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A MIÚDA DA BANDA

A MIÚDA DA BANDA

Tradução de C. SANTOS

Para Coco, a minha Estrela do Norte AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer: À minha editora, Carrie Thornton, por toda a indulgência pa- ciente e por ter dado início a este projeto. Agradeço também a Sean Newcott, assistente editorial de Carrie. Ao resto da equipa da HarperCollins e Dey Street Books, in- cluindo Lynn Grady, Sharyn Rosenblum, Michael Barrs, Kendra Newton, Rachel Meyers, Lorie Pagnozzi e Paula Szafranski. À equipa da Faber, no Reino Unido: Lee Brackstone, Dan Papps, Gemma Lovett e Dave Watkins. Um agradecimento especial a Peter Smith, que me deu uma aju- da incomensurável na feitura deste livro. Gostaria também de agrade- cer a Henry Dunow por ter posto o processo em andamento. A todos os fotógrafos que permitiram que usássemos o seu tra- balho. A todos os meus amigos, que me apoiaram nos últimos anos: Elaine Kahn, Luisa Reichenheim, Lili Dwight, Byron Coley, Bill Nace, Julie Cafritz, Marjorie Zweizig, Daisy e Rob von Furth, Rebekah Brooks, Xian Hawkins, Don Fleming, Margaret Bodde, Lizzi Bougatsos, Jutta Koether, John Kelsey, Isabelle Graw, Tony Oursler, Jon Wurster, Jessica Hutchins, , Chloë Sevigny, Mel Wansbrough, Sofia Coppola, Andrew Kesin, Mathew Higgs, Elissa Schappell, Sheila McCullough, Michele Fleischli, Cameron Jamie, Dave Markey, Emma Reeves, Tamra Davis, Mike D, Adam H, Kathleen, Chris Habib, , Vicki Farrell, Andrew Kesin, Ri- chard Kern, Carlos Van Hijfte, Tom Caw, Spike Jonze, Keith Nealy,

8 Aimee Mann, Amy P., Carrie Brownstein, Ben Estes, Juan Amaya, Jim O Rourke, J Mascis, Shana Weiss, Hilton Als, Bill Mooney, Bar- bara Herrington, Patrick Amory e Jamie Brisick. Um agradecimento especial a , e Thruston Moore, sem os quais não haveria história. Ainda, um agradecimento a toda a equipa que acompanhou os durante todos estes anos: Aaron Mullan, Eric Baecht, Nick Close, Suzanne Sasic, Jim Vincent, Jeremy Lemos, Luc Suer, Dan Mapp, Bob Lawton, Peter Van Der Velde, Maurice Menares e a todo o pessoal da SAM, Gaby Skolnek, Micheal Meisel, John Cutcliffe, Chris Kelly, John Silva e Richard Grabel. Um agradecimento a Chris Stone, Nils Bernstein, Patrick Amory, Gerard Cosloy, Chris Lombardi e ao pessoal da Matador Records, por editarem o duplo LP dos Body/Head. A Eric Dimenstein, por nos representar. À minha família: Keller, Kathryn, Eleanor e Louise Erdman, e Coco Gordon Moore. À memória dos meus extraordinários pais: à minha mãe, Althea, e ao meu pai, Wayne. O seu espírito, humor e inteligência singular sempre me guiaram, de algum modo. E, claro, a todos os fãs pelo seu apoio, que nunca acreditei exis- tir realmente até ao momento em que precisei dele.

