PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Mariano Magri

Retórica e política: o impeachment de

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

São Paulo

2018

Mariano Magri

Retórica e política: o impeachment de Dilma Rousseff

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira.

São Paulo

2018

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura:

Data: e-mail:

Mariano Magri

Retórica e política: o impeachment de Dilma Rousseff

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira.

Aprovado em: ______/______/______

BANCA EXAMINADORA

______

Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira – PUC-SP

______

Profa. Dra. Claudia Borragini Abuchaim de Oliveira – Curso-Objetivo

______

Prof. Dr. João Hilton Sayeg de Siqueira – PUC-SP

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Processo: 88887.150403/2017-00.

AGRADECIMENTOS

À professora Nancy dos Santos Casagrande, coordenadora, à época, do curso de Letras da PUC-SP, por me aceitar como aluno portador de diploma no semestre em que prestei vestibular e fui barrado pela não abertura de turma. Tudo começou a partir dessa porta que ela me abriu.

À professora Ana Luiza Marcondes Garcia, pelo incentivo e orientação no trabalho de iniciação científica; meus primeiros passos no complexo mundo da linguagem. O interesse pela pesquisa surgiu daí.

À professora Valeuska França Cury Martins, pelas infindáveis discussões sobre a gramática normativa da Língua Portuguesa, que me fizeram entender a lógica da língua. O bloqueio em relação à norma foi superado aí.

À professora Maria Aparecida Caltabiano, pelo constante incentivo à pesquisa e por ceder seu tempo para me treinar para prova de proficiência em língua estrangeira. A primeira barreira do curso de mestrado foi vencida por aí.

À professora Ana Rosa Ferreira Dias, pela clareza, delicadeza e leveza em explicar o que gira em torno de um discurso. Compreendi, a partir daí, que a realidade social é sempre uma construção discursiva.

Ao professor João Hilton Sayeg de Siqueira, pelos ensinamentos dos caminhos trilhados pelas palavras, das frases às dimensões sociais. Foi a partir daí que me situei no tempo e nas fases do progresso em torno dos estudos sobre a língua e o discurso.

Aos professores que compuseram a banca, João Hilton Sayeg de Siqueira e Claudia Borragini Abuchaim de Oliveira, pelas valiosas considerações em tempo de qualificação, as quais permitiram deixar esta pesquisa sem erros gritantes e incoerências teóricas.

Aos amigos Renan Locatelli, pela revisão cuidadosa da formalidade do texto, e Leonardo Tavares, pela sempre disposição em ler e criticar as prévias deste trabalho e ajudar na pesquisa bibliográfica.

Ao Grupo de Estudos Retóricos e Argumentativos – ERA, pelas reuniões quinzenais, discussões sobre Retórica, publicações e colóquios. Todos esses eventos contribuíram para o meu aprendizado.

E, por último, mas não menos importante, meu especial agradecimento ao professor Luiz Antonio Ferreira, pela disposição em me orientar antes mesmo do meu ingresso no curso de mestrado; pela segurança em me deixar caminhar sozinho e resgatar-me quando me perdia; pelas devolutivas sempre rápidas e acuradas e, acima de tudo, pelos ensinamentos sobre a Retórica, meu objeto teórico de estudo. Compreendi, a partir dos seus ensinamentos, que a controvérsia é inata aos regimes democráticos e que a retórica não sobrevive à tirania. Meus sinceros agradecimentos, professor.

RESUMO

MAGRI, Mariano. Retórica e política: o impeachment de Dilma Rousseff. 2018. 107 f. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018.

Desde dezembro de 2015, quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acatou o pedido de impeachment contra Dilma Rousseff, iniciou-se um intenso debate público que permeou os espaços políticos, os veículos de comunicação, as Universidades e as mídias sociais, entre tantos outros espaços públicos e privados. Embora um processo de impeachment seja previsto constitucionalmente, boa parcela dos discursos esforçara-se para transmitir a ideia de que tudo não passava de um golpe parlamentar. O objetivo desta pesquisa é analisar as estratégias argumentativas que propuseram a perspectiva de ilegitimidade do processo de impeachment e verificar se houve proximidade ao conceito de provas lógicas, com o objetivo de refutar as acusações formais e invalidar as denúncias, ou se se aproximaram do conceito de provas psicológicas, com o objetivo de acentuar o plano opinativo e, por conseguinte, fomentar a controvérsia como estratégia de defesa. Para tanto, analisamos os discursos de quatro senadores – Gleisi Hoffmann, Armando Monteiro, Vanessa Grazziotin e Randolfe Rodrigues –, realizados no Senado Federal, no penúltimo dia do julgamento. A base analítica é constituída por autores da retórica, Aristóteles (2013) e Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000), e por autores mais contemporâneos, como Campbell et al. (2015), Ferreira (2015), Meyer (2007), Mosca (1997) e Tringali (2013). As observações são realizadas com base em cinco categorias de análise. A primeira demonstra que as discussões não se deram no mundo de verdades e mentiras, mas no plano dialético-persuasivo. A segunda enfatiza que a finalidade do auditório, que era conferir culpa ou inocência à ré, foi desviada, em vários momentos, por discursos essencialmente políticos, que objetivaram ressaltar os supostos prejuízos com o êxito do processo. A terceira (ethos) e a quarta categoria (pathos) se atêm às provas psicológicas e analisam como os oradores criaram a imagem de si e da ré perante o auditório, bem como as incitações às paixões. A quinta e última (logos) atenta-se às provas lógicas, com o objetivo de saber de quais provas racionais se valeram os oradores para persuadir o auditório. Pelo que pudemos constatar, os oradores fizeram uso acentuado de provas psicológicas e visaram ressaltar a idoneidade da ré e macular a imagem de todos que participaram em prol do impeachment, sem que, em nenhum momento de seus discursos, descontruíssem as acusações que ensejaram o processo.

Palavras-chaves: impeachment, Retórica, ethos, logos, pathos.

ABSTRACT

MAGRI, Mariano. Rhetoric and politics: the impeachment of Dilma Rousseff. 2018. 107 p. Dissertation (Master's Degree in Portuguese Language) - Postgraduate Studies Program in Portuguese Language, Pontifical Catholic University of São Paulo, São Paulo, 2018.

Since December 2015, when the then president of the Chamber of Deputies, Eduardo Cunha, accepted the request for impeachment against Dilma Rousseff, an intense public debate began that permeated political spaces, communication vehicles, universities, social media among many other public and private spaces. Although a process of impeachment is constitutionally foreseen, a good deal of the speeches were made to convey the idea that it was nothing more than a parliamentary coup. The objective of this research was to analyze the argumentative strategies that proposed the illegitimacy of the impeachment process and to verify if there was proximity to the concept of logical evidence, with the objective of refuting the formal accusations and invalidating the denunciations or if they approached the concept of evidence psychological, with the aim of emphasizing the opinion plan and, therefore, fomenting the controversy as a defense strategy. For that, we analyze the speeches of four senators - Gleisi Hoffmann, Armando Monteiro, Vanessa Grazziotin and Randolfe Rodrigues -, held in the Federal Senate, on the penultimate day of the trial. The analytical base was composed by authors of the rhetoric, Aristóteles (2013) and Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000) and more contemporary authors, such as Ferreira (2015), Meyer (2007), Mosca (1997) and Tringali (2013). The observations were made based on five categories of analysis. The first one demonstrated that the discussions did not take place in the world of truths and lies, but in the dialectical-persuasive plane. The second emphasized that the purpose of the auditorium, which was to confer guilt or innocence on the defendant, was diverted, at various moments, by essentially political discourses, which aimed to highlight the supposed damages to the success of the process. The third (ethos) and the fourth category (pathos) followed the psychological tests and analyzed how the speakers created the image of themselves and of the back before the audience, as well as the incitement to the passions. The fifth and last (logos) focused on the logical evidence, with the purpose of knowing what rational evidence the speakers used to persuade the audience. As far as we could see, the speakers made a strong use of psychological evidence and aimed to emphasize the defendant's suitability and to tarnish the image of all those who participated in favor of impeachment, without at any point in their speeches disarming the accusations that led to the process .

Keywords: impeachment, Rhetoric, ethos, logos, pathos.

LISTA DE QUADROS

Quadro I – Gêneros retóricos 18

Quadro II – Impeachment nos EUA 27

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Argumentos quase-lógicos 54

Tabela 2 – Argumentos baseados na estrutura do real 55

Tabela 3 – Argumentos que visam a fundar a estrutura do real 55

Tabela 4 – Argumentos dentro do Universo da Doxa 83

Tabela 5 – Inserções de Discursos Políticos em Discursos Jurídicos 85

Tabela 6 – Os mecanismos de construção do ethos 86

Tabela 7 – Apelos ao Auditório: pathos 87

Tabela 8 – Logos e a lógica do verossímil 88

Tabela 9 – Resumo de todas as categorias de análise 89

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13 CAPÍTULO I – O IMPEACHMENT ...... 17 Inserções do discurso político no discurso jurídico ...... 17

O impeachment como freio ao poder absoluto ...... 22

A adoção do Impeachment na Constituição Federal brasileira de 1988 ...... 27

O Impeachment como sinalizador de acordo prévio ...... 33

CAPÍTULO II – A RETÓRICA ...... 38 Retórica e Dialética ...... 38

Discurso Político ...... 42

Ethos ...... 42 Logos ...... 44 Pathos ...... 46 Gênero Deliberativo ...... 47

Discurso Jurídico ...... 50

Gênero Judiciário ...... 52

Procedimentos Argumentativos ...... 53

As ligações de sucessão ...... 55 O vínculo causal e a argumentação ...... 56 O argumento pragmático ...... 57 O argumento da direção ...... 57 As ligações de coexistência ...... 57 A pessoa e seus atos ...... 58 Interação entre o ato e a pessoa ...... 58 Procedimentos de dissociação ...... 59

CAPÍTULO III – OS VEREDITOS FINAIS ...... 60 Os critérios de seleção do corpus e as categorias de análises ...... 60

O universo da Doxa ...... 61

Gleisi Hoffmann ...... 62 Armando Monteiro ...... 63 Vanessa Grazziotin ...... 64 Randolfe Rodrigues ...... 65 Inserções do discurso político no discurso jurídico ...... 65

Gleisi Hoffmann ...... 66 Armando Monteiro ...... 67 Vanessa Grazziotin ...... 68 Randolfe Rodrigues ...... 69 Os mecanismos de construção do Ethos ...... 70

Gleisi Hoffmann ...... 70 Armando Monteiro ...... 71 Vanessa Grazziotin ...... 72 Randolfe Rodrigues ...... 73 Apelos ao auditório: pathos ...... 74

Gleisi Hoffmann ...... 74 Armando Monteiro ...... 75 Vanessa Grazziotin ...... 76 Randolfe Rodrigues ...... 77 Logos e a lógica do verossímil ...... 78

Gleisi Hoffmann ...... 78 Armando Monteiro ...... 79 Vanessa Grazziotin ...... 80 Randolfe Rodrigues ...... 81 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE ...... 83 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 91 REFRÊNCIAS ...... 95 ANEXOS ...... 97

13

INTRODUÇÃO

No segundo dia do mês de dezembro do ano de 2015, o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acatou o pedido de impeachment formulado pelos juristas Hélio Pereira Bicudo, Miguel Reali Júnior e Janaina Conceição Paschoal, contra a então Presidente da República, Dilma Rousseff, o que deu início a um processo jurídico com feições políticas que fomentaram um intenso debate público, tanto no Congresso Nacional, com a tramitação do processo em si, quanto na mídia escrita, televisiva, radiofônica e on-line, com as notícias comentadas e carregadas de paixões, as quais, invariavelmente, dividiam-se entre os que eram a favor e contra o andamento do processo.

O pedido formulado pelos juristas acusava a presidente por dois crimes de responsabilidade. O primeiro crime foi cometido por deixar de contabilizar empréstimos tomados junto a bancos públicos, notadamente, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, as chamadas pedaladas fiscais. Dito de outra forma, o governo da acusada transferiu aos bancos públicos o compromisso de saldar os pagamentos dos programas sociais, entre eles, o “Bolsa Família”. Por esse ato, incorreu, ao mesmo tempo, na infração que proíbe o Governo Federal de tomar dinheiro emprestado de banco público, por ser o controlador, e maquiou as contas públicas; com isso, passou a ideia de que as finanças do país não estavam comprometidas, ato que burlou o compromisso com a transparência na gestão pública e trapaceou o Congresso Nacional, além de todas as entidades nacionais e internacionais que baseiam seus estudos em cima do orçamento do Governo Federal. O segundo crime se deu na suplementação orçamentária sem autorização do Congresso Nacional, o que é proibido por lei.

O processo de impeachment deu-se dentro dos ditames legais em todos os seus aspectos. Na Câmara dos Deputados, o pedido foi acatado pelo então presidente, que designou uma comissão para analisá-lo. Essa comissão julgou-o procedente e solicitou a votação em plenário que, por sua vez, autorizou o Senado Federal a fazer o julgamento. No Senado Federal, outra comissão foi criada, também para análise do pedido, e julgou-o procedente, o que ensejou votação em plenário para decidir se a

14 acusada seria julgada, o que resultou positivo e ocasionou o julgamento final entre os dias 25 e 31 de agosto de 2016.

Todavia, entre a data de aceite do pedido de impeachment até o dia do julgamento final, ainda que todas as evidências apontassem para a legalidade do processo, todos os apoiadores de Dilma, sejam políticos, sindicalistas, jornalistas, advogados, juristas e vários membros da sociedade civil, bradavam que tudo não passava de um golpe parlamentar. Esse lado do discurso defendia que nenhum dos atos praticados pela então Presidente poderiam ser tipificados como crime de responsabilidade e, por conseguinte, não haveria de se falar em cassação de mandato, não poderia haver impeachment.

É importante ressaltar que a palavra “crime” ensejou certa confusão no contexto do impeachment. Conforme estabelecido, a acepção dessa palavra está associada à transgressão de uma lei penal, que sugere, por cognição sumária, dolo ou culpa no prejuízo físico ou material a outrem. Todavia, no contexto do impeachment, o crime está associado à responsabilidade em fazer ou deixar de fazer algo em razão do cargo que exerce, de acordo com a lei de responsabilidade fiscal. O que entra em cena é o que pode e o que não pode, sob a perspectiva, sempre subjetiva, na interpretação da lei.

De acordo com Mosca (1997), é no mundo da opinião que são tecidas as relações sociais, políticas e econômicas, pois são a essas opiniões que temos acessos e não ao que se costuma chamar de “mundo da verdade”. A tensividade em torno do pedido de impeachment, portanto, segue a naturalidade das contradições estabelecidas no mundo jurídico e político e, quase automaticamente, geram a pergunta de pesquisa deste trabalho: se o impeachment é um instrumento democraticamente estabelecido, por constar em lei, e os procedimentos jurídicos foram todos seguidos, por que existiu um embate sobre a sua legitimidade?

O objetivo deste trabalho, então, é analisar, sob o arcabouço teórico dos estudos Retóricos, as estratégias discursivas que propuseram a perspectiva de ilegitimidade do processo de impeachment. Com base nos estudos de Aristóteles (2013), que trazem as bases da Retórica, e de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000), que conceituam os procedimentos argumentativos, analisamos os discursos de alguns Senadores em favor de Dilma Rousseff para constatar se os argumentos se estruturaram em uma perspectiva que se aproxima de provas lógicas, com o objetivo

15 de refutar as acusações formais ou se aproximar de provas psicológicas, que acentuaram o plano opinativo com o propósito de fomentar a controvérsia como estratégia de defesa.

Para responder a essas questões, o trabalho foi estruturado em três capítulos. Essencialmente, a intenção foi contextualizar, conceituar e analisar.

O primeiro capítulo objetiva contextualizar um impeachment. Afinal, o que é impeachment e por que foi instituído na Constituição Federal brasileira? Acreditamos ser importante a contextualização para não analisar os argumentos sem a ciência da criação desse instrumento jurídico. Deve-se ter em mente que o termo manteve sua grafia na língua de origem, o que nos faz crer que aderi-lo trouxe consigo toda a sua carga semântica, etimológica e histórica. Inicialmente, fizemos um retorno à História para entender o motivo de sua criação e as transformações realizadas até chegar ao nosso texto Constitucional. Na sequência, colocamos o cenário dos quase trinta anos que antecederam a Constituição Federal de 1988, como forma de mostrar que a Ditadura, grande supressora da Retórica, contribuiu significativamente para a adesão do impeachment, pois sinalizou um grande acordo entre os Poderes da República, em troca da opressão, anteriormente vigente.

O segundo capítulo se ocupa da Retórica propriamente dita. É nesse capítulo que aparecem os pressupostos do discurso dialético-persuasivo e seu enquadramento em gêneros retóricos. Para este trabalho, importam os gêneros político e jurídico, bem como a definição das estratégicas linguísticas que sustentam as provas retóricas, quais sejam, ethos, logos e pathos. Além disso, acrescentamos os estudos da Nova Retórica, os quais oferecem uma base teórica para analisar os procedimentos argumentativos.

No terceiro e último capítulo, o objetivo é analisar os discursos em si e, para uma separação mais didática, estruturamos cinco categorias para análise, com o objetivo de: i) verificar se os discursos estão dentro de um universo opinativo ou de provas lógicas; ii) constatar como o gênero político se infiltra no gênero judiciário, uma vez que o impeachment, por definição, é iniciado por critérios jurídicos e finalizado por critérios políticos; iii) investigar os mecanismos de construção do ethos como forma de valorizar ou desvalorizar o orador ou de quem o orador emitiu juízo; iv) perceber os movimentos passionais para cativar o auditório e persuadi-los por meio de prova que apela à emoção; e v) detectar os procedimentos argumentativos utilizados nas provas lógicas.

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Com base nessas cinco categorias, analisamos os discursos de quatro Senadores da República, a saber: Gleisi Hoffmann (PT-PR), Armando Monteiro (PTB- PE), Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que votaram contra o impeachment e justificaram, cada um a seu modo, os motivos de entenderem a ilegitimidade do processo. Esses discursos foram proferidos no Senado Federal, no penúltimo dia de julgamento, 30 de agosto de 2018.

Do ponto de vista político, não há um entendimento pacífico sobre a validade da destituição do cargo da então presidente Dilma Rousseff. Entretanto, para um país que se diz constituído sob o regime democrático de direito, art. 1º da vigente Constituição Federal1, a pecha de “golpe” não contribui para a solidificação das instituições de Estado, principalmente para um país em que a democracia, sob o ponto de vista histórico, é muito nova. A escolha do assunto impeachment de Dilma Rousseff está associada ao caráter da especificidade do ato, pois a destituição de Presidente eleito pelo voto popular não é tema corriqueiro em sociedades democráticas. Pretende-se, com isso, contribuir para o debate em casos de medidas extremas que, infelizmente, às vezes, impõe-se ao povo de um país.

1 Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2017.

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CAPÍTULO I – O IMPEACHMENT

Inserções do discurso político no discurso jurídico

Quem desconfia excessivamente da retórica é porque confia demais na verdade [...] esse modo de ver as coisas desconhece a dimensão retórica da política, porque tem uma ideia objetivista da verdade, como uma evidência que se impõe sem precisar de persuasão e se realiza na história sem nenhum gênero de resistência. Daniel Innerarity

O termo impeachment, embora seja um empréstimo da língua inglesa, de difícil pronúncia e escrita aos que não possuem o inglês como língua materna, tornou-se amplamente utilizado pela mídia brasileira para designar o complexo processo movido contra membros do alto escalão dos poderes da República por crimes de responsabilidade no exercício de suas funções. Parte dessa complexidade se deve à característica que distingue o processo de impeachment de um processo judicial comum: nasce ancorado em critérios jurídicos, tramita com obediência a critérios jurídicos, mas é julgado por critérios políticos. Essa mescla de critérios coloca em cena culturas conflitantes, pois, no mesmo julgamento, temos, de um lado, os advogados de defesa e acusação e o presidente da sessão plenária que contracenam por meio de argumentos que se enquadram numa linha de pensamento de natureza jurídica e, de outro lado, temos os Senadores que, além de juízes, assumem um papel deliberativo e aconselham seus pares sobre qual posição devem assumir ao julgar e, portanto, atuam por meio de argumentos que se enquadram numa linha de pensamento de natureza política. Esse embate entre argumentos jurídicos e políticos apresenta um cruzamento de gêneros retóricos que não têm finalidades análogas. Conforme Quadro I, abaixo, embora dentro de uma mesma argumentação possa ocorrer traços de mais de um gênero, o jurídico e o político são bem delineados:

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Quadro I - Gêneros Retóricos

Finalidade Tempo Categoria Auditório Avaliação Argum. Tipo

Acusar/ Justo/ Entitema Judiciário Passado Ética Juiz/Jurado Defender Injusto (dedutivo) Aconselhar/ Útil/ Exemplo Deliberativo Futuro Epistêmica Assembleia Desaconselhar Prejudicial (indutivo) Elogiar/ Belo/ Epidítico Presente Estética Espectador Amplificações Censurar Feio Fonte: Mosca (1997, p.32)

Quando se trata de um julgamento essencialmente jurídico, ou seja, quando os processos nascem por critérios jurídicos, tramitam por critérios jurídicos e são julgados em uma casa jurídica com decisões fundamentadas em leis, os discursos das partes têm a finalidade de acusar ou defender ações pretéritas para um auditório de togados. Os advogados das partes se confrontam discursivamente para provar, dependendo do lado em que estão, a veracidade ou a inveracidade dos argumentos utilizados no pedido que ensejou o processo. A título de exemplo, ao longo dos cinco dias de julgamento no Senado Federal do processo de impeachment de Dilma Rousseff, de 25 a 31 de agosto de 2016, verificamos, nas falas dos advogados, argumentos que são típicos do gênero jurídico (BRASIL, 2016):

A denúncia que nós oferecemos – como eu já expliquei inúmeras vezes – tinha três pilares: a omissão da Senhora Presidente diante do escândalo do petrolão, que atingiu pessoas muito próximas a ela e a parte do partido ao qual ela pertence; as pedaladas fiscais, que são os empréstimos vedados que foram tomados ao arrepio do ordenamento jurídico brasileiro e, pior, não contabilizados, a fim de dar uma sensação de segurança, porque já se sabia que não havia; e os decretos que foram editados em desconformidade com a meta de superávit primário vigente, levando-se em consideração uma meta proposta que ainda não havia sido aprovada. Janaina Conceição Paschoal (p. 475) – Advogada de acusação.

Entende-se que os decretos podem ser baixados, se eu fizer a compatibilização com a meta. De que forma? Através de decretos de contingenciamento. Que estão previstos onde? No art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal. Por quê? Porque, como o contingenciamento limita o gasto, a autorização de acréscimo do gasto não tem efeito fiscal. E a meta fiscal é o quê? Fiscal. É simples. José Eduardo Cardozo (p. 493) – Advogado de defesa.

É possível perceber que as falas utilizaram verbos flexionados no passado, argumentaram em razão de fatos que aconteceram e de leis que criminalizavam os

19 fatos. Quem acusava elencava motivos para enquadrar a ré dentro da lei que a punisse. Quem defendia elencava motivos para desenquadrá-la. Os argumentos se filiavam a uma linha de pensamento de natureza jurídica.

Contudo, o julgamento se deu numa casa política e não se limitou às falas dos advogados das partes. Os Senadores, antes de atuarem como juízes, exerceram o papel político de aconselhar e deliberar em razão do mérito que julgaram, ou seja, alternaram o turno entre quem argumentava em prol de uma linha decisória e quem decidia. Foi possível verificar na fala dos Senadores argumentos típicos do gênero político:

Portanto, a decisão de um número tão expressivo não pode ser tida como um atentado à democracia. Muito ao contrário, quando tantos assim decidem, expressam o sentimento de uma maioria da população brasileira que reconhece que Vossa Excelência não reúne mais as condições para continuar a dirigir os destinos do País e dos brasileiros. Dalirio Beber (BRASIL, 2016, p. 459) – PSDB-SC.

