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Cadernos de Estudos Africanos

20 | 2010 Identidades, Percursos e Clivagens nos PALOP

Gerhard Seibert (dir.)

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/cea/69 DOI: 10.4000/cea.69 ISSN: 2182-7400

Editora Centro de Estudos Internacionais

Edição impressa Data de publição: 2 dezembro 2010 ISSN: 1645-3794

Refêrencia eletrónica Gerhard Seibert (dir.), Cadernos de Estudos Africanos, 20 | 2010, « Identidades, Percursos e Clivagens nos PALOP » [Online], posto online no dia 12 outubro 2011, consultado o 21 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/cea/69 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cea.69

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Os artigos reunidos na presente edição dos Cadernos de Estudos Africanos são o resultado de um call for papers por ocasião de 35 anos de independência dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), lançado no ano passado. Devido à recusa da descolonização pela ditadura salazarista, a independência dos PALOP realizou-se quinze anos mais tarde do que na maioria das outras colónias europeias em África, na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal. Consequentemente, o contexto histórico-político da descolonização das colónias portuguesas caracteriza-se por algumas particularidades, nomeadamente lutas armadas de libertação, períodos de transição curtos, o êxodo dos colonos portugueses (, Moçambique) e, depois da independência, a instalação de regimes monopartidários de orientação soviética que marcaram os primeiros quinze anos dos PALOP. Passados 35 anos desde a independência política, os caminhos percorridos pelos Cinco mostram semelhanças e diferenças, mudanças e continuidades e, apesar dos desenvolvimentos em algumas áreas, muitas esperanças que a independência criou ficaram ainda por realizar. A diversidade da área científica dos autores e a variedade temática dos artigos que recebemos correspondem à própria heterogeneidade que os cinco PALOP representam em termos geográficos, demográficos, históricos, culturais, económicos e políticos.

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SUMÁRIO

Nota Editorial

Introdução Gerhard Seibert

Artigos

Deolinda Rodrigues, da Família Metodista à Família MPLA, o Papel da Cultura na Política Margarida Paredes

Análise do Processo de Paz no Enclave de Miguel Domingos Bembe

Discursos Jornalísticos sobre a Independêcia de Moçambique – Uma análise da cobertura do semanário savana (1998-2003) João Feijó

National Integration in Guinea-Bissau since Independence Christoph Kohl

Institucionalização dos Sistemas Partidários na África Lusófona – O caso cabo-verdiano Edalina Sanches

Cape Verdean Notions of Migrant Remittances Lisa Åkesson

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Nota Editorial

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Introdução

Gerhard Seibert

1 Os artigos reunidos nesta edição dos Cadernos de Estudos Africanos são o resultado de um call for papers por ocasião de 35 anos de independência dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), lançado no ano passado. A diversidade da área científica dos autores e a variedade temática dos artigos que recebemos correspondem à própria heterogeneidade que os cinco PALOP representam em termos geográficos, demográficos, históricos, culturais, económicos e políticos. O artigo “Deolinda Rodrigues, da família metodista à família MPLA, o papel da cultura na política”, de Margarida Paredes, aborda, na base de textos da guerrilheira Deolinda Rodrigues, a questão da influência dos conceitos do protestantismo dentro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) durante a luta de libertação. Dentro do Comité Director do MPLA, de 1962, houve uma predominância de dirigentes de religião protestante. Além disso, existiu uma aliança entre protestantes e movimentos de libertação contra o colonialismo português. Na altura, para a comunidade negra, as igrejas protestantes representavam a única oportunidade de ascensão social. Deolinda Rodrigues, prima de Agostinho Neto, única mulher no Comité Director do MPLA nos anos de 1960, era filha de um pastor protestante e estudou no Brasil e nos Estados Unidos, com bolsas das missões metodistas, antes de se juntar à luta pela libertação no então Congo Léopoldville. Ainda como estudante, para Deolinda Rodrigues a identidade religiosa passa a ser investida de outros sentidos em função da luta anticolonial. No seu diário, ela também questiona o machismo e a dominação masculina do MPLA onde lutou. Paredes defende que a guerrilheira transferiu para o marxismo-leninismo, na altura a ideologia dominante, a paixão protestante, que antes entregava à religião. Mais ainda, conceitos protestantes e a praxis marxista teriam constituído a base da cultura política centralizadora onde a elite do MPLA opera.

2 Também o segundo artigo está ligado a Angola, porém, o tema é bem diferente. Miguel Domingos Bembe discute no seu artigo “Análise do processo de paz no enclave de Cabinda” os constrangimentos e desafios do Acordo de Cabinda, assinado em 1 de Agosto de 2006 entre o governo angolano e o Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD), sobre o futuro político e económico do pequeno enclave, rico em recursos naturais. Depois da independência de Angola, a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda

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(FLEC) iniciou uma luta armada pela independência do pequeno território contra o governo angolano. Como instrumento político-jurídico para legitimar tais reivindicações independentistas serviu o Tratado de Simulambuco de 1885, assinado entre Portugal e chefes locais de Cabinda, que declarou o território protectorado português. Contudo, depois de 1975, nenhuma potência reconhecia o direito de Cabinda à independência. Finalmente, em 2004 as várias fracções da FLEC criaram o FCD, que negociou com o governo angolano o Acordo de Cabinda, que visou terminar definitivamente a luta pela independência do enclave. Em 2007 atribuiu a Cabinda um Estatuto Especial que “decorre da especificidade histórico-geográfica e cultural da província”. Bembe avalia as vantagens e riscos dos resultados do processo da paz para o futuro do enclave.

3 No seu artigo “Discursos jornalísticos sobre a independência de Moçambique – Uma análise da cobertura do seminário Savana (1998-2003)” João Feijó examina o balanço feito sobre os 25 anos da independência de Moçambique, a partir de artigos e entrevistas publicados no referido semanário do país. O semanário Savana, fundado em 1994, ano das primeiras eleições multipartidárias em Moçambique, foi o primeiro órgão dissociado do poder governamental. Devido à sua atitude crítica o Savana foi frequentemente conotado com um jornal de oposição. Para a sua análise Feijó seleccionou todas as edições do Savana publicadas nos meses de Junho e Setembro, no período de 1999 a 2003. A escolha tem a ver com as datas históricas moçambicanas assinaladas nestes dois meses, nomeadamente 25 de Junho (Dia da Independência), 7 de Setembro (Dia da Vitória) e 25 de Setembro (Dia das Forças Armadas). Foi na altura destes feriados nacionais que foram feitos muitos balanços e críticas sobre o passado recente de Moçambique. Em total foram analisadas 122 peças jornalísticas, onde se fizeram 349 referências sobre esta temática. O autor subdivide estas referências em quatro temas principais relacionados com o balanço da independência e aborda-os consecutivamente. Os respectivos temas são: independência política e moçambicanidade; despotismo e erros políticos; empobrecimento socioeconómico e desenvolvimento socioeconómico.

4 No seguinte artigo, “National integration in Guinea-Bissau”, Christoph Kohl discute a questão da integração nacional neste pequeno país multicultural. Enquanto outros autores acham que a heterogeneidade religiosa e étnica dificultaria a integração nacional na Guiné-Bissau, ele defende que, apesar da grande diversidade étnica, o grau de integração nacional neste país é elevado. A integração nacional foi promovida pela ideologia e política do PAIGC durante a luta de libertação e pelo Estado pós-colonial inicial, que advogou uma “unidade nacional na diversidade étnica”. Kohl acha que os guineenses sabem distinguir entre o Estado e a nação, uma diferença que teria sido negligenciada em outras análises da integração nacional na Guiné-Bissau. Na sua análise, sobretudo as representações da cultura crioula, nomeadamente a língua franca kriol, as associações de mulheres manjuandadi e o Carnaval, contribuíram desde a independência para a integração cultural crescente em todo o país. Como estas representações culturais crioulas não eram atribuídas a grupos étnicos específicos, mostraram-se adequadas para a expansão nacional. Segundo Kohl a invasão estrangeira durante o conflito militar de 1998 a 1999 promoveu ainda mais a integração nacional.

5 Edalina Sanches analisa a questão da “Institucionalização dos sistemas partidários na África lusófona – O caso cabo-verdiano” na perspectiva da ciência política. Segundo um método aplicado pelo politólogo Mainwaring num estudo sobre as democracias na

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América Latina, ela avalia o grau de institucionalização dos sistemas partidários nos PALOP, desde a transição democrática até às mais recentes eleições, com as três seguintes dimensões: estabilidade da competição eleitoral, enraizamento dos partidos na sociedade e legitimidade das eleições. A estabilidade da competição eleitoral foi medida através da volatilidade legislativa e da diferença de votos entre as eleições legislativas e presidenciais, o enraizamento dos partidos na sociedade através da percentagem de votos ganhos pelos partidos formados nos anos 1950-1970 e pela idade dos partidos com 10 por cento dos votos nas últimas eleições, enquanto a legitimidade das eleições foi medida com base em três indicadores: se algum partido boicotou as eleições, se os partidos vencidos aceitaram os resultados e se as eleições foram consideradas livres e justas. Na segunda parte do seu artigo Sanches tenta explicar o fenómeno do bipartidarismo em Cabo Verde mediante três dimensões explicativas: o papel ou agência dos partidos, a identificação partidária e o sistema eleitoral.

6 O último artigo, intitulado “Cape Verdean notions of migrant remittances”, de Lisa Åkesson, baseia-se na investigação antropológica da autora em Santo Antão e São Vicente. O seu texto analisa o significado e a relevância que as remessas dos emigrantes cabo-verdianos nos Estados Unidos e na Europa têm para os seus familiares não- migrantes que ficaram no arquipélago. As remessas são importantes para melhorar a vida dos não-migrantes em Cabo Verde. Ao mesmo tempo, desempenham um papel chave em manter e criar as relações entre os migrantes da diáspora cabo-verdiana e os seus familiares nas ilhas. Na literatura sobre relações transnacionais e remessas domina a ideia que os não-migrantes pressionam os emigrantes por apoio económico e que estão descontentes com o que recebem da diáspora. Åkesson considera esta visão demasiadamente simplificadora e contrapõe um quadro mais diferenciado. Ela encontrou em Cabo Verde uma grande variação relativamente às expectativas dos não- migrantes em relação às obrigações económicas dos emigrantes. No discurso quotidiano sobre remessas, guiado por noções morais das obrigações familiares, existem dois conceitos, ingrato e responsável, que representam duas posições narrativas. O primeiro refere-se ao descontentamento com o apoio recebido dos emigrantes, enquanto o segundo significa que o emigrante se preocupa com o bem-estar dos outros. O facto de um emigrante ser considerado ingrato ou responsável depende igualmente da maneira como os não-migrantes vêem a situação económica do emigrante no país de acolhimento. Além disso, a autora descreve mais cinco factores que podem afectar a percepção dos não-migrantes relativamente às práticas dos emigrantes.

AUTOR

GERHARD SEIBERT CEA-ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa [email protected]

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Artigos

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Deolinda Rodrigues, da Família Metodista à Família MPLA, o Papel da Cultura na Política

Margarida Paredes

Preâmbulo

1 Quando a poetisa angolana Ana Paula Tavares me ofereceu o Diário de um exílio sem regresso, obra editada em Luanda, escrita pela guerrilheira do MPLA Deolinda Rodrigues, estava longe de imaginar que esta narrativa autobiográfica iria ser o texto inspirador da reflexão aqui iniciada. Como Deolinda, também vivi no seio da família MPLA no fim do império colonial português. O facto de ter passado por Brazzaville e ter lutado como guerrilheira nas guerras por Luanda não significa que alguma vez tenha vivido ou pensado a partir de um lugar epistémico de não-ocidental ou oprimido porque, como portuguesa, sempre estive mergulhada em hierarquias de privilégio como a racial, classe, língua, conhecimento, naturalidade e nacionalidade. Em termos de construção identitária a minha participação no MPLA, ao qual aderi em 1973 com dezanove anos, coloca-me no centro de uma identidade construída política e culturalmente na luta do movimento nacionalista angolano e como agente desse discurso dominante. Os laços afectivos assim construídos podem obnubilar a maneira como o presente histórico2 é aferido. Se a minha história de vida em relação ao objecto de estudo não é neutra, o meu olhar neste debate também não é.

Introdução

2 Notícias frequentes em jornais angolanos atestam que a retórica da família MPLA passou da linguagem comum, do dia-a-dia, para as páginas dos jornais reconhecendo-se-lhe um valor sociológico: uma notícia do governo da Lunda Sul refere “Deputados da família

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MPLA do círculo Provincial da Lunda Sul, satisfeitos com a execução das obras sociais nos municípios de Dala, Mukonda e Saurimo”3.

3 O insight surgiu no momento em que estava a trabalhar o texto biográfico já referido, Diário de um exílio sem regresso (Rodrigues, 2003) e tentava perceber se os não-ditos, os silêncios sobre a vida sentimental da autora eram resultado de uma moral e uma ética herdadas do puritanismo protestante ou consequência da censura do editor destinada a preservar a vida privada da família à qual ambos pertencem4, quando intuí que talvez o conceito de família metodista que ela refere tivesse sido transferido para a cultura política do movimento independentista onde lutou5.

4 O papel da cultura religiosa na Luta de Libertação em Angola foi um campo de estudo marginal no âmbito do movimento independentista MPLA, conotado com a ideologia socialista e marxista até autores como Pélissier, Marcum, Messiant, Péclard e Schubert revelarem o papel das igrejas durante o colonialismo. Grande parte da elite nacionalista angolana estudou nas escolas das igrejas protestantes; no Comité Director do MPLA, saído em Dezembro de 1962 da Conferência Nacional, o historiador congolês Mabéko- Tali reconhece a “predominância de dirigentes de filiação religiosa protestante” (Mabéko-Tali, 2001: 82). Além do presidente Agostinho Neto, o pastor metodista Domingos da Silva era o 2º vice-presidente e Deolinda Rodrigues chefe dos Assuntos Sociais, o que leva a pensar que talvez os dirigentes tenham sido levados a reproduzir modelos e padrões da cultura religiosa que tiveram um papel importante na estruturação do MPLA e deixaram marcas profundas na sensibilidade e modus operandi do movimento de libertação.

5 Apesar de o MPLA como movimento anticolonial ter professado um ateísmo militante, a historiadora Christine Messiant diz:

outros factores mais sociológicos contribuem para explicar o longo companheirismo […] entre a Igreja metodista e o poder do MPLA […] e isso parece-me remeter para o facto de que vários dirigentes, quadros e militantes deste partido foram educados, criados nesta Igreja, fazem parte de famílias importantes no seu seio (pastores, professores) ou até são membros da mesma (Messiant, 2008: 5).

6 É de salientar que o companheirismo entre o MPLA e os metodistas estava de tal maneira naturalizado que não era percebido pelos combatentes oriundos de zonas urbanas sob hegemonia católica, como refere o histórico Edmundo Rocha:

A operação “Fuga dos Cem” estudantes em Portugal, para o estrangeiro em Junho de 1961, estava lançada … e escapava-nos das mãos … [ao] entregarmos de mão beijada a chave da operação […] à Organização Mundial Protestante [...]. É que nós desconhecíamos totalmente a influência decisiva que as Igrejas Protestantes, sobretudo a Metodista Americana, tiveram […] na emancipação dos jovens […] em Angola (Rocha, 2009: 180).

7 Como margem também é sentido o papel das mulheres nas lutas de libertação, dado que os sujeitos históricos destas metas narrativas são quase sempre homens, líderes históricos investidos de um discurso libertador, ficando as mulheres invisíveis como actores da história ou como sujeitos que lutaram, se interrogaram, analisaram e produziram ideias6.

8 Por isso a hipótese a investigar vai ser elaborada através da leitura dos textos de Deolinda Rodrigues iluminando o seu olhar, o seu destino e a subjectividade de uma

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mulher no meio de um passado colectivo. Deolinda estava dentro da Luta de Libertação pelas suas acções e práticas, e ao mesmo tempo estava fora quando na interioridade da escrita biográfica, numa reflexividade consigo própria, se questionava sobre o que a rodeava. Vamos também tentar perceber como através das suas narrativas epistolares e biográficas, as relações de poder e género operavam no MPLA. Todas estas intersecções podem parecer demasiado ambiciosas mas elas permeiam o social e contribuem para entender a problemática a analisar.

9 Deolinda Rodrigues de Almeida, nascida em Catete a 10 de Fevereiro de 1939, prima de Agostinho Neto, guerrilheira e dirigente do MPLA, a única mulher no Comité Director na década de sessenta, era filha de um pastor evangélico e estudou no Brasil e nos Estados Unidos na Drew University, com bolsas das missões metodistas, antes de regressar a África em 1962 e se juntar ao MPLA no Congo Léopoldville. Deolinda tinha o sonho pessoal de vir a ser médica, sonho que já representava uma fuga à norma colonial para uma mulher e negra na década de cinquenta. Na Igreja Metodista o estudo e a escrita eram encarados como um potencial transformador da vida e as mulheres eram encorajadas a estudar. Deolinda trocou o sonho pessoal pelo envolvimento no sonho colectivo do nacionalismo angolano. Pela seriedade com que se dedicou à causa nacionalista, pela consistência do seu exemplo que a levou à morte, a representação que a nação faz de Deolinda é a de uma heroína.

10 A 6 de Dezembro de 1960, oito anos antes de Martin Luther King7 ter sido assassinado, Deolinda a estudar nos Estados Unidos dava conta a um amigo da sua visão da sociedade americana e do papel da religião:

Neste buraco onde estou metida (Bloomington é uma cidade menor que Luanda) [...] o problema crucial deles aqui: [é a] discriminação racial. […] Queres saber uma coisa? Vim protestante para aqui e vou voltar animista (ou qualquer religião africana que valha o nome) para casa. Valeu a pena vir para aqui e ver o que é a “democracia” e “protestantismo”, rapaz! […] Os gajos da Missão querem que a gente lhes cubra de agradecimentos pela porcaria da bolsa que nos dão e faça propaganda das missões deles [que] não só nos colonizam, mas destrói a nossa cultura e a nossa própria religião […] Tu sabes bem a vida que se leva quando nos agarramos às missões: o preto é sempre néné (Rodrigues, 2004).

11 Deolinda constatava nestes termos duros e crus as relações de poder e desigualdade entre as culturas e os grupos ou nações que as produzem, percebia o preço que lhe era exigido pela solidariedade e as regras paternalistas das missões onde o preto era infantilizado.

12 A cultura paternalista é sempre autoritária e é possível que tenha sido reproduzida na cultura política da família MPLA, com Agostinho Neto a agir sem consultar as estruturas do Movimento segundo Iko Carreira:

Por isso algumas decisões de Neto não passaram pelo seu Partido […] Assim agia Neto, por vezes. Sem mesmo o conhecimento dos seus mais directos colaboradores. […] Era bem a força da sua vontade: queria fazer do Povo Angolano, um só Povo, uma só Nação (Carreira, 1996: 32).

13 Quando Deolinda Rodrigues adere à luta anticolonial, o movimento nacionalista estava a ser construído na dispersão, para usar a célebre expressão de Christine Messiant referida por muitos angolanistas (Messiant, 2008: 17). Os historiadores reconhecem a

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complexidade do nacionalismo angolano mas raramente questionam sistemas culturais. Quando o seu primo Agostinho Neto é eleito presidente do MPLA, o objectivo principal do novo dirigente desde o início era a Unidade, seguindo a palavra de ordem enunciada por Nkrumah África deve unir-se, tendo em vista a criação da Organização da Unidade Africana. Em nome da unidade Neto esbatia as diferenças regionais, étnicas, raciais, de género, geração e classe. Em nome da unidade impunha o chapéu da ideologia socialista, a hegemonia não religiosa e uma nova moral revolucionária. Além desta obsessão de unidade Neto segundo Iko estaria “absolutamente convencido de que nascera, crescera e estudara para ser o libertador de Angola” (Carreira, 1996: 40). O seu carisma e poder simbólico legitimados pela sua história de vida parecem emanados de uma predestinação oriunda da cultura religiosa e do determinismo político – ao que Edmundo Rocha chama “um profundo sentido de missão” que terá evoluído de uma “cultura inicial protestante para a formação e praxis marxista (Rocha, 2009: 231) e cuja tenacidade e ascetismo […] são características de uma forte personalidade que tem origens nessa dupla filiação cultural – protestantismo e marxismo” (Rocha, 2009: 263). Christine Messiant também já tinha percebido que o núcleo responsável pela unidade no MPLA fornecia uma espécie de base comum entre religiosos e comunistas que permitiria entender alguns aspectos da dita grande família MPLA (Messiant, 2008: 184).

14 Esta unidade fundacionista constrói uma “identidade cultural de conotação eminentemente política […] invocada [para] garantir a existência da nação” segundo Ruy Duarte de Carvalho (1989: 19) e destina-se a produzir um discurso homogéneo que institui uma identidade colectiva em bases contingentes, a família MPLA, e que excluiu outros conceitos de identidade nas acções políticas8.

15 Deolinda, como dirigente leal, também se vergou a esta lógica e defendeu a retórica da Unidade. Na cópia de uma carta existente no Arquivo da PIDE, dirigida ao “camarada Miguel João” em 1963, lê-se: “nenhum de nós é mais mplista do que os outros. Aceitamos a Unidade para todos nós e não na base de selecções individuais”9.

16 No entanto, na intimidade do Diário, o que escreve é bem diferente e revela a experiência da divisão silenciosa no Movimento: “Ainda não me convenci que os mulatos são indispensáveis […] É impossível uma classe ou um grupo defender os interesses doutra classe ou doutro grupo” (Rodrigues, 2003: 104,105). Deolinda no seu discurso fazia coincidir a linha da desigualdade social com a linha da desigualdade racial, e alinha a questão racial com o pan-africanismo e a Negritude. O mundo “cortado em dois” de Peles negras, máscaras brancas de Fanon 10. Neto, de acordo com o seu princípio da Unidade Nacional, incluía na Luta de Libertação os mestiços e brancos. Mas as divisões existentes eram iludidas pelos discursos da Unidade e pela necessidade de solidariedade da família MPLA em luta contra o colonialismo português. Esta solidariedade e o princípio da Unidade instituíram uma norma que todos os da família MPLA deviam seguir e que vai regular as relações sociais através de uma estrutura vertical.

Resistência e missões protestantes

17 As missões protestantes, quase sempre estrangeiras, estavam em Angola desde 1885, evitando envolverem-se na portugalização e na ideologia assimilacionista do Império Português (Alves, 2000). A Primeira Internacional Socialista tinha sido criada em 1860 no Império Britânico, e o socialismo e o protestantismo articulavam gestos de

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solidariedade com muitos dos condenados da terra, influenciados pelo que Leela Gandhi chama “políticas de amizade” (Gandhi, 2006).

18 Para Christine Messiant, em Angola “as missões protestantes eram identificadas como inimigas” (Messiant, 2000: 3) e nos limites do possível combatidas.

19 Os territórios de evangelização protestantes estavam divididos conforme as áreas etnolinguísticas, os metodistas americanos na área mbundu (MPLA), os baptistas ingleses na área bakongo (UPA/FNLA) e os congregacionalistas canadianos e americanos na área ovimbundu (UNITA). Este carácter das comunidades protestantes que articulavam gestos de solidariedade transnacional através do mundo levou Paul Hastings a identificá-las como “o internacionalismo protestante” (Hastings citado por Stanley, 2003). Protestantes e movimentos de libertação foram aliados contra o colonialismo português, o que motivou a brutal repressão colonial contra ambos.

20 O bispo americano Ralph Dodge, que viveu várias décadas nos , referenciado nas Cartas e no Diário de Deolinda e de quem Agostinho Neto foi secretário, escreveu no livro The unpopular missionary: “Probably in no other place of Africa has the church taken a firmer stand […] against abuses permitted by the current Portuguese government” (Dodge, s.d.: 110).

21 As igrejas protestantes, além de serem uma resposta às grandes inquietações do encontro e desencontro colonial, possuíam estruturas que concorriam com as do sistema colonial, tinham poder e representavam a única possibilidade de ascensão social da comunidade negra. O projecto imperial de Portugal dividia a expansão religiosa das igrejas cristãs, católica e protestante, agentes de projectos coloniais diferentes, e obrigava a estratégias diferenciadas: os textos sagrados eram lidos pelos protestantes como textos de resistência ao colonialismo português.

22 Na antropologia, Jean Comaroff ao argumentar sobre o papel de uma missão metodista na África do Sul, dá-nos algumas pistas sobre o que representou a cultura metodista para os Tshidi e que talvez possam ser apropriadas para os Mbundu:

the mission was an essential medium of, and forerunner to, colonial articulation; it was the significant agent of ideological innovation.... The coherent cultural scheme of the mission – its concepts of civilization, person, property, work and time – was made up of categories which […] provide the basis for expressions of resistance.... [Methodism] gave coherence to the black national culture emerging at this period (Comaroff, 1985).

23 Em Angola a Igreja Metodista era a mais organizada e hierarquizada dos três ramos protestantes. A ligação ao poder americano e a captação de recursos financeiros investiam-na de um poder e de um discurso mais engajado política e socialmente. Em termos de organização, segundo Henderson “uma das características únicas do metodismo era a classe”, célula base da hierarquia metodista local que juntamente com o Livro da Disciplina, que só os metodistas possuíam, (Henderson, 1990: 227) definiam práticas e normas que operavam como forças de controlo moral e social, e que laicizadas poderão ter passado para a cultura política funcionado como instrumento de diferenciação, controlo e hegemonia, ou o que E.P. Thompson chama “técnicas de domínio” (Thompson, 1998: 62). No exílio, longe da solidariedade e protecção social da família linhageira e da família metodista, novas alianças baseadas num parentesco compartilhado estavam a ser reconstituídas. Os Comités de Acção no MPLA através da crítica e da autocrítica, como as classes vigiavam a unidade e lealdade da família e

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ameaças à liderança levavam à polarização do conflito e à expulsão ou eliminação dos filhos rebeldes. No Diário Deolinda regista: “O Azevedo disse que todo o correio para o maquis é aberto e controlado. Até os bilhetinhos. Ainda bem que não posso corar nem empalidecer, senão não sei onde estaria” (Rodrigues, 2003: 108).

A ambiguidade da resistência11

24 Deolinda Rodrigues era a responsável do Comité de Acção de Matadi, e sabia que a hegemonia da família não podia ser ameaçada, cada um internamente sabia até onde podia ir nas perturbações a esta lógica social, quais eram os limites para participarem neste Amplo Movimento12 que lutava contra o colonialismo.

Estou certa hoje mais do que nunca que há certos aspectos da luta que eu não devo mencionar nesta fase. […] O melhor é mencionar as minhas dúvidas aqui no Diário para evitar embrulhadas. […] para não estragar a luta (Rodrigues, 2003: 132-133).

25 As igrejas protestantes foram acusadas de dar cobertura à rebelião em 1961, tornaram- se o bode expiatório do paranóico regime colonial e foram alvo de um violento ataque das autoridades e dos colonos. Dividida por identidades étnicas, religiosas e projectos nacionalistas, a comunidade negra protestante foi barbaramente perseguida e violentada.

26 Ainda antes do início da revolta em 1961, Deolinda já estava nos Estados Unidos, depois de ter passado por Portugal e Brasil, de onde tinha fugido à PIDE, que a incluiu no Processo dos Cinquenta. Abalada com a repressão da PIDE sobre os seus compatriotas e desencantada com Deus, na senda de Weber questiona: “E tu, Deus, que tens visto tudo isso, todo esse sofrimento, podes mesmo dormir? Ficas mesmo tranquilo? Pois, estou pasmada contigo, Deus” (Rodrigues, 2003). Numa carta de Outubro de 1961 escrevia, após o genocídio perpetrado pelo poder colonial:

O coro da Igreja anda quase de luto, os cultos são feitos à maneira das catacumbas, porque os protestantes são todos perseguidos. A nossa gente começa agora a enterrar as Bíblias e os hinários para evitar repressões da pide (Rodrigues, 2004: 128).

27 A 3 de Fevereiro de 1959, ainda a caminho do exílio no Brasil, para estudar Sociologia no Instituto Metodista Chácara Flora em São Paulo, numa retórica religiosa escrevia: “Querida D.Dina que o senhor continue a protegê-la e a dirigi-la no imenso trabalho que tem feito para glória dele. E que toda a nossa Família do Instituto Metodista esteja óptima” (sublinhado nosso). No entanto, um ano antes revelava ao Diário algumas dúvidas e hesitações em relação ao lugar dos cristãos e do cristianismo em África.

A Missão serve-nos de lugar do Movimento Clandestino […] Até nas reuniões de oração, nossos olhos falam política […] Estes missionários são uns bons cachorros […] É fácil ser cristão quando se vive bem como eles: não passam fome, não andam a pé, não são humilhados. […] Por enquanto o cristianismo não é para nós, mas se o vir à igreja no domingo ajuda a contactar outros e fazer o trabalho nacionalista, então podemos vir à Igreja (Rodrigues, 2003).

28 Dipesh Chakrabarty (2005) ao questionar estes processos diz que é “falacioso pensar […] que a identidade e os processos de identificação coexistem sem se desafiarem”, e para

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Deolinda a identidade religiosa passa a ser investida de novos sentidos em função da luta nacionalista. Esta apropriação13 estratégica do trabalho na missão e do discurso religioso deve-se às condições nas quais a luta anticolonial era realizada. A repressão da polícia política PIDE obrigava a que o trabalho clandestino se fizesse na base de lealdades familiares, religiosas e étnicas, utilizando os canais religiosos. A retórica de negociação de Deolinda entre o religioso e o secular já começava a traduzir uma posição anticlerical e evidentemente emancipadora.

29 Após a expulsão do Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados (CVAAR) de Léopoldville, no qual era responsável da área social, Deolinda vai para Brazzaville, onde nunca mais se questiona sobre a religião e as missões. Em 1965, dentro de uma lógica de cada militante controlar o que faz, o que diz e o que pensa, escreve: “Tenho de acabar com a correspondência para os Estados Unidos. […] Por receber «A Voz Missionária» sou capaz de estar já ao serviço do Imperialismo” (Rodrigues, 2003: 91). Os temas sobre os quais se vai debruçar no Diário são articulados em função da sua história pessoal, um discurso muitas vezes racializado, classista, engendrado e estruturado na história colectiva.

Há aqueles que fazem facilmente a “revolução” porque nunca lhes faltam os bifes, o “Le Monde” e os [maços de tabaco] AC. […] Vou ficar e continuar a luta por causa do Povo que sofre lá dentro. Não é por esta elite que faz a revolução de barriga cheia e no salão (Rodrigues, 2003: 59).

30 Tendo começado em 1956 a militar no MLA, Movimento de Libertação de Angola, a traduzir documentos para inglês e mais tarde como responsável da Área Social no Comité Director, já no MPLA, áreas tradicionalmente femininas nas guerras, Deolinda em 1964 questionava assim o próprio Movimento: “Disseram-me que não vou para Ghana porque sou mulher […] Esta discriminação só por causa do meu sexo, revolta-me. Se me apanho fora deste MPLA erudito e masculino, não volto em breve” (Rodrigues, 2003: 57).

31 Este MPLA do exterior, erudito e masculino como ela refere, sob a capa do paternalismo era androcêntrico e patriarcal. Deolinda Rodrigues não só pertencia à elite como era membro da Direcção, onde parece invisível.

Comité director do MPLA: da esquerda para a direita, Aníbal de Melo, Mário Pinto de ANDRADE, Manuel Lima, Ver. Domingos DA Silva, Agostinho Neto, Desidério da Costa, Deolinda Rodrigues, Lúcio Lara e Iko Carreira

32 Sabemos que está na reunião porque a legenda da fotografia a assinala, não é que ela não estivesse lá, mas era percebida como inexistente (Leite, 1996). A invisibilidade é um meio poderoso de inferiorização e discriminação das mulheres, e Deolinda lamentava- se no Diário em 1964 de não ser aceite nos seus próprios termos:

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Será que esta vida da Revolução vai obrigar-me a procurar marido? É necessário isso? […] Ninguém pode obrigar-me a casar. […] querem [me] fazer crer que ficar solteira é penoso, vergonhoso ou o diabo (Rodrigues, 2003: 52 e 65)14.

33 No maquis ou nas frentes do MPLA situadas nos países limítrofes, as combatentes solteiras eram encorajadas a casar. Acompanhar e apoiar o marido na revolução parecia ser o destino da maior parte das mulheres. Os casamentos tinham que ser sancionados pelo Movimento e as relações sexuais eram proibidas fora do casamento de acordo com a moral cristã. Os protestantes eram ainda mais puritanos que os católicos e viam a sexualidade da mulher como obscena e repugnante, sendo o puritanismo sobretudo dirigido às mulheres.

34 Na reflexão socialista o problema da emancipação das mulheres era visto como um dos seus momentos constitutivos decorrente da construção de uma sociedade nova, mas dentro da família colocava as mulheres num lugar de subordinação ao homem. Todos estes modelos puritanos e monogâmicos chocavam com a educação e cultura da família linhageira africana, o que criava imensas tensões com as combatentes e os combatentes sujeitos a morais e comportamentos antagónicos. A pressão sobre as combatentes em relação ao estereótipo da maternidade também era sentida por Deolinda: “O Benedito disse que devo casar-me já para inocular nos filhos o que sei” (Rodrigues, 2003: 75).

35 O Diário de Deolinda revela a angústia que o seu próprio comportamento, forte, teimoso e seguro de mulher intelectual lhe acarreta num movimento que fomentava a domesticidade para as mulheres:

Uma das companheiras tem receio de mim e evita-me por eu ser mandona, ter a mania de dar ordens e não saber cozinhar. [...] Mamã ensina-me a não viver em conflito […] e sobretudo a não ser prejudicial à revolução (Rodrigues, 2003: 70). Estou com um carácter irado (Ibid.: 74) […]. Por dá cá aquela palha, começo logo a tremer ou chorar de raiva e gritar (Ibid.: 93). Preciso de calma, OPTIMISMO, ATITUDES CORRECTAS, DELICADEZA E PACIÊNCIA” (Ibid.: 95).

36 A excitação emocional dirigida à procura da perfeição do indivíduo é segundo Max Weber uma das características da crítica metodista (Weber, 1990: 114) e o discurso atormentado de Deolinda sobre os seus defeitos e exigência de perfeição decorrem desta ética protestante e numa lógica feminina.

37 Em Junho de 1965 Deolinda transfere para o marxismo-leninismo a paixão protestante, que antes entregava à religião:

O marxismo-leninismo é bastante rico em caudal ideológico e em experiência para encontrar formas adequadas de vencer as dificuldades, os obstáculos. […] Chouvinistas não, Marxistas-leninistas. […] Marx e Engels lutaram incansavelmente por essa unidade durante toda a sua vida. E foi isso que nós decidimos fazer (Rodrigues, 2003: 113).

38 Estes excertos revelam bem o sofrimento e a ambivalência do lugar que uma mulher como Deolinda ocupava na Luta de Libertação.

39 Depois de Brazzaville vai para a fronteira com Cabinda, onde a pressão das Forças Armadas Portuguesas e da FNLA sobre o MPLA aumentava. Colabora activamente no Centro de Instrução Revolucionária (CIR) em Dolisie integrada na OMA, Organização da

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Mulher Angolana, numa altura em que o engajamento militar das mulheres começa a impor-se segundo sua iniciativa e inicia, em Outubro de 1966, o treinamento militar para integrar o Esquadrão Kamy que a vai levar à morte. “Ontem à noite começámos a aprender a manejar PM 44 uma delícia!”. Uma delícia para quem tinha visto o treino militar ser destinado apenas aos homens. Em 1967 escreve: “a cruzar o rio Luvu, surgiram dois bombardeiros tugas. […] seguiu-se a travessia em corda e pisei Angola depois de quase oito anos de ausência: beijei o solo”.

40 A operação da coluna Kamy falhou e Deolinda e as outras guerrilheiras “ficaram sós com a morte”, diria o escritor angolano Luandino Vieira (Vieira, 2006).

Conclusão

41 O que a família metodista e a família socialista propiciaram foram novos espaços sociais e novas identidades individuais e colectivas que não estavam disponíveis para as elites africanas e que permitiram responder à violência e tensões entre processos locais e globais (Appadurai, 1996) do Império e de um mundo polarizado.

42 Após a independência, quando o partido-nação proclama que o “MPLA é o Povo, o Povo é o MPLA”, tenta-se impor a cultura política da família MPLA a todos os angolanos. Quem não é MPLA não é angolano. Quem estivesse contra o MPLA estava contra Angola. Mais do que a ideologia marxista do partido único, o “que organizava experiências e subjetividades” (Sarlo, 2007) era a cultura da lealdade política da família MPLA, estabelecida segundo códigos que subjectivamente todos conheciam e cumpriam de acordo com a lógica vigilante que Giddens define como “dialéctica do controle” e que Neto parece ter ido buscar às gramáticas metodista e socialista. Esta identificação não parece portanto que se deva a alinhamentos ideológicos religiosos ou marxistas, mas ela opera no quadro de sistemas culturais herdados desses alinhamentos destinados a reproduzir socialmente valores ou normas dominantes. A cultura religiosa da família metodista e a praxis marxista da família socialista terão constituído a base da cultura centralizadora onde a família MPLA, a elite no poder, opera e à qual a escritora angolana Dia Kassembe com ironia chama “la grande famille intoxiquée” (Kassembe, 1997: 106). O que a família MPLA define é uma comunidade política supostamente unida e operacional com fins estratégicos, motivada para libertar a nação do colonialismo e para impor no período pós-independência a sua visão do mundo, um discurso dominante e o controlo das estruturas do poder.

