ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 701 Arguente: Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE Arguidos: Prefeita do Município de João Monlevade e outros

Relator: Ministro NUNES MARQUES

Constitucional. Atos normativos estaduais e municipais que suspendem atividades religiosas, sem ressalvar aquelas que não envolvam aglomeração de pessoas. Alegada violação à liberdade de religião e à laicidade do Estado. Preliminares. Ilegitimidade ativa. Inobservância do princípio da subsidiariedade. Inépcia da petição inicial, por ausência de indicação precisa dos atos impugnados. Impossibilidade de controle abstrato de normas com eficácia exaurida. Ausência de interesse de agir em relação a dispositivo revogado. Ofensa meramente reflexa ao Texto Constitucional. Mérito. O cenário extraordinário da pandemia admite a adoção de medidas restritivas pelo Poder Público, as quais devem observar o critério da proporcionalidade e os parâmetros da jurisprudência dessa Suprema Corte. Os óbices processuais apontados impedem a análise precisa sobre o teor dos atos questionados. Entretanto, é possível afirmar desde logo que a restrição total e sem delimitação temporal de atividades religiosas, inclusive de transmissões virtuais e sem aglomerações, nos termos da petição inicial, não atende aos requisitos da proporcionalidade. Excessivo impacto sobre o direito à liberdade de religião, sem que demonstrada a correlação com os fins buscados e com desprezo de alternativas menos gravosas. Para estabelecer disciplina sanitária limitadora das liberdades pessoais, os governos regionais e locais devem fazê-lo mediante apresentação de fundamentação técnica apropriada e com respeito às competências privativas de outros entes. Caso essas condições de legitimidade sejam descumpridas, deve prevalecer a regência geral estabelecida nas normas federais sobre o tema. Manifestação pelo não conhecimento da arguição e, quanto ao mérito, pela sua procedência.

Egrégio Supremo Tribunal Federal,

O Advogado-Geral da União vem, em atenção ao despacho proferido pelo Ministro Relator em 05 de fevereiro de 2021, manifestar-se quanto à presente arguição de descumprimento de preceito fundamental. I – DA ARGUIÇÃO

Trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de medida liminar, proposta pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, com o objetivo de que seja declarada a inconstitucionalidade de decretos estaduais e municipais que determinaram, no elenco das medidas de contenção da pandemia de Covid-19, a suspensão irrestrita das atividades religiosas.

A autora afirma que, “em muitos locais, líderes religiosos têm sido embaraçados durante a transmissão de cerimônias religiosas por meios virtuais, quando não há qualquer público presente” (fl. 02 da petição inicial). Tal circunstância, conforme argumenta, atentaria contra a liberdade religiosa e a laicidade estatal.

Como exemplos de normas editadas nesse sentido, a requerente cita o artigo 6º do Decreto nº 31/2020 do Município de João Monlevade/MG; o Decreto nº 1.074/2020 do Município de Macapá/AP; o Decreto nº 18.902/2020 do Estado do Piauí; o Decreto nº 28.635-E/2020 do Estado de Roraima; o Decreto nº 15/2020 do Município de Serrinha/BA; o Decreto nº 14.052/2020 do Município de Bebedouro/SP; o Decreto nº 6.228/2020 do Município de Cajamar/SP; o Decreto nº 28.564/2020 do Município de Rio Brilhante/MS; e o Decreto nº 1.366/2020 do Município de Armação dos Búzios/RJ.

Aduz que a Lei nº 13.979/2020 estabeleceria que as medidas restritivas no combate à pandemia deveriam possuir base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde, além de observarem limitação espacial e temporal.

Para a autora, o estabelecimento das medidas restritivas impugnadas também atentaria contra a distribuição constitucional de competências,

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 2 extrapolando a atribuição dos Municípios, elencada no artigo 30, inciso II, da Constituição da República1.

A requerente pondera que, mesmo em situações de crise, como no estado de defesa e no estado de sítio, em que há autorização constitucional para restringir ou suspender o direito de livre reunião, haveria parâmetros a serem observados, assim como exigência de temporariedade das limitações. Invoca a teoria dos limites dos limites, para afirmar a necessidade de manutenção do núcleo essencial do direito fundamental que indica como parâmetro de controle.

Ademais, assevera que, “a despeito de toda a relevância dos cultos públicos para os cidadãos religiosos, diferentes Estados e Municípios têm vedado, sem ressalvas, o exercício de qualquer atividade religiosa e o funcionamento dos templos religiosos, o que tem reverberado até mesmo sobre as transmissões virtuais, executadas por um grupo pequeno de ministros” (fl. 26 da petição inicial).

Em outra vertente, afirma que o estabelecimento das medidas impugnadas por meio de decretos também violaria o princípio da legalidade.

Com esteio nesses argumentos, a autora pede a concessão de medida cautelar para suspender os efeitos do artigo 6º do Decreto nº 31/2020 do Município de João Monlevade/MG, bem como “de todos os Decretos cuja redação impõe vedação/suspensão/proibição de atividades religiosas e do funcionamento dos templos religiosos, sem fixação de qualquer ressalva no sentido do exercício das ações religiosas que não geram qualquer espécie de aglomeração” (fl. 30 da petição inicial). No mérito, requer a confirmação da providência pleiteada em sede cautelar.

1 “Art. 30. Compete aos Municípios: (...) II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;” ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 3 O processo foi distribuído, inicialmente, ao Ministro CELSO DE

MELLO. Posteriormente, o Ministro NUNES MARQUES assumiu a relatoria da presente ação direta e, nos termos do artigo 5º, § 2º, da Lei nº 9.882/1999, requereu informações às autoridades de que emanaram os atos questionados, bem como a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República.

Em atendimento à solicitação, o Município de Bebedouro/SP afirmou que o Decreto nº 14.052/2020 teria sido expedido no início da pandemia, no intuito de conter o seu avanço, estando tal ato normativo de acordo com o Decreto estadual nº 64.994/2020 (Plano São Paulo). O Município de Cajamar/SP também defendeu a razoabilidade da medida restritiva impugnada, bem como sua conformidade com as orientações estaduais e da Organização Mundial da Saúde.

De seu turno, o Município de Armação dos Búzios/RJ afirmou que o Decreto nº 1.366/2020 teria sido revogado pelo Decreto nº 1.533/2020, posteriormente substituído pelo Decreto nº 1.579/2021, que autoriza o funcionamento dos templos em geral, com limitação da capacidade, ventilação apropriada e observância de medidas sanitárias.

Não aportaram aos autos informações dos demais entes solicitados.

Na sequência, vieram os autos para manifestação do Advogado- Geral da União.

II – PRELIMINARES

II.I – Ilegitimidade ativa

Inicialmente, cumpre ressaltar que a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos – ANAJURE não logrou demonstrar sua legitimidade para o ajuizamento da presente arguição.

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 4 A propósito, ressalte-se que a requerente é uma associação civil que, conforme os artigos 7º e 8º de seu estatuto (doc. eletrônico nº 3), congrega juristas que compactuam com sua declaração institucional de princípios, nos seguintes termos:

ARTIGO 7° A ANAJURE é constituída pela seguinte categorização e classificação de membros: I — Membros Fundadores: são todos aqueles juristas que instituíram e, por assim ser, subscreveram a Ata de Fundação e Constituição da Associação Nacional de Juristas Evangélicos. II — Membros Honorários: são todos aqueles juristas que, por merecimento e reconhecimento dos relevantes serviços jurídicos prestados â sociedade, à igreja evangélica e á defesa das liberdades civis fundamentais, forem assim indicados, desde que também subscrevam a Declaração de Princípios do art. 6° e obedeçam aos requisitos de admissibilidade estatutária constantes do art. 8°. III — Membros Efetivos: são todos aqueles juristas que, subscrevendo a Declaração de Princípios do art. 6° e obedecendo aos requisitos de admissibilidade estatutária constantes do art. 8°, forem assim admitidos. IV — Membros Aliados: são todos aqueles juristas que, subscrevendo a Declaração de Princípios do art. 6° e obedecendo aos requisitos de admissibilidade estatutária constantes do art. 8°, não sendo membro honorário ou efetivo, forem assim indicados. V — Membros Provisórios: são todos aqueles que, na condição de estudantes de Direito, subscrevendo a Declaração de Princípios do art. 6° e obedecendo aos requisitos de admissibilidade estatutária constantes do art. 9°, forem assim admitidos.

ARTIGO 8° São requisitos de admissibilidade associativa na qualidade de membro honorário, efetivo, aliado ou provisório: I — Subscrição do Termo Associativo e Declaração de Princípios do art. 6°. II — Indicação de um dos Associados que não seja membro afiado ou provisório. III — Que apresente carta pastoral de recomendação. IV — Que tenha seu processo de admissão recomendado pela Diretoria Executiva e aprovado, por maioria simples, pelo Conselho Diretivo Nacional.

