UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI FABIANO PEREIRA DE SOUZA

ALAN SPLET – O SOUND DESIGN DE VELUDO AZUL E A POLIFONIA DE EFEITOS SONOROS

São Paulo 2016

FABIANO PEREIRA DE SOUZA

ALAN SPLET – O SOUND DESIGN DE VELUDO AZUL E A POLIFONIA DE EFEITOS SONOROS

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Rogério Ferraraz.

São Paulo 2016

FABIANO PEREIRA DE SOUZA

ALAN SPLET – O SOUND DESIGN DE VELUDO AZUL E A POLIFONIA DE EFEITOS SONOROS

Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Rogério Ferraraz.

Aprovado em

______Prof. Dr. Rogério Ferraraz / Doutor / UAM - Presidente

______Prof. Dr. Eduardo Simões dos Santos Mendes / Doutor / USP

______Prof. Dr. Maurício Monteiro / Doutor / UAM

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RESUMO

A obra do sound designer Alan Splet (1939-1994) e a importância da edição de efeitos sonoros estudadas através da análise do filme Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986), dirigido por . O intuito do projeto é pesquisar o que caracterizava o trabalho com efeitos sonoros de Splet, se ele representou inovação em termos de linguagem cinematográfica e, em caso afirmativo, como isso se deu em comparação a obras anteriores que também tenham apresentado sobreposição de efeitos sonoros. Outro objetivo é verificar ainda a aplicabilidade dos conceitos de polifonia e contraponto em relação às construções sonoras do filme.

Palavras-chave: Cinema. Sound design. Polifonia. Contraponto sonoro. Alan Splet. David Lynch.

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ABSTRACT

The work of sound designer Alan Splet (1939-1994) and the importance of the sound effect editing studied through the analysis of the film Blue velvet (USA, 1986), directed by David Lynch. The project aim is to research what characterized Splet’s work with sound effects, if it represented innovation in film language and, if so, how it compared to previous films that had also presented sound effect superposition. Another goal is to verify the applicability of the concepts of polyphony and counterpoint to the sound construction of the film.

Key words: Cinema. Sound design. Polyphony. Sound counterpoint. Alan Splet. David Lynch.

3 DEDICATÓRIA

A Ann Kroeber, por toda sua dedicação para com esta pesquisa e toda sua incalculável dedicação aos efeitos sonoros de cinema e à preservação da memória do legado de Alan Splet. (To Ann Kroeber, for all her support to this research and all her invaluable dedication to film sound effects and the memory preservation of Alan Splet’s legacy).

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AGRADECIMENTOS

Por ordem cronológica:

- À minha família pequena, mas presente: minhas irmãs, que me apoiaram e incentivaram desde o início nesta empreitada do mestrado, meu pai e minha mãe, pela base com que esta pesquisa foi possivel;

- À Lívia de Silva Souza, doutoranda do PPGCOM-ECA-USP, por todas as ideias trocadas, esclarecimentos, dicas, incentivo e amizade;

- À Profª. Dra. Laura Loguercio Cánepa, pelo interesse, o incentivo e o apoio junto à UAM para a viabilização do curso por meio da bolsa de estudos oferecida;

- Ao Prof. Dr. Rogério Ferraraz por todas as orientações, todo o incentivo, todo o rico material de referência disponibilizado e tanto aprendizado proporcionado;

- À Eliana Manso Alves, à Tatiana Catanzaro, Nelson Lago, ao Prof. Dr. Sergio Basbaum e ao colega Afonso Felipe Galdino Leite Romagna pela atenção, a boa vontade e o acesso a referências de teoria musical;

- A todos os professores do PPGCOM-UAM com quem tive o prazer de aprender sobre audiovisual e a oportunidade de evoluir esta pesquisa, assim como Profª. Dra. Laura Loguercio Cánepa e Prof. Dr. Maurício Monteiro pelos apontamentos e indicações de leitura na banca de qualificação;

- Aos sound designers Prof. Dr. Eduardo Simões dos Santos Mendes (ECA- USP) e Prof. Dr. Luiz Adelmo Manzano pelas preciosas entrevistas concedidas;

5 - A Ann Kroeber, Rob Fruchtman, John Nutt, Frank Behnke e pelas memórias e pelo conhecimento, compartilhados acerca de Alan Splet e a produção de Veludo azul;

- Ao Prof. Dr. Eduardo Simões dos Santos Mendes, a Suzana de Sousa Vilhena, Marcio Penna e Pedro Drudi pelo valioso auxílio na localização das obras da filmografia de Alan Splet;

- À Alicia Margarita Sosa Mérola pelo providencial auxílio na captação do material audivisual.

- À Tatiana Boulhosa pelos esclarecimentos de última hora sobre normas da ABNT.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... p. 10

Alan Splet e Veludo azul...... p. 10 A evolução do som de cinema...... p. 14 Assincronia, contraponto sonoro e polifonia...... p. 18 Som multicanal e o sound design...... p. 20

1. REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E TEÓRICAS...... p. 25

1.1 Conceitos musicais...... p. 25 1.1.1 Escuta...... p. 25 1.1.2 Paisagem sonora...... p. 27 1.1.3 Música X ruídos...... p. 28 1.1.4 Timbre...... p. 32 1.2 Som cinematográfico...... p. 33 1.2.1 História, técnica e aspectos comerciais...... p. 33 1.2.2 Convergência de mídias...... p. 39 1.3 Cinema sonoro clássico...... p. 42 1.3.1 Estética e motivações...... p. 42 1.3.2 Impacto cultural...... p. 47 1.3.3 Som direto e som multicanal/estereofônico...... p. 52 1.4 “Ruídos” X “efeitos sonoros”...... p. 53 1.5 Assincronia, contraponto sonoro e polifonia...... p. 57 1.5.1 O pensamento polifônico...... p. 57 1.5.2 Polifonia musical...... p. 59 1.5.3 Polifonia no cinema: teoria...... p. 63 1.5.4 Polifonia no cinema russo: prática...... p. 66 1.5.5 Observações preliminares...... p. 69 1.6 Nouvelle Vague e teoria do autor...... p. 74 1.7 Sound design...... p. 78 1.8 Conclusões sobre o capítulo...... p. 80

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2.0 ALAN SPLET NA FILMOGRAFIA DE DAVID LYNCH...... p. 82 2.1 Referências biográficas e teóricas...... p. 82 2.1.1 Biografia de Alan Splet...... p. 82 2.1.2 A palavra dos colegas...... p. 87 2.1.3 David Lynch como autor...... p. 97 2.1.4 Questão do gênero...... p. 103 2.2 The grandmother (1970)...... p. 109 2.2.1 Referências teóricas...... p. 110 2.2.2 Descrição dos efeitos sonoros...... p. 112 2.3 (1977) ...... p. 116 2.3.1 Referências teóricas...... p. 117 2.3.2 Descrição dos efeitos sonoros...... p. 119 2.4 O homem elefante (1980) ...... p. 123 2.4.1 Referências teóricas...... p. 124 2.4.2 Descrição dos efeitos sonoros...... p. 125 2.5 Duna (1984) ...... p. 127 2.5.1 Referências teóricas...... p. 127 2.5.2 Descrição dos efeitos sonoros...... p. 130 2.6 Ecos da parceria...... p. 131 2.7 Conclusões sobre o capítulo...... p. 135

3.0 VELUDO AZUL...... p. 138 3.1 Referências críticas...... p. 138 3.2 Referências teóricas...... p. 145 3.3 Análise do sound design de Veludo azul...... p. 158 3.3.1 Descrição dos efeitos sonoros...... p. 158 3.3.2 Sobreposição de efeitos sonoros de Veludo azul comparada à de King Kong...... p. 160 3.3.3 Sobreposição de efeitos sonoros de Veludo azul comparada à de Meu Tio...... p. 164 3.4 Conclusões sobre o capítulo...... p. 169

CONCLUSÃO...... p. 173

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... p. 179

APÊNDICES...... p. 190

Entrevistas...... p. 190 Apresentação ...... p. 190 Entrevista 2015 a: Luiz Adelmo Manzano...... p. 191 Entrevista 2016 a: Ann Kroeber...... p. 212 Entrevista 2016 b: Rob Fruchtman...... p. 253 Entrevista 2016 c: Eduardo Santos Mendes...... p. 272 Entrevista 2016 d: Frank Behnke...... p. 311 Entrevista 2016 e: John Nutt...... p. 326 Entrevista 2016 f: Richard Hymns...... p. 352 Sobre o material audiovisual……………………………...... …………p. 373

9 INTRODUÇÃO

Alan Splet e Veludo azul

No âmbito dos filmes de longa-metragem de ficção produzidos no sistema de estúdio, a obra do sound designer norte-americano Alan Splet

(1939-1994) utilizou, a partir da década de 1980, a sobreposição de efeitos sonoros na construção da trilha sonora – aqui se deixando de lado a música e a voz – sem vínculo obrigatório com os padrões verossimilhantes, dominantes no cinema. Seu trabalho às vezes expunha informações sonoras claramente gravadas de elementos que a imagem não mostrava, um tipo de construção que guarda paralelos com o conceito de polifonia defendido pelo cineasta e teórico russo no início do cinema sonoro. O trabalho experimental de Splet nas primeiras obras do diretor David Lynch, independentes e de baixo orçamento, como o curta-metragem The grandmother (1970) e o longa-metragem Eraserhead (1977), prosseguiu mesmo quando este cineasta passou a dirigir produções realizadas com maior orçamento e produção, como O homem elefante (The Elephant Man,

1980), Duna (Dune, 1984) e Veludo azul (Blue Velvet, 1986).

Splet acentuava, pelo tratamento de efeitos sonoros variados, a estranheza e o mistério de personagens, enredos, cenários e locações dos filmes de Lynch. Veludo azul, último realizado pela dupla, exemplifica bem seu estilo característico do uso de efeitos sonoros. É por meio desse filme que esta pesquisa se aprofunda no estudo do sound design de Splet e no panorama geral dessa atividade, desde seu surgimento nos anos 70,

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buscando resgatar possíveis influências do conceito de polifonia e seus efeitos de assincronia e contraponto sonoro na obra de Splet.

Splet participou de 25 produções como sound designer ou editor de som. A primeira delas foi o quarto curta-metragem dirigido por Lynch, The grandmother. Além dos filmes de Lynch, ele participou de produções como os longas-metragens A insustentável leveza do ser (The unbearable lightness of being, EUA, 1988), dirigido por , Sociedade dos poetas mortos

(, EUA, 1989), dirigido por , e Henry & June

(Henry & June, EUA, 1990), também dirigido por Kaufman. Ganhou o prêmio

Oscar de edição de som de 1980 por O corcel negro (The black stallion, EUA,

1979), dirigido por , e foi indicado com sua equipe para o de melhor som em 1984 por Os lobos não choram (Never cry wolf, EUA, 1983), também dirigido por Ballard.

Pela parceria entre Splet e Lynch, construções comparáveis às propostas de uso do som como contraponto à imagem, feitas por teóricos e cineastas russos no início do cinema sonoro, eram vistas e ouvidas em filmes norte-americanos de longa-metragem produzidos em estrutura de estúdio.

Com tal condição, impressiona ainda mais a criatividade do trabalho de som da dupla. Quando a liberdade de um cineasta está mais comprometida por conta do orçamento maior, e a consequente expectativa de retorno financeiro de bilheteria da produção, há um risco maior ao se quebrar regras de linguagem estabelecidas e amplamente aceitas. Além do interesse gerado por essa ousadia, outra vantagem do filme como objeto de estudo é a maior facilidade para se encontrar cópias para futuras pesquisas, por ter sido amplamente distribuído, diferente de The grandmother e Eraserhead.

11 Michel Chion, autor de um livro sobre a filmografia de Lynch, ressalta a importância histórica do cineasta por meio da valorização de efeitos sonoros em ambientes e paisagens sonoros criados por Splet, por mais que não lhe dê o crédito claramente. “Pode-se dizer que Lynch renovou o cinema mediante o som. (...) O som tem uma função concreta, que é a de nos dar propulsão no filme, catapultar-nos ao seu interior, rodeados pela duração”

(CHION, 2003: 70). Ele detalha o argumento:

David Lynch assimilou tão bem que para unir (construir) é preciso primeiro separar, que não parou de criar, cada vez com mais clareza, o contínuo a partir do descontínuo, e de reunir por meio da separação. Como muitos diretores, ele o faz com a imagem, mas sobretudo e de maneira mais original, com o som que, devido a natureza fundamentalmente temporal, é em geral mais assimilado que a imagem a um continuum, a um fluxo e manejado nesse sentido. (CHION, 2003: 70-71)

Ao apontar que o continuum sonoro do sound design de Splet “está curiosamente repleto de descontinuidade” (CHION, 2003: 70), Chion dá sinal de uma das razões que para ele justifica sua escolha de Veludo azul como o mais clássico entre os filmes de Lynch. Diferente de Eraserhead – segundo longa-metragem de Splet, depois de Meanwhile, back at the ranch (1976), e primeiro com Lynch, produção independente com bastante experimentação estética, repleta o tempo inteiro de efeitos sonoros –, Veludo azul usa efeitos sonoros para criar estranhamento de modo bem mais pontual, e traz as experimentações de Splet pela terceira vez a um longa amplamente distribuído de Lynch, depois de O homem-elefante e Duna.

A escolha de um estudioso do som cinematográfico como Chion, autor de um livro sobre a obra de Lynch – e, consequentemente, do trabalho de

Splet com ele – somada a outros fatores que para ele tornam o filme mais

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representativo da filmografia de Lynch – levaram à seleção de Veludo azul para esta pesquisa. Chion acredita que “Veludo Azul é o testemunho de uma maturidade cinematográfica e de um grande controle sobre a duração das cenas, que já não mostram remates bruscos, mas experiência e segurança sobre o que quer dizer e contar” (CHION, 1994: 132).

Em todos os aspectos, Veludo Azul é hoje o mais clássico de Lynch que conhecemos. Não é um primeiro filme experimental, como Eraserhead, nem um achado mais ou menos coletivo a que o autor deu seu toque particular, como O Homem-Elefante, mas uma obra inteiramente sua, controlada e fechada, o que já não tentou fazer nos filmes seguintes, muito mais deslocados e assimétricos. (CHION, 1994: 143)

Esta pesquisa também visa complementar a de Eduardo Simões dos

Santos Mendes, que ministra a disciplina “Sound Design/Projeto de Som – A

Construção da Trilha Sonora no Cinema Narrativo Ficcional” no Programa de

Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de

Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP)1. Mendes já havia apresentado o trabalho Alan Splet: Revisão Crítica da Obra no XIII Encontro

Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual

(Socine), realizado na USP, em São Paulo, no ano de 2009. No resumo expandido daquela apresentação, ele ressalta a importância da obra de Splet

1 Cursei a disciplina de Mendes como aluno especial no primeiro semestre de 2013. Além desses e de outros respaldos teóricos, há outros incentivos que justificam esta pesquisa. No âmbito pessoal, ela visa dar continuidade aos estudos iniciados com a monografia Paralelos - Um estudo sobre a evolução do paralelismo narrativo na montagem cinematográfica, realizada em co-autoria com Lívia Silva de Souza e Felipe Arruda na pós-graduação lato sensu em Fotografia, Cinema e Vídeo – Criação em Multimeios, que concluí em 2008 na própria Universidade Anhembi Morumbi. Se naquela pesquisa o objeto de estudo foi a montagem cinematográfica pelo aspecto narrativo em si, neste projeto pretendo me dedicar a outro aspecto estrutural do universo audiovisual e, em específico, também da montagem: o som. Novamente, o efeito a ser analisado é o do paralelo, simultâneo, sobreposto.

13 e incentiva a realização de uma revisão crítica desta, por meio de uma pesquisa específica sobre esse sound designer.

Entre 1970 e 1993, Alan Splet desenvolveu uma forma única de relacionar o som e imagem, em especial no que se refere à criação de ambientes. Segundo , “Splet era o melhor em utilizar ruídos de modo psicológico e musical. Seus ambientes eram incríveis: aplicando ritmos e timbres sonoros de forma evocativa como um compositor musical faria. (Kenny, 2004). (MENDES, 2009: 1)2

Mendes chega a afirmar que Alan Splet foi um sound designer tão importante quanto (parceiro frequente de Francis Ford

Coppola), ou (parceiro frequente de ), mas acabou esquecido após sua morte prematura. Apesar da apresentação de trabalho de Mendes, não há pesquisa alguma aprofundada em português sobre a obra de Splet3. No âmbito acadêmico brasileiro, a tese de doutorado de Mendes,

Walter Murch: A revolução no pensamento sonoro cinematográfico, também pode ter nesta pesquisa um complemento direto – tanto que ele próprio incentivou uma pesquisa sobre o trabalho de Splet naquela edição do Socine.

A evolução do som de cinema

Vale apresentar aspectos conceituais e históricos que serão pormenorizados nos capítulos a seguir. Desde o início do que se convencionou chamar de cinema sonoro, no final dos anos 1920, artistas e teóricos já buscavam meios de valorizar a parte auditiva dos filmes com

2 A referência original à entrevista de Tom Kenny, não localizada em buscas na internet, consta no resumo expandido do texto de Mendes publicado nos anais do evento no site do Socine sem o link de onde foi retirada, sendo apenas: “KENNY, Tom. Interview with Gary Rydstorm. New York: Mix; 2004. Disponivel em (acesso em abril de 2009)”. 3 Mesmo o trabalho de Mendes citado acima encontra-se disponível apenas como resumo expandido nos anais do evento.

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diferentes tipos de relações audiovisuais por meio de estilos, técnicas e efeitos que costumavam privilegiar, em ordem decrescente, os diálogos, a música e os efeitos sonoros. Foi nessa fase de transição, que teve seu grande lançamento comercial com a estreia do filme O cantor de jazz, (The jazz singer, EUA, 1927), dirigido por Alan Crosland, que algumas das propostas mais originais para a adição do som às imagens foram adotadas de maneira mais recorrente. Ainda não havia, como para a fotografia e a montagem de cinema, um código de estratégias padronizado para estimular o espectador a assimilar o som de maneira verossímil, sem que sua imersão na fluidez da narrativa fosse atrapalhada pelo áudio. A escuta mantinha-se atrelada a padrões de sonoridade do século XIX.

De um lado, a indústria cinematográfica buscava uma verossimilhança sincrônica cada vez maior entre som e imagem, além da verossimilhança da imagem filmada como uma camada extra de efeito realista, associada à constantemente aprimorada qualidade auditiva do som. Essa opção segue até hoje predominante na produção industrial capitaneada por Hollywood.

Nessa proposta, busca-se aplicar ao som tratamento equivalente ao da decupagem clássica formulada na sua forma mais completa pelo cineasta D.

W. Griffith, modelo em que a narrativa é estruturada de modo a guiar o espectador de maneira definida pelo ponto de vista do diretor, com técnicas ilusionistas de fotografia e montagem para criar identificação e impressão de que a representação em cena é verdadeira (XAVIER, 2008: 41).

Enquanto as diretrizes clássicas de som de cinema não foram claramente estabelecidas, alguns primeiros cineastas exploraram o então novo recurso de modo a não se limitar à sincronia de vozes nos diálogos.

15 Entre os destaques, Alfred Hitchcock refilmou parcialmente seu recém- concluído silencioso Chantagem e confissão (Blackmail, Inglaterra, 1929) com som e fez do volume de uma cena um instrumento da audição subjetiva de uma personagem. Rouben Mamoulian inovou na construção de perspectivas sonoras, como se nota no musical Aplauso (Applause, Estados

Unidos, 1929). René Clair até escreveu um manifesto, A arte do som, para defender um uso de todos os elementos sonoros, não só a voz sincrônica.

Em Sob os tetos de Paris (Sous les toits de Paris, França, 1930) realizou uma sequência de luta numa rua tão escura, que toda a ação é compreendida apenas pelo som. O alemão Fritz Lang usou o leitmotiv e explorou o som fora do quadro em M, o vampiro de Dusseldorf (M, Alemanha, 1931).

Outra contribuição notável para o experimentalismo do som no cinema viria do cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti, que chegou em 1934 à estatal britânica General Post Office Film Unit, que fazia a propaganda do correio inglês. Em seu artigo Sound in films, retrospecto da primeira década do cinema sonoro publicado em 1939, ele citou como feliz exemplo um filme em que um címbalo havia sido usado para produzir o barulho amedrontador do ar rebatido pela passagem de um avião, mas que ele não conseguiu reconhecer porque o instrumento musical teve subvertida sua identidade original.

Eis por que o ruído é tão útil. Ele fala diretamente com as emoções. Os bebês se amedrontam com batidas altas, muito antes de eles terem aprendido que há qualquer conexão entre ruído e perigo – antes mesmo de eles saberem que há algo como perigo. Muitos cães podem ser postos para correr ao se bater numa bandeja de lata. As imagens falam para a inteligência. O ruído parece se esquivar da inteligência e fala para algo muito profundo e inato – como o exemplo do bebê parece mostrar. (CAVALCANTI, Apud WEIS; BELTON. 1985: 109)

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A principal qualidade dos efeitos sonoros4 reside nesse efeito, o de não inevitavelmente sugerir o que o produziu, de poder ser facilmente descontextualizado, um incentivo ao seu uso de maneira incógnita para a plateia. O cinema deveria, segundo Cavalcanti, fazer uso de mecanismos de sugestão sempre que houver demandas dramáticas ou poéticas para tanto.

Predominantemente, as imagens são um meio de afirmação, enquanto os sons são um meio de sugestão, atestava Cavalcanti, que também valorizava em seu artigo o uso dramático do silêncio.

As datas de publicação indicam que o volume dos estudos e de novas propostas de repercussão duradoura sobre experimentação com o som no cinema amainou no período pós-guerra. Nos anos 1950, Jacques Tati desenvolveu um trabalho peculiar de sonorização completamente realizada em pós-produção que repercute até hoje. Robert Bresson explorou o som extra-campo para trazer informações que a imagem fechada não mostra. Em

Pickpocket (França, 1959), por exemplo, tendia a privilegiar um único som por vez, também indicando a audição subjetiva da personagem. Os dois cineastas franceses antecedem as ousadias sonoras da Nouvelle Vague.

Este movimento tira proveito técnico do gravador portátil Nagra, que facilitou a gravação de som direto em cenas externas e permitiu experimentações sonoras a partir do fim daquela década, como as de Jean-Luc Godard.

A ideia que se difundiu por esse movimento artístico francês e essa novidade técnica é a de que o realismo sonoro era seu maior diferencial. Em seu livro A audiovisão – Som e imagem no cinema (2008), Michel Chion atenta para a diferença entre veracidade e verossimilhança sonora, esta

4 Embora diversas referências teóricas tratem qualquer som que não seja fala nem música no cinema por “ruído”, esta dissertação os identificará como efeitos sonoros, exceto quando em citações bibliográficas diretas, conforme explicação a ser apresentada no capítulo 1.

17 considerada por ele “terrivelmente ambígua e complexa”. Chion nos leva a refletir a respeito do quanto nos apoiamos em impressões forjadas de realismo, sem respaldo pessoal para reconhecer como verdadeiras.

Assincronia, contraponto sonoro e polifonia

Logo que a tecnologia do som cinematográfico se estabeleceu num

único aparato pela primeira vez, com o sistema Sound-on-Disc da Vitaphone, em 1927, a sincronia e a verossimilhança já eram os alicerces expressivos, pois a voz dos atores tão perfeitamente casada aos movimentos de seus lábios quanto possível nos diálogos apresentados da tela era a prioridade.

Por outro lado, uma vertente que oferecia maior liberdade interpretativa era defendida e conceitualizada por cineastas e teóricos russos.

Seu ponto de partida foi um manifesto escrito por Sergei Eisenstein,

Vsevolod Pudovkin e , intitulado Declaração sobre o futuro do cinema sonoro. Em vez de meramente ouvirmos o que a imagem já nos mostra, a proposta do trio era investir na não-sincronização entre som e imagem, de modo a criar novas significações para cada associação, continuidade à proposta que Eisenstein já adotava em seus filmes por meio da valorização da montagem, sem obrigação para com a linearidade.

Apenas o uso polifônico do som com relação à peça de montagem visual proporcionará uma nova potencialidade no desenvolvimento da montagem. O primeiro trabalho experimental com som deve ter como direção a linha de sua distinta não sincronização com as imagens visuais. E apenas uma investida deste tipo dará a palpabilidade necessária que mais tarde levará à criação de um contraponto orquestral das imagens visuais e sonoras. (EISENSTEIN; PUDOVKIN; ALEKSANDROV. Apud Eisenstein, 2002: 226)

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Ou seja, a construção polifônica do som através da não sincronização em relação à imagem levaria à criação de um efeito de contraponto entre imagem e som. Pudovkin deu prosseguimento ao assunto em outro material de referência frequente, o ensaio Assincronismo como princípio do cinema sonoro (PUDOVKIN. Apud WEIS; BELTON, 1985: 86). Considerando o uso naturalista do som como algo primitivo, ele distingue avanço técnico do avanço enquanto expressão artística.

Para Pudovkin, o som e a imagem deviam cada um seguir um curso independente que, intercalados, criariam uma exatidão maior da natureza representada que a mera cópia. Além da voz dos personagens como possível direcionamento narrativo fora do enquadramento da câmera (offscreen), a música como simples acompanhamento também seria desperdício de meios.

Ainda segundo Pudovkin, as impressões que recebemos do mundo são parciais. Nossa atenção atua como editora de nossa audição. Isso ocorre por conta de dois ritmos que precisam ser considerados, o do mundo objetivo e o ritmo com que o homem observa o mundo, sua percepção. Este último varia de acordo com nossas emoções, que alteram velocidade de som tanto quanto de imagens. O filme sonoro pode criar correspondências variadas com esses dois ritmos, aprofundando e enriquecendo as possibilidades criativas do uso de som no cinema.

Algumas das rupturas propostas pelos russos reapareceriam anos mais tarde na Nouvelle Vague. Jean-Luc Godard buscava explicitar a construção ficcional fílmica para romper com a imersão do expectador na fluidez narrativa verossímil. Cortes bruscos na música, uso recorrente de uma voice- over (extra-diegética) que se confundia com voice-off (extra-campo), até um

19 minuto de pleno silêncio em Bando à parte5 (Bande à part, França, 1964).

Essas e outras experimentações da Nouvelle Vague estimularam a criatividade no aspecto sonoro de filmes de outros cineastas. Na década seguinte, especialmente com a tecnologia Dolby Stereo, os estudos do som cinematográfico foram revigorados.

Som multicanal e o sound design

A função de sound designer nasceu nos anos 1970. A melhor qualidade técnica na reprodução sonora da época, proporcionada por graduais alargamentos da faixa de frequência da banda sonora e refinamentos nas técnicas de mixagem, propiciou mais sofisticação no emprego de efeitos, ambientes e mesmo do foley (sons adicionados na pós-produção para aprimorar a verossimilhança) como elementos sonoros.

Vale lembrar que a banda sonora do cinema nasceu mono no fim dos anos 1920, com uma única faixa de som. Nos anos 1940 e 1950 já haviam sido feitas várias experiências com som multicanal (MANZANO, 2013: 15). As mais conhecidas foram o Cinerama (com seus 7 canais), o

Cinemascope (com quatro canais, três frontais e um de surround) e o Todd-

AO (com seis canais em pistas magnéticas), sistemas complexos em que o

áudio vinha num rolo de filme separado do que continha as imagens.

Nos anos 1970, chegou a tecnologia que proporcionaria uma grande mudança na forma de se lidar com o som fílmico, tanto na produção quanto na audição das plateias: o sistema Dolby. A reprodução sonora deu um salto

5 Também conhecido no Brasil pelo título original ou por Banda à parte.

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qualitativo e o sistema multicanal tornou-se regra, dividindo a trilha sonora em quatro, cinco ou mais canais na própria cópia de 35 mm, abolindo assim a necessidade, nos anos 1950, de se separar som e imagens em películas distintas. Mas a valorização do som no cinema dos anos 1970 ia além da questão tecnológica. Surgia em Hollywood a primeira geração de cineastas oriundos das faculdades de cinema dos Estados Unidos.

A cultura fílmica trazida das aulas por esses novatos contribuía para que eles acreditassem na importância de se experimentar novas formas de se trabalhar o som em cinema. Baseados em São Francisco, Francis Ford

Coppola e George Lucas se associaram a dois dos primeiros e mais renomados sound designers, Walter Murch e Ben Burtt, respectivamente.

Diferente destes dois, Splet não trazia formação acadêmica em cinema, mas foi com eles um dos pioneiros profissionais a exercer essa função.

Conforme estipulado na época, cabia ao sound designer compreender toda a complexidade de se criar a identidade sonora dos filmes e todas as implicações técnicas para tanto, aplicar também ao som a estética prevista pelo diretor e proporcionar durante a produção a comunicação clara entre este e os chefes das equipes de som direto, edição de som e mixagem, o que antes não era regra.

Falecido em 1994, Splet é lembrado principalmente por seu trabalho ao lado do diretor David Lynch. Ao valorizar efeitos e ambientes sonoros, Lynch abriu para Splet um campo fértil para que explorasse a sobreposição de efeitos sonoros em diferentes níveis de significação.

Para realizar uma pesquisa aprofundada que compare as sobreposições sonoras feitas por Splet à teoria que define e defende o

21 contraponto sonoro previsto na polifonia, a análise destacará o trabalho de efeitos sonoros na edição de som dos filmes de Lynch, tendo como base as sobreposições sonoras utilizadas especialmente em Veludo azul. O intuito é averiguar se – e, em caso afirmativo, como – a edição de som de Alan Splet retoma, num filme de estúdio americano dos anos 80, os preceitos polifônicos de contraponto sonoro defendidos pelos teóricos do início do cinema sonoro ou se configura caso isolado, a ser detalhado.

Esta pesquisa, em princípio, adotará como metodologia de análise fílmica, do som em específico, o método comparativo descrito por Michel

Chion em A audiovisão – Som e imagem no cinema (2008), pois permite reconhecer “sons negativos” – que a imagem indica, mas não se ouve – e

“imagens negativas” – quando o som sugere, mas a imagem não mostra.

Em Ensaio sobre a análise fílmica, Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété

(2005) afirmam que analisar um filme é estender seu registro perceptivo e, assim, se o filme for realmente rico nas construções e associações de seus elementos constitutivos, usufruí-lo melhor. Para eles, há pelo menos dois motivos para tal análise, que este projeto também visa assinalar:

Primeiro porque a análise trabalha o filme, no sentido em que ela o faz “mover-se”, ou faz se mexerem suas significações, seu impacto. Em segundo lugar, porque a análise trabalha o analista, recolocando em questão suas primeiras percepções e impressões, conduzindo-o a reconsiderar suas hipóteses ou suas opções para consolidá-las ou invalidá-las. (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ; 2005: 12-13)

Também buscar-se-á aproximação com a tese de doutorado do orientador desta dissertação, Rogério Ferraraz, O cinema limítrofe de David

Lynch (2003), defendida na PUC-SP. Nesta tese, ele desenvolve o conceito de cinema limítrofe aplicado à obra de Lynch, destacando como os filmes do

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cineasta provocam o estranhamento através da tentativa de criação de atmosferas no trabalho com a imagem e o som, no que o timbre é essencial.

Embora não se atenha ao sound design, Ferraraz considera o som um dos aspectos primordiais no trabalho de Lynch.

Para se entender o valor do trabalho de Splet, há de se conhecer os principais marcos históricos da evolução do cinema sonoro, apontando aspectos técnicos sempre que necessário, mas buscando entender principalmente as decisões estéticas. Entre os aspectos da práxis do som cinematográfico, em particular seu caráter de montagem, o enfoque será a sobreposição de efeitos sonoros, por meio da edição de som e da mixagem.

Esta dissertação ainda conta com um capítulo dedicado aos filmes da parceria de Splet com David Lynch, exceto Veludo azul – este o tema central do capítulo 3 –, por meio de considerações teóricas, um apanhado histórico, crítica especializada e trechos de entrevistas. Em seguida, há uma análise do sound design dessas obras, destacando os momentos em que há contrapontos sonoros para entender qual relação deles com os temas recorrentes e a proposta estética do diretor. Do restante da filmografia de

Splet com outros diretores, só serão destacadas brevemente cenas que tragam construções semelhantes, a título de apontar obras influenciadas pelo trabalho da dupla com efeitos sonoros.

O capítulo seguinte traz uma análise detalhada do sound design de

Veludo azul, com especial destaque para três cenas que exemplificam claros contrapontos de efeitos sonoros. Tais soluções de Splet serão comparadas

às encontradas em trechos específicos de obras com sobreposições de efeitos sonoros extra-diegéticos que trouxeram inovações em suas épocas:

23 King Kong (EUA, 1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, e Meu tio (Mon oncle, França, 1957), de Jacques Tati. Os trechos selecionados dos três filmes serão analisados pelo prisma da assincronia entre áudio e imagem e o grau de verossimilhança, de modo a se perceber se representam três formas distintas ou não de se construir e se assistir ao que resulta em contrapontos sonoros, como e por que.

Nos Apêndices, constam entrevistas originais feitas para esta dissertação com dois sound designers brasileiros com sólida formação acadêmica, os já citados Eduardo Simões dos Santos Mendes e Luiz Adelmo

Manzano, e cinco integrantes da equipe de som de Veludo azul, Ann

Kroeber, Rob Fruchtman, Frank Behnke, John Nutt e Richard Hymns, que revelam tanto aspectos sonoros dos bastidores do filme, quanto a forma de trabalhar de Splet. Dessa forma, pretende-se tornar ainda mais claro em que sentido o trabalho de Splet em Veludo azul exemplifica uma inovação estética em relação aos filmes realizados no sistema de estúdio nos Estados Unidos.

Por fim, a conclusão visa também reunir referências de sound design posteriores ao filme que guardem semelhanças com o trabalho de Splet, especialmente quando realizado para Lynch. Dessa forma, assinalam-se as singularidades e o pioneirismo da obra de Splet, ressaltando-se seus traços autorais e sua importância histórica para a contribuição do som na história do cinema.

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1. REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E TEÓRICAS

1.1 Conceitos musicais

1.1.1 Escuta

É de grande auxílio partir da teoria musical para melhor compreender conceitos de som, escuta, música, ruído e, consequentemente, o sound design de Alan Splet. Antes mesmo de se abordar o conceito de música, no entanto, vale considerar o que se entende por escuta. Roland Barthes, por exemplo, distingue o fenômeno fisiológico da audição do ato psicológico do ouvir em seu livro L’obvie et l’obtus. Para ele, a audição diz respeito às condições físicas de ouvir, anatomia, mecanismos, acústica. Já a escuta não cabe na sua mera finalidade, seu objetivo. Considerando-se a variação do tipo mais geral de objeto de escuta, Barthes apresenta simplificadamente três tipos de escuta. A primeira delas não distingue homens de animais, mais diretamente ligada à parte fisiológica da audição, é a percepção de um som ou, por assim dizer, um alerta desse sentido. A segunda é o que Barthes chama de “descriptografia”. O que o ouvido capta são lidos como sinais. “Aqui, sem dúvida, o homem começa: eu escuto como eu leio, isto é, de acordo com determinados códigos”. Já a terceira escuta, que o autor destaca como uma abordagem bastante moderna (sem substituir as anteriores), não se destina a sinais específicos, classificados: não é o que foi dito ou emitido, mas quem ou o que fala ou emite. Esta forma de escuta traz questões a partir de um interespaço que se desenvolve, onde o "estou ouvindo" também significa "escute-me". Para transformar e revitalizar esse jogo da transferência há uma "significância" geral, que já não é concebível sem a determinação do inconsciente (BARTHES, 1982: 217). Para ele, portanto, a escuta não se restringe a uma postura passiva de quem a pratica. Há uma série de repertórios pessoais acionados na escuta que contribuem para a formação de um sentido para os sons ouvidos.

25 Em Ouvir o som, Paulo Zuben lembra a escuta reduzida de Pierre Schaeffer, uma escuta que transcende o sujeito e isola o fenômeno sonoro de sua significação, permanecendo apenas a matéria sonora, com suas variações de aspectos meramente sonoros. “Forma e matéria sonora estão associadas, respectivamente, à significação e ao fenômeno musical. E o fenômeno musical só pode emergir por meio da variação da matéria destituída de significação” (ZUBEN, 2005: 20). Para entendimento mais claro desse tipo de escuta, ele sugere a repetição contínua de uma palavra qualquer até sua saturação semântica, até que a percepção se restrinja à variação da matéria sonora (como timbre, graves, agudos, etc.) e com ela o fenômeno musical se evidencie. Em Tratado de los objetos musicales, Schaeffer diferencia os processos de escutar, ouvir, entender e compreender. O primeiro se refere à identificação instantânea do acontecimento sonoro e o reconhecimento de seu contexto causal, o que pode incorrer em equívoco. Ouvir implica em conseguir elabora um esboço do objeto sonoro bruto, por conta da repetição do som. Entender é conseguir perceber aspectos particulares do som, num grau qualificado dessa percepção. Já compreender envolve a possibilidade de tratar aquele som como um signo que introduz o receptor a um sistema de valores e buscar um sentido para ele, uma escuta semântica, normalmente valores musicais que levam a um sentido musical (SCHAEFFER, 1988: 67- 69). Em seu artigo A escuta em Pierre Schaeffer: uma perversão política, para o IV Seminário Música Ciência Tecnologia - Fronteiras e Rupturas, Igor Reyner, da UFMG, também destaca um conceito do autor, a acusmática. Esse termo se refere ao ruído que escutamos sem ver a fonte, uma experiência pré-socrática que Schaeffer vê recuperada pela audição do rádio e da gravação de áudio, o que favorece a reflexão sobre a própria escuta. No cinema, o som acusmático pode corresponder ao extra-diegético ou o extra- campo. Trata-se de uma escuta desvinculada dos demais sentidos, o que inverte a forma de abordagem da escuta. Reyner diz que a consciência da percepção é uma destas alterações. “Momentaneamente, permite suspender as preocupações com a apreensão objetiva da realidade, volta-se para a compreensão da própria escuta e daquilo que ela “cria”” (REYNER, 2012: 98).

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1.1.2 Paisagem sonora

R. Murray Schafer defende o conceito de soundscape, ou paisagem sonora, que se refere a qualquer campo acústico de estudo, seja uma composição musical, um programa de rádio ou um ambiente acústico. É mais difícil elaborar uma impressão exata de uma paisagem sonora do que de uma paisagem física, pois com uma câmera é possível pegar as principais características de um panorama visual para criar uma impressão do que é imediatamente evidente. “O microfone não funciona desta forma. Ele dá amostras de detalhes. Ele dá o close-up, mas nada equivalente à fotografia aérea” (SCHAFER, 1994: 7). Schafer destrincha a paisagem sonora em três temas principais: tom fundamental, sinais e marca sonora. O primeiro identifica a chave ou a tonalidade de toda uma composição particular, como uma âncora, e não precisa ser ouvido de forma consciente, caso da água, vento, florestas, planícies, pássaros, insetos e animais. Já os sinais se encontram no primeiro plano, ouvidos de forma consciente. Alguns deles devem ser ouvidos, pois funcionam como alertas acústicos: sinos, assobios, buzinas e sirenes. A marca sonora é única ou possui qualidades que a tornam especialmente considerada ou notada pelas pessoas de uma comunidade (SCHAFER, 1994: 9-10). Em O ouvido pensante, Schafer elabora mais seu conceito de paisagem sonora.

Primeiro, com a tremenda expansão dos instrumentos de percussão em nossas orquestras, muitos dos quais produzem sons arrítmicos e sem altura definida; em seguida, pela introdução de procedimentos aleatórios em que todas as tentativas de organizar racionalmente os sons de uma composição se rendem às leis "mais altas" da entropia; depois disso, pela abertura dos receptáculos de tempo e de espaço a que chamamos de composições e salas de concerto, para permitir a introdução de todo um novo mundo de sons que estavam fora deles. (...). Hoje todos os sons pertencem a um campo contínuo de possibilidades, situado dentro do domínio abrangente da música. Eis a nova orquestra: o universo sônico! (SCHAFER, 1991: 121)

No mesmo livro Murray cita uma definição de música que o do compositor John Cage lhe enviou: "música é sons, sons à nossa volta, quer

27 estejamos dentro ou fora de salas de concertos" (SCHAFER, 1991: 120). Schafer elabora sua conceituação de música. Considera ritmo uma sequência qualquer de apoios (sonoros) organizados ou desorganizados de acordo com o efeito particular buscado. Ele cita como meio de organização o metro (como em poesia) e de desorganização o rubato (tempo roubado), síncope, ritardando, acelerando, entre outros. Também para este efeito ele acrescenta a superposição de metros diferentes, de modo a confundir o apoio individual de cada metro ou a desorganização completa e proposital desses apoios. “Posso então confundir a regularidade desses pontos, acrescentando vários outros em volta deles, de tal modo que, apesar de a primeira série ainda estar presente, vai ser difícil distingui-los” (SCHAFER, 1991: 32).

1.1.3 Música X ruídos

Schafer afirma que nunca se pode confundir complexidade rítmica com falta de ritmo. “Melodia é simplesmente uma sequência organizada de sons; ritmo, uma seqüência organizada de apoios. A palavra-chave, para Schafer, é "organizada"”, mesmo que seja para um efeito de desorganização – o que também carece de uma organização. O que diferencia a melodia dos ruídos ouvidos cotidianamente é que sua organização foi pensada por quem a criou.

O negativo do som musical é o ruído. Ruído é o som indesejável. Ruído é a estática no telefone ou o desembrulhar balas do celofane durante Beethoven. Não há outro meio para defini-lo. Às vezes, a dissonância é chamada de ruído; e para os ouvidos tímidos até pode ser isso. Porém, consonância e dissonância são termos relativos e subjetivos. Uma dissonância para uma época, geração e/ou indivíduo pode ser uma consonância para outra época, geração e/ou indivíduo. A dissonância mais antiga na história da música foi a Terça Maior (dó-mi). A última consonância na história da música foi a Terça Maior (dó-mi). Ruído é qualquer som que interfere. É o destruidor do que queremos ouvir. (SCHAFER, 1991: 68-69)

Música enquanto som organizado com ritmo e melodia é uma definição adequada, desde que considerada mais amplamente. Melodia e ritmo não precisam estar sempre presentes. O primordial é que haja intenção de que o som produzido seja música. “Faz uma grande diferença, se um som é

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produzido intencionalmente para ser ouvido, ou não. Não existe intenção de que os sons da rua sejam ouvidos; são incidentais” (SCHAFER, 1991: 34-35). O autor então conclui que “música é uma organização de sons (ritmo, melodia, etc.) com a intenção de ser ouvida”. Schafer acredita que à medida que a vanguarda artística expande suas explorações pelas fronteiras do som, qualquer definição se torna difícil. “Quando John Cage abre a porta da sala de concerto e encoraja os ruídos da rua a atravessar suas composições, ele ventila a arte da música com conceitos novos e aparentemente sem forma” (SCHAFER, 1991: 120). O autor conta que as definições mais restritas de música não se sustentam. “Pouco a pouco, no decorrer do século XX, todas as definições convencionais de música vêm sendo desacreditadas pelas abundantes atividades dos próprios músicos”. Em Ouvir o lógos: música e filosofia, Lia Tomás também trata de Cage ao resgatar a ideia de Richard Kostelanetz de que, se antes a polêmica no campo musical girava em torno da dissonância ou consonância, muito em breve seria em torno do ruído e dos chamados sons musicais (TOMÁS, 2002: 118). Ela reconhece em Cage uma forma de criação em que o compositor deve abrir mão de desejar controlar os sons para que sejam eles mesmos, em vez de atribuir valores e estabelecer relações fixas para eles, para expressarem construções teóricas ou sentimentos. Lia Tomás aponta em Cage um despojamento em que o compositor deve escutar a natureza do som de maneira a ampliar o campo sonoro e os modelos composicionais. Isso, segundo ela, resgata para a contemporaneidade o sentido do som e o conceito grego de mousiké. Este é descrito por Tomás como uma unidade semiótica que possa explicar a teoria musical de maneira crítica e heurística, como também um constructo lógico do mundo e sua retomada na produção musical do século XX. Nesse sentido, ela ainda indica que para Cage a estrutura musical é um tipo de receptáculo em condições de assimilar quaisquer tipos de materiais sonoros, como ruídos, gestos, palavras e até mesmo silêncios (TOMÁS, 2002: 119).

Se o domínio musical volta a considerar quaisquer materiais como material sonoro em potencial, a música readquire

29 aquele caráter de continuidade, só cessando na medida em que negligenciamos nossa atenção aos sons que nos envolvem. Nesse sentido, opor atividade e inatividade musical torna-se absurdo, pois o mundo que nos rodeia e nosso mundo particular está constituído de um fluxo ininterrupto de signos, de eventos e mudanças que se operam com ou sem nossa avalização (Bosseur, 1993, p.2.7). A mousiké – com sua roupagem contemporânea – se reapresenta como processo integral dinâmico, no qual cantos, falas, danças, onomatopéias, expressões corporais, representações teatrais, incluindo-se ainda toda variedade de ruídos, silêncios e modos de reprodução ou feitura de sons (mecânicos, computadorizados, ampliados, entre outros) passam a ser considerados como potencialidades para a organização do som. Ou melhor, reapresenta-se para ser ouvida e vista. Se o pensamento musical volta a ser poliédrico, assim como seus modos de apresentação, isso se deve à polimorfia da mousiké. Se o fato musical se reapresenta como evento, isso ocorre porque ser evento é parte de sua natureza mosaica. Se a música se reaproxima da filosofia, isso demonstra que ela é mais do que organização dos sons: é organização do pensamento, é ouvir o logos” (TOMÁS, 2002: 120-121).

Pauline Oliveros explica em The collective intelligence of improvisation, texto do livro Sounding the Margins: Collected writings (1992-2009), o conceito de noosfera, de Pierre Teilhard de Chardin, demonstrando o quanto ele também se adéqua a um entendimento do que é música e como ela pode ser composta. Esse termo identifica a interconexão das mentes humanas, com seus pensamentos, imagens e ideias, que envolvem e permeiam o planeta como a atmosfera e a biosfera. Ela deve também ser atada à informação musical e às ondas sonoras, assim como a pensamentos falados ou escritos, já que a consciência humana é primordial e não presa pela mente alfabética. Segundo a autora, um exemplo disso são os músicos que, através da música, representam o prenúncio da comunidade mundial e da consciência planetária e isso independe das barreiras de língua. Eles podem tocar juntos sem conversar, bastando ouvir uns aos outros por meio de sons. Diferentes estilos musicais são administrados por eles com negociações e reconciliações de suas diferenças. A improvisação criativa musical comunica uma inteligência musical coletiva, pois há informação musical profundamente estocada na consciência coletiva humana (OLIVEROS, 2010: 262-263).

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Um outro manifesto que complementa a proposta Tomás, Oliveros e Chardin é A arte dos ruídos, de Luigi Russolo, publicado em 1913 em nome do Movimento Futurista e dirigido ao músico Balilla Pratella. Russolo afirma que a arte musical “procurou e conseguiu primeiro a pureza, a limpeza e a doçura do som, para depois unir sons diversos, preocupada porém em acariciar o ouvido com suaves harmonias”. Ao vê-la cada vez mais complexa, com sons combinados de maneiras mais dissonantes, estranhas e ásperas ao ouvido, o que para ele significava se aproximar cada vez mais do que chama de som-ruído. Russolo vê essa evolução da música acontecendo paralelamente à proliferação das máquinas da Revolução Industrial, tanto na atmosfera estrondosa dos grandes centros urbanos, como nas áreas rurais mais silenciosas. Para ele, “as máquinas hoje criaram tanta variedade e concorrência de ruídos, que o som puro, na sua exiguidade e monotonia, não suscita mais emoção” (RUSSOLO, 1913: 2), razão para a busca de alternativas para a música.

Para excitar e exaltar nossa sensibilidade, a música desenvolveu-se rumo à mais complexa polifonia e rumo à maior variedade de timbres ou coloridos instrumentais, pesquisando a mais intricada sucessão de acordes dissonantes e preparando paulatinamente a criação do ruído musical. Esta evolução rumo ao “som ruído” não era possível até então. O ouvido de um homem do século XVIII não conseguiria suportar a intensidade desarmônica de certos acordes produzidos por nossas orquestras (triplicadas no número de executantes em relação àquelas de então). Nosso ouvido, no entanto, se compraz, porque já foi educado pela vida moderna tão pródiga dos mais variados ruídos. O nosso ouvido porém não se contenta, e exige sempre emoções acústicas mais amplas. Por outro lado, o som musical é limitado demais no que diz respeito à variedade qualitativa dos timbres. As mais complexas orquestras reduzem-se a quatro ou cinco classes de instrumentos, diferentes no timbre do som: arco, cordas pinçadas, sopro em metal, sopro em madeira, percussão. Por isso a música moderna debate-se dentro deste pequeno círculo, esforçando-se em vão para criar novas variedades de timbres. É preciso romper este círculo estreito de sons puros e conquistar a variedade infinita dos “sons-ruídos”. Qualquer um reconhecerá afinal que todo som musical traz consigo um emaranhado de sensações já conhecidas e gastas, que antecipam o tédio no ouvinte, apesar do esforço de todos os músicos inovadores. Nós futuristas todos temos amado profundamente e

31 apreciado a harmonia dos grandes mestres. Beethoven e Wagner chacoalharam nossos nervos e corações por muitos anos. Agora saciados apreciamos muito mais combinar mentalmente os ruídos dos bondes, dos motores a combustão, dos carros de roncos ensandecidos, do que reouvir, por exemplo, a “Heróica” ou a “Pastoral” (RUSSOLO, 1913: 2-3)

No mesmo manifesto, Russolo refuta a ideia de que o ruído é sempre forte e incômodo ao ouvido. Mesmo acreditando ser inútil enumerar todos os ruídos tênues e delicados, que agradam enquanto sensações acústicas, ele cita sons naturais como vento, trovão, cachoeira, riacho, folhas, animais, respiração e mesmo a boca humana sem uso da voz, bem como sons urbanos modernos como automóveis, bondes, encanamentos, motores, válvulas, pistões, serras mecânicas, portas, cortinas, bandeiras, entre outros.

1.1.4 Timbre

Schafer chama o timbre de a cor do som, estrutura dos harmônicos. Logo esclarece ilustrando por meio de um exemplo prático o que é exatamente esse elemento da sonoridade: “se um trompete, uma clarineta e um violino tocarem a mesma nota, é o timbre que diferencia o som de cada um” (SCHAFER, 1991: 75). É a característica do som que o distingue de outros na mesma frequência e amplitude. Paulo Zuben aborda o timbre por meio de variados exemplos na música. Entre eles está o trabalho do francês naturalizado americano Edgard Varèse. As massas sonoras criadas pelo compositor são modificadas em processos de adição e subtração de elementos, em vez dos desenvolvimentos motívico-temáticos usuais, de modo que as mudanças quantitativas gerem mudanças qualitativas. “Varèse compõe alterando o número, a configuração, a densidade e a duração de suas massas, que se movem independente e simultaneamente a diferentes velocidades e em diversas direções” (ZUBEN, 2005: 97). Em seu trabalho com camadas simultâneas de música, ele busca demarcar cada um desses elementos com "zonas de intensidade", em que o timbre é essencial, como agente de delineamento e parte integrante da forma, numa sensação de não-mistura.

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A sensação de distância ou profundidade das linhas e massas sonoras é obtida com o controle dos parâmetros de intensidade e timbre, aliados às condições acústicas de reverberação do espaço em que a música acontece. A cuidadosa notação de dinâmicas e articulações (crescendos, diminuendos, sforzandos, staccatos etc.) juntamente com a escritura orquestral apurada fornecem os indícios da preocupação de Varèse com a projeção do som no espaço, mesmo em suas obras puramente instrumentais (ZUBEN, 2005: 97).

Zuben afirma que Varèse reconhece na sua obra procedimentos que colocam materiais heterogêneos em relações de forças, alternando repulsão e aproximação entre planos e suas ressonâncias. “A montagem e a sobreposição têm um papel fundamental na aproximação ou afastamento entre os planos”, ele avalia, num tipo de construção que claramente se aplicaria ao cinema, tanto por seu conteúdo sonoro quanto imagético e as articulações entre ambos. “Elementos são adicionados, removidos ou transformados nas massas sonoras, os blocos alteram seus estados continuamente e, consequentemente, a forma musical vai se revelando nas transmutações que se sucedem”. Deformações convergentes dos materiais ou troca de elementos entre si combinam os blocos sonoros, seja por apojaturas, notas prolongadas, notas reiteradas, notas alternadas (trilos, trêmulos etc.), glissandos, curvaturas e verticalizações das alturas, perfil dinâmico, timbre, articulações ou harmonia, projeção, rotação, distorção, expansão e contração, simultaneidade de elementos divergentes e acordes inarmônicos que transformam a percepção de intervalos dissonantes em escuta de aglomerados indivisíveis, os compostos tímbricos (ZUBEN, 2005: 98).

1.2 Som cinematográfico

1.2.1 História, técnica e aspectos comerciais

Como arte tecnológica, o cinema nasceu a partir do cinematógrafo, uma máquina que registrava fotografias aceleradamente em série, de modo a dar aos olhos do espectador a impressão de movimento nas imagens captadas

33 quando fossem projetadas na tela. Da mesma forma, quando as salas de cinema passaram a ser equipadas com auto-falantes, já na fase do chamado filme sonoro, criou-se a sensação de que aquelas imagens projetadas podiam falar, cantar, gritar e produzir os mais diversos tipo de sons. O advento do que se convencionou chamar de cinema sonoro teve como marco do seu início histórico dois filmes dos estúdios Warner. O primeiro filme de longa metragem com trilha sonora de música e efeitos sonoros – na época ainda gravada em grandes discos – foi Don Juan (EUA, 1926), estrelado por John Barrymore e dirigido por Alan Crosland. Com trilha musical e efeitos sonoros, como os de espadas durante um duelo, o filme serviu de prenúncio para o primeiro filme sonoro com diálogos, esse sim o verdadeiro vetor de uma mudança radical na forma de se produzir e assistir a filmes, provavelmente a maior da história do cinema. Essa mudança surge com o primeiro filme de longa metragem falado: O cantor de jazz (The jazz singer, EUA, 1927), também dirigido por Crosland, mas desta vez estrelado por Al Jolson. Havia três inserções sonoras musicais com pouquíssimos diálogos, sendo que o restante ainda contava com intertítulos. Ambos os filmes foram produzidos pelo sistema Sound-on-Disc da Vitaphone, também da Warner, primeiro estúdio de Hollywood a apostar nos filmes sonoros em meio ao descrédito generalizado da indústria em relação a esse novo tipo de tecnologia. Tal sistema foi desenvolvido em parceira com a Bell Telephone Laboratories, exemplo de convergência tecnológica do ramo de telefonia no aparato técnico do cinema já desde o início de sua fase sonora. A outra exceção foram os estúdios Fox, com seu sistema Movietone, introduzido ainda em 1926. Enquanto o Sound-on-Disc, um disco de gravações sonoras era reproduzido por um gramofone, eletronicamente sincronizado com o projetor do filme (1925-1931), Theodore W. Case e Earl I. Sponable desenvolveram para a Fox o Sound-On-Film, sistema em que a principal inovação era a banda sonora, faixa de gravação de som impressa diretamente na lateral dos fotogramas da película do filme, conforme conta Tim Dirks no portal AMC Filmsite (DIRKS, 2016: 1). Seria esta a tecnologia que prevaleceria em pouco tempo, até antes do cinema digital. Porém, até aqui falamos das condições técnicas do cinema já propriamente sonoro, sem fazer uma retrospectiva

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sobre se nem sobre como o cinema já oferecia algum tipo de som acompanhando as imagens projetadas antes disso. Pouco se fala sobre como o chamado cinema mudo já havia nascido com diferentes formas de execução de som de acompanhamento à exibição dos filmes. Desde 1895, ano em que começaram as apresentações públicas de curtas-metragens com o cinematógrafo dos irmãos Lumière – aparelho que por si só já convergia tecnologias até então usadas para exibição de fotos em sequência de modo a recriar movimentos para estudos científicos –, os primeiros filmes eram exibidos em feiras, vaudevilles, intervalos de espetáculos como balé e galpões improvisados, os nickelodeons ou máquinas de exibição individual, conforme conta Arlindo Machado (2011: 74- 75). As salas de cinema propriamente criadas para tal função surgiriam apenas nos anos 1910. Antes da histórica projeção dos Lumière, em 1877, Thomas Edison já havia apresentado seu fonógrafo, que a princípio também deveria reproduzir imagens desde o início. Mas foi também no ano de 1895 que seu quinetoscópio conseguiu unir projeção de imagens e reprodução de sons. Tratava-se de um aparelho estilo peepshow (individual), com problemas de sincronização e volume mais baixo que o som produzido pelo projetor, conforme conta Arlindo Machado (2011: 142). O som era ouvido por cones e fones de ouvido. Edison não se satisfez, nem tampouco desistiu. Em 1913, seu quinetofone dispunha de amplificador e um complicadíssimo sistema de sincronização, que acabou se mostrando inviável. Várias outras tecnologias criadas na tentativa de sincronizar imagens em movimento com som sincrônico não foram bem-sucedidas por limitações de amplificação para as salas de cinema. Portanto, o cinema, em projeções individuais, vistas através de um visor, já era sonoro desde sempre. Rick Altman e Richard Abel complementam esse resgate dos primórdios do cinema sonoro, ressaltando o quanto o marco de 1927 é inexato.

Raramente o relato histórico padrão esteve tão longe da marca. Não só filmes sonoros sincronizados são tão antigos quanto o próprio cinema, como a partir da virada do século eles gozaram de um desenvolvimento, uma exploração e sim, até sucesso comercial quase ininterruptos. Na França, o sistema Chronophone da Gaumont floresceu durante uma

35 década, exigindo que Alice Guy fizesse mais de uma centena filmes sonoros. Nos Estados Unidos, no fim da década de 1900, o sistema Cameraphone foi instalado em centenas de cinemas em todo o país. O sistema Vivaphone da Grã- Bretanha, desenvolvido pelo cineasta pioneiro Cecil Hepworth, teve uma carreira distinta. Mas estes são apenas uma amostra das dezenas de sistemas sound-on-disk e sound-on-cylinder desenvolvidos ao redor do mundo nos anos anteriores a Primeira Guerra Mundial. Dos Estados Unidos veio uma série de -scopes, -phones e –graphs (...) (ABEL; ALTMAN, 1999: 395)

A investida da Warner teve, portanto, um caráter de estabelecer o que até então era algo quase que restrito a filmes de metragens mais curtas, além de apresentar problemas de sincronização e amplificação – a tecnologia permitia som sincrônico por três ou quatro minutos apenas. E isso bem numa fase em que filmes de narrativas mais longas e estruturadas ganhavam cada vez mais atenção do público, lembra Altman. Até o advento do cinema sonoro, algumas salas ofereciam dublagem ao vivo, inclusive com acompanhamento musical cantado ou via gramofone. Outras ofereciam narração e produziam efeitos sonoros semelhantes aos vistos no filme. Desde antes do chamado cinema sonoro – a partir de 1927 – já existia música composta para filmes, executada ao vivo conforme indicações do diretor. Antes do Vitaphone e do Movietone, houve também várias tentativas de simular som por meio de outras máquinas, como os órgãos que, além da música, reproduziam ruídos das cenas, e a Talking Machine, que agrupava falas, efeitos sonoros e músicas, mas com sincronia falha. Os photoplayers eram pianos criados especialmente para salas de cinema que reproduziam também efeitos sonoros diversos (MACHADO, 2011: 145). Alguns filmes dessa fase traziam tentativas de reproduzir visualmente a sensação de ritmo musical com luzes, fusões de planos, cortes, pessoas cantando, músicos tocando. Intertítulos chegavam a ter palavras diagramadas conforme o sentido e a entonação das palavras, como, por exemplo, as letras com tipologia que se expande para indicar um grito. Somente em 1925 surgiram os primeiros fonógrafos com amplificação eletrônica produzidos em escala industrial pela Bell Telephone (MACHADO, 2011:143).

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A ideia de uma banda sonora na película também data dos anos 10, mas a qualidade sonora era pior que a de um disco. Havia um descompasso inicial que foi corrigido com uma câmera que só capturava sons, associada a um gravador. O sistema Movietone Sound-on-Film da Fox estreou em um longa-metragem com Aurora (Sunrise, EUA, 1927), produção americana do direitor alemão F. W. Murnau. A dificuldade de sincronização existia por ainda não haver padronização entre as velocidades de captação e de projeção das imagens. Cada filme tinha sua própria cadência e esta podia variar até no mesmo filme. Nos anos 20, a Vitaphone criou o padrão de 24 fotogramas por segundo para as imagens e 33 1/3 rotações por minuto para o disco de som. Não havia lógica técnica para a escolha, decidida por meio de uma pesquisa informal realizada com exibidores de Chicago (MACHADO, 2011:144). De qualquer modo, nascia a primeira mídia audiovisual bem-sucedida. A decisão de dois estúdios de Hollywood de investir no cinema sonoro quando já haviam sido estabelecidas as regras da narrativa clássica do cinema com o respaldo da filmografia do diretor D.W. Griffith não foi mera questão de inovação em nome da competitividade. É verdade que os estúdios Warner iam mal financeiramente e o filme sonoro seria sua última cartada antes de uma eventual falência, mas o interesse por som, especificamente pela voz, se acentuou com a radiodifusão comercial. A primeira transmissão comercial nos Estados Unidos havia acontecido em 2 de novembro de 1920, com a cobertura da eleição presidencial pela Westinghouse Radio Station KDKA, de Pittsburgh, Pensilvânia. Antes só havia rádios amadoras e transmissões militares durante a Primeira Guerra Mundial. Começava o período que até mereceria homenagem num filme de Woody Allen, A era do rádio (Radio days, EUA, 1987).

Como analisa Jesús Martín-Barbero, o rádio permitiu que grupos de diversas regiões de um mesmo país, antes afastados e desconectados, se reconhecessem como parte de uma totalidade. Os noticiários que começaram a por em contato zonas distantes, assim como os filmes que ensinavam às massas de imigrantes como viver na cidade, tratando dos conflitos interculturais, propunham novas sínteses possíveis da identidade nacional em transformação. (CANCLINI, 2005: 129)

37 Em 1928 foi lançado o longa-metragem Luzes de Nova York (Lights of New York, EUA, 1928), dirigido por Bryan Foy, com todos os diálogos totalmente sonorizados, marcando pela sua acentuada quantidade de falas o início do que se convencionou chamar pela indústria de talkies, que despertaram enorme interesse do público. O fenômeno midiático da voz humana ouvida à distância no espaço e/ou no tempo, nascido com a proliferação do rádio, do telefone e do fonógrafo, ganhava a chancela da primeira forma de arte técnica audiovisual bem-sucedida. As imagens em movimento, agora ouvidas, pareciam trazer as estrelas de cinema para dentro do recinto das salas de projeção, vantagem singular do cinema. Ainda em 1927, já havia ido ao ar a primeira transmissão televisiva bem- sucedida nos Estados Unidos, em São Francisco, Califórnia. Primeiros experimentos já vinham sendo realizados na Rússia havia 16 anos. Eram os primórdios da segunda mídia audiovisual, que afetaria a indústria do cinema tanto comercialmente (queda na venda de ingressos, uso de telas maiores, cores vibrantes) quanto esteticamente (filmes também pensados para a exibição em tela pequena). A alemã BASF investiu na tecnologia de fitas magnéticas de gravação durante a Segunda Guerra, determinante para as futuras inovações do som de cinema, a partir do cinejornalismo e do telejornalismo. Nos anos 40 ganhou impulso o uso de película 16 mm pelos correspondentes de guerra. Em 1948 viria o advento dos gravadores magnéticos portáteis e em 1953 começou a substituição do dispositivo de gravação ótica (Sound-On-Film) no filme pelo sistema magnético.

Para a captação de imagens em exteriores, a única tecnologia de que a televisão dispunha, nos seus primeiros anos, era a “artilharia pesada” do cinema. O telejornalismo fomentou a pesquisa de outro tipo de equipamento: câmeras leves e silenciosas, capazes de serem liberadas de seus suportes tradicionais e operadas no ombro do cinegrafista, películas sensíveis a condições de luz mais baixas, gravadores magnéticos portáteis sincrônicos e acessórios que pudessem ser manipulados por equipes menos numerosas e mais ágeis. (DA-RIN, 2004: 102)

A partir de 1958, adaptações sucessivas resultaram em câmeras portáteis e silenciosas e a partir de 1959 o gravador magnético portátil em

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sincronismo com a câmera, o Nagra, surgiu como a possibilidade de se gravar sons externos sem maiores dificuldades técnicas. Ele representou um salto tecnológico aproximadamente simultâneo nos Estados Unidos, França, Alemanha e Canadá, levando a novas propostas de uso de som no cinema. “Em 1960 todas estas condições se encontravam finalmente satisfeitas e reunidas no que Mario Ruspoli denominou “grupo sincrônico cinematográfico leve” (DA-RIN, 2004: 103)6.

1.2.2 Convergência de mídias

Cabe aqui relacionar análises sobre a evolução das tecnologias, como as envolvidas na transição do cinema silencioso para o sonoro – e sua posterior evolução com métodos de captação de áudio como o gravador portátil Nagra e o som multicanal –, como justificativa para pesquisas como esta, pelas implicações culturais envolvidas e como isso alicerça o trabalho de Alan Splet. A história do cinema atesta que o caráter da convergência tecnológica que realmente inova na atual era das tecnologias digitais, conectadas em rede e portáteis, é o da participação de quem antes era apenas espectador agora também na produção, resignificação e distribuição de conteúdos. A fusão de recursos de mídias distintas vem de longa data. Ben Singer fala que a sensacionalização do divertimento comercial, que ficou mais intensa no melodrama teatral, que desde a década de 1880 passou a ganhar recorrentes cenas de sensação, cada vez mais realistas. Essa conduta influenciou muito o cinema desde seu início, com cenas e sequências de diversas formas de perigo físico e espetáculo sensacional, como lutas, perseguições, colisões, explosões (SINGER, 1995: 114-115). Como ele cita em referência a Kracauer, o sensacionalismo funcionava como compensação do empobrecimento da experiência na modernidade, alívio momentâneo da tensão, do frenesi e do tédio do trabalho nas fábricas e escritórios (SINGER, 1995: 117).

6 Mario Ruspoli (1925-1986) foi um documentarista italiano que atuou na França entre as décadas de 1950 e 1970 e chegou a fazer parcerias com o trambém documentarista Chris Marker. Entre seus trabalhos como diretor estão Les hommes de la baleine (1956), Regards sur la folie (1962), La chavalanthrope (1972) e Vive la baleine (1972), este co-dirigido por Marker.

39 A modernidade transformou a estrutura não apenas da experiência diária fortuita, mas também da experiência programada, orquestrada. À medida que o ambiente urbano ficava cada vez mais intenso, o mesmo ocorria com as sensações dos entretenimentos comerciais. (...) A modernidade inaugurou um comércio de choques sensoriais. (SINGER, 1995: 112)

O som cinematográfico representou um dos maiores desses choques sensoriais quando surgiu em 1927 naquele que é considerado primeiro filme de longa metragem falado, O cantor de jazz, pelo sistema Sound-on-Disc da Vitaphone. Porém, como Altman esclarece, ele resulta de um processo longo na busca de sensações sonoras associadas às projeções de filmes, desde os primórdios do cinema. Da mesma forma, a confluência de tecnologias é um processo muito mais antigo que o próprio cinema, e vai muito além de meras inovações em equipamentos. Uma das definições de tecnologia que Álvaro Vieira Pinto elenca em seu livro O conceito de tecnologia explica melhor a perspectiva do impacto técnico, econômico e artístico trazido pelos sistemas Vitaphone e Movietone.

De acordo com o primeiro significado etimológico, a “tecnologia” tem de ser a teoria, a ciência, o estudo, a discussão da técnica, abrangidas nesta última noção as artes, as habilidades do fazer, as profissões e, generalizadamente, os modos de produzir alguma coisa. Este é necessariamente o sentido primordial, cuja interpretação nos abrirá a compreensão dos demais. A “tecnologia” aparece aqui com o valor fundamental e exato de “logos da técnica”. (PINTO, 2005: 219)

A separação dos diferentes meios de comunicação começou a ruir com mais rapidez a partir das chamadas artes mecânicas, como a fotografia, o cinema – e depois o cinema sonoro. Estas duas formas de arte herdaram todo um legado de influências visuais da pintura (enquadramento, profundidade de campo, jogos de luz e, posteriormente, cores), sendo que o cinema ainda se beneficiou enormemente das tradições literárias e teatrais. Se as novas tecnologias midiáticas permitem que o mesmo conteúdo flua por vários canais diferentes e assuma formas distintas no ponto de recepção, conforme explica Henry Jenkins em Cultura da convergência, esse processo teve início há várias décadas. Um dos primeiros exemplos dessa

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proliferação de canais de distribuição surgiu com o cinema sonoro por meio de um de seus aspectos do som, quando a indústria fonográfica passou a lucrar com as trilhas sonoras (musicais) de filmes vendidas em formato de disco LP. Para definir meio de comunicação, Jenkins recorre à historiadora Lisa Gitelman, para quem a mídia opera em dois níveis: uma tecnologia que permite a comunicação e um conjunto de “protocolos” associados ou práticas sociais e culturais desenvolvidas a partir dessa tecnologia. Para Gitelman, meios de comunicação são também sistemas culturais que persistem como camadas dentro de um estrato de entretenimento e informação cada vez mais complicado (JENKINS, 2009: 39).

Desde que o som gravado se tornou uma possibilidade, continuamos a desenvolver novos e aprimorados meios de gravação e reprodução do som. Palavras impressas não eliminaram as palavras faladas. O cinema não eliminou o teatro. A televisão não eliminou o rádio. Cada antigo meio foi forçado a conviver com os meios emergentes. É por isso que a convergência parece mais plausível como uma forma de entender os últimos dez anos de transformações dos meios de comunicação do que o velho paradigma da revolução digital. Os velhos meios de comunicação não estão sendo substituídos. Mais propriamente, suas funções e status estão sendo transformados pela introdução de novas tecnologias. (JENKINS, 2009: 39)

O processo de convergência das mídias é, portanto, mais do que meras atualizações, invenções e superações técnicas. Ele ainda altera, segundo o autor, a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. “A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento”. (JENKINS, 2009: 41). Já para Kevin Kelly, em sua palestra TED de 2005, as principais tendências em evolução tecnológica são as mesmas da evolução biológica, as mesmas direções que vemos rumo à ubiquidade, diversidade, socialização e complexidade. Para ele, a tecnologia nos traz “escolhas, possibilidades, liberdade, a expansão de espaço que gera diferenças” (KELLY, 2005).

41 1.3 Cinema sonoro clássico

1.3.1 Estética e motivações

O falatório tão recorrente dos primeiros filmes sonoros tampouco se deu sem motivo. Além das limitações decorrentes das dificuldades de se gravar som na época, logo se tratou de estipular as prioridades sonoras em que a voz, a música e os efeitos sonoros teriam importância em ordem decrescente, conforme explicam David Bordwell e Michel Chion. A sincronia labial entre a imagem do movimento da fala dos atores e o som de suas vozes era a principal atração dos talkies. Os microfones da época apresentavam várias limitações. Não direcionais, frágeis, sensíveis a vento e sons ambiente, precisavam ter o falante bem próximo a ele. As cenas eram por regra gravadas em estúdio e, para evitar o barulho produzido pelas câmeras, criou-se cabines onde elas eram colocadas para proporcionar isolamento acústico do que seria gravado em cena. Mixagem de múltiplas faixas de som era inviável pela perda de qualidade sonora. Até 1933, era extremamente raro ter música e diálogos simultâneos, a menos que gravados assim. A música passou a ser gravada e executada na cena em playback. Cenas externas eram evitadas, o que estimulou o uso recorrente das back projections, projeções de cenas externas ao fundo dos atores que gravavam suas falas no estúdio. Em The classical Hollywood cinema, David Bordwell avalia que os investimentos, esforços, ajustes, modificações e revisões de tecnologia trazidos com o cinema sonoro não representaram uma alternativa radical ao cinema mudo. O material sonoro e toda a série de procedimentos técnicos que o envolviam foram inseridos no sistema de recursos expressivos já consolidados do cinema clássico hollywoodiano, ou seja, em conformidade com a estética do cinema silencioso. Nos procedimentos técnicos e nos discursos difundidos de 1927 a 1932, “encontra-se um conjunto altamente coerente de analogias entre imagem e som, entre as construções visual e auditiva de espaço e tempo narrativos” (BORDWELL, 1985: 301). Desde esses primórdios do cinema sonoro, a gravação da fala já equivalia à forma como a imagem era filmada, enquanto o

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tratamento dispensado à música e aos efeitos sonoros se baseava na edição e trabalho de laboratório realizados em pós-produção.

No discurso técnico de Hollywood durante os anos 1930, a ligação entre a gravação de som e cinema repousa numa analogia biológica. Combinados, câmera e microfone se assemelham a um corpo humano limitado, mas realista. 'A técnica de controle acústico’, afirmou o artigo mais influente na gravação de som, ‘baseia-se em deixar a câmera ser o olho e o microfone ser o ouvido de uma pessoa imaginária a ver a cena." A partir desta analogia, estendem-se muitos paralelos. Assim como a cinematografia é monocular, a gravação de som deve trabalhar com apenas um 'ouvido'. Ajustes técnicos devem compensar isso: o diretor de fotografia deve trabalhar para criar uma impressão de profundidade visual e o responsável pela gravação de som deve criar ‘perspectiva sonora’. Ao controle do cinematógrafo do espaço através da iluminação e composição corresponde o controle de volume e reverberação do técnico de gravação. (BORDWELL, 1985: 301)

O protagonismo da fala no som cinematográfico norteou os avanços tecnológicos da gravação e reprodução sonoras. Um exemplo foram os microfones direcionais, que reduziram a reverberação nos sets e redução do ruído produzido pelo motor das câmeras da época, tornando a voz dos atores mais compreensível. A fidelidade de gravação foi sendo aprimorada em volume e gamas de frequências alcançadas, valorizando cada vez mais o timbre e a entonação das vozes. “Corpo e voz, a pessoa: é isso que se registra, na imagem e no som, para uso na narrativa”. Outra particularidade da década de 1930 eram as melhorias técnicas de som para articular com mais clareza vozes e música, num momento em que partituras "sinfônicas" ganhavam força nos filmes. Surgem nessa época as primeiras tentativas de dividir o som em diferentes faixas, sistemas de multicanal. Era comum gravar números musicais em duas faixas – canto num e acompanhamento noutro –, mas para a comédia musical 100 homens e uma menina (One hundred men and a girl, EUA, 1937, de Henry Koster) a RCA conseguiu gravar a orquestra em sete faixas e o cantor em uma (BORDWELL, 1985: 302). Já vigorava a ideia de que a música deve dar suporte expressivo à voz humana, esta sendo a prioridade da gravação de sons no cinema. Música e efeitos sonoros já eram trabalhados em fases

43 posteriores da produção, sendo que a edição de som e dublagem equivaliam ao que a montagem e os efeitos ópticos faziam pela imagem. O sistema Movietone de som óptico, dos estúdios Fox, prevaleceu sobre o Vitaphone da Warner por permitir cortar a faixa de som com a mesma liberdade dos cortes na película de imagens e precisão bem maior. A regravação de efeitos sonoros ganhou caráter de tratamento de imagens fotográficas e as analogias seriam adotadas até na terminologia, como os efeitos de fade (escurecimento gradual da tela entre cenas), que ganharam versão sonora por meio da redução gradual do volume. Mary Ann Doane ainda ressalta a importância da inteligibilidade, por trás da ilusão do realismo da estética clássica. “Por exemplo, numa tomada de um casal conversando, numa grande multidão, o poder mimético do som da multidão é em geral reduzido em favor da inteligibilidade do diálogo. (...) É o “talkie” que aparece em 1927 e não o filme sonoro” (DOANE, 1985: 59). Em seu livro A audiovisão – Som e imagem no cinema, Michel Chion atenta para a diferença entre veracidade e verossimilhança sonora, esta considerada por ele “terrivelmente ambígua e complexa”. Chion nos leva a refletir a respeito do quanto nos apoiamos em impressões forjadas de realismo das quais não temos respaldo pessoal para reconhecer como verdadeiras.

Em primeiro lugar, aquilo que soa verdadeiro para o espectador e o som que é verdadeiro são duas coisas muito diferentes. Para apreciarmos a veracidade do som, referimo- nos muito mais a códigos difundidos pelo próprio cinema, pela televisão e pelas artes representativas e narrativas em geral, do que à nossa hipotética experiência vivida. Muito frequentemente, de resto, não temos qualquer recordação pessoal a que possamos recorrer quanto à cena mostrada: por exemplo, num filme de guerra, num filme exótico ou sobre uma tempestade no mar, que ideia temos nós, em geral, do som que os acompanha antes daquela que o filme nos comunica? (CHION, 2008: 87)

Chion também cita o efeito do soco cenográfico como ponto de sincronização. Na vida real não há necessariamente um som provocado no momento do impacto do golpe. Já na audioimagem do cinema e da televisão, é quase obrigatório que haja um efeito sonoro específico, sem o qual poderíamos até achar que um golpe verdadeiro não o fosse. O realismo cênico pode ser bastante desvinculado da sonoridade observada em eventos

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equivalentes reais. O soco no cinema é um tipo de construção polifônica. Também sincrônica, mas com efeito, ironicamente, de naturalidade. Em Sound theory, sound practice, Rick Altman resume com precisão o pensamento contrário ao naturalismo sonoro que vinha desde os teóricos russos. “O real nunca pode ser representado; só a representação pode ser representada. Para ser representado, o real deve ser conhecido e o conhecimento sempre já é uma forma de representação” (ALTMAN, 1992: 46). Para ele, o que chamamos de realidade é algo que cada nova tecnologia tem a proposta de representar, mas que acaba sendo definida pelos sistemas de representação anteriores. Os primeiros anos do cinema sonoro deveram muito à representação sonora do rádio, do teatro, fonografia e pronunciamentos públicos. Paralelo a uma fotografia fragmentada em diferentes ângulos e enquadramentos, se o som fosse sempre fiel à imagem, haveria nesse realismo espacial variações de volume, reverberação e de interferência de sons do ambiente que tornariam a audição do filme um tormento. Criou-se, então, graças também a modelos mais modernos de microfone, o som de “ponto de audição”, referência de captação de som que adota algum ponto da diegese, normalmente um ou mais personagens. A ideia era criar um som a ser ouvido como se o espectador estivesse dentro da cena7. Ouvimos o que um personagem ouviria numa identificação definida e, assim, não podemos escolher qual parte da cena queremos ouvir com mais atenção. É o direcionamento sonoro da narrativa, a exemplo do direcionamento visual da edição ao estilo de Griffith. Um efeito que faça o espectador se sentir vivendo a experiência mostrada no filme, não apenas assistindo a tudo de fora, de longe, em outro tempo. Bordwell vê na música o exemplo mais claro da assimilação de som pelas normas clássicas. “A principal diferença entre compor para o cinema mudo e o sonoro foi quantitativa, em que menos música era necessária para o filme de diálogo” (BORDWELL, 1985: 302). Limitada a trechos curtos, a música podia unir partes de uma sequência de montagem, conectar cenas,

7 Michel Chion identifica o conceito de ponto de audição no sentido espacial e no subjetivo. No primeiro, trata-se do ponto do espaço representado na tela ou da trilha ouvimos o som do filme. No sentido subjetivo, indica qual personagem está ouvindo o que ouvimos naquele momento (CHION, 1994: 90).

45 ou sublinhar uma ação ou linha de diálogo. A fluidez e a naturalidade almejada com esse processo são destacadas por Doane.

A ilusão de um fluxo descodificado também é apoiada pela prática dos cortes surpreendentes. Só em casos excepcionais o som e a imagem são cortados no mesmo ponto exato. A continuação de um mesmo som sobre um corte na trilha de imagens desvia atenção do corte. De forma parecida, o processo de mixagem é caracterizado por “um trabalho de unificação”, homogeneização, de uma suavização e polimento de toda a “aspereza” da trilha sonora”. Todas essas técnicas são motivadas pelo desejo de separar o filme de sua origem, de esconder o trabalho de produção. Eles promovem um senso de ausência de esforço e facilidade de capturar o natural. (DOANE, 1985: 57-58)

Para Bordwell, o leitmotif (tema musical) seguiu como fio condutor sonoro, marca da identidade de personagens ou situações, ou pleonasmos sonoros da imagem – além de, na sua função de continuidade narrativa, uma herança do período silencioso. Uma espécie de cola e de verniz para manter o filme coeso e bem-acabado. Sendo a voz a prioridade e a música esse elemento de coesão e capricho narrativo, aos efeitos sonoros ficou relegada a posição de menor importância da trilha sonora do cinema hollywoodiano. É o que destaca Chion, que os trata por “ruídos”, citando o tratamento clássico a eles dado para notar sua atual situação.

O som de ruídos, por um longo tempo relegado para segundo plano como um parente problemático no sótão, tem, portanto, se beneficiado das recentes melhorias na definição trazidos pela Dolby. Ruídos estão reintroduzindo uma sensação aguda da materialidade das coisas e dos seres, e eles indicam um cinema sensorial que reencontra uma tendência básica do... cinema silencioso. O paradoxo é apenas aparente. Com o novo lugar que os ruídos ocupam, o diálogo não é central para filmes. Diálogos tendem a ser reinscritos em um continuum sensorial global que os envolvem, e que ocupa os dois tipos de espaço, auditivo e visual. Isso representa uma reviravolta a partir de sessenta anos atrás: a pobreza acústica da trilha sonora durante a fase inicial do filme sonoro levou ao privilégio dos elementos sonoros pré-codificado, ou seja, linguagem e música em detrimento dos sons que eram índices puros de realidade e materialidade, ou seja, os ruídos. O cinema tem sido falado por um longo período de tempo. Mas faz pouco tempo que ele tem sido digno do nome que foi dado, um pouco apressadamente: filme sonoro. (CHION, 1994: 155-156)

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O surgimento do som para cinema no processo industrial de Hollywood não passaria batido em termos de efeitos estéticos sobre a produção daqueles anos, os principais deles ainda vigentes. Estabelecidos os procedimentos de câmera e edição do chamado cinema clássico a partir de Griffith, era evidente a opção por efeitos narrativos que prendessem a atenção do espectador à trama de modo a fazê-lo vivenciar as situações apresentadas no filme com o mínimo possível da resistência causada pela consciência clara de que aquilo era um faz de conta. Verossimilhança era a meta e a adição do som, como elemento da reprodutibilidade técnica que Walter Benjamin aborda, deveria contribuir para tanto.

Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral. Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos. (BENJAMIN, 1955: 167)

Benjamin observa que, com o cinema, a obra de arte adquiriu um atributo decisivo, que os gregos ou não aceitariam ou considerariam o menos essencial de todos: a perfectibilidade. Segundo ele, o filme acabado não é produzido de um só jato, e sim montado a partir de inúmeras imagens isoladas e de sequências de imagens entre as quais o montador exerce seu direito de escolha. Ele ainda ressalta que essas imagens poderiam ter sido corrigidas, sem qualquer restrição, desde o início da filmagem. (BENJAMIN, 1955: 175).

1.3.2 Impacto cultural

Para Adorno e Horkheimer, na obra Dialética do esclarecimento, de 1947, quanto maior for a perfeição com que as técnicas duplicarem os objetos empíricos, mais acessível seria criar a ilusão do mundo exterior como

47 um prolongamento contínuo do mundo da diegese presente no filme de ficção. “Desde a súbita introdução do filme sonoro, a reprodução mecânica pôs-se ao inteiro serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985: 59). Para eles, a passividade do espectador caracterizava propositalmente sua imersão no espetáculo audiovisual.

Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediat3amente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos – e entre eles em primeiro lugar o mais característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva. São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985: 59)

Pode-se discutir a validade ou a medida da inatividade intelectual apontada por ambos, mas quando os diálogos predominam – ainda mais quando compreendidos por meio de legendas – e há imagens em movimento muitas vezes editadas com vários cortes e diversas informações visuais para captar com rapidez, é compreensível a imersão sem a resistência do questionamento e da reflexão de que os dois pensadores tratam. Pelo menos enquanto se assiste ao filme, o que, muitas vezes, acontece uma única vez. Por outro lado, Doane entende que um certo grau de padronização é necessário por o cinema ser uma arte técnica, que depende de equipamentos caros e equipes numerosas em funções. Para a autora, as técnicas de construção de trilha sonora, a linguagem dos técnicos e o discurso sobre a técnica são sintomas de um objetivo ideológico. Ela reconhece o clichê que se tornou a percepção de como a trilha sonora mereceu muito menos atenção teórica e análise que a imagem.

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Essa falta de atenção indica a eficiência de uma operação ideológica em particular que está mascarada, até um certo ponto, pela ênfase colocada na “ideologia do visível”. Embora seja verdade que, como diz a expressão, vamos “ver” um filme não o escutar, a própria expressão consiste numa afirmação da identidade (completude, unidade) do filme e a consequente negação da sua heterogeneidade material. O som é algo que é acrescentado à imagem, mas subordinado a ela •– ela age, paradoxalmente, como um apoio “silencioso”. A obliteração do trabalho que caracteriza a ideologia burguesa é altamente bem-sucedido com respeito à trilha sonora. A invisibilidade das práticas de edição de som e mixagem é assegurada pelas aparentemente “naturais” leis de construção que ela obedece”. (DOANE, 1985: 55)

Quanto menos uma técnica é perceptível, mais bem-sucedida é, nota a autora. Sua força é maior quanto maior for sua “invisibilidade”. “Numa cultura em que a frase “Eu vejo” significa entender, os poderes epistemológicos do assunto são claramente dados como uma função da centralidade do olho” (DOANE, 1985: 55)8. Para Doane, um complexo de determinações garante a sutileza e a permeabilidade dessa ideologia do visível no cinema pela multiplicidade, auxiliada pela qualidade inefável e intangível do som, que atua num nível mais emocional e intuitivo do espectador. “A frequência com que as palavras “clima” ou “atmosfera” surgem no discurso dos técnicos de som indica isso também” (DOANE, 1985: 55). Em texto de 1933, Roman Jakobson observa que a crítica inicial ao cinema falado pecava sobretudo por generalizações prematuras, sem considerar o contexto histórico, em que o “mutismo” era tratado como característica estrutural do cinema. “Em lugar de reconhecerem o "tanto pior para a teoria", repetem o tradicional "tanto pior para os fatos" (JAKOBSON, 1970: 156). Para o autor, não era justo comparar a fase inicial do cinema sonoro à fase mais madura do silencioso, pós-Primeira Guerra Mundial.

Se na tela vemos pessoas falando, ao mesmo tempo ouvimos as suas palavras ou a música. Música, não silêncio. O silêncio no cinema tem o valor de uma ausência de sons reais; é, pois, um objeto acústico exatamente como a fala, a tosse ou os rumores da rua. Num filme sonoro percebemos o silêncio como signo de silêncio real. Basta recordar como a classe emudece no filme Pred maturitou ["Antes da maturidade]. Não é o silêncio, mas a música que anuncia no filme a ausência momentânea de objetos acústicos. A música

8 “I see”, em inglês, pode tanto ser traduzido como “vejo” quanto como “entendo”.

49 no cinema serve justamente a essa finalidade, dado que a arte musical opera com signos que não se referem a nenhum objeto. O filme mudo não tem nenhum "tema" acústico, e justamente por isso reclama um constante acompanhamento musical. Com essa função neutralizante da música topam involuntariamente os especialistas, quando notam que "percebemos subitamente a ausência da música, mas não prestamos nenhuma atenção a sua presença, de forma que, se quisermos. Qualquer música poderá harmonizar-se com qualquer cena" (Bela Balázs), "a música no cinema é predestinada a não ser ouvida” (P. Ramain), "sua única finalidade é entreter os ouvidos, enquanto a atenção é toda concentrada na vista" (Fr. Martin). (JAKOBSON, 1970: 156- 157)

Jakobson ressalta que no cinema sonoro o discurso ora é ouvido, ora é substituído pela música. Lembra que o som gravado trouxe mais variedade à rigidez anterior de recursos do cinema, a exemplo das inovações dos cineastas Edwin Porter e D. W. Griffith, que estabeleceram o que ficou conhecido como a estética do cinema clássico ao eliminarem a imobilidade da câmera em relação ao objeto, oferecendo variedade de tipos de enquadramento e movimento. O autor explica que a realidade óptica e a realidade acústica podem ser usadas simultânea ou separadamente, o objeto óptico sem seu som correspondente ou o som sem o objeto óptico que lhe produz. “Ouvimos um homem falar enquanto vemos, em vez de sua boca, os outros detalhes da cena, ou mesmo uma cena inteiramente diversa” (JAKOBSON, 1970: 158). Ele reconhece nesses novos recursos trazidos com o som novas possibilidades de sinédoque cinematográfica. “Paralelamente, aumentam os métodos de ligação das tomadas (passagem puramente sonora ou verbal, contrastes de som e imagem, etc)”. Bela Balazs corrobora com essa visão ao afirmar que o filme sonoro revela a paisagem acústica à nossa volta.

Os sons da nossa vida do dia-a-dia que até aqui percebíamos meramente como um barulho confuso, como uma massa sem forma de rumor, mais precisamente como uma pessoa não musical pode ouvir uma sinfonia; na melhor hipótese ela pode estar apta a distinguir a melodia principal, o resto será fundido num clamor caótico. O filme sonoro nos ensinará a analisar até barulho caótico com nosso ouvido e ler a partitura da sinfonia da vida. Nosso ouvido vai escutar as diferentes vozes no burburinho geral e distinguir seu caráter como manifestação da vida individual. É uma máxima

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antiga que a arte nos salva do caos. As artes diferem umas das outras no tipo de caos específico que elas lutam contra. A vocação do filme sonoro é nos redimir do caos do barulho sem forma ao aceitá-lo como expressão, como significância, como sentido... (BALAZS, 1985: 116)

Em seu livro Audio-vision – Sound on screen, Michel Chion lembra que o som natural ou “ruídos” foram elementos esquecidos da trilha sonora, tanto na prática, quanto na análise acadêmica. Ele conta que são diversos os estudos de música, numerosos os artigos sobre o texto dos diálogos e que há alguns trabalhos sobre voz. “Mas ruídos, aquelas humildes infantarias, permanecem os párias da teoria, tendo recebido um valor puramente utilitário e figurativo e, consequentemente, negligenciados” (CHION, 1994: 144-145). Ele vê a razão desse cenário na própria insuficiência dos efeitos sonoros, a que se refere por ruídos, nos filmes.

Todos nós levamos alguns poucos sons de filme na memória – o apito do trem, tiros, cavalos galopando nos faroestes e a batida de máquinas de escrever em cenas de delegacias de polícia – mas esquecemos que eles são ouvidos apenas ocasionalmente e são sempre extremamente estereotipados. De fato, num filme clássico, entre a música e o diálogo onipresente, dificilmente há espaço para algo mais. Pegue um filme noir americano ou um Carné-Prévert dos anos 40: a que os ruídos se reduzem? Poucas séries de passos, vários vidros se chocando entre si, uma dúzia de tiroteios. E com uma qualidade de som tão acusticamente empobrecida, tão abstrata, que todos eles parecem ter sido recortados do mesmo pano cinzento e impessoal. As exceções citadas no cinema clássico são sempre as mesmas, tão raras, que só comprovam a regra: Tati, Bresson e dois ou três outros. Só isso (CHION, 1994: 145).

O autor também avalia que desde o início a arte e as técnicas de gravação de som para cinema priorizou principalmente a voz falada ou cantada e na música. A atenção aos demais sons sempre foi bem menor, também porque o registro destes apresentava problemas de gravação. Além de nos primeiros filmes sonoros os “ruídos” não soarem bem, eles ainda por cima costumavam interferir na compreensão do diálogo pelas plateias. Isso fez com que os cineastas preferissem “se livrar deles e substituí-los com efeitos sonoros estilizados”.

51 Não raro, tais efeitos eram oriundos de audiotecas dos estúdios, bancos de dados sonoros de onde um mesmo efeito sonoro podia ser solicitado e usado em diversos filmes, tornando-o padronizado e previsível enquanto sonoridade, até para o reconhecimento rápido e fácil por parte dos espectadores. Tal motivo, como apresentado ainda neste capítulo torna o termo “ruídos” problemático. Chion ainda aponta motivos culturais. Segundo ele, “o ruído é um elemento do mundo sensorial que é totalmente desvalorizado no nível estético. Até pessoas cultas hoje respondem com resistência e sarcasmo à noção de que música pode ser feita dele” (CHION, 1994: 145).

1.3.4 Som direto e som multicanal/estereofônico

Das evoluções tecnológicas do som de cinema, além das melhorias na qualidade de captação de áudio pelos microfones, umas das que mais contribuíram para o aprimoramento quantitativo e qualitativo do som de cinema foram os gravadores magnéticos portáteis, capitaneados pelo Nagra, marca da companhia suíça Kudelski Group, que levaram a gravação sonora para locações longe dos estúdios a partir dos anos 1950. Outra foi o som multicanal ou estereofônico, sistema em que mais faixas de som permitem maior qualidade de áudio numa composição sonora mais sofisticada, com duas ou mais faixas de som na película, que alcançou um nível de qualidade satisfatório com a Dolby. A partir do aparelho portátil Nagra, que facilitou a gravação de som direto em cenas externas e permitiu novas experimentações sonoras, com especial destaque para o movimento francês Nouvelle Vague, o estudo teórico das possibilidades do som foi aos poucos retomado com mais vigor. A ideia que se difundiu por esse movimento artístico e essa novidade técnica é a de que o realismo sonoro era seu maior diferencial, validado pelos sons de ambientes externos, quando não pelo questionamento, ruptura e exposição dos procedimentos clássicos da construção narrativa fílmica, som incluso. Ira Konigsberg define som estereofônico como o som gravado em duas ou mais faixas separadas e reproduzidos através de duas ou mais auto- falantes correspondentes. Assim cria-se a impressão de que o som está

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vindo de várias áreas da tela, com um som de grande fidelidade e alcance (KONIGSBERG, 1997: 391). Abel Gance já havia experimentado uma forma primitiva de som estereofônico em 1934. O sistema "Fantasound" de Walt Disney tinha três faixas sonoras ópticas e uma faixa de controle, em filme à parte, para criar música estereofônica para a Fantasia (EUA, 1940). Porém, foi com a ascensão do wide-screen (tela grande) que uma maior distribuição de som ao longo da tela tomou impulso. Cinerama (1952) e CinemaScope (1953) foram os sistemas mais famosos, respectivamente com sete pistas magnéticas de som em filme à parte das imagens e quatro pistas na própria película das imagens. Com o sistema Todd-AO, menos complexo, um filme de 70 mm comportava seis faixas de som. Porém, equipar as salas de cinema para a exibição dos filmes realizados nesses sistemas era uma cara inconveniência. Com o tempo, o sistema ótico (ao estilo Sound-on-Film) evoluiu para o magnético (fitas magnéticas, difundidas pela BASF) e, mais recentemente, para sistemas digitais, mas os sistemas de multicanal se estabeleceram nos anos 1970 quando a Dolby Laboratories decidiu levar seu sistema de redução de ruídos para o cinema, inicialmente ainda em sistema mono (uma única faixa). A estreia do sistema Dolby de redução de ruídos se deu na mixagem de Laranja mecânica (A clockwork orange, Reino Unido / Estados Unidos, 1971), de Stanley Kubrick, embora o filme tenha sido lançado no sistema ótico básico (KROON, 2010: 222). Lisztomania (Reino Unido, 1975), de Ken Russell, trouxe a primeira versão estéreo do sistema Dolby, o Dolby Stereo A. Mas foi com Guerra nas estrelas (Star wars, EUA, 1977) que a tecnologia multicanal voltou para se estabelecer e o sistema Dolby se consagrou.

