Políticas de comunicação e contexto mediático cabo-verdiano∗

Silvino Lopes Évora

Índice informação que os cidadãos tinham, os meios de comunicação – maioritariamente 1 Introdução 1 públicos – serviam o poder instalado. Com 2 Enquadramento histórico-político dos a abertura política, esperava-se a abolição media em Cabo Verde 2 completa de todas as restrições ao exercício 3 Contextualização histórica do Direito das liberdades cívicas. No entanto, a liber- Cabo-verdiano 6 dade de imprensa ainda não é total e vários 4 As decisões comunicativas em Cabo mecanismos políticos são accionados para o Verde: análise da problemática 7 controlo dos media. 5 Discussão do problema 23 6 Conclusão 25 Palavras-Chaves: Políticas da comunica- 7 Bibliografia 26 ção, liberdade de imprensa, visão histórica do jornalismo, serviço público e regime jurí- Resumo dico dos media. Este trabalho propõe traçar uma pers- pectiva sobre a evolução das Políticas de 1 Introdução Comunicação em Cabo Verde. Partindo do Em primeiro lugar, devemos avançar que o fim do Monopartidarismo, vai elucidar os nosso projecto de investigação procura lan- trajectos que levaram à actual configuração çar uma visão panorâmica sobre as políti- do espaço mediático cabo-verdiano. Assim, cas de comunicação em Cabo Verde. Resu- este estudo mostra-nos que as políticas de mindo numa frase, queremos saber qual é o comunicação, em Cabo Verde, na última impacto da chegada da democracia na comu- quinzena, têm sido levadas a cabo, através nicação cabo-verdiana. Explicando de uma de decisões de avanços e recuos. O regime outra forma: tendo evoluído do regime mo- de partido único era visto como sinônimo nopartidário para o multipartidarismo, tenta- da falta de liberdade, onde, antes de servir mos um retracto das posições que os diferen- o interesse público e as necessidades de tes Governos tomaram em relação ao sector ∗Trabalho desenvolvido no âmbito do Mestrado da comunicação social. Que evoluções regis- em Ciências da Comunicação, área de Informação e taram? Houve algum retrocesso? Jornalismo, da Universidade do Minho. 2 Silvino Lopes Évora

Uma vez que os estudos na área da co- poder parece ter sido transferido das mãos municação social, em Cabo Verde, ainda não de Deus para o domínio de homens déspotas, ocuparam “o seu berço”, toda a análise que que fixam as suas palavras acima de qualquer vamos fazer não deixa de ser um trabalho norma jurídica que assegura o direito dos ci- muito exploratório. É por isso que acha- dadãos. Assim, ao comemorar a sua vitó- mos que faz todo o sentido fazer, tanto o ria nas eleições de Março de 2005, em Zim- enquadramento histórico e político dos me- babwe, o Presidente Robert Mugab, líder da dia em Cabo Verde, como a contextualização ZANU – Frente Patriótica, deixou claro que do Direito Cabo-verdiano, focando as princi- tenciona ficar no poder até aos 100 anos de pais diferenças entre o ordenamento jurídico idade. O próprio Estados Unidos da Amé- cabo-verdiano e a forma como outros países rica, pela voz da Secretária de Estado, Con- africanos construíram as suas bases jurídi- doleezza Rice, classificaram as eleições de cas. Isto será, de alguma forma, importante injustas, pedindo ao Governo do Zimbabwe para esse projecto, uma vez que o principal “que (reconhecesse) a legitimidade da opo- objecto, que vai servir de base à nossa inves- sição e que (abandonasse) qualquer prática tigação, são as leis e o programa do Governo. destinada a reprimir, esmagar e de qualquer Também, para a realização deste trabalho, outra forma impedir as expressões de diver- entrevistamos alguns jornalistas, recolhemos gência” (PÚBLICO: 04/04/2005). outros dados e falamos com o Secretário de Integrado num quadro político-cultural Estado Adjunto do Primeiro Ministro, que, completamente diferente, está Cabo Verde, para além de ter a tutela da Comunicação So- que foi descoberto em 1460 por navegado- cial, está profundamente envolvido na nova res portugueses, tendo sido colonizado pela política de comunicação que o Governo pre- então Coroa Portuguesa até à data de 19751. tende levar a cabo e que, inclusive, incorpora A governação conjunta com a Guiné-bissau, um processo de revisão constitucional. O Se- sob a alçada do partido libertador (PAIGC cretário de Estado entende que esta iniciativa – Partido Africano para a Independência da vai tentar resgatar alguns direitos importan- Guiné e Cabo Verde), que sucedeu à inde- tes dos jornalistas, que a revisão constitucio- pendência do arquipélago, acabou por des- nal de 1999, fez desaparecer. moronar em 1980, tendo por base um golpe de estado que teve lugar na Guiné. A partir 2 Enquadramento de então, Cabo Verde entendeu que seria me- lhor continuar a sua caminhada política inde- histórico-político dos media em 1 Com o 25 de Abril, em (1974), o regime Cabo Verde opressor e castrante entra definitivamente em colapso, Se olharmos para certas monarquias autori- mas não caíram todas as barreiras e, por outro lado, novos projectos se fizeram para dar razão de existên- tárias que são perpetradas no continente afri- cia a algumas rançosas gavetas do “Terreiro de Paço”. cano, tenderemos a pensar que, em certas No entanto, a Revolução de Abril acabou por desem- partes do mundo, o poder tem uma dimensão bocar, em África, nas múltiplas revoluções indepen- quase divina. Países como Congo ou Tchade dentistas, que culminaram com a autonomia de Cabo são exemplos de regimes políticos em que o Verde, enquanto país independente, em 1975.

www.bocc.ubi.pt Políticas de comunicação e contexto mediático 3 pendente da Guiné, tendo, assim, formado o A história da comunicação cabo-verdiana PAICV – Partido Africano para a Indepen- não nos remete a um passado tão distante dência de Cabo Verde –, que continuou a go- como a própria história do país. Olhando vernar o país num contexto político mono- para a imprensa cabo-verdiana, uma data partidário até ao início dos anos 90. É desta afigura-se como absolutamente importante: forma que se explica o colapso do plano tra- no ano 1836, o Governo português, atra- çado por Amílcar Cabral, que concebia uma vés da Pasta que tutelava a Marinha e o Ul- administração conjunta para os dois países, tramar, ordenou, pelo Decreto de 7 de De- que acabaram por seguir percursos histórico- zembro de 1836, Artigo n.o 13, “que nas políticos completamente diferentes. Antó- províncias ultramarinas “se imprimisse um nio Soares Lopes, perspectivando o conti- Boletim, que teria como redactor o secretá- nente com uma visão guineense, salienta que rio do Governo”” (OLIVEIRA: 1998, 17). “a questão dos regimes de Partido único em Esta prescritiva jurídica, também, acabou África levanta uma cordilheira de reflexões por abranger as colónias asiáticas, uma vez que viajam até ao interior de muitas cliva- que já tinham instalado, nesses territórios, gens étnicas e socio-económicas, elaboradas as tipografias. O referido decreto era com- ao longo de muitos anos de colonialismo”2 pletamente obsoleto para o contexto cabo- (LOPES: 1988, 108). verdiano, uma vez que, em África, as con- A 13 de Janeiro de 1991, realizaram-se as dições técnicas para a prática da impressão, primeiras eleições livres, em que, ao povo, ainda, tinham que ser criadas. foi assegurado o direito de poder escolher Em 1842, começou-se a imprimir o Bole- quem governa o país. O MPD (Movimento tim Oficial, em Cabo Verde, tendo este país para a Democracia), partido que mais se aflo- sido o primeiro da África Lusófona a rece- rou com a chegada da democracia, acabou ber a prediosa invenção de Gutenberg, de- por triunfar-se como vitorioso. vido à proximidade geográfica em relação à antiga metrópole. “Destinadas a imprimir os 2 Neste caso, como em tudo na vida, há excep- ções à regra. A contextualização cabo-verdiana dessa primeiros periódicos das Colónias – os Bole- matéria faz-se, de uma forma bem diferente. A ques- tins Oficiais –, essas tipografias colocavam- tão, da forma como o autor a coloca, é compreensí- se ao serviço da Monarquia e do Governo, vel, do ponto de vista de outros contextos culturais, para defender explicitamente os seus inte- como o da Guiné-Bissau, Angola ou Moçambique. A resses comerciais e industriais” (LARAN- cabo-verdianidade é um conceito que surgiu recente- mente para encerrar definitivamente todo o contexto JEIRA: 1988, 103). No entanto, os referi- político-etno-cultural do país. Das dez ilhas que cons- dos boletins incluíam, também, gazetilhas, tituem o arquipélago, nove são habitadas. E a língua charadas e outros divertimentos inocentes, crioula surge como dois lados da mesma moeda: Uni- como forma de diluir o carácter corporativo fica o povo cabo-verdiano, Diversificando-se segundo das informações que veiculavam. Qual era as variações geográficas. Cada ilha tem o seu vari- ante do crioulo, mas as diferenças nunca chegam ao o objectivo aqui? Com , camuflar ponto de dificultar a comunicação entre os cidadãos. as práticas arbitrárias que estavam subjacen- Assim, as questões étnicas e linguísticas são liminar- tes à produção dos periódicos, tornando, aos mente rejeitadas, quando se fala da língua, da política olhos dos leitores, mais ténue, a fronteira en- e da cultura cabo-verdianas. tre as informações que correspondem às ne- www.bocc.ubi.pt 4 Silvino Lopes Évora cessidades do público e as propagandas polí- tugal fez saber que, a fundação de novas pu- ticas. blicações, nas colónias, passava a estar de- No entanto, só em 1877 é que o país co- pendente de um depósito prévio, que ia até nheceu o seu primeiro jornal, de nome In- 50 mil escudos, à ordem da autoridade ju- dependente, que era imprimido na Cidade dicial. Com certeza, por aquilo que essa da . É importante notar que, em Cabo quantia (50 mil escudos) representava, a me- Verde, circunstâncias múltiplas, dificultavam dida não era mais do que uma clara cen- a produção de jornais. Desde a posição iso- sura político-económica, dificultando, assim, lada que o país ocupa no meio do Atlântico – o aparecimento de novas publicações. o que impossibilita o abastecimento por via A história do país explica, muito bem, terrestre –, passando pelas condições clima- as dramáticas experiências que marcaram, téricas adversas: o arquipélago tinha que im- tanto a história da comunicação social cabo- portar todos os materiais necessários para a verdiana, como a portuguesa. Assim, a cen- produção dos jornais, o que dificultava todo sura marcelista, em relação à imprensa, não o processo. Os factores humanos também passa distante da realidade cabo-verdiana. O foram bastante decisivos na fase embrioná- “Circular Urgente”, de 28 de Maio de 1931, ria da imprensa cabo-verdiana, sendo que, deixa bem claro a intenção do regime de en- na altura, o país contava com um único ti- tão em relação aos propósitos das activida- pógrafo, de quem dependia completamente des ligadas à comunicação social. O objec- toda a produção de jornais. tivo último do regime era tornar os órgãos O desenvolvimento da imprensa cabo- de comunicação social existentes na altura verdiana foi muito lento na sua fase inicial em verdadeiras máquinas de propaganda po- (e em fases mais avançadas), sendo que, du- lítica. O “Circular Urgente” era dirigido às rante um longo período de tempo, a imprensa delegações da Direcção Geral da Censura e, não fazia mais do que o retracto dos assuntos no seu prólogo, reconhecia ““a Nação e com que interessavam o Governador. Arons de ela as mais insuspeitas opiniões, como su- Carvalho (1999) nota que o decreto 13841, premas aspirações nacionais a enérgica de- que em 1927 reformula a legislação da Im- fesa do princípio da autoridade e a criação prensa aplicável nas colónias, é o primeiro de um estado de equilíbrio no espírito pú- que começou a prever uma forma de auto- blico, incompatível com os processos de de- rização prévia para a publicação de jornais sordem e de violência de determinadas fac- e outros conteúdos impressos, dirigidos ao ções que mesquinhas ambições conduzem”” grande público. “A medida é utilizada em (CARVALHO: 1999, 52). relação ao exercício do cargo de director, de- O documento dirigido às delegações da pendente, conforme o artigo 4o, de habili- Direcção Geral da Censura procurou fazer tação prévia feita no juízo de direito com crer-se que não estavam, todas as portas fe- o fim de “averiguar se o habilitado tem ca- chadas à crítica: “sendo a Ditadura um re- pacidade moral e técnica para ser director” gime de honesta legalidade é de desejar uma (CARVALHO: 1999, 34). Esta medida foi serena crítica de todas as medidas governa- agravada, em Novembro de 1933, quando a mentais que para esse fim forem dadas a pú- Carta Orgânica do Império Colonial de Por- blico com o propósito manifesto de uma útil