O referido estatuto não menciona quais profissionais poderiam integrar a referida associação, limitando-se a apresentar a referência genérica de “juristas”, o que evidencia que o fator distintivo da entidade é a comunhão de crença e não a defesa de prerrogativas profissionais.

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 5 Desse modo, observa-se que a autora sequer constitui uma entidade de classe, uma vez que não tem por finalidade representar uma categoria profissional ou econômica específica.

De fato, a jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que, para o fim previsto pelo artigo 103, inciso IX, da Lei Maior2, somente possuem a natureza de entidade de classe as associações que congregam pessoas componentes de determinada categoria econômica ou profissional. Veja- se:

DIREITO CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA, ART 103, IX, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. ENTIDADE DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL. CONSELHO INTERDENOMINACIONAL DE MINISTROS EVANGÉLICOS DO BRASIL. ILEGITIMIDADE ATIVA “AD CAUSAM” CARACTERIZADA. ENTIDADE QUE NÃO REPRESENTA CATEGORIA PROFISSIONAL OU ECONÔMICA. PRECEDENTES DESTA SUPREMA CORTE. 1. A legitimidade das entidades de classe para a propositura de ações no controle concentrado de constitucionalidade, ex vi do art. 103, IX, 1ª parte, pressupõe o preenchimento dos seguintes requisitos: (i) sejam compostas por pessoas naturais ou jurídicas; (ii) sejam representativas de categorias econômicas e profissionais homogêneas; e (iii) tenham âmbito nacional, o que significa ter representação em, pelo menos, 9 (nove) Unidades da Federação (Estados ou Distrito Federal), por aplicação analógica do art. 7º, § 1º, da Lei 9.096/1995 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos – LOPP). 2. O Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil – CIMEB –, a despeito de demonstrar formalmente em seu estatuto o caráter nacional da entidade, não se afigura como categoria profissional ou econômica, razão pela qual não possui legitimidade ativa para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade. 3. Nego provimento ao agravo regimental. (ADI nº 4294 AgR, Relator: Ministro , Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 01/07/2016, Publicação em 05/09/2016; grifou-se);

Ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Conselho Nacional da Associação dos Ex-Combatentes. Falta de legitimidade ativa “ad causam”. - O Plenário desta Corte, ao julgar o pedido de liminar na ação direta de inconstitucionalidade nº 974, proposta pela Associação de Ex-

2 “Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (...) IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.” ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 6 Combatentes do Brasil, não conheceu preliminarmente da referida ADIN por ilegitimidade ativa “ad causam”, acompanhando o voto de seu eminente relator, o Ministro Néri da Silveira, no qual se lê: “Não conheço da ação, por ilegitimidade ativa “ad causam” da suplicante, porque não se compreende no âmbito do artigo 103, IX, 2ª parte, da Constituição. Não é possível admitir como entidade de classe de âmbito nacional a requerente. Não obstante os merecimentos dos ex- combatentes, perante a Pátria, a Associação que os reúne não atende aos requisitos do art. 103, IX, 2ª parte, da Lei Maior, precisamente, porque não será possível entender que os ex- combatentes constituam uma classe, aos efeitos da incidência da regra maior aludida”. - A mesma fundamentação foi utilizada para o não conhecimento da ADIN 1090. Ação direta de que, preliminarmente, não se conhece, ficando prejudicado o exame do pedido de liminar. (ADI nº 2073, Relator: Ministro MOREIRA ALVES, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 09/03/2000, Publicação em 28/04/2000; grifou-se).

No mesmo sentido, o Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO3 afirma, em obra doutrinária, que, para ser reconhecida como entidade de classe, é necessário que os filiados de determinada associação “(...) estejam ligados entre si pelo exercício da mesma atividade econômica ou profissional. Não preenchem tal exigência os grupos sociais constituídos circunstancialmente (...)”.

Além de não representar uma categoria profissional ou econômica, a arguente é marcada pela heterogeneidade de sua composição. Na verdade, o estatuto da autora não menciona as categorias profissionais que a integram, limitando-se a afirmar que representa juristas evangélicos. Aliás, a petição inicial ressalta seu caráter heterogêneo. Confira-se:

A ANAJURE (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) é uma entidade civil com fins não econômicos que congrega advogados, juízes, desembargadores, promotores, procuradores, acadêmicos e bacharéis em direito, tendo seu lançamento institucional sido realizado no Auditório Freitas Nobre da Câmara dos Deputados, em Brasília/DF, em novembro de 2012. (Fl. 08 da petição inicial).

3 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 3. ed, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 157. ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 7 Entretanto, essa Suprema Corte tem reafirmado seu entendimento no sentido de que a entidade de classe, para fins de legitimidade para a instauração de controle abstrato de constitucionalidade, deve ser composta por categoria homogênea. Confira-se:

AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO E REGISTRO DA COMISSÃO PROVISÓRIA MUNICIPAL DO PSB DE FORMOSA- GO, DA COMISSÃO PROVISÓRIA MUNICIPAL DO PV DE FORMOSA-GO E DA COLIGAÇÃO UM NOVO CAMINHO PARA FORMOSA. PARTICIPAÇÃO DOS RESPECTIVOS CANDIDATOS NAS ELEIÇÕES DE 2016. ATOS DE ENTES PRIVADOS E ATOS ADMINISTRATIVOS DE EFEITOS CONCRETOS. AUSÊNCIA DE GENERALIDADE E ABSTRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME EM SEDE DE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. AÇÃO PROPOSTA POR ASSOCIAÇÃO QUE PRETENDE CONGREGAR SERVIDORES DE CATEGORIAS DISTINTAS. INEXISTÊNCIA DE HOMOGENEIDADE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO CARÁTER NACIONAL DA ENTIDADE. INEXISTÊNCIA DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA EM RELAÇÃO AO CONTEÚDO DOS ATOS IMPUGNADOS. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. (...) 5. A Constituição de 1988 ampliou consideravelmente a legitimidade ativa para provocar o controle normativo abstrato, reforçando a jurisdição constitucional por meio da democratização das suas vias de acesso. No caso de entidades de classe de âmbito nacional, a legitimidade deve observar três condicionantes procedimentais: a) homogeneidade entre os membros integrantes da entidade (ADI 108-QI, Rel. Min Celso de Mello, Plenário, DJ de 5/6/1992; ADI 146, Rel. Min. Maurício Corrêa, Plenário, DJ de 19/12/2002); b) representatividade da categoria em sua totalidade e comprovação do caráter nacional da entidade, pela presença efetiva de associados em, pelo menos, nove estados-membros (ADI 386, Rel. Min. Sydney Sanches, Plenário, DJ de 28/6/1991; e ADI 1.486-MC, Rel. Min. Moreira Alves, Plenário, DJ de 13/12/1996); e c) pertinência temática entre os objetivos institucionais da entidade postulante e a norma objeto da impugnação (ADI 1.873, Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, DJ de 19/9/2003). 6. A Associação dos Servidores da Segurança Pública e Privada do Brasil - ASSPP- BRASIL não possui legitimidade para propor arguição de descumprimento de preceito fundamental, mercê de seu universo de associados, que congrega diversas classes, carreiras e categorias, não atender à exigência da homogeneidade. Precedentes: ADI 5.071- AgR, Rel. Min. , Plenário, DJe de 2/2/2018; ADI 4.660-AgR, Rel. Min. , Plenário, DJe de 14/8/2017; ADI 3.900, Rel. Min. Cármen Lúcia, Plenário, DJe de 8/11/2011; ADI 4.230-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, DJe de 14/9/2011. 7. A

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 8 ausência de documentos aptos a demonstrar o caráter nacional da arguente impede a caracterização como entidade de classe de âmbito nacional, porquanto necessária a prova da efetiva representatividade em pelo menos nove Estados da Federação. Precedente: ADI 108, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, DJ de 5/6/1992. 8. As confederações sindicais e as entidades de classe de âmbito nacional não possuem legitimidade para a defesa de interesses gerais, comuns a todos os cidadãos, mas apenas daqueles afetos às respectivas categorias profissionais e econômicas. Precedentes: ADI 5.757-AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Plenário, DJe de 27/8/2018; ADI 5.919-AgR, Rel. Min. , Plenário, DJe de 22/8/2018; ADI 4.302-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Plenário, DJe de 4/4/2018; ADI 3.906-AgR, Rel. Min. Menezes Direito, Plenário, DJe de 5/9/2008; ADI 1.151-MC, Redator p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, Plenário, DJ de 18/11/1994. 9. In casu, o conteúdo das leis impugnadas – constituição e registro de comissões partidárias provisórias e de coligação partidária, registro de candidaturas e diplomação de eleitos nas Eleições de 2016 – revela a inexistência de pertinência temática entre a defesa dos interesses dos profissionais da segurança pública e privada. 1. Agravo a que se nega provimento. (ADI nº 6079 AgR, Relator: Ministro Luiz Fux, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 14/02/2020, Publicação em 06/03/2020; grifou-se).

