NOTA HISTÓRICA Após a delação feita por Joaquim Silvério dos Reis, o governador suspendeu a Derrama, o que acabou por A sentença condenatória de Tiradentes e arrefecer os ânimos dos possíveis apoiadores. Seguiu-se, então, uma devassa que terminou com a prisão dos a construção do mito* envolvidos. Inicialmente, houve uma negativa coletiva da existência de um projeto de insurreição. Tiradentes A Memória do Judiciário Mineiro organizou, em acabou sendo citado em diversos depoimentos e termi- abril de 2008, uma série de atividades com a exposição nou por admitir tanto o plano de levante quanto sua par- itinerante de vários documentos que remetem a três fases ticipação no mesmo, sendo o único a figurar como réu distintas da vida de Tiradentes, a saber: a cópia do Batis- confesso nos autos. tério de Tiradentes, simbolizando seu nascimento e inclu- Devido à disputa entre as autoridades do Rio de são no meio social da época, representada pelos ritos Janeiro e de Vila Rica pela competência para julgar os religiosos; o Livro Pittoresco, de 1859, que traz, no sediciosos, a rainha, D. Maria I, determinou, através da capítulo destinado à Conspiração das Minas, a sentença Carta Régia de 17.07.1790, a composição de uma condenatória, simbolizando a morte física e social do Alçada3, na qual Desembargadores de Lisboa eram os mártir, como o início de um resgate oficial de sua memó- responsáveis pelo julgamento. Após a oitiva dos vinte e ria, uma vez que foi tratado como herói na luta contra a nove réus, seguiu-se o prazo de cinco dias para defesa. tirania portuguesa; por último, o primeiro exemplar do Os réus argumentaram que não cometeram crime Jornal , publicado no primeiro centenário algum, porquanto o movimento fora abortado, ainda em de sua morte. Nesse exemplar, também encontramos seu início, com a suspensão da Derrama. Apesar disso, artigos referentes às comemorações do dia 21 de abril, em 18 de abril de 1792, foi publicada a sentença pela como o lançamento da pedra fundamental para o ergui- Alçada, condenando onze réus à morte (na prática dez, mento da estátua em homenagem ao inconfidente no porque Cláudio Manuel da Costa se “suicidara” no cár- centro de e a sua elevação à condição de cere), e outros participantes receberam penas menores “Santo canonizado pelo povo”1. como açoites e o degredo eterno. O objetivo da exposição era mostrar como os dife- rentes momentos históricos deram roupagem distinta ao Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por movimento inconfidente e a seu mártir. Isso ressalta o alcunha o Tiradentes Alferes que foi da tropa paga da Capi- valor da preservação documental e salienta a importân- tania de Minas a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas publicas ao lugar da forca e nella morra morte cia da difusão e da propagação de conhecimento por natural para sempre, e que depois de morto lhe seja corta- meio das exposições promovidas pela Memória do da a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais pu- Judiciário Mineiro através do projeto Sempre Memória, blico della será pregada, em um poste alto até que o tempo que, mensalmente, seleciona peças do acervo do seu a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, Museu, com o objetivo de difundir conhecimento históri- e pregados em postes pelo caminho de Minas [...] aonde o Réu teve as suas infames práticas [...]; declaram o Réu co e cultural para o público em geral e, especialmente, infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens appli- para a comunidade jurídica. Um estudo mais