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O FIM

AO ENTRARMOS EM PALCO para o nosso último concerto, a noite era toda em torno dos rapazes. Exteriormente, estava toda a gente com o mesmo aspeto dos últimos trinta anos. Por dentro, era outra his- tória. O Thurston deu duas palmadas no ombro do Mark Ibold, o nosso baixista, e atravessou o palco energicamente, seguido pelo Lee Ranaldo, o nosso guitarrista e, finalmente, pelo Steve Shelley, o nosso baterista. O gesto pareceu-me tão falso, tão infantil, tão fantasio- so. O Thurston conhecia muita gente socialmente, mas não falava de assuntos pessoais com os poucos amigos homens que tinha, nem era, sequer, o tipo de pessoa de dar pancadinhas no ombro. Era um gesto que transmitia claramente a mensagem: Voltei. Estou livre. Estou a solo. Eu fui a última pessoa a entrar em palco, garantindo alguma dis- tância entre nós. Sentia-me exausta e alerta. O Steve ocupou a sua posição atrás da bateria, como um pai a sentar-se por trás de uma se- cretária. Nós armámo-nos com os nossos instrumentos como um ba- talhão, um exército a desejar que o bombardeamento terminasse. Chovia com força, num manto oblíquo de chuva. A chuva da América do Sul é exatamente igual à chuva de outro sítio qualquer e provoca a mesma sensação. Costuma dizer-se que quando um casamento termina, as pe- quenas coisas que até aí não se notavam se tornam monstros impos- síveis de ignorar. Na última semana, sempre que o Thurston estava por perto, isso tinha sido completamente verdadeiro para mim.

11 É possível que ele sentisse o mesmo ou, então, talvez tivesse a cabeça noutro sítio. Na verdade, não me interessava. Fora do palco, via-o constantemente a enviar mensagens de telemóvel e a andar à nossa volta como um miúdo sobre-excitado e culpado. Depois de trinta anos, era o último concerto dos Sonic Youth. O SWU Music and Arts Festival estava a decorrer em Itu, mesmo ao lado de São Paulo, no Brasil, a oito mil quilómetros da nossa casa em Nova Inglaterra. Era um evento de três dias, transmitido na televisão latino-americana e em streaming, com patrocínios de grandes corpora- ções como a Coca-Cola e a Heineken. Os cabeças de cartaz eram Faith No More, Kanye West, Black Eyed Peas, Peter Gabriel, Stone Temple Pilots, Snoop Dog, Soundgarden — bandas e músicos desse género. Éramos, muito provavelmente, a banda mais pequena no car- taz. Era um sítio estranho para as coisas terminarem. Ao longo de tantos anos, tínhamos tocado em muitos festivais de rock. Como banda, encarávamos isso como um mal necessário, apesar de, por não se fazer soundcheck antes de tocar, o sentimento de falta de rede acabar por torná-los um bocado emocionantes. Tocar num festival significava camarins em atrelados, tendas, material técnico e cabos por toda a parte, WC portáteis a cheirarem mal e, ocasional- mente, encontrar músicos de quem se gosta, pessoal ou profissional- mente, mas com quem nunca se consegue conversar ou passar algum tempo. O equipamento pode estragar-se, os atrasos acontecem, o tempo é imprevisível. Por vezes, é impossível ouvir os monitores e a única coisa que resta é continuar a tocar e tentar fazer com que a mú- sica alcance o mar de pessoas. Um festival é também sinónimo de alinhamentos mais curtos. Naquela noite, íamos terminar tudo com setenta minutos de adrenali- na, exatamente como tínhamos feito nos últimos dias em festivais no Peru, Uruguai, em Buenos Aires e no Chile. A única diferença em relação às digressões e festivais anteriores era o facto de eu e o Thurston não nos falarmos. Durante toda a se- mana devemos ter trocado, provavelmente, não mais do que quinze palavras. Após vinte e sete anos de casamento, as coisas tinham co- lapsado entre nós. Pedira-lhe, em agosto, que saísse da nossa casa, no Massachusetts, coisa que ele fez. Vivia, naquele momento, num