Além de heterogênea, a autora não comprovou que sua atuação ocorre em âmbito nacional. Nos termos da jurisprudência dessa Suprema Corte, reputa-se de caráter nacional somente a entidade que demonstre reunir membros ou associados em pelo menos 09 (nove) Estados da Federação. Veja-se:

CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ADVOGADOS PÚBLICOS (ABRAP). NÃO COMPROVAÇÃO DA AGRANGÊNCIA NACIONAL DA ENTIDADE. ILEGITIMIDADE ATIVA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A Associação Brasileira de Advogados Públicos (ABRAP), não comprovada a sua abrangência nacional, não detém legitimidade para a propositura de ações de controle concentrado de constitucionalidade. 2. A Jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL é sedimentada quanto à exigência subjetiva da presença da entidade, que se pretenda habilitada a ações de controle concentrada, em ao menos nove estados, critério para confirmação da sua abrangência nacional. Precedentes. 3. Agravo Regimental conhecido e desprovido. (ADI nº 5523 AgR, Relator: Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 09/04/2018, Publicação em 16/04/2018; grifou-se).

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 9 No mesmo sentido é a recente decisão proferida no Agravo Regimental na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 60794, em que restou consignado que “a ausência de documentos aptos a demonstrar o caráter nacional da arguente impede a caracterização como entidade de classe de âmbito nacional, porquanto necessária a prova da efetiva representatividade em pelo menos nove Estados da Federação” (grifou-se).

Acompanha a petição inicial a ata de Assembleia Geral ocorrida no dia 13 de novembro de 2015, a qual elenca a diretoria eleita. Este documento, contudo, contém apenas informações pessoais dos representantes eleitos, os quais não chegam a representar 09 (nove) Estados da Federação (doc. eletrônico nº 4).

Também é insuficiente, para o desiderato de comprovação da abrangência nacional, a indicação de link de sítio eletrônico, como fez a autora à fl. 08 da petição inicial, o qual tampouco contém lista que comprove a identidade, sede e filiação dos associados. Não há, assim, satisfação do requisito da espacialidade.

Ressalte-se, a propósito, que esse Supremo Tribunal Federal, recentemente, reconheceu a ilegitimidade ativa da autora ao negar provimento ao agravo regimental interposto contra a decisão que negou seguimento à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 703. Confira-se:

AGRAVO REGIMENTAL EM ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. DECRETOS MUNICIPAIS. MEDIDAS DE RECOLHIMENTO NOTURNO RELACIONADAS À COVID-19. ILEGIMITIDADE ATIVA. ENTIDADE QUE NÃO REPRESENTA CATEGORIA PROFISSIONAL. INOBSERVÂNCIA DO REQUISITO DA SUBSIDIARIEDADE. POSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO EM SEDE DE CONTROLE CONCENTRADO PERANTE TRIBUNAIS DE JUSTIÇA LOCAIS. DESPROVIMENTO DO AGRAVO REGIMENTAL. 1. A jurisprudência do STF exige, para a caracterização da legitimidade ativa das entidades de classe e

4 ADI nº 6079 AgR, Relator: Ministro LUIZ FUX, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 14/02/2020, Publicação em 06/03/2020. ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 10 confederações sindicais nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, a representatividade de categoria empresarial ou profissional. 2. Sob esse enfoque, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE carece de legitimidade para a propositura da presente arguição, na medida em que congrega associados vinculados por convicções e práticas intelectuais e religiosas. Precedentes. 3. (...) 5. Agravo Regimental a que se nega provimento. (ADPF nº 703 AgR, Relator: Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 17/02/2021, Publicação em 25/02/2021; grifou-se).

Dessa maneira, constata-se que a requerente não detém legitimidade para o ajuizamento da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, a qual não deve ser conhecida.

II.II – Inobservância do princípio da subsidiariedade

O conhecimento da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental também encontra óbice no princípio da subsidiariedade, previsto pelo artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/1999, in verbis:

Art. 4º A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta. § 1º Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. (Grifou-se).

Ao interpretar referido dispositivo, esse Supremo Tribunal Federal concluiu que a arguição de descumprimento de preceito fundamental somente é cabível no caso de não existir outro meio processual apto a sanar, de forma efetiva, suposta lesão a preceito fundamental. Veja-se:

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (CF, ART. 102, § 1º) - AÇÃO ESPECIAL DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE (LEI Nº 9.882/99, ART. 4º, § 1º) - EXISTÊNCIA DE OUTRO MEIO APTO A NEUTRALIZAR A

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 11 SITUAÇÃO DE LESIVIDADE QUE EMERGE DOS ATOS IMPUGNADOS - INVIABILIDADE DA PRESENTE ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O ajuizamento da ação constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental rege-se pelo princípio da subsidiariedade (Lei nº 9.882/99, art. 4º, § 1º), a significar que não será ela admitida, sempre que houver qualquer outro meio juridicamente idôneo apto a sanar, com efetividade real, o estado de lesividade emergente do ato impugnado. Precedentes: ADPF 3/CE, ADPF 12/DF e ADPF 13/SP. A mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, contudo, não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir - impedindo, desse modo, o acesso imediato à argüição de descumprimento de preceito fundamental - revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional. - A norma inscrita no art. 4º, § 1º da Lei nº 9.882/99 - que consagra o postulado da subsidiariedade - estabeleceu, validamente, sem qualquer ofensa ao texto da Constituição, pressuposto negativo de admissibilidade da argüição de descumprimento de preceito fundamental, pois condicionou, legitimamente, o ajuizamento dessa especial ação de índole constitucional, à observância de um inafastável requisito de procedibilidade, consistente na ausência de qualquer outro meio processual revestido de aptidão para fazer cessar, prontamente, a situação de lesividade (ou de potencialidade danosa) decorrente do ato impugnado. (ADPF nº 17 AgR, Relator: Ministro CELSO DE MELLO, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 05/06/2002, Publicação em 14/02/2003; grifou-se).

Em sede doutrinária5, há intenso debate acerca da aplicação prática desse postulado, que possui relevância na fixação das hipóteses de cabimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental. No cerne da questão, discute-se o conteúdo e o alcance da expressão “qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”.

Nesse sentido, a fim de analisar, também por essa vertente, o cabimento da presente arguição, cumpre examinar se a lesão a preceito

5 A propósito, confira-se: BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 273/278. ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 12 fundamental supostamente causada pelos atos impugnados pode ser solucionada por outro meio igualmente eficaz.

Como visto, a arguente pleiteia que essa Suprema Corte declare a inconstitucionalidade de decretos estaduais e municipais que determinaram a suspensão de atividades religiosas. Como se nota, os atos impugnados poderiam ser questionados, via controle concentrado, nos Tribunais de Justiça locais, adotando-se como parâmetros dispositivos das Constituições Estaduais, a exemplo dos artigos 5º, inciso I, da Constituição do Estado de Minas Gerais6; 5º, inciso XV, da Constituição do Estado do Amapá7; e 9º, inciso I, da Constituição do Estado do Piauí8.

Nesse sentido, ao negar seguimento à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 703, também ajuizada pela autora contra um catálogo de decretos estaduais e municipais que instituíram toque de recolher sem ressalvar o trânsito de ministros de confissão religiosa, o Ministro ALEXANDRE DE MORAES posicionou-se no seguinte sentido:

O cabimento da ADPF será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito (ADPF 186/DF, Rel. Min. , DJe de 20/10/2014).

