em um contexto de turbulência na organização sócio-econômica e ambiental que passa a humanidade. Nesse sentido, o presente trabalho relatou a experiência na condução do módulo “Educação e desenvolvimento do empreende- dorismo local”, utilizando-se dos registros escritos, diálogos, mapas de associação de ideias e teste de associação de palavras que permitiram capturar o processo de reflexão dos alunos recém-ingressos no curso de

222 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor

Gestão e Empreendedorismo sobre: a) a formação profissional do gestor empreendedor, b) a perspectiva sobre o curso e, c) o reflexo no desenvol- vimento regional. Ressaltam-se as limitações de tal análise pela não ma- turação das reflexões dos atores envolvidos (primeiro semestre do curso) e a necessidade de retornar ao grupo para proceder à reelaboração de suas concepções e ideias em outros momentos da formação. Os mapas de associação de ideias construídos e discutidos com os estudantes ex- plicitam a percepção predominante do desenvolvimento como conse- quência natural de ações empreendedoras individuais por sua vez recor- rentes de uma qualificação formal. As críticas ao modelo educacional e aos filtros presentes na organização curricular e transmissão de valores culturais que legitimam a concentração de riqueza e consequentemente contrapõe-se ao desenvolvimento aparece como uma ruptura na forma de pensar a relação: educação, empreendedorismo e desenvolvimento. No entanto, a reflexão no discurso não foi capaz de romper com a estru- tura de pensamento, refletida por meio da associação de palavras pos- terior à discussão, predominando o currículo voltado às exigências do empregador: o Estado visto como centro de poder e responsável pela ordem social; a visão de comunidade ligada à região, grupo de pesso- as ressaltando a associação com características ideais de solidariedade, não aparecendo os conflitos e contradições; a construção do currículo regionalizado, pilar da proposta institucional de organização curricular, que aparece na visão dos estudantes como uma parte restrita ou parcial da formação não profissional; a formação profissional, por sua vez, está ligada à instrumentalização para adequação ao trabalho, conquistas in- dividuais e mobilidade sócio-econômica. Desse modo, o trabalho relata a experiência de reflexão com calouros do curso de Gestão e Empreende- dorismo, a partir visão inicial sobre a formação profissional. As discussões nesse estudo remetem à necessidade de espaços de expressão e elaboração do pensamento compartilhado e disseminado ideologicamente para, a partir da crítica e desconstrução de pressupos- tos naturalizados, propiciar espaço de instabilidade e contestação que estimule a curiosidade como motor da construção do conhecimento por meio do protagonismo estudantil, consciente das contradições das ciências e dos conflitos presentes nas organizações sociais. Constata-se,

223 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações ainda, a internalização da prática discursiva como um desafio para a for- mação do profissional-cidadão, capaz de superar as contradições teóri- cas nas práticas no cotidiano. Constatou-se, na verificação indireta do processo de ensino e aprendizagem, a manutenção de pressupostos que evidenciam o enrai- zamento da visão dominante e dominadora. Nesse sentido, ressaltam-se a importância dessas reflexões no processo de ensino e aprendizagem para os desafios de superação da colonização ideológica social e histó- rica da educação brasileira, cristalizada na perspectiva do currículo tra- dicional. Assim, o discurso que apela para a mudança, o questionamen- to e uma lógica dita de “desconstrução”, como apresentado por Aktouf (2005), pode ser um caminho para a mudança no campo do ensino da administração, onde os gestores tornem-se de fato verdadeiros agentes de mudança. Por fim, a educação integral do ser humano, propõe construir um novo tipo de conhecimento. Um conhecimento, onde a reprodução é vista como absurda. Desta forma, a proposta da pedagogia para a mu- dança do Setor Litoral no curso de Gestão e Empreendedorismo cria es- paços para as opções de o ser humano se construir a partir da descons- trução de pensamentos condicionados/naturalizados, onde se predo- mina a busca de uma razão substantiva em detrimento da razão instru- mental. Nessa perspectiva, rompe-se a ideia do homo economicus para se pesquisar e ensinar o empreendedorismo e faz surgir a percepção so- bre formas (plural) de empreender no espaço vivido “in situ”, a partir de uma razão substantiva, de um ser consciente que escolheu empreender fazendo o que pensa e acredita sem um determinismo estabelecido.

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227 Enfoque fisioterapêutico na saúde da criança matinhense

Luize Bueno de Araujo1 Vera Lúcia Israel2 Magda Maciel Ribeiro Stival3

Introdução A cidade de Matinhos, do litoral do Paraná, conta com aproximada- mente 32 mil habitantes na baixa temporada e na alta temporada do ve- rão pode chegar a 100 mil pessoas. A inserção das pessoas na realidade local seja de modo permanente, moradores, ou como turistas, depende de fatores ambientais, sociais e econômicos entre outros, que afetam diretamente a dimensão de saúde do ser humano. Nessa realidade o desenvolvimento infantil fica intimamente ligado a vivência da família na região do litoral. Por exemplo, quando o clima está chuvoso, as crianças que freqüentam os Centros de Educação In- fantil não conseguem ter uma freqüência mínima adequada para rece- berem as estimulações nas dimensões necessárias (físicas, cognitivas, emocionais, entre outras) para seu desenvolvimento pleno. O crescimento populacional e as mudanças socioeconômicas no município de Matinhos desencadearam a necessidade das mulheres em adquirir outras atividades fora de casa para o aumento da renda familiar. Assim, os Centros de Educação Infantil e as Escolas municipais tiveram um aumento da demanda de crianças para passar de um e/ou dois pe- ríodos do dia nestas instituições, as quais se viram com a obrigação de proporcionar uma inter-relação entre criança, ambiente e meio social.

1 Fisioterapeuta. E-mail: [email protected] 2 Educadora Física, Fisioterapeuta, Doutora em Educação Especial e Professora da UFPR Litoral. E-mail: [email protected] 3 Fisioterapeuta da Secretaria Municipal de Educação e Cultura e Secretaria de Saúde de Matinhos/PR. E-mail: [email protected]

228 Enfoque fisioterapêutico na saúde da criança matinhense

Por isso estas escolas apresentam um papel fundamental no processo de desenvolvimento e maturação adequada da criança. Para atender a carência de desenvolvimento do Litoral do Paraná, foi implantado um campus em expansão da Universidade Federal do Paraná, no ano de 2005. O desenho da proposta educacional inovadora do Setor Litoral da UFPR foi totalmente voltado para o desenvolvimen- to regional sustentável, com a criação de vários cursos de graduação, e dentre eles o de Fisioterapia. A criação de um curso de graduação em saúde em uma proposta inovadora da Universidade com envolvimento direto com a comunida- de pode ser referendada quando se observa uma realidade regional do litoral do Paraná que apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) reduzido, implicando em baixa qualidade de vida para a popula- ção (Tabela 1), o que afeta diretamente a saúde da mesma e, de modo especial, das crianças que aqui vivem, pois estão ainda em processo de desenvolvimento global.

Tabela 1. Índices de desenvolvimento humano (IDH) geral, dos municípios do litoral do Paraná, comparados aos da capital do estado. Cidade IDH geral Antonina 0,79 Guaratuba 0,76 Guaraqueçaba 0,66 Matinhos 0,79 Morretes 0,76 Paranaguá 0,78 Pontal do Paraná 0,79 Estado do Paraná 0,79 Curitiba (capital) 0,86 Fonte: PNUD.