É por isso, Sr. Presidente, que estamos cada vez mais convencidos de que o que se constrói aqui é um golpe parlamentar; não gostam dessa palavra, mas é assim que se define na Ciência Política, quando se viola a Constituição. E esse golpe é exatamente para quê? Para impor uma agenda conservadora de destruição de direitos sociais, agenda essa que jamais passaria pelo crivo das urnas, jamais seria escolhida pelo voto popular Senadora Fátima Bezerra (BRASIL, 2016, p. 95) – PT-RN.

Diferentemente da fala dos advogados de acusação, os Senadores, tanto os que estavam a favor como os que estavam contra o impeachment, argumentavam sobre ações futuras, em razão de visões pessoais que possuem sobre o que seria mais útil ao desfecho do julgamento.

Há de se esclarecer que o termo “juiz”, aqui utilizado, não se refere à figura instituída pelo Estado com poder de condenar ou absolver um réu por força de lei. O olhar deste trabalho não é das ciências jurídicas. Trata-se de um auditório, visto sob a ótica dos gêneros retóricos, no caso, judiciário e político. Como afirma Aristóteles (2013), há três espécies de auditório e a necessidade de adaptar-se a eles é que confere traços específicos a cada gênero.

Para o gênero judiciário, o auditório se configura como um tribunal e, independentemente de sua representação social ou institucional, assume a posição de um juiz que vai avaliar se uma acusação é justa ou injusta e emitir juízo sobre ela, ou seja, condenar ou absolver. A título de exemplo, imaginemos um condomínio de casas

20 em que as vagas de garagens são de uso exclusivo dos moradores. Um dos moradores, por ter duas vagas e fazer uso de somente uma, resolve emprestar a vazia a familiar visitante. O síndico, ao saber do ocorrido, reúne o conselho e faz um julgamento: o morador infringiu ou não as regras do condomínio? O auditório, representado pelo conselho, vai dizer “sim” ou “não” e, caso a maioria decida pelo “sim”, uma penalidade será aplicada. Nesse exemplo, é fácil constatar que os conselheiros estavam na posição de juiz, pois a finalidade desse auditório era condenar ou absolver o morador. O que queremos dizer é que não há necessidade da participação do Poder Judiciário, presidido por um juiz de Direito, para que possamos, sob a ótica da Retórica, caracterizar um auditório como juiz.

Para o gênero político, o auditório se configura como uma assembleia, que vai debater se uma escolha tem ou não utilidade, e, para isso, projeta, conjectura sobre as consequências futuras de uma decisão. Se utilizarmos o mesmo exemplo do condomínio e, se o síndico, ao invés de reunir o conselho para condenar ou absolver, deliberasse sobre os benefícios e os prejuízos de permitir que uma vaga seja utilizada por não moradores, esse mesmo auditório deixaria de ser juiz. Nessa configuração, é possível constatar que o síndico e o conselho estariam na posição de assembleia, pois a finalidade seria definir a melhor opção aos moradores do condomínio. Também, para esse caso, o que queremos dizer é que não há necessidade da participação do Poder Legislativo, representado por parlamentares, para que possamos caracterizar, em retórica, um auditório como assembleia.

Em um julgamento de impeachment, há uma mistura de finalidades do auditório que cria uma imbricação de gêneros retóricos. De um lado, o termo “julgamento” nos remete à apreciação de fatos praticados por um réu, com a finalidade de condená-lo ou absolvê-lo, o que caracteriza o auditório como tribunal. De outro lado, os membros desse mesmo auditório, antes de condenar ou absolver, vão à tribuna e deliberam aos seus pares sobre os benefícios e/ou os prejuízos da decisão que será tomada, o que caracteriza o auditório como assembleia. Com isso, os senadores, em um mesmo discurso, deliberam sobre os benefícios e os prejuízos da decisão que irão tomar, ou seja, posicionam-se como oradores que discursam a uma assembleia e, ao final, condenam ou absolvem o réu, ou seja, posicionam-se como juízes.

Como a finalidade do impeachment é condenar ou absolver, entendemos que o gênero predominante é o judiciário e, por consequência, os discursos que se

21 enquadram no gênero jurídico da retórica tradicional. Portanto, em cada momento em que um senador-juiz delibera, faz inserções de discursos argumentativos de natureza política. Essas inserções, ou seja, as circunstâncias que possibilitam discursos políticos se imbricarem em discursos jurídicos abriram espaço para a perspectiva de que o processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff não foi legítimo, mas sim um golpe parlamentar.

De acordo com Campbell et al. (2015), qualquer perspectiva é um modo de olhar para algo; a autora adota a premissa de que verdades não podem caminhar com as próprias pernas e precisam ser carregadas por pessoas, têm de ser explicadas, defendidas e difundidas por meio da linguagem, da argumentação e de apelo (p. 3-4). Portanto, embora o impeachment de Dilma Rousseff tenha obedecido a todos os critérios jurídicos, não ficou imune às inserções de discursos políticos, os quais se dividiram em relação à legitimidade do processo em si. Estiveram em cena, então, procedimentos argumentativos que se apoiaram em provas retóricas2, que, oriundas de Aristóteles (2013) e reformulados por Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000), permitiram “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas ao assentimento” (p. 4), pois tiveram claro que os aspectos do raciocínio relativos à verdade são diferentes daqueles referentes à adesão. “O que caracteriza a adesão dos espíritos é sua intensidade de ser variável” (p. 4), ou seja, de parecer verdade, ser verossímil. Dito dessa forma, pode soar que “parecer verdade” e “verossímil” são sinônimos de trapaça, de engodo. Todavia, um contexto retórico não pode prescindir de duas variáveis. A primeira está associada ao auditório. Como diz Ferreira (2015), é o “auditório que, como leitor ou ouvinte de um ato retórico, concentra toda a atividade do orador” (p. 21). A segunda está associada ao universo da doxa, da opinião, “pois é no mundo da opinião, da doxa que são tecidas as relações sociais, políticas e econômicas, uma vez que é a esta que se tem acesso e não ao que se chamaria de „mundo da verdade‟” (MOSCA, 1997, p. 21). Além disso, como demonstra Ferreira (2015), existe uma tensividade retórica natural no universo da doxa, “característica da dinâmica da comunicação social: discordâncias relativas a

2 Aristóteles definiu as provas retóricas como meios de persuasão supridos pela palavra falada que levam em consideração que os seres humanos não são dotados de capacidades apenas racionais. Com isso, entende que a persuasão, ou seja, a eficácia do argumento, é construída por meio de um orador digno de crédito (ethos), capaz de levar o auditório a certa disposição de espírito (pathos), com um discurso que demonstra a verdade ou que pareça ser verdade (logos). Esse assunto será discutido com mais detalhes no capítulo II desta dissertação.

22 conflitos de conceitos, choques semânticos, diferentes visões de mundo, diferenças ideológicas, crenças antagônicas” (p. 23).

Portanto, os olhares antagônicos lançados sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff não estão, necessariamente, associados a verdades e mentiras, mas sim ao universo da opinião e à tentativa de fazer com que o auditório – Senadores da República – analisasse os discursos, aderisse às teses que lhes foram apresentadas e desse o voto de acordo com a pertinência de cada uma delas.

Para boa compreensão desse significativo momento do contexto político do país, entendemos ser necessário um breve retorno à História para compreender as premissas de um impeachment e colocar todos os argumentos, prós e contras a perspectiva de legitimidade, dentro de um mesmo cenário. O impeachment de Dilma Rousseff foi baseado nas regras da Constituição Federal de 1988, mas o termo impeachment foi criado há séculos e está presente na Constituição de vários países democráticos, como Estados Unidos da América, Inglaterra, Chile. Então, entender qual foi a motivação de sua criação e o porquê de a Constituição Federal brasileira adotá-lo nos ajudará entender o contexto retórico.

O impeachment como freio ao poder absoluto

Encontra-se a liberdade política unicamente nos Estados moderados. Porém ela nem sempre existe nos Estados moderados: só existe nesses últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Barão de Montesquieu

Como exposto por Campbell (2015), verdades não caminham com as próprias pernas e precisam da ajuda de uma voz para serem construídas. Dada essa visão particular, decidimos ir ao encontro da História oficial, aquela catalogada nos livros de História, que tendem, por força de seu objetivo didático e geral, a ter uma aceitação em maior escala. Para isso, buscamos autores que já falaram sobre impeachment com o objetivo de nos situarmos no tempo, época de criação do impeachment, e no espaço, em que parte do mundo ele foi criado. Por essa via, Faver (2016, p. 322) nos deu uma resposta possível: ainda que a data exata de surgimento do impeachment seja objeto de

23 inúmeras discussões, há certo consenso que tenha nascido na Inglaterra e que o contexto político girou em torno da Magna Carta de 1215, que serviu de base para várias Constituições no mundo ocidental. A partir dessa afirmação de Faver (2016), buscamos um historiador que descrevesse os fatos, na Europa, em torno da Magna Carta de 1215, e chegamos a Maurois (1966). Como não se trata de argumentar, mas tão somente demonstrar os fatos ali ocorridos que levaram à criação do impeachment, concedemos os créditos dos próximos parágrafos a esse autor. A nossa fala é um resumo das páginas 72 a 167.

Iniciamos a narrativa pelo contexto político-administrativo da época. Naquele período, a Inglaterra vivia sob um regime monárquico, absolutista, comandado pela dinastia dos Angevinos, também conhecida por dinastia do Plantageneta. De 1154 a 1189, a Inglaterra foi governada por Henrique II. De 1189 a 1199, por seu filho, Ricardo I. De 1199 a 1216, por João, também filho de Henrique II e irmão de Ricardo I3.

O regime econômico da época era feudal e, como não havia o conceito, ao menos legal, de propriedade privada, a necessidade de proteção de terras era constante e o rei era a pessoa que dava essa garantia ao povo, por meio de seu exército. Henrique II era de uma família poderosa, tinha caráter duro e atitudes de guerreiro, mas com traços déspotas na administração de seu povo, principalmente na imposição de impostos. Porém, era vitorioso na conquista de terras e demasiadamente respeitado por seu povo, que suportava muito dos mandos e desmandos, pois entendia ser mais benéfico ter um rei déspota do que um regime anarquista. Na vida familiar, contudo, por se separar de sua esposa, Eleonora, mãe de seus filhos que, futuramente, assumiriam o trono, viviam, pai e filhos, em constante discórdia.

Ricardo I, por saber que o rei da França, Filipe Augusto, era admirador de sua mãe e tinha muito interesse pelas terras do pai, aliou-se a ele para tirar o pai do trono. Tal conspiração chegou ao conhecimento de Henrique II que, desiludido, resolveu reservar Aquitânia ao outro filho, João. Ricardo I, por ter mais ligações com a mãe, que era de Aquitânia, e muito mais interesse por essa região do que qualquer outra do reino, enfureceu-se. Movido por esse ódio, juntou-se ao rei da França para expulsar o pai, que “fugiu a galope pelos atalhos, perseguido pelo próprio filho, Ricardo. [...] Em

3 Esse recorte temporal e as figuras histórias envolvidas compreendem o conteúdo necessário para explicar a criação da Magna Carta de 1215.

24 seguida entrou em delírio e em breve morria com uma hemorragia.” (MAUROIS, 1966, p. 116). Ricardo I assume o trono da Inglaterra e, em pouco tempo, saiu, em conjunto com Filipe Augusto, em cruzada para Jerusalém, à conquista de terras. No regresso, contudo, por ser considerado um homem perigoso, foi capturado pelo duque da Áustria, que o reteve preso e somente o soltaria mediante pagamento de alta taxa. A Inglaterra foi avisada do ocorrido e os ministros, que assumiam o poder na ausência do rei, resolveram fazer o rateamento por todas as classes da sociedade para pagar o resgate do cativo. A arrecadação não tinha sido suficiente, mas houve consentimento para a liberdade provisória e posterior pagamento do restante. Ao regressar à Inglaterra, Ricardo I, ainda que recebido com entusiasmo por seu povo, ao invés de reconhecimento pelo esforço do rateamento por sua soltura, sobrecarregou seu povo com mais impostos. Essa postura não foi bem recebida, provocou uma série de desentendimentos e culminou em guerra. “Ricardo foi atingido por uma seta; a ferida infeccionou e o rei morreu na sua tenda a 6 de abril de 1199.” (MAUROIS, 1966, p. 121).

O irmão, João, assumiu o trono, mas tinha características um pouco diferentes das de seu pai e de seu irmão. Era considerado cruel e vil. Um dos feitos que lhe renderam esses adjetivos está no fato de ter mandado matar seu próprio sobrinho, Arthur da Bretanha, rival na sucessão do trono. Embora tenha conseguido tirar o sobrinho da sucessão, teve de enfrentar Filipe Augusto, o qual reclamou boa parte das terras inglesas perante tribunal. João, por não comparecer para sua defesa, foi considerado culpado e não pode mais se manifestar. Filipe Augusto, com o Direito ao seu lado, iniciou a tomada das terras do reino de João, a ponto de, dez anos após a morte do pai, Henrique II, o império dos Angevinos estar quase todo liquidado. Diante dessa situação, não conseguia resguardar as terras das invasões, era tido como um rei vencido e, por isso, desprezado por todas as classes. Os barões, portanto, perguntavam-se por que tolerariam os abusos de um rei desprezado e juraram não deixá-lo em paz até que assinasse um acordo que impunha ao rei o dever de respeitar determinadas leis e não mais governar como bem entendesse. A esse conjunto de leis, dá-se o nome de Magna Carta, assinada em 1215. João ainda tentou resistir, mas, ao procurar quem ficasse ao seu lado, percebeu que o país inteiro estava contra si e assinou a carta. Os termos da carta se associavam mais à liberdade dos súditos do que às obrigações do rei, ou seja, a preocupação não era ditar o que o rei precisava fazer,

25 mas especificar o que ele não poderia fazer ou poderia mediante negociação com um grande conselho.

É bem verdade que o fato de o rei ter assinado a Carta não significava que deixara de haver resistência ao conteúdo pelo próprio signatário quanto dos reis que o sucederam. Contudo, após assinatura da Carta, sem que os reis conseguissem intervir, a vigilância do tipo feudal, preocupada com os proprietários de terra, foi-se transformando em vigilância parlamentar, por meio da criação de comunidades. “Os habitantes das cidades, comerciantes, estudantes, e enfim todos aqueles que escapavam ao quadro da sociedade feudal, só na associação conseguiriam a indispensável segurança de suas pessoas” (MAUROIS, 1966, p. 128). Essas comunidades e as associações que se formaram, representantes do grande conselho, culminaram no que conhecemos hoje por Parlamento.

Esse período da história da Inglaterra, portanto, criou, de um lado, comunidades organizadas com alguns representantes em conselho (Parlamento) e, do outro lado, um número de leis que garantiam certas liberdades ao povo inglês, bem como limitavam o abuso no exercício do poder. O Parlamento possuía poderes para se rebelar contra arbitrariedades da coroa. Entretanto, na monarquia inglesa, os reis não podiam ser responsabilizados por seus atos. “Ora, como o rei era inviolável e não podia ser acusado, um conflito entre o Parlamento e a Coroa não comportava outra solução, além da dissolução do Parlamento ou a deposição do rei, isto é, a instalação da anarquia.” (RICCITELLI, 2006, p. 167). Para fugir desse conflito, a solução que encontraram foi responsabilizar o rei na figura de seu ministro. O grande conselho, como um tribunal, faria o julgamento e condenaria o ministro, se entendesse a acusação procedente. A essa forma rudimentar e estranha da responsabilidade ministerial deu-se o nome de impeachment. Foi a partir dos eventos que possibilitaram o povo inglês frear o absolutismo da coroa que nasceu o impeachment. Deve-se ressaltar que, embora a Carta tenha sido assinada em 1215, o grande conselho conseguiu autonomia para retirar um ministro do poder ao longo do tempo; daí a dúvida em relação à data exata de aplicação do primeiro impeachment. Encerra-se aqui o resumo histórico que fizemos de Maurois (1966). A partir desse ponto, passamos a analisar as características do impeachment e o processo histórico que culminou na sua adesão pela Constituição brasileira.

26

Há de se considerar que a criação do impeachment se deu em bases jurídicas. Uma acusação era levada ao grande conselho, que julgava com base na Magna Carta de 1215 e impunha penalidade que atingia a pessoa do acusado. Não se tratava somente da perda do cargo, pois o processo era criminal. Como demonstra Riccitelli (2006), havia “implicações pesadas, como o pagamento de altas multas, o confisco de bens patrimoniais, a restrição da liberdade e, em alguns casos, pagando com a própria vida” (p. 8). O impeachment atingia, a um só tempo, o poder do cargo que exercia, bem como a pessoa do acusado, seja pela tomada de bens, pela privação de liberdade, ou, em casos extremos, pela privação da vida. É possível perceber que essa configuração tem características diferentes das utilizadas atualmente nas sociedades democráticas. Nos dias atuais, o impeachment se restringe ao poder do cargo. É retirado o poder, mas a pessoa não sofre nenhuma penalidade por esse instrumento. Fica sujeita aos termos de outras leis, se afastado do cargo, como cidadão comum, mas ao impeachment cabe, tão somente, retirar o poder de quem perdeu a confiança dos representados.

Para entender essas diferenças, lá e cá, segundo Riccitelli (2006, p. 4), o impeachment deve ser estudado sob dois enfoques: o primeiro é criminal ou monarca e o segundo político ou republicano. Como o trajeto histórico acima já explicita o enfoque criminal, resta-nos entender como se deu o enfoque político. Segundo Faver (2016), o impeachment como procedimento político foi adotado pelos Estados Unidos da América, no século XIX. “Os americanos racionalizaram o instituto inglês, expurgando-o dos aspectos excepcionais e por vezes odioso (sic) que, historicamente, a ele se ligavam.” (p. 323). O objetivo dos americanos não era penalizar o acusado, mas proteger o Estado e, com isso, marcaram a transformação do instituto de penal para político.

No enfoque político, criado pelos americanos, a acusação é feita na Câmara dos Representantes (similar à Câmara dos Deputados, no Brasil), que faz uma votação para acatar ou não a denúncia. Se acatada, tem a primeira votação, pela maioria simples. Se passar, vai ao Senado, que julga pela cassação ou não do mandato; para tanto, são necessários 2/3 dos votos para cassação. No caso dos Estados Unidos da América, conforme Nascimento (2016), ocorreram somente três casos durante todo o período em que adotaram a versão política do impeachment. Segundo o mesmo autor, os casos

27 foram dirigidos contra Andrew Johnson, em 1868, Richard Nixon, em 1974 e Bill Clinton, em 1992. O quadro abaixo faz um resumo desses processos:

Quadro II – Impeachment nos EUA

Presidente Ano Acusação Câmara Senado Violação ao Tenure of Office Act, que Andrew condicionava a demissão de certos Aceitou a 1868 Absolveu Johnson cargos no gabinete à aprovação prévia acusação do Senado. Richard Abuso de poder, Desrespeito pelo Renunciou antes de o processo 1974 Nixon Congresso e Obstrução à justiça. iniciar Ter relações sexuais com estagiária Aceitou a Bill Clinton 1992 dentro da Casa Branca e negar o caso Absolveu acusação sob juramento: perjúrio. Fonte: Nascimento (2016)

Então, desde a adoção do impeachment pela Constituição americana, embora o julgamento seja político, os processos precisaram de um motivo de natureza jurídica para iniciarem-se. É necessária uma acusação com base em alguma regra previamente estabelecida, ou seja, em alguma lei. A concepção de impeachment como instrumento de um parlamento para depor figuras do alto escalão de um governo promove, conscientemente ou não, um julgamento que provoca a inserção de discursos políticos em discursos jurídicos. Essa mescla é a essência de um processo de impeachment.

A adoção do Impeachment na Constituição Federal brasileira de 1988

Em honra dos sofistas, deve ser dito que a persuasão é preferível à força e à violência e que a retórica é, por excelência, uma arte democrática que não pode florescer numa tirania. William Guthrie

Segundo Riccitelli (2006, p. 15), o ordenamento jurídico brasileiro aderiu aos mesmos procedimentos e preceitos adotados pela Constituição dos EUA e, com exceção da Constituição Brasileira de 1824, que era imperial e reviveu a irresponsabilidade do monarca – como acontecia na Inglaterra –, todas as demais Constituições incluíram o impeachment como instrumento para o Senado julgar crimes

28 de responsabilidade, ou seja, julgamento com finalidades políticas. Contudo, a análise desta dissertação recai sobre o impeachment de Dilma Rousseff e, por isso, o que interessa são os motivos de sua adoção na Constituição Federal brasileira de 1988.

A criação do impeachment, seja no enfoque jurídico ou político, tem o objetivo de frear o absolutismo das pessoas que assumem o poder, e, no Brasil, não foi diferente. A Constituição de 1988 pôs fim, institucionalmente, a um período de mais de 20 anos – de 1964 a 1985 – de ditadura militar. Neste subcapítulo, portanto, nosso objetivo é analisar esse período e contrapor absolutismo e diálogo – ou a falta dele – e mostrar que a adoção do instrumento impeachment na Constituição de 1988 tem muita relação com a perspectiva histórica, ou seja, imposição de limites ao poder de governar. Para chegar a essa conclusão, analisaremos as ações contidas dos Atos Institucionais – AI4, que, em boa medida, traduzem a intenção do regime. Como o objetivo desta pesquisa não é histórico, nosso olhar terá foco nas facilidades – ou dificuldades – criadas para o diálogo, ou seja, nas possibilidades de as pessoas ou as instituições argumentarem contra as regras de convivência editadas pelos militares.

Entre os anos de 1964 e 1969, foram editados dezessete Atos Institucionais, nomeados como AI-1, AI-2, e assim sucessivamente, até o dezessete. O objetivo desses AI era conferir alto grau de concentração de poder aos chefes do Poder Executivo em detrimento dos demais poderes, os quais, sem muita margem de dúvida, são os que mais representam a possibilidade de diálogo, pois o Legislativo é o lugar, por excelência, do debate de ideias e da solução das controvérsias sem o uso da força, e o Judiciário, por sua vez, é o lugar em que as pessoas e as instituições conseguem fazer valer direitos e garantias fundamentais.

O AI-1 inaugurou a institucionalização do regime e demonstrou, por meio da linguagem utilizada, o viés autoritário adotado na comunicação. Logo em seu preâmbulo, antes mesmo que as regras fossem expostas, o orador se revestiu de um discurso que se impôs como verdade incontestável, além do tom de quem ignora as paixões suscitadas em seu auditório. As provas dessas constatações estão nas passagens em que o orador define os atos dos militares como a “autêntica revolução” que traduz “não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”, sem que houvesse tido qualquer consulta pública. Diz que essa forma de

4 Para um resumo sobre cada um dos AI, consultar: . Acesso em: 25 fev. 2018.

29 revolução se impõe como vitoriosa, pois “graças à ação das forças armadas e o apoio inequívoco da Nação” se legitimaram para instituir um Poder Constituinte. Há a reiteração do discurso autoritário ao longo de todo o preâmbulo, quando, por exemplo, diz que o Poder Constituinte visou assegurar “o exercício do Poder no exclusivo interesse do país”. A falácia indutiva é bem visível na passagem que afirmam não querer “radicalizar o processo revolucionário” e, por isso, decidem “manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la...”, mas as mudanças atingiram preceitos fundamentais anteriormente vigentes.