1.4 “Ruídos” X “efeitos sonoros”

Grande parte da teoria referente ao som de cinema o divide em três elementos estruturais: voz, música e “ruídos”9. Outras referências preferem

9 Segundo a versão online do dicionário Michaelis (michaelis.uol.com.br), acessada em 09/08/16

53 tratar estes últimos como efeitos sonoros. Por mais que alguns diretores consigam tornar essa divisão em três elementos nem sempre tão clara (David Lynch sendo um exemplo), há de se atentar por que existe essa diferença de terminologia e por que esta pesquisa em específico se refere a todo som que não for voz nem música como efeitos sonoros, exceto quando algum autor se referir a eles por “ruídos” nas citações. Uma das primeiras razões que levam a essa diferença de tratamento é que, tanto na língua inglesa, com a palavra “noise”10 (também recorrente na teoria nesse idioma) quanto na portuguesa, com a palavra “ruído”, a acepção adotada frequentemente apresenta um sentido pejorativo, o de um som inadequado, indesejado, incômodo. Há, portanto, um direcionamento emocional bem marcante e bem claro já associado a essas palavras. Se

“ruído, ru·í·do, sm

1 Som estrepitoso provocado pela queda de um corpo ou pelo choque entre corpos; barulho, estrépito, estrondo, rumor, soído. 2 Qualquer barulho ou som inarmônico produzido por vibrações irregulares; estrépito, fragor. 3 Rumor sucessivo e prolongado; bulício. 4 Som confuso e tumultuado de muitas vozes humanas; alvoroço, gritaria. 5 Confusão ou briga com estardalhaço. 6 FIG Notícia, nem sempre verdadeira, que se espalha rapidamente; boato, rumor. 7 Exibição de luxo ou riqueza; fausto, ostentação. 8 MED Som decorrente de determinados órgãos, percebido pela ausculta. 9 FÍS Som constituído por uma série de vibrações diversas sem que haja relações harmônicas entre elas. 10 TELECOM Sinal elétrico inesperado que interfere nas comunicações. 11 COMUN Qualquer tipo de distúrbio que provoca deformação de informações ao transmitir a mensagem. INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES, VAR: arruído. ETIMOLOGIA alt do lat rugĭtum, como esp.”

10 Segundo a versão online do dicionário Merriam-Webster (www.merriam-webster.com), acessada em 09/08/16

“noise (barulho/ruído), substantivo \ nȯiz \

Definição simples de “noise” (barulho/ruído): Um som alto ou desagradável; : Um som que alguém ou alguma coisa faz; : Sinais eletrônicos indesejados que prejudicam a qualidade de algo (como uma transmissão de rádio ou televisão ou uma fotografia digital); Definição completa de “noise” (barulho/ruído) 1 Grito ou protesto alto, confuso ou sem sentido; 2 um som; especialmente: um que carece de qualidade musical agradável ou é perceptivelmente desagradável, b: qualquer som que é indesejado ou interfere com a audição de algo, c: um sinal indesejável ou uma perturbação (como estática ou uma variação de tensão) em um dispositivo eletrônico ou instrumento (como rádio ou televisão); em termos gerais: uma perturbação interferindo com o funcionamento de um dispositivo normalmente mecânico ou sistema, d: a radiação eletromagnética (como luz ou ondas de rádio) que é composta de várias frequências e que envolve mudanças aleatórias na frequência ou amplitude, e: dados ou resultados irrelevantes ou sem sentido que ocorrem juntamente com a informação desejada; 3: Discussão comum: rumor; especialmente: a calúnia; 4: Algo que atrai a atenção ; 5: Algo falado ou expresso; 6: Um estilo de música rock que é alto, muitas vezes discordantes, e normalmente usa ruído eletrônico (como feedback); derivações: noiseless (silencioso) \ -ləs \ adjetivo; noiselessly (silenciosamente) advérbio”

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existem efeitos sonoros usados nos filmes para criar esse tipo de sensação no espectador, existem também tantos outros escolhidos para criar as mais diversas reações, como tensão, medo, confusão, riso, encantamento, tranquilidade, reflexão, entre tantos outros. Mais que isso, a palavra “ruídos” (assim como “noises”) é de fato inexata ou, pelo menos, incompleta para a construção da trilha sonora (aqui num sentido não meramente musical) de um filme. O que parecem ser meros “ruídos” de uma ação filmada diversas vezes são sons gravados de outras fontes, muitas vezes anos antes de uma produção do filme ter início, como nos casos em que são acionadas bibliotecas de som, ou melhor, audiotecas sonoras dos estúdios ou empresas especializadas para prover os editores de som com gravações dos mais diversos tipos de sons. Portanto, resgatando Schafer e sua definição de ruído, esse trabalho envolve tanto intenção quanto organização, predicados inclusive da composição musical. Ira Konigsberg explica a realidade por trás dos sons não vocais nem musicais dos filmes em sua definição de efeitos sonoros.

Todo o som em um filme diferente de diálogo, voice-over e música; este som é normalmente adicionado em um momento após a filmagem. Efeitos sonoros são frequentemente combinados em uma faixa E (efeitos) separada, que é então combinada com as faixas M (música) e D (diálogo). O som normal do ambiente é difícil de controlar e irreal quando gravado. Os efeitos sonoros podem criar o que parece ser o som preciso de um lugar de tal forma que tais ruídos também contribuem para o impacto dramático de uma cena. Sons sincrônicos de ações dos personagens também podem ser integrados à cena com precisão e impacto. Bibliotecas de efeitos sonoros, que podem ser independentes ou parte de um estúdio, têm um grande número de fitas, discos e faixas óticas que incluem uma vasta variedade de ruídos, dos tiros de fuzil, projéteis explodindo e gritos de batalha até as árvores sussurrantes, o vento soprando e tempestades trovejantes em amplos espaços abertos. Enquanto alguns ruídos são gravados especificamente para um filme, alguns estúdios têm consoles elaborados de efeitos sonoros que armazenam um grande número de sons que podem ser diretamente adicionados à trilha de efeitos. Efeitos sonoros computadorizados e sistemas de edição de som estão agora sendo utilizados, os mais avançados com som computadorizado digital. Tais sistemas permitem a manipulação fácil e criativa de sons programados e inúmeras regravações sem qualquer perda de qualidade. Instrumentos eletrônicos, especialmente o sintetizador, recentemente abriram uma nova área de efeitos

55 sonoros para o cinema. A equipe responsável pelos efeitos sonoros, especialmente os dos movimentos do corpo, são chamados de artistas de Foley, caminhantes de Foley ou mixadores de Foley por conta de Jack Foley, o homem responsável pelo estabelecimento do sistema moderno de criar tais efeitos sonoros para cinema. O editor de som ou editor de efeitos sonoros é o indivíduo responsável por agrupar estes sons e sincronizá-los. (KONIGSBERG, 1998: 375)

O foley (termo usado largamente com letra minúscula mesmo) é um trabalho de reproduzir sons em um estúdio com materiais diversos selecionados especialmente para gravações de efeitos que irão sonorizar imagens de pessoas e objetos em movimentos diversos. É um entre tantos procedimentos descritos por Konigsberg largamente empregados no cinema para fazer tais sons de diversas procedências parecerem verossímeis, diretamente gravados das cenas filmadas, e poderem ser bem compreendidos pelas plateias enquanto tais. Por se tratarem de construções arquitetadas de modo a sonorizar uma cena de onde o mais recorrente é apenas se manter a voz dos atores, tais sons descritos meramente como “ruídos” não dá conta de um trabalho complexo de edição de som por trás deles. Um único som reconhecido como “ruído” de uma cena pode ser resultado da sobreposição de vários efeitos sonoros das mais variadas origens. E pode haver vários sons na mesma situação na mesma cena. Portanto, dada essa artificialidade de vários deles em relação tanto à forma como foram construídos quanto com relação às imagens, o termo efeitos sonoros identifica melhor o que frequentemente se identifica apenas como ruídos.

No cinema, os sons estão ali ajudando a construir um sentido de realidade. O som das espadas a laser de Guerra nas estrelas foi conseguido com o ruído de um televisor e o zumbido de um motor. O grito de Tarzan surgiu misturando a voz do ator, uns latidos de cão, o uivo de uma hiena e o dó de uma soprano. (...) Stanley Kubrick utilizou em O iluminado o rangido da neve, o quique da bola, o som do triciclo de um menino enquanto corre pelos andares do hotel, os ecos distantes de uma velha canção. (DUQUE, 2014: 1)

Com a clareza de que o sentido indicado por Sabrina Duque é o de uma construção, a noção de efeito para esse tipo de elemento sonoro fica ainda

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mais evidente. “O som de um filme age sobre a pessoa de uma maneira metafórica, secreta, inconsciente, dolorosa, prazerosa. Mas são zonas secretas da nossa psique” (DUQUE, 2014: 1), diz no mesmo texto Vasco Pimentel, sonoplasta português com diversos filmes no currículo, sobre quem Duque escreveu o perfil. Mas é Ann Kroeber, esposa de Alan Splet e sua parceira na edição de vários de seus filmes com David Lynch, que arremata a clareza necessária para essa escolha de terminologia adotada. Sobre referir-se a efeitos sonoros como ruídos, ela diz não ter qualquer relação com a filosofia de Splet ou a dela sobre efeitos sonoros (KROEBER, 2016 a)11. “Porque eu penso em sons como tendo uma musicalidade e há tanta profundidade e tanto trabalho que dá para fazê-los expressivos. E fazê-los trabalhar com a música, dançar com a música, se possível”. Consideradas essas qualidades, Kroeber entende como pejorativa a identificação de efeitos sonoros como ruídos, pelo caráter limitado, negativo e incômodo associado a esta palavra.

1.5 Assincronia, contraponto sonoro e polifonia

1.5.1 O pensamento polifônico

Michel Chion explica que quando o filme sonoro ganhou impulso técnico, comercial e impacto cultural no fim dos anos 1920, eram comuns as comparações entre cinema e música, razão pela qual se passou a adotar a expressão ainda hoje utilizada de contraponto para identificar “a fórmula ideal in abstrato de cinema sonoro: aquela em que, longe de se redobrarem, como se dizia, som e imagem formariam duas cadeias paralelas e livremente ligadas, sem dependência unilateral” (CHION, 2008: 35). O autor explica que na terminologia da música clássica ocidental, contraponto é a forma de compor que entende as diferentes vozes simultâneas devem ser seguidas no seu fluxo horizontal de forma coordenada entre elas, mas individualmente. Ao passo que a harmonia

11 Entrevista concedida para esta pesquisa, conforme apêndice Entrevista 2016 a.

57 considera as notas ouvidas num mesmo momento, formando acordes. Um contraponto audiovisual implicaria numa “voz sonora” percebida horizontalmente, “coordenada com a cadeia visual, mas individualizada e desenhada por si mesma”. Mas é da análise literária de Mikhail Bakhtin sobre o romance de Fiodor Dostoievski que vêm apontamentos que facilitam a compreensão do pensamento polifônico. O autor considera Dostoievski o criador do romance polifônico.

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências eqüipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade. (BAKHTIN, 1981: 2)

Dostoievski inovou não por valorizar monologicamente a personalidade, mas sim mostrá-la como a personalidade do outro, sem torná-la lírica nem a fundir com sua própria voz, nem tampouco reduzi-la a uma realidade psíquica objetificada (BAKHTIN, 1981: 8). “De fato, os elementos sumamente incompatíveis da matéria em Dostoievski são distribuídos entre si por vários mundos e várias consciências plenivalentes” (BAKHTIN, 1981: 11). São várias perspectivas equivalentes e plenas que se combinam numa unidade, a do romance polifônico. Contradições objetivas da época de Dostoievski não determinaram sua erradicação individual, mas numa visão objetiva delas como forças coexistentes, simultâneas (BAKHTIN, 1981: 22). Dostoievski pensava seu mundo predominantemente no espaço e não no tempo (BAKHTIN, 1981: 22) e buscava registrar as etapas propriamente ditas em sua simultaneidade para confrontá-las dramaticamente, em vez não as estender numa série em formação. Para ele, “interpretar o mundo implicava em pensar todos os seus conteúdos como simultâneos e atinar- lhes a inter-relações em um corte temporal”, uma leitura vertical de todos os elementos distintos captados num determinado momento (BAKHTIN, 1981: 22). Mas Bakhtin vê ainda mais complexidade nesse procedimento.

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Em cada voz ele conseguia ouvir duas vozes em discussão; em cada expressão via uma fratura e a prontidão para se converter em outra expressão oposta; em cada gesto captava a segurança e a insegurança simultaneamente; percebia a profunda ambivalência e a plurivalência de cada fenômeno. Mas essas contradições e esses desdobramentos não se tornaram dialéticos, não foram postos em movimento numa via temporal, numa série em formação, mas se desenvolveram em um plano como contíguos, contrários, consonantes, mas imiscíveis ou como irremediavelmente contraditórios, como harmonia eterna de vozes imiscíveis ou como discussão interminável e insolúvel entre elas. (BAKHTIN, 1981: 24)

A dialogia – ou ainda a contraposição dialógica – é, portanto, o alicerce do romance polifônico. Ela está na relação de todos os elementos da estrutura romanesca de Dostoievski, contrapontisticamente em oposição. (BAKHTIN, 1981: 34). Portanto, segundo Bakhtin, Dostoievski já adotava em sua escrita uma estrutura de vozes diversas e dissonantes, em que não assumia nenhuma como sendo a sua. Tal dissonância tampouco evitava ambivalência do que cada uma delas expressava. E, principalmente, tais embates erram estruturados temporalmente de maneira simultânea em seus livros. Essa forma de organizar elementos distintos pode se adequar à música, forma de expressão artística em que a polifonia segue raciocínio equivalente.

1.5.2 Polifonia musical

Embora haja variações de conceituação, abrangência e fontes na teoria musical, algumas delimitações mais genéricas e recorrentes, escritas por Wolf Frobenius e disponíveis na enciclopédia virtual Oxford Music Online, ajudam a compreender a polifonia na música. O termo é empregado para identificar a “música em mais que uma parte, música em muitas partes, e o estilo em que todas ou várias das peças musicais se movem em certa medida de forma independente” (FROBENIUS, 2014: 1)12. A palavra polyphōnos ('de vozes múltiplas') e polyphonia já existiam no grego antigo, mas não havia qualquer relação delas com técnica musical.

12 Acessado em 18 de março de 2014.

59 Após a antiguidade clássica, línguas modernas assimilaram adjetivos derivados desses substantivos gregos, designando tanto fenômenos musicais quanto não-musicais, como o canto dos pássaros, a fala humana e ecos múltiplos. Já os conceitos de diafonia e polifonia se distinguem tanto no número de partes (‘unio duarum' ou 'plurium vocum'), como também na forma. A diafonia é considerada uma configuração essencialmente “homo- ritmica”, a junção de duas partes de voz realizada simultaneamente ou quase. Já a polifonia pode ter uma grande diversidade rítmica nas suas partes - embora apenas partes com mensuração, explica Frobenius. O autor conta que desde o início do século 17 os termos "polifônica" e "polifonia" também vêm sendo usados em um sentido mais restrito para denotar composição musical para mais de quatro partes. “Não até Bellermann (1862), para quem "em muitas partes” (vielstimmig) era" o significado real e natural' de 'polyphonus', o estilo "homofônico" e "polifônico" foi caracterizado pela relação rítmica das partes umas com as outras” (FROBENIUS, 2014: 1).

Desde Musikalisches Lexikon, de Koch (1802), o desenvolvimento integral das partes separadas - o investimento de várias partes com o caráter de uma voz principal e as reuniões de acompanhamento de vozes para o status de contra-vozes - tem sido considerado como uma característica definidora da polifonia. Mesmo os autores que de outra maneira distinguem entre a polifonia e homofonia, principalmente em razão da função de composição de harmonia, consideram este um critério válido para a definição "a composição polifônica mais genuína" ou "verdadeira polifonia". (FROBENIUS, 2014: 1).

Para os teóricos está claro que os termos "polifonia" e “homofobia” usados para classificar as composições musicais representam dois extremos e que entre ambos há estágios intermediários. A redescoberta gradual da música medieval e renascentista para várias vozes, a partir do século XIX, fez com que a música polifônica passasse a ser definida como tal pela importância da harmonia subordinada nela, nota o autor. Arnold Schoenberg creditou o estilo polifônico à escrita com a capacidade para legitimar novas harmonias. Harmonias mais particularmente dissonantes foram descritas por outros como 'polifônicas'.

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Frobenius ressalta que, como a harmonia assumiu esta nova posição dentro da polifonia, exigiu-se um equilíbrio preciso entre as partes, o que Pierre Boulez chamou de "responsabilidade mútua das notas”. Segundo ele, Schoenberg não concordava em estabelecer os princípios de co-escritura ou harmonia como absolutos e atribuía à harmonia na composição polifônica a função de "gosto controlador”. No início do século 20, a musicologia sistemática delimitou que harmonia pura seria criada pelo movimento paralelo de partes em intervalo constante, e a polifonia pura pelas diferenças melódicas entre essas partes. Os tipos de polifonia que se seguiram foram considerados "formas harmônicas-polifônicas”. Carl Stumpf13 considera polifonia a execução simultânea de várias melodias distintas, que às vezes se unem em intervalos consonantes ou em uníssono. Ele chama de “música harmônica" encontrar prazer ou desprazer estético na sonoridade simultânea de várias notas diferentes e a sucessão de tais complexos tonais (FROBENIUS, 2014: 1). Outra referência citada por Frobenius é Gustav Mahler, para quem a polifonia difere de “algo meramente escrito em muitas partes" ou “disfarçada homofonia”. Mahler descreve polifonia como vinda de lados muito diferentes, com temas que devem ser completamente distintos em seu caráter rítmico e melódico e exige que o artista se organize e unifique o conjunto de modo congruente e harmonioso. Considera qualquer outra coisa apenas algo escrito em muitas partes, homofonia disfarçada. Ponto importante a destacar no retrospecto histórico de Frobenius, a relação entre os termos polifonia e contraponto depende menos de definições que de classificações musicais tradicionais e, segundo ele, os dois termos foram claramente diferenciados em poucas ocasiões. Mais comumente, polifonia tem sido usado como sinônimo de contraponto. Nesta pesquisa, entretanto, contraponto identificará o efeito de dissonância de elementos sonoros distintos montados em simultaneidade, sendo a polifonia esse tipo de construção, com todos os diversos elementos que o compõem. O aspecto polifônico da música do compositor russo Sergei Prokofiev influenciaria Sergei Eisenstein, a ponto de surgir uma parceira artística entre

13 Frobenius cita a fonte: Die Anfänge der Musik, 1911, pp.99-100.

61 os dois. Para Joan Neuberger (KAGANOVSKY; SALAZKINA, 2014: 215), o cineasta não percebia claramente o grau da "plasticidade" da música, combinada de maneiras até muito intricadas e sinestésicas com a imagem filmada, de modo a criar uma montagem rica e multisensorial "que poderia ser chamada de polifônica”. Prokofiev criaria as trilhas musicais para Alexander Nevsky (Aleksandr Nevskiy, União Soviética, 1938) e Ivan, o terrível (Ivan Groznyy, União Soviética, 1945), filmes posteriores à instauração do Realismo Socialista. Coube à música trazer um elemento sinestésico e polifônico ao som dessas obras. Citando o musicólogo Kevin Bartig, Neuberger indica que Prokofiev trouxe uma grande quantidade de conhecimento musical independente para Ivan, o terrível acrescentando camadas adicionais de significado através de referências a composições anteriores. Para Neuberger, o filme "é milagrosamente bem sintonizado, emocionalmente e estruturalmente, para as cenas em que aparece e concepção geral de Eisenstein da polifonia cinematográfica”, ele avalia. “Essa sintonia permite que a música aprimore o impacto emocional e desenvolvimento temático de muitas cenas, enquanto proporciona contraponto emocional e temático em outras”. O autor ainda destaca que, embora os leitmotifs atuem num sentido de continuidade ao longo do filme, às vezes eles são apresentados de formas inesperadas. Alexander Burry se diz surpreso que nenhum dos livros mais longos de Dostoievski tenha sido musicado até Sergei Prokofiev compor sua ópera O jogador, de 1915-1916, mais de trinta anos após a morte do escritor. Burry chama o livro de ópera em potencial de Dostoievski e considera a obra de Prokofiev inovadora e extremamente modernista. “A ópera exibe um idioma harmonicamente complexo no qual tonalidade é frequentemente obscurecida, a tendência à propulsão, ritmos selvagens de propulsão, linhas melódicas, andamentos e dinâmicas fragmentados em rápida mudança”. Diferente do também compositor Igor Stravinsky, a obra de Prokofiev prima pela versatilidade em todas as fases de sua carreira, mantendo em coexistência de trabalhos primitivos, sardônicos, líricos e trágicos (BURRY, 1998: 90). Em seu livro dedicado ao trabalho de Prokofiev, Israel V. Nestyev afirma que o compositor não aderiu a uma polifonia de contraponto clássica, como a proposta por Stravinsky. “Sua polifonia era derivada até certo ponto do

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método de improvisação contrapontista encontrado na música popular russa” (NESTYEV, 1960: 483). Ele incluía vozes auxiliares que seguiam de maneira livre e espontânea com o intuito de fortalecer a harmonia da melodia. A polifonia se dava de maneira livre, em vez do estilo estrito e imitativo que Stravinsky propunha.

1.5.3 Polifonia no cinema: teoria

Ao tirar a prioridade da palavra falada, com as restrições dos idiomas traduzidos em mercados estrangeiros, seria a linguagem puramente cinematográfica, capitaneada pelas relações entre imagem e, agora também, som na montagem que dariam às ideias expressas pelo cineasta uma circulação muito mais ampla, por ser independente de línguas. “O método polifônico de construir o cinema sonoro não apenas não enfraquecerá o cinema internacional, mas fará com que seu significado tenha um poder sem precedentes e alcance a perfeição cultural” (EISENSTEIN; PUDOVKIN; ALEKSANDROV. Apud Eisenstein, 2002: 227). O conceito de contraponto sonoro era complementar ao da teoria da montagem que se difundiu entre os soviéticos nos anos 20, capitaneada por Eisenstein em resposta às regras do que se convencionou chamar de cinema clássico, estabelecidas a partir do trabalho do americano D.W. Griffith, como explica Gilles Deleuze.

O que Eisenstein censura em Griffith é a sua concepção inteiramente empírica do organismo, sem lei de gênese nem de crescimento; é o fato de ter concebido sua unidade de maneira inteiramente extrínseca, como unidade de congregação, reunião de partes justapostas, e não como unidade de produção, célula que produz suas próprias partes por divisão, diferenciação; é o fato de ter compreendido a oposição de maneira acidental, e não como a força motriz interna, através da qual a unidade dividida refaz uma nova unidade num outro nível. É preciso sublinhar que Eisenstein conserva a ideia griffithiana de uma composição e de um agenciamento orgânicos das imagens•movimento: da situação de conjunto a situação transformada, por intermédio do desenvolvimento e da superação das oposições. Mas, justamente, Griffith não viu a natureza dialética do organismo e de sua composição. O orgânico é realmente uma grande espiral, mas a espiral deve ser concebida "cientificamente", e não empiricamente, em função de uma lei de gênese, de crescimento e de desenvolvimento. (DELEUZE, 1983: 48)

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Antes do sonoro, houve a defesa do contraponto visual, com que Eisenstein acreditava ser possível determinar um novo sistema expressivo na sintaxe das manifestações cinematográficas, conforme expõe em A forma do filme (EISENSTEIN, 2002: 55). Se ele afirmava que o plano não era elemento de montagem, mas sim uma célula de montagem, o manifesto sobre o cinema sonoro indica que o som deveria receber o mesmo tratamento. Já em O sentido do filme, o cineasta explica que para isso, seria preciso extrair de sua experiência no cinema mudo um exemplo de montagem polifônica, em que um plano é unido ao outro não só por uma indicação, fosse ela de movimento, valores de iluminação, pausa na exposição do enredo, ou algo equivalente, mas por meio de um avanço simultâneo de uma série de múltiplas linhas, cada qual com um elemento seguindo um curso independente, cada qual contribuindo para a composição total da sequência. Como visto na introdução desta dissertação, Pudovkin, considerava primitivo o uso naturalista do som no cinema, um desperdício expressivo de recursos técnicos mais avançados que poderia ser evitado com imagens e sons seguindo cursos distintos, destacando seu caráter de representação – não mera cópia – quando intercalados. Porém, mais que defender, o cineasta e teórico soube explicar a ideia do contraponto sonoro com notável didatismo, por meio de um exemplo em que ele imagina os próprios olhos do leitor como equivalente à visão da câmera.

Por exemplo, na vida real, você leitor pode de repente ouvir um grito de socorro; você só vê a janela; aí você olha para fora e a princípio não vê nada além do trânsito em movimento. Mas você não ouve o som natural desses carros e ônibus; em vez disso você ainda ouve o grito que tinha te alarmado. Por fim você encontra com seus olhos o ponto de onde veio o som; há uma multidão e alguém está erguendo o homem ferido, que agora está quieto. Mas, agora observando o homem, você se dá conta da barulheira do trânsito que passa e no meio do ruído começa a crescer gradualmente a sirene penetrante da ambulância. Nesse ponto, sua atenção vai para as roupas do homem ferido: o terno dele parece com aquele do seu irmão, que, você acaba de lembrar, deveria te visitar às 2:00 horas. Na tremenda tensão que se segue, a ansiedade e a incerteza se este homem possivelmente à beira da morte pode não ser seu próprio irmão, todo o som cessa e na sua percepção o silêncio é total. Pode ser 2:00 horas? Você olha o relógio e ao mesmo tempo ouve seus

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ponteiros. Este é o primeiro momento sincronizado de uma imagem e do som que ela causa desde que você ouviu o grito. (PUDOVKIN. Apud WEIS; BELTON. 1985: 87)

O cineasta acrescenta que as impressões que recebemos do mundo são parciais. Nossa atenção atua como editora de nossa audição. Isso ocorre por conta de dois ritmos que precisam ser considerados, o do mundo objetivo e o ritmo com que o homem observa o mundo, sua percepção. Este último varia de acordo com nossas emoções, que alteram velocidade de som tanto quanto de imagens. O filme sonoro pode criar correspondências variadas com esses dois ritmos. Para Pudovkin, esses contrapontos, que rompem com a sincronia entre som e imagem, são o único caminho de superação do naturalismo, aprofundando e enriquecendo as possibilidades criativas do uso de som no cinema. Ainda que Dziga Vertov não tenha assinado o manifesto, o uso do som nos seus primeiros filmes pós-período silencioso dava continuidade a estudos anteriores do cineasta. Segundo Silvio Da-Rin, Vertov já trabalhava com palavras e sons antes de chegar ao cinema, tendo escrito romances e poesias não publicados enquanto aprendia a tocar piano violino no Conservatório de Música de Bialystok (DA-RIN, 2004: 55). O cineasta ainda estudou percepção humana no Instituto Neurológico de Petrogrado e desenvolveu experimentos de gravação de vozes e ruídos mecânicos e naturais com o auxílio de um velho fonógrafo, seu “laboratório do ouvido”. George Sadoul relacionou esses experimentos ao manifesto de Russolo, por conta da defesa do aproveitamento musical da rica variedade de ruídos nas capitais modernas (DA-RIN, 2004: 110-111). Foi com esse repertório que Vertov integrou o Comitê de Cinema de Moscou em 1918 como redator de letreiros e montador dos cinejornais semanais Kinonedélia, seu primeiro contato com o universo do documentário. Annette Michelson, editora do livro Kino-Eye – The writings of Dziga Vertov, ressalta o papel simbólico da teoria russa do som cinematográfico que o filme Entusiasmo (Entuziazm (Simfoniya Donbassa), 1932), dirigido por Vertov, representa até hoje. Para Michelson, com a invenção da gravação móvel de som – Vertov conseguiu uma parceira com rádios locais para tanto, antecedendo soluções que só o gravador portátil Nagra popularizaria na

65 segunda metade do século XX –, o jogo das relações de som e imagem e o assincronismo desse jogo (ainda que parcial, como examinaremos), Vertov realizou “a primeira e até hoje mais significante contribuição ao filme sonoro soviético” (MICHELSON, 1984: 57).

Declarações sobre a necessidade de evitar que momentos visuais coincidam com momentos audíveis, assim como declarações sobre a necessidade de haver apenas filmes sonoros ou filmes falados não valem um grão de feijão. No filme sonoro, como no filme silencioso, só distinguimos dois tipos de filme: documentário (com conversas e sons reais) e ficção (com conversas e sons preparados artificialmente). Nem documentário nem ficções são obrigados a ter momentos visuais coincidindo (ou não coincidindo) com momentos audíveis. Gravações sonoras e gravações silenciosas são editadas da mesma forma; podem coincidir (ou não coincidir) na montagem ou podem misturar uma com a outra em várias combinações. (VERTOV, 1930. Apud FISCHER, 1985: 249)

Vertov combinou trechos de contraponto sonoro a outros de sincronia entre imagens e sons. Não é na mera assincronia que ele se apoia, lançando mão de estruturas mais complexas e sutis. Sua matéria-prima para o filme é realista, afinal trata-se de um documentário. O que Vertov faz questão de evitar, no entanto, é qualquer recurso ilusório que faça o espectador esquecer que está assistindo a um filme. Entusiasmo mostrou a realizadores de todo o mundo de que falavam os teóricos russos, mas com um viés de maior heterogeneidade.

1.5.4 Polifonia no cinema russo: prática

A referência mais próxima para este estudo é Kristin Thompson. Em seu artigo Contraponto sonoro inicial, de 1980, ela explica a impressão de que pouco do manifesto refletiu a produção daqueles primeiros anos do cinema sonoro soviético como consequência da distância de Eisenstein da Rússia, a demora da implementação da tecnologia local e a imposição da doutrina do Realismo Socialista a partir de 1934. Ela calcula que os principais diretores locais gastaram tempo planejando filmes sonoros mais ousados que não acabaram sendo produzidos – citando o exemplo de A simple case/Life is

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beautiful (Prostoy sluchay, União Soviética, 1932), de Pudovkin, que acabou sendo feito sem som mesmo – e depois rodaram obras esteticamente mais modestas (THOMPSON, 1980: 116). Thompson analisou 11 obras realizadas entre 1930 e 1934, entre elas Entusiasmo e Réquiem a Lênin (Tri pesni o Lenine, União Soviética, 1934), de Vertov, O desertor (Dezertir, União Soviética, 1933), de Pudovkin, e Romance sentimental (Romance sentimentale, União Soviética, 1930), co- dirigido por Einsenstein e Alexandrov. Dois filmes apresentam disparidades entre a imagem e o som que provisoriamente ela chamaria de contraponto, um deles O desertor – o segundo Alone (Odna, União Soviética, 1931) de Grigori Kozintsev e Leonid Trauberg –, e outros apresentam contraponto ocasional. Neste grupo ela inclui Entusiasmo, O desertor e Romance sentimental. Os demais teriam no máximo dois momentos de assincronia. A autora aponta a falta de clareza sobre qual seria a função do tipo de som de cinema proposto pelo trio de cineastas no manifesto, assim como sobre a distinção entre assincronismo e contraponto (THOMPSON, 1980: 117). Ela concorda que o filme sonoro era para eles um prolongamento dos princípios de montagem locais. Lembra que Einsenstein era fã de Mickey Mouse, de quem cada movimento era acompanhado de música nos filmes, que para ele a sincronia não era problema, desde que não fosse naturalista (THOMPSON, 1980: 118). Apenas O desertor apresenta manipulação da qualidade do som. Numa cena muda em que o protagonista e seu camarada estão num bonde. Um estrondo é ouvido e as pessoas esvaziam o bonde em um confronto com a polícia. O estrondo é um som de címbalo tocado ao contrário, numa função diegética de aguçar a percepção, segundo Thompson. Ela ainda destaca a quantidade de trechos silenciosos da obra. As cenas de greve são sonorizadas. Cortes abruptos estão numa passagem musical para um efeito mais emocional. A protagonista grita enquanto vende jornal nas ruas, mas sua voz é alternada de forma cada vez mais acelerada com uma valsa alegre. A música é executada depois, mas com cortes que restringem seu efeito melódico e rítmico. As imagens também são cortadas de forma rápida, mantendo um alinhamento audiovisual do caráter emocional da cena até a chegada da polícia.

67 A maioria dos filmes estudados por Thompson usa sons extra-campo, mas diegéticos ou ultrapassam o corte da imagem, só O desertor e Alone contam com descontinuidades abruptas de som. A maioria dos efeitos criados com essas construções é de caráter emocional (THOMPSON, 1980: 140). O líder de O desertor aparece em várias inserções de frame único ao longo do filme, como quando Pudovkin o alterna com imagens únicas de uma corrente. Noutra cena, um grevista ferido geme numa rua deserta e o gemido é mantido conforme imagens de donos de fábrica observam soldados afastarem outros grevistas, de modo a indicar que esses empresários são a causa de seu sofrimento e os soldados seus agentes. De qualquer modo, há diversas cenas de som e imagem sincrônicos, como os tradicionais diálogos gravados em estúdio. A exemplo dos trabalhos de Dmitri Shostakovich14 ainda no período silencioso, a música é usada com efeito contraditório de ironia em O desertor. Na cena em que o grevista tenta roubar comida de uma mesa de um café externo a música é alegre, passando a uma conga quando chega o pedido do cliente ali sentado. Pudovkin já citava em seu artigo que a sequência final do filme tem nas imagens uma percepção objetiva dos eventos apresentados, a música traz uma apreciação subjetiva daquela objetividade. Trabalhadores tentam manter sua bandeira erguida em um confronto com a polícia. A música triunfal não condiz com a violência do embate, em que vários trabalhadores são abatidos, mas indica a vitória sugerida pela imagem final. Romance sentimental começa com cortes rápidos de árvores sem folhas e música de acompanhamento acelerada. A imagem é mexida em quadro, ganhando diferentes posições ou é exibida assim por meio de cortes, no que Eisenstein chamaria de montagem tonal. Já Vertov inicia Entusiasmo alternando cenas de pessoas rezando diante de ícones cristãos com andarilhos e bêbados pelas ruas, primeiro mantendo música religiosa, depois música de taberna, de modo a tratar os dois tipos de pessoas de modo similar e preparar para a cena em que uma igreja é transformada em clube de trabalhadores, sugestão de solução para as duas práticas registradas naqueles dois grupos anteriores.

14 Shostakovich é citado por Ann Kroeber em sua entrevista quando fala dos bastidores de Veludo azul (ver Apêndices)

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O som aqui é usado como reforço da ideia contida nas imagens, não um contraponto. Para Thompson, em vários dos filmes por ela analisados é a música que é usada para indicar um sentido que as imagens sozinhas não indicariam (THOMPSON, 1980: 133). De qualquer forma, Vertov fez um grande esforço para conseguir microfones portáteis gravarem sons diegéticos das imagens filmadas em minas e fábricas exibidos no filme. Os 2/3 finais de Entusiasmo são bastante sincrônicos, quase sem contrapontos, se é que se pode reconhecer algum. Mesmo assim, a recepção ao filme foi negativa. Em Réquiem a Lênin já quase não há tensão entre imagem e som, apenas trucagens de câmera. Thompson conclui que mesmo nesse período inicial do cinema sonoro russo pós-manifesto, o som sincrônico já predominava. Por outro lado, ela acredita que a transição do período silencioso para o sonoro foi mais bem- sucedida e imediata para os soviéticos devido aos estudos teóricos em prática ali desde os anos 20. Em geral, o som só foi usado de maneira mais criativa para efeitos já convencionais, como ridicularizar a burguesia, o triunfo da luta proletária, intensificar a representação das forças reacionárias contra as quais os personagens lutavam (THOMPSON, 1980: 138-140). O contraponto parecia interferir na clara progressão narrativa, como um tipo de pausa. Ele quase sempre aparece só no início desses filmes e em alguns gradualmente. O conflito entre as formas mais ousadas de montagem e o Realismo Socialista se tornou cada vez mais evidente nos filmes, cada vez mais voltados para a clareza, quando não um simplismo narrativo. Nenhum dos filmes por ela analisados usa contraponto do começo ao fim. As experimentações da montagem soviética dos anos 20 prosseguiram em alguns dos primeiros filmes sonoros, mas concentrados em respostas perceptivas, cognitivas e emocionais, não fizeram do russo um cinema que se distinguisse acentuadamente do americano, europeu ou japonês do período. Há pelo menos um grande filme dessa fase para ela, Alone.

1.5.5 Observações preliminares

Para melhor avaliar o impacto e a contribuição do trabalho de Splet, cabe uma análise do contraponto presente nos primeiros filmes sonoros

69 russos dos quatro cineastas que defenderam essa solução em algum grau: Eisenstein, Pudovkin, Aleksandrov e Vertov. Foi feito um levantamento15 de suas obras entre o período do primeiro filme sonoro russo, lançado em 1930 e o ano anterior ao de início da vigência do Realismo Socialista imposto pelo governo soviético a partir de 1935. A ideia inicial de analisar a primeira década pós-manifesto na filmografia desses cineastas foi abandonada por essa questão de ordem política apurada durante a pesquisa. De Eisenstein, apenas Romance sentimental foi encontrado com cópia disponível para ser assistida. No total, restaram cinco obras para análise, sendo o filme Romance sentimental co-dirigido por Eisenstein e Aleksandrov.

Eisenstein: Romance sentimental (Romance Sentimentale, França, 1930) – tendo sido excluídos da análise Thunder over Mexico (Estados Unidos, 1933), Eisenstein in Mexico (Estados Unidos, 1933) e Death day (Estados Unidos, 1934) por indisponibilidade de cópias

Pudovkin: O desertor (Dezertir, União Soviética, 1933)

Aleksandrov: Romance sentimental, Moscow laughs//Happy-go-lucky guys (Vesyolye rebyata, União Soviética, 1934)

Vertov: Entusiasmo (Entuziazm (Simfoniya donbassa), União Soviética, 1931) e Réquiem a Lênin (Tri pesni o Lenine, União Soviética, 1934)

Além do que Thompson já apontou, o curta-metragem Romance sentimental apresenta duas inserções musicais em que a mulher em cena canta e toca piano de forma sincrônica. O primeiro trabalho sonoro de Eisenstein e Aleksandrov já continha sincronia de som. Parcialmente sonorizado, O desertor começa com sons pontuais da diegese, como o apito de um navio no porto, sem os demais sons do local vistos nas imagens. Uma

15 Levantamento de filmes identificados como sonoros dos quatro cineastas, entre 1930 e 1934, no site IMDb. Uma vez selecionados, tentou-se localizá-los para serem assistidos em pesquisas realizadas no site de vídeos Youtube e Vimeo, na videolocadora 2001 e na biblioteca da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP).

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freada de bonde tem um som metálico seguido a um apito apenas. Os diálogos são sincrônicos. O discurso de Zelle para os trabalhadores revoltosos é interrompido pelo som que logo em seguida vemos partir de uma banda tocando. Cenas curtas de trabalhadores civis em ação têm o som de só algumas delas sonorizando todo o conjunto. Depois uma música tranquila sonoriza o trânsito guiado por um guarda de trânsito, música que dura até a polícia parar a moça com os jornais. O trânsito não produz som algum no filme. Cenas de marretadas e máquinas funcionando sincronicamente às imagens geram o som que se segue em cenas do porto. Em geral, os efeitos sonoros ficam de fora da trilha sonora, substituídos apenas por música ou silêncio, como na cena do furto frustrado de comida do homem com sono à mesa do café seguido do atropelamento. A sequência do trabalhador que cai no porto é toda silenciosa, assim como as cenas noturnas da cidade. Uma sequência em que ciclistas se intercalam a pessoas correndo há inserções de sons de pessoas correndo ao longe pontuais e rápidas. No confronto entre grevistas e não grevistas, o som do tanque da polícia chegando dura enquanto passam cenas rápidas dos trabalhadores. O som da metralhadora atirando dá o ritmo acelerado dos cortes das cenas dos trabalhadores correndo e sendo alvejados. Sons de estática, entre outros, precedem um discurso vindo de alto- falantes com cenas de imagens tremidas como uma imagem de TV mal sintonizada, o que se repete durante o discurso, quando as imagens já estão mostrando os personagens ouvindo o que diz o discurso atentamente. A salva de palmas que se segue aos discursos no final começa com uma breve imagem de uma explosão, mas o que ouvimos são as palmas desde essa imagem. De fato, a exemplo do que diz Thompson, o confronto final com música alegre e entusiasmada destoa da violência a que assistimos. Jolly fellows/Moscow laughs (1934) é praticamente todo sincrônico, nos moldes do musical hollywoodiano. Entre as exceções há a personagem que desce a escada pelo corrimão enquanto ouve-se uma sirene, o som de quando o pastor fecha o portão da casa da cantora. Quando o pastor cai do galho de árvore ao cantar, o som parece o de um vaso se espatifando num chão duro. De ousadia estética mesmo, um dos músicos da orquestra encara

71 a câmera, quebrando a quarta parede. O efeito se repete com a mãe de Lena pedindo silêncio para a câmera. Entusiasmo também representa nesta seleção o filme com mais construções em contraponto audiovisual. Ele começa com uma mulher com fone de ouvido e uma música sobreposta a um tique-taque. A mulher aparece intercaladamente nas cenas seguintes. Um detalhe da arquitetura de igreja é visto com som de sino tocando. Como não há outros sons, eles parecem não diegéticos. Segue-se canto religioso de fundo, se é que faz parte da diegese, em meio a imagens de pessoas fazendo o sinal da cruz diante da imagem de Cristo crucificado numa igreja e bêbados perambulando pelas ruas. Ouve-se então sinos badalando em meio a imagens de mais pessoas na rua fazendo o sinal da cruz, uma estátua de Cristo no alto de uma igreja vista de trás e planos de detalhe da arquitetura de templos. Volta-se ao canto religioso sobreposto a uma espécie de som de cuco, imagens mais fechadas mostram mais detalhes do prédio. A imagem de uma estátua com uma cruz repetida por sobreposição em quadro vai sumindo uma a uma conforme o “cuco” soa. Uma voz masculina diz seu texto enquanto a mulher do fone ri. Um jovem maestro parece reger a música executada. Vertov retoma sinos, a pessoas fazendo a cruz, pessoas bebendo e a mulher, distorce o som dos sinos, cantoria de bêbados e um choro feminino. A fumaça de um apito a vapor soa sincrônica, mas distorcida. Uma parada com marcha militar mantém a sincronia. Uma igreja é desmontada, com o povo retirando seu mobiliário, a cruz externa é derrubada. Marchas extra-diegéticas predominam na trilha musical, mas sons de motor funcionando, apitos industriais, discursos, cantorias coletivas e falas sem sincronia com a imagem também são usados. Um homem fala sincronicamente, depois outro homem e então uma mulher discursa. Há sincronia clara em alguns momentos, falados ou não. O povo nas ruas, marchas militares, trabalhadores e máquinas em ação são os tipos recorrentes de imagens mostradas, mas há momentos em que a tela fica totalmente negra. Por fim, Réquiem a Lênin tem a maior parte dos seus 59 minutos sonorizados com música extra-diegética em cenas de produção e eventos políticos. As exceções são uma mulher tocando uma espécie de viola, um oficial fazendo uma mulher repetir uma declaração parte por parte enquanto

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ela mira um rifle, antes de uma parada de que se ouve o som da multidão durar além das imagens correspondentes. Um discurso é ouvido sem sincronia com as imagens correspondentes. Badaladas e tiros de canhão são vistos e ouvidos sincrônica e repetidamente. Uma criança canta e dança em sincronia audiovisual, pouco antes de uma explosão em mina seguir a mesma construção. Imagens sonorizadas de aviação em meio a bombardeio têm só o som mantido, conforme outras imagens se seguem. O próximo trecho falado e sincrônico vem quando uma trabalhadora relata um acidente de trabalho, seguida de relatos de um trabalhador, um fazendeiro e outra trabalhadora. Somando-se a pesquisa e a análise de Kristin Thompson às realizadas para este artigo, fica clara a maneira como a defesa restritiva a construções polifônicas adotada em 1928 por Eisenstein, Pudovkin e Aleksandrov no manifesto Declaração sobre o futuro do cinema sonoro, ponto de partida teórico desta pesquisa, foi parcialmente aplicada na produção de seus próprios autores, mesmo antes de vigorar a imposição do Realismo Socialista pelo governo soviético. Houve um nível premeditado de ousadia no que diz respeito ao som desses primeiros filmes, mas a sincronia e a valorização da fala também já estavam presentes, ainda que longe da febre que a voz dos astros e estrelas de cinema causou em Hollywood. A proposta de Vertov se mostrou a mais adequada para refletir a produção aqui considerada. A alternância de sequências sem sincronia de som a outras sincrônicas aproxima ainda mais a sonoridade desses filmes russos da que Alan Splet construiu em seu trabalho durante a parceria com David Lynch. Porém, há particularidades do universo lynchiano que o aproximam do cinema surrealista e o som contribui para isso de maneira distinta daquela dos filmes soviéticos analisados, além, é claro, de não ser um cinema a serviço de qualquer propaganda política. De qualquer modo, do ponto de vista teórico, o trabalho de Splet se aproxima mais da proposta de Vertov em todos os longas-metragens de Lynch de que participou, ainda que de maneira mais pontual no uso de contrapontos sonoros, como em Veludo azul.

73 1.6 Nouvelle Vague e teoria do autor

A partir da Nouvelle Vague, movimento francês marco do que veio a ser identificado como cinema moderno, o uso do Nagra se difundiu e propiciou uma identidade sonora própria para essa filmografia ao facilitar a gravação de som direto em cenas externas e permitir novas experimentações sonoras. Os sons dos ambientes externos foram valorizados com essa novidade técnica, fazendo do maior realismo sonoro seu maior diferencial, entre outros critérios autorais, a exemplo dos defendidos pelos líderes do movimento nas páginas da revista Cahiers du Cinema. Conforme Edgar Morin já notava em 1962, auge da Nouvelle Vague, analisando a questão da autoria na arte, a indústria cultural precisa superar constantemente a contradição fundamental, a padronização burocrática de suas estruturas e a originalidade (individualidade e novidade) dos seus produtos. “Seu próprio funcionamento se operará a partir desses dois pares antitéticos: burocracia-invenção, padrão- individualidade” (MORIN, 2001: 25-26). Na esteira temporal da Nouvelle Vague e tratando das questões de maio de 1968 em Paris, que teve na demissão do fundador e diretor da Cinemateca Francesa Henri Langlois um de seus estopins, Olgária Matos (MATOS, 1989: 66) avalia que “o surrealismo é revivido em particular no que se refere à figura do Poeta como o não-conformista absoluto, como aquele que encontra na linguagem os elementos semânticos da revolução”. De acordo com ela, o mundo exterior se dobrava aos desejos do indivíduo, de onde a importância do inconsciente e de suas manifestações é fundamental para traduzir uma nova linguagem, o que muito combina com a proposta autoral dos cineastas franceses com relação a novas formas de filmar, em especial no entendimento de que o som deveria contribuir para uma nova forma de linguagem cinematográfica. No que tange ao som, o cineasta mais citado do movimento francês é o franco-suíço Jean-Luc Godard. Seu primeiro filme de grande repercussão é Acossado (À bout de souffle, França, 1959). No mesmo ano, Robert Bresson dirigiu Pickpocket (França, 1959). Bresson é frequentemente apontado como uma influência para os diretores da Nouvelle Vague. Para Gilles Mouëllic há uma relação entre o trabalho de som na filmografia de Bresson e o conceito

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de "música de ruído". “O som, a "função estruturante" é essencial, participa de uma "dialética do abstrato e concreto" e revela um cineasta que se tornou, ao longo de seus filmes, um "orquestrador"” (MOUËLLIC, 2003: 126). Em Pickpocket ele reconhece na cena da estação, com uma sequência de furtos do protagonista batedor de carteiras “uma coreografia rigorosa em que cada olhar e cada movimento envolveu um pulso firme muito musical, pulsação do coração que nasce dos únicos sons”. Ele cita sons de passos, a fricção das carteiras nos tecidos, o estalo de uma pulseira ao ser aberta como efeitos sonoros gravados em estúdio com economia de meios, mas atenção ao ritmo e ao movimento em pé de igualdade com os das imagens. “Com essa sequência de Pickpocket, o cinema se tornou música” (MOUËLLIC, 2003: 126). Com o mesmo filme como exemplo, Suzana Reck Miranda avalia que Bresson faz ver de perto e escutar de longe em seus filmes. Segundo ela, o diretor aproveita ao máximo o potencial evocativo do som ao adotar enquadramentos quase sempre fechados com os elementos sonoros descrevendo o espaço o entorno, o espaço fora de campo das cenas, privilegiando um som de cada vez. Miranda chama essa construção de “silêncio construído” (MIRANDA, 2008: 33). Ao se concentrar num único som, Bresson elabora uma audição subjetiva para o espectador. A voz das narrações em off do protagonista parece estar presente, pois em nada se diferencia do som dos diálogos. Porém, Jean-Luc Godard traz uma contribuição mais ousada em termos do uso do som no cinema, alinhada com a proposta de Vertov. Mouëllic indica que para Godard a beleza está no paradoxo de quando a música está associada ao deslocamento dentro da imagem, a dimensão rítmica do cinema, dimensão mais imediatamente musical. “Em Acossado (À bout de souffle, França, 1959), Godard reinventou o conjunto que não é mais considerado como uma sucessão lógica das imagens, mas como uma confrontação permanente entre as imagens, por um lado, entre as imagens e trilha sonora por outro” (MOUËLLIC, 2003: 210). Ele cita os primeiros minutos do filme, eloquentes pelos ritmos da fala, sons e música livres da simples descrição sonora das imagens, adquirindo autonomia genuína. Godard inverte a hierarquia dos vários componentes de som repetidamente,

75 conferindo pulsão rítmica às imagens. Para Mouëllic, a musicalidade do filme é polirítmica, a exemplo do corpo incontrolável do protagonista Poiccard Michel (Jean-Paul Belmondo). Já a dissertação de mestrado de Alyssa Beaton para a Concordia University, de Quebec, Canadá, New wave Godard, sound practice and conceptions of noise, avalia o papel do som como influência explícita na dialética dos filmes de Godard, focando nos efeitos sonoros. Mais significativamente, também no discurso crítico em torno deles a partir de sua participação no Groupe Dziga Vertov, coletivo de cineastas formado por Godard, Jean-Pierre Gorin, entre outros, inspirados na proposta estética do cineasta russo e pelo viés ideológico marxista, até o lançamento mais recente de Godard, Adeus à linguagem (Adieu au language, França, 2014) (BEATON, 2015: 88). Para ela, o som dos filmes do suíço demonstra particularmente seu crescente desinteresse pela prática cinematográfica convencional, resultando em seu recuo da indústria desse setor da cultura. Ela destaca a relação entre Godard e Vertov, citando British sounds (Reino Unido, 1970, de Godard e Jean-Henri Roger), realizada para o canal de TV BBC Weekend.

A tentativa do Grupo Dziga Vertov de abandonar e questionar a representação da realidade no cinema está implícito em um compromisso com dois aspectos do cinema: em primeiro lugar, o financiamento de filmes, e os métodos de produção e distribuição; segundo, a organização de sons e imagens que compõem os próprios filmes. (...) Claro, Dziga Vertov, igualmente inspirado pelos sons da indústria, gravava diretamente no local do trabalho para permitir que seus espectadores ouvissem, em vez de simplesmente ver, o trabalho e as condições de trabalho dos moradores da região. Continuidade sonora, sincronia perfeita e inteligibilidade do diálogo são preocupações secundárias, de modo que Godard expande a compreensão do espectador de cinema sobre som semanticamente relevante, para ouvir as regiões em que seus filmes são produzidos, o trabalho de produção de filmes, questões e preocupações sócio- econômicas e movimentos políticos. (BEATON, 2015: 91-92)

Godard e outros cineastas da Nouvelle Vague favoreciam o uso de som direto e não editavam as gravações sonoras com a intenção de representar a realidade objetiva. Entretanto, sua fragmentação da trilha sonora via edição abrupta, alteração de volume e intercâmbio entre os estilos

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telefônico (em que os tipos de som são montados hierarquicamente) e fonográfico (em que a fidelidade é a meta) de gravação são estratégias sonoras particulares de Godard para desafiar tanto as práticas convencionais do uso do som quanto as da gravação de som direto típica da Nouvelle Vague. Beaton defende que, dessa forma, ele cria uma paisagem sonora que mantém seu estatuto de sócio-histórico documento, enquanto também expõe sua própria natureza construída (BEATON, 2015: 94). Godard propõe que o espectador assista ao mundo com um envolvimento sensorial mais sintonizado com seus ambientes, lançando mão de e dando importância equivalente à dos diálogos a sotaques regionais, personagens marginais, a agitação da cidade, que facilmente seriam descartados como ruído sem sentido numa edição e som tradicional. O som atua como suporte da ação narrativa, mas também abre as portas de um mundo extra-diegético, combinação que retoma o aspecto básico da proposta de Vertov. O som de Godard busca levar o espectador a se desacomodar da forma como está habituado a compreender sons em outros filmes, usando sons aleatórios, fazendo cortes abruptos ou eliminando efeitos sonoros. “Esta desestabilização muda a nossa compreensão do ruído, infundindo-lhe o significado social e cultural” (BEATON, 2015: 95-96). Sua estética de inclusão de sons dissonantes, perturbadores ou não usuais, que seriam tradicional e pejorativamente entendidos como ruído evita dar aos efeitos sonoros uma definição clara – consonante ou dissonante –, de modo a criar uma tensão que desafia as expectativas do espectador. A exemplo de Pierre Schaeffer e John Cage, o que antes era entendido como mero ruído passa a ser incorporado como material artístico. Entretanto, ao contrário de Schaeffer e Cage, o uso de som de Godard trabalha em conjunto com as imagens para exceder as capacidades delas com o universo extra- diegético, conclui a autora. Paralelamente às experimentações de Godard e Bresson – até antes – outro francês, Jacques Tati, vinha desenvolvendo um trabalho de som bastante peculiar em suas comédias, desvinculado da Nouvelle Vague. Elementos sonoros extra-diegéticos eram chave de suas construções audiovisuais, afinal Tati sonorizava seus filmes completamente na pós-

77 produção, conforme será detalhado no capítulo 3. Porém, outro instrumento de incentivo à rupturas e criações de identidade artística foi a teoria do autor.

No final dos anos 50 e princípio dos 60, um movimento denominado “autorismo” (auterism)* passou a dominar a crítica e a teoria do cinema. O autorismo foi de certa forma a expressão de um humanismo existencialista de inflexão fenomenológica. Fazendo eco à descrição sumária do existencialismo cunhada por Sartre – “a existência precede a essência” – Bazin afirmou que “a existência (do cinema) precede a sua essência” (...) Sartre e Bazin compartilhavam um princípio fundamental: “a centralidade da atividade do sujeito filosófico, a premissa de todas as fenomenologias” (Rosen 1990, p.8). O autorismo foi também o produto de uma formação cultural que incluía revistas de cinema, cineclubes, a Cinématèque Francaise e os festivais de cinema, tendo sido estimulada pela projeção de filmes norte-americanos tornados disponíveis durante o período da Liberação. (STAM, 2006: 102)

Desde que seu primeiro número em 1951, a revista Cahiers du Cinéma serviu como uma espécie de órgão-chave para a propagação do que Stam chama de autorismo. (STAM, 2006: 104). Para o crítico e cineasta francês François Truffaut, um dos principais expoentes da Nouvelle Vague oriundos da revista – ao lado de Godard –, o novo cinema “se assemelharia a quem o realizasse, não tanto pelo conteúdo autobiográfico, mas pelo estilo, que impregna o filme com a personalidade de seu diretor”. Para ele, segundo a teoria do autor, os cineastas de força intrinsecamente maior, revelariam no decorrer de sua filmografia uma personalidade estilística e tematicamente reconhecível. Não importavam as circunstâncias de realização da obra, mesmo se estivessem trabalhando na estrutura dos estúdios de Hollywood, o verdadeiro talento se evidenciaria (STAM, 2006: 103-104).

1.7 Sound design

Em Film Sound - Theory and pratice, editado por Elisabeth Weis e John Belton, Marc Mancini considera que os sound designers são “o que os diretores de fotografia são para a iluminação e a composição visual, o que os designers de produção são para a construção dos sets e exibição de objetos

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de cena” (MANCINI, Apud BELTON; WEIS, 1985: 361). Cabe a esse profissional zelar pelo som de um filme do começo ao fim, “interpretando as expectativas do diretor do filme, “ouvindo” o roteiro e os storyboards, coordenando com o compositor e o editor de som, contribuindo com o processo de mixagem”. Mancini frisa que até a garantia da melhor qualidade possível na sala de exibição é função dos sound designers. A tradicional função de supervisor de edição de som (que eles acumulam), não dá conta da natureza do trabalho desses, que Mancini chama de “artistas aurais”. Mancini avalia que havia múltiplos fatores que levaram à criação dessa função. Ele credita ao bombardeio de informação visual que faz com que a audiência nem perceba os efeitos sonoros, as demandas para o circuito exibidor aproveitar melhor suas caixas de som aprimoradas, os filmes de ação em que a música e os efeitos sonoros valem mais que os diálogos, especialmente os de ficção científica que proliferaram com ênfase muito maior a partir do fim dos anos 1970. Ele ainda ressalta como a criatividade normalmente vem associada à visão. “Imaginar é visualizar. Termos como fotografia, cinema e televisão tem sua etimologia relacionada a conceitos visuais (MANCINI, APUD BELTON; WEIS, 1985: 361).

Para que isso se concretize, é necessário que o pensamento sonoro comece o mais cedo possível dentro da realização e que se tenha um profissional conhecedor de todo o percurso do som dentro de um filme, ciente dos problemas e características de captação e edição, extensivos às possibilidades estéticas e às questões técnicas da edição e da mixagem. Esta idealização poderia remeter no mínimo ao início do trabalho de montagem de imagem, quando a narrativa começa a efetivamente se estruturar. Chega-se assim a um projeto de som para o filme, criando um desenho sonoro que se concretizará na mixagem. (MANZANO, 2013: 16)

Luiz Adelmo Manzano explica que essa tarefa inclui trabalhar todos os elementos da banda sonora, não apenas a música, articulando-se imagem e som tanto quanto possível. O aspecto sonoro do filme deveria preferencialmente ser pensando desde o roteiro, de modo a criar um diferencial para a obra. Em vez de só se imaginar como a câmera poderia contar a história, os elementos da trilha poderiam ajudar a elaborar uma

79 história diferente, de modo a levar a banda sonora a um papel determinante na condução da narrativa, Manzano avalia.

1.8 Conclusões sobre o capítulo

Vale resgatar, ainda que brevemente, conceitos-chave deste capítulo que ajudarão a entender os precedentes históricos e o valor de inovação do trabalho de Splet. Considere-se o terceiro tipo de escuta de Roland Barthes, em que o inconsciente é acionado para elaborar uma significância dos sons que vai além do meramente descritivo. Pierre Schaeffer atribui à compreensão um estágio da escuta em que se busca sentidos para os sons e que chama de acusmático o som que ouvimos sem reconhecer a fonte no que está ao alcance de nossos olhos. Se R. Murray Schafer considera paisagem sonora qualquer campo ou ambiente acústico, um filme sonoro dispõe de uma paisagem que pode ser composta pelos vozes, música e efeitos sonoros, em diversos graus de relação. Do mesmo autor, com a contribuição de John Cage, avalia-se que “música é uma organização de sons (ritmo, melodia, etc.) com a intenção de ser ouvida” (SCHAFER, 1991: 35) e que melodia e ritmo não precisam estar sempre presentes na obra identificada como musical. Lia Tomás acrescenta que, para Cage, a estrutura musical é um receptáculo que pode assimilar quaisquer tipos de materiais sonoros, até ruídos e silêncios, uma organização sonora que remonta o conceito de mousiké. Pauline Oliveros aponta que a improvisação criativa musical revela uma inteligência musical coletiva, resultado de um acúmulo aprofundado de informação musical na consciência coletiva humana. Luigi Russolo já em 1913 defendia a inclusão de sons de diversas origens ao universo musical, trazendo mais possibilidades de composição, enquanto Paulo Zuben destaca como o timbre era trabalhado em sobreposições por Edgard Varèse. De qualquer modo, o som de cinema desde cedo priorizou a voz dos atores mais que a música e mais ainda que os efeitos sonoros, em busca de clareza narrativa, fluidez e verossimilhança.

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As exceções ganharam projeção em 1928 com o manifesto de Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e Grigori Aleksandrov, mas foi Dziga Vertov que apresentou uma proposta de som polifônico que mesclasse momentos sincrônicos e outros de contraponto sonoro que se mostrou mais adequada à produção dos quatro cineastas. Vertov inspiraria Jean-Luc Godard em suas experimentações sonoras numa fase em que diretores anteriores à Nouvelle Vague, como Robert Bresson e Jacques Tati, já exploravam a trilha sonora rompendo com práticas clássicas. As perspectivas de Henry Jenkins e Kevin Kelly sobre a convergência de tecnologia, mídias e conteúdos descrevem com precisão o momento atual das relações humanas com produtos audiovisuais, contemporâneos e de períodos anteriores. Momento este em que, por exemplo, pode-se até assistir a O cantor de jazz num telefone celular. Do saber fazer (técnica como habilidade humana, muito além de equipamentos), citado por Álvaro Vieira Pinto, e da diversidade e complexidade apontadas por Kelly consegue-se importantes chaves para a compreensão tanto do trabalho de David Lynch quanto o de Alan Splet com o gravador portátil de áudio e o som multicanal. Integrantes da equipe do sound designer em Veludo azul ilustram isso nas entrevistas que concederam para esta pesquisa. É com esse respaldo histórico, teórico e prático que Splet realiza seu primeiro trabalho ao lado de Lynch, The grandmother, em 1970, e todos os demais filmes de que participou dirigidos pelo cineasta americano.

81 2. ALAN SPLET NA FILMOGRAFIA DE DAVID LYNCH

2.1 Referências biográficas e teóricas

2.1.1 Biografia de Alan Splet

"É sempre assim. Primeiro o George C. Scott não aparece, depois o Marlon Brando e agora o Alan Splet". Foi com essa piada que o comediante e apresentador de TV Johnny Carson anunciou à plateia e aos telespectadores da edição de 1980 do Oscar, que o desconhecido vencedor do prêmio de melhor edição de som – por O corcel negro (The Black stallion, EUA, 1980), de Carroll Ballard – não havia comparecido à cerimônia. Aos 41 anos, Alan Richard Splet (31.12.1939 – 02.12.1994) continuava avesso a festas e entrevistas. Carson encontrou na ausência de Splet uma brecha para divertir sua plateia ao longo da premiação, com tiradas cômicas sobre atualizações fictícias do paradeiro do sound designer, que teria perdido a saída da via expressa a caminho do Dorothy Chandler Pavilion, local do evento, depois estaria preso num posto de gasolina com um problema no carburador de seu carro. Nascido na véspera do Ano Novo na Filadélfia, Pensilvânia, costa leste dos Estados Unidos, Splet tinha um caso bastante acentuado de miopia que desde a infância o levou a desenvolver a atenção, a sensibilidade e o interesse pelo que sua audição podia lhe proporcionar. Não seria à toa. Pegou gosto pelo violoncelo. Era fã das composições de Johann Sebastian Bach e Dmitri Shostakovich. Isso também lhe seria útil mais adiante. Ainda na adolescência demonstrou habilidade ao gravar música ao vivo em alta fidelidade. Mas, a princípio, não fez de sua paixão uma profissão. Preferiu estudar engenharia elétrica no Drexel Institute of Technology, também na Filadélfia, e trabalhou por oito anos como contador até que um amigo produtor de filmes institucionais para a indústria, Bob Collom, de uma produtora chamada Calvin-DeFrenes, o convenceu a trabalhar com o som dos filmes em 1968. O salário era menos que a metade do que a contabilidade lhe pagava (GENTRY, 1984: 62).

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Por mais que o trabalho consistisse apenas em gravar sons e adicionar músicas de catálogo, e apesar da desaprovação de sua família e insegurança pessoal, o entusiasmo de Splet com o trabalho em filmes o fez prosseguir na nova carreira, conforme Gentry nos conta. Um ano e meio depois, um estudante de artes plásticas veio à Calvin-DeFrenes em busca de efeitos sonoros para um filme de meia hora que ele havia realizado com o apoio do American Film Institute (AFI), instituição fundada em 1967 com função análoga à de uma cinemateca. O estudante se chamava David Lynch. O filme, The grandmother (EUA, 1970). Collom, com quem Lynch já havia trabalhado no curta-metragem The alphabet (EUA, 1968) e com quem Lynch pretendia trabalhar, estava ocupado, mas disponibilizou seu assistente Splet para o projeto. É improvável que qualquer dos envolvidos pudesse prever a durabilidade e a repercussão desse encontro.

Encontrei o Bob na porta e ele disse “David, eu me sinto mal por te dizer isto, mas vou estar ocupado demais para trabalhar com você, mas eu contratei um assistente, Alan Splet, e ele vai trabalhar contigo”. E eu olhei e lá estava o Al nesse pequeno paletó negro brilhante. O Al parecia uma vassoura. Caminhei pela sala e apertei sua mão e senti seus ossos chacoalharem no braço dele. E pensei comigo mesmo: “isso não vai funcionar”. Então a primeira hora trabalhando com o Al... foi estranha. E ele estava tocando efeitos sonoros de discos. E eu disse “não, não, não, não, não está certo, não está certo, precisa ser mais assim...”. E o Al disse “bem, talvez a gente precise fazer isso”. Então foi assim que começou, foi tão divertido”. (THE PARIS REVIEW, 2014)16

Vale também conferir outro relato de Lynch, mais detalhado, sobre o mesmo episódio17.

Conheci o Alan na Filadélfia, Pensilvânia, em 1969. Fiz um filme chamado The alphabet, que tinha quatro minutos de

16 Richard B. Woodward publicou um vídeo com entrevista de Lynch junto à matéria disponível no site The Paris Review, explicando que ele foi realizado por Ann Kroeber. Mas no canal Youtube, o crédito da publicação é do próprio The Paris Review. 17 Disponível como material extra do DVD do filme Sociedade dos poetas mortos (Dead poets society, EUA, 1989), de Peter Weir, Edição especial, porém sem créditos. O vídeo é apenas identificado como Alan Splet Tribute (Tributo a Alan Splet, mas mantido no original em inglês, como os demais extras). Lynch participa apenas em áudio, enquanto fotografias de Splet são apresentadas, como imagens dele jovem com cabelo curto e com topete junto a seu violoncelo e depois em fotos de bastidores dele trabalhando nos filmes de que participou. Não há tampouco indicação do ano de produção do DVD. Dessa forma, por falta de mais indicações, os créditos da entrevista ficarão em aberto.

83 duração, e trabalhei no som com um cara chamado Bob Collom, que trabalhava na Calvin-DeFrenes, um pequeno laboratório que fazia principalmente filmes industriais. Eu tinha falado com o Bob sobre eu estar me aprontando para The grandmother. Ele disse “ok, Dave, quando estiver pronto, venha aqui e vamos trabalhar”. Eu disse “ok, Bob”. O dia chegou, estava pronto para ir, fui até a Calvin-DeFrenes, peguei a escada para o departamento de som, bati na porta e o Bob Collom meio que ficou estranho quando me viu. Ele abriu a porta, ficou um pouco constrangido e disse “David, coisas aconteceram e não vou ter condições de trabalhar com você. Mas tenho um novo assistente e gostaria que o conhecesse. É com ele que você vai trabalhar. Nesse momento, dei uma espiada e vi o novo assistente. Esse cara tinha 1,85 ou 1,90 metro de altura, magro como um pequeno pedaço de bambu, num paletó negro brilhante, uma expressão meio atabalhoada, um cabelo meio avermelhado, meio penteado, muito liso. Ele sorriu e veio na minha direção e quando apertei a mão dele senti os ossos do braço dele chacoalhar. Esse era o Alan Splet. E pensei comigo mesmo: “isto é de uma chatice suprema!”. Alan Splet é tão certinho, e tão alinhado e tão de outra era que isto vai ser um desastre. Então comecei a falar com o Alan sobre o filme The grandmother e o que eu queria fazer. Ele primeiro sugeriu que checássemos a audioteca da Calvin, uma audioteca de efeitos sonoros patética. Começamos assim e fui ficando cada vez mais deprimido conforme ouvíamos aquilo. E ele disse: “veja, vamos começar a construir efeitos. E eu disse: “boa ideia”. E eu vi uma certa luz acender no Alan. E pelas próximas sete semanas... Não, nove semanas, sete vezes nove são 63... 63 dias, ao menos dez horas por dia, o Alan e eu construímos efeitos. Quase não tínhamos qualquer equipamento. Eles não tinham uma unidade de reverberação, por exemplo. O Al tocava os sons pelos dutos de aquecimento e os regravava do outro lado e continuávamos a tocar de um lado para outro até que conseguíssemos a reverberação longa o suficiente, coisas assim. A gente ia por todos os lados do prédio, inseparáveis, conseguindo isso e aquilo, e 63 dias depois conseguimos quatro trilhas, trilhas editadas consistentes, consistentes, porque só tínhamos quatro dubladores, e foi uma das melhores experiências que eu já tive. O Alan e eu nos conectamos e ele é verdadeiramente um dos meus melhores amigos. (LYNCH, Apud Alan Splet tribute)

A equipe de som nas produções cinematográficas com estrutura de estúdio costuma agregar algumas dezenas de profissionais, em tarefas bem compartimentadas. Há um time para gravar sons que serão usados como efeitos sonoros, editores de som, engenheiros de som, mixadores, sound designers, assistente diversos. Além de ser competente em todas essas etapas do trabalho, Splet mantinha sua influência, senão coordenação ou

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mesmo atuação direta em cada uma dessas funções, “sem dúvida por causa de sua preocupação abrangente com a aplicação mais detalhada de seus efeitos, além de suas origens como um homem de áudio para todos os fins em uma pequena empresa de cinema industrial”, lembra Gentry (GENTRY, 1984: 63-64).

Com uma propensão já estabelecida para entonações mecânicas, e a ideia bastante original de contraponto à imagem com faixas atmosféricas e exageradas em vez de realistas, Lynch foi naturalmente atraído para o departamento de som de uma empresa de cinema industrial. (...) O som nunca mais seria o mesmo para os jovens realizadores de filmes. Eles foram "primitivos" artísticos, no sentido de que a sua falta de sofisticação levou a descobertas que eram novas e não convencionais. O mundo do som começou com o que os ouvidos ouviam e da mente podia imaginar, não o que a tecnologia padrão profissional implicitamente circunscrevia e ditava que deveria ser. (GENTRY, 1984: 62-63)

The grandmother impressionou a direção do AFI e o trabalho de Splet representou parte considerável dessa satisfação. Tanto que ele foi convidado para assumir o cargo de chefe do departamento de som do instituto, na então nova filial da instituição (com sede em Washington) em Los Angeles, o que levou tanto Splet quanto Lynch, este na condição de congregado, à Califórnia. Splet participou de inúmeros projetos com jovens cineastas ligados à instituição, enquanto participava dos cinco anos da esporádica produção do primeiro longa-metragem de Lynch, a produção independente Eraserheard (EUA, 1977). Segundo Gentry, era o primeiro trabalho de Splet como profissional18. Para a mesma reportagem sobre Duna (Dune, EUA, 1984), em que Gentry traçou linhas gerais de um perfil de Splet, há citações do próprio sound designer explicando um pouco de sua rotina de trabalho.

Tendo a amplificar o que você vê na tela, para aumentar a imagem, meio que interpretando o que há lá. O som pode ou não corresponder aos movimentos visíveis das coisas na tela. Em vez disso, ele meio que se soma a elas para criar um clima, uma atmosfera. Ainda não sou muito técnico. (SPLET, Apud GENTRY, 1984: 62-63)

18 Nos Estados Unidos, isso costuma se referir ao registro de um profissional da indústria do cinema na associação de classe do seu campo de atuação, como no Directors Guild of America (para diretores), Writers Guild of America (para escritores), Actors Guild of America (para atores) ou Motion Picture Editors Guild (para editores).

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Em seu livro Blue velvet, Charles Drazin apresenta como declaração de Lynch que “apenas um par de sons está certo quando milhões e milhões estão errados” (DRAZIN, 1998: 168). Ele complementa afirmando que, segundo o cineasta, quando um sentido está ou é debilitado, os demais afloram e que Splet podia ouvir coisas que os outros não conseguiam. Para o autor, o sound designer possuía a combinação necessária de sensibilidade e rigor e estava preparado para viajar o mundo em busca de um som apropriado para uma cena e para experimentar indefinidamente. J. Hoberman e Jonathan Rosenbaum tratam de Eraserhead em seu livro Midnight movies, para o qual também entrevistaram Lynch. “Ele meio que tinha ouvido falar de mim como esse esquisitão que tinha feito The alphabet e queria esses efeitos sonoros estranhos, e achou que eu estaria dentro e fora em uma semana” (HOBERMAN; ROSENBAUM, 1991: 225-226), o diretor lembra, bem como os 63 dias seguidos de trabalho que tiveram com The grandmother, em boa sintonia e se divertindo na construção do rolo de efeitos sonoros. Antes da conclusão de Eraserhead, foi lançado o longa Meanwhile, back at the ranch (EUA, 1976), de Richard Patterson, em que Splet atuou como editor de efeitos sonoros, mas foi apenas depois de Eraserhead que ele migrou para as produções de longas-metragens realizados em estrutura de estúdio, com ampla distribuição no circuito exibidor internacional. Primeiro com Cinzas no paraíso (Days of heaven, EUA, 1978), de , como assistente especial de áudio, depois com o convite de Ballard para O corcel negro e então o primeiro filme de Lynch com essa estrutura, O homem elefante (The elephant man, EUA/Reino Unido, 1980). O corcel negro, entretanto, trouxe outro marco na vida do sound designer, além do Oscar de 1980. A premiação aconteceu no ano anterior ao do seu casamento com sua assistente Ann Kroeber, que Splet conheceu durante a produção do filme de Ballard, quando a contratou, e com quem já estava trabalhando também em O homem elefante. Kroeber vinha de experiências anteriores com gravação de sons para efeitos sonoros (inclusive para a ONU) e edição de sons para produções independentes. O casal teria filhos gêmeos bivitelinos, o menino Christopher Alan Splet e a menina Lisa

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Marie Splet em 1984. Pelo menos até hoje, nenhum dos dois decidiu trilhar os caminhos artísticos dos pais. No mesmo ano de 1984 foi lançado Duna, terceiro longa-metragem da parceria de Lynch com Splet. Depois de Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986), último filme com a dupla, Splet ainda firmaria mais duas parcerias profissionais de recorrência em longas-metragens. Uma foi o próprio Ballard, com quem também fez Os lobos nunca choram (Never cry wolf, EUA, 1983) e Wind (EUA, 1992). Outra com o cineasta Philip Kaufman, com quem Splet trabalhou em A insustentável leveza do ser (The unbearable lightness of being, EUA, 1988), Henry & June - Delírios eróticos (Henry & June, EUA, 1990) e Sol nascente (Rising sun, EUA, 1993), seu último filme, antes de falecer em 1994.

2.1.2 A palavra dos colegas

Para alguém vindo da engenharia e da contabilidade, como Splet, ou das artes plásticas, como Lynch, é notável o empenho de ambos com o aspecto sonoro dos filmes, bem como o treinamento musical clássico – as referências musicais mais recorrentes na filmografia de Lynch costumam tender ao universo pop – e o incentivo auditivo da condição de saúde de Splet seriam providenciais para a comunicação entre os dois e os resultados que obtiveram. Ninguém melhor que o próprio Lynch para descrever como se constituiu essa afinidade entre ambos. Mais importante ainda é como o cineasta distingue efeitos sonoros do que chama de efeitos abstratos, que segundo ele, Splet entendeu tão bem.

O forte do Alan para mim se baseia em duas coisas: seu amor pela música... Ele amava música clássica. Ele sabia praticamente nada de rock’n’roll. Era como se ele fosse de uma era diferente. O rock’n’roll não existia de verdade para o Al. Ele tinha uma coleção enorme de música clássica, frequentava concertos e acho que seu amor pela música e seu conhecimento de eletrônica... Ele era um engenheiro criativo, mas ele era como uma banda de um homem só. Ele conhecia todos os equipamentos e como eles funcionavam. Quando ele estava no ensino médio, acredito, ele construiu sua própria estação de rádio na garagem de casa. Então ele

87 tinha conhecimento sobre o equipamento e amor por sons orgânicos de muito boa, alta qualidade. Ele não gostava de truques. A filosofia evoluiu e criamos essa frase: a imagem dita o som. E isso é 99% verdadeiro. Às vezes os sons ditam a imagem. E especialmente a música vai ditar a imagem às vezes. Ideias podem vir da música, mas basicamente é encontrar aqueles sons que casam com a imagem. E o Alan também se conecta com cada projeto em que ele trabalha. Mas, por si só, acho que ele preferiria sons naturais, sons orgânicos, de altíssima qualidade. Então, quando o Alan sai para coletar sons, pode apostar que tecnicamente eles vão ter qualidade super alta e vão captar uma verdade profunda de cada som. Não sei como ele faz isso. E ele encontra o que as pessoas gostam e aí vai para o trabalho e traz essas coisas e dá muitas opções. O som é pelo menos 50% do filme. É o som e a imagem trabalhando em conjunto, sabe? Nessa coisa linda que é o cinema. E os sons podem cobrir o vão entre efeitos sonoros e a música. Sons podem ser efeitos abstratos. E então eles abrem um mundo e dão um clima, assim como a música. Então existem efeitos definidos, efeitos abstratos e música. Os efeitos abstratos são realmente onde muito da mágica acontece. O Al entendeu isso 100% e a gente mergulhava no mundo do som e encontrava aquelas coisas que davam suporte à imagem e a destacava. E a ideia completa é que o todo é maior que a soma das partes. (LYNCH, Apud Alan Splet tribute)

Em entrevista sobre o trabalho de Splet19, Carroll Ballard conta que, antes mesmo de cursar faculdade de cinema, já experimentava com uma câmera fotografica Nikon e um gravador de som Nagra, articulando fotos e sons. Para ele, sons são tão importantes quanto, quando não mais, que as imagens por terem um poder mais forte de imersão do espectador. Ele conheceu Splet no AFI quando realizava um documentário e logo se impressionou pela variedade de sugestões de uso de som que o sound designer lhe fazia. Splet gastou uma semana trabalhando no documentário de 47 minutos, Seems like only yesterday (EUA, 1971), sobre as lembranças de um grupo de centenários. “Ele era um cara que vivia através dos seus ouvidos”. O diretor destaca que Splet era incansável na busca de sons para gravar e construir suas ideias sonoras. Ele cita o exemplo do barco naufragando em O corcel negro. Na sala de edição usada na pós-produção, o

19 Originalmente disponível no site da produtora Sound Mountain (www.soundmountain.com), de Ann Kroeber, que, enviou o arquivo em vídeo por e-mail por ele estar fora do ar no site. As entrevistas de Philip Kaufman e Peter Weir continuam disponíveis no mesmo site.

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barulho da descarga do vaso sanitário de um banheiro próximo incomodava sua equipe constantemente enquanto Splet e seu time buscavam um som para o naufrágio, até que o sound designer teve a ideia de usá-lo. Deu a ele todo um tratamento de mixagem e o colocou o efeito assustador do resultado na trilha do filme vencedor do Oscar de edição de som. O aspecto mais lembrado sobre o trabalho de som do filme são os microfones que Splet prendeu em diferentes pontos do corpo do próprio cavalo, de modo a registrar todas as reações sonoras possíveis do animal, até o som de uma membrana do estomago do animal que chacoalha e cria um som característico conforme ele corre. Ballard avalia que muita gente na indústria cinematográfica se preocupa com aspectos técnicos em vez dos aspectos emocionais e estéticos do filme, ao passo que para ele Splet era completamente comprometido e não se calava para proteger sua posição política. Kaufman considera Splet um poeta dos sons e diz que tinha a impressão de que o sound designer poderia criar toda uma partitura de cinema sem um compositor. O cineasta destaca a proximidade de Splet com os compositores de cada filme em que os dois trabalharam juntos. Para A insustentável leveza do ser a música do compositor checo Leoš Janáček (com quem o pai de Kundera estudou) foi usada como um narrador substituto de Milan Kundera, autor do livro em que o filme se baseia. Como Splet ficou responsável pela edição da música do filme, coube a ele articular música e efeitos sonoros para tanto. Em Sol nascente, a parceria foi com o compositor japonês Tôru Takemitsu. Kaufman ressalta que Splet também acreditava no silêncio como um elemento sonoro para algumas cenas e que ele ajudava no desempenho dos atores. O diretor australiano Peter Weir considera Splet um artesão perfeccionista que encontrava criatividade no som das coisas comuns para acrescentar dimensão e peso às cenas para uma experiência mais absorvente, alguém que entendia que o som poderia acrescentar uma terceira dimensão para a bidimensionalidade do filme, em diferentes níveis. Weir se diverte lembrando uma ocasião durante a produção de A costa do mosquito (The mosquito coast, EUA, 1986) em que se impressionou com um som e perguntou a Splet se ele terminaria naquele dia. A resposta foi

89 negativa, pois o trecho continha apenas 18 faixas e ainda faltavam 37. Neste filme, a selva e a máquina com tecnologia termodinâmica que produzia gelo a partir de fogo, bem como a explosão desta, foram elementos sonoros que propiciaram amplo trabalho com efeitos sonoros para Splet e Kroeber, que Weir considera a outra metade de um time criativo que o casal formava. O trabalho do sound designer se apoiava numa articulação da terceira escuta de Barthes, bem como algumas vezes na subversão da compreensão do som de que trata Schaeffer, pela maneira como ele explorou – para Lynch acima de todos os demais diretores – o som acusmático em suas paisagens sonoras. É o que Lynch chama de sons abstratos. Em sua entrevista para esta pesquisa, Ann Kroeber também é testemunha de que, embora Splet não tivesse a tarefa nem a intenção de substituir a trilha musical dos filmes de que participava, eram trabalhados como se fossem, o que se aproxima, se não exemplifica a definição de música tanto de Cage quanto de Schafer.

Outra coisa é que, em geral, com o David os efeitos sonoros expressam a escuridão, a tristeza, o medo e a música é o humor e o amor. É como ele trabalha. Não é 100% assim, mas é bem perto disso. E tem outra coisa que eu acredito que faz o Alan único. O Alan é muito consciente da música, ele era um violoncelista maravilhoso, tinha um senso musical incrível. Ele acreditava que os efeitos sonoros são música de verdade. Acho que para mim também. Estava pensando nisso hoje enquanto caminhava. É uma nova maneira que eu estava pensando. Ele era como um compositor de sons. Todos os sons que ele usava, todas as camadas de sons, elas criavam um efeito evocativo, um estado de espírito, um sentimento em você. Os efeitos sonoros trazem você para dentro do filme, mesmo que com o David eles sejam algo completamente diferente, que nunca estariam naquele cômodo, ainda assim te trazem para dentro, têm uma certa qualidade realista, de certo modo – de um modo, mas não de verdade. É tão sutil que as pessoas tomam como pressuposto. Todos pensam que é tudo por conta da música(...). Outra coisa sobre o Alan. Ele sempre começava com sons naturais. E aí ele ia alterá-los, brincar com eles, sobrepô-los, mudar os sons, reduzir sua velocidade e acelerá-los. Ele sempre usava sons naturais, odiava sintetizadores, sons eletrônicos. Ele gostava de ter uma qualidade orgânica dos sons para começar. (KROEBER, 2016 a)

Editor de som de alguns dos filmes de Splet, Rob Fruchtman reitera esse aspecto do trabalho do sound designer. Ele conta em entrevista inédita

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que Ballard queria sons naturalistas para O corcel negro e Splet os gravava, mas estes soavam surreais, o que criou uma dimensão completamente distinta para a persona do cavalo protagonista do filme. O mesmo valeu para Os lobos nunca choram. “Saíamos a campo e gravávamos ventos, ambiências, foleys selvagens, tudo que batesse e aí ele construía camadas além da imaginação, as camadas mais complicadas e interessantes”, ele lembra (FRUCHTMAN, 2016 b)20. “Se ouvir só as ambiências, você tem uma trilha sonora inteira. Mas havia tão mais” (FRUCHTMAN, 2016 b). Segundo Fruchtman, Splet criou rédeas para um mini-gravador de fita e microfone e prendeu na barriga do cavalo de O corcel negro, o que permitiu ouvir até sons do organismo do animal enquanto ele cavalgava. “Ele criou uma rédea para a frente do cavalo de forma que você ouvisse o (imita as bufadas do animal) som, claro, você podia ouvir os gritos do garanhão”, o editor revela (FRUCHTMAN, 2016 b). “E de uma forma muito complicada ele fazia camadas de todos esses sons e criou a fenomenal persona do cavalo através do som” (FRUCHTMAN, 2016 b). Para Fruchtman, a genialidade do colega estava em usar sons orgânicos para criar uma metáfora, um contraponto à realidade, mas com sons da realidade. Outro editor de som que trabalhou bastante com Splet, John Nutt, ajuda a entender que esse talento percebido por tantos não influía na atitude do sound designer.

Ele queria que aquilo tivesse um impacto emocional. E queria que tivesse seu lugar. Não sei, ele sempre fazia isso, testemunhei em O corcel negro uma conversa muito interessante entre o diretor Carroll Ballard e o Alan, quando estavam tentando conseguir terminar uma cena em que o cavalo está correndo na praia e o garotinho, que estava tentando atraí-lo, finalmente consegue montar nas costas do cavalo e cavalgar nas ondas, uma cena para cima, feliz. O Alan tinha separado todos os tipos de efeitos sonoros para ela. O diretor entrou e se sentou meio impaciente, deixando claro que ele via a cena como uma cena sem efeitos sonoros, não com pequenos efeitos sonoros. Então se tornou uma cena só de música. Para mim foi uma das poucas grandes lições de pós-produção que me marcaram, tenho certeza que marcou o Alan. Todos os efeitos sonoros do Alan estariam bons para qualquer diretor, mas para esse diretor... O Carroll estava optando estritamente pela emoção. Percebi que o Alan entendeu aquilo instintivamente e não resistiu. A

20 Entrevista concedida para esta pesquisa, conforme apêndice Entrevista 2016 b.

91 maioria dos editores de efeitos sonoros teria resistido. “Que tal se eu puser outro curtinho aqui? Que tal a cada duas expirações? Ou talvez só ouvirmos a água”. Ele entendeu. Tipo “Certo, sobem os efeitos sonoros, sobe a música”. Em outras cenas, no mesmíssimo filme, em que qualquer compositor teria colocado música, eles tinham só efeitos sonoros. Ele entendia a variedade, o valor de usar tanto efeitos sonoros quanto música pela sua importância emocional. De certo modo, não havia diferença entre eles para o Alan. Ele queria fazer o que conectasse a plateia àquela emoção. Ele não estava tentando surpreender, tirar facilidades como o tiro de laboratório que fizesse você pular (na cadeira) nem nada do tipo, coisa muito simples de fazer. Ele fazia as coisas difíceis, na verdade. (NUTT, 2016 e)21

Não raro, conseguir o efeito emotivo pretendido por Splet era um trabalho árduo. Editor de som premiado, o britânico Richard Hymns lembra de outro exemplo. Todas as explosões da (máquina) Fatboy em A costa do mosquito foram provavelmente o maior pesadelo que ele já enfrentou. “O Alan me deu literalmente 250 explosões e queria que eu escutasse todas elas. E selecionar a melhor de menor alcance, de médio e de longo e colocar cada uma em cada explosão e editá-las todas em sincronia” (HYMNS, 2016 f)22. Hymns calcula que havia 40 explosões na sequência do filme. “Isso era na época do filme magnético, quando você não tinha centenas de trilhas para desperdiçar” (HYMNS, 2016 f). Depois de editadas, a cada início de explosão, Splet pediu a Hymns que raspasse os últimos dois frames e meio para que se intensificasse o impacto sonoro do estrondo. Outro sound designer premiado americano, trabalhou com o trio que marca o início dessa atividade, Walter Murch, Ben Burtt e Splet (em Os lobos nunca choram), quando eles viviam a pouca distância um dos outros nos arredores de São Francisco. “O Alan era um homem gentil e generoso, e um gênio”, elogia (THOM, 2009: 1). Thom estende o elogio aos diretores que possibilitaram que o sound design de Splet se destacasse. “Todas essas sequências foram elaboradas para o som antes que o sound design para elas fosse feito. Note a música esparsa. Note o uso de subjetividade e ponto de vista. O diálogo escasso”, ele orienta (THOM, 2009: 1). “Esses diretores abriram a porta e o Alan adentrou com força e elegância”.

21 Entrevista concedida para esta pesquisa, conforme apêndice Entrevista 2016 e. 22 Entrevista concedida para esta pesquisa, conforme apêndice Entrevista 2016 f.

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Ainda que não tenham trabalhado com Splet nem o conhecido pessoalmente, os sound designers brasileiros Luiz Adelmo Manzano e Eduardo Santos Mendes têm clareza sobre a importância do trabalho e do legado do americano. Manzano acredita que Splet representou para o cinema americano um impacto comparável ao trabalho de som dos filmes de Jean- Luc Godard foi para o cinema europeu na aurora da Nouvelle Vague. “Então eu vejo o Alan Splet um pouco como essa formação ou alguém que de repente consegue achar uma brecha, vamos dizer assim, na produção americana e que começa a fazer esse tipo de articulação” (MANZANO, 2015a)23. Hymns concorda com a questão da brecha, por uma perspectiva histórica, que destaca ainda mais a relevância do sound design de Splet.

Houve mesmo uma janela muito breve no som cinematográfico quando isso estava acontecendo. Acho que começou em Guerra nas estrelas (Star wars, EUA, 1977, de George Lucas), passou por Apocalipse (now, EUA, 1979), O corcel negro, Os lobos nunca choram (Never cry Wolf, EUA, 1983, de Ballard)... Talvez em 2010, em algum ponto desse período, numa década ou duas, os estúdios perceberam que a trilha sonora não fazia dinheiro algum a mais para o filme. Sabe, você poderia ter um bom filme com uma trilha terrível e ele faria um monte de dinheiro. Você poderia ter um filme terrível com uma trilha sensacional e ele não faria um tostão. E se você tivesse um bom filme com uma trilha boa, ele não renderia dinheiro algum a mais de fato do que se tivesse uma trilha terrível. Então os orçamentos foram muito reduzidos nessa época e ainda são hoje (...). Foi uma janela bem pequena e o Alan estava nessa janela. Ele era uma pessoa que fazia valer o dinheiro deles. Não havia comportamento supérfluo nos filmes do Alan. Estava tudo na tela, na trilha, tão detalhado. Um cara incrível, incrível. E persistente. Em Os lobos nunca choram eles tiveram uma enchente em Selma (Califórnia), na cidade inteira. Todas gravações em filme de 35 mm foram cobertas em lama do rio que transbordou. Eles tiveram que limpar cada milímetro de fita com um pano, lavar e secar. Foi insano! É o tipo de coisa que você vira e fala “Deveríamos começar de novo”. Mas eles fizeram tudo aquilo. Simplesmente um suplício incrível. Eles fizeram tudo a mão. Esse era o tipo de cara que o Alan era. Não importava, ele ia fazer direito. (HYMNS, 2016 f)

Santos Mendes elabora uma necessária comparação de Splet com o sound designer contemporâneo – e muito referenciado nos estudos de som

23 Entrevista concedida para esta pesquisa, conforme apêndice Entrevista 2015 a.

93 cinematográfico – que o levou a produzir sua tese Walter Murch: A revolução no pensamento sonoro cinematográfico. Murch, além da careira artística, é um teórico prolífico que inclusive cunhou o termo “sound design”. Mendes avalia que o cinema abre a imagem para diversos caminhos, permitindo ao espectador se guiar por ela por onde sua emoção indicar naquela história, naquela relação audiovisual. É o poder de ser sensorial de fato, com sensações claras, físicas.

E nisso o Splet é o aperfeiçoamento do Murch. Digamos assim. Mal dito, muito mal dito. É que o Murch também trabalha na mesma linha. Apocalipse é um festival disso, de sensorialidade, mas ele se prende o tempo todo à verossimilhança. Ele tem uma coisa com a verossimilhança que é muito engraçada, ele não consegue fugir. (...) Ele volta. Sempre volta, vai para lá. E quando ele delira, ele faz uns delírios lindos e maravilhosos, no final ele justifica. Ele tem que justificar de alguma forma, ele tem que deixar aquilo verossimilhante de alguma forma. E o Splet não. Já é a segunda geração. A segunda geração já aprendeu com a primeira e pode falar “tá, mas eu não preciso justificar”. (MENDES, 2016 c)24

Mendes reitera o conceito de efeito abstrato citado por Lynch, em que o timbre é elemento essencial, facilitado pela estereofonia a partir de O homem elefante, no caso de Lynch – Eraserhead havia sido originalmente produzido em mono. Outra característica marcante de Splet que Mendes destaca é a forma como ele trabalha com ambiente, transformando-o num pulso vivo, um personagem. Mendes leva além a observação de Fruchtman sobre o som como terceira dimensão do filme. “Você pode usar o ambiente para dar tridimensionalidade à imagem, é a função básica dele. Mas ele usa ambiente para contar história. A função do ambiente dele é narrativa, não para gerar verossimilhança” (MENDES, 2016 c). Para Mendes, mesmo nos momentos verossimilhantes do trabalho de Splet, a narrativa se mantém muito forte. Mesmo objetos, seres inanimados ou animados ganham personalidade, “passam a ser personagens, seres vivos, com raiva, com ódio, com violência” (MENDES, 2016 c).