Desenvolvimento Devido à peculiaridade das regiões litorâneas, em especial Mati- nhos, a Universidade Federal do Paraná com seu Setor Litoral pretende, em um período de trinta anos, contribuir para o seu desenvolvimento

229 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações sustentável, por meio de um Projeto Político Pedagógico embasado na indissociabilidade do Ensino, da Pesquisa e da Extensão, e componentes curriculares fundamentais em todos os cursos ofertados pelo campus envolvendo os fundamentos teórico-práticos, as interações culturais hu- manísticas e os projetos de aprendizagem. Assim, o currículo baseado no trabalho por projetos pode ter aplicação direta na realidade social local e regional. Os eixos temáticos - Meio Ambiente, Educação e Saúde - estruturam a inserção de todas as atividades a serem realizadas pelo Campus, conforme segue na Figura 1 (UFPR LITORAL, 2008). A concepção curricular tradicional concebe para a educação um caminho a ser percorrido no tempo e no espaço escolar através do frag- mento, do estudo super-especializado das partes, que resulta na se- cundarização da concepção do todo. Os currículos são erguidos sob a égide das disciplinas científicas, com prejuízo de uma maior conexão dos saberes. Contrapondo-se a esse modelo de organização curricular, os currículos dos cursos ofertados na UFPR LITORAL têm sua pedra an- gular na construção do conhecimento sob uma visão sistêmica, a partir do todo contextualizado, mediado por um Eixo Pedagógico Central de- nominado Educação Universitária, Profissão e Sociedade. Estudando a sociedade em seu contexto globalizante, pretende-se que o estudante possa se apropriar do conhecimento histórico, social, político, filosófico de um determinado tempo, possibilitando a construção da síntese do ser humano na visão bio-psico-social (UFPR LITORAL, 2008). Figura 1. Organograma demonstrando as atividades a serem realizadas no Setor Litoral da UFPR. Desenvolvimento sustentável Região Litoral e Vale do Ribeira

Eixos temáticos

Saúde Meio ambiente Educação

Ensino - Pesquisa - Extensão

Fonte: elaborado pelas autoras.

230 Enfoque fisioterapêutico na saúde da criança matinhense

Neste processo de aprendizagem a ênfase da saúde é no concei- to atual ampliado de promoção da saúde humana. O que indica que a visão sobre a saúde das crianças do litoral do Paraná deve ter um foco inovador nos próximos anos. A condição de saúde destas crianças pode- rá ser termômetro indicador da ação eficiente e eficaz da Universidade Federal do Paraná aqui na região. A ligação do processo de ensino-aprendizagem da comunidade acadêmica com a realidade regional permite desenvolver etapas inte- gradas, indissociáveis, transpassadas e seqüenciais que permitirão aos sujeitos do processo um movimento entre o saber do senso-comum ao saber científico, tendo como ponto de partida e de chegada a prática social. A comunidade acadêmica vivencia as seguintes etapas (UFPR LI- TORAL, 2008). São elas: • Etapa I – Introdução ao Mundo Universitário e a Realidade Local. 1 Etapa: Introdução ao Mundo Universitário e a Realidade Local (Conhecer e Compreender). • Etapa II – Contribuições Científicas à Profissão.2 Etapa: Contribui- ções Científicas da Profissão (Compreender e Propor). • Etapa III – Contextualização Profissional. 3 Etapa: Contextualiza- ção Profissional (Propor e Agir). A proposta é constituir, a partir do contato com comunidades locais em todos os municípios da região, indicadores relacionados aos três ei- xos acima enumerados, bem como levantar seu comportamento a par- tir de procedimentos metodológicos quantitativos e qualitativos. Além de produzir conhecimento, deseja-se que o projeto possibilite parceria com os atores locais e contribua com as políticas e programas de melho- ria das condições de desenvolvimento humano da região. Os indicadores de saúde devem ser elaborados por um conjunto de projetos interligados nas dimensões ambientais, sociais, de saúde, de edu- cação, entre outras, especialmente os que envolvem o desenvolvimento infantil na escola enquanto nutrição, crescimento, capacidade de aprendi- zagem, vacinações, desenvolvimento motor e psicomotor, entre outros.

231 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

A Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral prioriza a formação do fisioterapeuta como um profissional humano, de saúde, pró-ativo, envolvido com a contextualização do indivíduo na comunidade, sensi- bilizado com suas questões pessoais e coletivas. Conhecendo então a realidade do desenvolvimento local, percebe- se a necessidade da ação da Fisioterapia para cumprir seu papel sócio- educacional direcionado neste caso para o desenvolvimento infantil. Esta ação está totalmente contemplada quando se estuda e intervém sobre e no desenvolvimento infantil das crianças e adolescentes da cidade de Matinhos, de modo especial no período no qual estão nas escolas.

Desenvolvimento Motor As estudiosas Haywood; Getchell (2004) descrevem o desenvolvi- mento motor ao longo da vida (Figura 2) como um processo seqüencial de transformações nos diferentes sistemas do corpo humano. Com o passar dos anos há um aperfeiçoamento dos movimentos autônomos e voluntários bem como nas posturas, até as habilidades psicomotoras, as quais incluem a locomoção e manipulação complexa, que são aperfei- çoadas durante o processo de maturação funcional. A evolução só ocor- rerá com uma intervenção adequada e favorável, de forma dinâmica, da criança com o ambiente físico/social, do organismo da própria criança, juntamente com as tarefas (atividades, exercícios, brincadeiras, entre outras) propostas no cotidiano de casa ou da escola. Figura 2. Evolução no desenvolvimento humano.

Fonte: Sciencephoto (s.d.).

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Na análise do desenvolvimento maturacional da criança e do ado- lescente existe a participação ativa do profissional da saúde que trabalha em parceria com os profissionais da educação e, de modo especial, com a família nessa fase do desenvolvimento infantil. Entre os profissionais da saúde destacamos o fisioterapeuta que, atualmente, tem uma atua- ção diferenciada com abordagem no conceito ampliado de saúde com ações inovadoras em sua prática profissional. Desta forma, procura atuar em novos ambientes que possam interferir no desenvolvimento infantil, direta ou indiretamente, dentre eles a escola. Então, a área da educação passou a ter demandas sociais e de saúde que indicam a necessidade da presença do fisioterapeuta no processo de promoção e prevenção em saúde e na inclusão. Piaget (1983, p.36) desenvolveu antes da década de 20, seguindo Lev Semionovitch Vygotsky (1896 – 1934), o seguinte pensamento:

A criança se desenvolve de maneira contínua desde os primeiros dias de vida. E é adaptando-se às coisas que o pensamento se organiza a si próprio e é organizando-se a si próprio que ele estrutura as coisas.

Este pensamento só foi chegar ao Brasil na década de 20, devido à revolução industrial que forçou a idealização da Escola Nova, sendo difundido somente em 1932 (MARTINS, 1985). Para Maria Montessori (1870 – 1952), a utilização de diferentes materiais utilizados de formas atrativas com cores, pesos, espessuras e tamanhos, além da estimula- ção precoce para aquisição de habilidades através da experiência com envolvimento das pessoas que a cercam. Também pode se desenvolver a disciplina envolvendo a criança durante uma atividade lúdica, respei- tando o seu ritmo e sua individualidade, desencadeando assim um de- senvolvimento pleno. O profissional da Fisioterapia dentro do processo de educação in- fantil deve buscar a inclusão tanto de crianças de 0 a 5 anos, ensino fun- damental de 6 aos 14 anos, e no ensino médio com os adolescentes, bem como de acadêmicos de graduação para a execução de atividades formativas de pesquisa, ensino e extensão, de modo indissociável, na comunidade local procurando a promoção da saúde e sua prevenção. Este profissional também deve buscar recursos lúdicos e criativos que

233 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações tornem esta experiência motora e psicomotora agradável e eficaz. Le- vando em consideração os diferentes ciclos da vida humana e suas in- terferências ambientais, cabe aos familiares e aos profissionais da edu- cação e saúde a busca da minimização dos riscos apresentados à criança na fase inicial da sua vida. Então, os primeiros anos de vida do ser humano são de fundamental importância para a aquisição de conhecimentos e habilidades; caracteri- zando, assim, mudanças marcantes nas dimensões cognitivas, motoras, sociais e afetivas (PELLEGRINI et al., 2005). Sendo assim, relacionado à criança pequena, podemos definir que o desenvolvimento, de acordo com o passar do tempo, desencadeará um aumento das possibilidades individuais de agir sobre o ambiente (VAYER; ROICIN, 1990 apud SILVA; SANTOS; GONÇALVES, 2008). De acordo Haywood; Getchell (2004), a maneira como as pessoas movimentam-se e se posicionam, está associada ao contexto que elas se encontram. Desta maneira, o movimento humano funcional surge com três componentes: auto-organização dos sistemas corporais, natureza do ambiente do executante e demandas da atividade a ser executada. Portanto, o comportamento motor resultante observado emerge ou se auto-organiza a partir das interações entre o indivíduo, o ambiente e a atividade-tarefa, compondo o modelo contextual. O modelo contex- tual (HAYWOOD; GETCHELL, 2004) procura explicar que o desenvolvi- mento depende da interação continuada do individuo nas suas relações ambientais, cumprindo determinadas tarefas em níveis diferentes de complexidades de acordo com o avançar da idade. Para manter saúde entende-se que todos esses aspectos devem estar em constante equilí- brio para o enfrentamento dos desafios cotidianos, por exemplo, quan- do bebê apresenta algum desconforto pode manifestar-se com o choro (PAPALIA; OLDS, 1981). Na superação das etapas de maturação neuromotora e músculo-es- quelética os conceitos funcionais permitem que o desenvolvimento psi- comotor leve a criança a sofrer transformações progressivas que envol- vem aspectos na organização psíquica e orgânica (SANTOS; GABBARD; GONÇALVES, 2001), tornando a criança um ser humano único.