43 A prioridade da agenda nacionalista era a independência. Nesta agenda as mulheres tinham que lutar duas vezes, contra o colonialismo e pela igualdade no movimento independentista. Na grande família MPLA a hegemonia masculina tentava confinar, não sem resistência, as mulheres a um lugar de companheiras dos homens, secundarizando-as socialmente. As mulheres movimentavam-se portanto em territórios distintos e contraditórios, “figures of ambivalence” para Marissa Moorman (2007). No Diário as palavras feminismo e feminista estão ausentes, mas ao subverter [pela prática] hierarquias de género e ao questionar essas hierarquias, expressa uma visão do mundo feminista. Infelizmente a hiper-representação de heroína que a nação faz de Deolinda Rodrigues contribui para obscurecer a mulher que através da escrita criativa e na intimidade do Diário resistiu à evangelização dos missionários protestantes (Peterson, 1969: 48), a mulher que nos anos sessenta do século XX ousou exprimir, no silêncio da escrita biográfica, o machismo e a dominação masculina do movimento nacionalista

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onde lutou. A publicação do diário e das cartas legitima uma experiência da luta de libertação no feminino, o outro lado da história do nacionalismo silenciado pelo discurso dominante.

44 A actual chegada ao poder das mulheres15 e os lugares que ocupam nas forças armadas angolanas parece confirmar que, após a participação na Luta de Libertação e na Guerra Civil, um espaço político se abriu para algumas mulheres, sobretudo para aquelas que são agentes das práticas e discursos no seio das elites políticas dominantes. Já Catherine V. Scott em “Men in our country behave like chiefs”, defende que as lutas de libertação “provide the challenging context in which the changes in women’s status have occurred” (1994).

45 É interessante notar, neste processo, os fenómenos de interculturalidade, as ambiguidades e clivagens políticas e ideológicas que categorias como género, classe, raça e religião introduzem na resistência deste grupo. Grupo que opera de uma maneira transformadora com o poder, usando a cultura da gloriosa família16 MPLA como uma grande metáfora nacional.

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NOTAS

1. Este artigo não teria sido possível sem o diálogo com o trabalho do historiador Carlos Alberto Alves, O protestantismo em Angola, sem o apoio da sua biblioteca particular e sem os seus comentários, os quais muito agradeço. Também agradeço ao antropólogo Jorge Freitas Branco, cuja cadeira “Laicidade e dessecularização: sincronias etnográficas” do doutoramento em Antropologia do ISCTE-IUL contribuiu para esta reflexão. Agradeço igualmente à FCT, Fundação da Ciência e Tecnologia, instituição da qual sou bolseira. 2. Como definiu Marx.

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3. http://www.govlundasul.com/site/index.php/sinais/fotos/index.php? load=newsdetaile&id_not=167&id_t=31&pagina=7 (12.07.2009 às 12h05). 4. Roberto de Almeida e Deolinda Rodrigues são irmãos. Após a apresentação deste artigo no IV Encontro Internacional de História de Angola em Luanda (Set.-Out. 2010) a autora recebeu um email de Roberto de Almeida datado do dia 11 de Outubro de 2010 onde afirma: “Quanto à observação «insinuada» de ter havido censura da minha parte no que se refere à vida sentimental de Deolinda, reitero a minha afirmação de que tal não aconteceu”. 5. O foco deste trabalho é uma contribuição à reflexão sobre a família MPLA e não tem a veleidade de esgotar o campo dada a complexidade da categoria e dos conceitos de família. 6. Dar visibilidade histórica às mulheres na construção da nação é uma estratégia feminista destinada a esbater as relações de poder entre homens e mulheres. Sobre as mulheres na construção dos nacionalismos em África ver os estudos de S. Geiger e T. Lyons em Tanzania, E. Schmidt em Guinea, S. Urdang em Mozambique e T. Cleaver em Namibia. Em Angola não há nenhuma monografia ou dissertação sobre o papel das mulheres combatentes na construção dos diferentes nacionalismos. 7. Já depois de esta comunicação ter sido apresentada no congresso Gender, empire and postcolony: Intersections in luso-afro-brazilian studies, organizado por Anna Klobucka e Hilary Owen em Outubro de 2009 na University of Massachusetts, Dartmouth, surgiu a notícia inédita no Jornal de Angola (30-07-2010) que Deolinda e Martin Luther King se tinham correspondido (http:// jornaldeangola.sapo.ao/20/0/carta_de_martin_luther_king_a_uma_angolana_na_revolucao). 8. Ou como Judith Butler questiona: “Não será precisamente a insistência prematura no objectivo de unidade a causa da fragmentação cada vez maior e mais acirrada das fileiras? […] Não implica a «unidade» uma norma excludente de solidariedade no âmbito da identidade, excluindo a possibilidade de outras solidariedades?” (Butler, 2003: 36, 37). E esses domínios de exclusão [não] revelam as consequências coercivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é elaborada com propósitos emancipatórios?, interroga Butler (2003: 22). 9. IAN/TT, Arquivo PIDE/DGS, processo n.º 16 110, Delegação de Angola, folha 28. 10. Fanon considera a “alienação racial” um “duplo processo”. Primeiro a realidade económica e social coloca o negro num lugar de inferiorização, depois há a “interiorização dessa inferioridade”, inferioridade socialmente construída (Fanon, 2008 [1952]). Numa conversa com Luís de Almeida em Luanda no dia 10 de Setembro de 2010 este antigo camarada de luta de Deolinda referiu que ambos leram Fanon e discutiam as leituras que faziam. 11. Para aprofundar o debate sobre resistência, ver Sherry Ortner (1995). 12. Título de um livro de Lúcio Lara. 13. Para aprofundar estes processos de apropriação e transformação entre religião e política, ver Landau (1995). 14. McClintock em Imperial leather assinala que “A woman’s political relation to the nation was thus submerged as a social relation to a man through marriage. For women, citizenship in the nation was mediated by the marriage relation within the family” (McClintock, 1995: 358). 15. Percentagem de mulheres no poder em 2009: mulheres no governo central, dez entre trinta, um terço portanto. Entre duzentos e vinte deputados há oitenta e quatro mulheres. 16. A gloriosa família, título de um romance de Pepetela.

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RESUMOS

Este trabalho, fruto do diálogo com os textos da guerrilheira Deolinda Rodrigues, pretende questionar a possibilidade de um sistema cultural religioso identificado como protestantismo, berço das elites nacionalistas angolanas, ter dado origem no caso de um dos seus ramos, o da família metodista, a outro sistema de referência que funciona no quadro de um movimento nacionalista que alguns denominam família MPLA. O objecto desta reflexão é iluminar algumas das pistas para a possível origem desta cultura de família e pensar que identidade é esta, como se construiu, que tipo de práticas sociais e culturais a produziram, o que representa a sua expressão política e que significados daí se podem extrair1.

This work, a product of dialogue with texts written by the guerrilla Deolinda Rodrigues, interrogates how a religio-cultural system identified as Protestantism, home to Angolan nationalist elites, in one of its ramifications – that known as the Methodist family – produced another system of reference that functions within the nationalist movement that some refer to as the MPLA-family. The object of this reflection is to illuminate some avenues of the possible origins of this culture of family and to consider what kind of identity this is, how it is made, what kinds of social practices and cultures produced it, what represents its political expression and what meanings can be extracted from that.

ÍNDICE

Keywords: Angola, protestantism, liberation struggle, political culture and gender Palavras-chave: Angola, Protestantismo, Luta de libertação, Cultura política e género

AUTOR

MARGARIDA PAREDES ISCTE - IUL, Lisboa, UFSC, Florianópolis [email protected]

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Análise do Processo de Paz no Enclave de Cabinda

Miguel Domingos Bembe

Introdução

1 As primeiras Constituições dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)1 tiveram em comum, entre outros aspectos, “a concepção monista do poder e a institucionalização do partido único” (Miranda, 2010: 2) – correspondente ao movimento de libertação do país, ou, relativamente a Angola, ao movimento vencedor na capital, Luanda. Passados trinta e cinco anos desde a independência política, os caminhos percorridos pelos cinco países da África lusófona “mostram semelhanças e diferenças, mudanças e continuidades e, apesar dos desenvolvimentos em algumas áreas, muitas promessas ficaram por cumprir gerando esperanças frustradas de uma vida melhor para todos”2.

2 Com efeito, um dos princípios estruturantes da Constituição da República de Angola (CRA) promulgada em Fevereiro de 2010, é provavelmente a reafirmação, consagração e reconhecimento do carácter unitário do Estado, da democracia pluralista e representativa, das instituições de poder tradicional local (constituídas segundo o direito consuetudinário) e da organização autónoma do poder autárquico local (democraticamente legitimado). Ao impedir qualquer possibilidade futura de viabilização de estruturas de autogoverno provincial e/ou eventualmente regional, parece constituir uma omissão jurídico-política sobre um dos assuntos paradigmáticos no conjunto angolano: a questão do Enclave de riba-Zaire/Cabinda.

3 Este ensaio visa, por isso, analisar os desafios multidimensionais do processo de paz resultante do Acordo de Cabinda3, negociado no Congo-Brazzaville em Julho de 2006, e subscrito em Agosto do mesmo ano no sudoeste de Angola (Província do Namibe) entre o governo angolano e o Fórum Cabindês para o Diálogo, na tentativa de resolução da disputa territorial formalmente iniciada em 8 de Novembro de 1975.

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4 Elaborado a partir do estudo e análise de um conjunto de fontes abertas e de informadores qualificados, o presente artigo, de natureza qualitativa, procura nesta introdução efectuar um enquadramento geral do tema escolhido, as suas limitações, e argumentar sobre o interesse que está na base da sua elaboração. Segue com uma breve resenha histórica e política sobre a República de Angola e o Enclave de Cabinda, realiza uma breve retrospectiva do conflito em Cabinda, apresenta uma abordagem crítica do Acordo de Paz de Cabinda, identifica alguns constrangimentos e desafios previsíveis ao processo de paz de Cabinda, e termina com uma nota conclusiva.

Breve resenha histórica e política

Sobre a República de Angola

5 A historiografia recente do período colonial reconhece que a actual divisão étnico- linguística africana em geral, e angolana em particular, se baseia em identidades etnoculturais socialmente construídas, como resultado das interacções entre africanos – descendentes de povos não bantu (Hotentote e Khoisan), pré-bantu (Vâtwa), bantu – e entre descendentes de europeus ou mestiços europeus e africanos (Bembe, 2009: 45).

6 Os países africanos, como a República de Angola, têm assim o desafio de construir uma nação num quadro de diversas culturas étnicas ou áreas socioculturais. Em termos políticos e jurídicos, “Angola é realmente complexa” (Guedes et al., 2007: 18-19). O autor recorre a três vocábulos – plurality, dissemination and volatility – para descrever uma das realidades sociais de Angola, tendo concluído e bem, que os povos que constituem a nação angolana apresentam não só diferenças etnolinguísticas, mas também diversos níveis de integração social, política e económica. Com efeito, a actual complexa e heterogénea região que forma o Estado angolano fazia parte do antigo vastíssimo e poderoso Reino do Kongo.

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Figura 1: Mapa da República de Angola

Britannica Online Encyclopedia

7 A sua situação geopolítica faz de Angola um país da costa ocidental da África Austral, totalizando 1.246.700 km² de superfície. Com cerca de 18.498.000 habitantes segundo estimativas de 20094, esta ex-província e colónia de Portugal compreende grandes espaços etno-sociológicos ou socioculturais, nomeadamente:

os Khoisan, ou Hotontote-Bochimane, onde se inscrevem os povos Kede, Nkung, Bochimanes e Kazama, os Vâtwa ou pré-bantu, com os povos Cuissis e Cuepes, e o Bantu com os povos Ovibundu, Bakongo, Ambundu Tucôkwe, Ngangela, Ovambo, Nyaneka, Humbe, Helelo, Axindonga e Luba (Feijó, 2001: 101).

8 Estes espaços socioculturais apresentam, naturalmente, diferentes níveis linguísticos, de densidade populacional, de desenvolvimento e integração política, económica, cultural e social.

Figura 2: Distribuição geoétnica em Angola(1)

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U.S. Central Intelligence Agency

Figura 3: Distribuição geoétnica em Angola(2)

Arte.tv. França

9 Para fins político-administrativos, a estrutura territorial deste fascinante Estado africano, membro incontornável da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), tende quase a preservar o hipotético legado colonial, com algumas tímidas, mas importantíssimas reformas em curso. Angola organiza-se, assim, em dezoito províncias, estas em 161 municípios e 557 comunas5, podendo ainda estruturar-se em entes territoriais equivalentes (artigo 5º n.º 3 da CRA).

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Figura 4: Mapeamento das Províncias de Angola

(adaptado pelo autor)

10 As formas organizativas do poder local (em vias de efectivação) compreendem as autarquias locais, as instituições do poder tradicional e outras modalidades específicas de participação democrática dos cidadãos. As autarquias organizam-se em municípios. Tendo em conta “as especificidades culturais, históricas e o grau de desenvolvimento das regiões”, podem ser constituídas “autarquias de nível supramunicipal”, podendo-se ainda estabelecer outros escalões “infra-municipais da organização territorial da administração local autónoma” (artigo 218º da CRA).

11 Na essência, a instituição do poder local em Angola visa romper com o centralismo de Estado e firmar um compromisso fundador daquilo que de mais democrático existe: o poder deve estar onde está o povo. Porque só existe para servir a comunidade, o poder deve ter uma relação o mais próxima possível com os seus destinatários. Só um poder de proximidade será capaz de conhecer as aspirações e os anseios dos cidadãos. Reportando-se ao caso português, é possível afirmar, sem a menor hesitação, que o poder local autónomo (regional e autárquico) é “uma das mais genuínas concretizações da ideia de democracia”6. Gradualismo e concertação parecem ser a chave para uma reforma equilibrada dos poderes.

12 Em Angola, a questão do modelo de Estado e de governo a adoptar motivou fortes discussões, fundamentalmente partidárias e públicas, no quadro do processo de elaboração da nova Constituição da República, promulgada em 5 de Fevereiro de 2010, após ter sido vista e aprovada pela Assembleia Constituinte em 21 de Janeiro e, na sequência do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 111/2010, de 30 de Janeiro, em 3 de Fevereiro. Trata-se dos princípios da separação dos poderes na sua dupla vertente: vertical e horizontal7. Evidentemente, a Lei Fundamental revogada em Fevereiro de 2010 representa o culminar do processo de transição constitucional iniciado em 1991,

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com a aprovação, pela Assembleia do Povo, da Lei n.º 12/91, de 6 de Maio, que consagrou “a democracia multipartidária, as garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e o sistema económico de mercado”8. Estas mudanças foram aprofundadas pela Lei de Revisão Constitucional n.º 23/92, de 16 de Setembro. É o início do período democrático no país.

13 Estiveram na base destas ocorrências: a alteração do sistema centralizado da economia em Angola (1985), a derrocada do sistema socialista (1987), os Acordos de Nova Iorque de 22 de Dezembro de 1988, e os Acordos de Bicesse de 31 de Maio de 1991 (Feijó, 2001: 141). Com efeito, depois de ter conquistado a sua independência política em 11 de Novembro de 1975, as grandes conquistas seguintes do povo angolano foram “a democracia multipartidária no início dos anos 90, e a paz definitiva, em 4 de Abril de 2002”9, concluída, em 1 de Agosto de 2006, com o Memorando de Entendimento sobre Cabinda10 em vias do seu primeiro “reajustamento político”11.

14 Os angolanos exerceram, pela primeira vez, o seu dever cívico de votar nas eleições legislativas multipartidárias de 29 e 30 de Setembro de 1992. Após as segundas eleições gerais de 5 e 6 de Setembro de 2008 (que deram vitória esmagadora ao MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola, num total de 81,64%, reservando-lhe 191 deputados dos 220 assentos da Assembleia Nacional)12, pretende-se que passem a realizar-se com normalidade no país. As próximas eleições legislativas estão agendadas para 2012, ano em que finda o mandato da actual legislatura. Seguirá, provavelmente, o ensaio das eleições locais autárquicas em Angola.

Sobre o Enclave de Cabinda

15 Da circunscrição geofísica infere-se que Cabinda, décima-oitava província angolana, é um minúsculo enclave descontínuo do país, localizado na costa ocidental africana, com cerca de 7.680 km2, tendo como fronteiras terrestres, a Norte, a República do Congo, numa extensão de 196 km, a Nordeste, Leste e Sul, a República do Congo Democrático, com 153 e 100 km, e a Oeste, o Oceano Atlântico com 103 km (Moreira, 2004: 34). A costa de Cabinda apresenta condições privilegiadas para a navegação, designadamente a Baía de Cabinda, formada por uma linha costeira de cerca de 25 km, aproximadamente 70 km a norte do rio Zaire, a “Baía das Almadias ou Golfo das Almadias”, como é designada nos mapas de Diogo Homem e de Philippo Pigafetta (Martin, 1977: 47-59; Martin, 1985: 45).

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Figura 5: Condição geopolítica de Cabinda

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16 A sua população ronda os 500 mil habitantes, distribuídos em quatro municípios, estes constituídos em doze comunas: Cabinda (Sede, e Tando-Zinze), (Sede, e Dinge), Buco-Zau (Sede, e ) e Belize (Sede, Luali e Miconje)13. Os seus habitantes pertencem ao grupo etnolinguístico Kikongo e à etnia Bakongo da grande família Banta (Martins, 1968: 13-14; 1972: 9-14). Os Cabindas14 são compostos maioritariamente por clãs, subdivididos em duas tribos. Uma tribo constituída pelo clã Basundi e outra composta por seis clãs (Bauoio, Bakongo, Balinge, Baluango/Baiombe, Bavili e Bakoki). Além das suas principais riquezas, o petróleo e a madeira da densa floresta equatorial do Maiombe, o enclave angolano possui outros recursos naturais como manganês, fosfato, ferro, urânio, cobre, ouro, diamantes e potássio15. No domínio agrícola as suas terras são férteis para a cultura de café, cacau, amendoim, banana, mandioca, batata, feijão e milho.

17 No âmbito da organização e estruturação do poder tradicional local, alguns dados oficiais apontam que a província de Cabinda possui:

36 Regedorias, sendo 36 Regedores, igual número de Secretários de Regedores; 2.039 Autoridades Tradicionais; 96 Sobas; 51 Coordenadores de Bairros e 165 Adjuntos de Coordenadores de Bairros; 371 Chefes de Aldeias e 289 Secretários de Chefes de Aldeias; 110 Chefes de Zonas; 97 Anciãos; 139 Conselheiros; 298 Advogados Tradicionais, e 350 Apeladores16.

18 Na véspera da Conferência de Berlim e da partilha de África, as autoridades locais (dos três pequenos reinos de Cabinda: Kakongo, Loango e Ngoio) concluíram com o comandante da corveta Rainha de Portugal um acordo de protectorado – o “Tratado de Simulambuco de 1 de Fevereiro de 1885” (Madureira, 2001: 33), como testemunho de

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que Cabinda já era “zona de influência” de Portugal (Ribeiro, 2004: 101). Em Cabinda, o acordo é também interpretado como um instrumento “político-jurídico com relevância internacional” (Luemba, 2008: 67-71), que certifica a “autonomia do Enclave” face aos restantes territórios, tanto os do antigo Reino do Kongo, como os então colonizados por Portugal. Constitui, assim, fundamento “inequívoco para a sua autodeterminação e independência”, no quadro do segundo ciclo do processo de autodeterminação e emancipação política e jurídica, estabelecido pelos processos de descolonização que ocorreram sobretudo de 1945 a 1975 liderados pelas Nações Unidas (ONU).

Breve retrospectiva do conflito em Cabinda

19 Com o colapso do Império Português em 1974, foi celebrado o defunto Acordo da Penina, na estância algarvia de Alvor, em 15 de Janeiro de 1975, entre Portugal e os considerados três principais movimentos de libertação de Angola (FNLA, MPLA e UNITA), que determinava as linhas gerais da independência da então colónia portuguesa. As partes acordaram também a anexação de Cabinda como parte integrante do futuro Estado africano17, sem o prévio consentimento dos autóctones do Enclave. Em Novembro de 1975, eclodiram cenários de teatro estratégicos que atingiram o patamar da guerrilha, opondo Angola e o povo de Cabinda (organizado no seio da FLEC - Frente de Libertação do Enclave de Cabinda). A maioria dos cabindenses refugiou-se sobretudo no Congo-Brazzaville, Congo-Kinshasa e Gabão-Libreville. O aumento da intensidade do conflito armado provocou a “degradação da situação dos direitos humanos”18 e das “infra-estruturas económicas e sociais”, tendo originado “a pobreza generalizada e constante clima de repressão e de terror”19.

20 Depois de mais de trinta anos de cross fire, os principais problemas com que se deparou diziam respeito à verdadeira incapacidade de aproximação das partes (governo angolano e FLEC), à ausência de consensos em relação ao modelo que orientaria a resolução do problema e à radicalização das posições. A FLEC recusa qualquer saída que não seja a autodeterminação e a independência do território, que considera protectorado português à luz do famoso Tratado de Simulambuco. A sociedade civil local propõe a realização do referendo exclusivo aos Cabindas, para resolver em definitivo o diferendo existente quanto à restituição da independência ao Enclave20.

21 O Executivo angolano afirma no seu discurso oficial que a questão de Cabinda é um “assunto estritamente interno” de Angola. Qualquer modalidade de resposta deverá preservar “a soberania nacional e a integridade territorial do país”, ao mesmo tempo que não tolerará “ingerências externas” tendentes à desestabilizar Angola. Para Luanda, as reivindicações “aparentemente” políticas, em Cabinda, “resultam fundamentalmente de uma falta de atenção à resolução de muitos problemas de natureza económica e social”. A paz permitirá libertar mais recursos para que as autoridades dediquem maior atenção a esta província, “dentro da interdependência com o resto do país”. Acresce que o Presidente de Angola considerou, em 26 de Fevereiro de 2002, que Cabinda seria também “uma questão a tratar no âmbito da reforma constitucional”. Assim, será possível “saber o que é que os angolanos todos querem, qual é a sua opinião sobre Cabinda”21. Trata-se de uma consulta popular dirigida a todos os angolanos22!

22 Seis meses depois, a formação política de José Eduardo dos Santos (MPLA, partido no poder desde 1975) admitiu discutir “todas as possibilidades” de autonomia para

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Cabinda, não excluindo o “recurso à força” militar23. A UNITA de Jonas Savimbi (1934-2002), enquanto movimento rebelde angolano (1975-2002), mostrava-se favorável à autonomia política para o Enclave. No final da guerra civil (que devastou Angola durante vinte e sete anos), este maior partido da fragilizada oposição angolana tem reiteradamente proposto, de forma teórica, uma solução político-administrativa idêntica à adoptada nas ilhas portuguesas da Madeira e dos Açores24. Na realidade, até Maio de 2006, o esforço para a paz na região resumiu-se a meras declarações de intenção.

23 Em Portugal, nenhum governo se aventura a interferir no assunto interno de Angola 25. Algumas personalidades políticas e activistas cívicos perspectivam que a resposta para a contenda político-identitária ainda persistente no antigo protectorado, seria o acolhimento do Simulambuco 26 pelo ordenamento jurídico angolano, implicando o respeito e aplicação do espírito do Tratado luso-cabinda de 1885.

24 A posição da Organização das Nações Unidas sobre o Dossier Cabinda é de um verdadeiro silêncio ensurdecedor. Raramente a ONU se reserva o direito de influenciar ou conduzir o processo de expressão da vontade de um povo pertencente a uma entidade que reconhece. Só é excepcionalmente permissível “em casos de genocídios, crimes contra a humanidade, Estados falhados…” (Lara, 2002: 52-53). De forma reiterada, as conjunturas nunca favoreceram a viabilidade da tão famigerada tese independentista de Cabinda, jogando apenas (a tese) um papel meramente estimulador. Destarte, o paradigma de modus vivendi, no âmbito nacional angolano, vai ganhando cada vez mais espaço, com a manifestação mais profunda no acordo de 2006, “bem como o grau de realismo que a maioria dos movimentos de resistência de Cabinda a pouco e pouco vai fazendo seu” (Bembe, 2010a: 10).

25 Após os cenários acima expostos, norteados por avanços e recuos, nos finais de 2005 abriu-se uma ronda de negociações directas em Brazzaville27 entre o governo de Angola e o Fórum Cabindês para o Diálogo (organização que alega agrupar todas as forças de resistência de Cabinda)28. A logística constitucional da unidade não consentindo o princípio de autogoverno provincial e/ou regional, implicou que Luanda atribuisse ao ex-protectorado português um controverso Estatuto Especial político-administrativo29 de âmbito provincial, que integra o Memorando de Entendimento do Namibe de 1 de Agosto de 2006. Não existe, contudo, qualquer evidência que permita provar alguma mudança política essencial ao sistema político e na estrutura do poder vigente, facto que não isenta a abordagem adoptada de potenciais conflitos a curto/médio e longo prazo.

26 O certo, porém, é que o contestado Memorando de Entendimento sobre Cabinda abarca vários aspectos muito positivos sobre a causa binda: o reconhecimento formal do conflito pela República de Angola, as suas vertentes histórico-geográfica, sociopolítica e cultural, bem como os fragmentados e fissíparos movimentos de resistência cabindense que ao longo da história viram recusada a sua autenticidade inatingível como movimentos de libertação nacional.

27 Como deixamos atrás dito, a convivência menos saudável entre Cabinda e Luanda existe e persiste devido às deficiências político-conceptuais e processuais do modelo gizado pela Resolução n.o 27-B/06 30 da Assembleia Nacional, podendo suscitar vários reajustamentos a curto/médio e longo prazo. E não admira, pois, que a nova Constituição da República olvide o Estatuto Especial de Cabinda (EEC) e prefira furtar-se a este importante assunto político do país. Trata-se de uma “omissão-lacuna jurídica,

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decerto politicamente intencional” relativamente ao histórico problema “interno” de Angola (Guedes et al., 2003: 77). Com efeito, a Lei Fundamental impede sistematicamente (à partida) a viabilização de princípios do autogoverno, que poderiam contribuir para conferir um acréscimo de sustentação teórica e de rigor metodológico ao modelo político instituído pelo Decreto-lei n.º 1/07 do Conselho de Ministros31.

28 Alguns estudos sustentam que o problema “deve resolver-se no âmbito da concessão de autonomia política” (Pereira, 1997: 8). O acolhimento do Memorando tem sido “pouco pacífico”32 em alguns sectores políticos e da sociedade civil binda e angolana em geral33. Estes renovam as suas “dúvidas” sobre o teor do diploma, e verifica-se um número crescente de protestos, cepticismos e criticismos quanto ao alcance da sua execução34.

29 O que nos reserva o futuro? Para alguns sectores radicais é improvável que o problema se resolva por meio de um acordo doméstico, embora este deva existir! O paradigma político adoptado em 2006 “está vocacionado a evoluir de forma gradual”35. O novo estatuto “não consiste no fim das conversações, mas num instrumento para afirmação do desenvolvimento da região”36. Estes aspectos elencados pelos negociadores do governo de Angola e do Fórum Cabindês para o Diálogo foram reiterados pelo Chefe de Estado angolano em Cabinda37 e em Luanda 38. É evidente que a solução política para Cabinda precisa ser “consolidada” no contexto angolano39.

O Acordo de Paz de Cabinda: uma abordagem crítica

30 O Memorando de Entendimento sobre Cabinda defende impreterivelmente a manutenção da “República de Angola como Estado unitário e indivisível, democrático e de direito”. Neste âmbito, foi definido um Estatuto Especial, que, segundo refere o documento, corresponde às “particularidades da província” no conjunto angolano. Este último aspecto traduziu a necessidade da promoção de um modelo de governação para Cabinda “com especiais competências”40.

31 Em contrapartida, o novo Estatuto consagrado, embora pretendesse fomentar “a partilha de decisões” entre Cabinda e Luanda, não parece ir além de uma mera declaração de intenções. O conjunto de áreas em que o “governo de Cabinda” deteria “competências especiais de âmbito específico”41 incide sobre questões de governação local que continuam, paradoxalmente, na esfera de decisão da competência exclusiva do Executivo central42. Refira-se, neste contexto, as competências específicas, nomeadamente nos domínios do planeamento, hotelaria e turismo, da agricultura e desenvolvimento rural, da indústria, dos transportes, da assistência e reinserção social, das obras públicas, da energia e água, do urbanismo e ambiente, de saúde, da educação, da cultura, do empreendimento e do investimento privado (cfr. artigos 16º e 19º a 30º do EEC). As linhas mestras do Estatuto pretendem ainda o alargamento, o aprofundamento e uma maior racionalização dos poderes do “governo local” em relação às áreas financeira, comercial, tributária, aduaneira e portuária, com regimes e competências específicas (cfr. artigos 17º, 18º, 112º e 113º).

32 Visando garantir a participação dos cabindas na administração do Estado angolano, foi promovido um figurino de governação que passa pela cooptação variável de muitas das elites políticas cabindenses. Trata-se de atribuir alguns cargos a quadros interlocutores de paz sob a égide do FCD (nos órgãos auxiliares do Presidente da República e Chefe do Executivo, no Governo Provincial e nas instituições públicas que compreendem a administração directa e indirecta do Estado). Privilegia igualmente a integração de

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alguns membros das forças militares da FLEC nos três ramos das Forças Armadas Angolanas (FAA) e na Polícia Nacional (PN)43.

33 O documento prevê ainda o repatriamento das populações de Cabinda refugiadas, sobretudo, nos países limítrofes44 e sua reintegração social na vida nacional 45. Estes aspectos e finalidades tornaram indispensáveis, no quadro do EEC, dotar o Conselho do Governo da Província de Cabinda de poder deliberativo (cfr. artigos 32º a 34º), ao contrário dos conselhos das restantes 17 províncias, “como órgãos meramente consultivos dos respectivos governos” (Pereira, 24/07/2006).

34 Um novo figurino verifica-se também no que toca ao alargamento do sistema de governação, que se pretende participativo, através da inclusão de um “Conselho Provincial de Auscultação e Concertação Social” (cfr. artigos 40º, 41º e 42º do EEC). Os integrantes passarão a chamar a si o concurso de munícipes, ONG, autoridades tradicionais, representantes (das associações sindicais, do sector empresarial público e privado, camponeses, Igrejas reconhecidas por lei) e outras entidades cuja presença o chefe do Executivo da Província de Cabinda considerar pertinente46.

35 O Memorando propôs igualmente a aprovação pela Assembleia Nacional de um Projecto de Resolução relativo à “Lei de Amnistia”, incluindo o “cessar das hostilidades, a desmilitarização da FLEC e das organizações sob autoridade do FCD, a adequação do dispositivo militar das FAA em Cabinda e a reintegração condigna dos quadros provenientes do FCD na vida nacional”. O diploma ordena “a extinção formal e definitiva da FLEC e das demais organizações afectas ao FCD, bem como do FCD propriamente dito, e sua transformação em partido político nacional angolano”47.

36 Com efeito, assinalou-se um marco notável e sem precedentes na história do conflito político-militar angolano/cabinda, embora não exista nenhuma evidência que permita provar qualquer mudança política essencial no sistema político e na estrutura do poder vigente. O EEC, embora se pretenda político-administrativo, não parece integrar um sistema de repartição de poderes capaz de conter a tendência centralizadora do Estado e manter a sua intervenção em posição de equilíbrio a nível da região: constitui uma das últimas heranças da prática de antiga potência colonizadora48.

37 O modelo organizacional do Estado revigorado no Enclave parece reflectir o patamar de subdesenvolvimento político resultante do desenvolvimento sistemático de uma incipiente cultura política de participação democrática, que põe ênfase na cultura política de sujeição. No período em análise (2006), a própria divisão político- administrativa formal angolana não parecia favorecer a atribuição de um Estatuto Especial a nenhuma unidade territorial do Estado (uma falta jurídica tendencialmente resolvida pela actual Lei Constitucional).

38 O paradigma preservado em Cabinda afigura-se um subterfúgio encontrado pelo regime para protelar e furtar-se às outras perspectivas geralmente contempladas como possíveis soluções para o conflito interno: a atribuição de uma autonomia política progressiva de base provincial e/ou regional com fundamento na sua identidade e características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações territoriais das populações do Enclave49. Evidentemente, a temática do estatuto de Cabinda em Angola é uma questão muito importante. Este tema eminentemente político, e não jurídico-administrativo, não se resolve em sede do poder local, ou seja do mero benefício de descentralização administrativa (tal como insinua genericamente a Constituição da República nos artigos 8º, 199º, 213º e 217º).

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39 O EEC privilegia o rigor no estabelecimento de bases gerais do modo de organização, competências, funcionamento e poder regulamentar da administração do Estado no Enclave, no âmbito da sua maior integração no efémero modelo político-administrativo do país. No fundo, visa dois objectivos estratégicos fundamentais: a reafirmação do desenvolvimento socioeconómico de Cabinda num quadro de interdependência com o resto de Angola, bem como o reforço e manutenção da autoridade do Estado na região. Sem dúvida, a organização político-administrativa de Cabinda e de outras províncias angolanas continua a não possuir a natureza de um poder político: é uma administração desconcentrada do Estado, controlada administrativa, política e financeiramente pelo poder central desde 1975.

40 O governo de Cabinda terá de processar a sua administração num sistema de total dependência e subordinação ao Estado50. Como os demais executivos provinciais de Angola, o governo de Cabinda é uma inegável dependência do Estado central, tendo como missão, entre outras, a de assegurar a prestação dos serviços comunitários locais (artigo 11º do EEC). O adiamento da autonomia política e a inexistência de estruturas de poder autónomas democraticamente legitimadas diminuem a participação política das populações e sua intervenção activa na sociedade, sendo uma problemática permanente da sua relação com o governo provincial, as administrações municipais e comunais.

41 O novo estatuto de Cabinda está perfeitamente destituído de mecanismos que permitem conceder legitimidade política aos órgãos executivos locais, “através da sua ligação às populações, fazendo-as participar no processo de gestão da região/Municípios e fazendo delas seus aliados políticos na relação com o Estado e as outras Províncias/ Municípios” (Machete, 2002: 12). Sugere-se, por isso, um novo modelo político alternativo, simples e eficaz para Cabinda. E o instituto de power sharing associado à autonomia, aplicado no contexto angolano, seria talvez um dos possíveis instrumentos para a regulação, contenção e gestão da contenda político-identitária na província enclave descontínua do país! Tal é defensável?51.

Desafios ao processo de paz de Cabinda

42 Numa perspectiva macro, o processo angolano de pacificação e de integração tem privilegiado o bom senso e a tolerância, com êxitos indiscutíveis. Todavia, subsistem tensões latentes que obrigam a uma atenção contínua, a acções faseadas, baseadas nos mesmos princípios e que não escamoteiem as realidades diversas subjacentes e queiram adaptar as estruturas às pessoas e aos povos e não o inverso.

43 Os desafios que se colocam à liderança angolana, no plano interno e externo, são bastante complexos e contundentes, mas não insuperáveis. Em relação ao Enclave de riba-Zaire, procura-se insistentemente a neutralização dos objectivos tradicionais do seu povo mudo e/ou dispensado, para uma sede geográfica exclusiva. Luanda tende a desviar e enquadrar a exigência independentista de Cabinda numa estratégia de progressivo e ineficaz desenvolvimento socioeconómico, de Estatuto Especial de âmbito provincial ou de uma eventual Autarquia Supramunicipal, que robustece a tendência centralizadora do Estado. Estaremos talvez perante uma falsificação do sistema de equilíbrio que passa, inevitavelmente, pela “feudalização, com o desenvolvimento das instituições, que então não passam de carapaças de uma vida passada” (Bessa, 1993: 597-598).

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44 As eventuais vulnerabilidades e potencialidades para Angola que poderão decorrer do processo de paz de Cabinda, fortemente apoiado principalmente pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa52, pelos Estados Unidos da América53, pela União Africana, pela União Europeia, dependerão essencialmente da vontade política e do pragmatismo dos decisores angolanos para estabelecer e dinamizar medidas e acções governativas para estabilizar e acelerar a reconstrução e o desenvolvimento do Enclave, visando, a curto/médio e longo prazo, diminuir as assimetrias regionais e responder aos problemas de pobreza, fome, exclusão social e política dos cabindenses.

