Celso Furtado, da materialização do pensamento ao exílio

Deijenane Santos; Jean De Mulder Fuentes1 Resumo

O presente artigo tem como objetivo fazer um breve resumo de três momentos chave na vida de : seus anos de formação, sua passagem pela Superintendência para o Desenvolvimento de Nordeste (Sudene), entre os anos de 1959 e 1964 e sua partida forçada ao exílio, o qual se inicia no Chile e se prolonga pelos Estados Unidos e pela França. A metodologia usada é descritiva e histórica, usando como fonte primária principalmente os textos biográficos de Celso Furtado. O artigo se divide em três partes: a primeira descreve sua etapa de formação e o contexto de criação e objetivos da Sudene; a segunda parte trata do período em que Celso esteve à frente da Sudene; e a terceira foca no momento do seu exílio, abordando o caminho percorrido por ele no Chile, Estados Unidos e Europa. Finalmente, são feitas algumas reflexões articulando as três etapas do artigo.

Palavras-chave: Celso Furtado; exílio; Sudene.

Abstract

This paper aims to present a brief summary of three key moments in Celso Furtado’s life: his years of intellectual shaping, his time at the Superintendence for the Development of Northeast (Sudene), between 1959 and 1964 and his forced departure into exile, which initiates in Chile and prolongs itself in the United States and France. The methodology used is historic-descriptive, using as primary source, mainly Furtado’s biographic texts. The paper is divided into three parts: the first one describes his academic background and the context of creation and objectives of Sudene, the second part deals with the years Furtado was ahead of Sudene; and the last part focus on the moment of his exile, showing the path he has taken in Chile, the United States and in Europe. Finally, some reflections are presented articulating the three parts of the paper.

Key-words: Celso Furtado; exile; Sudene

Resumen

El presente artículo tiene objetivo hacer un breve resumen de tres momentos claves en la vida de Celso Furtado: sus años de formación, su estadía por la superintendencia de Desarrollo de Nordeste (SUDENE) entre los años 1959 a 1964, y su partida forzada para el exilio, la que se inicia en Chile y se prolonga por los Estados Unidos y Europa. Finalmente, son realizadas algunas reflexiones articulando las tres etapas.

Palabras-clave: Celso Furtado; exilio; Sudene.

1 Pesquisadores-bolsistas do Procondel e estudantes da pós-graduação em Ciência Política (UFPE), Jean De Mulder (doutorado) e Deijenane Santos (mestrado).

O início

grande filósofo é um poeta dotado de consciência intelectual”2, em outras palavras, é alguém capaz de enxergar as coisas por meio de um “O olhar aguçado, que atenta para a realidade, mas sem perder o entusiasmo do sonhar. O filósofo é antes de tudo um pensador, assim como os grandes intelectuais que o mundo tem visto ao longo de sua história, alguns conformados em permanecer à margem do mundo real, refugiados em suas redomas intelectuais, outros interessados em romper com os muros das instituições do saber e assim fazer uma ponte entre o refletir e o transformar. Poder-se-ia dizer que Celso Furtado faz parte do segundo grupo, uma vez que ele mostrou-se continuamente interessado tanto em compreender como transformar a realidade que o cercava.

Logo após obter seu doutorado em economia, em 1948, pela Universidade de Sorbonne, com a tese L'économiebrésiliennecoloniale, o economista integra, como economista, a Organização das Nações Unidas na Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (Cepal), sediada no Chile. Em 1950, o diretor da Cepal, Raul Prebisch nomeou-o diretor da Divisão de Desenvolvimento, levando-o a ocupar cargos importantes em alguns países da América Latina, dentre os quais, Argentina, México, Venezuela, Peru e Equador. Na introdução de seu livro, A fantasia Organizada, decorre sobre a origem e a consolidação do "desenvolvimento", mostrando as ideias dos principais economistas e intelectuais da América Latina, onde converge a discussão entre o liberalismo econômico e a concepção keynesiana do Estado. O livro é dedicado a Juan Noyola, Jorge Ahumada, José AntonioMayobre, Juan Medina Echavarría y Oscar Soberón, companheiros da Ordem Cepalina do Desenvolvimento, e a RaúlPrebisch, “que guiou a todos". A Cepal, para Furtado, era certamente uma paixão em sua vida. Em 1957, ele deixa a Cepal e vai para a Inglaterra, aceitando o convite de Nicholas Kaldor, que integra a equipe de discussão teórica com outros economistas proeminentes, incluindo Amartya Sem. Furtado permanece por um ano no King’sCollege da Universidade de Cambridge e escreve sua magnum opusFormação Econômica do Brasil (FREIRE D’AGUIAR, 2013).