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Visando um modelo de atendimento a comunidade, devido ao cres- cimento e a necessidade da população, ocorreu a parceria entre Univer- sidade Federal do Paraná Setor Litoral com a Prefeitura Municipal de Ma- tinhos/PR, onde a rede municipal de educação da cidade possui: 4200 crianças no ensino fundamental, 862 crianças nos Centros de Educação Infantil, totalizando em média 5062 crianças atendidas pela rede de en- sino municipal. No município de Matinhos/PR, há o desenvolvimento da Educa- ção Básica, onde abrange os centros de educação infantil que atendem crianças do zero aos seis anos de idade e o ensino fundamental inician- do com crianças com 6 (seis) anos de idade, indo do primeiro ano até o quinto ano no município referente. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, Lei 9.394/96) objetiva o desenvolvimen- to do aluno, com a formação adequada para exercício da cidadania e meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. A criança deve obter na educação infantil o desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social. Considerando o modelo contextual do desenvolvimento humano na sua aplicação na realidade local é importante rever as condições de saúde e aprendizagem da criança pequena nos centros de educação infantil (0 a 5 anos), as condições ambientais aonde estão localizados estes centros de educação infantil (CEIs) e as tarefas/atividades que são propostas para o desenvolvimento educacional destas crianças. Enten- dendo-se “educacional” como uma dimensão ampliada que envolve estímulos motores, psicomotores, emocionais, cognitivos, familiares e sócio-culturais que devem ocorrer dentro da escola. A caracterização da “criança matinhense” perpassa as vivências e os diferentes locais da cidade nos quais as mesmas crescem, ocupam, estudam e brincam, tendo assim características únicas com peculiarida- des próprias de cada fase de 0 aos 5 anos de idade. Um exemplo seria a diferença de renda entre os diferentes bairros de Matinhos. As crianças do Sertãozinho que aceitam práticas lúdicas antigas com maior uso da imaginação e utilização de canções de roda. As crianças do bairro Caio-

235 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações bá apresentam um perfil voltado ao “marketing”, ou seja, a mídia e as brincadeiras utilizadas são de acordo com o que as mesmas assistem nos desenhos animados e as canções são atuais. Outro fator que pode estar interferindo no desenvolvimento dife- renciado das crianças matinhenses (e está sendo observado em alguns projetos da Fisioterapia da UFPR - Litoral) é a qualidade de estimulação dentro do ambiente familiar e escolar. Em geral, o perfil familiar consiste na pouca disponibilidade de tempo e informação educativa dos pais em estar, brincar e orientar seus filhos, porque necessitam trabalhar, inclu- sive as mulheres, para aumentar a renda familiar. No ambiente escolar também se percebe a relação inadequada entre número de educado- ras e número de crianças dentro do Centro de Educação Infantil, o que traz um sobrecarga de trabalho ao profissional da educação limitando o tempo para a estimulação educacional. É possível observar ainda que nos Centros de Educação Infantil da ci- dade de Matinhos a estrutura física não está adequada, pois o número de crianças é maior do que as salas comportam. Além disso, muitos desses centros não possuem um ambiente externo para atividades de recreação. Também se observa que falta conforto ambiental, pois o clima é quente e não tem sistema de ventilação apropriado nos ambientes visitados. Observando as condições dessas instituições de ensino, cabe aos profissionais da área da saúde trabalhar para que as crianças tenham acesso a creches de boa qualidade, não só do ponto de vista pedagógi- co, mas também em relação às práticas de cuidado, de forma a minimi- zar os riscos à saúde. Cabendo lembrar que Maranhão (2000, p.118) cita que

O cuidado, interpretado apenas como higiene, prevenção de acidentes e oferta de nutrientes, era ‘acusado’ de ‘atrapalhar’ o desenvolvimento da ação pedagógica, por despender tempo dos educadores e impor uma rotina rígi- da, que restringia as atividades educativas aos intervalos que “sobravam”. A grande dificuldade que estava por trás desse discurso e dessas “acusações” era a decorrente da falta de definição do que significa cuidar de/educar be- bês e crianças pequenas, da efetiva integração entre saúde e educação, e que denunciava uma restrição nas concepções tanto de cuidado quanto de educação da criança.

236 Enfoque fisioterapêutico na saúde da criança matinhense

Assim Maranhão (2000, p.118) cita Campos (1994, p.35) que “refere que o cuidar inclui todas as atividades ligadas ao cotidiano de qualquer criança: ‘alimentar, lavar, trocar, curar, proteger, consolar, todas as ativi- dades que são integrantes ao educar’.” Com este processo em andamento, surgiu uma nova demanda para a área da Fisioterapia, onde ocorreu a necessidade da: avaliação precoce do desenvolvimento neuromotor e maturação objetivando a prevenção no ensino infantil, da avaliação postural das crianças do ensino funda- mental objetivando a orientação e o tratamento. Devido ao aumento de demandas das crianças, de avaliação ergonômica, da implantação da ginástica laboral, de orientação e encaminhamento das crianças e funcionários para a clínica escola, de orientação das famílias, houve a necessidade de um olhar global para a saúde (prevenção, promoção e tratamento) das crianças, funcionários e educadores. O município de Matinhos/PR passa por evoluções no processo de educação e saúde, apresentando uma equipe multidisciplinar (como por exemplo, fisioterapeuta, fonoaudióloga, psicóloga, nutricionista, profissional de educação física, professores de educação especial) que auxilia a Secretaria Municipal de Educação e Cultura deste município, e tem por objetivo a prevenção, orientação, triagem e encaminhamento, quando necessário, das crianças da rede municipal de educação. Assim, a Fisioterapia trabalha em parceria com a Universidade Federal do Pa- raná Setor Litoral, com projetos de aprendizagem, iniciação científica e atividades formativas, tratando das seguintes temáticas: educação em saúde, desenvolvimento motor, ergonomia e prevenção, ginástica laboral, método de estimulação shantala, orientação as mulheres com menopausa, avaliação postural, percepção corporal, dentre outros. Os objetivos principais destas atividades são: promover saúde, prevenir problemas de aprendizagem, promover a identificação precoce de atra- sos no desenvolvimento infantil; estimular habilidades motoras e psi- comotoras, prevenir e orientar sobre as Lesões por Esforço Repetitivo, melhorar a qualidade de vida, encaminhar orientações e tratamentos de problemas ortopédicos e posturais, sempre buscando como objetivo a educação em saúde.