45 Com efeito, o desenvolvimento, numa perspectiva antropossociológica, implica mudança social e cultural, tendo em conta que não pode ser reduzido a um fenómeno de carácter exclusivamente económico. A meta do desenvolvimento deverá ser equacionada “numa perspectiva multidisciplinar, envolvendo a reorganização e a reorientação do sistema político, económico e social”. Os factores de progresso político relacionados com “a credibilidade e consolidação das instituições do Estado” são o suporte das estratégias de desenvolvimento socioeconómico (Romana, 1997: 231).

46 Mais do que um simples documento sobre paz e reconciliação, o Memorando de Entendimento do Namibe seria para o povo de Cabinda uma promessa de desenvolvimento económico e de crescente influência política. Não é possível aproveitar as viabilidades e recursos de uma sociedade “subalternizando os grupos que não estão no poder e impondo-lhes critérios de hegemonia sem alternativa” (Borges de Macedo citado por Bessa, 1993: 596). A elite política não pode ignorar as diversas elites sociais e aspirar à sua digestão. Cada elite parcial, como a religiosa, a militar, a técnica, a cultural, a económica, a de prestígio, tem a sua função e garante um espaço de autonomia e, sobretudo, de pensamento alternativo. Se tais elites dispuserem de força a partir das instituições que coroam, representam sempre um limite às ambições exorbitantes da elite política, contendo-a dentro de esferas que resultam desta lógica do antagonismo.

47 De um olhar atento ao EEC pode inferir-se que estamos em presença de um modelo de paz e reconciliação sem transformação expressiva do sistema político, da estrutura do poder e ideologia do Partido/Estado. A constituição formal foi reiterada e convenientemente invocada como o grande tabu para adequar uma resposta verdadeiramente democrática ao problema político interno54. No fundo, tende a esvaziar a análise dos conflitos, dobrando-se numa democracia que não há, empobrecida e acrítica, que sobrevaloriza a eficácia técnica e a despolitização dos contextos locais.

48 Quem governa parece tender a expandir o seu espaço de intervenção, ampliar os dependentes, absorver e dispersar os concorrentes, colonizar a sociedade civil, colocando-a sob protecção vigilante. Este afigura-se um problema magno para a liderança de Luanda, considerando que a construção de um quadro da estratificação social actual cabindense deve obedecer ao cruzamento de três variáveis essenciais que tardam em ser uma evidência: estatuto económico, estatuto social e estatuto político.

49 A nível nacional, alcançada a paz, a norma inegável da mutabilidade e da vulnerabilidade de qualquer sistema político torna indispensável consolidar aquilo que é considerado “o bem público mais precioso dos nossos tempos”, procurando “conjugar a representação e a participação, a economia e a política, a família e as instituições” do país (Ginsborg, 2008: contracapa). Nesta ordem de ideias, o enclave angolano parece que vai continuar a ser um problema para a liderança do MPLA. A receptividade do Partido-Estado ao tratamento democrático e plural exigido para resolver em definitivo

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o problema, levará consigo um outro problema “incómodo e multidimensional” (cuja resposta foi mais uma vez adiada pela actual Constituição): a necessidade de reforma profunda do sistema de governação do país55, caucionando a desintegração do “Estado Providência”, isto é, a ruptura da sua homogeneidade e centralização (Montalvo, 2003: 47).

50 Com efeito, o travão à acção da elite política só se poderia encontrar nas elites parcelares, apoiadas em forças sociais reais, capazes de definir os seus objectivos e defendê-los no terreno. Se tais minorias organizadoras conseguem escapar à integração forçada que as elites tendencialmente unificantes prosseguem como prática necessária, tornam-se esteios de autonomia de campos que acabam por defender interesses próprios, mas que correspondem ao interesse geral. Torna-se hoje evidente que mecanismos como a petição popular, o referendo para problemas normativos, o plebiscito para questões excepcionais, estão ao alcance da sociedade de massas. Este processo suscita geralmente entre membros da elite política uma reserva fácil de compreender, porque a intervenção popular evoca receios de diversa natureza.

51 O progresso da educação, a facilidade da comunicação, e até o voto plural, compensando eventuais absurdos, chegariam para acabar com as cautelas. Ignorando estas três vias, as sociedades contemporâneas têm ainda movimentos próprios, que cristalizam em manifestações que são sempre possíveis de estudar e interpretar no seu justo significado. Desprezá-las ou magnificá-las são atitudes sentimentais que pouco ajudam a descortinar a sua função. Por elas, camadas marginalizadas ou desatendidas, fazem sentir a sua vontade. Sem necessidade de defender uma agitação contínua, que é cansativa, nada invalida encarar as autênticas manifestações como verídicas petições populares, expressões de sentimentos partilhados, sintomas da pulsação da sociedade.

52 Sem dúvida, a transformação efectiva do Estado Providência num novo paradigma de Estado, o chamado Estado Pluralista, gera uma administração policêntrica, constituída por uma constelação de novos órgãos que coexistem com interesses e lógicas distintas e constituem múltiplos centros de poder. O Estado vai-se reestruturando, redefinindo as suas funções estratégicas e fazendo intervir nessa “recomposição funcionista” os municípios, as regiões, as organizações supranacionais e os sectores privados e sociais (Machete, 2002: 32-37).

53 A realização das componentes previstas no compromisso político sobre Cabinda e sua consolidação é fortemente determinante e condicionada pelo modelo do poder no seio do grupo dirigente de Angola, centrado à volta do Bureau Político e do Comité Central, mas sobretudo do núcleo restrito do Presidente da República e Chefe do Executivo. São aspectos sensíveis do ponto de vista do desenvolvimento socioeconómico e político, com cuja continuidade em Cabinda poderão eventualmente constituir-se (a curto/ médio e longo prazo) num potencial factor de instabilidade e reforçar a emergência de sinais de anomia política generalizada56. Manifestamente, o impacto do sistema interno e os sentimentos que gera na comunidade local angolana em geral – os quais oscilam entre o desenvolvimento, que tarda em ser uma evidência e as situações de exclusão que permanecem e, em certos casos, se ampliam57– podem levar a reacções negativas também polarizadoras das fidelidades horizontais, a crescentes tensões sociais, e alargarem o universo de descontentes e críticos, disponíveis para acções de contestação potencialmente mais amplas e mais violentas (Bembe, 2010b: 19-20).

54 Como sucedeu em 8 de Janeiro de 201058, na tentativa de inviabilizar a segurança e estabilidade projectada em Cabinda, é muito provável que alguns indivíduos e/ou

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grupos radicais descontentes, com eventual conexão ou não com movimentos insurrectos, países contíguos, a diáspora, membros familiares, refugiados, imigrantes legais, ilegais ou irregulares, e mesmo aliciando alguns cidadãos nacionais ou estrangeiros vulneráveis, venham a adoptar novos comportamentos desviantes. Estes tenderão a perpetrar actos anti-sociais e criminosos contínuos, para transmitir um sentimento de insegurança aos cidadãos. Trata-se de uma espécie de franchising que procurará utilizar e reviver o nome FLEC como um marco histórico para cometer actos terroristas e criminosos, visando captar alguma credibilidade/valorização pessoal astuciosa, macular a imagem do país, pôr em causa os valores matriciais do povo angolano e minar a paz, o desenvolvimento económico, político e social59.

55 Nesta perspectiva, é provável que Cabinda venha constituir, para esta região centro- oeste de África, um foco potencial permanente de conflitualidade que poderá, inclusivamente, ressuscitar nos Estados adjacentes ambições de anexação, tanto mais que não lhes será difícil lançar mão aos fundamentos étnicos, tribais e históricos para sustentar essa eventual aliciante opção60. A concretizar-se, o conflito tenderá a ter alavancas políticas construídas segundo lógicas geopolíticas e geoestratégicas de países limítrofes de Cabinda e/ou outros Estados que eventualmente tenderão a recorrer àqueles, numa estratégia de procuração (Bembe, 2010b: 19-20).

56 Por outro lado, e apesar do desejo dos cabindenses refugiados nos dois Congos e no Gabão, o seu repatriamento tem sido sistematicamente adiado. Esta atitude prende-se com a crescente morosidade na adequação de condições básicas para o seu acolhimento, bem como com a componente relativa à assistência e reintegração social. A situação (entre outras vulnerabilidades) tenderá a ser fortemente explorada, de forma variável, pelos agitadores da paz e tranquilidade, a médio e longo prazo. De facto, as outras metas que se colocam em Cabinda não têm tanto a ver com aspectos de ordem institucional, mas com a realização de objectivos macro-operacionais que dizem respeito à problemática da habitação, à auto-suficiência alimentar, à superação da questão da descontinuidade ou isolamento geográfico do Enclave e à implementação de actividades terciárias.

57 Uma outra dimensão fundamental tem a ver com a cultura do medo que ainda se vive no Enclave e um pouco por toda Angola. Trata-se da liberdade de expressão e da participação na vida democrática. Uma cultura do medo que não está apenas relacionada com questões de integridade física, mas também, ou principalmente, com o medo de perder privilégios, empregos ou acesso a bens, o que se traduz na ausência de iniciativas e exigências por parte dos cidadãos. Um conceito de medo amplo, nitidamente equivalente a dependência e que mais que um problema político, traduz uma realidade cultural. Julga-se indispensável realizar uma profunda mudança na cultura política e organizacional do Estado, despartidarizar a vida diária e ultrapassar o enorme abismo de comunicação entre aqueles que detêm o poder e os que a ele estão submetidos.

58 Em síntese, a transformação pode manifestar-se por duas vias clássicas: a nível orgânico, através da criação de serviços desconcentrados do Estado e de novas entidades de direito público e de direito privado exteriores à Administração Pública, e a nível territorial, por via dos processos de regionalização e de descentralização municipal (Montalvo, 2003: 47-52). Nesse processo, sempre incompleto, os aspectos elencados afiguram-se essenciais para uma mudança real.

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59 Não basta participar para tornar democrático um processo. Está em causa não apenas a forma – quem e como participam? – mas também o conteúdo: “Participar para quê? Quais são os interesses? Quais os consensos e os conflitos?” (Guerra, 2006: 7). A tese da participação implica, por um lado, cultura política e, por outro, consciência cívica. A participação não é sinal de consenso e não tem significado de per si, se não se atender aos actores em presença, aos conteúdos em discussão e às suas relações com o contexto sistémico em que se inserem. Os actores não são entidades homogéneas nem representam interesses unívocos, como nem todas as questões em causa têm o mesmo valor do ponto de vista da reflexividade dos actores ou da estrutura das relações sociais.

Conclusões

60 A grandeza dos desafios observados no terreno requer (a curto/médio e longo prazo) a implementação pelos Executivos Central e Provincial, de um amplo e diversificado conjunto de acções de impacto social, para assegurar a promoção do desenvolvimento de Cabinda numa perspectiva antropossociológica e a satisfação das necessidades básicas das populações, num processo sempre incompleto de procurar inverter a manifesta situação do enclave petrolífero angolano.

61 Hoje como no passado, afigura-se que Cabinda continua a desempenhar a sua função de sempre: centro da exploração, do comércio e das transacções relacionadas com exportações dos produtos lucrativos, e centro da importação dos produtos alimentares e géneros de primeira necessidade. E a dignidade normativa das “competências especiais de âmbito específico” que se pretendeu atribuir ao Enclave no Estatuto Especial tendeu a ser manipulada pela mentalidade centrista que continua a predominar entre nós. A essa dignidade será sempre difícil fazer corresponder os planos de desenvolvimento socioeconómico e político da própria província e os meios necessários, nomeadamente financeiros, para tal efeito. A história tem muita força e os grupos independentistas e/ou radicais cabindenses, uma vez desencadeados, não podem voltar atrás.

62 Importa que as populações se revejam na progressiva evolução do modelo e que o consolidem, garantindo a sua constante e necessária participação democrática. Se a participação pública assume como ponto de partida essencial a eleição de representantes políticos para cargos governativos, pode dizer-se que ela assume um grau muito elevado quando aos cidadãos é permitido participar activamente nos processos de planeamento, tomada de decisão e gestão propriamente dita. É aconselhável, portanto, que todas as reformas mantenham sistemas de representação que consolidem e se possível ampliem os actuais mecanismos de integração dos cidadãos no processo democrático.

63 Mas se a prática da democracia se define simultaneamente pelo direito à diferença e pelo direito à identidade, de hoje em diante a questão particular do enclave descontínuo do país é certamente um problema eminentemente político e não jurídico- administrativo com que a liderança angolana deverá lidar a longo prazo. Preservando os mais altos anseios do povo angolano, os princípios partilhados plasmados na Lei Constitucional e no Memorando de Entendimento do Namibe, afigura-se que a resposta para Cabinda encontrar-se-á, muito provavelmente, nas formas de partilha de poder associadas a uma autonomização tão marcada quanto seja possível garanti-lo. Este approach não deixa de parecer improvável para quem conheça a mecânica política

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centralizante de uma República de Angola que desde os seus primórdios tem sido difícil de governar na ausência de um centro forte. Será seguramente com base nessa prática clássica que pode vir a ser aberto espaço para uma convivência saudável exigida por uma realpolitik que se coadunou sempre mal com ideias de autodeterminação.

64 Recorrendo a uma metáfora: a descentralização é a dimensão política e administrativa, enquanto a autonomia é a dimensão ontológica (Barreto, 1994: 271). Como parece evidente, a autonomia é um conceito muito mais rico e complexo do que a descentralização. A descentralização sugere a continuidade institucional e cultural entre o centro e a região. A autonomia implica que, para além dos factores de continuidade, haja também diferença de qualidade, diferença de natureza. Isto sem esquecer o essencial: a descentralização pode limitar-se a uma técnica, eventualmente uma estratégia de administração, enquanto a autonomia está ao serviço da cidadania, da plena cidadania.

65 Sobre a temática em análise, é preciso pôr os pés no chão. Com ou sem Simulambuco, o Enclave de riba-Zaire tem vastas reservas de petróleo e gás natural. Tem recursos essenciais e uma posição geopolítica invejável. Quer se queira quer não, é difícil imaginar uma independência que de imediato seria retratada como uma secessão inaceitável. Todavia, a consciência da identidade tenderá a suscitar sempre, no seu povo, o desejo para um tratamento distinto no contexto nacional angolano e este, assumido em condições favoráveis, por via de autonomia política interna, poderá promover a mudança para uma democracia.

66 Com efeito, o destino das populações não pode ser determinado por via impositiva. Compete ao Executivo Central promover o desenvolvimento total e integrado da sociedade global. O Estado age, a nível nacional, como agente dinamizador e árbitro de interesses nem sempre compatíveis, competindo-lhe, por isso, um papel mais vasto de regulação. O desenvolvimento exige uma gestão racional dos recursos existentes e a sua distribuição equitativa.

67 Finalmente, a melhor fonte inspiradora e a minha forma de exprimir o meu amor por Angola e de uma forma muito especial por Cabinda, são talvez as palavras proferidas um dia por um célebre historiador inglês: “o meu amor por um lugar, por uma pessoa ou por uma instituição, é directamente proporcional ao meu desejo de os reformar” (Thomas Arnold citado por Vitorino, 2002: 121).

68 Depois dos horrores da guerra civil (1975-2002), a experiência angolana tem de ser a de um banho de realidade.

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Figura 6: Cenários de emergência / Agudização de fenómenos sociopolíticos em Cabinda a médio prazo (2010-2024)

) Quadro elaborado a partir do estudo e análise de um vasto conjunto de fontes abertas e de análises de informadores qualificados

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NOTAS

1. Guiné-Bissau, 1973; Moçambique, São Tomé e Príncipe e Angola, 1975; Cabo Verde, provisória de 1975. 2. Sublinha e bem, o Call for Papers sobre “35 Anos da independência das ex-colónias portuguesas em África”, na Edição temática dos Cadernos de Estudos Africanos, Revista Semestral do Centro de Estudos Africanos/ISCTE-IUL (http://cea.iscte.pt/index.php? option=com_content&task=view&id=246&Itemid=55 [01-03-2010]). 3. Cfr. Resolução n.º 27 B/06, de 16 de Agosto. 4. Cfr. Dados gerais sobre a República de Angola. Britannica World Data ( http:// www.britannica.com/EBchecked/topic/25137/Angola [25-05-2010]). 5. Cfr. Atlas dos Municípios de Angola. Dados recolhidos entre Dezembro de 2004 e Maio de 2006 (http://dwms.fao.org/atlases/angola/index_pt.htm [25-05-2010]). 6. Aníbal Cavaco Silva (12 de Dezembro de 2006). Intervenção na sessão de abertura do Congresso do Poder Local. Página Oficial da Presidência da República Portuguesa (http://www.presidencia.pt/? idc=22&idi=2432 [16.5.2010]). 7. A temática das formas de Estado diz respeito ao princípio de separação vertical dos poderes, ou seja, o modo como um determinado Estado resulta estruturado na sua totalidade, tendo em conta os elementos que o compõem (o povo, o território e o poder ou a soberania); por outro lado, está também relacionada com a definição da forma de governo que compreende o princípio da separação horizontal dos poderes (funcional e orgânica do poder). 8. Extracto do Preâmbulo da nova Lei Constitucional angolana. 9. Cfr. Discurso de José Eduardo dos Santos na cerimónia de promulgação da Constituição de Angola, em 5 de Fevereiro de 2010. Portal Oficial dos Serviços de Apoio ao Presidente da República de Angola (http://www.pr.ao/imprensa/item/discursos/164 [05-02-2010]). 10. O acordo pretende “pôr fim à luta armada iniciada há 31 anos pela independência do território pela FLEC e estender a paz a todo o país (…), depois do acordo de Luena de 2002”. Cfr. Ana Dias Cordeiro, 01-08-2006, agência Lusa e jornal Público (http://www.publico.pt/Mundo/ memorando-para-a-paz-em-cabinda-eassinado-hoje-em-angola_1265874 [04-05-2010]). 11. Cfr. “Cabinda: A nova proposta de paz entre a FLEC/FAC e Luanda”. Declarações de Alexandre Tati e Bento Bembe, 9-07-2010. Rádio Voz da América (http://www.voanews.com/portuguese/ news/Angola_Cabinda_Peace_09July_2010 _voanews-98126609.html [22.07.2010]). 12. Resultados finais das eleições legislativas de 5 de Setembro de 2008. CNE, Página Oficial da Comissão Nacional Eleitoral de Angola (http://www.cne.ao/ [16-09-2010]). 13. Cfr. Dados demográficos e geográficos da Província de Cabinda. Revista Ngonje (propriedade do Governo da Província de Cabinda), Informação Trimestral de Cabinda, n.º 10, Ano 05, Abril-Junho 2007, pp. 36-37 (http://www.gpcabinda.com/ngonge/ngonge_ed10.pdf [25-05-2010]).

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14. Termo de utilização comum na documentação oficial – entende-se os naturais do Enclave, territorial e dominantemente definido aquando da partilha de África no séc. XIX, situado entre os dois Congos. 15. Cfr. Cabinda com excedentes em madeira. Angola Acontece (http://www.angolaacontece.com/ full.php?id=2483 [20-11-2009]). 16. Cfr. Governador de Cabinda reúne-se com autoridades tradicionais. ANGOP, Agência Angola Press ( http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/sociedade/2010/2/13/Governador- Cabinda-reune-com-autoridades-tradicionais,a95395cd-24e9-468b-b544-ea72177e2739.html [31-03-2010]). 17. Artigo 3º do Acordo do Alvor: “Angola constitui uma entidade una e indivisível nos seus limites geográficos e políticos actuais e, neste contexto, Cabinda é parte integrante e inalienável do território angolano”. 18. Isaías Samakuva, 18-04-2008. Relatos de violações de direitos humanos em Cabinda são constantes – UNITA. RTP, Rádio Televisão Portuguesa ( http://ww1.rtp.pt/noticias/index.php? article=340741&visual=26&rss=0 [20-12-2009]). 19. Cfr. Relatórios da Agência dos Direitos Humanos da ONU, da ex-MPALABANDA, Human Rights Watch. 20. “(…) para o Enclave, deve, antes, ser reconhecido o direito de auto-determinação através de um referendo e se não se resolver este problema, pode então adiar-se as eleições”. Declarações de 15-07-2008 do antigo Vigário Geral da Diocese Católica de Cabinda, padre Raúl Tati. Multipress/ Visão Angola, Rádio Voz da América ( http://www.multipress.info/viewnew.php?id=428 [15-07-2008]). 21. Cfr. Entrevista do Presidente da República, José Eduardo dos Santos, à Rádio Voz da América (VOA), Washington, 26-02-2002. Página da Embaixada da República de Angola em Portugal (http:// www.embaixadadeangola.org/not_2002/not16.htm [15-04-2002]). 22. Em resposta, a nova Constituição promulgada em 5 de Fevereiro de 2010 não faz menção a Cabinda e ao seu Estatuto Especial resultante do compromisso de 1 de Agosto de 2006 entre o Governo e o FCD. 23. João Lourenço, secretário-geral do MPLA, em declarações à VOA, 27-09-2002. 24. Cfr. “Cabinda - Proposta da UNITA suscita debate” (Raúl Danda, 23/5/09). VOA (http:// www.voanews.com/portuguese/news/a-38-2009-05-23-voa1-92248674.html [23-05-2009]). 25. Para além dos crescentes interesses económicos lusos e dos aliados em jogo em Angola, e a pertença comum à CPLP, Portugal encontra-se vinculado aos Acordos de Janeiro de 1975, apesar de a sua validade ter sido posta em causa com a tomada unilateral do poder pelo MPLA em Novembro de 1975. 26. Conversa com Dom Duarte da Bragança (Sintra, 03-05-2008, 11H-13H30). Para ele, “embora a solução justa fosse a realização de consulta popular apenas às populações de Cabinda”, a solução possível seria a concessão a Cabinda de uma ampla autonomia ou do estatuto de território federado”. 27. O governo congolês, que assumia a presidência rotativa da União Africana, foi escolhido como facilitador. 28. De 23 a 29 de Agosto de 2004 teve lugar em Emmaus (Holanda) a Conferência Inter-Cabindesa, com participação de delegações da FLEC-Plataforma (ex FLEC-Renovada) e da FLEC-FAC, além da sociedade civil cabindense. As FLECs foram fundidas, e criado o Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD). 29. Artigo 3º: “O Estatuto Especial da Província de Cabinda é de âmbito político-administrativo e decorre da especificidade histórico-geográfica e cultural da província”. Cfr. Decreto-Lei n.º 1/07 de 2 de Janeiro. 30. Aprovou em 16 de Agosto o Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação em Cabinda.

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31. Aprovou em 2 de Janeiro o Estatuto Especial para a Província de Cabinda (p. 24). 32. Cfr. “Cabindas rejeitam paz de Luanda”. Agostinho Chicaia, Diário de Notícias, 05-07-2006 (http://dn.sapo.pt/Inicio/interior.aspx?content_id=642940 [05-07-2006]). 33. “Padre Raúl Tati recusa acordo obscuro de Bento Bembe sobre Cabinda”. Notícias Lusófonas, 04-07-2006 (http://www.noticiaslusofonas.com/view.php? load=arcview&article=15084&catogory=Angola [04-07-2006]). 34. “Padre Jorge Congo chama Carnaval à missa pela paz em Cabinda”. RTP, Rádio Televisão Portuguesa, 02-03-2007 (http://tv1.rtp.pt/noticias/?article=135288&visual=3&layout=10). 35. Cfr. Declarações de 1 de Agosto de 2009, de António Bento Bembe, presidente do Fórum Cabindês/FCD e co-signatário da paz em Cabinda. Jornal de Angola (http://jornaldeangola.sapo.ao/ 20/0/bento_bembe_faz_apelo_a_fraternidade [01-08-2009]). 36. Cfr. Declarações de 16 de Julho de 2006 do então ministro da Administração do Território angolano e co-signatário do acordo de paz sobre Cabinda, Virgílio Fontes Pereira (http:// www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/politica/2006/6/28/Governo-Forum-Cabindes- aprovam-texto-final-entendimento-paz-Cabinda,a891bded-a0fc-422e-afee-9992a6da8e9c.html [17-07-2006]). 37. Cfr. Discurso do Chefe de Estado proferido em 10 de Agosto de 2007, na sua segunda visita à província de Cabinda. Página Boletim Informativo do Governo de Angola ( http:// www.angolanainternet.ao/boletiminformativo/index.php? option=com_content&task=view&id=250 [11-08-2007]). 38. Cfr. Discurso do Chefe de Estado proferido em 15 de Outubro de 2010 na cerimónia de abertura do ano parlamentar da Assembleia Nacional. Portal Oficial dos Serviços de Apoio ao Presidente da República de Angola (http://pr.ao/imprensa/item/discursos/260 [15-10-2010]). 39. Cfr. Declarações de Bento Bembe em 23 de Outubro de 2010 (co-signatário do acordo de paz sobre Cabinda) (http://jornaldeangola.sapo.ao/20/0/ discurso_do_presidente_foi_claro_e_oportuno [23-10-2010]). 40. Informação avançada em 24-07-2006 pelo então ministro da Administração do Território, Virgílio Fontes Pereira, na Assembleia Nacional, sobre a trajectória do processo negocial entre o Governo e o FCD. 41. Cfr. Decreto-Lei n.º 1/07 de 2 de Janeiro, pp. 5-7. 42. Esta análise funda-se nos termos do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 1/07 de 2 de Janeiro: “O Governo da Província de Cabinda tem por atribuições promover e orientar o desenvolvimento administrativo, económico e social da província, com base nas deliberações e opções do Governo Central e assegurar a prestação dos serviços comunitários locais”. 43. Cfr. Resolução n.º 27-B/06 de 16 de Agosto, pp. 5-8. 44. O acordo reserva a participação do ACNUR, do governo de Angola e do FCD. 45. Com a demora de Luanda, refugiados cabindenses recorrendo a meios próprios começaram a regressar à terra natal desde Agosto de 2010. Cfr. Resolução n.º 27-B/06 de 16 de Agosto, p. 8. 46. Para uma visão de conjunto ver o artigo 40º, n.º 1 do EEC. Ver ainda o artigo 9º: “O Governo da Província de Cabinda deve ser previamente ouvido pelo Governo Central sempre que este pretenda adoptar medidas de natureza administrativa, económico-social e legal com especificidade provincial”. 47. Cfr. Resolução n.º 27-B/06 de 16 de Agosto, p. 5. 48. Pese embora em Portugal, no contexto de ruptura com a ditadura e de autocontrolo do novo Estado democrático, a Constituição da República de 1976 adoptou um sistema de repartição do exercício do poder por diferentes instituições políticas, instituindo as Regiões Autónomas e o Poder Local como verdadeiros níveis políticos de contrapoder ou de contenção do poder centralizador do Estado. 49. Na visão de Fontes Pereira (24-07-2006), a autonomia reclamada para Cabinda tem a ver com “a regionalização, resultante da descentralização política e administrativa, não consagrada” na

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Constituição. Tal como a antiga, a nova Lei “prevê a descentralização administrativa que institucionaliza as autarquias”. 50. “As medidas e acções governamentais no sentido da aceleração da reconstrução e desenvolvimento da Província de Cabinda, são da exclusiva responsabilidade dos Governos Central e Provincial de Cabinda” (Resolução n.º 27-B/06 de 16 de Agosto, pp. 2 e 9). 51. Os antigos antagonistas seriam forçados a trabalhar em conjunto no contexto nacional angolano e a tomar decisões essenciais relacionadas com Cabinda por consenso. O objectivo último é o de transformar os adversários em parceiros. Contudo, reconhece o respeitável Journal of Peace Research (2002), que “(...) this concept can only be successful under specific conditions and by specific arrangements”. 52. Os chefes de Estado e de Governo da CPLP, reunidos em Bissau em 17 de Julho de 2006, saudaram os “Acordos de Entendimento rubricados entre o governo da República de Angola e o Fórum Cabindês para o Diálogo, de modo a encontrar-se uma solução de estabilidade definitiva para aquela parte do território angolano”. Cfr. “Declaração de Bissau”, VI Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP (http://www.cplp.org/Default.aspx?ID=162 [22-10-2010]). 53. “For the people of Cabinda, this Memorandum of Understanding is more than just a document on peace and reconciliation; it is the promise of economic development and increased political influence”. Cfr. The United States Strongly Supports the Cabindan Peace Process. Public Affairs Section, US Embassy. Luanda, August 1, 2006 (http://angola.usembassy.gov/ august_1_2006.html [22-08-2008]). 54. O Estado parece debater-se com a contradição insolúvel entre a sua vontade de crescimento centralizado e a necessidade de se tornar mínimo. 55. Para alguns analistas, o modelo de governação revigorado em Angola (com a aprovação da actual Constituição) corresponde a um retrocesso de um sistema que muitos desejavam que fosse verdadeiramente democrático. Parece que a efectivação gradual do poder local autárquico, consagrado pela Lei Constitucional, tenderá a responder a esta corrente do pensamento. 56. Verifica-se o aumento da dependência multidimensional do Enclave do Executivo central. Ao baixo nível das infra-estruturas locais, acresce a dependência de Cabinda dos Congos. Esta situação retira às autoridades locais capacidade de promover e concretizar iniciativas para o desenvolvimento da província. 57. O ministro angolano que acompanha a província de Cabinda considerou em Luanda, em 17 de Abril de 2008, que “a população de Cabinda atravessa uma situação de frustração devido à condição de miséria em que vive”. Cfr. Ministro Bento Bembe nega existência de guerra em Cabinda. RTP, Rádio Televisão Portuguesa ( http://tv1.rtp.pt/noticias/? article=147154&visual=3&layout=10 [03-11-2009]). 58. Na sequência do ataque armado contra o autocarro que transportava a selecção de futebol do Togo que ia participar na Taça das Nações Africanas Angola Orange 2010, reivindicado por separatistas do Enclave de Cabinda e que estaria na origem da desistência daquela selecção da competição. 59. “A FLEC pretendia minar gradualmente o moral e as capacidades do adversário mais forte; o desgaste do poder político estabelecido; despertar o mundo sobre a continuidade do conflito; a criação de um ambiente psicológico de expectativa de insegurança” (Bembe, 2010: 19). 60. José Eduardo dos Santos qualificou, em 15 de Outubro de 2010, a situação de segurança de Angola como estável mas marcada por algumas ameaças e riscos com destaque para Cabinda, fazendo referência a perturbações externas. Cfr. Discurso sobre o Estado da Nação, Cerimónia de Abertura do Ano Parlamentar da Assembleia Nacional. Portal Oficial dos Serviços de Apoio ao Presidente da República de Angola (http://pr.ao/imprensa/item/discursos/260 [15-10-2010]).

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RESUMOS

O presente artigo pretende apresentar uma análise sociopolítica dos constrangimentos e desafios do processo de paz resultantes do Acordo de Cabinda, negociado em Brazzaville entre 13 e 15 de Julho de 2006, e assinado em 1 de Agosto do mesmo ano entre o Governo da República de Angola e o Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD), na tentativa sempre incompleta de regulação da disputa territorial de tipo independentista/secessionista iniciada em 1975.

This paper aims to present a social political approach of the constraints and challenges arising from the peace process of Cabinda Agreement negotiated in Brazzaville, on July 13-15, 2006, and signed on August 1st of the same year between the Government of Angola and the Cabindan Forum for Dialogue (FCD), in an attempt to resolve the territorial independentist/separatist dispute initiated since 1975.

ÍNDICE

Keywords: Angola, Cabinda issue, local democracy, local development, new Constitution, peace, reconciliation and conflicts Palavras-chave: Angola, Democracia local, Desenvolvimento local, Nova Constituição, Cabinda, Reconciliação, Conflitos

AUTOR

MIGUEL DOMINGOS BEMBE ISCSP - Universidade Técnica de Lisboa [email protected]

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Discursos Jornalísticos sobre a Independêcia de Moçambique – Uma análise da cobertura do semanário savana (1998-2003)

João Feijó

Introdução

1 Em finais da década de 1990, Moçambique atravessava um período particular da sua história. Depois de experimentar uma dilacerante guerra de dezasseis anos o país celebrava, a 25 de Junho de 2000, as bodas de prata da sua independência. Com a liberalização da economia e a abertura ao exterior, registavam-se elevados índices de crescimento económico, que contrastavam com fenómenos de pobreza extrema. No âmbito da comunicação social surgiam cooperativas de comunicação1 e órgãos independentes do poder governamental e ensaiava-se uma maior liberdade de expressão. Fundado em 1994 pela Mediacoop e constituindo, em Moçambique, o primeiro órgão de informação independente do poder governamental, o semanário Savana adoptou uma atitude editorial inovadora. Desde o seu lançamento, o semanário impôs- se pela sua atitude crítica e irreverente relativamente aos assuntos políticos e económicos ou à sociedade moçambicana, comportamento menos usual no panorama jornalístico da época. Para o jornalista Fernando Lima (1996: 194), o Savana e as publicações independentes contribuíram para que a imprensa pública se fosse libertando dos medos e das rotinas do passado, passando a procurar fontes de informação alternativas às fontes governamentais. Este processo favoreceu o acesso aos media por parte de diferentes sectores da sociedade e da política moçambicana, carentes de participação na esfera pública. Esta atitude do Savana não deixou de ser responsável pela sua conotação com um jornal de oposição. Já em 1994, a propósito da cobertura noticiosa do processo eleitoral, um relatório da ONG Article XIX (citado por Maia, 2002: 195) definia os semanários Domingo e Savana da seguinte forma: “Domingo e

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Savana representam dois extremos. O primeiro, sendo abertamente a favor da Frelimo e o segundo, anti-governo, de modo geral”. Paul Fauvet e Marcelo Mosse (2003: 344) afirmam inclusive que, em 1995, “as publicações da Mediacoop [Savana e MediaFax] estavam à frente da campanha para remover Manuel António do cargo de Ministro do Interior”2.

2 Na celebração das datas históricas de Moçambique, o jornal publicou suplementos comemorativos das efemérides, nos quais diversas personalidades do país, oriundas dos vários quadrantes políticos, foram convidadas a realizar um balanço sobre a independência de Moçambique. Foi neste contexto que se resolveu analisar os discursos emitidos no semanário Savana sobre a independência de Moçambique. Na prossecução destes objectivos seleccionaram-se todos os números deste semanário publicados nos meses de Junho e Setembro, no período compreendido entre Setembro de 1999 e Junho de 2003. A pertinência desta selecção relacionou-se com o facto de, nestes dois meses, se assinalarem importantes datas históricas para Moçambique, entre as quais o dia 7 de Setembro de 1999 (Dia da Vitória), o dia 25 de Setembro (Dia das Forças Armadas) e o dia 25 de Junho (Dia da Independência). Durante estes períodos de comemoração reavivou-se a memória comunitária e estabeleceram-se balanços e análises, críticos ou nacionalistas, sobre o passado recente de Moçambique. Desta leitura foram seleccionadas 122 peças jornalísticas, onde se fizeram 349 referências ao assunto em questão.

3 Durante as reflexões sobre a independência de Moçambique os temas políticos adquiriram maior destaque do que os temas económicos e sociais. Os assuntos mais vezes referidos (34,7%) relacionaram-se com a importância da própria independência e com o desenvolvimento de um sentimento nacionalista. Estes discursos não invalidaram a existência de outros, proferidos sobretudo por actores políticos da oposição parlamentar e por jornalistas, que enfatizaram o carácter despótico do partido Frelimo (27,5%). O Governo foi frequentemente responsabilizado por erros políticos com consequências nefastas para o país. Durante as reflexões em torno do desenvolvimento socioeconómico de Moçambique predominaram as referências à pobreza, à exclusão e ao retrocesso económico (23,8%), não obstante inúmeras vozes, oriundas sobretudo do partido no Governo, terem salientado diversos projectos de desenvolvimento do país (14%), desencadeados sobretudo nos primeiros anos de independência.