2 Walter Kaufmann. Disponível em: www.pensador.uol.com.br. Acesso em: 25 novembro 2014. 2

O Nordeste em questão

Após seus anos de formação teórica, Celso Furtado optou por lançar-se à realidade, não apenas para entendê-la mais de perto, mas para transformá-la,“o economista, em verdade, escondia o pensador político e social”3. Essa era a essência dele como pensador, um estudioso da realidade que o cercava, a qual, segundo ele, não deveria apenas ser compreendida, mas modificada. Em 1958, ele retorna ao Brasil e assume a diretoria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), conforme as palavras de Roberto Campos, ex-ministro de Planejamento do governo Castello Branco (1964-1967):

Conseguimos contato com Celso Furtado e ele foi convidado por Juscelino para ser diretor do BNDE, onde ele não teria nenhuma outra função a não ser se concentrar no problema do Nordeste. Ele preparou, então, o relatório para o GENOR, tentando criar um tipo de solução permanente para o Nordeste, para evitarmos que cada crise gerasse uma busca angustiosa de soluções emergenciais. Daí nasceu a Sudene. Sette Câmara (Sub Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República) era o representante do Palácio, ou seja, de Juscelino, no Grupo Executivo do Nordeste. Celso Furtado queria criar um Departamento Nacional no Nordeste para substituir o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca. E, Sette Câmara teve a intuição política de que era necessário trazer os governadores, criar uma mobilização política regional, o que não seria possível com a criação de um simples departamento. Ele deu, então, a ideia de criar uma superintendência regional do desenvolvimento, que teria um conselho, do qual participariam os governadores. Haveria, então, uma infusão política, uma participação política dos governadores. Como Celso Furtado havia preparado um relatório e sugerido um departamento, suas ideias foram trabalhadas no Grupo Executivo e daí surgiu a Sudene que, a rigor, é mais do que um departamento, é uma superintendência regional dotada de um coeficiente político, dado por um conselho deliberativo com representação de governadores. Essa é a história original da Sudene (CAMPOS, 2009, p. 49-50).

Ao assumir o cargo de diretor no BNDE, o presidente (1956 – 1961) confia a Celso tarefa de coordenar o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), que vinha estudando, desde a sua criação, em 1957, a elaboração de um plano de atividades para analisar os problemas do Nordeste e possíveis soluções para os mesmos. O GTDN apresentou o estudo “Uma Política de Desenvolvimento para o Nordeste”, cujo relatório e respectivas conclusões foram apresentados por ele ao presidente Juscelino Kubitschek em janeiro de 1959, no Palácio Rio Negro, em Petrópolis, Rio de Janeiro. O relatório

3Revista Pesquisa Fapesp, nº 106, p.86-89, dezembro de 2004. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/. Acesso em 25 novembro 2014. 3

começa fazendo uma leitura dos adiamentos históricos do Nordeste, descrevendo disparidades regionais em relação à região centro-sul do país e as consequências da não implantação de políticas de desenvolvimento definitivas. Além disso, apresentou-se também um plano técnico e estratégico para o desenvolvimento do Nordeste. Na ocasião, o presidente encarrega o economista da tarefa de desenvolver o Plano de Política Econômica para o Nordeste. Quando perguntado, Furtado, que redigiu o relatório GTDN, respondeu:

Eu fiz aquele informe sozinho. Como diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, guardei-o em meu poder e o GTDN só tomou conhecimento do documento depois de pronto. O GTDN não tinha economistas. Tinha um grupo de especialistas... não tinha nenhum economista. Eram engenheiros, especialistas em solo, principalmente, em clima... para fazer um diagnóstico sobre a situação do Nordeste. Onde havia economistas era no Banco do Nordeste. Mas o GTDN propriamente foi criado no Rio de Janeiro. A direção do GTDN estava na mão de um advogado, o Aluízio Campos, que era muito simpático, mas não sabia muito de economia. E foi organizado no Rio de Janeiro um grupo, com a ajuda das Nações Unidas. Quando cheguei para trabalhar no Banco, Juscelino me disse: “Esse grupo só quer estudar o Nordeste, só faz estudar, não quer passar para a ação...”. Com relação ao grupo, visitei-os, conversei com eles, perguntei quando terminariam os trabalhos, e encerramos o assunto. Paralelamente, constituí, eu mesmo, um pequeno grupo com gente minha lá do BNDE, para juntar dados e armar um estudo que pudesse ser finalizado mais rapidamente. E o nome do GTDN foi utilizado porque em realidade eu não ia publicar o trabalho como sendo do BNDE. Tinha que publicar como sendo um trabalho desse grupo, e além do mais porque o dinheiro era do GTDN, a verba alocada (THEODORO, 1996, p. 6-7).

O fundamento teórico do GTDN é de inspiração cepalina no que se refere a disparidades regionais e teve um impacto importante, pois levou à criação do Conselho do Desenvolvimento do Nordeste (Codeno), do qual Furtado foi nomeado Secretário Executivo, sendo responsável por colocar em prática as propostas da GTDN. O objetivo do grupo era não apenas observar a realidade da região, mas modificá-la por meio de ações concretas, o que veio a acontecer com a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 15 de dezembro de 1959, instituição pensada para tirar o Nordeste do atraso socioeconômico sob o qual a região padecia à época. A passagem dele pela Sudene na condição de primeiro superintendente da autarquia foi marcada pela oposição dos políticos nordestinos e das elites locais que não concebiam a

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possibilidade de modificar as estruturas que causavam as desigualdades sociais à época4. Ele também foi nomeado como o primeiro ministro de Planejamento durante o governo João Goulart (1961-1964), o que acabou por motivar a cassação de seus direitos políticos, como afirma Carlos Mallorquín:

La intensa vida política y social que vivió entre los años 1958- 1964, aportando liderazgo e ideas, cuyos frutos significativos se denotan en amplios logros y avances para el desarrollo económico y social de su país fueron desbaratados por el Golpe Militar. Vemos entonces surgir todas las desavenencias, contradicciones y desencantos, tanto a nivel personal como teórico, que puede sufrir un intelectual expulsado de su país y con el cual se había comprometido existencialmente para impulsar sendas transformaciones sociales. Previamente, el economista brasileño había vivido entrelazado en las redes del poder como pez en el agua (MALLORQUÍN, 2000, p. 70).

O exílio

Primeiro de abril de 1964, o então superintendente sai da sede da Sudene, no edifício Dantas Barreto, bairro de Santo Antônio, centro da cidade do e caminha em direção ao Palácio do Campo das Princesas, onde o governador eleito Miguel Arraes5 mantinha-se irredutível em sua postura como candidato eleito, recusando-se a deixar o cargo para o qual havia sido escolhido por voto popular. A ida de Celso à sede do governo pernambucano foi um episódio peculiar da história brasileira, pois ali estavam duas figuras importantes da conjuntura político-social da época, a qual trazia consigo a incerteza que costuma pairar sobre regimes inconstitucionais. Após continuou rumo à Sudene, onde encontrou poucas pessoas, alguns dirigentes e solicitou a compra de uma passagem aérea para Brasília. Ao voltar para casa, Celso sentiu o peso de estar sozinho, “era como se um grande vazio se houvesse formado dentro de mim” (FURTADO, 2014, p. 389).Dois dias depois, ele retorna à Sudene para entregar as chaves do seu escritório. Recolhe os seus documentos pessoais e mal consegue dizer adeus a algumas pessoas, pois muitos de seus colaboradores mais próximos já haviam procurado refúgio.