237 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Os trabalhos são executados nos Centros de Educação Infantil e nas Escolas, não as retirando do ambiente e da rotina que estão acos- tumadas, e sim havendo uma inserção das pesquisadoras no ambiente da criança com atividades criativas e lúdicas para a execução do pro- cesso fisioterapêutico. Todos os trabalhos, por serem inseridos na rotina da criança, de acordo com a disponibilidade da mesma, contemplam o processo pedagógico de aprendizagem em todas as suas dimensões com maneiras diferenciadas de estimulação. Toda a ação educacional deve prever a inclusão de todas as crianças. E num sentido amplo a inclusão já é uma das preocupações da educação brasileira, porém ela precisa de fato ocorrer. As pessoas com necessida- des especiais precisam de condições educacionais especializadas para terem um rendimento efetivo. A legislação já obriga as escolas a darem condições de aprendizagem para todas as crianças. E os profissionais, mesmo da saúde, que estejam incluídos na educação precisam repensar suas práticas para atender as inovações atuais dos paradigmas emer- gentes da educação e da saúde. A Lei 9.394, de 20 de Dezembro de 1996, que dispõe sobre educa- ção inclusiva para pessoas com deficiência, colocada em vigor no ano de 2008, se concretizou devido há existência da assinatura e participação do Brasil, desde 30 de março de 2007, ao referente texto da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Segundo a referida lei, há como objetivo obter respeito e conscientização da sociedade, promovendo a inclusão escolar e social, alcançando assim a formação de cidadãos com capacidade de buscar formação, informação, trabalho, saúde, cultura, lazer, esporte, atingindo assim um maior grau de independência e mobilidade social igualitária. Após esta lei ter sido colocada em vigor, e a já existência de classes especiais no município de Matinhos, decorreu um aumento da valoriza- ção do trabalho desenvolvido pela fisioterapeuta da Secretaria de Edu- cação e Cultura em parceria com os alunos da Universidade Federal do Paraná, setor Litoral. O trabalho em parceria despertou um novo enfo- que para a área da Fisioterapia, e transformando em uma área extrema-

238 Enfoque fisioterapêutico na saúde da criança matinhense mente abrangente, desde o campo da reabilitação, clínico e ambulato- rial, mas como uma área capaz de se tornar disseminadora de educação e informação na comunidade. Transformou projetos aplicados na área técnica da Fisioterapia, em projetos com cunho social, no qual o obje- tivo maior a ser alcançado é a saúde da criança como um ser completo, abrangendo desde a escola até os familiares, proporcionando a melhora da qualidade de vida e produzindo um impacto positivo na relação da Fisioterapia e da Universidade com a comunidade, tanto no meio físico quanto no social.

Conclusão Todos os serviços oferecidos às crianças configuram-se a partir dos fundamentos sociais, políticos e econômicos, que delimitam alguns as- pectos dos ambientes educativos infantis referentes à organização e aos recursos destinados aos serviços da creche (DEMO, 1994; GUIMARÃES, 2002). O ambiente de um Centro de Educação Infantil deve estar dentro do contexto que a criança vive e presencia, sendo assim importante a re- lação do ambiente físico, com as atividades que serão realizadas, a rotina que será adotada, os recursos e materiais que serão utilizados, todos de acordo com a faixa etária a ser atendida (LORDELO, 2007) assim teremos um desenvolvimento dinâmico e contínuo, que irá contribuir positiva- mente no desenvolvimento da criança pequena. Devido à carência de espaços físicos, materiais, brinquedos, proce- dimentos educativos, entre outros fatores, e algumas precariedades que são encontradas, não só no município em questão, mas em todo o Brasil, tem-se a necessidade de verificar os serviços de estimulação educacio- nal infantil. No ano de 2000 foram estabelecidas metas de qualidade da educação infantil no Plano Nacional de Educação. Em 2004, a Secretaria de Educação Infantil e Fundamental do Ministério da Educação, em um documento preliminar, propõem padrões de infra-estrutura e parâme- tros de qualidade para as instituições (MACHADO; CAMPOS, 2004). Esse

239 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações documento revela que ainda não existe consenso entre profissionais da Educação Infantil quanto aos critérios de qualidade adequados à reali- dade brasileira. A verificação do ambiente em qual a criança desempenha boa parte do seu desenvolvimento, levando em consideração que a mesma passa a maior parte do dia em um Centro de Educação Infantil, não irá benefi- ciar somente a criança, mas irá proporcionar auxilio ao professor sobre o desempenho e impacto nas ações das crianças, além de melhor orienta- ção aos familiares. O acompanhamento das condições que o ambiente dispõe irá influenciar o desenvolvimento infantil, como por exemplo, a ênfase dada ao desenvolvimento cognitivo ou das habilidades sociais (GALLAGER; CLIFFORD, 2000; AGUIAR; BAIRRÃO; BARROS, 2002). Aponta Katz (1993) cinco indicadores para medir a qualidade de um centro de educação infantil: a quantidade de crianças por adulto, qua- lificações e estabilidade da equipe, características das interações entre crianças e adultos, qualidade e quantidade de equipamentos e mate- riais, e os ambientes destinados à educação infantil. No Brasil, Campos; Rosemberg (1995) propuseram alguns princípios sobre a qualidade adequada para o desenvolvimento do trabalho em creches: respeito aos direitos fundamentais da criança, com critérios re- lativos à organização e ao funcionamento interno, possibilitar à criança o direito à brincadeira, à atenção individualizada, a um ambiente acon- chegante, seguro e estimulante, ao contato com a natureza, às boas e adequadas condições de higiene e saúde, a uma alimentação sadia, a desenvolver sua curiosidade, imaginação e capacidade de expressão, ao movimento em espaços amplos, à proteção, afeto e amizade, a expres- sar seus sentimentos, a uma especial atenção durante seu período de adaptação à creche, a desenvolver sua identidade cultural, racial e reli- giosa (LIMA; BHERING, 2006). Rosemberg (2003) apud Lima; Bhering (2006) sugere quatro indi- cadores, embora reconheça as limitações apresentadas no Brasil: razão função docente/matrícula; formação de profissionais; disponibilidade de material pedagógico; e condições do ambiente físico.

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Destacamos as necessidades e os desafios, de acordo com o que foi apontado acima, do aprofundamento em pesquisas, reflexões e par- cerias que possam contribuir para a melhora da qualidade de ensino e saúde na educação infantil. Nessa situação a equipe multidisciplinar em saúde apresenta um importante papel no desempenho da promoção de saúde em educa- ção, sendo esta desenvolvida desde o nascimento até o ensino infantil, fundamental e médio. Em uma visão relacionada ao Centro de Educação Infantil, a criança pequena deve ser acompanhada desde o nascimento para obtenção de dados mais específicos de saúde, entrevistas seguidas de orientação e informação para os pais, até uma triagem, prevenção, orientação e encaminhamento, quando necessário, dentro dos CEIs. A necessidade de maiores investimentos em relação aos espaços físicos escolares para desempenhar com maior eficiência os trabalhos e atividades de forma lúdica e educativa, brinquedos educativos e estimu- lantes para um desenvolvimento global da criança, buscando estimular a curiosidade e criatividade da mesma. A relevância do investimento na capacitação, formação e informação das “cuidadoras” dos CEIs quanto aos conhecimentos de saúde, higiene e esterilização. Além da forma- ção continuada dos professores em relação ao desenvolvimento huma- no das crianças pequenas quanto a uma visão neuromotora com apli- cações lúdicas de estimulação durante as atividades pedagógicas. Por fim, mas não de menor importância, a informação aos familiares quanto ao conhecimento de saúde em educação, como por exemplo, à melhor maneira de brincar com seus filhos, estimulando e ensinando, cuidados com alimentação e vacinação, entre outras atividades que visem à inte- ração efetiva de pai e mãe com seu bebê. Cabe lembrar que todos nós somos responsáveis pelo desenvolvi- mento adequado das crianças da cidade de Matinhos, pois o compro- misso social da saúde pública e das instituições envolvidas (prefeitura, secretarias municipais, universidade, entre outras) deve ser imediato, progressivo e permanente nas ações integradas das parcerias em edu- cação em saúde.