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A independência política e a moçambicanidade

4 Se nas peças jornalísticas seleccionadas existiu um tema que gerou a concordância de todos os emissores de opinião, esse assunto relacionou-se precisamente com o carácter incontestável da independência de Moçambique. Apesar de o tema ter sido referido sobretudo por dirigentes e quadros de partidos políticos (45%) dos diversos quadrantes (Frelimo, Renamo, Monamo, CDU, FUMO, PCN, PIMO), para jornalistas, directores de empresas, dirigentes de associações humanitárias ou membros de ordens religiosas, trabalhadores indiferenciados, estudantes ou docentes do ensino superior a independência constituiu um tema central. Ainda que os discursos acerca do empobrecimento económico do país tenham tido um peso significativo (23,8%), raramente deixou de se salientar o valor da emancipação política. Como se escreveu no título de uma entrevista a Eduardo Sitoe: “O que aconteceu de positivo é a própria independência” (Machava e Salema, 25.06.1999e: 16):

5 Os discursos no Savana acerca da independência política de Moçambique foram sucessivamente acompanhados de referências ao que se designou de moçambicanidade. Num país formado por vários grupos étnicos pouco integrados, estas referências ao nacionalismo e à unidade nacional requerem uma análise dos pressupostos e dos significados desse conceito de moçambicanidade. Como ideologia e linguagem, o nacionalismo constitui uma construção relativamente moderna, tendo emergido na cena política europeia a partir de finais do séc. XVIII. Ainda que nas várias regiões do globo a ideia de nação assente em diferentes conotações ideológicas, Anthony Smith admite a existência de elementos comuns entre os diversos discursos nacionalistas3. Com base nesses modelos ideológicos, o autor define nação como “uma determinada população humana, que partilha um território histórico, mitos e memórias comuns, uma cultura pública de massas, uma economia comum e direitos e deveres legais comuns a todos os membros” (Smith, 1996: 28). O conceito de nação implica por isso a existência de um território geográfico demarcado, com o qual os membros dessa região desenvolveram uma ligação histórica e afectiva comum. Essa comunidade partilharia um conjunto de mitos, símbolos e valores, de tradições e de recordações históricas. Tratar-se-ia de sentimentos e de ideias que uniriam uma população num território, pertencente a um Estado que aí exerce soberania. Esta concepção de nação implica a existência de vias e meios de comunicação que possibilitem a integração económica do território, bem como a mobilidade dos seus habitantes. Por fim, uma nação pressupõe a presença de um código de direitos e deveres, aplicável a todos os membros da comunidade, bem como a consciência de igualdade desses membros perante a lei. Trata-se daquilo que a sociologia define como direitos e deveres de cidadania4, nas suas várias dimensões5. Esta questão pressupõe a presença de instituições reguladoras comuns, de carácter mais ou menos centralizado, que confiram expressão aos objectivos políticos. De acordo com Anthony Smith (1996: 25) trata-se de uma concepção caracteristicamente ocidental de nação, cujos elementos se têm mantido vitais, com algumas modificações, para a maioria dos projectos de Estado-nação preconizados nos diversos países do globo.

6 Definidos os elementos constitutivos de um conceito de nação, analisar-se-ão aqueles que foram seleccionados ao longo dos discursos acerca do nacionalismo moçambicano e do respectivo Estado-nação. A moçambicanidade assentou basicamente em torno de

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duas dimensões. Em primeiro lugar, num contexto de intensa propaganda ideológica e de emoção revolucionária, desenvolveu-se um conjunto de símbolos e discursos de cariz anticolonial que uniam a população em torno de uma condição histórica comum. Em segundo lugar esse sentimento baseou-se na expectativa de aquisição de direitos de cidadania e de uma igualdade entre todos os moçambicanos.

7 Pelo clima de emoção revolucionária que gerou, o período de transição foi particularmente destacado ao longo das peças jornalísticas. Os textos reportaram sentimentos colectivos e um conjunto de valores e de atitudes considerados nacionalistas. Os discursos adquiriram contornos mais emotivos principalmente ao longo das celebrações dos 25 anos da independência de Moçambique. Diversas vozes do Savana recordaram com insistência o ambiente de entusiasmo e de esperança, de fraternidade e de euforia colectiva, vivido no estádio da Machava no dia 25 de Junho de 1975. Como descrevia o jornalista Alexandre Chaúque:

Naquele dia renasceu a vontade louca de gritar: “Viva o povo moçambicano unido do Rovuma ao Maputo”. Caiu a “baba” dos poetas que fica anos no coração, e a “raiva” de gritar “Vivaaa”. Parecia que Moçambique inteiro tinha ficado tão pequeno para que todos nos pudéssemos tocar afavelmente. Parecia, ali na praça da Independência, que o dia 25 de Junho de 1975 tinha voltado para nos despertar do sonho cada vez menos alegre. “Vivaaa”! Parecia estar a ouvir o som a sair das potentes colunas de watts ali montadas. Mas viva mesmo. O povo moçambicano unido, jamais será vencido (Chaúque, 30.06.2000: 30).

8 Vinte e cinco anos após a proclamação da independência de Moçambique, as memórias desse momento mantêm um carácter extraordinário, próximas de um tempo festivo ou sagrado. Os grupos sociais que obtiveram maior destaque na amostra estiveram de acordo que a euforia pós-revolucionária sentida suscitou a integração social e promoveu o fortalecimento de uma consciência nacionalista. Após a vitória contra o colonialismo português, os momentos épicos que se viveram teriam estimulado a coesão social de todos os moçambicanos, unidos do Rovuma ao Maputo. Se uma nação pressupõe a existência de laços de fraternidade no seio de uma população, os anos de 1974 e 1975 teriam sido decisivos para essa formação.

9 Independentemente das cores partidárias dos emissores de opinião, reconheceu-se à Frelimo e a Samora Machel uma importância histórica neste processo de unificação do povo moçambicano:

A Frelimo era a força organizada que trazia consigo o carisma da unidade moçambicana (Máximo Dias6, entrevistado por Nhancale e Cossa 13.09.2002b: 5). Nessa altura escutava todos os discursos do Samora e os decorava para imitá- lo e gingar ante outros moços da minha idade e alguns mais velhos. (Fernando Mazanga7, 23.06.2000: 12).

10 Em 1975, muitos moçambicanos desconheciam os novos governantes que substituíam os portugueses no poder (Newitt, 1997: 466; Isaacman e Isaacman, 1983: 111). A necessidade de incrementar a unidade nacional bem como a mobilização das massas estavam no centro da estratégia política do governo moçambicano, especialmente nas regiões onde a população havia tido uma maior influência do regime colonial, e pouco contacto com a Frelimo. Foi neste contexto que se sentiu necessidade de instituir um conjunto de organismos – entre os quais os Grupos Dinamizadores ou a Organização de

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Mulheres Moçambicanas – cujas funções se orientavam, entre outros aspectos, para a divulgação política do Partido e para o envolvimento dos cidadãos no processo revolucionário. Sob a alçada do Ministério da Informação, ao Departamento de Trabalho Ideológico cabia-lhe a promoção de ideais relacionados com a união nacional, com o envolvimento na produção, com a promoção da igualdade, com a emancipação da mulher ou com a luta contra todas as formas de exploração (Isaacman e Isaacman, 1983: 112). Na imprensa, na rádio, nos muros, ou por intermédio dos pequenos organismos do Partido (espalhados pelos inúmeros bairros ou pelas diversas unidades económicas), o contexto histórico era de intensa mobilização ideológica. Salientando a ilegitimidade do poder colonial, a Frelimo demonstrou a capacidade de se afirmar como força política mobilizadora de muitos moçambicanos, com vista à edificação de um Estado-nação. Os discursos oficiais negavam o separatismo e a divisão, ignorando particularismos tribais, regionais, raciais ou religiosos8. O Presidente e diversos quadros do Partido realizaram inúmeras viagens pelas províncias do país, no sentido de promoverem a unidade nacional, a esperança e o optimismo no futuro, bem como a confiança das populações no projecto da Frelimo (Isaacman e Isaacman, 1983: 111). Por intermédio das campanhas de vacinação ou de alfabetização (envoltas na transmissão de conteúdos teóricos marxistas e anticoloniais) a acção do Estado teve implicações na vida concreta de muitas pessoas, transmitindo aos actores sociais um sentimento de pertença a uma comunidade territorial e política chamada Moçambique. A Frelimo, os seus líderes e heróis, bem como diversos slogans revolucionários tornaram-se triviais para muitos moçambicanos.

11 Fernando Mazanga retrata o ambiente revolucionário vivido no período imediato à independência, responsável pelo desmantelamento das estruturas de organização coloniais:

Nós começámos a escalar os prédios, as empresas eram tomadas a toda a pressa e até chegámos a ter governadores provinciais que nem sei se tinham a 4ª classe... Era a euforia da Independência. Mas não se conseguia ver esse bicho chamado Independência, senão a substituição do branco pelo preto. No Aparelho de Estado, assistimos àquilo que se chamou de escangalhamento do Aparelho colonial, a vingança do oprimido, enfim a libertação do escravo (…) Dizia-se que tinha chegado a vez de os moçambicanos se governarem, de ser expulso o português, o colonizador. Não entendi bem o que era isso, mas optei por ser optimista (Mazanga, 23.06.2000: 12).

12 Com o acentuar do sentimento de desconfiança em relação aos colonos portugueses (na sequência da sua mobilização a 7 de Setembro de 1974), e mais tarde perante as agressões militares da Rodésia ou da África do Sul, os discursos oficiais continham uma componente fortemente ideológica, de carácter anticolonial. Este novo discurso procurava despertar politicamente os moçambicanos, tornando-os conscientes de que tinham sido colonizados, bem como dos conflitos de classe que estiveram subjacentes. Não obstante a diversidade sociocultural existente em Moçambique, a existência de um Outro opressor, de um inimigo comum do povo moçambicano, outro efeito não teve senão o de reforçar um sentido de unidade nacional, nomeadamente nos contextos onde se registou maior contacto com os ideais da Frelimo. A moçambicanidade emergiria numa sociedade que, esclarecida pelos discursos do Partido, despertava a consciência para um único pólo de contradição: colonizadores e colonizados; exploradores e explorados; apartheid e liberdade. Tratava-se de uma visão muito simplista e maniqueísta do Real, onde os africanos constituíam as vítimas de um

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anterior sistema despótico e injusto, promovido pelos colonialistas exploradores e opressores. Este discurso servia objectivos políticos, relacionados com a edificação de um Estado-nação e com a legitimação da autoridade do partido-Estado.

13 Para além do sentimento anticolonial, os discursos nacionalistas colocaram o enfoque na aquisição de direitos de cidadania, nomeadamente no campo social, cívico e cultural, o que permitiu a inclusão social de muitos moçambicanos. Os direitos sociais referidos nas peças jornalísticas relacionaram-se sobretudo com a igualdade de acesso ao mercado de trabalho: “A área da imprensa, no tempo colonial, era reservada a uma minoria branca, mas com a Independência foi aberta a todos os moçambicanos” (Paul Fauvet, entrevistado por Nhancale, 29.06.2001f: 13).

14 Um dos objectivos políticos da Frelimo, desde a guerra pela independência, orientava- se para conferir a todos os moçambicanos as mesmas oportunidades no acesso à saúde, à educação ou ao emprego (Mondlane, 1995: 135-144). Tratava-se de eliminar, em parte, as desigualdades sociais e os estatutos sociais que diversos grupos haviam adquirido durante o período colonial. Para diversos entrevistados, a extensão dos direitos sociais a muitos moçambicanos foi assegurada pela nacionalização dos sistemas de saúde e de educação, bem como dos prédios de arrendamento. O novo governo pretendia eliminar as antigas e opressivas estruturas coloniais e substituí-las por novas instituições que proporcionassem uma maior igualdade de oportunidades a todos os moçambicanos. Nos anos de 1975 e 1976 o Estado nacionalizou os estabelecimentos de ensino e as clínicas privadas, bem como os imóveis de habitação não utilizados como residência pelos respectivos proprietários. Com esta última medida, o Estado proporcionou o realojamento de cerca de 150.000 moçambicanos, remetidos até então para os bairros de caniço (Isaacman, 1978: 79). Com a fuga dos portugueses, milhares de moçambicanos passaram a aceder a infra-estruturas e serviços que, até então, eram sobretudo apanágio da população de origem europeia.

15 A aquisição de direitos civis mereceu igualmente um particular destaque nos emissores de opinião do Savana. Relacionaram-se, sobretudo, com a aquisição da liberdade individual e com a instituição da igualdade entre todos os cidadãos, independentemente da origem racial, do estatuto social, ou das suas convicções religiosas. De acordo com as vozes em análise, os moçambicanos adquiriram a possibilidade de decidir acerca das suas próprias vidas, de conduzirem os seus próprios destinos, ainda que nem sempre tomando as melhores opções. Como refere o jornalista Noé Dimande (07.09.2001: 32), “só quem não viveu o desgosto do colonialismo é que pode querer questionar o Dia da Vitória, quando os moçambicanos ganharam também o direito de errar”. Para o empresário Martinho de Almeida (entrevistado por Machava e Munguambe, 08.09.2000e: 4), o facto de os moçambicanos poderem fazer escolhas de acordo com as suas consciências confere-lhes hoje “uma outra dignidade”. Como referia Amade Camal9:

A igualdade era o valor básico e elementar. A emoção atingiu as raias da loucura. Éramos, de facto, todos iguais uns aos outros. Servente igual ao médico, o médico igual ao enfermeiro. O contínuo igual ao engenheiro, o chefe de grupo dinamizador superior ao patrão ou director, os guerrilheiros eram todos comandantes, as balalaicas eram todas dos chefes... enfim, uma verdadeira camaradagem. Foi a revolução em que todos nós participamos voluntariamente e afincadamente (Camal, 23.06.2000: 24).

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16 Recuperando os discursos emotivos e o ambiente utópico e contraditório dos projectos revolucionários, Amade Camal salientou a igualdade sentida entre todos os trabalhadores, uma vez eliminados os antigos estatutos profissionais. Apesar de afirmar a igualdade absoluta de todos os cidadãos, Amade Camal admite, ainda que de forma invertida, a existência de hierarquias de poder. Do seu discurso subentende-se que o controlo dos meios de produção não foi eliminado, mas antes transferido para o chefe do grupo dinamizador, que passa a ser “superior ao patrão ou director”. A proclamação da igualdade entre todos os cidadãos nacionais, sob a égide dos valores marxistas, não significou necessariamente a eliminação das relações de poder, mas a sua substituição por novas formas de dominação, consentâneas com a nova ordem estabelecida.

17 No campo dos direitos culturais, relacionados com o respeito pela pluralidade e pelas diferenças etnoculturais, Diogo Guilande (23.06.2000: 21) salientou “o estabelecimento e constituição de uma sociedade com cultura do respeito pelo alheio e por outrem”. No campo da cultura, Malangatana Nguenha (23.06.2000: 20) realçou a liberdade de expressão artística adquirida após a independência de Moçambique. O pintor moçambicano salientou também o empenho das instituições governativas na valorização da arte e da cultura, por intermédio da criação de instituições e de eventos culturais. Tratou-se do que Diogo Guilande (23.06.2000: 21) designou como uma “preocupação permanente pela identidade (falo dos festivais nacionais de cultura, das exposições de arte, dos jogos escolares, das jornadas científicas, etc. etc.)”. Com vista a promover os novos valores revolucionários, esta política cultural não deixou de divulgar a resistência ao regime colonial por parte de diversos moçambicanos. Neste sentido, o programa de desenvolvimento do Governo apostou fortemente num aspecto da cultura moçambicana (crítica à presença portuguesa) que o regime colonial havia distorcido e mesmo sonegado.

18 Saliente-se que não se registou qualquer menção à aquisição de direitos políticos. Apesar de terem sido efectuadas repetidas referências ao conceito de liberdade, em nenhuma das situações ele esteve relacionado com o direito de voto, com a liberdade de associação e de participação política, bem como de acesso a uma informação livre e isenta. Como veremos em seguida, registaram-se inúmeras referências aos mecanismos de privação deste direito, impostos pelos dirigentes da Frelimo, e denunciou-se o carácter despótico do Estado que emergiu após a independência de Moçambique. Este aspecto terá frustrado as expectativas de muitos moçambicanos que, tendo beneficiado de algumas oportunidades educativas facultadas no final do período colonial, ambicionavam intervir directa ou indirectamente nos destinos do país.

19 Não obstante as tensões internas resultantes do conflito armado que envolveu Moçambique, bem como as críticas registadas ao despotismo e aos erros políticos cometidos pela Frelimo, não deixou de se salientar a sobrevivência do projecto de edificação de um Estado-nação, sobretudo por parte dos dirigentes do partido no poder. Estes discursos merecem ser analisados num contexto de pós-guerra civil, onde a unidade nacional representa um valor inquestionável.

O despotismo marxista

20 Os discursos acerca do valor da independência e do sentimento nacionalista não invalidaram a existência de críticas ao desempenho do partido no poder. Estabeleceu- se, assim, uma clara distinção entre, por um lado, o país e a suposta nação – entidade à

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qual todos pertencem – e, por outro, o Estado, que foi monopolizado pelo partido único. As denúncias orientaram-se sobretudo para o comportamento despótico da Frelimo na negação de direitos cívicos e políticos (e sociais) aos cidadãos, bem como para a responsabilidade do partido-Estado na guerra civil que assolou o país. Os emissores de opinião criticaram ainda as opções do Estado quanto à criação de uma economia socialista, com consequências nefastas para Moçambique. Tratou-se de assuntos explorados sobretudo por políticos opositores ao partido no Governo (60%), mas também por jornalistas (19%) e por dirigentes de associações humanitárias (8%).

21 A principal crítica realizada ao comportamento do Estado, dirigida sobretudo ao período de partido único, relacionou-se com as privações impostas aos moçambicanos, do exercício de direitos cívicos e políticos, como a liberdade individual ou a possibilidade de participação e de associação política. As denúncias orientaram-se para o que se designou de monopartidarismo ou de totalitarismo do partido-Estado, nomeadamente para a recusa da Frelimo em partilhar o poder em Moçambique e para o regime de intolerância política que foi instituído. Afonso Dhlakama (entrevistado por Nhancale e Cossa, 13.09.2002a: 5), figura central de oposição ao partido Frelimo, descreveu o 7 de Setembro como “tendo servido à Frelimo para cimentar a arrogância e o abuso do poder que ainda hoje lhe caracteriza”. De acordo com as vozes em análise, após a euforia inicial e as expectativas de liberdade de participação política, o decurso dos acontecimentos tornou-se opressivo e decepcionante para muitos moçambicanos. Denunciaram-se ainda diversos atentados a direitos cívicos como a liberdade de expressão e de deslocação. O ambiente retratado caracteriza-se pela perseguição política de todos aqueles que pudessem constituir oposição ao partido no poder:

O Povo que se liberta do secular domínio estrangeiro, cedo, o júbilo independentista foi encarcerado pela ditadura partidária, sem liberdade de pensamento, de expressão e até de deslocação de um local para outro local dentro do próprio País (Máximo Dias, 23.06.2000: 8). Era preciso ter um freio na língua, pois de contrário o SNASP vinha te buscar para parte incerta. Os moçambicanos começaram a desconfiar-se mutuamente (Fernando Mazanga, 23.06.2000: 12).

22 David Aloni10, Domingos Arouca11 ou Amade Camal descreveram as estruturas repressivas utilizadas pela Frelimo, nomeadamente a brutalidade das forças de segurança, as perseguições políticas, as prisões e a instituição de campos de reeducação e, inclusive, a pena de morte por fuzilamento:

O ambiente [do aeroporto de Lourenço Marques] não era muito convidativo, porque era deveras de terror e assustador. Homens armados por todos os lados. Caras de poucos amigos. Parecia não haver espaço para a livre circulação dos passageiros recém-desembarcados, fossem eles moçambicanos ou estrangeiros. Abriam-se as malas a torto e a direito sem o mínimo de maneiras e muito menos de delicadeza. A mínima observação aos polícias- soldados era motivo suficiente para receber em troca uma boa ameaça com uma karashinov ou AKM 47 (David Aloni, 23.06.2000: 22) Colaboradores internos foram identificados. Começou o inferno das prisões, campos de reeducação, fuzilamentos (Amade Camal, 23.06.2000: 24).

23 A African Commission for Human and People’s Rights (1999: 7) refere a existência de violações sistemáticas dos direitos humanos cometidas por membros das forças de defesa e de segurança, nomeadamente por militares, funcionários da polícia e do

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Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP)12. De acordo com o relatório, a agressão, a tortura e os castigos corporais constituíram práticas punitivas de transgressões por vezes não cometidas. Uma vez no poder, a Frelimo realizou acções de perseguição, de marginalização e, inclusive, fuzilamento de potenciais candidatos ao poder, baptizados de inimigos da revolução ou de reaccionários13. Estes acontecimentos eram justificados pelo poder instituído pelo conflito que se vivia na região da África Austral, e pelo clima de tensão social que caracterizava o panorama moçambicano.

24 A propósito das atitudes da Frelimo para com a comunicação social, o jornalista Machado da Graça (30.06.2000: 9) comentou a utilização de métodos repressivos: “Mas a forma como éramos encarados pelo poder deixava-nos extremamente surpreendidos. Aqueles que supúnhamos terem vindo para nos libertar oprimiam-nos quase da mesma forma que os colonialistas!”. O comportamento político da Frelimo teve como consequência o desenvolvimento de um clima de medo, de autocensura e de atrofiamento do sentido crítico dos intelectuais.

25 Os moçambicanos que beneficiaram de maiores oportunidades educativas, muitos dos quais no final do período colonial, alimentaram maiores expectativas de participação num sistema mais democrático. Essas esperanças foram no entanto frustradas por um sistema ditatorial, que excluiu dos centros de poder diversos grupos sociais não identificados com os valores do partido-Estado. Mais próxima dos centros de tomada de decisão (mas condicionada no acesso), a pequena burguesia moçambicana em ascensão tende a partilhar uma cultura política democrática e participativa, concentrando a sua atenção nos direitos cívicos e políticos de cidadania. Residente em Maputo e com maior acesso à informação e ao mundo exterior, este grupo tende a orientar os discursos para questões relacionadas com a organização do Estado ou com os processos de tomada de decisão. Estas críticas à Frelimo integram-se, por isso, num conflito partidário, num contexto político de transição para a democracia.

26 Comparativamente com a maioria da sociedade moçambicana, os grupos sociais que obtiveram voz no Savana constituem elementos portadores de uma cultura política mais participativa e com maiores expectativas de aquisição de direitos políticos. Neste contexto, torna-se compreensível que os dirigentes de partidos da oposição, bem como de associações humanitárias, associem o início da guerra civil à atitude de um partido- Estado intolerante relativamente às diversas orientações políticas (e socioculturais):

Máximo Dias considera que a guerra que opôs a Renamo ao governo estabelecido pela Frelimo em 1975 (…) foram 16 anos de destruição e de birra por culpa do partido no poder que não quis dialogar ou democratizar o País logo após a Independência (Machava e Salema, 25-06-1999d: 16). A guerra foi a consequência lógica da falta de abertura política e diálogo sério sobre as várias vertentes de pensamento político (Alice Mabote14, entrevistada por Machava e Salema, 25.06.1999c: 16).

27 No campo dos direitos sociais, Fernando Mazanga (23.06.2000: 12) referiu-se à discriminação social existente em Moçambique com base nas filiações partidárias dos cidadãos, nomeadamente nos campos educativo, da saúde e da segurança pública. De acordo com o porta-voz da Renamo, “quando a Independência verdadeira e genuína chegar, na Polícia, nas escolas, nos hospitais, os moçambicanos deixarão de ser discriminados com base na sua filiação partidária”.

28 Um outro aspecto que foi criticado, e que entra em contradição com os discursos nacionalistas anteriormente analisados, prendeu-se com a questão da intolerância

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cultural e com o desrespeito pelos costumes tradicionais africanos. Os deputados da Renamo foram aqui particularmente incisivos:

Ora essa, os usos e costumes africanos também não eram poupados. Vi meu pai receber na calada da noite alguns ministros que queriam serem bem vistos pelo chefe, ou resolverem problemas das suas famílias... Afinal estes libertadores tinham duas caras: Uma de dia, que insultava curandeiros e outra à noite, que os consultava! Meu pai teve que juntar curandeiros amigos seus para contribuírem algum dinheiro para apoiarem o Congresso da Frelimo e assim “engraxarem” para poderem exercer a sua profissão! (Fernando Mazanga, 23.06.2000: 12).

29 Com as suas políticas, a Frelimo procurava desmantelar as estruturas das sociedades tradicionais africanas e reorganizar a sociedade moçambicana em moldes modernos. Privilegiando determinados objectivos (modernização, aumento da produção e unidade nacional na luta contra o apartheid), a idealização de uma nova sociedade implicou uma série de reformas que afectaram os interesses tradicionais de toda a ordem – a identidade étnica, a religião, a organização familiar, o poder local, a lei ou o casamento tradicional15. Ao adoptar um nacionalismo de carácter marxista e anticolonial como uma ideologia moderna e justificativa de uma nova ordem social, a construção dessa moçambicanidade teria inevitavelmente que passar pela reinvenção da tradição. De acordo com as vozes no texto era legítima a demonstração pública da cultura moçambicana, desde que ela explorasse questões revolucionárias e anticoloniais.

30 Neste processo interagiram, de forma desarticulada, dois tipos de forças sociais. Por um lado as sociedades rurais, possuidoras dos seus sistemas identitários de organização e de reprodução social e, por outro, o partido-Estado, composto por grupos sociais oriundos das culturas locais e que estruturaram os seus sistemas de valores no seio de uma cultura ocidental16. De acordo com Malyn Newitt (1997: 472), nos meios rurais eram poucos os que se identificavam fortemente com a Frelimo e se sentiam como beneficiários inequívocos das mudanças propostas. A Renamo teria posteriormente procurado aproveitar o descontentamento rural para adquirir uma base de apoio ao longo da guerra civil que assolou o país.

31 Estas críticas ao governo moçambicano nos campos cívico, político e cultural levam a concluir que o projecto de criação de um Estado-nação em Moçambique assentou sobretudo numa ideologia política (neste caso marxista e anticolonial) e nunca na realidade do país. Se se considerou que a expectativa de aquisição de direitos de cidadania reforçou um sentimento nacionalista, esses mesmos direitos foram mais vezes referidos pelas suas violações do que pela sua conquista. Como ironizava Amade Camal (23.06.2000: 24): “Estar preso fazia parte do «certificado» da nacionalidade”.

32 Um outro aspecto particularmente criticado ao governo da Frelimo relacionou-se com as políticas marxistas adoptadas logo após a independência de Moçambique. Para além da forma despótica como se implementou o modelo económico, responsabilizaram-se essas medidas pelo atrofiamento da iniciativa privada e da procura de lucro. As vozes de denúncia foram, sobretudo, oriundas dos partidos políticos da oposição, nomeadamente da Renamo, do Monamo, do FUMO-PSD e do CDU:

É preciso também juntarmos a falta do esforço empreendido por aqueles que tinham o leme do desenvolvimento. Quero falar do comunismo doentio que assolou a terra, um comunismo que eu comparo com o colonialismo, um comunismo que desvaneceu os sonhos, violou os direitos dos cidadãos

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através da polícia, enfim um comunismo que logo de seguida foi transformado por um monopartidarismo voraz (António Palange17, entrevistado por Machava e Munguambe, 08.09.2000d: 4).

33 Ao longo das peças jornalísticas foi consensual que a nacionalização dos prédios de arrendamento conferiu melhores condições de habitação a milhares de famílias africanas. Contudo, diversos emissores de opinião mostraram-se bastante críticos quanto à colectivização das unidades económicas, responsável segundo eles pelo atrofiamento da iniciativa privada e pelo aparecimento de novas injustiças sociais e formas de exploração:

Vi o meu pai gozar o fruto da Independência: Comprou um estabelecimento comercial a um branco. Meu pai não tinha estudado por aí além. As leis que dominava eram as costumeiras, não conhecia a legislação ordinária. A loja comprou em Janeiro de 1975. O colono levou a massa e foi-se! Algum tempo depois a loja do meu pai era nacionalizada! Passava para a APIE! Bolas, que raio de Independência era esta? Afinal não era para os moçambicanos se beneficiarem dela? Pois havia agora uma outra classe de raça negra que havia substituído a classe dos brancos exploradores? (Fernando Mazanga, 23.06.2000: 12).

34 A colectivização dos meios de produção terá frustrado as expectativas iniciais e empreendedoras de uma emergente pequena burguesia africana que, com a partida dos proprietários coloniais, antevia um futuro promissor no sector privado da economia. Inspirando-se em valores capitalistas, esta nova burguesia proprietária deparou-se, no pós-independência, com novos obstáculos à mobilidade social. Se o projecto político inicial, de promoção da igualdade entre todos os moçambicanos, entusiasmou todos os grupos sociais que obtiveram voz no Savana – independentemente das suas orientações políticas –, a forma como foram reconstruídas as relações de produção foi geradora de insatisfação. A nova ordem estabelecida, de cariz marxista, não invalidou a existência de conflitos e contradições, ainda que silenciados pelo medo e pelas estruturas repressivas do Estado. As políticas adoptadas pela Frelimo teriam estado demasiado arraigadas nas teorias marxistas e menos na realidade moçambicana, tendência que se agravou à medida que o Partido vincou o seu carácter autoritário, distanciando-se cada vez mais dos moçambicanos.

O empobrecimento socioeconómico

35 Ao longo dos discursos sobre a independência de Moçambique publicados em entrevistas e reportagens, o empobrecimento socioeconómico do país constituiu um assunto dominante. Tratou-se de um tema abordado sobretudo por dirigentes e quadros de partidos políticos da oposição (28%) e por jornalistas (28%), embora tenha sido referido, ainda que de forma mais moderada, por elementos do partido Frelimo (14%). Estes grupos sociais descreveram um cenário preocupante. Tratou-se de um vasto conjunto de problemas sociais, como as dificuldades de acesso de muitas populações à energia eléctrica e a bens de primeira necessidade (água e alimentos), a prevalência de doenças e enfermidades ou as elevadas taxas de mortalidade. Tratou-se, ainda, de questões como o desemprego e o agravamento do custo de vida, os baixos índices de frequência escolar e a má formação dos recursos humanos do país. Como referiu o jornalista Noé Dimande, “são muitos os moçambicanos que (…) vivem na

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escuridão do [sub]desenvolvimento”. A agravar este cenário de extrema pobreza considerou-se ainda que, perante a inoperância das forças policiais, o aumento da insegurança e da criminalidade tendia a deteriorar as relações sociais. No campo económico, constatou-se o endividamento ou a falência dos empresários nacionais, ou o fraco rendimento da agricultura, predominantemente de subsistência. As transcrições que se seguem são exemplificativas:

Actualmente, mais de 67% dos nossos empresários estão tecnicamente falidos, estão alta e irremediavelmente endividados na Banca e não pagam aos seus fornecedores, pelo que o seu desaparecimento como unidades económicas já é um dado adquirido (Máximo Dias, 23.06.2000: 8).

36 Contudo, as condições de vida da maioria da população têm vindo a deteriorar-se cada vez mais. Este facto está aliado aos níveis de pobreza extrema, originando o aumento de doenças, tais como a malária, cólera, HIV/SIDA, tuberculose, mortalidade materno- infantil (Artimiza Franco, 23.06.2000: 19).

37 Tal como a maior parte dos países da África subsariana, em praticamente todos os indicadores (esperança de vida, taxa de alfabetização, taxa de matrículas em escolas primárias, secundárias e no ensino superior, PIB per capita e valor do índice de desenvolvimento humano), Moçambique encontra-se na escala mais baixa do bem- estar. Procurando-se no passado uma imagem inversa do presente realizaram-se diversas comparações da actual capacidade produtiva, com a existente no país durante o período colonial:

38 Os distritos de Chókwè, na província de Gaza, e Angónia, na província de Tete, como celeiros da Nação, apenas são reconhecidos pela História. Grave ainda é o facto de nenhum outro distrito ter-lhes substituído, via produção maior. Quase todos os distritos vão-se arruinando (Ericino Salema18, 29.06.2001: 4).

39 De acordo com os emissores de opinião do semanário Savana, para o agravamento destas condições socioeconómicas foram determinantes os efeitos da guerra civil que assolou o país durante dezasseis anos. Da análise das peças jornalísticas constata-se que cerca de um terço (30,1%) dos comentários acerca do empobrecimento económico do país associaram esse fenómeno precisamente às consequências do conflito armado. A descrição dos efeitos da guerra civil na sociedade moçambicana foi realizada com o recurso a verbos e adjectivos particularmente incisivos: “consequências maléficas”; “guerra que dilacerou o país”; “guerras devastadoras”; “ferrenha e desumana guerra civil”; “estragos incalculáveis”; “abalou o país”. Artimiza Franco caracterizou o cenário social (pós) guerra civil da seguinte forma:

Esses foram os momentos das grandes carências de bens alimentares, de uma ferrenha e desumana guerra civil, de uma nova geração de pedintes, da proliferação de refugiados um pouco por toda a região da África Austral, dos refugiados de guerra que provocaram a superlotação das cidade, ruptura do sistema de manutenção urbanístico (esgotos, drenagem, alinhamentos e arruamentos). Do surgimento do fenómeno criança soldado, menino da rua e na rua, do surgimento dos chapa 100, dos dumba nengue, do grande fluxo de imigrantes ilegais nos países vizinhos, ao aumento do índice de criminalidade (Franco, 23.06.2000: 19).

40 A guerra civil foi responsável pela destruição de infra-estruturas, pela sabotagem de alvos económicos e pela paralisação do desenvolvimento económico do país. Como

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referiu o jornalista Carlos Cardoso (entrevistado por Machava e Salema, 25.06.1999f: 16), “com esta guerra perdemos décadas em termos de criação de bases materiais para o desenvolvimento do País, nomeadamente pontes, estradas, comércio e outras coisas”. Na justificação do subdesenvolvimento de Moçambique, a recorrência aos efeitos destrutivos da guerra constitui uma estratégia política adoptada com frequência pelo partido Frelimo. Ainda que admitindo as consequências negativas da guerra no processo de desenvolvimento económico do país, não deixou de se salientar, por vezes com orgulho evidente, o contributo dado por Moçambique no desmantelamento dos regimes políticos vigentes na Rodésia e na África do Sul.

41 Em finais da década de 1980, Moçambique viveu a pior crise económica de sempre19. Face à necessidade de apoio externo, o país vê-se pressionado a reduzir a intervenção do Estado e a liberalizar a economia, bem como a realizar uma abertura ao investimento estrangeiro. Apesar de nas peças jornalísticas se ter reconhecido os benefícios da introdução de um regime económico liberal, nomeadamente na saúde e na educação, o facto é que estas medidas foram associadas ao aumento das desigualdades sociais em Moçambique. Num quadro de transição para o liberalismo, o Estado torna-se cada vez menos distribuidor e protector e cada vez mais fictício. Neste contexto criticou-se a sociedade emergente do regime liberal, que passou a estar cada vez mais dependente de interesses capitalistas, prestando cada vez menos atenção às questões sociais que terão norteado o projecto independentista. Nestes comentários não deixou de se tecer uma reflexão acerca da crise dos direitos sociais de cidadania, nomeadamente na reprodução das desigualdades existentes no país. Como foi referido, no período pós-independência foram valorizados um conjunto de direitos sociais (em matéria de saúde, de educação ou de habitação) que foram estendidos à população moçambicana, sendo as críticas dirigidas para os limites impostos aos direitos cívicos e políticos dos cidadãos. Com a transição para a democracia e a tendência de liberalização das relações políticas e dos mercados, registou-se uma inversão nas representações sociais acerca dos direitos de cidadania.

42 Se o projecto inicial aquando da independência era bastante optimista, cerca de duas décadas e meia depois ele apresentou-se falido aos olhos de vários emissores de opinião. Como respondeu o professor universitário Diogo Guilande (23.06.2000: 21) à questão por si formulada “O que foi a realidade? É só ler o projecto ao contrário com muita mágoa”. Se um dos objectivos do movimento revolucionário que terá envolvido as populações em torno da Frelimo era a edificação de um país que disponibilizasse a todos os moçambicanos melhores condições de vida (em termos de consumo, saúde e educação), a realidade actual é altamente decepcionante: “Mesmo assim, sempre de joelhos, por mais esmola que aqui caia, parece um poço sem fundo – desaparece logo. E continuamos de joelhos, ou, o que é pior ainda, de gatas” (Domingos Arouca, 23.06.2000: 31).

43 Este estado de espírito foi expresso no cartoon publicado no suplemento humorístico do Savana de 6.9.2002 a propósito da Cimeira de Joanesburgo sobre o desenvolvimento sustentável, realizada em Agosto e Setembro do mesmo ano:

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44 Estas representações sociais enquadram-se num sentimento relativamente generalizado entre jornalistas e políticos da oposição, conhecido por afro-pessimismo20. Trata-se da percepção de que os países africanos constituem regiões sem esperança, marcadas pela pobreza e pelo subdesenvolvimento, pela corrupção e pela violência política. Os processos de reprodução das desigualdades sociais traduzem-se num contínuo aumento do fosso entre os países desenvolvidos e os em vias de desenvolvimento. A omnipresença destas representações sobre África conduz os actores sociais a tecerem projecções negativas para o futuro do continente. Neste cenário de pessimismo e de frustração, a ideia dominante é que, apesar de Moçambique ter adquirido a independência política, o país encontra-se economicamente dependente do exterior. Aquilo que não é uma conquista prende-se com a tradução da independência política em condições socioeconómicas dignas para os cidadãos moçambicanos. Apesar de constituir uma realidade dramática para a maioria das populações, a constatação do fenómeno da pobreza em Moçambique realizada no Savana não pode deixar de ser enquadrada num processo de conflito partidário. O facto de 28% de todos estes comentários terem sido realizados por quadros e dirigentes de partidos políticos da oposição exprime a existência de uma atitude de contestação em relação à política governamental. Se a Frelimo procura obter protagonismo político com a celebração de datas como o 7 de Setembro, os partidos da oposição contrapõem com a exploração de assuntos como o empobrecimento e a dependência económica de Moçambique, procurando assim desvalorizar o papel do partido no poder.