4 Sobre a passagem de Celso Furtado pela Sudene ler: Celso Furtado, a Sudene e a USAID. In: PAGE, Joseph. A Revolução que nunca houve. Rio de janeiro: Record, 1972. 313 p. 5 Há 50 anos, os últimos atos de Miguel Arraes antes da deposição. Filhos do Golpe (webreportagem), Diário de . Disponível em: http://hotsites.diariodepernambuco.com.br/1964/ha50anos.shtml. Acesso em 25 novembro 2014. 5

Eleatravessou pela última vez a porta daquela instituição que adquiriu fama mundial sob sua direção. Em suas palavras, a Sudene:

Era muito mais do que uma agência administrativa. Graças a ela, emergiu um Nordeste como uma entidade política. Tudo teve que ser disputado palma a palma para fazer prevalecer decisões superiores contra manobras escusas da baixa burocracia (FURTADO, 2014, p. 392).

Dois dias depois, ele embarca para Brasília e de lá para o Rio, onde a situação era complicada, com muitos amigos na prisão ou asilados em embaixadas. Antes de embarcar, a embaixada chilena enviou um carro diplomático para a possibilidade de um pedido de asilo por parte do economista. Estes fatos menores, inclusive narrados biograficamente pelo economista, são reveladores, pois demonstram seu estado de espírito e que ele estava disposto a correr qualquer risco para afirmar seu direito (FURTADO, 2014). Celso esteve acompanhado até a subida do avião por Aníbal Pinto Santa Cruz, um dos mais proeminentes economistas chilenos, e ex-diretor da Escola de Pós-Graduação da América Latina da Universidade do Chile, e que, no momento, atuava como diretor da Sede da Cepal/ILPES6 no Rio de Janeiro. O avião fez escala em Buenos Aires, onde ele se encontrou com Felipe Herrera, colega e amigo do Conselho Americano da Aliança para o Progresso. No dia 06 de abril de 1964, o general da reserva Expedito Sampaio assumiu o cargo de superintendente, como interventor na Sudene, segundo as palavras do militar, a reorganização da autarquia seria feita por “gente nossa, gente de confiança”, em outras palavras, pessoas aliadas ideologicamente e em sintonia fina com o novo regime. Segundo Sampaio, o golpe de 1964 esvaziou a Sudene porque muitos funcionários estavam “foragidos” em razão de suas ligações com os “comunistas” (SILVA, 2011, p.71). O ex-superintendente logo teria seu nome na primeira lista de cassados pelo novo regime, com a edição do Ato Institucional nº 01 (AI-1). Saia de cena. Mas não por muito tempo. Sobre o contexto da época de sua cassação, ele afirmava que:

As circunstâncias que modificaram o curso de minha vida em 1964, quando um golpe militar no Brasil privou-me de direitos políticos e praticamente impediu-me de continuar a trabalhar para a minha região e meu país, somente em parte são responsáveis pela decisão que tomei de dedica-me inteiramente à vida acadêmica. A participação indireta e direta que durante quinze anos tive na formulação de políticas – como assessor técnico das Nações Unidas e como administrador e membro do

6Instituto Latino-Americano para Estudos de Desenvolvimento 6

governo em meu país – convenceu-me de que nossa debilidade maior está na pobreza de formulações teóricas e de ideias operacionais (D’AGUIAR, 2013, p.14).

Celso Furtado deixa claro que apesar da saída forçada do Brasil em razão da cassação de seus direitos políticos, havia outro fator que o impeliu a debruçar-se sobre o campo teórico: a escassez de teorias que tentassem explicar a conjuntura latino-americana no que concerne ao subdesenvolvimento e a outros tópicos; ele lançou-se assim, no campo teórico-pedagógico, dedicando-se a partir de então aos ofícios de escritor e de professor em várias instituições de prestígio nos Estados Unidos e na Europa. Logo o silêncio forçado pelos militares seria rompido, a personalidade e as ideias dele seriam prestigiadas no exterior, com ecos que ressoavam no Brasil.