6 “Art. 5º – Ao Estado é vedado: I – estabelecer culto religioso ou igreja, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou com seus representantes relações de dependência ou de aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”

7 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, nos termos do art. 5º da Constituição Federal: (...) XV - é assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida à proteção aos locais de cultos e ás suas liturgias;”

8 “Art. 9º Veda-se ao Estado: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los ou embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;” ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 13 Caso os mecanismos utilizados de maneira exaustiva mostrem-se ineficazes, será cabível o ajuizamento da arguição. Da mesma forma, se desde o primeiro momento se verificar a ineficiência dos demais mecanismos jurisdicionais para a proteção do preceito fundamental, será possível que um dos legitimados se dirija diretamente ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, por meio de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Não é, porém, o que ocorre na presente hipótese, pois é possível o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade dos decretos municipais ora impugnados no âmbito dos respectivos Tribunais de Justiça locais, com base nas normas previstas nos Títulos I e II, da Constituição do Estado da Bahia, nos Títulos I e VIII, da Constituição do Estado do Tocantins, no Título I, da Constituição do Estado do Mato Grosso do Sul, e nos Títulos I, II, e III, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, conforme salientado pelo Ministro CELSO DE MELLO: A possibilidade de instauração, no âmbito do Estado-membro, de processo objetivo de fiscalização normativa abstrata de leis municipais contestadas em face da Constituição Estadual (CF, art. 125, § 2º) torna inadmissível, por efeito da incidência do princípio da subsidiariedade (Lei 9.882/99, art. 4º, § 1º, o acesso imediato à arguição de descumprimento de preceito fundamental. É que, nesse processo de controle abstrato de normas locais, permite-se, ao Tribunal de Justiça estadual, a concessão, até mesmo in limine, de provimento cautelar neutralizador da suposta lesividade do diploma legislativo impugnado, a evidenciar a existência, no plano local, de instrumento processual de caráter objetivo apto a sanar, de modo pronto e eficaz, a situação de lesividade, atual ou potencial, alegadamente provocada por leis ou atos normativos editados pelo Município. (ADPF-MC 100/TO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, decisão monocrática, DJe de 17/12/2008). Ante o exposto, NEGO SEGUIMENTO à presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com base no art. 4º, caput e § 1º, da Lei 9.882/1999 e no art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

Essa decisão, conforme afirmado no item anterior, foi confirmada, à unanimidade, pelo Plenário desse Supremo Tribunal Federal, em acórdão que, no que diz respeito à observância ao requisito da subsidiariedade, apresenta a seguinte ementa:

AGRAVO REGIMENTAL EM ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. DECRETOS MUNICIPAIS. MEDIDAS DE RECOLHIMENTO NOTURNO RELACIONADAS À COVID-19. ILEGIMITIDADE

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 14 ATIVA. ENTIDADE QUE NÃO REPRESENTA CATEGORIA PROFISSIONAL. INOBSERVÂNCIA DO REQUISITO DA SUBSIDIARIEDADE. POSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO EM SEDE DE CONTROLE CONCENTRADO PERANTE TRIBUNAIS DE JUSTIÇA LOCAIS. DESPROVIMENTO DO AGRAVO REGIMENTAL. 1. (...) 3. O cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais, ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito. Precedentes desta CORTE. 4. A possibilidade de impugnação de ato normativo municipal perante o Tribunal de Justiça local, em sede concentrada, tendo-se por parâmetro de controle dispositivo da Constituição estadual, ou mesmo da Constituição Federal, desde que se trate de norma de reprodução obrigatória, caracteriza meio eficaz para sanar a lesividade apontada pela parte, de mesmo alcance e celeridade que a arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em razão do que se mostra desatendido o requisito da subsidiariedade (art. 4º, § 1º, da Lei 9.882/1999). 5. Agravo Regimental a que se nega provimento. (ADPF nº 703 AgR, Relator: Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 17/02/2021, Publicação em 25/02/2021; grifou-se).

Nesse contexto, e tendo-se em vista o recente precedente firmado por esse Supremo Tribunal Federal sobre questão de natureza semelhante, resta evidenciado o não atendimento ao requisito da subsidiariedade, o que também impede o conhecimento da presente arguição.

II.III – Inépcia. Ausência de indicação clara dos atos normativos impugnados.

Conforme narrado, a arguente delimita sua postulação definitiva nos seguintes termos (fl. 32 da petição inicial):

A procedência do pedido, para que seja declarada a incompatibilidade, face ao texto constitucional, do art. 6º, do Decreto n. 031/2020, do Município de João Monlevade/MG, e dos demais dispositivos presentes em outros Decretos Estaduais e Municipais que determinem suspensão/vedação/proibição das atividades religiosas e do funcionamento dos templos religiosos sem qualquer ressalva sobre a possibilidade de realização de práticas religiosas que não geram aglomeração, ante as violações à liberdade religiosa e ao Estado laico. (Grifou-se).

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 15 O pedido formulado pela arguente não atende ao disposto no artigo 3º, inciso II, da Lei nº 9.882/1999, segundo o qual a petição inicial da arguição de descumprimento de preceito fundamental deverá indicar o ato questionado. Tal indicação deve ser realizada de forma precisa, a fim de que se possa oportunizar a manifestação dos órgãos responsáveis pela sua edição e, além disso, adstringir os termos da discussão constitucional realizada no processo objetivo.

Sem a análise do conteúdo específico dos atos impugnados, obstaculiza-se de forma insanável o desenvolvimento dialógico do processo. Aliás, nos termos do artigo 330, § 1º, inciso II, do Código de Processo Civil, “considera-se inepta a petição inicial quando: (...) II – o pedido for indeterminado, ressalvadas as hipóteses legais em que se permite o pedido genérico”.

No caso, o pedido formulado pela requerente carece de precisão, pois dirige-se, genericamente, a todos os decretos estaduais e municipais que suspendam de forma irrestrita atividades religiosas como medida de contenção da pandemia.

Essa circunstância, por si só, atrai a incidência do artigo 4º, caput, da Lei nº 9.882/1999, segundo o qual “a petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator”.

Nessa linha de ideias, o Ministro CELSO DE MELLO não conheceu da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 675, em que o pedido também havia sido formulado de maneira indeterminada. Eis o teor da ementa da referida decisão:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. PETIÇÃO INICIAL QUE NÃO INDICA NEM IDENTIFICA, COM A NECESSÁRIA PRECISÃO E CLAREZA, QUAIS SERIAM OS ATOS ESTATAIS OBJETO DO PROCESSO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO FORMULADO DE MODO ABRANGENTE E IMPRECISO

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 16 QUANTO A SEUS LIMITES. CIRCUNSTÂNCIA ESSA QUE, POR IMPEDIR A ADEQUADA COMPREENSÃO EM TORNO DO CONTEÚDO DO PROVIMENTO JUDICIAL POSTULADO, INVIABILIZA O CONHECIMENTO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO (Lei nº 9.882/99, art. 3º, inciso II, c/c o art. 4º, “caput”). AUSÊNCIA DE SITUAÇÃO DE CONFLITO DIRETO E IMEDIATO ENTRE OS ATOS ESTATAIS IMPUGNADOS E O TEXTO DA CONSTITUIÇÃO. PRETENSÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE CUJO EXAME DEPENDE, NOS TERMOS EM QUE DEDUZIDA PELA ENTIDADE SINDICAL AUTORA, DO CONFRONTO PRÉVIO ENTRE OS “DECRETOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS” QUESTIONADOS (MAS NÃO IDENTIFICADOS) E A LEI Nº 13.979/2020. NECESSÁRIA FORMULAÇÃO, EM REFERIDO CONTEXTO, DE JUÍZO PRELIMINAR DE LEGALIDADE. OBJETO JURIDICAMENTE INIDÔNEO EM SEDE DE ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO. CRISES DE LEGALIDADE SÃO INSUSCETÍVEIS DE FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA. LEGITIMIDADE DO CONTROLE PRÉVIO, PELO RELATOR DA CAUSA, DOS REQUISITOS FORMAIS INERENTES AO CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO (RTJ 139/67, v.g.). ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NÃO CONHECIDA. (ADPF nº 675, Relator: Ministro CELSO DE MELLO, Decisão Monocrática, Julgamento em 17/04/2020, Publicação em 22/04/2020; grifou-se).