24 Entrevista concedida para esta pesquisa, conforme apêndice Entrevista 2016 c.

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E, acima de tudo, a liberdade com que ele trata sons, pensando muito mais no caráter sonoro daquilo, do que ele consegue tirar como pulso, como timbre, como sonoridade propriamente dita, do que da sua verossimilhança. Então, essa liberdade de pegar um som de um outro universo e trazer para um universo onde você nunca o juntaria, mas que para a relação audiovisual tem o efeito perfeito que se queria. Como o bendito trem no O corcel negro, o cavalo que vira uma locomotiva, literalmente uma locomotiva. Você tem que ter uma liberdade de pensamento, do criar e mesmo do ouvir sons, que eu não tenho. Até tenho, mas eu tenho um limite, o Murch também, de extrapolação do som propriamente dito e pensar nele como a característica sonora e não qualquer outra relação, essa liberdade do ouvir, do sentir aquele ouvir e devolver isso só a partir dessa ligação, sem nenhuma outra ligação. (MENDES, 2016 c)

Ele ainda destaca como características essenciais do trabalho de Splet o som articulado com a narrativa do filme, que não precisa brilhar mais que o filme, construído de modo que toda a trilha sonora do filme funcione como uma grande partitura de duas horas. Esta deve ter dinâmica, respiros e elementos sonoros, sejam estes vozes, música ou efeitos sonoros. Algo que faz as paisagens sonoras de seus filmes, em especial os que Lynch dirigiu, caberem na definição de música de Schafer e Cage, pela organização do pensamento que também as adéquam ao conceito de mousiké apresentado por Tomás. E que, quando fogem da versossimilhança, tornam seus sons acusmáticos ideais para a terceira escuta de Barthes. Mendes acredita que a parceria de Lynch e Splet se destacou por eles serem dois criadores muito inventivos que conseguem renovar o trabalho um do outro, fazendo render ainda mais o potencial artístico de cada um. Para ele, nos curtas-metragens de Lynch antes do The grandmother percebe-se um artista plástico que pensa bem imagem, de maneira expressionista, e começa a entender de cinema, mas sem estrutura nem pensamento sonoros suficientes. “Aí quando vem The grandmother, ele dá um salto na estrutura audiovisual, que depois vai ficar redonda no Eraserhead” (MENDES, 2016 c). Com relação ao contraponto sonoro, Mendes vê a discussão teórica estagnada nos termos em que era mantida dos anos 1960 para trás. Ele indica que no cinema contemporâneo, até nos blockbuster americanos de super-herói, já não é mais necessário justificar na trama uma distorção sonora. Por exemplo, o personagem não precisar estar bêbado – recurso que

95 o cinema clássico adota desde o início – para que se deforme completamente a estrutura de som para a criação de efeito. “O cinema que você tem hoje pulsa entre verossimilhante e não verossimilhante, entre naturalismo e não naturalismo. Ele se modifica a cada cinco minutos” (MENDES, 2016 c). O som já é amplamente usado como representação da introspecção do personagem e tentar fazer a representação desse mundo interior através do som, um caminho que se começou a trilhar com o surgimento do sound design. “Então eu acho que essa liberdade contrapontística, que esse pessoal dos anos 70 bate forte já foi assimilada pelo grande cinema, pelo cinemão. Pelo cinemão, pelo cineminha, pelo cinema de autor, todo mundo” (MENDES, 2016 c). Epecificamente sobre o estranhamento causado pelo contraponto no sound design de Splet para Lynch, Mendes ressalta que ele não tira o espectador da imersão da narrativa.

O que tem de diferente entre uma coisa e outra não é imersão ou não imersão (...). Não é que nem um filme do Godard ou do Fassbinder, em que ele me corta o áudio total, eu levo um susto e saio da narrativa, saio da história do filme. Porque é feito para eu cair fora, para eu voltar a assumir uma posição racional. Eu acho que nenhum dos dois tipos de cinema está propondo isso. Seja o tipo de cinema do Lynch, seja o tipo de cinema do Christopher Nolan, que usa muito esse recurso, mas para fazer um outro cinema. Eu acho que o que muda é uma questão de você criar algum tipo de agressividade, algum tipo de rejeição do seu espectador, rejeição, mas sem perder a ligação emocional, que é a essência do cinema americano. Não que você em momento nenhum racionalize que aquilo é um filme. Você tem que ficar emocionalmente ligado àquilo durante a projeção. Desse princípio básico não foge. Quando você me fala de rejeição me dá essa impressão de Godard, Fassbinder, que não querem o seu envolvimento emocional. Eles querem que um afastamento brechtiniano em alguns filmes. (MENDES, 2016 c)

O que Lynch e Splet criam juntos, para Mendes, é uma sensação desagradável, como repulsa e asco, mas sem a desconexão do espectador do que a cena apresenta, já que a sensação é alimentada e prossegue no filme. Tais construções sonoras querem o espectador imerso na história por chaves sensoriais, não racionais. Ele trabalha com elementos sonoros que claramente causam sensações. O sensorial é mais importante que o racional

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e o verossimilhante no trabalho de Splet para Lynch. Mas ele é tão narrativo quanto ou talvez mais em termos de contar uma história, Mendes avalia. O foco é contar uma história. Para Mendes, o som criado pela dupla não é externo, não é da imagem: o som interno é uma personagem dessa história.

2.1.3 David Lynch como autor

Para começar a abordar os aspectos centrais da filmografia de Lynch que influenciaram suas escolhas de som, vale resgatar o que Stam apontou a respeito da teoria do autor à luz do que Peter Bürger indica em seu livro Teoria da vanguarda. Para este autor, o receptor da obra vanguardista “vivencia a experiência de que o seu procedimento para a apropriação de objetivações intelectuais, formado no contato com obras de arte orgânicas, é inadequado ao objeto” (BÜRGER, 2012: 142). Isso ocorre porque a obra vanguardista não apresenta uma impressão plena, pré-requisito para que seu sentido seja interpretado. Ela tampouco revela clareza para impressões que eventualmente o receptor venha a se produzir sobre seus componentes, pois tais impressões não constituem intenção da obra, do seu autor. E para Bürger, o receptor vivencia essa recusa do sentido como choque. É o estímulo provocado por esse choque que o artista de vanguarda pretende com essa privação de sentido. Dessa maneira, ele busca “alertar o receptor para o fato de a sua própria práxis vital ser questionável e para a necessidade de transformá-la” (BÜRGER, 2012: 142). O choque funciona como meio pelo qual se pode romper a imanência estética e introduzir uma mudança da práxis vital do receptor (BÜRGER, 2012: 142). Isso pode ser reconhecido na proposta dos três cineastas russos do manifesto de 1928, assim como em Vertov e Godard. Era para desacomodar a relação do espectador com a forma e a estética do filme a que ele estava habituado, embora os russos propusessem relações que levassem a algum tipo de sentido. Godard inova ao romper com a necessidade de um sentido narrativo para expor as formas com que se constrói sentido no cinema de estética clássica. Ele compartilha do Lynch a desobrigação de um sentido claro ou único, caso haja algum. Nesse sentido, os elementos sonoros também são determinantes para ambos os cineastas.

97 O uso de som de Lynch preenche, para Martha P. Nochimon, em The passion of David Lynch, seus filmes com um prazer do que existe além das imagens miméticas ordinárias do real. “Para ele, o som de cinema não é a ilusão de uma mimese perfeita de efeitos sonoros; é outro reflexo da múltipla dimensionalidade do quadro de filme” (NOCHIMON, 1997: 36). Não faltam nas trilhas sonoras de Lynch zumbidos, estrondos, palpitações, pulsações, além do recorrente som de ventos, efeitos sonoros típicos e trilha musical, que aprofundam a representação visual nas cenas (NOCHIMON, 1997: 36). Em seu livro David Lynch, Michel Chion faz várias considerações sobre as construções sonoras nos filmes do cineasta. Para ele, a pulsação perpétua que anima este som interior, por meio de rumor de máquinas, nos insere num interior acolhedor constante, mas num continuum curiosamente repleto de descontinuidade, como é possível notar mais claramente em The grandmother e Eraserhead.

No caso de Lynch, a pulsação dos ambientes sonoros não é um fluxo contínuo que transborde os cortes. Ao contrário, está perpetuamente presa e retomada pelas tesouras separadoras-unificadoras em frequente sincronização com o corte visual. O autor a controla, como se fosse um fluxo que interrompe para distribuí-lo e regulá-lo aos borbotões”. (CHION, 2003: 70)

Chion afirma que Lynch evita misturar as noções de criação e sonho, já que os sonhos não se controlam, o que, para o autor, em essência, significa dizer que seu fluxo não pode ser pego e cortado. Considerando-se a base onírica da influência surrealista dos trabalhos de Lynch, o diretor cria um paradoxal estilo de montagem de som em que a continuidade se arquiteta por meio da interrupção. Chion distingue a edição de som de Godard, que aplicava os cortes da mesma maneira que à imagem ou ao texto buscando fazê-lo escapar de sua especificidade temporal, da edição dos filmes de Lynch. Para este, ele observa que “as interrupções de som abruptas e frequentemente audazes, têm o sentido inverso, de uma inscrição no tempo, de uma criação do tempo por parte do diretor, que reproduz o gesto do demiurgo” (CHION, 2003: 70-71). As entrevistas que Chion realizou com Lynch para o livro relevam aspectos importantes de como ele entende a função do som em seus filmes.

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“Sempre há de se escutar o que se passa na vida de todos os dias” (LYNHC, Apud CHION, 2003: 40). Lynch fala a respeito das ideias que ele tenta traduzir pelos meios cinematográficos. Ideias que, para Chion, são de natureza concreta, não verbais, nem abstratas.

Às ideias basta, de alguma maneira, que possam nadar. Não tem nada a ver com a gente que vai julgá-las. Não tem que se preocupar com elas. Não há mais que sentimentos e você sabe intuitivamente que a coisa caminha. E pode sair algo bom se você se mantiver nesse nível e deixar as ideias nadar livremente em um rincão de onde possa pescá-las e tira-las da água (...). Não tem que se preocupar em expressá-las com palavras, o que faz falta é traduzi-las em linguagem cinematográfica. Traduzi-las em um “plop” da banda sonora e em um plano de uma sequência. Encontrar o sentimento que corresponde à ideia que se teve. O roteiro escrito chega a matar muitos filmes que poderiam ter sido abstratos ou diferentes. (CHION, 2003: 178)

Lynch fala num desejo muito forte de casar imagem e som por meio do cinema, desejo que, quando realizado, lhe dá um calafrio. E que esse calafrio é a única certeza que ele tem sobre o que busca (CHION, 2033: 179). Chion reitera a importância da escuta e da própria orelha como elementos recorrentes na obra do diretor. O destaque dado à imagem da orelha faz com que seus filmes mesmo que fossem mudos e não abordassem de maneira alguma a escuta, ainda assim seriam obras auditivas. É porque o som está na origem de algumas imagens, ele as direciona, induz. São planos que frequentemente se formam com imagens que o que é narrado requer, mesmo implicitamente. É o equivalente visual de uma palavra concreta, o que Chion chama de os planos-palavra de Lynch. “Outras vezes, seu caráter estranho e algo difuso, deformado, evoca as representações confusas que desencadeiam na imaginação a evocação verbal ou acústica de algo que nunca se viu verdadeiramente” (CHION, 2003: 276). Se Lynch representa uma ruptura de certas estratégias estéticas e mesmo narrativas do cinema, criando novas premissas na abordagem de seus temas, ele serviu para mostrar um caminho, que resgatava procedimentos anteriores, como os das vanguardas dos anos 20, e até hoje não influenciou de maneira notável muitos cineastas. Suas rupturas todas têm precedentes, mas sua receita, especialmente se considerada sua época,

99 seguem como um caso de exceção – pelo menos no âmbito dos Estados Unidos – condizente com os critérios de autoria defendidos pelos críticos e acadêmicos ligados à teoria do autor. A tese de doutorado de Rogério Ferraraz, O cinema limítrofe de David Lynch, defendida e publicada em 2003, ajuda a entender melhor tais características.

A obra de Lynch é baseada nos contrastes e nas analogias existentes entre ilusão e realidade, sanidade e loucura, interior e exterior, corpo e mente, vida adulta e infantil, elementos naturais e fabricados. Seu cinema não opta por um ou outro polo: encontra-se na difícil e ruidosa área em que as fronteiras se entrecruzam. (FERRARAZ, 2003: 12)

As transgressoras rupturas sonoras e imagéticas em seus filmes, assim como a valorização de uma realidade onírica aproximam o cinema de Lynch do surrealismo. Ele mescla universos distintos no mesmo espaço e tempo, não raro lançando mão da quebra da continuidade temporal. (FERRARAZ, 2003: 14). Lynch trabalha ora com fragmentos de narrativa, ora com fragmentos visuais ou sonoros, seja de maneira isolada ou simultaneamente. (FERRARAZ, 2003: 76). Sua obra procura ir além da realidade aparente, “revelando o que está por baixo, por trás, pelos lados, ainda que essa abertura desenterre aspectos sinistros, desagradáveis e violentos”. (FERRARAZ, 2003: 84) Um dos ambientes mais recorrentes da filmografia de Lynch é a periferia industrial decadente. Ruídos provenientes das fábricas, ou efeitos sonoros e até mesmo notas musicais que se assemelhem a eles, são elementos que Splet usa com frequência em trabalhos como Eraserhead (mais que em qualquer outro), O homem elefante, Veludo azul e Twin Peaks (EUA, 1990- 1991), seriado criado por Lynch em parceria com Mark Frost. Nem sempre o clímax dos filmes de Lynch implica na solução do mistério ou impasse dos acontecimentos apresentados. O clima dos filmes se apoia nesse enigma, sendo que o “fundamental são as contradições e os paradoxos decorrentes do mistério” (FERRARAZ, 2003: 126). Segundo Ferraraz, o cinema de Lynch prioriza a emoção, mas não aquela de apelo fácil e catártico, típica de Hollywood. Ele reconhece “um modelo de criação, ao mesmo tempo racional e intuitivo, que acaba por

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explorar, num mergulho intenso e profundo, mais os estados emocionais do que os processos intelectuais” (FERRARAZ, 2003: 132). Quando surgem as estruturas clássicas de envolvimento emocional do espectador, elas são logo subvertidas para criar mais estranhamento, geralmente pelo exagero ou artificialidade dos detalhes, não raro via contrastes entre som e imagem (FERRARAZ, 2003: 132). “O som, nos filmes de Lynch, também é usado como um elemento fundamental para evidenciar as fissuras da identidade, refletindo-se no descolamento (e no deslocamento) entre o que vemos e o que ouvimos” (FERRARAZ, 2003: 160). Quando Splet cria cenas em que o som não encontra qualquer sinal claro de que parta dos elementos visuais que as compõem, mesmo no espaço extracampo, estabelece um contraponto sonoro, o que ocorre em momentos pontuais dos filmes, mantendo assim essa tensão e colaborando com uma camada adicional de estranhamento. Eis a assincronia de seu trabalho. Chris Rodley compreende a obra de do cineasta de maneira equivalente à de Ferraraz. Ele destaca a percepção do espectador nos filmes do cineasta de uma ausência de regras e convenções que propiciam conforto e, acima deste, orientação (RODLEY, 1997: x), bases da experiência diante do cinema clássico. Trata-se para ele de um processo não só de frequente emprego do absurdo e incongruente, mas de ‘desfamiliarização’ e de um estado entre sonho e despertar (RODLEY, 1997: xi). Exemplos sonoros disso estão nos humanos que emitem sons semelhantes a latidos em The grandmother, na ventania que se houve no quarto fechado de Henry em Eraserhead, nas imagens da mulher gritando sobrepostas às de elefantes enquanto se ouve bate-estacas de fundo em O homem elefante, nas distorções vocais bestiais sem qualquer mudança de fisionomia nas personagens de Duna e nas cenas íntimas de Jeffrey e Dorothy com chama e explosão em Veludo azul. Para Rodley, em vez de buscar entender sonhos por um viés intelectual, Lynch os transforma em experiências sensoriais por meio de estratégias narrativas não lineares nem lógicas, para as quais o sound design de Splet torna-se peça-chave. David Lynch e, especificamente, Veludo azul são frequentemente encontrados nas referências teóricas como exemplos de autor e de obra pós-

101 modernos. Porém, em vez de insistir e redundar no que Lynch e o filme se adéquam à pós-modenidade, é mais interessante a complementaridade oferecida pelo conceito do contemporâneo, que ajuda a compreender o que o trabalho de Splet exemplifica em termos artísticos. Giorgio Agamben esclarece bem esse ponto. A questão temporal abordada pelo autor poderia ter no contraponto sonoro uma forma de aplicabilidade estética da mescla de referências passadas distintas que Lynch adota – e Splet reitera –, para evitar o conforto da narrativa clássica, coesa e de fácil compreensão por agrupar todos seus elementos audiovisuais alinhados em prol da coerência.

Essa não-coincidência, essa discronia, não significa, naturalmente, que contemporâneo seja aquele que vive num outro tempo, um nostálgico que se sente em casa mais na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver. (...) A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, 2009: 59)

Por mais que Agamben trate de questões comportamentais da sociedade atual, trabalhar o som cinematográfico de modo a fazer dele um instrumento para se adicionar complexidade anacrônica à narrativa, dissociando o tempo da imagem do tempo do som, pode ser uma forma de aproximar a obra de Splet com Lynch de um tempo posterior ao da filmografia que ambos realizaram juntos, entre 1970 e 1986. Vale ressaltar que a postura contemporânea independe de momento histórico e, portanto, pode também ser reconhecida em artistas dos anos 1970 a 1990, identificados como pós- modernos, caso de Lynch – e, por influência, Splet também. Embora sem jamais se referir a Splet em momento algum, a análise de Agamben permite destacar como exemplo a durabilidade do impacto do trabalho do sound designer, adiantado para seu tempo, enquanto também atrasado. Um aspecto que Agamben descreve como “limiar inapreensível entre um “ainda não” e um “não mais”” (AGAMBEN, 2009: 67). Mais que a

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estranheza que ainda causa por não ter havido em produções cinematográficas realizadas com estrutura de estúdio sound design semelhante ao de Splet para Lynch desde então, o fenômeno que Agamben aponta ajuda a demonstrar o quanto ainda é atual o que Splet expressou artisticamente em relação ao que, segundo o teórico, se vivencia pela sociedade no que ele identifica como contemporaneidade: um descolamento, uma inadequação parcial do próprio tempo.

2.1.4 Questão do gênero

Lynch trabalha com influências diversas em termos de estilo, forma e tema de diversos momentos. Também se pode reconhecer mistura de elementos de gênero cinematográficos e influências de vanguardas fílmicas em seus filmes. Além do expressionismo alemão, o surrealismo e o filme noir, traços do horror propriamente dito também podem ser reconhecidos na construção de variadas personagens. Ferraraz (2003: 165) afirma que o diretor opera numa zona fronteiriça, inclusive de gêneros. O cineasta mescla soluções ilusionistas, amplamente reconhecidas desde o chamado cinema clássico, como o de estilo naturalista ou realista, e soluções antiilusionistas e de vanguarda, como aquelas inspiradas no surrealismo, em constante tensão. Para se entender melhor o cinema de Lynch, uma aproximação entre ele e as teorias sobre o horror ficcional, assim como preceitos e práticas recorrentes do gênero do horror fílmico, é bastante proveitosa, especialmente pelo viés sobrenatural. Lynch prioriza a criação de atmosferas de dúvida em relação à fluidez e à clareza narrativa. São atmosferas inexplicáveis de um nível considerável de pavor de forças externas desconhecidas, embora mais desconfortantes que necessariamente empolgantes. Seu cinema se apoia muito no estranhamento, mas não em efeitos que causem surpresa e susto na plateia. Isso mantém o cinema de Lynch no universo fantástico, por se apoiar na incerteza, na hesitação de quem só conhece as leis naturais, diante de uma ocorrência aparentemente sobrenatural (TODOROV, 2007: 31). O fantástico, mais especificamente o sobrenatural, é um dos elementos chave do gênero horror literário. Para Tzvetan Todorov, em Introdução à

103 literatura fantástica, esse conceito implica em uma série de condições que levem o leitor a obter uma percepção ambígua dos acontecimentos narrados na trama. Não se trata de um leitor em particular, real, mas sim uma “função de leitor” implícita no texto. Para entender o que seria essa função, outra função implícita mais facilmente reconhecível é a do narrador. A hesitação do leitor é, pois, a primeira condição do fantástico. (TODOROV, 2007: 37) O sobrenatural também aparece em outros tipos de narrativa sem causar estranhamento equivalente nem levar o leitor a questionar os motivos de sua presença, já que não entende o que é apresentado literalmente. É o caso, por exemplo, de animais que falam, aceitos pelo leitor num sentido alegórico, e da poesia, de cujo texto, do “eu poético” que o narra, não se exige representatividade, são apenas palavras em sentido figurado. O acontecimento estranho não basta para o fantástico. O leitor, assim como o herói da trama, só experimenta hesitação ser não ler esses eventos da história de forma poética nem alegórica. (TODOROV, 2007: 38). Outro elemento estrutural e recorrente da obra de Lynch é o duplo (doppelgänger), elemento recorrente do universo do horror literário e, posteriormente cinematográfico. Mais claramente a partir das personagens do seriado de TV Twin Peaks25, mas desde cedo presente em sua obra por meio de suas construções cênicas, inclusive sonoras, por sugerir sentidos pelo menos duplos. Tornou-se até umas das marcas do sound design de Splet para o diretor enquanto função. Para Slavoj Zizek, em Estrada perdida (Lost highway, EUA, 1997), filme posterior à parceria de Lynch e Splet, Lynch decompõe o sentido comum de realidade por meio da fantasia numa relação horizontal, não mais vertical (ZIZEK, 2000: 24). Em sua tese, Ferraraz vê um jogo ambíguo entre o som diegético e extradiegético em Veludo azul, em que um plano de detalhe de besouros num gramado traz tal amplificação do “ruído” que eles produzem que se tem a sensação de um som extradiegético (FERRARAZ, 2003: 51-52). A fragmentação, ele reitera, é um elemento essencial do cinema de Lynch, seja ela de narrativa, de imagem e som ou ambas (FERRARAZ, 2003: 76). Ele

25 Há duplos entre os personagens principais, como Laura Palmer e Maddy Ferguson, primas interpretadas pela mesma atriz (Sheryl Lee), Leland Palmer (Ray Wise) e BOB (Frank Silva), entre outros fundementais para a trama.

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ainda vê nela e na junção de elementos distintos, não raro contraditórios, nos limites do sublime e do grotesco, um perfil surrealista que recupera o que André Breton chamou de beleza convulsiva (FERRARAZ, 2003: 80).

A relação entre o cinema de Lynch e o surrealista está centrada, principalmente, nas questões da beleza convulsiva e das rupturas sonoras e imagéticas, e na valorização da realidade onírica – ou como diria André Breton, da supra- realidade. A obra lynchiana resgata os mistérios do acaso, a valorização do sonho, as imagens transgressoras. Dialogando com o surrealismo, podemos perceber, nos filmes do cineasta, a presença de universos distintos no mesmo espaço e tempo, a quebra da continuidade temporal, a figura indecifrável da mulher, o humor negro, enfim, alguns dos valores que sedimentaram a estética surrealista no cinema. (FERRARAZ, 2003: 14)

Lynch busca revelar em seus filmes o mundo por trás do que os olhos anestesiados pela realidade cotidiana não conseguem perceber, a exemplo de Luis Buñuel e Salvador Dalí. Ele vai fundo na realidade aparente, trazendo à tona o que se esconde por trás, por baixo, dos lados dessa normalidade, mesmo que tal processo gere o desconforto da revelação de aspectos sinistros, desagradáveis e violentos. (FERRARAZ, 2003: 84). O duplo já era recurso marcante no Romantismo literário alemão, nos filmes expressionistas e de horror clássico norte-americano, a materialização de outros aspectos da personalidade do indivíduo na ficção, seja esse outro real, imaginado ou desdobrado em vários personagens na trama que “se completam e, por isso, se enfrentam, já que representam as faces opostas de uma personalidade” (FERRARAZ, 2003: 94). Lynch não faz questão de esclarecer essa relação. “O efeito da dupla personalidade no cinema de Lynch está ligado à presença de espelhos, indicando uma intenção de discutir os limites da identidade” (FERRARAZ, 2003: 96). O cineasta confronta os conceitos de realidade e cópia, materialidade e imaterialidade, corpo e espírito, fatos ou delírios, voyeurismo e exibicionismo, numa atmosfera sinistra, a exemplo do conto O homem da areia, de E. T. A. Hoffmann – que também trata da questão do duplo –, de modo a causar estranhamento e incerteza intelectual no espectador. Este tenta juntar os fragmentos narrativos para completar a história, numa espécie de experiência de coautoria, uma experiência participativa de sentidos e impressões.

105 “O que vale, na arte de Lynch, não é a explicação do que ocorre, do que é visto ou ouvido. Lynch está interessado em criar atmosferas e efeito de estranhamento”, Ferraraz avalia. “Suas imagens labirínticas e seus sons perturbadores causam o pânico da não-compreensão” (FERRARAZ, 2003: 106). Visualmente, isso se traduz na forma recorrente de reflexos no espelho, quando não num duplo encarnado de fato, a exemplo da Alice de Lewis Carrol, que pelo espelho acessa um mundo encantado, oposto ao seu, ou o poeta, que do reflexo do espelho alcança áreas de seu inconsciente em Sangue de um poeta, (Le sang d'un poete, França, 1932), de Jean Cocteau.

Lynch procura retratar a dualidade existencial do homem, explorando a fronteira com animais irracionais. Em várias cenas de seus filmes, é possível encontrar personagens humanos agindo como se fossem outros animais: em The Grandmother, o casal nasce da terra e copula com movimentos e ruídos caninos; em Twin Peaks, os jovens Bobby Briggs (Dana Ashbrook), namorado de Laura Palmer, e Mike (Gary Hershberger) latem para James Hurley, ameaçando-o na prisão, e BOB parece ganhar os contornos do corpo de uma coruja; em Os últimos dias de Laura Palmer, novamente acontece o jogo de imagens entre BOB e a coruja. Como estes, há muitos exemplos. (FERRARAZ, 2003: 108)

Apesar desse aspecto reflexivo, seus filmes também trazem um caráter emocional potencializado quando os sentidos do espectador são aguçados por seus contrapontos e atmosferas de estranhamento. Há sempre um rito de iniciação vivido pelos protagonistas de Lynch, que se estende de forma indireta ao espectador. “Imagens transgressoras, sons perturbadores e montagens incomuns ora agridem ora envolvem o espectador, gerando um incômodo em sua passividade receptiva” (FERRARAZ, 2003: 132). Ainda sobre a questão dos sons perturbadores, em Uncanny bodies, Robert Spadoni analisa o surgimento do gênero do horror fílmico – do período clássico estabelecido em Hollywood, frise-se – logo em seguida ao surgimento do cinema sonoro e o que desde cedo caracterizou o trabalho de som, especialmente os tão característicos efeitos sonoros extra-campo, nos filmes do gênero. Spadoni estipula como marcos iniciais do gênero em Hollywood Drácula (Dracula,1931), dirigido por Tod Bowning, e Frankenstein (1931), de James Whale. Para ele, a transição do cinema para o período

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sonoro funcionou como uma espécie de filtro que levou ao limite todos os outros materiais e forças que confluíram nos primeiros filmes sonoros de horror produzidos por Hollywood (SPADONI, 2007: 4)

Presume-se que o início do gênero diretamente após o surgimento do som guarda implicações principalmente pela forma com que os filmes de horror soam. Já havia cochichos sobre “coisas que batem à noite” e reconhecimentos de que o som era necessário antes de as vitimas serem ouvidas gritando. Tais observações sugerem que o som extra-campo se situa de modo importante no gênero e que os gritos, dentro e fora de campo, representam um tipo especialmente útil de som para os diretores de filme de horror. Batidas não vistas e gritos audíveis – embora ninguém negaria que tais sons são ingredientes do filme de horror como o conhecemos, reconhecer tanto não é o mesmo que identificar a grande influência do surgimento do som na formulação inicial do gênero. Esta influência passou batida talvez porque ela se revela mais na forma visual dos primeiros filmes sonoros de horror do que na forma com que eles soam. (SPADONI, 2007: 2)

Eis aí a primordial base de comparação entre os efeitos sonoros mais tradicionais do cinema de horror e o trabalho de Splet: os sons, frequentemente os efeitos sonoros, ouvidos de alguma origem fora do campo do enquadramento da cena e o fator de apreensão que eles causam por deixarem o espectador em busca de respostas para o que ele não pode confirmar com os olhos, dúvida frequentemente análoga à das personagens dentro do enquadramento, que não conseguem essa mesma confirmação. O som sem imagem correspondente – ou, conforme Chion, as imagens negativas – pode ou não vir de uma ação humana. Pode vir de uma ação desta esfera de existência ou de alguma forma de existência sobrenatural. Pode vir daquele tempo e espaço de ação ou de outros. Esse elemento de incerteza produzido pelo som extra-campo é o principal ponto em comum e elo de ligação entre o trabalho de som típico do gênero e o do sound design de Splet para Lynch. Spadoni acredita na importância de se observar os primeiros anos do cinema sonoro, pela teia de interconexões que se formaram entre como os primeiros filmes sonoros foram recebidos e o surgimento do ciclo clássico do horror (SPADONI, 2007: 5). O autor destaca que durante o período inicial do

107 cinema, um período que abrange os anos de 1895 até por volta de 1910, quando, segundo ele, os espectadores estavam mais conscientes da natureza artificial do cinema do que as plateias estariam posteriormente. Essa consciência ainda tinha um efeito de encobrir percepções daquilo que os filmes apresentavam. Cientes disso, realizadores da época absorviam e tiravam partido dessas percepções alteradas em alguns filmes dessa fase. Para Spadoni, “a recepção funciona como uma lente difusa: qualquer coisa que entre em seu campo ‘sai de foco’ e começa a se parecer com algo mais que não ela mesma” (SPADONI, 2007: 5-6), o que denota clareza de que o que tradicionalmente se estabeleceu como soluções naturalistas e verossimilhantes no cinema são apenas efeitos para, na sua artificialidade, gerarem a impressão de realismo em olhos treinados para tanto.

O pressuposto comum é, como escreve Rudolph Arnheim, que “a presença sentida dos eventos é enormemente ressaltada pelo som das vozes e outros ruídos. Muitos comentários iniciais sobre os filmes sonoros corroboram com essa visão. Entretanto, há evidências que também sugerem que uma contracorrente de sensações corria sob as exclamações de realismo. Particularmente, algo parecia errado com o status da figura humana no filme sonoro. Esta figura podia parecer fantasmagórica – ou misteriosa – uma percepção fundada no retorno à dianteira da consciência do espectador geral da natureza artificial do cinema. (SPADONI, 2007: 6)

Ainda de acordo com o autor, existem impressões que podem servir de gatilho para sensações de mistério, entre as quais momentaneamente perceber um objeto inanimado como vivo e algo vivo como inanimado. Spadoni observa que o aspecto misterioso dos primeiros filmes sonoros funcionou como um “retorno do reprimido”, retomando o aspecto misterioso dos primeiros filmes (SPADONI, 2007: 6). Ainda que temporárias, essas sensações de estranhamento duraram por alguns filmes sonoros. Tais percepções foram sistematicamente assimiladas com efeitos que influenciaram todo o gênero do horror nos dois primeiros filmes do chamado ciclo clássico do horror, Drácula (EUA, 1931), de Tod Browning, e Frankenstein (EUA, 1931), de James Whale. Sucessos de crítica e de público, para Spadoni os dois capturaram “em suas formas as energias da

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recepção do misterioso do primeiro cinema sonoro” e seus monstros, graças às tendências de “lente difusa” da recepção de filmes, ainda evocaram o mistério do recentemente extinto cinema silencioso, as mesmas sensações que precisavam ser dissipadas décadas antes de o cinema se desenvolver até uma forma popular de contar histórias. (SPADONI, 2007: 6-7). Esse aspecto misterioso proporcionado pela banda sonora ganharia um incentivo adicional – quase sempre desprezado, frise-se – quando o que era uma única banda de som passou a ser múltiplas bandas décadas mais tarde, propiciando uma maior sofisticação nas construções de áudio no cinema. Considerando-se todas essas referências, nada melhor que os próprios filmes de Lynch em que Splet atuou como editor de som e sound designer para entender na prática o que elas implicaram em termos de som na sua filmografia. Há diversos aspectos sonoros a destacar na paisagem sonora de cada um deles, como frequentemente são os ambientes detalhadamente criados por Splet. Porém, o intuito das observações a seguir é buscar construções em que a assincronia ou o contraponto se evidenciam, por meio dos sons e imagens negativos definidos por Chion. Cada obra será apresentada por meio de ficha técnica, breve sinopse, referências teóricas, críticas ou históricas disponíveis e a análise fílmica em si.

2.2 The grandmother

Ficha técnica (conforme créditos)

The Grandmother (EUA, 1970) Formato: 16 mm, p&b/cor (parte em animação), mono Duração: 34 min. Produção executiva: American Film Institute & David Lynch Roteiro: David Lynch Fotografia: David Lynch Montagem: sem crédito Música: Tractor

109 Editor de som: Alan R. Splet Elenco: Richard White (o garoto), Dorothy McGinnis (a avó), Virginia Maitland (a mãe), Robert Chadwick (o pai)

Sinopse: Um menino de cerca de 10 anos vive com pais agressivos e abusivos e enfrenta a irritação deles por ele urinar na sua cama enquanto dorme. Ele encontra um saco de sementes e planta uma num monte de terra colocado em cima de uma cama de solteiro. A semente germina e dela cresce uma senhora, que o trata com interesse e afetividade.

2.2.1 Referências teóricas

Foram nove semanas de trabalho intenso, sete dias por semana, cerca de 12 horas por dia. Alguns dos efeitos sonoros do filme vieram de discos com material pré-gravado, mas a maioria foi produzida por Splet e Lynch, com um mero aparelho de edicao de sons de 16 mm e uma mesa de edição pequenina. Entre os objetos que ajudaram a criar sonoridades estavam um apontador de lápis, um desentupiador de pia, uma caixa de plástico esmagada ou um grampeador do tipo pistola. De acordo com Gentry (GENTRY, 1984: 63), a trilha sonora do filme é vista, em termos de estilo, como música concreta, uma orquestra de sons cotidianos intactos, multiplicados ou distorcidos. Ele também considera seu tipo de construção como áudio-expressionismo. Como no caso do assobio da avó.

Queríamos reverberar um apito. O David, na verdade, fez o apito, e não tínhamos qualquer dispositivo de reverberação. Por isso, tomou um pedaço do duto de alumínio do aquecimento que encontramos na loja, e colocamos um alto- falante em uma extremidade e um microfone na outra, sopramos o apito e conseguimos um pouco de reverberação. Não muito, por isso, colocamos de novo, talvez 20 vezes, e ficamos regravando através desta coisa para obter reverberação o suficiente sobre ele, porque não tínhamos um dispositivo de reverberação adequado. (SPLET, Apud GODWIN, 1981: 1)26

26 A entrevista foi realizada em 1981 para o artigo que Kenneth George Godwin estava escrevendo sobre a produção de Eraserhead (publicado na revista Cinefantastique de setembro 1984). A entrevista completa nunca foi publicada em nenhum lugar até Godwin

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Na entrevista, Splet revela que nunca tinha usado um sintetizador para criar efeitos sonoros. Quase todos são sons originais, embora outros como trovões e um riacho murmurante tenham vindo de discos com efeitos sonoros pré-gravados. O filme não conta com nenhum diálogo verbal, apenas sons vocais e outros efeitos sonoros, num caráter que foge da verossimilhança. “Ao fazer isso os efeitos sonoros contribuem para um mundo narrativo que alinha o público com as experiências subjetivas de seu jovem protagonista” (MCGILL, 2008: 199), avalia Amy McGill em sua tese de doutorado para a University of Exeter, The contemporary Hollywood film soundtrack: Professional practices and sonic styles since the 1970s. The grandmother abdica do diálogo como veículo de inteligibilidade narrativa e comunicação intelectual em favor dos sons não-dialógicos celebrados como dispositivos narrativos altamente expressivos e comunicativos.

The grandmother também representa um afastamento da narração sonora clássica através de efeitos sonoros e sua notável rejeição do realismo clássico ou verossimilhança. (...) Em The grandmother, no entanto, efeitos sonoros de Splet mantêm uma conexão ontológica exagerada com os eventos de imagem e objetos que representam. A micção do menino soa como um rio; o som de seus lençóis, que foram criados através da gravação do movimento de um taco de golfe (Rodley 47) assemelham-se às velas de um navio ao vento; em outros lugares, uma tempestade acompanha um regador entornando água e uma semente gigante produz o som do canto dos pássaros. Cada som parece exagerado em seu contexto audiovisual” (MCGILL, 2008: 201-202).

Para McGill, a dublagem não funciona apenas para conferir clareza ao som do filme. Os efeitos sonoros permitem agregar uma gama de efeitos narrativos, tanto em termos abstratos quanto materiais. Para Lynch e Splet ações e objetos ganham um atributo exagerado e irrealista. (MCGILL, 2008: 203-204). O volume mais alto dos sons produz um ambiente assustadoramente surreal e onírico, numa estranheza e intensidade que para a autora sugerem que a motivação psicológica guia as escolhas sonoras, provável sintoma da percepção danificada do menino, sensível diante da sua

colocá-la no seu site há alguns anos. Ela também está disponível em ebook publicado sobre Eraserhead (https://leanpub.com/lynch).

111 situação familiar. As escolhas sonoras de Lynch e Splet parecem destinadas a expressar o estado subjetivo do menino.

2.2.2 Descrição dos efeitos sonoros

Uma imagem de animação com fundo negro e parte inferior bege, separada por cristas de onda estilizadas negras, é apresentada com um som continuo de uma única nota, que parece um aparelho em funcionamento cíclico. Dela brota um tubo também negro, de onde sai o que parecem ser dois lábios carmim ao som de um rápido trotar, por onde é expelido um líquido branco ao som de um efeito sonoro de porta sendo aberta com um rangido. Dos lábios sai um tubo menor ao som de algum mecanismo com roldanas, que rega o tal líquido branco num jato que soa como tal. Do líquido branco é expelido um jato que perfura a terra até a superfície com o que lembra uma figura humana por ter braços e algo que se assemelha a uma cabeça, com um tubo laranja conectado ao tronco. Esse processo soa com um jato de ar. Corte para um homem real filmado em preto e branco, apresentado em stop motion, que sai de terra coberta por folhas caídas, ao som de um jato de ar pequeno e preciso, bem amplificado. Corte para nova sequência de animação equivalente, mas dessa vez sendo expelida uma figura com aparência mais claramente humana – e feminina. As duas figuras baixam os braços e se abraçam duas vezes, a segunda com braços adicionais que brotam delas. Os movimentos soam como jatos de ar. De volta ao stop motion filmado, o homem agora coça mútua e sofregamente uma mulher com vestido de estampa semelhante ao da figura, ao som do que parece um chocalho remixado. Um novo corte leva de volta à animação, onde as duas poças de líquido branco estão conectadas por um tubo negro ao som de uma nota contínua que soa como uma sirene. De cada poça pula uma gota, uma branca e uma vermelha, e juntas elas criam uma figura de forma arredondada branca com centro vermelho irradiando vasos sanguíneos. Corte para o casal filmado. Seus rostos têm um fio fino amarrado na nuca, marcando os cantos da boca, como um corte. Segue o som de sirene. Da figura arredondada branca de animação brota um líquido negro e no

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meio do trajeto pelo qual ele perfura a terra brota uma secreção branca com a foto de menino vestido de terno e gravata borboleta no topo, que alcança a superfície ao som de um jato de ar. Na terra, o menino, agora filmado em stop motion, sai do chão de um gramado com os mesmos sons de chocalho dos adultos e se deita. Os dois adultos ainda se debatem e deles latidos são emitidos. Engatinhando, o homem parte para cima do menino e a mulher se debate sozinha. As imagens animadas dos três personagens se debatem ao som de asas de pássaros e a figura do homem se expande por secreção branca até a do menino. Ao bater nele, ouvimos os pios de uma ave grande. A figura do menino se solta enquanto ouve-se mais asas em voo. Agora em exibição com velocidade normal de filme e em cores, o menino observa um quarto com paredes escuras. Os dois adultos ainda engatinham em preto e branco próximo a plantas num gramado e ouve-se uma espécie de chacoalhar de pequenas pedras. As figuras do homem e da mulher na animação se descolam da secreção branca que lhes serve de base ao som de um jato de ar. Numa sala de paredes negras, a mulher penteia o cabelo e o homem toma café junto a uma mesa com um abajur e com um varal ao fundo. A música de uma nota só produz uma reverberação cíclica. Corta para uma animação se sol nascendo ao som de água corrente e o som continua quando vemos o menino de pijama na cama sentado e olhando debaixo das cobertas. Depois, já de terno, em pé ao lado da cama, ele observa uma mancha laranja no colchão, que ele cobre com o lençol, e sai do quarto. Em seguida, o homem entra, descobre a cama e vê a mancha, ao som de uma nota musical estridente. Quando ele grita o nome do menino, “Mike” ou “Mark”, o tom raivoso e o tratamento do som o deixam parecer o latido ouvido antes. O homem traz o garoto e esfrega sua cara no colchão. Quando cessa a nota estridente, o garoto emite um som que parece o lamento de um pássaro. Na sala, a mãe chama o menino com o mesmo efeito na voz, com um som constante de motor funcionando ao fundo. Ela começa acariciando o garoto, mas logo começa a chacoalhá-lo. Ouve-se uma voz dele lamentando de forma tão distorcida e

113 reverberada, que parece o zunido de um pernilongo, e os chacoalhões soam como se ele fosse um saco de grãos. A mulher passa a esfregar seu rosto com desespero e soa como se continuasse latindo. Um som crescendo chega ao limite com o pio agudo de uma ave grande. Depois em momento de stop motion, o menino sai e a mulher vai ao chão com um som de guizo. No quarto, o menino ouve um pássaro cantar. Ele sobe ao sótão, ouve novamente o canto de ave. O canto se repete enquanto vemos um saco de semente. Ele pega um pouco na mão e chacoalha. O som é de um chocalho de arroz ou areia. O menino acha uma pedra ou ovo e coloca o objeto no travesseiro de uma cama. Traz terra e a derruba sobre a cama, num som fiel ao que seria ouvido. Cava um buraco no monte de terra e esconde a pedra ou ovo. Ouve-se um trovão e chuva e ele rega a terra. Ao fundo, é possível escutar grilos. A terra emite um efeito sonoro de moedor com manivela. Surge um broto que parece uma taça de premiação esportiva. O menino rega mais, ouve-se chuva e, quando para, grilos. Observa e acaricia o tubérculo que fica cada vez maior. Rega mais. A mulher raspa o chão, mas o efeito sonoro produzido soa artificial. O homem grita o nome do menino como antes descrito. Arrasta o garoto de novo para a cama manchada e o som que produz parece papel sendo amassado. Enquanto esfrega a cabeça do menino na mancha, o efeito sonoro é do atrito de dois objetos mais ásperos. A nota contínua aguda soa como um alarme novamente. A cena termina com o som do canto de uma ave enorme, que soa como lamento. Noutra cena, o garoto ouve sons e olha para cima. No sótão ouve o tubérculo produzir uma sonoridade como que a do atrito de fitas sendo puxadas de invólucros ou rugidos animalescos distorcidos, depois também algo como rodinhas derrapando. Misturas curtas de sons próximos a esses seguem enquanto o menino puxa uma mulher idosa de dentro do tubérculo gigante na cama do cômodo, com predomínio do som de derrapagem. Água escorre de dentro do tubérculo, soando como tal. Nunca se ouve os sons claramente reconhecíveis como produzidos na cena. Muitos efeitos sonoros são suprimidos, como o dos passos. O garoto sobe normalmente a escada de madeira rumo ao sótão com um objeto estranho que parece uma flor toda seca e não se ouve qualquer efeito

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sonoro. Ele entrega o objeto à idosa e ambos sorriem. Está formada o que parece ser uma família disfuncional completa, com pai, mãe, filho e avó (a “grandmother” do título). Um som de pedras amontoadas ruindo é ouvido e o tubérculo desmonta por completo na cama. A mulher coloca o garoto à mesa do abajur abarrotada de pratos, garrafas, latas, etc. ao som de máquina em funcionamento repetido ciclicamente. Os adultos comem ao som de um zunido circular como o de um pernilongo. O homem chacoalha o menino, grita seu nome com raiva e a mulher o chama assim também, ambos soando como latidos. O garoto tenta pegar algo e o homem o agarra de súbito, soando como um tapa, chamando seu nome com raiva, ainda como que latindo. A mulher o cutuca ao som de um tipo esganiçado de latido repetido várias vezes. O homem e a mulher repetem seu nome com raiva. Ele se levanta e sai. No sótão em que a idosa dorme, o menino a beija e come frutas ao pé da cama sem produzir qualquer som mantido no filme. Mais tarde, na cadeira de balanço, a avó assobia soando como o canto de um pássaro. O menino acorda, o som de motor funcionando em reverberação circular é retomado. Ao sair do seu quarto, ele é surpreendido pelo chamado/latido de seus pais no corredor, rumo à escada para o sótão. Com uma imagem do menino assustado congelada e um pio de pássaro grande, uma animação faz sair fitas vermelhas de sua boca. Corte para uma figura dele segurando uma corda. Um desenho simbolizando a figura do pai desliza deitado para perto da figura dele, enquanto um capuz negro desliza sobre a cabeça do garoto ao som de uma nota musical estridente. Ele puxa a corda, que num momento de silêncio solta uma lâmina sobre o pescoço da figura do pai. Quando a lâmina triangular decapita a figura do pai, o som é efervescente. Volta a nota estridente. Em seguida, a figura da mãe entre deslizando deitada em cena e, com outra corda, a figura do menino solta uma pedra ovoide sobre ela, que a esmaga. Mesmo som efervescente. A figura do pai e a da mãe, lado a lado, recebem tubos brancos que as infla e as eleva ao som de um jato de ar. Outros tubos brancos as atingem, quebrando-as em pedaços. Volta-se a imagens filmadas no quarto escuro da avó, agora com som de ventania. O menino deita em sua cama. Entre várias cenas entre os dois, ela diz algo ao menino que não se ouve.

115 Na cama, a avó treme nas mãos em imagem acelerada. Ouve-se algo como um motor pequeno trepidante e um ruído semelhante a um engasgo, um canudo sugando o fim de algum líquido num copo ou algum tipo de atrito. Ela começa a assobiar, o menino ouve de seu quarto e sai para acudi-la. O assobio se torna contínuo e uniforme enquanto a avó se debate. O menino sai de cena. Ela se debate em pé com os braços esticados por todo o quarto em stop motion, derrubando móveis. Na sala, o menino tenta fazer com que o pai se mexa para ajudá-la, mas ele está prostrado, apático, enquanto uma nota um tanto aguda dá um tom de tensão à cena, somada ao assobio ao fundo. A mãe ri, o pai chacoalha o garoto e depois também ri. A avó roda ainda mais aceleradamente pelo quarto assobiando e o menino volta em câmera lenta para ajudá-la até que o som cessa com o de uma aparente pequena pancada que ecoa, enquanto vemos o rosto dele com expressão de desistência em câmera lenta. Num campo aberto o garoto passeia sem produzir sons e em preto e branco. A avó está numa cadeira e o observa preocupada. A cabeça dela tomba para trás, a imagem congela. Corte para o menino que grita enquanto se ouve uma nota aguda e tensa. Ele cai para frente e a nota esmaece com ele. O menino volta a seu quarto em silêncio e sem ouvir-se qualquer som tampouco. De repente, ele se vira bruscamente na cama ao som de terra sendo derramada.

2.3 Eraserhead (1977)

Ficha técnica (conforme créditos)

Eraserhead (EUA, 1977) Formato: 35 mm, p&b, mono Duração: 89 min. Produção executiva: American Film Institute Roteiro: David Lynch Fotografia: Frederick Elmes e Herbert Cardwell Montagem: David Lynch

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Música: David Lynch Editor de som: Alan R. Splet Elenco: John Nance (Henry Spencer), Charlotte Stewart (Mary X), Laurel Near (Lady in the Radiator)

Sinopse: Henry Spencer é um trabalhador de uma zona industrial que começa a se relacionar com a jovem Mary X. Pouco depois ela dá à luz um bebê bastante deformado. Abandonado pela namorada, Henry tenta cuidar da criança, que copiosamente, se envolve com sua vizinha e conhece uma cantora com largas bochechas que vive dentro do radiador do aquecimento de seu quarto.

2.3.1 Referências teóricas

Eraserhead é um dos filmes mais comentados e analisados de Lynch por conta de sua trilha sonora. Em sua dissertação de mestrado, A paisagem sonora em Eraserhead, Mariana Telles D’Utra Vaz (2013) aponta como o filme revela o apreço de Lynch pela pluralidade e pela fragmentação. Sons e imagens que não disputam entre si, mas sim se complementam como ferramentas criativas. A trilha de Eraserhead é elemento primordial da ambiência daquele universo fílmico, epecialmente em termos de efeitos sonoros.

Com "Eraserhead", Lynch nos mostra como o som é poderoso. É também digno de nota que Lynch tenha burlado os padrões e surpreendido ao usar um material composicional baseado em ruídos. Enquanto a música implica uma estrutura rítimica e melódica, a trilha do filme é um contínuo sonoro que se espalha ao longo dos 89 minutos da história. Na maioria dos momentos, não há refrão ou qualquer outra referência conhecida, apenas uma persistente camada de sons e ruídos – o que causa, inicialmente, um incômodo e, porteriormente, uma angústia. As parcas músicas – duas no total – são usadas em momentos bastante específicos e, na maioria das vezes, dentro da diegese do filme; não chegando a alterar a sensação de ruído constante gerada pela trilha. (VAZ, 2013: 90)

117 Splet se uniu a Lynch em 1975 para criar efeitos sonoros para Eraserhead num estúdio de garagem, conta Michel Chion em seu livro David Lynch. O equipamento que usavam é um tanto básico, de modo que precisaram usar e explorar ao máximo o potencial de instrumentos tradicionalmente não considerados musicais, como canos, técnica usada pela música concreta francesa. “O filme se banha numa atmosfera sonora ininterrupta, com o fluxo constante de sons caldeiras, vórtex, acordes de órgãos eletrônicos e similares” (CHION, 1995: 38). Para Chion, a grande originalidade do filme reside no emprego de cortes (brutais e instantâneos) em partes sonoras, cortes que coincidem frequentemente com mudanças de plano e têm uma importância assombrosa: são como tensores de imagens, isolam uns planos de outros ao conectá-los e estendem o tempo do plano em relação a suas duas extremidades, que são a dos cortes que os encerram. Esta fase do trabalho, que combinava a montagem de imagem de Lynch e a montagem de som de Splet, durou do verão de 1975 até a primavera de 1976. O fim dos trabalhos foi acelerado para que o filme pudesse ser levado ao Festival de Cannes (CHION, 2003: 62-63)27. McGill destaca que Eraserhead retoma as relações som-imagem desconstrutivas e os motivos sonoros intensamente subjetivos com possibilidades narrativas, ao passo que também explora diálogos, um direcionamento mais tradicionalmente narrativo que já indicava uma assimilação de um elemento essencial da estética dos estúdios de Hollywood. Ainda assim, ela afirma que empregando técnicas semelhantes às de Splet e Murch no início de 1970, Eraserhead continua a desafiar o pressuposto clássico de que o diálogo é o narrador sonoro chefe indiscutível. Diálogos e efeitos sonoros do ambiente dividem a função narrativa no filme, já que a dificuldade de comunicação verbal é evidente entre os personagens. Segundo ela, os sons atmosféricos do filme definem os parâmetros espaciais, criando espaços amplos e cavernosos e ainda opressivos e claustrofóbicos. “Sua qualidade industrial estabelece o tipo de local em que os personagens vivem, ao mostrar que o mundo exterior pós-

27 Em Masters of cinema – David Lynhc, Thierry Jousse conta que o diretor acabou perdendo o painel de seleção em Nova York (JOUSSE, 2010: 13). A estréia seria nessa cidade, no Cinema Village, em 1977.

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apocalíptico desolado invade o espaço doméstico” (MCGILL, 2008: 226). Segundo Yuji Konno, a experiência audiovisual de Eraserhead foi tão intensa que espectadores começaram a inventar explicações como uma suposta cúpula de frequência ultrabaixa na trilha sonora que afetaria o suconsciente e causaria agitação e náusea. Ele aponta uma predileção fetichista de Lynch por sons industriais de baixa frequência (KONNO, 1991: 23). Mas o estranhamento vivenciado por esses espectadores não dava indícios das longas horas e do improviso da produção dos sons do filme. Lynch e Splet projetaram, construíram e penduraram cobertores nas paredes do estúdio para que eles pudessem obter os efeitos mais puros possíveis, lembram Hoberman e Rosenbaum (1991). Um aparelho permitia variar o som ou frequência das notas, mas não a velocidade; eles usaram um equalizador gráfico, reverberador, um conjunto de filtros Little Dipper para esticar certas frequências, aprofundar ou inverter sons e até quinze sons separados eram executados ao mesmo tempo em bobinas separadas. Para a cena na banheira com Henry e sua vizinha, Splet colocou um microfone num garrafão, então colocou uma mangueira soprando ar presa ao gargalo, enquanto Lynch movia a garrafa. O resultado ficou útil e onírico, o melhor som etéreo, para o diretor. Infelizmente, centenas de efeitos como esse jamais foram usados (HOBERMAN, ROSENBAUM, 1991: 235) Para Thierry Jousse, o filme tem um poder cósmico ancorado na realidade doméstica, num cenário que beira o fantástico assombrado por sons de fábricas e máquinas, tudo altamente estilizado e evocando o mundo de Franz Kafka na literatura (JOUSSE, 2010: 13-15). Uma bizarrice que adentra o universo do horror, embora dosada com o humor típico de Lynch. A trilha sonora se desvincula do realismo e a atmosfera é de uma ansiedade silenciosa e sorrateira. Para o autor, Eraserhead se organiza mais por mudanças de narrativa numa sequência de cenas cada vez mais traumáticas, sem começo nem fim claros. A sensação de opressão interna do filme é intensificada com a trilha sonora de sons intermitentes como ventos soprando, trens distantes passando e várias distorções da fala.

2.3.2 Descrição dos efeitos sonoros

O filme começa com a visão do que supostamente é um planeta no

119 espaço sideral e ela logo se sobrepõe o rosto de Henry, que desliza a partir da esquerda, de baixo para cima com seu olhar aflito. Ouve-se o que parece ser a corrente de ar por um tubo de ventilação. O rosto sai de quadro e o som se intensifica conforme o planeta se aproxima da câmera. O som se mantém enquanto vemos um traveling de detalhes do tal planeta e a câmera entra por um grande buraco num telhado. Um homem com deformações na pele olha através de uma janela e vemos em montagem paralela o rosto de Henry assustado, depois sobreposto à imagem de uma espécie de verme. O homem com as deformações na pele puxa uma alavanca com força e a imagem do verme sai de campo, deixando apenas o plano próximo de Henry. O homem puxa outra alavanca e vemos o que parece ser um buraco iluminado na terra. O verme cai sobre ele e vemos que era uma poça d’água. Ouvimos o barulho do mergulho até um fade out. Vemos um buraco iluminado no escuro e a câmera mergulha nele com o som mais ameno. Vemos Henry ao ar livre num chão de terra entrar num grande prédio de tijolos. O som de fluxo de ar reinicia e conforme ele anda a ele se soma uma música longínqua e um apito de trem. O cenário de uma área industrial e conforme a personagem caminha, ouvimos outros sons de maquinário em off, coerentes com a diegese. Quando ele entra num prédio por um acesso em que a parte superior tem forma de arco o som se restringe a um fluxo mais discreto de ar no hall de entrada, onde ele pega sua correspondência. Ao tocar a campainha, o que se abre é o elevador, que demora a fechar. O efeito sonoro de seu funcionamento é realista, mas em seu interior o personagem é envolto novamente por sons industriais. O fluxo de ar continua conforme ele conversa brevemente com uma vizinha. Em seu apartamento, Henry tem como fundo um chiado equivalente a uma torneira ou tubulação de água corrente. Esse som é intensificado em volume quando ele coloca suas meias no radiador (aquecedor). Vemos que o chão em que o radiador se apoia se encontra envolto em grama. Quando Henry se levanta para abrir uma gaveta de um gaveteiro com um monte de grama no topo, o som se reduz bastante. Ele pega a foto rasgada de Mary. Vemos a moça olhando pela janela de vidro de uma porta com sons de maquinário ao fundo. Henry caminha pela zona industrial com uma música

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distante e sons industriais ao fundo, ouve-se latidos distantes. Ele chega à casa de Mary, onde se ouve sons que se assemelham a aves comendo, mas depois se vê que se trata de uma cadela amamentando vários filhotes na sala. Há um rumor de máquina funcionando o tempo todo. Quando o pai entra na sala de jantar, vê-se um cano negro no meio da sala, de onde parece vir o som de fluxo que se ouve. O rumor fica mais discreto conforme a mãe de Mary prepara o jantar. Durante o jantar, quando a mãe de Mary chama Henry para conversar, um zunido e um som de pipoco acompanham a luz de uma luminária até esta se queimar e apagar. Na cozinha, com a velha fumando há um leve som de fluxo de ar sonoro de fundo. Vemos um velho gaveteiro próximo à cadela e sons industriais se intensificam até a câmera chegar à janela. Na sala de Henry, Mary cuida do bebê, que mais parece um filhote de dinossauro, mas produz sons muito semelhantes aos de um bebê humano. Esperando o elevador, Henry está envolto por zumbidos industriais. Mary e o bebê continuam na sala e ao fundo há o eco de música distante. Na rua, Henry pega uma larva na mão enquanto os sons industriais procedem. No corredor do andar, estes seguem em volume diferente. Henry deita de bruços na cama, observa o radiador. O volume de som deste se eleva. Uma luz na escuridão vista pela janela traz um som de fricção que vem e vai com ela. Com Mary deitada na cama e Henry sentado próximo dela ouve-se fluxo de ar acelerado e outros sons industriais, talvez até chuva. A luz que vem e vai da janela reaparece e o som que a acompanha parece até um trovão. O bebê choraminga repetidamente. No corredor do andar a vizinha caminha com o som de vento ao fundo. Henry medica o bebê e este, com uma nota grave musical, começa a chorar mais forte, com deformações da pele. A nota musical ecoa enquanto Henry o observa. Ele faz uma efusão para o bebê e ouve-se vento. Quando ele abre a caixa de madeira feita para se colocar a imagem de um santo, a nota sonora que ecoa é grave. Enquanto os dois tentam dormir a corrente de ar continua audível. Do radiador, com muito som de fluxo de ar ou água, chega-se a um palco em que a mulher do radiador dança e mata larvas que caíram. Esta sai de cena com o som do vento aumentando de volume. Mary coça os olhos na cama com um efeito sonoro exagerado de esfregação.

121 Sob as cobertas, Henry encontra larvas grandes que joga longe, produzindo um som como uma batida de bateria. Uma pequena larva foge. Henry depois aparece sozinho por um buraco na parede com som de gás ou água fluindo. Ouve batidas, vai atender, é a vizinha. Ela entra, fecha a porta. Os dois acabam se beijando numa espécie de caldeirão ou buraco com um líquido leitoso enquanto um zunido industrial e uma nota musical vão ganhando volume até um plano de detalhe mostrar o líquido se esvaindo, encerrar aquele som e dar início ao de uma ventania. Corte para a mulher do radiador que canta everything is fine. Ao fim da música, Henry sobe ao palco com forte som de ventania ao fundo. Cada vez que ele toca na moça, uma nota musical distorcida leva a um fade out branco. A moça sai de cena e entra uma versão grande da planta de Henry. Numa espécie de camarote, ele gira a barra do parapeito e tem sua cabeça lançada ao chão do palco quadriculado, sem parar de girar a barra. Um líquido escuro jorra da planta. O choro do bebê é ouvido com reverberação forte de eco e aí vemos sua cabeça brotar do pescoço de Henry. O choro se intensifica em duração e volume. A cabeça de Henry afunda na poça do líquido da planta com um som de chicotada. Na área industrial externa por onde Henry já havia andado sua cabeça cai com o som de água de um balde que se arremessa longe. Ao fim de uma sequência numa fábrica de lápis, ouve-se uma batida e corta-se para diversos elementos brilhantes ao vento. Quando Henry acorda o som de ventania prossegue. A ver o bebê balbuciar sons desconexos, ele se deita de novo e ouve uma música distante. Ele abre a porta e, com uma nota musical aguda e contínua ao fundo, vê a vizinha com outro homem. Num close dela, aquela nota é trocada por outra mais grave e a imagem de Henry com a cabeça do bebê substitui a dele. Henry corta as ataduras que envolvem o corpo do bebê e mostra-se os órgãos internos. Henry corta um deles no meio do peito do bebê. Por entre os órgãos do bebê brota uma pasta branca espessa, com som de água de torneira corrente. A cabeça do bebê fica enorme. Planos próximos de uma lâmpada com o zunido musical no limite e um som de rajada de vento faz a lâmpada se apagar. Uma esfera que lembra o planeta no início do filme estoura, abrindo um

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grande buraco em sua crosta. Um traveling em direção ao buraco com som de vento longínquo e um corte para o homem da pele deformada gerando faíscas e sons de fricção com as alavancas à sua frente. Corte para branco pleno e um som semelhante ao de uma nota de coral esticada. Numa névoa, Henry e a mulher do radiador se abraçam.

2.4 O homem elefante (1980)

Ficha técnica (conforme créditos)

O homem elefante (The elephant man, EUA/Reino Unido, 1980) Formato: 35 mm, p&b, Panavision Dolby Stereo Duração: 124 min. Produção executiva: Stuart Cornfeld, para a companhia Brooksfilms Roteiro: David Lynch, Christopher de Vore & Eric Bergren, baseado em The Elephant Man and Other Reminiscences, de Frederick Treves, e em The Elephant Man: A Study in Human Dignity, de Ashley Montagu Fotografia: Freddie Francis Montagem: Anne V. Coates Música: John Morris Sound designer: Alan Splet Elenco: Anthony Hopkins (Frederick Treves), John Hurt (John Merrick), Anne Bancroft (Madge Kendal), John Gielgud (Carr Gomm)

Sinopse: John Merrick é um homem severamente deformado na Londres vitoriana, usado como um escravo em shows de horrores. Descoberto e resgatado por um médico, Frederick Treves, ele passa a revelar sua inteligência, seus bons modos e sensibilidade para a alta sociedade e a nobreza local, despertando a ira do homem que antes o aprisionava.

123 2.4.1 Referências teóricas

O filme é a primeira produção de Lynch com estrutura de estúdio, realizada a convite de Mel Brooks28. Há paralelos claros com o universo prévio dos filmes de Lynch, como a questão da deformidade física, a inadequação com o círculo social, a fotografia comparável à do expressionismo alemão, mas a estrutura narrativa é clara e linear e o filme se apoia muito mais nos diálogos para ter sua história contada. Entretanto, seus aspectos sonoros mais atípicos em relação ao uso clássico do som, reminiscências da filmografia anterior de Lynch com Splet, não costumam ser abordados. São as cenas com elefantes reais, na abertura e na segunda parte do filme. Martha P. Nochimson e Michel Chion são exceções que deram destaque a esse aspecto do filme. Conforme Nochimson:

A abertura do O home elefante é um meio de dar ao espectador um ponto de vista real, no sentido lynchiano, a partir do qual experimentar a reduditividade da lógica racional de Treves. A imagem inicial do filme é um close-up extremo, misterioso, do terço superior da face de uma mulher de olhos escuros (Phoebe Nicholls), exatamente o que um bebê novo vê do rosto de sua mãe. Nesta imagem de abertura, que impregna o público com os mistérios principais de maternidade, origens e nascimento, o conteúdo narrativo existe, mas como mais um elemento numa composição que também é feita de luz e som. Só mais tarde a narrativa vai se tornar o elemento dominante que, geralmente, é em filmes de Hollywood. Em outras palavras, o contato inicial entre o espectador e O homem elefante mapeia uma relação heterogêneo de narrativa. O filme começa como uma textura enigmática, porosa, materna na qual a narrativa masculina vai se intrometer como uma representação menor, mais racional, mas, em última análise, preocupante. (NOCHIMSON, 1999: 137)

Ainda que sem as mesmas oportunidades de fantasia de Eraserhead, Lynch e Splet aproveitaram os elementos do cenário para apresentar os sons maçantes de bate-estaca, o silvo e os assobios produzidos pelo vapor das

28 Ator, diretor, escritor e produtor americano mais conhecido por suas comédias. Entre os filmes que escreveu, dirigiu e em que atuou estão Primavera para Hitler (The producers, EUA, 1967), A última loucura de Mel Brooks (Silent movie, EUA, 1976), Alta ansiedade (High anxiety, EUA, 1977), A história do mundo - Parte I (History of the world: Part I, EUA, 1981) e S.O.S. - Tem um louco solto no espaço (Spaceballs, EUA, 1987)

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indústrias na Londres do século XIX e até mesmo “o som de um vento suave de proporções cósmicas” (CHION, 1995: 51-52)29, de acordo com Chion. “Estes sons são sinalizados para a orelha do espectador pelo dispositivo já aplicado em Eraserhead de cortar o som precisamente quando os planos mudam” (CHION, 1995: 52). Em algumas cenas, nota Chion, um sopro cósmico abstrato pode ser ouvido mesmo que o ambiente em cena não o exija em termos de verossimilhança. Para o autor, esse sopro é sempre executado num registro preciso de quando a voz do mundo fala aos nossos ouvidos. Ele exemplifica com a cena em que Treves deixa o hospital para ver a exposição do homem elefante ou quando, insone, ele questiona sua própria moralidade. Chion ainda destaca a respiração sôfrega, aterrorizada e asmática de Merrick, antes mesmo de seu rosto ser mostrado, como num continuum entre os sons das máquinas e os de seu corpo.

2.4.2 Descrição dos efeitos sonoros

Vemos o retrato do rosto de uma mulher jovem, entre 30 e 40 anos, preto e branco. A música ao fundo mescla melodia de ninar com guizos que a tornam o clima da cena misterioso, apreensivo. De um plano de detalhe inicial dos olhos chegamos à boca na imagem e depois um plano aberto registra um porta-retratos inteiro em que uma foto semelhante de outra mulher se encontra. Uma foto que parece bem antiga. Em fusão, vemos o rosto preocupado de uma outra mulher de cabelos negros e presos em um coque, filmada em preto e branco imóvel. Conforme a câmera fecha em seus olhos a música vai saindo e entra um som de bate- estaca. Fade out. O som continua até vermos elefantes caminhando num ambiente escuro, imagem logo sobreposta à do rosto da última mulher. Uma nota musical medianamente aguda acrescenta tensão e a imagem é congelada.

29 Mesmo livro David Lynch de Chion, aqui na versão publicada em 1995 pela BFI Publishing. O levantamento bibliográfico realizado ao longo dos últimos anos, bem antes do início do período de mestrado, implicou em dificuldades de acesso ao mesmo exemplar de livros anteriormente consultados em bibliotecas.

125 Ocorre um fade out e depois os elefantes caminham em direção à câmera. Um novo fade out. O plano enquadra a trompa de um dos animais descendo até bater em algo tão escuro e tão rapidamente, que não é possível reconhecer claramente o que foi atingido. Os sons ouvidos são os rugidos dos animais ao fundo. A mulher cai no chão em câmera lenta gritando e se debatendo desesperadamente, enquanto só os rugidos e o bate-estaca são ouvidos. Cortes para os animais agitados em stop motion intercalados com o rosto dela virando de lado a lado aos gritos mudos. Silêncio. Uma fumaça branca surge em um fundo negro com o choro de um bebê ao fundo. Bem adiante no filme, enquanto serve café a dois personagens e fala de sua mãe, John Merrick, o personagem que dá título ao filme diz que ela era tão bonita enquanto a imagem é cortada para mais uma vez a câmera mostrar os olhos da foto de uma das mulheres no início do filme, com a mesma música de ninar em ritmo mais lento, por um breve momento. John se apresenta no que parece ser um sono agitado ou choro. A câmera se aproxima de seu capuz e entra pelo escuro do buraco do olho. Sons cíclicos de maquinário e jatos de ar acompanham um traveling para frente de canos no teto. O ambiente é de repente sobreposto à imagem da mulher se debatendo ao som de rugidos de elefantes e bate-estaca, como no início do filme. Numa panorâmica para a esquerda a câmera mostra um grupo de quatro homens que, em dupla, move máquinas na horizontal, produzindo o som do bate-estaca. Vemos outras peças do maquinário se movendo em meio a fumaça. Na escuridão ouvimos só a respiração ofegante de Merrick até ela ser interrompida por um susto. Um homem se aproxima com um espelho ao lado de outros, a imagem do protagonista se reflete nele. Do olho de Merrick sai uma lágrima. Vemos planos de detalhe de um elefante enquanto ouve-se jatos difusos de ar. Merrick emite um rugido como o dos elefantes já ouvidos. Cortes para um pontapé e depois nuvens carregadas se movendo com o vento. No final do filme, uma imagem do espaço sideral traz estrelas que passam rapidamente enquanto se ouve uma voice off feminina. A imagem da mulher do começo do filme ressurge para dizer que nada morre.

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2.5 Duna (1984)

Ficha técnica (conforme créditos)

Duna (Dune, EUA, 1984) Formato: 70 mm, cor, Technicolor Todd-AO Dolby Stereo Duração: 137 min. Produção executiva: Raffaella de Laurentiis, para as companhias Dino de Laurentiis Productions e Universal Pictures Roteiro: David Lynch, baseado no romance de Frank HerbertMontagu Fotografia: Freddie Francis Montagem: Antony Gibbs Música: Toto, Brian Eno, Daniel Lanois, Roger Eno & Marty Paich Sound designer: Alan Splet Elenco: Kyle MacLachlan (Paul Atreides), Francesca Annis (Lady Jessica), Sting (Feyd Rautha), Dean Stockwell (Dr. Wellington Yueh), Max Von Sydon (Dr. Kynes), Jack Nance (Nefud)

Sinopse: Num futuro distante, em 10190 D.C., um duque e sua família são enviados pelo imperador a um planeta de areia, Arrakis, de onde vem uma especiaria que é essencial para as viagens interestelares. A decisão, entretanto, visa destruir o duque e sua família, mas seu filho escapa e se une a um grupo rebelde para vingar a morte do pai e impedir os desmandos do imperador.

2.5.1 Referências teóricas

Uma entrevista de Splet para Ric Gentry, publicada na edição de dezembro de 1984 da revista American Cinematographer é um instrumento detalhada do trabalho do sound designer para o filme e para Lynch em geral. Nesse filme, ele e Lynch tiveram pouco contato presencial. O filme foi rodado

127 nos Churubusco Studios na Cidade do México. Splet ficou na empresa Fantasy Sound em Berkeley, Califórnia, perto de casa, trabalhando com sons gravados por ele e sua esposa Anne Kroeber, na Bay Area, região que compreende São Francisco e arredores, no norte daquele estado. Muito antes do primeiro fotograma imprimir qualquer imagem do filme. Quase nada sonoro além das vozes no set foi aproveitado e 80% dos efeitos sonoros foram produzidos para Duna, alguns vieram de filmes anteriores de Splet. Cerca de 2/3 dos sons antes dele ver a primeira imagem do filme. Splet dividiu seus sons em três categorias gerais, ou ambientes: Caladan, lar dos Atreides, Geidi Prime, de onde vinham os Harkonnens, e Arrakis, o planeta também conhecido como Duna. Na época, a audioteca pessoal de Splet já contava com bem mais de 200 mil sons em mais de 2000 rolos, boa parte gravada em 35 mm nos seus tempos de AFI, todos catalogados. "Usei alguns sons de Os lobos nunca choram neste filme, usei alguns de O corcel negro. Mas você nunca encontraria. Eles já foram alterados para ser algo completamente diferente" (SPLET, apud GENTRY, 1984: 64), Splet contou a Gentry. Os mundos imaginários de Duna não tinham precedentes, o que demandou muita gravação original de sons. "Pelo menos com Os lobos nunca choram você tinha referências tangíveis, como os lobos e os filhotes de lobos” (SPLET, APUD GENTRY, 1984: 64). Kroeber saiu em busca de sonoridades como vapor pesado e petróleo fluindo por tubos. Visitando a companhia petroleira Chevron, ela passava por um tanque de óleo de 50 pés em que funcionários trabalhavam e algo que bateu nele gerando um som que a interessou. Munida de microfones, pediu a eles que batessem no tanque com ferramentas de metal, o que gerou os efeitos usados depois nas principais cenas de batalha. O som de um cabo que rangia, com velocidade reduzida seis ou oito vezes, é ouvido nos escudos de corpo inteiro dos duelos no palácio de Arrakis, combinado a vários elementos diferentes. De acordo com Gentry:

Splet é muito consciente de que nesta fase de sua obra, alterando e distorcendo, ele é engolido por um mundo alucinatório de sua própria criação. "Oh, com certeza", diz ele. "Mas é interessante. Uma das coisas de que eu gosto é

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trabalhar com sons naturais e, em seguida, alterá-los, ao invés de sintetizar coisas eletronicamente. É que você tem o pé na realidade. É uma espécie de gancho. Isso é apenas o meu sentimento pessoal. Mesmo se você alterar totalmente o som, ainda é proveniente de algo que é natural". A Roto- Rooter, uma ventoinha elétrica, uma britadeira, ou mesmo o som de rodas de carro sobre a estrada começam a parecer cheios de significado, portentosos, possivelmente musicais. O mundo em volta depois do filme parece muito mais vivo, muito diferente do que a maneira como o deixou. Se uma das ambições de arte é expandir nossa apreciação dos fenômenos comuns, então as faixas de Splet, que atuam sobre o corpo e os nervos tão bem quanto nos ouvidos, são exemplos mais exigentes, mas poderosos do que sons e imagens em movimento podem efetuar. (GENTRY, 1984: 66)

Splet também tirou proveito dos vários equalizadores que tinha à disposição. Para os vermes gigantes na areia, Splet agrupou os sons de quatro animais diferentes: um cavalo, um babuíno, um puma e um porco, que soam maiores ao ter a velocidade de seus sons reduzida. Trabalhando na mesa de 8 faixas, ele construía efeitos que em média, por cena, envolviam 25 sons sobrepostos. Houve vezes em que mais de 60 faixas eram mixadas de uma só vez e em muitas ocasiões ele precisou recorrer à uma mesa de mixagem adicional. Considerando-se os trabalhos de sobreposições, por vezes, até 200 trilhas percorriam a mesa de mixagem ao mesmo tempo. Amy McGill nota que, apesar de toda a magnitude e a sofisticação do trabalho, os efeitos sonoros de Splet demonstram desvios significativos em relação a The grandmother e Eraserhead em termos de verossimilhança, assim como O homem elefante já indicava. Saíram os efeitos perceptivalmente artificiais em favor de relações audiovisuais da duna apresentadas como "naturais", com cada som disposto de maneira crível em relação à imagem da qual ele supostamente emana. Essa representação transparente coloca Duna em estreita proximidade com a narração clássica, o que não surpreende para um blockbuster caro lançado por um grande estúdio de Hollywood – em que Lynch não teve direito à edição definitiva (MCGILL, 2008: 239). Dessa forma, os traços de autoria do cineasta no filme ficam diluídos por conta de determinações dos produtores.

129 2.5.2 Descrição dos efeitos sonoros

Uma das características mais recorrente em Duna são os pensamentos ouvidos, como que em off. Fica claro que são pensamentos sincrônicos à imagem, portanto não serão considerados aqui como contraponto. O trabalho de distorção vocal começa com o navegador da Liga, a criatura que chega à nave numa espécie de vagão de trem com janelas dianteiras que mais parecem uma vitrine. Sua voz soa digitalizada, metalizada, com eco. Mesmo antes de seu aparecimento, o soldado que o anuncia fala num microfone com sons que parecem grunhidos traduzidos pelo microfone. Quando Gurney e Paul praticam luta com os escudos retangulares espelhados, as vozes soam distantes e metalizadas, além do efeito sonoro semelhante a estática durante todos seus movimentos na prática. Quando a Reverenda Mãe Gaius Helen Mohiam faz o desafio da mão com Paul, sua voz ganha um tom ameaçador de distorção e reverberação eletrônica em alguns momentos de seu diálogo. Embora sua voz seja acentuadamente alterada, seu aspecto físico não muda em nada. A voz distorcida ocupa toda a sonoridade da cena, reverberando pelo ambiente inteiro. Paul toma uma poção, um pequeno cilindro sólido e, enquanto se pergunta o que ela está fazendo a ele, começam sobreposições de imagens de seu rosto, o cômodo, depois a imagem é rasgada pela da Reverenda e chamas ao vento. O ruído é um zunido ambiente que lembra o de grilos. Outro rasgo leva à imagem de gotas caindo n’água. Corte para a Segunda Lua, depois para a palma de uma mão, logo interrompida pela frase “o adormecido deve acordar”. Paul e sua mãe, Jessica, repetem o mesmo efeito de distorção vocal da Reverenda quando estão amordaçados juntos, quando ela hipnotiza o homem que os guarda para matar seu companheiro de vigília e desamarrar Paul. Ao ver a Segunda Lua, ele tem uma visão em que, em meio a voices over de pensamento, unem imagens sequencialmente em sobreposição como a do navegador da Liga, o deserto, Vladimir Harkonnen, Feyd Rautha, Jessica, pingos n’água, depois um bebê em gestação com um efeito sonoro crescendo de forma tensa ao fundo e uma palma de mão aberta. No palácio

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do Imperador Shaddam IV, o soldado do navegador da Liga volta a falar no microfone que traduz seus grunhidos. Quando Chani dá um líquido verde a Paul ferido, ele adormece e uma sequência de imagens com voice overs inclui novamente os pingos n’água, o verme monstruoso do deserto, o rosto de Paul berrando e depois a mesma imagem com uma nota musical aguda executada continuamente de modo a exprimir aflição. A íris de um olho, o verme novamente, depois cenas com diálogos sincrônicos. Uma imagem que parece o reflexo de estrelas uma superfície de vidro sobreposta a ondas espiraladas de luz e um som de vento distante se sobrepõem à imagem de Paul deitado – ele diz “viajar sem se mover”, até ele despertar com uma música extra-diegética suave. Quando Alia entra no palácio, ela logo tem sua voz infantil substituída pela distorção rouca, a exemplo da Reverenda, sua mãe Jessica e seu irmão Paul anteriormente. Mais tarde, numa discussão entre Paul e a Reverenda, um grito de ameaça dele ecoa artificialmente por todo o ambiente. Quando Paul mata Feyd Rautha, seu grito tem efeito semelhante.

2.6 Ecos da parceria

Da filmografia de Splet registrada no portal IMDb, há poucos exemplos do tipo de contraponto sonoro evidente tão presente em The grandmother, que aparece em pontos específicos de O homem elefante – e de Veludo azul, como ainda veremos. Tampouco há sons ambientes em clara dissonância com o cenário, como os ventos externos nos cômodos fechados de Eraserhead ou vozes distorcidas de surpresa ouvidas em Duna. Há obras em que os efeitos sonoros se destacam narrativamente e valem tanto quanto música e diálogos, verdadeiros personagens, caso dos filmes dirigidos por Carroll Ballard. Mas muito da filmografia de Splet sem Lynch torna seu trabalho muito mais alinhado às práticas clássicas de uso de som, com efeitos sonoros apenas numa linha auxiliar e discreta. De qualquer forma, vale destacar alguns aspectos que se assemelham ao trabalho do sound designer com Lynch em filmes de outros diretores. Na lista do portal, o primeiro trabalho a constar após The grandmother é Young

131 Goodman Brown (EUA, 1972) curta-metragem de horror dirigido por Donald Fox. Os sons da floresta causam um estranhamento que lembra em certa medida os sons ambientes de The grandmother. Um suposto canto de pássaro lembra muito o som de uma porta rangendo ao abrir ou fechar. Há um momento em que varia a reverberação da voz de um personagem enquanto ele cruza a floresta. Há também um trecho longo de efeitos tanto visuais quanto sonoros, que não qualificam como contraponto, mas já trazem sonoridades que se tornariam típicas de Splet, como vento e fogo em reverberações variadas. A costa do mosquito, primeiro dos dois filmes em que Splet trabalhou com Peter Weir, tem momentos que remetem aos filmes de Lynch. Quando a máquina Fat Boy explode, além de todos os sons envolvidos em seu funcionamento e das várias explosões, um breve close-up em câmera lenta de Allie (Harrison Ford) gritando omite sua voz, enquanto sons distorcidos em continuidade com os efeitos usados para a explosão a substituem, solução que lembra os gritos da mulher na abertura de O homem elefante e o de Dorothy Vallens (Isabella Rossellini) em Veludo azul, como veremos. Logo depois labaredas surgem em câmera lenta também, ao som de ventanias. Há breves momentos de filmes com narrativa bastante clássica em que se pode reconhecer uma pitada do trabalho de Splet para Lynch. Um exemplo é Henry & June - Delírios Eróticos, de Philip Kaufman, em que Anais (Maria de Medeiros) diz "ele tem alguém que o leva à dor e ao caos", frase seguida de um plano de detalhe de uma vela em que o efeito sonoro isolado lembra as cenas equivalentes de Veludo azul. Em Viva! A babá morreu (Don't tell mom the babysitter's dead, EUA, 1991), de Stephen Herek, a sequência de abertura em animação propicia sons e vozes distorcidas para um efeito cômico, ainda que plenamente diegético. De qualquer modo, o filme que mais deixa claras suas influências de Splet dirigido por Lynch é O último duelo (By the sword, EUA, 1991), de Jeremy Paul Kagan. O drama passado no universo da esgrima já começa com sons de vento, que logo são seguidos por uma luta de espadas em câmera lenta – e com sons dilatados no tempo – assistida por um menino cujo grito se funde à freada do trem de metrô da cena que segue após o corte. Numa cena de luta sonhada por Max (F. Murray Abraham), a

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reverberação é contida e há um vento de fundo constante, além de uma música marcada pelo trompete, num estilo que soa espanhol. Uma espécie de grito distorcido no final marca o corte para o personagem acordando desassossegado Mais adiante, outra luta segue o padrão, mas logo o menino grita da mesma forma abafada do anterior, com reverberação ecoando. O grito é sobreposto ao som do que parece ser a frenagem de um trem de metrô (além de haver música de fundo), que se alonga por cortes que mostram uma mão ensanguentada sobre grades, uma pessoa atrás de uma máscara e outra mão sem sangue sobre grades. Numa última sequência de sonho, rostos são estapeados com eco de pouca reverberação e som de vento ao fundo. Parecem cenas encomendadas para imitarem as soluções de Splet para Lynch, já que o restante do filme em nada lembra a estética lynchiana. Tais cenas acabam funcionando como vinhetas do inconsciente de Max. Pouco se vê do tipo de trabalho com efeitos sonoros de Splet tampouco nos filmes de Lynch posteriores ao fim da parceria. Somente 20 anos depois de Veludo azul, em Império dos sonhos (Inland Empire, França/Polônia/EUA, 2006) efeitos sonoros de ambiente que lembram os dos primeiros filmes de Lynch, o que ele chama de efeitos abstratos, desconectados tanto da diegese quanto da necessidade de uma clareza narrativa. O filme também mantém o uso de música com efeito contrapontista, conforme encontra-se descrito no próximo capítulo a respeito de Veludo azul. Antes disso, Twin Peaks foi exceção por apresentar uma herança direta da parceira de Lynch e Splet, um efeito sonoro criado pelos dois 20 anos antes. O trabalho de distorção vocal, a exemplo de Duna, já pode ser reconhecido na última cena do episódio piloto, quando Sarah Palmer (Grace Zabriskie) grita ao ter a visão do colar de sua filha sendo retirado do esconderijo sob a pedra. Mas é no episódio 2 que Dale Cooper (Kyle MacLachlan) tem o sonho com o quarto vermelho, que traz o nome de Laura sendo chamado em voz distorcida em off, antes do procedimento sonoro mais marcante de todo o seriado: o anão e Laura falando em reverso, uma ideia que Lynch tinha pedido para Splet executar em 1971 que a princípio seria usada na cena da fábrica de lápis de Eraserhead. Os atores gravavam as frases ditas como se escritas de trás para frente e o trecho definitivo era

133 executado em reverso, ficando próximo às palavras originais, mas de uma forma bastante estranha (RODLEY, 1997: 165-167). O mais inusitado em termos sonoros em Twin Peaks são as poucas cenas no quarto vermelho com as vozes do anão, Laura e Maddy (Sheryl Lee). A ideia de se gravar palavras ditas de trás para frente e reproduzi-las em reverso é um efeito singular do seriado e não encontra precedente nem no trabalho mais extenso de sons prévio do diretor. Saber que tal procedimento havia sido encomendado por Lynch a Splet para seu longa- metragem mais sonoramente abundante de efeitos sonoros sem intenções naturalistas, Eraserhead, aproxima ainda mais o legado artístico do sound designer e o seriado, que tem continuação prevista atualmente em desenvolvimento. Fora do universo lynchiano, a voz claramente substituída por sons animais, sem carecer de transformação visual das personagens, a exemplo de The grandmother, ainda que uma construção rara, já havia aparecido até no cinema independente brasileiro, caso do filme A herança (Brasil, 1971), adaptação de Hamlet de William Shakespeare dirigida por Ozualdo Candeias. O cantor Agnaldo Rayol, por exemplo, interpreta um personagem que se expressa por meio de urros de leão. Splet propiciou visibilidade – e audibilidade – a construções sonoras restritas ao universo do cinema independente em filmes produzidos com estrutura de estúdio. Desde então é possível encontrar uma aceitação até cômica para esse recurso, como o visto na comédia juvenil Garotas malvadas (Mean girls, EUA/Canadá, 2004), de Mark Waters, em que uma cena imaginária de luta num refeitório escolar lança mão da substituição de vozes por grunhidos animais, sem deformação visual das personagens, mas com todo um trabalho de gestual delas em referência aos bichos ouvidos. Quanto a outros cineastas que desenvolvem trabalhos de som que lembrem e possam ter sido de alguma maneira influenciados pelo sound design de Splet – na perspectiva de som ambiente como ator de um mecanismo sensorial, emocional, não do contraponto evidente – Rob Fruchtman acredita que Darren Aronofsky pode ser o diretor mais próximo dessa abordagem. “Se você tiver a chance, vá ver o primeiro filme (de longa metragem) dele, Pi (EUA, 1998) (...). Acho que o Alan teria realmente

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apreciado esse filme. Muito alinhado com a mesma veia de Eraserhead” (FRUCHTMAN, 2016 b). Entre os sound designers atuais que se alinham à criatividade e à sofisticação do trabalho de Splet, Manzano cita , parceiro frequente dos irmãos Cohen e Alfonso Cuaron, Randy Thom, que participou de vários filmes de Robert Zemeckis, e Gary Rydstrom, de diversos filmes de Steven Spielberg. Além de sempre Ben Burtt e Walter Murch. Ele faz coro com Kroeber em relação a Burtt e Rydstrom, ainda que ela reconheça estilos distintos. “O Ben tem um estilo maravilhoso, mas é muito, muito diferente do estilo do Alan” (KROEBER, 2016 a). Paul Davies também a impressionou pela qualidade evocativa de seu trabalho em Um homem misterioso (The American, EUA/Reino Unido, 2010, de Anton Corbijn).

2.7 Conclusões sobre o capítulo

Desde seu primeiro filme de ficção, o curta-metragem The grandmother, já dirigido por David Lynch, Alan Splet demonstrou uma enorme disposição na busca de sons naturais a serem trabalhados como efeitos sonoros nas mesas de edição e mixagem. Acostumado a produções de baixo orçamento, Splet aprendeu a cuidar de todas as etapas da produção da trilha sonora, o que continuou fazendo mesmo com equipes e orçamentos maiores dos filmes com estrutura de estúdio de que veio a participar mais tarde. A dupla formada por ambos se beneficiou da criatividade de duas pessoas sem formação acadêmica em cinema, o que os levava a buscar soluções por um viés não raro imprevisto pelos termos da estética clássica, inclusive em termos de som. Isso foi facilitado pela abertura de Lynch para um trabalho de som que se mantivesse livre da mera reiteração descritiva do que as imagens já mostravam, alinhado, neste sentido, à proposta de Dziga Vertov. Além disso, a visão restrita de Splet aguçou sua audição, o que tornava a busca por sonoridades para gravar uma tarefa mais rentável. Sua formação como violoncelista o levou a desenvolver uma relação musical com sons tradicionalmente ignorados para essa função, a exemplo da proposta de John Cage e R. Murray Schafer.

135 Sons acusmáticos em suas paisagens sonoras para Lynch tinham permissão para se expor claramente como tal em momentos específicos, gerando assim contrapontos sonoros. Diversos outros sons gravados das mais variadas origens por Splet eram montados em sobreposição de modo a intensificar reações sensoriais no espectador, gerar emoções mais impactantes, ainda que de maneira crível em relação às situações apresentadas pelas imagens, muitas vezes com função narrativa. Entretanto, as exceções contrapontistas de Splet – inclua-se aqui The grandmother, em que os contrapontos predominam – não seguem a proposta russa de gerar um sentido específico pretendido pela combinação não sincrônica nem descritiva do som com a imagem. Lynch não se esquiva de utilizar estratégias surrealistas de não explicação. Pelo contrário, este é um dos seus traços autorais mais destacados. O som que não informa, mas faz sentir. E também duvidar dos fragmentos de explicação que Lynch parece entregar sobre suas tramas. Tal hesitação entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados corrobora com a explicação de Tzvetan Todorov do conceito de fantástico e também lembra o conceito de estranho, inquietante de Sigmund Freud. Robert Spadoni ajuda a compreender que o som sem imagem correspondente é elemento estrutural do gênero do horror fílmico, efeito que em certo grau é assimilado por Splet em seu trabalho para Lynch, não parar causar sustos, mas sim o desconforto do estranhamento. Eduardo Santos Mendes ressalta que essa liberdade que se desvincula da obrigação verossimilhante do cinema sonoro clássico já se reconhece em filmes de grandes orçamentos feitos para grande público, o que confere a Splet um caráter pioneiro, ao lado de Murch. Nesse aspecto, Splet vai além nas relações audiovisuais por não justificar diegeticamente a origem do som. Diferente também da proposta de Jean-Luc Godard e Werner Fassbinder, Lynch consegue por meio do trabalho de Splet não despertar o espectador de sua imersão na ficção da narrativa, mas aprofundá-lo ainda mais no aspecto onírico do pesadelo de suas personagens, um mergulho incômodo, quando não abjeto, na emoção da trama e na falta de um sentido linear e plausível dela como um todo.

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Michel Chion nota que a continuidade dos filmes de Lynch se estabelece por meio da interrupção, não raro abrupta. Fragmentações também são aspecto estrutural da análise de Rogério Ferraraz do cinema do diretor. Para ele, os filmes de Lynch se encontram numa zona fronteiriça de gêneros e de outros aspectos e o som também serve para evidenciar as fissuras de identidade nas personagens. O trabalho da parceira de Lynch e Splet se inscreve no que Giorgio Agamben descreve como a relação contemporânea com o tempo, que adere a ele por meio da dissociação e anacronismo, outro indício da atualidade da proposta estética da dupla. Da filmografia de Splet com Lynch há um gradual afastamento do ambiente sonoro como ator da narrativa, personagem, em prol do espaço para diálogos, e também em relação ao contraponto sonoro, já a partir de Eraserhead. Por mais complexa que seja a construção de sua trilha sonora, especialmente no tratamento de vozes e sons ambientes, em Duna não se reconhece nenhum contraponto relevante. O homem elefante apresenta poucos, como também é o caso de Veludo azul, que traz, porém, uma característica sonora nova importante, como consta a seguir.

137 3.0 VELUDO AZUL

Ficha técnica (conforme créditos)

Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986) Formato: 35 mm, cor (Technicolor CinemaScope) Duração: 120min. Produção executiva: Richard Roth, para a produtora De Laurentiis Entertainment Group Roteiro: David Lynch Fotografia: Frederick Elmes Montagem: Duwayne Dunham Música: Angelo Badalamenti Sound design: Alan R. Splet Elenco: Kyle MacLachlan (Jeffrey Beaumont), Isabella Rossellini (Dorothy Vallens), Dennis Hopper (Frank Booth), Laura Dern (Sandy Williams), George Dickerson (Detetive Williams), Dean Stockwell (Ben), Jack Nance (Paul)

Sinopse: Jeffrey Beaumont volta à sua pequena cidade natal, Lumberton, depois de seu pai sofrer um infarte. Num terreno baldio, encontra uma orelha decepada e a leva à polícia. Na companhia da filha do delegado, ele se envolve na investigação e se arrisca ao interferir na sádica relação da cantora Dorothy Vallens e um traficante de drogas.

3.1 Referências críticas

Passados 30 anos do lançamento do filme, vale reconhecer pela crítica de cinema de grandes veículos de imprensa como Veludo azul, de David Lynch, repercutiu na época de seu lançamento e anos depois, já neste século, de forma a avaliar parte do impacto cultural da obra ao longo do

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tempo. A partir de trechos de textos publicados em três grandes jornais de países diferentes, o americano New York Times, o francês Le Monde e o brasileiro O Estado de São Paulo, a proposta é estudar tanto a percepção da crítica em relação ao filme em diferentes países quanto o valor conferido ao sound design de Alan Splet para o filme. Considerando-se que Lynch não costuma discorrer sobre as razões de suas escolhas fílmicas nem dar explicações sobre a construção de suas cenas, a crítica também funciona como importante função de trazer referenciais sobre a filmografia do diretor, especialmente para um público não acadêmico. Dessa forma, será possível pesquisar quais elementos do filme foram mais recorrentemente citados na amostragem de críticas selecionadas, de que modo, assim como averiguar a maneira como Veludo azul foi tratado em relação ao restante da filmografia de Lynch conhecida até a publicação de cada texto. Antes de se iniciar a retrospectiva da crítica a Veludo azul, vale conferir as considerações de Maria Cecília Garcia (GARCIA, 2004: 40) sobre os tipos de crítica, como a estruturalista, que analisa a estrutura lógica das formas, por meio do instrumental da semiologia, tratando a obra como um organismo autônomo. Já a crítica dialética, segunda ela, é o que Bernard Dort defendia para o teatro, considerando tanto o fato estético em sua alteridade quanto as condições sociais e políticas da atividade artística (GARCIA, 2004: 49). Ela complementa a noção de dialogismo citando Mikhail Bakhtin e sua análise da escrita polifônica de Fiodor Dostoievski, em que diversas vozes contrapostas causam um embate que gera o sentido das coisas. Polifonia é também conceito central para a compreensão do trabalho de Splet. Sobre o cinema de Lynch, que Veludo azul tão bem exemplifica, a contribuição de Vera Veiga França é esclarecedora, especialmente nas referências culturais do passado que o filme retoma.