www.bocc.ubi.pt Políticas de comunicação e contexto mediático 5 colaboração” (CARVALHO, 1999, 53). As- que existem no país, estão longe de apostar sim, o “Circular Urgente” achava que devia numa informação profissional, com o objec- ser dada, à Imprensa, uma maior liberdade, tivo de informar verdadeiramente a opinião mas, ressalvava, por outro lado, que o exer- pública, tendo eleito a difusão musical como cício de tais liberdades devia ser “compatível a principal actividade. No entanto, vamos com as instruções presentes”. desenvolver estes contextos mais à frente. Já, nos anos 30 do Século XX, apareceu Em 1984, surgiu a televisão pública, com a rádio, que veio pôr fim ao monopólio dos o estatuto de TVEC (Televisão Experimental jornais no processo de informar os cidadãos. de Cabo Verde), funcionando em regime ex- João Nobre de Oliveira sustenta que, “tal perimental, como o próprio nome indicava. como nos jornais, deve-se à iniciativa pri- Dentro de um contexto limitado, a TVEC vada a introdução da rádio em Cabo Verde” evoluiu para a TNCV (Televisão Nacional de (OLIVEIRA: 1998, 670). Neste contexto, Cabo Verde), tendo mais tarde passado por apareceu, em 1945, a Rádio Clube de Cabo um processo de fusão com a rádio, ganhando Verde, que deu lugar à Rádio Sotavento. No o estatuto de Radiotelevisão Cabo-verdiana entanto, várias outras emissoras apareceram (RTC). Actualmente, os dois meios conti- posteriormente. nuam com a gestão conjunta, tendo cada um O desenvolvimento dos media, em Cabo optado por um nome diferente: em vez de Verde, foi bastante limitado, não superando, RTC para a televisão e RTC FM para a rá- em nada, as potencialidades económicas do dio, agora temos a TCV (Televisão de Cabo país. Ainda hoje, Cabo Verde não conta com Verde) e a RCV (Rádio de Cabo Verde). En- nenhum jornal diário, possuindo três esta- tretanto, a TCV é a única televisão do país. ções radiofónicas que apostam, na informa- Diante deste cenário, qual será a política ção, com seriedade (a RCV – Rádio de Cabo alavanca do impulso civilizador dos povos, onde quer Verde, a Rádio Nova – Emissora Cristã e que ela exerça a sua acção, e em vista disso só temos 3 a Rádio Comercial) . As restantes estações como principal objectivo preencher uma lacuna exis-

3 tente e concorrer para que o progresso do arquipélago No dia 8 de Março de 1956, João dos San- seja um facto, acompanhando de perto o desenvolvi- tos Ferro Baptista, lançou o único “periódico” diá- mento que dia-a-dia se nota nos vários sectores de ac- rio de Cabo Verde, até hoje. Chamava-se Diário de tividade” (DOS SANTOS: Diário de Cabo Verde – 11 Cabo Verde e não teve mais do que 24 horas de vida. de Janeiro de 1956). Este trecho é bem esclarecedor Quando o público esperava pela segunda edição, a da política dos media da altura. Se até ao início da informação já era outra: o Diário de Cabo Verde ti- década de 90, o desenvolvimento das ilhas de Cabo nha “morrido” na primeira edição e, por isso, não co- Verde era pouco notório, dizer, em 1956, que o avanço nheceu mais do que um único número (número espé- do arquipélago notava-se, dia-a-dia, não deixa de ser cime). O número espécime do Diário de Cabo Verde uma forma simpática de agradar o regime da altura. só conheceu a luz do dia porque o director da publica- Mas, isso não tem nada de estranho. O que seria uma ção tinha recebido uma autorização do então Gover- excepção era aparecer um jornal, em Cabo Verde, em nador de Cabo Verde, no dia 11 de Janeiro de 1956. 1956, a criticar abertamente o regime. Isso era bas- Na primeira página do único diário que Cabo Verde tante difícil, até porque, as publicações, para saírem já teve (embora tenha durado apenas um dia), José para a rua, careciam de uma autorização do Governa- dos Santos – encarregado de fazer gestão das corres- dor. pondências da publicação, explicava os objectivos a que o jornal se propunha: “a Imprensa é a principal www.bocc.ubi.pt 6 Silvino Lopes Évora que os Governos têm definido para o sec- ral, as instituições judiciais continuaram a tor? aplicar as mesmas normas e também os vín- culos internacionais, genericamente, acaba- 3 Contextualização histórica do ram por manter-se. “Isto significa que os novos países se conservam dentro do ramo Direito Cabo-verdiano em que a colonização os integra – o sub- Falar da política de comunicação, muitas ve- sistema romanístico ou o subsistema anglo- zes, implica falar das normas jurídicas. E, americano, consoante os casos” (ASCEN- para falarmos do Direito de Cabo Verde, SÃO: 1991, 139). Desta forma, fica claro é importante compreendermos a problemá- que o essencial da estrutura jurídica não so- tica jurídica numa realidade territorial muito freu grandes mudanças com as mutações po- mais ampla, que é o continente africano. líticas que, ao longo dos tempos, se fizeram Ninguém desconhece que a África viveu, ao sentir em diversos países africanos. longo da sua história, uma dramática expe- O caso dos Camarões é bastante paradig- riência de colonialismo, que até hoje deixa mático, relativamente a esta questão. Temos transparecer marcas difíceis de apagar. A os Camarões ocidentais, que estiveram, em colonização não teve influência somente nos tempos, sob a tutela da França e, por outro planos sociais, económicos e tecnológicos. lado, os Camarões orientais, que tinham es- Ela deixou sinais, também, nos ordenamen- tado sob a tutela britânica. “Um supremo tos jurídicos dos diversos países que viveram tribunal serviu de cúpula às jurisdições; mas essa experiência. cada território manteve o seu próprio sistema Com a independência dos países africa- normativo”. nos, não se deu uma quebra de continuidade Entretanto, a integração dos países afri- na aplicação do Direito4. De uma forma ge- canos no sistema normativo ocidental não pode ser levado em conta, sem ter-se pre- 4 “O Direito Africano, como qualquer outro, não sente que existem várias outras influências. pode ser compartimentado em pedaços estanques no Houve elementos normativos ou comporta- tempo, como se acabado um período começasse ou- tro que nada tivesse a ver com o anterior. Os po- mentais, que, em alguns países, fizeram eco vos são constituídos por pessoas e as pessoas nas- na estrutura jurídica que se desenhou nos no- cem, vivem e morrem, transmitindo as suas cul- vos países, filhos da descolonização. Sabe- turas que se modificam, mas nenhuma barreira rí- mos que, em vários países da África, o is- gida entre um período e outro permite parar re- lamismo tem uma indiscutível expressão no pentinamente a evolução de um povo. Isto é ver- dade, por mais significativas que sejam as mudan- seio das comunidades. Daí que, o sistema ças, ou por mais drástica que seja a situação vi- muçulmano acabou por ter uma grande in- vida por esse povo (a não ser um hipotético aniqui- fluência no ordenamento jurídico que se de- lamento ). Recorde-se que o “tradicional” e o “mo- senhou em vários países africanos. Porém, derno” devem conviver entre si, pois o moderno de hoje, poderá ser o tradicional, o ultrapassado de ama- há outros valores a ter em conta. Na mai- nhã, aquele que uma modernidade desafiará, impondo oria dos países, em que Cabo Verde foge à mudança e adequação”. ANDRÉ, Bento Salazar: regra, os colonizadores encontraram comu- http://www.pucrio.br/sobrepuc/depto/direito/revista/ nidades com costumes bem enraizadas nas online/rev14_bento.html, Consultado a 05/ 04/ 2005. suas sociedades. Quase em toda a África,