241 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

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245 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica

Daniela Gallon1 Anna Raquel Silveira Gomes2

Introdução A longevidade é, sem dúvida, um triunfo. Há, no entanto, impor- tantes diferenças entre os países desenvolvidos onde o envelhecimento ocorre associado às melhorias nas condições gerais de vida, e os países em desenvolvimento, onde esse processo acontece de forma rápida, sem tempo para uma reorganização social e da área de saúde adequada para atender às novas demandas emergentes. Segundo projeções estatísticas do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), estima-se que, no ano de 2040, o Brasil tenha 55 milhões de idosos, o que representa 27% da população. Desses, 13 milhões terão mais de 80 anos. O crescimento da população brasileira acima dos 60 anos foi de 100% entre os anos de 1950 e 2000. As estimativas apontam para um crescimento ainda mais significativo para as próximas décadas, chegando-se em 2050 com cerca de 30% da população brasileira composta por idosos. Outro dado ­importante é o aumento da população com idade superior a 80 anos, a projeção é que em 2050, eles sejam 6% da população brasileira (IBGE, 2008). O processo do envelhecimento humano, enquanto integrante do ciclo biológico da vida, constitui um conjunto de alterações morfofun- cionais que levam o indivíduo a um processo contínuo e muitas vezes ir- reversível, de desestruturação orgânica. É um processo influenciado por

1 Educadora Física, Fisioterapeuta, MSc em Educação Física e Professora substituta da UFPR Litoral. E-mail: [email protected]. 2 Fisioterapeuta, Doutora em Ciências Fisiológicas e Professora da UFPR Litoral. E-mail: annaraquelsg@ gmail.com.

246 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica fatores hereditários, pela ação do meio ambiente, idade, dieta, tipo de ocupação e estilo de vida. Além destes fatores, existem outros que es- tão condicionados pelo contexto social ao qual pertence um indivíduo e também afetam sua vida e sua saúde (MACIEL; GUERRA, 2007). O processo de envelhecimento também está associado a diversas modificações estruturais e funcionais dos sistemas orgânicos e estas acarretam a diminuição da habilidade individual de realizar inúmeras atividades da vida diária, limitando a qualidade de vida do idoso e pre- dispondo-o a inúmeras doenças (KRAUSE et al., 2006). Segundo Matsudo et al. (2000), à medida que a idade cronológi- ca aumenta as pessoas se tornam menos ativas, suas capacidades físi- cas diminuem e manifestam também algumas alterações psicológicas como, por exemplo, sentimento de velhice, estresse e depressão. Esta hipocinesia, comum na velhice, muitas vezes facilita a aparição de do- enças crônicas que acabam contribuindo para acelerar o processo de envelhecimento.

Justificativa O interesse em investigar os aspectos biológicos do processo de envelhecimento vem crescendo nos últimos anos devido a um grande aumento desse grupo etário na população em geral e suas implicações nos cuidados com a saúde. O aumento da expectativa de vida no Brasil, que atualmente é de 72,35 anos em média (IBGE), aliado ao declínio das taxas de crescimento da população, determinou modificações na pirâ- mide etária, com o aumento do número de idosos, representando 8,4% da população atual. Segundo Ramos (2003), o maior desafio do século XXI no Brasil, será cuidar dessa população de mais de 30 milhões de idosos, a maioria com níveis socioeconômico e educacional baixos e uma alta prevalência de doenças crônicas não transmissíveis. Sendo que o processo de envelhe-

247 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações cimento tem um impacto significativo em inúmeros fatores que afetam o desenvolvimento das sociedades e o relativo bem-estar, não só de pes­­­soas idosas, mas também das populações jovens (MASTROENI et al., 2007). Entretanto, modificações sociodemográficas não ocorrem de forma homogênea entre as regiões e entre municípios de um mesmo Estado. Em virtude disto, existem importantes diferenças e uma grande diversi- dade nos níveis de saúde da população, em função de fatores socioeco- nômicos (PARAHYBA et al., 2005). Não é de hoje que diversos motivos, entre eles as belezas naturais, motivam a migração populacional para cidades litorâneas, porém, a população idosa procura locais onde jul- ga adequadas as suas necessidades de saúde. A 1a Regional de Saúde, localizada no Litoral do Paraná, com sede em Paranaguá, apresenta po- pulação de 287.633 habitantes, sendo 7% dessa população com idade acima de 60 anos (Censo Secretaria Estadual de Saúde), isto é, um pouco abaixo da média nacional (8,4%). Na Figura abaixo se observa que existe um equilíbrio de gêneros na população idosa do litoral paranaense e ainda, que o maior número de idosos encontra-se em Paranaguá, cidade mais populosa da região. Figura 1. População de idosos do litoral do Paraná.

Fonte: Ministério da Saúde a partir dos resultados do Censo 2000 (IBGE, 2000).

248 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica

Um dos fatores que prejudica o interesse dos idosos viverem no li- toral paranaense são as condições precárias de saúde desta região. Por isso, a Universidade Federal do Paraná instalou em 2005 o Setor Litoral, o qual conta com o curso de Fisioterapia que desenvolve atividades que contribuem com a melhoria da saúde do litoral do Paraná em todos os ciclos de vida. Especialmente com a população acima dos 60 anos, várias ativida- des são desenvolvidas pelos estudantes, docentes e fisioterapeutas do curso de Fisioterapia da UFPR Litoral, como: exercícios terapêuticos para melhorar a força muscular, o sistema cardiorrespiratório, equilíbrio, hi- pertensão, exercícios na água do mar (talassoterapia), inclusão digital, entre outras. Todo este sem-número de atividades são realizadas com a preocu- pação de que a população chegará a idades cada vez mais avançadas e, por isso, a importância de melhorar as condições de vida da terceira idade. As dificuldades sofridas nas atividades instrumentais da vida di- ária (AIVD) estão diretamente relacionadas à participação comunitária e social menos intensa e a uma qualidade de vida diminuída, por isso as atividades normalmente são desenvolvidas em grupo, favorecendo a interação dos idosos (SANTOS et al., 2008). Um atendimento mais adequado e específico e um cuidado mais eficiente podem propiciar melhoras nessas condições (SANTOS et al., 2008). Os mesmos autores identificaram que o “Ser do sexo feminino representa 67% a mais de chances de ter dificuldades nas AIVDs. Entre os homens, 13,4% relatam ter alguma dificuldade, porcentagem que au- menta para 27,1% entre as mulheres.” Assim, as alterações dos sistemas orgânicos fisiológicos do corpo humano relacionados à idade apresentam declínio de todas as variáveis fisiológicas, acarretando limitações funcionais para caminhar, levantar- se, manter o equilíbrio postural e prevenir-se contra quedas iminentes, e a uma deterioração da saúde (KAUFFMANN, 2001). Em idosos pode ser observada redução da massa muscular, diminuição da área de secção transversa das fibras musculares em cerca de 40%, perda de fibras mus-

249 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações culares, seguida por uma substituição por gordura, tecido fibroso e um aumento gradual de tecidos não-musculares (GUCCIONE, 2002). Os aspectos biológicos são constituídos, principalmente, pelas al- terações negativas no sistema neuromuscular, composição corporal, cardiorrespiratório e mental que por sua vez, diminuem as capacidades físicas, podendo comprometer o desempenho das atividades da vida di- ária (SPIRDUSO, 1995; RIKLI; JONES, 1999; MOREY et al., 1998). A aptidão neuromuscular está associada com as atividades diárias que requerem graus de força mais elevados podendo ser relacionadas a atividades cotidianas como carregar sacolas, bolsas e malas, subir esca- das, brincar com os netos ou segurá-los nos braços, levantar-se do chão, ajoelhar-se, entre outras (RIKLI; JONES, 1999). Além disso, a aptidão neu- romuscular também influencia a capacidade de equilíbrio e agilidade, podendo discriminar indivíduos que sofreram uma queda ou não (GUE- LICH, 1999; SUZUKI et al., 2002); Essas capacidades são necessárias em atividades que requerem respostas rápidas em momentos inesperados, ou eventos incomuns, como a auto proteção durante uma situação de perigo. Um exemplo deste quadro seriam as quedas tão freqüentes em idosos, que podem ocasionar períodos de dependência temporária ou até mesmo definitiva, e também a síndrome do pós-queda que é asso- ciada a diminuição das atividades da vida diária em mulheres idosas (SUZUKI et al., 2002). As atividades relatadas estão presentes tanto nas atividades básicas como nas instrumentais da vida diária (KATZ, 1963). As alterações da composição corporal demonstram resultados con- troversos em relação à funcionalidade. Algumas evidências apontam uma relação negativa entre o acúmulo de massa gorda e limitações funcionais (TAGER et al., 2004), embora, em outros estudos, a associa- ção entre a massa magra e a incapacidade é menos evidente (VISSER et al., 1998a; VISSER et al., 1998b). A adiposidade corporal está associada com a elevação do risco para doenças e mortalidade por todas as causas (STANG et al., 2002). A diminuição da aptidão cardiorrespiratória pode afetar as ativida- des diárias que são realizadas por períodos de longa duração, como a