Outro grande pensador crítico niilista do final do século XX, representando a versão trágica da teoria pós-moderna, foi J. Baudrillard, que anunciou (profetizou) a impossibilidade da comunicação na era midiática, a esterilização do sentido na sociedade da imagem (as imagens que já não dizem nada, a extinção do simbólico, diluído no reino do simulacro), a consumação do sujeito na sociedade de consumo. Para o

139 autor, “o consumo cultural pode ser definido como o tempo e o lugar da ressurreição caricatural, da evocação paródica daquilo que não é mais” (Baudrillard, 1970: 147). Retomando a famosa frase de McLuhan (Medium is the message), ele acrescenta: a verdadeira mensagem dos meios não é o conteúdo de sons e imagens que eles veiculam, mas o esquema condicionante, ligado à sua essência técnica, de desarticulação do real em signos sucessivos e equivalentes sobre a base de uma denegação das coisas e do real. (FRANÇA, 2014: 106)

França nota como essas teorias e autores, que tanto repercutiram nas décadas de 1970 e 1980, época da parceria de Lynch e Splet, gradualmente perderam força em meio a crítica, até quase caírem em descrédito. “A Teoria Crítica e a perspectiva adorniana, particularmente, no terreno dos estudos comunicacionais, sofreu forte rejeição” (FRANÇA, 2014: 107). Eram teorias que compartilhavam uma abordagem totalizadora, em que a realidade era tratada como um todo homogêneo, sem se atentar às diferenças e contradições. Essa generalização de fenômenos diversos como sendo apenas um conjunto gerou críticas bem conhecidas e partilhadas pelos pesquisadores da área, conforme a autora elenca:

– a subestimação dos sujeitos, de seu espírito crítico e capacidade criativa, bem como de sua força de resistência; – seu tom monolítico, insensível às diferenças; a incapacidade para tratar das singularidades, para dar conta do particular; – a simplificação (quando não anulação) do potencial das linguagens e dos processos de semiose; – a falta de atenção e mesmo a incompreensão dos processos operatórios das diferentes mídias e de seu poder de agenciamento (FRANÇA, 2014: 108)

Embora a indústria cinematográfica, especialmente a americana, lance mão tanto de padrões estéticos e de linguagem constantemente repetidos, o próprio Lynch exemplifica uma das mais destacadas exceções.Veludo azul é um filme em que temas e procedimentos de sua obra anterior e posterior se encontram, numa confluência única que será detalhada neste capítulo. Foi o último filme da parceria com Splet para criar atmosferas de estranhamento e o primeiro em que canções do pop das décadas de 1950 e 1960, época da infância e juventude do diretor, fizeram parte da trilha musical. Janet Maslin publicou a crítica de lançamento do filme no New York

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Times em 19 de setembro de 1986. Já adotava um padrão recorrente nas críticas do filme, o de descrever sua sequência de abertura. Maslin já chamava a obra de cult, tipo de obra que mantém um séquito seleto de admiradores fieis, uma fama que perdura até hoje. Além de farta adjetivação e o uso de ‘Senhor’ e ‘Senhora’ para tratar do diretor e dos atores do filme – uma prática que parece dar tom irônico no texto, mas é repetida na outra crítica de 2006 do jornal, indicando um padrão editorial. Fica premente também a recorrência com que a autora busca criar empatia no leitor para com a figura de Lynch, delimitando ao mesmo tempo obra e autor.

Bizarrice é a sua maior qualidade, mas '' Veludo Azul '' tem humor inexpressivo também, bem como um lado convencional que faz sua excentricidade muito mais louca. Não há dúvidas sobre o fato emocionante de que ele é único. (...) Para aqueles com a temeridade de segui-lo em qualquer lugar, “Veludo Azul'' é tão fascinante quanto é bizarro. Ele confirma a estatura do Sr. Lynch como um inovador, um técnico excelente, e alguém que é melhor não encontrar em um beco escuro. (MASLIN, 1986: 1)

Terrence Rafferty foi o autor de uma nova crítica no jornal americano em 26 de fevereiro de 2006, ano em que foi lançado o último longa-metragem de Lynch e que marcou duas décadas de perspectiva histórica do filme. Ele ressaltava que o poder de perturbação e choque do filme se mantinham, ainda que a obra tenha repelido muita gente em 1986, e calculava que iria durar por vários 20 anos depois. Rafferty nota que a “Terra do Nunca” de Lynch, Lumberton, onde se passa o filme, é uma cidade de simultaneidade em que tudo de bom e de ruim acontece ao mesmo tempo, leitura que facilmente adere ao conceito de polifonia que se pode reconhecer no trabalho de Splet para o diretor.

Assim, para a maior parte da plateia, ”Veludo Azul" era um tipo completamente novo de experiência de filme. Sua matéria sórdida enervou menos as pessoas, penso eu, do que a sua estranha - daí vagamente ameaçadora - maneira. Afinal, a maioria dos espectadores já tinha visto violência muito mais gráfica do que qualquer coisa no filme, tinha ouvido uma maior quantidade de linguagem chula em filmes de prestígio como "Touro Indomável" e provavelmente tinha visto, com algum interesse e talvez até mesmo algum prazer, um corpo nu ou dois. (embora raramente, diga-se, tão

141 cruamente exposto sem glamour como o da Sra. Rossellini está aqui). O que é difícil de lidar, especialmente se você não está acostumado a isso, é a volatilidade do tom do filme - o abrupto, sem sinal de alternâncias, entre a doçura de filme de adolescente e depravação de filme de massacre, entre humor descaradamente imaturo e horror abjeto, entre a inocência e o tipo de experiência mais terrível (...) É preciso um olhar muito inocente para ver o mundo dessa forma: uma maneira que, embora gere monstros, também mantém a vida cotidiana interessante, surpreendente e perpetuamente estranha. Isso é o que todo filme do Sr. Lynch faz, e porque eles têm, do seu jeito demente, uma espécie de qualidade de Peter Pan: eles são feitos por alguém que quis não superar o imediatismo e aleatoriedade selvagem das percepções de uma criança, e levar as coisas realmente assustadoras junto com o material realmente organizado, assim como vem. (RAFFERTY, 2006: 1)

A crítica de lançamento do filme disponível no site do jornal francês Le Monde data de 22 de janeiro de 1987 está sem identificação de autor. Fica claro pelo estilo do texto que, mesmo que ainda descritivo das sequências mais curiosas da obra, há um cuidado adicional com a escrita, de modo a tornar a crítica mais que informação, uma peça de literatura condensada. Ainda que certos detalhes citados não condigam com o que se vê no filme, a adjetivação trabalha num sentido menos de qualificar o filme em si, mas de trazer analogias que valorizem o texto, por meio de um vocabulário que, além de descrever, entretém até quem eventualmente não conheça a obra.

Música suave, escuridão e violência ao lado, bem ao lado do mundo quieto, muito bonita. David Lynch levanta a escotilha de um duplo fundo de realidade. A cortina do genérico, ondulação, brilho azul, acima um céu azul cru, que uma cerca branca e tulipas vermelhas cortam em um contraste berrante. O balanço xaroposo um refrão intoxicante, Veludo Azul (Bobby Vinton) (1), o Sr. Beaumont que rega seu gramado maliciosamente: estamos em Lumberton, uma pequena cidade florestal americana onde a rádio FM local anuncia alegremente: "Quando a quarta árvore cair, serão oito horas! E craaac! Temos pinho na prancha!" Na casa do Sr. Beaumont, a TV mostra uma arma close-up. Sr. Beaumont, no jardim, imediatamente despenca sobre a sua fonte, traiçoeiramente atada como uma cobra. Bizarro. Como se a TV tivesse disparado. Como se esse ambiente idílico e acolhedor fosse apenas a tela (cores, clichê "tranquilizador", o destaque) de um universo paralelo, terrível, logo abaixo da pele das coisas. Você começa a tremer quando a FM anuncia "Amigos madeireiros, todos com suas motosserras! (...) O filho do Sr. Beaumont (ele permanece impotente, em

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silêncio, no hospital até o final do filme, ferido ninguém sabe como ou por que ou por quem), Jeffrey (Kyle MacLachlan), encontra em um terreno baldio perto de casa uma orelha humana em meio a zumbido de moscas. Ele entrega este objeto eminentemente buñueliano nas mãos do inspetor Williams, mas esta orelha é explorada pela câmara como uma armadilha... (BLUE, 1987: 1)

Jean-Luc Douin, autor da crítica mais recente do Le Monde aqui selecionada, publicada em 13 de fevereiro de 2010, não foi tão espirituoso na sua articulação de analogias, mas teve a sorte de, naquele ano, já poder avaliar Veludo azul pela perspectiva de toda a filmografia de longa-metragem do diretor. A forma como amarra as situações observadas no filme de 1986 relacionadas ao título de Império dos sonhos (Inland empire, França/Polônia/EUA, 2006; no original, algo como império interior) é particularmente eficiente em associar o conteúdo de base onírica que serve de inspiração para Lynch.

Assombrado por transgressão (Blue Velvet começa com a morte do pai do investigador, derrubado por um ataque cardíaco, caído na grama do quintal), determinado a entrar no quarto proibido, David Lynch quer ver coisas ocultas, tudo o que prova a existência do estranho neste mundo. Ele rastreia os esplendores feios e venenosos. É na vigia para a anormalidade, olho treinado sobre os mais misteriosos segredos do corpo humano, esta "inquietante estranheza" que, pela sua profusão, prova a sua normalidade. Ele pinta o que mais tarde chamou de "o império a partir de dentro" (Inland Empire), a semelhança entre homens e insetos, a presença de um monstro em todos nós. (DOUIN, 2010: 1)

Em 12 de junho de 1987 Mauricio Stycer teve sua crítica sobre o filme publicada do jornal paulista O Estado de São Paulo. Graças à distância de meses em relação ao lançamento do filme nos Estados Unidos, foi possível já citar a repercussão inclusive na imprensa europeia, que reverberou o status de cult já adiantado por Maslin, e a premiação recebida no Festival de Cinema Fantástico de Alvoriaz. Stycer arrematou seu texto com uma tradução do que seria a experiência física de se assistir ao filme, o que também alcança um patamar elevado acima da média das críticas aqui selecionadas em termos de influência literária.

143 Cult do ano, segundo as mais moderninhas revistas do Velho Mundo, Veludo Azul, de David Lynch, também é dono de um consistente troféu: o principal prêmio do Festival de Cinema Fantástico de Alvoriaz, na França, conquistado em janeiro de 87. Na ocasião, venceu um concorrente peso pesado, A Mosca, de David Cronemberg, sem contar com nenhuma cena de nojo ou terror explícitos. O cinema fantástico de Veludo Azul está no interior da personalidade dos principais personagens, Dorothy Vallens e Frank Booth, interpretados de maneira não menos fantástica por Isabella Rossellini e Dennis Hooper30. (...) Aviso final: não é preciso tomar um Engov antes de assistir a Blue Velvet – como se recomenda para A Mosca. Blue Velvet não machuca o estômago, mas algum ponto entre o coração e o pulmão esquerdo. Dizem que o filme critica o american way of life. Talvez. David Lynch afirmou que é uma história de amor. Pode ser. Só não tem graça nenhuma rir, se doer no coração e faltar ar no pulmão. (STYCER, 1987: 7)

Em virtude do lançamento do filme em DVD com cenas inéditas, coube ao crítico Luiz Carlos Merten, ainda atuante no jornal, redigir sua análise em 28 de junho de 2002. Com perspectiva já privilegiada para perceber, com o passar dos anos, a durabilidade do impacto do filme e mesmo questionar se o que havia sido publicado sobre a obra procedia. Dos exemplos de crítica aqui apresentados, a de Merten é o único que chama atenção para o valor das construções sonoras do filme, ainda que sem entrar em detalhes, nem usar o termo sound design – nem tampouco citar Splet.

No volume dedicado a Veludo Azul, na coleção Grande Filmes, da Rocco e do British Film Institute, há mais adjetivos elogiosos ao cult de David Lynch do que em qualquer livro da série. O maior, o melhor, o mais inovador. Veludo Azul, segundo o autor, é tudo isso. Ele insiste, por exemplo, que Lynch fez o maior filme da contracultura produzido por Hollywood. Pode ser que toda essa adjetivação seja exagerada, mas Veludo Azul continua perturbador. (...) Na loucura filmada por Lynch, Dorothy e Frank entregam-se a um jogo perigoso (e incestuoso), pois o homem age ora como filho depravado, ora como pai despótico. Nada mais lynchiano. (...) A câmera invade a orelha decepada. Ouvem- se sons estranhos. A pesquisa sonora faz parte das obsessões de Lynch. Veludo Azul não é um filme só para ver, é para ouvir, também. (MERTEN, 2002: 1)

Das críticas aqui citadas, as mais antigas apresentam uma leitura mais

30 Grafia incorreta do sobrenome do ator Dennis Hopper, pelo próprio autor da crítica.

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estruturalista, enquanto as mais recentes combinam melhor a análise formal à contextualização social e artística do dialogismo. Os exemplos aqui listados servem para demonstrar que, mesmo na época de seu lançamento, Veludo azul já gozava de status de obra cult e da simpatia de pelo menos parte importante e influente da imprensa. Em países e épocas diferentes, seu impacto é descrito de maneira bastante próxima e alinhada. Há pequenas diferenças a se destacar entre os textos, mas é recorrente o fascínio pela construção de sequências no filme, em especial a de abertura, que já serve para demarcar claramente o mundo duplo que Lynch pretende explorar, a exemplo do que explica Rogério Ferraraz (FERRARAZ, 2003: 94). Com o passar dos anos a imprensa tratou de reiterar as impressões deixadas nos anos 1980, o que não é raro, já que a contextualização histórica é procedimento recorrente da crítica cultural. A subestimação criativa de que trata Vera Veiga França, para apontar as incongruências da teoria crítica adorniana, poderia ser indicada por meio do filme. Fica clara a simplificação do potencial criativo da linguagem cinematográfica defendida por essa corrente teórica quando se observa influências diversas simultâneas num filme americano da época, como as vanguardas europeias do surrealismo e expressionismo, para criar estranhamento e desconforto em uma plateia habituada a soluções de fácil compreensão com sentido sempre claro. Chama atenção, no entanto, dada a tradição e o poder de circulação representados pelos jornais americano e francês, que só em 2002 uma crítica entre as selecionadas, a do jornal brasileiro, tenha claramente reconhecido e destacado o trabalho de som do filme, dada a raridade do tipo de soluções que Splet adotou. Tal ausência, por outro lado, também percebida na esfera acadêmica, acentua ainda mais a necessidade de uma pesquisa sobre o sound design de Splet para Veludo azul.

3.2 Referências teóricas

Quando surgem as estruturas clássicas de envolvimento emocional do espectador, elas são logo subvertidas para criar mais estranhamento, geralmente pelo exagero ou artificialidade dos detalhes, não raro via

145 contrastes entre som e imagem (FERRARAZ, 2003: 132). “O efeito de estranhamento se dá quando a distinção entre imaginação e realidade é extinta. Por isso, os sonhos são tão importantes na obra de Lynch”. (FERRARAZ, 2003: 102-103). É o caso de Veludo azul, último filme da parceria entre Lynch e Splet, exemplo dos mais citados do que caracteriza Lynch como autor – aqui tratado como diretor de “filmes de arte” – de seu tempo, o período pós-moderno da cultura, conforme nota Michael Atkinson. No livro Veludo azul, Michael Atkinson defende a ideia de que o filme homônimo a que o livro se dedica é um daqueles presentes culturais de interesse permanente. O autor lista dezenas de filmes, programas de TV, videoclipes, comerciais, animações, música e livros que, segundo ele, trazem sua influência incalculável, assim como artistas com carreiras resgatadas do ostracismo (como o cantor Roy Orbison) e assuntos tratados na imprensa que lembravam aspectos do filme (ATKINSON, 2002: 87-89). Se o filme foi o gatilho desses fenômenos ou um compêndio de interesses de uma época que repercutiram, de fato é recorrente sua presença tanto em listas de melhores filmes da década de 1980 quanto de filmes ícones da pós- modernidade, pela mistura de referências culturais de época diversas.

Um filme de estúdio hollywoodiano da década de 80 tão radical, visionário e cabalístico quanto qualquer produção de vanguarda; um filme cult misteriosamente simbólico e subterrâneo, que, apesar disto, conta com estrelas reconhecíveis e distribuição ampla; um ‘quadro de gênero’ com a ambiência de um temível e hiperelaborado pesadelo; um ‘filme de arte’ americano feito pelo único diretor conceituado de ‘filme de arte’ de Hollywood. (ATKINSON, 2002: 11)

Atkinson, como tantos autores, destaca o fim da sequência inicial do filme, em que a câmera, depois de passear por cenas idílicas de um bairro residencial de cidade pequena nos Estados Unidos, registra o infarte de um homem que rega um gramado e dali mergulha neste até chegar a um amontoado de besouros negros no que chama de “cacofonia de ruídos de máquinas e abafada desordem, emprestando aos insetos uma escala e um aspecto aterradores”, primeira e inevitável referência ao trabalho de Splet para o filme. Charles Drazin considera essa uma daquelas sequências que

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escolas de cinema colocam em um looping contínuo para demonstrar aos alunos como o som é fundamental no cinema (DRAZIN, 2000: 167). Sua análise ecoa a de outras fontes, a de que aquela imagem pressagia os horrores que Veludo azul aos poucos vai revelar sobre aquele aparentemente pacato lugar (ATKINSON, 2002: 26), especialmente pelo viés sonoro.

A orelha é o leitmotiv deflagrador do filme em mais de um sentido, retornando não só como uma imagem (ou uma ausência), mas também como um canal para a experiência auditiva do filme, e seu estatuto ambíguo de uma sequência interna (psicoemocional) de eventos. (ATKINSON, 2002: 32)

Há para o autor indícios da sutileza dos sons ambientes da paisagem sonora de Splet na escada externa do edifício Deep River, onde vive Dorothy Vallens. Atkinson considera os efeitos sonoros usados como “uma coisa arruinada e ventosa, ressoando com os ecos subindustriais da cidade” e lembra que a crítica Pauline Kael se referiu a eles como um “velho e pesado animal esbaforido (ATKINSON, 2002: 42). Segundo o autor, outro som marcante do filme, o da respiração de Frank Booth e sua voz com a máscara de inalação que usa com freqüência, havia sido concebido inicialmente por Lynch para que o gás fosse hélio, para conferir um tom edipiano às cenas com Dorothy, mas o ator Dennis Hopper o dissuadiu por prever o efeito involuntariamente cômico e sugeriu óxido nitroso, que acentuaria o comportamento instável e hostil de Frank (ATKINSON, 2002: 57). Na cena de sexo entre Jeffrey e Dorothy, Atkinson avalia que a trilha sonora perde o controle como a personagem feminina, com uma parede ascendente de sons de ventos tempestuosos, silvos de gás e indigestão edificial” (ATKINSON, 2002: 67-68), seguida de “uma tomada em câmera lenta dos dois amantes em pleno coito, acompanhada pelos ruídos amplificados de animais na trilha sonora”. Mais adiante, quando Jeffrey volta ao apartamento de Dorothy, engatilha a arma e atira quando a porta se abre, o autor afirma que “o ruído criado por Splet para acompanhar a morte a tiros de Frank soa como uma mistura de rangidos metálicos e guinchos de animais” (ATKINSON, 2002: 84). Charles Drazin considera o tapa de Jeffrey em Dorothy um dos mais perturbadores na história do cinema, o que ele credita ao perfeccionismo de

147 Splet (DRAZIN, 2000: 167-169). Com deficiência visual, o sound designer desenvolveu uma audição aguçada. Para ouvidos leigos fica bem difícil reconhecer se vários dos efeitos sonoros que ele adota são musicais ou gravações de suas pesquisas de campo auditivas. Isso quando são percebidos. Para Drazin, eles não são montados para serem analisados, nem sequer conscientemente reconhecidos. Eles dão um tom que desafia explicações, como um estado de espírito. Exatamente como as atmosferas que Lynch sempre se esmerou em construir, auxiliado por Splet.

Não satisfeito com o som de um soco regular, ele regravou a meia velocidade e, em seguida, colocou os tapas a velocidade normal e meia velocidade juntos. Finalmente, como um dos assistentes de Splet no filme lembrou, “batemos numa grande abóbora velha e ressecada com uma régua de aço com base de cortiça de 18 polegadas. Nós só a estapeamos, o que rendeu um ruído de chicotada incrível realmente brutal... Mixando estes três sons juntos, acabamos com um soco violento”. Tanto esforço quanto foi dispensado em criar sons que o público não iria notar conscientemente, mas que, no entanto, criou um ambiente. "Uma boa trilha sonora pode aumentar todo o processo de contar a história”, Splet comentou. "É uma maneira de fazer as coisas funcionarem nas pessoas sem que elas sejam muito conscientes disso. (DRAZIN, 2000: 168)

Outra cena que Drazin explica com a propriedade de quem teve acesso aos bastidores, ou a relatos de quem teve, é quando Jeffrey descobre a orelha decepada, um momento em que o perigo invade a vida normal: “um leve murmúrio quase inaudível - você tem que fazer um esforço consciente para ouvi-lo - dá à cena a sua atmosfera assustadora”. Para tanto, o autor conta que Splet estendeu uma fina camada de látex de borracha sobre um balde de baratas, virou o balde e registrou o som das baratas correndo no látex, em reprodução acelerada (DRAZIN, 2000: 169). Drazin avalia que para Lynch o importante é o som captar sentimentos e climas, não a realidade objetiva. Não é algo feito para ser analisado ou até mesmo ser percebido conscientemente, interpretado racionalmente, traduzido em forma de textos. É algo que define um tom, um estado de espírito, mas desafia a explicação (DRAZIN, 2000: 167). Ron Magid ajuda a prosseguir tal raciocínio sobre o som para o cineasta.

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Para Lynch, uma vez que um filme tenha terminado as filmagens, o trabalho real começa: a construção de sua música e trilha sonora extremamente detalhadas e complexas. Veludo azul atrai muito do seu humor poderoso dos ruídos misteriosos que sutilmente preenchem o sound design de Alan Splet, e o filme marca a quarta colaboração em longa-metragem de Lynch com este bom artista. Para Lynch, que parece ouvir seus filmes, em vez de vê-los, a trilha sonora de Veludo azul cresceu naturalmente a partir dos ditames de cada uma das cenas do filme. "O material dita o clima e também dita o som", explica ele. "Tentamos obter os sons que fazem o clima certo e é tão simples, é tão lógico. O resto é apenas tentativa e erro na mistura dessas coisas, e ele tem que ser simplesmente certo, mas você sabe que quando é e você sabe quando não é. (MAGID, 1986: 72- 74)

Com o filme, Lynch estabelece seu universo e cria uma receita básica que retornará renovada em seus filmes posteriores, “um marco (Lynchtown), um esquema estrutural e um novo tipo de romantismo” (CHION, 2003: 143).

Os efeitos sonoros especiais de Alan Splet (grunhidos, deflagrações, ambientes surdos) são, pelo contrário, muito mais escassos e localizados que nos três primeiros longas- metragens de Lynch. Acompanham a imersão no mundo movimentado dos insetos e depois as sequências de imagens-choque em que Jeffrey revive suas descobertas horrorosas. No resto do tempo, Lynch cria, ao contrário, um mundo normal e suave, que não muda com nenhum ruído de fundo nem nenhum vento do intra-mundo. Em Coração selvagem e sobretudo Twin Peak – O fogo caminha comigo reapareceram os rumores e os ruídos, mas já não eram mais feitos por Alan Splet. (CHION, 2003: 133)

Em Veludo azul Lynch pela primeira vez demonstra como consegue fazer o cotidiano se tornar estranho, de uma forma que se pauta num contexto estético e comportamental lido com verossímil, o que não acontecia nos bem estilizados The grandmother (EUA, 1970) e Eraserhead (EUA, 1977). De qualquer forma, o diretor também recusa a necessidade de atribuir sentidos a tais ideias, que para ele são de natureza concreta, nem verbais, nem abstratas, e mantém o som como aliado nesse intuito.

O cinema para mim é um desejo muito forte de casar imagem e som. Quando consigo, tenho um verdadeiro calafrio. E a verdade é que não tenho certeza de que devo buscar outra coisa que não esse calafrio. (...) As pessoas me chamam de

149 diretor, mas eu realmente penso em mim como um engenheiro de som. (LYNCH, Apud CHION, 2003: 178-179

Chion destaca o quão importante é a imagem da orelha como símbolo da escuta que Lynch tanto valoriza em seus filmes – e que nunca esteve tão claramente exposta quanto em Veludo azul, filme em que ela se torna gatilho de toda a trama. Para o autor, o cinema de Lynch se transforma pelo papel central dado à orelha. “De modo que se seus filmes fossem mudos e não fizessem nenhuma alusão à escuta, continuariam sendo auditivos” (CHION, 2003: 179). Chion entende que o som está na origem de algumas imagens, de modo que se ouve algo e isso direciona os olhares. Frequentemente os planos atendem a função de imagens requeridas por uma narração, ainda que esta não esteja explicitamente ali, inclusive como o equivalente visual de uma palavra concreta que guia a imagem por uma oralidade indireta, o que Chion chama de planos-palavra de Lynch. “Outras vezes, seu caráter estranho e algo difuso, deformado, evoca as representações confusas que desencadeiam na imaginação a evocação verbal ou acústica de algo que nunca se viu verdadeiramente” (CHION, 2003: 178-179). Em seu artigo Ears Looking at You: E. T. A. Hoffmann's "The Sandman" and David Lynch's "Blue Velvet", Alice A. Kuzniar nota que a narrativa do filme se passa em grande parte entre um plano no início em que a câmera adentra o ouvido de Jeffrey e outro do fim, em que ela sai da orelha dele, deixando a dúvida de se tudo que é mostrado entre os dois momentos foi apenas imaginado ou sonhado pelo protagonista. Aproximando o filme da questão do livro O Homem da areia (The Sandman) de Hoffmann, ela observa que para ambos vale a mesma questão: se o indivíduo pode confiar nos seus ouvidos ou se pode mesmo ver pela audição (KUZNIAR, 1989: 12). Isso corrobora para a perspectiva não intelectual deste sentido proposta por Lynch, por meio da sensorialidade que Splet tão bem traduzia para ele. Buscar entender como as três cenas a serem destacadas na análise foram feitas, confirmando ou não o que dizem as referências bibliográficas encontradas foi parte importante das entrevistas realizadas com integrantes da equipe de Splet para esta pesquisa. Ann Kroeber, por exemplo, conta que

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a cena dos insetos no fim da sequência de abertura, que soa como uma questão de volume de gravação, talvez com um trabalho de reverberação, demandou muito mais trabalho, e combina com vários outros relatos a respeito do trabalho do sound designer.

Por exemplo, os sons de insetos em Veludo azul que você mencionou. Você falou alguma coisa, algo como eles apenas aumentando o volume ou algo assim para dar aquela impressão. Bem, na verdade, cerca de 14 sons de inseto foram colocados ali. Foi tudo feito em camadas. Gravamos em diferentes locais. Gravamos em laboratórios. Eu costumava ligar os microfones para gravar os sons deles, como quando mastigando madeira, coisas assim. Para que se pudesse conseguir aquela sensação mais acentuada dos insetos. (...) Não eram só os insetos. Também tinha um monte de outros sons ali naquela cena, quando a câmera vai ao subterrâneo. Acho que o “chichichi” que se ouve ali é do sprinkler. Não eram só os 14 insetos. Acho que havia também tons. Podia haver até umas cem camadas de som para uma cena. (KROEBER, 2016 a)

A cena de mais notável contraponto sonoro no filme é de sexo entre Jeffrey e Dorothy, quando ela pede para que ele bata nela. Frank Behnke, assistente de Kroeber durante as filmagens, lembra que Splet criava tais efeitos importantes em sua sala de edição, sozinho. Ele acredita que entre os sons usados estavam alguns de animais em compasso lento. Rob Fruchtman conta que a equipe estapeou abóboras e outros objetos, mas que a arte de Splet vinha mesmo com a mixagem, da somatória dos diferentes sons, com o que John Nutt concorda. Nutt cita a presença do editor de som Frank Eulner na mixagem. Mas é o editor de so Richard Hymns que conta mais detalhes da gravação dos efeitos usados na cena.

O tapa é interessante para mim porque lembro dele distintamente. O Alan me pediu para sair e fazer o tapa. Eu fiz alguns tapas e algumas réguas de madeira na mesa de trabalho da mesma forma que você faz na escola, aquele som da batida, fizemos alguns desses. E aí ele quis algo ainda mais extremo, então pegamos uma abóbora enorme, ficamos batendo nela com as mãos e uma régua de aço e todo tipo de coisa. E então ele disse que precisava de algo realmente surpreendente e aí o (assistente de edição de som) John Verbeck – que Deus o abençõe –, que foi por muito tempo editor de efeitos e assistente de edição de efeitos do Alan, disse “vocês podem bater no meu ombro aqui”. Ele tirou a camisa e tinha um ombro bem

151 impressionante, era um cara pesado. Então bati nele tão forte quanto eu podia e ele saiu com uma marca horrível de mão. E o Alan – foi tão divertido – nem se deu conta da cara do pobre do John. Disse que estava bem bom, mas para tentar um outro. Então bati nele umas 12 vezes. Suas costas estavam muito vermelhas, vermelhas como uma beterraba. E o Alan no seu estilo habitual, ouviu todos e disse para cortar o número 3, número 7 e número 9. Literalmente escolhendo. Normalmente era um baixo, um médio e um alto. Sabe? É realmente adotar essa construção em camadas em cada aspecto do som. Acho que editei a régua, a abóbora, os três tapas, umas outras coisas como explosões ou algo do tipo e ele misturou todos juntos de forma que ele tivesse o tapa mais espetacular da história, que teria arrancado a cabeça provavelmente. Mas ele queria aquele completo contraste. Ele fazia essas coisas naquele tipo de filme com o David. (HYMNS, 2016 f)

Sobre o som das chamas que são vistas nessa cena, Hymns acredita se tratar de distorção extrema e microfones muito próximos e ajustes de sound design que Splet fazia sozinho, por ser muito especifico sobre o efeito que queria construir. Outra cena de claro contraponto sonoro é um nítido pesadelo que Jeffrey tem também com Dorothy sendo estapeada, em que Frank surge com sua voz bastante distorcida, um efeito bastante comparável às distorções vocais recorrentes nos filmes de horror. A cena é breve e nenhum dos entrevistados lembrou claramente dela para buscar na memória referências de como foi criada. De qualquer modo, eles indicam momentos em que Splet trabalhou com mais detalhamento os ambientes do filme. Kroeber reitera que com Lynch tudo tem uma qualidade temperamental evocativa, mesmo quando num efeito naturalista, caso dos sons de corredor, em que foi colocada mais emoção, por meio de ventiladores, sons de ar em fluxo. “Tinha uma cena interna em que quando as personagens saíram o som do ventilador, o ventilador do ar condicionado continuou, e soou tão natural. Simplesmente funcionou na cena, você nem se dá conta” (KROEBER, 2016 a). Para ela, a música no filme foi selecionada para incutir sensações leves, felizes e românticas, de modo que coube aos efeitos sonoros identificar a maior parte do lado mais sombrio da trama. Entretanto, foram escolhas em que o aspecto intuitivo predominou. Trata-se de um dado importante a respeito de como se relacionam os efeitos sonoros e a música propriamente dita no sound design do filme. Os

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dois aspectos sonoros da trilha atuam de maneira complementar, num sentido de alternância – ainda que as composições instrumentais de Angelo Badalamenti funcionem mais na linha de um acompanhamento clássico de acentuação emocional coerente para as imagens. Ambos trazem marcante estímulo à sensorialidade do espectador. Porém, enquanto as canções escolhidas por Lynch adicionam leveza, inclusive atenuando a dramaticidade de cenas violentas, os efeitos sonoros criam ambientações que causam um estranhamento desconfortável. Estes funcionam como chave para a entrada em pesadelos que contrapõem tanto sons e imagens quanto a clareza da linearidade narrativa e a compreensão de que as informações que se tinha até ali podiam não passar de aparências ou peças incompletas de um quebra-cabeças ainda mais complexo. Certo dia, o assistente Patrick Moriarty escutava a canção In dreams de Roy Orbison no set quando Lynch ouvia a música, se encantou e decidiu usá- la (KROEBER, 2016 a). Behnke cita os sons de trem usados de fundo para destacar um personagem e os sons calorosos de pássaros para identificar a vizinhança do bom subúrbio americano de maneira superficial. “Quanto melhores clichês eles forem, mais os sons urbanos vão trazer o contraste real”(BEHNKE, 2016 d). Outro ponto de interesse, segundo ele, é a cena em que o Jeffrey caminha para o apartamento da Dorothy.

Na primeira vez como um cara pulverizador de dedetização. Você vai ouvir os pássaros que representam a vida na cidade, pouco tráfego - e tudo isso se vai quando ele entra no corredor do prédio onde a luz de um elevador quebrado sinaliza perigo. O som de vento se torna amedrontador quando ele sobe as escadas externas, e seus passos produzem um eco estranho. Quando o Jeffrey entra no corredor interior e a porta se fecha, é como se ele estivesse cercado por sons de vácuo – como um sistema de sucção, um som sob pressão. Ele entra em um mundo estranho e desconhecido. O mundo da Dorothy – e Frank, por assim dizer. (BEHNKE, 2016 d)31

Ao lembrar da cena da orelha decepada no chão, explicada por Drazin, Fruchtman ressalta que se ouve uma mosca passando, entre outros tantos fenômenos sonoros naquela única tomada. Segundo ele, a respiração

31 Entrevista concedida para esta pesquisa, conforme apêndice Entrevista 2016 d.

153 ofegante de Frank quando está com Dorothy também fez Splet trabalhar duro de verdade para ganhar um efeito aterrorizador, o que aumenta muito a voz do ator. Na cena final, em que Jeffrey e Sandy olham pela janela o pássaro mecânico, o pio que se ouve tampouco é um pio verdadeiro, para contribuir para o caráter de artificialidade que Lynch queria para ela. Embora fuja da esfera dos efeitos sonoros propriamente ditos, a música configura elemento de destaque no sound design do filme. Além de ser o primeiro de vários trabalhos de Lynch com o compositor Badalamenti, do mesmo modo que os efeitos sonoros tinham com Splet um tratamento digno de música (criada com o intuito de ser música), a partir de Veludo azul, Lynch passou a também usar músicas pop dos anos 1950 e 1960 na trilha musical. Às vezes utilizadas como efeitos sonoros de contraponto, elas seriam uma estratégia que ele repetiria em outros de seus filmes, ainda que o efeito análogo de estranhamento não seja sempre necessariamente contrapontista. Esse recurso assinala um dos aspectos mais marcantes da filmografia de Lynch e, especificamente, de Veludo azul enquanto obra da cultura pós- moderna, como já citado no capítulo anterior, mas também como aspecto notável de sua contemporaneidade. Gelson Santana explica que o contemporâneo “pode também ser definido enquanto produção de temporalidades extraviadas do tempo natural. O tempo natural ao ser reduzido a uma das temporalidades do presente marca o fim da certeza de “uma realidade única””. Para ele, as marcas do contemporâneo se revelam por apontarem fragmentos de realidade que tornam simultâneas tanto as representações sincrônicas quanto as diacrônicas no mesmo espaço midiático.

Se o contemporâneo faz inatual a diferença entre passado e presente muito se deve à presença híbrida do diacrônico como marca do sincrônico. Esta presença transforma o diacrônico do puro acontecido em acontecido-acontecendo, ou seja, em uma experiência que é ao mesmo tempo passado e presente. A aparência virtual de um tempo único produzida pelas temporalidades fragmentadas das mídias desaparece ao emergir em diferentes camadas no espaço social como realidades marcadas em seu trânsito como novidade. (SANTANA, 2009: 11)

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Em seu texto O tempo retorna, Michel Maffesoli vê um processo cíclico e complexo que se repete de maneira inevitável por meio de eternas leis da imitação, mecanismo de contaminação que os faz resgatar Gilbert Durand e sua metáfora da bacia semântica como ponto de partido dos estudos do imaginário. Tal metáfora se trata de vários riachos nos flancos das montanhas que “vão constituir uma corrente cultural, a que vamos dar um nome e de que vamos concentrar os guias antes que eles se percam de novo no delta e um novo ciclo recomece” (MAFFESOLI, 2012: 113). Sua visão se alinha à de Hans Urich Gumbrecht, para quem a existência humana numa cultura de sentido se mantém em contínuas e progressivas tentativas de transformar o mundo baseadas nas interpretações das coisas e na projeção dos desejos humanos no futuro, impulso esse ausente nas culturas de presença nas quais os seres humanos buscam apenas inscrever seu comportamento no que consideram ser estruturas e regras de uma determinada cosmologia.

Mas existe ainda outra pré-condição, menos patente, para a presentificação do passado através dos textos que precisa ser mencionada. Sempre que “tornamos presentes” coisas, corpos ou sentimentos, ativamos e acentuamos aquela dimensão de experiência que, em minha tipologia introdutória básica, chamo “cultura de presença”. Cultura de presença, como disse, é diferente de cultura de sentido porque não nos impõe a obrigação e a expectativa constantes de que devemos transformar o mundo por meio de nossas ações (GUMBRECHT, 2009: 17).

O autor explica que a cultura de presença nos assinala um lugar dentro de uma cosmologia estável, “insinuando que a passagem do tempo não será vivenciada como produtora de uma distância vis-à-vis com o passado”. Considerando-se que o tempo em culturas de presença não tem a prerrogativa de ser instrumento mudança, a presentificação de um passado em sua materialidade gera menos resistência, receio e ceticismo do que a cultura histórica moderna nos ensinou a produzir” (GUMBRECHT, 2009: 17). Outro conceito complementar a essa característica da presentificação é o dissenso, segundo Jacques Rancière. Ainda que trate de questões de ordem ideológica, ele pode ser estendido à compreensão das temporalidades

155 distintas e simultâneas no atual momento cultural. “A prática do dissenso é assim uma invenção que faz com que se vejam dois mundos num só: o mundo em que os plebeus falam e aquele em que não falam, o mundo em que aquilo que falam não é nenhum objeto visível e o mundo em que é”. Rancière define dissenso como a ação que constrói dois mundos litigiosos e paradoxais onde dois recortes do mundo sensível se revelam (RANCIÈRE, 1996: 375). Veludo azul já começa com Blue velvet, canção de Bobby Vinton (1963). Cenas bucólicas condizentes com o ritmo e o romantismo da música são interrompidas pelo enfarte do pai de Jeffrey, quando o volume da canção vai sendo reduzido até dar lugar aos ruídos de inseto anteriormente abordados. A mesma música é cantada diegeticamente por Dorothy Vallens (Isabella Rosselini) numa casa de show adiante no filme, numa interpretação em que o sentido de triste da palavra inglesa “blue” fica evidente, pelo compasso mais lento e a expressão da personagem. Vinton volta a tocar na chegada de uma das visitas de Jeffrey a Dorothy. In dreams, de Roy Orbison (1963), faz um dos mais claros contrapontos da filmografia de Lynch, tocada enquanto Jeffrey e Dorothy são mantidos reféns da gangue de Frank e Ben tranquilamente finge cantar a música em tom de zombaria para o grupo todo. Quando Frank e seus companheiros levam o casal para um terreno distante onde Jeffrey é espancado, a música é retomada e Frank provoca Jeffrey sussurrando parte da letra romântica da canção. Ainda assim, é um contraponto da diegese, causado pelos personagens. A romântica Love letters, de Ketty Lester (1962) embala o final da cena em que Jeffrey presencia a cena desoladora dos corpos de Don Vallens (Dick Green) e do Detetive Gordon (Fred Pickler) no apartamento de Dorothy. Corte para o tiroteio da polícia diante do local onde estão os criminosos, vidros caem em câmera lenta de uma janela e a música segue tocando até Jeffrey deixar a cena intacta e sair do apartamento. A melodia dá um tom de tristeza à cena, embora a letra trate de um casal que se ama à distância, mantendo contato por carta. Um contraponto extra-diegético claramente creditável a Lynch. Portanto, em Veludo azul há momentos de sincronia bucólica ou

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melancólica (Blue velvet) e outros de contraponto com efeito até de sarcasmo entre a trilha musical e a situação em cena (In dreams e Love letters). Tal duplicidade – senão multiplicidade - de estratégias de presentificação do passado reflete, segundo Gumbrecht, como a contemporaneidade assimila simultaneamente tanto a sincronia, quando a diacronia, conforme Santana, fenômeno que guarda importantes pontos de semelhança com o conceito de dissenso de Rancière. Veludo azul serve como um divisor de águas entre o legado de Splet para a filmografia de Lynch e a tendência sonora seguinte dos filmes do diretor, apoiada na trilha musical com cações pop (apesar da presença do cantor Sting no elenco, Duna já adotava trilha instrumental original da banda americana Toto e do músico e compositor britânico Brian Eno), com recorrentes elementos de época, num nível até agora único de variedade do repertório sonoro de Lynch. Os efeitos de estranhamento e o contraponto proporcionados pelo trabalho com efeitos sonoros do sound designer migrou em grande parte para o tipo de construção audiovisual aqui destacado. Perderam força os efeitos sonoros de fonte irreconhecível em cena, que deram espaço a canções antigas, cuja nostalgia é passaporte para uma mistura que ainda inclui aspectos de realidade, sonho, o lógico, o sensível, o narrativo, o sensorial, sincronia, diacronia, diegese e extradiegese, bem ao estilo de Lynch. Embora o filme permita uma análise sonora bastante completa e complexa, envolvendo todos esses elementos e outros em detalhes, cabe destacar aqui as cenas que atendem à proposta desta pesquisa de buscar compreender como os contrapontos sonoros evidentes de Veludo azul foram arquitetados e como eles se comparam a duas obras cinematográficas anteriores, de períodos distintos, produzidas em estrutura de estúdio com ampla distribuição, que se destacaram nas construções sonoras em que efeitos sonoros extra-diegéticos foram montados em sobreposição. Dessa forma, é possível averiguar se o filme representa, nesse âmbito da produção fílmica mundial, algum grau maior de inovação e complexidade. São eles:

- King Kong (EUA, 1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack - Meu tio (Mon oncle, França, 1957), de Jacques Tati

157 3.3 Análise do sound design de Veludo azul

3.3.1 Descrição dos efeitos sonoros

Veludo azul já começa com Blue velvet, canção romântica de Bobby Vinton (1963). Cenas bucólicas de céu azul, flores, caminhão de bombeiro passando em câmera lenta com um bombeiro acenando sorridente junto a um cão, mais flores, crianças atravessando a faixa de pedestre, casa de subúrbio tranquilo e arborizado. Um homem de meia idade rega o jardim, uma mulher de meia idade assiste TV, onde uma cena de plano de detalhe de arma apontada é exibida. Corte para o jardim, onde a mangueira enroscou num galho de planta e o homem puxa, até que tem o que parecer ser um enfarte. Ele fica caído na grama, a água continua saindo e um cão sobe no homem para bebê-la da mangueira. O volume da música vai sendo reduzido até dar lugar aos sons de diversos insetos em volume maximizado, conforme a câmera fecha em plano de detalhe o gramado em que eles se amontoam. Noutra cena, Jeffrey deixa o apartamento de Dorothy logo após descobrir a certidão que prova que ela é casada. Ele desce pelas escadas escuras do edifício Deep River, onde ela mora, e a tela é tomada pela mais plena escuridão. Só se ouve o rumor distante de uma máquina em funcionamento constante ou algum tipo de fluxo de ar ventando por dentro de alguma tubulação. Da escuridão surge Jeffrey. Cabisbaixo, ele levanta o rosto conforme ouve-se uma espécie de guizo de cobra. Sua imagem já se funde à de um rosto completamente distorcido para a direita da tela, ou o reflexo de um rosto em um objeto reflexivo curvo, em plano de detalhe dos lábios. Ouve-se seu nome sussurrado de maneira também distorcida. A reverberação ganha o tom pesado de uma nota grave e surge o rosto de Frank irado, visto de lado. Ainda que em câmera lenta, a imagem logo mostra Frank abrindo a boca para gritar e o som que dela parece brotar lembra uma versão eletronicamente distorcida de algo como um rangido grave de portão pesado de metal, em volume crescente até ficar bem alto e tenso. Há um corte para uma imagem de uma vela ao vento em plano próximo, enquanto o som perdura até se ouvir o do que poderia ser a chama soprada pelo vento forte diegético ou algum tipo de tecido ao vento, como

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uma bandeira, por exemplo. A chama ao vento ressurge mais distante por um breve instante. Um fade out escurece a imagem plenamente. Ouve-se uma voz masculina dizer “está escuro”. O rosto de Dorothy visto quase de cabeça para baixo com os olhos fechados e os lábios cobertos de batom vermelho. Ela pede sussurrando “me bata”. Um corte mostra o rosto aflito de Frank de frente enquanto ela repete fora de campo o pedido em voz um pouco mais alta. Frank se esgueira para bater. O grito ouvido é pungente e distorcido e coincide com o corte que leva à imagem de Jeffrey em sua cama, de pijama, deitado de bruços se levantando assustado à meia luz enquanto o som do grito distorcido se esvai com uma reverberação que lembra vento. Embora os efeitos sonoros se substituam nessa sequência curta, a maioria entra e sai da trilha em processo de fade in e fade out, permitindo breves momentos de sobreposição. Mais adiante, Jeffrey vai visitar Dorothy enquanto Blue velvet de Vinton toca em off. Logo ao chegar, enquanto se beijam a música vai perdendo volume e ela o convida para seu quarto. Na cama, ambos já nus, Dorothy pergunta a Jeffrey o que ele quer fazer, se é um mau menino, se quer fazer coisas más. Ela repete “qualquer coisa”. Ao ser perguntada sobre o que ela quer que Jeffrey faça, ela diz que quer que ele a machuque. Jeffrey nega, diz que quer ajudá-la, que sabe do sequestro de seu marido por Frank e que quer avisar a polícia, o que faz Dorothy se afastar com medo, pedindo que ele não envolva a polícia enquanto música instrumental acrescenta tensão. Um corte mostra uma chama ao vento e o som do vento soprando é intenso e breve até que ela pede a Jeffrey que bata nela com a imagem completamente escura e a recusa enfática em meio à música ainda mais alta. A imagem dos dois volta conforme Dorothy expulsa Jeffrey de sua cama aos gritos, partindo para cima do jovem, que reage com um tapa. Ele a vira, titubeia e então dá um novo tapa, desta vez premeditado. Em câmera lenta, os lábios entreabertos com batom vermelho emitem um som distorcido que faz a música sumir e soa como uma espécie de mistura de ventos. Entra em cena uma imagem de explosão de chamas que tomam um teto, que aparece brevemente. O casal ressurge também em câmera lenta, o som distorcido ouvido parece combinar o rugido de animal bestial, respiração ofegante e ventania, todos os sons dilatados. Dorothy se agarra a Jeffrey

159 num gesto de um êxtase sofrido. Um fade out gradualmente tira os efeitos sonoros por completo e após um breve momento silencioso, Dorothy diz “agora eu tenho sua doença em mim”.

3.3.2 Sobreposições de efeitos sonoros de Veludo azul comparadas às de King Kong

Ficha técnica (conforme créditos; exceto direção)

King Kong (EUA, 1933) Formato: 35 mm, p&b, mono Duração: 125 min. Direção: Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack Produção executiva: David O. Selznick, para a produtora Radio Pictures Roteiro: James Creelman e Ruth Rose Fotografia: Eddie Linden, Vernon Walker e J.O. Taylor Montagem: Ted Cheesman Música: Max Steiner Efeitos sonoros: Murray Spivack Elenco: Fay Wray (Ann Darrow), Robert Armstrong (Carl Denham), Bruce Cabot (John Driscoll), Frank Reicher (Capitão Englehorn), Sam Hardy (Charles Weston), Noble Johnson (chefe nativo)

Sinopse: O cineasta Carl Denham escolhe uma ilha remota como cenário para um filme. Ele encontra em Ann Darrow sua estrela. A ilha é habitada por uma população nativa, que se protege de um gorila gigante e dinossauros que lá também vivem. O gorila se apaixona por Ann, a sequestra, mas a equipe liderada por Jack Driscoll resgata e traz o animal para Nova York.

Em termos de som, a primeira versão de King Kong para as telas

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frequentemente é lembrada pelo marcante uso de leitmotif da música de Max Steiner. Diferente da relação de alternância entre música e efeitos sonoros de Veludo azul, a de King Kong atua em parceria no intuito de se criar intensificação de emoções no espectador. A música adianta o sentido e o sentimento de risco e pavor pretendidos, funcionando como um alarme para os diversos perigos a serem apresentados nas cenas. A vocalização das feras, por meio de urros ameaçadores (depois gritos de dor), assim como seus passos, não raro antecipam embates sangrentos, em função análoga à da música, e ainda continuam no decorrer destes. O silêncio, quando surge, apenas cria expectativa tensa para mais daqueles efeitos aterrorizantes. Aspecto essencial da trilha sonora do filme é o trabalho com efeitos sonoros sofisticados ainda na aurora do cinema sonoro, que o chefe do departamento de som do estúdio RKO, Murray Spivack, desenvolveu. Ray Morton conta que, se nos anos anteriores todos os diálogos, música e efeitos precisavam ser gravados juntos numa mesma faixa durante a filmagem, em 1932, cada tipo de elemento já contava com sua própria faixa. Era possível regravar sons para então mixar as três faixas juntas numa máster a ser ligada à película. Ou seja, já era possível adicionar sons em pós-produção, algo fundamental para Spivack sonorizar longas sequências com bonecos filmados em stop motion32 (MORTON, 2005: 75). Ao longo de nove meses, Spivack precisou criar sons orais convincentes para criaturas gigantescas pré-históricas ou fictícias para uma grande produção, equivalente para a época a um blockbuster atual. O rugido do gorila Kong começou a ser criado a partir dos de leões e tigres que viviam no Selig Zoo – local que criava e treinava animais usados em filmes. Tendo sobreposto os rosnados, Spivack os executou de trás para frente em baixíssima velocidade. Isso fez o tom do efeito sonoro descer uma oitava, dando a impressão de serem rosnados de animais bem maiores. Todos os agudos foram removidos, de modo a criar uma sonoridade longa e dissonante e Spivack adicionou fades para evitar interrupções abruptas. Ele gravou sua própria voz grunhindo num megafone e então a regravou com velocidade reduzida para criar os sons que o gorila emitia nos momentos

32 Técnica de animação que utiliza stills fotográficos (fotos estáticas) reproduzidos em sequência, de modo a simula os movimentos.

161 românticos com Ann. Os gritos dos marinheiros também foram feitos com a voz do próprio sonoplasta – exceto Fay Wray, que gravou os seus na pós- produção. Os passos dele foram criados com um foley feito com um desentupidor de pia envolto em emborrachado poroso sendo batido numa caixa com cascalho. Já as batidas no peito de Kong vieram de tentativas e erros. Primeiro foi usado um instrumento de percussão com baqueta acolchoada, depois baquetas batendo na parte inferior de uma cadeira de vime, até que Spivack usou a baqueta no peito de seu assistente Walter Elliott, com o microfone junto às costas de Elliott e conseguiu a sonoridade que buscava, ressoando como um corpo com musculatura, ossos e ar.

Seguindo o conselho de um paleontólogo de vertebrados do County Museum of Natural History Los Angeles, Spivak33 decidiu ter os dinossauros silvar e coaxar em vez de rugir. Para criar os sons sibilantes, Spivack gravou os ruídos de uma máquina de ar comprimido. Ele fez o próprio coaxar. Para o t-rex, Spivak mixou em uma gravação reversa um rosnado de pantera. Spivack usou um rugido de elefante para os tricerátopo (antes de eles serem editados, é claro) e alguns gritos de aves para o pteranodonte. Urros foram empregados para criar o som da respiração pesada das criaturas. Todos os sons foram regravados a uma velocidade lenta para criar um tom mais baixo. (MORTON, 2005: 76)

Heitor Capuzzo complementa Morton afirmando que, quando a música, os diálogos e os efeitos sonoros (ruídos para ele) puderam ser trabalhados de maneira independente, com profundidade, a dialogia própria dos elementos do cinema tomou uma forma definitiva, estabeleceu-se uma interação horizontal e vertical das sonoridades na composição da trilha sonora. Para Capuzzo, King Kong representa um marco histórico pela maneira de utilizar o potencial dramático e narrativo dos efeitos sonoros, tradicionalmente usados apenas para complementar a descrição da imagem.

King Kong mostra que o ruído e suas diversas possíveis combinações com a música permitem resultados até então impensáveis, seja acrescentando um novo nível de significação, seja, até mesmo, suprindo possíveis falhas ou imperfeições da ação filmada (...). Os efeitos sonoros em King Kong não são apenas acompanhamentos da imagem. Criam tensões dramáticas pela sobreposição de sons.

33 Grafia do texto.

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Quando Kong resolve escalar o Empire State e é alvejado pelos aviões, ouvem-se gritos da mocinha, brados do gorila, ruídos dos voos rasantes dos aviões, tiros de metralhadora e efeitos musicais. Mas os realizadores sabem como adequar todos esses recursos sonoros, alternando-os de acordo com o crescendo dramático da impossível luta do selvagem numa civilização urbana. Ao ser alvejado, somente os aviões e as metralhadoras estão sonoramente presentes. Quando Kong está prestes a ser vencido, a música volta à cena numa importante alusão ao sofrimento do rei. É vital que a música pontue dramaticamente este instante, pois o boneco utilizado para a sequência não permite nuanças faciais expressivas. É a distância da câmera aliada à utilização progressiva das demais bandas sonoras, com o som dos aviões, tiros e, posteriormente, a entrada da música, que possibilitam a empatia do espectador para com a subjetividade da fera. (CAPUZZO, 1995: 62-63)

É notável como o trabalho de gravação de sons e de montagem de Spivack se assemelha às características de todas as descrições feitas por parceiros de Splet sobre seu trabalho. Fica evidente que ele já adotava construção em camadas de efeitos sonoros de fontes sem qualquer relação com o que a imagem mostra e o fez de uma maneira inusitada para sua época. Se o que ele produzia com sons tão diversos representaria um exemplo de polifonia já é uma outra questão. Tantos sons de fora da diegese, operam num efeito sincrônico de verossimilhança, como num coro que direciona vozes em uníssono para um efeito preciso, mais claro e potente. Portanto, se considerada novamente a delimitação de Wolf Frobenius (FROBENIUS, 2014: 1) acerca do conceito de polifonia – “o desenvolvimento integral das partes separadas - o investimento de várias partes com o caráter de uma voz principal e as reuniões de acompanhamento de vozes para o status de contra-vozes” –, fica claro que a combinação de sons distintos produzidos como efeito sonoro único de Spivack não configura um exemplo. Não há contraponto algum no resultado, sincrônico e fiel ao que as imagens mostram. Pode-se dizer que, ironicamente, tal efeito fica desconectado até de pretensões realistas, já que nenhum desses animais jamais foi de fato ouvido por humanos. Mas é aí que reside o trabalho de verossimilhança. Ele torna, por meio de uma gama de efeitos, todo e qualquer elemento da ficção, real ou imaginado, algo crível para as referências do espectador. Como Chion lembrando o soco cênico. Mais pessoas já assistiram a uma briga no cinema

163 do que ao vivo, em condições auditivas ideais, isoladas do burburinho das conversas e demais sons ambientes para conferir se o impacto de um punho no rosto soa mesmo como duas tábuas de madeira batidas uma na outra. Qualquer referência sonora de dinossauros que temos obrigatoriamente veio do cinema ou de alguma mídia audiovisual dele derivada.

3.3.3 Sobreposição de efeitos sonoros de Veludo azul comparada à de Meu Tio

Meu tio

Ficha técnica (conforme créditos)

Meu tio (Mon oncle, França/Itália, 1957) Formato: 35 mm, cor, mono Duração: 117 min. Direção: Jacques Tati Produção: Jacques Tati, Louis Dolivet e Alain Terouanne, para as produtoras Specta Films, Gray-Film, Alter Films, Film del Centauro e Cady Films Roteiro: Jacques Tati Fotografia: Jean Bourgoin Montagem: Suzanne Baron Música: Franck Barcellini e Alain Romans Som: Jacques Carrere Elenco: Jacques Tati (Sr. Hulot), Jean-Pierre Zola (Charles Arpel), Adrienne Servantie (Sra. Arpel), Alain Becourt (Gerard Arpel), Lucien Fregis (Sr. Pichard), Adelaide Danieli (Sra. Pichard), Dominique Marie (vizinha)

Sinopse: O Senhor Hulot é um homem simplório que mora no subúrbio. Ele vai visitar sua irmã, que mora com o marido e o filho pequeno numa casa toda automatizada num bairro moderno. O menino nutre simpatia especial pelo tio

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desajeitado e seu pai busca um trabalho para Hulot na fábrica onde trabalha como gerente. “Se você desligar o som de um filme do Jacques Tati, você vai perder tanto, talvez metade do humor. Para o Jacques Tati, cada efeito sonoro é uma oportunidade para o humor” (DAVID, 2011)34, analisa David Lynch para o documentário Il était une fois... Mon oncle (França, 2008), de Camille Clavel, episódio do programa Il était une fois. Lynch considera Tati um gênio por encontrar ou criar os sons que, para ele, acrescentam tanto ao mundo do diretor francês. A partir daí já fica admitidamente clara uma importante, se não fundamental, referência sonora para seus filmes. A música de Franck Barcellini e Alain Romans adiciona fluidez, leveza, e descontração às cenas, quase sempre marcando a transição de uma para outra. O acordeão é um dos instrumentos mais recorrentes nela, além de uma referência mundialmente conhecida da música popular francesa. A trilha musical confere, por meio de sua melodia e compasso, uma camada adicional de irreverência às situações que o Sr. Hulot enfrenta, além de sublinhar o caráter afetivo e alegre da relação entre ele e seu sobrinho, o menino Gerard (Alain Becourt). Ela funciona num registro alinhado ao uso clássico da música no cinema, buscando direcionar e intensificar a emoção do espectador para a intenção do diretor para a cena. No restante do tempo, são as falas e, principalmente, os efeitos sonoros que guiam a parte auditiva do filme, trazendo uma peculiaridade de Tati. O cineasta francês elaborava todos os sons de seus filmes depois das filmagens encerradas. No mesmo documentário, imagens de arquivo mostram o próprio Tati explicando que deixa os diálogos no mesmo nível dos sons ambiente, como as vozes que ouvimos em lugares movimentados sem prestar ou sem poder prestar a mesma atenção de uma conversa cara a cara, compreendendo apenas fragmentos da informação. A narração lembra que para Tati, assim como para o escritor Samuel Beckett, a comunicação várias vezes é reduzida a um tipo de mingau verbal, com ruídos, onomatopeias e trechos de frases. As palavras seriam como qualquer outro

34 Assistido por meio de um vídeo com o trecho da entrevista de Lynch, identificado como David Lynch and Tati on Mon Oncle, publicado no portal de vídeo Youtube em 19 de fevereiro de 2011 pelo perfil Alma MATtER. A referência bibliográfica, portanto, está listada pelo nome do vídeo.

165 som e o cinema de Tati rompe com a continuidade da trama, privilegia descrições de objetos e apresenta personagens humanos desprovidos de substância. Suzana Reck Miranda prossegue com esse raciocínio.

Para Tati, a palavra vale mais pelo seu som do que pelo significado. Timbres curiosos, inflexões inusitadas e articulações incompreensíveis falam sobre quem são seus portadores e, ao mesmo tempo, integram democraticamente uma peculiar paisagem sonora cujo imperativo é o deslocamento: voz-que-pode-ser-ruído-que-pode-ser-música e assim por diante, compondo boa parte da poesia pretendida em sua estética fílmica. (MIRANDA, 2008: 30)

Na trama, Sr. Hulot passeia entre dois mundos, o antigo e o moderno, e aborda os conflitos das relações sociais. A presença ostensiva das máquinas e aparelhos no mundo moderno em que vivem sua irmã e seu cunhado lhe rende fartura de oportunidades para gags. O que a autora chama de jogo de sentidos se apoia nas relações entre som/imagem e som/fonte sonora. “Tati, propositalmente, utiliza apenas sons pós-produzidos, o que lhe permite total liberdade para explorar a natureza arbitrária entre o que se vê e o que se escuta no filme” (MIRANDA, 2008: 31). No bairro de Hulot, a paisagem sonora é leve e solar, traz uma fartura de vozes de adultos conversando, gritos de crianças brincando, pássaros cantando e música alegre. Na casa dos Arpel há vários aparelhos que produzem sons não raro semelhantes, organizados de maneira predominantemente isolada, coesa e asséptica. “O resultado deste constante deslocamento entre os distintos universos sonoros lembra características típicas de uma obra musical: ritmo, tensão, repouso, contraste, discurso e desenvolvimento”, Miranda avalia.

A analogia realista entre sons e objetos é claramente secundária. O que vale, para Tati, é a relação que um ruído pode estabelecer com sua possível fonte sonora, seja ele produzido por seus personagens ou pelo mundo que os cerca. Desta forma, o som revela muito da natureza humana e social de Meu tio. Como já foi dito, a sonoridade da voz descreve, de certa forma, a personalidade de quem fala e os sons produzidos pelos corpos em movimento, também. Por exemplo, os passos do casal Arpel, na sequência em que são apresentados ao espectador, soam como objetos pontiagudos que tocam em uma superfície de vidro, o que

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resulta na sensação de uma pisada superficial, talvez o equivalente sonoro da expressão popular "pisar em ovos". Já os passos de Gérard sugerem o som de um material mais aderente e agradável aos ouvidos, fato que o torna mais simpático e próximo. (...) Outro deslocamento típico em Tati é o que ocorre entre os sons e suas respectivas fontes. Em vários momentos, o filme provoca no espectador uma dúvida sobre a origem de um som. É o que ocorre na sequência em que Hulot entra em sua casa e abre a janela da sala. Imediatamente, ouvimos o som de um pássaro que, logo em seguida, cessa. Hulot novamente movimenta a janela e o som retorna, como se fosse decorrente deste movimento. Segundos após é que o filme nos revela a verdadeira origem do som: o vidro da janela, em uma determinada posição, projeta o reflexo da luz do sol na gaiola do pássaro de um vizinho. Quando a luz atinge o pássaro, ele canta. (MIRANDA, 2008: 31-32)

Miranda conclui que Tati cria um universo poético que se vale dos sons, normalmente pouco aproveitados no cinema. “É um mundo que, mesmo visto de longe, uma vez que o enquadramento de Tati privilegia planos abertos, soa muito próximo, ao "pé do nosso ouvido". E sobre isso que Chion trata em Film, a sound art quando aborda o ponto de audição e som subjetivo. Chegou-se a estipular que a distância de gravação ideal equivaleria àquela do ponto de vista. Não é assim. Há de se privilegiar a audição dos personagens em destaque, como quando a cena é aberta ou eles estão num veículo que passa longe da câmera e ainda assim ouvimos com proximidade o diálogo. Portanto, não é um som realista, mas seus artifícios nos dão a impressão de ser mais próximo do real (CHION, 2009: 294). De novo uma questão de verossimilhança, que Tati evita para reiterar a divertida artificialidade sonora de seu universo. O autor reitera que o som não é uma camada de realidade complementar à da imagem, mas uma construção posterior, como os filmes de Tati tão bem exemplificam. Todos seus diálogos são dublagens de pós-produção. Mais uma camada de artificialidade sonora. Separação e recomposição, não necessariamente em perfeita sincronia. Tati incita a achar a fonte exata do som, destaca detalhes sonoramente e cria um ambiente bem peculiar (CHION, 189-198). Gilles Mouëllic cita o autor Serge Daney, que escreveu no jornal Libération que Tati inventou o som moderno no cinema, já que a memória

167 vívida das plateias dos efeitos sonoros que ele usava estava no aspecto não realistas deles. Para Mouëllic, Tati “não apenas inventa novas harmonias entre imagens e sons (a dimensão vertical), mas pensa os sons um em relação ao outro, um após o outro, ao longo do tempo (a dimensão horizontal)” (MOUËLLIC, 2003: 125). Há momentos em que todos os sons se misturam, atuando sem hierarquia como rumores dos personagens, a exemplo do que sugeria Pierre Schaeffer. Na montagem "horizontal" a complexidade vai escalando, conforme a sucessão rítmica evolui como uma obra de música concreta. O papel de Jacques Carrere nessa criação é incerto. Pelo portal IMDb, ele atuou mais como um engenheiro de som sendo a paisagem sonora mérito de Tati. Não há nas referências aqui citadas indícios claros sobre a verticalidade da edição de sons no sentido de quantos sons eram somados para a elaboração de cada efeito. Mas há pelo menos dois momentos em que os efeitos sonoros do filme se sobrepõem. Quando a vizinha vem conhecer a casa da Sra. Arpel e o fogão indica sonoramente que a comida está pronta enquanto ela caminha com os passos claramente artificiais em sua sonoridade, como menciona Miranda. Outro momento é a quando Hulot está no interior da fábrica e diversas sonoridades se somam no ambiente. A sincronia não parece exata, mesmo em termos labiais enquanto há diálogos, mas os sons não vocais também sempre se prendem a uma fonte visual na cena. Eis aí a principal diferença entre o trabalho de Tati e o do Splet, que em tantos outros aspectos se parecem. A ausência de compromisso com o verossímil sonoro está presente em ambos os filmes, Meu tio e Veludo azul. Mas no filme francês ela é um aspecto integral, que permeia todo o filme e todos os aspectos sonoros não musicais, não algo pontual. Por outro lado, quando Splet usa os efeitos abstratos de que Lynch fala, o visual está lá prévia e premeditadamente pensado para que se gere um contraponto entre imagens e sons. A artificialidade sonora marca os dois trabalhos e a dúvida da origem do som é mais presente em Meu tio. Compreendido o estranhamento proposto por ele, fica claro que o universo criado por Tati é artificial e se estabelece um grau de conforto proporcionado pela previsibilidade do procedimento. Cria-se um sentido: a paisagem sonora reflete a artificialidade da vida da parte dos

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personagens que vive a sociedade moderna e a inadequação de quem, como Hulot, parece parado num outro tempo que, para os que vivem naquela sociedade, se foi. Até porque cenários, interpretação dos atores, toda a mise- en-scène se apoia em algum grau nessa artificialidade. Nesse sentido, o som é condizente com ela. Há uma coerência interna, um acordo inverossímil e constante nas imagens, nos sons e nas relações que estabelecidas entre eles. Em Veludo azul esse grau de conforto não acontece. Embora predomine a sincronia verossimilhante de vozes e sons, Splet torna momentos específicos e imprevistos fonte de incômodo. Pois seu trabalho com efeitos sonoros não só atua num sentido de subverter impressões preliminares de sentido no espectador, como a certeza de que, nos termos daquela narrativa, aquilo a que se assiste é real, não um sonho ou imaginação. Lynch dá corda narrativa para então enforcar o conforto de um entendimento que parecia estar vindo, mas se revela um alarme falso – e some-se a isso a ironia de canções que destoam completamente do clima de certas cenas. Se Tati atuou no sentido da inadequação e artificialidade constantes, Splet interfere pontual e imprevisivelmente, numa trama que se pretende sensorial, atmosférica, não lógica, muito menos conclusiva. Tati leva além a mera função verossimilhante reconhecida no trabalho de Murray Spivack, mas não chega a realmente traduzir um pensamento polifônico sonoro. Seus efeitos parecem um descompasso musical ou um tenor cantando a opera escrita para um barítono. Não há um descolamento da proposta original do cinema. A narrativa segue, é compreendida e concluída, mesmo sem a verossimilhança.

3.4 Conclusões sobre o capítulo

Passados 30 anos de sua estreia, Veludo azul segue como um filme emblemático de sua época, tanto em termos da década em que foi produzido quanto do momento cultural que, identificado como pós-moderno ou contemporâneo, guarda importantes características que perduram até hoje, com marcante respaldo midiático da crítica cultural da época e acadêmico,

169 como exemplo de autoria de um cineasta que se destaca da estética habitual de produções de porte equivalente em seu país. Há quem, como Chion, perceba no filme uma evidência da maturidade artística em Lynch, temática, técnica e estética. Há elementos marcantes no filme, como em sua filmografia como um todo, de uma forte influência surrealista nas suas construções imagéticas e outra expressionista no seu trabalho com som, especialmente em termos de efeitos sonoros. O papel de Alan Splet neste último aspecto foi determinante. Nos estudos de som, entretanto, o filme tende a ser preterido em análises mais aprofundadas da obra de Lynch, em favor do frequentemente valorizado Eraserhead. Não há em Veludo azul o grau de ousadia deste filme em termos de paisagens sonoras estranhas, ao menos não pelo volume constante em que ele mantém essa atmosfera sonora industrial, eólica e onírica. Mas há contrapontos sonoros claros, assim como em O homem elefante, que faltam a Eraserhead. Nada como a relação quase completamente contrapontistas entre imagens e sons de The grandmother, onde até se tornam previsíveis. Gemidos de prazer que soam como explosões ou ventos, gritos que parecem estática distorcida de formas inimagináveis e insetos que parecem manter uma conversa de pregão de bolsa de valores. Sem aviso prévio. De repente, subvertendo a trama, o clima, as certezas. O contraponto que Lynch se habitou a criar por meio dos efeitos sonoros de Splet se expande para a esfera musical, quando canções pop dos anos 1950 e 1960 passam a criar o mesmo efeito de estranhamento. Último filme do diretor em parceria com o sound designer, fica clara a transição de um tipo de procedimento para o outro. Tempos atmosféricos dilatados e contrapontos de efeitos sonoros voltariam só em Império dos sonhos, último longa-metragem lançado de Lynch, este já com 10 anos. Não há mais distinção entre imaginação e realidade, como explica Ferraraz. Saem os cenários surreais de The grandmother e Eraserhead. Sai a Londres vitoriana de O homem elefante e sai o futuro distante e intergaláctico de Duna. O pesadelo se instaura ao cair do dia que torna o subúrbio americano tão pacato e bucólico. Quando não há uma orelha decepada no caminho para indicar uma outra realidade, perturbadora, que se

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apresenta de maneira quase sempre sugerida, esgueirada, quando não sarcástica, pela chave do som. Numa perspectiva histórica, duas referências de filmes que marcaram época por seu trabalho de sobreposição de efeitos sonoros ajudam a entender o grau de sofisticação que Splet alcançou com Lynch por meio do filme, em plena produção americana com estrutura de estúdio e ampla distribuição. O primeiro, King Kong. Nos bastidores, práticas muito próximas às de Splet, décadas depois. Mas os efeitos construídos atendiam outras demandas. O filme trouxe o universo extra-diegético em peso para a área VIP da verossimilhança, com o privilégio de silenciar vozes humanas em respeito a ela, ainda na verborrágica primeira década do cinema sonoro. O segundo, Meu tio, quase um quarto de século mais tarde, se desprende da verossimilhança, mas não da parceria entre o som e a imagem, esta sempre norteando sua artificialidade dos efeitos sonoros sempre oriundos – como todas as vozes também – da fase de pós-produção. Mesmo as imagens filmadas não sendo as de bonecos de gorila e dinossauros registrados em stop motion, mas sim atores reais em movimento no exercício de sua oralidade. Uma artificialidade que é parte de uma narrativa, num universo cômico peculiar como o de Jacques Tati. Faz-de-conta aceito, imersão garantida e divertida. Há propósito, há contexto, há sentido. Veludo azul representa a chegada de experimentações sonoras de Lynch e Splet para uma produção de volume maior, como O homem elefante já havia conseguido, mesmo como filme de época, e Duna superou em dimensões e custos – inclusive o da marca autoral de Lynch, sem direito ao corte final do filme. Ainda que não pioneiro na ousadia da dupla nesse contexto de produção, Veludo azul acrescenta e estabelece a base temática, o pesadelo por trás da (aparente) realidade cotidiana, que Lynch retomaria em obras posteriores, como o seriado Twin Peaks. E a música entre o jogo sincrônico e o diacrônico, passado revivido como nostalgia numa nova realidade, não como flashback. A presentificação do passado, conforme Maffesoli. Por fazerem o extra-diegético presente, com efeitos novos e imprevistos, as misturas de efeitos sonoros no filme refletem o que as canções antigas da trilha musical explicitam, o momento cultural híbrido

171 contemporâneo, que mescla sincronia e diacronia. Passado e presente confluem em simultaneidade, conforme explica Santana. Um momento que ainda se mantém, justificando o interesse pelo filme. Um momento em que o sentido original se esvai e parece se restringir ao propósito de tão somente ser essa mistura. Uma dúvida que não existia na escuta de King Kong, que surge em Meu tio e que norteia Veludo azul.

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CONCLUSÃO

Sensorialidade polifônica

“E o som começou a se abrir e dissemos: "Meu Deus, é isso!" Então foi assim - sabe, você não sabe como algo assim acontece. Sabe, não é consciente? Ou será que ele apenas... foi um acidente de sorte ou o quê? Mas era o som certo. E lá estava ele, sabe”.

(Alan Splet, em entrevista a Kenneth George Godwin, sobre Eraserhead, 17 de dezembro de 1981)

173 Alan Splet construiu uma filmografia bastante diversa ao longo dos 25 anos e das 25 produções em que atuou, quase sempre como um verdadeiro faz tudo de som cinematográfico, um criador de talento reconhecido, mas antes de tudo, um realizador do som para filmes. Chegou a participar de produções em que não se nota nada de extraordinário nas sonoridades apresentadas. Tinha um grande potencial a ser aproveitado. Nem sempre foi. O sound designer participou com êxito de produções em que o valor narrativo da paisagem sonora foi determinante. O “oscarizado” O corcel negro (The black stallion, EUA, 1979) sendo o mais lembrado exemplo, mas não o único. Discreto, foram raríssimas as entrevistas que ele concedeu, menos ainda aquelas em que ele fala de forma mais elaborada. Esperar declarações plenamente esclarecedoras, intelectualmente sofisticadas e (o oposto de seus melhores trabalhos) surpreendentes sobre seu trabalho seria contrariar o propósito de seu talento para explorar a sensorialidade dos efeitos sonoros – além dos segredos de bastidores que ele admitiu que Lynch preferia manter. Sua escuta, privilegiada pela limitação física na visão, contribuiu tanto no sentido de buscar sonoridades das mais específicas, que resultaram na sua comentada audioteca, preservada por sua viúva Ann Kroeber, para a criação de efeitos bastante complexos, como também permitiu construir efeitos sutis, que nem sempre são percebidos ou absorvidos na sua completude. As obras aqui abordadas e analisadas são certamente exemplos mais destacados da criatividade de Splet. Até porque a pesquisa teve início com o objetivo claro de buscar e compreender um aspecto específico de arquitetura sonora, a sobreposição de efeitos sonoros, e foi essa procura que norteou a escolha de Splet como objeto de estudo, não o contrário. Para uma filmografia curta em virtude de sua morte prematura, Splet trabalhou pelo menos três vezes com três diretores: David Lynch, Carroll Ballard e Philip Kaufman, além de bisar parceria com Peter Weir e Richard Patterson. De 25 filmes, 15 foram dirigidos por cineastas que escolheram trabalhar com Splet novamente. Portanto, ele costumava manter uma clientela fiel para seus serviços. Mas se houve um parceiro de trabalho que foi capaz de aproveitar ao máximo – ou, pelo menos, muito mais – seu talento e sensibilidade, esse realmente foi Lynch. Com ele, Splet pôde

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explorar tudo o que alcançou com os outros e ir muito além, pela afinidade de ideias, o entrosamento, o afeto compartilhado e a abertura a experimentação que ambos nutriam e expressavam. Considerando-se meramente o tipo de construção sonora priorizada nesta pesquisa, o filme ideal de Splet a se analisar teria sido The grandmother (EUA, 1970) um curta-metragem independente e experimental de acesso restrito por muitos anos, embora hoje possa ser visto até pelo portal de vídeos Youtube. De qualquer modo, um filme de impacto cultural bem mais restrito que qualquer longa-metragem de Lynch. E também cabia à proposta da pesquisa confirmar se um filme americano de longa-metragem, realizado com maior produção e orçamento, amplamente divulgado e distribuído em todo mundo, estava resgatando na década de 1980 a valorização do contraponto que, na aurora do cinema sonoro, Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e Grigori Aleksandrov propuseram de forma restritiva e que Dziga Vertov soube compreender com um elemento possível, de grande valor, mas não de caráter obrigatório, influenciando posteriormente as experimentações de Jean-Luc Godard. Portanto, da perspectiva de Vertov, a resposta para a pergunta desta pesquisa é sim, Splet também usou contraponto, mas não exclusivamente. O mesmo procedimento mesclado já havia sido feito por Eisenstein, Pudovkin e Aleksandrov (além de Vertov) ainda nos anos 1930, conforme os filmes analisados no capitulo 1. A sintonia artística se confirma nesse aspecto. Outra confirmação é que o trabalho de camadas de efeitos sonoros extra- diegéticos realizado por Splet não somente não configurou novidade – vinha desde a infância do cinema sonoro –, como é a praxe da edição de sons de cinema. De qualquer forma, poucos filmes com trabalho destacado de efeitos sonoros, de que há registros de teóricos para tecer comparações, marcaram época como King Kong (EUA, 1933) e Meu tio (Mon oncle, França, 1957), que ajudam a destacar os contrapontos de Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986) – e dos filmes de Lynch com Splet como um todo. O maior desafio da pesquisa se revelou delimitar claramente se o trabalho dessa parceria, especificamente em Veludo azul, constitui de fato uma construção polifônica. Ao menos em certos momentos. Vale recapitular a conceituação de Mikhail Bakhtin de que polifonia é multiplicidade de vozes

175 plenivalentes, consciências independentes, imiscíveis e simultâneas. Gustav Mahler acrescenta que, musicalmente, esse tipo de pensamento implica em sons de origens e temas muito diversos em seu caráter rítmico e melódico, ainda que organizados de modo congruente e harmonioso. Caso contrário, trata-se de uma homofonia disfarçada. Tudo muito intelectual, metódico e restritivo, de modo a criar um efeito que, ainda que plural, é específico. Quando Murray Spivack ou Jacques Tati combinam sons diversos em função de um sentido também específico – o primeiro de criar um efeito que faça bonecos parecerem reais e vivos e Tati para criar artificialidade cômica, é improvável afirmar que tais sons se mantinham independentes na trilha. Há nos dois graus variados, porém claros de consonância, por mais que o diretor francês opere numa constante de estranhamento de seus sons “não musicais” – a própria regularidade implica numa forma consonante do todo, de seu propósito. Não ocorre contraponto em nenhum dos casos, por mais de fora da diegese que os efeitos sonoros usados venham. Com Splet há momentos de evidente dissonância. Camadas diversas de efeitos sonoros de fora da diegese se descolam da imagem e atuam de maneira autônoma, puxando (o que Walter Murch garantiria) ou não imagens que se assemelhem a possíveis fontes dessas sonoridades. Não apenas para criar estranhamento, o que Tati já criava com tanta propriedade. Mas também para causar perturbação, deixar evidente que ali falta informação, um sentido, que não adianta tentar racionalizar, que não haverá uma resposta coesa, una. O que Bakhtin chama de vozes aqui funciona para sons de variadas origens. Perturbação que, diferente de Godard, não expele o espectador da fruição narrativa, mas faz com que ele mergulhe ainda mais fundo nos pesadelos e perplexidade enfrentados pelos personagens. Esse efeito que predomina em The grandmother se potencializa, fora o possível alento de uma câmera lenta, quando Lynch deixa os cenários fechados e estilizados de influência surrealista e expressionista. Em O homem elefante (The elephant man, EUA/Reino Unido, 1980) filme de época, esses momentos ainda acontecem em cenários à parte, oníricos. Em Duna (Dune, EUA, 1984) nem acontecem, afinal tudo ali é fantasia de ficção científica futurista, inclusive o rico trabalho de ambientes sonoros e as curiosas distorções vocais de algumas personagens. Em Veludo azul, o

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quarto de casa, a rua e um gramado de quintal bastam como porta de entrada para um efeito de aprofundamento sensorial de que o som é a chave. Sem a clareza de que a realidade da ficção é a da normalidade sincrônica diegética que predomina ou a dessas rachaduras narrativas que revelam o que palavras e gestos nem sempre dão conta. Passadas três décadas, essa receita mantém seu fôlego e apelo, o que também justifica esta pesquisa. A alternância de momentos de sincronia e de diacronia, especialmente de procedimentos sonoros, como efeitos e música, insere Veludo azul nas práticas culturais compreendidas como contemporâneas, em que as fronteiras de tempo e os sentidos de produtos culturais se mesclam e se atualizam sem rigidez nem previsibilidade. Essa característica, mais que qualquer outra do filme, dá conta de seu valor duradouro como obra cultural. Quando fragmenta os sentidos de sua narrativa de modo a burlar qualquer compreensão mais precisa, Lynch abre para Splet o caminho para explorar a sensorialidade dos sons que grava e combina, seu valor tão somente enquanto timbre, frequentemente sem uma explicação racional que justifique a escolha. E aí o sound designer nada de braçadas no mar de ideias que Lynch quer deixar livre de explicações. Isso, mais que valor cultural, mais que a liberdade de não criar sentidos, assegura um valor emocional às sequências em que Splet pode fugir da verossimilhança. Considerando-se que Lynch divide todos os sons que não forem fala em efeitos definidos, efeitos abstratos e música, essa é a hora que os abstratos se fazem notar. Sendo a abstração um processo também mental, mas os efeitos de Splet selecionados e organizados para causar sensações, um caráter emocional, há mais precisão em identificá-los como efeitos sensoriais. Como são vários e operam em sobreposição sem precisarem caminhar rumo a uma informação única ou qualquer composição de informações que leve a um sentido pontual, por mais plural que seja tal composição, a polifonia que organiza esses contrapontos também fica mais claramente identificada como uma polifonia de cunho sensorial. Não há indícios nas declarações encontradas de Lynch nem de Splet de que esse intuito fosse racionalizado, à maneira dos quatro russos nem à de Godard. Sem falar no caráter ideológico da obra desses cinco cineastas, o que não há em Lynch.

177 Enquanto o contraponto dos cineastas russos visava que sons não descritivos da imagem gerassem um sentido – não raro acentuadamente intelectual – além daqueles isolados da imagem e do som, ao estilo do efeito Kulechov (imagem A + som B = sentido C), Splet conseguiu alcançar com Lynch algo que Joan Neuberger não reconheceu na parceria de Eisenstein com o compositor Sergei Prokofiev, o grau da plasticidade plural, intricada, sinestésica e multisensorial que poderia fazer a montagem de seus filmes ser de fato chamada de polifônica. Pode-se reconhecer sensorialidade e contraponto sonoro no trabalho do cineasta russo da teoria da montagem e do manifesto de 1928, mas em seus momentos livres da verossimilhança, a chave sensorial da polifonia de Splet leva essa complexidade além. Veludo azul exemplifica bem essa qualidade tão peculiar de seu trabalho. Ainda que sem negar a estrutura polifônica em momentos específicos e imprevistos do trabalho de Splet no filme, o próprio conceito de polifonia, com sua rigidez conceitual, parece não dar conta totalmente do resultado alcançado por ele. Sem a intenção, tão claramente apontada por R. Murray Schafer como determinante para o trabalho de composição musical, seja lá com qual tipo de som, seria forçado limitar o sound design de Alan Splet à categoria de uma polifonia que não se sabe se ele pretendia alcançar. Sua meta de instigar sentimento se baseava no timbre, na sensorialidade do som. Uma sensorialidade certamente polifônica, mas com substantivo e adjetivo na ordem de suas prioridades sonoras.

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189 APÊNDICES

Entrevistas

Apresentação

Com o intuito de oferecer informações de primeira mão sobre aspectos sonoros da produção de Veludo azul, bem como do trabalho como um todo e do convívio com Alan Splet – assim como também sobre o trabalho de som de David Lynch e dos diretores com quem Splet mais trabalhou – variadas entrevistas foram solicitadas. Tendo Splet falecido em 1994, a proposta era seguir como exemplo a investigação ao estilo do filme Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941), de Orson Welles: conhecer aspectos importantes do indivíduo por meio de quem conviveu pessoalmente com ele ou quem já o havia pesquisado. Das pessoas que não puderam ser entrevistadas dentro dos prazos desta pesquisa constam o próprio Lynch, ocupado com a produção da nova temporada de Twin Peaks (EUA, 2017-), conforme informado por e-mail enviado por seu assistente Michael T. Barile. O diretor Philip Kaufman também não pôde participar por estar preparando um novo projeto, segundo e-mail enviado por sua assistente Angela Tse. Não houve retorno para os contatos feitos com o cineasta Carroll Ballard, nem com Frank Eulner, assistente direto de Splet na época de Veludo azul e hoje supervisor de edição de som da . No âmbito acadêmico, embora tenha havido trocas de e-mail iniciais com a professora Liz Greene, autora da tese Alan Splet and sound design: An archival study, a entrevista não chegou a se realizar. As duas referências teóricas brasileiras (com igualmente longa experiência prática artística) mais determinantes para esta pesquisa, Eduardo Santos Mendes e Luiz Adelmo Manzano, foram entrevistados pessoalmente – os demais por aplicativo Skype ou e-mail. A seguir, a transcrição das entrevistas que puderam ser concedidas, organizadas por ordem de início das conversas ou trocas de e-mail.

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LUIZ ADELMO MANZANO (Entrevista 2015 a)

Mineiro de Belo Horizonte, Manzano atua no cinema desde 1992, como editor de som, mixador e sound designer, entre outras funções. Estreou em longa- metragem de ficção com Perfume de gardênia (Brasil, 1992), de Guilherme de Almeida Prado. Seguiram-se obras como Guerra de Canudos (Brasil, 1997) e Mauá - O imperador e o rei (Brasil, 1999), ambos de Sergio Rezende, e Saneamento básico, o filme (Brasil, 2007), de Jorge Furtado, além de documentários como O cineasta da selva (Brasil, 1997), de Aurélio Michiles, e Person (Brasil, 2007), de Marina Person, e vários curtas-metragens. Na TV, a série Sessão de terapia (Brasil, 2012-), criada por Hagai Levi, do canal GNT, é um destaque recente. Venceu o prêmio de melhor som da Associação Brasileira de Cinematografia (ABC) por O palhaço (Brasil, 2011), de Selton Mello, em 2012, o de melhor edição de som no Festival de Cinema do Recife em 2007, com O mundo em duas voltas, (Brasil, 2007), de David Schurmann, e em 1998, com A hora mágica (Brasil, 1999), de Guilherme de Almeida Prado, e os Candangos de melhor som do Festival de Brasília de 1993 pelos curtas-metragens Soneto do desmantelo Blue (Brasil, 1993), de Cláudio Assis, e Curva do labirinto (Brasil, 1993), de Hika Figueiredo. Doutor em Cinema pela USP desde 2005, sempre pesquisando som na pós- graduação, também publicou o livro Som-imagem no cinema em 2003 e ministra cursos de curta duração.

Entrevista concedida presencialmente em 9 de novembro de 2015.

FABIANO PEREIRA - Eu queria saber, do seu entendimento, da sua perspectiva, como você enxerga a relevância histórica do trabalho do Alan Splet. O que você destacaria? LUIZ ADELMO MANZANO - Eu na verdade tenho até uma brincadeira com o Edu Santos Mendes. O Edu tem uma formação em que ele idolatra o Walter Murch. E eu sou um pouco a geração Ben Burtt. Eu acho que o Alan Splet

191 está no meio do caminho. Talvez, da mesma maneira, mantendo essa brincadeira que o Edu faz, de ele gostar mais do Walter Murch e eu gostar mais do Ben Burtt – se identificar, na verdade, não que eu não goste do Murch, os dois entendem ambos os trabalhos – o Edu se inspire mais no Alan Splet e eu vou mais para um lado (do cineasta Jean Luc) Godard. Não que um se oponha ao outro, mas eu acho que tanto o Alan Splet quanto o Godard, na verdade, abrem um modo de trabalhar ou uma possibilidade de experimentação que tem a ver com tecnologia, com o avanço tecnológico, de você ter desde possibilidade de reprodução de mais canais, assim como uma melhor reprodução na sala de cinema. Ou até, se a gente for mais a fundo, com uma melhor reprodução do ótico que está na sua cópia. É até gozado, quando você me falou do Alan Splet. Esses dias começou a passar o Mr. Robot (EUA, 2015-), criada por Sam Esmail, que eu não sei se você chegou a ver. É uma série que está super badalada. Foram dez episódios inclusive, quase que no risco, e virou a sensação. Pediram mais temporada e tudo mais, e que é super gozado porque você pega ali muitas coisas de anos 50 e 60, não só sonoramente, mas visualmente também, que você fala “gente, isso aqui parece cinema italiano dos anos 50”. O mesmo jeito de enquadrar do (cineasta Michelangelo) Antonioni, é um tempo cinematográfico diferente, é um tipo de construção em que hoje talvez herda esse impacto de “vamos tentar fazer uma coisa mais, sei lá, remetendo a um estilo” e está um pouco assimilado no dia-a-dia. Nas minhas aulas, eu até brinco com os alunos que tem sempre aquela coisa de gosto, “gosto mais disso, gosto mais daquilo”. E é aquela coisa, mesmo hoje, que a gente tem aquela avalanche de filmes de super-heróis, quando você pega o novo Superman (Batman vs Superman: A origem da justiça (Batman v Superman: Dawn of justice, EUA, 2016, dirigido por Zack Snyder), tem coisa ali que eu te juro que o cara está achando que está fazendo Godard. Ele está fazendo Nouvelle Vague. Por quê? Porque ele está fazendo faux raccord, ele está fazendo uma passagem de tempo que em três cortes ele saiu da praia e chegou na cidade e você fala “Ãh?”. Naquele momento eram coisa impactantes, hoje já são coisas assimiladas. A gente, até por ter acesso a diferentes meios, a mais variada produção, tudo quanto é filme, japonês, leste europeu, iraniano, seja lá onde você for ver, esse tipo de experimentação já está assimilado e ela acabou virando mainstream. No

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caso do Alan Splet, aí colocando isso, eu acho talvez seja um pouco, para o cinema americano, esse mesmo impacto talvez que, por exemplo, nos filmes do Godard você tinha para o cinema europeu. Que é essa coisa de alguém que encontra um David Lynch e resolve fazer uma coisa que se eu pegar um rapaz de 16 anos hoje entrando numa escola de cinema, ele vai tomar como a coisa mais natural do mundo. Que é “opa, eu tenho um computador, eu tenho um programa de edição de vídeo em que eu posso ficar brincando com som ao mesmo tempo. Sendo que 30, 40 anos atrás isso era completamente diferente, isso era completamente complexo. Porque você tinha o seu filme na moviola e você precisava projetar ou parar para projetar o que que aqueles sons, que eu ia trabalhar com rolos de magnético, junto com aquela imagem, iam resultar no final. Que é uma coisa de visionário. É uma coisa de você falar “Ãh? Mas será que esse som com aquela imagem vai?”. No caso do Godard você tinha esse impacto. Seu eu pegar, sei lá, os primeiros filmes do Godard, se eu pegar o Acossado (À bout de souffle, França, 1960) se pegar Alphaville (Alphaville, França/Itália, 1965), coisas assim, tinha isso. E quando você começa a investigar... ou, que nem no meu caso e no caso do Edu até, que a gente teve uma vez um contrato com um técnico de som que trabalhou com o Godard, e aí ele contando o jeito de trabalhar do Godard, era muito interessante isso. E aí já é um cara que junto da moviola tinha máquina de transcrição. É quase como se ele colocasse o que para a gente é obvio, mas que na época era a ultra novidade, de você ter máquinas de transcrição, que no fundo é uma estrutura de mixagem, para não me limitar a duas ou três pistas que você trabalhava por vez na moviola, ele tinha 16 canais. Seria uma revolução enorme em que você podia, ao mesmo tempo em que estava editando a tua imagem, que você estava montando, podia experimentar aqueles sons diferentes para que você chegar naquele resultado. E que te dava resultado do tipo, sei lá, o uso de música do Godard, que era impressionante. Enfim, tem filmes e filmes de que você fala “de onde ele tirou isso daí? Que que é isso?”. E o impacto para a plateia nova é totalmente diferente. Era uma novidade, era uma construção, uma costura gramatical que não se tinha visto até então. Então eu vejo o Alan Splet um pouco como essa formação ou alguém que de repente consegue achar uma brecha, vamos dizer assim, na produção americana e que começa a fazer esse tipo

193 de articulação, de ter um cara que está dirigindo o filme, como o David Lynch, e aí fala “Cara, vamos ficar brincando o dia inteiro de fazer som? Que que acontece se eu botar um microfone dentro dessa CPU?”. E vamos ver o que acontece com isso daqui. Esse técnico de som francês que a gente conheceu, ele mesmo falava que o Godard chegava na filmagem e não era qualquer técnico de som que ia topar aquilo ali. É o cara que, de repente, vê o técnico de som com gravador de quatro canais, que na década de 80 era a novidade – se eu tivesse um Nagra estéreo já era o top de linha, hoje a gente tem oito canais como uma coisa mais acessível – e ele conseguia entender aquilo lá. E de repente ele chegava e falava assim “deixa dois microfones para a cena aqui e coloca dois microfones lá para a rua porque eu quero esse som ambiente”. Sensacional. Ou você fala “esse cara é maluco”, mas que é essa coisa de experimentação. Então, é muito isso. Eu vejo numa perspectiva histórica uma coisa desse tipo, de você conseguir antever esse tipo de coisa. E com essa sofisticação tecnológica – ok, no começo o mais importante era ouvir diálogo, depois diálogo e música e de repente entra o efeito... Mas de repente essa reprodução começa a melhorar tanto, que você tem esse elemento, que eu adoro, acho lindo maravilhoso, que é o ambiente, e você fala: “E se eu prestar atenção nessa história de ambiente e também começar a sofisticar nas ambiências do meu filme?”. Admirável mundo novo. Você tem um caminho pela frente e aí é só com ele. Na medida em que você começa a brincar de... “Cara, o que esses dois atores estão falando não interessa nada, vamos baixar o diálogo deles, vamos subir com o ambiente lá do fundo”. Se você pegar o Carmen do Godard (Prénom Carmen, França, 1983) ele tem essa coisa. De repente, você tem cenas românticas do casal falando com a praia ao fundo e não sei que, em que o Godard tira completamente a fala deles porque é uma forma a que a gente já está habituado e aí o casalzinho vai falar, sobe a gaivota lá no fundo, sobe a onda batendo, porque vai te construir um sentido. Você vai falar “nossa!”. Então eu tenho um pouco o Alan Splet nesse panorama. Talvez fosse um caminho inevitável. Mas, enfim, é quem efetivamente aproveitou e aí a parceria com o David Lynch é muito frutífera nesse sentido.

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FP - Você o aproximaria mais do Godard do que propriamente do Burtt e do Murch? LM - Sim.

FP - A referência que eu tenho é que depois daquela proposta inicial de contraponto dos anos 20 e dos primeiros filmes (sonoros) russos até 1934, parece que o Godard é quem retoma esse trabalho de som contrapontista, vamos dizer. Não sei se alguém nesse meio tempo que fez alguma coisa que, de repente, deixando passar (algo semelhante)... LM - Não, teve o Jacques Tati, mas que aí é outro universo. De ser tão marcante assim eu acho que não.

FP - Você falou de som ambiente. O que para você caracteriza mais claramente a identidade do trabalho do Alan Splet? Quais são as características que você chamaria de definidoras do trabalho dele. LM - Eu vejo a diferença do Burtt e do Walter Murch com o Alan Splet como um pouco de... Eu vejo no Murch uma coisa de pegar esse elemento, trabalhar o ambiente mais em relação aos outros elementos da trilha sonora. Então entender esse ambiente de, se eu subir esse ambiente de pássaro e selva do Vietnã (de Apocalipse now, EUA, 1979, de ) a um ponto absurdo, ele vai me dar um sentido gigantesco. E eu estou subindo esse ambiente e eu estou baixando a música, eu estou eliminando os efeitos... Pensando dentro da caracterização básica de diálogo, efeitos, ambiente e música. Essa coisa até de, ainda hoje até, as pessoas ainda nem separam tantos os efeitos de ambiente. Eu sempre separei isso, até por uma questão prática. No caso do Alan Splet, não é tanto o caso de trabalhar esse elemento ambiente separado dos outros, mas é de sofisticar esse ambiente. Essa coisa de procurar sons estranhos a partir de... Sei lá, é até gozado a referência que a gente pega no dia-a-dia. Dias desses eu estava procurando som para um longa, quando você chega num ambiente estranho você até lembra... Teve um filme que eu fiz uns dois anos atrás chamado “Moça”35. A gente estava no alto de um prédio da Assembleia Legislativa. De repente, lá

35 Manzano se referia a Naquela época e hoje (Brasil, 2014), documentário dirigido por ele mesmo.

195 no alto, a gente chegou numa sala de máquina, um buraco, não sei o que e tal, colocou o microfone, som meio estranho. Como é que vai se nomear esse som? Som David Lynch. É que tem essa referência. Eu lembro uma vez também, gravando som, eu fui parar no MAM lá de Niterói. Que é aquela espaçonave e tal. De repente, você está lá no meio e você para para ouvir essa vibração, tem esse som meio estranho e tal, virou sinônimo de som David Lynch. Na verdade, do que a gente está falando como som David Lynch? São esses sons estranhos com que você se depara no dia-a-dia e que no fundo você está falando “ah, esse é o Alan Splet”. Essa coisa de pegar sons modificados estranhos que eu acho que é o grande diferencial. Aí eu acho que tem um casamento David Lynch e Alan Splet, em que essa construção já quase sai pronta, já vai por ali pronta. Essa coisa que Ben Burtt faz bem, que a combinação Ben Burt e George Lucas no Guerra nas estrelas (Star wars, EUA, 1977, de George Lucas), fez bem. Antes de começar a filmagem eu já tenho esse sound designer que já vai começar a pesquisar som e aí, aquele negócio, à medida que você está fazendo a coisa. É quase como se você tivesse o (Angelo) Badalamenti de um lado e o Alan Splet do outro e fossem três cabeças pensando, falando “hmmmm, se eu enquadrar assim isso daqui, se eu achar um som meio assim”, “olha, já achei um som assim”. Ele meio que compõe em cima dessa ideia. O que é um pouco diferente do Walter Murch, e aí talvez o Murch tenha mais esse lado Godard de pegar esses elementos e pensar mais em montagem, pensar a articulação, de “opa, aqui é isso, depois é isso aqui”, de subir e descer, de pensar os movimentos sonoros dentro da cena. No caso do Alan Splet eu já vejo uma coisa mais de composição mesmo.

