A Ilusão Do Sufrágio Feminino Na Revolução Republicana Portuguesa De 19101
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DA ESPERANÇA À DECEÇÃO: A ILUSÃO DO SUFRÁGIO FEMININO NA REVOLUÇÃO REPUBLICANA PORTUGUESA DE 19101 FROM HOPE TO DECEPTION: THE ILLUSION OF FEMALE SUFFRAGE IN PORTUGUESE REPUBLICAN REVOLUTION 1910 João Esteves Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Estudos de História Contemporânea SUMARIO: I. TORNAR AS MULHERES ELEITORAS. 1.1. Contaminação do espaço público. 1.2. As petições feministas, republicanas e sufragistas 1.3. Porquê o voto? – II. AS REPRESENTAÇÕES DE OUTUBRO DE 1910 E FEVEREIRO DE 1911. – III. MADELEINE PELLETIER EM PORTUGAL. – IV. A LEI ELEITORAL DE 14 DE MARÇO DE 1911. 4.1. Carolina Beatriz Ângelo: médica, pacifista, maçónica, republicana e sufragista. 4.2. Uma mulher quer recensear-se. 4.3. Impacto na imprensa. 4.4. O recurso para os tribunais. 4.5. A sentença do Juiz João Baptista de Castro. 4.6. O voto. 4.7. Cinco repercussões. 4.8. Um não acaso. – V. A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE E A CONSTITUIÇÃO DE 1911. 5.1. A representação da APF à Assembleia Nacional Constituinte. 5.2. A Constituição de 1911. – VI. O SENADO APROVA, EM 1912, O SUFRÁGIO FEMININO RESTRITO. 6.1. Nova representação da LRMP à Câmara dos Deputados. – VII. A LEI ELEITORAL DE 1913: O RETROCESSO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. – VIII. A REPRESENTAÇÃO DE 1915 AO GOVERNO E AO PARLAMENTO. – IX. A DERRADEIRA ESPERANÇA: A “REPÚBLICA NOVA”. – X. A DÉCADA DE 1920. Resumen: Na sequência da revolução republicana de 5 de outubro de 1910, a reivindicação do sufrágio feminino tornou-se tema de debate, envolvendo o associativismo feminino, políticos, parlamentares (deputados e senadores), governantes, ministros, chefes de governo, Presidentes da República, juízes e tribunais. A discussão prolongou-se pelos dezasseis anos da I República e se, num primeiro momento, a rutura de poderes revelou-se favorável às aspirações sufragistas, normalizadas as instituições, sobreveio a deceção com a recusa do voto restrito para as mulheres. 1 Este texto retoma e reexamina investigações parcelares desenvolvidas, entre outros estudos, para os livros A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas – uma organização política e feminista (1909-1919), Lisboa, ONG do Conselho Consultivo da CIDM, 1992, As Origens do Sufragismo Português, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998, e Mulheres e Republicanismo (1908-1928), Lisboa, CIG, 2008, bem como para a Exposição Carolina Beatriz Ângelo – Intersecções dos sentidos / palavras, actos e imagens, organizada pelo Museu da Guarda em 2010. Historia Constitucional, n. 15, 2014. http://www.historiaconstitucional.com, págs. 471-507 Abstract: Following the republican revolution of October 5, 1910, to claim the women's suffrage became a topic of debate, involving women's organizations, politicians, parliamentarians (deputies and senators), governors, ministers, heads of government, Presidents of the Republic, judges and courts. The discussion lasted for sixteen years the 1st Republic and, at first, the rupture of powers was favorable to the suffragists’ aspirations. Once the institutional situation was normalized, the disappointment came, at the refusal of the restricted voting rights for women. Palabras clave: I República, sufrágio feminino, Carolina Beatriz Ângelo, Assembleia Nacional Constituinte, Parlamento, legislação eleitoral. Key Words: 1st Republic, women’s suffrage, Carolina Beatriz Ângelo, the Constituent National Assembly, Parliament, electoral legislation. I. TORNAR AS MULHERES ELEITORAS 1.1. Contaminação do espaço público Foi durante as primeiras três décadas do século XX que se consolidou a contaminação do espaço público por uma elite feminina devido, em grande parte, ao contributo discursivo, argumentativo e organizativo de feministas e republicanas. Quando a revolução republicana triunfou a 5 de Outubro de 1910, havia já alguns anos de movimentações de mulheres esclarecidas que lutavam pelo reconhecimento dos seus direitos e cujas reivindicações se impuseram durante a I República. Se o republicanismo contribuíra para o impacto e consolidação do feminismo português, sendo este suportado por escritoras, médicas, farmacêuticas, professoras, educadoras, jornalistas e domésticas, aquele começara a esboçar-se em finais do século XIX e revelou-se inicialmente autónomo, independente e diversificado. A consciencialização, mobilização e intervenção cívica, associativa e política das mulheres em Portugal beneficiou da conjuntura política vivida no dealbar do século, resultou de contributos diversos e envolveu opiniões convergentes quanto aos novos papéis que lhes caberiam desempenhar na sociedade, embora nem sempre coincidentes quanto a orientações políticas, estratégias, lideranças e reclamações. Desde os últimos anos da