12 apartamento alugado a um ou dois quilómetros, vendo-se obrigado a apanhar transportes para ir e voltar de Nova Iorque. O casal que era visto por toda a gente como algo precioso, nor- mal e eternamente intacto, o casal que dera esperança a jovens músi- cos, fazendo-os acreditar que era possível uma relação sobreviver ao mundo louco do rock’n’roll, era agora mais um lugar-comum das rela- ções falhadas: um homem com uma crise de meia-idade, outra mu- lher, uma vida dupla. O Thurston simulou um ar de espanto quando o técnico lhe passou a guitarra para as mãos. Com cinquenta e três anos, ainda era o miúdo magricelas e desgrenhado do Connecticut que encontrei pe- la primeira vez numa discoteca da baixa nova-iorquina, tinha ele vin- te e dois anos e eu vinte e sete. Disse-me que tinha gostado dos meus óculos escuros de lentes duplas. Parecia um miúdo conservado num diorama, com os seus jeans, os seus Pumas old-school e a camisa branca desfraldada, um rapaz de dezassete anos que não queria ser visto na rua com a mãe — ou com outra mulher qualquer, na verdade. Tinha os lábios como os do Mick Jagger, braços e pernas compridas que não sabia onde meter, e a calma cuidadosa que se vê nos homens al- tos que não querem sobrepor-se às outras pessoas com a sua altura. O seu longo cabelo castanho escondia-lhe o rosto e ele parecia gostar que assim fosse. Parecia que tinha voltado atrás no tempo durante essa semana, apagando quase trinta anos de vida em conjunto. Para ele, «a nossa vida» passara a ser «a minha vida». Tinha voltado a ser um adolescen- te perdido em fantasias, e o espetáculo exagerado de rockstar que ele estava a montar em palco começava a irritar-me. Os Sonic Youth foram sempre uma democracia, ainda assim, cada um tinha o seu papel. Ocupei o meu lugar no centro do palco. Não era assim no início e não sei exatamente quando mudou. Era uma coreografia com já vinte anos, vinda da altura em que os Sonic Youth assinaram o primeiro contrato com a Geffen Records. Foi aí que aprendemos que sim, para as editoras musicais de peso, a música interessa — mas, no final, tudo se resume muito à aparência da rapa- riga. A rapariga serve de âncora no palco, atraindo o olhar masculino, e, dependendo da pessoa que é, lançando o seu olhar de volta para o público.

13 Uma vez que a nossa música pode ser estranha e dissonante, terem-me no centro do palco ajuda muito a vender a banda. Olha, é uma rapariga, está a usar um vestido, e está com aqueles gajos, por isso deve to- car bem. Mas esse nunca foi o modo como atuámos enquanto banda indie, de modo que tenho sempre cuidado para não ficar demasiado à frente. Foi-me quase impossível manter a compostura durante a nossa primeira canção, Brave Men Run. A determinada altura, parecia que a minha voz estava a raspar contra o seu próprio fundo e que o pró- prio fundo acabaria por colapsar de repente. Era uma música antiga, das primeiras que escrevemos e lançámos do nosso álbum Bad Moon Rising. Escrevi a letra em Elridge Street, em Nova Iorque, num velho bloco de apartamentos onde eu e o Thurston vivíamos na altura. Es- ta canção sempre me fez pensar nas mulheres pioneiras que existiram na família da minha mãe, arrastando-se a caminho da Califórnia atra- vés do Panamá, e da minha avó, mãe solteira durante a Grande De- pressão e sem qualquer maneira de garantir um rendimento certo. A letra, por seu lado, recordava-me o modo como fundi, pela primei- ra vez, as minhas influências artísticas e a minha música. Retirei o tí- tulo de um quadro de Ed Ruscha que mostrava uma caravela a atra- vessar ondas e espuma. Mas isso foi há três décadas. Esta noite, nem o Thurston, nem eu, olhámos um para o outro uma vez que fosse, e, assim que a músi- ca terminou, virei-me para o público, de modo a que ninguém na banda conseguisse ver a minha cara, apesar de não valer de muito: tu- do o que eu fizesse ou dissesse estava a ser transmitido num dos gi- gantescos ecrãs do palco. Fosse por que motivo fosse — simpatia, tristeza ou pelos cabe- çalhos e artigos sobre o rompimento entre mim e o Thurston que, em castelhano, português e inglês nos perseguiram durante essa se- mana, para onde quer que fôssemos —, tínhamos um apoio apaixo- nado do público sul-americano. O público desta noite perdia-se na distância e fundia-se com as nuvens escuras à volta do estádio: milha- res de miúdos encharcados, de cabelo molhado, de tronco nu, tops, mãos levantadas a segurarem telemóveis, e raparigas aos ombros de rapazes morenos.