FP - Ele está nesse movimento em que, segundo o que você observa, estariam os quatro? Vamos dizer, ele, Burtt, Murch e Godard. Tem alguma coisa no trabalho dele você diz “não, ele fez isso que é muito peculiar, ninguém mais fez ou que ele fez primeiro”? Tem alguma? Ou não, ele está nesse movimento em que cada um tem um estilo..? LM - Eu acho que o tipo de sonoridade é tão marcante, essa coisa dos ambientes estranhos, desse ambiente quase musical às vezes, ou essa pesquisa de sonoridades que ele tem, pesquisa mesmo, que caracterizam

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muito bem. Eu estava lembrando, teve um curta-metragem, faz muito tempo que eu fiz esse curta, é O Nome do gato (Brasil, 2009), um curta-metragem do Pedro Coutinho. Não lembro se o rapaz é daqui ou do Rio, acho que o rapaz é daqui (São Paulo). Que é aquela coisa, é um filme David Lynch. Por quê? Por conta dessa coisa do ambiente estranho, que era uma festa meio estranha, que de repente você estava indo para outra dimensão. E como é que é essa outra dimensão? É essa coisa de você não ter uma construção realista, você não tem buzina, trânsito, passarinho ou coisa do tipo. E sim você tem esse ambiente de tensão que você vai criando o tempo todo, que é para prender você espectador, tipo “O que vai acontecer nessa história?”. De repente você vai para outra dimensão e é essa coisa que acompanha o roteiro, que te dá outros ambientes, que te dá uma ação paralela quase. Esse personagem está sonhando ou ele está num devaneio ou que que está acontecendo?

FP - E te mantém nessa tensão, né? Aquela coisa em que não existe momento em que aquilo vai ser explicado. Te mantém sempre na tensão da dúvida, né? LM - Sim.

FP - Tanto que é engraçado, até a sala de aula da gente é ótima para isso. Porque liga aquele ar condicionado e aquele... (imito som abafado do ar sendo expelido pelo aparelho): Alan Splet. A mesma coisa que você falou. Já te remete àquilo. Sons industriais, que é o que ele falava. Aqueles burburinhos de máquina, coisa e tal. O que eu destaquei. Não sei, é complicado pedir um parâmetro inteiro da obra dele, Splet. É fácil a gente ter o parâmetro dele com o Lynch e como eles trabalharam. São aquelas características que eu até te passei por e-mail. Além da questão de som ambiente, eu vejo que tem um trabalho de voz que para mim é muito peculiar. Eu não sei se já foi feito. Eu noto, de novo, primeiro a sobreposição de ruídos (leia-se efeitos sonoros) extra-diegéticos em contraponto sonoro. Tem momentos em que a voz ou é distorcida ou trocada por ruídos, inclusive desse tipo que a gente estava falando, em personagens que não têm deformação física, não é o efeito O exorcista (The exorcist, EUA, 1973, de

197 William Friedkin). A personagem está igual, a voz é que está mudando muito. Nesse efeito de que a gente falou, de causar estranhamento, te manter em tensão, te manter em dúvida, não para trazer explicação. Você vê essas características também? Elas estão corretas? Minha leitura está correta? LM - Sim. No caso do trabalho de voz, na verdade essa é uma coisa bem complexa. Eu não diria que é, na verdade, inovador. Mas é uma característica que, por exemplo, para a cinematografia americana é muito clara. Porque sempre existe um rigor maior no trabalho com o diálogo. Então, essa coisa de você ter uma captação e você ter um compromisso, inclusive, de “olha, eu preciso ter uma captação extremamente limpa para poder permitir esse tipo de construção. Essa voz limpa, junto com aquela ambientação e tudo mais, aquilo poder existir. Que é uma coisa que no cinema brasileiro a gente tem muita dificuldade, que é som realista, som que assume a ambiência. Então você está numa cidade com São Paulo, você tem o ambiente sempre muito pesado e isso também remete à questão do trabalho com a dublagem. Que embora a gente tenha uma dublagem que na televisão a gente percebe um trabalho de longa data – tem muita produção de dublagem no Brasil –, mas não numa preocupação... Que dizer, é quase principalmente o que está no cinema, quase um favor à língua. Tem muito, não preconceito, mas resistência principalmente na coisa de... tem até os motivos, mas a coisa de você falar que precisa dublar e entra logo na questão orçamentária, entra na questão ofensiva, porque significa de repente que o técnico de som não era bom ou coisa do tipo. Na verdade, não é isso necessariamente. Barra um entendimento de dublagem americano de que é uma possibilidade de eu aprimorar a minha interpretação. Então eu não preciso ter medo de dublagem, porque na verdade a dublagem pode... E aí permite essas brincadeiras, de você ter o ator, você experimentar, brincar, gravar takes para modificar, enfim. Todas essas coisas. E, sem dúvida, isso pressupõe um controle da tua captação, que tem que ser muito rigoroso. Então, aquele negócio, a gente quando aprende a captar fica maravilhado. “Nossa, estou ouvindo o barulho do mouse, o lápis ou não sei o que!”. E não, vamos ignorar tudo isso, que o que importa é a voz. O resto a gente controla depois. E nisso você tem que ser muito atento à sonoridade da cena, quase como se você fizesse uma mise-en-scéne para a cena, para que você

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consiga ter isso para trabalhar depois. É um compromisso de até pós- produção, de “olha, aqui a cena está saindo assim, ok?”. “Não, não está aqui”. Tem uma vez em que eu fui fazer um curta-metragem, isso nos anos 90, quando estava na moda o Asas do desejo (Der himmel über Berlin, Alemanha, 1987, de Wim Wenders). De repente, no curta que eu estava fazendo, na cena tinham dois atores que representariam dois anjos e aí, num determinado momento um põe a cabeça no ombro do outro e eles iam falar baixinho, sussurrado, coisa do tipo. Eu estava com um Nagra lindo, maravilhoso, que tinha acabado de vir da Alemanha. Só que tinha um detalhe: a gente estava gravando numa ponte em cima da Via Anhanguera. Não tem como você fazer Asas do desejo se você está numa ponte em cima da Via Anhanguera. Então, aquele negócio, se você quer fazer Asas do desejo, então vamos entender... Não é aquela brincadeira Murch também. Teve uma época, eu sempre me divertia, eu e o Edu, que tinha um monte de gente que queria fazer situação do Apocalipse now. E o que que as pessoas faziam? Elas filmavam o ventilador de teto. E vira e mexe alguém chegava para você e dizia “Então, não sei se você viu, mas tem um filme, um tal de Apocalipse now...”. Mas, cara, não basta filmar ventilador de teto para fazer citação do Apocalipse now. O que que tem naquela construção? O que que é aquele ventilador? Então, de repente você vai fazer Apocalipse now independente da pá do ventilador. Então, tem essa coisa de ter uma visão muito definida. Tem uma linguagem, um estilo, vamos dizer assim, muito definido numa construção, como você tinha no Murch, como você tinha no David Lynch, que você tinha com o Alan Splet. Mesmo com o David Lynch, ainda hoje o cara vai prestar atenção no som. O DNA do cara ia atrás disso.

FP - Você falou de voz. Já tinha antes dele um trabalho semelhante com voz, propositalmente, claramente? Existem sutilezas de som que a gente, como espectador não treinado, nem percebe às vezes. Tanto que o que eu estou conseguindo pinçar dos filmes são cenas bem específicas. Porque eu já soube que ele fazia alguma coisa diferente e tal. Aí você já olha e tem que estar ali. Mas às vezes no cinema você está assistindo e tem uma fusão e a voz está vindo extra-diegética, você nem absorve. Como você falou, a gente já está treinado, né? Mas uma coisa assim explicitamente feita, como o Lynch

199 e o Splet fizeram juntos, em que você troca a voz, não tem a voz, tem outra coisa. Outra coisa, até achei brincando outro dia, vendo um documentário do (Slavoj) Zizek, ele bota uma cena do Chaplin, acho que é o Luzes da cidade, (City lights, EUA, 1931), de Charles Chaplin) aquele da moça cega, né? E tem uma cena em que tem um palanque na praça e tem duas pessoas falando e ele troca a voz por um trombone, uma qualquer coisa assim. É um instrumento musical. Alguém já fez isso antes. Mas o tom da comédia, especialmente de algum tipo como a do Chaplin, já pressupõe essa brincadeira. Mas o Lynch faz uma outra coisa, não é para um efeito específico do rir. É aquilo que a gente está falando, desacomoda a gente. Te ocorre alguém antes dele? A questão da voz mesmo. LM - Não sei. De cabeça assim... me lembra um pouco o Godard. Godard faz umas brincadeiras de voz muito divertidas.

FP - Minuto do silêncio (de Bando a parte, Bande à part, França, 1964), por exemplo. LM - É, é uma coisa desconcertante de você falar “O que que está acontecendo?”. Enfim, é mais por aí. Não lembro. É essa maluquice, na verdade. É sempre complicado a gente falar “’ó, tem, não tem”. Eu como fanático, por exemplo, por Fritz Lang... Se pegar mesmo os primeiros, (Dr.) Mabuse (, o Jogador) (Dr. Mabuse, der spieler, Alemanha, 1922) tem cada coisa. Eu lembro quando eu assisti em 1990, que foram os 100 anos de nascimento do Fritz Lang, que teve uma mostra na Cinemateca com todos os filmes dele. Mais ou menos em 1990 estava passando eu acho que o De volta para o futuro 2 (Back to the Future Part II, EUA, 1989, de Robert Zemeckis). De volta para o futuro 2 estava trazendo a grande inovação do traveling controlado por controle remoto. Sei lá eu, era um controle pelo computador em que ele fazia o mesmo movimento quantas vezes você quisesse na mesma velocidade. E o que que isso facilitava? Usando isso com uma dupla exposição, você podia ter o ator contracenando com ele mesmo. Sem ter que recorrer ao blue screen ou green screen ou sei lá, você fazia. Não precisa do chroma-key e você conseguia repetir a mesma coisa. Então em 1990 estou lá eu assistindo ao Os Nibelungos (- A morte de Siegfried) (Die Nibelungen: Siegfried, Alemanha, 1924) e vendo o que ele faz

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com Siegfried é sensacional! Você fala “mas, gente, é a mesma coisa”. Porque é o ator fantasminha, que ele tinha que mostrar que o Siegfried tinha lá a carapuça com que ele ficava invisível, mas ao mesmo tempo ele precisava indicar para você espectador que o Siegfried estava lá atrás. Então na hora do vamos ver, em que o Siegfried ia ajudar lá o Rei Gunther a jogar a pedra mais alto que a rainha e não sei que... Você fala “O que esse cara fez? É dupla exposição!”. Não tinha efeito especial em 1924, 1923. É sensacional o que o cara fazia! Sei lá, com o limite que você tinha de quatro pistas sonoras, você pegar o M (O vampiro de Dusseldorf) (M, Alemanha, 1931) e a história do (ator protagonista) Peter Lorre não saber assobiar. “Como é que é?” O ator principal não sabe assobiar. Quem estava assobiando ali na hora era o Fritz Lang. “Ãh?”. Então, não sei. Talvez. Talvez você tenha algumas coisas nesse estilo. O que eu acho que é o diferencial e que é o marcante é essa coisa de uma evolução mesmo marcada, que é uma revolução mesmo de você ter talvez num primeiro momento todos esses elementos combinados. Talvez até antes a gente encontre exemplos para cá e para lá de brincadeiras com voz e coisas do tipo, mas eu acho que todos esses elementos, essa coisa de um controle absurdo sobre todos elementos que você tem, essa coisa que você bem marcou de tirar os elementos que não interessam, você ter uma ambientação marcante – não é a música, é o ambiente que está me dando um outro nível, uma outra dimensão, e que está falando para você espectador “olha, tem uma outra coisa aqui que está acontecendo e você não está vendo”. E junto com isso você ter sutilezas de voz, essa brincadeira com a voz distorcida, com a voz modificada, você fala “Será que é a voz desse cara? Acho que não é”. E até uma outra coisa, que aí é mais técnica, que é bem complicada: usar o que a gente chama de brincadeira da faixa dinâmica, que é a diferença entre os sons mais altos e os sons mais baixos, e você ter essa coisa de (mais alto) “O cara está gritando e tem uma explosão e tem não sei o que”. De repente vem Estrada perdida, (Lost highway, França/EUA, 1997, de David Lynhc) que é maravilhoso. Falei desse filme com o Edu há uns dois, três anos atrás. “Edu, você lembra disso daqui? Vou pegar David Lynch”. A abertura daquele filme é maravilhosa! Você está na Sunset Boulevard e não sei que e de repente aquela coisa e de repente (imita um súbito estrando).

201 FP - É aquela hora que ele (o ator Bill Pullman) está tocando sax? LM - Não, no início, que você tem o acidente, você está tendo meio que uma festa na limusine, alguma coisa, eu sei que é um monte de gente badalando na limusine, não sei que, e aí você está tendo uma outra ação, na lembro se é com a Naomi Watts...

FP - Ah, esse é o Cidade dos sonhos (Mulhollad Dr., EUA, 2001)36. LM - Cidade dos sonhos. Desculpa. Estrada perdida é aquela piração que ele fez depois.

FP - Antes. Um pouco antes. LM - Um pouco antes. O Cidade dos sonhos. Exatamente. Que é o acidente e tal.

FP - Que é acelerado. A câmera é acelerada, né? LM - Que você tem quase uma sanfona. E é tão maluco que nesse ano a gente estava fazendo um filme que é São Silvestre (Brasil, 2013, de Lina Chamie), que é documental. Documentário experimental, que não é nem documentário tradicional. Totalmente experimental. Eu tive que pegar essas referências. Eu peguei Cidade dos sonhos e eu fui pegar um show de uma banda americana chamada Avenged Sevenfold, que usa o mesmo tipo de construção. De repente começa a plateia assim (imita a gritaria), de repente ele pega e coloca e corta e aí põe tudo meio em slow (devagar) e fica (imita o mesmo ruído bem baixo, depois bem alto de novo e então baixo de novo). Assim, você está falando do DVD comercial de uma banda de rock. “Tá, mas o que tem isso a ver?”.

FP - Vai influenciando, né? LM - É. Então, o que eu entendo um pouco é isso. Acho que é um pioneirismo de você ter toda essa construção, ter todos esses elementos ali. Talvez, para esse tipo de construção acho que sim, é inédito.

36 Em Cidade dos sonhos não há uma festa na limusine, que leva apenas a personagem dupla de Rita / Camilla Rhodes, interpretada por Laura Elena Harring. A câmera e a edição em movimentos frenéticos, somadas à música, deram essa impressão a Manzano.

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FP - Brincar com todos os elementos, né? Você falou de aspectos técnicos. Isso é uma pergunta de professor que até eu acho bem interessante. A gente está falando de uma tecnologia até ali analógica, né? O último filme do Splet com o Lynch é em 1986. O último filme do Splet mesmo, 1993, se não me engano. Ele morre em 1994. A dúvida é se os sons analógicos da época participavam, o pensamento do que era analógico participava no processo criativo. Não sei se você tem... pelo que você falou da sua trajetória, imagino que sim. Se participava do processo criativo. Acredito que sim, pelo menos a preocupação técnica de depois reproduzir isso numa sala de cinema, depois na televisão. E se a gente perde uma qualidade sonora quando esses filmes, essas obras, pensando até no processo produtivo, passam para o digital. Que dizer, assistir a um DVD hoje de um filme do Splet para o Lynch é uma experiência igual a de quem assistiu ao filme na sala de cinema da época? O que a gente pode pensar em termos de diferença. LM - Existe uma preocupação. Existe. Então o cara que vai editar som, vai mixar, principalmente quem está fazendo o sound design ou supervisão de som o seja lá o nome que a gente queira dar... Sim.

FP – Ele (o professor) fala de ruídos da película, da projeção. LM - Então, é que é assim, na verdade aí a gente entra num outro aspecto que é a história, um pouco a história do som de cinema. Eventualmente sim, você tem diferenças. O que a gente tem que considerar e aí eu acho que abrange perfeitamente os anos do David Lynch e Alan Splet é: até o início dos anos 70 a gente tinha uma curva de resposta que a gente chamava de curva academia, que era uma curva padrão. Então é quase como se eu fosse fazer um... vou usar um paralelo para você. Quando você vai fazer o som de um filme – hoje em dia quando a gente dá aula é tão gozado que tudo isso cai em desuso –, você sabe que o seu ouvido, ou, por princípio vamos dizer assim, você ouve de 20 a 20 mil hertz. A gente vem ao mundo teoricamente – teoricamente porque na medida em que os anos passam, você, bombardeado por trânsito, por um monte de coisa, sua audição vai (gesticula um sentido de queda). Quando a gente ia fazer um filme na época do analógico, a gente tinha limitações no meio, do suporte. Que que eram essas limitações? Eu vou fazer um filme – para ficar bem claro – eu pego uma

203 película de 16 mm e ela tem esse tamanhozinho (indica com os dedos). Eu tenho uma perfuração por fotograma e eu tenho um espacinho do som, aqui no cantinho, e o 16 mm é só mono. Então, quando você faz o filme para 16, a própria limitação física que a cópia me apresenta tem uma correspondência aqui (indica a curva academia). Então eu vou ouvir só de 200 hertz, por exemplo, para cima. O que tem de 200 para baixo eu não vou ouvir. Se você pegar uma explosão (imita o barulho), no 16 vai sair “piff”. Então 16 tem uma curva de resposta ainda, que ele tem um calombinho aqui em cima e depois ele cai, se cai o calombinho aqui é uma base de mil hertz, que remete inclusive é a curva de Bell, que é a curva do telefone. A curva de Bell você tem essa ênfase nessas regiões médias, que é a principal de qualquer ser humano, a que a gente vai ouvir. Então quando você fala ao telefone, não precisa ouvir com brilho a voz, não precisa ouvir super fidedignamente a voz do cidadão porque o que importa é ter a informação. E quando chegar a 25 mil hertz cair. Vou pegar uma soprano, não sei o quê? O 16 não é para mim. O 35 mm quando eu pego eu já tenho o dobro disso daqui e um pouquinho mais. E eu tenho duas faixinhas de som, quatro perfurações por fotograma e isso significa que é uma reprodução maior. Isso significa que eu começo a ouvir mais. Mesmo assim, nos últimos anos eram terríveis até, você quando fazia o Dolby mono tinha limitações. Então essa coisa, você chegava e, putz, mas agora você ouve bem. Tá, quando chegar em 8000, 10000 hertz ele começa a cair. Quando chegar em 15000 eu não vou ouvir nada. Aí é quando entra o Dolby. O que que o Dolby faz? O sistema Dolby na verdade, mais do que a gente pensar como distribuição de caixas, na verdade a Dolby entra como uma empresa primeiro para a indústria fonográfica, para poder pegar esses sons que a gente tem e melhorar, otimizar. Então a primeira característica do Dolby é a chamado noise reduction (redução de ruído). Esse noise reduction, que que ele faz? Ele pega, dentro do espectro de 20 a 20000, sequências mais problemáticas, identifica essas frequências e cancela essas frequências ou atenua essas frequências, repondo com oitavas acima. Então se no meu gravador de rolo, no meu Nagra, na minha fita cassete eu tenho 200 hertz ou 110 hertz – o que é problemático porque por ter uma rodinha lá girando que vai me dar atrito e vai me dar (imita o ruído baixo desse atrito), que eu vou ter, a Dolby foi lá, identificou essas

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frequências e falou lá “Opa, vamos tirar esses sons em 110 e vamos repor em 440, vamos repor em 330. Olha, ficou melhor”. E aí é onde você tem aquele Dolby, o NR, que a gente tinha até em toca-fita, aparelho de som. Todo mundo apertava o Dolby NR e falava “nossa, agora ficou bom”. É, então, porque o princípio da Dolby era esse. E a Dolby só vai conseguir se valer, a ideia dela, quando ela entra com um pacote completo para cinema. Para chegar para a indústria de cinema e falar “ok, isso também pode ser aplicado para vocês”. E além de fazer essa filtragem, fazer essa “rearrumação”, vai ter espacialização e, ainda por cima, na mesma cópia que o cara do cinema está habituado a fazer. Mas como é que você vai convencer o dono da sala de cinema que ele precisa comprar dez caixas, que ele vai ter que trocar a fiação, que ele vai ter que trocar não sei o que lá. Aí é onde entra o Guerra nas estrelas. Que é a grande amizade aí que é... O (diretor George Lucas de) Guerra nas estrelas falou “meu, vamos fazer esse sistema, eu achei bacana, junta”. E é um estouro gigantesco e todo mundo começa a falar “cara, eu quero investir na sala Dolby”. E aí torna-se obrigação para a sala de cinema se equipar para tanto. E com isso você foge, você sai da curva academia que você tinha até então e você começa a melhorar a qualidade do som. Você começa a melhorar sua reprodução, você pode brincar com o teu ambiente, você pode aumentar tua faixa dinâmica, porque aí você vai conseguir unir. E mesmo assim, a gente ainda tem um processo em que isso daqui até chegar no suposto perfeito leva um tempo. Porque isso é o primeiro Dolby, depois a gente tem o Dolby SR. O Dolby SR é analógico ainda. Ele passa essas faixas, essas freqüências, que ele detecta e faz a compensação, passam a ser 11 bandas de frequência. Aí ele melhora ainda mais, cria o subwoofer, que começa tímido e depois vai se especificar, vai se aprimorar, e mesmo assim... Aí vira aquele negócio: primeiro Dolby, Guerra nas estrelas; segundo Dolby, o SR, O império contra-ataca (The Empire Strikes Back, EUA, 1980, de George Lucas). Chega no O retorno do jedi (Return of the Jedi, EUA, 1983, de Richard Marquand) aí tem a famosa história do... “escuta, o surround é mono, precisamos resolver isso”. Tem um jeito de funcionar do Dolby que te dá limitações ainda e aí eles chegam no que seria o perfeito, que seria o Dolby SRD. Que é o digital. Que aí no digital as informações estão aqui, entre uma perfuração e outra e são zeros e uns.

205 Então eu vou de 20 a 20000. Eu não fico mais tendo a limitação que o ótico me dá. Então é nesse universo.

FP - Não há perda de qualidade, na verdade. LM - Não. Ganho de qualidade. Mesmo assim, mesmo com o Dolby SRD, que traz o digital e o analógico na mesma (tecnologia), aí tem a famosa reunião do Tomlinson Holman37 com o George Lucas, que teria sido a reunião mais breve da história, porque o Tomlinson Holman entra e o George Lucas só teria dito para ele “fix it” (conserte). E aí o Tomlinson Holman supostamente entendeu, foi lá e desenvolveu o THX. Não adianta só isso. Porque a sala, se não trocar o amplificador, se não colocar a fiação adequada, se as caixas forem da marca X não vai dar certo, não sei que... Sistema THX para resolver essa história. Agora, mesmo com isso, historicamente, a gente sempre, mesmo fazendo um 16 mm, eu tenho conhecimento da curva de resposta do 16 mm e eu vou trabalhar isso em função do 16 mm e tal. E aí a gente tem esse dado, que é fundamental, e tem um outro dado que favorece muito o cinema americano. Por exemplo, para o cinema brasileiro para você ver como efetivamente acontece um problema, mas no caso dos americanos eles estão bem servidos e a gente não. Que é o cuidado que eles têm com master. Então, é aquela coisa, desde sei lá eu quando existe uma norma – eu peguei isso nos Estados Unidos, é impressionante, você fica de queixo caído – todo filme quando vai fazer masterização o estúdio é obrigado a fazer uma cópia em magnético e são feitas duas cópias do master do filme e cada uma dessas cópias é mandada para um canto do país, em cavernas gigantescas... enfim, tem dois depósitos, não lembro onde que é, enfim... pesquisa em cinemateca que você acha... onde são guardados todos os masters. Para quando aparecer... O que que é o mais bacana hoje? É o blu-ray? Tá, vamos desenvolver o “green-ray” daqui a dez anos. “Gente, agora o supra-sumo é o, sei lá, daqui a dez anos vão inventar a holografia, vai ter um novo sistema de som em que as pessoas vão estar na casa delas, que é o 5.3. Sei lá o que vão inventar. “Então a gente precisa pegar o som original daquilo lá e remasterizar para o 5.3. Cadê a

37 Inventor do sistema de som THX da Lucasfilm.

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master?”. No caso do cinema americano historicamente existe essa preocupação com as masters. Você vai ver que muitos dos filmes mudos se perderam e tudo mais, mas eu sempre fico pasmo de ver, sei lá, O Homem- cobra (Sssssss, EUA, 1973, de Bernard L. Kowalski) – o Sssssss, que é um titulo sensacional. Se vai ver o filme em DVD, se vai ver na televisão, você não tem chiado, porque as masters são bem guardadas. Então essas características quando o cara faz um DVD, essas características você vê. Até porque o mercado está aí. Outro dia eu comprei um DVD do Highlander (Reino Unido, 1986, de Russell Mulcahy). Quem fez aquilo lá fez uma baita sacanagem. Porque alguém pegou uma cópia do filme e a cópia a gente sabe que tem limitações. Mesmo se você pegar – se você conseguir, porque vai ser difícil – o som digital da cópia, vai estar uma porcaria. A imagem vai estar riscada, vai estar suja, porque você pegou o som de uma cópia. Então pode acontecer? Pode acontecer. Mas tradicionalmente quando eles fazem lançamento de... Box do David Lynch e não sei que, toda bonitinha, está lá. Porque a master foi bem guardada. E a master foi pega para fazer a masterização ou para fazer essa adaptação, esse ajuste. É uma coisa cultural. No caso do cinema brasileiro, tem (que ver) a característica de como eram as salas nos anos 70, 80... o tipo de sonoridade, o tipo de caixa. Se você conversar com o (editor e técnico de som) José Luiz Sasso, tem muito isso. O Zé Luiz conta muito de... que que eles faziam de picaretagem no ótico ou até às vezes o jeito de mixar, que você podia ter o David Lynch, você podia ter quem fosse, o mixador estava mais preocupado em não ter a reclamação de o filme dos Trapalhões passar na sala de cinema de Belém e alguém reclamar porque não conseguiu ouvir o diálogo. Aí tudo que você bolou e estruturou vai por água abaixo porque existia um jeito de mixar que privilegiava o diálogo em detrimento do resto. Era diálogo e música, diálogo e música, diálogo e música, diálogo e música... Então a gente bem mais tardiamente, nos anos 90, final dos anos 90, principalmente agora, que a gente começou a usar mais ambiente, entender que “opa, tem mais coisa nessa história”.

FP - Havia mesmo uma limitação técnica das salas de cinema aqui no Brasil. Nos Estados Unidos menos, talvez. Esses sound designers americanos

207 talvez não tivessem tanta preocupação com aspectos de reprodução nas salas. Esse professor fala até de possíveis ruídos da película na hora de projetar. Não sei se procede. LM - Ruído na película já é coisa mais antiga, né? Remonta o cinema mudo, silencioso. Era coisa do projetor, que é a justificativa inclusive para você ter muito acompanhamento, que é para não distrair com o barulho do projetor. Mas a partir do momento que você tem o cinema sonoro isso se traduz muito naquilo de você ter (que saber) quais elementos você privilegiava. Essa coisa que tardiamente a gente acorda, demora um tempo muito grande para fugir – eu mesmo já, em 2002, 2033, sei lá eu, que é produção daqui até, o “Ilha Rá- Tim-Bum”38 (O Martelo de Vulcano, Brasil, 2003, de Eliana Fonseca). Tinha explosão, tinha um monte de coisa... “OK, podemos fazer? Vamos pintar e bordar, fazer Dolby, tudo lindo, maravilhoso. Um belo dia o filme foi passar no Palácio dos Bandeirantes (sede do governo paulista). Numa sala que era tudo, menos sala de projeção. Que é um corredorzão, acústica zero, tudo refletia, era uma coisa do outro mundo. E sei lá, fizeram sessão para a imprensa. No dia seguinte tinha gente reclamando que “putz, eu não entendi muito dos diálogos, não sei que”. Você vê, aquilo lá foi assunto: “o filme é ruim”. É uma coisa que a gente ainda se depara um pouco, porque aqui o sistema de projeção é diferente. A gente tem, na verdade, o produtor rezando para o seu filme seja exibido. Ele tem que ajoelhar para o distribuidor, para o exibidor, “pelo amor de Deus, passe o meu filme”. Passou? “Ah, legal, recebi pelo filme, pronto. O que acontecer daqui para frente faz parte da vida”. Quando você tem o estúdio como o cara que vai te dar o filme e você corre o risco de ficar fora: “escuta, se não melhorar aquela sala, eu não vou exibir o filme lá”. Mesma coisa com Guerra nas estrelas, quando teve o Episódio 1 (Star wars: Episode I - The phantom menace, EUA, 1999, de George Lucas), que também, eles encaram com EX, o Dolby EX, que na verdade ele já foi para a evolução, o 6.1 e não sei que. De de repente começar a bater o pé e dizer “ok, se não for sala com Dolby EX, não vai exibir o filme aqui“. “Ah, pô, vou ter que comprar!?”. “Vai, vai ter que comprar, senão você não exibe”.

38 O Martelo de Vulcano é o nome do filme baseado no programa televisivo da TV Cultura Ilha Rá-Tim-Bum.

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FP - Não aproveita nada do trabalho de som que fizeram, né? LM - E aqui tem medo. O produtor dificilmente, eu vivenciei muito isso, tem a menor noção do que que acontece com a master dele. Se perguntar...

FP - Não fica na Cinemateca? LM - Não, não tem nenhuma. Hoje em dia, com o digital, não tem nenhuma. Porque é um tal de backup, é o DVD, daqui a pouco não tem nem onde tocar DVD. E essa coisa que é mundial, ok, mas, por exemplo, essa norma de guardar a matriz em magnético significa você guardar as máquinas que reproduzem magnético. No Brasil você não vai querer ser maluco de falar “ah, vou fazer um filme magnético”. Não tem mais. Não tem mais moviola, não tem mais máquina de transcrição, não tem. Se tiver na Cinemateca eventualmente, mas não assim.

(via e-mail, de 27 a 30 maio de 2016, após concluir as demais entrevistas)

FP - Papeamos em novembro sobre o Splet numa entrevista que você me concedeu na produtora. Então, desde então a pesquisa felizmente progrediu bastante e consegui falar também com a viúva e parceira de trabalho dele, assim como outros integrantes da equipe de som do Veludo azul, o que foi superbacana. A sua entrevista foi tão ótima quanto, mas foi também a primeira que eu fiz. Acabei adotando um padrão introdutório nas seguintes. Por isso, gostaria de te pedir o grande favor de dois complementos pontuais. Perguntei a todos os demais sobre a trajetória profissional de cada um para apresentar para o meu leitor. Sua página no IMDb e seu Lattes (plataforma virtual de currículos acadêmicos) estão atualizados e completos? De qualquer forma, o que você destacaria da sua longa filmografia e como suas experiências mais criativas e artisticamente satisfatórias? E também o que considera mais interessante da sua experiência acadêmica?

LM - Sim, os links estão atualizados, tanto IMDb quanto Lattes. Se precisar, tem ainda o da ABC: www.abcine.org.br/abc/socio.php?id=2261. Dos filmes

209 em que trabalhei, geralmente destaco O homem que copiava (Brasil, 2003, de Jorge Furtado), O mundo em duas voltas e O palhaço. Hoje ainda acrescentaria as séries em TV, talvez Sessão de terapia seja o mais interessante. O que destaco na minha formação em som é ter tido experiência em todas as áreas de som. Comecei fazendo som direto (captação), depois edição de som (que ainda considero minha principal função) e hoje faço muita mixagem, além de supervisão de som. O fato de circular entre todas as áreas de som certamente me dá uma formação diferente, contribuindo para muitas vezes chegar numa visão sonora pretendida e saber os passos necessários para tanto. Junto a isso, ter optado desde o início por alimentar reflexões e questionamentos via vida acadêmica certamente me ajudou, isso me permite incrementar a experiência sonora e mesmo me manter ativo numa experiência de realizador e professor que ainda executo.

FP - Um problema na gravação me impediu de transcrever o trecho em que você me respondia se via alguém fazendo um trabalho de som com influências ou semelhanças com o trabalho do Splet depois da morte dele em 1994. Você poderia, por favor, me falar um pouco sobre isso também? LM - De influências e semelhanças com trabalho de Alan Splet, lembro de falar do Skip Lievsay, que tem um trabalho destacado com os irmãos Cohen e com diretores como Alfonso Cuaron, em filmes como Gravidade (Gravity, Reino Unidos/EUA, 2013). Posso ainda incluir nessa lista pessoas como Randy Thom (colaborador frequente de diretores como Robert Zemeckis), Gary Rydstrom (que tem trabalhado sonoridades muito bacanas com Spielberg, por exemplo) e sempre Ben Burtt e Walter Murch.

FP - Dos filmes do Lievsay (vários entrevistados falaram dele) e do Thom, quais filmes você vê mais semelhança com o trabalho do Splet e por quê? Só para eu conferir e ter algum parâmetro de comparação. LM - Do Randy Thom, tem alguns trabalhos memoráveis dele, como Contato (Contact, EUA, 1997, de Robert Zemeckis) mesmo Forrest Gump (Forrest Gump: O contador de histórias, Forrest Gump, EUA, 1994, também de Zemeckis) – no DVD tem extras com o Randy Thom falando de seu trabalho

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– e, maior referência, Náufrago (Cast away, EUA, 2000, outro filme de Zemekis), que se segura em ambientação, demora a recorrer à música).

FP - Ah, o Edu (Eduardo Santos Mendes) contou na entrevista dele que você sabe qual efeito sonoro ele usa como assinatura. Ficou em tom de brincadeira que ele não me contaria, mas entendi que era só perguntar para você. Poderia me dizer? LM - O Edu tem as manias dele, talvez ele esteja se referindo ao som do bem-te-vi, que ele pede e gosta por ser um pássaro nacional mesmo.

211 ANN KROEBER (Entrevista 2016 a)

Editora de som, gravadora de efeitos sonoros e sound designer, Ann Kroeber começou sua carreira no departamento de filmes da ONU. No cinema estreou com O corcel negro (Black Stallion, EUA, 1979), dirigido por Carroll Ballard, que deu o Oscar de edição de som a Alan Splet. Com ele ainda trabalhou em O homem elefante (The elephant man, EUA/Reino Unido, 1980), Duna (Dune, EUA, 1984), de David Lynch, A costa do mosquito (The mosquito coast, EUA, 1986) de Peter Weir, A insustentável leveza do ser (The unbearable lightness of being, 1998), de Philip Kaufman, Os safados (Dirty rotten scoundrels, EUA, 1988), de , Conflitos no inverno (Winter people, EUA, 1989), de Ted Kotcheff, Sociedade dos poetas mortos (Dead poets society, 1989), de Weir, Montanhas da lua (Mountains of the moon, EUA, 1990), de , Henry & June - Delírios eróticos (Henry & June, EUA,1990), de Kaufman, Wind, (EUA, 1992), de Ballard, e Sol nascente (Rising sun, EUA, 1993) também de Kaufman. Kroeber administra a Sound Mountain, empresa que presta serviços de efeitos sonoros customizados para filmes, videogames e instalações artísticas. Foi casada com Splet de 1981 até o falecimento dele em 1994. Eles tiveram um casal de gêmeos, Christopher Alan Splet and Lisa Marie Splet. Kroeber também mantém a Splet-Kroeber Library, audioteca de cerca de dois terabytes de efeitos sonoros gravados pelo casal, ainda em expansão. Entre os filmes mais conhecidos no Brasil de que participou também está Brincando nos campos do Senhor (At play in the fields of the Lord, 1991), de Hector Babenco. Em Veludo azul atuou como mixadora de som.

Entrevistas realizadas em 26 e 28 de janeiro pelo aplicativo Skype e por e- mail em 24 e 28 de junho de 2016.

FABIANO PEREIRA - Oi, Ann.

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ANN KROEBER - Oi, Fabiano. Lamento demorar tanto para nos falarmos. Li todos seus e-mails hoje e me sinto muito constrangida porque da primeira vez que os vi... Eu sei que muita gente usa essa palavra, mas me desanima tão profundamente. Só vou dizer a minha própria reação, sem querer criticar, por favor. Referir-se a efeitos sonoros como ruídos... É tão sem qualquer relação com filosofia do Alan ou da minha sobre efeitos sonoros. Porque eu penso em sons como tendo uma musicalidade e há tanta profundidade e tanto trabalho que dá para fazê-los expressivos. E fazê-los trabalhar com a música, dançar com a música, se possível. Eu meio que li por alto porque estava ocupada. Mas quando chega ao universo acadêmico eu me desligo e pergunto a Liz (Greene)39: “Você viu? O que acha?”. E ela disse: “Ele parece realmente inteligente, você deveria conversar com ele, blábláblá”, você sabe. Você compreende? Consegue me entender bem, estou falando rápido demais?

FP - Sim. E me desculpo pelo meu inglês antecipadamente. Não costumo falar em inglês, mas está perfeitamente claro para mim. Não é problema algum. Eu entendo, acredito que vocês sejam pessoas que entendem e respeitam o que vocês fazem muito mais profundamente e eu ainda estou aprendendo muito sobre o que vocês fazem. As palavras que eu uso provavelmente vêm das minhas leituras e elas mencionam “ruído” em vez de efeitos sonoros em muitos casos, muitos aspectos. Mas entendo completamente o que você está tentando dizer e sinta-se à vontade para me corrigir quando achar que for necessário. Porque você é a especialista aqui, eu só estou aprendendo. AK - Fabiano, se estiver ok para você, porque eu sei que você precisa disto mais cedo que tarde, podemos até conversar agora, você pode me entrevistar se quiser. Estava pensando, só quero falar com você primeiro para ver se estamos na mesma página e se eu posso ser útil. Estava pensando se eu poderia divagar um pouco e aí você pode usar partes disso que sejam úteis a você. Mas vai te dar um entendimento mais profundo do

39 Professora Doutora da Dublin City University, Dublin, Irlanda, pesquisadora da teoria, história e prática do som de cinema, cuja tese de doutorado Alan Splet and sound design: An archival study na University of Ulster, concluída em 2008, tratou do trabalho de sound designer americano.

213 som do Alan e David Lynch e meu trabalho com eles, se estiver tudo bem. Se eu puder meio que guiar você, te apresentar a história ou como preferir chamar. Tem algo que você disse com que eu não concordo... Veja, eu entendo, de algumas maneiras você tem razão, de outras não, especialmente quanto ao som. É O homem elefante. Porque é uma trilha sonora bem típica do David Lynch40. E os britânicos trabalhando conosco eram muito hábeis. Devo ter isso em fitas, então vou provavelmente retornar a você com o material para que você possa ter uma ideia. Então, se você puder, gostaria? Você está pronto, poderia me gravar agora? Ou nós apenas conversamos? Quer fazer isso alguma outra hora? O que for melhor para você está bom.

FP - Se estiver bem para você, problema nenhum para mim. Eu, na verdade, já comecei a gravar. Tenho uma hora de arquivo e já se passou algo como 15 minutos aqui. Só tenho receio de não conseguir gravar toda a conversa. AK - Você está gravando agora?

FP - Sim, me desculpe. Não é que eu publicaria isso. AK - Eu entendo. Estava pensando que seria uma boa ideia, então tudo bem, sem problema.

FP - Se eu não conseguisse entender alguma coisa, eu iria tentar ouvir novamente e checar alguma dúvida que eu pudesse ter. AK - Claro. Eu entendo completamente. Então, se eu puder começar a falar, podemos usar esse tempo e podemos conversar outra vez, sem problema. Vamos seguindo. Você pode me fazer perguntas, não é um problema. Vou falar tanto quanto eu conseguir e te dar nomes de outras pessoas também. Vou só falar da minha experiência com o Alan, como o conheci e como me envolvi com David e por aí vai. Só para te mostrar o background. É provavelmente mais informação do que você precisa, mas vai te proporcionar um entendimento mais profundo, pelo menos da minha perspectiva. Conheci o Alan quando estávamos trabalhando em O corcel negro. Tinha acabado de

40 Nas perguntas enviadas por e-mail antes da conversa, foi afirmado que O homem elefante e Duna (Dune, 1984) eram filmes menos “lynchianos” do diretor, menos típicos de sua filmografia.

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me mudar de Nova York para São Francisco. Tinha começado a trabalhar com som e, não vou entrar em muitos detalhes contigo, mas tive este jeito realmente intuitivo de lidar com som e a escuta. Eu também sou um tanto “tecnofóbica”. Tenho medo de tecnologia.

FP - Estou completamente alinhado contigo. Também sou bem assim. É a parte difícil para mim. AK - Isto é provavelmente mais informação do que você precisa, mas vai te dar uma impressão sobre mim, te dar minha perspectiva disso. Então, de qualquer forma, comecei nas Nações Unidas trabalhando no departamento de filmes. Eu estava na parte de edição e arquivos. Quando meu estágio terminou meu chefe entrou e sugeriu que talvez eu pudesse gravar com ele, fazer gravações de som. E eu entrei em pânico. “Gravar sons!? Aaaaaahhh, não consigo fazer isso!”. Meu pai nem me deixava desligar o aparelho de som estéreo porque ele tinha certeza de que eu ia quebrá-lo. Era algo tão para garotos, garotas não poderiam fazer aquilo. Faz muito tempo agora. E esse chefe me exigia, e exigia, e exigia. E ele me fazia sair e gravar. Ele me disse que queria que eu saísse para gravar o ano novo chinês. E eu fui com um (gravador) Nagra. E era um microfone muito bom com o Nagra. Então ele me mandou capturar esse ano novo chinês. E eu tomei notas, muito preocupada: “Ó, meu Deus (imita os sons com onomatopeias). Então levei o gravador e saí, nem ensaiei em casa porque eu estava tão nervosa que eu poderia quebrá-lo antes mesmo de eu chegar lá. Estava morta de medo. Bem, então saí com o gravador e comecei a apontá-lo ao redor de onde estava... Não, espere, saí, coloquei os fones de ouvido e apontei o microfone e foi tipo “Ó, meu Deus! Uau! Ouça isso. Uau!”. Eu simplesmente fiquei fascinada com o que eu estava ouvindo. E eu fui em frente e comecei a seguir as direções e... Esqueci, o Nagra é muito simples de usar, é só ir ajustando o nível. E fiz aquilo de uma forma muito útil, só com meus ouvidos. E eu ouvi esses fogos de artifício, e eu os ouvia estourando, e eu os levei quase ao limite, até um pouco alto demais para o que o cara sempre me dizia para fazer. Mas soava legal. Então consegui. E voltei e eles estavam todos esperando sei lá o que, e eles ligaram o aparelho e “Ó, meu Deus, Ann! Caramba, você que fez isso!? Uau! Sério? Uau!”. Então foi assim que meu

215 trabalho começou. Intuição pura. Bem, de qualquer forma, eu trabalhei em Nova York por um tempo e estava me saindo bem. Quer dizer, fiz alguns longas-metragens de baixo orçamento e blábláblá. Alguém me convidou para vir para São Francisco e eu amava tanto a cidade que eu só queria saber de me mudar para lá. E todo mundo achava que eu estava louca porque, você sabe: “Som em São Francisco quando você está em Nova York? O que você vai fazer?”. De qualquer forma, fui embora e estava procurando emprego e estava tentando voltar para a edição, o que eu tinha feito um pouco. Para conseguir o trabalho de assistente de edição de O corcel negro, o editor disse: “Você tem tanta...” Peço desculpas, estou falando demais, é background demais, mas vai ajudar a entender melhor...

FP - Continue. Por favor, sinta-se à vontade. AK - OK. Ele disse, “você tem essa experiência com som, tem esse cara que está procurando por um assistente”. Eu disse “ok, legal”. E eu o vi e ele era tão tímido e ele olhou para mim, e eu era bonita na época (risos), e ele olhou para mim e disse “ah, não” e desapareceu por duas horas. E eu fiquei esperando lá. Ele provavelmente imaginou que eu já tivesse ido embora, porque ele estava nervoso. Ele voltou, bem, conversamos e foi ótimo. Aconteceu de eu ter uma fita na bolsa, algo que eu tinha gravado em Nova York, uma pessoa tocando violoncelo num prédio mais antigo. Gravei do salão porque era tão lindo, esse prédio, a reverberação, a bela acústica que havia ali. Tinha essa qualidade meio assombrada. Bem, acontece que o Alan era o violoncelista. E ele ficou estupefato com aquela gravação. Tipo “Ó, meu Deus!”. Aí começamos a falar sério de verdade. Quer dizer, estávamos rindo porque nós dois tínhamos feito as mesmas loucuras para gravar. Nós tivemos um entendimento realmente profundo um do outro, então aquilo foi ótimo. Enfim, trabalhei com ele de fato e trabalhei em O corcel negro e foi bem de perto mesmo. Ele já tinha feito um monte de gravações para o filme, então foi incrível. Ele ficou feliz que eu pude assumir essa função e ele pôde editar e esculpir o sound design.

FP - A conversa sobre o violoncelo foi a primeira que vocês dois tiveram?

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AK - Sim. E foi para uma entrevista para trabalhar em O corcel negro. Então foi no escritório dele, em que ele estava trabalhando no filme. Foi simplesmente fantástico. Nós éramos como duas crianças na caixa de areia nos primeiros tempos. Ele me ensinou muito, me ensinou muito sobre os aspectos técnicos. Foi de tão grande ajuda. Eraserhead (EUA, 1977, de David Lynch) era esse filme que tinha sido exibido em Los Angeles e foi esculachado pelos críticos. Ó, meu Deus! Era chamado de cinema de sarjeta no pior nível. Você provavelmente não entende essa expressão, mas pode procurar a respeito. Francis (Ford) Coppola viu o filme e realmente o adorou, então ele nos mostrou. O Alan tinha falado bastante sobre o David e sobre ter trabalhado nesse filme e como os dois eram próximos um do outro. Amigos muito, muito próximos. E ele queria que eu conhecesse o David e tudo mais. Então fui ver Eraserhead com o Alan. E eu fiquei inacreditavelmente maluca. Eu pensei: este é o cara por quem..? Eu estava apaixonada por ele na época. Estávamos muito próximos. Bem, isso é informação demais, mas nós não tivemos qualquer contato físico quando estávamos trabalhando juntos. Quando oficializamos, outras pessoas achavam que já estivéssemos morando juntos (risos). Tamanha a nossa proximidade. Ótima conexão. Mas, enfim, eu estava chocada com esse amigo que o Alan tinha, que fez esse filme que me enlouqueceu vezes 10. E eu “Ó, meu Deus!”. E o Alan queria que eu fosse para a Inglaterra com ele para trabalhar em O homem elefante com o David. E eu “como diabos eu vou para a Inglaterra encontrar esse cara?”. Pensei em alguma forma de cair fora daquilo. Eu estava realmente num conflito muito horrível. Mas, de alguma forma, eu consegui dizer ‘”Ok, sim, vou fazer isso. Vai ser divertido ir para a Inglaterra e eu amo o Alan de verdade, então, ok, vou tentar. Ó, meu Deus, isso vai ser um pesadelo”. E eu tinha todas essas ideias sobre como o David seria. Sabe, todo sombrio e assustador. Achava que eu ia descobrir um lado do Alan de que eu não iria gostar. Enfim, fui para a Inglaterra, conheci o David e ele foi a pessoa mais legal, calorosa e normal. Bem, você tem que conhecê-lo melhor, ele tinha um outro lado, ele era animado, mas ele era muito, muito centrado e muito inteligente, muito legal, de verdade. Simplesmente gostei dele. E consegui ver Eraserhead de uma nova maneira, pelos olhos do David e do Alan. Consegui entender o filme melhor. E consegui entender a profundidade do

217 que eles estavam fazendo, a colaboração deles e como eles acabaram juntos. Não sei se sabe disso, mas o David tinha originalmente feito The grandmother (EUA, 1970). Ele foi ao local onde o Alan estava trabalhando, um lugar de som meio comercial na Filadélfia. O Alan gostava tanto que ele decidiu largar (o que ele fazia antes). Ele de fato era bem-sucedido em algo ligado a negócios, contabilidade ou algo assim, mas ele não gostava e realmente se divertia com som, curtia aquilo. Enfim, um dia o chefe do Alan ia trabalhar com o David num filme de estudante. E ele não poderia comparecer, estava ocupado e queria que o Alan fizesse. O David enlouqueceu. “Quem é esse cara? Ele é esquisito e eu não...” (risos). Mas eles saíram e começaram a gravar e a conversar e a gravar juntos. Aquilo evoluiu muito organicamente. Eles tinham esse entendimento. E o Alan começou a criar. “Talvez a gente possa fazer isso”. “Uau!”. “E que tal se fizermos isto e aquilo?” “Sim”. “Uau!”. E eles gravavam todo esse material para The Grandmother e criaram essa trilha sonora que era como “uau!”. E foi o começo da parceria.

FP - É inacreditável. O trabalho de som de The grandmother é inacreditável. Provavelmente ele seria o mais perfeito filme para eu usar como um objeto de estudo, para o tipo de pesquisa que eu estou fazendo. Tentei explicar por que escolhi Veludo azul, mas The grandmother é quase que contraponto em tempo integral. É fascinante. AK - Então, preciso dizer que isso é verdade com o Alan e o David, Alan e eu também. E é por isso que eu estava preocupada de conversar contigo, mas tem sido maravilhoso e eu estou contente de poder ver seu rosto. Lamento que você não esteja vendo o meu, talvez com o tempo eu fique mais à vontade, mas por enquanto estou tímida (risos)41. Tudo para o David é muito, muito intuitivo. E vem de um ponto profundo de intuição. Acho que isso é verdade em relação a todos nós, todos nós três. O Alan e David tinham esse entendimento profundo de uma certa forma. O David nunca olharia um filme antigo e diria “Nossa, que ótimo! Vou usar isso”. Isso nunca ocorreria a ele, acredito, do que eu sei. Quer dizer, ele simplesmente não faz isso.

41 Durante a entrevista, a câmera em tempo real que o aplicativo Skype permite ligar foi acionada apenas do computador do entrevistador.

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FP - Você diz como uma cópia? AK - Sim, é dele. Vem bem de dentro dele. Eu poderia deixar você conversar com uma pessoa, não sei se gostaria ou não. Um amigo meu fez estudos aprofundados e acredita que o David de alguns modos é iluminado. Sabe, levemente louco. Esqueci a palavra. Mas realmente, incrivelmente sensível à arte profunda. Pode ser algo que você ache fascinante. Ou não. Tenho certeza que ele adoraria conversar com você, falar pelos cotovelos (risos). Eu acho esse amigo brilhante. Por um longo tempo eu meio que rejeitei por não pensar de um modo acadêmico, para mim é tão orgânico. Mas, enfim, quando estávamos trabalhando... (falha na gravação). Então David conseguiu esse trabalho em O homem elefante, ao lado de todos esses atores veneráveis. Sir John Gielgud e John Hurt. A editora do filme Anne Coates tinha ganhado um Oscar por Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, Reino Unido, 1962, de David Lean) O diretor de fotografia Freddie Francis também tinha ganhado um Oscar, não lembro por qual filme (Filhos e amantes, Sons and lovers, Reino Unido, 1960, de Jack Cardiff). Quer dizer, eles eram pessoas realmente veneráveis. Quando a Anne Coates ouviu o que o Alan e eu e outros poucos editores estávamos fazendo – não, era Alan e eu mesmo e David – ela contratou uma equipe alternativa britânica porque ela queria uma trilha britânica apropriada, uma trilha tipo BBC. Ela tinha muito poder. Anne Coates e, não me lembro, algumas outras pessoas que trabalhavam no filme estavam muito preocupadas com o que o David estava fazendo, que a trilha sonora que ele estava fazendo era loucura. Tony Hopkins (Anthony Hopkins) não tinha qualquer respeito pelo David. Ele fazia o personagem que contracenava com o homem elefante, tipo o médico. Lembra de O homem elefante? Ele estava meio bêbado na época e foi realmente horrível. Eu ajudei a Anne, eu sugeria com o David que se ela tirasse aquela palavrinha e tirasse mais aquela, ele não soaria tão bêbado. Felizmente a Anne ouvia com muita atenção e ela foi muito cuidadosa a respeito disso. Foi bom. Rendeu algo como 10 indicações ao Oscar perto disso. Infelizmente não pelo som, mas enfim... Foi porque o Alan não compareceu ao Oscar pelo O corcel negro, então a Academia ficou com raiva dele. Bem, essa é uma outra história. O Alan fugia da fama e ela o seguia com mais vigor, era incrível. Foi tudo muito orgânico. Lembro de uma vez que o David e eu subimos numa

219 torre de relógio, um de nós girando o relógio e o outro gravando e o outro pulando de cima para baixo e aí trocando de posição. Foi tão divertido, me diverti horrores. Com o David tudo evolui, ele não planeja. Bem, vou dar um salto no tempo, para bem depois, para Veludo azul, que é o que você está interessado. Eu estranhamente tive a mesma impressão quando eu li o script de Veludo azul. O David queria que eu fizesse a som da produção, porque eu já tinha feito antes para ele e adorado, então ele queria que eu fizesse. Li o script do filme e fiquei muito nervosa. Ele tinha a Dorothy cometendo suicídio no fim, o que era muito perturbador. Ela se jogava de um prédio, seu sapato caindo e era isso.

FP - Você fala do script original, nada que ele tenha filmado? AK - Sim, isso mesmo. Nada que ele tenha filmado, era o script original. Então, eu li e fiquei muito incomodada, não achava que conseguiria fazer. Mesmo querendo muito e estando honrada com o convite, eu não achava que conseguiria trabalhar naquele filme. Ele tinha muita violência, muita violência sexual. Enfim, o David veio nos visitar em São Francisco e começou a falar do filme. Quando eu vi através dos seus olhos, mudou completamente minha atitude em relação a ele. Porque o David essa justaposição – e vou tentar explicar para você, é muita usada em som e é o que você está falando a respeito. Ele é fascinado com o lado sombrio, mas ele não é sombrio. Pessoalmente, ele não é um assim. Sinto honestamente, profundamente que ele não tem tendências violentas que ele de alguma forma expressa nos filmes. Alguns diretores que eu conheço são meio, você sabe, “dãh”. Não vou citar nomes, mas não são ninguém com quem eu tenha trabalhado. Ele é muito leve, tem um humor. Então existe um equilíbrio de leveza e humor que acompanha aquilo. Não é de propósito, para levar a sério. É algo tratado como algum tipo de símbolo. Não sei bem como explicar o simbolismo, meu amigo poderia fazer isso bem. É só o jeito dele de ser.

FP - Concordo contigo sobre o humor. Ele tem um senso de humor, algo que pelo menos em português, é inexplorado (academicamente). Ele tem um senso de humor que se mistura com o drama e com o horror nos filmes dele. Ele combina essas coisas de uma forma muito singular. É um aspecto que eu

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gostaria de destacar de alguma forma, em algum ponto, talvez não agora, depois... O senso de humor nos filmes do David Lynch. Concordo totalmente com você. AK - Vou te dar um exemplo. Quando estava trabalhando em Veludo azul. Vou dar um salto à frente. Ele sempre costumava ouvir o que eu estava gravando. Eu tinha fones de ouvido para que ele pudesse ouvir o que eu estava mixando, gravando. Ele sabia, o que era maravilhoso. Porque em muitas ocasiões, o diretor adora um take, mas o barulho é tão ruim que não tem proveito. Então é voltar e dublar de novo. E o David detestava isso, ele gostava de usar um som natural, a gravação do diálogo, ele não queria ter que voltar e refazer. Para deixar natural, o que ele dirigiu. Tinha essa cena que estava realmente me incomodando, gastei o dia todo. Um dos caras estava na cozinha e a cabeça dele estava balançando, havia partes do corpo dele na pia, coisa bem nojenta. Estávamos trabalhando naquele ambiente o dia todo. Tínhamos metralhadoras lá fora, a luta, as armas. E havia sons realistas, gravei um monte de armas. Eu estava ouvindo aquilo, o David estava nesse ambiente e falando sobre a cena toda e aí ele me pede para tocar algo. Ele me fez tocar Love letters (canção de Ketty Lester) pelo fone de ouvido, de modo que ele pudesse dirigir aquela cena com aquela música sem que ninguém mais no set pudesse ouvir além dele e de mim. E ela me tirou dali na hora. Sabe o sentimento? Deu essa qualidade meio surreal, a sobreposição foi incrível, tipo “uau!”. Vou pular mais adiante e falar do sound design do Alan. O acordo era, como em todos os filmes do David... O Alan teve a sorte na maioria dos filmes de ouvir a música ou o que estivesse acontecendo, de modo que ele podia fazer os efeitos sonoros dançarem com a música, para contrabalançá-la. Outra coisa é que, em geral, com o David os efeitos sonoros expressam a escuridão, a tristeza, o medo e a música é o humor e o amor. É como ele trabalha. Não é 100% assim, mas é bem perto disso. E tem outra coisa que eu acredito que faz o Alan único. O Alan é muito consciente da música, ele era um violoncelista maravilhoso, tinha um senso musical incrível. Ele acreditava que os efeitos sonoros são música de verdade. Acho que para mim também. Estava pensando nisso hoje enquanto caminhava (risos). É uma nova maneira que eu estava pensando. Ele era como um compositor de sons. Todos os sons que ele usava, todas as

221 camadas de sons, elas criavam um efeito evocativo, um estado de espírito, um sentimento em você. Os efeitos sonoros trazem você para dentro do filme, mesmo que com o David eles sejam algo completamente diferente (risos), que nunca estariam naquele cômodo, ainda assim te trazem para dentro, têm uma certa qualidade realista, de certo modo – de um modo, mas não de verdade. É tão sutil que as pessoas tomam como pressuposto. Todos pensam que é tudo por conta da música. Vou dar um salto adiante. Estou provavelmente divagando, me desculpo por isso. Isto é uma espécie de base para que a gente possa estruturar a conversa e você pode me fazer perguntas também. O que se faz em Hollywood, até agora em filmes de grande orçamento, é que o compositor é o chefe, é o deus. E ele trabalha com sua orquestra, grandes compositores badalados, e os sound designers ficam completamente separados, sem nenhuma ideia do que o compositor está fazendo. E são completamente diferentes, estão criando, supondo, para criar o sound design para o filme e na mixagem eles descobrem quais sons serão ouvidos. É simplesmente horrível! Trilhas são destruídas! Ouvi uma conversa de um cara da Skywalker (Ranch, estúdio de George Lucas) e ele disse que a primeira coisa sobre sound design é que seus sons favoritos jamais serão ouvidos. É horrível, um jeito horrível de trabalhar. Estive em palestras na Europa, em escolas de cinema, é maravilhoso que eles estejam tão mais abertos, os compositores são tão mais abertos ao sound design e a entendê-lo. Participei de uma em Copenhagen e vários compositores dinamarqueses vieram assistir. Fiquei tão honrada. Que eles até se importassem com o sound design, efeitos sonoros, ruídos. Foi realmente fantástico porque é aí que um grande filme pode crescer. É quando dá para fazer isso. E o Alan teve muita sorte mesmo de ter essa experiência com compositores e isso realmente faz uma diferença enorme. Nem sempre, nem sempre tivemos isso. Estou pulando adiante, desculpe, estou divagando, pois isso vai te ajudar a ter um entendimento melhor. Bem, acho que vai, de qualquer forma. Em A costa do mosquito era o Maurice Jarre, um compositor maravilhoso. Mas não tínhamos ideia do que ele estava fazendo. Quando fomos para a mixagem, o (diretor) Peter (Weir) escolheu os efeitos sonoros do Alan em vez de música porque eles eram tão evocativos, tão musicais e tinham tanto sentimento. E te faziam imergir na cena. Com a música, ela te

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dá um sentimento, mas te tira da cena de certa forma, a muda. O Maurice Jarre veio até o Alan – e o Alan estava muito preocupado porque era boa música – e perguntou: “Você é compositor? Acho que você é compositor”. E o Alan adorou. E o Maurice disse: “Quero trabalhar com você o tempo todo porque não vou precisar trabalhar tanto” (risos). Foi muito legal. Foi lindo. Você vê como as coisas são? Tem outra coisa que eu preciso explicar para você. Por exemplo, os sons de insetos em Veludo azul que você mencionou. Você falou alguma coisa, algo como eles apenas aumentando o volume ou algo assim para dar aquela impressão. Bem, na verdade, cerca de 14 sons de inseto foram colocados ali. Foi tudo feito em camadas. Gravamos em diferentes locais. Gravamos em laboratórios. Eu costumava ligar os microfones para gravar os sons deles, como quando mastigando madeira, coisas assim. Para que se pudesse conseguir aquela sensação mais acentuada dos insetos. Foi incrível, realmente surpreendente. Os tipos de detalhe que vão naquilo, para criar aquela sensação. Eu fiz um trabalho para um museu chamado Obsessões Magníficas, sobre habilidades diferentes no cinema. Um ator famoso estava nele também, vou tentar lembrar o nome dele. Sei que isso não importa, desculpe. Estou saindo dos trilhos de novo. Peguei esses sons, só 10 segundos deles, e fiz esse pequeno mostruário do catálogo, todas as notas desses sons individuais só para as pessoas ouvirem e então elas ouviram a combinação dos insetos. Elas ficaram tão fascinadas. O cara disse que era parte mais popular de toda a exposição. “Então isso é o que vai no som, meu Deus! Uau!”. Depois levaram a exposição para Londres e Milão. Foi muito legal. É só um espetáculo, mas tem tantos detalhes nele. E é muito intuitivo, não é pré-planejado. Você não é avaliado. Você fala com o David, pega ideias. Nós – eu sei, Alan, Alan, mas digo nós porque eu estava envolvida naquilo. Você pega uma ideia do que ele quer e aí ele diz “está bom, mas talvez um pouco mais”, e aí você fica nesse vai e vem. É muito intuitivo. Com Veludo azul o David mudou muita coisa. Toda aquela música que ele escolheu foi decidida com aquelas ideias no próprio set. Até para usar aquele rock. E meu assistente Patrick (Moriarty) trouxe Roy Orbinson um dia e o David ficou tipo “Uau! Uau!”.

FP - Não foi planejado? Não estava no script?

223 AK - Não, de forma alguma. E ele trouxe Roy Orbinson e o David simplesmente amou. In dreams. E ele usou a música! Foi tipo “Uau!”. Foi simplesmente incrível. Eram coisas que surgiam. Até aquilo que ele me pediu para tocar para ele naquele dia de filmagem, foi só uma ideia que brotou. “Você devia ouvir isso”. E ele disse “Sim!”. Ele pediu para o Kyle (MacLachlan) andar pela rua e me fez tocar Shostakovich para que ele ouvisse. Shostakovich, um compositor russo muito famoso. E aí ele pediu para o Angelo Badalamenti se inspirar naquilo e assumir a partir dali. Mas ele fez o Kyle andar de uma certa maneira para combinar com essa música, para criar o clima da cena. Os atores nem ninguém mais podiam ouvir, só o David. Era o tipo de coisa que o David fazia. O Alan entrou com o background (sonoro) – tinha três perguntas que você me fez sobre o Veludo azul. Foi a composição do Alan ajudando a complementar a cena, trazendo emoção. Tantos sons aleatórios que você nunca pensaria que combinaria com aquilo, misturado com aquilo. Outra coisa sobre o Alan. Ele sempre começava com sons naturais. E aí ele ia alterá-los, brincar com eles, sobrepô-los, mudar os sons, reduzir sua velocidade e acelerá-los. Ele sempre usava sons naturais, odiava sintetizadores, sons eletrônicos. Ele gostava de ter uma qualidade orgânica dos sons para começar.

FP - Excelente saber disso. AK - Ele estava começando a trabalhar com digital no fim da vida. Eu nunca o fiz enquanto ele estava vivo, mas ele estava editando em digital. Foi no início, quando 240 MB cabiam num disco e custavam 10 mil dólares num drive. Tínhamos um drive que custou 10 mil dólares e comportava 240 MB. Então, você vê... (risos).

FP - As coisas mudam. AK - Mudaram. Felizmente (risos). Mas, de qualquer modo, ele estava trabalhando em digital, mas a maioria do trabalho dele foi feita em analógico.

FP - Pelo menos Sol nascente, certo? Não sei se houve algum trabalho anterior. AK - Sim.

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FP - Ann, estava pensando. Você acha que a gente poderia seguir a sequência de perguntas? Não precisa ser como nossa última chance de conversar. É só para eu me organizar quando eu for transcrever todas as entrevistas. Tudo bem para você? AK - Claro, ok. A pergunta que eu preferiria não responder das que tratam de Veludo azul são as que mostram violência. Eu só prefiro deixar de fora, se não se importar. Eu nem me lembro o que o Alan usou nelas. Foi realmente difícil para ele fazer. Eu simplesmente não lembro dos detalhes. Deveria ter dado uma olhada em Veludo azul mais recentemente, já faz tempo que não assisto. Desculpe.

FP - Sem problema. Só para eu entender, o Alan as planejava daquele jeito ou foi algo alterado depois pelo Lynch? AK - Não, eles trabalharam nelas juntos, até onde eu sei.

FP - A primeira pergunta era sobre como conheceu o Alan. Você me respondeu da última vez. Foi no set de O corcel negro, certo? AK - Não foi no set, foi quando eles estavam trabalhando na pós-produção, na edição do filme. Eu tinha originalmente me candidatado à vaga de editor(a) assistente, eles viram toda a experiência anterior que eu tinha tido com gravação de som e o Alan precisava de ajuda de um assistente. Eu te contei todos os detalhes da última vez e você pode usar o que for melhor. Eu conversei com ele sobre o emprego e nos demos muito bem. Houve uma colaboração maravilhosa, um entendimento completo, ele gostou das minhas gravações, enfim, te contei tudo isso. Tudo bem por você? Quer que eu repita?

FP - Não, não, posso tirar as partes do que já conversamos da última vez. E vocês se casaram em 1981? Ficaram casados por 13 anos, certo? AK - Sim, acho que está certo. Sim, o Alan morreu em 1994.

FP - E vocês tiveram filhos? AK - Sim, tivemos gêmeos. Um menino e uma menina. Estão com 34 anos agora.

225 FP - Quais foram suas próprias experiências profissionais mais criativas com som de cinema e por quê? Gostaria de saber um pouco sobre você, assim posso te apresentar aos leitores do material que eu estou preparando. AK - Certo. Uma das coisas que desenvolvi mais tarde – na verdade, descobri – foram os microfones de contato. Ninguém usava na época para efeitos sonoros. Estava na Inglaterra e vi um pequeno documentário sobre como eles estavam usando esse microfone chamado FRAP para gravar um violão sendo tocado ao lado de um baterista. E eles não captavam a bateria. E eu pensei “Ó, meu Deus, se você consegue isolar som assim...”. E a qualidade era ótima também. Seria tão fantástico se a gente pudesse usá-lo para efeitos sonoros. Quando voltei para São Francisco descobri que o cara que tinha inventado o microfone na verdade morava em São Francisco. Então meio que virou minha missão descobrir sobre isso. Estávamos para fazer Duna. Eu tinha que sair e gravar três dias por semana. Meus filhos eram muito pequenos, então eu só podia trabalhar três dias por semana. Mas eu tinha que gravar mesmo antes de o David começar as filmagens. Foi incrível. De qualquer forma, fiquei obcecada. O Alan disse “bom, vá lá e descubra”. Não fazia ideia de como aquilo ia soar com efeitos sonoros, mas simplesmente parecia uma ideia legal. Trabalhei com Barney (na verdade, Arnie Lazarus)42, o inventor do microfone, por cerca de três meses, falava com o David umas duas vezes por semana. E não achávamos que era exatamente o que buscávamos. Ficamos indo e voltando até que finalmente conseguimos um resultado satisfatório. Voltamos ao estúdio onde o Alan e eu estávamos trabalhando e fizemos alguns testes aleatórios com ele. E havia um ventilador acima.

FP - Algo que vocês pretendiam gravar ou não foi planejado? AK - Não, não foi planejado. Um ventilador normalmente soa como ruído branco, você sabe, sem muito interesse. Instalei o microfone, que é bem pequeno – poderia te enviar as medidas, mas é muito pequeno –, e usei um tipo especial de cera para fixá-lo. Então tentei, tentei ver como ia soar. Deus

42 De acordo com a Audio Engineering Society, o inventor do FRAP é Arnie Lazarus (www.aes.org/e-lib/browse.cfm?elib=2539). Ann Kroeber confirmou posteriormente ser este o nome correto, conforme trecho ao final desta transcrição.

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Pai Todo Poderoso, Fabiano, foi incrível! As partes internas daquele ventilador e aquele duto de ar condicionado de sete andares e todos aqueles sons entrando por ele foram inacreditáveis!! Era como esse mundo que a gente nunca tinha ouvido!!! Foi como “caramba, caramba, caramba”! Uau! O Alan disse “uau!”. E ele de fato usou aquele som e ficou surpreso, ficou algo que soava como um alarme, tão dramático! E aí o Alan me pediu para sair e experimentar com o microfone. Saí e foi tão divertido. Coisas que eu tinha meio que planejadas que soariam de uma certa maneira não ficavam interessantes. Era mesmo estar aberta a possibilidades. Não esperar nada, mas tentar coisas. Eu me acostumei ao microfone. Se usasse metal soaria metálico, se usasse vidro soaria como vidro. O som mais neutro era de fibra de vidro. Foi interessante e muito útil. Como para Duna, os vermes gigantes, gravei uma caixa de areia. Coloquei areia em cima de uma peça de fibra de vidro e passei meu dedo por cima com o microfone do outro lado. Reduzi a velocidade de reprodução do som. No analógico você podia retardar o som para soar bem maior e mais lento. Ficou legal demais! Soava tão intenso. Cada grãozinho de areia... você quase podia sentir que ouvia todos eles. Foi tão intenso, fantástico, um som tão bacana.

FP - Soa como algo divertido. AK - Foi ótimo, foi muito criativo, muito, muito divertido. Alguns anos atrás para (o site) The Hollywood Edge eles queriam produzir um conjunto de CDs e queriam sons lynchianos. Sugeri criar um rolo de sons meus, fazer sons novos. Porque quando o Alan e eu estávamos juntos eles todos simplesmente concluíam que eram do Alan. Então disse que não, que faria novos. Então fiz um CD inteiro com sons chamados “Sons comuns ouvidos de maneiras incomuns”. Como uma geladeira, um fogão, plug de banheira, todo tipo de sons. As pessoas gostaram bastante. Enfim, foi algo criativo. Outra coisa que tem muito a ver com o David Lynch foi outra descoberta. São todas coisas ligadas à gravação. Achei que foi uma descoberta incrível. Não sei se quer que eu fale a respeito. É sobre gravar animais.

FP - Ótimo. Para Duna, Veludo azul ou algum outro filme?

227 AK - Não, para filmes em que trabalhei, como A costa do mosquito. Não sei, quer que eu fale a respeito?

FP - Claro. AK - Não tão ligado ao David. Não lembro se gravei animais para o David... Acho que não.

FP - Para A costa do mosquito você gravou e outros filmes também? AK - Sim. Eu simplesmente descobri que animais são tão mais inteligentes do que o quanto as pessoas lhes dão crédito. Tive experiências tão surpreendentes com animais. Eu ia ao zoológico e as pessoas diziam “Não olhe para eles, não fale com eles, não se aproxime deles. Quando estava trabalhando num filme do Carroll Ballard chamado Duma (EUA, 2005) gravando guepardos, o cara não queria que eu nem o outro cara gravando comigo chegássemos nem um passo mais perto deles porque um fotógrafo francês tinha sido mordido por um e ele estava com muito medo, queria estar a muitos metros de distância. Ao longo do dia e fui me aproximando devagar, sorria para eles, os fiz sentir que não ia machucá-los nem nada. Foi incrível. Consegui que um deles viesse ronronar no microfone. Era exatamente o som que eu precisava para o filme. O som dele erguendo suas mãos e ronronando, exatamente como foi rodado para o filme. Pensei “Ó, meu Deus, que benção!”. Na verdade, consegui acariciá-lo no fim do dia. Foi fantástico! Basicamente, e sei que vai soar estranho, mas uma das coisas que eu faço é, novamente, não tenho expectativas, não sei o que os animais vão fazer, eu chego e tento registrá-los. Eu tento estar muito, muito presente. Sou toda ouvidos, de certa forma. Eu simplesmente converso com eles. Eu digo “Ei, vem aqui um segundinho”. E digo a eles o que estou fazendo. Digo “Este é um gravador”. Antigamente era mais fácil porque com o Nagra eu conseguia tocar sons para eles. Mas digo “Este é um gravador. E este som vem...”, aponto meus ouvidos, “e ele vem para cá e vai por ali” e aponto para eles “e, uau, é tão legal”. É uma experiência extraordinária para eles! Tive uma experiência com um garanhão mustang uma vez. Isso depois, depois do Alan. Acho que era um cavalo selvagem, só tinha estado em cativeiro por dois dias num rancho. Ouvi dizer que os mustangs são mais vocais que os

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outros cavalos, especialmente o garanhão, o líder da manada. Ele estava muito nervoso quando viu meus microfones grandes. Eu disse a ele, é tão louco, com minha voz para tranquilizá-lo “está tudo bem, tudo bem, eu vou ligar algo, este microfone e, uau, ele tem um som, estou trabalhando nesse filme...”. Claro que ele não entendia o que eu dizia, mas o tom da minha voz. Disse “Estou trabalhando nesse filme, e tem esse grande astro, seu nome é Robert Redford, mas na verdade você é o astro”. E o cavalo diz (imita um relincho alto). Sabe, uau! Funcionou para mim. Outros animais reagiram, uma égua se aproximou, outro garanhão fez vários sons do outro lado. Mas ele estava tão ciente daquele microfone. Tipo “Você ouviu isso?”. Ó, meu Deus, foi como o Céu. Estive com macacos uma vez, foi tão incrível. Isso foi uma das primeiras experiências que eu tive. Tive um barato de quase três dias. Tinha esse grupo de macacos da altura da minha cintura, um pequeno clã deles. Eles estavam no zoológico, mas tinha um tipo de ala onde havia uma rocha muito, muito alta, algo como vários andares de altura, muito alta. E os macacos saíam de lá, desciam e vinham ver as pessoas e as coisas do zoológico. E me deram permissão para entrar na tal ala, mas a gerente me deu duas regras: “Você não pode encará-los nos olhos e não pode falar com eles. Eu disse “não posso trabalhar dessa forma, eu vou me arriscar, assino algum documento me responsabilizando, mas preciso poder falar com eles. É importante mesmo”. Ela disse ok, mas me disse para ser bem cuidadosa, eles são perigosos mesmo. Eles não pareciam grandes, sou alta, deveria ficar bem. Não sabia que eles realmente são grandes (risos). Enfim, não me dei conta que eles podem mesmo machucar alguém. Mas nunca tive essa experiência.

FP - E isso foi para o filme do Carroll Ballard? AK - Não, na verdade para A costa do mosquito. Tinha esse macaco bem lá no alto, bem lá no alto da rocha, só esse macaco, nos observando do topo da rocha. E eu disse “Ei, vem cá, vem cá. Quero te mostrar algo. Vem cá”. E o macaco desceu de lá e toda a turma de macacos fez o mesmo, todos eles, atrás dele, talvez oito ou nove macacos descendo da rocha, e vieram até mim. Eles se sentaram como crianças pequenas ao meu redor, foi incrível. Tinha uma pequena mesa com um gravador de fita sobre ela. E eu

229 simplesmente fiquei sentada ali e expliquei a eles o que eu estava fazendo. Disse a eles “Isto é muito legal. Vocês provavelmente nunca ouviram falar disto. Isto é para som e isto vai aqui e, uau”, eles ficaram observando. “Deixem eu tocar algo para vocês”. E toquei sons de outros macacos que eu tinha gravado em outra parte do zoológico, que eles nunca tinham ouvido. Macacos pequenos que faziam “mimimimimimimimimi”. E eu disse, vocês conseguem fazer melhor que isso. E eles todos responderam “Ié!”. Bem, claro que não disseram “ié!”, mas eles todos pularam e começaram a gritar e a me rodear, berrando. Aí um se dependurou no meu ombro. Ó, meu Deus! Fabiano, foi simplesmente incrível. Eu quase chorei. Foi tão legal!!!

FP - Era quase como uma conversa, certo? AK - Sim, era uma conversa. Eles estavam tão felizes que alguém reservou um tempo para saber que eles eram inteligentes. Acho que os animais são bem mais inteligentes do que as pessoas pensam. Bem mais. Eles entendem o tom da sua voz, realmente parecem entender profundamente. Já aconteceu tantas vezes comigo. Tive um tigre por quem me apaixonei numa ala de zoológico no sul da Califórnia. Foi impressionante. Eu poderia falar disso longamente, mas vou parar. É suficiente.

FP - Muito fascinante. AK - Desculpe, estou levando tempo demais nisso.

FP - Não, por favor, não se preocupe. Eu sou vegetariano, eu entendo completamente esse tipo de conexão com os animais e é uma experiência muito singular a que você está descrevendo aqui. É muito importante, muito obrigado. Vou tentar dar seguimento, de qualquer modo, mas por favor sinta- se à vontade para continuar quando preferir, ok? Eu li que o Alan tinha algum tipo de problema de saúde nos olhos. Não sei se isso procede. AK - Sim, ele era muito, muito... a palavra é míope. Os olhos dele eram ruins. Não sei, ele tinha desde criança e piorou conforme ele cresceu.

FP - É algum tipo de doença?

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AK - Não era uma doença, era apenas uma visão ruim. Não sei ao certo. Infelizmente, minha filha tem também, não tão ruim quanto o pai dela, mas ela não pode dirigir por conta da vista. Ele não enxergava muito bem. Ele podia ver, não era cego. Acho que legalmente ele era cego, mas ele definitivamente podia ver.

FP - Talvez ele não pudesse ver com muita clareza, sem definição, mas podia ver imagens borradas, certo? AK - Sim. E ele usava óculos. Tão fortes quanto era possível ser feito, mas ainda não conseguia ver tão bem. Não era terrível, mas de qualquer forma, era o que era. Acho que isso fez os ouvidos dele mais sensíveis. Seu amor era vivido pelos ouvidos em vez de através dos olhos.

FP - Desde que ele era criança? AK - Um tanto. Piorou quando ele era adolescente, no fim da adolescência, algo assim e aumentou. Quando o conheci ele já era assim o tempo todo.

FP - E a música entrou na vida dele quando ele era o quê? Criança, adolescente? AK - Ele começou a estudar violoncelo quando era jovem. Desculpe, infelizmente, não lembro mais que isso. Talvez 10 anos quando começou. Ele amava o violoncelo, seu sonho era ser um maestro. Ele amava o violoncelo.

FP - Num certo sentido, ele foi, na verdade. AK - Sim, ele foi.

FP - Lamento perguntar a respeito, mas a causa da morte dele foi relacionada ao quadro da vista dele? AK - De forma alguma. Ele teve câncer. Câncer de cólon.

FP - Ele teve por um longo período? AK - Ó, Deus, enfrentamos tanta coisa por conta disso. Tínhamos um acupunturista. Ele tinha sangue na urina e fezes. Não fomos ao médico e o acupunturista disse que ele estava bem. Isso foi quando ele deveria ter ido a

231 um médico. Não sabíamos que sangue nas fezes são um sinal de câncer de cólon, eles provavelmente poderiam ter tratado. Mas quando fomos de fato... Ele passou por uma cirurgia, fez radioterapia, mas se espalhou. Mas, ó, eles lhe deram seis meses e fomos atrás de todos os tratamentos alternativos na Inglaterra e ele viveu por três anos. Chegou a melhorar por um tempo, mas aí voltou com tudo. Ele estava fazendo Sol nascente na época e foi duro. E, de novo, ele não foi ao médico com antecedência suficiente porque estava ocupado com o trabalho em Sol nascente, se distraiu... Enfim, foi terrível.

FP - Ele era jovem demais. Tinha 50 e alguma coisa, 52 ou 3, talvez. Lembra? 55, não? AK - Ele nasceu na véspera de Natal de 1939 e morreu em 2 de dezembro de 1994.

FP - Quase 55, certo? AK - Sim.

FP - OK. Havia algum tipo de rotina de trabalho quando o Alan estava se preparando e trabalhando para a produção de um filme? Era diferente quando ele trabalhava com o David? AK - Bem, o Alan era muito próximo do David. O David veio e se hospedou na nossa casa várias vezes. Ficou conosco antes de O homem elefante e antes de Duna. Ele ficava em casa por um tempo e eles conversavam a respeito. Espere, para O homem elefante ele não ficou, desculpe. Foi para Veludo azul e Duna que ele fez isso. Para O homem elefante nós fomos até lá e ficamos um tempo. Basicamente, é melhor se sentar e olhar para o filme e ver o que o diretor tem em mente. E aí trazer ideias e conversar a respeito, trazendo ideias de som. São os rolos temporários, para tentar coisas, gravar e editar o material. Então o diretor diz “Isso é ótimo, mas se você pudesse blábláblá...”. Sabe, esse tipo de coisa. Estou tentando pensar em quais seriam as diferenças com o David. É que de todas as pessoas com quem trabalhamos, com o David ... No Duna nós trabalhamos antes de ele começar a trabalhar no filme. Infelizmente, o que aconteceu naquele filme foi tão triste. Acho que teve influência demais do estúdio. O David tinha ideias

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sensacionais para o filme. Se tivéssemos podido fazer o filme que ele tinha em mente, sem ninguém para atrapalhar suas ideias... Ele perdeu sua visão. Ele ficou bastante chateado comigo pela primeira vez. Não tinha visto o filme até eles voltarem do México e editar por um tempo. Eu só vi uma edição temporária dele e eu dei tanto apoio a ele em O homem elefante e eu fiquei furiosa vezes 10 quando vi o primeiro corte de Duna. Quero dizer, ó, meu Deus, tinham coisas ali que eram tão nada a ver com o David. Era tipo “David! David! Acorde!”. E eu vi o filme e tentei ser tão diplomática quanto eu conseguisse. Tinha 15 minutos de alguém falando na abertura, sabe? E eu disse “Você pode cortar aquilo”. E ele ficou com raiva de mim, chateado mesmo. Ele achou que estivesse minando seu trabalho. Foi horrível. Tivemos um desentendimento feio na época por um tempão. Mas ele percebeu no fim e fez tudo que eu pedi (risos). Percebeu que eu só estava tentando ajudar. Ele não pôde fazer o filme que queria. Foi duro. Foi duro com o som também.

FP - Ele não tinha direito ao corte final. AK - Exatamente. Não mesmo.

FP - A pressão dos produtores. Consigo imaginar. Acho que é um bom filme, mas não é lynchiano, não muito lynchiano. AK - Comparado aos outros. Exceto por algumas poucas cenas com os vilões. Em Veludo azul ele fez um acordo – era o mesmo produtor (Dino de Laurentis) – em que se o filme tivesse menos de duas horas, duas horas ou menos, tinha direito absoluto ao corte final. Eles não poderiam dizer nada sobre nada no filme. E porque não era um filme tão grande de orçamento, eles toparam. Eles tinham algum tipo de contrato em que tinham que fazer três filmes com o David. Então o David fez o filme com duas horas (risos). Fez questão de garantir que o filme não teria um segundo a mais. É por isso que o filme é tão lynchiano.

FP - Os sons com que o Alan trabalhava eram sempre gravados por ele e sua equipe? Você mencionou aqueles catálogos de sons pré-gravados, certo?

233 AK - Às vezes usávamos sons de todo mundo. Às vezes eu era designada a encontrar material para ele. Em rádios e canais de TV africanos ou na BBC. A BBC tinha uma audioteca incrível de pássaros, especialmente quando não era o catálogo a que todo mundo podia ter acesso. Às vezes trocávamos sons com alguém, às vezes faziam algo especial, esse tipo de coisa. Mas os principais sons eram gravados por nós. Alan e eu. Não lembro se tinha mais alguém. Claro que tínhamos uma equipe de som grande, mas a maior parte éramos nós dois. Talvez alguém mais se juntasse nesse trabalho nos filmes do David, mas não que eu me lembre.

FP - Mas como você disse na nossa entrevista anterior, todos os sons eram naturais, nunca feitos com sintetizador, certo? AK - Às vezes ele brincava com eles, sabe, coisas que ele mudava e modulava os sons. Mas eram sempre naturais.

FP - Perfeito. Havia um vídeo na sua página do IMDb que não está disponível em que eu acredito que você estava sendo entrevistada. AK - Tem uma entrevista comigo que o (site) Tonebenders (TonebendersPodcast.com, http://tonebenderspodcast.com) fez. Ela é muito boa, bem completa. Com algumas das coisas de que falei para você. Sobre o David Lynch? Deixe-me ver... Teve uma entrevista muito boa com o Alan sobre aquele filme. Numa revista. Tem muitas coisas que você pode encontrar pelo Google com ele falando.

FP - O que você lembra sobre aquelas três cenas que eu considero mais interessantes em Veludo azul para o propósito desta pesquisa (enviadas previamente por e-mail)? Se não lembrar nada das cenas de violência (quando Jeffrey tem um pesadelo com Dorothy e Frank e a cena de sexo entre Jeffrey e Dorothy, quando ela pede que ele bata nela), sem problema. Uma delas é a cena dos insetos no gramado. Você disse algo que ajuda muito, 14 sons diferentes, insetos diferentes, foram gravados. AK - Sim. Usei um microfone de contato para gravar o som de cupins comendo uma tora, o som da mastigação deles. Gravamos insetos num laboratório, dentro de um vidro, de modo que pude colocar o microfone no

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vidro. Tenho que olhar. Posso encontrar os arquivos talvez e enviá-los. Estava pensando se seria algo que você gostaria. Posso te enviar o catálogo. Não o catálogo original, não posso fazer isso. Mas eu tenho fotos do catálogo que eu posso lhe enviar. Não sei se quer a coisa toda de Veludo azul, mas posso te mandar para que você dê uma olhada. Assim você pode saber que tipos de som, ver descrições deles. Você pode descrever os sons das cenas violentas. Quer me dizer? Talvez eu consiga lembrar de algo.

FP - Tem o Kyle (MacLachlan, que interpreta Jeffrey Beaumont) e Isabella (Rossellini, intérprete de Dorothy Vallens). Eles estão juntos no quarto, prestes a fazer amor e ela pede a ele para ser violento. Ele recusa no início, ela insiste, ele menciona a polícia, ela diz “sem polícia, por favor, sem polícia”. E ele bate no rosto dela, a câmera passa a ficar lenta e os sons ficam todos distorcidos, assim como as imagens estão distorcidas. Há um corte para uma rápida imagem de fogo, talvez uma vela, não lembro. Aí volta para eles em câmera lenta e, em vez de suas vozes, há um som distorcido, talvez vento, talvez fogo, talvez um animal de forma distorcida... AK - Pode ser tudo isso. O Alan trabalhava em camadas. Por exemplo, voltando aos insetos, não eram só os insetos. Também tinha um monte de outros sons ali naquela cena, quando a câmera vai ao subterrâneo. Acho que o “chichichi” que se ouve ali é do sprinkler. Não eram só os 14 insetos. Acho que havia também tons (imita ruído constante grave). Podia haver até umas cem camadas de som para uma cena.

FP - Isso é exatamente o que eu precisava saber para minha pesquisa inteira (risos). Entender exatamente isso. Achava que era o som de um microfone simples amplificado. O que está me dizendo era exatamente o que eu precisava para desenvolver minha ideia. AK - Sim, eu sei. Muitos, muitos, muitos sons para serem sobrepostos em camadas. Muitas vezes era uma questão de reduzir a velocidade de reprodução. Porque você pode fazer isso com muita facilidade no analógico. Fica muito bom. Reduzir duas vezes a velocidade. Muda o som inteiro. Não lembro mais das especificidades. Quer dizer, algumas dessas coisas foram usadas, mas imagino – Deus, não me lembro –, mas provavelmente tem

235 algum vento ali, tem definitivamente o som do sprinkler, tem os sons dos insetos... Tenho que olhar a cena para lembrar. É um monte de coisas diferentes.

FP - É fácil para você? Você tem uma cópia do filme para assistir à cena específica? Quer dizer, não agora. AK - Sim, deixe-me ver se ainda tenho uma cópia do filme. Acho que tenho.

FP - Se lembrar de algo mais, pode me dizer. É sempre bem-vindo. Porque é um trabalho muito delicado e complexo o que vocês desenvolveram. AK - Claro.

FP - Você lembra de uma cena de pesadelo do Jeffrey em Veludo azul? Tem um pedaço curto em que Frank Booth (Dennis Hopper) aparece e aí Isabella de novo. Lembra? Tem vozes distorcidas também. Alguém como eu, que não entende o que de fato foi feito, fica com a impressão de que são vozes distorcidas. Muito distorcidas. Soa quase como sons musicais estranhos. Lembra dessa cena? AK - Só vagamente. Desculpe, não sei detalhes sobre o que foi usado. Deveria ter visto o filme para te dizer. Queria ter feito antes de conversar contigo, mas esqueci. Não sabia que ia voltar àquelas perguntas (risos). Mas é justo, vou olhar o catálogo também, talvez ele me dê algumas ideias do que tinha sido usado. É uma pena que eu não tenha os rolos usados. O Alan levava oito trilhas de todos esses sons diferentes para trazer à mixagem, mas já não os tenho mais. Deixe-me ver. Estou tentando pensar em detalhes. Sabe, eu não trabalhei de fato na pós-produção quando o Alan estava fazendo o sound design. Vinha ajudá-lo às vezes. Fiz algumas coisas, mas no geral eu estava por lá durante a produção. Por isso não sou tão familiarizada com o que ele fez exatamente como sou em outros filmes.

FP - Sem problema. Em poucas palavras, do ponto de vista ou ponto de escuta de alguém que não é familiarizado com técnicas de som para filmes nem pôde assistir ao Alan trabalhando, The grandmother é quase 100% contraponto puro, Eraserhead tem sons de atmosfera quase

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ininterruptamente – não noto contraponto, mas atmosfera o tempo todo. O homem elefante tem aquelas duas sequências de sonho impressionantes com elefantes. Não digo que é só isso, mas para alguém que não tem ideia de como vocês trabalhavam é o que impressiona, para mim. AK - Outra coisa que impressiona é quando Anthony Hopkins está andando pela cidade em Londres, mostrando a Inglaterra industrial, indo ao hospital para ver o homem elefante e você vê todas as indústrias funcionando. É tudo som. Não tem música, é tudo som. Som quase musical. As máquinas funcionando de forma rítmica (imita o som). E todos esses tipos de som e toda a atmosfera ali, Londres antiga, é muito, muito musical, um design muito típico do David e do Alan. Sugiro que você dê uma olhada nisso. A atmosfera e o sentimento dele indo ao hospital. É realista de uma forma, mas não muito. Tem um certo clima e um sentimento incrível. É como uma representação de como ele está se sentindo, como o médico está se sentindo indo lá. E todo o arredor, muito mecânico, industrial. O David adora sons industriais.

FP - É como a assinatura estilística dele em som, se é possível dizer isso. AK - Sombrio e mais sombrio. Uma vez ele me ligou depois que o Alan morreu – não lembro qual filme era, talvez Estrada perdida (Lost highway, França/EUA, 1997, de Lynch) –, e ele queria alguns ventos oníricos meus. Tenho muitos, muitos ventos, o Alan amava gravar ventos. Ele saía para gravar cada tipo de vento imaginável. Vento era o barato dele. Fiquei pensando: ventos oníricos? O que você pensa quando imagina um vento onírico? Esse foi meu equívoco. Não lembrar que era o David que estava falando comigo. No começo estava pensando em sons altos, angelicais, doces, adoráveis, oníricos. Onírico para o David significa pesadelo (risos). Onírico é pesadelo! Sonhos sombrios. Então, ele quer os ventos sombrios, baixos e assombrados. Quando toquei alguns sons para ele, ficou aquele silêncio e eu disse: “Poxa, David, lamento tanto” (risos). “Esqueci com quem estou falando”. Tive que voltar e escolher sons oníricos do David. FP - Fascinante. E você lembra de algo mais em que eu deveria prestar atenção em Veludo azul? Tem detalhes que eu não percebo sobre sound design e efeitos sonoros.

237 AK - Os sons de corredor. Muita emoção, ventiladores, o ar se movendo. Com o David tudo tem uma qualidade temperamental evocativa, mesmo quando é natural. Tinha uma cena interna em que quando as personagens saíram o som do ventilador, o ventilador do ar condicionado continuou, e soou tão natural. Simplesmente funcionou na cena, você nem se dá conta. A música no filme é particularmente feliz, amorosa, leve. E são realmente os efeitos sonoros que apresentam esse lado mais sombrio na maior parte do tempo. Na vizinhança há pássaros piando lá fora, trazendo alguma leveza, mas predomina o aspecto sombrio.

FP - Quando você fala de sound design – não sei se pelo menos com o David – a música é considerada parte do sound design? Digo a parte do Alan. AK - Na maioria das vezes, nos filmes do David, o Alan sabia qual seria a música e trabalhava com o compositor de modo que eles pudessem se organizar e saber se haveria música ou efeitos sonoros. É algo muito especial, normalmente os sound designers não têm esse privilégio nos Estados Unidos.

FP - E eles eram amigos próximos, o que ajudava. AK - Sim, mas foi ajudado por outros diretores também. Com o Carroll Ballard ele sempre parecia saber qual seria a música. Tivemos uma experiência... Você se importa se eu sair um pouco do tópico?