Na oportunidade, o Ministro CELSO DE MELLO consignou que não seria suficiente uma referência exemplificativa a decretos regionais e locais que impunham medidas restritivas, o qual não supriria a exigência de determinação dos atos impugnados. Confira-se, por oportuno, o seguinte trecho da mencionada decisão:

A autora, na realidade, ao expor as circunstâncias fáticas que dão suporte à sua pretensão de inconstitucionalidade, limitou-se a afirmar, “tout court”, a existência de “medidas adotadas por autoridades municipais e estaduais”, sem individualizar, porém, quem seriam tais autoridades, a quais unidades da Federação estariam vinculadas e quais atos teriam sido por elas praticados. Embora a autora, em sua peça inaugural, faça uma breve referência à existência de, pelo menos, 07 (sete) decretos que, emanados de diversas unidades da Federação, supostamente consubstanciariam medidas semelhantes àquelas que se buscam questionar nesta sede de fiscalização normativa abstrata, é certo, no entanto, que esses específicos decretos estaduais e municipais foram indicados na petição inicial com propósito meramente

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 17 exemplificativo, não constituindo, eles próprios, objeto da presente arguição de descumprimento, eis que, além de a maior parte dos atos estatais em referência já estar com sua eficácia completamente exaurida (como o “Decreto 535/2020”, o “Decreto 1.103/2020”, o “Decreto 69.577” e o “Decreto 19.613”), não foi contra tais atos que a entidade sindical autora dirigiu o seu pedido principal, mas, tal como por ela própria definido, a presente insurgência se fez em face de “quaisquer atos emitidos por estados e municípios com conteúdo semelhante”, sendo certo, ainda, que a autora não produziu nos autos cópia de qualquer decreto estadual ou municipal que eventualmente pudesse ser identificado como objeto desta impugnação. Vê-se, na realidade, que, longe de a pretensão ora deduzida restringir-se a um ato específico ou a um conjunto de atos determinados, o pleito formulado pela entidade sindical autora estende-se a todos os atos estatais que eventualmente possam veicular as medidas administrativas contra as quais dirige seu inconformismo, veiculando, desse modo, pedido incerto quanto a seus destinatários e indeterminado quanto a seu conteúdo, a revelar que sua postulação ostenta perfil inequivocamente genérico e indefinido. Com efeito, a entidade sindical autora desta arguição de descumprimento, em sua petição inicial, não obstante tenha indicado, em caráter meramente exemplificativo, apenas alguns decretos estaduais e municipais veiculadores das “medidas de enfrentamento” por ela questionadas na presente sede processual, insurge-se, na verdade, tal como assinalado no pedido formulado no item “b” da referida peça inaugural, contra “quaisquer atos emitidos por estados e municípios com conteúdo semelhante” (...). (Grifou-se).

Semelhantemente, ao apreciar os requisitos para o conhecimento da

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 55, o Ministro AYRES

BRITTO negou-lhe seguimento, em razão de formulação genérica, como evidencia o seguinte excerto do decisum:

(...) 3. Muito bem. Feita essa necessária anotação, passo a examinar os pressupostos de cabimento da presente argüição. Fazendo-o, deparo-me com um obstáculo ao seu conhecimento: a argüente não indicou, de forma precisa e delimitada, quais os atos que estariam sendo aqui questionados. Limitou-se a dizer "que os atos oficiais (...) que estão sendo impugnados nesta argüição são todos aqueles que, estribados ou não na Portaria nº 343, de 04 de maio de 2000, que regula os registros das entidades sindicais no âmbito daquele órgão, não se cingem à exclusiva verificação da observância do princípio constitucional da unicidade sindical (...)" (fls. 213). Mais: afirmou que o objeto da presente argüição seria todos os atos "diuturnamente praticados pela Autoridade e que enveredam pelo campo do registro das pessoas

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 18 jurídicas, normatizados pela Lei nº. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e que dela mesma desbordam, para cair na esfera do puro arbítrio" (fls. 214). 4. Nesse fluxo de idéias, omitindo-se a argüente de indicar, de maneira precisa, os atos do Poder Público que estariam sendo impugnados nesta argüição, é de se reconhecer a inépcia da petição inicial (inciso II do art. 3º da Lei nº 9.882/99). Como bem pontuou o Ministério Público Federal (fls. 273): "(...) a mera afirmação genérica de hipóteses de atos do Ministério do Trabalho e Emprego, sem os determinar de forma precisa, não é o bastante para a verificação do que poderá ou não ser impugnado e nem seria cabível admitir-se o contrário, diante da possibilidade de infringir-se o princípio da segurança jurídica, norteador de todo o sistema constitucional moderno." 5. Sem destoar desse ponto de vista, assim se manifestou o Advogado-Geral da União (fls. 260): "(...) ao deixar de individualizar, de apontar expressamente quais são os atos lesivos ou ameaçadores de preceito fundamental, fazendo-o apenas de forma genérica, inviabiliza não apenas a sua identificação para a defesa, mas também a própria aplicação dos efeitos do art. 10 da Lei nº 9.882, de 1999, (fixação de condições e o modo de interpretação), na medida em que esse Supremo Tribunal Federal sequer conhece o conteúdo dos atos tidos como impugnados. (...)" Presente esta ampla moldura, nego seguimento à argüição (§ 1º do art. 21 do RI/STF). (ADPF nº 55, Relator: Ministro AYRES BRITTO, Decisão Monocrática, Julgamento em 23/08/2007, Publicação em 30/08/2007; grifou-se).

Dessa maneira, impõe-se o reconhecimento da inépcia da petição inicial em relação aos atos normativos não especificados no pedido formulado pela arguente.

II.IV – Impossibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de atos com eficácia exaurida

Além disso, diversos dos atos exemplificados na petição inicial já tiveram sua eficácia exaurida. É o caso, por exemplo, do Decreto nº 1.704/2020 do Município de Macapá, cuja vigência era de 15 (quinze) dias, com início no dia 20 de março de 2020; e do Decreto nº 15/2020 do Município de Serrinha/BA, cujo artigo 1º proibiu a realização de cultos religiosos pelo prazo de 14 (catorze) dias, a partir do dia 21 de março de 2020.

Além disso, recorde-se que o Município de Armação dos Búzios/RJ

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 19 afirmou que o Decreto nº 1.366/2020 foi revogado pelo Decreto nº 1.533/2020, posteriormente substituído pelo Decreto nº 1.579/2021, que autoriza o funcionamento dos templos em geral, com limitação da capacidade, ventilação apropriada e observância de medidas sanitárias.

Verificando-se que parte das normas impugnadas, editadas para uma vigência temporária, já exauriram sua eficácia, revela-se inócua a sua retirada do ordenamento jurídico, em sede de fiscalização abstrata.

Em outros termos, mostra-se inadequada a indicação dessa parcela de dispositivos como objeto do presente controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que referidas normas já exauriram seus efeitos. É o que tem, reiteradamente, decidido esse Supremo Tribunal Federal, como evidenciam os seguintes precedentes:

AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL. VIGÊNCIA TEMPORÁRIA. EXAURIMENTO DE SUA EFICÁCIA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. Nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o exaurimento da eficácia de lei temporária enseja a extinção do processo de controle normativo abstrato pela perda superveniente de seu objeto. Precedentes. 2. Eventuais efeitos residuais concretos devem ser questionados nas vias ordinárias adequadas. Precedentes. (ADI nº 5930 AgR, Relatora: Ministra CÁRMEN LÚCIA, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 31/05/2019, Publicação em 01/07/2019; grifou-se);

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS. ART. 42 DA LEI 8.987/1995, COM REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.445/2007. NORMA COM EFICÁCIA EXAURIDA. CONHECIMENTO PARCIAL. NOVA CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO APÓS VENCIMENTO DO PRAZO DO CONTRATO. NECESSIDADE DE NOVA LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. 1. ADI não conhecida com relação aos §§ 3º, 4º, 5º e 6º do art. 42 da Lei 8.987/1995, pois decorrido o prazo máximo de validade em 31 de dezembro de 2010. Precedente: ADI 1.979, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ de 23/6/1999. 2. Interpretação conforme à Constituição conferida ao § 1º do art. 42 da Lei 8.987/1995, no sentido de ser imprescindível a realização de licitação prévia à nova delegação a terceiros. 3. Ação conhecida parcialmente e, nessa parte, julgada

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 20 parcialmente procedente. (ADI nº 4058, Relator: Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 19/12/2018, Publicação em 14/02/2019; grifou-se);

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E FINANCEIRO. SISTEMA ORÇAMENTÁRIO CONSTITUCIONAL INAUGURADO PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988. TELEOLOGIA VOLTADA AO PLANEJAMENTO DA ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO. LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS DO ESTADO DE RONDÔNIA (LEI Nº 2.507/11). TERMO AD QUEM. FINAL DO EXERCÍCIO FINANCEIRO SUBSEQUENTE. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRAZO DE VIGÊNCIA ESGOTADO AO TÉRMINO DO EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2012. EXAURIMENTO DA EFICÁCIA DO DIPLOMA NORMATIVO E DAS NORMAS IMPUGNADAS. PERDA SUPERVENIENTE DE OBJETO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PREJUDICADA. (ADI nº 4663 MC-Ref, Relator: Ministro LUIZ FUX, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 15/10/2014, Publicação em 16/12/2014; grifou-se).

Dessa maneira, também por essa razão, impõe-se o não conhecimento da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental em relação às normas com eficácia exaurida.

II.V – Ausência de interesse de agir em face de dispositivo revogado

Ressalte-se que o único dispositivo efetivamente mencionado no pedido é o artigo 6º do Decreto nº 31/2020 do Município de João Monlevade/MG, editado em março de 2020, o qual suspendia as atividades religiosas, nos seguintes termos:

Art. 6º As lideranças de templos e igrejas deverão suspender suas atividades religiosas, enquanto perdurar a situação de emergência, nos termos deste Decreto.