Monarquia até ao II Congresso Feminista e de Educação, em 1928, assistiu-se ao questionar da situação das mulheres portuguesas, cuja subalternidade sobressaía do Código Civil em vigor e da elevada taxa de analfabetismo (85,4%, em 1890, 85%, em 1900 e 81,2%, em 1911); divulgação das lutas travadas por todo o mundo, com enfoque nos países europeus, Canadá e Estados Unidos da América; intervenção, mediante a palavra escrita, na imprensa e, posteriormente, através de discursos públicos; adesão ao pacifismo; proximidade e iniciação na Maçonaria das principais líderes e dirigentes; constituição de agremiações feministas de cariz pacifista, maçónico, republicano, sufragista, apolítico ou nacionalista; politização, confrontos ideológicos e fragmentações; envolvimento no republicanismo militante e na construção da República triunfante; formulação de 472 representações, umas vezes específicas, outras de natureza genérica; filiações nas organizações internacionais mais representativas; promoção de eventos. Procuravam combater a menorização das mulheres e, paulatinamente, centraram-se na conquista de direitos políticos, nomeadamente o do sufrágio feminino, embora com cambiantes consoante quem o formulava. Se na primeira década do século XX a ação recaiu na denúncia das condições legais, sociais, políticas, económicas, educativas e morais em que se encontravam as portuguesas e na justeza de obterem os mesmos direitos e deveres de que beneficiavam a parte masculina da sociedade, os anos de 1910 foram marcados por sucessivas reivindicações, evidenciando-se nas movimentações o feminismo republicano e sufragista2. 1.2. As petições feministas, republicanas e sufragistas Assim, se houve assunto que acarretou acalorado debate público e institucional nos meses subsequentes ao triunfo da República Portuguesa, a 5 de Outubro de 1910, e se prolongou, embora com menor visibilidade, durante os dezasseis anos seguintes, até 1926, foi o do sufrágio feminino, envolvendo a imprensa, associações, políticos, parlamentares – deputados e senadores –, governantes, ministros, chefes de governo, Presidentes da República e, até, juízes e tribunais. É também aquele que melhor permite apreender o relacionamento da elite republicana feminina, feminista e maçónica com o novo regime, as esperanças e desilusões e, sobretudo, como a rutura de poderes foi, no imediato, favorável às aspirações de algumas mulheres e, normalizadas as instituições, a capacidade de intervenção e de influência daquelas tornou-se diminuta ou inexistente. Entre 1910 e 1913, as mulheres converteram-se nas protagonistas das discussões e polémicas em torno da legislação eleitoral da República, interpelaram direta e repetidamente os poderes instituídos e conseguiram, durante algum tempo, ser recebidas e escutadas por todos eles. Tornaram-na objeto de debate, simultaneamente, institucional e público, acessível a todos e todas quanto quisessem dar opinião. Apesar da Tese “Feminismo”, apresentada e discutida no I Congresso Nacional do Livre Pensamento, ocorrido em abril de 1908, contemplar o voto, “não se compreendendo por que motivo podem usar desse direito todos os homens, embora ignorantes, e ele seja recusado a mulheres de reconhecida capacidade intelectual e moral”, tendo Maria Veleda (1871-1955)3, uma das duas autoras, chegado a propor que “aquele discuta as conveniências de uma 2 João Esteves, “Feminismo, feminismos e sufragismo na 1ª República”, em Zília Osório de Castro, João Esteves e Natividade Monteiro (coord.), Mulheres na 1ª República. Percursos, conquistas, derrotas, Lisboa, Edições Colibri, 2011, pp. 19-46. 3 Professora, feminista, maçónica, republicana, livre-pensadora e espírita, manteve relevante atividade política e associativa entre 1907 e 1916. Sobre o percurso desta ativista, consultar João Esteves, “Maria Carolina Frederico Crispim”, em Zília Osório de Castro e João Esteves (direção), Dicionário no Feminino (séculos XIX-XX), Lisboa, Livros Horizonte, 2005, pp. 605-614 e Natividade Monteiro, Maria Veleda (1871-1955) - Uma professora feminista, republicana e livre-pensadora. Caminhos Trilhados pelo Direito de Cidadania, Olhão, Gente Singular Editora, 2012. 473 manifestação pública, coletiva, por parte das mulheres portuguesas, em favor do sufrágio feminino, dirigindo-se em cortejo sério e ordenado ao parlamento, onde apresentaria a reclamação desse direito”4, e da promessa do voto expressa pelo Partido Republicano Português no Congresso de Setúbal, em abril de 1909, em que a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP) foi reconhecida como fazendo parte das estruturas republicanas e Ana de Castro Osório (1972-1935)5, sua dirigente, discursou, a reivindicação do sufrágio feminino só mereceu devida atenção na sequência da revolução republicana. Dando continuidade a uma prática corrente durante a monarquia constitucional6, as feministas e republicanas endossaram, entre