O desenvolvimento socioeconómico

45 Apesar da prevalência dos comentários acerca do empobrecimento económico do país, valorizaram-se uma série de medidas tomadas nos sectores da educação, da saúde, da habitação e da cultura, sobretudo nos primeiros anos da independência, bem como um

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conjunto de projectos de investimento nos sectores agrícola e industrial. Mais de metade destas referências foram efectuadas por dirigentes ou quadros do partido Frelimo (53%). Pela ultrapassagem de inúmeras contrariedades, como a partida de milhares de professores, a falta de livros escolares ou de salas de aula, foi no campo da educação que se enalteceram, com maior orgulho, as medidas implementadas pelo governo de Samora Machel. A Frelimo acreditava que o futuro do país residia na construção de uma economia moderna, baseada numa agricultura mecanizada e no desenvolvimento industrial, sectores que seriam cada vez mais servidos por moçambicanos qualificados. Uma das palavras de ordem do Partido relacionava-se com o que designava de emancipação do povo moçambicano, de criação de um Homem Novo, liberto dos valores coloniais. A ignorância foi considerada uma forma de opressão, pelo facto não só de privar os cidadãos de uma consciência política, como de os tornar supersticiosos e dependentes de práticas tradicionais, o que os conduzia à subjugação e à pobreza. Neste sentido, a ciência e a ideologia revolucionária iriam substituir a tradição (Newitt, 1997: 470). Importava promover a identificação dos moçambicanos com os projectos políticos da Frelimo, pelo que se montou uma campanha educativa, extensiva a todo o país, nas cidades e nas aldeias, nas fábricas, nas unidades agropecuárias estatais e nas cooperativas (Isaacman e Isaacman, 1983: 139). De acordo com Malyn Newitt (1997: 470), nos primeiros anos da independência de Moçambique “desenvolveram-se esforços ainda maiores para aumentar os conhecimentos da língua e alfabetizar as pessoas na língua de Camões e Caetano do que os alguma vez desenvolvidos pelo próprios portugueses”.

46 De acordo com a amostra em análise, o sector social que mais beneficiou com a independência de Moçambique foi precisamente o da educação. Comparando o actual sistema educativo com o que vigorou no sistema colonial, as vozes em questão constataram a existência de mais estabelecimentos de ensino (com destaque para o universitário), bem como de um ensino mais moderno e menos eurocêntrico. Este desenvolvimento traduziu-se, segundo os textos, na diminuição das taxas de analfabetismo e no aumento das qualificações dos recursos humanos.

Certamente que hoje há melhor vida que a que tenha havido em mais de 500 anos de colonialismo. Há mais hospitais, há mais escolas, e de apenas uma universidade com nada mais do que 300 estudantes, hoje temos mais de uma dezena de instituições de ensino superior, acolhendo milhares de estudantes de todos os estratos sociais e de todas as etnias do País. Estes são resultados palpáveis da Independência (Fernando Gonçalves21, 27.09.2002: 6).

47 Apesar de ter merecido uma menor atenção, no sector da saúde os quadros da Frelimo não deixaram de enaltecer os esforços do governo moçambicano na expansão da assistência médica pelo país, sobretudo nos primeiros anos de independência:

Apesar de possuir à data da Independência o menor número de médicos no Mundo, o novo governo de Moçambique erradicou a varíola do País e, com a construção de mais hospitais e centros de saúde, formação acelerada de médicos e enfermeiros, expandiu a assistência médica para milhões de moçambicanos em todo o território nacional. Hoje, um quarto de século depois, o País tem o número recorde de cerca de quinhentos médicos (Joaquim Chissano, 23.06.2000: 4).

48 A maioria dos médicos portugueses havia partido antes da independência, pelo que qualquer campanha sanitária dependia em grande parte de pessoal médico contratado

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do exterior22. Apesar das dificuldades realizaram-se extensos programas de prevenção primária pelas povoações rurais (onde vivia a maioria das populações), bem como a reestruturação de hospitais, para os tornar acessíveis às necessidades de saúde dos moçambicanos (Isaacman e Isaacman, 1983: 120). Apesar da falta de equipamentos médicos e de recursos humanos especializados, as campanhas nacionais de vacinação contra a varíola, o tétano e o sarampo abrangeram, em 1979, cerca de 90% da população. A taxa de mortalidade infantil diminuiu 20% durante os primeiros cinco anos de independência, tendo o impacto destes programas sido reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (Isaacman e Isaacman, 1983: 139). Mais uma vez, o mérito destas conquistas não deixou de ser associado às nacionalizações realizadas no período pós-independência (Alice Mabote, entrevistada por Machava e Salema, 25.06.1999c: 17).

49 Este cenário optimista não encontra consonância com a investigação de Carlos Serra sobre a precariedade social nas principais cidades do país. Em observações efectuadas em unidades hospitalares públicas localizadas na periferia das cidades de Nampula, Beira e Maputo, Serra (2003: 45-48) traçou um cenário bastante negativo do sistema de saúde. De acordo com a sua equipa de observadores, o ambiente geral das instalações era de incúria (falta de manutenção, mau cheiro e sujidade) e registaram-se frequentes cortes de energia, bem como a falta ou avaria de equipamentos. Os observadores constataram ainda a existência de longas e demoradas filas de espera, bem como a corrupção e a falta de profissionalismo dos funcionários (enfermeiros e serventes). Apesar de resignados com a situação, os pacientes queixaram-se com frequência da qualidade do serviço e, ao longo de críticas mordazes, o Estado era particularmente visado. Os utentes revelaram ter noção de que estavam a usufruir de um hospital para pobres, e que a população de origem europeia ou asiática, bem como os mulatos, frequentavam clínicas privadas na cidade.

50 No campo cultural, o pintor Malangatana Nguenha (23.06.2000: 20) representou uma voz defensora desse desenvolvimento. No artigo de opinião intitulado “25 anos de cultura moçambicana em crescimento”, o pintor fez referência ao trabalho das instituições políticas do país em defesa da arte moçambicana: “Abriram-se imensas portas que permitiram tornar a nossa cultura conhecida no mundo. Diversos grupos têm sido os melhores embaixadores culturais em diversos países”.

51 Em termos de desenvolvimento económico destacou-se a realização de um conjunto de empreendimentos, de maior visibilidade mediática, que tiveram lugar em Moçambique ao longo da sua independência. Entre outros projectos realçaram-se os complexos agro- industriais estatais23, os investimentos no sector hidroeléctrico e, já no final do século, os empreendimentos em sectores como o açúcar, o alumínio ou o gás natural. Com a transição do país para um regime democrático e garantida a estabilidade política e militar, a partir da década de 1990 Moçambique passou a oferecer condições mais atractivas ao investimento externo. Apesar do cenário de empobrecimento geral, os deputados do partido Frelimo preferiram salientar os “momentos de grande explosão em termos de desenvolvimento” (Alberto Chipande24, entrevistado por Lopes, 30.06.2000: 15). Os discursos foram mais optimistas e realçaram-se alguns indicadores de consumo e de melhoria do nível de vida das populações, que se registavam um pouco por todo o país:

Nas zonas rurais, de par com problemas reais como o baixo preço do que vende o camponês e o alto daquilo que compra, constata-se uma melhoria do

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nível e qualidade de vida. Da escola ao posto de saúde, ainda que por vezes com serviços de valor duvidoso, da estrada ao poço, da banca à capulana e missanga afere-se a evolução. O número de bicicletas no Centro e Norte indicia o crescimento do nível de vida do camponês (Sérgio Vieira25, 23.06.2000: 28).

Conclusão

52 Pelo carácter revolucionário e pelo envolvimento colectivo que gerou, o período imediato à independência foi particularmente destacado pelos emissores de opinião. Durante o entusiasmo revolucionário emergiu uma expectativa em torno de um novo contrato social, onde todos teriam as mesmas oportunidades de acesso aos diversos recursos de poder quanto à participação na definição dos destinos do país, na igualdade de oportunidades no acesso ao mercado de emprego, à saúde, à educação ou à habitação. Tratou-se, sobretudo, de uma expectativa colectiva de modernização de Moçambique e de alargamento dos direitos de cidadania a todos os moçambicanos. A expectativa de aquisição de direitos de cidadania e a afirmação de inimigos comuns – como o colonialismo português ou o apartheid – de todos os moçambicanos apresentaram-se como mecanismos importantes na unificação dos emissores de opinião e no fortalecimento de um sentimento nacionalista. Contudo, esses direitos de cidadania constituíram muitas vezes notícia não pela sua conquista, mas pela sua privação. Face aos limites que impôs ao pluralismo ideológico e à participação política dos cidadãos, a Frelimo foi representada como um partido que utilizou métodos semelhantes aos praticados pelo governo fascista e colonial no controlo das consciências das populações26. Os actores sociais detentores de maior capital escolar e que desenvolveram maiores expectativas em termos de liberdade de expressão e de participação política sentiram-se, mais uma vez, fortemente constrangidos, o que os levou a adoptar uma atitude mais crítica em relação ao poder. Se a independência política não mereceu discussão, o mesmo já não aconteceu em relação à legitimidade do partido único. A identidade nacional referida no Savana constituiu um conceito em (re)construção, por intermédio de um diálogo entre sectores políticos e sociais com maior acesso à informação no país. Não obstante a realização de inúmeras referências ao desenvolvimento socioeconómico de Moçambique, emitidas sobretudo por membros do Governo, predominaram os discursos acerca do empobrecimento do país. O aumento de fenómenos de exclusão social e a crescente dependência de Moçambique em relação ao exterior ofusca as celebrações das datas de libertação em relação ao colonialismo português.

53 Destaque-se que os discursos sobre o desenvolvimento económico de Moçambique merecem ser enquadrados numa estratégia político-eleitoral, protagonizada por dirigentes e quadros do partido no poder e de membros dos partidos na oposição. Se se tiver em consideração que o público-alvo do semanário Savana se concentra sobretudo na cidade de Maputo e que constitui um grupo social elitista, conclui-se que este debate político se circunscreve a um contexto social minoritário, autista e fortemente maputizado. Qualquer tentativa de extrapolar estas conclusões para toda a realidade moçambicana seria, por este motivo, abusiva.

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Vieira, Sérgio (23.06.2000). “Bodas de prata com memórias de alegria e lágrimas”, semanário Savana – Suplemento especial 25 de Junho, 337: 27.

NOTAS

1. A 6 de Fevereiro de 1992 a cooperativa de comunicação MediaCoop, jornalistas associados, SCRL realizou escritura pública, sendo composta por treze membros fundadores: António Elias, Alírio Chiziane, Armindo Chavana, António Gumende, Carlos Cardoso, Fernando Lima, Fernando Manuel, Fernando Veloso, Gil Lauriciano, Kok Nam, Lourenço Jossias, Naíta Ussene e Salomão Moyana. O objectivo da colectividade orientava-se para a criação de um semanário dentro dos seis meses seguintes, tendo posteriormente adiado o projecto, substituindo-o provisoriamente pela criação do jornal por fax Mediafax. 2. No ano 2000, a Mediacoop recebeu uma ameaça anónima de bomba e, no mesmo ano, o então editor do Savana foi ameaçado de morte numa chamada telefónica anónima. Em ambas as situações, as investigações policiais foram inoperantes. 3. Anthony Smith (1996: 97) define nacionalismo como “um movimento ideológico para atingir e conservar a autonomia, a unidade e a identidade em nome de uma população que alguns dos seus membros consideram constituir uma «nação» real ou potencial”. Trata-se, assim, de um discurso que procura (re)criar ou legitimar um sentimento de nação. 4. O conceito de cidadania é utilizado na literatura ocidental na análise de questões como a democracia, a reprodução de desigualdades sociais ou o fenómeno da imigração, entre outras. Stephen Castles (2000: 22) define cidadania como uma “societal situation allowing full participation in political, economic, social and cultural relations”. Nesta definição está implícito um conjunto de direitos que, de acordo com o autor, pressupõe a igualdade de oportunidades no acesso dos cidadãos. Em sentido estrito, o conceito exprime uma condição sociopolítica que se prende com a pertença a um Estado, no seio do qual o cidadão goza de direitos políticos, económicos, sociais e culturais. 5. Analisando o desenvolvimento da democracia e o crescimento do Estado-providência em países ocidentais, Thomas Marshall (1967: 66) distinguiu diversos direitos de cidadania, que designou de direitos civis, de direitos políticos e de direitos sociais. De acordo com o autor, os direitos civis incluem a liberdade individual de cada cidadão, a liberdade de expressão ou de religião, a igualdade de todos perante a lei ou a proibição de qualquer forma de discriminação com base no género, nas origens étnicas ou em pressupostos raciais. Os direitos políticos abrangem por sua vez, entre outros aspectos, o direito de voto, de associação e de participação política, bem como de acesso à informação. Por sua vez, os direitos sociais pressupõem o direito dos cidadãos ao acesso, em igualdade de oportunidades, à saúde, ao sistema educativo, ao mercado de trabalho, bem como ao bem-estar económico e social. Apesar de Marshall ter centrado a sua análise no contexto inglês, o seu esquema interpretativo continua a ser considerado relevante em muitos enfoques sobre a cidadania. De acordo com Stephen Castles (2000: 23-41), o fenómeno da

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globalização e as migrações internacionais proporcionaram um aumento da diversidade etnocultural, pelo que, nos Estados-nação, os direitos culturais tendem a constituir uma parte integrante do conceito de cidadania. De acordo com o autor, os direitos culturais incluem, entre outros aspectos, o direito à manutenção das diferentes culturas e das línguas maternas, conjugado com o pleno acesso à cultura e à língua dominante, bem como o direito à comunicação intercultural. 6. Advogado e na época presidente do partido Movimento Nacional de Moçambique (Monamo). 7. Porta-voz do partido Renamo. 8. Os órgãos de comunicação social repetiam diariamente slogans como “Não ao Racismo” ou “do Rovuma ao Maputo todos somos moçambicanos” (Isaacman e Isaacman, 1983: 112). 9. Na peça jornalística Amade Camal foi apresentado como director de uma empresa de metalomecânica e dirigente islâmico. 10. Na época deputado da Renamo. 11. O advogado Domingos Arouca foi presidente do partido Frente Unitária de Moçambique - Partido Social Democrata (FUMO-PSD). 12. O SNASP foi introduzido em 1975, com poderes para conduzir buscas e prender pessoas sem mandato ou para decidir sobre o destino dos detidos. De acordo com João Cabrita (2000: 95), no ano de 1978 existiam, só em Maputo, 17.000 informadores do SNASP. Em 1979 foi aprovada a pena de morte e foram reintroduzidos os tão odiados castigos corporais, vigentes no período colonial. Como demonstra Cabrita (2000: 86-95), até meados da década de 1980 a Frelimo utilizou métodos repressivos e não democráticos de controlo das populações. Todas as formas de oposição política organizada ao partido no poder foram erradicadas e muitos dos respectivos líderes eliminados. Da mesma forma, todas as organizações da sociedade civil – jovens, mulheres, professores, jornalistas, escritores, trabalhadores ou estudantes – passaram a estar sob o controlo da Frelimo, de forma a assegurar o cumprimento do programa governamental. As células do Partido foram estabelecidas nos locais de trabalho e nas zonas residenciais e assistiu-se a um rigoroso controlo da mobilidade das populações. 13. Uria Simango, Lázaro Nkavandame, Joana Simeão ou Paulo Gumane constituíram a este respeito os exemplos mais mediáticos. Estes cidadãos moçambicanos foram encarcerados após a tomada de posse do Governo de Transição, por suspeita de estarem envolvidos no Movimento Moçambique Livre, e foram mantidos presos em ambiente de grande secretismo. Estes elementos vieram a ser condenados à pena de morte sem um prévio julgamento dos tribunais. Sobre o assunto veja-se a obra de Barnabé Ncomo (2004), Uria Simango - Um homem, uma causa. 14. Presidente da Liga dos Direitos Humanos. 15. Como demonstra Fernando Florêncio (2005: 161-194), as autoridades tradicionais constituíram importantes actores sociais no período colonial pelo que, após a independência e desconfiando politicamente do sistema de regulados, a Frelimo decidiu substituí-lo por grupos dinamizadores e secretários de bairro, afectos ao partido no poder. Em muitas situações, os grupos dinamizadores utilizaram a força física para humilharem as autoridades tradicionais e para sublinharem o seu desprezo pelas autoridades locais, gerando um clima de medo entre as mesmas, que acabavam muitas vezes por adoptar estratégias e atitudes defensivas e de resistência passiva. Paradoxalmente, não detendo poder tradicional, muitos dos novos membros recorriam aos antigos régulos, por exemplo para a realização de cerimónias. O autoritarismo que a Frelimo imprimiu ao processo de formação do Estado a nível local, as estratégias de desenvolvimento rural (nomeadamente a imposição de um novo modelo de habitat e de produção) e a consequente desarticulação dos modelos de reprodução social constituem factores a partir dos quais a Renamo retirou vantagens políticas. Esta perda de legitimidade da Frelimo foi agravada pela incapacidade do modelo de desenvolvimento estatal de satisfazer as necessidades básicas e de reprodução das famílias, bem como a reprodução social e cosmológica. Ainda que no período revolucionário o processo de destituição das autoridades tradicionais tenha contado com

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o apoio de algumas camadas da população rural – associando estas autoridades aos abusos coloniais –, as mesmas autoridades não perderam a sua autoridade política e social. Se a instituição desapareceu formalmente enquanto estrutura administrativa estatal, os titulares dos cargos não deixaram de continuar a influenciar a vida das populações. Após o Acordo Geral de Paz, o Estado vem adoptando uma atitude de aproximação às autoridades tradicionais, não só com o objectivo de promover o processo de consolidação e unificação administrativa do território, mas de retirar daí vantagens eleitorais. Como demonstra Florêncio (2005: 201), o Estado intenta um processo semelhante ao do Estado colonial de manipulação e controlo desta instituição, tentando imiscuir-se nos mecanismos de sucessão, influenciando ou mesmo impondo elementos mais susceptíveis de um bom relacionamento com a Frelimo e com o Estado. 16. Como refere José Magode (1996: 65), os principais líderes políticos haviam sido educados no Ocidente ou sob valores ocidentais, tendo interiorizado uma ideologia cujo poder emancipador e de integração dos povos havia sido experimentado num outro continente. Após a queda do socialismo e como explica Jason Sumich (2008: 322), uma ideologia de modernidade europeia tornou-se progressivamente um importante indicador de status e uma persistente reivindicação e afirmação de poder social por parte da elite. Sumich explica que essa ideologia de modernidade baseia-se em ideias de igualdade com o mundo exterior, das quais a elite retira legitimidade, mas constitui também um poderoso instrumento para a criação de desigualdade a nível interno. Esta autopromoção da elite enquanto modelo de modernidade enquadra-se nas respectivas estratégias de integração em redes económicas internacionais. 17. Na época presidente do partido CDU - Congresso dos Democratas Unidos. 18. Na época jornalista do Savana. 19. Durante o período de 1982-1987, a dívida externa conheceu um crescimento exponencial que atingiu cerca de três biliões e meio de dólares. Cerca de 80% do orçamento de Estado passou a depender de créditos, empréstimos e donativos (Tole, 1995: 219). Para além da desagregação da economia, assistia-se também a um colapso do aparelho governativo. Como refere Malyn Newitt (1997: 489), os funcionários não eram pagos e grassava a corrupção a todos os níveis. As remessas de auxílio estrangeiro “tinham desaparecido misteriosamente ou então não podiam ser distribuídas pura e simplesmente”. 20. Abdalla Bujra (citado por Gala, 2002: 10) define afro-pessimismo como “um estado mental que simplesmente projecta tendências passadas sobre o futuro e não vê mais nada para além da escuridão de África”. 21. Editor do Savana. 22. No campo da saúde, dos 550 médicos existentes no país em 1973, permaneciam apenas 50 em finais de 1975, para uma população de cerca de 9 milhões de moçambicanos. Ao longo da década de 1970 o novo governo destacou entre 13 a 15% do orçamento de Estado para o sector da saúde (Isaacman, 1978: 74), tendo recrutado, até 1977, mais de 500 médicos e enfermeiros, oriundos de mais de 20 países (Isaacman e Isaacman, 1983: 139). 23. Malyn Newitt (1997: 474-475) destaca neste campo o Complexo Agro-Industrial do Limpopo (CAIL). O CAIL resultou da junção de pequenas propriedades dos antigos colonatos numa grande empresa gerida pelo Estado. Este maciço complexo era constituído por 16.000 hectares e incluía uma fábrica de descascar arroz, uma fábrica de salsichas e queijo e fábricas de preparação de tomate e tabaco. 24. General na reserva, na época deputado pelo partido Frelimo e ex-ministro da Defesa. 25. Coronel na reserva e ex-ministro da Segurança de Moçambique. 26. Dalila Mateus (2004: 103-122) ilustra a acção repressiva da PIDE em Moçambique através da prática de rusgas nocturnas nos bairros periféricos, da legalização de detenções sem julgamento até 180 dias, do aumento do número de prisões, de interrogatórios, de torturas e de processos de julgamento de líderes revolucionários. Em Moçambique criaram-se secções prisionais para presos políticos, como a cadeia da Machava, nos arredores de Lourenço Marques, ou a fortaleza de Ibo,

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no norte de Moçambique. Na cadeia da Machava morreram 61 pessoas num espaço de dois anos, alegadamente por doença, segundo foi relatado em 1972 à Cruz Vermelha Internacional, a quem a PIDE referiu ainda “dois suicídios” (Mateus, 2004: 108).

RESUMOS

Em finais da década de 1990 Moçambique comemorou as bodas de prata da sua independência, num processo de liberalização da economia e de abertura económica ao exterior. O país ensaiava os primeiros passos na democratização e, na imprensa independente, surgiam os primeiros debates que contrapunham perspectivas e opiniões, claramente em oposição, sobre o desenvolvimento do país. É neste contexto que se pretendeu analisar o balanço feito da independência de Moçambique, a partir da leitura dos discursos publicados no semanário Savana, por ocasião das celebrações das datas históricas do país. Para além de analisar as representações sociais do passado, ao longo do artigo procurar-se-á ter em consideração as motivações e as expectativas sociais inerentes aos discursos.

In the late 1990’s Mozambique celebrated its independence silver jubilee, in a context of recent economic openness and liberalization. The country began to take the first steps of a democratization process and the independent press arose the first debates where were facing opposite opinions on the country development. It is in this context that we wished to examine the speeches at the weekly Savana on the occasion of the Mozambican historical celebrations, in order to understand the country independence assessment. Beyond an analysis of the social representations of the past, throughout this article we will take into account the opinion makers motivations and expectations.

ÍNDICE

Keywords: independence, social representations, moçambicanidade, development, Mozambique, state in Africa Palavras-chave: Independência, Representações sociais, Moçambicanidade, Desenvolvimento, Moçambique, Estado em África

AUTOR

JOÃO FEIJÓ ISCTE-IUL, Lisboa [email protected]

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National Integration in Guinea- Bissau since Independence

Christoph Kohl

1 Guinea-Bissau achieved its independence in September 1974 as first of Portugal’s African colonies. This event was preceded by a decade-long liberation war that had started in early 1963. The armed struggle was led by the African Party for the Independence of Guinea and Cape Verde or Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), pushing aside rivaling political movements (see e.g. Rudebeck, 1974; Chabal, 1981; Lopes, 1987; Dhada, 1993; Silva, 1997, 2005). After 1974 the victorious leftist PAIGC established a one-party state that sought to control and command society, economy, and culture (Forrest, 1987, 1992, 1993). In November 1980 Guinea-Bissau was rocked by a first successful violent political overthrow that was followed by economic and political liberalization. Although this processes culminated in the first free multi-party elections in 1994 (Koudawo, 1994, 1996), the country continued to be characterized by political authoritarianism, power struggles within the political and military leadership – resulting in various putsches and coup attempts – and socio-economic crises. An antagonism between the ruling state-president and the dismissed supreme commander culminated in the Conflito Militar in June 1998 that lasted for ten months. This conflict remained largely restricted to the area of Greater Bissau (Gomes, 1998; Viegas and Koudawo, 2000; Koudawo, 2000; Drift, 2000; Zeverino, 2005). Although Guinea-Bissau returned to constitutional rule in 1999-2000, political authoritarianism, coups and coup attempts, the autonomization of the army, the alleged involvement of top officials in the drug trade, and socio-economic problems have since then dominated the perception of the country (see, e.g., Ostheimer, 2001; Kohl, 2008, 2009b). These entanglements soon gave way to depictions of Guinea-Bissau as a “fragile” (Forrest, 2003, 2010), “collapsed” (Roque, 2009) and “weak” (Ostheimer, 2001; Ferreira, 2004, 2005; International Crisis Group, 2008, 2009a) state, resulting in attempts by the international community to reform the security sector and other parts of the state apparatus (see, e.g., Roque, 2009; Telatin, 2009; Thaler, 2009; Monteiro and Morgado, 2009). To my understanding the assessment of the Bissau-Guinean state as “fragile”, “collapsed” and “weak” is at times accompanied by the mostly implicit

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assumption that the country’s ethnic and religious heterogeneity prevent Bissau- Guineans from a strong national consciousness and solidarity, implying a weak or non- existing national integration (see e.g. Silva, 2002: 121; Gacitua-Mario et al., 2007: 29). Authors have repeatedly suggested that ethnic fragmentation triggers ethnic tensions that may finally induce ethnic conflicts (see, e.g., International Crisis Group, 2009b: 2/ fn 1, 4, 5/fn, 8, 10, 31).

2 I refer to Kohnert (2010: 16) who – while acknowledging the unifying role of the “common Creole language” and stating a shared “basic feeling of national identity” – called for a grassroots nation-building as a pre-condition for state-building. I hold that the postcolonial spread of some creole manifestations have in fact contributed to the (creole) project of the nation, arguing, therefore, that national cohesion is quite strong in Guinea-Bissau (cf. also Davidson, 2002: 419) – despite her ethnic heterogeneity. Indeed, many scholars have underlined the important contribution of creoles in the achievement of independence and the construction of postcolonial nation- and statehood in Guinea-Bissau (Chilcote, 1972; Rudebeck, 1974; Chabal, 1981; Galli & Jones, 1987; Forrest, 1992; Dhada, 1993; Trajano Filho, 1998; 2005; Mendy, 1994; Silva, 1997; Havik, 2004; Wick, 2006; etc.).

3 This article seeks to analyze Bissau-Guinean nationhood, focusing on national integration both from above and from below. I will start by developing a theoretical framework. Secondly, I will shed light on the foundations of the Bissau-Guinean nation. Thirdly, I will explore how specific representations of creole culture – using the example of the lusocreole lingua franca Kriol, manjuandadi associations, and carnival – have contributed to an increasing countrywide cultural integration since independence. Creoles have constituted a small but influential minority in Guinea- Bissau for centuries (Galli and Jones, 1987: 17-32; Havik, 2004). Fourthly, I will show below that the issue of ethnicity is largely exploited by politicians to serve their own purposes. Fifthly, I will analyze how people distinguish between the nation and the state. I will examine how Bissau-Guineans construct their nation from below, while victimizing the nation in its confrontations with the state. Finally, I will shed light on the aftermath of the military conflict of 1998–99, exploring how the nation was, in fact, welded together by the violent conflict.

4 The ethnographic findings result from socio-anthropological fieldwork in Guinea- Bissau – including Bissau and the interior (including Bafatá, Geba, Bolama, Farim, Cacheu, amongst others) – from April 2006 to May 2007 and a previous stay from August to December 2004 (in Bissau, Bolama, Cacheu, the Bijagós Islands etc.). My research that focussed on creole culture and identity was primarily carried out in Kriol, to a lesser extent in Portuguese, conducting formal and informal interviews with individuals of various ethnic backgrounds.

Theoretical approach

5 My theoretical approach is based on a constructivist understanding of both ethnicity and nationalism as propounded most prominently by Barth (1969) and Anderson (1999), emphasizing the social constructedness of such identities.

6 According to Elwert nations are we-groups which, in contrast to ethnic groups, refer to either an existing state or one that is to be formed, thus implying citizenship. He

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defined a nation most generally as a “[…] (loose or definite) social organization which claims an enduring character, is treated by the majority of its members as an (imagined) community, and refers to a shared state apparatus” (Elwert, 1989: 446; original in italics, my own translation). The reference to a common state apparatus does not mean, however, that a nation and a state are congruent or closely related to one another. Rather, nations express their willingness and objective to live together, in principle, in their own nation-state. Given the absence of ethnic and cultural homogeneity in most newly independent African countries, popular as well as academic discourses have contested that these heterogeneous societies constitute “real” nations (Knörr, 2008: 30-31; 2010: 360). Consequently, African nations have been repeatedly dismissed as artificial nations (see e.g. Hill, 2005: 147-148, 151 as an example; cf. however Young, 2007: 241; Knörr, 2008: 31; Kersting, 2009: 7).

7 As mentioned above, many African states have been qualified as “fragile,” “weak”, “failed”, or “collapsed” states in recent years, mostly by political and economic analysts (see e.g. Reno, 1997, 2005; Ferreira, 2004: 54; Vaz and Rotzoll, 2005). Although these assessments imply a breakdown of the people’s commitment to nationhood, the respective nations have, nonetheless, survived. Scholars have repeatedly not differentiated between nations and states, using these notions synonymously (Gellner, 1998: 5-6; Barrington, 1997, 2006: 4). However, it is important to analytically separate the concepts of the state and nation. Even if a state is declared to be entirely dysfunctional – that is, its functioning does not correspond to the classic European model in Max Weber’s rational-legal sense of the term (Weber, 1978 [1922]: vol. I, 217-226; see also Blundo and Olivier de Sardan, 2006: 4-5) – the state can continue existing if it is characterized by a pronounced national identity and a weak identification of the nation with the state (Young, 2007: 241; Knörr, 2008: 38). This can be observed in many countries that are ranked “critical” or “in danger” in the Failed State Index (Foreign Policy, 2010).

8 The reasons for the insufficient differentiation between nation and state may be located in the past. The European ideologues of nationalism were convinced that political and national entities (state = nation = people) are congruent (Gellner, 1998: 1; Hobsbawm, 1999: 22-23). It was believed that a culturally and ethnically homogeneous population or nation constitutes its own state – a nation-state. This classic European model of the nation has been paramount to date. Instead of evaluating the African state in terms of the European model, we can regard Africa as an arena that is used to negotiate between different international and local stakeholders, thus giving rise to varying conceptualizations of the state (for instance, a liberal minimal state, a regulatory welfare state, or a ubiquitous command state). The separation of the nation from the state is also made by many Africans: my own ethnographic evidence that I will present below suggests that the Bissau-Guinean nation positions itself against the state.

The foundations of the nation

9 A new batch of illegal nationalist movements emerged after the Second World War. Most of them were short-lived (for an overview, see Chilcote, 1972: xxxvi, 603-607; Dhada, 1993: passim; Silva, 1997: 28-34; Pereira, 2003: 80-88, 113-126). The PAIGC eventually got the upper hand and emerged victorious from the war of independence. The movement owed its success also to its charismatic leader Amílcar Cabral, himself a

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Guinea-Bissau-born Cape Verdean. Cabral stood out because of his effective and strategic political self-marketing and leadership qualities (see Chilcote, 1972: xiii-xiv). In contrast to African leaders like Touré, Nkrumah, or Machel, Cabral did not aim at the erasure of ethnic identities in favor of a new national identity. Although Cabral was convinced that the era of ethnic groups in Africa was over (see Cabral, 1976: 143), he did not consider ethnicity as a problem, per se, but believed that it could become one if it was exploited by self-interested, detribalized opportunists. He urged Bissau-Guineans to unite: “[…] [W]e, Balantas, Pepels, Mandingos, sons of Cape Verdeans, etc., we can be united, advancing together […]” (Cabral, 1976: 145; my own translation; cf. however Cabral, 1976: 128).

10 By referring to different natural ethnic groups, Cabral revealed that ethnic heterogeneity did not stand in the way of national unity. He was apparently confident that ethnic feelings would vanish as soon as the new nation-state was established. It appears, therefore, that Cabral supported a national-unity-in-ethnic-diversity model of the nation: according to Cabral, national culture (patriotism, development, humanism, solidarity, etc.) would then co-exist with popular culture, which embraces indigenous cultural traits. According to Cabral, however, the former was not a synthesis of the latter (Cabral, 1976: 232-233; cf. Mendy, 2006: 14; Wick, 2006: 55-59).

11 The early postcolonial nation-state was built from a party (see Lopes, 1987: 69, 72): the victorious PAIGC conferred its own structures, including those developed to administer areas previously liberated from colonial rule, to the territory of the entire state. Hence, a left-wing, autocratic, centralized one-party state was subsequently established (see Forrest, 1993). Mass organizations were responsible for mobilizing the population. The transformation of post-independent society was characterized by political surveillance and tight control over the domestic sphere, economic planning that involved a closing- off of the economy to the outside world, an expanded state bureaucracy, and the exclusion and elimination of any political dissenters (cf. Forrest, 1992: 47-55; 1993; Mendy, 1996: 36-37). Since media, schools, and mass organizations, especially in urban contexts, were controlled by the state, Bissau-Guineans were strongly influenced by the state ideology, which in turn was mostly founded on Cabral’s ideals. After independence, when the Portuguese officials left the country, their positions in public administration were taken over by Bissau-Guinean bureaucrats who had previously been in subordinate positions. While the top elites (military and political leaders) were replaced, there were hardly any changes within the middle strata of the state bureaucracy, at least until the introduction of multiparty democracy in the early 1990s (Lopes, 1987: 69, 85-90; Cardoso, 2002: 17-18, 20, 25; Schiefer, 2002: 153-159).

12 The narrative of the struggle for independence was henceforth monopolized by the PAIGC. The struggle for national liberation consequently became the founding myth of the new state, because it had also welded people together across ethnic boundaries and generated solidarity. Lopes (1987: 43) stated:

The national liberation movement achieved an outstanding mixing of inter- ethnic groups. During the armed struggle the different ethnic groups shared a common cause. They interacted. They believed in the same watchwords. They discovered collective purposes.

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13 Ever since independence, Bissau-Guineans have proudly referred to the victorious war that liberated Guinea-Bissau. Meanwhile, the ongoing war waged against Portugal even caused the overthrow of the Portuguese dictatorship in April 1974.

14 Thereafter, the war served as a positive example of national unity. After independence, it became a normative taboo to speak about tribes, owing to the fear of fostering divisions along the lines of tribalism. On the contrary, national development was intended to benefit all people, regardless of their ethnic affiliation (Ribeiro, 1994/95: 3). Against the background of this hegemonic national-unity-in-ethnic-diversity discourse, ethnic identities were considered to be of subordinate importance. In the 1970s, for example, a former senior PAIGC politician remembers that ethnicity was relegated to the cultural sphere:

[T]he question of national identity dominated completely the debates or reflections of the [Bissau-]Guineans to the extent that the pulsation of ethnicities […] remained relegated to a […] simply or substantially cultural, not really political, field (Silva, 2003: 152; my own translation).

15 The leadership of the PAIGC was dominated by middle-class individuals of urban origin, the colonial local elite (Lopes, 1987: 90). Some of them were influenced by the originally European idea of nation- and statehood. In conjunction with European Marxist anti- imperialism, this ideology promised liberation from colonial domination, subjugation, and exploitation. While constructing a post-independence state, leading party officials reverted to originally creole cultural features, such as Kriol, manjuandadis, and carnival, which subsequently spread all over Guinea-Bissau – as portrayed in the following section. Despite announcing their intention of constructing an entirely new and better society, the party leaders did not succeed in shaking off the past in a double sense: on the one hand, they continued to stick to aspects of their creole heritage by employing them for the integration of the new nation, and on the other hand, they relied on a social and state order that often paralleled structures cultivated by the fascist colonial state, as evinced by practices such as authoritarian repression, political monopoly, and mass-movementism that were employed by the ruling party.

National integration through expanding creole cultural representations

16 As I showed elsewhere (Kohl, 2009a), creole culture is based on heterogeneous cultural origins, serving as an umbrella for people of diverse ethnic origins. Creole culture and identity in Guinea-Bissau can be therefore regarded as microcosms of postcolonial nationhood, or as a nation in small. Because they were not ascribed to a specific ethnic group, creole cultural representations proved to be suitable for a countrywide expansion.

17 Let me first talk about the language Kriol: my own observations during my sojourns in Guinea-Bissau suggest that Kriol is rapidly continuing to gain ground and is at present understood by possibly more than 80% of Bissau-Guineans, even in the countryside (compared to 44% in 1979 and 51% in 1991; see Lopes, 1986: 280, Instituto Nacional de Estatística e Censos, 1996: vol. I, tables 6.5A, B, C, D). For the time being, Kriol remains the most prevalent language for interethnic verbal communication.