Os preâmbulos dos demais AI só reiteraram o ethos violento do orador. No AI- 2, o orador diz que não “se disse que a revolução foi, mas que é e continuará. Assim o seu Poder Constituinte não se exauriu, tanto é ele próprio do processo revolucionário, que tem de ser dinâmico para atingir os seus objetivos.”, ou seja, declarou que continuaria a editar regras, quantas fossem necessárias, para atingir os objetivos do regime. No AI-3, reafirmou os propósitos quando diz ser “imperiosa a adoção de medidas que não permitam se frustrem os superiores objetivos da Revolução” e “a necessidade de preservar a tranqüilidade (sic) e a harmonia política e social do País”, e, no AI-4, entendem “que a Constituição Federal de 1946, além de haver recebido numerosas emendas, já não atendia às exigências nacionais”, sempre sob a indiscutível ótica do orador. No AI-5, além de reiterar o que AI anteriores já disseram, afirma que o regime usará dos meios que forem necessários para barrar pessoas ou grupos contra o regime, pois “o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido”. É possível observar que não há nenhuma incitação ao diálogo e o discurso tem caráter ameaçador. No AI-6, o ethos do orador se reafirma quando diz que a “ação continua e continuará em toda sua plenitude, para atingir os ideais superiores do movimento revolucionário e consolidar a sua obra.”. No AI-7, o orador, sem que tenha havido debate e sem qualquer justificativa, entende que “é desaconselhável a realização de eleições parciais, para cargos executivos ou legislativo da União, dos Estados, dos Territórios e dos Municípios.”. Nos preâmbulos do AI-8 ao AI-13, os textos estão voltados para a lei em si, não em expressões que reafirmam o regime, embora sempre reafirmem o autoritarismo. Já no AI-14, para conter toda e qualquer tentativa de guerra psicológica ou subversiva, “que atualmente perturbam a vida do País e o mantém em clima de intranqüilidade (sic) e agitação, devem merecer mais severa repressão”. Nesse caso, o AI-14 reitera a aversão do regime militar à controvérsia, o que reafirma

30 o ethos de um orador violento, truculento e intransigente. No AI-15, o orador justifica a intervenção federal em vários municípios do país, ainda que as eleições para prefeito tivessem acabado de acontecer, sob a justificativa de “defesa dos princípios e da continuidade da obra revolucionária”. Os AI-16 e AI-17 só reafirmam o que foi dito nos AI anteriores.

Os comentários sobre os dezessetes AI foram referentes aos preâmbulos de cada um deles, ou seja, a parte preliminar, aquela que visa justificar as leis que serão expostas na sequência. Portanto, ainda que os preâmbulos por si já justifiquem um ethos revestido de um discurso violento e de ações cada vez mais violentas em relação ao auditório, vale ressaltar as principais regras impostas por esses AI e o que representam do ponto de vista do cerceamento às possibilidades de controvérsias, de refutação, de convencimento, logo, de um universo propício para a retórica.

No AI-1, os militares pretenderam: a) dar poder ao Presidente da República para enviar projeto de lei ao Congresso Nacional com prazo máximo de 30 dias para votação e, caso o Congresso não conseguisse cumprir o prazo, o projeto era tido automaticamente como aprovado, o que fez iniciar um jogo arbitrário em que o Executivo passa a jogar com a impossibilidade de o Legislativo ter o tempo necessário para o debate do projeto; b) dar ao Presidente da República – e somente a ele – a prerrogativa de criar ou aumentar gasto público, o que punha fim às discussões sobre o que se entende como prioridade para as políticas públicas; c) suspender garantias constitucionais ou legais de estabilidade, nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal –, o que permitiu ao Presidente da República decidir, sem nenhum debate, sobre as relações de trabalho de qualquer ente público; d) facilitar a abertura de inquérito para os crimes contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária, o que permitia o agrupamento de pessoas no polo passivo da acusação e dificultava a possibilidade de se defender discursivamente; e e) dar aos comandantes das forças armadas o poder de caçar mandato legislativo em qualquer um dos poderes, sem a apreciação do Poder Judiciário, o que enterra a possibilidade de contra-argumentar.

Em menos de um ano após a vigência do AI-1, os militares editaram o AI-2. Com os 33 artigos, os militares pretenderam: a) tornar a eleição para presidente como indireta, o que, do ponto de vista discursivo, coíbe a retórica envolvida nas campanhas, em que os candidatos precisam convencer o eleitorado do porquê de ser o

31 mais preparado e dá ao eleitorado o poder de decidir em qual discurso aderir; b) eliminar os vencimentos dos vereadores, o que limita a capacidade das pessoas com condições financeiras precárias exercerem papel legislativo; c) dar ao Presidente da República o direito de decretar estado de sítio, “para prevenir ou reprimir a subversão da ordem interna”, ou seja, o Presidente pode retirar as garantias constitucionais se forças de oposição incomodá-lo; d) suspender direitos políticos, o que viola a garantia de argumentar contra o regime; e) dar ao Presidente da República o direito de intervenção nos estados e municípios. Esse tipo de intervenção põe fim aos acordos realizados; e f) excluir de apreciação judicial ações do governo federal, o que, não deixa dúvida, elimina qualquer possibilidade de diálogo.

No AI-3, com sete artigos, os militares: a) estenderam as eleições indiretas para o cargo de governador de Estado, o que estende, também, a coibição da retórica envolvida nas campanhas eleitorais e remove da população o direito de escolha; e b) retiram da população ou dos partidos políticos qualquer possibilidade de judicializar os resultados das eleições indiretas, ou seja, a escolha do governador se dá por uma minoria de deputados estaduais e, à população, cabe o resultado.

No AI-4, com dez artigos, os militares: a) intervieram na rotina do Poder Legislativo, com imposição de sessões extraordinárias no período de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967; b) impuseram procedimentos e prazos para as matérias que seriam levadas pelo Executivo; c) autorizaram o Presidente da República a expedir decretos com força de lei sobre as matérias administrativa e financeira; e d) decretaram qual seria a remuneração dos deputados pelos trabalhos extraordinários. Todos os tópicos desse AI revelam um ethos violento, indisposto a qualquer observância ao diálogo e disposto ao uso da força para fazer cumprir suas necessidades.

No AI-5, considerado o mais rígido de todos, com 12 artigos, os militares: a) permitiram que o Presidente da República decretasse recesso do Congresso Nacional e, por conta desse recesso, legislar sobre qualquer matéria. Notoriamente, tal dispositivo concentra autoridade de forma tão demasiada nas mãos de uma única pessoa que torna a retórica uma utopia; b) além de decretar recesso, subtraem dos congressistas boa parte de seus vencimentos, o que torna instável a atividade parlamentar, tão importante para contrabalancear poderes; c) permitiram ao Presidente da República a intervenção nos estados e municípios sem observância de lei, ou seja,

32 sob a falácia do “interesse nacional”, o Presidente pôde intervir na política de qualquer estado e alterar qualquer acordo que a relação governante/governado possa ter previamente estabelecido, o que pôs fim ao diálogo que porventura tenha ocorrido; d) permitiram ao Presidente da República, “ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição”, suspender direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos, além de caçar mandato eletivo nos três níveis de governo, o que, de longe, mostra a passionalidade do ethos; e) deram ao Presidente da República o direito de decretar estado de sítio, sem previa consulta a nenhuma instituição, regra que contribuiu aos excessos praticados pelos militares; f) suspender a garantia de habeas corpus “nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”, em geral, nos casos em que os militares considerassem reação ao regime; e g) excluíram de apreciação judicial todos os atos anteriores.

Do AI-6 ao AI-17, todos editados entre fevereiro de 1969 e outubro do mesmo ano, logo, em alguns meses, mais de um AI, originaram-se, conforme demonstra Calicchio (2019), como complemento do AI-5.

O AI-5 deu origem, em etapas distintas, a mais 12 atos institucionais (todos editados por Costa e Silva e pela junta militar que o sucedeu), 59 atos complementares e oito emendas constitucionais, abrangendo todas as áreas da vida nacional. Tornando plena a legislação de exceção, os governos militares puderam assim usar rotineiramente o poder coercitivo como alternativa para superar os conflitos políticos. (CALICCHIO, 2009)5.

Os AI, portanto, foram a institucionalização do fim da retórica no período. Os militares impuseram regras com a justificativa de que protegeriam o país do comunismo e da corrupção. Por fim, não é difícil imaginar que um regime tão autoritário angariaria uma legião de opositores. Embora houvesse forte repressão e as instituições não estivessem abertas ao contraditório, vários movimentos foram criados na tentativa de restabelecer a democracia. Como demonstra Villaça (2018), a organização de partidos políticos, os movimentos sindicais e estudantis, as pressões civis pela punição dos militares e as reivindicações populares no contexto das crises econômicas foram fundamentais para o enfraquecimento do regime e para o retorno ao Estado democrático de direito. Havia a ânsia pelo fim de um período em que o Estado podia tudo. Ainda que tenha sido “um processo muito lento, na maioria dos casos, e

5 Trecho extraído diretamente da internet. Não há numeração de página.

33 permeado de tensões, avanços e retrocessos” (VILLAÇA, 2018), podemos dizer que, em larga medida, vivemos, hoje, em 2018, sob um regime muito mais democrático. A criação do instrumento impeachment, portanto, vem recheada de conhecimento e vivência histórica por parte dos constituintes, os quais criaram esse mecanismo como forma de limitar o poder de suas possíveis artimanhas em impedir o contraditório.

O Impeachment como sinalizador de acordo prévio

Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Norberto Bobbio

O tempo associado ao que Villaça (2018) diz ser permeado de tensões, avanços e retrocessos ficou conhecido como período de redemocratização e há certo consenso que o grande marco da redemocratização foi a promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF 88. Enquanto nos Atos Institucionais as leis foram estabelecidas para exacerbar o poder do chefe do Executivo em detrimento aos demais poderes, a CF 88 reverteu a regra do jogo: restabeleceu direitos sociais – individuais e coletivos – e definiu as responsabilidade e limites ao Presidente da República. O objetivo deste subcapítulo é demonstrar que essa reversão restabeleceu o contraditório e, por sua vez, o direito a argumentar, contra-argumentar e agir mediante a observação de regras previamente estabelecidas.

De forma análoga ao que fizemos com os Atos Institucionais, vamos analisar algumas passagens da CF 88 e correlacionar os artigos em que é possível verificar a institucionalização do diálogo, da possibilidade do contraditório. Em várias passagens da Constituição podemos entender dessa forma. Além disso, podemos observar a importância dada ao fim da tirania com a redação do artigo inaugural:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;

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II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

O primeiro artigo da Constituição estabelece alguns itens como fundamentais e norteadores das demais leis: a) a soberania do Brasil em relação aos demais países, ou seja, as leis brasileiras serão criadas com base nos valores morais e éticos dos brasileiros; b) a cidadania, de forma abrangente, qual seja, o direito de participar da vida pública; c) a dignidade da pessoa humana, o que inviabiliza qualquer plano de tratamento degradante, especialmente os praticados pelos ditadores; d) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o que permite as pessoas trabalharem com o ofício que desejarem; e e) pluralismo político, com a permissão para a pluralidade de propostas para a administração pública nos três poderes.

Somente por esse primeiro artigo podemos observar as possibilidades de criação de um cenário mais aberto ao diálogo. Todavia, esses itens são somente os princípios norteadores dos demais artigos. A CF 88 reservou um capítulo para falar sobre “os direitos e deveres individuais e coletivos”. Foram redigidos pelo art. 5º, que possui mais de setenta incisos, os quais vamos resumir aqui, sempre com foco nos itens que fortalecem o direito ao contraditório: a) é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Em um sistema democrático, qualquer pessoa tem o direito de expressar o que pensa sem que seja coibido fisicamente. Veda-se o anonimato, porque se a expressão violar o direito de outrem, será permitido o direito de resposta ou pleito de indenização por danos morais; b) é inviolável o direito à crença religiosa; c) é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação; d) a liberdade para reunião com fins lícitos e pacífico são plenas; e) todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular; f) é assegurado a todos o direito de peticionar a poderes públicos contra ilegalidade e abuso de poder; g) não haverá juízo ou tribunal de exceção; e h) é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral e às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.

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Não é difícil perceber as diferenças entre os regimes. Enquanto na ditadura os esforços foram em eliminar qualquer possibilidade de controvérsias por parte da população, as quais eram repreendidas à base do uso da força, a CF 88 estabeleceu uma série de garantias ao cidadão. Associado a essas garantias, a CF 88 também se preocupou em estabelecer quais as regras para o exercício do cargo de Presidente da República, tanto por parte das atribuições que lhe são privativas, quanto dos limites no uso de suas atribuições.

Em relação às atribuições do cargo, o art. 84 ficou responsável pela redação e contém vinte e sete incisos, aqui resumidos: a) todos os direitos para nomear e exonerar funcionários da administração federal; b) estabelecer relações com o Congresso Nacional, seja no envio de leis para votação, como no veto em leis discutidas e aprovadas pelo Congresso Nacional; c) estabelecer relações com países estrangeiros e fazer acordos, desde que referendados pelo Congresso Nacional; d) intervir nos estados federativos; e e) prestar contas ao Congresso Nacional dos gastos realizados.

Em relação aos limites no uso de suas atribuições, a CF 88 reservou o art. 85, denominado “Crimes de Responsabilidade”, com sete incisos, os quais comentaremos um a um. Redige o artigo que o Presidente da República não pode atentar contra: a) a existência da União, ou seja, não pode desfazer o que está posto para efeito de divisão das esferas administrativas; b) o livro exercício dos demais poderes da república, o que dá a garantia da equidade entre os poderes e retira do Executivo a possibilidade de frear medidas tomadas pelos outros poderes; c) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, logo, jamais fazer o que fizeram os militares; d) a segurança interna. Qualquer subversão à ordem não pode partir do Presidente; e) a probidade na administração, ou seja, não pode incorrer em nenhum tipo de desonestidade; f) a lei orçamentária, qual seja, um grupo de regras que definem o que pode e o que não pode na administração financeira do dinheiro público; e g) o cumprimento das leis e das decisões judiciais, o que coloca o Presidente, como qualquer outro cidadão, abaixo da lei.

A CF 88, portanto, estabeleceu as regras do jogo para o chefe do Poder Executivo. Confere atividades privativas e diz o que o Presidente não pode fazer. O descumprimento desse artigo constitucional enseja, pela via estrita do descumprimento e, em grande medida, por vontade política, em um processo de impeachment. O

36 impeachment, sob a ótica deste trabalho, por todo o exposto neste capítulo, é um processo que atende aos critérios jurídicos, quais sejam, a não observância dos itens do art. 85, e se inicia por vontade política. É necessário que as vozes políticas se manifestem, baseadas em critérios jurídicos, e ganhem espaço para deliberar e levar o processo adiante.

No caso específico de Dilma Rousseff, no dia dois de dezembro do ano de 2015, os advogados Hélio Pereira Bicudo, Miguel Reale Junior e Janaina Conceição Paschoal, todos cidadãos brasileiros, sem cargo no poder público, exerceram o direito ao contraditório e protocolaram pedido de impeachment contra Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados, sob a alegação de que a então presidente infringiu, basicamente, duas regras pré-estabelecidas6.

A primeira acusação foi de que a presidente fez “a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes” (CF 88, art. 167, V). Vale ressaltar que, em grande medida, a CF 88 visou pôr fim a qualquer instrumento de tirania do chefe do Executivo e o inciso desse artigo da CF 88 requeria a “prévia autorização legislativa”, logo, à Presidente caberia o dever da retórica: era necessário convencer os deputados de que a suplementação do crédito era necessária e conseguir a autorização deles para o ato, o que não foi feito.

A segunda acusação estava ancorada em “abrir crédito sem fundamento em lei ou sem as formalidades legais” e “contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal” (Lei 1.079/50, art.11, itens 2 e 3). Basicamente, a ex-presidente foi acusada de crime de ordem orçamentária por, em todos os casos, não justificar a necessidade de angariar mais recursos. Impor limites às formas de contrair dívidas é uma forma de proteger o Estado contra ações que podem comprometê-lo no futuro. Portanto, também nesse caso, caberia à Presidente seguir regras pré-estabelecidas e fazer uso da retórica: convencer quem poderia lhe autorizar a tais atos.

Em resumo, o objetivo deste primeiro capítulo foi contextualizar um processo de impeachment. O impeachment não nasceu na CF 88. Foi um instrumento utilizado desde a idade média, na Inglaterra, com o objetivo de frear o abuso de poder.

6 Para acessar os detalhes da denúncia, acessar: . Acesso em: 25 fev. 2018.

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Inicialmente, tinha características de um julgamento jurídico e visava tanto retirar o acusado do poder quanto penalizá-lo, em alguns casos, até com a morte. Os Estados Unidos da América receberam esse instituto em sua Constituição, mas modificaram suas características de criminal para política, ou seja, a ideia não era penalizar o acusado, mas proteger o Estado de pessoas que exerciam altos cargos públicos e atuavam sem o zelo esperado. O Brasil herdou os preceitos dos Estados Unidos da América e, frente a um longo período de ditadura, recebeu o impeachment em sua Constituição, também com o objetivo de frear a tirania do poder público, especialmente por ter nascida no fim de um período de mais de vinte anos de um regime de exceção. A evidência dessa intenção está nos artigos que proíbem o Presidente de determinados atos ou, no mínimo, autorizam-no mediante explanação dos motivos.

Como já dito nesta pesquisa, o discurso político não trabalha com argumentos baseados unicamente na razão, mas no universo da doxa, da opinião, que permitem provocar e/ou aumentar a adesão do auditório em relação às teses apresentadas. Com isso, da mesma forma que contextualizamos o impeachment, faremos, no próximo capítulo, uma imersão nas teorias que versam sobre o mundo político para contextualizar o que se entende por discurso político na linha da pesquisa da retórica.

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CAPÍTULO II – A RETÓRICA

Retórica e Dialética

Da política ao direito e as suas argumentações contraditórias, do discurso literário ao da vida cotidiana, o discurso e a comunicação são indissociáveis da retórica. Se esta tem suas armadilhas, também oferece a possibilidade de decodificação e da desmistificação. Dessa forma, o melhor antídoto à retórica continua sendo a própria retórica. Michel Meyer

O termo “Retórica” ganhou muitas acepções ao longo de sua trajetória e boa parte delas foram negativas. Para termos uma ideia, o dicionário on-line de língua portuguesa7, dentre as várias significações possíveis, define a Retórica como “uso de mecanismos contundentes e ostentosos para ludibriar ou vangloriar-se”, “discurso enfadonho e vazio”, “eloquência afetada, repleta de presunção” e “debate desnecessário”. Para mostrar que isso não é uma visão de um único material, o dicionário Michaellis8 traz mais duas acepções, quais sejam, “discussão ou debate sem conteúdo” e “estilo primoroso, mas pobre de ideias; verbosidade”, e o dicionário Aulete9 traz, também, outras duas: “excesso de ornamentos em expressão verbal” e “discurso brilhante na forma, mas pobre de ideias”.

Aristóteles (2013), considerado o primeiro a sistematizar o conjunto de práticas utilizadas pelos sofistas, em Atenas, afirmava que a verdade e as evidências caberiam aos raciocínios científico e lógico, pois à Retórica caberia o convívio com o domínio do provável, ou seja, da controvérsia, condição natural da convivência em sociedade. Os estudos de Aristóteles, então, não objetivavam descobrir como produzir um discurso com “excesso de ornamentos em expressão verbal”, mas sim levantar os procedimentos utilizados para a argumentação e a habilidade para encontrar os meios de empregá-la. A obra de Aristóteles está mais atrelada a uma súmula dos conhecimentos humanos do que à intenção premeditada do uso de subterfúgios para obter a anuência de um auditório. Conforme demonstra Mosca (1997), a Retórica foi

7 Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2018. 8 Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2018. 9 Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2018.

39 desvirtuada e colocada à prova pelos mesmos princípios que a norteia, que é a língua como o lugar de confronto das subjetividades, especialmente nos embates em praças públicas, pois os sofistas, grandes oradores, com a missão de vencer os debates, pelos quais eram pagos, lançavam argumentos de toda ordem, inclusive os falaciosos, que colaboraram para a acepção negativa dada à Retórica. Para este trabalho, a Retórica é entendida, pela maior parte, sob a ótica aristotélica e, por consequência, como um estudo sistematizado, capaz de oferecer uma teoria contundente para a análise de um corpus. Iniciaremos com o conceito do que é a Retórica e qual a sua relação com a Dialética.

De acordo com Tringali (2013), a Retórica pode ser definida sob duas óticas. A primeira está associada à arte do bem falar. A segunda associa-se à ideia de persuadir um auditório por meio de provas. A segunda concepção é a mais adequada para falarmos de Retórica como um estudo sistematizado, pois não se limita à eloquência. Por esse conceito, a Retórica é uma disciplina teórica e prática que tem por objeto o discurso retórico, que se caracteriza por ser dialético e persuasivo. É dialético porque não trabalha com a visão da verdade, mas com o que é verossímil, com o que norteia o mundo do provável. É persuasivo porque visa levar um auditório, por meio de provas, a melhor opinião sobre uma ou mais controvérsias. A Retórica, portanto, é entendida como o discurso dialético-persuasivo, pois é “executado por um orador, para obter, por meio de uma linguagem boa e apropriada e mediante provas bem dispostas, a adesão de um auditório à opinião mais verossímil, a respeito de uma questão que se discute” (TRINGALI, 2013, p. 22).

Na parte em que o discurso é dialético, a caracterização recai sobre as possibilidades de os argumentos terem inclinações contrárias. Busca-se o que é mais aceitável dentro de um domínio controverso, sempre com a intenção de ganhar a adesão de alguém, mas nunca baseado em transferências de verdades, e sim de opiniões, as quais se definem em oposição à ignorância, à dúvida e à certeza. Enquanto a ignorância é a escuridão, a dúvida é o obscuro e a certeza é o claro, a opinião é o claro-escuro. A opinião acontece diante da dúvida, quando inclinamos para um dos lados da questão, mas sempre com o receio de que o outro lado poderia ser a melhor opção. Não se tem a garantia que proporciona a verdade e a certeza. A mente faz um juízo de valor, não de realidade. (TRINGALI, 2013, p. 34-41).

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Na parte em que o discurso é persuasivo, a caracterização recai sobre a finalidade da Retórica, que é persuadir. O talento de um orador se mede, por conseguinte, não por falar “bonito”, mas por atingir a persuasão. Em pensamento contrário ao seu professor Platão (427-347 a.C.), Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]) se opõe à ideia de que a persuasão é um meio de expor a verdade, pois só o verossímil é objeto de persuasão. É só no campo do verossímil que argumentamos, pois no campo da verdade, demonstramos. É a opinião que persuadimos e, para alcançar esse objetivo, o orador vale-se de provas. Compete ao orador descobrir qual o melhor meio – prova –, em cada caso, de persuadir. A persuasão é o fim; as provas, o meio. A persuasão tem suavidade; o orador não obriga o auditório a aceitar a sua opinião. Nas palavras de Cícero, “que as armas do militar cedam lugar à eloquência do civil”. A persuasão substitui a violência, a imposição de vontades. Há sempre uma argumentação em busca de conseguir a adesão de seu auditório. (TRINGALI, 2013, p. 47-49). Segundo Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]), três são os meio de provas que um orador tem de levar em consideração para persuadir: ethos, logos e pathos.

Simbolizado pelo ethos, Aristóteles diz que a persuasão é obtida por meio do caráter pessoal do orador. Ele é a voz do discurso e deve ser proferida de modo que o auditório o tenha como digno de crédito, pois confiamos, mais prontamente, em pessoas de bem. Segundo Ferreira (2015), “o ethos pode ser entendido como um conjunto de traços de caráter que o orador mostra ao auditório para dar uma boa impressão” (p. 21). Para Tringali (2013), “o orador é a causa eficiente do discurso, o discurso é o efeito, o resultado.” (p. 77). A título de exemplo, como demonstra Meyer (2007), os médicos devem saber responder às questões médicas, o advogado às questões jurídicas, pois ambos estudaram para isso. Viram autoridade no assunto. Todavia, quando o orador não é um especialista no que fala, é uma virtude geral que se compartilha. “O ethos é uma excelência que não tem objeto próprio, mas se liga à pessoa, à imagem que o orador passa de si mesmo, e que o torna exemplar aos olhos do auditório, que se dispõe a ouvi-lo e a segui-lo” (MEYER, 2007, p. 34). É por meio das virtudes morais e da confiança passada ao auditório que aparecem a autoridade do orador. É importante ressaltar que “a eficácia do ethos é distinta dos atributos reais de quem assume o discurso” (FERREIRA, 2015, p. 21), pois o ethos se associa a “um conjunto de traços de caráter que o orador mostra ao auditório para dar uma boa

41 impressão”10 (FERREIRA, 2015, p. 21) e não necessariamente o que ele é, ou seja, o ethos é construído no discurso, no ato retórico.