14 Tínhamos sido seguidos pelo mau tempo através da América do Sul, de Lima ao Uruguai, no Chile e, agora, em São Paulo — um re- flexo cinematográfico pindérico que refletia o que se passava entre mim e o Thurston. Os palcos dos festivais tinham-se tornado versões musicais de quadros domésticos desconfortáveis: uma sala de estar, uma sala de jantar ou uma cozinha onde o marido e a mulher passam um pelo outro de manhã e preparam cafés separadamente, sem da- rem importância à existência do outro ou a qualquer tipo de história partilhada que possa existir nessa divisão. Depois desta noite, os Sonic Youth terminavam. A nossa vida como casal e como família já tinha terminado. Ainda tínhamos o nosso apartamento em Lafayette Street, em Nova Iorque — não por muito mais tempo —, e eu continuaria a viver com a nossa filha, Co- co, na nossa casa em Massachusetts, comprada em 1999 a uma escola local. «Olá!», gritou o Thurston jovialmente ao público, logo antes de a banda se lançar a Death Valley ’69. Duas noites antes, tínhamos tido um dueto numa outra canção, Cotton Crown. A letra era sobre amor e mistério, química, sonhos, e ficar-se junto da pessoa de que se queria. Era, basicamente, uma ode à cidade de Nova Iorque. No concerto do Uruguai, senti-me demasiado perturbada para conseguir cantá-la e o Thurston teve de terminá-la sozinho. Mas acabaria por conseguir cantar a Death Valley. O Lee, o Thurston e eu e, depois, apenas eu e ele, defronte do público. Eu e o meu quase-a-tornar-se-ex-marido a encararmos aquela massa saltitante de brasileiros encharcados, com as nossas vozes em coro a passar a limpo a velha letra da canção, que, para mim, era a banda sonora em staccato para energia pura e surreal e dor em estado bruto: Hit it. Hit it. Hit it. Acho que nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida.

O comunicado de imprensa que a nossa editora divulgara um mês antes não dizia grande coisa sobre o assunto:

Os músicos Kim Gordon e , casados em 1984, anun- ciaram a sua separação. Os Sonic Youth, contando com Kim e Thurs- ton, continuarão com a sua digressão sul-americana em novembro. Não há, para já, outros planos para lá da digressão. O casal pediu respeito pela sua privacidade e não deseja fazer quaisquer outros comentários.