www.bocc.ubi.pt Políticas de comunicação e contexto mediático 7 esses costumes conseguiram sobreviver ao independência, como é sabido, por algum lado do Direito dito civilizado, instituído pe- tempo, parte da legislação portuguesa em vi- los colonizadores, e vieram a ter um papel gor no seu território (FONSECA: 2001, 9). importante na estruturação do novo quadro Por seu lado, Jorge Carlos Fonseca vai ainda judicial, após a independência. “O sistema mais longe, dizendo que “o Código Penal jurídico era pois dualista, acompanhando o (C.P.) vigente em Cabo Verde é basicamente dualismo das sociedades que correspondia. o C.P. português de 1886, com alterações Quer tivesse sido ignorado, quer combatido, constantes de algumas reformas parcelares, quer respeitado, sofrem influências profun- levadas a cabo em Portugal, e tornadas ex- das do Direito com o qual foi confrontado, tensivas ao Ultramar, e muito localizadas e mas manteve a sua caracterização fundamen- pequenas alterações impostas pelo legisla- tal como um direito comunitário, essenci- dor cabo-verdiano, após a independência do almente costumeiro, completando as regras país” (FONSECA: 2001, 22). que se ditavam e conservavam oralmente” (ASCENSÃO: 1991, 140). Quando afirma- 4 As decisões comunicativas em se que estes países se integraram no sistema ocidental, está a referir-se, claramente, ao Cabo Verde: análise da sector civilizado. Resta saber qual foi a ar- problemática ticulação com o sector tradicional. Depois de termos feito um enquadramento Como é que se enquadra Cabo Verde nesse histórico-político dos media em Cabo Verde, contexto histórico-jurídico? As caracterís- seguido de uma contextualização do ordena- ticas da colonização cabo-verdiana diferem mento jurídico cabo-verdiano, vamos agora das de outros países africanos, cuja realidade pôr o acento tónico no papel regulador do jurídica seguiu os passos que acima traça- Estado, tendo como pano de fundo – a comu- mos, o que faz com que a estrutura do orde- nicação social –, e tentar descortinar as polí- namento jurídico cabo-verdiano compusesse ticas de comunicação que os sucessivos Go- de uma forma bastante diferente. vernos têm vindo a definir para o campo dos Quando os portugueses chegaram, ao ar- media. Devemos, desde já, realçar que, pelo quipélago, Cabo Verde era claramente uma facto de o nosso estudo ser bastante limitado, zona desértica. O povoamento das ilhas ini- quer por factores espaciais, quer por factores ciou, em 1462, dois anos depois da sua des- temporais, a nossa abordagem do tema será coberta. Daí que, a sociedade cabo-verdiana panorâmica. nunca foi confrontada com a dualidade ju- Em vez de apostar num estudo aprofun- rídica (Direito civilizado e Direito tradicio- dado da questão – o que nos obrigaria a nal). Até hoje, o quadro jurídico de Cabo pensar num projecto com outra dimensão –, Verde anda um passo atrás do ordenamento tentaremos fazer um travelling pelos diver- jurídico português. Na nota de abertura do sos corpos legislativos produzidos em Cabo livro de Jorge Carlos Fonseca, uma profes- Verde, depois da abertura política, onde va- sora da Faculdade de Direito da Universi- mos dar conta das principais evoluções que dade Nova de Lisboa afirma que “a Repú- se registaram nesse domínio. blica de Cabo Verde manteve, depois da sua www.bocc.ubi.pt 8 Silvino Lopes Évora

Começamos a nossa incursão pelo mundo à independência, o país conheceu a sua pri- das leis cabo-verdianas sobre a comunica- meira Constituição, após 500 anos do domí- ção social, tomando como ponto de partida, nio português. a Constituição da República de Cabo Verde Um dos requisitos para o aparecimento (CRCV). Com a abertura política, em 1990, da CRCV – actual lei suprema do país – o legislador cabo-verdiano entendeu que fa- foi a aprovação da Lei Constitucional n.o ria sentido uma nova Constituição para o 01/IV/92, que revogou os artigos 1o a 93o país, de forma a que a lei-mãe estivesse mais e, também, o artigo 96o da antiga CPRCV. adequada à situação política que o país pas- Ainda, a mesma lei revogou a Lei n.o 2/81, sou a viver – o regime democrático e multi- de 14 de Fevereiro; a Lei Constitucional partidário. n.o 1/III/88, de 17 de Dezembro e a Lei Antes da Constituição democrática de Constitucional n.o 2/III/90, de 29 de Setem- Cabo Verde ter sido aprovada, a lei suprema, bro. A partir de então, estavam reunidas to- que determinava os modos de funcionamento das as condições para a implementação de das instituições socio-políticas do país, era a um novo diploma constitucional, que pas- CPRCV, que tinha sido aprovada na IX Ses- sou a chamar-se Constituição da República são Legislativa da I Legislatura, no dia 5 de de Cabo Verde, promulgada no dia 4 de Se- Setembro de 19805; ou seja, cinco anos após tembro de 1992. A CRCV inscreve-se na tradição das de- 5 Antes da aprovação da Constituição Política da República de Cabo Verde, o país regia-se – depois da mocracias ocidentais, que vão beber muito sua independência – como é sabido, por parte da le- à Revolução Francesa e ao espírito revolu- gislação portuguesa em vigor no seu território. “Em cionário encarnado pelos pais fundadores da 12 de Fevereiro de 1981 é feita a primeira revisão da América, pelo que, na sua PARTE I, con- Constituição, na I Sessão Legislativa da II Legisla- substancia aquilo que considera como Prin- tura, após a realização de eleições para a ANP (As- sembleia Nacional Popular), em 7 de Dezembro de cípios Fundamentais e, na PARTE II, define 1980, mediante listas únicas de candidatos apresenta- o campo do Direito e dos deveres dos cida- dos pelo PAIGC (Partido Africano da Independência dãos, albergando, por exemplo, os Direitos, da Guiné e de Cabo Verde), como exigia a lei n.o 2/80, de 9 de Setembro, nos seus artigos 34o, 44o e 46o” Guiné Bissau, passando, este partido, a actuar-se uni- (FONSECA: 1990, 45). camente no território guineense. “De referir, pelo que Tal como se refere expressamente no preâmbulo da apresenta como elemento caracterizador do Partido respectiva lei (n.o 2/81), a revisão constitucional foi como supra-constitucional e como a verdadeira e a imposta pelos acontecimentos que se deram depois do única sede do poder real, que o processo de revisão golpe de Estado, que teve lugar no dia 14 de Novem- é conduzido e imposto pelo PAIGC, apesar de se afir- bro de 1980, na Guiné Bissau. Na sequência desse mar na Constituição que “... no desempenho da sua golpe de Estado, a ala cabo-verdiana para o acom- missão histórica, o PAICV exerce o seu papel diri- panhamento e reflexão do assunto – por decisão da gente na base da Constituição...” (art.o 4o n.o 2). É “Conferência Nacional dos Militantes do PAIGC, eri- o que ressalta com clareza da lei de revisão ao con- gida em Congresso”, que teve lugar entre os dias 16 e siderar que, após a decisão da “Conferência Nacional 20 de Janeiro de 1981 – prosseguiu com a criação do dos Militantes do Partido” de criar PAICV, “... impõe- PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo se, por conseguinte, a revisão de algumas normas do Verde). Foi assim que se pôs fim ao PAIGC, enquanto texto constitucional que deixaram de corresponder à organização partidária que Governa Cabo Verde e realidade política actual”” (FONSECA: 1990, 46).

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Liberdades e Garantias, onde se determina de Direitos Fundamentais e de Direitos, Li- os direitos individuais; as garantias de par- berdades e Garantias, as leis constitucionais ticipação na vida política; as liberdades, as têm um carácter absoluto e incidem directa- garantias e os direitos que assistem os traba- mente sobre qualquer entidade, seja ela pú- lhadores, entre outros dispositivos normati- blica ou privada. Não devemos esquecer-nos vos. de que há uma certa categoria de Direitos, É sobretudo no campo dos Direitos Fun- Liberdades e Garantias, que são bens jurí- damentais e das Liberdades e Garantias que dicos fundamentais e indisponíveis, porque, vai centrar a nossa atenção. Em primeiro a sua vertente de Direito Objectivo6, corres- lugar, devemos ter em conta que, no n.o 1 ponde, na prática e no exercício, ao direito do Artigo 1o, a CRCV faz saber que “Cabo subjectivo, que recai sobre cada um de nós. Verde é uma República soberana, unitária e O carácter indisponível desses direitos está democrática, que garante o respeito pela dig- patente, sobretudo, no facto de se tratarem nidade da pessoa humana e reconhece a in- de um círculo de bens jurídicos que, na nossa violabilidade e a inalienabilidade dos Direi- leitura – em teoria –, tem uma existência abs- tos do Homem como fundamento de toda tracta e autónoma, de forma tal que, na prá- a comunidade humana, da paz e da jus- tica, mesmo que os seus titulares queiram tiça”(CRCV: 1992, 5). O que nos importa, ceder parte dos mesmos, a terceiros, torna- sobretudo, neste trecho, é o facto de a pró- se completamente inconcebível, do ponto de pria Constituição assumir-se como democrá- vista de lei. tica; como defensora dos Direitos do Ho- O Direito da Comunicação Social, na mem e como o garante do respeito pela dig- Constituição cabo-verdiana, encontra-se de- nidade da pessoa humana. Isto porque, as finido entre os artigos 45o a 47o, onde, para Políticas de Comunicação não podem ser en- além de se garantir a liberdade de expres- caradas fora desse contexto; não podem ser são, de informação e de imprensa, garante- estudadas fora do quadro jurídico e da na- se também, às pessoas individuais e colecti- tureza política de cada sociedade. A aná- 6 Direito Objectivo é um conjunto de normas ju- lise do ordenamento jurídico e, sobretudo, da rídicas gerais e abstractas (munidas do aparelho co- natureza político-ideológica de cada Estado ercivo), que incidem sobre uma comunidade indiscri- figura-se como um mecanismo fundamental minada de indivíduos, aplicando-se a todos os mem- para a compreensão das políticas de comuni- bros de uma sociedade. Difere do direito subjectivo, cação de cada país. que é a faculdade que o Direito Objectivo atribui, a indivíduos particulares, de serem titulares de um con- É, sobretudo, importante ter em conta o junto de direitos que compõem a sua esfera jurídica. o Artigo 17 da Constituição da República de Os direitos subjectivos são os direitos individuais de Cabo Verde, que, através da “Força Jurí- cada cidadão – aqueles de que cada um de nós somos dica”, impõe que “as normas constitucio- os seus titulares; enquanto que, os Direitos Objecti- nais relativas aos direitos, liberdades e garan- vos, são os diplomas jurídicos que regulam as formas de viver numa certa comunidade (inclui as Constitui- tias (vinculem) todas as entidades públicas e ções, as Leis Orgânicas, os diversos Regulamentos e privadas e (sejam) directamente aplicáveis” Decretos Regulamentares, as Portarias, os Despachos (CRCV: 1992, 12). O que o legislador cons- e outras formalidades de que podem revestir as nor- titucional quis dizer aqui é que, em matérias mas jurídicas). www.bocc.ubi.pt 10 Silvino Lopes Évora vas, a liberdade de fundação de jornais e ou- o sentido o primeiro artigo da Constituição tras categorias de publicações, independen- da República de Cabo Verde, acima citado, temente de quaisquer autorizações adminis- segundo o qual, o arquipélago se inscreve no trativas. No entanto, a Constituição entende círculo de países democráticos, onde a dig- que a exploração (criação) de estações, quer nidade da pessoa humana e o respeito pelos radiofónicas, quer radiotelevisivas, fica su- direitos fundamentais são bens jurídicos ina- jeita a uma licença, que será conferida me- lienáveis. Um desses direitos inegável aos diante concursos públicos, ao abrigo da lei. cidadãos é o direito à informação. Também Se olharmos atentamente ao que a CRCV será, com certeza, a liberdade de imprensa estipula, notaremos, facilmente, que, a par- ou a própria liberdade de criação de empre- tir da lei fundamental, começa-se a desenhar sas de comunicação social. a política mediática cabo-verdiana. Por um A criação das empresas de comunicação lado, temos o Estado a assegurar a existên- social e o exercício efectivo do direito à li- cia e o funcionamento de um serviço público berdade de imprensa, na nossa leitura, estão de radiodifusão e de televisão, conforme o bastante interligados. Num país em que não n.o 9 do Artigo 46o da CRCV; e, por outro, se garante, aos cidadãos – individuais ou co- temos o mesmo diploma a garantir a liber- lectivos –, a liberdade de criação de empre- dade de criação de jornais e outras publica- sas mediáticas, deixando, ao sector público, ções, independentemente de qualquer autori- o monopólio da informação, no nosso enten- zação administrativa. O que está subjacente dimento, a concretização do exercício efec- a esta prescritiva jurídica é, sobretudo, a li- tivo da liberdade de imprensa estaria condi- berdade de empresa, que, estranhamente, cionada pela tendência manipuladora do sec- nem sequer se tenha previsto regras especí- tor publico, onde prevalece a versão e os ficas para a sua criação ou fundação. pontos de vista de quem tem o domínio sobre Pelo que podemos notar, os constrangi- esses órgãos; ou seja, por mais que a Consti- mentos se situam mais no domínio do audi- tuição e outros dispositivos jurídicos garan- ovisual, sendo que, no n.o 7 do Artigo 46o, a tam a liberdade de imprensa e o direito à in- Constituição estipula que “a criação ou fun- formação, o exercício desses bens jurídicos – dação de estações de radiodifusão ou de tele- que, nas sociedades democráticas, são bens visão depende de licença a conferir mediante fundamentais – teria vários constrangimen- concurso público, nos termos da lei” (CRCV: tos, que impediam a sua concretização prá- 1992, 23). tica e efectiva. Qual é a política de comunicação que Francis Balle (1987) havia dito que a luta aqui se desenha na paisagem mediática cabo- pela liberdade de imprensa, desde sempre, verdiana? Na nossa leitura, trata-se de uma foi uma batalha contra os poderes despóti- política de convergência de serviços infor- cos, que exerciam censuras sobre os meios mativos e mediáticos: a convergência do de comunicação social, procurando impor sector público com o domínio privado, em uma visão única do mundo – aquela que fa- que, ambos, se actuam no espaço público, vorecia quem detinha o poder. “Contra esta como agentes prestadores de serviços mediá- situação travaram uma dura luta os fundado- ticos, aos cidadãos. Daí, nota-se que faz todo res das democracias liberais, com o intuito