O discurso, simbolizado pelo logos, imbuído da questão dialética, é, segundo Aristóteles, aquilo que demonstra ou parece demonstrar. Baseado no auditório, o logos é o uso do raciocínio, da lógica. É a materialização dos argumentos que visam persuadir. Nas palavras de Meyer (2007, p. 45), “o logos é tudo aquilo que está em questão.” (p. 45). Toda questão tem como base uma dúvida e, geralmente, provoca opiniões diferentes. “O discurso realmente retórico tem por finalidade persuadir um auditório a aceitar a opinião preferível de uma questão” (TRINGALI, 2013, p. 125).

As paixões do Auditório, por sua vez, simbolizadas pelo pathos, é o destinatário do discurso, que pode atuar, conforme demonstra Ferreira (2015, p. 22): a) como juízes, aqueles que analisam uma causa passada, refletem e, a partir de uma reflexão, condenam ou absolvem; b) como assembleia, aqueles que, diante de uma causa futura, refletem sobre a utilidade e a conveniência e aconselham sobre a tomada de decisão; e c) como espectadores, aqueles que analisam a capacidade do orador em assuntos voltados ao interesse presente, no hoje e agora, e, ao final, concordam ou discordam, gostam ou não do que foi dito, sem que precisem tomar uma decisão. Essas três atuações, como demonstra o mesmo autor, é uma distinção somente prática. A participação do auditório acontece em função do grau da problematicidade da questão. É de suma importância salientar que um auditório não é persuadido somente pelos argumentos racionais. O Orador precisa estar ligado às paixões que suscitam desse auditório: o que o enraivece? O que ele prefere? O que ele deseja?

O pathos é o conjunto de valores implícitos das respostas fora de questão, que alimentam as indagações que um indivíduo considera como pertinentes. Quanto mais esses valores são postos em causa, mais a paixão vem obscurecer e sufocar a problematicidade que eles apresentam. Quanto mais o orador, ao contrário, os louva, menos eles se exprimem violentamente. Assim, a emoção é a coloração subjetiva de valores que podem ser compartilhados. (MEYER, 2007, p.39).

Embora a segregação de ethos, logos e pathos represente uma separação de ordem didática, porque eles se imbricam no ato retórico sem que um possa prescindir do outro, é importante conhecer os preceitos de cada uma delas.

10 Grifo nosso.

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Discurso Político

A confiança suscitada pela disposição do orador provém de três causas, as quais nos induzem a crer em uma coisa independentemente de qualquer demonstração: a prudência, a virtude e a benevolência. Afirmações falsas e maus conselhos devem-se à falta de uma ou mais dessas três qualidades. Oradores formam opiniões carentes de veracidade dada a falta de prudência; ou formam opiniões verdadeiras, mas devido à sua falha moral, não dizem o que realmente pensam e que lhes parece bom; ou, finalmente, embora prudentes e honestos, falta-lhes benevolência, esta má disposição para com os ouvintes podendo levá-los a não recomendar o que sabem ser o melhor curso de ação a ser adotado. Aristóteles

Aristóteles ofereceu as bases para entender a retórica e o que está em cena quando se trata de deliberar. A proposta deste subcapítulo é trazer as concepções de “discurso político”. Para atingir esse objetivo, utilizamos as teorias que entendem a criação da imagem do político como um entrelaçamento do ethos com logos e pathos.

Ethos

A primeira conceituação de ethos, sob a ótica da Retórica, vem de Aristóteles (2013), o qual entende que a persuasão depende do caráter pessoal do orador, “quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz pensar que o orador é digno de crédito” (ARISTÓTELES, 2013, Livro I, p. 45). Para esse autor, o ethos é sempre criado ao longo do discurso. “Esse tipo de persuasão, semelhantemente aos outros, deve ser conseguido pelo que é dito pelo orador, e não pelo que as pessoas pensam acerca de seu caráter antes que ele inicie o discurso” (ARISTÓTELES, 2013, Livro I, p. 45.).

Atualmente, contudo, o conceito de ethos sofreu ampliação. Autores como Campbell et al. (2015) admitem a existência de um ethos prévio, ou seja, uma imagem criada pelo orador em discursos anteriores que refletem em seus discursos futuros.

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Para Meyer (2007), por exemplo, não se pode mais identificar, simplesmente, o ethos do orador, pois ethos é um domínio, um nível, uma estrutura, e aparenta, de maneira geral, aquele com quem o auditório se identifica. Para Ferreira (2015), o termo sofreu ampliação e “hoje se aceita como ethos a imagem que o orador constrói de si e dos outros no interior do discurso” (p. 90). Para esse autor, quando fazemos análise retórica, podemos encontrar um orador que constrói o ethos de outras personagens ou de classes sociais ou, ainda, de instituições, no interior do discurso. Para demonstrar a criação do ethos alheio11, o autor traz o ocorrido em um edifício da Procuradoria Geral de Justiça de Minas Gerais – PGJ-MG12, onde Cristina Moreno de Castro, trabalhadora do local, passa por situação inusitada. Conta Cristina que, em certo dia de trabalho, ao entrar no elevador da PGJ-MG, ouve de um homem alto, de terno azul, que já estava em seu interior: “deixa eu subir primeiro para o 12º andar e depois você vai pra onde quiser”. Distraída e incapaz de entender o estranho pedido, apertou o botão do andar em que trabalha, 2º, e, de imediato, ouviu, do mesmo homem, irritado e quase gritando: “eu não avisei que era para eu subir primeiro? Por que você apertou o botão do segundo andar?”. Cristina balbuciou algo e saiu rápido. Aos colegas de seção, contou a cena e foi comunicada de que, provavelmente, tratava-se do poderoso chefão, o Procurador Geral da PGJ-MG. Ao tomar ciência disso, Cristina releva sua indignação: “então o Procurador se julgava tão importante que tinha preferência para subir num elevador público?”, “julgava-se tão superior que os três segundos gastos para a minha descida no segundo andar ocupariam demais seu precioso tempo?” e “seria assim uma companhia tão agradável que achava que eu não me importaria de acompanhá-lo ao décimo segundar andar sem nenhum motivo?”.

Por um lado, demonstra o autor, com esse exemplo, que a oradora, no caso, Cristina Moreno de Castro, filtrou o olhar em relação ao Procurador e formou um ethos. Por outro lado, qualquer discurso revela marcas das instituições e de seus representantes. “O Procurador, no texto de Cristina Matos, esqueceu-se de alguns princípios básicos, inevitavelmente construtores do ethos, quando não levou em conta o que a pragmática moderna denomina preservação da face” (FERREIRA, 2015, p. 101). Para esse autor, toda interação social sofre dois tipos de pressões: as comunicativas, que asseguram a boa transmissão, e as rituais, que asseguram a preservação da face do orador e do auditório. Em analogia ao processo de preservação

11 O termo ethos alheio é cunhado nesta pesquisa. Ferreira (2015) utiliza o termo “alheio” entre aspas. 12 O ocorrido é relatado na íntegra em Ferreira (2015, p. 92-94).

44 da face, o ethos possui pelo menos duas faces, quais sejam, uma negativa, que se refere à reserva do território pessoal (pontos fortes e fracos), e uma positiva, que se refere à fachada social (aprovação e reconhecimento).

Para visualizar a construção do ethos, tanto do próprio orador quanto de terceiro que se encontra no interior do discurso do orador, Ferreira (2015) propõe observar no texto alguns atos que: a) representam auto-humilhação, como o reconhecimento da própria fraqueza, da incompetência, das limitações pessoais; b) externam promessas, quando o orador se compromissa a cumprir a palavra empenhada; c) denotam traços de caráter, quando avalia as competências alheias, agradece, aceita favores, rebate uma crítica; e d) demonstram sensibilidade ou não à preservação da face do outro, quando ameaçam a liberdade de ação do interlocutor, fazem perguntas diretas sem cortesia, dão conselhos não solicitados, cobram favor anteriormente concedido (FERREIRA, 2015, p. 101 – 102).

Logos

Para (Aristóteles, 2013), logos é o discurso, naquilo que demonstra ou parece demonstrar. A persuasão, objetivo da Retórica, é alcançada “graças ao caráter pessoal do orador, quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz pensar que o orador é digno de crédito” (p. 45) e os meios da realização do discurso são dedutivos ou indutivos. Ferreira (2015) explica que a dedução se corporifica nos silogismos denominados entimemas, compostos de três premissas: uma principal (todos os seres humanos vivos respiram); uma premissa menor, continuativa (Juracy é um ser humano vivo) e uma conclusiva (logo, Juracy respira). A indução, por sua vez, é extraída da parte para a parte, por meio de analogias. “Consegue provar porque conduz a um tipo de raciocínio extraído, dentre outros, dos fatos cotidianos, históricos e narrativos” (FERREIRA, 2015, p. 79).

As provas que colaboraram para sustentar uma argumentação podem ser extrínsecas ou intrínsecas. As primeiras não contemplam o mundo da Retórica, porque são extraídas do mundo exterior, como mancha de sangue, impressão digital, testemunhas, contratos, juramentos. As segundas, no entanto, são criadas com os artifícios da Retórica e são divididas em lógicas (logos), que pretendem convencer pela razão, e psicológicas (ethos e pathos), que pretendem persuadir pela emoção.

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Nesse subcapítulo, interessam as provas lógicas. Para essas, Ferreira (2015) nos ensina que são conseguidas por meio de raciocínios: a) o apodítico (demonstrativo ou científico), que opera com premissas que produzem efeito de verdade. É imperativa, quase indiscutível. Faz uso de verbos no modo imperativo, vale-se de figuras de linguagem que expressam quantidade, como a hipérbole, para persuadir; b) o dialético, que parte de uma premissa provável, admitida por uma parte razoável do auditório e gera uma conclusão razoável, altamente provável, embora não absolutamente certa, porque é produto de opinião ou crença corrente. Assim, deixa de ser apodítico, ou seja, imperativo, e aproxima o auditório de suas aspirações. Esse raciocínio é criado pela argumentação a partir do silogismo dedutivo, aquele que chega a conclusão baseado em premissas universais para particulares. Logo, parte-se de uma crença ou opinião universal para conduzi-la a uma conclusão de um caso particular; c) o falacioso, que conduz o raciocínio com apelos de validade emocional, mas não de validade lógica; como exemplo, dizer que se o Islamismo e o Cristianismo são baseados na fé, conclui- se que ambos são uma única religião. São logicamente inconsistentes e não possuem capacidade de provar o que alegam (FERREIRA, 2015, p. 69-89).

Vale ressaltar, segundo Mosca (1997), a partir de Aristóteles, que todas as provas retóricas são elaboradas por meio de componentes de um sistema retórico, que são cinco: a Inventio, que contém os argumentos relativos ao discurso; a Dispositio, encarregada de dispor as diferentes partes do discurso; a Elocutio, que é o plano de expressão; a Actio, para efetivação do discurso, que incluem os elementos suprassegmentais, como o tom de voz, o ritmo da fala; e a Memória, que expressa o que o próprio nome diz, ou seja, reter o material a ser transmitido na memória do orador. (MOSCA, 1997, p. 28-29). Dessas partes, interessa a esse trabalho a Inventio, pois nela encontraremos os elementos linguísticos utilizados para construção do conteúdo do discurso. Segundo Ferreira (2015), inventio se associa ao verbo invenire, proveniente do Latim, que significa descobrir, achar, encontrar. Por analogia, portanto, a invetio, em retórica, significa o momento de busca das provas que sustentarão o discurso (FERREIRA, 2015, p. 63). Em linhas gerais, no que tange ao logos, esse autor demonstra a existência de argumentos baseados em provas lógicas, já comentadas, e lugares retóricos. Sobre os lugares retóricos, pode-se resumir em dois tipos. O primeiro é o lugar de qualidade, pois consiste em dizer que algo é superior a outro por ter mais qualidade. A título de exemplo, uma montadora de veículos pode

46 propagandear que o carro dela é melhor do que o da concorrente porque é mais confortável e gasta menos combustível, logo, tem mais qualidade. O segundo é o lugar de quantidade que, por sua vez, consiste em dizer que uma coisa é melhor que outra por motivos quantitativos. O logos é a prova pela qual o orador persuade por meio do que em Retórica é chamado de docere (ensinar, transmitir noções intelectuais, convencer). Uma das maneiras de valer-se do docere é na utilização das figuras retóricas, especialmente a figura de presença, a qual é atingida com a técnica de repetição de ideias ou perguntas que já se sabe as respostas, pois “despertam o sentimento de presença do objeto do discurso na mente do auditório” (FERREIRA, 2015, p. 123).

Pathos

O pathos ou as paixões, em Aristóteles (2013), “são as causas das mudanças nos nossos julgamentos e são acompanhadas por dor ou prazer. São elas: a cólera, a compaixão, o medo e outras paixões semelhantes, bem como os seus contrários.” (p. 123). A relação que o orador estabelece com seu auditório e a disposição de espírito inspirada é, além do logos, um importante meio para se chegar à persuasão. É um dos lados psicológico da persuasão.

De acordo com Ferreira (2015), uma das formas de medir a habilidade de um orador é verificar sua capacidade de ativar ou impulsionar as paixões de seus ouvintes, para atrair o interesse e prolongar a atenção, com vistas a estabelecer o acordo pretendido. São discursos que se valem tanto do seu significado quanto das sensações que querem provocar. Para isso, o orador lança mão de algumas estratégias: a) faz uso de figuras de linguagens, como valor argumentativo; b) provoca sensações que acalmem o auditório quando transparecer alguma preocupação, como incitar a calma quando há a propensão ao medo; c) provoca sensações de raiva, quando ressalta vilanias humanas; d) desautoriza a imagem ou o discurso de outrem por meio da sátira; entre outras estratégias que visam provocar as sensações boas ou ruins em seus auditórios.

O pathos é a prova pela qual o orador persuade por meio do que em Retórica é chamado de movere (comover, atingir os sentimentos).

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Contudo, o discurso dialético-persuasivo não acontece de forma anárquica, no meio do caos. O orador, para cativar seu auditório, seja para louvar ou censurar, acusar ou defender, persuadir ou dissuadir, lança mão de argumentos que se referem, particularmente, segundo Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]), a cada gênero dos discursos. Portanto, se, na Retórica, a finalidade é persuadir o auditório e, para chegar à persuasão, o orador utiliza o discurso, estabelece-se uma relação entre orador, discurso e auditório – meios de provas – dentro de um determinado gênero retórico.

Conforme demonstra Meyer (2007), o auditório julga se é belo (epidítico), justo (judiciário) ou útil (deliberativo). O orador intervém nos três gêneros na medida em que ornamenta (epidítico), defende (judiciário) ou delibera (deliberativo). O discurso, por sua vez, representa o que teria sido possível (jurídico), o que é (epidítico) e o que poderia ser (deliberativo). É importante, então, falarmos sobre as especificidades dos gêneros. Todavia, como esta dissertação tem como corpus o julgamento de um processo de impeachment, que é político, daremos atenção ao gênero que mais representa as questões políticas13, que é o deliberativo, por se tratar de um gênero que visa aconselhar ou desaconselhar um auditório em relação à utilidade na tomada de uma decisão: votar em favor ou em desfavor de impedimento de uma presidente da república eleita por meio do voto.

Gênero Deliberativo

De acordo com Tringali (2013, p. 69), Aristóteles (2013), para definir gêneros, coloca-se na posição do auditório com as seguintes referências: a) qual o comportamento do auditório depois de ouvido o discurso; b) qual o objetivo do auditório; c) o tempo em que a questão foi tratada; e d) o valor visado pelo auditório.

No caso do gênero deliberativo, Aristóteles (2013) entendeu que o comportamento do auditório é de autor de um voto, como membro de uma assembleia. Tal auditório vai ser a favor ou contra a defesa que o orador fez sobre a questão. Quanto ao objetivo, o deliberativo está atrelado à ação de aconselhar ou desaconselhar. Sobre o tempo, só se delibera sobre algo que ainda não aconteceu, ou seja, sobre o

13 Conforme demonstra Mosca (1997, p. 32), embora os três gêneros sejam bem delineados, dentro de uma mesma argumentação podem ocorrer os traços dos três, numa relação de dominância, não de exclusão. Ou seja, a característica de um dos gêneros se sobressairá às demais, dependendo do assunto.

48 tempo futuro. Já em relação ao valor, lida-se com o que é útil ou nocivo para a sociedade.

Para Aristóteles (2013), o gênero deliberativo discute sobre todas as coisas que podem ou não acontecer, desde que estejam subordinadas às nossas ações. Isso quer dizer que não delibera sobre tudo, mas sobre coisas ou situações que são objetos de deliberação. Não se trata, contudo, de definir um objeto ao gênero em questão, e sim delinear os assuntos que são passíveis de deliberação, pois, como já dito neste trabalho, a Retórica não é uma ciência, porque não tem um objeto definido de estudo, e não trabalha em busca da verdade. A título de exemplo, não se delibera sobre coisas que existem ou coisas que necessariamente existirão. Seria inútil. Segundo o filósofo, ainda que não seja possível – nem seria o propósito – classificar tudo o que pode ou não ser objeto de deliberação, alguns assuntos são importantes e deliberados por todos: a) recursos financeiros; b) guerra e paz; c) defesa nacional; d) abastecimento alimentar; e e) legislação (ARISTÓTELES, 2013).

Para cada um desses itens, Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]) comenta o que é importante que o orador saiba; mas, de forma genérica, para todos os itens, o filósofo menciona a necessidade de conhecimento prévio sobre o que ronda o assunto. A título de exemplo, para falar sobre recursos financeiros, o orador deve conhecer as fontes de renda do Estado. Para falar de guerra e paz, é crucial que saiba sobre o poder bélico do seu Estado. Sobre a defesa nacional, precisa conhecer os métodos defensivos empregados. Não se debate sobre o abastecimento alimentar sem saber a necessidade dos habitantes e a capacidade produtiva de alimentos. E, por fim, legislar obriga o orador a saber sobre o passado do próprio Estado para discernir a melhor forma de governo desejável.

Com base nesses critérios, Aristóteles (2013) conceitua quais as premissas o orador deve ter em mente para argumentar em favor ou contra uma questão: a) a finalidade; b) a utilidade; c) a utilidade relativa; e d) formas de governo.

Em relação à finalidade, todo ser humano visa a um fim, o que determina o que escolhem e o que evitam. Esse fim é a felicidade e os elementos que a constituem. Todo aconselhamento, portanto, tem relação com a felicidade, na medida em que a cria ou a amplia, ou, simplesmente, desaconselha para não obstá-la.

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Sobre a utilidade, a deliberação não pretende determinar os fins, mas os meios ligados aos fins. Os meios de persuasão, portanto, devem se preocupar com os procedimentos que resultem em coisas boas e, necessariamente, afaste as coisas más, pois presume-se que as coisas boas, na maioria das vezes, levarão à felicidade.

A utilidade relativa tem relação com a questão das divergências sobre o que seria mais útil quando duas ou mais coisas concorrem. Para decidir, diz o filósofo que há a necessidade de comparação entre coisas, e que o maior ou o mais nas coisas é sempre melhor do que o menor e o menos das coisas. A título de exemplo, diz que o frequentemente útil supera o que é raramente útil; o difícil é mais valioso que o fácil, pois é mais raro; a virtude sobre o que não é virtude; o nobre sobre o vil; o mais duradouro sobre o menos; entre outras comparações. Da mesma forma que a utilidade, o orador deve, sempre, ter em mente o que trará mais felicidade.

Entendido por Aristóteles como o mais eficiente meio de persuasão, conhecer as formas de governo e saber diferenciar seus costumes, instituições e interesses é o que contribuirá para a persuasão do auditório. Aprendemos a qualidade dos governos da mesma forma que aprendemos as qualidades dos indivíduos. Observar os fins dos governos é essencial para o orador empreender os melhores meios de persuasão. O fim da democracia é a liberdade; o da oligarquia é a riqueza; o da aristocracia é a preservação da educação e das instituições legais; o da tirania é a proteção do tirano.

Em resumo, para deliberar, com vistas a persuadir um auditório, é necessário compreender que ethos, logos, pathos e o gênero deliberativo se misturam e atuam simultaneamente e que cada uma dessas dimensões direciona e limita a atuação da outra. O orador (ethos) precisa ter conhecimento prévio sobre o assunto que vai deliberar e sobre as finalidades desejadas pelo auditório (pathos) para formular um discurso (logos) que se atende aos procedimentos que levarão aos fins desejados, sem deixar de levar em conta que o auditório é quem decidirá (gênero deliberativo). Entretanto, não podemos deixar de observar que um processo de impeachment, ainda que seja político, não prescinde de argumentos que remontam as características de um discurso jurídico e, por isso, entendemos importante trazer a essa pesquisa considerações acerca do discurso e do gênero judiciário.

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Discurso Jurídico

Enquanto no discurso político as preocupações recaem sobre o que seria útil ou prejudicial, o discurso jurídico atua com o justo e o injusto. Dado que os seres humanos possuem motivações para cometer injustiças, Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]) passa a fazer uma classificação do que sejam ações justas e injustas. Para ser vítima de uma injustiça, portanto, a pessoa precisa sofrer, involuntariamente, um dano provocado, voluntariamente, por alguém. Mas o autor faz um desdobramento: o dano pode atingir a um indivíduo (no caso de um adultério14, por exemplo) ou a toda comunidade (quando se esquiva de servir o exército, também, por exemplo). Acrescenta ainda, e isso é importante, que uma pessoa pode admitir um ato, mas não admitir a qualificação que o acusador confere ao tal ato.

Admitirá que apanhou algo, porém não que o furtou; que foi o primeiro a agredir alguém, mas que não o ultrajou; que manteve relações sexuais com uma mulher, mas que não cometeu adultério; que furtou, mas que não cometeu sacrilégio – já que o objeto furtado não pertencia a um deus; que invadiu as terras do vizinho, mas que não invadiu as terras do Estado; que manteve contato com o inimigo, mas que não tenha sido culpado de traição. (ARISTÓTELES, 2013, p. 106).

Aristóteles, portanto, diz que não importa se o que se visa no discurso jurídico é demonstrar a culpabilidade ou a inocência de um acusado. A questão controvertida é apurar se na ação da pessoa houve ou não a injustiça, a maldade. Para tal, Aristóteles (2013) faz um breve exame dos meios de persuasão na oratória forense: as leis, as testemunhas, os contratos, as confissões obtidas mediante tortura e os juramentos.

Sobre as leis, Aristóteles afirma que a lei escrita coloca-se contra o caso – sob a ótica de quem defende. É necessário pensar sob a ótica de uma consciência, a qual não se submete integralmente à letra fria da lei, mas a um princípio de equidade15, que é permanente, pois a lei escrita muda com frequência. A justiça, então, está em: a) considerar o justo como uma moeda de prata, que os juízes analisam a genuína da falsificada; b) considerar mais honesto seguir as leis não escritas e por elas se orientar;

14 Exemplo dado pelo próprio autor, em época que o adultério teria valor de injustiça passível de processo. 15 Para Aristóteles, não se deve punir igualmente erros e ações injustas e tampouco punir do mesmo modo erros e equívocos, pois a equidade trata-se de um justo que independe de lei escrita. (Aristóteles, 2013, p. 107).

51 c) considerar se a lei não contradiz lei universalmente aprovada; d) considerar se não é uma lei ambígua; e e) considerar se a lei foi ensejada por fato que deixou de existir.