aprofunda- cam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em do sobre o tema ressaltou e revelou sua importância, Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no resultando, desse modo, na pesquisa a seguir relatada. chão se edifique [...] e no mesmo chão se levantará um Com a escassez das jazidas de ouro das Minas, padrão pelo qual se conserve em memória a infamia deste houve brusca redução do montante enviado a . abominavel Réu; igualmente condemnam os Réus Francisco de Paula Freire de Andrade Tenente Coronel que foi da Tropa Duvidando da veracidade dos fatos, o governo português paga da Capitania de Minas, José Alves Maciel, Ignácio José enviou à Capitania das Minas Gerais o Visconde de de Alvarenga, Domingos de Abreu Vieira, Francisco Antonio Barbacena como novo governador, com a missão de reali- de Oliveira Lopez, Luiz Vás de Toledo Piza e depois de mor- zar a Derrama.2 Insatisfeito com o governo do Visconde, tos lhe serão cortadas as suas cabeças e pregadas em postes considerado tirânico, um grupo formado por integrantes altos até que o tempo as consuma [...] nos lugares de fronte das suas habitações que tinham em Villa Rica e a do Réu da elite local e de estratos médios da sociedade aurífera Ignácio José de Alvarenga, no lugar mais publico na Villa de começou a conjurar contra a Coroa. São João de El-Rei, [...] declaram estes Réus infames e seus ______

* Ensaio elaborado por Andréa Vanessa da Costa Val, Assessora da Memória do Judiciário Mineiro, e por Carine Kely Rocha Viana, sob a supervisão do Superintendente, Desembargador Hélio Costa. 1 JORNAL MINAS GERAIS; 1º exemplar, editado em 21 de abril de 1892, p. 4. 2 Derrama ou Desrama. Tributo local, repartido em proporção com os rendimentos de cada contribuinte. No séc. XVIII, na região das Minas, cobrança dos quintos em atraso ou de imposto extraordinário. Ver: O novo dicionário da língua portuguesa, p. 623. 3 Tribunal coletivo e ambulante que, visitando os povos, lhes administrava justiça. Limite máximo de valor dentro do qual um órgão judicial pode conhecer da causa, ou pode julgá-la sem recurso para outro órgão. Ver: idem, nota anterior, p. 85.

16 Jurisp. Mineira, , a. 59, n° 187, p. 13-18, out./dez. 2008 ser arrastadoporcavalospelasruasdeVilaRica. líder Felipe dosSantosforaesquartejadovivo,depoisde rebelião ocorridanasmesmasMinasGerais,em1720,o Romeiro gozaria deinfluêncianaCorte.Jáateoriadefendidapor seria adequeomesmonãoeranobree,portanto, único queteveopedidonegado.Umadasexplicações suas penascomutadasparaodegredo.Tiradentes foio sendo quenovedosdezcondenadosàmortetiveram desse ajuda,conselhoefavor” e seuStado,ousetratassedelevantarcontraelle, - sealgumfizesseconselhoeconfederaçãocontraoRey náveis egraves Previsto notipocinco,consideradodosmaisabomi- contagiosa etransmitidaàhereditariedadedoacusado. Lesa-Majestade, comparadoàlepra, porserincurável, turbulento processodedevassa,incursonocrime 1792, eraexecutadoJoaquimJosédaSilvaXavier, após alguém politicamenteperigoso. dos comopropagadordasidéiassediciosasfezdele Ademais, ofatodesercitadoporquasetodososenvolvi- aosolhosdarainha,umvassalorebelde. tornara-se, explicitamente seuenvolvimentonaconspiração;assim, se deramosinterrogatórios,elefoioúnicoaassumir que aconfrariaorecolhesse,alémdeváriasoutras. até o corpodocondenadoficavasuspenso,putrefando-se, cruel), oumesmoadenominadamorteparasempre,onde forca (mortenatural),antecedidadetorturasnatural crueldade, comoapenademorte,quepoderiaserna do Império.Aspenaseramseverasecomrequintesde 1603 até1830,quandodacriaçãodoCódigoCriminal vro V, quevigorounoBrasilcomoCódigoCriminal,de se das 2002. uapoeian icpiad us e“seilzçoe itraeClua oíia”d FAFICH/UFMG, em03.12.2008. Aula proferidanadisciplinadocursode“EspecializaçãoemHistória e CulturasPolíticas” da exposição permanentenoMuseudaMemóriadoJudiciárioMineiro, Palácio daJustiça Rodrigues Campos. 