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“de pôr termo ao reino dos mandarins” e que quipélago desde a sua descoberta (legislação teve a sua consagração solene nos ideais dos portuguesa: durante 500 anos; e a legislação revolucionários de 1789 e na Constituição cabo-verdiana, que não está muito longe da Americana”” (CAMPONEZ: 2001, 134). O portuguesa) e a própria construção de uma próprio Francis Balle, chegou à conclusão de cultura cabo-verdiana, explicam muito bem que “não há outra alternativa entre o mercado o tipo de legislação e de comunicação que e os mandarins, entre a democracia e a ide- temos em Cabo Verde. ocracia, entre a informação e a propaganda, entre o poder da livre expressão de todos e 4.1 Políticas para o impresso a palavra homogénica do poder de alguns. A aposta dos revolucionários franceses e dos Se olharmos atentamente para a actual paisa- pais fundadores da América excluía, desde a gem mediática cabo-verdiana, depararemos origem, a possibilidade de uma terceira via. com realidades tão próximas quanto diversas Nada justificava, aos seus olhos, que a sobe- daquelas que estão previstas na Constituição rania das pessoas – the people – fosse atin- da República. Se a lei fundamental estabe- gida, ainda que por muito pouco. E essa so- lece que o Estado deve garantir um serviço berania reside precisamente, na sua capaci- público de radiodifusão e de televisão, na dade de editar jornais, ou de escolher entre prática, o Estado controla mais do que isso: os jornais que lhes são propostos” (BALLE: é dono de uma televisão (a TCV – Televi- 1987, 162). são de Cabo Verde); controla duas rádio (a Como podemos perceber, no panorama da RCV – Rádio de Cabo Verde e a Rádio Edu- comunicação social cabo-verdiana, pelo me- cativa); é proprietário de um jornal (o jornal nos legalmente, se vive um equilíbrio entre Horizonte); possui uma agência noticiosa (a o sector público e o sector privado. Já não ). Ou seja, o Estado cabo-verdiano vivemos nos tempos marcados pelo mono- tem um leque de ofertas de serviços mediáti- pólio estatal da comunicação social. Cabo cos, que transpõe o serviço público de radi- Verde está, quase sempre, um passo atrás da odifusão e de televisão, que está consignado Europa, onde se verifica uma convergência na Constituição. do modelo de serviço público com a aber- Como dissemos acima, a lei fundamental tura do mercado. Devemos realçar que a garante a possibilidade de criar livremente, nossa abordagem aqui parte, sobretudo, do jornais e outras publicações e de, nos ter- ponto de vista legislativo. Isto tem todo mos da lei, fundar estações de radiodifusão e um contexto histórico. E esse contexto tem de televisão, mediante uma licença conferida a ver com a contextualização que fizemos em concurso público. Todavia, não nos de- do Direito Cabo-verdiano, onde traçamos o vemos esquecer da Lei de Imprensa Escrita o perfil histórico do ordenamento jurídico do e das Agências Noticiosas (Lei n. 58/V/98 país. As circunstâncias em que as ilhas fo- de 29 de Junho), que foi aprovada a 30 de ram descobertas (completamente desabita- Abril de 1998. Este diploma apresenta-se das), o tipo de povoamento que se fez (cru- como um dispositivo jurídico que se propõe zamento de raças – mestiçagem), o corpo regular as actividades de imprensa escrita e jurídico que historicamente imperou no ar- de edição de jornais e outras publicações e www.bocc.ubi.pt 12 Silvino Lopes Évora das agências de notícias, bem como as con- ria sobretudo no facto de o país não possuir dições de acesso e de exercício dessas ac- nenhum jornal diário impresso. A pequenez tividades, estendendo-se a toda a forma de do mercado, o fraco poder de compra de uma expressão escrita do pensamento, por papel, boa parte da população e os baixos índices de processos electrónicos ou qualquer outro su- leitura devem ser os principais factores que porte utilizado ou processos técnicos, desti- estão na base desse facto. nados ao público em geral ou a determinadas O que é que existe, em termos de jornais, categorias de público. em Cabo Verde? Em primeiro lugar, como O Artigo quarto da Lei de Imprensa esta- já frisamos acima, devemos realçar que não belece que “as actividades de imprensa, de há nem um único diário impresso. Existe o edição de imprensa e de agência de notícias jornal , que, pelo próprio nome, têm por funções essenciais a expressão livre nota-se que é um semanário. Trata-se de das ideias e do pensamento, a informação da um jornal com cerca de 10 anos, proprie- comunidade nacional, a difusão das notícias dade privada, e o de maior audiência e de e das informações, a formação cívica dos ci- maior credibilidade no país. Mas, mesmo dadãos e a promoção dos valores da liber- assim, é visto como um jornal próximo do dade, da igualdade, do pluralismo e da or- PAICV, partido que actualmente sustenta o dem democrática”. Governo. Há o jornal , Porém, devemos ter em conta que, em também propriedade privada, bastante pró- consonância com o Artigo 20o da Lei de Im- ximo do maior partido de oposição (MPD prensa e das Agências Noticiosas – e, tam- – Movimento para a Democracia). O Ex- bém, de acordo com os preceitos constituci- presso das Ilhas também é um semanário onais –, “o acesso à actividade de imprensa e, tal como o A Semana, possui um site escrita, de edição e de agência de notícias é na Internet, sendo que o do Expresso das livre, sem prejuízo das formalidades admi- Ilhas, neste momento, encontra-se desacti- nistrativas exigidas para o exercício de qual- vado. Para além disso, o espaço mediático quer actividade comercial ou industrial”. O cabo-verdiano conta com mais um jornal que n.o 1 do Artigo 21o torna claro que “a activi- reivindica da grande informação: o jornal dade de imprensa, de edição e de agência de Horizonte. Propriedade do Estado de Cabo notícias pode ser exercida por qualquer en- Verde, o Horizonte, tal como o A Semana tidade singular ou colectiva, pública ou pri- e o Expresso das Ilhas, é um jornal de edi- vada, nacional ou estrangeira, desde que re- ção semanal. Por outro lado, o país conta gistada”. Se repararmos bem, há, neste ar- ainda com outras publicações diversificadas, tigo, uma abertura do mercado da imprensa entre as quais, a Revista de Direito e Cidada- escrita ao capital estrangeiro; ou seja, para nia (anuário) ou o jornal , um jornal ser-se dono de uma publicação, não é preciso cultural que aposta nas artes, na cultura e na ser-se cabo-verdiano – basta que o título es- escrita, de publicação irregular. teja devidamente registado nos serviços ade- O facto de haver jornais mais próximos quados para o efeito. No entanto, mesmo as- deste ou daquele partido, deve-se, no nosso sim, o capital estrangeiro ainda não entrou na entendimento, sobretudo ao facto do ponto imprensa cabo-verdiana. A falta dele é notó- 5, do Artigo 7o, da lei de imprensa dizer que

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“as publicações informativas adoptarão um tipo de serviço, aos cidadãos, porque o pró- estatuto editorial para definição da sua ori- prio legislador constitucional assim o enten- entação e objectivos”, deixando, aos propri- deu. Criar uma estação radiofónica ou televi- etários, o estabelecimento de normas que de- siva exige muito mais custo do que um jornal terminam a organização e o funcionamento ou uma outra publicação qualquer. Por isso, das publicações. A própria Lei da Imprensa o legislador cabo-verdiano entendeu que fa- elege como princípios fundamentais para o zia sentido o Estado garantir, aos cidadãos, o funcionamento dos media impressos e das funcionamento diário da rádio e da televisão, agências noticiosas, a autonomia económica deixando, ao critério dos privados, a criação e financeira dos órgãos de comunicação so- de publicações. No entanto, nem o Estado, cial, de forma a que a independência desses numa manobra fora da sua obrigação cons- meios seja garantida. A orientação ideoló- titucional, conseguiu manter um jornal simi- gica de um ou de outro jornal, em última diário (com quatro edições por semana). As- análise, fica sob a responsabilidade dos seus sim, em Cabo Verde, as publicações mais ve- proprietários. lozes que temos hoje são jornais semanários. Será que o facto de não haver nenhum jor- nal diário no país tem a ver com a política 4.2 Legislação sobre a do Governo para com a comunicação social? De forma alguma. Se assim fosse, seria uma radiodifusão posição que contrariava abertamente os pre- Para além dos preceitos constitucionais que ceitos constitucionais. O problema tem a fazem referência à radiodifusão, existe a le- ver sobretudo com razões económicas. Num gislação que regulamenta o sector radiofó- país pequeno, geograficamente fragmentado nico: a Lei da Rádio (Decreto-Legislativo em dez ilhas, onde o índice de leitura é mani- n˚ 10/93 de 29 de Junho)7 foi aprovada, em festamente baixo e as pessoas têm um baixo 7 Devemos notar que, no ordenamento jurí- poder de compra, um projecto de um jornal dico cabo-verdiano, reveste-se da forma de Decreto- diário seria bastante ousado. Prova disso, foi legislativo, todos os diplomas emanados pelo Go- o jornal estatal Horizonte ter feito, em tem- verno, reunido em Concelho de Ministros, quando pos, uma experiência de sair quatro vezes por legisla sobre matérias da competência relativamente semana, a metade do preço, e mesmo assim, reservada à Assembleia Nacional Popular, mediante a autorização legislativa desse órgão parlamentar (há a experiência fracassou. Se juntarmos a difi- matérias da competência absolutamente reservada à culdade de aquisição quase diária de jornais, ANP, sobre as quais só ela pode legislar. Nesse caso, por parte dos cidadãos, à falta de informa- organicamente, torna-se anti-constitucional, se a As- ção, compreende-se facilmente os motivos sembleia conferir poder legislativo ao Governo ou a do fracasso do projecto. Poderíamos pergun- qualquer outra entidade para fazer leis sobre as re- feridas matérias). O Decreto-legislativo difere do tar: mas porquê que o Estado não financia Decreto-Lei, que é a formalidade que reveste os di- um serviço de informação diária, através de plomas, quando o Governo legisla sobre matérias da um jornal impresso, independentemente de sua competência legislativa (também aqui o Governo viabilidade económica do projecto? A res- terá que estar reunido em Conselho de Ministros). Por outro lado, diferencia-se, também, das Portarias, que posta é simples. Não se trata de nenhuma são as produções legislativas do Governo, não reunido obrigação por parte do Estado, prestar esse www.bocc.ubi.pt 14 Silvino Lopes Évora