Em relação às testemunhas, afirma o filósofo que são duas: as antigas e as recentes. Por testemunha antiga entende que são as personalidades cujos juízos são do conhecimento de todos, que dizem respeito a acontecimentos passados. São testemunhas mais confiáveis, por serem incorruptíveis. Por testemunhas recentes, entende Aristóteles que são pessoas conhecidas que declaram suas opiniões acerca de algum assunto polêmico e só tem uma utilidade, que é dizer se um fato ocorreu ou não. Os argumentos baseados na ausência de testemunhas devem ser que os juízes têm de decidir no domínio do provável, de acordo com a “consciência”. Se uma das partes tem testemunha, pode-se argumentar que probabilidades não cabem à justiça e “que não teria sequer necessidade da evidência das testemunhas se os discursos bastassem para descobrir a verdade” (ARISTÓTELES, 2013, p. 113). Se uma das partes não tem testemunha, sempre dispomos dos costumes para demonstrar nossa honestidade ou a desonestidade do adversário. Quanto às características das testemunhas (se são amigas, inimigos, neutras etc.), é necessário recorrer aos silogismos retóricos.

A argumentação com base nos contratos deve ser usada se favorece quem o utilizará. Os procedimentos são iguais aos usados com as testemunhas, em que atribuiremos crédito (ou não, dependendo da intenção) aos que assinaram o contrato ou àqueles que têm a custodia dele. Se o contrato for usado como argumento, deve-se: a) compará-lo a uma lei, ainda que não tenha a mesma igualdade, mas dizer que aquele que o descumpre está fazendo o mesmo com a própria lei; e b) argumentar que os negócios são realizados por meio de contratos e que seu descumprimento levará todo comércio entre os homens a deixar de existir. Se o contrato não favorecer, deve-se: a) igualar o contrato a leis que são malfeitas e indagar se devemos obedecer a leis quando os legisladores se enganam; e b) argumentar que o juiz é quem decide e esse deve procurar onde está o justo e o injusto e não recorrer às cláusulas de um documento.

Já em relação às confissões obtidas mediante tortura, não é difícil encontrar os meios de persuasão: se as confissões são vantajosas, basta aumentar seu valor com a declaração de que são os únicos testemunhos disponíveis; se, ao contrário, não são vantajosas, basta condenar a forma como foi conseguida, pois “aqueles que sofrem a tortura expressam tanto o falso quanto o verdadeiro” (ARISTÓTELES, 2013, p. 115) para ver seu sofrimento ser abreviado.

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Por fim, os juramentos. Para o autor, podem conter quatro situações: tanto fazer quanto aceitar um juramento; não fazer nem aceitar um juramento; fazer, mas não aceitar um juramento; não fazer, mas aceitar um juramento. Os argumentos para lidar com essas possibilidades, segundo Aristóteles (2013), são, de um lado, recursar- se a fazer ou aceitar sob a alegação de as pessoas incorrerem em perjúrio com facilidade ou de que o juramento é feito por dinheiro. Por outro lado, aceita-se fazer ou aceitar o juramento sob a alegação de confiança na virtude ou a disposição em confiar o caso aos deuses.

Gênero Judiciário

No caso do gênero judiciário, Aristóteles entendeu que o comportamento do auditório é de Juiz. Tal auditório vai ser a favor ou contra a defesa que o orador fez sobre a questão. Quanto ao objetivo, o judiciário está atrelado à ação de condenar ou inocentar. Sobre o tempo, só se julga algo que já aconteceu, ou seja, sobre o tempo passado. Já o valor, lida-se com o que é justo ou injusto. Sobre a natureza desse gênero, Aristóteles (2013) diz que dois pontos precisam ser distinguidos: a) a natureza e o número das motivações que levam a cometer a injustiça; e b) as predisposições dos que a cometem e as vítimas de sua injustiça.

Em relação à natureza e o número das motivações que a levam a cometer a injustiça, o autor diz que todas as ações humanas são produzidas por causas exteriores ou por causas que lhes são próprias. Pelas causas exteriores, entende Aristóteles (2013) que se enquadram o acaso e a necessidade (coação e natureza). O acaso se refere aos acontecimentos fortuitos, que “não são produzidos em vista de um fim” (p. 90). A coação resulta na ação de um agente contra a própria vontade. A natureza, por sua vez, associa-se aos “fatos que têm sua causa em si mesmos e que ocorrem uniformemente segundo uma ordem invariável” (p. 90). Pelas causas que lhes são próprias, entende o filósofo que se enquadram o hábito, as inclinações racionais (reflexões) e as inclinações irracionais (cólera e apetite). Sobre o hábito, de acordo com o próprio sentido da palavra, associa-se às ações que “os indivíduos realizam porque sempre realizaram antes” (p. 90). Sobre a cólera, o autor a associa à vingança, que é a satisfação de quem pune. O apetite tem relação com “todas as ações que parecem prazerosas” (p. 90). Na sequência, após explanar cada uma das ações, o

53 filósofo sintetiza com a afirmação de que todos os atos que praticamos por nossa conta, voluntariamente, parecem ser bons ou prazerosos. Com isso, o autor passa a discutir o que significa o prazeroso e “apurar sua quantidade e natureza” (p.92). A classificação de prazer, pelo filósofo, compreende “certo movimento da alma pelo qual a alma, como um todo, é transportada de uma maneira sensível para o seu estado natural, sendo a dor o contrário disso” (p. 92). Sobre a quantidade e a natureza, o autor elenca muitos pontos: o hábito, o que não é coação, um apetite, estar livre do mal, dentre outras coisas, as quais analisa o contrário como doloroso.

Sobre as predisposições dos que cometem a injustiça, o autor elenca os pontos que considerado essenciais: a) o ato da injustiça deve ser tanto exequível quanto exequível pelas suas mãos; b) o autor da injustiça acha que não será descoberto; c) ainda que for descoberto, o autor da injustiça acha que ficará impune; e d) o autor da injustiça, se descoberto, terá punição menor do que o benefício extraído para si da injustiça. Em relação às vítimas, o filósofo diz que são os que possuem o que o injusto quer e não tem; os que estão distantes e facilitam o roubo de seus bens; os que não tomam medidas de precaução e são crédulos, visto que é fácil ludibriar essas pessoas; os despreocupados, sem disposição para processar seus criminosos; os que nunca sofreram injustiça (e acham que nunca vão sofrer) e os que sofrem com frequência (e acham que não será, no futuro); os que já foram difamados e têm medo de recorrer aos juízes; os que têm seus ancestrais como cometedores de injustiça; os que são amigos (por que é fácil de enganar) e os que são inimigos (por que é prazeroso); os que são inábeis no discurso (que faz não se arriscar em processos e prefere fazer acordos); os que cometem muita injustiça (sente-se que não é injusto causar dano àquele infligi a outras); e os que nos prejudicaram (há certo prazer em cometer injustiça contra essas pessoas). Há também as injustiças fáceis de serem dissimuladas, como o roubo de produtos comestíveis, que podem, rapidamente, ser comidos. Há injustiças em que as vítimas têm vergonha de denunciar (como o estupro).

Procedimentos Argumentativos

Tanto os gêneros deliberativo e judiciário, quanto o discurso político e jurídico baseiam-se na importância das relações entre o ethos, o logos e o pathos. Esses meios de provas são condição sine qua non para se chegar à persuasão. Todavia, a relação

54 dos meios de provas precisam se organizar de forma a atingir seus objetivos. Como persuadir o auditório se não por procedimentos argumentativos (logos), que deem caráter de confiança ao orador (ethos) e que navegue pela razão e pela emoção para conseguir a adesão de um auditório (pathos)?

Para falar desses procedimentos, utilizaremos Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000), que criaram um tratado sobre a argumentação, conhecido como “a nova retórica”. Os autores classificaram as técnicas argumentativas em dois polos: a) o positivo, chamado argumentos de ligação, consiste na solidariedade entre teses, as quais procuram se promover ou as já admitidas pelo auditório; e b) o polo negativo, chamado de argumentos de dissociação e ruptura das ligações, que tem o objetivo contrário, ou seja, promover a ruptura da solidariedade entre as teses.

Nos processos de ligação encontram-se os argumentos quase-lógicos, os argumentos baseados na estrutura do real e os argumentos que pretendem fundar a estrutura do real. Cada um desses argumentos se subdivide em outros, como mostram os quadros a seguir, elaborados por Massmann (2017):

Tabela 1 – Argumentos quase-lógicos

Estruturas lógicas Estruturas matemáticas

Contradição Inclusão da parte pelo todo Identidade Divisão do todo em partes Analiticidade Comparação Regra de Justiça Argumento pelo sacrifício Reciprocidade Probabilidade Transitividade -

Fonte: Massmann (2017, p. 58-59)

55

Tabela 2 – Argumentos baseados na estrutura do real

Ligações de Sucessão Ligações de coexistência Interação entre ato e Vínculo causal pessoa Argumento Pragmático Argumento de autoridade Causa e consequência Ligação simbólica Argumentação e Fins e meios hierarquia Argumento do desperdício Técnica de ruptura Argumento de direção -

Fonte: Massmann (2017, p. 58-59)

Tabela 3 – Argumentos que visam a fundar a estrutura do real

Pelo caso particular Pelo raciocínio por analogia

Exemplo Analogia Ilustração Metáfora Modelo e antimodelo

Fonte: Massmann (2017, p. 58-59)

Para este trabalho, faremos dois recortes conceituais da nova retórica para utilizar na análise. O primeiro é estudar os argumentos de ligação, que são divididos em três: argumentos quase lógicos, argumentos baseados na estrutura do real e argumentos que fundam a estrutura do real. O segundo é afinar o primeiro recorte e estudar os argumentos baseados na estrutura do real, quais sejam, as ligações de sucessão e as ligações de coexistência e os argumentos que fundamentam a estrutura do real, especialmente os procedimentos de dissociação.

As ligações de sucessão

Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000) analisaram os argumentos baseados na estrutura do real em duas grandes categorias. A primeira está associada às ligações de sucessão, as quais unem um fenômeno a suas consequências ou causas. A segunda

56 associa-se às ligações de coexistência, que unem uma pessoa a seus atos, um grupo aos indivíduos que dele fazem parte. Comecemos pelas ligações de sucessão.

O vínculo causal e a argumentação

Para esses autores, o vínculo causal desempenha um papel essencial e deve permitir argumentações de três tipos: a) as que relacionam dois acontecimentos por meio de um vínculo causal; b) as que tendem a descobrir a existência de uma causa que pôde determiná-la; e c) as que tendem a evidenciar o efeito que dele deve resultar.

Em relação ao primeiro tipo, o objetivo é, a partir de um determinado fato da realidade, aumentar ou diminuir a crença na existência de uma causa que explique o fato ou um efeito que dele resultaria. A título de exemplo, se um policial procura identificar o assassino de um crime que não possui testemunha nem indício revelador, vai orientar as suas buscas por aqueles que tinham interesse na morte da vítima. Os pronomes interrogativos “Como” e “Por que”, portanto, dominarão a argumentação conforme a interpretação dos fatos difíceis de explicar (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2000, p. 300).

Sobre o segundo tipo, a causa sempre supõe que, quando se trata de atos humanos, os atos são racionais. Dificilmente, quem acusa conseguirá ser convincente se não conseguir explicar as razões do comportamento alegado. Esse tipo de argumentação requer um acordo entre os interlocutores sobre os motivos da ação, ou seja, o auditório precisa aceitar como verossímil as alegações para acatá-las. É com base nisso que esse tipo de argumentação possibilita afastar tudo quanto parece pouco provável de ter ocorrido (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2000, p. 300).

Para o terceiro e último tipo, trata-se de eliminar, numa construção teórica, a causa, que é condição necessária para a produção do resultado, para considerar as modificações que resultariam dessa eliminação. A título de exemplo, o autor diz que um historiador, para explicar o que foi, pergunta-se o que poderia ter sido. A argumentação, por esse tipo, desenvolve-se para que os fatos garantam os resultados, as consequências; algumas são previstas e outras podem evidenciar a existência de um fato que as condiciona (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2000, p. 300-301).

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O argumento pragmático

No caso do argumento pragmático, Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000) conceituam-no como aquele que permite apreciar um fato da realidade consoante suas consequências favoráveis ou desfavoráveis. Para esses autores, esse tipo de argumento se desenvolve sem grandes dificuldades. Contudo, o acusado de ter cometido a má ação se esforçará para romper o vínculo causal e transferir a culpabilidade para outras pessoas ou responsabilizar as circunstâncias. Ela pode se aplicar a ligações comumente aceitas ou ligações somente conhecida por uma pessoa. A partir do momento em que uma ligação fato-consequência é constatada, a argumentação se torna válida, independentemente da ligação realizada. O uso do argumento pragmático é muito comum para propor o sucesso como critério de objetividade, de validade. É apresentado como uma simples pesagem de alguma coisa por meio de suas consequências. É um meio seguro de manter a controvérsia.

O argumento da direção

Esse tipo de argumento consiste, basicamente, no alerta contra o uso de procedimento das etapas. A título de exemplo, o autor fala sobre a direção a seguir a partir de uma determinada ação: “se você ceder esta vez, deverá ceder um pouco mais da próxima, e sabe Deus aonde você vai parar” (PERELMAN & OLBRECHTS- TYTECA, 2000, p. 321). Esse é o típico argumento usado quando não se quer parecer ceder ante a força, a ameaça ou a chantagem. Sempre que uma meta pode ser apresentada como um ponto de referência, o argumento de direção pode ser usado. Há que se diferenciar entre o argumento de direção e receio do procedente. Este se refere ao medo das repercussões sobre outras ações futuras de mesma espécie. Aquele acarreta uma mudança de espécie, embora no mesmo sentido.

As ligações de coexistência

Nas ligações de sucessão, os termos se encontram num mesmo plano fenomênico, as ligações de coexistência unem duas realidades de nível desigual.

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A pessoa e seus atos

A relação entre a pessoa e seus atos é ligada a uma distinção entre o que se considera importante, natural, próprio do ser que fala, e o que se considera transitório, externo ao sujeito. Todavia, não se constitui de uma relação necessária, pois a concepção da pessoa pode variar conforme as épocas. A título de exemplo, a beleza da mulher é um fenômeno que demonstra bem a mudança de concepção do objeto ao longo do tempo. Entretanto, a ideia de “pessoa”, para Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000), introduz um elemento de estabilidade: reiteremos os atos para realçá-la. É em função da estabilidade da pessoa que o mérito é atribuído ou vai ser atribuído. Porém, essa estabilidade traz consigo dois problemas. O primeiro é que da mesma forma que realçamos os atos para reiterar a estabilidade da pessoa, criticamos para demonstrar que a estabilidade não foi respeitada. O segundo é que essa estabilidade retira a liberdade da pessoa, na medida em que cerceia a liberdade e a possibilidade de mudança. Por isso, é muito mais comum estabilizar os outros do que a si mesmo.

Interação entre o ato e a pessoa

A reação do ato sobre quem pratica é uma variável capaz de modificar constantemente a nossa concepção sobre a pessoa, tanto sobre atos novos quanto sobre atos do passado atribuídos a ela, o que colabora com a afirmação de que a imagem da pessoa jamais está terminada, sequer com a sua morte. Os atos são considerados indícios que permitem construir e reconstruir a imagem que temos de uma pessoa e, ao mesmo tempo, colocamos esses atos em categorias, as quais possuem certa classificação. O valor que atribuímos ao ato nos incita a atribuir valor correlato à pessoa. Os procedimentos para utilização desse tipo de argumento estão na utilização dos atributos relacionados à pessoa para intermediar atos conhecidos aos atos desconhecidos, do conhecimento de atos passados à previsão de atos futuros, por exemplo, “quem matou não hesitará em mentir”.

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Procedimentos de dissociação

A técnica de ruptura de ligações consiste na afirmação de que alguns elementos são associados de forma indevida e deveriam ficar separados e independentes. Segundo Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000), é um remanejamento provocado pelo desejo de remover uma incompatibilidade, que resulta na depreciação do que era até então um valor aceito. Segundo Ferreira (2015), os conceitos de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000) são “estabelecidos acordos que compreendem a noção de verdade se, e somente se, forem coerentes com determinados grupos” (p. 167), por exemplo, argumento ad hominem, que serve à opinião particular ou a de um grupo, ou o argumento ad personan, que serve ao ataque à pessoa do adversário para desqualificá-lo.

Concluímos, então, o arcabouço teórico necessário para a análise do corpus, e é o que passaremos a fazer no próximo capítulo.

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CAPÍTULO III – OS VEREDITOS FINAIS

Os critérios de seleção do corpus e as categorias de análises

O objetivo deste trabalho é analisar como alguns discursos políticos e jurídicos, proferidos ao longo dos cinco dias do julgamento de impeachment de Dilma Rousseff, tentaram sustentar a tese de que o processo movido contra a ex-presidente foi ilegítimo.

Assistimos a um intenso debate no Senado Federal, quando o cenário montado foi para um julgamento da perda ou não de um mantado presidencial. Todavia, um julgamento traz em si características de um gênero judiciário, pois o objetivo é acusar ou defender, mas, como se deu em uma casa legislativa, os participantes se alternaram em um misto de defender e acusar, falar sobre justo e injusto, deliberar sobre a utilidade e os prejuízos da cassação do mandato.

Para verificar esses procedimentos argumentativos, optamos por analisar o documento “Impeachment: o julgamento da presidente Dilma Rousseff pelo Senado Federal – 2016”, que contém a transcrição de todos os discursos realizados no plenário do Senado Federal, nos cinco dias de julgamento. Porém, o documento possui mais de 650 páginas, o que nos obriga a efetuar um recorte, sob pena de tornar a análise demasiadamente longa para os propósitos desta dissertação.

O primeiro critério de recorte foi a segregação entre os senadores que votaram a favor e contra o processo. Segundo o documento que analisamos (BRASIL, 2016, p. 654), votaram todos os 81 senadores, e o placar final foi de 61 a 20 em favor do impeachment. Como nosso interesse recai sobre os discursos que foram contrários ao impeachment, a primeira seleção elegeu vinte discursos. Contudo, esse número seria extenso e incorreríamos em análises repetidas. Para diminuir o conjunto, portanto, segregamos os vinte senadores por seus partidos políticos e o resultado foi: PT (10), PTB (2), PSB (1), PMDB (2), PSB (1), PCdoB (1), PSD (1), Rede (1) e PP (1). Dessa segregação, verificamos que dos cinco desses partidos, somente a minoria foi contra. São eles: PSB, PMDB, PSB, PSD e PP. Com isso, eliminamos esses partidos da análise e restaram PT (10), PTB (2), PCdoB (1) e Rede (1). Desses, elegemos um senador de cada partido. Do PT, elegemos a senadora Gleisi Hoffmann; do PTB,

61 elegemos o senador Armando Monteiro; do PCdoB, só havia a senadora Vanessa Grazziotin, e, do Rede, só havia o senador Randolfe Rodrigues.

Os discursos selecionados para análise constam do documento (BRASIL, 2016)16 nas seguintes páginas: Gleisi Hoffmann, de 533 a 534; Armando Monteiro, de 567 a 568; Vanessa Grazziotin, de 537 a 538; e Randolfe Rodrigues, de 573 a 57417.

Uma vez definido o corpus, definimos as categorias de análise. Para este tema, e dado o suporte teórico trazido nos capítulos anteriores, elaboramos cinco categorias. A primeira compreende a demonstração de que os debates se encontraram dentro do universo da doxa, em que não se trabalhavam com verdades e mentiras, ainda que cada orador pretendesse tornar seu discurso “verdadeiro”. A segunda visa mostrar as inserções do discurso político no discurso jurídico, uma vez que os discursos analisados objetivaram inocentar a ex-presidente com argumentos que foram além dos enquadrados no discurso jurídico. Não se tratou somente de um hibridismo natural dos gêneros, mas de uma mistura acentuada de acusar versus inocentar com tornar útil versus tornar prejudicial, por políticos que também atuaram como juízes. A Terceira pretende mostrar os mecanismos de criação do ethos, tanto do político defensor, formado ao longo do discurso, quanto da própria acusada. A quarta se ocupa dos apelos ao auditório para conseguir adesão às teses praticadas. A quinta e última se apoia no logos e a lógica do verossímil.

O universo da Doxa

A doxa, como demonstraram Ferreira (2015) e Mosca (1997), refere-se ao universo das opiniões, que se digladiam com posições diferenciadas em torno de um mesmo assunto. No caso do julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, os Senadores em favor da absolvição empenharam-se em persuadir seus pares. Ainda que o contexto fosse opinativo, os oradores se esforçaram para tornar seus argumentos “verdadeiros”.

Uma das classes de palavras que mais nos ajuda a identificar a opinião dentro de um discurso é a classe dos adjetivos. Qualificar ou desqualificar alguém ou algo

16 Impeachment: o julgamento da presidente Dilma Rousseff pelo Senado Federal – 2016. Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2018. 17 Todos os discursos constam na íntegra nos anexos deste trabalho.

62 sempre invoca um ponto de partida e oferece o contraditório de forma explícita. Outro fator que contribui para identificarmos os pontos de vistas são os argumentos. Argumentar é construir uma visão sob um fato da realidade que, por definição, pode ser refutado.

Gleisi Hoffmann

Quis o destino, conspiraram as circunstâncias para que a primeira Presidenta da República brasileira fosse uma mulher com a história de vida de Dilma Rousseff. Depois de um retirante, um sobrevivente das seculares dificuldades nordestinas, um pau de arara, contra todas as probabilidades, ascendeu à presidência, tivemos a improvável ascensão de uma mulher ao cargo. Menos talvez por sua condição de gênero, mais por suas origens políticas e culturais. De fato, Dilma não veio da política tradicional ou de uma família com ligações partidárias, sociais e econômicas com as elites brasileiras, berço de todos os 34 Presidentes que antecederam Lula. O nordestino marcado para morrer, pelo simples fato de, como os de sua geração, se opor a um regime de exceção. Mas ambos, ainda que torturados, venceram a morte encomendada pela miséria e pela repressão. De fato, quando Lula nasceu, a mortalidade infantil no Nordeste superava os 23% e a expectativa de vida pouco ultrapassava os 40 anos de idade. Quando Dilma foi presa, em 1970, também, nada garantia a sua vida, afinal, mais de três centenas de jovens brasileiros não sobreviveram à tortura e maus tratos. A prisão naquelas circunstâncias, Senadores e Senadoras, e as acusações a ela imputadas equivalem a uma sentença prévia de morte. (BRASIL, 2016, p. 533).

A oradora fez uso das expressões “quis o destino” e “conspiraram as circunstâncias”, originadas de um pensamento baseado em crenças, com o objetivo de se valer de um argumento de direção, na medida em que apontam para uma referência, qual seja, a eleição da “primeira Presidenta da República brasileira”, acrescida de expressão que deseja introduzir, sob sua ótica, a qualificação da acusada: “uma mulher com a história de vida de Dilma Rousseff”. Na sequência, Gleisi elencou vários fatos e fez uso de substantivos que, indiretamente, na produção de sentido, funcionam como adjetivos, como “depois de um retirante” (ele é um retirante), “um sobrevivente das seculares dificuldades nordestinas” (ele é um sobrevivente), “improvável ascensão de uma mulher ao cargo” (ela é uma mulher), “Dilma não veio da política tradicional” (Dilma não é uma pessoa da política tradicional), “mas ambos, ainda que torturados, venceram a morte” (eles são vencedores). Para justificar o lugar da qualidade, a oradora fez uso de lugares da quantidade, como “a mortalidade infantil no Nordeste superava os 23% e a expectativa de vida pouco ultrapassava os 40 anos de idade. Quando Dilma foi presa, em 1970, também, nada garantia a sua vida, afinal, mais de três centenas de jovens brasileiros não sobreviveram à tortura e maus tratos.”, embora não explicite a fonte nem permita ao auditório checar a veracidade dos dados e

63 os critérios estatísticos utilizados, o que faz transparecer estratégias linguísticas colocadas no lugar de evidências, de provas extrínsecas. No final, verificamos a construção de um raciocínio falacioso na relação entre os maus tratos sofridos por Dilma, em 1970, e as acusações de crime de responsabilidade, em 2016, pois estabeleceu relações fortemente emocionais como se fossem provas lógicas. Todavia, os maus tratos estão relacionados a um regime de exceção, que retaliou Dilma por subversões às regras impostas pelo próprio regime. Os crimes de responsabilidade estão relacionados a uma época de democracia, por inobservâncias a leis de responsabilidade fiscal. São de natureza completamente distinta, além da segunda não se valer de força física, e sim de cumprimento de regras Constitucionais.