FP - De forma alguma. AK - Tivemos uma experiência com O corcel negro. Trabalhamos no filme por algo como um ano e meio. Cortamos toda a música e havia música temporária. Não sabíamos como seria a música definitiva. O pai do (cineasta) Francis Ford Coppola era o compositor e condutor. Não sabíamos como a música seria. Ele foi gravar no final e foi algo muito importante. Ele voltou e ficamos chocados. Ela soava tão inapropriada, você não pode imaginar, Fabiano. Não tinha nada a ver. Era uma loucura. Teria acabado com nosso som, todo o trabalho que tivemos. As ambiências eram tão musicais e tão evocativas. Deus, era horrível! O Francis Coppola não quis saber de nada, era o pai dele. Esta trabalhando em Apocalipse (now). O corcel negro era um

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filme pequeno. “Não fale comigo sobre isso. É meu pai. Vocês vão usar a música, esquece”. Ficamos tão perturbados. Eu escrevi uma petição ao Francis, todo mundo na equipe assinou. Dissemos: “Caro Francis Coppola, só estamos escrevendo porque seu pai tem uma carreira longa e primorosa e ele é um homem de muito talento. Estamos preocupados que a música deste filme possa não exibí-lo na melhor luz. Pode não ser o melhor para ele. E nós só pedimos que você escute a música e diga o que acha”. Só dissemos isso, nada de “odiamos” ou coisa assim. Só para consultá-lo. E eu fiz isso (risos). Todo mundo na equipe assinou, então ninguém (em particular) foi responsável pela carta. Demos ao Francis e ele ficou muito irritado. Tipo “Por que ninguém veio falar comigo?”. Sei, claro, como se a gente pudesse... (risos). Aí ele disse que daria uma olhada. Ele deu e então disse que a gente tinha duas semanas para trazer alguma solução. O que fizemos foi que o cara da música, (o editor de som) Todd Boekelheide – ele era o editor de música lá – tirou parte da música do pai do Francis, o tema e alguma das canções, sem tantos instrumentos e trouxemos uns poucos músicos para improvisar. E eles tocaram para os nossos efeitos sonoros. Viram as imagens com nossos efeitos sonoros e tocaram para os efeitos sonoros, digo, para aquela trilha. Cortamos parte da música do pai do Francis, de modo que ele (ainda) pudesse ter os créditos como compositor por ela. Ficou incrível, tivemos tanta sorte. Tivemos tanta sorte de fazer isso. Teria sido um desastre. O Alan certamente não teria ganhado Oscar algum pelo som, nem poderíamos ouvi-lo. É incrível o que pode acontecer na mixagem. Música e som (efeitos sonoros) são tão, tão importantes. É tão legal quando é possível colaborar, cantar e tocar um com o outro e cada qual pode ser entendido como música. Infelizmente, não acontece com muita frequência.

FP - Tinha muito mais música e menos efeitos sonoros. Vocês conseguiram mais tempo para os efeitos sonoros, foi isso? AK - Dava para ouvir os efeitos sonoros. O problema com a música é que ela ocupa todo o espaço, não dá para ter ambas. Com música os efeitos sonoros somem, eles são tocados baixo e você não consegue ouvi-los. É como se eles fossem inferiores à música. Mas, na verdade, ambos têm seu lugar, muito, muito importante cada um de seu jeito.

239 FP - E esses poucos músicos que você mencionou, eles tocaram com os efeitos sonoros? Como foi isso? AK - Eles tocaram com os efeitos sonoros. Tocaram sua música ouvindo os efeitos sonoros. Os efeitos sonoros já estavam montados na imagem. Eles viram as imagens com os efeitos sonoros que já tínhamos editado, na mixagem, e tocaram sua música para eles. Tocaram seus instrumentos para acompanhar aquilo. Foi fantástico! Eles tocaram uns com os outros. Ficou perfeito, incrível.

FP - Eu me envergonho de ainda não ter visto o filme, mas é interessante que você tenha mencionado isso de forma que eu possa prestar atenção a isso exatamente. AK - Nesse filme tem uns 20 minutos, não lembro se 20 ou 25 minutos em que não há diálogo. É só música e efeitos sonoros. E funcionou lindamente. O Alan fazia seu sound design de acordo com o estilo, o estado de espírito e emocional do diretor. E eles tinham estilos diferentes. O David era um, o Carroll era todo natureza na maioria dos casos, o Peter Weir todos os casos de gostos diferentes...

FP - Vou prestar atenção nisso. Mas você concorda que, pensando em termos de criatividade, nada na filmografia do Alan se compara ao nível de liberdade que ele teve com o David? Estou enganado quando digo isso? AK - Não necessariamente. Quer dizer, é um tipo diferente de criatividade com o David. É mais abstrata talvez. Um dos filmes de que o Alan mais se orgulhava em termos de sound design foi Os lobos nunca choram (Never cry wolf, EUA, 1983, de Carroll Ballard). É uma trilha linda, linda. O Alan não venceu (o Oscar) porque deu o bolo neles com (o prêmio por) O corcel negro.

FP - Quais são os filmes do Alan mais notáveis e criativos dirigidos por outros cineastas que não Lynch, numa perspectiva sonora e por quê? AK - Os lobos nunca choram. Era tão natural, mas tantos detalhes foram usados nele. Gravações lindas, lindas. Os lobos são tão evocativos. É uma trilha sonora realmente adorável.

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FP - Como ele trabalhou nessa trilha? AK - Ele foi ao Alasca enquanto filmavam. Não trabalhei muito nesse filme. Meus filhos eram muito novos, tinham acabado de nascer. Eu ia lá de vez em quando ajudá-lo, mas na maior parte foi o Alan que fez as gravações. Era simplesmente lindo. Os sons dos lobos... Conseguimos muitos sons com um gravador da (revista) Nature que passou muitos, muitos, muitos meses com os lobos no Ártico. Quero dizer que tem muita criatividade nesse filme, é só um tipo diferente de criatividade, de trabalho em camadas.

FP - Quando você menciona trabalho em camadas, é o processo natural do seu trabalho, do trabalho dele. Nunca é um único som. AK - Ó, Deus, não. Mas não é com nenhum filme. As camadas sempre estão lá. É que o Alan tinha um monte de novas linhas, formas imaginativas de criar aquelas ambiências. Ele era um artista incrível.

FP - E quando falamos de camadas, não são todos sons gravados no set. AK - Não, não são. A maioria não é gravada no set. Tentamos só captar o diálogo no set. Entretanto, com o Veludo azul o Alan fez gravações no set. Ele fazia isso depois de terminarmos as filmagens. As ambiências e ambientes onde estávamos filmando ele costumava captar. Eu estava fazendo a gravação de diálogos e ele então fazia alguns dos efeitos sonoros. Então ele captou a cidade, os pássaros, o apartamento da Dorothy, o corredor, esse tipo de coisa. Os aquecedores. Ele usou o som de um aquecedor.

FP - Provavelmente não captados enquanto as imagens eram filmadas e os diálogos gravados, certo? AK - Não, não. E por eu ter feito tantas gravações de efeitos sonoros, quando estávamos filmando uma cena, mesmo quando não havia diálogo, quando eles estavam andando por uma certa área ou uma cena num bar, eu gravei tudo isso no set. Quis gravar isso porque ficava bem natural. Deve ter bem mais cenas sem diálogo que a maioria (risos). Só porque eu estava lá. Mas aí o Alan vinha e fazia coisas imaginativas com os sons, brincava por ali e encontrava coisas para gravar. Foi legal.

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FP - Você lembra se algum desses outros filmes sem o Lynch apresentava algum tipo de contraponto por meio de sobreposição de efeitos sonoros? Você está dizendo que a sobreposição é prática regular em edição de som, certo? Porque não estava claro para mim e provavelmente não vai estar para pessoas que não trabalham com som de cinema, mesmo que sejam pessoas que estudaram cinema. AK - Sim. Você poderia só me explicar o que você está chamando de sobreposição?

FP - O que você disse há pouco. Camadas, camadas de sons simultâneos que você adapta a uma imagem específica. Se você congelar aquela imagem, quantos sons você está ouvindo naquele momento específico? AK - Um monte de sons diferentes é usado numa única cena.

FP - Isso é prática corriqueira, certo? AK - Ah, sim. Sim. Na mixagem desses sons, alguns podem ficar mais altos, outros podem ter seu tom um pouco alterado para combinar com todo o restante. É tudo finalizado na mixagem. E quando tem música envolvida, você tem que fazer ajustes no som, esconder a música ou vice-versa. Quer dizer, você pode ter música e efeitos sonoros juntos, mas depende de qual é a música. Se for uma grande orquestra, vai tomar muito espaço. Você não ouve a nuance, a sutileza dos efeitos sonoros.

FP - Pelo que pude ver sobre o Alan, e falo do que parece ser uma das fontes mais completas com ele sobre Duna (para a revista American Cinematographer), ele não se formou em cinema nem nada similar. Ele era um contador e começou a trabalhar no departamento de som de uma companhia chamada Calvin Dufrenes Film Company, na Filadélfia. O Alan mencionava o que possivelmente o fez interessado em som, possíveis inspirações do cinema ou mesmo música, especialmente inspirações para seu trabalho. Lembra de algo? AK - Ele meio que caiu nisso. Ele estava ajudando um amigo a montar um estúdio e esse amigo recebeu ajuda dele com filmes industriais, corporativos

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com que ele estava trabalhando. Foi divertido, ele curtiu tanto, foram dias tão bons que ele decidiu que queria fazer aquilo. Ele não se importava com contabilidade, queria fazer aquilo. Era legal. Ele meio que caiu naquilo, aprendeu com o amigo dele e quando o David apareceu com aquele filme de estudante o que ele criou veio da sua imaginação. E seguiu adiante dali. Depois que fez Eraserhead, ele trabalhou em Los Angeles por um tempo em vários filmes de baixo orçamento. Aí o Carroll (Ballard) veio a Los Angeles... Não lembro como ele conheceu o Alan. Ele veio a Los Angeles por algum motivo, alguém mais iria fazer o som. Ele veio pedir algo ao Alan. Não me lembro exatamente. Talvez ele conhecesse o Alan da escola de cinema. De qualquer forma, ele procurou o Alan e ficou tão impressionado. O Alan disse “você pode fazer isso, você pode fazer aquilo”. Carroll disse que queria o Alan e o contratou. Alguém mais já estava trabalhando no filme por um bom tempo, gravando sons e editando e o Alan assumiu.

FP - Quando você diz que ele tocava violoncelo, ele tinha compositores favoritos, influências musicais? AK - Ele adorava Bach, Shostakovich...

FP - Acha que esses compositores o influenciaram no trabalho? AK - Não, porque é música. É algo diferente. É musical, ele apreciava música, não sei. Diria que sim muito indiretamente. Não é como se ele tivesse dito “Ah, vou fazer esse som soar como...” qualquer um deles. O Alan usou alguns sons do (Krzysztof) Penderecki. Sabe quem é? É um compositor de um tipo mais moderno de música clássica. Ele é polonês. Ele usava um tipo de coral de vozes cantando espécies de tons. Uma vez o Alan reduziu a velocidade de reprodução alguns desses sons e os implantou num vento. De forma que você nunca saberia que havia um coro ali. Muito legal, bonito mesmo. Ele conseguiu uma qualidade musical para aquilo.

FP - Ele usou isso em algum filme? AK - Não vou responder isso, não posso (risos). Não posso dizer isso, desculpe. Eu sei qual foi, mas não sei se havia um termo de sigilo no contrato. Ninguém reconheceu (risos).

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FP - Eu entendo. Sem problema. Qual é a sua percepção de como o sound design evoluiu desde que o Alan nos deixou, especialmente quando praticado num nível mais experimental e artístico. Podemos considerar o David mais experimental em termos de sound design, imagino. Você sabe o quão complexo é produzir um único som, o trabalho de camadas, como você mencionou. Mas quando alguém que não sabe como é feita a edição de som, como eu, e escuta os filmes do David Lynch fica evidente que é experimental e criativo num nível diferente. Você ouviu algo interessante nesses últimos 20 anos, depois do Alan? Você reconhece algum sound design que se assemelha ao trabalho dele? AK - Um pouco. Sim e não. Não tanto. Tinha um filme chamado “Us”43. Do Steven Spielberg, eu acho. Não, acho que não. O Steven Spielberg fez “Us”? Acho que está certo. Não foi dos seus filmes mais famosos. Era sobre seres extra-terrestres que foram capturados e os militares americanos estavam os mantendo e eles queriam fugir, voltar. Foi um filme bem legal, eu achei. A abertura desse filme eu não consegui saber quem fez. Ben Burtt e Gary Rydstrom levaram o crédito, mas soa tão diferente do (trabalho do) Ben Burtt. O Ben tem um estilo maravilhoso, mas é muito, muito diferente do estilo do Alan. A abertura desse filme soa tão evocativa. Era bonita, simplesmente linda. Fiquei tão impressionada que nem consegui escutar a história e prestar atenção ao que a legenda dizia. Ouvindo o som eu fiquei mesmerizada. Preciso descobrir. Andei pensando nisso recentemente. Talvez eles não tenham feito. Talvez tenha sido Allan Nelson... Allan Nielson...44 Qual era o nome dele? Era diferente. Era muito, muito bonito em termos de efeitos sonoros. Deus, qual era o nome dele? Desculpe, estou tendo um momento sênior. Um homem misterioso (The American, EUA/Reino Unido, 2010, de Anton Corbijn). Paul Davies, Paul Davies! Tão imaginativo. A trilha sonora do filme é tão evocativa, realmente me impressionou. Eu gosto de filmes que

43 Não existe um filme de Spielberg que possa ser escrito assim com tal título. Um homem misterioso não se enquadra na descrição. Posteriormente, Ann Kroeber esclareceu sobre o título correto do filme, conforme o final desta transcrição. 44 Ann Kroeber deve ter lembrado do nome do sound designer Al Nelson, que atua na Skywalker Sound e tem no currículo filmes como Jurassic World: O mundo dos dinossauros (Jurassic World, EUA, 2015), de Colin Trevorrow, Oblivion (EUA, 2013), de Joseph Kosinski, e Titanic (EUA, 1997), de James Cameron, mas não o filme a que ela tentou se referir.

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não são tão divulgados. Quer dizer, por exemplo, o Ben Burtt tem um estilo bem diferente do Alan, mas ainda é brilhante. E também Gary Rydstrom. Incrivelmente talentoso, talentoso mesmo. Admiro muito esses caras.

FP - Eles têm algo similar ao trabalho do Alan? AK - É diferente, é o estilo deles mesmos, o jeito próprio deles de fazer as coisas. O Gary deve ser um pouco mais (similar) que o Ben. Mas, você sabe, eles ainda fazem camadas de sons. Mas o Alan deve ser mais evocativo em termos de ambiências. É meio que a assinatura dele. Ambiências e tons e ventos bem evocativos... Bem intensos.

FP - Você já viu filmes que de alguma maneira lembram essa qualidade do trabalho dele? AK - Não consigo pensar em nenhum. Tenho certeza que deve ter, mas não penso muito nisso. E infelizmente, qualquer chance que eu tive de fazer algum tipo de sound design... Lamento tanto não ter aprendido a mixar45, porque a mixagem é tão importante. E eles podem bagunçar tanto tudo... É tão importante ter um mixador com quem você possa trabalhar. Num filme em que trabalhei, não vou dizer qual, um mixador chamado Pete Warner fez a mixagem temporária para nós. Eu estava fazendo o sound design. Foi lindo, adorei o que ele mixava. Fiquei tão impressionada e o diretor adorou. Chegamos à mixagem final e esse cara que já tinha ganhado vários Oscars e era muito importante queria fazer meus sons animais lá. Não fico bom, simplesmente não estava certo, não encaixava nem combinava com as ambiências que eu queria fazer. Queria que ficasse natural. Ah, foi tão frustrante... Uma vez trabalhei tão duro, não lembro se em A insustentável leveza do ser ou Henry & June... Henry & June, acho. Tive que fazer muito da edição. Alan estava tão envolvido com a música, na verdade ele estava editando a música. Houve um problema com a partitura original. Um compositor muito famoso tinha criado, mas ele não entendeu o que o diretor queria. Então o Alan pegou outros pedaços de música, os editou e fez escolhas, fez aquilo funcionar. E fiquei responsável pelos efeitos sonoros, eu

45 Ann Kroeber esclareceu posteriormente o que chama de mixagem aqui, conforme o final desta transcrição.

245 e um outro cara, John Verbeck. Eu me dediquei tanto, fiquei tão entusiasmada, coloquei tantas camadas, tanto sentimento e tinha uma mulher que era muito competitiva comigo envolvida na edição. Ela disse “Vamos fazer esse filme minimalista, e vamos ficar com música e diálogos na maior parte”. E eles cortaram coisas sem sequer ouvi-las. Tudo que eu fiz! E a mulher do diretor decidiu que odiava pássaros, e esse trecho lindo com pássaros cantando e uma guitarra, tão evocativo, foi alterado. Esfacelou meu coração. Fiquei tão incomodada. Fiquei incomodada com o Alan por deixar que eles fizessem aquilo. Infelizmente, eu nem tinha tocado para ele, achei que seria ouvido na mixagem. E eles nem ouviram! Só tinha mostrado ao diretor e ao Alan o que eu estava fazendo. Aos menos sei que eles não teriam feito aquilo. Não teriam, não teriam... Costumo ser tão crítica, mas estava realmente orgulhosa daquilo. E acabou comigo. Simplesmente tive azar com aquilo (risos).

FP - Tamanha quantidade de trabalho, toda a qualidade sensível e intuitiva perdida por alguém que não gosta de pássaro? Por favor (risos)! AK - Sim, ela disse que os pássaros a deixavam nervosa. Foi horrível, tão doloroso.

FP - Consigo imaginar. Acho que consigo imaginar. Você sabe todo o trabalho que teve para ver tudo aquilo ir embora. A última pergunta... Deixe- me ver. Acredito que o Alan não teve muitas chances de trabalhar com tecnologia digital de som, só em Sol nascente, se não me engano. A tecnologia digital afetou o processo criativo do Alan e o seu no sound design e edição de som. Mudou o sound design de alguma forma? AK - Ó, Deus, sim, claro, porque é tão mais fácil colocar essas camadas, poder ouvi-las antes. Tão mais fácil, toma tão menos tempo que no analógico. Tanta gente a mais precisa trabalhar no filme analógico, com todos os detalhes que vão e todas as faixas, literalmente faixas materiais. É muito diferente mesmo. Seria fascinante ver o que o Alan teria feito com digital.

FP - É mais fácil de trabalhar e a qualidade do som continua a mesma?

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AK - Sim, de certa forma. Eu gosto som do analógico, sou tradicional. Aquela qualidade morna. Agora estão na onda de fazer tudo do jeito que é na realidade, mas há uma certa frieza no resultado. É também mais frustrante sair para gravar com um gravador digital porque você não ouve o que vai conseguir. E isso me deixa louca. Você não sabe de verdade o tom que vai conseguir, o que acontece no analógico. Isso me perturba muito, de verdade. É muito frustrante para mim.

FP - É prática corriqueira de novo? Ninguém mais faz nada analógico em som? AK - Quase ninguém. Eu fiz uma vez. Acho que foi em O encantador de cavalos (The horse whisperer, EUA, 1998, de Robert Redford). Todo mundo estava trabalhando em digital, mas o Gary (Rydstrom) disse que estava bem se eu quisesse sair para gravar em analógico. Porque é mais fácil de captar os cavalos. Ele não perde as extremidades quando o som é alto de verdade. Com digital fica um lixo, nem dá para usar. Você tem que deixar um pouco mais baixo para estar seguro. Eis outro ponto, não é tão criativo às vezes. Depende, noutras vezes o digital é mais agradável, preciso admitir. Fica bem bonito. Ambiências de floresta, por exemplo, ficam lindas no digital.

FP - Certo. E a última pergunta que eu listei é sobre os colegas de trabalho do Alan, além de você. Se lembrar de alguém que possa conversar comigo... AK - Sim. Sim, é uma boa ideia. Uma pessoa que era muito próxima ao Alan era o Frank Eulner. Vou conseguir o contato dele para você.

FP - Muito obrigado. AK - Não tem de que. Tem outros. Todd Boekelheide no início, um cara que é compositor, só faz música, mas trabalhou com o Alan em O corcel negro e é muito, muito talentoso, muito bom e certamente sabe muito. Quem mais? Infelizmente nosso amigo muito querido John Verbeck morreu, ele era muito, muito próximo ao Alan e trabalhou conosco em vários filmes. Tinha um cara chamado Rob Fruchtman que costumava andar com o Alan nos primeiros filmes. Era o assistente dele, acho.

247 FP - São pessoas com quem você tem contato? AK - Sim, vou atrás desses contatos. Vale perguntar primeiro se posso passar os contatos, tudo bem?

FP - Claro, claro. Todo o cuidado e respeito para contatá-los. AK - Claro, seria bom. Eles podem falar muito do Alan. O Frank Eulner é meio que importante no Skywalker agora. Vou tentar pensar em outras pessoas. O Frank trabalhou com o Alan em Veludo azul, na pós-produção. Foi o primeiro filme em que ele trabalhou com o Alan. Tem também um cara chamado Frank Behnke, um alemão que estava trabalhando como meu assistente no set de Veludo azul e depois trabalhou com o Alan na edição. Tenho muita sorte de manter contato com ele, adoro o Frank. Ele também é professor, muito inteligente.

FP - Não tenho palavras para descrever o quanto você está me ajudando aqui. AK - Não tem de que.

FP - Muito obrigado. Espero entregar algo a altura do trabalho de vocês. AK - Tenho certeza que vai se sair bem. Estou gostando mesmo de conversar com você. Está certo. Sem preocupações. Você é bem-vindo. Fiquei preocupada quando recebi seu primeiro e-mail, mas você é tão diferente (risos).

FP - Sou tão distante do universo da produção de filmes em que vocês vivem. É tão fascinante, enquanto audiência, ver as coisas incríveis que vocês criam e entender um pouquinho mais do seu processo de trabalho. Simplesmente fascinante. E ter a chance de conversar com você e por tanto tempo. Meu Deus, tenho muita sorte. Muito obrigado, Ann. AK - Ah, você é muito, muito bem-vindo. E me desculpe não posso falar em termos de outros filmes. Muitas coisas imaginativas têm sido feitas em filmes e têm seu próprio tipo de qualidade e grandes orçamentos. Há muitas e muitas camadas (de sons) nesses filmes. Muitas, muitas. Acho que expliquei isso, além do estilo diferente.

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FP - Essa é uma parte em que eu preciso ser cuidadoso, não concluir coisas que eu não tenha base para fazer. Preciso ser cuidadoso com que escrevo, mas acredito que o trabalho do Alan ainda é único. Talvez alguma produção independente, não sei, talvez em algum lugar da Europa... Não sei se nesses últimos 22 anos houve alguma coisa comparável ou tão criativa quanto o trabalho dele, especialmente com o David, que foi muito frutífero. Espero não me precipitar nas conclusões, mas tenho a impressão que é um trabalho muito singular, uma parceria muito preciosa. AK - Também acho, também acho.

FP - Acho que é isso. Vou manter contato. Se puder me enviar aqueles contatos, vou ficar muito grato novamente. Então nos falamos. AK - OK, combinado. Bom falar com você. Tudo de melhor.

(em junho de 2016, após concluir as demais entrevistas)

FP - Ann, pelo menos três dos caras que entrevistei graças à sua generosa assistência mencionaram que há algo interessante sobre o que foi feito com as cinzas de Alan, mas todos eles me pediram para falar com você primeiro para ver se é algo que você se sentiria confortável para mencionar. Você se sente? AK - Você é bem-vindo para escrever e falar sobre isso. Eu dividi as cinzas. Coloquei um pouco em uma pequena urna especial de pau-rosa em forma de coração e a mantive. Outra parte meus filhos e eu fizemos uma cerimônia e espalhamos no Monte Tamalpais, que é considerado pelos americanos nativos aqui uma montanha sagrada, em São Francisco. Era um dos lugares favoritos do Alan para ir caminhar. Outro tanto enviei para as pessoas em Iona (a ilha sagrada peto da Escócia que Alan amava e onde gravou extensivamente). Espalharam esse pouco de cinzas no topo da Dundee, a montanha mais alta de lá. E, finalmente, a informação que você gostaria de saber: a parcela final das cinzas dele foi para o David Lynch. Ele fez uma

249 cerimônia especial no seu estúdio, convidou a minha família e os pais de Alan lá. Limusines nos pegaram no aeroporto e nos levaram lá. Ele mandou fazer uma pequena cripta sob seu console de edição para armazenar as cinzas de Alan. Na cerimônia, ele foi maravilhosamente abençoado. Então, parte do Alan ainda está com o David. E seu espírito ainda o ajuda em seus projetos.

FP - Eu sabia que o David tinha algo a ver com o que foi feito com as cinzas de Alan... Talvez um dos editores de som mencionou alguma coisa, eu não me lembro agora. O David é tão único também, eles realmente pareciam irmãos. De qualquer forma, que bela maneira de honrar a memória de Alan! Estou impressionado com tudo o que você fez com suas cinzas. Isso mostra como ele era querido e especial. Por sinal, Broken Rainbow (EUA, 1975, dirigido por Victoria Mudd) foi um filme tão especial (e triste) sobre questões de americanos nativos. Realmente importante, necessário. Mesmos desafios aqui no Brasil, muito triste... Eu realmente gostaria de saber se os seus filhos de alguma forma lidam com som ou música profissionalmente. O que eles fazem para viver? Posso perguntar isso e seus primeiros nomes? É só que ter pais com tal talento, tão realizados em uma carreira artística, me faz pensar se eles já se sentiram tentados a seguir o mesmo caminho. Você sabe o que quero dizer? Tantos casos assim na indústria... Apenas um pouco de dados biográficos. AK - Meus gêmeos, Chris e Lisa. Christopher Alan Splet e Lisa Marie Splet. Nenhum dos dois quis nada a ver com a indústria do cinema ou som. Mas Chris tem um interesse em trens como seu pai tinha e faz ótimas fotos de trem. Ele trabalha para uma empresa alemã em Washington, fazendo análise de como certas companhias são tratadas na mídia. Lisa é um artista incrível, pinta e cria coisas lindas, mas não faz isso profissionalmente até agora. Ganha a vida como garçonete e vive em Chicago. FP - Filhos de artistas iriam encontrar uma maneira de expressar os seus pontos de vista e sensibilidade de qualquer maneira. Espero que o Chris e a Lisa encontrem alegria e satisfação em tudo o que escolherem fazer. Tenho certeza que você vai continuar fazendo o seu melhor para apresentar todo o trabalho maravilhoso de som que você e Alan fizeram juntos a novos públicos

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e preservar isso para as gerações futuras. E eu vou fazer a minha parte humilde (mas realmente do coração) de honrar a todos aqui do hemisfério sul. Uma coisa que eu não tinha percebido sobre a sua filmografia é que você foi editora de som de Brincando nos campos do Senhor, do Hector Babenco. Peço desculpas por isso. Já se passou um quarto de século desde que o filme foi produzido e eu não o reconheci pelo título em inglês. O filme se passa na floresta tropical brasileira, houve filmagens em locação, e uma pergunta muito provável que os meus avaliadores podem me fazer é se você teve que vir para o país enquanto ele estava sendo filmado, especialmente para gravar efeitos sonoros. Você veio? Se sim, como foi a experiência? Lembra-se de sons que te impressionaram? AK - Então, infelizmente, eu não fui ao Brasil. Eu não comecei a trabalhar no filme até depois de ele ter sido filmado e ele chegar a Berkeley para edição.

(em 4 de julho de 2016, após concluir as demais entrevistas)

FP - Você descreveu um filme que você disse que se assemelhava à obra do Alan em alguns aspectos. Você chamou-lhe "Us", talvez dirigido ou produzido pelo Spielberg, sobre alienígenas mantidos pelos militares dos Estados Unidos. Você não estava certa sobre isso, estava tentando lembrar o nome, o diretor e o sound designer do filme. Você disse que o Ben Burtt e o Gary Rydstrom eram os sound designers. Eu não consegui encontrar qualquer coisa com esse título. Mas Super 8 (EUA, 2011), do J.J. de Abrams, parece ter um enredo semelhante, foi produzido pelo Spielberg, tem Burtt e Rydstrom em seus créditos como sound designers, e nesta outra entrevista você o mencionou como um filme com um sound design que te impressionou: designingsound.org/2011/10/ann-kroeber-special-exclusive-interview. Teria sido esse o filme que você estava tentando se lembrar? AK - Sim, Super 8.

251 FP - Sobre o microfone FRAP, você disse que teve a chance de conhecer seu inventor, "Barney". Procurando por seu nome completo, achei Arnie Lazarus: www.aes.org/e-lib/browse.cfm?elib=2539. É esse o homem? AK - Sim, Arnie Lazarus. Eu não só o conheci, mas fui ao seu estúdio por três meses, enquanto ele estava fazendo meu FRAP sob encomenda, lhe dando feedback sobre ele.

FP - Em um ponto você disse que nunca teve a chance de fazer sound design e nunca aprendeu a mixar, o que, de acordo com você, é uma pena, porque a mixagem às vezes pode destruir todo o precioso trabalho de efeitos sonoros que os editores criam. Mas o site IMDb diz que você foi o sound designer em Duma e até os créditos finais de Blue velvet mencionam que você como mixadora. Como é isso? AK - Eu não creio que eu disse que nunca fui sound designer. Ou não quis dizer isso. O que eu quis dizer foi que eu não tinha aprendido mixagem de pós-produção, também conhecida como mixagem de regravação, diferente de mixagem de produção/gravação. Eu teria muito mais controle do produto final se fizesse o sound design e a mixagem (de pós-produção) sozinha.

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ROB FRUCHTMAN

(Entrevista 2016 b)

Produtor, documentarista, montador, editor de som, Fruchtman estreou no cinema como aprendiz em Apocalipse now (EUA, 1979), de Francis Ford Coppola. No departamento de som, trabalhou com Alan Splet em Os lobos nunca choram (Never cry wolf, EUA, 1983), de Carroll Ballard, Sinal de perigo (Warning sign, EUA, 1985), de Hal Barwood, Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986), de David Lynch, A costa do mosquito (The mosquito coast, EUA, 1986, de Peter Weir) e Os safados (Dirty Rotten Scoundrels, EUA, 1988) de Frank Oz. Com Lynch, ainda participou de Coração selvagem (Wild at heart, EUA, 1990). Em 2002, ele venceu o prêmio de melhor direção de documentário do Sundance Film Festival por seu longa-metragem Sister Helen (EUA, 2002), co-dirigido por Rebecca Cammisa, entre outras premiações. Fruchtman ainda venceu três prêmios Emmy por seu trabalho com o canal de televisão Public Broadcasting Service (PBS), além de participar de outros projetos para canais como BBC, HBO e Showtime, entre outros. Em Veludo azul ele atuou como editor de som.

Entrevista concedida pelo aplicativo Skype em 7 de fevereiro de 2016.

FABIANO PEREIRA - A primeira pergunta era... Vou precisar explicar como você e o Alan se relacionaram e gostaria de saber se sua página no site IMDb está correta e atualizada, se seus créditos estão todos lá. ROB FRUCHTMAN - Não, não está. Na verdade, está bem ruim. Eu nunca entendi como consertá-la no IMDb. Então eu deveria simplesmente te contar meus créditos. Eu tenho um site, mas ele é voltado para os últimos 10 anos e é realmente concentrado em documentários, em vez de trabalhos ocasionais, como ADR, que é a substituição de diálogo. Não tenho feito muita edição de som e longas-metragens ultimamente, mas podemos falar disso depois.

253 FP - Se você preferir, posso te enviar... Se tiver muitas coisas faltando, posso te enviar um arquivo com todos os créditos que estão aqui e você só acrescenta o que estiver faltando. Não sei se são apenas poucas coisas ou se são muitos dos seus créditos. Se você preferir. RF - OK, faça isso. Eu completo.

FP - Certo. Então você trabalhou com o Alan em pelo menos alguns projetos, certo? RF - Sim. Posso te contar como começou. Eu estava trabalhando como assistente em O corcel negro (The black stallion, EUA, 1979, de Carroll Ballard) e o Alan chegou para se tornar o supervisor de som. Era um filme do Carroll Ballard. O Carroll tinha ouvido que o Alan estava morando em Los Angeles, esse cara de som impressionante. Mas ele era pouco conhecido. Ninguém sabia muito a respeito dele em São Francisco, onde o movimento do som estava realmente começando por causa do Francis (Ford) Coppola e do George Lucas. E outros cineastas, como Phil Kaufman e Carroll Ballard no começo. O Alan chegou e eu tinha estudado música, sou violoncelista. Eu amo música e som e vi uma oportunidade de realmente me concentrar nisso. E devo dizer que minha irmã é uma editora de cinema e eu não queria competir demais com ela e ela é mais velha. Então som parecia seguro. E eu me voluntariei para ser assistente do Alan, o que também significava mais que o usual, porque o Alan tinha um problema de vista e não podia dirigir. Então me tornei o motorista dele também, acabei fazendo tudo. Então eu estava aprendendo de alguém que estava abordando som de uma forma completamente diferente, completamente orgânica. E a beleza da coisa foi que o Carroll permitia que o Alan fizesse o que ele quisesse. Antes de O corcel negro, a maioria dos filmes usava o som de cavalos por meio de efeitos sonoros artificiais, foley, essencialmente. Você pega rolos de filme velhos, plástico e metades de cocos e faz o som de um cavalo. O Carroll queria sons naturalistas e o Alan fez algo que eu achei incrível, que era gravar sons naturalistas que soavam surreais, que soavam além de naturais. Isso trouxe uma dimensão completamente diferente para a personalidade, a persona do cavalo em O corcel negro. Ele ganhou o Oscar por uma boa razão. O Alan de fato criou rédeas para um minigravador de fita e microfone e

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prendeu na barriga do cavalo. Ele saia para cavalgar na pista e você podia ouvir os sons do interior dos cavalos. Ele criou uma rédea para a frente do cavalo de forma que você ouvisse o (imita as bufadas do animal) som, claro, você podia ouvir os gritos do garanhão. E o Alan mixava isso num gravador A-track, pré-digital, anos 70. E de uma forma muito complicada ele fazia camadas de todos esses sons e criou a fenomenal persona do cavalo através do som. Claro que cavalos não fazem diálogos e o Carroll Ballard era basicamente um inimigo de cenas de diálogo. Que chamamos de cenas de blábláblá, um termo que usamos para falar de diálogo sem proveito. Então o Alan realmente deu a esse cavalo sua própria dimensão por meio do som. E é fenomenal. Íamos a hipódromos ou íamos gravar cavalos em todos os climas. Para um garoto recém-saído da escola de cinema isso foi notável. Pensei que aquilo era surpreendente, não sabia que aquilo podia ser feito. Então essa foi minha primeira experiência com o Alan. E ele também era uma pessoa maravilhosa, uma pessoa muito incomum, com uma perspectiva incomum da vida. Uma ideia quase budista. Ele realmente era uma pessoa bem evoluída. Como eu era o motorista dele também, a gente tinha essas longas conversas sobre a vida, o significado da vida e isso era tudo parte da experiência com o Alan. E aquilo continuou. Antes de chegarmos no David Lynch, houve outros projetos em que ele trabalhou, houve outros projetos com o Carroll Ballard que realmente tiraram vantagem de genialidade dele. Ele era um pensador do som e um gênio técnico. Sua abordagem era heterodoxa, de verdade. Vou te falar de Os lobos nunca choram (Never cry wolf, EUA, 1983, de Carroll Ballard), não sei se ouviu falar desse filme ou discutiu sobre ele. Algo que você deveria conferir.

FP - É um dos filmes a que eu tenho que assistir. Tenho que procurar. RF - Queria ter uma cópia. Espero que encontre. Se conseguir, tem umas duas cenas a que você deveria mesmo prestar atenção. Prestar atenção de verdade. A cena mais surpreendente é a cena em que o herói está num avião, um avião pequeno. Eles estão chegando no Alasca. O piloto é esse maníaco e o avião é um monte de ferro velho. Você nem acredita que ele consegue decolar. Ele está no ar, o piloto está falando e ele é meio que um maníaco e você pode ouvir que o motor acabou de falhar. E ele “Ó, meu

255 Deus, de novo!?”. E você pode ouvir o som (assobia). O piloto sai para a asa e esse pobre cientista está ali sentado enquanto o avião está prestes a cair e ouvindo esse cara, que ainda está falando, consertando o motor, e o vento e o som e a trepidação. É tudo Alan. Tudo é o Alan. Foi feito em estúdio. Tudo é o Alan. Exceto que eu tive que subir num avião. Tive que, ele não podia fazer. A Ann (Kroeber) se recusou a deixar o Alan entrar no avião. Eu tive que ir e gravar o som do (assobia). Mas tudo mais foi o Alan no estúdio. Saíamos a campo e gravávamos ventos, ambiências, foleys selvagens, tudo que batesse e aí ele construía camadas além da imaginação, as camadas mais complicadas e interessantes. Se ouvir só as ambiências, você tem uma trilha sonora inteira. Mas havia tão mais. Então você deveria ver essa cena. Tem uma tempestade famosa com vento e ele está tentando manter sua barraca no chão no Alasca e também foi o Alan que criou tudo aquilo, foi tudo feito. Saímos para entrar em tempestades no norte da Califórnia. O Alan gravou esses ventos, e chuva e toda aquela loucura, estalos de árvores e tudo mais que ele pudesse encontrar e criou algo um tanto surreal. Mas acho que essa era a genialidade do Alan, ele pegava sons orgânicos e criava algo, como você disse, numa metáfora, o que o Eisenstein e outros escreveram no manifesto, contraponto à realidade. Mas usando os sons da realidade.

FP - Isso é fascinante. Ninguém nunca disse isso. É realmente interessante. Trabalhar com os sons da cena ou de lugares similares e fazer aquilo soar surreal. Isso é muito interessante. RF - Sons naturais. Não digitais, não sintetizados. Isso é realmente parte de sua genialidade.

FP - Ia te perguntar sobre como era trabalhar com o Alan, mas acho que você já disse isso... RF - Bem, não, trabalhar com o Alan era algo cheio de tarefas. Parte disso era sair a campo e gravar, pura alegria para nós. O Alan às vezes virava para mim – e eu era só um garoto e o Alan já era tão realizado – e perguntava “Você acredita que nos pagam para fazer isso?”. Era como a coisa mais divertida no mundo. E era. Mas aí, com o Alan trabalhando em estúdio... Aprendi muito da minha ética profissional com o Alan. Ele entrava no seu

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estúdio, fechava a porta e trabalhava sem pausa. Você tinha que lembrá-lo que era hora do almoço, forçá-lo a parar. E assim que o almoço acabava, voltava para lá. E essas eram longas horas. Naquela época, não sei por que, mas eram. Acho que o som é sempre feito no final, então o cronograma era apertado, mas trabalhávamos muitas horas mesmo. E o Alan tinha uma energia como eu nunca vi. Uma pessoa muito magra. Um foco inacreditável e resistência. E vontade. Isso era antes do e-mail e do Facebook, mas ele não atendia uma ligação. Sem pausa. Muito interessante. Então muito daquilo era trabalho duro, para chegar àqueles resultados. Muito trabalho manual, literalmente, para criar as camadas que sairiam com o som que ele ficaria feliz. Isso era o Alan no trabalho.

FP - E você fazia parte da gravação e depois da edição? RF - Não, fazia parte da gravação, era assistente dele em uns poucos filmes e depois me tornei editor de som. Mas, sim, fui assistente dele em O corcel negro e Os lobos não choram. E aí comecei a fazer edição de som em outros filmes, como Veludo azul, foley ou o que fosse. Sim, ele me deu a oportunidade de me tornar editor de som.

FP - Interessante mesmo. Quais são suas experiências profissionais mais criativas com som e por quê? Gostaria de saber. É muito interessante que você tenha trabalhado em Apocalipse now, que eu adoro. Walter Murch, certo? E alguns outros filmes de que me lembro com carinho. Mas gostaria que me dissesse quais são suas melhores memórias. RF - Bem, fui um aprendiz em Apocalipse now. Minha primeiríssima experiência fora da escola de cinema. E no departamento de som. E aquilo foi uma experiência notável porque na época acho que ninguém tinha tido tanta gente de som num filme. Apocalipse foi um filme sonoro revolucionário. E requereu muito trabalho duro. Não vou esquecer o primeiro dia no estúdio descendo até o andar do som, sala após sala de edição. E soava para mim como a Guerra do Vietnã, com helicópteros saindo de uma sala, metralhadoras saindo de outro e bombas, e sons e o Vietnã parecia com aquilo, a mentalidade era aquela. O som é muito mais poderoso de uma perspectiva emocional, até mais que o impacto visual. Não sempre, mas com

257 frequência. E é por isso que alguns diretores dizem, como o George Lucas diz, que o som é 50% de um filme. Acho que o Darren Aronofsky pode ser o diretor mais próximo dessa abordagem do Alan e do David na produção de filmes. Se você tiver a chance, vá ver o primeiro filme (de longa metragem) dele, Pi. É um ótimo filme para o som.

FP - É uma filosofia similar ou ele soa com algo que o Alan faria? RF - Acho que o Alan teria realmente apreciado esse filme. Muito alinhado com a mesma veia de Eraserhead (EUA, 1977, de David Lynch). Ou até de Veludo azul, mas mais de Eraserhead. Sabe, se você não tem muito dinheiro de orçamento para fazer um filme, você pode fazer maravilhas com o som. Não é tão caro, mas requer tanta criatividade quanto. Eu já mostrei trechos de Pi para estudantes sem o som e aí com o som. Só para mostrar o quão criativo alguém pode ser. Não é o que você esperaria. Não é ligado à teoria do contraponto. Não é som de contraponto, mas é incrivelmente efetivo, tão poderoso quanto. Temos uma ferramenta como a montagem porque funciona num outro nível. Não é previsível. Penso nisso como o Dogma. Sabe o Dogma?

FP - Sim, o movimento dinamarquês, certo? RF - Sim, em que, como você sabe, só se pode usar o som natural. Sabe, ser puro. Eu realmente respeito isso porque acho que os filmes se tornam incrivelmente manipulativos do modo errado, não do jeito certo. Eles podem ser manipulativos dos dois jeitos. Tão logo a música te diga que essa é uma cena engraçada, você não tem que fazer nada, você está refém. É como ser levado à primeira série escolar, meio que te dizem o que sentir, meio louco. Ou um violino assustador. De qualquer forma, estou fugindo do assunto aqui. Mas Apocalipse foi uma experiência impressionante por essa razão. Foi uma incrível apresentação do poder do som.

FP - Você trabalhava diretamente com o Walter Murch ou era uma equipe diferente? RF - Bem, eu era um dos aprendizes e o Walter era um dos sound designers e mixador. Então não posso dizer que trabalhei diretamente com o Walter.

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Embora a grande coisa de ser um aprendiz é que você acaba fazendo todo o trabalho desinteressante, mas você tem a chance de sentar com os mixadores, se sentar com os editores quando eles exibem uma cena para o diretor. Então tudo aquilo foi ótimo. Mais tarde eu trabalhei em A insustentável leveza do ser (The unbearable lightness of being, EUA, 1988, de Philip Kaufman). O Walter e o Alan estavam nesse filme. O Alan como sound designer e o Walter como editor, bem, um dos editores, e meio que também sound designer no fim. Foi uma ótima experiência. O Walter teve uma excelente abordagem do som recriando a invasão da Tchecoslováquia pelos russos ao adicionar sons que não eram reais, mas editados em quantidades enormes. Por exemplo, fomos ao beco do prédio dos Fantasy Studios e quebramos vidros, fizemos todos os sons que alguém esperaria de um motim. Mas ele também tinha coisas como o ligar e o desligar de um gravador de fita Nagra com som. Quando você liga você ouve um (imita um zunido que lembra um tiro passando). Mixamos isso e é um som irreal, mas insinuou ou sugeriu se não um tiro passando, algo estranho e perigoso. E isso foi um abridor de olhos impressionante das possibilidades do som. O mesmo com o Alan. O Alan fazia coisas que não se esperava. Ele gravava, se você lembra de Eraserhead, o assobio de um radiador. O vapor saindo do radiador e tocar de fundo numa cena em que claramente não havia um radiador e que podia ser externa. Atuava em você num nível subconsciente. Ele experimentava com ideias. Tinha outra cena também, em Os lobos nunca choram, em que o herói, está andando num campo nevado. Ele ouve um som e para. Ele anda de novo, ouve um som e para. E anda de novo e, bum!, ele cai dentro do gelo. Ele está se afogando. Essa cena é toda som, essa cena é toda Alan, puro som, fenomenal. E o som do gelo quebrando não era som de gelo quebrando. O Alan decidiu que o jeito para conseguir aquela primeira explosão do gelo quebrando era pegar um monte de lâmpadas juntas, subir numa escada e deixar cair (risos). E criar essa grande explosão, que é o som que você ouve. E o som do gelo quebrando quando o personagem para da primeira vez é o Alan arranhando a cúpula de um fone de ouvido e depois aumentando o som no estúdio (imita o ruído). Isso são ideias muito criativas e ele as teve porque ninguém mais conseguia encontrar aquele som certo. No almoço, ele só estava brincando com o fone. Ele disse “Não consigo

259 descobrir o som certo... espere um pouco”. Sabe? Você tem que estar realmente sintonizado com todo aquele ambiente e realmente acho que a visão limitada do Alan aprimorou sua habilidade de ouvir. Ele ouvia tudo, mas também ensinava. Lembro de um exercício na floresta em que ele me disse “Rob, só feche seus olhos e me diga quantos sons você ouve e de onde eles vêm”. Muito difícil de fazer, muito difícil de fazer. Mas se você fizer por tempo suficiente, você começa a ouvir camadas e camadas de som. Todos os tipos de som. Você só tem que desenvolver a sofisticação (do ouvir) e ele tinha isso. Não sei se ele tinha um controle ou se desenvolveu com o tempo, mas ele tinha isso.

FP - Fascinante. Voltando às perguntas, quais você considera as experiências profissionais mais criativas que você teve? Você falou de Apocalipse now e o trabalho do Alan, mas são elas que você considera suas experiências mais criativas? RF - Se estiver falando do trabalho de som, trabalhar com o Alan e alguns poucos dos filmes, trazendo ideias, foram para mim as experiências mais criativas, embora eu não possa levar o crédito da maior parte das ideias. Talvez por quanto o som importava para o Alan, ele me perguntava “O que você faria com isso?”. Posso te dar uma dúzia de exemplos de quando eu estava com o Alan e ele estava tentando criar um som. Não sei se eu fui muito útil, mas para mim o exercício de criatividade era só ser testemunha do processo dele. E talvez ocasionalmente dizer “não, acho que não”. Na minha própria experiência como uma pessoa de som, fui um editor de foley por muitos anos. Gravávamos muito foley e trazíamos ideias. Devo ter trabalhado em uma dúzia de filmes fazendo foley. Conhece o conceito de foley? Basicamente você tem uma sala de foley e você cria sons que vão preencher o vazio no filme. Geralmente são os sons normais. E você está num restaurante, vai ouvir garfos e facas e pessoas falando no fundo. Não costumam ser os sons verdadeiramente incomuns e criativos que levam as pessoas para outro patamar. Minhas experiências criativas são mais como diretor, fazendo documentários. Faço documentários, você pode olhar no meu site. Essas são minhas experiências favoritas, em que som não é a

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essência, é realmente contar uma história e editar. Eu edito meus filmes, além de dirigir.

FP - E quais dos seus documentários você considera que te fizeram mais realizado e satisfeito com os resultados? RF - Penso que um filme que me levou um passo adiante foi um documentário chamado Sister Helen, que venceu o prêmio de direção em Sundance (no Sundance Film Festival). Ele se saiu bem. É bem cinema verité46, um documentário cru sobre uma freira católica no sul do Bronx, que era uma alcoólatra em recuperação. Ela administrava um abrigo para viciados e era como uma líder. Sabe, amor duro, duro como pedra. Líder desses pobres homens que tinham sofrido muito, mas realmente a amavam. E morei com eles e minha parceira no filme por um ano. É uma experiência criativa trazer a história de alguém. Diria esse documentário. E outros. O último foi sobre uma trupe feminina de percussionistas em Ruanda, todas sobreviventes do genocídio. Eu fiz com a minha irmã, que foi uma das editoras em Apocalipse. Essas são as experiências criativas de que eu falo a respeito. Não necessariamente com som.

FP - OK, perfeito. Você poderia me dizer como o sound design daquelas três cenas que eu listei... Lembra? A cena dos insetos, a cena do pesadelo e a cena do tapa de Veludo azul – foram criadas e se existem outros momentos no filme em que valham ser mencionados numa perspectiva de contraponto? RF - A cena dos insetos veio depois. De fato, acho que foi editada mais tarde. O Alan criou aqueles sons, gravou aqueles sons. Não acredito que eu tenha gravado aqueles sons com o Alan.

FP - Acho que a Ann gravou. Ele disse que gravou. RF - Sim, a Ann gravou. Isso realmente veio depois. Houve outras cenas que foram fenomenais. A cena do tapa foi só a gente, na verdade. Estapeando abóboras (risos). Coisas desse tipo. Mas com o Alan a arte vinha com a

46 Termo cunhado pelo antropólogo e sociólogo francês Edgar Morin. Estilo de documentário que valoriza um realismo imparcial na maneira de filmar pessoas em situações e atividades reais sem interferência do diretor.

261 mixagem. A somatória dos diferentes sons. Por exemplo, no momento em que você vê a orelha no chão, se você ouve a cena, tem uma mosca passando, todo tipo de coisa acontece naquele único take. Muito mais que aquela imagem horrível. Também a respiração do Dennis Hopper quando ele está com a Isabella Rossellini em Veludo azul era assustadora mesmo. E o Alan trabalhou duro de verdade para criar aquele som de respiração. E então a voz aumenta muito (imita o som). Essa foi uma conexão bem poderosa. Mas, de fato, no fim do filme tem uma grande cena, quando Jeffrey e Sandy estão olhando pela janela e tem um pássaro mecânico. Isso é muito David Lynch. Ele não queria um pássaro real, ele deliberadamente quis um pássaro falso com um som falso. O pio não é um pio de verdade. Ele fez isso de novo no filme seguinte, Coração selvagem. Eu estava nos diálogos. Ele queria que o diálogo realmente não soasse natural, com ADR, substituição de diálogo que não soasse natural. Um pouco sem sincronia e, para soar como se não fosse exatamente certo, foi gravado no estúdio. Só para tirar as pessoas de sua zona e conforto. Para fazer aquilo irreal. Da mesma forma que ele teria um pintor abstrato não pintando uma cena realista, por que não fazer o mesmo com cinema? Para mim foi chocante. Porque todo nosso propósito, todo nosso trabalho era fazer aquilo soar tão naturalista quanto possível, de forma que você não ia saber que tinha sido gravado em estúdio. Mas o David e o Alan pensavam da mesma forma em coisas assim. Muito, muito, muito singulares.

FP - Você falou da respiração do Dennis Hopper. O que o Alan fez para ela? RF - Ele pegou algum dispositivo. Acho que era um tanque de gás hélio, altamente comprimido e com aquela pressão ele gerava as vozes. Não era sempre a voz do Dennis Hopper, era a voz de alguém mais fazendo aquilo. Tinha uma artista de foley que trabalhava nos filmes do Alan e ainda trabalha bastante na Lucas (Film), Dennie Thorpe. E você pode querer falar com ela. Ela é uma pessoa incrível. Já fez foley para cem filmes. Lembra muito bem dos filmes que fez com o Alan. A costa do mosquito (The mosquito coast, EUA, 1986, de Peter Weir) foi outro ótimo. Aquela era uma grande trilha sonora. Não um filme muito bem-sucedido, mas uma grande trilha sonora. E ali tem uma cena surpreendente, uma cena incrível. Não só o foley em que o

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Alan trabalhou. O diretor Peter Weir pediu a ele para ir a Belize, onde eles estavam filmando, e gravar sons naturais, o que ele fez. Uma coisa sobre o Alan – provavelmente não te disse isso – é que ele frequentemente saía de férias e levava um gravador, para gravar ambiências. Ele tinha uma biblioteca fenomenal de ambiências. Ainda tenho algumas. E sons de lobos. Biblioteca fenomenal e ele a tinha catalogada: vento distante de vão, vento suave, vento íntimo... Era como pessoas colecionado diferentes versões das sinfonias de Beethoven, ele sempre tinha diferentes ventos. Onde quer que ele fosse, ele fazia isso. E ele ia até sua biblioteca, de sons gravados por ele mesmo, e achava o melhor foley. Em A costa do mosquito acontece uma explosão enorme, que é um som muito complexo. É muito mais que uma explosão. Você devia ouvi-la. O que é até melhor é o pós-efeito, o som que vem depois, a paisagem queimada. Os passos crepitantes e a ambiência ali. Ouça aquilo.

FP - Eu vou. Ia te perguntar se você lembrava de algum outro elemento a que eu devia prestar atenção em Veludo azul e nos outros filmes em que você trabalhou com o Alan, mas acho que você fez isso. Se quiser citar algo mais, sinta-se à vontade. RF - Sim, estou tentando pensar. É interessante que você escolheu Veludo azul porque é... um filme interessante, é um grande filme. Tem uma trilha sonora interessante e acho que todo mundo ficou surpreso que ele foi bem- sucedido simplesmente como um filme. Lembro de a gente assistindo ao filme e pensando “Não dá para vender esse filme, é quase pornográfico. Como isso poderia ser um filme comercial? Não pode ser”. Ainda que tenha havido exibições-teste, uns poucos de nós da equipe técnica fomos ao cinema em São Francisco com uma plateia real e foi fascinante. As pessoas riam nas horas erradas. Estavam nervosas, não sabiam como reagir. Pessoas com que conversei a respeito estavam perplexas. Lembro de sair de lá e foi tão esquisito – você sabe o quão esquisito é (o filme). Saímos de lá na chuva e tinha um homem de 60 anos numa saia amarela de vinil usando maquiagem e uma peruca ruim girando debaixo de um guarda-chuva rosa e passamos por ele, porque é São Francisco e é normal, e eu pensei que aquilo era até mais estranho que o que tínhamos visto em Veludo azul. Então

263 por que achamos que Veludo azul é estranho? A vida é estranha! Esse é o ponto!

FP - Pelo menos em São Francisco (risos). RF - Pelo menos em São Francisco. Mas esse é o ponto dele (David) a respeito da cena de abertura, descendo no meio dos insetos. Outros momentos sonoros... Bem, você me perguntou se havia outras pessoas que deram alguma continuidade ao legado do Alan. Acho que você tem que dizer que o Ben Burtt é tão criativo e incrível quanto, do jeito dele, um jeito diferente do Alan. E era simplesmente impressionante. Mas ele era diferente.

FP - Você acha que ele foi influenciado pelo Alan de alguma forma? RF - Bem, ambos trabalharam na mesma época. Acho que eram amigáveis um com o outro, mas eram muito competitivos. Cada um deles tinha seus diretores e tinha seus filmes e estava no ápice de seu jogo. Nada nunca foi dito, “Tenho que fazer melhor que o Ben”. Trabalhei para os dois, ambos foram pessoas muito legais. Mas você podia sentir essa rivalidade, rivalidade criativa. E mais adiante o Gary Rydstrom, que começou como um aprendiz em um dos filmes do Alan. Na verdade, para mim, fazendo foley. Ele é um sound designer brilhante, brilhante, brilhante, simplesmente incrível. Acredito que seria uma boa ideia conversar com o Gary. Saber o que ele aprendeu do Alan. Conhece o Gary Rydstrom, certo?

FP - Eu ia te perguntar sobre os créditos dele. Conheço o nome, mas não me lembro bem dos filmes. RF - O Gary fez muitos, muitos, muito filmes. Já ganhou vários Oscars a esta altura. Geralmente são filmes grandes. Não sei se fez Indiana Jones (e o templo da perdição, Indiana Jones and the temple of doom, EUA, 1984, de Steven Spielberg) acho que sim. Veja a lista dele (filmografia) e você vai ficar impressionado. O primeiríssimo filme dele foi como um aprendiz numa porcaria de filme que o Alan fez chamado Biohazard (Sinal de perigo, lançado no mercado americano como Warning sign, EUA, 1985, de Hal Barwood). Eu era um dos editores de som, editor de foley, o Gary era um aprendiz. Embora o filme fosse um lixo, foi divertido. Era um filme de horror, basicamente de

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horror, então você podia fazer qualquer coisa. O Gary seria uma excelente pessoa com quem conversar.

FP - OK, vou ver se consigo fazer isso. RF - A Ann consegue te colocar em contato com o Gary.

FP - Bem, deixe-me ver... Na sua opinião, quais foram os filmes mais notáveis e criativos do Alan não dirigido pelo Lynch na perspectiva sonora? Acho que você mencionou A costa do mosquito e Os lobos nunca choram, talvez. RF - Sim, eu colocaria esses dois como os primeiros. O corcel negro também. E eu colocaria A insustentável leveza do ser.

FP - Especialmente por aquela cena de guerra em agosto de 1968, de rebelião que eles criaram. RF - Honestamente não sei se o crédito foi do Walter ou do Alan. Pode ter sido mais a direção do Walter, aquela cena. Porque o Walter e o Alan estavam meio que sendo sound designers no filme. É um grande filme. E o Walter veio finalizar a edição e adicionar ideias de som. Não sei se o Alan assumiria total crédito por ela, se ele estivesse aqui. Mas tem muito naquele filme, muito. Cenas bonitas. Não um tour de force sonoro como O corcel negro ou A costa do mosquito, mas próximo disso. Duna (Dune, EUA, 1984, e David Lynch) ninguém viu, foi um fracasso, mas em termos de som tinha alguns momentos muito interessantes. Lembro de ir com o Alan ao zoológico, ao aquário, para gravar jacarés. Eram gordos, jacarés bem alimentados e gordos. Nunca vou esquecer que tivemos que pisar dentro desse poço de jacarés com um treinador. Eles dormem na maior parte do tempo. Eles medem cerca de 2,5 metros.

FP - Vocês tiveram tanta coragem de fazer isso (risos)... RF - E eu estava gravando tudo isso, acho que segurando o microfone e o treinador estava chutando um jacaré na barriga, de forma que ele rosnasse (imita o som). O Alan pegou esse som e usou como base para as larvas gigantes da areia. É um grande som, você pode ouvir. Uma mistura de sons

265 naturais e artificiais. Esse deve ser um bom trecho para assistir. Acho que as cenas de Os lobos nunca choram são verdadeiramente incríveis. Algumas cenas de O corcel negro também.

FP - E do A insustentável leveza do ser... É difícil para mim. Eu assisti faz poucos dias e não tenho essa prática auditiva que vocês têm. Tem muito diálogo e muita música. RF - O Phil (Kaufman) pediu ao Alan para ser o editor de música. Então, tudo aquilo é do Alan.

FP - Sim. Trabalho dele também, certo? Em termos de efeitos sonoros, além da cena da rebelião, sabe de algo mais em que eu deveria prestar atenção? RF - Bem, houve tantas cenas íntimas que foram feitas com foley em estúdio, cenas de beijos apaixonados e tudo mais. Mas para fazer isso bem, demonstra-se técnica mesmo. Técnica de mixagem. Estou tentando pensar em outras cenas que realmente capturam... que o Alan usou... Não, tinha som sofisticado, mas não inacreditavelmente criativo. Tudo era muito sofisticado no som, ele nunca deixou nada de fora. Só de vê-lo trabalhar nos dias distantes em que as pessoas trabalhavam na moviola, você mal conseguia ouvir o som, de qualquer forma. Então editar especificamente era duro. Tínhamos uma funcionando, o Alan tinha quatro ou cinco rolos o tempo todo. Ele tinha essa máquina incrível que podia executar quatro ou cinco de som ao mesmo tempo. E ele editava assim. Se você olhasse, parecia espaguete saindo. Era tipo “Como ele consegue?”. Lembro que ele trabalhou com uma das primeiras interfaces digitais bem no comecinho (desse tipo de tecnologia), pouco antes de morrer. Tirou de letra. Imagino o que teria sido.

FP - Foi em Sol nascente (Rising sun, EUA, 1993, de Philip Kaufman)? RF - Em Sol nascente, que foi quando ele adoeceu. Não sei se fez algo depois disso. Pode ter sido em A insustentável leveza do ser que ele começou, pode ser...

FP - OK. Consegue lembrar se algum desses outros filmes trazem exemplos que representem contraponto sonoro por conta de sobreposição de camadas

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de efeitos sonoros? Não acho que vejo esse tipo de contraponto em A insustentável leveza do ser... RF - Quando fala em contraponto você quer dizer som sem sincronia ou que não está na cena?

FP - Sim, claramente fora da cena. Que mesmo que alguém como eu, que não sou especialista, percebe que não vem daquela cena de forma alguma, colocado ali depois com outros sons em camada. Aquelas cenas que você tem com o David Lynch, criadas com esse propósito, para esse efeito. RF - Consigo lembrar de uma cena, que pode ou não ser contraponto, ela leva sons reais e é mixada de tal forma que cria um efeito surreal ou irreal. De novo em Os lobos não choram. Quando o cientista Charlie chega ao Alasca pela primeira vez, ele salta de um avião no meio do nada. Ele olha ao redor e só tem neve até onde os olhos alcançam. E ele está completamente sozinho com suas malas e morto de medo porque ele é um cara urbano. Ele sobe o zíper de sua jaqueta, o que foi gravado em foley. Mas foi feito com perfeição. Até alguém como o Randy Tom – alguém mais com quem você pode querer falar – disse que ele nunca ouviu algo tão preciso na vida. Mas o som do zíper subindo e o vento, ou a falta dele, só o silêncio e o som destacado dessa coisa, você realmente sente muito mais que uma pessoa com frio. Você realmente sente alguém completamente apavorado, que está verdadeiramente perdido. A natureza num estado além do assustador. Como ele ia sobreviver? E é aquele som.

FP - Vou prestar atenção nisso. Acredito que o Alan não tenha tido muitas chances de trabalhar com tecnologia digital. Ela afetou seu processo criativo na edição ou no design? Mudou o sound design de alguma forma, na sua opinião? RF - Bem, primeiro, você precisa lembrar como era intensamente trabalhoso criar e mixar sons antes da revolução digital. Tudo era manual. Você tinha que gravar um som, transferir para filme perfurado, cortar um pedaço de filme, colocar em camada junto a outro na mesa de edição ou gravar num

267 gravador A-track, fazer downmix47 pré-mixagem e downmix de novo. Toda vez que quisesse mudar um efeito sonoro, você tinha que voltar, recortar algo, colocar nesse lugar fisicamente, remixar e fazer tudo aquilo. Levava dias, semanas. Digitalmente, todas essas coisas são feitas num instante. Antes do digital, você tinha que remixar toda cena em que houvesse alguma mudança. Agora você não tem que fazer isso, basta adicionar digitalmente o que for, mover, colocar na mixagem... Leva momentos. Então a facilidade com que as coisas são feitas funcionam para sua vantagem e também para sua desvantagem. Ela faz tudo muito mais fácil, mas você tem que ser mais criativo. Tem mais tempo para ser criativo. Mas também te previne para ser disciplinado. Você pode fazer tudo, qualquer coisa. Consequentemente num monte desses filmes pensa-se que um grande som como uma pilha de efeitos sonoros, uma pilha impossível de efeitos sonoros vindos de todos os lados. Mas isso não é o que uma grande trilha sonora é. Uma grande trilha sonora é uma colcha de retalhos bem pensada e psicológica. O Walter sempre usa o termo quilt (colcha de retalhos) ou seja, uma trilha sonora bem tricotada. Você não tricota uma trilha sonora digitalmente do jeito que se tricotava uma trilha sonora em analógico. Você tinha que ser mais preciso, tinha que ter certeza do que queria, tinha que acreditar mesmo. Agora você pode fazer qualquer coisa. É o mesmo com edição. Não que faça as coisas assim tão mais rápidas.

FP - Acha que houve uma perda de sons, de qualidade de som ou não necessariamente? RF - Não sei. Tem toda essa discussão sobre se os sons digitais não são tão esteticamente agradáveis ou bons quanto os sons analógicos. Certamente há uma maior fidelidade e são mais claros. Você ouve mais. Se é tão poderoso quanto, emocionalmente... Há uma razão pela qual pessoas escolhem ouvir discos em vez de CDs. E o Alan era uma delas. Acho que há muito a se dizer. E penso que é o mesmo com vídeo. O vídeo é preciso e claro, mas não te dá o mesmo prazer emocional que o filme.

47 Combinação de canais de surround para auto-falantes estéreo ou mono.

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FP - Qual é a sua perspectiva a respeito de como o sound design se desenvolveu desde que o Alan nos deixou, especialmente quando praticado de uma forma mais experimental e artística? Você mencionou o Gary Rydstrom. Acha que seria um bom exemplo? RF - Sim, o Gary é experimental. O Gary tem um grande senso de curiosidade e força de vontade para tentar coisas. Como todos os grandes profissionais de som. Gosta de ir a lugares e tentar coisas que sejam diferentes. Lembro de trabalhar em Cortina de fogo (Backdraft, EUA, 1991, de Ron Howard), em que o Gary era o sound designer e, novamente, era para recriar o som do fogo. O diretor Ron Howard queria que o fogo fosse um personagem, com personalidade, tendo sua própria voz, sua própria consciência. Então o Gary realmente criou sons que realmente te davam a sensação de que o fogo era maléfico e tinha uma intenção, quase como uma voz humana. Acho que o Gary seria um bom exemplo. Tem outros. Estou tentando pensar em filmes recentes. Skip Lievsay seria um. Skip é o sound designer que trabalha num monte de filmes dos irmãos Coen. Ele é mais famoso por eles, quase todos eles. Você tem que ter cabeça aberta, você tem que ter um diretor com uma visão de som, uma sensibilidade ao som, como o David Lynch. Ou os irmãos Coen. Ou o Carroll Ballard. E você precisa ter uma pessoa de som com criatividade e visão para fazer isso. Então se você olha, por exemplo, Barton Fink - Delírios de Hollywood, (Barton Fink, EUA/Reino Unido, 1991, de Joel e Ethan Coen) um filme maravilhoso dos irmãos Coen, todo mundo lembra do som do elevador subindo. É tão complexo, maravilhoso, velho e ruidoso e exemplifica o medo de cara, que é escritor em Hollywood e não consegue escrever. Ou o som da campainha no saguão que soa por um minuto, literalmente um minuto. Quem tem a grande visão e a criatividade de imaginar algo assim? Ou veja o Wes Anderon. Eu geralmente não gosto do trabalho dele, mas O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel, EUA/Alemanha/Reino Unido, 2014) é incrível. E é tão forte visualmente que você não presta mesmo atenção ao som, porque é tão interessante visualmente. Mas o som nesse filme é muito bom. Não sei quem fez o sound design (não consta essa função nos créditos disponíveis no site IMDb). Mas o Skip Lievsay é um grande sound designer.

269 FP - Vou prestar atenção a eles da próxima vez que vir os filmes. Você sabe de algum profissional da edição de som de cinema e sound design que considera o Alan uma inspiração e que tem usado essa influência conscientemente e declarado isso a respeito de filmes, que você consegue lembrar? Acho que você mencionou alguém antes. Talvez você mesmo, não sei (risos). RF - Você quer dizer um editor de som inspirado pelo Alan?

FP - Sim, alguém que tenha declarado isso, afirmado isso, como uma de suas maiores influências. RF - Não sei. Eu pensaria que o Randy Thom diria isso. O Randy tem um trabalho tremendo. Em termos de edição, o Alan tinha todo um grupo de editores trabalhando para ele que eram realmente fantásticos e todos foram inspirados por ele. Richard Hymns. Conhece o Richard? Deveria falar com o Richard. Ele é supervisor de som em muitos filmes, muitos filmes do (Steven) Spielberg. O último foi Ponte dos espiões (Bridge of spies, EUA/Alemanha/Índia, 2015, de Steven Spielberg). E ele trabalhou com o Alan. Trabalhei com o Richard. Você deveria falar com ele, ele deve ser uma boa pessoa com quem conversar. Frank Eulner. Não sei se já contatou o Frank.

FP - Não, a Ann está tentando. Acho que ele está ocupado com alguma produção. Não sei quando ele vai estar disponível. RF - Você pode querer falar com o Mike Silvers. A Ann te dá o número dele. O Mike é um cara maravilhoso e ele trabalhou com o Alan. Acho que foi inspirado por ele. O Michael é um supervisor de som agora. Fico imaginando se o Tim Holland trabalhou o suficiente com o Alan... Você pode perguntar à Ann. Nós todos trabalhamos com as mesmas pessoas, mas você pode perguntar à Ann se o Tim Holland seria uma boa sugestão. Sei que o Tim trabalhou em Os eleitos (The Right Stuff, EUA, 1983, de Philip Kaufman). O som daquela cápsula ficou famoso. Ela vem do espaço e aterrissa. É sabido que não existe som no espaço. Mas tinha um som para aquela cápsula a velocidades supersônicas, queimando, com um humano dentro. Era uma pequena lata de sardinha com um humano lá dentro viajando a mil milhas por

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hora, queimando. Aquele som tinha que ser assustador, tinha que ter som. Então o Tim teve a ideia de usar um grunhido de porco ao contrário, como o principal elemento daquele som. Então o Tim tem um bom senso de som. E acredito que ele trabalhou com o Alan, então pergunte à Ann.

FP - OK, eu vou. Acho que é isso. Tudo bem se eu escrever checando dúvidas? Quero ser tão preciso quanto possível, não cometer qualquer erro como chamar efeitos sonoros de ruídos (risos; isso aconteceu antes da primeira entrevista com Ann Kroeber, que explicou a diferença). Ainda estou aprendendo. Uma coisa interessante a seu respeito: você leciona ou deu algum tipo de palestra ou algo assim? RF - Já lecionei ocasionalmente. Estive em Doha, Qatar, no Doha Film Institute. Eram workshops de cinema. Um era sobre documentário, outro sobre ficção. Dei algumas palestras sobre som para os jovens cineastas. Queria que entendessem. Passei Veludo azul, entre outros. PI, (EUA, 1998) do Darren Aronosfsky, um pouco de Os lobos nunca choram, para contar para eles sobre as possibilidades do som, que o som é incrivelmente importante e que não é sobre volume, não é sobre quantidade. É realmente sobre qualidade. E liberdade para ser totalmente criativo. Como o Randy Thom diz, não devemos cair na armadilha da mente literal. E o David (Lynch) era um gênio do destrancar a mente literal, de ir bem além do que você pensaria, encontrar coisas e criar uma subconsciência. Eraserhead é um ótimo exemplo. Não parecia grande coisa, mas era uma experiência tão estranha... Tudo por conta do som, de verdade.

271 EDUARDO SIMÕES DOS SANTOS MENDES (Entrevista 2016 c)

Professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Mendes já ministrou ou tem ministrado a disciplina Sound Design/Projeto de Som – A Construção da Trilha Sonora no Cinema Narrativo Ficcional na pós-graduação e Expressão Audiovisual I, Som I, II III e IV para as turmas de graduação nos últimos anos. Seu primeiro crédito artístico de trabalho com som de cinema na lista do site IMDb é O bandido da sétima luz (Brasil, 1987), de Paulo Caldas. Trabalhou na edição de som ainda em Kuarup (Brasil, 1989), de Ruy Guerra, Dois Córregos - Verdades submersas no Tempo (Brasil, 1999), de Carlos Reichenbach, e Tônica dominante (Brasil, 2000), de Lina Chamie. Já como sound designer, Mendes atuou em Antônia: o filme (Brasil, 2006), de Tata Amaral, Falsa loura (Brasil, 2007), de Reichenbach, e No meu lugar (Brasil/Portugal, 2009), de Eduardo Valente. Venceu o Troféu Calunga de melhor som do Cine PE - Festival do Audiovisual de 2004 por Contra todos (Brasil, 2004), de Roberto Moreira. Em 2009, no XIII Encontro Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), realizado na ECA/USP, Mendes apresentou sua pesquisa Alan Splet: Revisão Crítica da Obra, em que traçava aspectos estruturais do trabalho do sound designer americano, e recomendava uma pesquisa mais aprofundada sobre ele.

Entrevista concedida presencialmente em 4 de março de 2016.

FABIANO PEREIRA - O que você destaca na tua experiência, tanto acadêmica, quanto artística, os trabalhos mais relevantes, mais expressivos? EDUARDO MENDES - Tenho um carinho especial pelo Um céu de estrelas (Brasil, 1996, de Tata Amaral), porque, afinal, é o primeiro. Na verdade, é o segundo, mas é o primeiro dos estereofônicos, é o primeiro em que eu estava envolvido desde o início. Nesse esquema de “vamos atrás na reunião de pré- produção, discussão de roteiro”, essa coisa toda. Então é o primeiro em que eu trabalho com ele do roteiro à mixagem. Então tem uma relação carinhosa. Tem um monte de curtas no meio com que eu tenho uma relação super

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carinhosa, que são relações de aprendizado. The MASP movie (Brasil, 1986, de Hamilton Zini Jr.), o Kyrie ou o Início do caos (Brasil, 1998, de Débora Waldman), Noite final menos cinco minutos (Brasil, 1993, também de Waldman)... Tem uma porrada de curtas que me deram caminhos diferentes. Tem outros filmes que eu faço com o (diretor) Carlos Adriano, que aí são não-narrativos, são mais sensoriais que qualquer outra coisa, mas sempre dentro de limites bem racionais (risos). A gente abre um jogo, determina um jogo com regras muito claras e a partir daí vale qualquer negócio. São muito gostosos de fazer, gosto muito do resultado deles também. Tenho que pegar e olhar o que que eu fiz (risos). Eu não lembro mesmo. Sou péssimo, péssimo... Não tem uma cola aqui para olhar. O corpo, (Brasil, 2007, de Rossana Foglia e Rubens Rewald)... Gosto muito do meu trabalho no O corpo. Acho um trabalho bem bonito. Na verdade, eu não posso muito reclamar da minha vida de editor porque nesses anos que eu tenho feito filmes eu tenho trabalhado em filmes que me dão espaço de trabalho. Filmes que, quando as pessoas vêm me procurar, elas sabem que os filmes delas têm um espaço pra trabalho de som criativo, para trabalho de som narrativo e assim por diante. Aí elas vêm e me procuram. Eu fiz vários filmes pelo caminho de... preciso pagar meu aluguel, etc e tal... Eu tenho uma coisa de eu não conseguir fazer trabalho meia boca. Então, (mesmo) para pagar aluguel, ele tem que estar feitinho, fechadinho, bem armado, tem que ter uma coerência dentro dele, tem que ter uma lógica interna. Eu faço com o mesmo carinho Cinderela baiana (Brasil, 1998, de Conrado Sanchez) ou A casa de Alice (Brasil, 2007, de Chico Teixeira).

FP - Você fez Cinderela baiana? EM - Eu fiz. Claro (risos). Aliás eu me diverti muito, eu e (o editor de som) Luiz Adelmo (Manzano), nós editamos juntos. A gente se divertiu muito fazendo Cinderela baiana. Você sempre acha alguma coisa bacana para se pegar e brincar sobre ela. É que tem alguns filmes que na concepção original deles, quer na escrita do roteiro, quer na mise-en-scène, não pensam o som como estrutura dramática. Mesmo, não é pensado. E normalmente esses filmes obviamente eles não te chamam no roteiro, chamam quando está montado. E aí quando realmente você pega esses filmes que estão

273 montados, não têm nenhuma articulação que você possa trabalhar sobre ela, o que você faz é uma perfumaria bacana. Você deixa o filme bonitinho, mais leve ou mais pesado. Vamos ao gosto do diretor. Não tem esse problema. E aí você vai brincando pelo caminho, você cria brincadeiras para você mesmo, por uma forma de seguir o negócio. Depois de um certo tempo que eu fiz “Cinderelas baianas” e “Casas de Alice”48, as pessoas começaram a me chamar para fazer mais “Casas de Alices”. Porque elas perceberam que eu tinha um outro domínio de linguagem que me permitia extrapolar suas próprias idéias. Na verdade, crescer a idéias dos caras e fazer esse jogo. Então, nos últimos anos eu tenho feito “Casas de Alices”. O que é muito gostoso, porque são filmes em que você tem um grande espaço de trabalho. São filmes que chegam para mim no roteiro, que eu sento com as pessoas, a gente prevê, discute, prevê a própria técnica de captação, como vai ser feita, qual é a ideia mais lógica, como vai soar no final. Faz toda a discussão no som quando está fazendo a discussão da arte, da foto, está todo mundo junto na mesma discussão, entendeu?

FP - Qual desses mais recentes, você destaca? EM - Os últimos que eu fiz... É o Ausência (Brasil/Chile/França, 2014, de Chico Teixeira) um trabalho discretíssimo, mas bem bonito, os dois trabalhos que eu fiz com o Chico – eu fiz três. Na verdade, um é o documentário, é uma outra linguagem, um outro código...

FP - Chico? EM - Chico Teixeira. Ele tem três longas. Um documentário, chamado Carrego comigo (Brasil, 2000) que é sobre gêmeos, que é bem legal, e aí ele tem dois longas de ficção, que é o Casa de Alice e Ausência. Então, nesse caso que a gente discute a cerne do negócio e pensa o som desde o começo do caminho. São pessoas que têm uma coisa diferenciada, que é quando você quer usar o universo sonoro a seu favor. Eles são filmes que têm menos diálogos que a maioria dos filmes. Porque quando você tem diálogo, não tem jeito, você cria um.... A sua percepção vai para o plano do diálogo imediato,

48 Referência ao elogiado e premiado filme Casa de Alice (Brasil, 2007), de Chico Teixeira.

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assim, frontalmente ela junta o plano do diálogo e dá uma travada no resto do plano sonoro do filme. E diálogo é uma relação racional, uma relação que depende do conhecimento da palavra, da língua, uma relação 100% racional. E a relação com o som não funciona por aí, com o som que não é a palavra dita. Então quando você tem filmes que operam muito no diálogo, você realmente não tem muito espaço para a criação. Ou, de criação até tem, mas eu diria de intervenção, do uso do som como elemento de intervenção naquela narrativa. E aí que você pode fazer o que eu chamo de perfumarias. Até um pouco mais que perfumarias. Eu falo isso... é um erro, vai. Ela funciona um pouco melhor, mas não tem essa ação muito forte. O que eu chamo de perfumaria? Você pegar uma sequência e usar do próprio ritmo da sequência para usar recursos com que você possa intervir sobre ela. Então se é uma sequência de tensão, eu vou aumentar a quantidade de sons que sejam... quebrem para grave, médios para graves, ou se tem algum tipo de intensidade de presença, intensa, discreta, mas intensa, que sejam rítmicos, que sejam constantes... Eu vou gerar uma forma de intensificar o nervoso da situação. Mas vai sempre agir quase como música. É que música age sempre mais fácil. Ela já tem um código, o código é super pré-estabelecido para a gente, ela funciona mais rápido. O resto dos efeitos sonoros... eles até trazem uma carga de informação, conforme o efeito. Se uma porta é uma porta, um carro é um carro. Mas se você distorce um pouco essa porta, não sei mais se ela é uma porta. Então é um código muito mais difícil que você tem que armar na frente do seu espectador para ele entender aquele código, para você falar código, ele falar código e a partir daí eu consigo trabalhar sobre ele. Música está codificada, então é fácil. Você já entende o código e você só tem que trabalhar sobre ele agora. Então quando você pega um filme em que o texto tem muito espaço, a voz tem muito espaço, o máximo que você pode fazer é usar o ambiente para ajudar na intenção da cena. E aí você vai trabalhando sobre isso. Você pode diminuir o tempo dos diálogos usando o som entre eles. Tem umas pequenas técnicas que você faz, você acelera ou retarda o tempo de leitura de uma cena. E esse é um poder de som que mesmo um diretor que trabalha muito com diálogo, quando pela primeira vez ele faz o filme, ele leva um susto. O filme está fechado quando chega na sua mão, então você não vai impor ritmo, não vai mudar tamanho

275 de imagem, fazer nada. Você vai trabalhar sobre aquilo que está feito. Mas mesmo trabalhando sobre aquilo que está feito, a gente tem uma capacidade relativamente limitada, mas bastante boa, de acelerar ou retardar um tempo de leitura de uma imagem. Isso é um fato. Aí os diretores ficam muito espantados – no caso os que não sabem pensar som ou nunca começaram a pensar, de ver que o filme deles ficou mais rápido.

FP - Sem corte algum extra. EM - Você excitando mais ou excitando menos o espectador sonoramente. É uma questão de excitação mesmo. Quanto de informação eu dou para esse cara. E aí eu vou jogando sobre isso, que tipo de informação, mas não passa disso. Mas já faz muitos anos que eu ganhei uma carteira de diretores, digamos assim, de pessoas que não fazem filmes todos os anos, fazem filmes a cada três anos, a cada dois anos, mas fazem, continuam fazendo, mas que criamos uma relação de trabalho mesmo, criação conjunta.

FP - Desde o início até o fim? EM - Desde o início até o fim.

FP - Você falou do Chico Teixeira. Tem algum outro? EM - Chico, Tata Amaral, o Rubens Rewald, o Roberto Moreira... É que eu vou ser injusto. Eu só estou lembrando dos últimos trabalhos. Minha memória é lixo.

FP - Não, mas é muito tempo e muito filme para lembrar de tudo mesmo. EM - Não, eu sou ruim mesmo. É diferente, você não entendeu a ideia.

FP - Apaga mesmo? EM - Apaga. Apaga e pronto. Próximo. Mas são pessoas que criam um espaço de trabalho pra que eu possa trabalhar junto. Aí as coisas se tornam gostosas. Aí você tem espaço de trabalho.

FP - Você quer dar uma olhada na filmografia? EM - É, fiquei mal aqui. Mas vai falando.

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FP - Ia perguntar da parte acadêmica, que é mais fácil de checar. Como professor mesmo, aqui na USP, eventos com que você se envolve. Eu sei da Socine. Que que você gostaria de destacar da sua carreira também acadêmica. EM - Cara, eu estou citado aqui num filme que eu nem lembrava que existia, como Edu Santos Mendes. Entre no (site) IMDb e veja Santos Mendes.

FP - Você fez esse filme? Efetivamente fez? EM - Acho que sim. Não lembro. Ah, fiz. Fiz! Vamos lá. Pessoas com quem eu adoro trabalhar. Adoro trabalhar com o Chico Teixeira. Adoro trabalhar com a Tata. Adoro trabalhar com o Rubens Rewald. Adoro trabalhar com a Lina Chamie. Que é uma das pessoas que não me chama para todos os filmes. É bem divertido. Ela só me chama para filme cabeça. Quando ela tem filme narrativo ela não me chama, passa para alguém.

FP - Talvez um desperdício do teu trabalho, ela deve pensar, né? EM - Ela faz um pacotinho mais legal depois no estúdio, ela já faz um pacote com edição, mixagem e a masterização, tudo no mesmo preço, sai mais baratinho para ela e ela faz. Mas aí quando o filme requer, penso, ela diz “tá bom, não vai dar pra fazer pacotinho barato”. E aí ela me chama. Acho super correto, não tenho nada contra, acho legal a forma como ela pensa, até porque ela me traz o que é bacana. Ah, estou criando uma relação muito bacana, muito gostosa – mas ainda não chegou ao longa, mas vai chegar rapidinho – que é (com) a Thais Fujinaga. Que é uma diretora de curtas lindos, lindos, lindos, lindos. Faz uns dois curtas, três curtas que a gente está trabalhando juntos e está sendo uma relação bem bacana. Ela vai chegar bem no longa, essa menina, vai ser bem legal. Tem o Flavio Frederico, com quem eu estou começando a criar uma relação boa. Tem o Carlos Adriano, com quem é uma delícia de trabalhar. Bem, é isso.

FP - E com relação à parte acadêmica, quais você considera suas experiências mais interessantes? EM - Tentar botar na cabeça de uma nova geração que som é pensável. Tentar botar na cabeça de uma nova geração que som tem que ter espaço

277 no set. Tentar botar na cabeça de uma nova geração que a escolha de um microfone vai relacionar na escolha da forma de leitura dessa imagem. Tentar botar na cabeça... (risos). É isso que eu quero só. Essa é a coisa que eu acho mais importante, de verdade. Despertar curiosidade, a sensibilidade para uma outra forma de percepção que a gente não é desperto no dia-a-dia. A gente é muito bem treinado para aprender a ver. Isso a gente faz direito. A sociedade ocidental é uma sociedade visual. E o cinema é chamado de a grande arte visual. Se a imagem está contando uma história, eu não preciso de mais nada. O que não deixa de ser uma verdade. Se a imagem está contando uma história, eu não preciso de mais nada. Ou seja, eu não preciso de diálogo, eu não preciso de música... É verdade. Cinema silencioso. Está lá, cara. A imagem está lá, eu consigo contar uma história, muito bem contada, fazer filmes de altíssimo nível, com grande discurso... sabe, sem som. Temos anos e anos de história, décadas de história de produtos belíssimos que se mantêm vivos até hoje. Então é um fato. Agora, se entra som na história, tem que combinar, tem que começar a articular, senão a articulação fica desinteressante. Eu não preciso dele, literalmente. Mas se escolher usar, pensa. É só isso. Essa é a regra. Então acho a melhor coisa que eu fiz na ECA é tentar criar gerações que começassem a pensar som como diretores, roteiristas e produtores. Começassem a pensar em estruturas sonoras, pensar som como elemento a mais do filme. Tentar criar diretores, fotógrafos, produtores de set, assistentes de direção que saibam o que o cara do som está fazendo no set e quais são as necessidades dele para poder criar espaço de trabalho para esse nego. Que é uma coisa que no mundo inteiro, isso não é brasileiro... A gente sempre achava que era Brasil, aí você começa a andar pelo mundo e começa a conhecer caras chiques, técnicos de som, franceses cheios de Cesar, técnicos americanos cheios de Oscar, xingando a mesma coisa. Que é: não tem espaço de trabalho no set. Então, eu acho que o meu principal trabalho mesmo na ECA é ver se a gente consegue mudar um pouquinho do padrão. Modificar um pouco esses parâmetros mínimos, o que na verdade já estamos conseguindo. Acho muito bonitinho ver os longas dos meus alunos batendo na tela. Agora já tem longa batendo. Com o tempo de ECA já deu para ter muito longa de aluno começando a bater na tela. E aí você vê estruturas mais sofisticadas.

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FP - Tem algum exemplo que te ocorra? EM - Ah, um monte. O Trabalhar cansa (Brasil, 2011, de Marco Dutra e Juliana Rojas) que é uma graça de som. O filme da Caru (Alves de Souza), como chama? Tem uma edição bonita também, um pensamento sonoro articulado muito bonito. Como chama o filme da Caru? De Menor (Brasil, 2013). Tem vários trabalhos de ex-alunos que você bate na tela e você diz “Muito beeeeem! Pensou!”. Pensou não só na articulação do roteiro, pensou não só na direção, mas pensou também no outro cara que está criando o som para cima daquilo. Aí que a coisa começa a ficar boa.

FP - Com certeza. Imagino que deve ser um prazer mesmo. EM - É um prazer imenso, vou te contar.

FP - Aqui (na ECA como professor) você está desde..? EM - 1990. Na graduação. Na pós 2001, 2002.

FP - De eventos acadêmicos que você participa, Socine..? EM - Basicamente, o grande evento acadêmico da área de que eu participo é a Socine. Eu comecei a participar da Socine super discretamente, aí a gente descobriu que tinham várias pessoas que discutiam a mesma coisa, aí começamos a nos encontrar, aí um ia ver o outro até a hora que a gente falou “por que a gente não junta e tenta criar uma coisa um pouco mais sólida?”. E também o que a gente está tentando fazer nos filmes e na escola se reflita aqui também e comece a fazer com que a academia comece a pensar som. Porque isso é um outro fato: a academia também não pensa som. Não é só a realização que não pensa som, a academia não pensa som (risos). Eu já participei de bancas com acadêmicos renomados brasileiros que chegaram para mim e literalmente falaram “eu não entendo nada de som”. E eu fico pensando com os meus botões “então, como é que você consegue ver uma imagem?”.

FP - Você está falando de acadêmicos da área de audiovisual? EM - Sim. Acadêmicos de cinema. Que admitem e falam “não entendo; pra quê?”.

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FP - Tipo Glória Pires no Oscar49. EM - (risos) Mais ou menos isso.

FP - Pelo menos são honestos. EM - Exatamente. Só que eu acho muito louco porque eles discutem a imagem. Só que aquela imagem naquele filme não é muda. Alguém lhe dá um valor, de verossimilhança, ou de não-verossimilhança, ou de delírio ou de... Existe um outro elemento que dá valor àquilo. E aquela imagem só existe naquele momento associada a esse valor sonoro. E sem esse valor sonoro aquela imagem não é mais uma imagem. Então não adianta você ficar dissecando aquela imagem feito um doido, a não ser que você seja um professor de fotografia e aí você está dissecando a entrada da luz, a composição do quadro, o que é uma outra história, que aí estou trabalhando sobre uma imagem mesmo, de composição... Aí, uma outra leitura. Agora, usar aquela imagem como a forma narrativa, para fazer toda uma análise narrativa sobre aquela imagem, jogando fora o elemento sonoro que a acompanha eu não consigo entender. Eu realmente não consigo entender, porque não faz sentido. É cinema silencioso? Não, não é cinema silencioso, tem som. Se for silencioso, tudo bem. Mas não é. A gente foi se encontrando pelo caminho. Eu, Fernando (Morais da Costa, da UFF), Suzana (Reck Miranda, da UFSCAR), Rodrigo (Octávio D’Azevedo Carreiro, da UFPE) um pouquinho depois. A gente foi se conhecendo e falando “caras, por que que a gente não se junta?”. Pelo menos, no mínimo, entre a gente a discussão fica um pouco melhor, fica um pouco mais agradável. A gente consegue fazer uma discussão que quando você está no meio...

FP - Vocês se entendem, pelo menos. EM - Ou brigamos. Pelo menos todo mundo leu o que tem que ser lido. Então o nível da discussão já parte de uns três degrauzinhos acima, eu não tenho que partir sempre do térreo. Quando a gente estava sozinho, todo nível de

49 Referência à criticada e ironizada participação da atriz como comentarista na exibição da cerimônia transmitida pela Rede Globo de televisão, ao vivo, na edição de 2016, quando ela admitiu não ter assistido a alguns dos filmes a serem comentados.

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discussão, tirando quando a gente estava do outro lado, era um nível de discussão muito pequeno. Então agora a gente já tem umas linhas sendo criadas dentro dessa discussão de sound studies, que a gente se juntou e acabou abrindo. Já tem gente estudando performance, já tem gente estudando um monte de outras ramificações que os estudos do som permitem e ampliando esse negócio, ampliando a discussão, fazendo a discussão para o grupo, recebendo de volta, sabe, que é bem gostoso. E ganhamos alguns parceiros, o que é muito bonitinho. Alguns parceiros que não são da área de som e que nem trabalham com som, mas que sempre pingam lá durante os seminários de som, sempre dão uma passadinha para saber o que que está rolando na discussão, como está andando...

FP - Não são nem da academia nem do mercado? EM - Não, são da academia. Mas são de televisão ou são de linguagem ou são de direção ou são só de teoria. Tipo (o professor do PPGCOM-UAM) Renato Pucci. Renato Pucci é um visitante assíduo dos seminários de som. É muito bacana, ele sempre vai lá, discute, debate, entra no jogo.

FP - Eu tive aula com ele. A gente estava estudando seriados (de TV) de investigação e eu escrevi sobre o Twin Peaks (EUA, 1990-1991, criada por Mark Frost e Lynch). E realmente as dicas que ele trouxe, dizendo “observa isso”, deu uma dica de bibliografia... ele é atento, já dá uma dica precisa, dá uma dica de quem acompanha, que tem ouvido para a coisa. EM - Ele é legal. E é legal que aí você começa a ver que tem mais gente fora do seu pequeno mundo também. O problema de você juntar o pequeno mundo é que você acaba isolando o mundo, tanto que a gente pensa se a gente mantém ou não esse seminário. Tem discussões, várias discussões. O seminário da Socine, de estudos de som. Se aquele formato é o ideal. Tem uma discussão para isso porque agora a gente já teve a função que a gente tinha que ter, que é essa função de “existe som nos filmes”. Existe som, existe uma linha de estudos cinematográficos que se chama sound studies, que é velha, que não é nova, que não nasceu agora, que existe desde os anos 70, com muita gente muito interessante, que já criou muita teoria

281 interessante. Então a gente teve essa grande função de apresentar ao mundo... (risos). Ao mundo não, mas pelo menos ao pequeno mundo da Socine, que o mundo é um pouco maior do que a imagem, do que a escrita.

FP - Não é pouca coisa. É uma luta, né? EM - Sim, mas a gente começa a pensar também se não é o momento de espalhar para se meter nos outros.

FP - Entendi. Dividir as atenções nos outros temas. EM - Sim, talvez. É mais ou menos como quando eu comecei a trabalhar como editor de som. Porque o que você tinha era editor de som. Um trabalho chamado editor de som. Mas tinha um ranço nesse termo editor de som, que era uma profissão não associada a pensamento, uma profissão associada a uma práxis só. Porque no cinema brasileiro, até o meio dos anos 70... Até mais, no Rio mais cedo, em São Paulo nos anos 80. O conceito de pensar som de um filme, de editar som de um filme era dado pelo próprio montador, muito raramente pelo diretor. A não ser diretores criativos como (Rogério) Sganzerla, que tem todo um trabalho de pensar sobre imagem simultaneamente e assim por diante. Ou montadores como Mair (Tavares). O que você tem é o diretor e o montador montando o filme, escolhendo as músicas do filme junto com um trilheiro, alguém da música, e aí acabava o filme, fechava o filme. Aí o próprio estúdio onde você ia fazer eventuais dublagens, o que você ia mixar... o montador e o assistente de montagem faziam uma listinha de grilo, passarinho, patati patatá. O assistente de montagem montava aquele negócio, só precisando deixar a voz sem nada de fundo e acabou. Então você não tinha uma articulação de achar que som podia ser um elemento pensável. OK, isso é anos 80, que é quando e estou entrando aqui no mercado, e eu descubro que editar som é gostoso, que é uma descoberta... Eu não entrei para ser editor de som. Entrei para ser diretor, como todo mundo que entra num curso de cinema, ficar rico e famoso e ter minhas ideias jogadas para o mundo.

FP - Prestigiado (risos).

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EM - Exatamente. Aí, obviamente, uma coisa que eu sabia que ia fazer quando eu entrei no curso, que era fazer montagem... Eu me especializei em montagem, minha opção de curso é montagem, eu sou um montador teoricamente e, como sobrava para o montador editar o som, eu comecei a ver que ela tinha uma bruta articulação de linguagem interessante. Aí eu descobri trabalhando que aquilo era bacana e um cara me chamou, o Hamilton Zini Jr. me chamou para fazer o som de um desenho animado, que eu achei o máximo. Desenhado animado vale qualquer coisa. E fui fazer o som do desenho animado dele. Aí um outro me chamou para fazer som não sei de onde e, de repente, eu estava editando som e estava fazendo som direto e achei tudo de bom porque tinha espaço para trabalho, tinha espaço de criatividade, de realmente pensar, poder desenvolver ideias, etc e tal. E não tinha ninguém querendo puxar meu tapete porque não tinha ninguém concorrendo comigo. Não precisava brigar com ninguém, era só estar na minha paz, no meu trabalho e fazê-lo. Cara... Não teve saída, eu tive que seguir nesse mundo. Aí eu descobri o (sound designer Walter) Murch. Primeiro. Falei “olha, dá para articular melhor ainda do que eu imaginava isso aqui, dentro de narrativas ficcionais clássicas. Dá para eu fazer desvios na narrativa clássica.