Em consulta ao sítio eletrônico da Prefeitura do referido Município9,

9 Disponível em: . Acesso em 25 mar. 2021. ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 21 tem-se que o decreto mais recente sobre o tema foi editado no dia 24 de março de 2021. Trata-se do Decreto nº 39/2021, que altera o Decreto nº 35/2021, cujo artigo 2º assim dispõe:

Art. 3º. O artigo 2º passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 2º. Para fins deste Decreto e nos termos da Deliberação nº 130, de 3 de março de 2021, do Comitê Extraordinário Covid-19, de observância obrigatória por todos, somente poderão funcionar as seguintes atividades: (...) XXII – cultos religiosos.”

Essa sucessão normativa indica a revogação, ao menos de forma tácita, do dispositivo expressamente impugnado na presente ação direta, na medida em que o decreto atualmente em vigor ressalva, de forma explícita, os cultos religiosos como atividades que podem funcionar durante a emergência sanitária.

Tal circunstância evidencia perda superveniente do interesse de agir da autora, o que inviabiliza o exame da norma impugnada.

II.VI - Ofensa meramente reflexa ao Texto Constitucional

Note-se, ainda, que a requerente pretende extrair a inconstitucionalidade das medidas de suspensão de atividades religiosas do direito à liberdade de religião. Contudo, a fim de demonstrar a invalidade das normas estaduais e municipais atacadas, invoca as disposições da Lei nº 13.979/2020.

Como não há, na Constituição Federal, uma referência normativa específica sobre medidas restritivas para proteger a saúde pública, é indispensável o cotejo das proibições em exame com o disposto nas normas federais sobre o tema, para então se aferir eventual contrariedade.

Vê-se, pois, que, para a solução da controvérsia apresentada pela

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 22 autora, é imprescindível a análise de norma infraconstitucional, o que evidencia a presença de alegação de ofensa meramente reflexa ao Texto Maior. Tal circunstância está caracterizada, por exemplo, no seguinte trecho da petição inicial, o qual demonstra que a irresignação da arguente é contra a inobservância da Lei nº 13.979/2020:

No dia 6 de fevereiro de 2020, foi publicada a Lei n. 13.979, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Dentre as medidas listadas como meios de combate da pandemia, tivemos a quarentena (art. 3º, II, Lei n. 13.979/2020), definida pela legislação como a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus ” (art. 2º, II, Lei n. 13.979/2020). A própria lei estabeleceu algumas balizas para a execução das medidas propostas. Assim, o art. 3º, § 1º, da Lei n. 13.979/2020, fixou que as ações adotadas pelo Poder Público devem possuir base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde, sendo limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública. A legislação também assegurou o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas (art. 3º, § 2º, inciso III, Lei n. 13.979/2020). (Fls. 18/19 da petição inicial; grifou-se).

Assim sendo, tem-se que a arguição de descumprimento de preceito fundamental não se revela como a via adequada para a análise da suposta inconstitucionalidade das disposições estaduais e municipais questionadas, uma vez que o controle normativo abstrato pressupõe que o exame de seu objeto seja realizado exclusivamente à luz do Texto Constitucional.

Nessa linha, resta destacar que esse Supremo Tribunal Federal possui entendimento pacífico pela impossibilidade da instauração do processo objetivo de fiscalização normativa quando o juízo de constitucionalidade depender de prévio confronto entre a regra impugnada e outros atos normativos

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 23 infraconstitucionais editados pelo Poder Público. Confira-se:

AGRAVO INTERNO. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. CONVERSIBILIDADE EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ERRO GROSSEIRO. IMPOSSIBILIDADE. INÉPCIA CONFIGURADA. NÃO ATENDIMENTO DO ART. 3º, II, DA LEI Nº 9.882/99. IMPUGNAÇÃO A LEIS ESTADUAIS E A DECRETO REGULAMENTAR FEDERAL. OFENSA INDIRETA À CONSTITUIÇÃO. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental não pode ser convertida em Ação Direta de Inconstitucionalidade quando decorre de erro grosseiro ou quando apresentar prejuízo à efetividade processual. Precedente: ADPF 314 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 11/12/2014. 2. In casu, a inicial da ADPF impugna simultaneamente leis municipais, leis estaduais e decreto regulamentar federal, além de questionar as Leis Estaduais 12.923/2005 de Pernambuco e 3.533/2001 do Rio de Janeiro por supostamente causarem “insegurança jurídica” ante “o teor irretocável” das Leis Municipais nº 17.149/2005 do Recife e 3.820/2004 do Rio de Janeiro, pretendendo verdadeiro controle de leis estaduais em face de legislação municipal, motivo pelo qual a exordial é inepta, não atendendo ao exigido pelo art. 3º, II, da Lei nº 9.882/99. 3. A questão suscitada pelo Requerente, ainda que superados os óbices processuais, sequer configuraria ofensa direta a preceito constitucional, pois cabe ao legislador ordinário, à míngua de regra expressa em contrário na Constituição, a escolha política sobre a melhor forma de realização da atenção prioritária a idosos, gestantes e portadores de necessidades especiais em estabelecimentos comerciais. Precedente: Rcl 2396 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Primeira Turma, julgado em 24/11/2004. 4. A afronta indireta a preceitos constitucionais não autoriza o ajuizamento da ADPF. Precedentes: ADPF 406 AgR, Relator(a): Min. , Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2016; ADPF 350 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 18/11/2016; ADPF 354 AgR, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2016. 5. Agravo interno a que se nega provimento. (ADPF nº 195 AgR, Relator: Ministro LUIZ FUX; Órgão julgador: Tribunal Pleno; Julgamento em 05/10/2018; Publicação em 24/10/2018; grifou-se);

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI Nº 9.264/96, QUE DISPÕE SOBRE A REORGANIZAÇÃO DA CARREIRA POLICIAL CIVIL DO DISTRITO FEDERAL E FIXA A REMUNERAÇÃO DE SEUS CARGOS - ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA IRREDUTIBILIDADE DOS VENCIMENTOS, À GARANTIA DA INTANGIBILIDADE DAS SITUAÇÕES

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 24 JURÍDICAS CONSOLIDADAS E AO POSTULADO DA ISONOMIA - JUÍZO DE CONSTITUCIONALIDADE DEPENDENTE DA PRÉVIA ANÁLISE DE ATOS ESTATAIS INFRACONSTITUCIONAIS - IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DESSE COTEJO EM SEDE DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO - AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA. - Não se legitima a instauração do processo de fiscalização normativa abstrata sempre que o juízo de constitucionalidade depender, para efeito de sua formulação, de prévio confronto entre o ato estatal questionado e o conteúdo de outras normas jurídicas infraconstitucionais editadas pelo Poder Público. A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na Constituição. A válida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame ‘in abstracto’ do ato estatal impugnado seja realizado, exclusivamente, à luz do texto constitucional. A inconstitucionalidade deve transparecer, diretamente, do próprio texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da prévia análise do diploma estatal objeto da ação direta, examinado em face de outras espécies jurídicas revestidas de caráter meramente infraconstitucional. Precedentes. (ADI nº 1419, Relator: Ministro CELSO DE MELLO, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 24/04/1996, Publicação em 07/12/2006; grifou-se).

Como a Constituição da República não contém regra pormenorizada apta a servir de parâmetro de controle para a proibição adversada na presente arguição, sendo necessária a intermediação de lei federal, impõe-se o seu não conhecimento.

III – MÉRITO

Conforme narrado, a autora pretende que esse Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade de decretos estaduais e municipais que suspendem ou proíbem a realização de atividades religiosas e o funcionamento de templos, sem ressalvar a sua viabilidade nos casos em que não há aglomeração de pessoas.

Cabe analisar, portanto, se a suspensão irrestrita de atividades religiosas no contexto de combate à pandemia viola o direito de crença.

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 25 Essa análise deve ser realizada à luz dos parâmetros recentemente fixados por esse Supremo Tribunal Federal em decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade.

Ressalte-se, inicialmente, que, no exercício da competência prevista no artigo 24, inciso XII, da Constituição da República10, a União editou a Lei nº 13.979/2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Na Exposição de Motivos que acompanhou o projeto que lhe deu origem11, o Ministro da Saúde enfatizou a necessidade de atualizar a legislação de regência, a fim de positivar instrumentos hábeis ao combate da doença. Nesse sentido, afirmou, também, o seguinte:

6. Nesse sentido, considerando a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus, consoante já reconhecido pela Organização Mundial de Saúde – OMS, o anteprojeto de lei visa adequar a legislação interna, coordenando as ações e os serviços do SUS em todas as esferas federativas para permitir uma atuação eficiente e eficaz, mediante a definição de instrumentos que possibilitem o enfrentamento ágil da situação de emergência sanitária internacional existente, objetivando a proteção da coletividade, com maior segurança jurídica.