250 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica caminhada, subir escadas, estender as roupas no varal, tirar o pó da mo- bília, preparar refeições, entre outras. Dentre essas, a redução da apti- dão cardiorrespiratória está associada diretamente com limitações fun- cionais na caminhada, como a perda da habilidade de caminhar em um percurso de 400 metros cronometrado pelo terapeuta, esta atividade demonstra grande relevância em ser avaliada na população idosa, pois pode ser considerada como uma das atividades básicas de locomoção (RIKLI; JONES, 1999; CHANG et al., 2004; KATZ, 1963). A atividade fisica tem um importante papel na saúde mental do in- dividuo e pode retardar os declínios funcionais. Assim, uma vida ativa melhora a saúde mental e contribui nas desordens neuropsiquiátricas e cognitivas. De acordo com Maciel; Guerra (2007), a realização de estudos trans- versais analíticos possibilita uma reflexão sobre a situação encontrada no momento da avaliação, mostrando um retrato instantâneo da amostra es- tudada. Portanto, conhecer as particularidades de diferentes grupos popu- lacionais e suas especificidades culturais e ambientais pode contribuir na ampliação da discussão sobre as condições de saúde, no planejamento de ações e intervenções para aumentar a qualidade de vida da população. Considerando o exposto e a inexistência de estudos representativos relacionados à saúde da população de idosos e adultos residentes no li- toral paranaense, buscamos compreender por meio de uma revisão da literatura não sistemática citados abaixo os aspectos biológicos do enve- lhecimento e quais fatores estão relacionados com estas modificações, po- dendo assim, subsidiar a elaboração de programas de promoção da saú- de, que possam minimizar os efeitos deletérios, servindo também como referência no estabelecimento das metas destes programas.

Sistema Neuromuscular Utilizando tomografia computadorizada e técnicas de autópsia, é possível identificar diminuição no peso e no volume do cérebro, em in- divíduos com mais de 60 anos de idade, acompanhada de aumento dos

251 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações espaços de fluído cérebro-espinal e também do volume dos ventrículos (KAUFFMAN, 2001). Apesar de essas alterações envolverem todo o cére- bro, as regiões mais afetadas são o lobo frontal e o hipocampo. Tal perda de volume com o passar dos anos é diferente entre as diversas áreas do cérebro (JERNIGAN et al., 2001). Entre as idades de 30 a 90 anos ocorre perda de 14% no córtex cere- bral, 35% no hipocampo e 26% na massa cerebral branca (JERNIGAN et al., 2001; ANDERTON, 2002). O número de neurônios também tem sido objeto de estudo no pro- cesso de envelhecimento. Os resultados são controversos em relação à diminuição da quantidade deles. Uma possível explicação para esse fato é a diminuição dos corpos dos neurônios, que, apesar de presentes, não foram contados nem, conseqüentemente, somados ao número total, ao término dos estudos. Apesar dessas diferenças entre as técnicas empre- gadas, tais como técnicas esteorológicas. Há um consenso sobre a diminuição no número de neurônios do hipocampo e do córtex cerebral (ANDERTON, 2002; PAKKENBERG; GUN- DERSEN, 1997). Com tais alterações morfológicas, certas mudanças funcionais ocor- rem. O avanço da idade leva à queda na performance cognitiva e na me- mória. Além desses, outros aspectos patológicos associados à doença de Alzheimer são encontrados em idosos intelectualmente saudáveis, porém, em menor número. Com isso, acredita-se nessa doença como um quadro inevitável de envelhecimento precoce, porém, os fatores genéticos que a influenciam diretamente precisam ser determinados. Considera-se que a presença da apoliproteína E4 (Apo E4), por exemplo, resulte em uma diminuição muito mais acentuada das funções cerebrais. Em outras palavras, quanto maior a taxa de Apo E4, maior a velocidade de decréscimo das funções cerebrais (RABER et al., 1998; LU et al., 2001). Outra característica observada entre os idosos é a demência. Ela se deve, entre outros fatores, a um acúmulo de pequenos infartos (Aciden- te vascular cerebral-AVC), também encontrados em cérebros de idosos saudáveis (ANDERTON, 2002).

252 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica

Para Kauffman (2001), essas alterações anatômicas, muitas vezes acompanhadas de patologias, geram mudanças funcionais, como: al- teração de reflexos, tempo de reação, força, equilíbrio e raciocínio; di- minuição da velocidade de condução nos nervos periféricos em aproxi- madamente 20%; alterações sensoriais, ou seja, diminuição na eficácia dos sistemas visual e auditivo; perda de dendritos, ocasionando maior dificuldade nas sinapses; e redução no número de neurônios em deter- minadas áreas do sistema nervoso, como os motoneurônios do cordão espinal, no cerebelo, células de Purkinje e substância negra neocórtex. Com o envelhecimento, não apenas o sistema nervoso central é acometido, mas também o sistema nervoso periférico. A musculatura esquelética dos idosos sofre várias desnervações e reinervações. As pri- meiras acontecem, na maior parte, nas fibras rápidas, e as segundas, nas fibras lentas, resultando em atrofia e perda da funcionalidade das fibras desnervadas (KADHIRESAN; HASSETT, 1996; FREY et al., 2000). Também as alterações neurais desencadeadas pelo envelhecimento dão-se em diversos locais, desde os motoneurônios até a junção neuromuscular. Em ratos idosos, foi encontrada diminuição da mielinização dos axô- nios, em paralelo com um aumento do comprimento internodal, redu- zindo o potencial de ação. Provavelmente, essa deterioração da bainha de mielina resulta da menor expressão das principais proteínas mielíni- cas, como a Proteína Mielínica Zero (P0), a Proteína Mielínica Periférica 22 (PMP22) e a Proteína Básica da Mielina (MBP) (CEBALLOS et al., 1999; VERDU et al., 2000). Por sua vez, o motivo do enfraquecimento progressivo da muscu- latura dos idosos, que, como dito anteriormente, leva à instabilidade, à perda da capacidade funcional, à dificuldade de realizar as tarefas do dia-a-dia e sobretudo ao aumento dos riscos de quedas ainda é pouco entendido. Alguns pesquisadores acreditam que, com o envelhecimen- to, problemas no mecanismo de acoplamento-excitação-contração do tecido muscular produzem menor capacidade de geração de força das fibras musculares, tornando-o, portanto, cada vez mais frágil (DELBONO, 2003). Em estudo realizado por Welle et al. (2003) foi constatada redu- ção de mitocôndrias nos tecidos musculares dos idosos, em virtude da