10 9 8 7 6 5 4 ______FROND, Victor;RIBEYROLLES, Charles.La ConspirationdêsMines(Tira-dentes). In ROMEIRO, Adriana(Professora DoutoraemHistóriadoBrasilColonial). BICALHO, MariaFernanda Baptista. COSTA, Luiz HenriqueManoel da. Livro V, p.1.152-1.153.In:LARA,SilviaHunold.OrdenaçõesFilipinas, 1999. Em 21deabril1892,1ºcentenáriodamorteTiradentes, élançadooficialmenteo FURTADO, JoãoPinto. Penas comoessaerammuitocomuns;inclusiveem orecursoàclemênciadarainhaMariaI, Seguiu-se memoria einfamesseusfilhos. Costa quesematounocarcere,declaraminfameasua Domingos VidalBarbosa,[...]AoRéuClaudioManoelda Resende CostaPae, JosédeResende CostaFilho, os RéusSalvadorCarvalhodeAmaralGurel,José para oFisco eCâmaraReal, [...]Igualmentecondemnam eosseusbensporconfiscados filhos enetostendo-os, Assim, namanhãensolaradade21abril Ordenações Filipinas 5 é adeque,independentementedaformacomo “Do crimedeLesa-Majestade: O quinto O mantodePenélope: , maisespecificamentedoLi- . A InconfidênciaMineirainseridanaevoluçãododireitopenal, 6 4 Crime ecastigoemPortugal eseuImpério história, mitoememóriadaInconfidênciaMineira.SãoPaulo: CompanhiadasLetras, 7 Tratava- dando aTiradentes aalcunhademártireherói nos équerealizaramumareleituraépicadomovimento, contra atiraniadePortugal. Masosmilitaresrepublica- Pittoresco é descritopelofrancêsRibeyrolles,emsuaobra gate desuamemória.Jánadécada50doséculoXIX, cido atéàépocadoIIImpério,quandoseiniciaumres- padrões querepresentavamacondenação. nado edeseusatos,ressaltadospeloerguimentodos bologia denãopermitirquesobremvestígiosdoconde- mento deDeus.Salgaracasa,porsuavez,possuisim- cidas. Ircontraoreieramesmoqueirordena- esse tipodecrime,osquaispodemcomparadosaossui- latente comanegativadesepulturaaoscondenadospor e linhagem.Afusãoentrepodertemporalsecularfica aseucorpo,suaspropriedades soa doréu,estende-se forma desefazerjustiça,na clemência darainha.Cabesalientarqueessaéuma dores, executada,eosdemaisreceberamalgumtipode apenas um,Tiradentes, teveapena,definidapelosjulga- denciado nacondenaçãodosinconfidentes,emque do comaliberalidademonarca,oquepodeserevi- mor quantopelamisericórdia;ambosvariavamdeacor- personalista eracompostatantopelaimposiçãodote- pedagógica deamedrontarpelaexemplificação a restauraçãodaordemameaçada,bemcomofunção aexpiaçãodocrime, mento aocondenado,buscava-se violência naspuniçõeseramuitomaisquecausarsofri- social ededireitos.Para Furtado mento, comoocaráterdelibertaçãonacional,igualdade levam avisõesdeturpadasepoucorealistasdomovi- Interpretações descontextualizadasdaconspiração e seucontextohistórico. que nãosecoadunacomarealidadevivenciadaporeles inconfidentes comodefensoresdeumprojetopolítico, Processo deemancipação políticadoBrasil,país,pátriaenação Ainda deacordocomaautora,estajustiçarégia De acordocomBicalho,oobjetivodetamanha Após suamortefísicaesocial,Tiradentes foi esque- líbrios existentes. justiça, deárbitrodosconflitossociais,garanteequi- cava restaurarafunçãodosoberanoderepresentanteda Restaurar opoderrealemtodasuaforçaeplenitudesignifi- p.226. , (1859), comodefensordaliberdadenaluta Jurisp. Mineira,BeloHorizonte,a.59,n°187,p.13-18,out./dez.2008 : _____. Brazil Pittoresco: Minas Gerais 8 p. 252. qual ocrimeperpassaapes- , jornaloficialdoEstado.Em 1859, p.61-112. 10 , seriaforçosoveros 9 nacional. . Brazil 17 .