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18 The origins of Kriol can be traced back to the sixteenth century. Its development was intimately connected with the foundation and development of trade settlements (Rougé, 1986: 36) that were nominally controlled by the Portuguese in the mid- to late nineteenth century. After the turn of the penultimate century, Kriol was propagated further inland by Cape Verdeans who relocated to the country’s interior (Havik, 2007: 58-59) – despite attempts by the colonial authorities to suppress Kriol (Couto, 1994: 54). In the early 1920s Kriol was hardly understood in the countryside. Only thereafter did it spread more rapidly, coincident with the expansion of colonial rule and infrastructure, which caused many people to migrate to the towns (Carreira, 1984: 122-123).

19 The emergence of nationalist movements in the 1950s was strongly connected with urbanized speakers of Kriol. When the war of independence broke out in the early 1960s, Kriol served as a crucial means of popular mobilization. During the war, Kriol was employed as the training language for recruits as well as the communication medium in the fast-spreading basic primary schools run by the PAIGC. Moreover, the PAIGC also started to broadcast messages, propaganda, and its ideology in Kriol on Liberation Radio at that time (Carreira, 1984: 122-123; Bull, 1989: 78, 116-119; Couto, 1994: 59; Embaló, 2008: 105).

20 However, it was only after 1974 that Kriol manifested its full importance. Through its use, the different ethnic groups could bridge the linguistic diversity prevalent in Guinea-Bissau, being conducive to the project of nation-building. In this way, Kriol was transformed from a commercial language to a language of resistance and liberation and of national unity. Kriol was declared the national language, spoken all over the country’s territory (Scantamburlo, 1999: 16). Currently, Kriol is not only a language of unity and interethnic communication but also a means of “[…] business, practical communication at work, and personal contact in almost any local community” (Almeida, 1991: 3). The spread of Kriol is certainly also facilitated by the fact that the numerous radio stations throughout the country broadcast primarily in Kriol (cf. Embaló, 2008: 103, 105).

21 Let me now move on to manjuandadis: Trajano Filho (1998: 399-405) characterized this institution as one that is based on the principles of mutual assistance and sociability. In general, the manjuandadis express solidarity among their predominantly female members by providing mutual aid and support. Members foster friendly relations with each other by having fun together, drinking, eating, and chatting among themselves.

22 At present, Bissau-Guineans use the word manjuandadi to refer to both systematically organized permanent associations and loosely organized, mostly ad-hoc networks of extended family members, neighbors, co-workers, and friends. Third parties often associate musical shows, singing, dancing, and the wearing of identical costumes with the (organized) institution of manjuandadis.

23 Until the mid-twentieth century, manjuandadi associations were exclusive to creole communities. They started to spread throughout the country at the time of independence – a process that was encouraged by both the single-party PAIGC and the independent state. Independence signified not only a fresh start for manjuandadis but also their gradual transformation into organizations that were supposed to support the politics of the postcolonial state and mobilize women (cf. Trajano Filho, 1998: 402). Ideally, all women were required to take membership of the party’s women’s wing, the Democratic Women’s Union of Guinea (UDEMU). For the first two leaders of UDEMU were familiar with creole culture (cf. Urdang, 1979: 267-268, 275-276), it seemed only

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logical to use manjuandadis for mass mobilization (cf. Trajano Filho, 1998: 319, 402). When UDEMU would invite manjuandadis for gatherings, the associations were requested to communicate political messages via their songs. Part of UDEMU’s strategy was to mobilize female folklore groups from Guinea-Bissau’s Muslim communities.

24 The introduction of multiparty democracy and the accompanying withdrawal of the state stripped UDEMU and PAIGC of their monopolistic character. In view of these changes the manjuandadis had to find new sources of funding. The strategies that were finally employed by the manjuandadis led to their commodification and politicization. Looking for new partners and sources of funding, the manjuandadis established ties with other political parties apart from the PAIGC, lent themselves to prosperous NGOs in order to communicate their agendas, and, supported by radio stations and cultural activists, began to market their music effectively.

25 Due to the rapid spread of Kriol in the past decades, the term manjuandadi has been adopted by the population in the country’s interior. These people have attached the notion to their age-set groups. Similarly, representations (such as rotating credit and savings associations) that are based on the principles of sociability, solidarity, and mutuality are likewise increasingly referred to as manjuandadis. Such formal or informal institutions can be found not only in the capital but also in the countryside – thus also including regions that are dominated by Islam. The spread of manjuandadis has been occurring despite a general distinction of Christian from Muslim manjuandadis. In the mid-1990s, the vast majority of manjuandadis (86%) in Bissau were multiethnic in their membership (Domingues, 2000: 466-467).

26 Let us come now to the third representation, carnival. What began as a creole cultural representation has more recently been transformed into a mass event that has rapidly spread beyond the boundaries of the former creole communities. Formerly a loosely organized festivity, shortly after independence carnival turned into a state-run competition. It was only later, after the state and its ruling party had partly withdrawn from its organization, that carnival became a nationwide celebration. Today, carnival enjoys such mass popularity that it is even staged in remote areas.

27 The post-independence one-party state reorganized carnival as a competitive event under its aegis in the late 1970s, thus politicizing the festivity. Interestingly, carnival – which is actually characterized by anti-structure, disorder, critique, and resistance – was transformed into a ritual of structure and order. Hence, carnival was turned into an instrument to mass-mobilize the population and to communicate agendas and slogans on behalf of the state and its ruling party. Against this background, carnival eventually managed to spread all over the country, reaching new sections of the population, in both ethnic and geographical terms.

28 The party-run youth organization African Youth Amílcar Cabral (JAAC) was mainly responsible for the post-independence revival and reshaping of carnival. The takeover of the central carnival organization by the General Directorate of Culture in 1984 marked an important step toward the wider spread of carnival. Since the 1980s the public administration generated new sources of income by issuing licenses to those who wish to take pictures of the carnival or set up sales stalls for drinks and food. Moreover, the authorities have introduced participation fees for those wishing to compete (Sigá, 1995: 12-14).

29 The concentration of carnival festivities in Bissau after 1974 popularized the festivity among a large group of migrants from the hinterland, for the population of the capital

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had grown tremendously during and after the war of independence. These people, mostly young men and women, continued to stay in contact with their rural kin and thereby transported the idea of the carnival to the countryside. In this way, carnival became popular in the countryside (see also Barcelos et al., 2006: 189; Pink, 2001: 106) – thus including areas influenced by Islam –, independent of the official carnival contests. Thus, the integrative transformation had already become visible at that time.

30 In the period following the introduction of multiparty democracy in the early 1990s carnival was able to shake off the state’s paternalistic intervention and partially renew its critical attitude toward the state and politics, continuing to spread throughout the country. Carnival has remained a festivity that promotes sociability and conviviality among people at the community level, irrespective of their ethnic affiliations and beyond the sphere of official contests.

31 The expansion of carnival – a process that has not yet been completed as the festivity continues to spread – has been significantly facilitated by its multilayered character. The congruency of different meanings represented in carnival depends on the participants’ or observers’ individual cultural backgrounds. People of different origins, therefore, are able to retrieve their respective cultures through carnivalesque performances. Despite, or more correctly, because of these different meanings, carnival has managed to create a common identity among its participants as well as observers.

The nation and ethnic fragmentations

32 A number of scholars have held the view that a Bissau-Guinean nation would not exist for long – “[…] on ne peut pas pour autant parler de nation guinéenne” (Silva, 2002: 121) – while pointing to the high degree of ethnic and religious heterogeneity that prevails in Guinea-Bissau (cf. Lyon, 1980: 165-166; Ostheimer, 2001) to explain this lack of national identity. Repeatedly, some scholars and other observers have reinforced the picture of an ethnically divided country unable to achieve national unity. In consequence, social conflicts in Guinea-Bissau have repeatedly been explained in terms of ethnic or religious conflicts.

33 I wish to follow a different approach, though, based on the concepts of “moral ethnicity” and “political tribalism” (cf. Berman, 1998: 324-330). Moral ethnicity can be understood as a vertical moral-economic behavior pattern among politico-economic patrons and clients on an ethnic basis, whereas political tribalism refers to horizontal competitions between different ethnic patron-client networks (Berman, 1998: 324-330, 338-339). Against this background, I would like to argue that politicians in Guinea- Bissau (like those elsewhere) attempt to exploit their ethnic ties in power games, thus seeking to ensure their own and their respective networks’ access to power and resources while eliminating rival politicians and parties. In this attempt, the network leaders are under pressure from their clients. For example, Vigh has pointed out how clientelist networks in Guinea-Bissau generally depend on access to power and resources. This access is very important in a country which is marked by the possibility of comparatively rapid upward and downward mobility. This does not mean, however, that social positions are subject to constant change in Guinea-Bissau, where “[…] many cultural and social understandings and practices are relatively enduring […]” (Vigh, 2006: 145). Hence,

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[If a] network is disempowered, as a result of elections, conflict, or war, the result is radical social change that affects the entire network. A small minority within the “declassed” network will most probably have secured themselves a relatively strong economic foundation, yet for most the resources gained will already have been redistributed, through social and political networks, meaning that political changes entail entire networks and societal groups becoming without means, losing positions and possibilities that dramatically affect their everyday existence (Ibid.)

34 In the process of empowering their networks, ethnopolitical entrepreneurs try to reify and exploit ethnic identities. If they succeed, their attempts result in the political fiction of a unified ethnic group (Brubaker, 2004: 37). In Guinea-Bissau, for example, former state-president Kumba Yala has been repeatedly accused of manipulating and exploiting ethnic ties in order to garner votes and support. To this end, as part of his populist style, Yala employs symbols and rhetoric that are well-received by Balantas (Nóbrega, 2003b: 294).

35 The flip side of such a strategy of ethnic mobilization consists of negative ethnic campaigning. During the presidential election process of 2005, for instance, according to my informants, João Bernardo Nino Vieira attempted to fuel fears of his Muslim rival candidate Malam Bacai Sanhá’s coming to power, warning the people to resist an impending islamization of Guinea-Bissau. Indeed, Vieira was able to win a clear majority of votes in areas characterized by non-Muslim populations, such as Biombo (often regarded as Vieira’s stronghold) and Bolama (see the results in Vaz and Rotzoll, 2005: 540). Simultaneously, Vieira and his network attempted to represent Sanhá as a Mandingo even though Sanhá regards himself as a Beafada. This was part of a deliberate strategy to discredit Sanhá in the eyes of the Fula voters, since many Bissau- Guineans think of Fulas as historical slaves to the Mandingos.

36 Despite these attempts of electoral mobilization on ethnic grounds, the peaceful conviviality of Bissau-Guineans has not (yet?) been affected. This is because, as Temudo argues, politicians in Guinea-Bissau have so far failed to instrumentalize ethnicity, as part of their moral ethnic strategies, to such an extent as to result in political tribalism (Temudo, 2008: 260). This means that horizontal competitions of various extensive ethnic networks – which may cause third parties to believe that ethnic groups form a unified monolithic bloc – have not yet come into existence in Guinea-Bissau.

37 So far, external observers are actually taken in by the leaders’ groupist rhetoric while at the same time overlooking internal discrepancies or other, more complex, and sometimes cumulative (for instance, emotional, economic, value-rational, or affectional) underlying reasons. In the end “[…] high levels of groupness may be more the result of conflict (especially violent conflict) than its underlying cause […]” (Brubaker, 2004: 45). In other words, the mere existence of ethnic diversity does not automatically lead to violent conflicts.

38 As regards Guinea-Bissau, so far there is limited support for ethnic groupist rhetoric, and no political party has presented itself overtly as an “ethnic organization” (Temudo, 2008: 260). Further, even though the majority of Balantas voted for Yala, it is unlikely that they voted unanimously for him. Moreover, election results suggest that Yala gained major support from Muslim voters in the run-off election of 2000, even in the stronghold of his rival Sanhá (Rudebeck, 2001: 71; Nóbrega, 2003a: 71). In addition, when it came to the 2005 presidential run-off election, Sanhá and Vieira ran neck-and-

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neck in the eastern region of Gabú, an area wherein the majority of inhabitants are Fulas (see Vaz and Rotzoll, 2005: 540), thus proving that Vieira’s strategy was least successful.

The victimization of the nation

39 The postcolonial state has been characterized by “[…] crisis and decline: that is, of political, institutional, economic, and even identificatory deterioration” (Vigh, 2006: 144) for numerous years. In the light of these challenges, many Bissau-Guinean informants, especially the disadvantaged ones, expressed their dissatisfaction with the state and its actions, while nostalgically recalling better times in the past. In this section, I will examine how Bissau-Guineans continue to be committed to their nation despite their dissatisfaction with the state.

40 In particular, those Bissau-Guineans who are excluded from power networks that are able to provide people jobs, benefits, and other income opportunities have a reason for lamenting the widespread corruption that has led to the decline of Guinea-Bissau, which is coping with a difficult economic situation. This disempowered, poor, and disadvantaged majority of the country’s population raises its voice in the “parliaments of the poor”, as Vigh has described them. The term describes a loose social space that is based on friendship, solidarity, and mutual cooperation. The parliaments of the poor are characterized not by political action but by routinized irony, which only emphasizes the political and social marginalization of the disadvantaged and excluded participants (Vigh, 2006: 146-148).

41 Contrary to Vigh, who located this social space solely among the young, urban population, my own observations suggest that this kind of social institution from below, in a broader sense, can indeed be observed throughout Guinea-Bissau, across all age groups. Following my own experiences and observations, Bissau-Guineans use this social space, as do people elsewhere, to vent out their anger at the socioeconomic challenges, blaming the government for bad governance, incompetence, and corruption. At the same time, they portray themselves as defenseless, powerless, and helpless victims in the face of an ignorant, egoistic, and inscrutable state apparatus that has been eaten away by clientelism and personal interests.

42 As a result of the dissatisfaction with the Bissau-Guinean state apparatus, national cohesion is achieved by Bissau-Guineans’ collective discursive self-assessment as innocent victims of an incompetent, corrupt, and anonymous state apparatus. In short, Bissau-Guineans tend to portray themselves as a solidarity community of victims.

43 Trajano Filho (2002: 154-157) has described this way of representing the nation as the “ethos of koitadesa”, referring to Bissau-Guineans as a nation of “koitadis”. The Kriol term koitadesa, derived from Portuguese, means “poverty”, “infelicity”, and “misery” (cf. Scantamburlo, 2002: 313), thus depicting a mode of life in resignation, deprivation, and suffering (Trajano Filho, 2002: 155-156).

44 Past experiences under authoritarian rule, both in colonial and postcolonial times, seem to foster this collective self-affirmation, for they allow Bissau-Guineans to regard themselves as powerless and oppressed.

45 The colonial state was characterized by a discriminatory attitude toward the people of Guinea-Bissau. Even citizens did not enjoy full civil liberties, political participation was

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restricted, and the political arena was dominated by state-controlled organizations. While the regime changed after independence, political authoritarianism continued. The PAIGC, which formed the state, continued to control both society and the economy through repressive means, while maintaining a centralized state structure and imposing dogmatic indoctrination on Bissau-Guineans.

46 Just like colonial times, post-independent Guinea-Bissau was characterized by a discrepancy between official ideology and everyday life. Although political liberalization allowed for the introduction of multiparty democracy in the early 1990s, politics has continued to bear an authoritarian tenor, marked by the continuing violation of human rights and democratic procedures. Authoritarian experiences in the political arena have often been compounded by a patriarchal socialization in extended families. In other words, generations of Bissau-Guineans have become accustomed to complying with patriarchal social and political values and norms. As my observations and conversations with informants suggest, citizens feel unprotected and exposed to hostile attacks – first and foremost from the state.

47 Moreover, this fear complex consists of a socio-economic component. While the late 1970s and early 1980s were characterized by a general shortage of basic consumer goods, as my informants remembered, Bissau-Guineans have been faced with limited employment opportunities, reduced earning power, lack of infrastructure, and omnipresent corrupt practices for numerous years. Bissau-Guineans are “[…] faced by a system in which they feel they cannot succeed, but must participate in and thus perpetuate in order to survive” (Pink, 2001: 112). The sense of powerlessness and dependence has apparently been aggravated by projects and payments from the international development co-operation. The international assistance that followed the country’s armed struggle for independence after 1974 seems to have transformed Guinea-Bissau into an aid orphan characterized by a rentier economy (see Schiefer, 2002). Therefore, observers have attested that Bissau-Guineans developed a “mentality of dependence” (Acção para o Desenvolvimento, 1993: 41, my own translation). In particular, the time immediately after the military conflict was marked by a sharp decrease in international commitment and financial support, which severely impacted the socio-economic and rentier foundations of many Bissau-Guineans. As a consequence of these experiences and developments, people suffer not only physically and materially but also mentally due to structures that, the people believe, they are powerless to influence.

48 Theoretical models that were created on the basis of European post-socialist countries act on the assumption that people who have been subjected to authoritarian political systems reveal a demanding attitude toward the state as an almighty allocator of goods and benefits; such a state is also characterized by the pursuit of social equality and a preponderance of personal views that conform to the politically desired positions (see Strohschneider, 1996: 40).

49 Collectively experienced socio-economic distress that has been historically charged and politically fostered can weld a nation together. The feeling of collective victimization has a long tradition in Guinea-Bissau. During the liberation struggle, the PAIGC portrayed the Bissau-Guinean nation-to-be as a suffering collectivity that was contained, exploited, and oppressed by Portuguese colonialism. Through this portrayal, the independence movement intended to appeal to the people’s emotions, hoping to mobilize and win the people’s support.

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50 The victimization of the nation consists of two components, representing external and internal dimensions respectively. On the one hand, a mechanism that vaguely resembles balanced antagonism – first analyzed by Fortes and Evans-Pritchard (1940) – provides for the construction and maintenance of a social boundary, attempting to unite the nation across ethnic and religious boundaries and positioning it against a generalized, collective other. On the other hand, the exploitation of the feeling of distress tries to ensure that the nation is portrayed as a collectivized victim suffering from socio-economic crises and hardships.

51 Similar mechanisms weld people together in contemporary Guinea-Bissau, hence providing for national cohesion. As mentioned above, Bissau-Guinean politicians and civil servants are perceived by citizens mostly as antipodes of the nation. Since the citizens hold them responsible for political authoritarianism, economic mismanagement, and social grievances, they do not believe that these political players are serving the interests of the nation. The othering of state representatives under political authoritarianism and an overwhelming sense of socio-economic deprivation form the backbone of the subaltern discourse of collective victimization in contemporary Guinea-Bissau.

The integrative effects of the military conflict

52 The external dimension of the social phenomenon that resembles balanced antagonism was manifested during the military conflict. This conflict is a prime example of how a heterogeneous population can close ranks together in the face of alien intruders who are collectively perceived as enemies of the nation – despite an ethnic dimension attributed to it by some scholars (e.g. Vigh, 2006: 52-54; cf. however Gomes, 1998: 60-61; Sangreman et al., 2008: 8-9).

53 The armed conflict (on the preceding events see e.g. Induta, 2001; Rudebeck, 2001: 17-20; Zeverino, 2005: 55-81) broke out on June 7, 1998. Following the putsch attempt by the dismissed supreme commander Ansumane Mané and army factions under his command, state-president Vieira called for military assistance from the governments of Senegal and Guinea. Senegalese and Guinean army troops entered Guinea-Bissau. What followed was a military conflict that predominantly affected the capital of Bissau until peace was officially restored on May 11, 1999. Nevertheless, Guinea-Bissau’s interior was mostly indirectly affected by the armed conflict.

54 Both warring parties claimed to represent and fight on behalf of the Bissau-Guinean nation. On the one hand, the Vieira faction insisted on the constitutionality of the government and depended on existing agreements of mutual military assistance that were signed with both Senegal and Guinea. On the other hand, the so-called military junta formed by Mané and his allies claimed to be fighting for the nation’s welfare and accused Vieira and his entourage of extreme corruption and bad governance. The Mané faction also stressed the poor living and working conditions of army soldiers and former war of independence veterans (Drift, 2000: 40-41; Rudebeck, 2001: 18; Vieira Có, 2001: 32, 67-71; Zeverino, 2005: 82). These self-representations indicate the respective logics of action employed by the warring parties.

55 At that time, the majority of Guinea-Bissau’s population, however, sided with the junta. This occurred because the foreign troops were largely considered to be invaders, and

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were therefore treated as a threat to independent nationhood. Widespread popular outrage and misery were triggered by heavy bombardments of residential quarters and a hospital – for which the Senegalese army was reportedly responsible – and the fact that Bissauans had to obtain permission from the commandant of the Senegalese troops, not from the Bissau-Guinean authorities, to leave the capital.

56 History conspired to defend Bissau-Guinean national cohesion, because both neighboring Senegal and Guinea, as well as their former colonial power France, were known to have vested interests in the small country in between. As early as in the nineteenth century, France had attempted to acquire political and economic influence in Guinea-Bissau, which was only nominally controlled by Portugal. While French traders dominated Bissau-Guinean commerce until the early twentieth century (Bowman, 1987: 98-99), France had clashed with Portugal over the control of the Casamance, the Rio Nunez and Rio Cacine in the late nineteenth century (Roche, 1973, 1985; Bowman, 1980: 165-169, 180; Esteves, 1988). In the 1960s, the impending independence of Senegal had raised fears among Portuguese military officials that Guinea-Bissau could be incorporated into a federation of independent West African states (Henri Labéry in Chilcote, 1972: 314; Keese, 2003: 119). In 1964, Guinean president Touré laid secret claims to large parts of the territorial waters of Guinea-Bissau (Davidson, 1981: 62). These historical developments have left their mark on the contemporary Bissau-Guinean national consciousness. Widespread oral narratives among Bissau-Guineans keep circulating that both Senegal and Guinea were planning to divide their reputedly rich neighbor Guinea-Bissau between themselves. In this context, a considerable number of Bissau-Guineans believe that it was Touré who masterminded the assassination of Amílcar Cabral (see also Forrest, 1992: 38) – a view backed by journalistic research (Castanheira, 1999: 277-281).

57 The insurgents under Mané’s command were therefore considered to be fighting against a regime that was widely held responsible for bad governance and the invasion of foreign troops. The vast majority of Bissau-Guineans would have supported the following statement:

[T]he war in Guinea-Bissau has been a war of a president and his foreign allies against the majority of the political parties, against parliament, against the Bishop and all prominent actors of civil society, as a matter of fact, against the people of Guinea-Bissau (Drift, 2000: 41).

58 In this way, Bissau-Guineans again imagined and portrayed the nation as a collective victim of state affairs. In addition, those Bissau residents who succeeded in fleeing as refugees from the combat operations in the war zone met with a high level of solidarity from their fellow citizens in the countryside. Bissau-Guinean solidarity across religious and ethnic boundaries was even intensified by the fact that the international community was helplessly watching the unfolding of events. For example, the World Food Programme was unable to deliver any staple food to Bissau during the first six months of the civil war (Trajano Filho, 2007: 377-378). Left high and dry by foreign countries and their aid, Bissau-Guineans must have felt like victims yet again. Moreover, the fact that French soldiers and diplomats openly supported the Vieira faction, in line with their geopolitical interests, not only increased the Bissau-Guineans’ resentment against France (cf. Zeverino, 2005: 104-105) but also may have reinforced the persisting impression among citizens that foreign countries continued to pose a threat to Bissau-Guinean independence and nationhood.

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Conclusion

59 In this article I have shown that national integration in Guinea-Bissau appears to be quite strong – despite high degrees of ethnic diversity and a state frequently described as weak and failed.

60 Interestingly, it was the leading role of the early postcolonial state in promoting the nationwide spread of creole representations. By employing Kriol as a means of interethnic communication and manjuandadis and carnival as a means of political mass- mobilization, the postcolonial state made these features popular throughout the country and across ethnic and religious boundaries. Their expansion was facilitated by the fact that these creole representations were shared by various ethnic subcategories under a creole umbrella.

61 As respects the country’s ethnic fragmentation, politicians have not yet managed to create a system that can be termed political tribalism. One reason for this is that national integration and interethnic co-operation are very pronounced in Bissau-Guinean society.

62 Bissau-Guineans distinguish clearly between state and nationhood. While they are critical of their state’s performance, they nevertheless identify as one nation. The state is most severely criticized by the masses of disadvantaged people who regard themselves as victims of their state. By contrast, their identification with the nation is very pronounced. This feeling unites Bissau-Guineans across ethnic and religious boundaries.

63 When the military conflict broke out and foreign powers entered Guinea-Bissau, the nation stood united against a shared enemy, embodied by Senegalese, Guinean, and French army troops, thus forgetting any social, ethnic, and religious cleavages.

64 The Bissau-Guineans’ strong commitment to nationhood has been largely fostered by the independence movement PAIGC. On the basis of a unity-in-diversity or tree-as-nation model that portrayed the Bissau-Guinean nation as an umbrella encompassing various ethnic groups, the PAIGC had actively encouraged national cohesion ever since the beginning of the struggle for liberation. These developments were initiated by the postcolonial state in its attempt to construct a nation after the formation of an independent state. Thus, the construction of an independent nation- and statehood in Guinea-Bissau – as in many other African countries – differed from European models such as Germany, Italy, and Poland, where nation-building had preceded state-building.

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ABSTRACTS

This article explores national integration in Guinea-Bissau since independence in 1974. I argue that the level of national integration is quite strong – despite the ethnic diversity prevalent in the country. As I will show, national integration is due to the ideology and policy of the former independence movement and the early postcolonial state that advocated a national-unity-in- ethnic-diversity-model. Bissau-Guineans know to separate between the state and the nation, a distinction sometimes neglected in analyses. As my findings suggest, Bissau-Guineans victimize their nation while confronting it with the state. A foreign invasion during the 1998-99 Military Conflict fostered national integration even more.

O artigo explora a integração nacional na Guiné-Bissau desde a independência do país em 1974. O nível de integração nacional é – no meu modo de ver – relativamente forte, apesar da diversidade étnica naquele país da África Ocidental. Como vou demonstrar, a integração nacional baseia-se na ideologia e política do antigo movimento independentista e no jovem Estado pós-colonial, que advogavam um modelo de unidade-nacional-na-diversidade-étnica. Os guineenses sabem diferenciar

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entre o Estado e a nação, uma distinção às vezes negligenciada nas análises. Como sugerem os resultados da minha pesquisa de campo, os guineenses vitimizam a sua nação enquanto confrontam a nação com o Estado. Uma invasão estrangeira durante o conflito militar de 1998-99 reforçou ainda mais a integração nacional.

INDEX

Keywords: Guinea-Bissau, ethnicity, nationalism, nation-state, postcolonialism, conflict Palavras-chave: Guiné-Bissau, Etnicidade, Nacionalismo, Estado-nação, Pós-colonialismo, Conflito

AUTHOR

CHRISTOPH KOHL Max Planck Institute for Social Anthropology - Halle/Saale, Alemanha, [email protected]

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Institucionalização dos Sistemas Partidários na África Lusófona – O caso cabo-verdiano

Edalina Sanches

Introdução

Desde os anos 1990 que a paisagem política em África mudou significativamente, na sequência de transformações no plano interno – o fracasso das políticas socioeconómicas colectivistas e centralmente planeadas e a crise de legitimidade do regime de partido único – e no plano internacional – o fim da Guerra Fria e o colapso do bloco soviético. Com efeito, na maioria dos Estados africanos, nos finais dos anos 1980, os partidos no Governo começaram a adoptar e a pôr em marcha medidas de liberalização económica e política (Chabal, 2002). A chamada Terceira Vaga, que tinha arrancado em 1974 com a transição portuguesa, chegava ao continente africano levando à introdução de eleições competitivas e à constituição de partidos políticos1. Precisamente, desde que Huntington (1991) assinalou o início da Terceira Vaga, tornou-se importante para os académicos perceber como funcionam as instituições políticas em democracias mais recentes por contraposição às democracias mais consolidadas: que características apresentam os partidos políticos e os sistemas de partidos nas novas democracias? Em que medida se distinguem das democracias da Primeira e da Segunda Vaga? Para Mainwaring (1998, 1999), os sistemas de partidos que emergem durante a Terceira Vaga – em específico os casos da América Latina – distinguem-se pelo facto de serem sobretudo estruturados pelo Estado e pelas elites políticas e por estarem menos institucionalizados (os níveis de volatilidade eleitoral são mais elevados, os partidos estão menos enraizados na sociedade civil e dependem em grande medida dos recursos do Estado). Mais tarde Kuenzi e Lambright (2001) aplicaram o modelo de Mainwaring ao contexto africano e demonstraram que: 1) o grau de institucionalização é globalmente mais baixo

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nos sistemas partidários africanos e 2) as democracias eleitorais mais antigas – como por exemplo o Botswana e a Namíbia – são também as mais institucionalizadas2. Contudo, outro aspecto que resulta da sua análise, mas que não é explorado no seu estudo, é o facto de os sistemas de partidos mais institucionalizados serem também aqueles onde a competição eleitoral é mais restrita. Na verdade, os cinco primeiros lugares do ranking de institucionalização que elaboram são ocupados por sistemas com um partido dominante3 – Botswana, Gâmbia, Namíbia, África do Sul e Zimbabué. Deste grupo de países o Botswana, a Namíbia e a África do Sul têm sido considerados democracias eleitorais livres de acordo com a Freedom House4. Por outro lado, a Gâmbia e o Zimbabué têm alternado entre o estatuto de democracia eleitoral parcialmente livre ou não livre. Este aspecto vai ao encontro da afirmação de Mainwaring (1999) de que a relação entre o grau de institucionalização e a qualidade ou nível de democraticidade de um regime está longe de ser linear. Este artigo insere-se dentro deste debate e procura responder a duas questões: 1) qual o grau de institucionalização dos sistemas partidários da África lusófona e 2) de que forma se institucionalizam diferentes formatos de sistemas partidários. Esta última questão é-nos sugerida pelas conclusões do estudo de Kuenzi e Lambright (2001) que apontam para uma relação entre o grau de institucionalização e o número de partidos que concorrem e são eleitos numa determinada sociedade. Para responder a estas duas questões desenvolvemos um desenho de investigação misto. Iniciamos com uma análise comparativa em que descrevemos o grau de institucionalização num conjunto controlado de casos. Depois, para responder à segunda questão seleccionamos um caso em que procuramos explicar um dos padrões identificados: o bipartidarismo. Na próxima secção apresentamos o estado da arte, em que definimos e operacionalizamos o conceito de institucionalização dos sistemas partidários. De seguida descrevemos sucintamente o contexto de histórico dos casos e dos partidos que iremos a analisar. Continuamos com a medição do grau de institucionalização dos sistemas de partidos em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Para isso, utilizamos três dimensões propostas por Mainwaring (1998) e mais tarde operacionalizadas por Kuenzi e Lambright (2001) para o contexto africano: 1) a estabilidade da competição eleitoral; 2) o enraizamento dos partidos na sociedade; e 3) a legitimidade das eleições. O objectivo desta secção é descrever as características dos sistemas partidários desde a transição para a democracia até às mais recentes eleições. Decorrente desta análise, desenvolvemos um estudo do caso cabo-verdiano, em que explicamos por que razão o sistema de partidos apresenta um formato bipolar desde 1991. As nossas explicações remetem para a importância do papel dos partidos, das bases de identificação partidária e do sistema eleitoral.

Estado da arte

Desde a emergência da democracia de massas no Ocidente (século XIX) que os partidos se têm tornado os maiores agentes de representação e de canalização da política democrática. Apesar de as suas funções tradicionais – estruturação e canalização da comunicação entre governantes e governados, socialização política, homogeneização e hierarquização dos interesses – estarem em declínio, continuam a ser determinantes pois dominam a política eleitoral (Lopes e Freire, 2002: 12-13). As funções que

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desempenham afectam a natureza da representação, as políticas públicas que são formuladas e a forma como são implementadas (Mainwaring, 1999: 11-15). Os sistemas de partidos são os padrões de competição e de cooperação entre os diferentes partidos dentro de um sistema político (Ware, 1996: 7) e podem ser analisados como instituições políticas, no sentido em que: 1) definem regras formais (estatutos, lei eleitoral, etc.) e informais (decisões, rotinas, costumes) do sistema político; e 2) promovem uma efectiva agregação das preferências dos indivíduos (Rothstein, 1996: 147). As tipologias clássicas sobre os sistemas de partidos têm demonstrado que as leis do sistema eleitoral (Duverger, 1954; Rae, 1989) e a estrutura de clivagens sociais existente numa sociedade (Lipset e Rokkan, 1967) influenciam o número de partidos que competem e são eleitos num determinado contexto político. Dentro destas, a tipologia de Sartori (1976) é particularmente relevante, pelo seu enfoque nos padrões de competição (medidos pelo número de partidos) e na distância ideológica (medida pelo grau de polarização) entre os partidos políticos. A ideia de que as interacções entre os partidos explicam as diferentes formas de organização partidária tem estado, de resto, na base da maioria de estudos posteriores feitos, quer sobre as democracias mais consolidadas (Mair, 1996 e 1990), quer sobre as mais recentes (Mainwaring, 1999; Bogaards, 2004; Kuenzi e Lambright, 2001 e 2005). Na análise dos sistemas de partidos que emergem no contexto da Terceira Vaga – nomeadamente o caso do Brasil – Mainwaring (1999) defende ser necessário repensar as teorias clássicas dos sistemas de partidos, tendo em conta três aspectos: a variância nos processos de institucionalização, os limites quanto à aplicabilidade do modelo das clivagens sociais e a capacidade do Estado e das elites políticas para modelarem os sistemas de partidos. Assim, aos dois critérios identificados por Sartori (1976) – número de partidos e distância ideológica – acrescenta um terceiro: o grau de institucionalização. Este conceito descreve o

processo pelo qual as práticas e as formas de organização política são tomadas como universalmente legítimas, permitindo que os actores políticos possuam expectativas claras, estáveis e recíprocas sobre o seu comportamento político (Mainwaring, 1999: 25 - tradução minha).

O mesmo é dizer que é “o processo pelo qual as organizações e os procedimentos adquirem valor e estabilidade” (Huntington citado por Mainwaring, 1999: 25). Contudo, a noção de institucionalização não é teleológica nem implica uma linearidade histórica e nem uma relação linear com a democracia. O grau de institucionalização é operacionalizado em quatro componentes: 1) a estabilidade da competição eleitoral; 2) o enraizamento dos partidos na sociedade; 3) a legitimidade das eleições; e 4) a organização partidária (Mainwaring, 1999: 21-39). Como referimos na introdução, este modelo foi utilizado por Kuenzi e Lambright (2001) no estudo comparado de trinta países da África subsariana. Estas autoras operacionalizaram as três primeiras componentes em indicadores específicos, aos quais atribuíram pontuações que variam numa escala de 1 (baixo grau de institucionalização) e 3 (elevado grau de institucionalização) (ver Anexo 1). Neste sentido, (i) a estabilidade da competição eleitoral foi medida através da volatilidade legislativa e da diferença de votos entre as eleições legislativas e presidenciais; (ii) o enraizamento dos partidos na sociedade através da percentagem de votos ganhos pelos partidos formados nos anos

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1950-1970 e pela idade dos partidos com 10% dos votos nas últimas eleições; e, finalmente, (iii) a legitimidade das eleições foi medida com base em três indicadores: se algum partido boicotou as eleições, se os partidos vencidos aceitaram os resultados e se as eleições foram consideradas livres e justas. Utilizaremos este modelo para medir o grau de institucionalização na África lusófona; a única diferença é a inclusão da abstenção eleitoral na primeira componente. Tendo em conta as relações propostas pelos modelos clássicos dos sistemas de partidos, iremos explorar os efeitos do sistema eleitoral e identificar as bases da identificação partidária. Por último a nossa abordagem sobre o papel dos partidos é inspirada em Sartori (1976), que alia o formato do sistema de partidos a uma estratégia de competição eleitoral específica.

Partidos políticos: da descolonização à democracia

No pós-Segunda Guerra Mundial, os movimentos de libertação nacional passaram a estar presentes na maioria dos países africanos, assistindo-se em paralelo a uma proliferação de partidos políticos como forma de mobilização das massas. As cinco colónias portuguesas em África não foram excepção e os movimentos anticoloniais começaram organizar-se sobre a forma de partidos políticos para negociar a transferência de poder da metrópole para a elite política nacional. Como refere Amílcar Cabral, “a par do reforçamento do campo socialista, uma outra característica essencial” deste período era que “os povos dependentes despertaram para a luta de libertação e assim se iniciou a fase final de liquidação do imperialismo” (Cabral, 1974: 12). Em Angola emergem três movimentos anticoloniais: a Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) em 1954, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em 1956 e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) em 1966 (Birmingham, 2002). Em Moçambique o processo de independência é liderado pela Frente da Libertação de Moçambique (FRELIMO). Este movimento foi constituído em 1962 e agregou três forças políticas preexistentes: a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO), a União Nacional Africana de Moçambique (MANU) e a União Nacional Africana para Moçambique Independente (UNAMI) (Whitaker, 1970; Henriksen, 1976). Em 1975 surge a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), criada pelo Centro de Inteligência da Rodésia (ibid.). Em São Tomé e Príncipe emerge em 12 de Julho de 1972 o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). No caso de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, um mesmo movimento político definia o projecto de independência e dava corpo a uma ideia de Estado e de nação comum. Fundado em 1956 por Amílcar Cabral e outros, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) estabeleceu como seu principal objectivo a união orgânica de todas as forças nacionalistas e patrióticas, com vista à independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde (Cabral, 1974; Chabal, 2002; Lopes, 1996). Nos seus textos políticos, Amílcar Cabral afirma:

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o nosso primeiro trabalho é criar num certo número da nossa gente, a consciência nacional, a ideia de unidade nacional, tanto na Guiné como em Cabo Verde. Por isso mesmo o Programa do nosso partido foi claro: unidade nacional na Guiné, unidade nacional em Cabo Verde (1979: 4).