253 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações diminuição de DNA (ácido desoxirribonucléico) mitocondrial e, conse- qüentemente, do seu mRNA (ácido ribonucléico tipo mensageiro). Esse processo está associado a uma menor captação de O2 e, por conseguin- te, às dificuldades de realizar tarefas cotidianas. Contudo, nesse mesmo estudo, também se observou que a prática de atividades físicas, por um período de apenas três dias, já aumentava a expressão e/ou a atividade desses genes. A atividade física regular é um fator importante para melhorar significativamente a musculatura esquelética dos idosos – hipertrofia muscular, aumento da força e adap- tações celulares e funcionais, por exemplo. Porém, resultados bastante distintos foram encontrados em estudos, em razão da utilização varia- da de freqüência, intensidade e duração dos programas de exercício (FRONTERA; BIGARD, 2002). Segundo Matsudo et al., (2000) a intensidade do treinamento é a va- riável mais importante. Diferenças significativas nos resultados podem aparecer quando essa variável não é aplicada adequadamente. Em pro- gramas de treinamento de baixa intensidade em idosos, por exemplo, foram verificados ganhos de força muscular menores que 20%, ao pas- so que, nos de alta intensidade (70% a 80% de uma repetição máxima – RM), foram de até 227%, evidenciando que os treinamentos de alta intensidade proporcionam melhores resultados no aumento da força muscular. Notaram-se ainda aumentos da força estática e dinâmica em poucos dias de treinamento de força, variando de 10% até 180%, em razão dos diferentes protocolos de treinamento. Esse rápido aumento de força nos primeiros dias de treinamento deve-se particularmente às adaptações neurais (melhora no recrutamento das unidades motoras por exemplo). As adaptações periféricas, como a hipertrofia muscular, passam a contri- buir mais com os ganhos de força após um período maior de treinamen- to (FRONTERA; BIGARD, 2002). A hipertrofia muscular foi verificada em estudos, mesmo utilizando- se de técnicas diferentes, como tomografia computadorizada, ultra-som e ressonância magnética, demonstrando ganhos de 2% a 14,5% (YARA-

254 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica

SHEKI et al., 1993; YARASHESKI et al., 1995). Hipertrofia em nível micros- cópico também foi evidenciada, empregando- se técnicas histoquímicas em espécies de biópsia. Em ambas as fibras, tipo I e tipo II, notificaram-se aumentos de até 30% (FRONTERA; BIGARD, 2002). Segundo Fiatarone et al. (1990), idosos de 86 a 96 anos de idade, participantes de um programa de treinamento contra resistência (TCR), com duração de oito semanas, realizado três vezes por semana, obti- veram aumentos de 174% na força muscular e 48% na velocidade do passo. Porém, após quatro semanas sem atividades, observou- se dimi- nuição de 32% na força, evidenciando a importância da regularidade das atividades físicas. Com todos esses ganhos proporcionados pelo treinamento de for- ça, a capacidade funcional dos idosos aumenta significativamente, apre- sentando melhoras na velocidade de andar, subir escadas e realizar tare- fas cotidianas, alcançando novamente sua “independência” (FRONTERA et al., 2000). Estima-se que, a partir dos 40 anos, ocorra perda de cerca de 5% de massa muscular a cada década, com declínio mais rápido após os 65 anos (TZANKOFF; NORRIS, 1977; FLEG; LAKATTA, 1988), particular- mente nos membros inferiores (JANSSEN et al., 2000). Estudos com ca- dáveres, utilizando-se diversos métodos radiológicos como Ultra Som (US), Tomografia Computadorizada (TC) e Ressonância Magnética (RM) demonstraram que ocorre redução de 40% da área seccional transversa de vários grupos musculares (quadríceps, bíceps e tríceps braquial) com a idade (DOHERTY; BROWN, 1993). Contudo, mudanças qualitativas nas fibras musculares e tendões, como atrofia selecionada de fibras rápidas (tipo II), perda da rigidez dos tendões e mudanças neurais como a baixa ativação agonista e alta coa- tivação dos músculos antagonistas contribuem para o declínio da fun- ção muscular (MACALUSO; DE VITO, 2004). As fibras do tipo I (lenta) parecem ser resistentes à atrofia associada ao envelhecimento, pelo menos até os 70 anos, enquanto a área relativa

255 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações das fibras tipo II (rápida) declina de 20 a 50% com o passar dos anos (DOHERTY, 2003; IARSSON et al., 1978). Particularmente em relação à atrofia das fibras tipo II, existem evi- dências moleculares que demonstram que há decréscimo de 24-30% da forte ligação da miosina-actina que contribuem para a perda de força muscular (ZHONG et al., 2007). Além disso, a força ainda pode ser decor- rente de alterações na atividade elétrica do músculo, como de redução das unidades motoras da musculatura proximal e distal de membros in- feriores e superiores (DOHERTY, 2003). Estudos transversais mostraram unidades motoras preservadas pelo menos até a sétima década. A partir dessa idade, ocorre declínio dessas unidades, bem como perda de mo- toneurônios alfa. Entretanto, não está definido como os fatores gené- ticos, hormonais e da atividade física pode afetar a extensão ou ritmo desta perda (DOHERTY; BROWN, 2002). Ao nível celular, grande número de evidências indica que a perda acelerada de miócitos relacionada com a idade, via apoptose, pode re- presentar um mecanismo chave que, por sua vez, conduz ao início e à progressão da perda muscular (DIRKS; LEEUWENBURGH, 2002; DUPONT; VERSTEEGDEN, 2005). A perda de força muscular com o envelhecimento parece ocorrer de forma semelhante em homens e mulheres. Entretanto, nos diversos estágios da vida, as mulheres apresentam menor força muscular quan- do comparadas aos homens, em vários grupos musculares (FIELDING; LEBRAUSSER; CUOCO, 2002; MACALUSO; DE VITO, 2004). Na revisão proposta por Doherty (2003) a sarcopenia, perda de mas- sa muscular decorrente do processo de envelhecimento, é considerada um problema de saúde pública para mulheres, na medida em que vivem mais e apresentam maiores taxas de incapacidade. Entretanto, Janssen et al. (2004) estudaram a massa muscular es- quelética total (MMET) por meio de Ressonância magnética (RM) de 268 homens e 200 mulheres, com idade entre 18 e 88 anos, e relataram que homens têm maior massa muscular, mas também apresentam maior

256 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica perda com o avançar da idade. Com o envelhecimento, os homens têm maior perda muscular devido ao declínio do hormônio do crescimento (GH), fator de crescimento relacionado à insulina (IGF-1) e testosterona. No entanto, apesar da perda muscular ser maior em homens, é impor- tante ressaltar a importância da sarcopenia em mulheres idosas, uma vez que possuem maior expectativa de vida e alta prevalência de limita- ções funcionais (ROUBENOFF; HUGHES, 2000). Além da perda de força muscular, o pico de potência muscular decli- na de maneira ainda mais precoce com o avançar da idade (BEAN et al., 2002; MACALUSO; DE VITO, 2004). Outro fator importante no desenvolvimento e progressão da sar- copenia é a redução da ingestão alimentar, principalmente quando as- sociada a outras co- morbidades (ROBERTS, 1995; MORLEY et al., 1996; MORLEY; THOMAS, 1999; MORLEY, 2001; MORLEY, 1997). Múltiplos me- canismos levam à ingestão alimentar reduzida no idoso (MORLEY et al., 1996; MORLEY; THOMAS, 1999), tais como perda de apetite, redução do paladar e olfato, saúde oral prejudicada, saciedade precoce (relaxamen- to reduzido do fundo gástrico, aumento da liberação de colecistocinina em resposta à gordura ingerida, elevação da leptina) (MORLEY, 2001). Fatores psicossociais, econômicos e medicamentos também estão en- volvidos (BALES; RITCHIE, 2002). A inatividade física é um fator contributivo importante para a sar- copenia relacionada ao envelhecimento. Idosos com menor atividade física têm menor massa muscular e maior prevalência de incapacidade física (EVANS, 1995; 2002). As taxas de internações hospitalares e a duração das internações aumentam com a idade. Estimou-se que os gastos de internações hos- pitalares no Brasil, são atribuídos para doenças isquêmicas do coração (R$147 milhões), insuficiência cardíaca (R$133 milhões) e bronquite/ enfisema e outras doenças pulmonares obstrutivas crônicas (R$74 mi- lhões). A distribuição dos recursos pagos pelo SUS, segundo o diag- nóstico principal da internação, não apresentou diferenças expressivas entre os sexos, com exceção das doenças isquêmicas do coração, que

257 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações apresentaram um custo maior para o sexo masculino (R$87 milhões), comparado com o feminino (R$60 milhões) (BRASIL, 1998). Acredita-se que essa despesa aumente significativamente como conseqüência do envelhecimento progressivo da população. Assim, o entendimento dos mecanismos que levam à perda muscular e à inabili- dade física, com o avançar da idade, representa uma prioridade de saúde pública mundial que reforçam a necessidade de atividades de prevenção e de promoção da saúde para a redução das causas acima mencionadas. Estudos em seres humanos demonstram que a manutenção de ati- vidade física pode retardar e até mesmo reverter a deterioração mus- cular decorrente do envelhecimento (ALNAQEEB et al., 1984; BROOKE; KAISER, 1970).