Este exílio “voluntário” por causa do golpe militar de 1964, não diminuiu sua atividade intelectual e acadêmica. Assim que ele chegou ao Chile, juntou-se ao Instituto Latino- Americano para Estudos de Desenvolvimento (ILPES), onde lecionou sobre as questões brasileiras. As suas palestras proferidas podem ser examinados em seu livro: Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina. Na introdução de Os Ares do Mundo, estão reunidos textos que se relacionam com as suas experiências pessoais e que reproduzem a problemática do desenvolvimento e do subdesenvolvimento. O livro tenta reconstruir a chegada dele ao Chile em 1964, a primeira parte de um longo caminho no exílio. As impressões dele sobre Santiago, cidade que havia conhecido em 1949, em função da Cepal, são memoráveis:

[A Cepal] é a única escola de pensamento surgida em terras latino-americanas. Desde então, Santiago se transformou em um importante centro de atividade intelectual, especialmente no campo de estudos Sociais Aplicados. Além da própria Cepal, havia seu adjacente Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES), onde ele tinha participado com outros grandes economistas latino-americanos, e onde amadureceu seu pensamento estruturalista com suas três principais contribuições teóricas analíticas: i) o método histórico-estrutural, que incorpora a história brasileira e latina em formulações estruturalistas; ii) o conceito de que o subdesenvolvimento na periferia latino-americana tende a persistir por longos períodos devido à dificuldade de superar o subemprego ea inadequada diversificação da atividade produtiva; e iii) a ideia de que a evolução dos investimentos na periferia é predeterminada pela composição da demanda, o que espelha e tende a manter a concentração de renda e da propriedade (CEPAL/ILPES, 2006, p. 07).

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Em Santiago, o clima de trabalho era de grande entusiasmo, na qualidade de chefe da Divisão de Desenvolvimento Econômico, o ex-superintendente chegou a dirigir várias áreas e grupos de trabalho: “nossas preocupações iniciais eram principalmente metodológicas, o que exigia um intenso intercâmbio de ideias dentro do grupo” (FURTADO, 2014, p.117). Análises sobre o conceito de desenvolvimento estavam no cerne das inquietações teóricas dele, conforme suas palavras:

Em que consiste um plano de desenvolvimento? Esta é a questão que estava no centro de nossa agenda do trabalho. Devíamos ocupa-nos de “programas de desenvolvimento” que deveriam abarcar todas as inversões públicas e avaliar as necessidades de inversão da atividade econômica provada. O conteúdo de um tal programa era vasto, e seus contornos incertos. Havia que preocupar-se com os obstáculos fundamentais em setores básicos,principalmente energia e transporte, com a insuficiência da capacidade para importar, com a vulnerabilidade às flutuações e contingencias externas, com os problemas do setor agrícola, com as necessidades insatisfeitas de obras públicas, de educação, com a produtividade, com a inflação. Em fim, tudo devia ser tomado em conta na elaboração de um plano. Havia que ter bom senso, critério, noção das prioridades. Mas por onde começar, como atuar de forma eficaz sobre um tema tão complexo (FURTADO, 2014, p. 117).

Em palestras, o economista discorria sobre o significado da ruptura institucional democrática no Brasil, e refletiu a cerca das causas do conflito, além de fazer uma leitura da questão do subdesenvolvimento. É possível ver o rosto humano de Celso acompanhando e incentivando seus colegas brasileiros, uma vez que o Chile havia se tornado o centro das atenções da primeira onda na diáspora brasileira pós-golpe militar. Muitos se refugiaram em embaixadas ou tinham cruzado a fronteira do Uruguai sem documentos, tendo sido o poeta amazonense Thiago de Mello a principal referência na cidade de Santiago, haja vista este ter ficado encarregado de assuntos culturais da embaixada brasileira no Chile. Thiagode Mello dedicou todo o seu tempo para receber refugiados brasileiros e colocá-los em contato com personalidades chilenas que poderiam ser úteis naquele momento político delicado, uma vez que seus compatriotas estavam fugindo do terror instalado no Brasil, onde já havia milhares de presos políticos, conforme relatou Furtado:

Darcy Ribeiro, que tinha se estabelecido em Montevidéu, passou por Santiago em direção à Europa. Muitos compatriotas ficavam perplexos quando eu dizia que o meu exílio deveria ser longo e que estava fazendo planos para viver no exterior. Aquele golpe não foi inesperado. Por trás dele havia anos de conspiração. Tudo começou quando Getúlio Vargas foi encurralado... No Brasil todo processo de mudança política e social é lento. Se o golpe de Estado levou dez anos para chegar ao poder, como 8

imaginar que vamos reverter a situação em um período mais curto? O que importa é que os que retornem em 10 ou 20 anos não cometam novamente os erros que facilitaram o trabalho do golpe (FURTADO, 1993, p. 18).