Este projecto binacional findaria em 1980 com a separação das alas guineense e cabo- verdiana do partido e com a criação do Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV). O processo de descolonização na África lusófona ficaria marcado pelas guerras anticoloniais em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau e pelo golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 dirigido pelo Movimento das Forças Armadas, que pôs fim a 41 anos de Estado Novo e a 48 anos de ditadura em Portugal. Em Angola, a guerra iniciada em 1961 terminaria em 1975 com a assinatura do Acordo de Alvor entre Portugal e os três movimentos de libertação angolanos – o FNLA, o MPLA e a UNITA – e a formação de um governo provisório com a presença destas três forças políticas. Em Moçambique, o governo português transferiu o poder para a FRELIMO segundo os termos do acordo de Lusaka de 7 Setembro de 1974. Não tiveram lugar eleições ou referendo. Após nove meses de governo interino sob comando de Joaquim Chissano, foi proclamada uma constituição de independência pelo Comité Central da FRELIMO em 25 de Junho de 1975. O presidente do partido, Samora Machel, tornou-se o primeiro Presidente da República de Moçambique (Krennerich, 1999: 659). Apesar de já anteriormente terem ocorrido acções anticoloniais na Guiné-Bissau, 1963 foi o ano do início das operações militares. O PAIGC dirigiu a guerra colonial contra as forças armadas portuguesas e a Frente de Libertação para a Independência da Guiné (FLING) agiu em paralelo embora procurasse a independência sem Cabo Verde. Em 1972 — durante a guerra colonial — foram organizadas eleições nos territórios controlados pelo PAIGC. A lista de candidatos propostos pelo PAIGC foi aprovada e o recém- constituído Conselho Regional elegeu os delegados da Assembleia Constituinte. O PAIGC declarou a independência da Guiné-Bissau em 24 de Setembro de 1973, mas esse estatuto só viria a ser reconhecido pela comunidade internacional em 10 de Setembro de 1974 (Clemente-Kersten, 1999: 461). Cabo Verde e São Tomé e Príncipe não só não atingiram a independência através da luta armada (embora alguns dirigentes cabo-verdianos tivessem combatido na Guiné- Bissau) como os partidos nacionalistas dominantes – PAIGC e MLSTP – organizaram eleições como forma de legitimarem o novo estatuto político. Em Cabo Verde, o PAIGC viu as suas listas serem aprovadas nas eleições de Julho de 1975 e constituiu a Assembleia Nacional do Povo (Chabal, 2002: 47; Foy, 1988: 35). Aristides Pereira foi eleito Presidente da República e Pedro Pires Primeiro-ministro (Lopes, 1996: 427-8). A 6 de Julho de 1975, o povo de São Tomé elegeu os membros da Assembleia Constitucional e aprovou o Programa do MLSTP. A independência foi declarada a 12 de Julho de 1975 com Manuel Pinto da Costa como Presidente e Miguel Trovoada como Primeiro-ministro (Denny e Ray, 1989: 143). Logo após as independências, as elites políticas procuraram, por um lado, centralizar o poder na estrutura do Estado e do partido e, por outro, promover o crescimento económico (Mozaffar e Scarritt, 2005). Em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique adoptaram-se sistemas plebiscitários de partido único enquanto em São Tomé e Príncipe desenvolveu-se um sistema competitivo de partido único (Bratton e

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Van De Walle, 1997: 79). Estes regimes tinham como traço comum o neopatrimonialismo5, contudo o segundo tipo permitia maior pluralismo e competitividade (Bratton e Van De Walle, 1997: 81). Nos finais da década de 1980 e de forma a responder aos problemas económicos e políticos domésticos, os partidos do Estado único, no poder desde meados dos anos 70 – PAIGC, PAICV, MLSTP, MPLA e FRELIMO – introduziram importantes alterações nos textos constitucionais, que permitiram uma maior liberalização política e económica e, deste modo, a realização de eleições concorrenciais logo no início dos anos 1990 (ver quadro 1). Se em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique o MPLA, o PAIGC e a FRELIMO respectivamente, venceram as eleições fundadoras do regime democrático, em Cabo Verde e São Tomé Príncipe a oposição, recentemente formada6, chegou ao poder. Com efeito, o Movimento para a Democracia (MPD) e o Partido da Convergência Democrática-Grupo Reflexão (PCD-GR) venceram mais de 60% dos lugares da assembleia, em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, respectivamente.

Quadro 1 - Características gerais dos sistemas políticos: 1991-2009

SPRE = Semipresidencialismo. Fontes: African Elections Data Base (http://africanelections.tripod.com/ [01-12-2008]) e Nohlen et al. (1999: 22 e 28).

Quanto aos resultados dos processos de transição democrática, apenas em Angola o processo foi interrompido ou bloqueado (Bratton e Van de Walle, 1997), devido ao ressurgimento do conflito armado na sequência da não aceitação dos resultados eleitorais por parte da UNITA. Depois das eleições de 1992 o país mergulhou numa guerra prolongada e só com a morte do Jonas Savimbi em 2002 e com a assinatura do Memorando de Luena foi possível selar o conflito armado. Do ponto de vista da arquitectura institucional, em todos os países encontramos uma forma de governo semipresidencialista. Esta classificação está longe de ser consensual, sobretudo no caso moçambicano, onde os “poderes do presidente estão muito acima dos outros países semipresidenciais” (Macuane, 2009: 182). No entanto, adoptando a definição minimalista de Elgie (2004) que define o semipresidencialismo como um regime em que coexistem um Presidente eleito, por um mandato específico, um Primeiro-ministro e um Governo responsável pelo Parlamento, esta classificação é adequada7. No que diz respeito ao sistema eleitoral, as fórmulas eleitorais são semelhantes8 – método D’Hondt nas eleições legislativas e fórmula maioritária a duas voltas nas eleições presidenciais. Para medir o grau de institucionalização, as nossas unidades de análise são as eleições legislativas e presidenciais que ocorreram desde as respectivas transições para a democracia até ao presente. Significa que iremos observar 36 eleições9.

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Institucionalização dos sistemas partidários na África lusófona: análise comparada

O grau de institucionalização será operacionalizado em três dimensões: estabilidade ou regularidade da competição eleitoral, enraizamento dos partidos na sociedade e legitimidade das eleições. Por sua vez, cada uma destas dimensões será operacionalizada em indicadores que serão pontuados numa escala que varia entre 1 (baixo grau de institucionalização) e 3 (elevado grau de institucionalização) (ver Anexo 1).

Regularidade da competição eleitoral

Os padrões de competição partidária tendem a ser regulares nas democracias mais consolidadas. Esta característica pode ser medida através do índice de volatilidade eleitoral10. Este índice refere-se à percentagem total de mudança de votos de um partido para outro, de uma eleição para outra (Mainwaring, 1999: 28). Diferentes níveis de volatilidade têm diferentes efeitos, no que diz respeito aos padrões de competição entre os partidos. Onde a volatilidade for mais baixa, os resultados eleitorais são mais estáveis de eleição para eleição, e os partidos têm expectativas mais claras sobre os resultados eleitorais. Inversamente, onde os níveis de volatilidade forem mais elevados, os resultados são mais irregulares, ou seja, o mercado eleitoral é mais aberto e imprevisível, podendo existir uma rápida ascensão e queda de partidos políticos (Ibid.: 72).

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Quadro 2 – Volatilidade legislativa

Fontes: Elaborado com base em: African Elections Database (http://africanelections.tripod.com/). Para Guiné-Bissau, eleições legislativas de 2008, Wikipédia (http://en.wikipedia.org/wiki/ Guinea-Bissau_presidential_election_2008). Para Moçambique, eleições legislativas de 2009, Centro de Integridade Pública de Moçambique (http://www.cip.org.mz/election2009/pt/).

Kuenzi e Lambright (2001: 449) mediram a volatilidade em trinta países africanos, e encontraram o valor médio de 31,34%. Com 30,0%, São Tomé e Príncipe regista a volatilidade média mais elevada (observando cinco eleições). Desde 1994, quatro partidos – MLSTP-PSD, ADI, PCD-GR e MDFM – têm assegurado a maioria dos lugares no Parlamento, registando-se rotação no poder e formação de alianças partidárias. Se tivermos em conta apenas a última eleição (volatilidade = 42,5%), este é o país da África lusófona onde existe menor previsibilidade da competição eleitoral, onde os resultados eleitorais são mais difíceis de prever e onde é mais fácil o surgimento de novas forças políticas. Logo a seguir está a Guiné-Bissau com uma volatilidade média de 28,7%. Em 1994, 2004 e 2008 o PAIGC venceu as eleições e em 1999 (ano que regista maior volatilidade) as eleições foram ganhas pelo PRS. Em Angola apenas observamos um par de actos eleitorais. A não aceitação, por parte da UNITA, dos resultados eleitorais de 1992 (que deram como vencedor o MPLA) fez mergulhar o país numa guerra civil que, na sua totalidade, durou quase trinta anos. Nas eleições organizadas em 2008, o MPLA voltou a ser o partido mais votado e desta vez com uma margem de votos ainda mais importante – mais de 71 pontos percentuais. Moçambique e Cabo Verde são os países onde a volatilidade legislativa média é mais baixa, registando 13,4% e 12,6% respectivamente. Em Moçambique, desde 1994 que dois partidos têm dominado a competição eleitoral – a FRELIMO e a RENAMO –, porém nunca se registou uma alternância no poder. A FRELIMO tem saído vencedora em todas as eleições. Em Cabo Verde, pelo contrário, apesar de existirem dois grandes partidos – o PAICV e o MPD – a alternância política foi possível e a diferença de votos entre os partidos não é tão acentuada.

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Outra forma de medir a regularidade do voto é verificar se os cidadãos apoiam o mesmo partido de uma eleição para outra, ou se, pelo contrário, existem eleitores flutuantes, cuja alteração no comportamento do voto esteja reflectida na volatilidade eleitoral. Complementarmente, apresentamos os dados sobre a abstenção eleitoral, na medida em que pode ser um bom indicador do envolvimento dos votantes na vida política do país. Em termos longitudinais, observa-se: 1) um aumento da abstenção eleitoral, com ligeiras inflexões, em todos os países e 2) uma incidência particular deste fenómeno em Moçambique e Cabo Verde. No que diz respeito ao segundo indicador, Moçambique é o país em que os partidos registam menor diferença de votos entre as eleições presidenciais e legislativas. A FRELIMO obteve a maioria dos votos e dos lugares no Parlamento em todas as eleições legislativas e ganhou sempre mais votos nas eleições presidenciais. O sistema partidário foi assim estruturado por um partido dominante. Logo a seguir está Angola, e pese embora se observem duas eleições desfasadas no tempo – um aspecto que limita o alcance deste exercício de comparação –, é evidente o enraizamento do MPLA na sociedade. Este partido venceu as eleições fundadoras do regime democrático (legislativas e presidenciais) e dezasseis anos depois voltou a vencer e com uma margem de votos ainda mais clara.

Quadro 3 – Padrões eleitorais

Fontes: Elaborado com base em: African Elections Database (http://africanelections.tripod.com/). Para Guiné-Bissau, eleições presidenciais de 2009, Wikipédia (http://en.wikipedia.org/wiki/ Guinea-Bissau_presidential_election_2009). Para Moçambique, eleições presidenciais de 2009, Centro de Integridade Pública de Moçambique (http://www.cip.org.mz/election2009/pt/).

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Em Cabo Verde, entre 1991 e 2006, os eleitores também têm seguido as labels partidárias para votar nas eleições presidenciais. O candidato presidencial apoiado pelo partido no poder vence sempre as eleições presidenciais (alternadamente MPD/PAICV). Por outro lado, observa-se que, enquanto o MPD reforça sempre o número de votos nas eleições presidenciais face às eleições legislativas, mesmo quando sai derrotado (2001 e 2006), o PAICV tende a perder votos nas eleições presidenciais face às legislativas (excepção feita às eleições de 2001 ganhas na segunda volta pela margem mínima de 12 votos). Na Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe os partidos registam a maior diferença de votos entre as eleições presidenciais e as legislativas, no entanto os cenários são diferentes. Na Guiné-Bissau parece existir maior consistência do voto, uma vez que os presidentes eleitos pertencem à mesma cor partidária do partido com maioria parlamentar. Assim aconteceu com João Bernardo Nino Vieira eleito em 1994 e com Kumba Yala eleito em 1999, que concorreram com apoio do PAIGC e do PRS, respectivamente. Em São Tomé e Príncipe, as eleições de 1994 foram ganhas pelo MLSTP-PSD, enquanto o presidente eleito em 1996, Miguel Trovoada, era apoiado pelo ADI. Em 2002 o MLSTP-PSD foi o partido mais votado e Fradique de Menezes (ADI) o candidato presidencial vencedor nas eleições de 2006.

O enraizamento dos partidos na sociedade

De acordo com Mainwaring (1998, 1999), podemos medir se os partidos têm raízes estáveis na sociedade utilizando os seguintes indicadores: 1) a percentagem de lugares obtidos por partidos fundados em 1950-70 nas últimas eleições e 2) a idade dos partidos a vencer 10% dos lugares nas últimas eleições (valor médio)11. Mais uma vez, estamos a observar todas as eleições legislativas do período democrático.

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Quadro 4 – A percentagem de lugares dos partidos históricos e a idade dos partidos com mais de 10% dos votos

Fontes: Elaborado com base em: African Elections Database (http://africanelections.tripod.com/). Para Guiné-Bissau, eleições legislativas de 2008, Wikipédia (http://en.wikipedia.org/wiki/ Guinea-Bissau_presidential_election_2008). Para Moçambique, eleições legislativas de 2009, Centro de Integridade Pública de Moçambique (http://www.cip.org.mz/election2009/pt/).

No que diz respeito à percentagem de lugares obtidos pelos partidos formados nos anos 50-70, verifica-se uma hegemonia destes partidos nos casos de Angola e Moçambique. De facto, os anteriores movimentos anticoloniais continuam a ter um peso central no interior do sistema político, conseguindo entre 92% e 100% dos lugares parlamentares. Nos casos de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe e da Guiné-Bissau os partidos do Estado único têm alternado entre períodos eleitorais de maior ou menor predomínio. Os dados relativos à idade dos partidos com mais de 10% de votos nas últimas eleições (em termos médios) oferecem um ângulo complementar de análise, uma vez que nos informa sobre a juventude do sistema partidário. Naturalmente, encontramos os valores mais elevados em Angola e Moçambique, onde os partidos históricos detêm, praticamente, o exclusivo da representação parlamentar. São Tomé e Príncipe e Guiné- Bissau apresentam os sistemas partidários mais jovens.

Legitimidade das eleições

Kuenzi e Lambright (2001: 457) definiram três indicadores para este critério: se a oposição boicotou as eleições, se os partidos vencidos aceitaram a derrota e se as eleições decorreram de forma livre e justa. Cabo Verde e São Tomé e Príncipe registam, nestes três indicadores, as melhores pontuações. As eleições realizadas até ao momento têm sido caracterizadas, pelos

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observadores internacionais, como sendo livres e justas, sem ocorrência de fenómenos de boicote ou de não aceitação dos resultados por parte dos principais partidos políticos. Nos direitos políticos e civis, os dois países registam pontuações próximas do valor máximo. Relativamente ao estatuto da democracia, Guiné-Bissau e Moçambique são considerados parcialmente livres desde a transição para a democracia, sobretudo devido aos escassos progressos no âmbito dos direitos políticos e civis. As eleições, embora organizadas regularmente, nem sempre têm sido consideradas livres e justas ou legítimas por parte dos actores políticos. Na Guiné-Bissau, as eleições legislativas de 1994 foram ganhas pelo PAIGC e o candidato presidencial eleito – João Bernardo Nino Vieira – também era apoiado por este partido. Os resultados eleitorais foram aceites, mas com o decorrer da governação os conflitos entre o Governo e a Junta Militar foram sendo constantes e culminaram em Maio de 1998, quando o brigadeiro Ansumane Mané iniciou uma rebelião, após ter sido demitido do seu posto de chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas pelo líder do PAIGC. Com o Acordo de Paz de Abuja, criaram-se condições para a organização das segundas eleições multipartidárias, em Novembro de 1999. As eleições foram consideradas livres e justas, o PRS, partido de Kumba Yala, foi o mais votado, seguido da RGB-MB e do PAIGC. Após vinte e cinco anos no poder, o PAIGC cede lugar a um governo de coligação entre o PRS e a RGB-MB. Kumba Yala, candidato presidencial do PRS, foi eleito na segunda volta, derrotando o candidato do PAIGC – Malam Bacai Sanhá. Contudo, o seu mandato duraria apenas até 2003, altura em que foi deposto através de um golpe militar. A assinatura da Carta de Transição Política permitiu a realização de eleições legislativas em Março de 2004, que foram ganhas pelo PAIGC. Carlos Domingos Gomes Júnior foi eleito Primeiro-ministro e Henrique Pereira Rosa, chefe de Estado do período interino, manteve-se no cargo até às eleições presidenciais de 2005 que trazem Nino Vieira de volta ao cargo (como candidato independente) (Freedom House Country Report – Guinea-Bissau 2005).

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Quadro 5 – Evolução dos direitos políticos e civis

Nota: A classificação diz respeito às eleições legislativas apenas. Os direitos políticos e direitos civis são classificados de 1 a 7, em que 1 é o grau máximo de liberdade e 7 o mínimo. Estatuto da democracia é Livre (L) entre 1.0-2.5; Parcialmente Livre (PL) entre 3.0-5.0 e Não Livre (NL) entre 5.5-7.0. Fonte: Freedom House (www.freedomhouse.org).

Embora as eleições tenham sido consideradas livres e justas, registaram-se alguns incidentes já que os militares fiéis a Kumba Yala não aceitaram a derrota, ocupando, por um período breve, a residência presidencial. As eleições de 2008 também foram seguidas por incidentes. Uma semana depois de divulgados os resultados eleitorais foram disparados tiros na residência presidencial. João Bernardo Nino Vieira (eleito Presidente em 2004) imputou estes actos ao sobrinho de Kumba Yala (Freedom House Country Report – Guinea-Bissau 2008). Segundo Sangreman et al. (2006), o Estado de Direito e as instituições democráticas na Guiné-Bissau, embora existam formalmente, funcionam com dificuldade e estão sob ameaça constante, quer das Forças Armadas quer dos movimentos políticos, o que se deve à interdependência entre as crises internas no PAIGC e as crises nas Forças Armadas, mas também à incapacidade do Estado em regular assuntos chave do país, nomeadamente a política económica (Sangreman et al., 2006: 33-34). Em Moçambique, as eleições legislativas de 1994 foram consideradas livres e justas e, de um modo geral, os procedimentos eleitorais foram bem administrados. Porém, os partidos da oposição com assento parlamentar (sobretudo a RENAMO) boicotaram a maioria dos trabalhos parlamentares ao longo de quase um ano, como forma de protesto face aos resultados eleitorais. Relativamente às eleições seguintes o Centro de Integridade Pública refere a recorrência de incidentes como a “falta de transparência; e incompetência e confusões de legalidade e de procedimentos. (…) o enchimento de urnas muito generalizado e invalidação de votos (…)”. Nas eleições de 2009 considera

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esta fonte que “não houve nenhuma melhoria, e as críticas feitas pelos observadores em 1999 e 2004 foram simplesmente repetidas”, o que “lança uma sombra sobre a enorme, e genuína, vitória da FRELIMO e sobre a boa organização do dia das eleições e das contagens provisórias pelo Secretariado Técnico da Administração Eleitoral, STAE”12. Em todos estes actos eleitorais os partidos da oposição, principalmente a RENAMO, fizeram acusações de fraude e não consideraram os resultados legítimos. Em Angola o MPLA venceu as eleições de 1992, mas a UNITA não aceitou a derrota. O país entrou novamente num período de guerra e o processo de democratização foi interrompido. As eleições seguintes ocorreram apenas recentemente, em 2008, e foram ganhas, novamente, pelo MPLA por uma margem de votos ainda mais confortável. Desta vez, os resultados não foram contestados. Com base nos indicadores comparados até aqui, apresentamos no quadro que se segue o ranking de institucionalização dos sistemas partidários na África lusófona.

Quadro 6 – Ranking global de institucionalização

Nota: ∑ Pontuações é igual à soma das pontuações, por indicador, em cada ano. Para a pontuação global fizemos a média aritmética pelo número de anos observados em cada país.

Cabo Verde apresenta o nível de institucionalização mais elevado, o que significa que encontramos neste caso uma combinação de: 1) padrões de competição partidária relativamente estáveis (desde 1991 dois grandes partidos dominam a competição eleitoral), 2) expansão dos direitos e liberdades civis, e 3) aceitação das eleições como meio legítimo para determinar vencedores e vencidos. A seguir estão Moçambique e São Tomé e Príncipe mas os padrões que exibem são opostos. Enquanto no primeiro caso os partidos históricos estão enraizados na sociedade, nunca houve alternância no governo e os sucessivos actos eleitorais não são considerados legítimos, no segundo caso o sistema partidário é caracterizado pela proliferação de novos partidos de

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governo que competem numa arena em que os procedimentos democráticos têm sido aceites. Angola regista um padrão semelhante a Moçambique, enquanto o sistema partidário guineense caracteriza-se pela emergência de novos partidos parlamentares que competem num contexto eleitoral parcialmente livre. Neste sentido verifica-se a assunção de Mainwaring (1999) de que a relação entre a institucionalização do sistema partidário e a democracia não é linear.

Estudo de caso: explicando o bipartidarismo cabo- verdiano

Em termos longitudinais, o processo de institucionalização do sistema partidário cabo- verdiano tem sido acompanhado pelo enraizamento crescente de dois partidos na sociedade – o PAICV e o MPD. Segundo Sartori (1976: 143), num sistema bipartidário dois partidos têm expectativas claras de vencer as eleições e de poder vir a formar um governo maioritário. Com efeito, depois das eleições de 1991 novos partidos políticos13 foram constituídos; no entanto, as dinâmicas eleitorais e de formação de governo mantiveram-se. O MPD venceu as eleições legislativas de 1991 e de 1995 e o PAICV venceu as 2001 e de 2006. Para explicar este fenómeno vamos recorrer a três dimensões explicativas: o papel ou agência dos partidos, a identificação partidária e o sistema eleitoral.

O papel dos partidos

De acordo com Sartori (1976: 144), num quadro de bipartidarismo os partidos relevantes comportam-se como agências agregadoras que competem entre si, para representar o maior número de grupos e de interesses possíveis. Assumem, por isso, uma estratégia catch all (Kirchheimer, 1990) em que optam por conteúdos programáticos mais moderados, porque procuram representar todos os sectores do eleitorado. Para além disto, em muitas novas democracias, sobretudo nas africanas, os partidos apresentam uma estrutura organizativa fraca, enfrentam problemas de financiamento e dependem em grande medida do Estado; daí que as funções de socialização e de agregação de interesses específicos, tradicionalmente desempenhadas pelos partidos, se encontrem em declínio. Paralelamente, os partidos estão limitados pelos modelos de desenvolvimento económico e político, impostos pelos programas de ajustamento estrutural e pelos doadores internacionais. Uma das prerrogativas destes programas é a de criar condições para que cada vez mais cidadãos, e não um sector específico apenas, vivam com melhor qualidade de vida e maior protecção social (Manning, 2005). De facto, quando comparámos os programas eleitorais do PAICV e do MPD para as legislativas de 2006, encontrámos diferenças discursivas pouco salientes, sendo antes visível uma convergência programática (Sanches, 2008: 60-61).

Bases de identificação partidária

No seu estudo seminal, Lipset e Rokkan (citado por Freire, 2001: 24-40) argumentaram que identidades sociais como classe, religião, etnicidade e região estabeleciam simpatias/identificações partidárias duráveis.

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Nesta secção testamos esta hipótese teórica. Utilizando os dados do Afrobarómetro para 2002, vamos realizar uma análise de regressão logística em que a variável dependente é a probabilidade de identificação com o PAICV ou com o MPD. As variáveis independentes são: 1) rendimento, 2) habilitações, 3) região, 4) religião católica e 5) idade (ver descrição no Anexo 2). O objectivo desta análise é verificar se a identificação com os dois principais partidos é influenciada pela posição dos indivíduos na estrutura social ou se são as funções desempenhadas pelos partidos (agências agregadoras) que têm maior peso. Se esta última hipótese – que não é testada directamente – se verificar, não esperamos encontrar diferenças significativas entre os identificados com o PAICV e com o MPD, na medida em que em sistemas bipartidários as diferenças entre os eleitores e os partidos de centro são moderadas (Sartori, 1976).

Quadro 7 – Identificados com um partido, em números absolutos e percentagem

PCD = Partido para a Convergência Democrática PRD = Partido da Renovação Democrática UCID = União Cabo-Verdiana Independente e Democrata PSD = Partido Social Democrata PTS = Partido do Trabalho e da Solidariedade Fonte: Afrobarómetro Ronda 2, 2002 (http://afrobarometer.org/round2c.html [01-12-2008]).

Para operacionalizar a nossa variável dependente utilizámos a questão: “Sente-se próximo de algum partido político em especial? Se sim, qual é esse partido?”. Os resultados, apresentados no quadro 7, revelam que: 1) metade dos inquiridos (50,2%) não sente proximidade face a nenhum partido e 2) dos que têm uma simpatia partidária (49,8%), a maioria identifica-se com o PAICV (24,1%) ou, em alternativa, com o MPD (23,5%). Os restantes cinco partidos políticos reúnem pouco mais de 2% da simpatia dos indivíduos. Neste sentido, para a análise de regressão logística vamos trabalhar com uma sub- amostra de 575 indivíduos, que são aqueles que referiram identificar-se com o PAICV ou em alternativa com o MPD. No quadro 9 apresentam-se os resultados da análise: apenas 9,8% (Nagelkerke= 0,098) da identificação com o PAICV é explicada pelo modelo com as variáveis rendimento, habilitações, região, religião católica e idade. O que significa que a posição que os indivíduos ocupam na estrutura social explica pouco a sua identificação partidária.

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Quadro 8 - Probabilidade de identificação com o PAICV (Análise de regressão logística)

*P<0,05; **p<0,10. Fonte: Afrobarómetro Ronda 2, 2002 (http://afrobarometer.org/round2c.html).

Com efeito, do conjunto de variáveis sociodemográficas escolhidas para esta análise, somente a idade (p<0,05) e a Ilha de São Vicente (p<0,10) predizem significativamente a identificação com o PAICV: os indivíduos com idades mais avançadas e que residem na ilha de São Vicente têm menos probabilidade de se identificarem com o PAICV do que os mais novos e aqueles que residem na ilha de Santiago. Estas dimensões parecem determinar mais a identificação com o MPD. Esta análise confirma a hipótese teórica de Sartori de que as diferenças entre os eleitores do centro não são significativas (Sartori, 1976).

O sistema eleitoral

Para Lijphart (1994), as duas principais consequências dos sistemas eleitorais são a desproporcionalidade e o multipartidarismo. No caso cabo-verdiano, vários estudos têm demonstrado que a aplicação do método D’Hondt em círculos de baixa dimensão aumenta a desproporcionalidade no processo de conversão de votos em mandatos e a probabilidade de ocorrência de maiorias artificiais, favorecendo assim os maiores partidos – PAICV e MPD (Costa, 2003; Semedo e Costa, 2007; Sanches, 2008). Como se pode observar no quadro abaixo, o sistema eleitoral cabo-verdiano caracteriza-se pelo domínio esmagador de círculos de pequena dimensão, que em 1991 elegem 31,6% do total de deputados e em 2006 elegem 55,6%.

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Quadro 9 – Círculos e mandatos por distrito

Pequena (elege até 4 mandatos), Média (elege entre 5-9 mandatos), Grande (elege + 10 mandatos). Dimensão Média dos Círculos Eleitorais 1991/2006 = 4; CE = Círculos Eleitorais; MD = Mandatos. Fonte: Elaborado com base em: African Elections Data Base (http://africanelections.tripod.com/) e Semedo et al. 2007.

Contudo, as estruturas de competição não são influenciadas unicamente por factores mecânicos (lei eleitoral), mas também por factores psicológicos, uma vez que as preferências de voto são condicionadas pelo facto de as expectativas serem mais claras e previsíveis. Isto é, os eleitores têm conhecimento que a luta pelo poder está concentrada nos dois maiores partidos quando escolhem em quem votar.

Considerações finais

Neste artigo definimos dois objectivos, o de medir o grau de institucionalização dos sistemas partidários na África lusófona e o de explicar os padrões encontrados para o caso cabo-verdiano. A descrição do grau de institucionalização dos sistemas partidários através das dimensões estabilidade da competição eleitoral, enraizamento dos partidos na sociedade e legitimidade das eleições revelou os seguintes padrões: Em Angola e Moçambique – onde os partidos históricos dominam a competição eleitoral e nunca existiu uma alternância no poder – e na Guiné-Bissau – onde novos partidos têm chegado ao governo – a legitimidade das eleições e de determinados atributos da democracia – direitos civis e liberdades políticas – estão longe de se terem institucionalizado; Em São Tomé e Príncipe – onde os padrões de competição eleitoral são menos previsíveis, os níveis de volatilidade são superiores e novos partidos (e coligações) têm alternado no governo – e em Cabo Verde – onde a competição eleitoral reduz-se a dois partidos – o processo de institucionalização do sistema partidário tem sido acompanhado por um aprofundamento dos procedimentos democráticos. Cabo Verde foi o país que nos mereceu maior atenção, por ser aquele em que o sistema de partidos se encontra mais institucionalizado. Assim, descrevemos características básicas relativas ao formato do sistema de partidos (bipartidário) e à estrutura de competição partidária, e concluímos que este país combina aspectos típicos de democracias consolidadas (relativa previsibilidade dos resultados eleitorais) e de democracias mais recentes (por exemplo a proliferação de pequenos partidos formados a partir de cisões no interior de outros partidos). De resto, a reprodução do sistema bipartidário tem sido possível graças à actuação conjunta de factores individuais (agência dos partidos políticos e bases de identificação partidária) e institucionais

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(sistema eleitoral RP D’Hondt). Embora a magnitude dos círculos eleitorais e a fórmula eleitoral determinem em grande medida o número de partidos com assento parlamentar, não fornecem explicações suficientes sobre o fenómeno do bipartidarismo em Cabo Verde. Com efeito, as escolhas e as estratégias eleitorais adoptadas pelos principais partidos oferecem uma explicação complementar sobre a capacidade de reprodução deste sistema. Tendo em conta estes factores, podemos afirmar que o sistema de partidos cabo- verdiano está cada vez mais institucionalizado, no sentido em que os actores políticos chave (PAICV e MPD) têm expectativas claras sobre o sistema político e desenvolvem estratégias de competição eleitoral, partindo do princípio que determinados contornos e regras de competição – que eles reinventam e actualizam – irão prevalecer no futuro (Mainwaring, 1999: 25), ou seja, são estáveis e duradouros e encarados como legítimos.

ANEXO 1

Grau de institucionalização

Nota: 3.0 = Alto 2.5 = Médio/alto 2.0 = Médio 1.5 = Médio/baixo 1.0 = Baixo. Fonte: Adaptado de Kuenzi e Lambright (2001: 445-448).

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ANEXO 2

Regressão logística: descrição das variáveis que entraram no modelo

Variável dependente PAICV = 0 MPD = 1 Variáveis independentes Rendimento – originalmente medida em 10 escalões de rendimento, foi recodificada calculando-se os centros de classe; Habilitações – criaram-se três variáveis dummy tomando o ensino primário como categoria de referência – Sem escolaridade formal (Sem escolaridade formal = 1; 0 Ensino primário = 0); Ensino secundário (Ensino secundário = 1; Ensino primário = 0) e Ensino superior (Ensino superior = 1; Ensino primário = 0); Região: a partir das categorias originais – Santo Antão, São Vicente, Santiago e Fogo – construíram-se três novas variáveis dummy tomando Santiago como categoria de referência, por ser a mais frequentada – Santo Antão (Santo Antão = 1; Santiago = 0); São Vicente (São Vicente = 1; Santiago = 0) e; Fogo (Fogo = 1; Santiago = 0); Religião: originalmente esta variável apresentava 11 opções de resposta, podendo os inquiridos indicar a religião com a qual se identificavam; verificou-se que mais de ⅔ escolheram a religião católica. Neste sentido construímos uma variável dummy em que a religião católica é a categoria de referência (Católico = 0; Não católico = 1); Idade: codificada em anos. Nota: Quando se trata de variáveis dummy, o nome das variáveis (no quadro 8) não é feito de acordo com as categorias de referência. Por exemplo na variável religião a categoria de referência é “Católico”, logo o valor do odds ratio diz respeito a “Não católico”.

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NOTAS

1. Segundo Diamond (1996), em 1990 a Terceira Vaga estendeu-se ao continente africano, levando a um aumento sem precedentes do número de democracias eleitorais no mundo. Apesar de o número de democracias liberais ter estagnado, o autor considera que a Terceira Vaga ainda não terminou. 2. Como afirmamos mais adiante, o grau de institucionalização não apresenta uma relação linear e positiva com a democratização nem significa a inexistência de instabilidade política. Exemplo

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disso é a intensificação do conflito secessionista no Caprivi (Namíbia) desde 1999 (Chirawu, 2003: 162). 3. Este conceito tem origem em Sartori (1976) e caracteriza os sistemas partidários em que um único partido vence a maioria dos lugares parlamentares (+ 51%) em três eleições consecutivas. 4. http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=1 [10-12-2008]. 5. Segundo Bratton e Van de Walle (1997: 62-66) o neopatrimonialismo consubstancia-se em três premissas fundamentais: 1) o direito de governar cabe ao big man, que não só domina o aparelho estatal e legislativo como se coloca acima dele; 2) As relações de lealdade e dependência definem e estruturam o sistema político e administrativo formal e; 3) O chefe do executivo e o seu círculo mais próximo minam a efectividade da nomeação administrativa, característica do Estado Moderno, usando-a para o patrimonialismo sistemático e práticas de clientelismo. 6. O MPD e o PCD-GR constituíram-se em 1990. 7. Sobre o caso de Moçambique Elgie (2008) afirma que se trata de um regime semipresidencial: “Mozambique is classed as Semipresidential because Article 147-3 of the 2004 revised constitution states that the president serves for five years, even though Article 146-3 states that the president is head of government and Article 207 states that the government is responsible to the National Assembly”. 8. Existem contudo diferenças quanto à dimensão dos círculos eleitorais, cláusulas barreiras, entre outros, que implicam diferentes efeitos sobre o sistema partidário (sobre este tema ver Lijphart, 1994). 9. À data em que este artigo foi elaborado não foi possível incorporar na análise os resultados das eleições legislativas de 2010 realizadas em São Tomé e Príncipe. 10. Exemplo para o cálculo da volatilidade: num sistema com três partidos dominantes, se o partido A vencer 38% numas eleições e 43% na próxima, enquanto o partido B descer de 47% para 27% e o partido C aumentar de 15% para 30%, então a V = (5+20+15)÷2 = 40÷2= 20%. 11. Este valor calculado da seguinte forma: se o Partido A (fundado em 1960) e o Partido B (fundado em 1980) tiverem ganho mais que 10% dos votos em 2000, significa que tinham respectivamente 40 e 20 anos respectivamente nesta data. Neste sentido, a idade dos partidos é igual a (40+20)/2. 12. Ver: Boletim sobre o Processo Político em Moçambique (2009), 43, de 19 de Novembro. 13. Fundados respectivamente em 1993 e 2000, o Partido da Convergência Democrática (PCD) e o Partido da Renovação Democrática (PRD) resultaram de duas crises no interior do MPD; em 1992 emerge o Partido Social-democrata (PSD), na sequência de uma cisão no seio da União Cabo- Verdiana Independente e Democrata (UCID); finalmente, em 2000 é fundado o Partido do Trabalho e da Solidariedade (PTS).

RESUMOS

No seu estudo sobre as democracias da América Latina, Mainwaring (1998) desenvolveu uma grelha de análise para medir o grau de institucionalização dos sistemas partidários e explorou o impacto dos níveis de institucionalização na consolidação democrática. Neste artigo começamos por descrever o grau de institucionalização dos sistemas partidários na África lusófona, empregando três dimensões propostas por Mainwaring – a estabilidade da competição eleitoral, o enraizamento dos partidos na sociedade e a legitimidade das eleições. Num segundo momento, iremos explicar o bipartidarismo em Cabo Verde. O papel dos partidos ou a sua agência, o sistema

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eleitoral e a identificação partidária são apresentados como potenciais explicações para a consolidação da dimensão bipolar do sistema de partidos.