15 Brave Men Run, Death Valley ’69, Sacred Trickster, Calming the Snake, Mote, Cross the Breeze, Schizophrenia, , Starfield Road, Flower, , e fechar com . O alinhamento para o concerto de São Paulo ia buscar coisas aos primórdios da banda, a le- tras que eu e o Thurston tínhamos escrito em conjunto ou separada- mente, a músicas que tinham acompanhado os Sonic Youth durante as décadas de oitenta e noventa, e aos nossos álbuns mais recentes. Apesar de parecer uma compilação de grandes êxitos, o alinha- mento foi cuidadosamente pensado. Ao longo da semana, o Thurs- ton fez questão de dizer à banda, durante os ensaios, que não queria tocar esta ou aquela música dos Sonic Youth. Acabei por perceber que algumas das músicas que queria deixar de fora eram sobre ela. Podíamos ter cancelado a digressão, mas tínhamos assinado um contrato. É com os concertos que as bandas ganham dinheiro, e to- dos nós temos famílias e contas para pagar, sendo que no meu caso e no do Thurston existem as despesas de faculdade da Coco. Apesar disso, ao mesmo tempo, não tinha a certeza se darmos estes concer- tos iria passar a imagem errada. Não queria que as pessoas achassem que eu estava a manter o papel de esposa dedicada independente- mente do que se tivesse passado entre nós. Isso não ia acontecer. E fora do nosso círculo mais íntimo de pessoas, ninguém sabia o que se tinha passado. Antes de seguirmos para a América do Sul, os Sonic Youth en- saiaram durante uma semana num estúdio em Nova Iorque. Conse- gui, de algum modo, aguentar-me com a ajuda de Xanax, sendo a pri- meira vez que tomei algum durante o dia. Em vez de ficar no nosso apartamento, que agora me parecia sujo, os outros concordaram em que me hospedasse num hotel. Mantendo-nos fiéis à forma de banda, toda a gente fingiu que as coisas estavam na mesma. Eu sabia que, por causa do que se passava entre mim e o Thurston, os outros estavam demasiado nervosos para interagirem comigo, considerando que sabiam as circunstâncias do nosso rompimento e até conheciam a mulher em questão. Não que- ria que ninguém se sentisse desconfortável, até porque, afinal de con- tas, tinha concordado em juntar-me a esta digressão. Também sabia

16 que toda a gente tinha as suas simpatias e julgamentos pessoais, mas fiquei surpreendida com a jovialidade com que se agia. Talvez esti- véssemos todos sem saber o que fazer diante de uma coisa tão sur- real. Passou-se o mesmo na América do Sul. Alguém me mostrou, mais tarde, um artigo saído na Salon com o título «Como é possível que Kim Gordon e Thurston Moore se te- nham divorciado?» Elissa Schappell, a autora, escreveu que nós tí- nhamos mostrado a toda uma geração como se crescia. Disse tam- bém que tinha chorado quando soubera da notícia.

Olhem para eles, pensei eu: estavam apaixonados, casados e a fa- zer arte. Eram cool e hardcore, com uma profunda seriedade acerca daqui- lo que faziam, não se tinham vendido ou amolecido. Na era da ironia, onde se finge a indiferença e se cobrem as inseguranças com piadas, eles mostravam ter coração... Há alguma coisa mais assustadora do que um casal que, após trinta anos numa banda criada por si, vinte e sete anos de casamento e dezassete anos a criar uma criança, decide dar as coisas por terminadas? À medida que eles conseguiam, todos nós con- seguíamos.

Fechava o artigo com uma pergunta: «Por que motivo deveriam ser eles diferentes do resto das pessoas?» É uma boa pergunta e a verdade é que não éramos, e aquilo que aconteceu foi, provavelmente, a história mais comum de sempre.

Seguimos em voos separados para a América do Sul. Eu voei com a banda e o Thurston voou com o nosso técnico de som princi- pal, o Aaron. Durante uma digressão, logo após o avião ter aterrado, é-se le- vado rapidamente para o hotel. As pessoas afastam-se, dormem, leem, comem, fazem exercício, vão dar um passeio, veem televisão, enviam e-mails e mensagens de telemóvel. No entanto, durante essa semana na América do Sul, toda a gente se juntava para as refeições, incluindo o pessoal técnico. Grande parte da equipa trabalhava connosco há anos e eram como membros da família. O Thurston sentava-se numa ponta da mesa e eu, na outra. Era como um jantar em casa de familiares, com a diferença de que o Papá e a Mamã se