FP - Descobriu como? Como foi essa descoberta do Murch? EM - Vendo filme. Vendo filme e falando “ulelê!”. Isso aqui é bom. Vendo filme e um amigo meu que tinha ido para Berkeley fazer lá o film scoring, curso de música para cinema, ele trouxe o classicão da literatura, que é aquele Film Sound – Theory and Practice, da Elizabeth Weiss. E aí eu vi aquele livro e falei “opa!”. Aí eu vi que o universo era muito maior ainda do que eu imaginava. Acho que eu descobri o Murch pelo Film Sound. Talvez, não lembro. É mais provável. Porque eu era fã do Coppola, sempre fui fã do Coppola. Mas na época dos “Chefões” (O poderoso chefão, The godfather, EUA, 1972, e O poderoso chefão II, The godfather: Part II, EUA, 1974, ambos de Francis Ford Coppola) eu era novinho... Não, Apocalipse (now, EUA, 1979, de Francis Ford Coppola). Foi o filme antes do livro. Quando eu vi Apocalipse eu falei “Ãh! OK, temos articulações aí muito complexas que podem ser feitas”.

283 FP - Isso você já estava formado? EM - Não, eu era aluno da ECA. Mas não pensava em som assim tão intensivamente. Mas depois que eu comecei a fazer som, eu descobri o livro que foi bacana, despertou o lado acadêmico, de organização acadêmica. Porque na ECA você não tinha nada, nenhuma referência de som, contexto. Tinha o (Professor) Ismail (Xavier) que dava um texto clássico da Mary Anne Doanne, que é aquele sobre voz, no documentário, coisa sobre voz, mas parava mais ou menos por aí. E uma coisa que eu sempre fiz foi no começo da carreira – e de vez em quando até faço hoje, não vou negar, que é bom – se eu pego um filme para fazer e eu não tenho, porque agora eu já tenho as referências, mas eu não tinha as referências, o que ia fazer é ver o que os outros tinham feito. Então, por exemplo, eu tinha que fazer um filme que é Noite final menos cinco minutos. Era um curtinha que basicamente é uma mulher num (automóvel Ford) Maverick correndo numa estrada. Atropelando as pessoas pelo caminho, coisas assim. Mas é basicamente o carro numa estrada, 80% do filme. Aí eu fui ver Mad Max (Austrália, 1979, de George Miller), aí eu fui ver Louca escapada (The Sugarland Express, EUA, 1974, de Steven Spielberg), aí eu fui ver Encurralado (Duel, EUA, 1971, também de Spielberg)... Você vai ver filme de carro na estrada! E ver o que que os outros fizeram. E o legal é que quando você vê o que os outros fizeram, você também vê – pelo menos eu funciono assim – o que os outros deixaram de fazer. Você fala “Olha que essa ideia... Por que que o cara não pegou essa ideiazinha aqui e desenvolveu? Aaaaaaahhh...”. Que é mais ou menos por aí que as coisas funcionam. Você pega boas ideias, coisas que você precisa resolver de mudanças de plano, já estão bem resolvidas, você fala “boa essa solução”, você pega a solução e aceita a solução. Tem coisas que você acha que a ideia é boa, mas você pode melhorar. E aí você vai criando um repertório, parte desse repertório criativo e começa a nascer dentro dele. E aí, nessas de ver o filme, eu fui rever o Murch, eu descobri o Murch. Eu sempre gostei dessa turma dos anos 70. Eu gosto muito do cinema americano dos anos 70, acho uma turma super criativa, viva, engajada, você vê que eles estão fazendo com garra os filmes deles, uma coisa de cinema. Acreditam no que estão fazendo, não é um discurso comercial, é um discurso ideológico. E aí eu comecei a rever esses caras e fui atrás do pessoal da

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Director’s Company, que é a produtorazinha que o Coppola criou lá no comecinho, que é onde está o...

FP - Murch já fazia parte? EM - Murch fazia parte na parte de som, mas o Coppola juntou vários diretores e reuniu esses caras para: “vamos fazer a Nouvelle Vague americana”. Essa é a ideia básica. Ele estava com um contrato com Hollywood que lhe permitia produzir filme dos outros. Porque para ele fazer o (O Poderoso) Chefão II, ele fez um contrato que ele podia, que Hollywood ia ter que produzir um filme para ele que ele quisesse, que ele fosse dirigir e que não tivesse interferência do estúdio porcaria nenhuma, que é A conversação (The conversation, EUA, 1974, de Francis Ford Coppola) e ainda fazer não sei quantos filmes para os outros. E é por isso que ele produz um filme para o Carroll Ballard, ele produz um filme para o George Lucas, ele sai fazendo essas pequenas produçõezinhas.

FP - Para o Ballard qual é o filme? EM - O corcel negro (The black stallion, EUA, 1979, de Carroll Ballard).

FP - Temos o Splet e o Murch, os dois sound designers contemporâneos, também atendidos por ele. EM - E aí, via Coppola, via Carroll Ballard, que eu chego no Splet. E falo: “que cara bacana!”. E aí pago para ver.

FP - Essa descoberta do Splet já é nessa época pré-faculdade sua? EM - Não. É porque quando eu estava na faculdade eu não estava preocupado com esse discurso de som, de verdade. Eu estava sendo treinado para ser um montador que não articulava muito bem som.

FP - Não tinha quem te treinasse para tanto. EM - Sim. Então na verdade, não é por aí que a coisa funciona. Acho que tudo vai depois que eu entro no mercado e aí volto para a pós. Mas quando eu volto para a pós eu já tenho toda essa visão muito mais armada. Porque aí eu já tinha lido, eu já tinha visto, eu já tinha visto como funciona gênero,

285 descoberto que tinha autores, que tinham pessoas que pensam som de forma autoral literalmente. Tem um pensamento realizado dentro delas que não compromete o filme, mas que se mantém presente. Tudo isso estava organizado muito claro na minha cabeça quando eu volto para a pós. Então eu acho que eu ganho, na verdade, esse tipo de conhecimento enquanto eu estou no mercado, correndo atrás dos meus filmes. Quando eu saí da ECA, quando eu me formei... tive alguns bons professores, etc e tal, mas eu saí com uma certeza de saber o que eu não sabia. Eu não sei isso, eu não sei isso, eu não sei isso, eu não sei isso. Pelo menos o curso me deu essa clareza daquilo que ele não me deu. Ele me deu várias coisas, mas ele também me deu saber o que eu não sei. E eu fui atrás da informação que me faltava.

FP - Som sendo uma dessas ausências que você sentia? EM - Sim. E aí como o mercado me jogou para o som, quer dizer, eu fui me jogando, porque eu optei, fui optando pelo caminho, precisava correr atrás da informação, cara. Desde informação... física, de voltar a estudar eletricidade, coisas que eu não tive no colegial porque eu fiz colegial de escola pública durante a decadência do ensino público. Então quando eu cheguei no colegial a decadência começou e bateu de frente comigo... Eu não tive professor. Não é que eu não tive aula, não tive nada, eu não tive professor, não tinha curso. A grande vantagem é que a minha escola ficava na frente do (Cine) Bijou, na Praça Roosevelt. Então quando não tinha duas aulas seguidas, eu saía da escola, atravessava a Praça Roosevelt, via o que tivesse em cartaz e voltava para a minha escola, a única vantagem que eu tinha. Vi Encurralado, um monte de Buñuel... Assim, acidentalmente, porque era o que estava passando do outro lado da praça. Só poder fazer essas coisas era bom. Hoje, que eu vivo disso, ir no cinema assim, tem que contar o tempo no relógio. “Eu tenho que ver porque vai sair a porcaria desse filme (de cartaz) e eu vou dançar!”.

FP - Vai entrar um blockbuster novo, Os dez mandamentos (Brasil, 2016, de Alexandre Avancini)...

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EM - Exatamente. Tem que acabar com tudo e sair correndo, cara. Aliás, deixa eu abrir um outro parêntese maior, que é a coisa do texto, da voz. A voz ocupa muito espaço sim, mas eu saí encantado... Tem dois filmes que me encantaram na questão de voz, que são filmes discursivos, verbais, até o fim da alma e são muito legais, que são o A rede social (The social network (2010), EUA, 2010, de ) e o Steve Jobs (Reino Unido/EUA, 2015, de Danny Boyle). Belo filme, bom filme mesmo. Na Rede social não se para de falar e funciona. A câmera é de uma agilidade, o discurso é de uma agilidade, a pequenas pausas são delírios, aí volta para o verossimilhante ferrado em cima do texto. Interessantíssimo, cara. E você vai no discurso super bem. Aí você usa o próprio discurso: a voz, a entonação, o timbre... faz parte do discurso. É bem bacana.

FP - Você fala talvez de um trabalho tanto dos atores quanto do editor... EM - Não, editor de som não. É muito mais de direção, muito bem pensada. Um filme de voz que é sonoro, que é cinematográfico, não soa teatral. Eu tenho uma tendência a ver teatro nesses filmes em que tudo se resolve pela direção, um teatrão que te incomoda assim... Mas voltando, então... Não, eu conheço o Splet profissionalmente, academicamente. Entre graduação e pós.

FP - Então você foi buscar referências, tanto de repertório artístico quanto teóricas para o seu trabalho, certo? EM - E que me leva para a pós é exatamente isso. Chegar num filme que eu estou fazendo, começar a fazer o filme e ver que eu estou me repetindo. “Já fiz esse filme antes, não estou trazendo nada demais para esse filme”. Depois eu vou aprender que isso acontece na vida. Que a cada dez filmes que você faz, consegue criar em dois, três... Você vai se repetir. Talvez seja um cachorro daqui para lá, um gato de lá para cá, mas vai estar lá, o cachorro e o gato. E aí que eu fui para pós. “Preciso estudar, estou me redundando, está besta a minha vida”.

FP - Do Murch, que primeiro chamou tua atenção, aí você chegou no... Bem, contemporâneos também, Burtt e Splet. E o que que você considera a maior

287 relevância do trabalho Splet, na tua leitura? No que ele se destaca, a ponto de você em 2009 sugerir (risos) a pesquisa sobre o trabalho dele? EM - Tem um cinema que hoje começa a voltar para a moda cada vez mais. Você tem muitos tipos de cinema, mas um tipo de cinema que está muito na moda e eu gosto bastante é um cinema que brinca com uma certa verossimilhança, um certo realismo que de realismo está longe de ser. E que tem muito do peso da sua carga no som. De leitura, de todo o sentido daquilo dentro do som. E é esse tipo de cinema que me atrai muito, que é um cinema muito mais sensorial que narrativo. Ele está muito mais a fim de te captar com sensações. Tem uma história sendo contada, tem um desenvolvimento, existem personagens, eles vão se transformar no final. Todos os códigos estão lá, de uma narrativa clássica, está tudo acontecendo. Aristotelicamente falando, a narrativa com percurso do personagem está lá. Mas a forma que se conta isso, a forma que se chega a essa narração não é pela narração e sim pela interioridade dos personagens. Pelo seu interior, pelo seu sentir e é quase mais uma vez um... impressionismo, vai, digamos assim, de alguma forma. Que é o cinema da Lucrecia Martel, por exemplo. Ele é narrativo, existe uma historinha, a mulher vai lá, atropela alguma coisa, que não sabe se é uma criança ou não, mas bota na cabeça dela que é uma criança e foge, e aí começa a entrar em conflito, etc e tal... Há uma historinha. Mas interessa menos a história que está sendo contada e sim a nossa percepção do mundo daquele personagem. A forma que a gente percebe aquele personagem e que o mundo daquele personagem nos é apresentado. E é esse tipo de cinema que me encanta. Eu acho que o cinema tem essa coisa que a literatura não pode ter, até chega próximo, chega muito pertinho, mas ela bota em palavra e aí ela dança. Porque ela racionaliza. Mas porque eu trabalho só com imagem e som eu tenho muito mais aberturas, de leitura, de caminhos, do que uma coisa que a palavra vai me direcionar num caminho só. Então eu consigo chegar em sensibilidades de vários espectadores, de diversas formas, que vão se pegar em ganchos diferentes. Porque eu não estou levando aquela imagem por uma interpretação única. Eu estou abrindo aquela imagem para um monte de caminhos, onde você possa se guiar por ela por onde a sua emoção se sensibilizar com aquela história, aquela imagem, aquela relação audiovisual. Me encanta esse cinema. Esse é o

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cinema com que eu fico encantado. Esse poder que o cinema tem de ser sensorial – literalmente sensorial, você sai com sensações, claras, físicas – que me deixa absolutamente encantado. E nisso o Splet é o aperfeiçoamento do Murch (risos). Digamos assim. Mal dito, muito mal dito. É que o Murch também trabalha na mesma linha. Apocalipse é um festival disso, de sensorialidade, mas ele se prende o tempo todo à verossimilhança. Ele tem uma coisa com a verossimilhança que é muito engraçada, ele não consegue fugir.

FP - Uma âncora dele. Ele voa, mas ele... EM - Ele volta. Sempre volta, vai para lá. E quando ele delira, ele faz uns delírios lindos e maravilhosos, no final ele justifica. Ele tem que justificar de alguma forma, ele tem que deixar aquilo verossimilhante de alguma forma. E o Splet não. Já é a segunda geração. A segunda geração já aprendeu com a primeira e pode falar “tá, mas eu não preciso justificar”.

FP - E você acha que isso que você está observando, que é tão legal... É a pergunta que foi feita para mim lá na Socine da moça50: “isso é o Splet ou o Lynch?”. Essa que é a grande questão. EM - Acho que tem que separar. Acho que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. São os dois. Tanto que quando você pega o trabalho dos dois em separado eles continuam fazendo a mesma coisa. É quando os dois se juntam, aí você junta a fome com a vontade de comer. É outra história. Então você tem o cara que articula o cinema inteiro dele assim com o cara que pensa som como o cara pensa o cinema dele. Aí você está articulando dois criadores que criam muito bem e conseguem se renovar um em cima do outro. Um sobe a bola do outro. Potencializa. E aí é belo. Aí os resultados são belos, literalmente belos. Agora, se você pega o cinema do Splet fora do Lynch... É claro que o Splet, como eu, como todo mundo, como o Luiz Adelmo, como o mundo inteiro, a gente tem que fazer “Cinderelas baianas” para sobreviver. Faz parte da nossa sobrevivência. Então a gente vai fazer

50 No painel Estudo dos sons nas narrativas audiovisuais da edição, em 22 de outubro de 2015, uma espectadora perguntou se as características apontadas sobre o uso da voz no sound design de Splet eram apenas para os filmes com Lynch ou para toda sua filmografia.

289 filminho de passarinho e cachorrinho e próximo. Mas no meio desse caminho cai no colo dele coisas como O corcel negro, Os lobos nunca choram (Never cry wolf, EUA, 1983, de Carroll Ballard)... E aí o fino do filme, montado pelo Murch com som do Splet (A insustentável leveza do ser (The unbearable lightness of being, EUA, 1988, de Philip Kaufman). Que aí é tão rico quanto... Não, a relação Lynch X Splet é mais rica, de anos e anos. Mas também é muito chique, é uma relação chiquérrima. E aí você vê que quando ele tem espaço de criação, como com O corcel negro, ele vai usar a mesma linha que ele vai usar nos filmes do Lynch. É sensorial. Ele está a fim de causar sensações. E para isso não lhe interessa muito verossimilhança. Para isso ele vai pegar uma cobra e virar um monstrinho. Ter vida, ter presença, ser malvada, que nem desenho animado, sem problema nenhum, sem galho nenhum. Ele vai desestruturar o ambiente, o mesmo lugar no mesmo tempo pode ter dois sons diferentes. O que interessa é essa sensorialidade, esse outro olhar sobre a imagem, esse outro olhar da lógica narrativa. Então isso no Splet é muito claro nos filmes do Carroll Ballard, claríssimo. Isso existe no Kaufman. Quando ele tem espaço de trabalho com pessoas que pensam como ele, que tem esse outro tipo de narrativa, está lá claramente o cinema que ele faz. A forma que ele pensa, a forma que ele estrutura, está tudo ali. E o Lynch, quando você pega os filmes do Lynch sem o Splet, está lá também a forma como o Lynch articula os seus filmes, a relação da imagem e som, da mesma forma. A minha pergunta, que não tem solução, não tem resposta, só tem chutômetro, é quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Porque você pega os curtas do Lynch e começa a ver os curtas do Lynch antes do The grandmother (EUA, 1970, de Lynch), ele é um artista plástico, que pensa bem imagem. Uma criação imagética boa, ele é expressionista, ele é assumidamente um expressionista... Ele tem essa imagem bacana, articula muito bem, começa a entender cinema, está pensando o cinema como artista plástico, mas você vê que ele começa a articular linguagem, como funciona, está tentando entender essa outra linguagem, mas ele não tem estrutura, pensamento sonoro. O pensamento sonoro não está lá. Quer dizer, tem, mas é bem inferior ao que ele vai desenvolver depois. Aí quando vem The grandmother, ele dá um salto na estrutura audiovisual, que depois vai ficar redonda no Eraserhead (EUA, 1977, de Lynch). Que fala “fechou, chegamos

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a um cinema muito interessante, senhoras e senhores”. E aí segue, e aí a coisa só se desenvolve. Então eu fico pensando quem, na verdade, é o ovo.

FP - Do som, dá para perceber que a influência dele, mesmo para o Lynch, foi... EM - O Splet cria o Lynch. Essa é a sensação a que você chega no final. Tudo bem, o Lynch deve ter desenvolvido muito o Splet também em liberdade. Sabe, liberdade de criação, liberdade de ação.

FP - Porque eles ficavam juntos na garagem trabalhando essas sonoridades todas. EM - É isso que eu faço com os diretores. Tipo Casa de Alice, ele é absolutamente naturalista. Então não tem música, a não ser que viesse de radinho ou televisão, todas aquelas imitações do universo naturalista. A parte da cozinha e da área de serviço – é um apartamento em que se passa grande parte da ação – a parte dos fundos do apartamento dá para um fosso de prédios, uma coisa comum em São Paulo que eu acho muito louca. Tem um buraco no meio dos prédios. É um monte de prédio se olhando com um buracão no meio. Fosse o Japão já tinha nascido um outro prédio ali. Eu e o Chico, a gente passou dias definindo os vizinhos. Quem mora em cima? Quem mora embaixo? Quem mora do lado? Que que ela faz? Que que ela não faz? Qual que é a mania? Para começar a entender como a gente ia trabalhar com esses sons, o que que ia dar esse caráter verossimilhante, que que a gente ia usar dramaticamente dentro desse jogo que a gente estava armando. Meio Janela indiscreta (Rear window, EUA, 1954, de Alfred Hitchcock). A gente estava falando do ovo e da galinha. Eu acho que o Splet é o ovo, mas não tem como provar isso. Precisaria correr atrás do Splet ou do Lynch.

FP - Quando você fala isso, você fala em termos sonoros ou em termos de todo o efeito do trabalho do Lynch? EM - Não, em termos de audiovisual. Relação imagem e som. Acho que o Splet dá uns estímulos para ele muito interessantes. Mas eu acho que o Lynch, com essa formação que ele tem de surrealista, que é a grande

291 formação do Lynch, ele também deve dar uns feedbacks para o Splet bem interessantes. Para ele falar “pira mais um pouco”, ‘nãããããããão”... Isso o Murch faz. Pira mais.

FP - O que que caracteriza o trabalho do Splet? As características mais marcantes que você observa, as características mais relevantes. EM - A forma como ele trabalha com ambiente, que ele faz do ambiente um pulso vivo, um personagem. Você pode usar o ambiente para dar tridimensionalidade à imagem, é a função básica dele. Mas ele usa ambiente para contar história. A função do ambiente dele é narrativa, não para gerar verossimilhança. Mesmo dentro do verossimilhante ele usa da mesma forma. Isso eu acho uma característica muito forte, muito bonita. Eu gosto da forma com que ele faz que objetos ou mesmo seres inanimados ou mesmo animados criem personalidade. Passam a ser personagens, seres vivos, com raiva, com ódio, com violência... como ele consegue trabalhar sobre isso. E ele faz muito isso, é bem divertido. E, acima de tudo, a liberdade com que ele trata sons, pensando muito mais no caráter sonoro daquilo, do que ele consegue tirar como pulso, como timbre, como sonoridade propriamente dita, do que da sua verossimilhança. Então, essa liberdade de pegar um som de um outro universo e trazer para um universo onde você nunca o juntaria, mas que para a relação audiovisual tem o efeito perfeito que se queria. Como o bendito trem no O corcel negro, o cavalo que vira uma locomotiva, literalmente uma locomotiva. Você tem que ter uma liberdade de pensamento, do criar e mesmo do ouvir sons, que eu não tenho. Até tenho, mas eu tenho um limite, o Murch também, de extrapolação do som propriamente dito e pensar nele como a característica sonora e não qualquer outra relação, essa liberdade do ouvir, do sentir aquele ouvir e devolver isso só a partir dessa ligação, sem nenhuma outra ligação. Três coisas que realmente me encantam nesse senhor, me encantam, me encantam. E o pensamento, e todos eles têm isso de uma forma muito boa, que é sempre você pensar articulado com a narrativa do filme. Você não está querendo brilhar mais que o filme, você é mais um elemento dentro daquilo. E de pensar toda a trilha sonora do filme como uma grande partitura de duas horas, que tem que ter dinâmica no meio, tem que ter respiros, que tem que

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ter elementos sonoros, sejam eles musicais, vozes ou efeitos sonoros como um jogo, articulado como um todo, dentro de um único fluxo de leitura. Acho que isso ele articula super bem, extremamente bem.

FP - Acabei selecionando aqui algumas das características que eu percebo nele. Ele tem sobreposição de efeitos sonoros extra-diegéticos, que é o que eu tento enfatizar na pesquisa... EM - O que você chama de elementos sonoros extra-diegéticos?

FP - Os que você não reconhece claramente na imagem? EM - Tipo?

FP - Por exemplo, o vento, que ele trabalha muito. Pensando mais no Lynch, tem momentos em que têm ventos que não estão na cena, não está ventando naquele quarto e você está ouvindo aquele vento claramente. Não é lá fora, é uma coisa interna. EM - A chave está aí. A chave do outro discurso que eu disse antes. O som não é externo, aliás, o som não é da imagem, o som interno é uma personagem.

FP - Ou da ambiência, criar uma ambiência que é um personagem a mais, uma vida extra naquela cena. EM - Um personagem a mais ou uma sensação impressionista mesmo, uma personagem de cena.

FP - Essa é uma característica. Tem o contraponto sonoro, o aspecto que eu quero destacar. Contraponto sonoro causado por essa sobreposição de efeitos sonoros extra-diegéticos perceptíveis em cena, inclusive para um leigo. A gente sabe que em edição de som é muito comum usar coisas que não foram gravadas na cena, mas a maior parte do tempo o ouvido leigo lê como verossimilhante. Vocês sabem como equalizar, como ajustar. EM - O Murch faz isso super verossimilhante, ele faz a coisa de uma forma que você não percebe a não-verossimilhança. O Splet já muda conforme a cena, a necessidade da cena. Se a cena tem um caráter mais

293 verossimilhante, ele continua explodindo o balde lá atrás. Ele não está fazendo carrinho não, mas ele está lá fazendo de conta que aquilo é de verdade. Um vento dentro de um quarto com a janela fechada, mas tudo bem, você aceita. Isso que é muito louco.

FP - Está na realidade da história. EM - Está no registro, esse que é o negócio.

FP - As vozes distorcidas ou trocadas por efeitos sonoros em alguns momentos, que eu acho interessante. Faz isso com o Lynch em alguns momentos. Trocar a voz por outra coisa ou distorcer a voz de forma que ela é outro efeito sonoro. O verbal da voz, o racional da voz virou um outro efeito sonoro. EM - É que a voz deixa de ter uma característica semântica e você trabalha só com a questão de timbre, de emissão, como qualquer outro efeito sonoro, só que é humano. Você já juntou essas cenas para ver o que acontecia? A minha grande falha no meu doutorado, que é uma grande falha – pode gravar – é que onde eu paro o meu trabalho eu chamaria de o segundo terço do filme. Falta ao terceiro terço. Eu faço o primeiro terço, o primeiro ato está lá, a virada do primeiro ato para o segundo ato está lá, falta a virada do segundo ato para o terceiro ato e escrever o terceiro ato. Parece um filme brasileiro. Que seria, a partir do momento que eu peguei todas ideias que estão descritas no filme, pegar os trechos que têm ideias em comum e juntá-los para ver o que acontece. Então, por exemplo, se eu pego todas as cenas do Splet onde ele troca voz humana por algum tipo de outra sonoridade, existe um desenho que eu consigo achar uniforme? Em filmes diferentes, de diretores diferentes ou do mesmo diretor, mas existe... não um maneirismo, mas existe um desenho, uma escritura de criação para chegar naquele efeito? Como ele conduz aquilo? São formas diferentes ou existe uma lógica sempre interna que faz com que aquilo apareça? Sabe esse tipo de coisa? Esse é o terceiro ato que faltou51. Fora aquelas bobagens que aí outras

51 Os capítulos 2 e 3 desta dissertação apresentam as análises das estruturas de som que Splet realizou para filmes de Lynch, suas recorrências e particularidades.

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pessoas iriam fazer artigos sobre isso, que não me interessa muito, que é o uso de nenês no Murch.

FP - De..? Desculpa. EM - Bebê chorando. Ele adora bebê chorando quando ele cria em determinados momentos narrativos nos filmes.

FP - Mesmo que não haja bebês na cena? EM - Mesmo que não haja bebês na cena. Aí você já pode fazer uma tese sobre relação do Murch com bebês, se os filhos eram pequenos quando ele estava fazendo os filmes, se ele não dormia à noite, ficou com raiva e resolveu descontar nos filmes... Então, isso aí não me interessa muito. Por que que os bebês choram nos filmes do Murch... Eu sei que a característica está lá, eu sei que é estilístico... Eu tenho uma piada que eu faço em todos os filmes meus. Se um dia você for ver todos os filmes, com exceção de um, têm o mesmo som. É aquela piadinha que o Ben Burtt faz do gritinho, que agora veio à tona. O Ben Burtt... todos os filmes que ele faz tem o mesmo grito.

FP - É quase como o Hitchcock aparecendo em cena. EM - Eu faço isso desde os anos 90 também.

FP - É como uma assinatura sonora. EM - É uma piada de mim para mim mesmo. A gente tem que se divertir um pouco.

FP - Você não conta o que é, as pessoas têm que tentar descobrir. É isso? EM - Ah, se vira (risos). Ou pega um assistente meu. O Luiz Adelmo sabe a resposta. Foi tão bonitinho, tem uma vez que a gente foi fazer um filme juntos. E aí a gente discutiu o filme, ele tinha uma equipe, a equipe preparou, na primeira apresentação do filme ele chegou assim e falou “isso é para você”. “Ah, muito obrigado, não preciso nem botar a palavra, o sonzinho no lugarzinho dele...”. Eu me perdi agora bonito. Ah, então, voltando a você. Eu acho que o erro da minha tese é não juntar, fazer com que a informação do

295 Murch, na verdade, esteja toda não reunida nos dois primeiros atos. Eu analisei cena por cena, na verdade. Mas eu não peguei depois os elementos em comum dessas cenas aqui e juntei com o todo para tentar descobrir a lógica interna dele de construção, tentar provar uma característica estilística clara. Acho que esse foi meu erro.

FP - Espero conseguir (risos de Mendes). Tem essas características que eu percebo, mas é que ainda me falta ver alguns dos filmes, tipo os do Ballard, tem coisa fundamental. Não tem condição de entregar sem ter visto tudo. EM - Não, não tem. Sem os Ballard não dá. São belos, belos como filme. E é filme nesse estilo não-narrativo.

FP - Eles têm... como você falou? Espaço de trabalho criativo. EM - Sim. São filmes narrativos, todos contam historinhas, etc e tal, mas o Ballard se interessa muito mais pela pessoa do que pela história. Então você tem grandes espaços de trabalho. E ele também tem esse mesmo tipo de trazer essa sensorialidade para dentro. Tanto O corcel negro quanto o Never cry wolf, que tem o péssimo nome em português Os lobos nunca choram – não faz o menor sentido. É que Never cry wolf é essa história de “não grite “lobo””. O “cry” tem dois sentidos. Então, a primeira metade inteira de O corcel negro é um menino sozinho numa ilha. Então ele não abre a boca. Como tem muitas sequências que são relativamente semelhantes, então ele também tem essa sensibilidade de “essa sequência é para música”. Quanto mais a música tiver seu espaço, melhor. Agora, acabou a sequência de música, sequência não-música. E assim vai criando também um equilíbrio de respiros, de novas sensibilidades, fica bem bacana. E não dá uma crueza, que é a ausência de música para o espectador normal de cinema. É uma coisa pesada um filme sem música. E Os lobos nunca choram é a história de um cara no Ártico sozinho. São filmes bonitos, bem filmados. Se puder ver em tela grande, melhor. É que são filmes de cinema, sabe? Uma coisa que não tem nada a ver com isso é que filmes de tempos largos não se aguentam em tela pequena. Eles ficam chatos, chatos.

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FP - Você acha que se algum dia eu vir 2001 – Uma odisseia no espaço (2001: A space odyssey, Reino Unidos/EUA, 1968, de Stanley Kubrick) num cinema grande eu vou ter uma impressão diferente? EM - Você vai achar um filme lindo. Você vai achar que o final continua sem sentido. Cara, tinha um cinema na (Avenida) São João, que era o Comodoro. O Comodoro era um Cinerama, cinema de três telas, 70 mm, enorme e linda a tela. Só que eles tinham dificuldades de trazer cópias. Cópia estrangeira era cara, etc e tal. Então só vinha para o Comodoro big lançamentos. Lá passava E.T. (E.T. - O extraterrestre, E.T. the extra-terrestrial, EUA, 1982, de Steven Spielberg), Caçadores da arca perdida (Raiders of the lost ark, EUA, 1981, de Spielberg), Guerra nas estrelas (Star wars, EUA, 1977, de George Lucas), filmes de alto orçamento de que faziam as cópias em 70 mm, legendavam, era 6.0. Chiquérrimo o cinema. Mas tinha pouco filme. Então todos os anos eles passavam 2001. Acabou o blockbuster, não vai entrar outro blockbuster? 2001. Então eu vi 2001 no cinema em 70 mm muitas vezes. É um filme lindo, com tempos lindos, deslumbrantes. Não faz o menor sentido... em 35 mm já vou achar pequeno, porque ele foi filmado em 70 mm. Ele é feito para ser visto com uma tela duas vezes mais larga do que aquela de cinema tradicional. Então começa por aí. Na telinha então, não faz sentido. Nesse caso, não faz sentido existir aquele filme.

FP - Quem sabe eu ainda consiga um dia. Você viu tantas vezes... EM - Consegue. Sempre passa no cinema. Mas esses filmes do Ballard vão sair a mesma coisa, tá? Eles vão funcionar um pouco mais fácil porque não são 2001 também, né? Esse ritmo impostamente lento, espacial, estamos falando sobre vácuo. Outra “questã”. O discurso vai de outra forma.

FP - O espaço é aquilo, eu digo. O espaço só pode ser aquilo. Esses filmes de aventura interplanetária... Isso é fácil demais (risos). O espaço é aquilo, aquele tempo. EM - É aquilo. É enorme, silencioso, lento, nada acontece. No máximo você pega uma aurora boreal lá na Terra, acha bonito. É... Então são filmes de cinema, filmes mais largos. Filmes de observação.

297 FP - Eu vi o (Andrei) Tarkovsky na TV, em DVD, e para mim funcionou muito bem. Assim, não sempre, teve momentos cansativos. EM - No cinema já é cansativo.

FP - Fiquei surpreso. Pelo menos três ali eu amo. EM - Ele é demais.

FP - Às vezes pode funcionar. Mas gostaria da experiência do 2001 em tela grande. EM - Em tela grande é outra. Uma vez eu fui numa coisa muito louca, quando tinha o MASP Centro. O MASP durante pouquíssimo tempo pegou um espaço dele mesmo, mas que ele não usa, na Galeria Prestes Maia, que é um dos lugares de que eu mais gosto em São Paulo, acho lindíssimo, todo art déco, cheio de Brecheret pelo caminho, uma das primeiras escadas rolantes da cidade. E no piso intermediário tem dois salões enormes, que são do MASP. E alguns anos atrás, uma década atrás, duas décadas atrás... o MASP resolveu ocupar de novo o espaço. Foi muito rápido, desocupou rápido. E ele montou uma exposição, não lembro nem do que que era, para falar a verdade. Eu fiquei impressionado com uma coisa só. Uma das peças expostas era uma grande tela e debaixo dessa grande tela tinha seis monitores de televisão. Todos passando a mesma imagem, a tela e os monitores de televisão. Aí você olhava para a tela e você via uma leve panorâmica, um leve traveling acontecendo. Você olhava para um monitor e nada acontecia. Era impressionante. O movimento era tão leve que não permitia a leitura embaixo. Esse dia foi definitivo. Eu já tinha tido uma experiência anterior, num filme da Tata. Eu fui ver o primeiro corte do filme antes de ver em tela grande numa sessão para a equipe inteira, aí me passaram uma cópia em DVD para eu olhar antes, já ir discutindo antes. Eu olhei e achei tudo muito chaaaaato. Eu fui para a projeção com a cabeça de “precisa cortar, precisa cortar, precisa cortar, precisa cortar, precisa cortar...”. Aí teve a projeção, acabou a projeção e eu virei para ela e falei: ”Por que você não alonga mais aquela cena? Por que você não alonga mais aquela?”. A percepção é outra. Tudo bem, você faz aqueles filmes que são feitos para cinema e TV, blockbusters que pensam nos dois quadros. Spielberg é genial.

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Acho tão bonito. Quando você vê em tela bem grande, tipo essas de 70 mm, dava para ver Caçadores, era lindo de ver. Porque você tem grande plano do deserto. Aí você tem toda a ação literalmente acontecendo na tela da TV. O plano é desse tamanho (mostra com os dedos), toda a ação que interessa está aqui e não sai daqui, e aqui e aqui muita movimentação, super bem armada, que faz tudo acontecer sem importância nenhuma no final. Ou seja, quando você vê na tela grande, você recebe estímulos de tudo quanto é canto, super bonito, e quando você vê na tela pequena, já está reenquadrado.

FP - Perdeu um monte de coisa, né? EM - Mas nesse caso não perdeu nada.

FP - Não para a narrativa talvez. EM - Sim, mas ele está pensando em dois filmes, ele filma para um e para outro ao mesmo tempo, sem parar de pensar.

FP - É meio óbvio se for pensar, mas eu nunca parei para... Cara, é verdade, eles têm que pensar em dois recortes. EM - Principalmente quando você trabalha com janelas mais largas ainda, quando mais scope você for, pior para a sua janela de TV. Tanto que o 2001, a primeira vez que ele foi lançado em vídeo, ele está redecupado. Não sei se você viu essa versão já.

FP - Não sei agora. Boa pergunta. EM - Por exemplo, tem uma hora em que o cara finalmente chega na estação espacial antes de ir para a Lua. Ele sai da Terra, vai para a estação espacial e encontra os russos na estação espacial e os russos estão super curiosos para saber o que que ele está indo fazer na Lua, afinal esse cara nunca saiu da Terra. Uma coisa muito importante está acontecendo e ele está indo para lá. O plano original é um plano tipicamente Kubrick, aquela perspectiva estúpida clássica renascentista hiper bem-feita, linda de se ver, com um grande plano largo aberto, o grande sofá redondo atrás, de um lado sentado o americano, do outro lado sentados os russos e a conversa nesse lindo

299 plano geral, mas plano geral de 70 mm, toma a tela quase inteira. A versão para TV é plano e contraplano. Aparece o plano geral, reenquadra para o americano, enquandra os russos, enquadra o americano, enquadra os russos, volta para o geral... Reenquadraram o filme inteiro. Fizeram outro filme, é outra decupagem. Para poder caber na TV, senão não cabe.

FP - A gente estava falando do Ballard, que assistir em tela grande seria o ideal para não perder a parte da fotografia. Espero que o som... EM - A sensação é outra. Se você não está trabalhando com estereofonia, então está limpo. Se estivesse trabalhando com estereofonia, você teria que considerar os canais de saída de cada som, por que está sendo distribuído dessa forma, qual é lógica da distribuição do espaço...

FP - Aí falando daquelas características de que eu percebi alguma recorrência no trabalho do Splet. A sobreposição dos efeitos sonoros extra- diegéticos, contraponto sonoro em alguns momentos, não sempre, a voz sendo distorcida ou trocada por efeitos sonoros em personagens sem deformação física, o que é comum no cinema de horror, por exemplo, em O exorcista (The exorcist, EUA, 1973, de William Friedkin). A voz muda quando há uma deformação física. No Lynch com o Splet você tem a mesmíssima condição física com a voz apenas sendo distorcida e um efeito de estranhamento, não um efeito de criação clara de sentido. Uma coisa para te desacomodar na noção de sentidos. Considerando essas características, quem depois do Splet... te ocorre alguém que de alguma forma usou essas práticas? EM - Não posso dar nomes, não tenho nome traçadinho assim. Mas o que rola no cinema hoje, já faz um certo tempo, principalmente pós-Splet, pós- Murch, é que você não precisa mais justificar nada para ter um outro caráter de verossimilhança. Antes, para eu poder fazer com que um som tivesse um caráter mais sensorial, eu teria que fazer com que a pessoa estivesse bêbada ou com sono... Eu tenho que mudar a percepção dessa pessoa, tenho que ajustar essa percepção natural e, a partir dessa mudança de estado, eu posso também fazer um mudança do estado do som e aí eu tenho a liberdade que eu quiser, afinal ela está bêbada.

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FP - Jerry Lewis, por exemplo. EM - Mesmo em ficção clássica, acadêmica, mas eu tenho que ter alguma coisa que me permita, que me justifique, na verdade, esse tipo de percepção. Essa discussão do contraponto eu estou desencanado dela definitivamente... Não estou desencanado, é diferente. É que as pessoas continuam usando essa discussão como se estivessem nos anos 60, 50, 40, 30, sei lá... Porque na verdade hoje o cinema contemporâneo, até blockbuster americano sem (o personagem) precisar estar bêbado, ele já deforma completamente a estrutura de som para a criação de efeito. Pode ser efeito de qualquer outra coisa, efeito de super-herói, não interessa. Mas essa ideia que o som tem que acompanhar 100% de verossimilhança daquela imagem não é mais válida. O cinema que você tem hoje pulsa entre verossimilhante e não verossimilhante, entre naturalismo e não naturalismo. Ele se modifica a cada cinco minutos. Num filme de dia a dia, você já tem pausas de repousos ou de respiros, ou seja lá do que for, que permitem uma nova trilha sonora diferente daquela trilha sonora tradicional verossimilhante. Então essa coisa do contraponto hoje eu não vejo com tanto peso, de militância mesmo, sabe? Porque já rola, rola no dia a dia. Vai ver Batman.

FP - Os efeitos que eles acabam usando muitas vezes são fantásticos. EM - Saem do mito da verossimilhança. Essa ideia de você trazer o som para você usar o som como a introspecção do personagem e tentar fazer a representação desse mundo interior através do som, você tem isso em blockbuster. Em Batmans da vida. Então eu acho que essa liberdade contrapontística, que esse pessoal dos anos 70 bate forte, já foi assimilada pelo grande cinema, pelo cinemão. Pelo cinemão, pelo cineminha, pelo cinema de autor, todo mundo... Isso já não é mais um medo. Ninguém mais tem medo de pegar uma sequência e dar uma modificada no fundo dela para coisas que não sejam absolutamente verossimilhantes. Nem que seja por cinco minutos, três minutos. Filme hoje já faz isso o tempo todo sem justificar uma alteração no estado de percepção. Eu acho que esse caminho, que esse pessoal começou a trilhar aí bate hoje em tudo que é canto, por todos os lados.

301 FP - O que a gente poderia talvez notar de diferença entre o que se faz hoje é aquele chamado hiper-realismo – acho que até em aula você falou, mas eu também já ouvi de alguma outra fonte –, que hoje o cinema tem uma enxurrada de efeitos sonoros, especialmente o cinema de ação, talvez por uma questão de distribuição do som na sala para tornar o espetáculo mais envolvente, mais surpreendente. Mas é um excesso de informação sonora confluindo para uma mesma situação. Está certo? Para uma imersão maior no que a imagem está mostrando, mas não te tira da compreensão da cena, não te desacomoda daquela situação. EM - Não, não é errado. É que, na verdade, o que se chama de hiper- realismo hoje é esse aumento de volume em cada ruído. Volume, literalmente. Nem quantidade de informação. Mas isso está sendo usado na maioria das vezes numa condição sensorial, numa condição de representação sensorial mesmo, tentando chegar nos personagens sensorialmente.

FP - Uma camada sensorial cada vez mais rica para te envolver, mas talvez nesse sentido que a gente estava falando, um envolvimento para dentro do que está se mostrando na cena. Não te tira, não te faz divagar. EM - Ah, não. Não é feito para romper.

FP - O que talvez o trabalho do Splet, pelo menos na minha percepção, pelo menos em alguns momentos faz, você está ouvindo para fora. É um caminho que... que que é isso? Você separa e você fica no estranhamento. EM - Mas esse estranhamento tem uma função narrativa muito clara naquele momento. Ele quer que você estranhe a reação daquele personagem. Quando ele bota o cara da mascarazinha berrando que nem um leão, sei lá o que, não lembro mais o tom que é, completamente deformado, com uma respiração simultânea, ele quer o seu estranhamento.

FP - Sim, mas o que se faz hoje, a impressão que eu tenho, não é para o estranhamento. É para uma imersão. EM - Ah, entendi. Mas o estranhamento não te tira da imersão. O que tem de diferente entre uma coisa e outra não é imersão ou não imersão, porque

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quando eu estou vendo Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986, de David Lynch) e aparece aquele negócio eu não saio do filme. Não é que nem um filme do Godard ou do Fassbinder, em que ele me corta o áudio total, eu levo um susto e saio da narrativa, saio da história do filme. Porque é feito para eu cair fora, para eu voltar a assumir uma posição racional. Eu acho que nenhum dos dois tipos de cinema está propondo isso. Seja o tipo de cinema do Lynch, seja o tipo de cinema do Christopher Nolan, que usa muito esse recurso, mas para fazer um outro cinema. Eu acho que o que muda é uma questão de você criar algum tipo de agressividade, algum tipo de rejeição do seu espectador, rejeição, mas sem perder a ligação emocional, que é a essência do cinema americano. Não quer você em momento nenhum racionalize que aquilo é um filme. Você tem que ficar emocionalmente ligado àquilo durante a projeção. Desse princípio básico não foge. E quando você me fala de rejeição me dá essa impressão de Godard, Fassbinder, que não querem o seu envolvimento emocional. Eles querem um afastamento brechtiniano em alguns filmes. Então o que você tem no caso do Lynch e do Splet juntos é uma sensação de repulsa, sensação de asco, sensação desagradável. Mas você continua ligado àquilo, até porque se alimenta essa sensação e essa sensação continua dentro do filme.

FP - Você não acha talvez que essa rejeição de que você falou, esse asco ou incômodo é porque ele te desacomoda do que seria verossimilhança? EM - Não, acho que ele te desacomoda do que seria gostosinho, do que seria fácil. Pode se dar pela não-verossimilhança, mas é uma não-verossimilhança agressiva. É diferente de um filme do Batman, que tem a mesma não- verossimilhança, a mesma ideia, o mesmo recurso, com a mesma técnica, etc e tal, mas não te agride. Pelo contrário, quer te envolver mais. Então eu não sei se é a não-verossimilhança que causa a agressão. É que rejeição dá essa sensação de afastamento, quando eu rejeito eu me afasto. Eu não estou me afastando, eu só estou tendo uma sensação ruim. O Lynch se permite a sensação ruim. Faz parte. O cinema americano clássico não pode ter sensações ruins. A não ser que você resolva daqui a dois minutos. Aí pode. Se você passa mal e depois resolve, está limpo. Porque você não quer o afastamento afetivo do espectador. Então não sei se a questão do

303 contraponto entra bem... se é tão determinante assim. Porque é uma questão de como se usa esses contrapontos, que sons desses contrapontos que existem e assim por diante, como é que ele está mixado, em primeiro, segundo ou terceiro plano.

FP - Eu acho que, em vez de te afastar, como fazem o Godard e o Fassbinder, ele te faz mergulhar ainda mais no incômodo desses personagens. Ele não te tira da percepção da experiência, ele te faz entrar no pesadelo por essas chaves. EM - Sim, sim, ele quer você dentro. Por chaves sensoriais, não racionais. Ele trabalha com elementos sonoros que te causam sensações, claramente causam sensações. O sensorial é mais importante que o racional, é mais importante que o verossimilhante. E é tão narrativo quanto ou talvez mais narrativo. No sentido de “estou contanto uma história, afinal”. Não posso nunca perder esse foco, um foco importante, o foco do storyteller.

FP - Isso que você acabou de falar talvez mais na parte de ambientação. EM - Sim, aí ele é bem discreto nisso.

FP - Nesses momentos contrapontistas seria mais um afundar nesse estranhamento. EM - Sim, trazer esse estranhamento para o primeiro plano. Que é uma coisa que no Lynch ele pode, que no Carroll Ballard ele pode, mas em alguns filmes ele não pode, aí ele tem que trabalhar por trás. Porque o filme é verossimilhante demais, não faz parte do filme trabalhar com o surrealismo, exacerbar, distorcer. Então a distorção até entra, mas pelo ambiente. Em vez de trazer o passarinho, o passarinho que ele traz é uma gralha e essa gralha está distorcida. Ou uma araponga, só que essa araponga está distorcida. A araponga já é distorcida naturalmente. Aí você trabalha a araponga para ficar mais esquisita. Ela é um elemento verossimilhante, naquele lugar podia ter uma araponga. Aliás, 90% dos espectadores não vai ouvir a araponga, porque ela está em segundo plano e os caras estão lá vendo o diálogo que está acontecendo. Mas ele vai pegar essa araponga, distorcer essa araponga e criar um clima muito esquisito para essa araponga para dar um jeito

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naquela cena que tem um diálogo muito estranho. Mas que é 100% verossimilhante. Acho que é por aí que o registro funciona. Você pega a situação da cena, o que é importante, o que está sendo contado e transforma numa sensação sonora. E aí você pega essa sensação sonora e joga no meio de um espaço verossimilhante. Acho que é um caminho em que ele anda.

FP - Muita coisa para pensar a respeito... Os sons analógicos da época do Splet contribuíram para a produção e a audição daqueles sons? Se a parte técnica contribuía, limitava e se se perde algo no sistema quando se faz a transição para o digital. EM - Uma coisa não necessariamente implica em outra. Qualquer bom criador sabe bem seu limite técnico e vai trabalhar bem dentro do seu limite técnico para tentar passar dele, vai ser sempre maior que ele. Isso é beabá. A gente sabe até onde a gente pode ir, aí fica revoltado com isso e então vai querer ir um pouco mais além e pronto. É assim que as coisas funcionam, até no digital, seja onde for. Eu não acho limitante, tanto que ele fez o que fez. Se você pensar nos filmes mais simples, como Eraserhead ou The grandmother... Tudo bem, são filmes sem grana. Cuja proposta estética também é outra. Claramente é um filme low budget (de baixo orçamento), que está trabalhando sobre ser low budget, que não está a fim de trabalhar numa verossimilhança, ele é um filme surrealista, desde sua apresentação se apresenta como filme surrealista. Então é um filme que, por exemplo, tem muito menos som, como quantidade de som do que esses longas-metragens que ele vai fazer depois. Até porque é mono, não é estereofônico, não precisa de quatro, oito canais, esse tipo de coisa. Na prática, para esses caras eu não acredito que o ser analógico é limitação. O que vai acontecer depois com o digital, que é realmente uma mudança gigantesca para a gente, que trabalha com som, é que eu vou conseguir ouvir dois sons ao mesmo tempo enquanto eu estou trabalhando. E isso é uma mudança gigantesca. Porque quando a gente trabalha em analógico, você trabalha com duas cabeças de som, no máximo três. Mas era raríssimo encontrar moviolas de três cabeças, normalmente são duas cabeças de som. Então você ouve o filme de dois em dois. Para a criação de efeitos sonoros você pode até ter um

305 gravador multipistas do seu lado, que aí você vai criando efeito, até achar que o efeito está bacana e aí você transfere para o filme. Facilita a vida. Mas a gente aprendeu ao longo do tempo a ter memória auditiva. Quando prever o som já sabendo que aqui está entrando um grave, então o próximo tem que ir para o agudo, tem que ir para as médias, senão ele vai matar aquele. É que hoje ele (Splet) teria muito mais para brincar. A capacidade de brincadeiras ia ser mais fácil porque ele já começa ouvindo 120 canais simultâneos, se ele quer fazer uma distorção é só pegar um botãozinho e fazer assim. Não tem que fazer todo o esteio de cabo, que passa por uma maquininha...

FP - Não existe chance nem nada relevante de quando a gente assiste aos filmes dele em digital de ter havido alguma perda de qualidade? EM - Não, tem um caminho contrário, mas no caso dele não está rolando. Ele já entra para o cinema de longa com Dolby Stereo. Ele já faz filmes em Dolby Stereo, com quatro canais, esse tipo de coisa. Duna é quatro canais, O homem elefante é quatro canais... Só os filmes sem grana nenhuma são mono. O que você tem muito hoje, e isso é um problema para a minha área como acadêmico, um problema seríssimo, como estudo, é que você não tem mais as mixagens originais monofônicas. Por exemplo, o som original de O exorcista você não acha mais, ou do O poderoso chefão você não acha mais, do Guerra nas estrelas você não acha mais. Mesmo sendo a versão Dolby estéreo, você só acha a versão digitalizada. E os caras aumentaram a quantidade de sons, e refizeram não sei o quê...

FP - Mais mãos em cima do que era o original. EM - Exatamente, revisto e ampliado. Aí você perde o filme, a concepção original do filme. Tanto que eu estou encantado que agora saiu o blu-ray que traz a versão original de O exorcista. Porque O exorcista tem uma versão de lançamento e, alguns anos depois de o filme ser lançado e fazer sucesso, sai um director’s cut, e aí já é em Dolby estéreo, quatro canais, etc e tal. E depois relançam esse director’s cut numa remasterização digital, mais chique ainda. Então conseguir O exorcista de 1973, sem director’s cut, mono, é quase impossível. Esse lançamento foi lindo, fiquei feliz de conseguir. O som

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monofônico é bom, som analógico é bom, é verdade. Você tem que trabalhar sobre as limitações.

FP - Para trabalhar a época, tem que ser nos termos da época também. EM - Você tem que ler com os olhos que você tem. Isso é um problema. Quer dizer, para mim não é um problema. Para mim é fácil, mas é um problema para muito gente, querer que a coisa soe como soa hoje. Não, não soa. Soa aquilo. E essa sonoridade para aquela época é muito boa! Então, tecnicamente não. Não há limitações assim. O analógico e o digital não vão mudar nada na vida do homem. Talvez hoje, em que tudo virou plug-in, você não tem mais que ficar comprando um monte de hardware. Você não tem que pegar um gerador de frequência para gerar uma frequência pura e começar a partir dela e deslanchar o que você quiser. Sabe esse tipo de coisa? Talvez o Splet brincasse mais, só isso. Mais facinho, só ia dar menos trabalho. Mas, claramente, ele não tem limitação pelo analógico.

FP - E nem o contrário? Ouvirmos hoje um DVD, alguma coisa online, um filme dele, não vamos perder qualidade? EM - Quando começou a imagem digital, começaram as TVs digitais, TVs de plasma e TVs de o raio que o parta, que agora só existem essas coisas no mercado, eu fiquei bastante irritado com a qualidade da imagem. Aquela imagem me cansa. É bonita, é brilhante, tem definição, as cores são vivas, é uma coisa linda. Não tem ruído, me incomoda profundamente uma imagem que não tem sujeira. Porque eu sou do analógico, eu vim do analógico. Um fotograma no analógico em relação ao fotograma seguinte tem uma leve diferença. Na corzinha, na sombra... Leve, pequeno, que chamam de ruído. Esse é o meu código de verossimilhança. Verossimilhança para mim é aquela imagem que tem sujeira. Hoje, depois de anos e anos e anos olhando para essa imagem eu já acho legal, aceito o novo código. Esse é o novo código que vocês vão me impor? Aceito o novo código. Isso agora para mim é verossimilhante. Mas que ainda falta sujeira para mim, ainda falta sujeira para mim. Ela é limpa demais para a minha concepção de verossimilhante, para como eu fui educado em verossimilhança é limpo demais. E o som tem a mesma característica. Mas aí é uma questão estética. Com o analógico

307 você conseguia menos, aliás não tem como não ter sujeira, que nem na imagem analógica. O analógico carrega consigo o ruído, ruído de imagem, ruído de som, nesse sentido da sujeira. Tem um filme que eu fiz pouco tempo atrás, que é o Boca (ou Boca do lixo, Brasil, 2010, de Flavio Frederico), que chegou uma hora que eu falei “Não dá, gente, vamos fazer uma experiência? Vamos sujar esse som? Está tudo muito limpo. Está me irritando profundamente. Os passarinhos estavam claros, o carrinho estava claro, os grilinhos estavam claros, tudo estava claro. Eu não consigo. Não é isso. Isso não é verossimilhança. Esse filme não está trabalhando sobre verossimilhança? Traz sujeira para esse negócio. E aí a gente começou a equalizar como não se deve, como não mandam as regras, então a gente trouxe um pouco de sujeira para o negócio. E começou a ficar tão mais suave, tão mais crível. Isso eu aceito, isso é bacana, isso eu gosto. Então, é código, cara. Código é código. Código muda, mas é sempre código. Eu fui criado nesse código, então para mim é o código. Mas eu aceito códigos novos, tudo bem, é o código. Isso é uma coisa que eu sempre falo de cara para os meus alunos de graduação. Eu gosto de passar O vento (ou Vento e areia, The wind, EUA, 1928, de Victor Seastrom) alguns trechos, para eles verem a interpretação da Lillian Gish. Porque nessa mesma época eles já viram um monte de filmes silenciosos. Eles viram a Lillian Gish pelo menos em O nascimento de uma nação (The birth of a nation, EUA, 1915, de D.W. Griffith). Fazendo caras, bocas...

FP - Toda teatral. EM - Não, é um código de representação. E aquilo é verossimilhante. Aquilo nos anos 20 é verossimilhante. Aquilo é naturalismo. É isso que eu tento enfiar na cabeça. Quando você pensa em novela da Globo, em que as pessoas são super espertas, falam naturais e não sei o que, para mim é igualzinho à Lillian Gish nos anos 20. É apenas um código. Que daqui a 30 anos muda, 20 anos muda. Então código é sempre a época, o contexto. Essa discussão não existe, na minha opinião. Não é que não existe, não faz sentido. Você trabalha com a tecnologia que você tem na época, com a cultura que você tem na época, conceitos que você tem na época e isso vai

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gerar um código que vai se dizer verossimilhante, ou não-verossimilhante, ou isso ou aquilo.

FP - Show de bola! Muito bem! Que ótima entrevista! Tinha que falar contigo. EM - Quando você passar isso para o papel, me passa depois? Tem duas ou três ideias que eu nunca tinha tido antes, que podem gerar um bom artigo.

FP - Legal. Vou transcrever, só tirar ruídos, ruídos da fala... EM - Uma ideia que eu nunca tinha antes que pode gerar um bom artigo. Tem duas ideias que eu joguei aí. Pensei “guarde essa, essa fica aqui”. A outra foi-se embora já. Só queria pegar essa ideia de volta.

FP - Claro, pode deixar. Se tudo der certo, vou defender no fim de maio. Eu já fui seu aluno, a coordenadora do curso já foi sua aluna também – a Laura Cánepa. Não vale, né? (risos) EM - Mas até aí, o Carlos Adriano, um monte de gente foi minha aluna. Quando você está dando aula no mesmo lugar há 26 anos um bando de gente já foi minha aluna.

FP - Mas essa coisa que você falou de ver os filmes dos seus alunos com a consciência de som que você ajudou a passar deve ser... EM - É muito bom, cara! É muito bom!

FP - Você sabe que não veio de outra fonte. EM - Ah, não sei, pode ter vindo.

FP - É difícil. EM - Mas é difícil.

FP - Você está na instituição que é a maior referência acadêmica do país. Na graduação é você que dá a parte de som? EM - Eu e o João (Baptista Godoy de Souza).

FP - E na pós também é você, não?

309 EM - Sou eu.

FP - Se você vê essa dificuldade, é daí para pior aí fora. Se houvesse (referência melhor), você estaria sabendo a essa altura. EM - É, mas meus novos alunos também estão dando aula. É, muitos viraram professores. Tem esse detalhe.

FP - Isso é ótimo. Você está falando também dos seus colegas, a Suzana (Reck Miranda), o Fernando (Morais da Costa)... Eles também estão fazendo a parte deles, tenho certeza. EM - Eu só comecei antes. Essa é a única diferença. Eu sou professor desses caras todos. Por isso que eu tenho 80 anos (risos). Bem conservado, você não acha?

FP - O que mais impressiona é exatamente isso, como você é jovem para tanta coisa que você já fez, tanta gente que já passou por você. EM - O mais bonitinho é quando você vê o aluno, um roteiro bem armado, bem escrito, toda uma direção que pensou o espaço de som, você fica todo feliz.

FP - Dever cumprido. EM - Exatamente. Mas existe uma coisa mais divertida ainda que é quando você pega o editor de som que também é seu ex-aluno e aí você começa a ver características estilísticas suas. Aí você fala “Opa, aí fui mal, hein? Esse sou eu, não é ele”. Não devia ter feito isso. Já vi em algum lugar. Mas é engraçado.

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FRANK BEHNKE (Entrevista 2016 d)

Desde o final dos anos 1980, o alemão Behnke tem atuado em diferentes funções na produção audiovisual de seu país. Inicialmente trabalhou apenas no meio artístico e há duas décadas também no meio acadêmico. No cinema e na TV alemães tem atuado como diretor, editor de som, mixador, escritor, músico e ator. Sua filmografia conta com vários curtas-metragens, documentários e videoclipes. Situado em Berlim, já lecionou edição e estética de som e sound design em escolas de cinema na Alemanha, Suíça e Itália. Behnke participou da equipe de som de Corra, Lola, corra, (Lola rennt, Alemanha, 1998), de Tom Tykwer, seu filme mais conhecido no Brasil, The philosopher (Der Philosoph, Alemanha Ocidental, 1989), de Rudolf Thome, e German Angst (Alemanha, 2015), de Jörg Buttgereit, Michal Kosakowski e Andreas Marschall. Em Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986), de David Lynch, único trabalho que realizou com Splet, atuou como estagiário.

Entrevista concedida gradualmente por e-mails trocados de 5 a 13 de março de 2016.

FABIANO PEREIRA - Vou precisar explicar qual era a relação entre você e o Alan. Sua página no site IMDb está precisa e atualizada? Você pode me contar sobre a sua experiência acadêmica também, por favor? FRANK BEHNKE - A página não está mostrando todos os filmes em que eu trabalhei, mas está atualizada. Todos os trabalhos (mesmo os curtas- metragens), você vai encontrar aqui: english.crew-united.com (página em inglês - não atualizada) e www.crew-united.com/?bio=44508 (atualizado Filmtonmeister = gravador de som/mixador, Mitwirkung em anderen Tätigkeiten = trabalhos em outras funções, como diretor). Minha filmografia como ator tem outra página no Crew United. Vinte anos atrás eu comecei a

311 ensinar estética de som em Zurique, Suíça, na Filmschool52 de lá. Faz quinze anos que eu expandi para passar meu conhecimento de som e sound design na Berlim Filmschool (DFFB) e, em Münster (Film Werkstatt = oficina). Em Bolzano, Itália, ensino edição de imagem e sound design (Zelig Filmschool) e em Potsdam, Alemanha, leciono só sound design. Doze anos atrás criei um curso de sound design na Munich Filmschool, que acabou agora. Quanto à história da minha relação com Alan Splet, eu era um nerd cinéfilo enquanto eu ainda trabalhava como enfermeiro. Aí um filme mudou tudo - eu quero dizer todo o meu conceito de entender filmes foi revirado. Eraserhead (EUA, 1977, de David Lynch). Devido aos dois, o diretor David Lynch e o sound designer Alan Splet, eu fui forçado a repensar e sentir de uma forma diferente minha maneira de ver filmes. Mas naquela época eu não tinha ideia do que um sound designer faz. Era só que algo mexeu comigo ao ouvir o filme. Anotei o nome Alan Splet, sem saber o que seus sons tinham feito comigo. Eu estava literalmente em um mundo diferente. Após essa experiência e após nove anos trabalhando como enfermeiro, eu joguei fora minha profissão, para começar a estudar cinema. Cada novo filme do Lynch era a minha droga para me aprofundar nesta arte. Eu sabia antes de vê-los, que cada filme do Alan seria um destaque sonoro. O homem elefante (The elephant man, EUA/Reino Unido, 1980, de Lynch), Duna (Dune, EUA, 1984, do mesmo diretor)... Aí tive a chance de conhecê-lo pessoalmente, enquanto estava na estrada por conta de um documentário. Eu tinha apenas uma coisa em mente: aprender som. Tive a chance de trabalhar na equipe de som do set com a mulher do Alan, Ann Kroeber, no filme do David Lynch, Veludo azul. Passaram-se só alguns dias de filmagem e eu me sentia honrado por fazer esse trabalho. A confiança aumentou e me deram responsabilidades. Foi assim que eu aprendi muito - deixe-me exagerar – tudo sobre som. Captação de áudio no set com a Ann, sound design com o Alan em Berkeley. Ambos me convidaram para continuar a trabalhar no som de Veludo azul. A minha experiência é a de que todos os sons, com os quais podemos trabalhar na indústria do cinema, já estão aqui na Terra. Para trabalhar com sons da natureza em combinações ou variações. O poder orgânico nesses

52 Hochschule für Gestaltung und Kunst Zürich (HGKZ, atual Zürcher Hochschule der Künste ou ZHDK).

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sons será transportado para dentro de um filme, expandirá lá e dará àquelas mídias vida e verdade.

FP - Quais são as suas próprias experiências profissionais mais criativas com som de cinema e por quê? FB - Eu fiz um monte de gravação de sons, mas as principais experiências que tive foram em Veludo azul. É a preparação da sala para gravar um som limpo e adequado, é a precisão do microfone no boom que dá ao mixador a voz real, é entender a perspectiva de som de uma gravação de acordo com o quadro. No set de Corra, Lola, corra, dirigido por Tom Tykwer, eu também aprendi a lutar por meus sons53. É um desafio, embora você possa pensar que são todos parceiros para o mesmo objetivo. Mas eles também estão lutando por suas diversas funções e realmente não sabem as necessidades de um técnico de som (gravações de sons ambientes, etc). As primeiras e melhores experiências com o poder e a criatividade do sound design que eu tive foram em Veludo azul também. Alan foi como um professor, ele realmente entendia os sons e desenvolveu um relacionamento com eles. Eu aprendi a sair novamente para a gravação de um som especial numa cena especial. Parece engraçado, não é? Mas muitas pessoas simplesmente não fazem isso. Desta forma, o Alan me mostrou que os sons são criaturas vivas com um mistério. Apenas uns poucos sabem disso! Fiquei impressionado com a coleção de sons de Alan (em rolos de filme) e ainda mais quando eu ouvi o design de sons especiais. Isso é arte, não apenas a soma de amostragens. Tudo aquilo formou meu conhecimento ao trabalhar com sons. Recentemente, em 2015, tive um desafio especial no filme de horror German Angst, de Jörg Buttgereit. Ele entregou o filme sem qualquer som! Eles simplesmente não gravaram, enquanto conversavam constantemente com os atores (no set). Ele é um amigo meu, então eu não rejeitei e trabalhei apenas na base de novas gravações e usando arquivos de som. Ficou muito bom para um filme de baixo orçamento.

53 Em Corra, Lola, corra, Frank Behnke atuou na gravação de efeitos sonoros.

313 FP - Seu estágio ficou restrito ao departamento de som durante a produção de Veludo azul? Como era trabalhar com Alan (e Ann) para você? FB - Para ser franco, o estágio não foi o motivo para eu viajar para os Estados Unidos. Meu amigo Peter e eu ainda éramos estudantes de cinema e queríamos entrevistar David Lynch com a esperança de fazer uma espécie de 'making of' (um termo que não existia naquela época). Com toneladas de filme Super 8, ficamos de maneira ingênua diante do diretor e do produtor. Ele aceitou a nossa ajuda como assistentes nos departamentos de iluminação e som, o último sendo o meu desejo. Mas nosso interesse principal era gravar entrevistas e encontrar fotos interessantes entre as filmagens. Fui muito bem-vindo e tive uma recepção bem calorosa quando fui apresentado à equipe de som, Ann, o operador de boom Patrick (Moriarty) e o Alan. Acho que foi a partir do segundo dia que eu me senti tão bem nas mãos da equipe de gravação de set, que eu comecei a trabalhar com eles constantemente. Em poucos dias eu era um membro da equipe de som, aprendia e ajudava ao mesmo tempo. Eu não sabia antes que iria tornar-se algo que se pode chamar de estágio. E oficialmente não era mesmo possível, porque o meu amigo e eu estávamos nos Estados Unidos com um visto de turista. Mesmo nesses casos, a Ann me ajudou muito. Trabalhando com os dois, com a Ann durante todo o dia, com o Alan de vez em quando (ele estava coletando sons separadamente) foi a minha apresentação profissional ao mundo da gravação de som de cinema, mas também uma experiência muito humana: a gente precisa de mais do que a profissão (em comum) para trabalhar tão bem junto por semanas. Pode não parecer tão importante, mas marca a base sólida para criar algo bom como uma verdadeira equipe. Isso também foi uma coisa que eu aprendi...

FP - Poderia me dizer o que você se lembra de como o sound design daquelas três cenas que eu mencionei de Veludo azul (o super close-up da grama com insetos na sequência de abertura, o pesadelo de Jeffrey, com Frank e Dorothy, e Jeffrey batendo em Dorothy na cama) foi criado e indicar se há outros momentos no filme que valem a pena mencionar, de acordo com a estrutura de efeito de contraponto por sobreposição de efeitos sonoros que eu estou procurando?

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FB - Alan fez esses sons importantes em sua sala de edição, por si mesmo, se bem me lembro. Nós todos estávamos interessados e impressionados. Eu acho que ele usou também sons de animais em compasso lento, mas isso é segredo dele, eu acho. De qualquer forma, assista a essas imagens sem som e você vai ver: o som do Alan é o que dá vida às imagens e começa a verdadeira história sob a superfície da sociedade.

FP - Você consegue se lembrar de outros elementos de som a que eu deveria prestar atenção em Veludo azul? FB - Os sons de trem usados de fundo - e descobrir quando o Alan os colocou! Para destacar um personagem. Descubra... Em contraste: os sons calorosos da vizinhança – pássaros, eles constroem a impressão superficial de Lynch de bom subúrbio americano. Quanto melhores clichês eles forem, mais os sons urbanos vão trazer o contraste real. O bem e o mal, como nos contos de fadas. Também atente para aquela dramaturgia construída - como a cena em que o Jeffrey está no caminho para o apartamento da Dorothy. Na primeira vez como um cara pulverizador de dedetização. Você vai ouvir os pássaros que representam a vida na cidade, pouco tráfego - e tudo isso se vai quando ele entra no corredor do prédio onde a luz de um elevador quebrado sinaliza perigo. O som de vento se torna amedrontador quando ele sobe as escadas externas, e seus passos produzem um eco estranho. Quando o Jeffrey entra no corredor interior e a porta se fecha, é como se ele estivesse cercado por sons de vácuo – como um sistema de sucção, um som sob pressão. Ele entra em um mundo estranho e desconhecido. O mundo da Dorothy – e Frank, por assim dizer.

FP - Em sua opinião, quais são os mais notáveis e criativos dos filmes de Alan não dirigidos por Lynch, numa perspectiva de som e por quê? FB - Os lobos nunca choram (Never cry wolf, EUA, 1983, de Carroll Ballard). Através desses sons da natureza que eu tive a sensação de estar lá, sozinho com o personagem principal.

FP - Você consegue se lembrar se algum deles apresenta exemplos de contraponto através da sobreposição de efeitos sonoros?

315 FB - No início de Os lobos nunca choram um cara com um avião foi contratado para trazer o "professor" para um lugar solitário. A hélice falha e trepida como que estando quebrada. Essa foi uma influência do som na história. Porque o avião voou bem, mas depois esse cara com esse avião vai trazer problemas – os homens de negócios – ao grande mundo da natureza e dos animais, de que o professor aprende a gostar. Portanto, esse som instável da hélice previu a situação ruim que ainda estava por vir. Ele nos avisou. Embora também suficientemente reconhecida, aquela conversa do menino com o cavalo em O corcel negro (The black stallion, EUA, 1979, também de Carroll Ballard), é uma grande obra-prima de som. A comunicação entre os seres distintos. Estamos muito mais acostumados a lidar com mal-entendidos entre os seres humanos.

“Isn't it a pity? Isn't it a shame? How we break each other's hearts And cause each other pain”. (George Harrison)

“Não é uma pena? Não é uma vergonha? Como nós quebramos os corações uns dos outros E causamos dor uns aos outros”. (George Harrison, citado com a letra da canção Isn't it a pity)

FP - Acredito que o Alan não teve muitas chances de trabalhar com tecnologia de som digital. A tecnologia digital afetou seu processo criativo na edição de som e sound design? Ele mudou o sound design de alguma forma? Por favor, se mudou, me diga como em ambos os casos. FB - 'Meu' processo criativo acontece em outros lugares e não é viciado em máquinas. A possibilidade tentadora de usar dispositivos digitais é a velocidade com que você pode dar ao diretor um exemplo ou exemplos diferentes. Ou, como muitas vezes no meu caso, poder criar design em todos os departamentos (efeitos, sons do set, ambientes, diálogo), como uma

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banda de um homem só para uma produção de baixo orçamento. Mas eu ainda estou convencido de que não é uma preferência de produção: você precisa de pessoas que saibam o que estão fazendo. Conheço colegas que são especialistas no mundo sensível de trabalhar com sons de atmosfera adicionais! Como e onde fazer novas gravações. Quais sons são adequados para serem combinados de modo a criar um clima especial para uma situação emocional ou narrativa especial, mas quase perto de uma influência “invisível”. Com o processo de trabalho digital você chega mais rapidamente a um resultado e você aprende que o que você acabou de fazer não foi gravado na pedra, quer dizer, não é o resultado final. Você pode tentar muito mais para convencer ou surpreender o diretor e a si mesmo. Além disso, o processo de trabalho mudou em detalhamento. Agora você pode ir até uma única palavra e alterar milissegundos de pronúncia, se você precisar fazer. Você pode apagar batidinhas e estalos mudando a forma de onda do som pelo desenho. Você pode aumentar e diminuir intensidade imediatamente, utilizando também o equalizador só para se livrar de micro zumbidos ou pequenas batidas da gravação do boom. Há um monte de preparação possível para a mixagem durante o processo de design, que limpa o trabalho de mixagem e o torna mais funcional diretamente no conteúdo. O que também me marcou é que, trabalhando com o Alan no estúdio na pós- produção de som, eu aprendi a trabalhar em preparação para duas coisas, o som em si e para a mixagem. Quando estou gravando som no set, eu realmente penso mais no sound designer do que no diretor.

FP - Qual é a sua perspectiva sobre como o sound design evoluiu desde que o Alan nos deixou, especialmente quando praticado em um nível artístico mais experimental? FB - Bem, eu sou muito suspeito. Para mim, o Alan foi um dos construtores de som e, portanto, um criador de climas, um artesão. Ele poderia assar um bom bolo, porque ele sempre cuidou de todos os ingredientes. Hoje eu vejo muito mais gente usando refeições congeladas prontas, achando que a espera do processo de aquecimento já é trabalho criativo (risos). Desculpe. Bem, eu conheço poucas pessoas que trabalham com som cheias de amor! Pergunte à Ann, tenho certeza que ela está cercada pela elite dos mestres de

317 som! Você sabe que eu era um aprendiz quando eu comecei com o Alan no set de Veludo azul e ele tinha um assistente de som especial, Frank (Eulner). O Alan costumava nos chamar de 'Frank duplos" (piada interna de dois caras no filme Veludo azul). Mas você sabe que o Frank Eulner agora tem... quantos... um Oscar e várias indicações54 por conta do sound design? Aprendemos tanto com o Alan, e eu tenho que acrescentar sempre a Ann, porque o som do set foi, é e sempre vai ser o primeiro som mais importante de toda a cadeia de trabalho criativo. E o Frank seguiu o caminho tradicional, se tornando um especialista. Fui pelo outro lado, o de passar o conhecimento adiante (claro que ainda praticando tão bem quanto possível também). Quando você usa o termo “experimental”, muito embora eu seja um fã de filmes experimentais, ainda penso mais numa maneira de trabalhar. Ser experimental ao trabalhar com sons, isso mostra abertura para mim, estar pronto para explorar no mundo ainda inexplorado dos sons. E enquanto estamos trabalhando com a imagem e a história, mesmo sons “conhecidos” e "comuns" podem se tornar novos e diferentes e é um desafio para ter a coragem de tentar. Para fazer do velho o novo.

FP - Você sabe de algum profissional de edição de som ou sound design que considera Alan uma inspiração, tem usado sua influência conscientemente e declarou isso – em filmes que você se lembra? FB - Eu tenho certeza que existem alguns, mas não estou muito em contato com a cena do som. Nem mesmo sou membro de sindicatos de profissionais de som na Alemanha, eu só escrevo alguns artigos para o site e a revista deles. Eu sou muito ativo em níveis diferentes - como um professor antes de tudo, como um editor de imagem, sound designer, ator, músico, autor... Poucos amigos do universo do som. A Ann conhece Matz e Eric, famosos garotos do som de qualidade por aqui. Eles realmente admiram o trabalho do Alan, mas acho que ninguém iria trabalhar 'como' o Alan e anunciar isso. Seria algo próximo de copiar o Alan. E ninguém pode fazer isso. Os alunos têm tão pouco conhecimento da nossa profissão, eles mal conhecem artistas de som de cinema pelo nome. Ben Burtt, Frank Warner, Nigel Holland, Ivan

54 Na verdade, uma indicação com Cristopher Boyes em 2009 por Homem de Ferro (Iron Man, EUA, 2008), de Jon Favreau.

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Sharrock – ninguém nunca ouviu falar antes, nem do belo trabalho do Skip Lievsay. O único nome comum que alguns conheciam é obviamente Walter Murch, que eu entrevistei para uma revista e deu uma palestra durante duas horas em 2008. Em 2006 eu conheci os sound designers e Karen Baker Landers, que fizeram o sound design de um monte de filmes de Ridley Scott, na Alemanha. Eles deram uma aula magna. Quando conversei com eles em particular e mencionei o Alan e a Ann, eles levantaram a cabeça e sorriram (risos). É claro que eles estavam cientes da importância. Ah, tem mais. Cerca de dez ou mais anos atrás, um colega fez uma instalação chamada Spletizerz. Ele foi inspirado pelo trabalho do Alan, mas ele não está no ramo do cinema - então eu não sei se você estaria interessado, eu teria que cavar fundo nesse caso. Eu também projetei uma instalação sobre os filmes de David Lynch com o sound design do Alan. Você passava por cômodos, que representavam os filmes e você ouvia sons do Alan. Não deu certo. Talvez a Ann se lembre. Está certo, tenho que ir. Amanhã começa a minha palestra delicada. Mas pelo menos consegui responder suas 10 perguntas. Por favor, sinta-se à vontade para perguntar mais, vou responder assim que eu puder. Espero que minhas respostas tenham ajudado um pouco.

Após esclarecimento de dúvidas pontuais sobre biografia e terminologia, em entre 15 e 19 de julho

FB - Meu parceiro de observações de Veludo azul, Peter Braatz, está realizando agora seu sonho antigo de criar uma visão própria das filmagens (documentário? mocumentary?55) e teve a banda Tuxedomoon, famosa nos anos 1980, para compor a música para cinema (baseada em São Francisco e que se mudou para a Bélgica). Aqui está a primeira crítica: www.vogue.com/13436840/making-of-blue-velvet-documentary-30th- anniversary/

55 Ficção que imita o estilo de um documentário, espécie de paródia.

319 FP - Eu levei tanto tempo para responder porque eu estava revisando todas as entrevistas, vários detalhes que eu preciso verificar. Eu queria prestar a atenção necessária ao ler a matéria da Vogue sobre o documentário do Peter. Agora eu mal posso esperar para vê-lo ... Existe alguma chance de eu conseguir isso antes do lançamento? Como a jornalista que escreveu a história fez (eu sou um jornalista também). Assino qualquer coisa (como termo de confidencialidade) que você me pedir. Sério. Pelo menos as partes que mencionam o trabalho de som seria realmente importante para eu assistir. Eu acho que posso ajudar a promover o filme, pelo menos no mundo acadêmico aqui. Sempre vale a pena te lembrar que o meu orientador é a nossa principal fonte sobre Lynch no país. É algo com um apelo claro para nós. Por sinal, em outubro, vou estar no principal evento acadêmico sobre estudos de cinema aqui no Brasil: www2.socine.org.br/encontros/aprovados- 2016/?id=16332. Vou apresentar o meu artigo sobre o uso de música pop não original do Lynch em seus filmes. Começando, é claro, com Veludo azul. Meu ponto é, o filme era único: era o único de seus filmes que tinha tanto o sound design do Alan e música pop com um efeito de contraponto sensorial comparável. A partir dali na filmografia do Lynch, somente a música pop teria o efeito de contraponto que o Alan criava com efeitos sonoros. Acho que só Império dos sonhos (Inland empire, França/Polônia/EUA, 2006) teve um trabalho de efeitos sonoros semelhante, além da música pop, mais tarde. Mas então, não era mais o Alan...

FB - Música não-pop?? Como a canção Blue velvet é música pop? Ou Candy colored clown (na verdade, este é um trecho da letra de In dreams, de Roy Orbison)... O que você quer dizer? Contrapontista? Não. Por favor, me dê um exemplo. Marilyn Manson e Badalamenti em Estrada perdida (Lost highway, França/EUA, 1997) também não é contraponto? Ou, quero dizer, o sound design do filme que não é difícil de distinguir de música!? Eu não tenho nenhuma cópia do filme do Peter - apenas o trailer, que você encontra no (site) YouTube. Interessa o primeiro filme dirigido pelo Peter sobre Veludo azul (com a minha participação Sem Frank em Lumberton, mostrado apenas uma vez no início de 1988 na TV alemã)? FP - A música pop de fato, Frank. Só não original. Quer dizer, canções

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gravadas anteriormente, não canções escritas e compostas para o filme. Geralmente dos anos 1950 e 1960. Assim, em Veludo azul: Blue velvet, do Bobby Vinton, In dreams, do Roy Orbison e Love letters, da Ketty Lester. O contraponto acontece em algumas das cenas de filme selecionadas, não todas. E essa é a conclusão mais importante do artigo. O David usava música sincrônica (Veludo azul durante a sequência de abertura) e diacrônica/efeitos de contraponto (como as canções românticas In dreams e Love letters em momentos violentos) para as situações apresentadas nas cenas. Como todos os ambientes sonoros em seus filmes, que são na sua maioria sincrônicos. Há referências teóricas que me ajudam a caracterizar o nosso momento cultural como um momento em que ambos os elementos sincrônicos e diacrônicos se alternam. Elementos passados e presentes, modernos e nostálgicos coexistindo, muitas vezes com significados renovados – como contraponto, ou quando Manson gravou uma versão moderna de uma canção dos anos 60 (para Estrada perdida). Isso é como eu percebo que os filmes do Lynch não são ícones culturais de outros tempos meramente, mas indicam qualidades estruturais do tempo em que a gente vive. E, portanto, o filme que eu escolhi para analisar permanece relevante, interessante, surpreendente e atual. E digno de atenção acadêmica 30 anos depois do seu lançamento. Se houver uma chance de eu poder assistir ao filme do Peter em breve, por favor me avise, ok? Material muito atraente.

FB – Obrigado, Fabiano, por me trazer suas ideias interessantes. Sim, o David usa essa música (as canções) não para serem adoradas, mas para definir contrapontos. Muito interessante para mim é que, quando você começa a conhecer a pessoa no artista, há um amor e um interesse especial na música não original que ele usa. Não conectados à utilização artística em um trabalho complexo, como seus filmes. Quer dizer, em primeiro lugar, este não é o material que ele usa para seu filme, por causa do significado nas letras. Ele as usa porque elas já o haviam tocado muito tempo antes. O (ator) Jack Nance, em uma entrevista realizada em Wilmington (cidade do estado da Carolina do Norte onde Veludo azul foi filmado), me disse que a ideia inicial do David para esse filme foi um sinal de néon de Blue Velvet com que ele sonhou (sonho, se não me engano), mas de qualquer maneira, para mim

321 soou como uma canção já conhecida ter um lugar no subconsciente e surgir no “mundo aqui". Também a música do Roy Orbison pode ter tido um papel especial na adolescência do David e se encaixa perfeitamente para esse tipo de distorção impertinente. David fez isso como Stanley Kubrick em Laranja mecânica (A clockwork orange, Reino Unido/EUA, 1971). (O ator) Malcolm McDowell canta Singin’ in the rain (canção-tema do filme Cantando na chuva, Singin’ in the rain, EUA, 1952, de Stanley Donen e Gene Kelly), enquanto estupra a mulher e espanca seu marido, o escritor. E, além disso, e independente da Veludo azul, David ajudou Roy Orbison em seu retorno, ao produzir/dirigir uma nova gravação de In dreams, bem como o videoclipe de Veludo azul. Poucos meses depois o Roy foi convidado por George Harrison para se juntar à recém-formada superbanda The Traveling Wilburys (com Jeff Lynne, Bob Dylan e Tom Petty). Então, a música também é um elemento muito pessoal e afetivo na vida do David: www.davidlynch.de/musicroy.html. Tem mais coisas que eu posso te dizer sobre a importância da música em Veludo azul. Em primeiro lugar, depois de conhecer o Angelo Badalamenti e o início imediato de uma amizade, o David compôs duas canções por si só. Agora havia alguém que o compreendia e poderia transformar as ideias em notas e harmonias (Misteries of love e Blue star, que apenas sobreviveram como uma mixagem da versão de Isabella Rossellini para Blue velvet). Então David queria se expressar (sua "mensagem") pela música. E aí acontece de novo: a voz aguda de um anjo (apenas uma cantora na Terra - Julee Cruise, que continuaria sua carreira de canto para Lynch com Twin Peaks (EUA, 1990-1991). Eu a vi ao vivo em São Francisco. Mas desde Eraserhead (EUA, 1977) com a cancão In heaven - que os fenômenos vão se cruzar mais vezes. Em meados dos anos 1990, o David produziu a esposa de um produtor, Jocelyn Montgomery, com as composições de Hildegard von Bingens (ábade beneditina, escritora e compositora; 1098-1179) Lux vivens. Jocelyn tem uma voz clara como cristal, acompanhada por sons do David. E também você vai ouvir a expressão musical dele em vários de seus próprios CDs. Eu o entrevistei ao telefone por seu Crazy clown time em 2011 para uma revista alemã. O episódio de música mais engraçado de Veludo azul é o seguinte. Meu amigo Patrick (Moriarty), assistente da Ann (Kroeber) no boom (microfone preso a uma haste para gravação de sons por cima da cena), veio

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de São Francisco com uma fita com música de guitarra no estilo dos anos 50, de uma banda chamada Silvertone. David ouviu isso e se apaixonou por esse estilo. Um pouco como o seu filme Veludo azul: um estilo dos anos 50, mas jogado na década de 1980. O líder por trás dessa banda era (o cantor) Chris Isaak, desconhecido até então. A produção de Veludo azul o contatou, mas como sempre com filmes de baixo orçamento, eles não poderiam comprar uma música completa, então eles a tornaram uma faixa instrumental animada - que você vai ouvir quando (a cena com) o passeio da alegria começa. Como você sabe, eles se tornaram amigos e Chris escreveu um sucesso do início dos anos 1990 para Coração selvagem (Wild at heart, EUA, 1990), Wicked game, e acabou fazendo pequenos papéis em filmes do David, como Twin Peaks: Os últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire walk with me, EUA/França, 1992). Assim, a música tem suas próprias leis de comunicação e amizade. Parceira invisível de emoções e histórias improvisadas, quase caindo do céu. Uma história paralela conhecida do set de Estrada perdida é que o pessoal do departamento de iluminação ouvia a banda alemã pesada Rammstein. O David adorava esse tipo de música de “big bang” teutônica e a usou para seu filme (também fez amizade com a professora Martha Nochimson, que escreveu os dois melhores livros sobre os filmes de David). Ela esteve no set para conversar com o David por alguns dias. Outra história que não é tão engraçada, mas que para mim, com uma educação musical clássica, foi muito visível, é a ligação entre o David e música clássica, especialmente do lado leste da Europa. Compositores russos, poloneses, húngaros. No set de Veludo azul eu era o operador de playback – tinha que apertar o botão certo no momento certo, quando Dennis Hopper cantou In dreams no apartamento de Ben (interpretado por Dean Stockwell), mas também tinha que trazer para o David seus fones para ele ouvir uma conexão especial de arranjo entre a gravação de som original da Ann da cena (diálogo, movimentos, etc.) e um gravador de fita (Sony TCD 5) em que eu tinha que rodar a fita para certos pontos de sinalização da 15ª Sinfonia de Dimitri Shostakovic. David já sabia que tipo de humor ele queria para que tipo de cena. Ninguém iria ouvir essas combinações de diálogo e música. E ele usa esse tipo de estímulo e as decisões para determinadas ações dos atores apenas durante os ensaios. Mas agora, me faça um favor e vá ouvir esta

323 sinfonia e aí, de imediato, a trilha do Badalamenti para Veludo azul!!! O Angelo roubou quase diretamente do Shostakovic. Quero dizer que o David não queria que a música fosse diferente da ouvida no set! É de tirar o chapéu o poder da música. E o David tem um talento para a construção de contrapontos também no gênero de música. Ouça duas trilhas sonoras fantásticas de filmes do David: Twin Peaks: Os últimos dias de Laura Palmer e Estrada perdida. Isso funciona mesmo sem imagem. Que mistura sensacional de música, estilos, expressões! Bem, sinto muito - eu estou escrevendo muito e em um Inglês não adequado. Mas quando se trata de música... Então, você sabe, em termos de Veludo azul, ninguém sabia que isso iria se tornar o primeiro filme Lynch em um estilo de cinema de autor, tão famoso e está estabelecendo novos padrões de como se contar histórias. Então ele teve que fazer o filme como uma produção de baixo orçamento e não poderia dispor de um monte de direitos musicais. Como ele só ter um coro e dois versos da canção Blue velvet para usar e, claro, não haver dinheiro para incluir essa música no álbum da trilha sonora (musical). Ele não conseguia Chris Isaak, nem Song to the siren de This Mortal Coil, que eu toquei no playback para a cena da dança em Veludo azul (na festa quando Sandy anuncia para Jeffrey seu amor). Mais tarde, David poderia obter essa música, sua favorita de longa data, para a cena do deserto em Estrada perdida. (A Ann fez o sound design da cena). Mas pelo menos ele conseguiu a versão 1962 de Love letters da Ketty Lester para o filme. Infelizmente o velho cantor de blues local que ele filmou com a (equipe de) segunda unidade (de produção) – eu fazia parte da equipe de Alan Splet – é uma das muitas cenas perdidas no chão edição. Assista ao Blu-Ray. David editou alguns trechos cortados juntos, cerca de 40 minutos ou algo assim!!! Se eu começar agora a pensar sobre a música do (compositor polonês Krzysztof) Penderecki nos filmes do David – Coração selvagem, Império dos sonhos e, ei, também O iluminado (The shining, EUA/Reino Unido, 1980) de Stanley Kubrick – ou as próprias bandas com que ele se apresentou ao longo de todos esses anos, trazendo a música para seus filmes, seus clipes de vídeo ou a composição que ele gravou com Marek Zebrowski na Polônia - iria longe demais. É uma parte da minha palestra sobre o artista Lynch, e o cinema é apenas uma pequena parte importante...

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celluloidwickerman.com/2013/02/01/david-lynch-avant-garde-uses-of-music- part-3-influence-kubrick-and-lana-del-rey/ FP - Não há nada para se desculpar. Muito pelo contrário. Muito interessante. Obrigado por compartilhar tudo isso. Se você não se importa, eu gostaria de usar todo esse comentário como parte de sua entrevista também. Posso? Eu só não posso perder informações valiosas de insiders (gente de dentro). E ninguém (entre os entrevistados) se aproximou da música no filme do David profundamente, uma vez que não é o que eu estou focando. Mas complementa lindamente tudo o que você disse antes.

325 JOHN NUTT (Entrevista 2016 e)

Editor de som com longa e expressiva filmografia, Nutt participou de vários filmes em que trabalhou com a edição de diálogos. Ele dividiu o prêmio de Bafta britânico de melhor som por Amadeus (EUA/França, 1984), de Milos Forman, em 1986 com Christopher Newman e Mark Berger. Foi indicado duas vezes ao prêmio Golden Reel de melhor edição de som da associação Montion Picture Sound Editors, uma em 2006 por Munique (Munich, França/Canadá/EUA, 2005), de Steven Spielberg, e outra em 2009 por Homem de Ferro (Iron Man, EUA, 2008), de Jon Favreau. Entre seus filmes de maior repercussão estão Apocalipse now (EUA, 1979), de Francis Ford Coppola, Seven: Os sete crimes capitais (Se7en, EUA, 1995), de David Fincher, e O paciente inglês (The english patient, EUA/Reino Unido, 1996), de . Com Alan Splet, participou de O corcel negro (The black stallion, EUA, 1979), de Carroll Ballard, Os safados (Dirty rotten scoundrels, EUA, 1988), de Frank Oz, Conflitos no inverno (Winter people, EUA, 1989) e Um morto muito louco (Weekend at Bernie's, EUA, 1989), de Ted Kotcheff, e Montanhas da lua (Mountains of the moon, EUA, 1990), de Bob Rafelson. Com David Lynch, além do episódio piloto da série de Twin Peaks (EUA, 1990-1991), criada por Mark Frost e Lynch. Nutt participou de Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986) como editor de diálogos.

Entrevista concedida em 7 de março de 2016.

JOHN NUTT - Sobre a minha página no site IMDb, frequentemente há coisas que não aparecem porque não é um currículo de fato. É um banco de dados mantido, antes de mais nada, virtualmente pelos produtores. Se um produtor não coloca um filme lá, não há local para atualizar. Então, por exemplo, editei um longa de baixo orçamento que não aparece lá, editei de 25 a 30 filmes de criança que não aparecem lá. Esse tipo de coisa. Documentários, comerciais... Mas os filmes que estão lá estão corretos.

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FABIANO PEREIRA - Se preferir enviar uma versão mais completa com todos esses projetos que não estão mencionados, fique à vontade. Só preciso guiar as pessoas que lerão meu texto sobre quem você é e o que já fez profissionalmente. Então é uma chance não apenas de falar do trabalho do Alan, como também de seus colegas. Com Veludo azul como parâmetro.

JN - A pergunta sobre qual é a minha experiência profissional mais criativa em som de cinema. Isso é quase impossível de responder. Porque cada filme em que eu trabalhei teve algum aspecto enormemente criativo e satisfatório. E algumas daquelas experiências mais bem-sucedidas que foram satisfatórias foram em filmes bem humildes, que as pessoas não viram. Inclusive uma do seu próprio país. FP - Mesmo?

JN - Trabalhei num filme do Walter Salles, que teve uma série de títulos. Acho que no IMDb se chama A grande arte (The knife, Brasil/EUA, 1991, de Walter Salles Jr.). FP - Lembro dele. Nos anos 90, certo?

JN - Correto. Era 1990. Na verdade, era 1990 a 1992. Acho que foi lançado em 1992. FP - O (ator) Peter Coyote está nele, certo?

JN - Certo. FP - Eu vi o filme.

JN - (O ator) Tchéky Karyo (também). Era chamado inicialmente de High art (tradução literal de A grande arte). Acho que era o nome do romance de que o Waltinho gostava e, portanto, fez o filme. Fui ao Rio para uma sessão de exibição do filme. Dei um pulo até São Paulo por um dia, gostei da viagem. FP - Não consigo esquecer a primeira cena. O longo zoom. Eles partem de um ponto muito distante até o quarto em que os atores estão. É muito interessante. Não esqueço a cena.

327 JN - O som naquele filme foi tanto desafiador quanto satisfatório no fim, de um jeito bem estranho, não que eu seja uma pessoa particularmente violenta. Bem no fim do filme o Peter Coyote consegue matar o vilão, com uma faca muito grande de 14 polegadas. E o som dele tirando a faca do corpo foi um som que, por um lado foi muito satisfatório, foi muito complexo por conta dos elementos mixados com aquilo, é algo que vive comigo até hoje. Posso ouvir na minha mente, o que se aplica a muitos dos sons com que já trabalhei. Devo te avisar, algo que você pode já saber bem, que a minha conexão com o Alan começou num filme chamado O corcel negro. Naquele filme eu estava trabalhando com o que se refere como diálogo, a gravação da voz, não a escrita, claro. A voz que foi gravada na hora da filmagem e a voz que é gravada no estúdio depois disso, que é editada nesse looping, o que é chamado de ADR (Automated/Automatic/Additional Dialogue Recording ou Gravação de Diálogo Automatizada/Automática/Adicional, variando conforme a fonte). Essa era a minha responsabilidade, o Alan que me contratou. Ele trabalhava mais adiante no corredor com outras pessoas, como o (mixador) Todd Boekelheide. E em todos os filmes em que o Alan e eu trabalhamos, que foram vários, sempre fiz os diálogos e ele estava supervisionando ou o que hoje seria chamado de sound design ou design de efeitos sonoros. Então pelas minhas lembranças do filme do Walter Salles estou contando uma experiência completamente diferente em que eu estava gerando sons, estava supervisionando, estava lidando com o Walter, estive presente na mixagem. Presente não é a palavra certa para descrever. A mixagem final ou a regravação é meio que uma forma polida de assistência social em que as pessoas estão batalhando umas com as outras pela predominância de seu som. A turma do foley quer foley, a dos efeitos sonoros quer efeitos sonoros, o editor de música quer música. E os regravadores estão sentados diante do console defendendo todas essas batidas, tentando colocar tudo isso num todo. Quando trabalhava com o Alan, eu geralmente não estava na mixagem naquele ponto, porque eu estava trabalhando com diálogo. Quase invariavelmente, o passo inicial em terminar o som de um filme é começar pelo diálogo na pré-mixagem, de modo que ele possa ser convenientemente mixado com os efeitos sonoros e a música em seguida. E assim que o diálogo está pré-mixado – invariavelmente porque não há dinheiro suficiente,

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nunca há dinheiro suficiente no fim – eles dispensam o pessoal que não seja mais absolutamente necessário, como eu. Então, uma vez que eu tivesse terminado meu trabalho, eu era inevitavelmente dispensado. E a mixagem de fato aconteceria de uma semana a duas depois, pode ser um mês depois. Então a parte perdida na minha experiência com o Alan foi a de testemunhar o que de fato acontecia na sala de mixagem. E, falando honestamente, lá é onde a verdadeira arte é revelada. Não digo que é o único lugar em que a arte acontece, mas é o local em que a arte é revelada. Tudo antes disso é preparação para isso, esse momento. Então os efeitos sonoros, o design dos efeitos sonoros, normalmente são percebidos como mais do que você precisa. Quase ninguém entra na mixagem final achando que encontrou o som exatamente certo ou achando que mesmo não tendo o suficiente, vai dar um jeito. Geralmente é o contrário. E o mesmo vale para o diálogo. Então a conexão criativa entre o Alan e eu normalmente acontecia no corredor de onde estávamos trabalhando, entre nossas duas salas, papeando, conversando. Desde que recebi suas perguntas (por e-mail), fiquei pensando a respeito, e percebi que na verdade a maior parte das nossas conversas foram sobre o filme, não sobre o som. A conversa era para entender o filme, como ele poderia ser interpretado e, consequentemente o impacto que os diferentes aspectos do som poderiam ter. Em Veludo azul houve (risos)... eu deveria dizer que no meu primeiro dia de trabalho no filme eles fizeram uma sessão de projeção do que tinham até o momento. Então às 9:00 horas eu entrei, apertei mãos da maior parte das pessoas, vi o Alan, ele disse que teríamos a sessão em meia hora, vimos a projeção, eu não sabia nada daquele filme para a projeção. Depois da projeção, eu saí chacoalhando minha cabeça dizendo “Meu Deus, isso é assustador para caramba! Como vou fazer isso?”. E pensei nisso por um minuto e fui até o Alan e disse “Olha, o único jeito que eu acho que consigo dar conta desse filme é se você me der todas as cenas do Dennis Hopper. Se eu trabalhar nessas cenas, acho que consigo sedimentá-las. Mas se eu tiver que simplesmente ir a sessões de projeção e ver Dennis Hopper do jeito que ele faz o Frank, eu simplesmente vou ficar tremendo nas minhas botas”. Então ele rapidamente se organizou de modo que eu fizesse a maior parte, não fiz tudo, mas fiz a maior parte da

329 preparação dos diálogos dos rolos em que o Dennis Hopper estava. E, como resultado, as falas assustadoras se tornaram falas, apenas falas. FP - Quando você faz preparação, como isso acontece? Honestamente, não faço ideia. Ou nesse caso especificamente.