7. Assim, apresentar um anteprojeto de lei que regulamente emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus no Brasil, articulando a proteção aos direitos humanos à adequação dos instrumentos de vigilância e atenção à saúde e aos requisitos do mundo atual, mostra-se, portanto, fundamental para que o Estado possa cumprir o seu dever constitucional de garantia do direito à saúde.

No corpo do referido diploma legislativo, estão previstas medidas que resguardam a coletividade. Seu artigo 3º permite às autoridades públicas, no

10 “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;”

11 Disponível em: . Acesso em 25 de março de 2020. ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 26 âmbito de suas competências, a determinação de isolamento, quarentena e realização compulsória de exames médicos, por exemplo. Portanto, a referida lei possui caráter de norma geral, cujo objetivo é disciplinar emergência sanitária para garantir a concretização do direito à saúde, fazendo-o, no entanto, com espeque no fundamental postulado da segurança jurídica.

Considerando a necessidade de resguardo das atividades essenciais, os §§ 8º a 11 de seu artigo 3º, na redação conferida pela Medida Provisória nº 926/2020, dispuseram o seguinte:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (...) § 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. § 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º. § 10. As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caput, quando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador. § 11. É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidas nos termos do disposto no § 9º, e cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população.

Note-se que os dispositivos acima declinados não atingem a competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios. Pelo contrário, o caput do artigo 3º é enfático ao estabelecer que as medidas excepcionais podem ser adotadas pelas “autoridades, no âmbito de suas competências”.

A compreensão atual dessas disposições deve ser realizada à luz do que esse Supremo Tribunal Federal decidiu nas Ações Diretas de

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 27 Inconstitucionalidade nº 6341 e 6343 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672. Tais julgamentos, proferidos no período da pandemia, versaram sobre a distribuição de competências federativas, estabelecendo diretrizes para o seu exercício no atual cenário.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341 são questionados diversos dispositivos da Lei nº 13.979/2020, e, de forma específica, a possibilidade de se considerar como exclusiva a competência da União para dispor sobre a interdição de serviços públicos e atividades essenciais mediante decreto do Presidente da República.

Deferida parcialmente de forma monocrática a medida cautelar, submeteu-se ao Plenário o seu referendo. Na ocasião, esse Supremo Tribunal Federal confirmou a medida cautelar e, por maioria, acrescentou interpretação conforme a Constituição ao artigo 3º, § 9º, da Lei nº 13.979/2020 (na redação supratranscrita), em decisão de julgamento que possui o seguinte teor:

O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte, quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Redigirá o acórdão o Ministro Edson Fachin. Falaram: pelo requerente, o Dr. Lucas de Castro Rivas; pelo amicus curiae Federação Brasileira de Telecomunicações - FEBRATEL, o Dr. Felipe Monnerat Solon de Pontes Rodrigues; pelo interessado, o Ministro André Luiz de Almeida Mendonça, Advogado-Geral da União; e, pela Procuradoria-Geral da República, o Dr. Antônio Augusto Brandão de Aras, Procurador-Geral da República. Afirmou suspeição o Ministro Roberto Barroso. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6343, por seu turno, tem como objeto de impugnação expressões contidas no artigo 3º, inciso VI, alínea

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 28 “b”, e §§ 1º, 6º e 7º, inciso II, da Lei nº 13.979/2020. Nada obstante o indeferimento monocrático da medida cautelar pleiteada, o Plenário desse Supremo Tribunal Federal deferiu, em parte, o referido pedido, nos termos do quanto expresso no extrato da decisão colegiada a seguir transcrito:

O Tribunal, por maioria, concedeu parcialmente a cautelar para i) suspender parcialmente, sem redução de texto, o disposto no art. 3º, VI, b, e §§ 6º e 7º, II, a fim de excluir estados e municípios da necessidade de autorização ou observância ao ente federal; e ii) conferir interpretação conforme aos referidos dispositivos no sentido de que as medidas neles previstas devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada, devendo ainda ser resguardada a locomoção dos produtos e serviços essenciais definidos por decreto da respectiva autoridade federativa, sempre respeitadas as definições no âmbito da competência constitucional de cada ente federativo, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencidos o Ministro Marco Aurélio (Relator), que trazia a referendo o indeferimento da medida liminar, e, em parte, os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que deferiam parcialmente a medida cautelar para conferir interpretação conforme ao inciso II do § 7º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020. Afirmou suspeição o Ministro Roberto Barroso, ausente justificadamente. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 06.05.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência - Resolução 672/2020/STF).

Por fim, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672, ajuizada em face de supostas ações e omissões do Poder Público federal diante da crise provocada pela pandemia, esse Supremo Tribunal Federal confirmou a medida cautelar concedida pelo Ministro Relator

ALEXANDRE DE MORAES e julgou parcialmente procedente o feito, em decisão que apresenta a seguinte ementa:

CONSTITUCIONAL. PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID- 19). RESPEITO AO FEDERALISMO. LEI FEDERAL 13.979/2020. MEDIDAS SANITÁRIAS DE CONTENÇÃO À DISSEMINAÇÃO DO VÍRUS. ISOLAMENTO SOCIAL. PROTEÇÃO À SAÚDE, SEGURANÇA SANITÁRIA E EPIDEMIOLÓGICA. COMPETÊNCIAS COMUNS E CONCORRENTES E RESPEITO AO PRINCÍPIO DA PREDOMINÂNCIA DO INTERESSE (ARTS. 23, II, 24, XII, E 25, § 1º, DA CF). COMPETÊNCIAS DOS ESTADOS PARA IMPLEMENTAÇÃO DAS MEDIDAS PREVISTAS EM LEI

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 29 FEDERAL. ARGUIÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. Proposta de conversão de referendo de medida cautelar em julgamento definitivo de mérito, considerando a existência de precedentes da CORTE quanto à matéria de fundo e a instrução dos autos, nos termos do art. 12 da Lei 9.868/1999. 2. A gravidade da emergência causada pela pandemia do coronavírus (COVID-19) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde, sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes, que devem ser cada vez mais valorizados, evitando-se o exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de COVID-19. 3. Em relação à saúde e assistência pública, a Constituição Federal consagra a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, II e IX, da CF), bem como prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, da CF), permitindo aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, da CF); e prescrevendo ainda a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CF, e art. 7º da Lei 8.080/1990), com a consequente descentralização da execução de serviços, inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, da Lei 8.080/1990). 4. O Poder Executivo federal exerce o papel de ente central no planejamento e coordenação das ações governamentais em prol da saúde pública, mas nem por isso pode afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus respectivos territórios, como a imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, sem prejuízo do exame da validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal editado nesse contexto pela autoridade jurisdicional competente. 5. Arguição julgada parcialmente procedente. (ADPF nº 672 MC-Ref, Relator: Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 13/10/2020, Publicação em 29/10/2020; grifou-se).

Ressalte-se, por oportuno, que a Lei nº 14.035/2020 conferiu nova redação ao artigo 3º, caput e §§ 8º a 11 da Lei nº 13.979/2020, os quais passaram

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 30 a dispor o seguinte:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) § 8º Na ausência da adoção de medidas de que trata o inciso II do § 7º deste artigo, ou até sua superveniência, prevalecerão as determinações: I – do Ministério da Saúde em relação aos incisos I, II, III, IV, V e VII do caput deste artigo; e II – do ato conjunto de que trata o § 6º em relação às medidas previstas no inciso VI do caput deste artigo. § 9º A adoção das medidas previstas neste artigo deverá resguardar o abastecimento de produtos e o exercício e o funcionamento de serviços públicos e de atividades essenciais, assim definidos em decreto da respectiva autoridade federativa. § 10. As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caput , observado o disposto nos incisos I e II do § 6º-B deste artigo, quando afetarem a execução de serviços públicos e de atividades essenciais, inclusive os regulados, concedidos ou autorizados, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que haja articulação prévia com o órgão regulador ou o poder concedente ou autorizador. § 11. É vedada a restrição à ação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e de atividades essenciais, definidos conforme previsto no § 9º deste artigo, e as cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população.

De tal modo, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem, observado o âmbito de suas competências constitucionais, estabelecer medidas restritivas, assim como decidir que atividades são consideradas essenciais. Como está evidente do caput do artigo 3º da Lei nº 13.979/2020, as medidas nele elencadas não constituem rol exaustivo, admitindo-se que as autoridades adotem outras providências.

As restrições estatais, contudo, deverão sempre observar a razoabilidade e basear-se em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde. Além disso, devem ser temporárias. É, precisamente, o que dispõe o artigo 3º, § 1º, da Lei nº 13.979/2020, in verbis:

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 31 Art. 3º (...) (...) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública. (Grifou-se).