17 ignoravam mutuamente. Toda a gente pedia grandes pratos de comi- da e bebidas e a maioria das conversas centrava-se naquilo que se comia ou bebia, como maneira de evitar falar acerca daquilo que se estava realmente a passar. Aquilo que se estava a passar era o convi- dado silencioso e indesejado que se tem em casa. O nosso primeiro concerto foi em Buenos Aires. Como os So- nic Youth já não tocavam na Argentina há algum tempo, os públicos que tivemos foram sempre muito expressivos e entusiastas, parecen- do saber todas as letras das nossas canções. Durante o primeiro par de dias, mantive as minhas defesas erguidas em relação ao Thurston, mas à medida que a digressão continuou, acabei por suavizar um pouco. Tínhamos tanta história partilhada que guardar tanta raiva em relação a ele era algo que me deixava incrivelmente ansiosa. Demos por nós, por uma ou duas vezes, a tirar uma fotografia ao pé do hotel e, conscientemente, tanto eu como o Thurston optámos por ser ami- gáveis um com o outro. Durante essa semana, fui abordada por vários músicos — pes- soas que não conhecia, como o Chris Cornell, o vocalista dos Sound- garden — que me disseram lamentar muito a minha separação e a do Thurston, ou o quanto a banda significava para eles. O Bill e a Barba- ra, o casal que tratava do nosso merchandising e T-shirts, cujo negócio tinha aumentado à medida que também nós crescíamos, vieram ter connosco a Buenos Aires, como demonstração de apoio moral, assu- mindo, como toda a gente, que se tratava do último concerto dos So- nic Youth. Aquilo que me aguentou foi o estar em palco, a descarga ener- gética e visceral que acontece ao tocar. O barulho extremo e a disso- nância podem ser uma coisa incrivelmente purificadora. Normalmen- te, ao tocar ao vivo, preocupo-me em ver se o meu amplificador está demasiado alto ou a causar distrações, ou se alguém da banda está de mau humor por algum motivo. Nessa semana, no entanto, não podia estar menos interessada em saber se tocava demasiado alto ou se rou- bava acidentalmente o palco ao Thurston. Fiz o que me apetecia fa- zer, e foi libertador e penoso. Foi penoso porque o fim do meu casa- mento era uma coisa privada e ver o Thurston a exibir a sua recém- -adquirida independência defronte de plateias era como se alguém

18 estivesse a esfregar areia numa ferida — a minha simpatia esvaiu-se de cidade para cidade, tornando-se em raiva. Em São Paulo, cheguei a um ponto que estive para dizer algo em palco. Mas não disse. Por coincidência, a Courtney Love encon- trava-se em digressão pela América Latina na mesma altura. Noites antes, tinha começado a gritar com um fã que segurava uma fotogra- fia do Kurt Cobain: «Tenho de viver com as merdas dele e com o fantasma dele e com a filha dele todos os dias! Meteres isso no ar é estúpido e rude», gritou ela. Saiu do palco, depois de dizer que só re- gressaria se o público concordasse em gritar «os Foo Fighters são gays». O vídeo desse momento acabou por aparecer no YouTube. Era um momento típico da Courtney, mas eu nunca quereria ser vista co- mo ela, um acidente em potência. Os Sonic Youth representavam muito para muitas pessoas e eu não queria ter uma atitude que pu- desse ser desagradável; não queria usar o palco para fazer afirmações de natureza pessoal — e o que traria isso de bom, de qualquer ma- neira?

Alguém me disse que esse concerto em São Paulo está online na íntegra, mas eu nunca o vi, nem pretendo ver. Lembro-me de me perguntar, durante esse concerto final, se o público estaria a captar ou a pensar naquela pornografia, crua e bizar- ra, de tensão e distância. Provavelmente, aquilo que o público viu e aquilo que eu vi foram duas coisas diferentes. Durante Sugar Kane, a penúltima música do alinhamento, surgiu um globo de um azul oceânico no ecrã que se encontrava por trás de nós. Girava extremamente devagar, como se quisesse espelhar a indi- ferença do mundo em relação às suas voltas e elipses. As coisas limi- tam-se a continuar como sempre, indicou o globo, enquanto o gelo derrete, as cores dos semáforos mudam não havendo carros na estra- da, a relva força o seu caminho entre falhas no passeio e as coisas nascem para, depois, desaparecerem. Ao terminarmos a canção, o Thurston agradeceu ao público. «Espero ver-vos muito em breve», disse ele.