Concelho de Ministros, a 29 de Junho de imprensa é tida como fundamental, à luz da 1993. No n.o 2 do seu Artigo 1o, a lei con- legislação que regula o sector. Assim, o Ar- sidera como radiodifusão “a transmissão de tigo 9o da Lei da Rádio estabelece que: comunicações sonoras, por meio de ondas radioeléctricas ou de qualquer outro meio 1. A liberdade de expressão de pensa- apropriado, destinada à recepção pelo pú- mento através de radiodifusão integra blico em geral”. Já, no ponto 3 do Artigo 1o, os direitos fundamentais dos cidadãos a lei remete o exercício da actividade radio- a uma informação livre e pluralista, es- fónica para o licenciamento e as normas in- sencial à prática da democracia, à de- ternacionais. O caso é bastante diferente do fesa da paz e do progresso económico, sector impresso, onde há uma liberdade total social e espiritual do país; para a criação de novos títulos: aqui, a fun- 2. O exercício da actividade de radiodifu- dação de uma estação radiofónica, está de- são é independente em matéria de pro- pendente de legislações específicas, que es- tão subordinadas às possibilidades que a le- gramação, salvo nos casos contempla- gislação internacional sobre o consumo das dos na presente lei. A administração pú- blica ou qualquer outro órgão de sobe- ondas radioeléctricas atribui ao país. rania, com excepção dos tribunais, não Em consonância com o que está estabele- podem impedir ou condicionar a difu- cido na CRCV, a Lei da Rádio salienta que “a actividade de radiodifusão pode ser exer- são de quaisquer programas; cida por entidades públicas, privadas ou coo- 3. Não é permitida a transmissão de pro- perativas, de acordo com o presente diploma gramas ou mensagens que incitem à e nos termos do regime de licenciamento a prática da violência ou sejam contrários definir por decreto regulamentar”. O regime à lei penal ou, genericamente, violem jurídico previsto nos decretos regulamenta- os direitos, as liberdades e as garantias res que concedem, aos privados, direitos de fundamentais; operarem no sector da rádio, salvaguarda a possibilidade de o Estado poder “prever as 4. Não é permitida a transmissão de pro- condições de preferência a observar no con- gramas susceptíveis de influenciar ne- curso público de atribuição de alvarás para gativamente na formação da personali- o exercício da actividade de radiodifusão, os dade das crianças ou adolescentes. motivos de rejeição das propostas e as regras de transmissão, cancelamento e período de E, em termos da radiodifusão: como é que validade dos mesmos”. os preceitos legais se articulam com a prá- Antes de começarmos a enquadrar as rá- tica? Não devemos esquecer-nos de que a dios que existem em Cabo Verde no contexto Constituição assegura que o Estado garante da legislação e das políticas para o sector, de- a existência e o funcionamento de um ser- vemos tomar em conta que, a liberdade de viço público de radiodifusão. O n.o 1 do Artigo 3o da Lei da Rádio consigna que “o em Concelho de Ministros, mas sim, representado por serviço público de radiodifusão é prestado um ou dois ministros. pela Rádio Nacional de Cabo Verde [hoje,

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RCV, fruto da fusão entre a Rádio Barlavento preocupação acrescida, em relação às outras (S. Vicente) e Rádio Clube da Praia (Praia) estações que operam nas ilhas. (SOUSA: 1992/93)], nos termos deste di- Por outro lado, temos outras rádios, desta ploma e dos respectivos estatutos”. No en- feita, privadas, que resultaram sobretudo da tanto, o diploma entende ainda que a RCV materialização da possibilidade que a lei dá, “pode concessionar, mediante concurso pú- aos particulares, de criarem órgãos de comu- blico, a exploração de qualquer programa co- nicação radiofónicos, estruturados segundo o mercial com a utilização das corresponden- espírito empresarial. A Rádio Nova – Emis- tes frequências, desde que autorizada pela tu- sora Cristã, é um meio importantíssimo, a tela”. ter em conta, na paisagem mediática cabo- Existe a Rádio de Cabo Verde (RCV), verdiana. Em primeiro lugar, porque é uma uma estação pública de radiodifusão, de das duas estações radiofónicas não estatais serviço público, generalista, com uma pro- do país com uma aposta séria na informa- gramação variada, desde a informação ao ção. Emitindo a partir da Cidade de Min- entretenimento, passando por diversas sub- delo, São Vicente, a Rádio Nova – proprie- categorias programativas. Esta estação não é dade de a Igreja Católica – consegue difundir senão a materialização da intenção do legis- para todo o arquipélago, contribuindo, desta lador constitucional cabo-verdiano, quando forma, para a democratização do espaço pú- incumbe, ao Estado, a tarefa de garantir um blico cabo-verdiano, dando a possibilidade serviço público de radiodifusão. A RCV de manifestação de diferentes correntes de lidera a audiência no território das rádios opinião. A ter em conta, também – no ter- cabo-verdianas e é uma das poucas estações ritório dos media cabo-verdianos –, a Rá- do país que apostam seriamente na informa- dio Comercial, que surgiu na cena mediática ção. cabo-verdiana, nos finais da década de 90, No entanto, temos uma outra estação – fruto de uma conjugação de esforços entre a Rádio Educativa – que faz parte de um vários profissionais da informação. A Rádio programa avançado de educar para a cida- Comercial teve que atravessar uma barreira dania e de educação à distância, que o Go- muito importante: a barreira política. Me- verno cabo-verdiano tem tentado implemen- ses depois de começar a emitir para o espaço tar na sociedade. Como o próprio nome in- público cabo-verdiano, o Governo de então dica, o “prato forte” da Rádio Educativa é o (MPD) entendeu que a estação não reunia desenvolvimento intelectual, cultural e edu- todas as condições exigidas para se operar cativo dos cidadãos cabo-verdianos. Trata- no espaço público. A questão levou a um se de uma boa experiência de serviço pú- grande debate no seio da opinião pública até blico, se tomarmos em conta que, muitas que o impasse fosse ultrapassado e a Rádio rádios que operaram no campo mediático Comercial voltou a emitir para o espaço pú- cabo-verdiano – especialmente as privadas –, blico, depois de algum tempo fechada. apostam sobretudo na música. A Rádio Edu- A Rádio Comercial, tal como a católica cativa, por vezes, diversifica a sua programa- Rádio Nova, e a estatal Rádio de Cabo Verde, ção, entrando mesmo pelo campo do entrete- são as três estações que apostam no seg- nimento (música, sobretudo), mas tem uma mento informação. Isto dá à Rádio Comer- www.bocc.ubi.pt 16 Silvino Lopes Évora cial um papel de grande importância no equi- A lei apresenta, como fins genéricos da rá- líbrio do espaço radiofónico do país, sobre- dio: tudo, no que toca à formação cultural dos cidadãos, apostando na pluralidade da infor- • Contribuir para a informação do pú- mação e na auscultação das diferentes vozes blico, garantindo aos cidadãos o direito da sociedade. Assim, temos, em Cabo Verde, de informar, de se informar e de ser in- três estações radiofónicas a reivindicarem da formado, sem impedimentos nem dis- grande informação: a RCV, a Rádio Nova e criminações; a Rádio Comercial. • Contribuir para a valorização cultural Quanto à materialização da prescritiva da população, assegurando a possibili- constitucional que prevê a possibilidade de dade de expressão e o confronto das di- criação da estações radiofónicas privadas, versas correntes de opinião, através do devemos salientar que houve uma consuma- estímulo à criação e à livre expressão do ção efectiva da norma jurídica. Assim, ou- pensamento e dos valores culturais que tras rádios passaram a fazer parte da atmos- exprimem a identidade nacional; fera mediática cabo-verdiana. Vários exem- plos podem ser apontados. A Praia FM é • Favorecer a criação de hábitos de convi- uma rádio que surgiu nos finais dos anos 90. vência cívica própria de um Estado de- No princípio, a estação emitia, sobretudo, mocrático. para o circuito da Cidade da Praia, tendo, posteriormente, alargado a sua frequência De uma forma mais restrita, a Lei da Rá- para outras zonas da Ilha de Santiago; por dio estipula: isso, é claramente uma rádio regional. Tam- bém é regional a rádio Mosteiros FM, que, • Constitui fim específico do serviço pú- a partir da Ilha do Fogo, consegue abranger blico de radiodifusão contribuir para a a quase todas as ilhas do Sotavento (Maio, promoção do progresso social e cultu- Santiago, Fogo e Brava); devemos lembrar, ral, da consciencialização cívica e so- ainda uma outra experiência – privada – cial dos cabo-verdianos e do reforço da que surgiu, em Cabo Verde, no ano passado unidade e da identidade nacional. (2004): Crioula FM. A Rádio Ponta d’Água Para a prossecução deste fim, incumbe-lhe também é uma experiência de estações não especificamente: financiadas pelo Governo: trata-se de um ca- nal radiofónico local, que emite para uma pe- • Assegurar a independência, o plura- quena percentagem da população da Cidade lismo, o rigor e a objectividade da in- da Praia (zona de Ponta d’Água). Todavia, formação de modo a salvaguardar a sua interessa-nos recordar ainda a Rádio Mora- independência dos demais poderes pú- beza, uma estação regional da Ilha de São blicos; Vicente; a Rádio de Santo Antão – estação regional da Ilha de Santo Antão e a Rádio de • Contribuir, através de uma programação São Nicolau, também ela regional. equilibrada, para a recriação e promo- ção educacional e cultural do público