JN - OK. A preparação para o diálogo, na época e agora e todo esse tempo, é basicamente a mesma. Que é o editor de diálogo pegar o que o editor do filme lhe dá e diz :“Ok, isso é o que eles querem; isso é o que o editor quer, isso é o que se imagina que o diretor queira”. Há problemas, normalmente problemas que precisam ser corrigidos, primeiramente por conta do fato de que as falas vêm de diversos ângulos, ambiências indesejáveis, há distorções, falas cortadas que precisam ser descartadas por necessidade porque o ator falou rápido e eles só queriam a frase do meio. Então a primeira tarefa é a chamada limpeza. Você tenta limpar o material da melhor maneira possível, o que na época em que eu estava trabalhando em Veludo azul era feito em filme magnético, manipulável, mas nem de longe tão manipulável quanto é agora com as ferramentas digitais que temos. Na época era um pedaço de magnético e, consequentemente, você podia editá- lo, cortá-lo, com a menor ferramenta tendo um (tamanho equivalente a um) quarto de quadro de película, uma perfuração. Você também podia usar uma navalha para raspar o começo e o fim e em alguns casos as pessoas enlouqueciam e faziam raspagens muito, muito longas, de 60 cm. No meu caso, geralmente eram um, dois ou três quadros, só para suavizar o fim ou o fade out do que quer que seja que estivesse acontecendo. E mais que isso, a primeira tarefa geral era a de reorganizar como a falas se encaixavam, em quais brechas elas se encaixavam e, consequentemente, como apresentá-las ao mixador na sala de mixagem. Então, em tese, a abordagem mais simples era qualquer som gravado do ângulo A estariam em uma faixa, qualquer coisa gravada de um ângulo distinto ou que soasse diferente seria colocada numa faixa diferente. Aí você marca a configuração de equalização para o primeiro pedaço de som na primeira faixa e tenta aplicá-la continuamente a todos os outros pedaços. Isso nunca funcionou com exatidão, (mas) esse era o conceito. Tendo feito isso, em tese, você pegou o que o editor do filme te deu, você limpou o material, o fez menos problemático e esse é o ponto de

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onde você começa a gravar falas adicionais ou falas que substituirão outras. Numa situação muito pior, de que não me lembro de ter acontecido em Veludo azul, você literalmente refaria todas as vozes de uma atuação. Isso de fato aconteceu com o Walter Salles, ele substituiu completamente a voz de um ator. FP - Com a voz do próprio ator ou a voz de alguém mais?

JN - A voz de alguém mais, completamente diferente. O que é, da perspectiva do editor de som, o pior desenvolvimento possível. Porque a entonação natural, o ritmo varia de um indivíduo para outro e tentar fazer a pessoa B soar e parecer com a pessoa A é uma tarefa árdua. De qualquer forma, não aconteceu em Veludo azul. O que de fato ocorreu foi que... Havia um momento em que eu achei que o diálogo tinha feito uma contribuição significante, além do que estava contido nas palavras – a maior parte do que se chama de edição de diálogos eu chamaria de edição de ambiências, você está tentando limpar e suavizar o sopro da ambiência que for e ocasionalmente você reedita e suaviza as palavras, mas é realmente com isso que você está lidando, palavras ao redor. Então a cena em que (o ator protagonista) Kyle MacLachlan está se escondendo atrás de uma porta de closet que tem ripas de madeira entre as quais dá para se ver e em tese se ouvir e ele está tentando ficar quieto. E a trilha sonora em si, a mesma trilha, estava por todo lado. Você podia ouvir o cameraman respirando, o assistente que estava empurrando o dolly respirando, o chão estava estalando, o Kyle MacLachlan estava esbarrando em coisas e ainda havia partes que soavam perfeitas. Então me dediquei a limpar as partes indesejáveis e a adicionar a mesma ambiência, tentando ritmar qualquer respiração perceptível de um jeito razoável. E o resultado depois da pré-mixagem, antes de a música ou qualquer outra coisa ser adicionada, ficou delicioso. Ficou exatamente o que deveria ser, quase completamente silencioso, algo muito difícil de fazer. Muito mais fácil em diálogos e efeitos sonoros ter volume alto e ficar sobrecarregado. Uma cena de luta é a coisa mais fácil do mundo de editar. Editar uma pessoa não falando por cinco minutos e tentando ficar quieta é muito duro. Também naquele filme teve outra cena que não envolvia diálogo, que era a (atriz) Laura Dern ao telefone e a câmera estava fazendo uma

331 aproximação muito, muito lenta – lembro de dois, podem ter sido três minutos – e ela está muito emotiva. Ela está falando ao telefone e o tempo todo você podia ouvir esse assistente respirando ao fundo como...(imita a respiração). “Que diabos é isso!?”. Bem, era um take só e quando o vi pela primeira vez disse: “Cara, isso vai ser moleza”. Sessenta metros, não tem nada para se fazer. É manter ou tirar. Acabou sendo a segunda coisa mais difícil de se fazer naquele filme, porque cada sílaba tinha que estar lá, tive que remover cada respiração possível do assistente e preencher com a ambiência e, de novo, quando terminou, ficou lindo. Mas ouvir a trilha original... uau! FP - As pessoas nem imaginam todo o trabalho duro por trás de algo que parece tão simples, não?

JN - Exatamente. E de fato essa é a marca do sucesso. Se parece tão simples e parece bem-sucedido, é como o Oscar para mim. É isso. Não tenho outra forma melhor de ver o que eu fiz. Esse é o tipo de coisa sobre que o Alan e eu conversaríamos. Eu falaria das dificuldades e ele me encorajaria, tipo “Precisa estar silencioso, realmente precisa ficar silencioso”. Esse é o homem que tinha gastado um bom tempo organizando bibliotecas de sons quando ele trabalhou em Hollywood. E trabalhar com gravação de sons, edição, playback e mixagem no fim dos anos 60 e começo dos 70 era bem desafiador. Em termos de resposta de frequência, a capacidade de reproduzir os sons. Era muito comum – é difícil descrever, mas era muito comum – naquela época usar fones de ouvido enquanto trabalhando nos diálogos e o primeiro som que você ouvia era o zunido dos pré- amplificadores. Você ouvia (imita o zunido contínuo) e você se acostumava a de fato ouvir através do zunido. E através dele ouvir as pequenas mudanças de ambiência, porque era isso que eu estava tentando encontrar. Difícil mesmo. O Alan passou por tudo isso, conhecia tudo isso, teve que lidar com aquilo como todo mundo. E ele era um homem completamente devotado aos sons reais. Esse era um homem que não ia adorar a ideia de um som falsamente criado ou criado em estúdio, quando ele podia ir lá fora e gravar o som real. É por isso que ele ia gravar sons novos. A história dele começou, até onde eu sei, com ele lidando com uma quantidade pequena de efeitos sonoros previamente gravados, que em Hollywood tendiam a ser reusados.

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Que não eram particularmente bem gravados para começo de conversa, o que não era culpa das pessoas, mas um dos problemas da tecnologia. Mas em vez de reusá-los, a inclinação pessoal dele era sair com a melhor tecnologia e recomeçar com sons reais gravados tão bem quanto eles pudessem ser gravados. Não sem razão ele viu que o que eu estava fazendo com os diálogos era abrir caminho para os efeitos sonoros dele. Tirando a sujeira do diálogo. Como foi com o Kyle MacLachlan atrás da porta. Então havia mesmo silêncio. Havia um jeito de ouvir o que ele podia acrescentar em termos de sons reais. Uma das suas perguntas, por sinal, foi se ele usou tecnologia digital. Obviamente ele já trabalhava antes de haver qualquer forma de tecnologia digital disponível. Mas ele fez a transição. A pessoa com quem você deveria falar mesmo, o homem que era assistente dele na época, Frank Eulner, que acabou se tornando muito bem-sucedido como supervisor de som e sound designer trabalhando não apenas, mas na maior parte do tempo, na Lucas Film. FP - Acho que a Ann tentou contatá-lo, mas por alguma razão ele estava muito ocupado ou ela não conseguiu resposta. Não sei ao certo o que aconteceu. Mas ele tentou, acho que ela tentou.

JN - Posso ligar para o Frank e ver se consigo. Porque o conhecimento dele do que o Alan estava fazendo na preparação dos efeitos sonoros no estúdio do Alan é único. Realmente não havia ninguém mais naquela posição. Ele testemunhou o que o Alan estava passando, o que ele estava tentando fazer. Inevitavelmente, o que você está tentando fazer é ver se a habilidade dele era tecnologicamente ou mesmo conscientemente... Então, muito da preparação e frustração e, com sorte, o resultado final, seja na pré-mixagem ou na mixagem final, é o desaparecimento da frustração e o relaxamento no sentido de “sim, isso é o que eu queria mesmo, o que eu esperava”. Uma outra coisa que você não mencionou nas suas perguntas, só vou mencionar, é que a arte realmente está naquela mixagem final, como eu dizia no começo. E a pessoa mais crítica nessa etapa é o diretor. Todo mundo está trabalhando para o diretor, incluindo os mixadores sentados diante da mesa de mixagem. Todo mundo está tentando ajudar e satisfazer o diretor. Testemunhei o David Lynch numas duas ocasiões – e, por sinal, o David

333 Lynch é uma das pessoas mais legais e gentis que você vai encontrar na vida, pode-se pensar pelos seus filmes que ele é uma pessoa perigosa, mas na verdade ele é umas das mais doces na vida, atencioso, quase como antigamente – , mas enfim, eu o vi na mixagem – eu não estava diretamente envolvido com ele, vi por cima dos ombros –, neste caso em particular num filme chamado Coração selvagem (Wild at heart, EUA, 1990, de Lynch), em que o Alan não estava trabalhando, mas um monte de gente da equipe dele estava, inclusive eu. E eu vi uma certa peça musical, de que eu não me lembro o nome – não importa de verdade, mas era do Angelo Badalamenti, que estava fazendo a música do filme e tinha enviado. Acho que foi gravada na Itália, era uma peça sinfônica que chegou numa fita de 5 cm. Essa pessoa a trouxe com entusiasmo na mixagem e entregou ao mixador. O David estava entusiasmado. Eles tinham um gravador de fita bem atrás deles, o que era bem raro na sala de mixagem, mas havia um lá. Colocoram no prato e uau! “Isso é lindo! Ó, meu Deus! Essa é uma abordagem completamente nova para este filme. Estou surpreso!”. Mas meu trabalho era o diálogo, então saí. Voltei para a minha sala, fiquei editando diálogo. Umas duas horas depois eu voltei e eles ainda estavam trabalhando naquela cena. Não ouvi a música, então perguntei a um dos mixadores se eles iam colocar a música. E ele disse “Sh, sh, não”. (sussurrando como resposta) “OK”. E o tempo todo que fiquei lá não ouvi música alguma. Aí eles fizeram uma pausa e tirei esse mixador para um canto e perguntei onde estava a música. E ele disse “Você ouviu a música. Aquela é a música”. “O que você quer dizer?”. E eles conseguiram pegar essa música inacreditavelmente suntuosa romântica poderosa peça musical e torná-la um zunido aterrorizante. O que tinha sido bonito acabou saindo (imita um tipo de rugido medonho). E eu: “O quê!?” (risos). Eu nem sabia que era sequer possível! Bem, esse foi o resultado do David. FP - Ele distorceu a música?

JN - Ele cortou, distorceu, a colocou em processadores e o resultado final ficou literalmente irreconhecível com a mesma peça musical. E isso para mim é a quintessência do que um diretor traz. Porque o compositor tinha certeza que ele (David) tinha dito exatamente o que ele (compositor) fez. Ninguém

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podia entrar na cabeça do David, mas o David vivia nela e foi no que deu. Então tudo que o Alan fez para aquele filme (Veludo azul) e o pessoal de diálogo – eu, ... – preparou para ele, tinha que passar pelo filtro do David Lynch. Então para realmente ter uma ideia do que o Alan proporcionou, você teria que falar com o David. Vi com meus próprios olhos. Francamente, em termos de arte ele era a pessoa que misturava o pote de tinta e então entregava a alguém para pintar. FP - Eu tentei. Contatei o David pela sua fundação. Mas ele está ocupado com Twin Peaks (EUA, 2017-, criada por Mark Frost e Lynch). De novo. A nova temporada.

JN - Certo (risos). FP - Ele provavelmente está completamente indisponível. Só consigo imaginar quantas demandas ele tem que administrar.

JN - Não é uma má ideia tentar contatá-lo porque o Alan era uma das pessoas favoritas dele. Eles tinham uma conexão verdadeiramente de coração para coração. Raramente eu vi a pessoa de som ter aquele tipo de conexão com o diretor que o Alan tinha. Ah, eu quis dizer, por sinal, as pessoas pensam no Alan – conheço muita gente que trabalhou para ele, eu trabalhei para ele, ele trabalhava para os diretores – como alguém que fazia efeitos sonoros. Mas de fato, ele era o supervisor, a pessoa para quem eu trabalhava. E ele também era uma pessoa que foi editor de música, ele era mais ligado à música do que ele era ligado em efeitos sonoros. E pensando sobre isso esta manhã, percebi que ele abordava efeitos sonoros mais como música que o editor de efeitos sonoros comum da época ou atuais. Ele queria que aquilo tivesse um impacto emocional. E queria que tivesse seu lugar. Não sei, ele sempre fazia isso, testemunhei em O corcel negro uma conversa muito interessante entre o diretor Carroll Ballard e o Allan, quando estavam tentando conseguir terminar uma cena em que o cavalo está correndo na praia e o garotinho, que estava tentando atraí-lo, finalmente consegue montar nas costas do cavalo e cavalgar nas ondas, uma cena para cima, feliz. O Allan tinha separado todos os tipos de efeitos sonoros para ela. O diretor entrou e se sentou meio impaciente, deixando claro que ele via a cena como

335 uma cena sem efeitos sonoros, não com pequenos efeitos sonoros. Então se tornou uma cena só de música. Para mim foi uma das poucas grandes lições de pós-produção que me marcaram, tenho certeza que marcou o Alan. Todos os efeitos sonoros do Alan estariam bons para qualquer diretor, mas para esse diretor... O Carroll estava optando estritamente pela emoção. Percebi que o Alan entendeu aquilo instintivamente e não resistiu. A maioria dos editores de efeitos sonoros teria resistido. “Que tal se eu puser outro curtinho aqui? Que tal a cada duas expirações? Ou talvez só ouvirmos a água”. Ele entendeu. Tipo “Certo, sobem os efeitos sonoros, sobe a música”. Em outras cenas, no mesmíssimo filme, em que qualquer compositor teria colocado música, eles tinham só efeitos sonoros. Ele entendia a variedade, o valor de usar tanto efeitos sonoros quanto música pela sua importância emocional. De certo modo, não havia diferença entre eles para o Alan. Ele queria fazer o que conectasse a platéia àquela emoção. Ele não estava tentando surpreender, tirar facilidades como o tiro de laboratório que fizesse você pular (na cadeira) nem nada do tipo, coisa muito simples de fazer. Ele fazia as coisas difíceis, na verdade. FP - Certo. Não sei se você estava por perto durante (a produção) das três cenas que eu selecionei.

JN - O pesadelo de Jeffrey com Frank e Dorothy, Jeffrey batendo em Dorothy... FP - E a cenas dos insetos no começo.

JN - Ironicamente essas são todas cenas em que eu estive provavelmente menos envolvido. Certamente a cena dos insetos. Eu não estava presente na mixagem quando ela foi montada. Mas posso dizer que aqueles sons são do Alan e do David. A interferência de mais ninguém era algo crítico ali. Aqueles dois caras trabalhando juntos naquilo. FP - A coisa mais interessante daquelas duas outras cenas, além da com os insetos, é que eles substituíram a voz com os efeitos sonoros, ou com vozes distorcidas, num ponto em que você já não pode mais reconhecer uma voz ali. Quando acontece aquele pesadelo, é a voz do Frank, ele grita e só ouvimos esse tipo de som distorcido. Na outra cena íntima entre o Jeffrey e a

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Dorothy o suspiro de prazer dela é substituído por algum tipo de sopro ou fogo, você pode ouvir algo além. Há um corte e uma cena curta de uma chama.

JN - Certo. Alan e Frank Eulner certamente estavam preparando isso e trazendo para a mixagem. Outros editores de efeitos sonoros trabalhando para o Alan também. Mas posso quase garantir que isso não saiu daquele jeito até chegar na mixagem. E nesse ponto os instintos do David eram o norte. É duro descrever, ele era muito mais conectado tanto intuitivamente quanto emocionalmente ao som de seu filme que um monte de diretores com quem trabalhei. Umas duas vezes trabalhei para diretores que simplesmente não queriam vir para a mixagem. Eles consideravam um processo chato – e francamente é um pouco chato se você não estiver fazendo por conta própria –, então algumas pessoas simplesmente se esquivavam dele. O David era o contrário, era como se ele nunca fosse embora. Ele se sentava junto à mesa de som. De qualquer forma, trabalhei em vários filmes do David Lynch e desenvolvi um enorme respeito por ele. E percebo que não só ele tem uma arte como ele tem a coragem de segui-la. É por isso que muitos diretores, quando chegam na mixagem, ficam num estado de medo. O David é meio que o oposto. Isso é onde ele queria chegar, era isso que ele ansiava. É sua caixa de areia ou cercadinho. FP - Posso imaginar. Você lembra de algum outro contraponto sonoro no filme que eu perdi? Algo como efeitos sonoros que são perceptíveis como não relacionados com as imagens que vemos. Aquelas três cenas estão claras para mim, mas talvez haja algo mais que eu perdi.

JN - Bem, nada me vem à mente, mas quando penso no Veludo azul em termos de efeitos sonoros, rapidamente (o pensamento) se torna a máscara que o Dennis Hopper usa. O (imita o ruído da respiração ofegante do ator em cena). É provavelmente o som mais aterrorizador que consigo imaginar. E era tanto efeitos sonoros quanto a voz original do Dennis, mas mais o som... FP - Você tem alguma ideia? Acho que o Rob Fruchtman me contou sobre aquela cena... aquelas cenas, eram mais de uma, certo?

337 JN - Sim, três delas. FP - Três delas. Você lembra do tipo de efeito sonoro que eles usaram?

JN - Bem, não lembro. Porque não estava trabalhando nos efeitos sonoros, estava trabalhando nos diálogos, mas posso te dizer que o resultado final fez minha pele enrugar. Eram aquelas três cenas que quando eu vi o filme pela primeira vez disse “não sei se dou conta, o único jeito que posso é se trabalhar nisso, de modo que eu possa objetificar isso e dizer sim, sim, claro”. Mas se eu entrar no cinema e vir isso de novo, ficar aterrorizado vai ser minha única reação. E, claro, junto a isso, Dennis Hopper. A expressão no olhar dele... Ó, meu Deus... FP - Completamente doente.

JN - Uma coisa rara e estranha. Trabalhei em outros filmes do David Lynch. De fato, trabalhei no primeiro Twin Peaks (EUA, 1990-1991, criada por Mark Frost e Lynch), acho que é considerado o episódio piloto da série exibido na Europa como filme, por conta própria. Acho que era um orçamento baixo, o cronograma era esmagadoramente apertado. Ele mais uma vez queria entrar na mixagem, então coisas que normalmente teriam sido diálogos, que normalmente teriam sido substituídas, parece que eles usaram a edição para “esqueçam, vamos para a mixagem”. E não consigo nem começar a descrever (risos) para você o quão chocantes algumas das coisas, algumas das questões tecnológicas, tiveram que ser feitas para se chegar na mixagem. E sentar na mesa de som da mixagem e ver o David manipular a música... De repente me dei conta de que ele chamou o editor de música, um cara maravilhoso, que naquele momento em particular estava no andar de baixo na sala de edição de música se preparando para o rolo seguinte, acho... esqueça, acho que era o primeiro rolo. E o David o chamou e disse que precisava de uma sobra de abertura, que é o tipo de coisa que ocasionalmente acontecia com magnético, quando você cortava algo que achava que não iria precisar, mas guardava o trecho. Acho que era uma sobra de 152 metros. “152 metros!? É metade do comprimento de um rolo! Do que você está falando? Não dá para ter uma sobra de abertura de 152 metros”. Com certeza. Pois tinha uma sobra de 152 metros. E ele faria isso

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algumas outras vezes. “Preciso de uma sobra de 91 metros”. E de repente me ocorreu que o que ele tinha naquele filme eram trechos extremamente longos de música de fundo. E ele as estava tratando como cores num espectro. “Quero azul aqui, me traga mais azul. Quero mais vermelho, me traga mais vermelho”. FP - Pintando com sons.

JN - Exatamente! Ele queria mais tinta na lata. Queria mais som, mais música. Você pode perguntar aos mixadores, todos têm opiniões diferentes, tenho certeza, mas acho que todos vão dizer que não tinha nada igual a trabalhar com o David Lynch na sala de mixagem. Esse homem é um caso único. FP - Desculpe, entendi tudo que você disse, menos a expressão sobra de abertura (head trim, em inglês).

JN - É chamada de “head trim”. Em outras palavras, se você tem uma música de fundo de um minuto e ela parece longa demais, você corta os 10, 15 primeiros segundos da abertura e começa depois. É o tipo de coisa que acontece nos efeitos sonoros o tempo todo. Se você tem cinco minutos de ambiência e só precisa de três, você corta um minuto aqui, um minuto ali, e aí você tem sobras de um minuto, abertura ou final, de ambiência. Mas em geral você não aborda música dessa forma, particularmente música que criaram para você. Normalmente começa do começo e termina no fim. Às vezes você pode dar um fade mais cedo ou remover uma frase interna ou duas, mas basicamente começa do começo. Mas ali você tinha um homem pedindo uma sobra de abertura de seis minutos. E eu disse “O que você quer dizer com seis minutos de sobra de abertura? A música só tem dois minutos, de qualquer forma?” E ele queria uma de seis minutos... Bem, é porque ele era o baú de sons de música. E ele queria mais disso. Ele queria ir mais e mais e mais longe naquela direção emocional em particular. E ele tinha outros fundos. Na verdade, com o David nada era alegre. Então, se ele tinha três músicas de fundo diferentes, eram a triste, a mais triste e a triste para valer. FP - Adoraria falar com ele. É uma pena. Não acho que eu deveria insistir porque já tive uma resposta negativa ao meu pedido. O assistente dele

339 escreveu de volta de forma muito gentil, mas dizendo que ele não poderia ser entrevistado. Que ele (David) adorava o Alan, mas não teria condições. Talvez no futuro (risos). Então estou tentando todo mundo ao redor do Alan.

JN - Continue assim. Tenho certeza que o resultado final dos seus esforços vai ser bem-sucedido. Requer tenacidade. FP - Espero que sim. Acho que devo a vocês algo pelo menos decente para honrar todo o empenho dele e o de vocês todos também. Espero que funcione. Qual você considera – é uma das perguntas, desculpe – o filme mais interessante do Alan sem o Lynch? Diria os filmes do Ballard ou algo mais?

JN - Bem, o Alan tinha uma conexão muito forte com o Carroll Ballard. Meio como a relação do Alan com o David Lynch. O Alan tinha uma conexão emocional com e amor pelo cinema que ele compartilhava com o Carroll. A relação dos dois era muito forte. O trabalho do Alan em O corcel negro foi um ponto alto. Ele também tinha uma conexão forte com o Phil (Philip) Kaufman. E com o Phil ele era realmente mais conectado por meio da música. Ele e o Phil pareciam manter um relacionamento muito compreensivo no que tange a música. Não trabalhei nesses filmes. Falei com pessoas que trabalharam, falei com o Alan ocasionalmente a respeito. Penso que ele tinha esse tipo de relacionamento com o Phil Kaufman. Trabalhei em diversos outros filmes que não foram dirigidos por nenhum desses cavalheiros. Acho que um dos filmes mais interessantes em que ele trabalhou e que resultou no Alan e eu tendo conversas extensas sobre o filme, foi dirigido por... não consigo lembrar o nome... FP - Não é um filme sobre esgrima, é? Encontrei algo bem interessante que me lembrou do trabalho do Alan para o Lynch num filme chamado O último duelo (By the sword, EUA, 1991, de Jeremy Paul Kagan), de 1991.

JN - Certo. Ia pegar um trabalho nesse filme, não lembro por que não aconteceu... O filme que eu estava tentado lembrar é Montanhas da lua, dirigido pelo Bob Rafelson. Desculpe, o nome dele simplesmente escapou da minha mente. Muito, muito interessante. E eu teria que dizer um diretor muito

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difícil de se trabalhar junto. Ele era alguém para quem você trabalha, não com quem você trabalha. E o Alan estava acostumado a trabalhar com pessoas. Então acho que talvez para ele tenha sido uma situação mais difícil, por um lado. Por outro lado, o filme era instigante, maravilhoso, caro, histórico, épico. E o Alan e eu passamos montes, montes e mais montes de tempo conversando sobre ele. O que achávamos que poderia ter sido feito de maneira diferente, as virtudes do filme, a forma como foi feito... Naquele filme, que se passava na África e foi rodado em locação em várias cenas, havia muitos sons originais disponíveis, o que as pessoas pensariam como efeitos sonoros. E decidir se aqueles sons deveriam estar no portfólio de efeitos sonoros ou não, se deveriam estar no meu portfólio pois eles naturalmente vinham a 6 mm de distância, diretamente conectados ao diálogo ou se deviam ir para algum outro lugar. Isso resultou num monte de conversas. Francamente acho que foi um dos filmes mais bonitos em que eu trabalhei. Filme bonito, atuações bem incomuns e, de fato, uma história surpreendente. Então eu lembro de ser um filme em que eu gostei de trabalhar com o Alan, se ele gostou eu não sei. De fato, eu lembro de uma batalha de que eu estava te falando na sala de mixagem acontecendo em cada filme. Nesse filme aconteceu no primeiro dia, a partir do momento em que começou. E eu lembro que todo mundo na sala de mixagem estava lá tentando destacar as virtudes dos sons em que cada um estava trabalhando. A música, o diálogo, os efeitos sonoros, os efeitos sonoros de foley, o que fosse. Todo mundo achava que tinha a resposta. Bob Rafelson era muito diferente de qualquer outro diretor com que trabalhei. Ele disse: “Basicamente, fiquem quietos”. E diferente de qualquer outro diretor com quem trabalhei, ele disse: “Não quero ouvir qualquer discussão sobre isso e quero que vocês toquem cada área genérica para mim do começo ao fim para esse primeiro rolo. E um rolo naquela época tinha dez minutos, porque era em película. Então ele disse “Ok, toquem o diálogo. Só ele. Do começo ao fim”. Você jamais ouviria isso. Normalmente, todo mundo na mixagem está tentando tocar tudo e os mixadores tentando fazer escolhas. Em geral eles não têm o tempo para fazer o que o Rafelson estava dizendo. Quando acabou o diálogo ele pediu para tocar a música do começo ao fim. Aí efeitos sonoros e depois foley, que nunca é tocado assim. Ao fim de todas essas

341 passagens de som, ele se virou e todo mundo estava boquiaberto, quase perguntando o que deveria ser feito. Ele simplesmente levantou a mão e disse “Isso é o que faremos” e ele apresentou seu plano por medidas. Esqueci o que ele disse exatamente, mas era algo como: “De 3,5 metros, que é o começo do rolo, até 18 metros quero música. Aos 18 metros quero efeitos sonoros de foley. E ele distribuiu com exatidão até o fim do rolo. E não levou muito tempo nisso. Ele disse que estaria de volta, acho que em meia hora e espero que vocês toquem o rolo para mim (risos). E saiu. E todo mundo na sala ficou pasmo. “O que foi aquilo!?”. Eu estava tanto intimidado quando impressionado. E essas pessoas que estavam habituadas a disputar entre elas, só se sentaram em silêncio. Os mixadores fizeram o que ele lhes pediu. Ele voltou em uma hora, tocamos o rolo todo para ele e soou fantástico! Tenho que admitir que abriu meus olhos. Nem digo que no fim nada mudou, mas impressionou. E fez com que um grupo inteiro de pessoas, que era bem grande, estivesse todo na mesma página muito rápido. E o resultado tinha um clima belo, sedutor e exótico. Então ele fez do seu jeito o que o David Lynch podia fazer com uma personalidade completamente diferente. O David Lynch sentava com as pessoas, ele queria falar a respeito daquilo. Ele se sentia conectado às pessoas, ao filme. O Bob Rafelson entrava e passava o mínimo de tempo possível na sala de mixagem, mas ele comunicava exatamente o que ele precisava. E a meta do David Lynch era conseguir exatamente o que ele queria. Eles só abordavam a questão de formas completamente diferentes. FP - E funcionava. E sabia o que estava fazendo, de alguma forma.

JN - Ele sabia mesmo. FP - O tempo todo? Era sempre assim?

JN - Bem, não era sempre assim do começo ao fim da mixagem. As pessoas na mixagem rapidamente se adaptaram à maneira com que ele queria trabalhar, o que era diferente da maioria dos diretores com quem tinham trabalhado. Mas ele certamente ganhou a atenção deles em termos de... “meu gosto é que vai ser atendido aqui e eu não me importo se você quer um Oscar, não me importo quanto estão te pagando ou em quais faculdades se

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formaram; seu trabalho é fazer isso soar do jeito que eu quero que soe”. Ele não estava chutando. Essa é a coisa mais maravilhosa, de certa forma. Ele foi a primeira pessoa para quem trabalhei e ele não estava chutando de forma alguma. Mas David Lynch... Não é que ele estivesse chutando, ele estava investigando. O que ele fez com aquela peça de música em Coração selvagem foi a mais surpreendente investigação do que alguém poderia fazer. Bob Rafelson se lixava para investigação, ele queria chegar aonde ele queria chegar. FP - Já estava tudo na mente dele.

JN - Sim, sim. FP - E dos outros filmes, sem Lynch, te ocorre algum tipo de contraponto de efeitos sonoros do tipo que estou buscando? Alguma cena que te venha à mente?

JN - Bem, A insustentável leveza do ser seria um ótimo lugar para procurar – que é um filme do Phil Kaufman. Até onde eu sei, o Alan estava cuidando da música nesse filme, Walter Murch fazendo a edição do filme e contribuindo diretamente na música. A insustentável leveza (A insustentável leveza do ser, The unbearable lightness of being, EUA, 1988, de Philip Kaufman) para som foi maravilhoso. Não sei se você já viu Conflitos no inverno. Um filme muito imprevisivelmente bom e que envolvia um monte de sons incomuns. Na verdade, há alguns sons óbvios, um urso assustado num certo ponto. Mas os sons de inverno e os sons de relógios eram as coisas instigantes. Porque o protagonista era um relojoeiro. FP - Eu não consegui notar nenhum contraponto sonoro no filme. Você certamente sabe que os efeitos sonoros usados são completamente diferentes do que estamos vendo, mas não consegui notar nada estranho naquele filme.

JN - Que tal Duna (Dune, EUA, 1984)? FP - Mas é um filme do Lynch.

343 JN - Certo. E Os lobos nunca choram (Never cry wolf, EUA, 1983) era do Carroll Ballard. Não acho que A costa do mosquito (The mosquito coast, EUA, 1986, de Peter Weir) tinha nada como o que você está buscando. A Insustentável leveza pode muito bem ter, porque entre outras coisas, envolvia guerra, envolvia amor... Não sei, tenho que voltar (aos filmes). Por sinal, Os safados (Dirty rotten scoundrels, EUA, 1988, de Frank Oz) é uma lembrança absolutamente deliciosa. Cada parte da experiência e o filme para mim foram deliciosos. Acho que o Alan sentia o mesmo. Um morto muito louco (Weekend at Bernie's, EUA, 1989, de Ted Kotcheff)... (risos). Muito engraçado, mas contraponto acho que não. FP - Ainda tenho alguns dos filmes para assistir e é por isso que pergunto. Mas sem problema se não lembrar.

JN - Eu lembro dos filmes. Mas a coisa engraçada é que um bocado desses filmes eu não assisti nas suas versões definitivas. Ao menos não retive uma lembrança fixa de suas versões definitivas, porque trabalhei neles por tanto tempo que, quando terminei a última coisa que eu queria era voltar e olhar para eles. Porque os tinha olhado por meses. Então eu queria ver algo mais. FP - Não se preocupe, sem problema. Tem cenas que são tão notáveis. Cenas do Lynch. Por exemplo, ele cria cenas estranhas. Algo que todo mundo lembra das formigas (de Veludo azul).

JN - Bem, essa era a intenção. Não havia nenhum outro propósito que não ser surpreendente e memorável. FP - Sim, exatamente. Se não te ocorre, provavelmente não tem. Mas tem vários outros aspectos interessantes para se observar. Provavelmente não algo assim.

JN - Você precisa de alguém com o David Lynch, acostumado a fazer filmes incomuns. Uma história real (The straight story, França/Reino Unido/EUA, 1999) foi umas das experiências mais bizarras que já tive. Assistir a um filme de alguém que eu conhecia. Não trabalhei em Uma história real, mas quando vi pareceu muito simples e efetivo. E ao mesmo tempo ele usou as mesmas técnicas que ele usa em seus filmes mais incomuns. Mas eram as mesmas

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técnicas, o resultado final era diferente. Cidade dos sonhos (Mulholland Dr., França/EUA, 2000, de Lynch) é um dos meus filmes favoritos. Você precisa de alguém como o David Lynch para te dar a oportunidade, alguém como o David Lynch que quer criar algo diferente, incomum. Não necessariamente assustador. Incomum, imprevisível, comparado a outras pessoas como Ted Kotcheff, que dirigiu Um morto muito louco, que queria algo muito previsível. Ele estava fazendo comédia. Ele não estava inventando comédia, estava só fazendo comédia. Conflitos no inverno também foi dirigido pelo Ted Kotcheff. Ali ele não estava fazendo comédia, estava fazendo drama, abordando o filme enquanto drama. Passado num ambiente atípico, mas drama. A costa do mosquito... Não trabalhei em A costa do mosquito, estava trabalhando em outro filme mais adiante no corredor. Mas a Ann (Kroeber) pode te contar muito sobre A costa do mosquito. Tenho a sensação que muita emoção foi colocada naquele filme. É sobre um homem que supostamente está perdendo a cabeça, então o cenário é montado para que as coisas sejam incomuns. Mas não lembro claramente disso. FP - Não se preocupe, vou ter que assistir todos eles cuidadosamente, especialmente ouvir todos esses filmes cuidadosamente, de forma que eu possa pegar alguns exemplos se eles estiverem ali.

JN - Sei que você está fazendo uma pesquisa sobre Veludo azul, mas não seria uma má ideia conversar com alguém como Phil Kaufman, que passou tempo com o Alan, particularmente passou tempo trabalhando com ele em música, para ter uma impressão de quem o Alan era e como ele trabalhava. E o Phil é uma pessoa muito agradável, não sei se ele é difícil de contatar ou não. Eu o vi um ano atrás, ele está bem feliz, ótimo. FP - Vou ver se consigo contatá-lo de alguma forma, poderia ser interessante um segundo diretor. O Carroll Ballard está vivo?

JN - Ah, sim. Até onde eu sei no momento não fazendo filmes, então provavelmente ele quer fazer um filme. Na última vez que o vi, que foi um ano e meio atrás, ele se descreveu como sendo um fazendeiro. Ele agora é dono de vinícolas no Vale do Napa e aparentemente muito bem-sucedido.

345 Conhecendo o Carroll, surpresa nenhuma que seja bem-sucedido. Ele provavelmente adoraria conversar sobre o Alan. FP - Bom saber. Vou tentar fazer isso. É uma pena o Lynch, de qualquer forma. Claro que ele seria uma fonte de informação essencial também, mas estou muito feliz com tudo que vocês estão me proporcionando. Vocês estão me ajudando como que num quebra-cabeça, como que eu vou juntando as peças e conseguindo...

JN - Até um certo ponto de como é recuperar memórias, conferi Eraserhead (EUA, 1977, de Lynch) aqui, pois eu não lembrava a aparência das cópias. E ali estavam os efeitos sonoros do David Lynch. “Ok, vamos lá. Lá está o homem bem no começo (de sua carreira) com suas mãos nos efeitos sonoros. E o sangue do Alan também, sons de locações e efeitos sonoros. Então os dois juntos trabalhando num filme do David. Compartilhando a responsabilidade e também o prazer dos efeitos sonoros. Acho que isso é o âmago da conexão deles. FP - Todas aquelas semanas na garagem gravando e editando sons como eles fizeram. Criando sons como ventos e canos e o que quer que eles usaram para criar aqueles ventos e sons industriais.

JN - Acredito que você tenha falado com a Ann. E que ela falou das cinzas do Alan. FP - O que do Alan? Desculpe.

JN - Suas cinzas. Sabe, depois da cremação. FP - Não, ela não mencionou isso.

JN - Bem, talvez... Você deveria perguntar a ela. Não vou fazer isso antes da Ann. Porque se ela pretende que seja algo privado, vai ser privado. Mas há uma boa história ali. Que se aplica diretamente ao que você está fazendo. FP - Está certo. Vou perguntar a ela. Tenho que contatá-la e dar algum tipo de retorno após nossas entrevistas. Também estou trocando e-mails com o alemão Frank Behnke.

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JN - Nunca o conheci. FP - Ela me sugeriu você, Rob Fruchtman e o Frank.

JN - Frank Eulner? FP - Não, um alemão. Ele era estagiário na época (da produção de Veludo azul). Ela também tentou Frank Eulner, mas acho que ela não conseguiu contatá-lo ou ele não estava disponível, não sei ao certo. Vou perguntar a ela a respeito das cinzas, pode ter certeza. Deixe-me só ver o que mais. Você mencionou tecnologia digital. Com base no que eu pude procurar e encontrar, o Alan só trabalhou em Sol nascente (Rising sun, EUA, 1993, de Philip Kaufman) com tecnologia digital. Antes disso, parece que não.

JN - Não sei se isso é exatamente verdade. Mas a pessoa que certamente saberia é o Frank Eulner, que ficava na sala (de mixagem) com ele. Estou tentando pensar... Ele tinha um teclado... É louco para mim lembrar casualmente quando eu não consigo lembrar de verdade. O Frank saberia. Eu acho que ele tinha um Kurzweil. Não tenho certeza. FP - Essa é a marca, a marca do teclado, certo? O fabricante?

JN - Certo, certo, era o fabricante. Mas não era só um teclado, era como um processador de computador. E exatamente como o Alan fazia ou que fazia... Eu sei que de fato ele saía muitas e muitas vezes a campo com Nagras e microfones múltiplos, gravava sons originais usando o melhor equipamento possível na época, mas em termos de como ele gerava efeitos sonoros em camadas na sala dele... Porque eu não estava na sala. Eu acho que ele usava um sintetizador Kurzweil. Para parte do seu trabalho, não sei se foi necessariamente isso. FP - Essa seria a parte em que ele distorcia sons capturados antes?

JN - Podia ser. Podiam ser diferentes afinações, por isso ele usava um teclado. Você podia usar um software, você podia mesclar não apenas duas afinações, mas sons distintos. Então você podia ter dois ou três ventos, cada um numa nota e então ele os espremia e os tocava. Não sei se era necessariamente automatizado tampouco. Se não era, cada take era um

347 caso único. Se era, você provavelmente podia voltar e alterá-los. Não sei dele usando Pro Tools, nem nenhuma das ferramentas mais recentes. FP - Você acha que essas ferramentas mais modernas afetariam a forma dele de trabalhar, a qualidade, o processo criativo do trabalho dele? Acha que isso seria relevante?

JN - Gosto de acreditar que não. As ferramentas digitais permitem que você tenha um certo poder, um poder significativo que não existia antes. Um desses poderes é que elas permitem que você lide com quantidades vastamente maiores de som e a habilidade de armazenar e selecionar entre os sons, diferente de qualquer coisa que existia nos dias da película. Se você tinha 100 horas de efeitos sonoros de cinema, está falando numa quantidade muito grande de rolos, que poderia tomar uma parede inteira, talvez paredes inteiras e muito tempo para serem tocá-los. Você pode vencer 100 horas de efeitos sonoros muito rápido. Pode armazená-los com muita facilidade. Mas acho que a diferença com o Alan é que ele tinha uma forma de estar além da tecnologia. Ele tinha uma forma de manipular usando qual fosse a ferramenta que tivesse e entender o impacto emocional do que tinha acabado de acontecer. E se fosse o impacto emocional que ele queria, então era aquilo. Se não fosse, ele tentava algo mais. E a ferramenta era uma forma de alcançar isso, era só uma ferramenta. Gosto de pensar que, para ele, usar qualquer forma de tecnologia digital atual teria sido só uma ferramenta. Não é incomum pensar que quando ele usava um teclado – não era a única coisa que ele usava, mas ele usava – era como tocar música. Para ele era um tipo de música que ele podia criar. Ele fazia do teclado uma ferramenta. É o que, como efeito, o teclado do piano é, uma ferramenta. Nesse sentido ele era bem diferente de muita gente na Lucas Film, no Skywalker (Ranch) que ou trabalhava para ele ou foi exposta a pessoas que trabalharam para ele, os sons que ele criava, os filmes em que ele trabalhou, que faz coisas de certa forma parecidas ou ao menos ensejam fazer coisas parecias. Essas aspirações não são chocantes. O que o Alan almejava no começo dos anos 70 era um tanto chocante. Se você não tinha dinheiro e queria um efeito sonoro, ele ia desconsiderar a falta de dinheiro e consegui-lo de qualquer jeito. Ou gravá-lo, sair para gravar, gastar horas gravando, em vez de gastar

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15 dólares num som de carabina pré-existente e acrescentá-lo na edição, o que na época e até certo ponto até hoje é uma abordagem muitas vezes usadas em Hollywood. FP - Quando você fala sobre o tipo de trabalho que ele fazia eu me lembro do (filme) Um tiro na noite (Blow out, EUA, 1981) do Brian de Palma, o John Travolta gravando sons em ambiente externo. Já viu esse filme?

JN - Eu vi, muito tempo atrás (risos). O gravador de efeitos sonoros é o protagonista! FP - Exatamente. E aí ele tem centenas de rolos de som e, mesmo assim, tem que encontrar o som perfeito para o grito da garota no chuveiro. Isso é o que me vem à mente, o John Travolta.

JN - Essa é a delícia particular de se trabalhar particularmente com efeitos sonoros, que a plateia nunca tem a chance de experimentar. Que é a busca pelo som. Porque você não simplesmente senta ali e diz “ok, tenho 10 sons e um deles tem que ser o grito”. Ou seja, você ouve um e diz “este é o grito! Pronto, não preciso ouvir os outros nove”. Não. Você ouve todos os 10 e descobre que cada um é maravilhoso do seu próprio jeito. Então se você pega um de 10 e coloca todos juntos, você está fazendo essa deliciosa investigação dos prazeres dos sons usados de formas diferentes. A parte triste é que no fim geralmente você tem que escolher um. E você diz “ok, acabei de passar duas horas com o material mais maravilhoso e agora minha plateia vai ouvir um. E quero que seja o melhor, mas eles só vão ouvir um”. Você não vai ouvir todo o restante. De fato, esse é o grande prazer de trabalhar com som. FP - Consigo imaginar. A pergunta que eu sempre faço... Sua perspectiva do sound design desde que o Alan nos deixou. O que você vê... o que você ouve em termos de sound design criativo, ou edição de som criativa desde 1994, quando ele nos deixou. Não sei se você conhece alguém que tenha uma clara e declarada influência no trabalho do Alan.

JN - Bem, eu passo a maior parte do tempo vivendo no norte da Califórnia, não em Los Angeles. Não estou trabalhando em Los Angeles no momento. A

349 maior parte dessas pessoas eu não conheço, não sou exposto a elas como indivíduos. Eu vejo os filmes. E previsivelmente eu tendo a achar muito do esforço de criar ou ao menos o resultado final de criação de efeitos sonoros um tanto desapontador, previsível. A coisa mais agradável de trabalhar com o Alan é que era imprevisível. Não necessariamente estranho, mas imprevisível. Algo que era especial de um jeito especial, em vez de especial de uma forma surpreendente, extrema e arrebatadora. E tendo a pensar que muito das abordagens para efeitos sonoros em Hollywood é como feijões requentados. São cozidos e cozidos de novo, e a mesma ideia cozida de novo. Não vejo... frequentemente o que ouço nos filmes não me faz pensar que houve uma grande investigação que resultou em algo maravilhoso. É só mais som. Um exemplo muito bom – não estou criticando os filmes ou efeitos sonoros – é o que comumente acontece no Oscar, quando um prêmio é dado pelos efeitos sonoros ou mixagem. Geralmente você pode não sem razão caracterizar o vencedor como o filme que tinha a maior quantidade de som ou com mais efeitos sonoros ou os efeitos sonoros mais altos. A Academia é um clube único de pessoas que sabem muito sobre produção de filmes, provavelmente mais que um grupo de tamanho equivalente em qualquer parte do mundo. Mas seus gostos são únicos. Todos ali têm sua própria bagagem em termos do que gostam e não gostam. Eles são verdadeiramente o espectador objetivo sem paixão do filme, estão no exato oposto. Então, como exemplo, quando vi O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, EUA/Canadá, 2005, de Ang Lee) o som era tão fenomenal. Tão bonito que eu não conseguia acreditar. Pensei que aqueles eram alguns dos melhores sons de trilha sonora que eu já tinha ouvido. Tão suaves, tão bem pensados, tão cuidadosamente executados, nada com a intenção de te sobrecarregar. Parceria simples e posso te dizer que não era. Posso praticamente te garantir que fazer aquele som naquele filme deve ter sido algo particularmente difícil. E esse filme não conseguiu qualquer respeito do Oscar em termos de som. Mas para mim se destacou como algo fenomenal. Mais recentemente, um filme muito interessante, que também não se deu bem, foi Ela (Her, EUA, 2013, de Spike Jonze) Achei o som daquele filme inacreditável. Era tão bom que eu literalmente tinha lágrimas nos olhos por causa do som. Porque eles conseguiram alcançar coisas que eu pensei que

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eu jamais conseguiria alcançar. Foi tão maravilhoso. Também adorei o filme enquanto filme, mas o som... uau! Então, tem pessoas aí fora fazendo coisas em som que são realmente fabulosas. Se foram inspiradas pelo Alan ou não é difícil saber. Não acho que ninguém vai trabalhar numa sala de edição pensando que quer ser uma inspiração para alguém. Quando você entra numa sala de edição e se senta, você quer cumprir os prazos. O problema inevitável é: “só temos uma semana!”. Ou duas semanas. Queremos algo interessante. Mas eu acho que para um certo número de pessoas, pessoas ainda trabalhando na Skywalker Sound, o Alan, se não uma inspiração verdadeira, ele foi a pessoa que mostrou o caminho. Ele mostrou que algo poderia ser arte, não só função. Claro, quando ele estava trabalhando em O corcel negro – trabalhei tanto em O corcel negro quanto em Apocalipse now – um era o grande filme, o outro era o pequeno filme, e estávamos trabalhando bem um (filme) do lado do outro. Os dois sendo feitos pela Zoetrope. E o Walter Murch teve um impacto similar, de uma forma diferente. Ele trouxe uma nova forma de compreender o som. Por sinal, se você for ver minha página do IMDb, vai ver que um dos últimos itens que encontrará é que anos atrás trabalhei para uma banda de rock’n’roll chamada Grateful Dead e passei tempo com um de seus músicos líderes, Jerry Garcia, que me ensinou como ouvir música. Ou pelo menos como ele queria que eu ouvisse música. Foi um tipo de revelação, eu nunca ouvia música de fato para tirar os elementos da música. Só ouvi como uma parede de som. O que ele me ensinou, como ele me ensinou a ouvir sons era exatamente a forma com que o Alan ensinava pessoas a ouvir o som. E exatamente o mesmo jeito que o Walter Murch ensinava as pessoas. Que era investigar os elementos, encontrar a conexão emocional e, o mais importante, tentar. E aí, não ir longe demais, evitar. É muito fácil ir longe demais. De qualquer modo, espero que eu tenha te ajudado. FP - Sim, ajudou. Definitivamente. Definitivamente. John, muito, muito obrigado. É um prazer falar com todos vocês. Vocês conhecem a mágica. Nós não, deste lado da tela. É sempre surpreendente, sempre fascinante saber essas histórias, essas técnicas. As conversas que vocês tinham. Simplesmente fantástico. Fico muito, muito grato.

351 RICHARD HYMNS (Entrevista 2016 f)

O inglês Richard Hymns começou a trabalhar aos 16 anos nos Elstree Studios, em Londres, servindo chá para a equipe de edição, com que passou a atuar como editor aprendiz logo depois. Foi pela edição de som que ele se estabilizou profissionalmente a partir dos anos 1970, em especial após sua mudança para os Estados Unidos, no final daquela década. Sua associação com as produções da Skywalker Sound, de George Lucas, rendeu filmes de grande repercussão. Entre seus filmes mais conhecidos estão Os eleitos (The right stuff, EUA, 1983), de Philip Kaufman, Indiana Jones e o templo da perdição (Indiana Jones and the temple of doom, EUA, 1984), de Steven Spielberg, Willow - Na terra da magia (Willow, EUA/Nova Zelândia/Reino Unido, 1988), de Ron Howard, O exterminador do futuro 2: O julgamento final (Terminator 2: Judgment day, EUA/França, 1991), de James Cameron, Quiz show (EUA, 1994), de Robert Redford, Jumanji (EUA, 1995), de Joe Johnston, Clube da luta (Fight club, EUA/Alemanha, 1999), de David Fincher, A.I.: Inteligência artificial (A.I. Artificial intelligence, EUA, 2001) e Minority Report: A nova lei (Minority report, EUA, 2002) e Lincoln (EUA/Índia, 2012), os três últimos de Spielberg. De nove indicações, o editor venceu três vezes o prêmio Oscar de edição de efeitos sonoros em filmes de Spielberg, um dividido em 1990 com Ben Burtt, Indiana Jones e a última cruzada (Indiana Jones and the last crusade, EUA, 1989), e dois divididos com Gary Rydstrom, Jurassic Park (EUA, 1993) em 1994 e O Resgate do Soldado Ryan (, EUA, 1998), em 1999. Embora tenha trabalhado com diretores como Francis Ford Coppola, James Cameron, David Fincher, Ang Lee, Tim Burton, Ron Howard, George Lucas, Chris Columbus, Tony Richardson, Alan Parker, Philip Kaufman e Kevin Smith, sua parceria mais recorrente é com Steven Spielberg. Trabalhou com Splet em Sinal de perigo (Warning sign, EUA, 1985), de Hal Barwood, A costa do mosquito (The mosquito coast, EUA, 1986), de Peter Weir, e A insustentável leveza do ser (The unbearable lightness of being, EUA, 1988), de Philip Kaufman, e com Lynch também em Coração selvagem (Wild at heart, EUA, 1990). Em Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986) atuou como editor de efeitos sonoros.

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Entrevista concedida em 15 de março de 2016.

FABIANO PEREIRA - Sobre a sua página no site IMDb, ela está correta e atualizada? RICHARD HYMNS - Não completamente. O Bom gigante amigo (The BFG, Reino Unido/Canadá/EUA, 2016, de Steven Spielberg) está no topo da lista, certo?

FP - Deixe-me ver. RH - Não, tudo bem. É o filme em que eu estou trabalhando atualmente. Está atualizada.

FP - Sim. O bom gigante amigo, certo? RH - Sim, estou trabalhando atualmente nele.

FP - Tem Ready player one (ainda sem título em português, EUA, 2018, também de Spielberg) acima dele. RH - Verdade? Já colocaram esse lá? Ainda deve levar uns seis meses (para começar). Esse vai ser grande.

FP - Gostaria de dizer que a sua filmografia é impressionante. Adoro Clube da luta, adoro vários dos seus filmes aqui (listados no site; risos de Richard). É uma vergonha eu ainda não ter assistido a alguns dos óbvios. De qualquer forma, é notável. Estou contente mesmo por ter uma chance de conversar contigo. RH - Obrigado. Vou só tentar melhorar a iluminação aqui, está muito seco por algum motivo esta manhã (risos). É o primeiro dia ensolarado que temos por um bom tempo. Vou ver se não me queimo tanto. OK, pronto.

FP - Ótimo. Você está em Los Angeles? RH - Não, São Francisco. No Skywalker Ranch, as instalações do George Lucas.

353 FP - Você trabalha para essa companhia? RH - Sim, tecnicamente pode-se dizer que sim. Eu sou meio que um freelancer. Faço um filme, aí sou demitido e contratado para um outro filme e demitido de novo. Mas, sim, não tenho trabalhado em outro lugar faz um tempão, então você pode dizer que eu sou o mais próximo que há de um funcionário como um editor. Vou fazer 69 anos em dois meses, vou tentar fazer um filme por ano agora (risos).

FP - Qual era seu ritmo anterior? Em quantos filmes você trabalhava por ano em média? RH - Quando comecei na Inglaterra nos anos 60, você sabe, como a maioria das pessoas, estava tentando pagar as contas. Era difícil, então tinha que fazer muitos. Lá pelos meados dos meus 20 anos evoluí e comecei a fazer um pouco menos. Aí mudei para a Califórnia com cerca de 30 anos e desacelerei bastante, tentei fazer um filme por ano, um dos grandes. Prefiro fazer os filmes do Steven Spielberg exclusivamente no momento. É muito bem organizado.

FP - Você é de Londres? RH - Sim, nascido e criado em Londres. Na verdade, não nasci em Londres, nasci na região das Midlands e me mudei quando tinha cerca de dois anos, então essencialmente não sou um cara tão de Londres assim.

FP - Entendi. Tudo bem se eu começar com as perguntas? Você fica livre para falar e complementar, então tudo bem. RH - Sim, sim.

FP - Quais são suas experiências profissionais próprias mais criativas com som de cinema e por quê? Quais você considera as mais notáveis? RH - Para mim os mais notáveis são provavelmente O resgate do Soldado Ryan, Clube da luta... Essas são as duas trilhas sonoras mais comerciais e espetaculares. Gosto muito de Cortina de fogo (Backdraft, EUA, 1991, de Ron Howard) muito embora seja um filme terrível (risos). As sequências de fogo se destacam como mixagem de som excepcionalmente boa. A edição foi

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muito desafiadora e eu gosto disso. Para voltar à pergunta original, do e-mail que me enviou, o Alan Splet foi uma influência muito grande para mim. Trabalhei com ele. O primeiro filme em que fui contratado (para trabalhar com Splet) foi um filme chamado Sinal de Perigo, que inicialmente era chamado de Biohazard, que era um pequeno filme de horror, de orçamento muito, muito baixo. Não sei ao certo por que o Alan fez parte, claramente ele estava sem grana. Claramente ele não era normalmente atraído por esse tipo de assunto. Seja lá por qual razão ele decidiu fazê-lo. Por ser baixo orçamento, ele precisava de um editor realmente ligeiro e eu era um editor de efeitos sonoros muito rápido. Naquela época (risos). Era cinema e eu tinha outras experiências com cinema. Então me contrataram. Eu nunca tinha tido ninguém me pedindo o que eles me pediram para fazer. Os detalhes. Então aprendi muito mesmo com o Alan, realmente aprendi muito com o Alan. Aí fizemos Veludo azul, e então acho que A insustentável leveza do ser...

FP - Nesse filme o Alan foi o editor de música e o Walter Murch o sound designer, certo? Se não me engano. RH - Acho que o Alan era o supervisor dos editores de som. Ele sempre preferia esse termo, ele não gostava muito de “sound designer”. Ele sempre se auto-intitulava supervisor dos editores de som, que é o jeito antigo de se fazer as coisas. Acho que o Walter estava envolvido com o som, mas me parece que havia algum tipo de batalha ali. Eu não estava muito envolvido no fim. O Alan e eu tivemos um tipo de estranhamento naquele filme. Na verdade, acho que o Alan teve um estranhamento comigo porque me ofereceram um emprego no Skywalker como supervisor dos editores de som em Willow – Na terra da magia, com o Ben Burtt, e é claro que aceitei, era uma oportunidade de ouro. Nunca me arrependi, mas o Alan ficou muito bravo comigo. O que era bem lisonjeiro ele bravo comigo. Também era triste não o ter ao meu lado. Ele era um cara ótimo. Então eu saí antes do fim de A insustentável leveza do ser. Não sei o que estava acontecendo. Quando eu voltei para mixar meu rolo, meu último rolo com o Walter, o Alan não estava lá, O Walter fez num fim de semana. Foi uma experiência estranha (risos).

355 FP - Entre eles? Entre os dois? O Alan e o Walter tendo algum tipo de desentendimento para trabalharem juntos? RH - Não sei se houve desentendimentos, mas ambos eram pessoas fortes de som que tinham suas próprias opiniões. Acho que foi um tanto difícil para o Alan. Não acho que tenha sido uma situação de ódio, acho que havia algum tipo de diferença de opiniões ali.

FP - Certo. Ótimo. Então os seus três Oscars são por... deixe-me só checar aqui... O resgate do Soldado Ryan, o Jurassic Park original e o terceiro foi Cortina de fogo... RH - Não, não. Foi por Indiana Jones e a última cruzada.

FP - Certo, me desculpe. Três Oscars! Como é a sensação disso? RH - Louca. Louca. Sou um cara que tem muito baixa autoestima, o que eu acho que é essencial para estar lutando o tempo todo, para conseguir fazer render o melhor trabalho de você mesmo. Acho que o primeiro eu entendi que foi porque eu estava trabalhando com o Ben Burtt. O segundo porque eu estava trabalhando com o Gary Rydstrom. No terceiro eu pensei: bem, devo estar fazendo algo certo (risos). Se eu só trabalhar com o Steven Spielberg, porque são todos do Steven Spielberg... Talvez seja ele, não sei. Estou sempre procurando por uma desculpa para não me elogiar por conta disso. É porque já foram nove indicações ou algo assim, então meio que percebi que eu devo ter alguma ajuda.

FP - Provavelmente (risos). É bem bobo perguntar isso, mas, de qualquer forma, como isso te ajudou com oportunidades profissionais? RH - Não estou certo se ajudou. É muito difícil saber. Tem um ditado que diz que, se você ganha um Oscar, você não vai conseguir outro trabalho por doze meses. É um tanto como a minha experiência. Não é como se você ganhasse o Oscar e – bum! – o telefone não para de tocar com ofertas de trabalho. Bem pelo contrário. Parece que você morreu.

FP - Por que isso?

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RH - Eu não sei (risos). Pode ser um mito, mas é assim que se sente. Certamente nunca me aconteceu de alguém dizer que eu acabei de ganhar um Oscar e queremos que faça nosso filme. Nunca foi assim para mim. Mas sempre foi associado ao Ben ou ao Gary ou alguém mais. Então não costumo ser a pessoa de quem se aproximam para contratar, de qualquer forma. Consigo meus trabalhos de pessoas que gostam do Steven ou o Robert Redford, que são clientes satisfeitos que voltam. Ou estou trabalhando com o Gary ou Ben ou Alan, sempre recai em quem que eu vou culpar pelo meu próprio trabalho, basicamente (risos).

FP - Eles sempre te chamam, seus parceiros de trabalho anteriores, certo? RH - Sim.

FP - Provavelmente, vamos dizer apenas provavelmente, você fez algo muito certo, não? Para continuar sendo chamado. RH - Sim.

FP - Você disse que foi uma experiência única trabalhar com o Alan. Como que era no dia-a-dia? Ele era acessível? Ele te deixava fazer seu trabalho por conta própria? Como era trabalhar com ele? RH - Sim. Ele não era assim tão acessível, no sentido que ele realmente gostava de editar por conta própria, gostava de ser a máquina que fazia o trabalho. Ele se sentava comigo, nós rodávamos o rolo e ele me dizia o que queria fazer no rolo de 34 mm de dez minutos. Eles vinham em rolos de 305 metros. Ele pegava um segmento de 10 minutos do filme e me dava a lista de coisas que ele queria que eu fizesse. Ele me indicava algumas das coisas que eram muito importantes para ele e me dava detalhes muito específicos. E aí ele me dava o material, fazia listas dos materiais. Então era muito legal, no sentido que eu sempre tinha rolos de filme magnético com as partes que ele queria editadas, então era muito legal. Não sou de fato um sound designer no sentido que eu não gosto muito de gravar. Gosto de pilotar veículos e ser gravado por alguém mais. Pilotar é o meu barato. Cenas de carros são meio que o que fez meu nome, embora eu esteja muito cansado disso, ou deveria estar. Eu não estava realmente, dramaticamente envolvido nas gravações.

357 Eu realmente não gosto de pesquisar em bibliotecas por um efeito sonoro. Adoro trabalhar com o Gary ou o Ben, com esses caras dizendo “isso é o que precisamos”. Porque o meu lance é edição. Adoro sincronizar sons em imagens selecionadas de forma que você, eu ou quem quer que seja acredite que aqueles eram os sons na trilha quando aconteceram, porque são tão realistas que eles não pensam a respeito. Para mim, quando as pessoas se vêem numa situação em que dizem “nossa, o som era mesmo impressionante naquele filme!”, então eu meio que fracassei. O que eu realmente gosto é ir ver um filme e realmente acreditar que era como aquilo soava numa guerra, no Soldado Ryan, ou que aquilo era como os dinossauros soavam quando rodaram a cena. Só quero que as pessoas estejam inconscientes do que eu faço. Isso é o maior elogio para mim. É assim comigo, se vou ao cinema e começo a notar o som, eu imediatamente não fico feliz (risos). Sou como uma criança. Quando vou ao cinema, quero só estar envolvido pelo filme, não ser tirado dele pela música ou o som ou os efeitos visuais ou qualquer coisa. Se eu vejo um filme e me esqueço do que fazemos de todas as formas, esse é um filme muito bem-sucedido. Adoro garantir que eu assista àquilo e não pare nem por um segundo para pensar no que eles estavam fazendo. O regresso (The revenant, EUA/Hong Kong/Taiwan/Canadá, 2015, de Alejandro G. Iñárritu)? Do momento que começou eu pensei “ah, eles estão realmente experimentando com a trilha sonora” (risos). Tinha coisa demais! Muita sonoridade, bom em excesso, sabe?

FP - Você consegue lembrar como o sound design daquelas três cenas (de Veludo azul)... não sei se lembra das três cenas que eu mencionei. A cena dos insetos... Tem uma cena em que Jeffrey tem um pesadelo e só sabemos que é um pesadelo ao fim da cena. Tem uma vela acesa, um close-up dos lábios vermelhos da Isabella e Dennis Hopper aparece brevemente e seu grito é distorcido. E aí tem uma outra cena mais para frente em que o Jeffrey e a Dorothy estão na cama e ela pede a ele que bata nela, ele se recusa a princípio, fala de polícia, ele a estapeia... De novo existe uma vela acesa e todos os sons estão distorcidos. O exato oposto do que você gosta (risos). Você claramente vê que eles estão experimentando com som. Naquelas três

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cenas, porque o que eu estou tentando estudar é exatamente esse trabalho em camadas e algum tipo de contraponto de um dos efeitos sonoros. É o que eu gostaria de focar nesta pesquisa, mas, de qualquer forma, você pode mencionar qualquer coisa que julgar interessante. Considerando essas três cenas, você lembra de como elas foram criadas e indicar se há outros momentos do filme a que eu devia prestar atenção em termos de contraponto de efeitos sonoros? RH - Faz tempo que não vejo o filme. Eu provavelmente lembraria de algo assim, deveria ter dado uma olhada. Mas no final eu não estava envolvido, o Alan fez isso. Foi tremendamente eficaz. Imagine aquela cena sem aquele som nela. Estamos falando sobre a parte corrompida dessa pequena e pacata cidade. Aquele som, abaixo da grama, realmente capturou aquilo. Acho que foi mesmo brilhante o que ele fez com aquilo, muito “Alan”.

FP - Se me permite um rápido comentário, para mim foi só uma questão de volume. Era realista considerando o que vemos, os insetos, mas era como que um microfone realmente próximo a eles, completamente real. Claro que eu estou completamente equivocado (risos de Richard), mas do que se espera da cena, para mim funcionou à perfeição. RH - Sim, absolutamente. E a mesma coisa com o sonho. Não me lembro do sonho especificamente, mas de fato eu lembro do grito sendo distorcido e todo aquele tipo de coisa que é muito extremo. O tapa é interessante para mim porque lembro dele distintamente. O Alan me pediu para sair e fazer o tapa. Eu fiz alguns tapas e algumas réguas de madeira na mesa de trabalho da mesma forma que você faz na escola, aquele som da batida, fizemos alguns desses. E aí ele quis algo ainda mais extremo, então pegamos uma abóbora enorme, ficamos batendo nela com as mãos e régua de aço e todo tipo de coisa. E então ele disse que precisava de algo realmente surpreendente e aí o (assistente de edição de som) John Verbeck – que Deus o abençõe –, que foi por muito tempo editor de efeitos e assistente de edição de efeitos do Alan, disse “vocês podem bater no meu ombro aqui”. Ele tirou a camisa e tinha um ombro bem impressionante, era um cara pesado. Então bati nele tão forte quanto eu podia e ele saiu com uma marca horrível de mão. E o Alan – foi tão divertido – nem se deu conta da cara do pobre do

359 John. Disse que estava bem bom, mas para tentar um outro. Então bati nele umas 12 vezes. Suas costas estavam muito vermelhas, vermelhas como uma beterraba. E o Alan no seu estilo habitual, ouviu todos e disse para cortar o número 3, número 7 e número 9. Literalmente escolhendo. Normalmente era um baixo, um médio e um alto. Sabe? É realmente adotar essa construção em camadas em cada aspecto do som. Acho que editei a régua, a abóbora, os três tapas, umas outras coisas como explosões ou algo do tipo e ele misturou todos juntos de forma que ele tivesse o tapa mais espetacular da história, que teria arrancado a cabeça provavelmente. Mas ele queria aquele completo contraste. Ele fazia essas coisas naquele tipo de filme com o David.

FP - As vozes foram meramente distorcidas ou tinha algum tipo de efeito sonoro trabalhado em camadas com elas? RH - Não sei. Não estava tão próximo ao que estava sendo feito. Eu era o cara que sempre editava muito rápido, coisas tradicionais, vale dizer. Em Sinal de perigo tinha uma cena em que aquelas pessoas pegavam um vírus que causava raiva e uma mulher está no seu escritório e derrubam a porta com um machado de incêndio e o Alan (risos) tirou a porta do escritório e construiu uma porta de duas chapas de madeira com parafusos que atravessavam na moldura da porta. Aí ele trouxe microfones FRAP, microfones de contato. Ele gravou do lado de dentro e do lado de fora e aí fez com que John e eu picotássemos a porta. Tinha pedacinhos de madeira pelo escritório pelos cinco anos seguintes. Quando cheguei para ver, ele estava ouvindo o microfone dianteiro dos dois lados e a porta dos dois lados e pegando coisas individualmente, sonoridades individuais que ele achasse que tinha a qualidade que ele buscava. Nunca conheci ninguém com esse nível de detalhe em sua mente. Era fascinante para mim. Ele sabia o que estava pedindo. Ele dizia “este aqui vai ser bom mesmo, no momento em que ele estiver arrebentando tudo e por aí vai”. Não foi só com Veludo azul. Ele tinha aquela atenção a detalhes até nas coisas mais mundanas como destroçar uma porta abaixo. A maioria das pessoas iriam simplesmente pegar um machado de uma biblioteca de efeitos sonoros e ficar felizes de fazer isso. Mas ele queria os pedaços de madeira caindo pela sala e aterrissando no chão, ele queria fragmento, ele queria cada aspecto de destroçar um

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pedaço de madeira ali. O Alan era assim. Tenho quase certeza de que Sinal de perigo não foi um filme de muito sucesso, era um pequeno filme de horror. O Alan estar nele é provavelmente a única razão para pensar nele. Foi dirigido por Hal Barwood, que produziu alguns filmes na ou ligado à Lucas Film também. Acho que foi o único filme que ele dirigiu.

FP - E você lembra de alguma outra cena em Veludo azul a que eu deveria prestar atenção em termos de contraponto de efeitos sonoros? Não consegui perceber, mas você se lembra de algo assim? RH - Estou tentando pensar... Eu lembro que a cena do carro foi muito extrema também e não terrivelmente literal. Havia alguns sons nela que eram realmente perturbadores. Em vez de ser um carro...

FP - Você diz quando o Dennis Hopper e sua gangue levam a Dorothy e o Jeffrey? RH - Sim, sim. Jeffrey e sua namorada. Sim.

FP - Você disse que sons de carro sendo dirigidos são sua especialidade. Eles usaram algum? RH - Não, não. Fiquei meio doente porque o John Verbeck gravou os carros, fiquei bem chateado com isso. Na época achei que eu poderia ter feito uma versão mais realista. Mas quando assisti ao filme no cinema – depois que terminamos, sempre espero uns poucos meses antes de ir ao cinema para ver algo – lembro de ficar impressionado com a perseguição de carro. Não era a abordagem que eu teria adotado, provavelmente por isso não me deram, mas gostei do que o John e o Alan criaram. Tem uma qualidade ali que é perturbadora. Poderia ter sido só uma perseguição de carro, mas tem algo que é muito sombrio e honestamente não consigo imaginar o que. Mas me contaram outras coisas também que eu tinha esquecido. O Alan convenceu a cidade na Carolina do Norte, onde estavam filmando, que um novo trecho de avenida que ainda não havia sido inaugurado seria um bom local para eles gravarem os carros à noite. Quando eles terminaram, toda a entrada da avenida estava coberta de marcas de derrapagem (risos). O John e o Frank (Eulner) disseram que o Alan simplesmente estava focado em

361 conseguir o que ele queria e todo o resto era secundário, não se importava. Um cara realmente engraçado.

FP - Sobre as chamas e como elas ressoam no filme, foi algo que você fez ou eles fizeram? Para ter aquele efeito, tem a ver com como elas ecoam onde eles estão na cena (Jeffrey e Dorothy na cama), é obviamente não naturalista quando acontece. RH - Você diz a vela sendo soprada e todo esse tipo de coisa?

FP - Sim. RH - Não, acho que é só distorção extrema e microfones muito próximos e coisinhas de sound design que o Alan fazia na sua mesinha especial que ninguém sabia de verdade o que ele estava fazendo. Ele ficava lá dentro fazendo aqueles sons. Ele fazia isso. Ele escolhia coisas específicas no filme em que ele trabalhava. Não eram sempre esses tipos de momento, mas ele era muito específico sobre o que ele queria trabalhar. E eu era o cara que fazia o resto (risos).

FP - A distorção e... não sei, como ele distorcia e amplificava os efeitos sonoros, tudo é feito na mixagem? Nunca é antes? RH - Não, acho muito daquilo foi feito antes. O Alan nem sempre mixava suas coisas. Ele tinha mixadores com frequência, como o Walter ou quem quer que seja fazem seus filmes. Mas ele preparava o seu próprio sound design, ele mixava esses em sua própria sala. Elas costumavam ser peças acabadas. Acho que provavelmente... Para ser honesto, conseguir um mixador para produzir algo distorcido como aquilo daria um trabalhão (risos). Percebo que... Fiz também aquele com o Harrison Ford no Caribe... A costa do mosquito (The mosquito coast, EUA, 1986, de Peter Weir). Com o Alan também, me esqueci. Aquilo foi uma loucura! Foi um outro exemplo, não do que você está falando necessariamente. Todas aquelas explosões, quando a (máquina) Fat Boy explode, aquilo foi provavelmente o maior pesadelo que eu já enfrentei. O Alan me deu literalmente 250 explosões e queria que eu escutasse todas elas. E selecionar a melhor de menor alcance, de médio e de longo e colocar cada uma em cada explosão e editá-las todas em

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sincronia. Não sei quantas explosões havia, provavelmente umas 40 explosões. E quando eu as tivesse sincronizadas, queria que eu pesquisasse... Lembro agora de conversar sobre... Isso era na época do filme magnético, quando você não tinha centenas de trilhas para desperdiçar. Tínhamos tantas trilhas para essas explosões! Ficávamos eu e meu assistente numa outra sala resmungando em meio às explosões ao mesmo tempo. Uma vez que elas estivessem cortadas, ele disse que toda vez que uma explosão estivesse começando, ele queria que eu raspasse os últimos dois frames e meio. Para qualquer explosão que acontecesse esse decrescendo. “Simplesmente corte até zero, de modo que intensifique o impacto da explosão chegando”. Foi bem eficaz. Mas, cara, era complicado! Tão complicado conseguir fazer tudo aquilo. Todo mundo e aquela metragem e raspar com navalhas e tudo mais. Foi bem impressionante. De novo, era algo na mente dele que ele queria que só ele sabia (risos). Queria conseguir te dar mais explicações, mas ele não me contava tanto assim mesmo, para ser franco.

FP - Ele estava presente quando o filme foi mixado? Sempre estava presente? Funcionava assim? RH - Sim. E ele era muito... Isto não é crítica, acho que é uma das razões pelas quais ele se mudou para o norte da Califórnia, ele era muito quem estava no comando, o que com os mixadores não é sempre muito fácil. Às vezes é um esforço de equipe, às vezes os mixadores insistem em estar no controle, embora você prepare tudo durante as filmagens e às vezes gente como o Alan ou o Ben Burtt estão no comando do show. Não tem discussão alguma. Mas aí tem gente como o Gary, para quem eu adoro trabalhar, que está tanto no comando do sound design como também mixa o filme, então não há conflito, nós dois sabemos para onde estamos indo desde o começo até o fim. Não tem ninguém até chegar ao estágio de mixagem do Steven. Se ele não gostar de algo, é claro que vamos mudar. Mas por sorte temos estado muito em sincronia ao longo dos anos. Mas o Alan meio que estava no comando do show. Ele e o David, provavelmente como o Gary e o Steven, eram muito alinhados no que queriam.

363 FP - Na sua opinião, quais são os filmes mais notáveis e criativos do Alan não dirigidos pelo Lynch numa perspectiva sonora e por quê? Tenho a filmografia dele aqui, se precisar. RH - Ah, você pode ler alguns para mim. Dos primeiros filmes (do Lynch) eu não eu não sou realmente um fã, O homem elefante (The elephant man, EUA/Reino Unido, 1980), Eraserhead (EUA, 1977). Isso foi um pouco antes de eu estar naquele patamar. Não os entendi. Eu ainda assistia a filmes muito comerciais naquela época (risos).

FP - Experimentais demais? RH - Um pouquinho, para mim na época.

FP - Bem, tem The grandmother (EUA, 1970, de Lynch), Young goodman Brown (EUA, 1972, de Donald Fox), Meanwhile, back at the ranch (EUA, 1976, de Richard Patterson), Eraserhead, Cinzas no paraíso (Days of heaven, EUA, 1978, de Terrence Malick)... RH – Cinzas no paraíso foi um belo filme. Não me lembro bem para comentar sobre a trilha sonora.

FP - Não me lembro de nada como o que eu estou procurando. Talvez algo discreto, como você gosta. O corcel negro (The black stallion, EUA, 1979, de Carroll Ballard)... RH - O corcel negro. Ô, meu Deus, sim. Eu tinha acabado de chegar a São Francisco. Tinha sido contratado em Apocalipse now (EUA, 1979, de Francis Ford Coppola) como aprendiz júnior para ajudar com o documentário. Antes de ser chamado de O apocalipse de um cineasta (Hearts of darkness: A filmmaker's apocalypse, EUA, 1991, de Fax Bahr, e ) ele era chamado de Documentário de Apocalipse now. Estava fazendo só isso. Eu já tinha trabalhado em alguns filmes britânicos substanciais, mas realmente não tinha estado perto de nada daquele tipo. Estava trabalhando nesse lugar com três andares de editores trabalhando em Apocalipse now. Bem louco, 50 pessoas. Estava acostumado a trabalhar em filmes comigo e uma outra pessoa. E na porta seguinte tem O corcel negro e eles têm uma quantidade enorme de pessoas também. Perguntei “O que está

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acontecendo aqui? Muito interessante”. E quando vi O corcel negro meu queixo caiu. Foi sensacional para mim. A beleza daquele filme não era só visual, mas também o som. Os detalhes do cavalo eram incríveis, incríveis. Realmente te faziam sentir o personagem e não é algo fácil de fazer. Um punhado de passos, movimentos de cavalo, um relincho aqui, outro acolá não é o que eu estou dizendo. Tudo ali foi tão belamente gravado. Nunca conheci ninguém que tenha prendido um microfone num cavalo, seus pelos, suas narinas, pegou cada detalhe de um cavalo real. Era algo novo para mim. Eu vim da “Brigada da Casca de Côco” na Inglaterra (risos), que fazia a coisa do Monty Python. O que podia ser eficaz, mas esse era um mundo completamente diferente. Então, sim, fiquei incrivelmente impressionado. Deus, é um filme que ainda me leva às lágrimas, é sensacional.

FP - Aí tem J-Men forever, (EUA, 1979, de Richard Patterson), uma comédia com vários trechos de filmes antigos, O homem elefante, Os lobos nunca choram (Never cry wolf, EUA, 1983), também dirigido pelo (Carroll) Ballard... RH - Sim. Os lobos nunca choram foi um filme em que não trabalhei, mas estive envolvido com algo próximo. Então me lembro deles trabalhando em Santa Selma (Califórnia), onde eu moro, e de novo havia um nível inacreditável de detalhamento, fiquei tão impressionado. Houve mesmo uma janela muito breve no som cinematográfico quando isso estava acontecendo. Acho que começou em Guerra nas estrelas, passou por Apocalipse (now), O corcel negro, Os lobos nunca choram... Talvez em 2010, em algum ponto desse período, numa década ou duas, os estúdios perceberam que a trilha sonora não fazia dinheiro algum a mais para o filme. Sabe, você poderia ter um bom filme com uma trilha terrível e ele faria um monte de dinheiro. Você poderia ter um filme terrível com uma trilha sensacional e ele não faria um tostão. E se você tivesse um bom filme com uma trilha boa, ele não renderia dinheiro algum a mais de fato do que se tivesse uma trilha terrível. Então os orçamentos foram muito reduzidos nessa época e ainda são hoje. As pessoas gostam de som, mas a menos que seja algo com uma direção poderosa – pensemos no Spielberg, que insiste em ter um ótimo som –, não vão te dar um orçamento muito bom para fazê-lo. E para fazê-lo com um orçamento baixo, tem que ser como para mim foi um filme de iatismo

365 estrelado pelo (Robert) Redford que acabei de fazer, que tinha um orçamento bem baixo. Fizemos uma ótima trilha sonora, mas basicamente a fizemos de graça (risos). Eu literalmente fiz mais horas de graça do que as que pelas quais eu fui pago, de longe. Mas é o jeito que tem que ser agora. Foi uma janela bem pequena e o Alan estava nessa janela. Ele era uma pessoa que fazia valer o dinheiro deles. Não havia comportamento supérfluo nos filmes do Alan. Estava tudo na tela, na trilha, tão detalhado. Um cara incrível, incrível. E persistente. Em Os lobos nunca choram eles tiveram uma enchente em Selma, na cidade inteira. Todas gravações em filme de 35 mm foram cobertas em lama do rio que transbordou. Eles tiveram que limpar cada milímetro de fita com um pano, lavar e secar. Foi insano! É o tipo de coisa que você vira e fala “Deveríamos começar de novo”. Mas eles fizeram tudo aquilo. Simplesmente um suplício incrível. Eles fizeram tudo a mão. Esse era o tipo de cara que o Alan era. Não importava, ele ia fazer direito (risos).

FP - Só alguns outros filmes em que ele trabalhou, muitos não dirigidos pelo Lynch. Sinal de perigo, Broken Rainbow (EUA, 1985, de Victoria Mudd), Veludo azul, A costa do mosquito, A insustentável leveza do ser, Os safados (Dirty Rotten Scoundrels, EUA, 1988, de Frank Oz), Conflitos no inverno (Winter people, EUA, 1989, de Ted Kotcheff), Um morto muito louco (Weekend at Bernie's, EUA, 1989, também de Kotcheff), Sociedade dos poetas mortos (Dead poets society, EUA, 1989, de Peter Weir), Montanhas da lua (Mountains of the moon, EUA, 1990, de Bob Rafelson), Henry & June - Delírios Eróticos (Henry & June, EUA,1990, de Philip Kaufman), Viva! A babá morreu (Don't tell mom the babysitter's dead, EUA, 1991, de Stephen Herek), O último duelo (By the sword, EUA, 1991, de Jeremy Paul Kagan), Wind, (EUA, 1992, de Carroll Ballard) e Sol nascente (Rising sun, EUA, 1993, de Philip Kaufman). Algum desses filmes te vem à mente como algo interessante em termos de som? RH - O Alan deve ter colocado algo interessante em cada um desses filmes. Não vi muitos deles. Mas me lembro de Wind. Wind era outro daqueles filmes em que eu estava no estúdio ao lado, onde trabalhei por muitos anos. Um trabalho lindo, lindo. Quando ele tinha a oportunidade, ele realmente aproveitava. Devo dizer que alguns daqueles filmes são mais usuais, mas ele

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fazia trabalhos lindos. E não é necessariamente aparente, ouvindo a trilha você pode não saber o que ela leva. Mas ele sempre estava fazendo coisas lindas. O David era particularmente propício a ele porque proporcionava tantas oportunidades de fazer coisas diferentes, experimentais, o que você não pode fazer e filmes como Jogue a mamãe do trem (Throw momma from the train, EUA, 1987, de Danny DeVito) ou seja lá o que fosse. Na maior parte do tempo o que fazemos é bem comum e é para isso que nos chamam. Você pode colocar sua marca naquilo, mas não pode chamar muita atenção, como disse. Se não, você meio que erra. Acho que Wind foi um filme particularmente espetacular. A coisa contrastante de que você fala não é necessariamente evidente mesmo nesse tipo de filme para mim. A sobreposição de efeitos sonoros, um pouco menos.

FP - É muito discreto. Não consegui perceber nada desse tipo no filme. Wind especificamente. Então acho que foi muito bem-sucedido da sua perspectiva (risos). Para mim foi muito discreto. RH - Certo. Não para o que você está buscando.

FP - Estou em busca do “erro óbvio”, feito de propósito (risos). Então você não se lembra de nenhum desses filmes tendo contraponto de efeitos sonoros em camada. RH - Não. Eu provavelmente deveria ter assistido a alguns, mas estou no meio de um projeto grande e não consigo, porque tomaria muito tempo. Nada me vem a mente, mas se vier, te mando um e-mail.

FP - Sem problema. RH - Não consigo lembrar muito sobre Veludo azul.

FP - Já são 30 anos, é muito tempo. RH - Sim, mas me lembro de gostar de verdade de trabalhar no filme e do filme em si. Adoro, é tão sombrio. Sou um grande fã desse tipo de coisa. É legal trabalhar com gente que faz as coisas um pouco diferentes. FP - Acredito que o Alan não tenha tido muitas chances de trabalhar com tecnologia digital. Esse tipo de tecnologia afetou o seu trabalho criativo em

367 edição de som e sound design? Ele mudou o sound design de alguma maneira? Se sim, por favor, me diga como em ambos os casos. RH - Sim. Penso que é uma ferramenta antes de mais nada. Mas se você é um editor criativo, realmente não importa se é em filme ou digital. Ainda diz respeito à força criativa, é isso que fazemos. Em vez do equipamento. Tendo dito isso, até um homem da minha idade – que não é (risos) um gênio da computação de forma alguma... Mas, por sorte, embora ainda possam me treinar (na Skywalker Sound), eles tiveram a perspicácia de ver o que estava vindo. Não acho que por conta própria eu teria feito isso. Eu provavelmente teria sido uma das pessoas que não fez a transição. Porque eu não tinha noção do quão rápido as coisas estão mudando. Aprendi a usar e aprendi a gostar do digital. Fui cético no início. Fiz vários filmes em que fiz parte do trabalho em digital e parte em filme, então tive essa experiência de trabalhar com ambos, lado a lado. Por um longo período eu dizia que não estava funcionando de jeito nenhum. E de repente estava. Rapidamente, com o Pro Tools estava funcionando muito bem. É exatamente o que eu fazia, mas é mais rápido. Mas, ao contrário das previsões de que ele faria economizar tempo, o que ele fez foi abrir uma paleta maior e mais oportunidades. Então, na verdade, foi no sentido contrário. Em vez de te limitar a um certo número de faixas, você acaba colocando mais coisas. Muito disso são acidentes felizes. Você coloca algo, toca um som e tem as imagens na tela, toca o som, olha para algo e algo que você toca te lembra de algo mais. “Olha, isso poderia ficar ótimo ali!” É muito mais fácil que com filme para ir rapidamente para outro ponto e colocar o som lá. Outra coisa que acontece comigo muitas vezes é que quando coloco ali não está na sincronia em que eu estava pensando, mas quando toco fica muito... não era assim quando eu era mais jovem, mas estou muito mais atento a onde eu coloco as coisas, não as tiro imediatamente, observo e vejo o que acontece e bem frequentemente eu digo “Uau, olha isso!”. Aleatoriamente, sincronização aleatória. Um novo jeito de dizer algo sobre a cena, não só fazer com que ela informe o que está acontecendo, mas também dar a ela um sabor. É muito divertido dessa forma, eu realmente aprecio isso. Ainda hoje de manhã estava falando para alguém que eu estava trabalhando em algo... Tem uma cena de helicópteros, oito helicópteros, e se fosse colocar oito helicópteros em camada, eles

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soariam como lama. Terrível. Então você precisa usar umas poucas faixas de uma forma que soe como mais helicópteros, mas seja interessante. Não sei, estava tão frustrado com aquilo, que fiquei tenso. Não estava funcionando mesmo! Muito frustrante. E cheguei no dia seguinte e dei uma arrumadinha, já ficou bem diferente. E no outro dia casou bem como passar manteiga num pedaço de pão. Ficou tão suave, tudo aconteceu, um monte de acidentes felizes, as faixas que eu escolhi pareciam funcionar... Terminei rapidinho. No take anterior levou como que 10 horas. Pintar é a mesma coisa. Se eu não estou fluindo quando eu pinto a óleo, eu estrago tudo, fico frustrado. Em vez de ir embora fico cutucando e arruinando a pintura. Aí eu volto no dia seguinte ou na semana seguinte e “Olha, isso é o que eu queria!”. Um processo muito interessante. Isso com o digital é um pouco mais fácil para mim, para jogar com mais coisas e experimentar mais, enlouquecer um pouco às vezes talvez. Tem uma cena neste filme com que eu sei que não posso fazer muito, já tem faixas demais. O Gary (Rysdstrom) vai jogar fora se ele não precisar, então está tudo bem (risos). Você me perguntou sobre o sound design. Acho que o sound design é muito mais fácil no digital. Tantas ferramentas, você pode fazer coisas que eram muito, muito difíceis com filme magnético, obviamente. Os sound designers trabalham praticamente sozinhos agora, os amplificadores disponíveis são extraordinários.

FP - Certo. Você estava falando sobre sound design. Qual é a sua perspectiva de como o sound design evoluiu desde que o Alan nos deixou, especialmente quando praticado num nível mais experimental e artístico? Você já viu filmes que apresentaram algum grau de criatividade em sound design desde que ele se foi em 1994? RH - Eu estive obviamente mais ligado ao lado mais comercial do negócio. Quase não chego perto de trabalhos assim com frequência mesmo. Meu tempo é quase todo gasto com o trabalho. Com a minha idade, tendo a não querer ir ao cinema o dia todo quando já fiquei trabalhando muito (com filmes). Não tenho visto muito, mas de fato eu sei que tem filmes sendo feitos quase que inteiramente em iPhones com o som feito em computadores que são sensacionais. Vi algumas coisas que realmente me deixaram pasmo. Então eu acredito que o cinema deve estar vivo e bem, mais do que nunca.

369 FP - Você conhece algum profissional de edição de som ou sound design que considera o Alan uma inspiração e tem usado sua influência conscientemente e declarado isso sobre filme de que você se lembra? Conhece alguém do cinema que diga isso? RH - Não, não mesmo. Obviamente o David Lynch ainda está mantendo a chama acesa e tentando criar os mesmos tipos de coisas com sua equipe agora, sem dúvida. Alguém me disse que o David tem um estúdio de mixagem na sua sala com parte das cinzas do Alan sob o assoalho.

FP - Alguém disse algo sobre as cinzas do Alan e que eu deveria perguntar à Ann sobre essas cinzas. Eu me esqueci disso. Desculpe, preciso fazer isso. RH - Sim, mande um e-mail para ela, porque eu ouvi falar disso. Não sei se é verdade, mas soa... é uma declaração bem dramática de adoração de herói, se me perguntar (risos).

FP - Definitivamente (risos). RH - Mas posso te dizer que eu e o Frank (Eulner) e o Gary Rydstrom e uns poucos outros frequentemente ligamos para a Ann e perguntamos se podemos pegar algo da biblioteca do Alan que eu lembro ou acho que pode haver algo ali. Sabe, é bom poder honrá-lo usando um pouco do seu trabalho. Eu gostaria que a biblioteca dele tivesse se tornado pública porque acredito que ela tenha material para deixar as pessoas fascinadas, não só na indústria, mas os aficionados de som provavelmente adorariam conferir o que ele produziu.

FP - Não falei com a Ann sobre isso especificamente. Ela mantém os rolos ou ela digitalizou o material56? RH - Não sei. Sei que uma vez o David quis lançar a biblioteca e por alguma razão a Ann foi resistente. Acho que o momento passou, entende? Teve um momento em que teria vendido como bolo quente, mas já passou tanto tempo agora que a maioria das pessoas, na minha opinião, erroneamente acha que

56 O site da Sound Mountain, empresa de efeitos sonoros de Ann Kroeber, é claro ao informar que são quase dois terrabytes de efeitos sonoros gravados ao longo de mais de 30 anos, num acervo em expansão. Portanto, sim, o material é digitalizado.

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gravações digitais são o ideal. E podem ser. Eu amo gravações antigas. Por exemplo, em Ponte dos espiões (Bridge of spies, EUA/Alemanha/Índia, 2015, de Steven Spielberg) o filme que fiz no ano passado, tinha um (automóvel) Volvo de 1968. O filme se passa em 1968. Então pensei no caminho mais longo, encontrar um clube de colecionadores que tivesse um carro realmente perfeito. E por algum motivo, porque esse é o meu jeito de ser, lembrei que era o mesmo carro-esporte que O Santo (The Saint, Reino Unido, 1962-1969, produzida por Robert S. Baker) tinha em 1964 na série de TV em que eu iniciei minha carreira aos 16 anos, fazendo chá. Eu também sabia que ao comprar essa biblioteca de som em particular, a Cinesound, da Inglaterra, o cara no comando da Lucas Film diria não. O que eu acho que é um erro terrível, pois é uma biblioteca com mérito histórico e vários milhões de sons. De qualquer forma, o (cineasta) Peter Jackson a comprou na Nova Zelândia. Eu o escrevi por e-mail dizendo que estava procurando esse Volvo de O Santo e eles me enviaram. Os sons foram gravados num Nagra em 1964, 1965. E eles estão todos em Ponte dos espiões. Toda vez que você vir aquele Volvo em Ponte dos espiões, aquilo é uma gravação de um Nagra de 1964 de um Volvo novinho em folha (risos).

FP - Ele tinha o mesmo motor? RH - Sim, sim. Era exatamente o mesmo carro, com o motor certo. E a gravação soa tão bem quanto qualquer coisa que você faria hoje, na minha opinião. Então é divertido voltar no tempo de vez em quando. Tem coisas naquela biblioteca e na do Alan que você nunca conseguiria hoje, não conseguiria recriar hoje. Até se pode recriar, mas não conseguiria nada autêntico. É divertido. Som é divertido, não precisa fica restrito ao novo, você pode voltar ao antigo.

FP - E provavelmente efeitos sonoros que soam como os do Alan. Suas especialidades, como ventos, fogo, encanamentos, sons industriais, certo? RH - Sim, e sons difíceis. Esses tipos de ventos e fogos podem se tornar som branco, nada. Eles podem soar iguais. E o Alan era brilhante mesmo em realmente fazê-los soar sofisticados.

371 FP - Ótimo. Acho que temos as 10 perguntas. RH - Se algo a mais surgir, me mande um e-mail.

FP - Foi muito divertido. Você é uma pessoa realmente simpática, Richard. Muito obrigado pela sua atenção, sua dedicação em fazer isto acontecer e insistir apesar das minhas limitações técnicas aqui. RH - Tudo bem. Lamento não conhecer mais o Alan como profissional. Eu era só um trabalhador na época. Se eu souber de alguém mais, definitivamente... Eu deveria saber.

FP - Você estava falando do Carrol Ballard e do Philip Kaufman. Estou tentando contatar o John Nutt sobre isso, mas se calhar de você ter os contatos deles e você achar que eu poderia conversar com eles de alguma forma, seria legal. Porque eu provavelmente perderia os outros diretores, os mais importantes... Não sei se me engano dizendo isso, mas os que as pessoas tendem a lembrar mais. RH - Conseguiu chegar ao David Lynch de alguma forma?

FP - Tentei contatá-lo. O primeiro que tentei contatar foi o David. Ele está muito ocupado com Twin Peaks (EUA, 2017-, criada por Mark Frost e David Lynch). O assistente dele me respondeu educadamente, mas declinou, de qualquer forma. Aí procurei a Ann e ela tem sido simplesmente maravilhosa, me ajudando com contatos e pessoas que estiveram em Veludo azul. Vocês estão me ajudando muito. Espero que eu honre seu esforço, seu esforço criativo. RH - Obrigado. Vou tentar pensar em outros nomes e certamente te mando um e-mail se pensar em algo mais.

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SOBRE O MATERIAL AUDIOVISUAL

O disco anexo traz trechos analisados dos três filmes comparados para esta pesquisa.

- King Kong (EUA, 1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack - Meu tio (Mon oncle, França, 1957), de Jacques Tati - Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986), de David Lynch

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