19 Fechámos com Teen Age Riot, do nosso álbum . Cantei — ou melhor, quase cantei — os primeiros versos: «Spirit desire. Face me. Spirit desire. We will fall. Miss me. Don’t dismiss me.»1 Alguém disse uma vez que o casamento é uma longa conversa; talvez seja o mesmo para a vida de uma banda rock. Minutos depois, nenhum dos dois existia mais. Como de costume, ninguém fez grande alarido nos bastidores por este ser o nosso último concerto ou, na verdade, sobre o que fos- se. Em todo o caso, todos nós — o Lee, o Steve, o Mark, os nossos técnicos — vivíamos em cidades e zonas espalhadas pelo país. Estava demasiado triste e com demasiado medo de me desfazer em lágrimas para me conseguir despedir fosse de quem fosse, apesar de ter vonta- de de fazê-lo. E foi então que cada um seguiu o seu caminho e também eu regressei a casa. O Thurston já tinha anunciado uma série de datas a solo que te- riam início em janeiro. Voaria até à Europa e faria o caminho de re- gresso até à Costa Leste. O Lee Ranaldo planeava também lançar o seu álbum a solo. O Steve Shelley tocava quase a tempo inteiro com os Disappears, uma banda de Chicago. Eu iria dar alguns concertos com um amigo, também ele músico, chamado Bill Nace, trabalhar na arte de um espetáculo a acontecer em breve, em Berlim, mas, maiori- tariamente, estaria em casa com a Coco, a ajudá-la a ultrapassar o seu último ano da secundária e em todo o processo de inscrição numa fa- culdade. O Thurston e eu tínhamos colocado o nosso apartamento em Nova Iorque, na Lafayette Street, à venda e, finalmente, passados seis meses, acabou por ser vendido. À parte isso, tal como se dissera no comunicado de imprensa, os Sonic Youth não tinham planos para o futuro.

Cheguei a Nova Iorque em 1980 e, durante os trinta anos se- guintes, a cidade mudou, depressa ou devagar, ao ritmo da minha vi- da. Para onde foram todos os Chock Full O’ Nuts, ou os bares da

1 Em português: Desejo do espírito. Encara-me. Desejo do espírito. Seremos derrotados. Sente a minha falta. Não me afastes.» (N. da T.)

20 Blarney Stone, a oferecerem bufetes de carne enlatada e couve como almoço? Os Sonic Youth juntaram-se, claro, mas antes (e até depois) de isso acontecer, andei sempre a saltar de part-time em part-time — empregada de mesa, pintora de casas, funcionária de uma galeria de arte, a agrafar e a tirar fotocópias numa loja. Acabava por ter de alu- gar um apartamento diferente todos os meses. Vivia à base de papas de aveia, massa de ovo, cebolas, batatas, pizas e cachorros-quentes. Caminhava cinquenta quarteirões até casa, vinda de uma livraria em que trabalhei, porque não tinha dinheiro para o metro. Não sei bem como me consegui safar. No entanto, uma coisa que faz parte de se ser pobre e tentar ter sucesso em Nova Iorque é conseguirmos de- senrascar-nos durante o dia para podermos fazer o que queremos du- rante o resto do tempo. Todas as horas e anos que se seguiram, dentro de carrinhas, au- tocarros, aviões e aeroportos, em estúdios e camarins horríveis, só foram possíveis por causa da música que suportava essa vida, música que só podia ter saído da cena boémia e artística da baixa de Nova Iorque e das pessoas que a preenchiam — Andy Warhol, os Velvet Underground, Allen Ginsberg, John Cage, Glenn Branca, Patti Smith, os Television, Richard Hell, os Blondie, os Ramones, , Philip Glass, Steve Reich e a cena do free-jazz. Lembro-me do poder entusiasmante do ruído das guitarras, de encontrar pessoas com as mesmas paixões e o homem com quem me casei, que acredi- tava ser a minha alma gémea. Passei, há algumas noites, pelo nosso antigo apartamento no número 84 de Elridge Street, a caminho de um karaoke coreano onde se junta uma mistura de pessoas vindas de Chinatown e Koreatown, além dos habituais hipsters do mundo da arte. Pensei o tempo todo em Dan Graham, o artista que me apresentou muito daquilo que es- tava a acontecer na cena musical dos finais dos anos setenta e início dos oitenta, que vivia no apartamento acima do nosso e foi testemu- nha das primeiras versões daquilo que, mais tarde, se acabaria por tornar nos Sonic Youth. Encontrei-me com um amigo no karaoke. Não havia palco. As pessoas ficavam de pé no meio da pista, rodeadas por ecrãs, enquan- to cantavam. Alguém pediu Addicted to Love, de Robert Palmer, um