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em geral, atendendo à sua diversidade boas perspectivas para uma forte aposta, por em idades, ocupações, interesses, espa- parte dos operadores privados. ços e origens;

• Promover a defesa e a divulgação da 4.3 Regime jurídico para a cultura cabo-verdiana; televisão

• Promover a criação de programas edu- Tal como para a rádio, a Constituição de cativos ou formativos dirigidos especi- Cabo Verde garante, para a televisão, a exis- almente a crianças, jovens, adultos e tência e o funcionamento de um serviço pú- idosos com diferentes níveis de habili- blico, mantido pelo Estado. A Lei da Te- tações; levisão, aprovada a 28 de Abril de 1998, veio reafirmar este preceito constitucional, • Contribuir para o esclarecimento, a for- no seu n.o 2 do Artigo 5o, ao dizer que “o mação e participação cívica e política Estado assegura a existência e o funciona- da população, através de programas mento de um serviço público de televisão”. onde a análise, o comentário, a crítica A legislação cabo-verdiana define como te- e os debates estimulem o confronto sa- levisão “a transmissão ou retransmissão, co- lutar de ideias e contribuam para a for- dificada ou não, de imagens não permanen- mação de opiniões. tes e sons através de ondas electromagnéti- cas ou de qualquer outro veículo apropriado, Voltando às estações com presença nas propagando-se no espaço, ou por cabo, e des- ilhas, devemos salientar que a existência des- tinada à recepção pelo público, com excep- sas rádios é fruto do esforço levado a cabo ção dos serviços de telecomunicações que pelo legislador cabo-verdiano, que abriu pos- operem mediante solicitação individual”. sibilidades efectivas de implementação de Quem pode operar no sector da televisão empresas de comunicação privadas no país, em Cabo Verde? A lei entende que, tanto sobretudo, a partir da primeira metade da operadores públicos como privados, podem década de 90 do século passado, depois de exercer essa actividade. No caso dos actores ter dado a abertura política. A democra- privados, tal como a Constituição consigna, cia trouxe a possibilidade de um efectivo a lei entende que esta actividade só pode ser reequilíbrio do panorama radiofónico cabo- exercida, mediante um alvará, a conferir, em verdiano, onde o monopólio público foi que- concurso público. brado com as novas leis que possibilitaram, Em 1998, quando foi feita a Lei da Te- ao poder económico, entrar nesse terreno. levisão, o legislador ordinário fez questão No entanto, devemos ter presente que, de dizer, no n.o 2 do Artigo 7o, o seguinte: quer no sector radiofónico, quer no campo “na execução da presente lei é prioritária a dos outros meios de comunicação social, atribuição de licença para o exercício da ac- o problema de concentração de títulos está tividade de televisão em cobertura de âm- longe de se pôr, até porque, as próprias ca- bito geral”. Isso significa que o Estado ti- racterísticas do mercado – com um fraco nha reconhecido como uma prioridade, abrir bolo publicitário – não estimula, nem augura o espaço televisivo a outros operadores, de www.bocc.ubi.pt 18 Silvino Lopes Évora forma a quebrar o monopólio do sector pú- cruzada de investimentos, tendo a televisão blico. O Artigo 11o, n.o 2, do mesmo di- com um dos campos de actuação da inicia- ploma, veio reforçar esta ideia, sobretudo, tiva privada. Na óptica do legislador ordi- garantindo que “o licenciamento é precedido nário, só é possível actuar-se no sector tele- de concurso público nos termos da presente visivo, quando esta é a principal actividade lei”. No ponto seguinte, a lei estabelece que da empresa que está por detrás da iniciativa. o Governo aprovará, por resolução do Con- Isso seria uma forma de quebrar a tentação selho de Ministros, um regulamento de con- de instrumentalizar os canais televisivos, por curso público do qual constem: parte do poder económico, pondo-os ao ser- viço de outros interesses. • a) O valor da caução e os termos em O Artigo 15o da Lei da Televisão estabe- que a mesma deve ser apresentada pe- lece as condições para a atribuição de licen- los concorrentes; ças de exploração da televisão. Assim, te- mos: • b) As quantias a pagar, a título de taxa pelo licenciamento e pela utilização dos 1. A atribuição de licença é feita tendo em meios técnicos necessários à emissão e conta os seguintes factores: postos à disposição das sociedades li- a) Qualidade técnica e viabilidade eco- cenciadas, de acordo com o plano téc- nómica do projecto; nico de frequências, bem como outros direitos e deveres dos operadores de te- b) Tempo e horário de emissão com pro- levisão; gramas culturais, de ficção e informati- vos; • c) As fases de cobertura e respectivo c) Tempo de emissão destinada à produ- prazo de execução; ção própria e nacional; • d) O prazo para apresentação das candi- d) Capacidade do candidato para satis- daturas; fazer a diversidade de interesses do pú- blico. • e) O prazo para início das emissões; 2. Apreciados globalmente os elementos • f) Outros elementos exigidos pelas con- constantes do número anterior, o Go- dições do concurso. verno atribui a licença de exploração O legislador ordinário entendeu ainda que ao candidato que apresentar a proposta os operadores privados, para actuarem no mais vantajosa para o interesse público. sector de televisão, deviam ter como ob- 3. A deliberação de atribuição da licença jecto principal, o exercício dessa actividade, reveste a forma de resolução do Conse- e revestirem-se a forma de pessoa colec- lho de Ministros. tiva; ou seja, a lei, neste caso, procura re- cusar duas possibilidades: não admite que Se repararmos bem, aquilo que a lei exige, uma única pessoa possa controlar um canal aos privados, que desejam actuar-se no sec- de televisão privado; proíbe a participação tor da televisão, é a prestação de um serviço

www.bocc.ubi.pt Políticas de comunicação e contexto mediático 19 público, que nem a própria televisão pública, legais já estão criadas, não vai haver nenhum financiada pelo Orçamento do Estado, con- impedimento na entrada de novos actores. segue fornecer aos cidadãos cabo-verdianos. Neste sentido, a lei faz saber ainda que Talvez seja por isso que até hoje não temos o licenciamento da televisão privada é feito um único canal privado de televisão. No en- pelo prazo de 15 anos, com carácter renová- tanto, a pequenez do mercado é também um vel por iguais períodos. E diante deste cená- elemento justificativo da não existência de rio, como é que está estruturado o sector da uma estação privada de televisão. Relativa- televisão em Cabo Verde? Em primeiro de mente à possibilidade de haver uma televisão tudo, devemos ter presente que, tal como as privada em Cabo Verde, Matilde Dias res- emissões radiofónicas, as difusões televisi- ponde: “é complicado. É caro, o mercado vas só podem ser feitas, mediante os concur- não é grande e não há uma classe empre- sos públicos, harmonizados com a Lei da Te- sarial privada consistente e nem preparada levisão. No entanto, um único canal televi- ainda para investir em publicidade” (DIAS: sivo actua na cena mediática cabo-verdiana8 Entrevistada a 1 de Maio de 2005). João . Chama-se TCV – Televisão de Cabo Verde Baptista Pereira, Secretário de Estado Ad- – e é propriedade do Estado. Para além de ser junto do Primeiro Ministro, reitera esta afir- o único canal, ainda temos aqui uma agra- mação, salientando que “não está, de facto, vante: é que a TCV passa o dia inteiro fe- vedado a entrada dos privados na televisão chada. Começa a emitir a partir das 18h 30 em Cabo Verde. O que acontece é que a e, na maioria das vezes, as suas emissões entrada de uma televisão privada é algo que não chegam à meia-noite. Que serviço pú- pode não ser muito rentável. É muito caro, blico se pode prestar nesse espaço de tempo? tendo em conta os custos que decorrem dos 8 Sabemos que a RTP África tem uma delegação investimentos iniciais e também pelo facto na Cidade da Praia, mas a sua actuação está longe de terem que usar as infra-estruturas de te- de ser reconhecido pelos cidadãos cabo-verdianos (e lecomunicações, que estão a ser exploradas pela lei) como um canal nacional. A sua audiência em regime de monopólio” (da Cabo Verde tem maior expressão no período em que a TCV se Telecom, cuja maioria accionária pertence à encontra “a dormir”. A partir das 18h 30, quando as emissões da TCV começam a penetrar nos lares cabo- PT). Pereira diz que o empresário que quiser verdianos, a queda da audiência da RTP África dá-se entrar no sector da televisão em Cabo Verde, substancialmente. No entanto, não há nenhum estudo tem que contar com o facto de estar a entrar- que descortina claramente qual é a capacidade de ac- se num mercado extremamente restrito. O tuação da RTP África no país. Secretário de Estado conclui que são esses Com o aparecimento de várias antenas de retrans- missão de sinais de estações internacionais, cada vez factores que dificultam a entrada de priva- é menor a força da RTP África na território cabo- dos, acrescentando que “não há nenhum in- verdiano. Daqui alguns meses, a Cabo Verde Tele- teresse político” que faz com que o monopó- com e uma operadora chinesa vão levar a TV Cabo lio público de televisão não seja quebrado no para o arquipélago. A partir do momento que a TV país. Muito pelo contrário, Pereira garante Cabo começar a disseminar conteúdos diversificados, faria todo o sentido um estudo aprofundado para ver que basta haver um projecto interessante e a real força da RTP África em Cabo Verde. No en- viável, e tendo em conta que as condições tanto, devemos ter claro que, no nosso país, faz falta um estudo em todo o sector dos media. www.bocc.ubi.pt 20 Silvino Lopes Évora