Composição Corporal Com o envelhecimento ocorre aumento na gordura corporal total e redução do tecido muscular. Essas modificações no tecido muscular ocorrem, principalmente, em virtude da diminuição da atividade física e da taxa metabólica basal (PERISSINOTTO et al., 2002; STEEN, 1988). Segundo Oliveira et al. (2004), a obesidade está sendo considerada uma doença crônica e epidêmica, e está relacionada com uma alta taxa de mortalidade. Para Mastroeni et al. (2007), o excesso de peso é um dos principais fatores de risco de uma série de doenças crônicas, entre elas, a hipercolesterolemia, diabetes, doenças cardiovasculares, algumas for- mas de câncer, entre outras, e representa, atualmente, um preocupante desafio à saúde pública. No estudo coordenado pela Organização Pan-Americana de Saúde no ano de 2000 (Projeto Sabe), com objetivo de coletar informações do estado nutricional sobre as condições de vida de residentes em áreas urbanas de metrópoles de sete países da América Latina e Caribe, entre elas, o Município de São Paulo, com 2.143 pessoas com 60 anos e mais, mostra que a maior proporção de sobrepeso e obesidade foi verificada

258 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica em mulheres (40,5%) em comparação aos homens (21,7%), sendo, por- tanto, possível refletir sobre a maior quantidade proporcional de gordu- ra corporal nas mulheres, pois apresentam valores de massa corporal e estatura inferiores ao encontrados nos homens. Isto ocorre em todas as idades, principalmente devido à gordura essencial, que no sexo femini- no é, aproximadamente, quatro vezes superior à dos indivíduos do sexo masculino (MARUCCI; BARBOSA, 2003). Em pessoas entre 50 e 70 anos, um dos maiores problemas nutricio- nais é o sobrepeso, estando associado às doenças crônico-degenerati- vas. Acima dos 80 anos, magreza e perda de massa magra são os maiores problemas. As doenças associadas com baixo IMC são tuberculose, en- fermidades pulmonares obstrutivas, câncer de pulmão e de estômago, enquanto as que se associam com o alto IMC são as doenças cardiovas- culares, diabetes, cerebrovasculares e, nos homens, o câncer de cólon (WHO, 1995). Não menos importante que os indivíduos apresentando IMC eleva- do são os indivíduos que apresentam IMC insuficiente. Kuczmarski et al. (2000), realizaram um estudo considerando o IMC insuficiente, valores de <22,4 kg/m2 para homens, e <21,7 kg/m2 para mulheres, onde 10,0% dos idosos se apresentaram abaixo desses valores, sendo cerca de três vezes mais freqüentes nos homens (16%) que nas mulheres (5,2%). Re- sultados similares foram encontrados por Barreto et al. (2003), em um estudo desenvolvido na cidade de Bambuí – MG, com 1.451 pessoas com idade igual e superior a 60 anos, relataram que a prevalência de baixo peso foi geralmente maior nos indivíduos do sexo masculino e grupos etários mais avançados. No estudo de Hughes et al. (2002), foram verificadas as mudanças na composição corporal em um estudo longitudinal com 131 pessoas, homens e mulheres com idade de 46 a 80 anos, examinados em duas ocasiões, separadas por um tempo de nove anos, mostraram que o de- clínio de tecido magro foi maior em homens do que nas mulheres, dimi- nuindo 2,0% por década em homens, mas não em mulheres, conside- rando que a gordura corporal aumentou semelhantemente em ambos os sexos, 7,5% por década.

259 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações

Um estudo transversal realizado no sul do Brasil, analisando o perfil morfológico, com 1016 mulheres com idade superior a 60 anos, na cida- de de Curitiba – PR, mostra que os declínios mais expressivos ocorreram nas circunferências de braço, coxa média e panturrilha medial, indican- do, possivelmente, uma menor massa muscular em populações mais idosas, apesar dos valores médios de IMC ter classificado as mulheres idosas, predominantemente, com sobrepeso, parece que os indivíduos que alcançam as idades mais avançadas são aqueles que apresentam menor adiposidade corporal (KRAUSE et al., 2006). Um outro estudo transversal, realizado na cidade de Fortaleza – CE, com 305 idosos residentes em instituições geriátricas, apresentou valo- res médios da circunferência muscular do braço (CMB) e área muscular do braço (AMB), variáveis utilizadas como indicadores de massa muscu- lar, mostrando um declínio da massa muscular tanto em homens quan- to em mulheres, sendo mais evidente e significativo entre as mulheres (MENEZES; MARUCCI, 2005). Desse modo, inúmeros estudos epidemiológicos foram realizados tentando investigar as modificações morfológicas, decorrentes do pro- cesso de envelhecimento, utilizando procedimentos antropométricos (HUGHES et al., 2004; FORBES, 1999; SANTOS et al., 2005). Utilizar o méto- do antropométrico pode apresentar menor precisão na avaliação das al- terações na composição corporal, quando comparadas a outras técnicas mais sofisticadas, como a tomografia computadorizada e imagem por ressonância magnética, contudo, sua utilização tem sido amplamente utilizada em estudos epidemiológicos transversais e longitudinais de- vido a seu caráter não-invasivo, fácil aplicabilidade e baixo custo opera- cional (HUGHES et al., 2004; PRENTICE et al., 2001).

Saúde Mental A revisão prosposta por Deslandes et al., 2009 descreve a relação entre exercício físico e saúde mental que dividem estudos que investi- garam o efeito do exercício como um tratamento não-farmacológico da

260 Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica doença mental, e estudos que verificam mecanismos neurofisiológicos para explicar a relação entre exercício físico e saúde mental. Evidências clínicas demostram que idosos sedentários tem maior propensão a depressão quando comparados a idosos ativos (BLAY et al., 2007). Dunn et al. (2005) demonstram que apenas 37 estudos avaliaram o efeito de exercício físico na prevenção da depressão. O exercício é um tratamento eficaz para depressão (STATHOPOULOU et al., 2006; MORAES et al., 2007). A eficácia de intervenções como treinamento de força e exer- cícios aeróbio são influenciados pela intensidade, duração e por instru- mentos utilizados para avaliar a resposta (DUNN et al., 2001; 2005). A Atividade física influencia nos processos neuroadaptativo e neuro- protetores. Alguns dos processos são mediados por fatores neurotróficos, diminuindo a resposta neural e stress nos circuitos do cérebro responsá- vel pela regulação periférica de atividade simpática, contribuindo para a redução em desordens clínicas, como hipertensão, insuficiência cardíaca, estresse oxidativo e supressão da imunidade (DESLANDES et al., 2009).

Considerações Finais A população mundial está envelhecendo, a preocupação em man- ter condições para que estas pessoas tenham uma qualidade de vida satisfatória bem como conhecer exatamente como esse processo ocorre são crescentes. O organismo humano sofre uma continua redução na capacidade de realizar suas funções, sendo estas perdas naturais, po- rém, podem ser minimizadas. No entanto, condições ambientais como o estilo de vida, parecem estar diretamente ligadas à forma e velocidade que este processo irá acontecer. A pesquisa sobre envelhecimento, nes- te contexto, é importante para auxiliar a sociedade na formulação de políticas públicas e demais procedimentos que garantam uma velhice digna e saudável para a população. O intuito deste trabalho foi analisar os aspectos neuromusculares, cardiorrespiratórios e composição corporal no envelhecimento e, a par-

261 Litoral do Paraná - Reflexões e Interações tir de então, sensibilizar para reorientação da gestão pública para de- senvolver avaliações, métodos, técnicas e instrumentos relacionados a melhora da qualidade de vida e do desenvolvimento sustentável da co- munidade do Litoral do Paraná, melhorando a qualidade da prevenção, assistência e a relação custo-benefício das ações desenvolvidas com os idosos nesta região.

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