Após este período inicial no Chile, ele enveredou pelo caminho do magistério superior e reafirmou sua vocação de intelectual atuante, figura cujas ideias deveriam ser pensadas e levadas a cabo. Na visão dele, era necessário um engajamento por parte dos chamados pensadores, não se poderia viver no mundo subjetivo, como bem salienta Carlos Brandão, ao mencionar a importância da produção intelectual e do engajamento de Celso Furtado:

É muito difícil construir com precisão um painel que propicie uma ideia ou balanço adequados da vasta, abrangente e profunda obra de Celso Furtado, ele é fundador de uma verdadeira escola de pensamento, inspirador que exerceu forte e ampla influência sobre pesquisadores de diferentes vertentes teóricas e posições políticas. Formulador de um arcabouço teórico e de um modo de interpretação marcados pela originalidade, pela atualidade e perenidade, e de uma teoria do desenvolvimento, enfim, cujo sentido e alcance são passíveis de renovação constante. Intelectual completo: de ampla e variada cultura, um erudito que aciona e mobiliza argutamente autores e concepções diversas e distintas, de forma perspicaz, didática e sempre com extremo, comprometimento social e político. Antes de tudo, um intelectual e homem público de ação, empenhado na transformação social (D’AGUIAR, 2013, p.19).

As atividades intelectuais do ex-superintendente da Sudene no ano de 1964 incluem ainda a publicação de Dialética do Desenvolvimento, livro que discute o emprego do marxismo e da dialética na análise do desenvolvimento e que fora escrito em meio à crise do governo Goulart, após seu pedido de demissão do cargo de ministro do Planejamento. Em fevereiro de 1965 o economista publica o trabalho Obstáculos políticos ao crescimento brasileiro na conferência “ObstaclestoChange in LatinAmerica”, promovida pelo Royal InstituteofInternationalAffairs (ChatamHouse), em Londres e publicado na Revista Civilização Brasileira. Esse ano abriu um capítulo inédito na história da vida acadêmica dele por causa de um convite para lecionar na prestigiosa universidade parisiense de Sorbonne, tendo sido o primeiro estrangeiro a receber tal oferta, a qual fora feita com base em um decreto presidencial do general Charles de Gaulle (1959-1969), ato que evidenciou, mais uma vez, a importância dele para o mundo acadêmico. Ele assumiu a cátedra de professor de desenvolvimento econômico na Faculdade de Direito e Ciências Econômicas e durante o

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período em que ficou na França, vinte anos, ele também lecionou no Institut de l’AmériqueLatine, no Institut d’ÉtudesduDéveloppmentÉconomique et Sociale, no InstitutdesSciences Politiques, na ÉcoleNormaleSupérieure e na ÉcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales. Esse período exílico foi marcado por uma produção intelectual bastante profícua, que inclui a publicação de oito livros, os quais tratam basicamente de três temas: a expansão da economia, a economia latino-americana e o estudo teórico das estruturas subdesenvolvidas. Em 1966, publica Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, em 1967, Celso Furtado lança Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico e organiza, a pedido de Jean Paul Sartre7, uma edição especial da revista Lês TempsModernes sobre o Brasil. A década de 1970 foi bastante movimentada para Celso Furtado, uma vez que além das atividades acadêmicas, ele viajou para diversos países da África, Ásia e América Latina em missões de agencias das Nações Unidas. Esse período foi marcado pelo dinamismo dele como personalidade capaz de mobilizar o apoio de figuras como Fernand Braudel8, o qual saiu em defesa do amigo em um imbróglio diplomático com o consulado brasileiro na França, chegando até a escrever uma carta ao embaixador brasileiro em Paris para que fosse permitido a ele participar de um congresso de historiadores em Leningrado (hoje, São Petersburgo), na Rússia, uma vez que lhe fora negada a autorização para viajar à URSS (D’AGUIAR, 2013). Em 1972, ele lecionou como professor visitante na American University, em Washington D.C, no ano seguinte, trabalhou como professor na universidade de Cambridge, Inglaterra, ocupando a cátedra de Simon Bolívar e foi indicado como fellow9 daquela instituição. É publicado Aventures d’unéconomistebrésilien10, texto onde ele relembra sua trajetória desde a mais tenra idade até chegar ao patamar de respeitado funcionário público e intelectual. Em 1974, é lançado Subdesenvolvimento e dependência: as conexões fundamentais, obra