Armando Monteiro

As características de um processo de impeachment presidencial nas democracias modernas – por suas circunstâncias agudas e atípicas – exigem consistência e contundência nos seus pressupostos jurídicos, que precisam ser claros e inequívocos. Não podem restar incertezas e dúvidas sobre as interpretações jurídicas que moldam esse processo. Isso porque o que está em julgamento é o afastamento definitivo da Presidente da República, legitimamente eleita pelo voto popular e portadora de imunidade processual que lhe assegura o regular exercício de suas funções, salvo quando atentar de forma grande e dolorosa contra a Constituição. Não se trata de uma garantia pessoal, mas da segurança institucional das atribuições da Chefe do Estado e de Governo no regime de presidencialista. Nesse sentido, caso se queira ou se busque imputar alguma responsabilidade por eventuais desconformidades ou irregularidades nos atos apontados pela denúncia, deve-se observar o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade da punição. (BRASIL, 2016, p. 567).

Esse orador fez uso de argumentos que ressaltam as ligações de sucessão, especialmente o argumento pragmático, na medida em que analisou fatos da realidade e conduziu o auditório a aceitar determinado ângulo observado com o objetivo de romper o nexo causal entre as acusações imputadas à acusada e a severidade da punição. Seu raciocínio foi dialético, pois parte de premissas aceitáveis, quando admitiu que as “características de um processo de impeachment presidencial nas democracias modernas – por suas circunstâncias agudas e atípicas – exigem consistência e contundência nos seus pressupostos jurídicos, que precisam ser claros e inequívocos” para sustentar as conclusões que visam observar “o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade da punição”. Não se trata, portanto, de evidências, de provas extrínsecas, mas de raciocínios conduzidos dentro de um universo opinativo. Expressões que adjetivam, como “circunstâncias agudas e

64 atípicas”, “pressupostos jurídicos, que precisam ser claros e inequívocos”, e outras que criam um ethos alheio, especialmente pelo atributo do cargo, como “Presidente da República, legitimamente eleita”, “portadora de imunidade processual”, colaboram para dar seletividade e construir a realidade de acordo com as conclusões que se quer chegar.

Vanessa Grazziotin

E há, por fim, os que já não se intimidam de dizer, sem nenhum constrangimento, que querem Dilma Rousseff fora da Presidência pelo “conjunto da obra”. A esses eu pergunto: qual artigo? Qual a lei? Na Constituição, onde está o crime praticado pela Presidente Dilma? Não podemos, senhoras e senhores, transformar este parlamento num colégio eleitoral e levar ao Palácio do Planalto quem não obteve um voto sequer da população brasileira. Se autorizarmos que o ódio, a raiva, o despeito, a misoginia, o preconceito vencem agora, como evitar que triunfem mais adiante, quando os julgados poderemos ser nós? Como exigir imparcialidade e isenção se não formos nós mesmos capazes de praticá-las? Como reivindicar a justiça se não soubermos assegurá-la? (BRASIL, 2016, p. 538).

Essa oradora fez uso de um raciocínio falacioso, na medida em que construiu um número de premissas com alto apelo às paixões, pela reiteração de palavras com carga semântica negativa, como “raiva”, “ódio”, “misoginia”, “preconceito”, para chegar a conclusões com aparente silogismo lógico, no trecho em que questiona “como reivindicar a justiça se não soubermos assegurá-la?”. O objetivo da falácia é atribuir ilegitimidade ao processo ao utilizar o argumento ad personan ao atacar o ethos do Presidente da Câmara dos Deputados, responsável por acatar o pedido de impeachment e que se encontrava preso à época do julgamento. Há, também, a tentativa de usar a argumentação para romper o vínculo causal entre a acusação e o julgamento, quando diz: “há, por fim, os que já não se intimidam de dizer, sem nenhum constrangimento, que querem Dilma Rousseff fora da Presidência pelo „conjunto da obra‟. A esses eu pergunto: qual artigo? Qual a lei? Na Constituição, onde está o crime praticado pela Presidente Dilma?” A oradora se esforçou para tornar ilegítimo o processo quando se ateve ao termo “conjunto da obra” e omitiu as acusações formais que ensejaram o processo.

65

Randolfe Rodrigues

Senhor presidente, o que está em jogo aqui é, fundamentalmente, o dia depois do amanhã; o que está em jogo aqui é qual política e em qual lado nós queremos entrar para a história. Eu não mancharei a minha biografia entrando para a história com a alcunha de golpista; eu não mancharei a minha biografia entrando para a história como alguém que, em um momento em que foi chamado pelo seu povo e pela sua Nação para ter ato de coragem, se acovardou a partir das posições mais fáceis de serem implementadas. O que está em jogo aqui é para quem deve ser o desfecho dessa crise, se para um governo biônico, sem a soberania do voto popular, ou para a soberania da democracia do povo nas ruas e nas urnas. (BRASIL, 2016, p. 574).

O orador fez apelo às paixões, quando utilizou a expressão “não mancharei”, reiteradamente, como figura de presença, e, ao mesmo tempo, tentou construir para si um ethos de Senador com credibilidade, calcado na expressão “em um momento em que foi chamado pelo seu povo e pela sua Nação para ter ato de coragem, se acovardou a partir das posições mais fáceis de serem implementadas”, mas traz valores ambivalentes, na medida em que o auditório não era unânime em relação à polêmica instaurada. Invocou, novamente, um ethos de Senador com caráter, capaz de lidar com momentos controversos sem enfraquecer. Construiu, também, um raciocínio falacioso na expressão “O que é está em jogo aqui é para quem deve ser o desfecho dessa crise, se para um governo biônico, sem a soberania do voto popular, ou para a soberania da democracia do povo nas ruas e nas urnas”, por fazer uso de falsas premissas em “sem a soberania do voto popular” (quando a população vota, elege o Presidente e seu Vice, e quem escolheu o Vice foi a própria candidata) para chegar à conclusão de que o processo é ilegítimo, pois não considerou as reivindicações das ruas nem a soberania do voto, ao mesmo tempo em que seu discurso criou nexo causal na relação de causa e consequência: mau julgamento igual à derrocada da democracia brasileira.

Inserções do discurso político no discurso jurídico

Como já dito neste trabalho, o discurso dialético-persuasivo não é elaborado de forma anárquica. Para persuadir o auditório, o orador lança mão de argumentos que se enquadram, segundo Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]), em gêneros do discurso. Para esse filósofo, três são esses gêneros na ótica dos estudos retóricos e estão associados à finalidade do discurso. Se a intenção do orador for falar de eventos passados, com o

66 objetivo de culpar ou inocentar, o gênero em questão é o judiciário. Se a intenção do orador for deliberar sobre eventos futuros, com o objetivo de aconselhar, o gênero é político. E, por fim, se a intenção do orador for falar sobre eventos do presente, com o objetivo de elogiar ou degradar, o gênero é o epidítico. Contudo, é natural que, em um mesmo discurso, o orador possa fazer referências a eventos que aconteceram no passado e passe a culpar ou inocentar e, na sequência, deliberar sobre a utilidade da decisão para o futuro e, no meio de um e de outro, adjetivar situações que acontecem enquanto enuncia. Um gênero pode sofrer inserções de outros. Nas palavras de Mosca (1997), “embora esses gêneros sejam bem delineados, dentro da mesma argumentação podem ocorrer traços dos três tipos de discurso, numa relação de dominância e não de exclusão.” (p. 32).

O julgamento do impeachment reserva uma situação peculiar no que tange ao gênero. O próprio termo “julgamento” nos remete a fatos do passado, com vistas a culpar ou inocentar alguém. Entretanto, ao discursarem, ao mesmo tempo em que tentaram persuadir sobre a culpa ou a inocência em relação às acusações que pesaram contra a ré (dirigidas a um auditório tribunal), deliberaram sobre o útil e o prejudicial em relação às possíveis decisões (dirigidas a uma assembleia).

O objetivo desta categoria de análise, portanto, é mostrar como os discursos alternam a posição do auditório; ora o orador concentrou seu discurso para persuadir o auditório da culpa ou da inocência da ré, ora o orador concentrou seu discurso sobre o útil e o prejudicial da possível decisão. Por isso o entendimento de que o impeachment promoveu a inserção de discursos políticos em discursos jurídicos.

Gleisi Hoffmann

Fizemos a Previdência Social o maior instrumento de distribuição de renda, ao transferir para as aposentadorias e pensões o aumento real do salário mínimo; demos, ao salário mínimo, aumentos reais de mais de 70% – o que será retirado agora, por esse Presidente interino. Preservamos a soberania brasileira sobre o petróleo, os minérios, as águas, as terras; rejeitamos a submissão à globalização imperial; fortalecemos os nossos laços com os países vizinhos e buscamos, com a China, com a Rússia, África do Sul e a Índia, a construção de um mundo multipolar, desenvolvido, pacífico, soberano, tudo também em risco pelo governo interino. (BRASIL, 2016, p. 534).

Essa oradora fez a junção de discursos jurídicos e políticos de forma bem imbricada. É possível perceber os traços do gênero judiciário nas passagens em que os verbos são flexionados no passado, como em “fizemos a Previdência Social”, “demos,

67 ao salário mínimo”, “Preservamos a soberania”, “fortalecemos os nossos laços”, com vistas a elencar motivos para demover o auditório de cassar o mandato da ré. Não há, nesse fragmento, argumentos contra as acusações, e sim uma relação de ações consideradas positivas pelo senso comum que podem estar comprometidas se o presidente interino assumir, segundo a oradora, momento em que o discurso se sobressai com traços de gênero político, especialmente em “o que será retirado agora, por esse Presidente interino” e “tudo também em risco pelo governo interino”, pelos verbos se flexionarem em tempo futuro e por suas intenções, no contexto, sugerirem a prejudicialidade na cassação do mandato, ou seja, a perda das conquistas por ela elencadas. A oradora não optou por separar, claramente, o momento em que defenderia pela inocência ou culpa da ré nem quando passaria a deliberar sobre o útil e o prejudicial no resultado da votação.

Armando Monteiro

Tenho convicção de que a saída necessariamente ocorrerá pelo controle dos gastos públicos, mas também por uma clara sinalização de que, mais do que promover um ajuste de curto prazo, precisamos construir as bases de um novo regime fiscal que assegure o equilíbrio sustentável das contas públicas, mesmo nos períodos de maior flutuação econômica. Convém registrar, nessa oportunidade, nossa preocupação com os sinais ambíguos que vêm sendo emitidos pelo Governo interino, que, com o apoio do Congresso....(soa a campainha).... vem promovendo o atendimento das demandas de vários setores e corporações, incompatíveis com a gravidade do quadro fiscal, retardando assim a recuperação econômica. (BRASIL, 2016, p. 568).

O discurso desse orador iniciou-se com elementos linguísticos que remetem ao gênero político, quando receitou ações com convicções do que seria mais útil a se fazer, encontrados em “Tenho convicção de que a saída necessariamente ocorrerá pelo controle dos gastos públicos, mas também por uma clara sinalização de que [...] precisamos construir as bases de um novo regime fiscal que assegure o equilíbrio sustentável das contas públicas”. Nesse fragmento, é possível encontrar verbos flexionados no futuro e a intenção de fixar o caminho a percorrer com vistas a comprometer o ethos do presidente interino, quando elencou suas ações no exercício de sua interinidade, com expressões que fazem sobressair o gênero judiciário, quando disse: “Convém registrar, nessa oportunidade, nossa preocupação com os sinais ambíguos que vêm sendo emitidos pelo Governo interino [...] vem promovendo o atendimento das demandas de vários setores e corporações, incompatíveis com a

68 gravidade do quadro fiscal, retardando assim a recuperação econômica.”. Nesse fragmento, o orador ressaltou que o presidente que assumirá o cargo efetivamente é um presidente que não toma as ações, segundo o orador, necessárias para recuperação da crise econômica e, com essa defesa, sugeriu, indiretamente, que o auditório não votasse pela cassação da acusada e, ao final do discurso, proferiu seu voto. Para sugerir que o auditório não vote pela cassação da ré, inseriu um discurso político (diz quais as ações serão primordiais para sair da crise) no discurso jurídico (retira a culpabilidade da acusada e transfere ao presidente interino).

Vanessa Grazziotin

Deixemos a hipocrisia de lado, senhoras e senhores – repito: deixemos a hipocrisia de lado. Não há ninguém aqui neste plenário que acredite que Dilma Rousseff esteja sendo julgada pelos crimes que lhe são atribuídos na peça acusatória encomendada, sob medida, pelo partido derrotado nas últimas eleições. O que está em discussão aqui é até que ponto estamos dispostos a fazer uso político do Tribunal de Contas da União, rasgar a Constituição, a fraturar o estado democrático de direito e a inovar a própria doutrina jurídica para fazer que seja feita a vossa vontade. O que está em discussão aqui é até ponto estamos dispostos a instaurar um juízo de exceção para remover a Presidente da República, que foi eleita democraticamente pelo voto brasileiro. (BRASIL, 2016, p. 538).

A oradora iniciou com argumentos que se enquadram no gênero judiciário, na medida em que questiona o auditório sobre a veracidade da peça acusatória, explícita em “Deixemos a hipocrisia de lado”. A peça acusatória, por sua vez, contribuiu para ressaltar o gênero judiciário, porque elencou atos cometidos no passado. A intenção da oradora foi tornar a acusação inválida e, por conseguinte, persuadir o auditório pela inocência da ré. Na sequência, claramente, sobressaiu o gênero político, pois a oradora passou a deliberar sobre a prejudicialidade da cassação do mandato, quando disse, por exemplo, “rasgar a Constituição”, em uma relação metafórica de romper com a democracia. As expressões “o que está em discussão aqui é até que ponto” com o complemento “estamos dispostos a fazer uso político [...] a fraturar o estado democrático brasileiro [...] a inovar a própria doutrina jurídica ...” apontaram para o futuro e contribuíram significativamente para ressaltar o gênero político.

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Randolfe Rodrigues

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, o que nós assistimos aqui foi um absurdo, foi uma confissão plena neste plenário de que o principal artífice da denúncia aqui, o principal articulador, na verdade fez parte de um conluio, de uma conspiração, para já ter o resultado certo por parte do Tribunal de Contas da União. É uma sequência de absurdos, e isso não é razão para afastar um presidente. Em última análise, Sr. Presidente, Sras. Senadoras e Srs. Senadores, o que nós vamos decidir aqui, no dia de hoje, é se vamos pôr fim ao mandato de uma Presidente da república eleita com 54 milhões de votos, e essa Presidente da república vai convocar novas eleições presidenciais, através de um plebiscito, conforme compromisso público que assumiu, ou se vamos dar cabo à posse de um Vice ilegítimo, que quer executar um programa de retrocesso de direitos individuais e direitos sociais que, em qualquer eleição, um voto teria. (BRASIL, 2016, p. 574).

No início do discurso, foi possível encontrar elementos linguísticos que remeteram ao gênero judiciário: temos verbos flexionados em tempos pretéritos, como “assistimos aqui”, “foi um absurdo”, “foi uma confissão”, “fez parte de” e argumentos em prol de inocentar a ré, quando elencou as provas da acusação como absurdas, em “o que nós assistimos aqui foi um absurdo”, e quando usa um adverbio de afirmação para realçar a “verdade” de um fato que o orador classifica de conluio, em “na verdade fez parte de um conluio”, com o objetivo de desqualificar o ethos da testemunha. Concorre também para classificação de gênero judiciário a indicação de não votar pela cassação em “isso não é razão para afastar um presidente”. Na sequência do discurso, porém, sobressaem elementos linguísticos que remeteram ao gênero político: temos expressões voltadas ao tempo futuro: “o que nós vamos decidir”, “é se vamos pôr fim”, “vai convocar novas eleições”, “se vamos dar cabo à posse”, e os argumentos jogaram com o útil, por um lado, quando fez uso de uso de hipérbole para sustentar a posição de que seria útil não cassar o mandato da ré em “se vamos pôr fim ao mandato de uma Presidente da república eleita com 54 milhões de votos”, e, com o prejudicial, por outro lado, quando disse que a pessoa que assumirá o voto é partidária de um programa que retira direitos individuais e sociais em “se vamos dar cabo à posse de um Vice ilegítimo, que quer executar um programa de retrocesso de direitos individuais e direitos sociais que, em qualquer eleição, um voto teria”. Com essas observações, foi possível ver que o orador alternou sua posição: ora refletiu sobre o justo e o injusto, sobre fatos que já passaram, com vistas a convencer o auditório de que a acusada não foi culpada, e ora deliberou sobre o útil e o prejudicial da decisão que o auditório vai tomar, mas, no final, também deu seu voto, o que o coloca como auditório, dentro do mesmo discurso.

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Os mecanismos de construção do Ethos

Como já dito neste trabalho, a retórica é um discurso dialético-persuasivo. É dialético porque norteia o mundo do provável e persuasivo porque visa levar um auditório, por meio de provas, à melhor opinião sobre uma controvérsia. Uma das provas, segundo Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]), é o ethos. Para esse filósofo, a persuasão depende do caráter pessoal do orador e esse caráter é construído ao longo do discurso.

Contudo, autores como Meyer (2007) e Ferreira (2015) acentuam que o ethos pode ser encontrado além do discurso, dado que não podemos nos limitar à imagem do orador, pois ethos é um domínio, um nível, uma estrutura, e aparenta, de maneira geral, aquele com quem o auditório se identifica.

Para conseguirmos cumprir esse objetivo, partiremos das estratégias de análise trazidas por Ferreira (2015), que demonstra, em linhas gerais, quatro possibilidades de encontrar o ethos no ato retórico: a) discursos que reconhecem a própria fraqueza, limitações; b) discursos que externam promessas; c) discursos que denotam traços de caráter; e d) discursos que demonstram ou não a sensibilidade em relação ao interlocutor. Para além desses, consideraremos os casos em que o discurso jogar diretamente com a definição da imagem de alguém ou do grupo a qual essa pessoa faz parte.

Gleisi Hoffmann

Temos, então, dois fatos: uma Presidente fora do círculo dominante, de esquerda – portanto, desajustada à normalidade que vem desde 1889 – e, ainda por cima, mulher e sem marido. O enorme significado da eleição da primeira mulher à Presidência, em um país como o nosso, ainda não foi avaliado, mas são indispensáveis estudos sociológicos, teses e pesquisas para se saber do impacto profundo que isso teve e terá entre as mulheres e os brasileiros mais pobres. Nos últimos anos, avançamos a galope em legislações e iniciativas de proteção e promoção à mulher brasileira. As estruturas criadas no Governo Federal, particularmente por Dilma, para esse fim, foram largamente reproduzidas pelos Estados e Municípios brasileiros. Mesmo que não confessem, é claro que isso incomoda muita gente, e a tentativa de derrubada da Presidenta tem, então, este ingrediente: mandar a mulher de volta para casa, de preferência para a cozinha. Ou não é expressivo e revelador o ministério 100% masculino do interino e o rebaixamento das estruturas ministeriais de promoção das mulheres, e a pauta midiática “bela, recatada e do lar”? (BRASIL, 2016, p. 533-534).

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Todo discurso, de forma mais ou menos acentuada, cria imagens daqueles que estão envolvidos. Nesse pequeno fragmento, foi possível encontrar uma série de envolvidos e um número expressivo de adjetivos ou expressões adjetivas, preservação da face, que, diretamente, construiu o ethos de cada citado. Em relação à ré, podemos verificar um ethos construído pelo reconhecimento da fraqueza diante da situação, como em “fora do círculo dominante”, “de esquerda”, “desajustada à normalidade”, “mulher e sem marido”. Valeu-se a oradora da criação do ethos da própria ré, quando se refere às qualidades pessoais e ao ethos de um domínio, quando disse que a ré é “de esquerda” e “fora do círculo dominante”. Na sequência, atua com a preservação da face da ré, na medida em que, indiretamente, ressaltou as competências, calcada no fato de ser a primeira mulher a assumir o cargo de Presidente da República e provocar “impacto profundo” na vida das mulheres e dos brasileiros mais pobres e conclamou por teses e pesquisas, como forma de dar credibilidade à sua afirmação, pois teses e pesquisas estão sempre associadas a instituições tradicionais na sociedade brasileira, como as universidades. Nos trechos em que disse: “Nos últimos anos, avançamos a galope em legislações” e “As estruturas criadas no Governo Federal, particularmente por Dilma”, o verbo “avançamos” funde o ethos da oradora, da ré e da instituição Governo Federal (no período do mandato da ré) e objetivou criar uma imagem positiva de um domínio. Para finalizar, utilizou-se da demonstração de atos machistas (atualmente muito criticados socialmente), por meio de hipérboles, em “100% masculino”, e associou-os ao presidente, à época, interino, como forma de macular seu ethos, argumento ad personan.

Armando Monteiro

Nesse sentido, caso se queira ou se busque imputar alguma responsabilidade por eventuais desconformidades ou irregularidades nos atos apontados pela denúncia, deve-se observar o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade da punição. Não pode haver tamanho descompasso entre a conduta que se pretende punir e a gravidade da sanção extrema que se pretende imputar. Neste processo, estou convencido de que o objeto material ou o núcleo formal da denúncia, as supostas irregularidades na edição de decretos de créditos suplementares e a hipótese da pedalada do Plano Safra são questões controversas na interpretação de ilustres juristas e, portanto, frágeis. Não há uma interpretação uniforme, inequívoca, inquestionável. A denúncia, senhores, está indisfarçavelmente embalada por motivações de natureza política. (BRASIL, 2016, p. 567).

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É possível observar que o orador fez ataque às ações dos Senadores que acolheram a tese da acusação, mas demonstrou sensibilidade no discurso, na medida em que o auditório continha muitas pessoas e não houve direcionamento individual, verificável em “caso se queira”, “se busque” e “deve-se”. Nenhum dos verbos está associado a um sujeito. Houve, portanto, a tentativa de jogar com a desproporcionalidade na relação acusação/condenação que, por consequência, não deixou de ser uma tentativa de manchar o ethos dos que se pronunciaram em favor da cassação. O orador posicionou-se em favor da ré e se pautou no ethos de juristas que comentaram o caso. Apoiar-se na fala dos juristas para justificar uma posição foi criar um ethos de credibilidade baseados em discursos dominantes que autorizam determinados profissionais a sustentarem teses sobre assunto de sua área de conhecimento. Ao mesmo tempo, ao longo do discurso, o orador tentou criar para si o ethos de sério, virtuoso, quando fez uso de modalizações para tomar posição, em “estou convencido” de que são “questões controversas” e, por isso, “frágeis”, e fez ataques ao ethos dos que, de alguma forma, participaram do prosseguimento do processo, em “A denúncia, senhores, está indisfarçavelmente embalada por motivações de natureza política”.

Vanessa Grazziotin

Quero, em primeiro lugar e, portanto, Sr. Presidente, abordar simplesmente e tão somente os fatos. Pois bem: imaginemos todos nós que um cidadão seja acusado de um crime – não importa que crime. Imaginem que a denúncia contra esse cidadão seja apresentada por um seu reconhecido adversário. “É da ordem da vida”, muitos dirão; “adversários acusam seus inimigos todos os dias em toda parte, com ou sem razão.” Imaginem, porém, que essa denúncia, proposta por um adversário, seja acolhida, em uma primeira instância, por um desafeto confesso, vingativo, como foi o caso da Senhora Presidente Dilma. Mas como? Não deveria ter esse juiz se declarado impedido de examinar a denúncia contra um seu inimigo? Mas sigamos, porque a farsa apenas começou. Aceita a denúncia, procede-se ao julgamento da admissibilidade. E o juízo, formado por 513 Deputados e Deputadas, ofereceu ao País um verdadeiro espetáculo de horror, onde declararam publicamente que a Presidenta Dilma estava sendo julgada ali, admitindo-se uma denúncia, não pelo que estava no processo, mas pelo tal conjunto da obra. (BRASIL, 2016, p. 537).