21 tema que, numa versão minha de 1989, gravado num estúdio impro- visado, acabou por fazer parte do LP dos Sonic Youth, The Whitey Album. Teria sido divertido cantá-lo num karaoke mas não fui capaz de perceber se era corajosa na vida real ou se apenas conseguia cantá- -la em palco. Nesse aspeto, não mudei muito em trinta anos. Agora que já não moro em Nova Iorque, não sei se seria capaz de voltar lá a viver. O idealismo de rapariga que eu tinha pertence agora a outra pessoa. A cidade que eu conhecia já não existe e está mais viva na minha cabeça do que quando lá estou realmente. Depois de trinta anos a tocar numa banda, é um bocado estúpi- do dizer «não sou música», mas a verdade é que, em grande parte da minha vida, não me vi como tal ou tive, sequer, formação para isso. Sim, tenho sensibilidade ao som, acho que tenho um bom ouvido e adoro o movimento e energia visceral de estar em palco. Até mesmo como artista visual e conceptual, existiu sempre um aspeto performa- tivo naquilo que faço. Para mim, atuar em público tem muito que ver com ser-se des- temido. Escrevi um artigo para a Artforum, em meados dos anos oi- tenta, que continha uma frase que Greil Marcus, crítico de rock, citava muitas vezes: «As pessoas pagam para verem as outras acreditarem em si mesmas.» Isto é, quanto maiores forem as hipóteses de falhar em público, mais valor a cultura dá àquilo que se faz. Ao contrário de um, digamos, escritor, quando se está em palco não é possível escon- dermo-nos das outras pessoas ou de nós próprios. Passei muito tempo em Berlim, e os alemães têm sempre gran- des palavras com múltiplos significados inscritos dentro delas. Depa- rei-me com uma dessas palavras há alguns anos: Maskenfreiheit. Signi- fica «a liberdade conferida pelas máscaras». Nunca me foi fácil encontrar espaço emocional para mim mes- ma no meio de outras pessoas. É uma coisa que vem da minha infân- cia, uma sensação de nunca me ter sentido protegida pelos meus pais ou do Keller, o meu irmão mais velho, que, enquanto crescíamos, costumava provocar-me sem misericórdia; a sensação de que nin- guém me está realmente a ouvir. Talvez seja isso o que um palco se torna para um artista: um espaço que se pode encher com aquilo que não pode ser expressado em mais nenhum outro sítio. Já me disse- ram que, no palco, sou opaca ou misteriosa, enigmática, até mesmo

22 fria. Mas, mais do que qualquer uma destas coisas, sou extremamente tímida e sensível, como se conseguisse sentir todas as emoções que se movimentam numa sala. E acreditem em mim quando digo que, uma vez ultrapassada a minha persona, não existem quaisquer defesas.

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