Haverá espaços para verdadeiros debates pú- que a metade do dia com as suas emissões. blicos dos problemas sociais? Será que a Desta forma, a sua programação passa a ser TCV estimula a participação das diferentes rotineira e o telespectador tem um claro co- correntes de opinião para uma discussão pú- nhecimento da sua programação. Ninguém blica aberta sobre os verdadeiros problemas vai sintonizar o seu aparelho televisor na do país? O que é que se discute nesse espaço TCV, às 11 da manhã ou às 16 horas, por- de tempo? O que é que não se discute? A que todos sabem que, nessas alturas, a emis- quem é que se destina os conteúdos da televi- são ainda não é posta no ar. Da mesma são pública? Qual é verdadeiramente a fina- forma que, ninguém vai procurar uma edição lidade deste serviço? Responder profunda- nova do jornal A Semana, na segunda ou na mente a todas essas questões nos obrigaria, quarta-feira porque todos sabem que o perió- obviamente, a pensar num outro projecto de dico só sai às sextas. A lógica das Televisões investigação. Precisávamos de mais tempo e Periódicas obedece aos mesmos critérios dos de mais espaço. No entanto, vamos discu- tradicionais periódicos que conhecemos. Em tir um pouco esta problemática, de forma a última análise, uma televisão ou um jornal, começar-se a perceber algo sobre esse tema. é periódico porque a sua edição programa- Tudo isso, na tal lógica de dar uma visão pa- tiva obedece a determinadas rotinas tempo- norâmica sobre o assunto, tal como propo- rais, às quais os leitores ou telespectadores mos acima. estarão sintonizados, de forma tal que sabem Começamos já por lançar uma tese nova: quando é que o produto estará disponível. no nosso ponto de vista, a Televisão de Cabo Perguntamos: quais são os assuntos que Verde não se integra, nem na categoria das se discute na TCV? Se olharmos bem, não designadas televisões generalistas, nem no se discute praticamente nada. A emissão co- esquema das televisões temáticas. Do que meça às 18h 30 minutos, com a programação é que se trata então? A TCV, para nós, é infantil – desenhos animados – que, normal- uma Televisão Periódica. Por incrível que mente, prolonga-se até à hora do início do pareça, no nosso entendimento, o conceito telejornal (20:00). Este programa informa- de periódico não se aplica exclusivamente à tivo demora mais ou menos uma hora. De- imprensa escrita. Também pode ser aplicado pois das 21 horas, o telespectador é convi- ao meio televisivo e, no caso de Cabo Verde, dado a assistir um capítulo de uma teleno- esta ideia é completamente aplicável. Assim vela da Rede Globo. O resto do tempo é pre- como os leitores sabem que todas as sextas- enchido com alguns outros produtos, como feiras têm o jornal A Semana nas bancas, videoclips ou outros programas de foro cul- logo pela manhã, os telespectadores sabem tural. que, todos os dias, a partir das 18h 30, as Como podemos ver, a programação da emissões da TCV estarão no ar. Ainda mais, TCV é rotineira. No entanto, há alguns dias sabem até quando as emissões continuam no em que a rotina é quebrada com programas ar. quinzenais, que aparecem e desaparecem Assim, no nosso entendimento, uma Tele- do espaço público, sem deixar pistas para visão Periódica é aquela que obedece a uma perceber-se o que, realmente, está por detrás certa rotina temporal, não cobrindo mais do desses fenómenos. Programas como Gran-

www.bocc.ubi.pt Políticas de comunicação e contexto mediático 21 des Questões (entrevista); Momentos e Sítios ministração, com pessoas que não sabem (programa cultural e histórica); Kombersu nada de televisão e directores sem experiên- Sábi (cultural), são exemplos de produtos cia de gestão, continuaremos a prestar um que a TCV tem actualmente disponível para serviço que é tudo, menos público. Porque quebrar a rotina da sua programação. Mas, defende os interesses daqueles que têm voz não é isso que a legislação determina: se- e esquece-se da maioria dos cabo-verdianos. gundo o n.o 1 do Artigo 21o, “a concessioná- Se assistes aos telejornais da TCV, vês logo ria (do serviço público) deve assegurar uma que o país real não aparece” (DIAS: Entre- programação de qualidade e de referência vistada a 1 de Maio de 2005), afirma Dias. que satisfaça as necessidades culturais, edu- Por seu lado, Pereira reconhece que o serviço cativas, informativas e recreativas dos diver- público “é prestado com as limitações dos sos públicos específicos”, acrescentando, no meios que estão à disposição desses órgãos número seguinte, que, por isso, o operador de comunicação: “para melhorar este ser- do serviço público deve apostar “numa pro- viço, estamos a trabalhar num projecto para gramação variada, assegurar o pluralismo, o estabelecer as bases de concessão de serviço rigor e a objectividade da informação e da público de rádio e de televisão”. O projecto, programação, privilegiar a produção nacio- segundo o Secretário de Estado, passa por nal e garantir a cobertura dos acontecimen- encontrar bases para celebração de contrac- tos nacionais e estrangeiros”. Assim, um ser- tos entre o Estado e o sector privado, em que viço público de televisão garantiria, a todos este segundo presta o serviço público. Inter- os cidadãos, a possibilidade de acesso aos pretando a Constituição, Pereira acha que o canais televisivos, promovendo uma oferta legislador não esteve preocupado com a en- diversificada de programas que abrangem di- tidade que vai prestar o serviço público. O versos temas, desde a educação, ao entreteni- seu objectivo principal era que esse serviço mento, passando pela informação e pela cul- fosse assegurado pelo Estado e “isto pode ser tura geral. O Artigo 64o da Lei da Televi- concretizado”, quer através de meios de co- são determina que “a concessão do serviço municação públicos, quer por via de órgãos público é atribuída à Rádio Televisão Cabo- privados. verdiana, RTC, nos termos do Decreto-Lei Analisar as políticas televisivas, em Cabo n.o 33/98, de 26 de Maio, e em conformi- Verde, implica ter em conta, vários contex- dade com o contrato de concessão”. Como tos, desde o social e o económico aos cri- dissemos acima, hoje a RTC é uma empresa térios de crescimento do país adoptados pe- que incorpora a rádio e a televisão públicas, los sucessivos Governos, sobretudo, depois duas empresas em vias de separação. da abertura política, em 1990. Assim, con- O serviço prestado pela Televisão de Cabo sideramos impreterível, levar em conta que Verde está longe de atingir o estatuto legal há várias regiões, principalmente, as que se que o serviço público de televisão reivindica. situam no interior do país, que ainda não dis- “A Rádio safa-se. Ela presta um serviço pú- põem do serviço público de electricidade; ou blico. Mas a TCV andou para trás. A TVEC seja, ainda o Estado não pôs, à disposição e a TNCV eram muito melhores. Enquanto de uma boa parte da população, as possi- for o Governo a nomear o Conselho de Ad- bilidades efectivas de acesso ao serviço pú- www.bocc.ubi.pt 22 Silvino Lopes Évora blico de televisão. No nosso entendimento, noticiários da TCV. Além da capital do país, o primeiro passo para a prestação de um ser- que monopoliza completamente a informa- viço público de televisão é facultar, aos ci- ção, a cidade de , em São Vicente, é dadãos, possibilidades práticas de acederem a segunda região mais representada. No en- a esse serviço. E uma dessas possibilidades, tanto, a sua representatividade está bastante é o acesso às energias eléctricas. Para além distante da da capital, que é o centro da pro- disso, é importante levar em conta que várias dução informativa. regiões do país ou não recebem o sinal da O legislador ordinário, no Artigo 9o da Lei TCV ou as imagens chegam com pouca qua- da Televisão, estabelece os principais fins lidade. Isto, num contexto jurídico em que a para a actividade televisiva. Assim, temos: Lei da Televisão, no seu Artigo 19˚ , n.o 1, 1. Os fins genéricos da actividade de tele- garante que “a concessão do serviço público visão, são os seguintes: de televisão realiza-se por meio de canais de acesso não condicionado e abrange emissões a) Contribuir para a informação e for- de cobertura nacional”. mação do público e para a promoção e O serviço público de televisão, em Cabo defesa dos valores culturais que expri- Verde, padece de outras dificuldades. Nas mem a identidade nacional, bem como ilhas montanhosas, a transmissão de sinais para a modernização do país; faz-se com muitas dificuldades e, em várias b) Contribuir para a formação de uma regiões do país, as imagens chegam aos la- consciência crítica, estimulando a cri- res com uma fraca qualidade. Nos meses atividade e a livre expressão do pensa- de Agosto e Setembro, os poucos meses de mento; chuva no arquipélago, a situação piora ainda c) Contribuir para a recreação e a pro- mais, sobretudo, quando a “fúria da natu- moção educacional do público, aten- reza” deita por terra as antenas retransmisso- dendo à sua diversidade de idades, ocu- ras, espalhadas por vários cimos de monta- pações, interesses e origens; nhas, que ajudam no prolongamento dos si- nais televisivos. d) Favorecer o conhecimento mútuo e o Todavia, o problema de concentração do intercâmbio de ideias entre os cidadãos foco de atenção da TCV é um dos gran- cabo-verdianos e estrangeiros; des cancros do serviço público de televisão. 2. São fins específicos da actividade de te- Olhando o país, através dos ecrãs da TCV, levisão os seguintes: Cabo Verde nos parece reduzido à Cidade da Praia (capital). Para além da Ilha de San- a) Assegurar a independência, o plura- tiago, as restantes ilhas passam completa- lismo, o rigor e a objectividade da in- mente à margem da programação e da infor- formação e da programação, de modo mação da televisão cabo-verdiana. Mesmo a salvaguardar a sua independência pe- na Ilha de Santiago, o foco das notícias é a rante os poderes públicos; Cidade da Praia. Regiões como a cidade de b) Promover a criação de programas ou a Vila do Tarrafal (ambas situ- educativos ou formativos, designada- adas na Ilha de Santiago) passam a leste dos mente os dirigidos a crianças e jovens;