A oradora se valeu do universo da doxa na passagem em que disse “abordar simplesmente e tão somente os fatos”, na medida em que um fato da realidade pode ser observado por diversos ângulos e o desta oradora foi direcionado para macular o ethos de vários adversários da ré. Primeiro, foi possível observar o ataque contra quem apresentou a denúncia ao órgão competente, em “Imagem que a denúncia contra esse

73 cidadão seja apresentada por um seu reconhecido adversário” e, na sequência, complementou a suposição, em “Imagem, porém, que essa denúncia, proposta por um adversário, seja acolhida, em uma primeira instância, por um desafeto confesso, vingativo, como foi o caso da Senhora Presidente Dilma”, de forma a complementar o ataque e igualar o ethos do segundo ao primeiro. Argumentos ad personan como forma de desqualificar os proponentes do processo. Em continuidade, colocou em dúvida o caráter de quem acatou a denúncia, em “Não deveria ter esse juiz se declarado impedido de examinar a denúncia contra um seu inimigo?”. A oradora, por meio de avaliação de cunho pessoal (universo da doxa), tentou invalidar toda a tramitação do processo, com a suposição de que as pessoas envolvidas (quem apresenta a denúncia e quem acata, em primeira instância) não possuíam um ethos autorizado para o que pretendiam. Para completar, atacou, fortemente, os juízes que autorizaram o processo a ser julgado no Senado Federal, em “E o juízo, formado por 513 Deputados e Deputadas, ofereceu ao País um verdadeiro espetáculo de horror”.

Randolfe Rodrigues

Foi com essas intenções, foi com as piores intenções, que o Sr. Vice-Presidente da República conspirou nos bastidores, nos porões, para ascender ilegitimamente ao cargo. Porque, Sr. Presidente, qual é o fundamento que tem para esse afastamento? Uma testemunha. Uma única testemunha que foi ouvida aqui. Ah, alguns vão dizer: “Tem também o Sr. Júlio Marcelo.” Júlio Marcelo foi aqui desqualificado como testemunha e qualificado como informante – Júlio Marcelo, alguém que não honra a nobre carreira do Ministério Público; alguém diferente de Ela Wiecko, que honra a carreira do Ministério Público Federal, que honra a cadeira dos membros da Procuradoria-Geral da República. De um lado, a desfaçatez; do outro, a honrabilidade de um membro do MPF. Antonio D‟Ávila, essa única testemunha, foi auditor do Tribunal de Contas da União. A ele caberia a formulação de parecer. E o que ocorreu, Senador Humberto Costa? Ele preparou a representação que ele depois julgou. Por isso que hoje, na tarde de hoje, representamos contra esses dois senhores no Conselho Nacional do Ministério Público e no Ministério Público Federal. (BRASIL, 2016, p. 573-574).

Esse orador iniciou seu discurso com fortes traços (pejorativos) que ressaltaram o caráter do então presidente interino, segundo o orador, em “foi com essas intenções, foi com as piores intenções, que o Sr. Vice-Presidente da República conspirou nos bastidores, nos porões, para ascender ilegitimamente ao cargo”, pois questionou os modos que se deram o afastamento, em “qual é o fundamento que tem para esse afastamento? Uma testemunha”. Na sequência, antes que passe a classificar negativamente essa testemunha, Antonio D´Ávila, trouxe outra, Júlio Marcelo, que, segundo o orador, foi desqualificado no processo e jogou com seu caráter, em “Ah,

74 alguns vão dizer: „Tem também o Sr. Júlio Marcelo.‟ Júlio Marcelo foi aqui desqualificado como testemunha e qualificado como informante” em oposição a outro colega, em “alguém diferente de Ela Wiecko, que honra a carreira do Ministério Público Federal, que honra a cadeira dos membros da Procuradoria-Geral da República”. Traçou o ethos da testemunha que quer desqualificar, primeiro com o adjetivo de “informante” e, segundo, em comparação a um colega de profissão e instituição, Ela Wiecko, que o orador atribuiu o ethos de bom caráter, de credibilidade. Para finalizar, retomou os ataques a Antonio D´Ávila, contra seu caráter, em “Ele preparou a representação que ele depois julgou” e, sem nenhuma discrição, tornou público que levará a conduta dele e do Júlio Marcelo ao Conselho Nacional do Ministério Público. No interior do seu discurso, portanto, cria não somente o seu próprio ethos, mas faz uso constante do argumento ad personan como forma de tirar a credibilidade dos que testemunharam contra a ré.

Apelos ao auditório: pathos

O pathos representa as emoções que são suscitadas no auditório. Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]) conceitua as emoções como provas psicológicas importantes que, ao lado do ethos e do logos, formam o conjunto de provas utilizadas pelo orador para persuadir seu auditório. Para incitar as emoções, o orador lança mão de algumas estratégias: a) faz uso de figuras de linguagens como valor argumentativo; b) provoca sensações que acalmem o auditório quando transparecer alguma preocupação, como exemplo, incitar a calma quando há a propensão ao medo; c) provoca sensações de raiva, quando ressalta vilanias humanas; d) desautoriza a imagem ou o discurso de outrem por meio da sátira; entre outras estratégias que visam provocar as sensações boas ou ruins em seus auditórios.

Gleisi Hoffmann

No entanto, mais do que as origens da Presidenta e a sua condição de mulher, mãe e avó, me aperta o coração o retrocesso que este País terá, que será o maior desastre da nossa história, se o interino se transformar em efetivo. É impressionante a capacidade das nossas classes dominantes de fazer girar a roda da história para trás. É assombrosa essa tendência inelutável de recuar, de voltar no tempo, de não aceitar qualquer avanço que possa significar um arranhãozinho que seja, insignificante, em seus privilégios. Assim é a história brasileira, secularmente: cada vez que os deserdados afloram, por uma ou outra concessão, há um recuo, seja na clássica forma de golpe de

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Estado, como estamos vivendo agora, seja na tomada de medidas governamentais de cortes de investimento público, de arrocho salarial, de reforma da Previdência, como o que está anunciado pelo interino. Toda vez que avançamos em conquistas sociais em décadas passadas, com Vargas ou Goulart, ou nos anos recentes, com Lula e Dilma, sob os mais cínicos e despudorados pretextos, marretam o povo e suas tímidas conquistas. Ontem, era o espectro do comunismo; agora, essa ridicularia de pedaladas e irresponsabilidade fiscal, devidamente fulminadas neste plenário – ontem pela Presidenta Dilma e, hoje, pela brilhante defesa que fez o ex-Ministro e Advogado José Eduardo Cardozo. (BRASIL, 2016, p. 534).

A oradora faz forte apelo emocional logo no início do discurso, com “mais do que as origens da Presidenta e a sua condição de mulher, mãe e avó, me aperta o coração o retrocesso que este País terá”, com o objetivo de comover o auditório, na medida em que traz adjetivos à ré que, em geral, as pessoas associam a sensações carinhosas, como “mãe e avó”. Na sequência, faz uso da figura de presença como forma de ressaltar o que entende como retrocesso: “É impressionante ...”, “É assombrosa ...”, “Assim é a história brasileira, secularmente”, “há um recuo...”, “toda vez que avançamos [...] marretam”. Associa todo esse retrocesso à efetivação do Presidente interino, com argumento ad personan, que objetiva macular o ethos de Michel Temer em “me aperta o coração o retrocesso que este País terá, que será o maior desastre da nossa história, se o interino se transformar em efetivo”. Coloca a ré e seu antecessor no papel de vítimas do processo, especialmente em: “com Vargas ou Goulart, ou nos anos recentes, com Lula e Dilma”, pois apela para a comoção do auditório ao comparar “Vargas ou Goulart” com “Lula e Dilma”, notadamente pelo golpe militar contra Goulart e o impeachment atual contra Dilma, já que ao primeiro se atribui inúmeras atrocidades.

Armando Monteiro

O expressivo aumento do déficit previdenciário e as vinculações institucionais, que conferem extrema rigidez ao orçamento, demandam reformas de longo prazo. [...]. O Governo da Presidente Dilma estava pronto para levar adiante essa agenda. [...] Convém registrar, nessa oportunidade, nossa preocupação com os sinais ambíguos que vêm sendo emitidos pelo Governo interino, que, com o apoio do Congresso,...(soa a campainha)... vem promovendo o atendimento das demandas de vários setores e corporações, incompatíveis com a gravidade do quadro fiscal [...]. Senhoras e senhores, não poderia deixar, nessa hora, ao final, de dizer que, mais do que o episódio do impeachment, nós temos uma crise de graves proporções que aí está colocada. [...] Sr. Presidente, ao final, eu gostaria de dizer que nós temos, portanto, um quadro difícil [...] A política é o exercício da esperança, mas temos que lembrar que as questões mais desafiadoras estão longe de ser resolvidas. Não há nada a comemorar neste momento, senão para se preocupar, pelo menos até que o futuro desminta esse mal presságio do presente. (BRASIL, 2016, p. 568).

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Esse orador fez uso lexical e conceitual mais técnico com a tentativa de exprimir racionalidade no discurso, em “expressivo aumento do déficit”, “vinculações institucionais”, “gravidade do quadro fiscal”, mas não deixou de apelar às emoções, em “O Governo da Presidente Dilma estava pronto para levar adiante essa agenda.”, como forma de tornar injusto o processo, tirar da presidente a possibilidade dela fazer o que deve ser feito e estava pronta para fazer. Também apela para a emoção quando utiliza o argumento ad personan ao atribuir ao presidente interino ações contrárias ao que entende como necessárias, em “vem promovendo o atendimento das demandas de vários setores e corporações, incompatíveis com a gravidade do quadro fiscal”. Faz também o apelo à “esperança”, pois, segundo o orador, os problemas não serão resolvidos com o impeachment, já que as questões são mais desafiadoras, como forma de comover o auditório e demovê-lo da ideia de cassação. Por final, faz uso de uma expressão “mal presságio do presente” para incitar a insegurança, o medo no voto em favor do impeachment.

Vanessa Grazziotin

Se autorizarmos que o ódio, a raiva, o despeito, a misoginia, o preconceito vençam agora, como evitar que triunfem mais adiante, quando os julgados poderemos ser nós? Como exigir imparcialidade e isenção se não fomos nós mesmos capazes de praticá-las? Como reivindicar a justiça se não soubemos assegurá-la? Ora, Sr. Presidente, este é um momento muito triste da nossa história, é o momento talvez... (soa a campainha)... mais triste que já vivi na minha vida. Quero dizer a vocês: eu voto “não” porque não estou num tribunal de exceção. Eu voto “não” porque sou contra golpe parlamentar; eu voto “não” à usurpação da soberania popular. Por fim, sabemos que aqui o que está acontecendo não é um impeachment, é uma disputa política daqueles que perderam as últimas quatro eleições e querem, a toda força e com todo peso, voltarem a aplicar o seu projeto neoliberal, projeto nocivo ao Brasil, projeto nocivo a todo povo brasileiro, à gente mais pobre principalmente. (BRASIL, 2016, p. 538).

A oradora inicia o discurso com o apelo às vilanias humanas, como forma de pactuar com o auditório um grupo de emoções contrárias ao bem-estar, em geral, de qualquer pessoa, como “ódio”, “raiva”, “despeito”, “misoginia” e “preconceito”. Igualar as ações dos que estão contra a ré a essas emoções não deixa de ser uma estratégia patética para persuadir o auditório. Na sequência, invocou o senso de justiça, em “como evitar que triunfem mais adiante, quando os julgados poderemos ser nós? Como exigir imparcialidade e isenção se não fomos nós mesmos capazes de praticá- las? Como reivindicar a justiça se não soubemos assegurá-la?” com a intenção de fazer uma associação entre o julgamento do impeachment a ações injustas. Emendou

77 com expressões como “golpe parlamentar” e “usurpação da soberania popular” na tentativa de desqualificar os procedimentos do curso da ação para atacar o ethos de adversários políticos e fomentou as paixões do auditório em “querem, a toda força e com todo peso”, “aplicar o seu projeto neoliberal”, “nocivo a todo povo brasileiro”, “nocivo à gente mais pobre principalmente”. Há o uso da expressão “eu voto não” como figura de presença, repetida em várias partes do texto, com o objetivo de associá-la a ações que, em geral, todos são contra: “tribunal de exceção”, “golpe parlamentar”, “usurpação da soberania popular”.

Randolfe Rodrigues

Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, se o governo é impopular, o remédio para um governo impopular não é impeachment; o remédio para um governo impopular chama-se eleições, voto, soberania da decisão do povo; o remédio para um governo impopular é o exercício da soberania popular. Não existem atalhos, não existem atalhos como este que o PMDB quer percorrer por fora da vontade popular. Não existem atalhos como este que o Governo biônico quer imprimir, sem a apreciação democrática das urnas. Isso, além da maioria parlamentar na Câmara e no Senado e da Vice-Presidência da República, não pode ser solução; não podem ser solução para a crise aqueles protagonistas que ajudaram a forjar esta crise. Esta crise foi constituída, desde o primeiro momento, pelo PMDB. (Soa a campainha.) Não podem os algozes e autores da crise pousarem como mocinhos, agora, para tentar resolvê-la. A solução para esta crise política é a realização de novas eleições, é entregar soberanamente à vontade do povo que está nas ruas, neste momento, reclamando pelo “Fora, Temer”, se tanto aqui ouvi falar do clamar rouco das ruas; entregar ao povo a resolução da crise. (BRASIL, 2016, p. 574).

O orador iniciou esse fragmento com o uso de “remédio” como metáfora para solução do conflito e associou esse remédio a novas eleições. Por saber que o julgamento se passava ao vivo, o orador se valeu dessa incitação ao auditório externo (público) como forma de pressionar o auditório juiz, em “o remédio para um governo impopular chama-se eleições, voto, soberania popular”, pois tentou invalidar a legitimidade que os Senadores possuíam para votar. Na sequência, insistiu na mesma estratégia quando disse “Não existem atalhos, não existem atalhos como este que o PMDB quer percorrer por fora da vontade popular. Não existem atalhos como este que o Governo biônico quer imprimir, sem a apreciação democrática das urnas”. Há o uso de algumas expressões como figura de presença, em “o remédio”, “não existem atalhos”, “não pode ser a solução”, como forma de apelar para a desqualificação moral do processo. Há, também, o uso do argumento ad personan, sobretudo contra o governo interino e seu partido, visível em “não existem atalhos como este que o

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PMDB quer percorrer”, “Não existem atalhos como este que o Governo biônico quer imprimir”, “Esta crise foi constituída, desde o primeiro momento, pelo PMDB”, “Não podem os algozes e autores da crise pousarem como mocinhos”.

Logos e a lógica do verossímil

O logos, por sua vez, é conceituado por Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]) como o lado racional do discurso. É por meio de estratégias previamente pensadas que o orador tenta persuadir seu auditório. Segundo Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000), especialmente no recorte que fizemos neste trabalho, os argumentos podem se dar pelas ligações de sucessão, pelas ligações de coexistência e pelos procedimentos de dissociação. Na primeira, os argumentos unem um fenômeno às suas causas e, na segunda, unem uma pessoa aos seus atos. Nas ligações de sucessão, utilizaremos os argumentos pragmáticos e os de direção. Nas ligações de coexistência, faremos uso da relação da pessoa e seus atos e da interação entre o ato e a pessoa. Nos procedimentos de dissociação, por sua vez, trata-se de um remanejamento provocado pelo desejo de remover uma incompatibilidade, que resulta na depreciação do que era até então um valor aceito, como exemplo, os argumentos ad hominem, que serve à opinião particular ou a de um grupo, ou o argumento ad personan, que serve ao ataque à pessoa do adversário para desqualificá-lo.

Gleisi Hoffmann

Sentimentos machistas não suficientemente domados afloram e engrossam o coro contra Dilma. É mais uma frente do obscurantismo que se forma. Ao longo dessas sessões de julgamento, todas as teses que sustentavam haver crimes em ações e decisões da Presidenta foram pulverizadas, estilhaçadas, dissolveram-se no ar. [...] Não teria disso diferente o comportamento da maioria se, em vez de uma Presidenta, estivéssemos julgando um Presidente? Como mulher, Senadora e ex- -ministra de Dilma, sou tentada a responder que sim, seria diferente. [...] Nos últimos anos, avançamos a galope em legislações e iniciativas de proteção e promoção à mulher brasileira. As estruturas criadas no Governo Federal, particularmente por Dilma, para esse fim, foram largamente reproduzidas pelos Estados e Municípios brasileiros. Mesmo que não confessem, é claro que isso incomoda muita gente, e a tentativa de derrubada da Presidenta tem, então, este ingrediente: mandar a mulher de volta para casa, de preferência para a cozinha. Ou não é expressivo e revelador o ministério100% masculino do interino Michel Temer e o rebaixamento das estruturas ministeriais de promoção das mulheres, e a pauta midiática “bela, recatada e do lar”? (BRASIL, 2016, p. 533-534).

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Os atos de uma pessoa são considerados indícios que permitem construir e reconstruir a imagem de alguém. A oradora inicia esse fragmento com o uso do argumento da interação entre o ato e a pessoa e constrói a imagem de machista do presidente interino, em “Sentimentos machistas não suficientemente domados afloram e engrossam o coro contra Dilma”, quando ligamos com “Ou não é expressivo e revelador o ministério100% masculino do interino Michel Temer e o rebaixamento das estruturas ministeriais de promoção das mulheres, e a pauta midiática „bela, recatada e do lar‟”. Esse mesmo fragmento pode ser entendido como argumento ad personan, na medida em que ataca a imagem do presidente interino com a qualificação de machista, sobretudo em momento de forte comoção nacional em relação à igualdade entre homens e mulheres. Podemos também observar o argumento de direção, nos trechos em que a oradora conduz o raciocínio para chegar à conclusão de que o interino é machista, em “avançamos a galope em legislações e iniciativas de proteção e promoção à mulher brasileira” e “As estruturas criadas no Governo Federal, particularmente por Dilma, para esse fim, foram largamente reproduzidas pelos Estados e Municípios brasileiros” para concluir, em “é claro que isso incomoda muita gente, e a tentativa de derrubada da Presidenta tem, então, este ingrediente: mandar a mulher de volta para casa, de preferência para a cozinha”. Por fim, observamos que há, também, a tentativa de criar um procedimento de dissociação, quando a oradora desqualifica as acusações formais, as quais deram início ao julgamento, em “Ao longo dessas sessões de julgamento, todas as teses que sustentavam haver crimes em ações e decisões da Presidenta foram pulverizadas, estilhaçadas, dissolveram-se no ar.” para voltar seu discurso ao que considera machismo.

Armando Monteiro

Nesse processo, estou convencido de que o objeto material ou núcleo formal da denúncia, as supostas irregularidades na edição de decretos de créditos suplementares e a hipótese da pedalada do Plano Safra são questões controversas na interpretação de ilustres juristas e, portanto, frágeis. [...] A Presidente é acusada sistematicamente de irresponsabilidade fiscal. Entretanto, no primeiro quadriênio, no seu primeiro mandato, foi gerado um superávit primário da ordem de 250 bilhões em valores atuais, mesmo abatendo o déficit de 2014, quando já se observava uma forte desaceleração da atividade econômica. Em 2015, foi promovido o maior contingenciamento de despesas da história recente do País, com uma redução nominal do gasto discricionário em relação a 2014 e de 10% em valores reais em relação aos gastos de 2013. Subsídios sofreram substanciais cortes, desonerações fiscais foram revistas e preços administrados foram realinhados com efeitos secundários do ponto de vista fiscal. Além disso, de forma inédita, foi transposta uma barreira ao

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propor ajustes em gastos obrigatórios, como o seguro-desemprego, pensões por morte, abono salarial, seguro-defeso e auxílio-doença. (BRASIL, 2016, p. 567-568).

O orador faz uso de argumento pragmático como meio de manter a controvérsia, na medida em que não descontrói os argumentos que ensejaram a acusação e os qualificam como frágeis, em “Nesse processo, estou convencido de que o objeto material ou núcleo formal da denúncia, as supostas irregularidades na edição de decretos de créditos suplementares e a hipótese da pedalada do Plano Safra são questões controversas na interpretação de ilustres juristas e, portanto, frágeis.”. Na sequência, faz uso do argumento de direção para conduzir o auditório à conclusão que deseja chegar, qual seja, que a ré não cometeu crime de responsabilidade fiscal, pois agiu, em vários momentos, com parcimônia, em “A Presidente é acusada sistematicamente de irresponsabilidade fiscal. Entretanto, [...] foi gerado superávit [...] foi promovido o maior contingenciamento de despesas [...] Subsídios sofreram substanciais cortes, desonerações fiscais foram revistas e preços administrados foram realinhados [...] foi transposta uma barreira ao propor ajustes em gastos obrigatórios”, ainda que nenhuma das considerações do orador tenham relação com as acusações formuladas contra a ré. Dessa forma, entendemos que o orador tenta buscar alguns fatos isolados praticados no governo da acusada para criar um vínculo causal com atos administrativos condizentes à lei de responsabilidade fiscal e desqualificar a acusação contra a ré.

Vanessa Grazziotin

A história do Brasil, senhoras e senhores, nos oferece uma ferida ainda aberta desse engodo: o Golpe de 1964 foi inicialmente elaborado pela imprensa, celebrado pela imprensa, festejado por setores da classe média e pelos oposicionistas a João Goulart. Os tolos acreditavam que se tratava apenas de uma intervenção pontual. Os ingênuos acreditavam que era possível suspender a democracia por tempo determinado. Infelizmente, a semelhança aqui não é mera coincidência. Porque também chegamos ao epílogo deste excepcionalíssimo processo que pretende remover Dilma Rousseff da Presidência da República. Pode ser o epílogo de uma página só, se esta Casa decidir hoje que não! Que o Brasil não está disposto a se tornar o país em que os réus sejam julgados e condenados sem terem cometido um crime sequer. Que não, que o Brasil não é e não voltará a ser uma república de bananas! Que não, que o Brasil não será o troféu dos hipócritas, dos oportunistas e dos inescrupulosos. E é esta, senhoras e senhores, exatamente a questão que está em discussão hoje aqui. (BRASIL, 2016, p. 538).

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A oradora inicia o discurso desse fragmento com o objetivo de criar vínculo causal entre o golpe militar de 1964 e a o julgamento do impeachment de Dilma Roussef, com o objetivo de aumentar a crença do auditório num possível retorno a um governo autoritário, em “A história do Brasil, senhoras e senhores, nos oferece uma ferida ainda aberta desse engodo: o Golpe de 1964 foi inicialmente elaborado pela imprensa, celebrado pela imprensa, festejado por setores da classe média e pelos oposicionistas a João Goulart [...] Infelizmente, a semelhança aqui não é mera coincidência.”. O uso de figuras de presença, como “Os tolos acreditavam [...] Os ingênuos acreditavam” e “se esta Casa decidir hoje que não ... [...] Que o Brasil não está disposto a se tornar ... [...] Que não, que o Brasil não é e não voltará ... [...] Que não, que o Brasil não será ...” é uma maneira de se valer do docere, na retórica, pois desperta o sentimento de presença do objeto do discurso na mente do auditório, no caso, resultados prejudiciais ao Brasil se o resultado do julgamento for a condenação da ré. É possível observar, nas mesmas figuras de presença, o argumento de direção, porque a oradora conduz seu discurso para levar o auditório às conclusões que deseja, pois as falas finais “senhoras e senhores, exatamente a questão que está em discussão hoje aqui” não guardam relação com as acusações dos proponentes, com os motivos que ensejaram o processo. É o uso do procedimento de dissociação, uma vez que a oradora quer criar uma ruptura das condições iniciais do processo (um impeachment ensejado por crimes tipificados na lei de responsabilidade fiscal) para colocar outras no lugar (“país em que os réus sejam julgados e condenados sem terem cometido um crime sequer”, “Que não, que o Brasil não é e não voltará a ser uma república de bananas!” “Que não, que o Brasil não será o troféu dos hipócritas, dos oportunistas e dos inescrupulosos”).