O teor em destaque desse dispositivo foi questionado na mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6343 e não teve sua eficácia suspensa quando da análise da medida cautelar, que, aliás, reforçou a necessidade de as decisões restritivas adotadas pelos entes federativos observarem embasamento técnico e científico.

Além disso, repita-se, as medidas devem ser temporal e espacialmente limitadas. Nos termos do artigo 3º, § 2º, inciso III, da Lei nº 13.979/2020, os cidadãos afetados pelas medidas restritivas têm direito ao “pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020”.

Por sua vez, o referido dispositivo do Regulamento Sanitário Internacional possui o seguinte teor:

Artigo 3 Princípios 1. A implementação deste Regulamento será feita com pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas. 2. A implementação deste Regulamento obedecerá à Carta das Nações Unidas e a Constituição da Organização Mundial da Saúde. 3. A implementação deste Regulamento obedecerá a meta de sua aplicação universal, para a proteção de todos os povos do mundo contra a propagação internacional de doenças. 4. Os Estados possuem, segundo a Carta das Nações Unidas e os princípios de direito internacional, o direito soberano de legislar e implementar a legislação a fim de cumprir suas próprias políticas de saúde. No exercício desse direito, deverão observar o propósito do presente Regulamento. (Grifou-se).

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 32 É certo, portanto, que a implementação de qualquer medida restritiva, no contexto do combate à atual pandemia, depende de lastro técnico idôneo, deve ser espacial e temporalmente limitada e, além disso, deve preservar a dignidade, os direitos humanos e as liberdades fundamentais das pessoas.

Isso não significa, contudo, que haja direitos fundamentais absolutos. Com efeito, o cenário pandêmico revelou diversas novas situações em que os direitos humanos entram em rota de colisão, o que exige do legislador e do gestor público um exercício de ponderação no estabelecimento das medidas restritivas.

O argumento oferecido na petição inicial, segundo o qual a restrição das atividades religiosas atentaria contra a laicidade do Estado e a liberdade religiosa, demanda o exame de cada norma impugnada, com a verificação de sua razoabilidade, temporariedade e do respeito ao núcleo essencial dos direitos fundamentais.

No presente caso, os óbices processuais apontados impedem a análise precisa sobre o teor dos atos estatais questionados, o que seria imprescindível para verificar a constitucionalidade da medida restritiva em cada caso.

Entretanto, é possível afirmar desde logo que a restrição total de atividades religiosas, inclusive de transmissões virtuais e sem aglomeração de pessoas, nos moldes impugnados na petição inicial, não atende aos requisitos da proporcionalidade, na medida em que impacta de forma excessiva o direito à liberdade de religião, sem que demonstrada a correlação com os fins buscados e com desprezo de alternativas menos gravosas. Essa circunstância torna-se ainda mais evidente quando se trata de medidas sem delimitação temporal.

A utilização da proporcionalidade, considerada corolário do devido processo legal, como critério de controle da constitucionalidade de medidas que restringem direitos fundamentais tem sido corrente nesse Supremo Tribunal

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 33 Federal12. Em sede doutrinária, Ingo Sarlet resume os elementos da proporcionalidade, nos seguintes termos:

De acordo com a posição corrente e amplamente recepcionada pela doutrina e também acolhida em sede jurisprudencial (embora nem sempre corretamente aplicada), na sua função como critério de controle da legitimidade constitucional de medidas restritivas do âmbito de proteção dos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade costuma ser desdobrado em três elementos (subcritérios ou subprincípios constitutivos, como prefere Gomes Canotilho): (a) adequação ou conformidade, no sentido de um controle de viabilidade (isto é, da idoneidade técnica) de que seja em princípio possível alcançar o fim almejado por aquele(s) determinado(s) meio(s) (...); (b) necessidade ou exigibilidade, em outras palavras, a opção pelo meio restritivo menos gravoso para o direito objeto da restrição, exame que envolve duas etapas de investigação: o exame da igualdade de adequação dos meios (a fim de verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim) e, em segundo lugar, o exame do meio menos restritivo (com vista a verificar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais afetados) (...) (c) proporcionalidade em sentido estrito ( que exige a manutenção de um equilíbrio (proporção) e, portanto, de uma análise comparativa) entre os meios utilizados e os fins colimados, no sentido do que por muitos tem sido também chamado de razoabilidade ou justa medida, já que mesmo uma medida adequada e necessária poderá ser desproporcional13.

Na hipótese dos autos, a autora aponta o excesso havido ao consignar que “algumas das vedações estabelecidas às organizações religiosas proíbem qualquer manifestação religiosa, sem ressalvas ou critérios, ainda que não haja

12 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI Nº 8.713/93 (ART. 8º, § 1º, E ART. 9º) – (...) SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW E FUNÇÃO LEGISLATIVA: A cláusula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição - deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe da competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. (ADI nº 1063 MC, Relator: Ministro Celso de Mello, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 18/05/1994, Publicação em 27/04/2001; grifou-se).

13 SARLET, Ingo Wolfgang. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Em: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 393.

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 34 aglomeração. Como resultado, em muitos locais, líderes religiosos têm sido embaraçados durante a transmissão de cerimônias religiosas por meios virtuais, quando não há qualquer público presente” (fl. 02 da petição inicial, grifou-se).

A instituição dessa espécie de restrição não atende aos crivos da adequação e da necessidade. Isso porque a completa interdição de atividades religiosas, inclusive por meio virtual, traduz, em si mesma, uma medida excessivamente onerosa, porquanto poderia ser substituída por restrições parciais, voltadas a evitar situações em que haja o risco acentuado de contágio.

Em outros termos, é particularmente excessiva, no ponto, a proibição irrestrita de realização de eventos religiosos, a qual abrange, inclusive, aqueles empreendidos por meio virtual, segundo alegado pela requerente.

Deve-se considerar, mais uma vez, que qualquer ato normativo que restrinja os direitos humanos em prol da promoção da saúde deve ser fundamentado em evidências científicas e ter a tônica da excepcionalidade. Tais exigências decorrem da Lei nº 13.979/2020 e da interpretação que lhe conferiu esse Supremo Tribunal Federal.

Ressalte-se, por fim, que, no âmbito federal, o Decreto nº 10.282/2020 prevê que as atividades religiosas de qualquer natureza são atividades essenciais, cujo exercício deverá ser resguardado quando do estabelecimento de medidas restritivas. Confira-se:

Art. 3º As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1º. § 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como: (...)

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 35 XXXIX - atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde;

Embora a jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal tenha considerado que a União não detém exclusividade na definição dos serviços e atividades que seriam essenciais durante a pandemia, é importante ter presente que o Plenário dessa Suprema Corte manteve a validade do rol de conceitos essenciais declinado no Decreto nº 10.282/2020, pelo que ele conserva seu valor jurídico.

Ao lado das demais conclusões estabelecidas no julgamento das ADIs nº 6341 e 6343, fica autorizado dizer que, para estabelecer disciplina sanitária limitadora das liberdades pessoais, os governos regionais e locais devem fazê-lo (i) mediante apresentação de fundamentação técnica apropriada; e (ii) desde que não interfiram nas competências privativas de outros entes. Caso essas condições de legitimidade sejam descumpridas, com a consequente nulidade das medidas locais, deve prevalecer a regência geral estabelecida nas normas federais sobre o tema.

É o que se verifica na espécie. À mingua da necessária justificação técnica, os atos normativos suspendem ou proíbem as atividades religiosas e o funcionamento dos templos religiosos sem delimitação temporal ou sem ressalvar a possibilidade de realização de práticas que não geram aglomeração de pessoas, como transmissões online. Ao assim dispor, desconsideram, a um só tempo, as condicionantes de devido processo legal preconizadas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e pela legislação federal.

Conclui-se, portanto, que a implementação de qualquer medida restritiva, no contexto do combate à atual pandemia, depende de lastro técnico idôneo e, além disso, deve preservar as liberdades fundamentais das pessoas, observando-se a proporcionalidade, o que não se verificou no caso concreto.

ADPF nº 701, Rel. Min. Nunes Marques. 36 IV – CONCLUSÃO

Por todo o exposto, o Advogado-Geral da União manifesta-se pelo não conhecimento da presente arguição e, no mérito, pela sua procedência.

São essas, Excelentíssimo Senhor Relator, as considerações que se tem a fazer até o momento, cuja juntada aos autos ora se requer.

Brasília, de março de 2021.

FABRÍCIO DA SOLLER Advogado-Geral da União Substituto

IZABEL VINCHON NOGUEIRA DE ANDRADE Secretária-Geral de Contencioso

MARIA HELENA MARTINS ROCHA PEDROSA Advogada da União

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