Memória do Judiciário Mineiro O aparato jurídico pautado na pedagogia do COSTA, Luiz Henrique Manoel da. A Inconfidência Mi- medo, na exemplificação das condenações e no neira inserida na evolução do direito penal. Brasília, Re- espetáculo do terror, ao contrário de desestimular, vista de Informação Legislativa, n. 138, ano 35, p. 252, acabou sendo o responsável pela martirização do movi- abr./jun. 1998. mento inconfidente, permitindo que Tiradentes fosse res- gatado como símbolo da luta pela liberdade, servindo DOTTI, René Ariel. Casos criminais célebres. 3. ed. São perfeitamente para a justificação do regime republicano. Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Como o movimento ficou no que poderia ter sido, não se concretizando, admite interpretações diversas, ainda FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; ANJOS, Marga- que destoantes da realidade dos fatos. Inegavelmente, rida dos; FERREIRA, Marina Baird. O novo dicionário da aqueles homens sonharam com algum tipo de liberdade língua portuguesa. 3. ed. : Positivo, 2004, p. 85 e que, naquele contexto, não lhes era permitida. 623. Muito se debate sobre o real grau de heroísmo de Tiradentes, mas o que de fato importa é que de alguma FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência forma ele ousou sonhar a liberdade, ainda que seu con- nas prisões. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. ceito fosse distinto do nosso, tempo em que motivos para sonhar estão escassos. É importante lembrar que os FROND, Victor; RIBEYROLLES, Charles. La Conspiration mitos nos parecem essenciais como inspiração para dês Mines (Tira-dentes), capitulo VI. In: ______. Brazil almejarmos dias melhores e diferentes dos atuais. Pittoresco. : Typographia Nacional, 1859, Como salienta Starling, “talvez seja esta a tarefa tomo 1, p. 61-112. principal: refundar, na atualidade, o espaço político no 11 FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, qual a liberdade possa se manifestar [...] ”. mito e memória da Inconfidência Mineira. São Paulo: Ed. A Inconfidência hoje simboliza o desejo pela liber- Companhia das Letras, 2002. dade, a luta constante pelo sonho que poderia ter sido, sempre “reimaginado”, adaptado aos grilhões de cada LARA, Silvia Hunold (Org.). Ordenações Filipinas. Livro V. época. Pensar a Inconfidência representa o retorno da São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 510 p. busca incessante de tornar possível o que parece impos- sível. Mito que, oportunamente, é reinventado e reapro- MAXWELL, Kenneth Robert. A devassa da devassa: a priado, arraigando-se no imaginário social coletivo, Inconfidência Mineira: Brasil-Portugal - 1750-1808. 2. como, por exemplo, através das pomposas comemo- ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 317 p. rações do 21 de Abril em Ouro Preto. STARLING, Heloisa Maria Murgel; MIRANDA, Wander Referências Melo. As utopias em questão (prefácio). In: ANDRÉS, A. (Org.). Utopias: sentido, minas, margens. Belo Hori- ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos rebeldes: violência coleti- zonte: Ed. UFMG, 1993. va nas Minas Gerais na primeira metade do século XVIII. Be- lo Horizonte: C/Arte, 1998. 151 p. (Horizontes históricos). TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Memória do Judiciário Mineiro Jornal Minas Gerais. 1º BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Crime e castigo em exemplar, editado em 21 de abril de 1892. Portugal e seu império. Rio de Janeiro: Topoi, p. 226. VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o império luso- CERQUEIRA, Marcello. A Constituição na história: brasileiro e os Brasis. São Paulo: Companhia das Letras, origem & reforma. Rio de Janeiro: Revan, 1993. 2000. 151 p. (Virando séculos).

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11 STARLING, Heloisa Maria Murgel; MIRANDA, Wander Melo. As utopias em questão (prefácio). In: Andrés, A. (Org.). Utopias: sentido, minas, margens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1993.

18 Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 59, n° 187, p. 13-18, out./dez. 2008