7 Filósofo existencialista, romancista, dramaturgo e biógrafo, nascido na França em 1905. Sartre acreditava que o ser humano tinha sua existência como parte essencial, negando a importância de se compreender a essência do homem como homem, em outras palavras, o homem não tem essência, não haveria um propósito para a existência humana. Obra: O ser e o nada (1943). Conf. WARBURTON, Nigel. Uma breve história da filosofia. Porto Alegre: L&PMPOCKET, 2011, 288 p. 8Historiador francês integrante da escola dos Annales, a qual pensava a história como um tempo de longa duração, ao invés de compartimentá-la em tempos curtos.Era também multidisciplinar em seu método (as investigações historiográficas eram feitas com o apoio de outras disciplinas). 9Integrante de uma elite acadêmica 10RevueInternationale de Science Sociales, Paris, Unesco, v. xxv, n. I/2, 1973. 10

apresentada no seminário do Queen’sCollege, Cambridge, em 27 de novembro; ainda neste ano, Furtado publica O mito do desenvolvimento econômico pela editora Paz e Terra. Em 1976, o economista é recebido como professor visitante da Universidade Columbia, no estado de Nova Iorque e em 1978 começa um mandato de três anos como membro do Conselho Acadêmico da Universidade das Nações Unidas (Tóquio), tendo inclusive sido convidado para ser seu reitor. O ano de 1979 foi marcado pela anistia11 aos exilados brasileiros, entre eles Celso Furtado, que retornou ao país e continuou a trabalhar em suas teorias sobre a situação do subdesenvolvimento brasileiro e das economias de terceiro mundo, além de outros temas ligados à história, cultura e à política, especialmente no que concerne à redemocratização do Brasil.

Conclusões

Raramente na história das lutas sociais, encontram-se economistas, políticos e intelectuais que podem fazer a diferença como o fez Celso Furtado, o qual trouxe uma visão de políticas de desenvolvimento para o Nordeste brasileiro ainda antes, mas principalmente no período em que foi superintendente da Sudene, um momento muito produtivo e intenso para o Brasil. Ele conseguiu conciliar teoria e ação por meio de seus anos de formação e como funcionário público, especialmente durante o período em que esteve à frente da Sudene, tendo se mostrado como uma referência sobre como planejar e implementar uma estratégia desenvolvimentista regional inovadora, servindo assim o povo nordestino em um período peculiar da história brasileira, ainda que truncado pelo golpe militar de 1964. A Sudene foi a primeira experiência de instituição criada para promover o desenvolvimento regional dentro de um país, na América Latina e nos países periféricos. O passado não pode ser reescrito, mas deve ser estudado e compreendido a partir de elementos históricos contextualizados. Qual é o eixo central em torno do qual se deve planejar, o que é a base teórica das políticas regionais em curso no Nordeste, no Brasil e na América Latina? Celso Furtado tem muito a contribuir na busca por respostas para tais questionamentos. O exílio dele foi uma etapa importante de sua vida como teórico, uma vez que foi durante esse período que ele continuou a pensar as questões ligadas ao desenvolvimento

11 A Lei 6683/79 foi a primeira a permitir a volta dos exilados cujos direitos políticos tinham sido cassados pelo regime militar instaurado no Brasil em 1964. 11

brasileiro, contribuindo assim, não apenas para o debate em torno de assuntos relevantes do ponto de vista do papel do intelectual na análise e compreensão da realidade que o cerca, mas também examinando as possibilidades de mudanças nas estruturas que perpetuam as desigualdades sociais tão presentes no Brasil ainda nos dias de hoje.

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