Randolfe Rodrigues

Sei que o PT, o governo, teve inúmeros erros. Esse acerto de contas será com a história. Mas esses erros não podem fazer nesta noite, nesta manhã ou, ainda, amanhã pela manhã, condenarmos um inocente. Essa é uma decisão que afeta o povo e o futuro da Nação. Se o que vencer hoje for o impeachment, abriremos as portas da democracia brasileira e do nosso dito presidencialismo de coalizão, fundado pela Constituição de 1988, para que as chamadas maiorias eventuais, baseadas na troca de cargos, na troca de emendas, nos favores, na corrupção que levou ao escândalo da Lava Jato, que essas maiorias façam chantagem ou destituam quando quiserem qualquer futuro Presidente da República, qualquer prefeito ou qualquer governador; que Parlamentares com interesses privados, que confundem o público como privado fosse, se coloquem acima dos interesses públicos e desfaçam a vontade soberana das ruas.... (BRASIL, 2016, p. 573).

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O orador tenta construir vínculo causal em duas partes do fragmento, como “Esse acerto de contas será com a história. Mas esses erros não podem fazer nesta noite, nesta manhã ou, ainda, amanhã pela manhã, condenarmos um inocente”, com o objetivo de relacionar os erros do partido PT com os motivadores do pedido do impeachment. É possível encontrar vínculo causal, também, em “Se o que vencer hoje for o impeachment, abriremos as portas da democracia brasileira ...”, na tentativa de atrelar o impeachment ao efeito que dele deve resultar, qual seja, a derrocada da democracia brasileira. Esse tipo de vínculo remete à falácia da causa falsa, pois o impeachment só existe em função da democracia. É possível também verificar ações moralmente condenáveis, expressas de forma sequenciadas, como figura de presença, para tentar desqualificar o julgamento, em “para que as chamadas maiorias eventuais, baseadas na troca de cargos, na troca de emendas, nos favores, na corrupção que levou ao escândalo da Lava Jato, que essas maiorias façam chantagem ou destituam quando quiserem qualquer futuro Presidente da República, qualquer prefeito ou qualquer governador”18. No final, há o uso do argumento ad personan com o objetivo de atacar o ethos dos Parlamentares que votaram em favor do impeachment, em “que Parlamentares com interesses privados, que confundem o público como privado fosse, se coloquem acima dos interesses públicos e desfaçam a vontade soberana das ruas”.

18 Grifos nosso.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE

O propósito deste trabalho, portanto, foi o de investigar as estratégias discursivas e argumentativas utilizadas por esses Senadores para constatar se os argumentos se estruturaram numa perspectiva que se aproxima de provas lógicas, com o objetivo de refutar as acusações formais ou acentuar o plano opinativo com o propósito de fomentar a controvérsia como estratégia de defesa.

Para tanto, valemo-nos de cinco categorias de análises e passaremos a demonstrar os resultados encontrados em cada uma delas para, ao final, consolidá-los num quadro resumo e subsidiar as considerações finais.

A primeira categoria de análise se refere ao “universo da doxa”. O objetivo foi o de demonstrar que os argumentos não estão associados a verdades ou mentiras, e sim a um universo opinativo, os quais se revestem de uma suposta “verdade” para persuadir o outro. Dentro dessa categoria, encontramos:

Tabela 4 – Argumentos dentro do Universo da Doxa

Argumentos Contagem % do Total

Expressões adjetivas 14 60,87 Falácias 3 13,04 Argumento de direção 1 4,35 Lugar de Quantidade 1 4,35 Argumento pragmático 1 4,35 Ad Personan 1 4,35 Vínculo causal 1 4,35 Figura de presença 1 4,35 Total 23 100,00

Em um julgamento, seja qual for o tipo, o objetivo de quem defende um acusado é desmontar que os argumentos lançados contra sua conduta são improcedentes. A absolvição perpassa pela formação do juízo do auditório sobre a distância entre os atos contidos nas acusações e a responsabilidade do acusado sobre

84 esses atos. Quanto mais distante um do outro, maiores as probabilidades de êxito na defesa.

Contudo, dentro dessa categoria de análise, o observado foi que mais de 60% dos argumentos se valeram do uso de expressões adjetivas, ou seja, de expressões que visaram enaltecer as qualidades pessoais da acusada e de quem estava vinculado a ela e, ao mesmo tempo, desqualificar os que se posicionaram em favor da exoneração. Não houve o uso de estratégias que demonstrassem a ausência de responsabilidade da ré sobre os atos contidos nas acusações. As estratégias enalteceram as qualidades da ré ou de algumas ações de seu mandato. Expressões como “primeira presidente”, “sobrevivente”, “improvável ascensão de uma mulher ao cargo”, “legitimamente eleita” pretenderam criar um ethos de quem não merecia estar na posição em que se encontrava.

Na mesma linha de defesa, há o uso de falácias, 13,04% das vezes, como forma de deslegitimar o processo: a) equiparação do impeachment ao golpe militar de 64, considerado, pela maioria da população, regime de exceção; b) desqualificação dos responsáveis por dar início ao impeachment, sem mencionar os atos que ensejaram o processo, como se a culpa não fosse dos atos, mas da pessoa que aceitou-os como passíveis de punição; e c) exacerbação da dúvida sobre os procedimentos democráticos quando o processo só existiu pelo exercício da democracia.

Os argumentos de direção e ad personan, bem como os lugares de quantidade e figura de presença se valorem, também, de estratégias que desviam o foco do julgamento: a) atacam o ethos dos envolvidos na acusação; b) conduzem o raciocínio com argumentos baseados em crenças, como “quis o destino”, “conspiraram as circunstâncias”; e c) trazem números para se valer de seu alto valor persuasivo, embora não demonstre as fontes.

Os argumentos pragmáticos e de vinculo causal foram os únicos que tentaram se valer da estratégia de amenizar e/ou tirar a responsabilidade da ré em relação aos atos praticados. O uso do argumento pragmático só pretendeu amenizar a punição, na medida em que não negou as acusações, mas entendeu a punição como desproporcional. A quebra de vínculo entre os atos e as acusações se deu pela descontextualização do termo “conjunto da obra”, na medida em que alguns Senadores entenderam a culpa pelas ações imputadas somadas à crise econômica e social, as quais não compunham o universo das acusações.

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A segunda categoria de análise se refere às “inserções do discurso político no discurso jurídico”. Nessa categoria, foi possível observar que houve uma expressiva alteração na mudança da finalidade do auditório. O que era voltada à discussão sobre a culpa ou a inocência da ré foi deslocado, muitas das vezes, à discussão sobre o útil e o prejudicial no desfecho do julgamento. Encontramos a seguinte divisão:

Tabela 5 – Inserções de Discursos Políticos em Discursos Jurídicos

Argumentos Contagem % do Total

Dentro do gênero judiciário 12 52,17 Dentro do gênero político 11 47,83 Total 23 100,00

Para essa categoria, foi possível observar certa equidade em relação aos argumentos destinados à culpabilidade ou à inocência, típicos do gênero judiciário, e os argumentos destinados à utilidade e à prejudicialidade, típicos do gênero político.

Sobre o universo dos argumentos que se enquadraram no gênero judiciário, não encontramos nenhum que se ocupasse em desvincular a ré ou a responsabilidade dela dos atos que constaram na acusação. Esses argumentos se valeram de qualificar algumas ações da ré como ocupante do cargo de Presidente e desqualificar algumas ações das pessoas envolvidas na aceitação e tramitação do processo.

Sobre os argumentos políticos, a maioria se ateve em desqualificar o presidente que estava em exercício até o final do julgamento, na medida em que ressaltaram ações tomadas pelo interino e as qualificaram como um programa de retrocessos. O objetivo foi criar a ideia de prejudicialidade ao exonerar a ré e torná-lo definitivo no cargo. Um dos argumentos lançou mão de associar a exoneração à ausência de democracia, ainda que todo o processo só tenha acontecido, com todo o ritual e garantia de defesa, devido à democracia ser vigente no Brasil. Os argumentos políticos desvirtuaram a finalidade do auditório com vistas a implantar a dúvida, a enaltecer o lado negativo da decisão de exoneração.

A terceira categoria de análise se refere aos “mecanismos de construção do ethos”. Nessa categoria, foi possível observar quais as estratégias argumentativas

86 utilizadas para construir a imagem de si, da ré e dos opositores ao longo do discurso. Encontramos três tipos de argumentos:

Tabela 6 – Os mecanismos de construção do ethos

Argumentos Contagem % do Total

Ad personan 10 47,62 Preservação da face 10 47,62 Hipérboles 1 4,76 Total 21 100,00

Nessa categoria também foi possível encontrar equidade nos argumentos usados para preservar a face da ré e, ao mesmo tempo, atracar a dos opositores.

Os argumentos ad personan foram utilizados, basicamente, para atingir três grupos de pessoas: a) o presidente, então em exercício, ao longo do julgamento do impeachment; b) os senadores em favor da exoneração, de forma indireta; e c) todos os adversários políticos da ré, entre os proponentes do impeachment e os que deram andamento na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, bem como as testemunhas de acusação.

Os argumentos destinados à preservação da face foram utilizados, também, para ressaltar as qualidades de três grupos de pessoas: a) da ré, na medida em que trouxeram características pessoais (positivas) e das ações de seu mandato; b) de juristas que se posicionaram contra o impeachment; e c) dos próprios oradores, na medida em se colocaram, no discurso, como ponderados ou participantes de programas sociais do governo da ré.

A única hipérbole utilizada teve o objetivo de utilizar um número percentual, 100%, como forma de criticar a ausência de mulheres em cargos do alto escalão do governo interino. Os números, sob a ótica da retórica, possuem forte capacidade persuasiva.

É importante ressaltar que os argumentos ad personan fizeram parte da estratégia de todos os discursos de todos os senadores. Já os argumentos destinados à preservação da face foram utilizados somente por metade deles. Portanto, embora a quantidade de argumentos de um e de outro sejam iguais, as estratégias para atacar a

87 imagem dos opositores foram muito mais presentes do que as estratégias de preservar a imagem da ré.

A quarta categoria de análise se refere aos “Apelos ao auditório”. Nessa categoria, foi possível observar quais as estratégias argumentativas utilizadas para incitar as emoções dos envolvidos no julgamento. O resultado foi:

Tabela 7 – Apelos ao Auditório: pathos

Argumentos Contagem % do Total

Expressões adjetivas 17 47,22 Figura de Presença 12 33,33 Ad personan 6 16,67 Metáfora 1 2,78 Total 36 100,00

Para incitar emoções, adjetivos ou expressões adjetivas colaboram de forma significativa. Para essa categoria, foi possível verificar que mais de 47% dos argumentos envolveram esse tipo de expressão; os objetivos foram: a) associar a figura da ré a de mãe e avó, que representam, regra geral, as pessoas que cuidam; b) atribuir à ré a imagem de vítima, especialmente quando comparada ao presidente deposto pelo golpe militar (1964), João Goulart; e c) conferir à ré a competência necessária para as ações que tirariam o Brasil da crise.

As figuras de presença foram utilizadas em mais de 33% dos argumentos. Os objetivos foram: a) reiterar expressões que denegriram a imagem do presidente interino, como se fosse um aviso sobre o que respaldariam, caso votassem em favor do impeachment; b) usar a expressão “eu voto não”, reiteradamente, e associá-la a expressões pejorativas, como “golpe”, “exceção” e “usurpação”; e c) manifestar, por meio de diversas expressões, de forma sequenciada, com o objetivo de apelar pela desqualificação do processo. A metáfora utilizada estava dentro da figura de presença.

Os argumentos ad personan foram utilizados por todos os oradores com o objetivo único de macular a imagem do presidente interino. Desviaram o foco dos atos que ensejaram o processo e da figura da ré para se voltarem contra as ações de quem exercia o mandato presidencial interinamente.

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Os apelos ao auditório tiveram, em linhas gerais, o objetivo de comover o auditório por meio de duas estratégias em sentidos contrários: uma de ressaltar a imagem da ré e sua condição de vítima do processo; outra de denegrir a imagem do presidente interino como forma de “prever” o quão ruim seria para o país se o impeachment obtivesse êxito.

A quinta e última categoria de análise se refere ao “Logos e a lógica do verossímil”. Nessa categoria, foi possível observar o lado racional das estratégias argumentativas. Encontramos os seguintes argumentos:

Tabela 8 – Logos e a lógica do verossímil

Argumentos Contagem % do Total

Vínculo causal 4 25,00 De direção 3 18,75 Ad personan 2 12,50 Figura de presença 2 12,50 Procedimentos de dissociação 2 12,50 Interação entre ato e pessoa 1 6,25 Falácia 1 6,25 Pragmático 1 6,25 Total 16 100,00

Os oradores se valeram de estratégias argumentativas variadas, dentro dos fragmentos analisados.

A mais expressiva foi a utilização de argumentos que criassem um vínculo causal entre: a) as ações da ré em seu mandato e a compatibilidade com a lei de responsabilidade fiscal, como forma de qualificá-la como boa gestora do dinheiro público; b) o processo contra a ré e o golpe militar de 1964, como forma de associar o impeachment um golpe parlamentar; c) os erros do partido político da ré (e não da ré) e os motivos para iniciar o impeachment; e d) o impeachment e a derrocada da democracia, pois, para o orador, a decisão deveria estar nas mãos da população, via nova eleição.

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O argumento de direção foi utilizado como forma de conduzir o auditório para concluir: a) que o governo do presidente interino era machista; b) que, várias vezes, a ré agiu com parcimônia na condução das finanças públicas e, portanto, o impeachment era desarrazoado; e c) que o impeachment não guarda relação com as ações listadas pelos proponentes do processo.

Os argumentos ad personan visaram desqualificar o presidente interino e os parlamentares em favor do impeachment. As figuras de presença foram usadas com o objetivo de desqualificar o julgamento. Os procedimentos de dissociação se ocuparam de criar um raciocínio que favorecesse a ruptura nas condições iniciais do processo. O argumento de interação entre o ato e a pessoa visou qualificar as ações do presidente interino como machistas. A falácia foi usada para associar impeachment à derrocada da democracia. E, por fim, o argumento pragmático foi usado para se aproveitar do universo da doxa manter a controvérsia.

Uma vez analisada cada tipo de argumento dentro de cada categoria de análise, faremos uma consolidação para evidenciar quais as estratégias argumentativas mais utilizadas na defesa como um todo. O quadro resumo ficou assim:

Tabela 9 – Resumo de todas as categorias de análise Argumentos Contagem % do Total Expressões adjetivas 31 26,05 Ad Personan 19 15,97 Figura de presença 15 12,61 Dentro do gênero judiciário 12 10,08 Dentro do gênero político 11 9,24 Preservação da Face 10 8,40 Vínculo causal 5 4,20 Falácias 4 3,36 De direção 4 3,36 Pragmático 2 1,68 Procedimentos de dissociação 2 1,68 Lugar de Quantidade 1 0,84 Hipérboles 1 0,84 Metáforas 1 0,84 Interação entre ato e pessoa 1 0,84 Total 119 100,00

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A partir do exposto, concluímos que os oradores contra o processo de impeachment de Dilma Rousseff se valeram de estratégias mais psicológicas do que lógicas. O elevado número de “expressões adjetivas”, “argumentos ad personan”, “figuras de presenças” e “preservação da face” em consonância com o baixo número de argumentos racionais, como “de direção”, “pragmático”, colaboraram para o entendimento de que o objetivo dos defensores da ré foi o de fomentar o plano opinativo com a intenção de manter a controvérsia, na medida em que nada foi investido contra as acusações formais do processo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um processo de impeachment contra um Presidente da República, embora considerado no texto constitucional e regulamentado em lei, em vários países que adotam o presidencialismo como forma de governo, não é um procedimento corriqueiro. Não assistimos à destituição de cargo de um mandatário eleito pelo voto direito sem que os grupos que discordem da ação se manifestem de forma contundente.

No Brasil, em dezembro de 2015, a Câmara dos Deputados iniciou o processo de impeachment contra Dilma Rousseff, mandatária eleita com mais de 54 milhões de votos. Imediatamente, tanto a acusada quanto os seus aliados bradaram, diariamente, em todos os espaços em que encontraram vazão, que o processo não passava de um golpe parlamentar. Com isso, inevitavelmente, deu-se início a intensos debates públicos sobre a legitimidade do impeachment. Esses debates, como não poderiam deixar de ser, foram ressoados no Senado Federal, nos cinco dias de julgamento. Nesse período, todos os envolvidos no processo lançaram mão de estratégias argumentativas para sustentar as suas posições.

Dado que o impeachment é previsto constitucionalmente, o objetivo deste trabalho foi investigar as estratégias argumentativas que propuseram a perspectiva de ilegitimidade do processo de impeachment. Para atingir esse objetivo, adotamos um percurso em três grandes partes. A primeira objetivou a contextualização do impeachment. A segunda se ateve ao arcabouço teórico da Retórica. A terceira, de posse de um arcabouço teórico, analisou os discursos proferidos pelos senadores Gleisi Hoffmann, Armando Monteiro, Vanessa Grazziotin e Randolfe Rodrigues, realizados no Senado Federal, no penúltimo dia do julgamento, 30 de agosto de 2016.

Sobre a contextualização do impeachment, adotamos uma perspectiva histórica. O trabalho de Maurois (1966) foi essencial para que encontrássemos a origem do impeachment e entendêssemos que sua criação se deu com o objetivo de frear o poder absoluto que reinava na dinastia dos Angevinos. A população inglesa aceitava a ideia de ser governado por um rei, pois acreditavam que a ausência de um poder estabeleceria a anarquia e seria prejudicial a todos. Contudo, sentiam-se sufocados com a imposição de elevados impostos e precisavam limitar a autonomia do rei. Como o rei não podia ser responsabilizado por seus atos, a saída foi criar um mecanismo que

92 o punisse na figura de seus ministros. A essa punição se deu o nome de impeachment. Na Inglaterra, o impeachment era um processo com características criminais. O objetivo era punir a pessoa acusada. Foi com base nos trabalhos de Riccitelli (2006) e Faver (2016) que entendemos a adoção do impeachment pela Constituição americana. Todavia, nos Estados Unidos, o impeachment foi recepcionado com características políticas. O objetivo era proteger o Estado, com a exoneração do mandatário, sem que lhe fosse imposta alguma sanção criminal. O Brasil, por sua vez, recepcionou o impeachment em sua Constituição de 1988 nos moldes americanos, com o propósito de frear a autonomia do chefe do Poder Executivo, especialmente por essa Constituição ter sido elaborada após um período de mais de duas décadas de regime de exceção. Portanto, entendemos que essa contextualização foi essencial para essa pesquisa, na medida em que mostrou os princípios de um processo dessa natureza. O julgamento não objetivava punir a pessoa acusada, mas proteger o Estado de administração financeira fora dos moldes impostos por lei.

Em relação ao arcabouço teórico, adotamos a linha da Retórica. Os trabalhos de Tringali (2013) e Meyer (2007) foram essenciais para entendermos que a Retórica tem por objeto o discurso retórico, que se caracteriza por ser dialético e persuasivo. É dialético por não trabalhar com a noção de verdade, mas com o que é provável. É persuasivo por visar levar um auditório, por meio de provas, a melhor opinião sobre uma controvérsia. O discurso, analisado sob a ótica dialético-persuasiva, foi uma importante ferramenta para compreender a controvérsia instaurada sobre a legitimidade do impeachment. Com Aristóteles (2013) foi possível verificar que os discursos se dão por meio de gêneros retóricos. Para essa pesquisa, interessaram os gêneros políticos e jurídicos, representados pelos discursos políticos (o que é útil ou prejudicial) e jurídicos (o que é justo ou injusto), respectivamente. O trabalho de Mosca (1997) foi essencial para entender o universo da doxa e constatar que é no mundo das opiniões que são tecidas as relações sociais. Portanto, o embate sobre a legitimidade do impeachment não se deu no campo das “verdades” ou das “mentiras”, mas das opiniões, das crenças. As reflexões de Ferreira (2015) trouxeram a percepção de provas psicológicas (ethos e pathos) e lógicas (logos), essenciais para entender as intenções dos oradores. Sob a ótica argumentativa em si, foi com o trabalho de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000) que pudemos constatar o lado racional dos discursos. Por fim, contamos, ao longo de toda pesquisa, com as visões de Campbell et

93 al. (2015), as quais partem da premissa de que verdades não podem caminhar com as próprias pernas e precisam ser carregadas por pessoas, têm de ser explicadas, defendidas e difundidas por meio da linguagem, da argumentação e de apelo. Foi com base nas ideias desses autores que as análises foram realizadas.

Uma vez definido o arcabouço teórico, foi possível criar as cinco categorias de análise desta pesquisa. A primeira se ateve ao universo da doxa e constatou que mais de 60% dos argumentos não passaram de expressões adjetivas, com o objetivo de enaltecer a imagem da ré e depreciar a imagem dos opositores. A segunda observou os gêneros retóricos e constatou que os argumentos políticos desvirtuaram a finalidade do auditório com vistas a fomentar a controvérsia. A terceira, que objetivou analisar a construção do ethos do orador e da ré e, de forma análoga à primeira categoria, apurou que, em 47,2% dos casos, o objetivo foi atacar a imagem dos opositores e, no mesmo percentual, preservar a face da ré. Na quarta categoria, as expressões adjetivas, 47,2%, e as figuras de presença, 33,3%, foram as principais estratégias para fomentar as paixões do auditório. Na quinta e última categoria, detectou-se uma variação maior no tipo de argumentação. Contudo, as intenções sempre estavam às voltas de três perspectivas: enaltecer a imagem e as ações da ré; macular a imagem do Presidente interino e associar o impeachment a um golpe parlamentar, a uma derrocada da democracia.

Com todo o exposto, foi possível concluir que as estratégias argumentativas se associaram, excessivamente, às provas psicológicas. O elevado uso de expressões adjetivas, de ataques às imagens dos opositores e de preservação da face da ré, associados à ausência de argumentos racionais que desmontassem as acusações formais que ensejaram o processo, evidenciariam que a estratégia da defesa, mediante a força das provas extrínsecas – falta de registros contábeis de empréstimos junto a bancos públicos e suplementação orçamentária sem autorização do Congresso Nacional – foi a de fomentar a controvérsia, o plano opinativo.

Feitas as considerações finais, gostaríamos de enfatizar a riqueza de conceitos que a Retórica pode oferecer para a análise de um ato tão complexo como um processo de impeachment. Esta pesquisa se ateve a cinco categorias porque todo trabalho precisa responder a uma pergunta e limitar-se aos conceitos que ajudem a respondê-la. Entretanto, o mesmo impeachment poderia ter sido observado por vários outros ângulos. Como exemplo, centrar em alguma das partes retóricas, com objetivo de

94 estudar a escolha dos conteúdos dos discursos ou a disposição em que são encontrados. Poderia ter sido observado pelos lugares retóricos, como o lugar da qualidade, e debater o anterior sobre o posterior, as causas sobre os efeitos, os princípios sobre as finalidades. As figuras de comunhão, também como exemplo, poderiam ser um foco de análise, já que pretendem a participação ativa de um auditório e foi o caso do impeachment.

Por fim, não faltariam ângulos para estudar essa questão tão recente na história do Brasil. Esta pesquisa é uma pequena contribuição no campo de estudos da Língua Portuguesa, especialmente aos estudos sobre a argumentação.

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REFRÊNCIAS

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ANEXOS

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