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c) Contribuir para o esclarecimento, a nicação social, torna, cada vez mais urgente, formação e a participação cívica e polí- se levarmos em conta que o próprio Pro- tica da população. grama do Governo reconhece que “o passado recente lega-nos constrangimentos que urge Mesmo com esses fins traçados pelo le- ultrapassar”, acrescentando que “o interven- gislador ordinário, o serviço público de te- cionismo governamental nos órgãos de co- levisão, em Cabo Verde, está longe de atin- municação social do Estado, especialmente gir à mais restrita expectativa que o legis- quando conduzindo à manipulação, à cen- lador constitucional depositou na Constitui- sura e à ausência do contraditório, constitui ção do país. Não devemos esquecer-nos de uma marca altamente perniciosa e de direc- que a própria lei dá, ao Estado, a tutela do tas consequências negativas, seja para a qua- Serviço Público, quando afirma que “o ser- lidade de prestação desses órgãos, seja para viço público de televisão é prestado por um a desejada consolidação da classe dos pro- operador de capitais exclusiva ou maioritari- fissionais da comunicação social, seja ainda amente públicos”, sendo, esta prescritiva, re- para o normal funcionamento do sistema de- forçada no n.o 1 do Artigo 22o, que salienta mocrático”. que “o financiamento do serviço público de Faltando apenas seis meses para o fim da televisão é garantido através de uma verba a legislatura, faria sentido ver até que ponto o inscrever anualmente no Orçamento do Es- Governo cumpriu o estabelecido no seu Pro- tado”. grama, em relação ao sector da comunica- ção social. A comunidade jornalística cabo- 5 Discussão do problema verdiana continua mais frágil do que nunca, sobretudo, pelo facto de a classe política do- No seu Programa, o Governo afirma que “a minar todo o serviço informativo. Matilde existência de uma comunicação social livre, Dias reconhece que a TCV não é uma televi- independente e pluralista, esteio do necessá- são educativa e que quem perde com isso são rio e salutar espírito crítico, constitui um fac- os cidadãos, “porque a nossa classe política tor caracterizador do Estado Democrático, pouco tem a ensinar aos cabo-verdianos”. desde logo pelo papel que lhe cabe na ga- Longe das propostas feitas pelo Governo, rantia do exercício, pelos cidadãos, do seu Dias enumera os principais problemas com fundamental direito à livre expressão do pen- que os jornalistas cabo-verdianos se confron- samento e à criação, bem assim do direito tam: “a reforma da legislação, a entrada em de informar e de se informar”. Tendo cons- vigor da carteira profissional dos jornalistas, tatado essa necessidade da comunicação so- a abertura do mercado às televisões priva- cial para um normal funcionamento da socie- das, o aumento dos incentivos para a aber- dade, o Governo comprometeu-se em doptar tura de novas rádios, jornais e revistas, o in- os meios de comunicação públicos de con- centivo para a criação de mais media elec- dições, quer materiais, quer humanas, quer, trónicos. . . ”. Não devemos esquecer-nos de ainda, jurídicas, por forma a que estes me- que a garantia de condições para o exercício lhor sirvam a sociedade e o interesse colec- da actividade jornalística em liberdade, sob tivo. E esse equipamento do sector da comu- o signo da independência, era um dos pon- www.bocc.ubi.pt 24 Silvino Lopes Évora tos fulcrais do Programa do Governo para o apresentou ao Parlamento – “que visa devol- domínio da comunicação de massas. A con- ver aos jornalistas aquilo que consideramos cretização dessa proposta era muito impor- terem perdido na revisão de 1999”. tante para a reestruturação da classe jornalís- Não esqueçamos que um outro item do tica cabo-verdiana, uma vez que, há uma ne- Programa do Governo é a assinatura de um cessidade real de ultrapassar a pior decisão contrato de concessão entre o Estado e a RTC política que foi tomada na área da comuni- – empresa pública que tem a gestão da rádio cação, que na leitura de Matilde Dias, “foi e da televisão – de forma a que a empresa a mudança da legislação há alguns anos, que possa concretizar a prestação de um serviço transformou os jornalistas em meninos de re- público de qualidade e referência. No en- cado da classe política”. João Baptista Pe- tanto, não é preciso um grande esforço para reira esclarece-nos esta situação: “se, por um perceber-se que a intenção, embora sendo lado, a Constituição (de 1992) e a legislação boa, não passou dos papéis. Entrevistada aprovada em 1997/98 constituíram ganhos pelo blogue Casa dos Jornalistas, Adelina importantes, não podemos deixar de, neste Brito, directora de programação da televi- ponto, salientar alguns recuos – referindo- são nacional, reconhece que “nada justifica me concretamente à revisão da Constituição estar sem produção nacional durante tanto de 1999 – que trouxe, de facto, um fenómeno tempo, quase um ano”. A própria directora perturbador no exercício da actividade jorna- de programação da televisão pública reco- lística em Cabo Verde”. O governante rei- nhece a falta de qualidade do serviço que tera que a pior decisão na área da comunica- a TCV presta, passando quase um ano in- ção foi o facto de o “então Governo” ter alte- teiro sem produzir um único programa pró- rado o dispositivo relativo ao direito de infor- prio. Esta constatação foi completamente mação e à liberdade de expressão, abrindo a reiterada pela jornalista Matilde Dias que, possibilidade de os jornalistas passarem a ser por nós entrevistada, adverte que “a TCV processados por crimes de difamação. Coisa passa largos meses do ano a transmitir só que, no entender de Pereira, limita o exercí- enlatados, à excepção do telejornal” (DIAS: cio da democracia. Entrevistada a 1 de Maio de 2005). Esta ten- É nessa lógica que Dias reconhece a situ- dência vem agravando, cada vez mais, uma ação vulnerável em que os jornalistas cabo- vez que “hoje, todas as câmaras municipais verdianos trabalham, mostrando-se comple- têm instaladas parabólicas para retransmitir tamente desacreditada na nova política de canais como a SIC, a SportTV, a Globo, a comunicação que o Governo tem em curso: TVI. . . Se por um lado, há regiões remotas “vai ser uma repetição da lengalenga do que não captam a RTP e a TCV, e essas para- Governo anterior, porque este Governo, em bólicas são justificadas, por outro, invadem a 2001, prometeu liberdade de imprensa – casa das pessoas com publicidade de produ- como se isso dependesse dele. Mas ex- tos que não se vendem aqui”, sublinha Dias. perimenta faltar a uma conferência de im- prensa. . . ”, retorquiu. No entanto, Pereira diz que há um projecto de revisão constitu- cional – que a actual maioria parlamentar já

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6 Conclusão reito à informação e a liberdade de expres- são. Em primeiro lugar, queremos salientar que A liberdade de publicação, a liberalização as políticas de comunicação, em Cabo Verde, do sector radiofónico e a possibilidade de en- nos últimos quinze anos, têm sido levadas a tidades privadas entrarem no campo da tele- cabo, através de decisões de avanços e re- visão, são os principais ganhos que a demo- cuos. O regime de partido único era visto cracia trouxe para o domínio da comunica- como sinônimo da falta de liberdade, onde, ção em Cabo Verde. Quanto ao campo da antes de servir o interesse público e as ne- televisão, a liberalização do sector não signi- cessidades de informação que os cidadãos ti- ficou a entrada de novos actores. A nossa in- nham, os meios de comunicação – maiorita- vestigação dá-nos conta de que, um dos prin- riamente públicos – serviam o poder insta- cipais factores que está na base dessa não lado. Havia, no arquipélago, quase que uma concretização das possibilidades que a legis- sede da liberdade. Não só da liberdade de lação abriu, tem a ver com a pequenez do imprensa. Diria, de toda a liberdade humana. mercado, o fraco bolo publicitário e o avul- Os membros da sociedade viviam compri- tado investimento que um projecto dessa na- midos, não podendo manifestar-se, publica- tureza requereria. Assim, entendemos que o mente, porque eram, imediatamente, associ- não há um constrangimento político em rela- ados a elementos que provocavam desordens ção à entrada de novos actores no mercado sociais, pelo que, tribunais de duvidosa in- cabo-verdiano, mas as barreiras são sobre- dependência, tinham que “tomar conta de- tudo, de ordem económica. Prova disso é les”, depois de terem levado uma boa “surra” a proliferação de estações de radiodifusão, na esquadra da polícia. Não é por acaso que, desde 1997, faz aparecer canais novos, que, quando a democracia chegou ao país em a competir, no pequeno mercado do arqui- 1990, consubstanciado nas eleições de 13 de pélago. Os mesmos motivos que explicam Janeiro de 1991, todo o mundo pensava que a não existência de uma televisão privada em o PAICV nunca mais iria ressuscitar. Cabo Verde, justificam, também, o facto de o As primeiras decisões que o primeiro Go- arquipélago não contar com nenhum diário. verno democrático tomou no país, era acu- Há uma abertura do mercado dos media im- dir àquilo que mais o povo ansiava. Mais do pressos ao capital estrangeiro, mas essa ini- que criar riquezas e empregos, na legislatura ciativa legislativa não tem concretização por- de 1995/96, o Governo “criou” um clima de que as condições do mercado não atraem in- liberdade e de confiança no país, podendo, vestidores multinacionais. as pessoas, manifestar, “livremente”, as suas Mas, houve retrocessos: em 1999, a re- opiniões. Essas decisões acabaram por de- visão constitucional mostrou que já se tinha sembocar na aprovação da Constituição da passado a euforia da sede de liberdade que República de Cabo Verde, em 1992, e, pos- marcou os primeiros anos da democracia. O teriormente, de um conjunto de legislações, clima passou a ser de desconfiança em re- que procuraram salvaguardar a liberdade de lação aos jornalistas, tendo o poder político actuação dos jornalistas, preservando o di- achado que a comunidade jornalística tinha excesso de poder nas suas mãos. Foi então www.bocc.ubi.pt 26 Silvino Lopes Évora que a revisão constitucional do final da dé- tar” a Constituição, que concebe o serviço cada de 90 trouxe alguns cancros do partido público como a prestação de um serviço único: alguns dos velhos limites à liberdade de qualidade de radiodifusão e de televisão. da imprensa. Segundo os testemunhos dos Mais do que uma rádio e uma televisão, o próprios jornalistas, a partir de então, pas- Governo soma ainda mais um jornal e uma saram a ser uma espécie de “meninos de re- agência noticiosa. Nisso tudo, pior é que o cado” da classe política. Esses recuos estão a único meio que presta um serviço de quali- provocar novos avanços. É que a actual mai- dade é a rádio. Embora havendo uma única oria parlamentar quer ultrapassar essa bar- televisão e uma única agência noticiosa, o reira legislativa, de forma a devolver a liber- trabalho que esses dois meios prestam é de dade que foi “roubada” aos jornalistas. baixíssima qualidade, pelo que pouco con- No entanto, outra conclusão, pode ser ti- tribuem para a democracia do país. A con- rada, com esse trabalho. Introduzimos o con- jugação de esforços entre a RCV e a Rádio ceito de Televisão Periódica, para explicar a Educativa garante, aos cidadãos, um serviço actuação da TCV no espaço mediático cabo- público de qualidade, não só a nível da di- verdiano: uma televisão rotineira, que não versidade da programação, como, também, consegue preencher mais do que cinco horas no que diz respeito à cobertura geográfica, à diárias, com uma programação que não traz qualidade da informação e da programação. nenhuma novidade. Não há diferença entre o Isto justifica-se, entre outras coisas, porque a cidadão comum e o directores de programa- produção e recepção da emissão radiofónica ção da TCV porque ambos sabem, o que é exige menos meios do que o caso da televi- que a estação vai emitir, qual é o período de são. tempo de cada programa e a hora que a es- tação volta a “dormir”. Entendemos que há 7 Bibliografia um desfasamento entre as tarefas de serviço público que a Constituição e a legislação or- ANDRÉ, Bento Salazar: “Recepção No dinária estabelecem como os grandes princí- Sul de Angola (Direito Consuetudiná- pios que norteiam o serviço público de tele- rio) Do Direito Português das Suces- visão e aquilo que a TCV disponibiliza aos sões”; Pontifica Universidade Católica cidadãos. É importante ter em conta que a do Rio de Janeiro, consultado a 05 de TCV viola as aspirações do legislador cabo- Março de 2005; Link: http://www.puc- verdiano, não só a nível de falta de conteúdo rio.br/sobrepuc/depto/direito/revista/on diversificado que a lei e a Constituição pre- line/rev14_bento.html. vêem, mas também quando estes dispositi- vos jurídicos associam o serviço público de ASCENSÃO, José de Oliveira: O Direito – televisão à cobertura nacional. Na nossa lei- Introdução e teoria geral (Uma pers- tura, a qualidade do serviço público de te- pectiva Luso-brasileira); Almedina, levisão que é prestado em Cabo Verde viola Coimbra, 1991. o claramente o espírito do artigo 21 da Lei da Balle, Francis: Et Si La Presse N’existait Pas Televisão. . . . éd. Jean-Claude Lattès, 1987 Por outro lado, o Governo acaba por “fin-

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SANTOS, Humberto: “Entrevista com Paulo Lima – Presidente da As- sociação dos Jornalistas (AJOC)”; Casa dos Jornalistas (Weblog so- bre os Media Cabo-verdianos); http://casadosjornalistas.blogspot.com/ 2005/02/entrevista-com-paulo-lima- presidente.html, Consultado a 9 de Maio de 2005.

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