In the study of Latin American countries Mainwaring (1998) provided a model to measure the level of party system institutionalization and explored the impact of different degrees of institutionalization on democratic consolidation. In the first part of this article, we measure the levels of party system institutionalization in the Lusophone African countries drawing on three dimensions proposed by Mainwaring – regularity of party competition, parties’ roots in society and the legitimacy of elections. In the second part we focus on Cape Verde, exploring the causes of its two-party system. Parties’ role and agency, electoral system type, and party identification are advanced as potential explanations for the bipolar nature of the party system.

ÍNDICE

Keywords: Lusophone Africa, degree of party system institutionalization, party systems, Cape Verde, two-party system Palavras-chave: África lusófona, Grau de institucionalização, Sistemas partidários, Cabo Verde, Sistema bipartidário

AUTOR

EDALINA SANCHES Instituto de Ciências Sociais (ICS), Lisboa [email protected]

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Cape Verdean Notions of Migrant Remittances

Lisa Åkesson

1 Remittances sent by migrants are of great importance to many people’s economic activities1. Among recipients all over the world, remittances are an inextricable feature of the everyday struggle to make ends meet. People use them for buying food, educating children, constructing houses, accessing health care and making investments. Migration and remittances often seem to local people to be the only viable means of gaining access to some of the wealth and well-being of the powerful globalizing world. Also, remittances play a key role in the making and remaking of ties between migrants and their relatives in the country of origin. The dynamics of transnational kinship are inherently intertwined with the migrants’ transfer of their money.

2 In the literature on transnational relations and remittances, the senders are often represented as hard pressed by their non-migrant2 relatives’ pleas for economical support. A common theme is that those who stay behind are dissatisfied with what they receive from abroad. Discontented remittance receivers are mentioned in relation to e.g. Ghanian (Mazzucato et al., 2006), Somalian (Lindley, 2009), Sudanese (Riak Akuei, 2005), Filipino (Tacoli, 1999) and Haitian (Glick Schiller and Fouron, 2001) transnational social fields. From the perspective of the remittance senders, some non-migrant family members seem to believe that in countries of destination money can be picked from trees. The non-migrants are often portrayed as ignorant of the harsh living conditions many migrants have to endure, and it is assumed that this ignorance makes those who stay behind predisposed to ask for more support. I believe, however, that this picture is too simplified, partly because of the intensification of transnational contacts as a result of the development of communication technologies. Today, communication patterns in transnational fields are complex and manifold. Many migrants call family members in the country of origin a couple of times per week, or even every day (Panagakos and Horst, 2006). The intensity of the contact is likely to make both the migrants and the non-migrants more informed about each others living conditions. During fieldwork among remittances receivers in Cape Verde I found much variation in their approach to

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the migrants’ economic obligations. It became clear that some of those who are left behind show an understanding attitude towards relatives abroad who remit no or little money. In accordance with this, one important aim of this article is to nuance the picture of the eternally dissatisfied remittance receiver.

3 The overall objective of this article is to analyse how people in Cape Verde view migrant family members’ economic obligations. Thus, it focuses on the voices of those left behind, and their contributions to the human dynamics of migrant transnationalism (Carling, 2008). Remittances epitomize the loyalties and the tensions between family members separated by migration processes as no other transnational practice. The transfer of money from migrants to their non-migrant relatives is a key symbol of the quality and meaning of transnational kinship relations. This article explores Cape Verdean non-migrants’ understanding of remittance practices and it examines the concomitant moral discourse. This line of inquiry is helpful not only for understanding the moralities of remittance transfers but also for finding out what the money from abroad means to people in their everyday life. Thus, the analysis goes beyond an instrumental and rationalistic approach to remittances, which is common in much research and policy, and explores the importance of this money for emotions and social relations.

4 Before going into Cape Verdean notions of remittance practice I contextualize the importance of this money by discussing social and economic conditions in the country as well as the ways the transfers from the migrants are characteristically used. Thereafter I present two common ideas about economical support from family members abroad. Whereas some non-migrants underline dissatisfaction with the support from the migrants and call them ungrateful (ingrôt in Cape Verde Creole), others explain that they cannot ask for more because the migrants in the first place have to take care of their responsibilities in the new country. The concepts of ungrateful and responsible represent two narrative positions. I single out these two positions in an effort to organize and synthesize the Cape Verdean discourse on the money migrants send. In everyday life, people talk about remittances in many and sometimes ambiguous ways. In this flow of everyday speech, the words ungrateful and responsible merit special attention as they are so frequently used. The discussion of ungrateful and responsible migrants is supplemented by a section that analyses moral notions of kinship obligations, which guide much of the discourse on remittances. The later part of the article discusses the dynamic interplay between Cape Verdean understanding of migrants’ economic obligations and social conditions that influence variations in these understandings. Thus, I try to tease out some factors that affect the non-migrants’ expectations about support from the migrants. Here I bring up moralities and emotions of kinship, urban and rural differences, social and economic marginalization, and, lastly, the ongoing intensification of transnational communication.

5 The discussion in this paper builds upon anthropological fieldwork on the islands of São Vicente and Santo Antão. Both islands are situated in the northern Barlavento part of the Cape Verdean archipelago. The second largest town in Cape Verde is Mindelo, which is located on São Vicente, and there I have carried out five periods of fieldwork between 1998 and 2008. On Santo Antão, which is primarily a rural island, I have collected material during three visits in 2007 and 2008. Social and economic ties between São Vicente and Santo Antão are strong. Many people from Santo Antão have moved to Mindelo in search of a better and easier life. In fact probably the majority of

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the population in Mindelo originates from Santo Antão. Santo Antão also supplies the food markets of São Vicente, as very little is grown on that island. This means that although the two islands are separated by a strait, Santo Antão in many ways functions as the rural hinterland of Mindelo. An important part of my knowledge about the discourse on remittances has been gained through participant observation. I have stayed in four different households, all of which receive remittances, and I have partaken in everyday life together with members of these households and with their relatives and friends. According to local standards, one of these households is quite well off, while another is seen as poor. This second household is very dependent on remittances, and when no money arrives from abroad its members can only afford to buy basic foodstuff. The two other households include members who have permanent but low-paid jobs. They see themselves as belonging to the poor, but they have a stable income and can invest in their children’s schooling. In addition to participant observation, I have carried out about 50 open-ended interviews over the years focused on remittances with people from all strata of society.

Socio-economic hierarchies and the use of remittances

6 When Cape Verde gained independence in 1975 the country and its inhabitants were very poor. The islands are short of natural resources and long periods of drought and starvation have recurred throughout history. From the start the new nation was highly dependent on external assistance in the form of official development aid as well as remittances from the emigrants. Since independence Cape Verde has experienced rapid economic development. Between 2002 and 2007 real GNP growth averaged more than 5 percent (Country Watch, 2008). The positive macro-economic development implies that poverty is less widespread today, but it has definitively not been eradicated. Both in poor rural areas and in urban slums food vulnerability is a serious problem (Rodrigues, 2007), and many people can only afford nutrient-poor food such as rice and/or have to skip meals. Poor people dwell in ramshackle houses, live from hand to mouth and are hard pressed by constant worries about how to arrange something to eat the next day.

7 Another downside of the current situation is that the gap between the rich and the less well off has widened. The rich are both more numerous and more visible today than only a decade ago. In Praia and Mindelo, the two biggest towns, there are a growing number of people exhibiting their economic success through conspicuous consumption. Today there are definitively many more spacious luxury houses and big shiny cars than in 1996 when I first visited Cape Verde. The affluent lifestyle of the rich evokes mixed feelings of envy and aversion both among the poor and among people who are said to belong to the middle category of those who get by (Cr. dzenrasgá). Those who get by do not risk going hungry to bed and they live in decent housing, in contrast to the poor. An important negative aspect of the living conditions for this category (as well as for the poor) is that they seldom have an opportunity to work their way up in local society. Lack of formal educational merits as well as beneficial contacts with the political and economical elite exclude people from pursuing a career and gaining more money. In contrast to this standstill, novel and attractive commodities are constantly entering the local market and are creating new demand. Among the poor and those who get by, feelings of stagnation are also evoked by ideas about what others have

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achieved as migrants. The suffocating experience of fighting one’s way through a life characterized by few changes and no advance is underpinned by comparisons with relatives and friends who telephone from abroad and talk about other possibilities. In conclusion, the implication is that although few Cape Verdeans are threatened by acute starvation today, reception of remittances can play a decisive role in people’s security, life prospects and social status.

8 Emigration from Cape Verde began on a large scale about a century ago and has been directed to three different continents: Africa, America and Europe. Today, Cape Verdean authorities claim that the diaspora population outnumbers the half a million inhabitants in the national territory (Instituto das Comunidades de Cabo Verde, 2008). A majority of the Cape Verdeans have close relatives living and working in Europe or the US. A census I carried out in a rural village in Santo Antão showed that 85 per cent of the heads of households had a close relative abroad. A close relative is here defined as a parent, child or sibling, as in Cape Verdean transnational social field these are the most significant ties. The census also evidenced that nearly 60 per cent of the households received remittances at least sometimes.

9 As a percentage of Cape Verde’s GNP, remittances constituted 25 per cent in the late 1970s (Bourdet, 2002). In 2007 they had declined to nine per cent3. These figures indicate that although the nominal inflow of remittances has increased, it is doubtful whether they play a more important role for the recipients today than they did in the 1970s when the reception of a letter containing some American dollars was a major event (Meintel, 1984). The generally higher standard of living as a consequence of the national economic growth has entailed that money and gifts from abroad tend not to have the same fundamental importance for people’s survival as they had in the 1960s and 1970s.

10 In Cape Verde, as in many other places, people avoid openly discussing details of private economy, which makes it hard to gain an exact understanding of how remittances are used by individuals and households. Through participant information it has been possible, however, to learn how this money characteristically is used. Basically, remittances from relatives who have migrated are always very welcome, but seldom seen as a special kind of money to be used for specific well defined objectives. In the literature on remittances it is commonly assumed that receivers set them apart for specified and restricted use. My experience is that it is important to have a more open- ended view on this, especially when the remittance receivers are relatively poor and have to use the money to meet daily needs. In Cape Verde the money sent by relatives from abroad is felt as part of normal everyday life rather than something special or foreign. Often they are used for running household expenses or for paying electricity, water or telephone bills. Due to insecure and low incomes people are often forced to delay the payment of such bills, which means that the service in question is cut off. Thus, when remittances arrive a household may benefit from renewed access to electricity, tap water or a functioning telephone. Another common use of remittances is to pay off a debt at the neighbourhood grocer’s shop, and thereby gain the right to new credit. In rural areas this money may also be employed for paying labourers to clear a plot of land. The money people on Santo Antão and São Vicente receive from the migrants is, however, seldom sufficient for financing more costly long-term investments. As I have shown elsewhere (Åkesson, 2009) due to the contemporary organization of transnational family ties many Cape Verdean migrants distribute their

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remittances to a number of households, which means that the money from abroad is both widely and thinly spread. In turn, this means that the reception of remittances today from family members who have migrated is seldom enough for financing the purchase of land, construction of a house or the establishment of an enterprise.

Ungrateful and responsible migrants

11 In Cape Verde, as in other places, family relations are underpinned by moralities of sharing. All over the world, solidarity and closeness between relatives are expressed through exchange of material and non-material assets. This is true even when family members are geographically separated in consequence of migration (Eastmond and Åkesson, 2007). When Cape Verdean non-migrants talk about the migrants’ remittance practices they often refer to a common moral grounded in the idea that close relatives shall support each other.

12 They allude to this idea irrespectively of whether they believe that the migrants are ungrateful or responsible. Thus, notions of migrants as either ungrateful or responsible both relate to a common moral.

13 The concepts ingrôt (from Portuguese ingrato/a, ungrateful) and responsável (responsible) are often used when people talk about the migrants’ obligations towards family members left behind. These words sometimes function as shorthand signs for somebody’s apprehension of another person. To blame somebody for being ungrateful is to say that he or she does not care (enough) about an already established social relationship. In contrast, responsible persons are perceived to be concerned about the welfare of others, able to disregard their own immediate desires and take into account the others’ needs. In the multifaceted reality of everyday life people’s attitudes towards the migrants’ economical obligations are naturally complex. People have much more to say about their relatives abroad than identifying them as ungrateful or responsible. References to ungrateful / responsible persons should rather be seen as relating to two common narrative positions. By using these concepts the speaker adopts a traditional way of speaking about migrants obligations that is recognized by everyone.

Calling the migrants ungrateful

14 When people in Cape Verde are critical of migrants’ generosity they frequently claim that their relatives are ingrôt. In general terms, an ingrôt person does not live up to expectations of what is considered to be normal support and affection for others. His or her egoism disappoints others. Accordingly, the concept ingrôt has a wider denotation than the English ungrateful, but in want of a better translation I use ingrôt and ungrateful interchangeably. The idea of ungratefulness builds on the idea that the maintenance of a social relation requires that one assists others. While living in Cape Verde the migrants (ideally) benefited from the support kin are supposed to give each other, and if the migrants break this tacit understanding of assistance when they have managed to leave they are ungrateful. Accordingly, relatives abroad who send no or little news or who send less money than their non-migrant kin expect are characterized as ungrateful. Bia is a single mother of two children and earns her living on washing other people’s clothes on irregular occasions. She has three sisters who live in Europe. Bia believed that they should support her more:

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My sisters in Italy and Luxemburg they hardly ever send me something. Hardly ever. They are ungrateful. Really ungrateful. They work for a madam [i.e. as domestics]. That’s not a hard job. It’s very easy.

15 Bia expressed her anger at her sisters through calling them ungrateful. Her anger was deepened by her belief that her sisters live an easy life in Europe, while she toils hard for nearly nothing in Cape Verde. In relation to her own poverty and vulnerability she imagined her sisters’ existence to be untroubled. Bia’s frustration with lack of support from family members living abroad was shared by many people, as for example an elderly woman, Maria, who complained about her children who never sent her any money and rarely called her. Maria also used the concept ungrateful when she talked about her children:

Lisa: You have three children living outside Cape Verde, isn’t that so? Maria: Yes, I have one in America and two in Luxemburg.

Lisa: Do you hear any news from them? Maria: News from them… you know what it’s like. Nowadays it’s seldom, seldom. It’s seldom, all children have become ungrateful. The one in America, he’s married and everything but he doesn’t even remember me.

16 Maria was frustrated and sad not only because remittances failed to appear, but also because of her children’s neglect to keep in touch. To refrain from phoning and da notísia (send news) may also be interpreted as an act of ungratefulness. In fact such omissions often bring about much sorrow and worries. People feel that they are forgotten, both as individual persons and in terms of their position as representatives of a backward reality the migrants have supposedly left behind. Many non-migrants fear that their relatives abroad see them as poor and underdeveloped, and that such notions make the migrants unwilling to uphold the contact. Few non-migrants can afford to make international phone calls, which means that the migrants are in control of the intensity of the transnational contacts. This, in turn, may reinforce the stayers’ feelings of being exposed to the migrants’ benevolence.

Underlining the migrants’ responsibilities abroad

17 In contrast to those who talk about their relatives as ungrateful, others express strikingly little dissatisfaction. Instead they show an understanding and indulgent attitude towards their relatives abroad. The phrase “It’s not obligatory to send” was often repeated by those who share this attitude. Lucy, a single mother with three small children, explained what this phrase meant to her when she talked about her mother who lives in Spain:

I don’t expect that she… If I get something one time or another, I am thankful, but I don’t believe it’s obligatory, especially not as I live in her house. According to me it’s not obligatory, I already have my own children and I have to assume my own responsibilities. It’s ugly to ask [for money] even if you are in need. A good will, you are thankful the times when the money arrives in your hands. But never think it’s obligatory. When you have your own children, you’re the one who is obliged. She’s not the mother of my children.

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18 The most common way of exempting migrants from obligations to send remittances is to refer to their responsibilities towards family members in the new country. Having children in a country of destination is often seen as being associated with high costs. Calú, who has a brother in France, believed that his brother’s parental duties made it impossible for him to remit money: Calú: He has a family, and having a family abroad is difficult.

Lisa: Why is it difficult? Calú: It’s difficult because he has a wife and he has three children, that’s difficult. He has a lot of expenses.

19 An elderly woman, Ana, who has three children in Portugal, had a similar understanding of migrant’s difficulties to send money:

My daughter has a good job, but you know, she has three children, she has three children at school. But she sends me a little something when she happens to meet somebody who is going to Cape Verde. I have a son who is called Zé, he sends me some money now and then, he has only one child, a child and a girlfriend. And Wilson, he used to send me more, but now he has three children at school, and he has another one here, a daughter here. And that huge rent he is paying!

20 Ana also explained that, “Before my children always sent me money, but now Portugal has turned out bad, very very bad. There are no jobs. They don’t have a job.” Interestingly enough, later in the interview when Ana talked anew about her three children in Portugal it became clear that they all were working and that at least one of them had a high status job and presumably a good income. This contradiction is probably a sign of how important it is for Ana to show an undemanding and understanding attitude towards her children who have migrated. She shares this stance with others who maintain that although they themselves receive irregular and small payments their relatives are not ingrôt. Instead, these non-migrants underline that their family members abroad have other and more important responsibilities than sending remittances to Cape Verde.

Supporting the family

21 The discourse on remittances takes place against a framework of moral notions concerning family obligations. Both those who brand the migrants as ungrateful and those who claim that relatives abroad have other responsibilities than taking care of kin in Cape Verde underline the moral demand on the migrants to support other family members.

22 As mentioned, ingrôt is in a general sense used about persons who do not acknowledge and support others. In some specific cases, however, ingrôt refers directly to ungratefulness, in the true (English) sense of the word. This is the case in some kinship relations. Ideas concerning a debt of gratitude are most clearly exposed in the close relation between a mother and her children. Women often portray the struggle for their children’s welfare as sacrifice. By this they mean that they forsake their own well being for the sake of their children. The concept of sacrifice relates to devotion as well as to privation. In a moral discourse these sacrifices are the rationale behind the obligations migrants have towards their ageing mothers. There are strong expectations

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that a mother’s sacrifices should be repaid by the children when they have grown up. Thus, migrants with ageing mothers in Cape Verde are easily branded as ungrateful if they do not send them any money. Elderly men cannot expect to receive economical support in the same way from their children. Many fathers claim that they are incapable of helping their young children due to economic difficulties and men who have not supported their children cannot later argue that adult children who have migrated owe them a debt of gratitude. As conjugal relationships generally are unstable in Cape Verde parents often do not live together (Åkesson, 2009). Thus, it is uncertain whether remittances directed to an ageing mother will also benefit the migrant’s father, as the two parents may not live in the same household.

23 Even in other close family relations, where those concerned have sacrificed themselves for each other in a more equal way, the same way of thinking may be prevailing. This may be true for relations between siblings. There is a social demand to return what one has received. When somebody migrates, this demand is transformed into an asymmetrical relationship, in which the migrant is the giver and the non-migrant the receiver. From the perspective of the non-migrants, the asymmetry of the relationship is based on the migrants and the non-migrants unequal access to material resources. Migrants are thus exhorted to support members of their immediate family at home without expecting equal recompense because they are assumed to be in a better economic position. If a close relative, such as a mother, is living in poverty, the expectations on the migrants increase. However, if relatives in Cape Verde do not need economic assistance from those living abroad, the expectations diminish or disappear.

24 As mentioned before, expectations may also lessen when the migrant has economic responsibilities towards family members in the country of destination. Cape Verdean migrants of both sexes tend to establish a new family, or at least become parents in the country of destination. When people migrate from Cape Verde today, their primary intention is seldom to send money home, although the hope to support family members may also be an important motive for migration. Nowadays, men and women migrate at roughly similar rates, and decisions to leave as well as the migration project in itself are first and foremost understood as individual enterprises. People aspiring to leave often formulate their migration project by saying, “I want to make my life”. In practice, this means making the transition to autonomous adulthood in which one owns a house and is head of a household (Åkesson, 2004). To beget children and to be able to provide for them and give them a good education is an important part of the life-making project.

25 People in Cape Verde often acknowledge migrants’ parenthood by saying that they have many responsibilities in the new place where they live. The notion that it is expensive to provide for children in Europe and the US is widespread and seen as an acceptable reason for not sending much money to family members in Cape Verde. According to this logic, moral migrants may support members of their family in the receiving country instead of sending money back home. They are not seen as ungrateful because they repay the debt of gratitude through supporting the new generation. Thus, both those who call the migrants ungrateful and those who believe that they are responsible maintain that the migrants are supposed to support family members. This also means that if a migrant has not created a new family abroad, relatives in Cape Verde may have higher expectations of economical support. If the migrant is a woman this may be especially true.

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Conditions influencing notions of remittance practices

26 Thus, whether a migrant is perceived to be ungrateful or responsible may have to do with how the non-migrants view the migrant’s family situation in the new country. However, other circumstances influence how people understand their relatives’ economic obligations.

Ambiguities and variations over time

27 A person’s opinion of a migrant’s generosity may vary over time, in relation to the context or simply in consequence of how a conversation unfolds. An example of this is Bia, who was cited above complaining of her sisters who never send her anything. A couple of days after I had interviewed Bia I met her again and noticed that she was wearing a new pair of jeans. Bia then told me that one of her sisters had sent the trousers some weeks before our interview, and that because of that she was pleased with her sister. Bia’s changing attitude probably had to do with the context of our different conversations. When she complained about lack of support from her sisters we had been talking about how insecure and vulnerable her economic situation was, but when I met her in her new blue jeans she was in a better mood and looking forward to a night out dancing.

28 A more fundamental shift in a person’s judgement of the support from relatives abroad may be induced by changing life conditions. As shown above, Ana defended her children’s choice to send her only a little money, but when she became ill her attitude changed. Then she sat on her bed crying “I haven’t received any money, my children have forgotten me, how shall I survive?” She showed her empty purse to those who visited her, and expressed great distress. Ana’s reaction seemed to have little to do with acute economical needs. During her illness she was cared for by a niece who had a steady and reliable income, and who provided well for Ana’s material needs. Her agony was rather related to her feelings of being neglected by her children, even though she was ill. To talk about the remittances that failed to appear seemed to be a way of lamenting her children’s disregard of her illness. In this case, and in many others, the talk about remittances was an expression of the quality of a relationship.

Urban and rural differences

29 In comparison with inhabitants in rural areas on the island of Santo Antão, people in the town of Mindelo tend to express more dissatisfaction with the migrants’ economical contributions. In the town, consumption patterns and life styles are more diverse than in the countryside. Those who have made it are often eager to display their socio-economic success. This tendency sometimes makes people from rural Santo Antão talk about the urban population as people who are obsessed by mostrá grandeza (showing off grandeur). The material wealth of some inhabitants of Mindelo is a constant thorn in the flesh of all those town-dwellers who barely make ends meet. For most people daily urban life revolves around efforts to gain access to scarce material resources. In the fight for a better and more dignified existence relatives abroad are

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potentially an important resource, and people may feel a strong disappointment when support from the migrants fails to appear.

30 Among rural villagers, and especially among the elderly, attitudes are different. Conceptions about honour play a more important role than in the urban environment. Probably the strength of these notions is related to the influence of the Catholic Church, which is stronger in rural Santo Antão than in urban Mindelo. Rural people sometimes make a virtue of not complaining about their situation, but instead point out that they are able to fend for themselves. This attitude is especially common among elderly men, who sometimes maintain that it is improper to ask anyone for economical help. A strong version of this standpoint was held by a man in his eighties who explained that he had not applied for the monthly pension of 3.000 CVE (30 Euro) he was entitled to from the government because he considered reception of this subsidy a sign of a person’s inability to feed himself. In the same vein, other rural Cape Verdeans sometimes underline that they do not expect family members abroad to remit money.

Economic and social marginalization

31 Naturally, a person’s economic situation has an impact on how they view the migrants’ remittance practices. The poorest often talk about reception of remittances as their only hope for a better future. People who live in a desperate economic situation and who have relatives abroad do more often than others claim that their relatives are ungrateful. It is not certain, however, that grievances about receiving too little are straightforwardly related to a lack of material and economical resources, as the case of Djina shows:

32 Djina lives with her five children in a small room on the first floor of a house that seems to be close to collapse. The room is empty except for three mattresses, five wooden stools, a cupboard and a refrigerator that doesn’t work. Djina tells me that her children have three different fathers, and that only one of them supports her with money. Djina herself works at a restaurant “when they need me” and at other times she earns some money through taking in other people’s laundry. When I ask her whether she receives any money from her brother in Portugal, I expect her to complain about his ungratefulness, but she does not: Lisa: Your brother in Portugal, does he send any money? Djina: Ooh poor thing! You know Lisa, life is difficult everywhere. He may send us a little something now and then, maybe once every year.

Lisa: Once a year? Djina: Yes, it’s not a great security for me, but he has his own responsibilities. A hard life, he has bought a house, every month he has to pay for it.

33 Looking at Djina’s barren room and her five children I find it hard to understand her generous and forgiving attitude towards her brother. As I get to know Djina better I begin to understand that despite her poverty she is a person who is respected in the local community. She has many friends and she often receives visits from different family members. This sets her apart from some of those who complain about remittances that fail to appear. These persons are quite frequently marginalized in relation to others in their community. They tend to have few friends and are sometimes subject to slander. Sometimes they worry deeply about their future and

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claim that their relatives abroad have forgotten them. Being socially marginalized in local society leads to deep feelings of vulnerability and powerlessness, and this, in turn, may increase a person’s sense of need for security and support from the migrants. This may also help to explain why Bia called her sisters ungrateful and stated that they never send her anything despite the fact that she recently has received clothes from one of them. In the peri-urban neighbourhood where Bia lives many talk about her behind her back and she has few, if any, friends. Evidently this makes Bia deeply frustrated, and maybe she blows off some steam by slandering her sisters in Europe.

Emotional closeness

34 Another reason for Djina’s acceptance of the lack of support from her brother is the tight relationship between the two siblings. Djina often receives news from her brother and she is well informed about his life in Portugal. She knows that his job as a construction worker is both insecure and badly paid, and she believes that he fights hard to give his children good schooling. It is obvious that she likes her brother and worries about his situation.

35 Statements about a migrant’s generosity, or lack of, can be linked to the emotional content and closeness of a transnational relation. Those who feel close to their relatives abroad may find it easier to accept that the migrants cannot send so much money, while those who feel that they are forgotten sometimes are more prone to criticize their relatives for the lack of economical support. Moreover, migrants who keep up an intimate dialogue with their relatives have better possibilities to explain their economic situation in the new country. They may describe how their everyday responsibilities limit their opportunities to send money to Cape Verde. Thus, keeping close contact can to some degree compensate for a failure to send remittances.

36 The knowledge about family members’ life abroad varies enormously between different individuals and households. Some have quite vague ideas about their relatives’ everyday life. Others have intimate insights into the migrants’ lives, as the example of Luzia and her family illustrates. For the past six years Luzia has lived as an undocumented migrant in the US. She has one child there, whom she supports on her own. In Praia, the capital of Cape Verde, she has two sons who live with her sister, and Luzia sends them 200 USD every month. Luzia’s mother and youngest sister, Rosa, live in rural Santo Antão. They receive a phone call from Luzia at least once a week, and then they talk intensely for about half an hour until Luzia’s telephone card expires. Moreover, they receive news about Luzia from other relatives who also talk to her regularly and from some neighbours, who have a relative who lives in the same American neighbourhood. Rosa knows exactly how much Luzia earns, what she pays for a bus ride and how much money she has borrowed to buy a leather sofa. Rosa also knows the price of a number of common food-stuffs in Luzia’s local grocery shop. When Rosa talked about Luzia’s possibilities to send money it was evident that her close insights into Luzia’s economical situation informed her attitude:

Before Luzia sent us some dollars every month, but she can’t do that right now. She has so many expenses because she has to pay for her three kids. When her new boyfriend moved in she had to buy a new sofa, and now she has to pay for it every month. She earns very little because she is illegal,

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which means that her employer can exploit her as much as he wants. I know that she would give us money if she could.

37 Rosa has three children of her own and no secure income. Together with her mother, she and her children live in a tiny house with neither a kitchen nor a closet. It is obvious that her material living conditions are poorer than Luzia’s, who recently has bought a leather sofa. Despite this Rosa understands and appreciates Luzia’s fight for a better and more dignified existence in the US. When Rosa says that “in America dollar is everything” she refers to Luzia’s constant worries about unpaid bills and the fact that Luzia works six days a week at two different low paid jobs. Rosa does not demand more money from Luzia when they speak to each other on the phone. Rather she tries to comfort her and give her hope for a better future. Rosa and Luzia’s mother says that it is not Luzia who is ingrôt, it is America that has turned ungrateful (Cr. Merca vrá ingrôt). Thus, she states that Luzia does as much as she can to help, while the US has failed her. According to this elderly woman, the US is ingrót because the country does not live up to the expectations of all those who migrated there in order to improve the living conditions for themselves as well as for their relatives left behind.

Increased interrelatedness between Cape Verde and stranjer

38 The maintenance of emotional closeness in long-distance relations has been facilitated by the rapid development of communication technologies. Moreover, the increased interrelatedness between Cape Verde and the outside world has had a major influence on people’s perceptions of the migrants’ possibilities to support them. Traditionally, countries of destination (stranjer) have been imagined as places where all migrants who are willing to work hard can earn a lot of money and then return and live a comfortable and care-free life in Cape Verde (Åkesson, 2004). Today many Cape Verdeans from different social backgrounds say that this image is “an illusion”. Instead a more complex and pessimistic image has emerged of the possibilities migration may entail. People are often aware of the fact that their relatives abroad may become subjected to exploitation, unemployment, racism and in the worst case deportation back to Cape Verde. Many also know that when migrants return in fancy clothing to spend a grand holiday eating, drinking and dancing these weeks of leisure have to be paid for by many months of hard and dull work. Visiting migrants who make themselves important talking about their accomplishment abroad are sometimes met with scepticism. “I know that she is cleaning toilets at the hospital” a friend whispered to me while we were listening to her cousin who talked about her “medical studies” in France. These more nuanced perceptions about life in stranjer may reduce people’s economical demands on their family members abroad. Insights about the hardship of migration make it easier for non-migrants to accept that their migrant relatives sometimes are unable to help them.

39 Those Cape Verdeans who have a deep and nuanced knowledge of life abroad often rely on many different sources. Tourists, television and the accelerating inflow of imported commodities play a significant role. Most important, however, are the personal contacts with people living outside Cape Verde. Today, after many decades of out- migration the transnational networks between the non-migrants and migrants are manifold and complex. The network of Rosa, the woman from rural Santo Antão who was introduced above, illustrates this. As mentioned Rosa’s sister Luzia lives in the US,

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and Rosa has two other siblings who also live with their families in the US. Moreover, the father of Rosa’s youngest child lives there. One of Rosa’s brothers has migrated to Luxembourg and she has five cousins in Portugal and France. All these relatives phone Rosa more or less regularly and when they occasionally come back for a holiday in Cape Verde they pay a visit to her. Rosa also receives second hand information about her migrated relatives’ whereabouts from family members and friends in Cape Verde who have been in contact with them. In Cape Verde, information and gossip about people who live far away is a common topic of conversation in all kinds of social gatherings. News about one’s daughter in Lisbon or mother in Italy is as frequently discussed as the fluctuation of food prices or the uncertain prospect of rain. This means that Rosa, who is a sociable person, constantly receives pieces of news from or about her migrant family members. All this information makes it possible for her to piece together a rich and nuanced idea of their respective lives. Without ever having met Luzia’s new boyfriend she can discuss whether he really is an honest person and she can describe in detail the equipment of the car her brother has bought in Luxembourg.

40 With regard to communication technologies, the intensification of contacts between Cape Verdeans at home and abroad is mainly due to possibilities of making cheap international telephone calls. Steven Vertovec (2004) notes that although globalization is normally associated with advanced communications technology, nothing has facilitated long-distance contacts more than the fall in the cost of international phone calls. The development of communication technologies means that many migrants stay in almost daily contact with family members in the country of origin. An important contribution to the expansion of international phone calling has been the development and spread of cheap prepaid telephone cards. When visiting Cape Verdean migrants in the US I was amazed by both the frequency and the long duration of their phone calls to Cape Verde. As an example, I noticed that during one single day members of the same household called four times to Cape Verde. A call could last for anything between five minutes and two hours, and frequently a number of different persons at both ends of the line took turns in keeping up the conversation. Talk mostly revolved around everyday matters, and resembled in many ways face-to-face social intercourse. All this was possible thanks to the supply of cheap phone cards. Given such intensity in transnational contacts it is no wonder that many of those who stay behind know a lot about the migrants’ living conditions, and thereby may adopt a more understanding attitude when remittances do not arrive.

Conclusions

41 As mentioned in the introduction, the remittance literature frequently refers to dissatisfied recipients. According to a number of ethnographic accounts, criticism of the migrants’ generosity is common among family members left behind (e.g. Glick Schiller and Fouron, 2001; Riak Akuei, 2005; Eastmond, 2007). My experiences from Cape Verde, however, are more mixed. Cape Verdean non-migrants may blame their relatives abroad for being ungrateful, but they may also adopt a more understanding and less demanding attitude and try to explain why they receive no or little money. The basic idea is that it is a moral obligation to support family members. When migrants support dependents in the country of destination it is more likely that relatives in Cape Verde will defend the migrants’ right to send no or little money, because the migrants

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are already fulfilling family obligations. Thus, the non-migrants’ attitudes may reflect the fact that their relatives have many people to support in their new life abroad. This is, however, not the only condition that influences the non-migrants’ notions of the migrants’ remittance practices. In this paper I have outlined five other factors that may affect the non-migrants’ attitudes.

42 Firstly, kinship positions and gender interplay with the moral obligations of sending remittances. For example, migrants who do not send money to an ageing mother are easily branded as ungrateful, while they run less risk of being criticized if they fail to support an elderly father, especially if he neglected his children when they were small. Secondly, there tend to be some differences between rural and urban people’s attitudes towards monetary gifts such as remittances. In urban areas, increasing social stratification in combination with globalizing patterns of consumption give rise to social and economic insecurity and a constant need for money. In contrast, elderly rural dwellers tend to express more satisfaction with their fate. Thirdly, the non- migrant’s status in the local society seems to be consequential for how he or she judges the migrants’ remittance behaviour.

43 My material indicates that social exclusion and vulnerability sometimes are more important factors than economic needs when it comes to feelings of being forgotten by the migrants. Fourthly, the personal relation between the sender and the receiver is important. When a transnational relationship is characterized by an emotional closeness, the non-migrant tends to adopt a much more accepting attitude to a migrant who fails to send money. Fifthly, the intensity of the transnational contact and the information the recipient has about the migrant is a key condition. Today, new and cheaper communication technologies allow highly intensified contacts in dispersed transnational families. In migration research and policy there is a widespread picture of recipients as uninformed about the realities migrants encounter. This needs to be modified. At least in the case of Cape Verde, which is a country that has witnessed comprehensive migration outflows during the last fifty years, those who have stayed behind have access to many different sources of information regarding their relatives life abroad. Sometimes the non-migrants are in a position to form a well-founded opinion about the migrants’ possibilities to help. Naturally, this can make the recipients’ demands more well-balanced.

44 The Cape Verdean case study I have presented here nuances the picture of remittance receivers as always asking for more money. As I have made clear, the undemanding attitude has little to do with prosperity among the potential recipients. Many people both in urban and rural Cape Verde are very poor, despite the rapid macro-economic development taking place in the country. To these people the reception of 50 or 100 Euro would make life much easier, at least for a period of time. But despite this, the notion that the migrants cannot be asked for more seems to be gaining ground, at least in comparison with the situation in colonial times. Whereas 30 or 40 years ago the dominating idea was that hard-working persons could gain as much money abroad as they wanted (Meintel, 1984), today there are more nuanced perceptions. People’s images of life abroad are changing due to the increased relatedness between Cape Verde and the rest of the world, emerging out of the process of globalization. Unemployment in countries of destination as well as the high costs of living are well- known in Cape Verde. This helps potential remittance receivers accept that their

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children and siblings who live abroad have other responsibilities besides supporting family members in Cape Verde.

45 Lastly, this article shows that the meanings of remittances for the recipients are far from purely economical. Their understandings of the migrants’ obligations are often an expression of the quality of the social relation between the sender and the recipient. In some cases, a close transnational relation may provide those left behind with feelings of security, even if the transfer of money is irregular. Transnational emotions may be more important than transnational economics. For those involved, remittances are about much more than economic utility. The fact that this is seldom recognized points to an overtly rational understanding in social science research of the role remittances play in people’s lives.

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NOTES

1. In 2008, registered remittance flows to developing countries where nearly three times the official development assistance (OECD, 2009; World Bank, 2009). 2. By non-migrants is here intended those who stay behind, i.e. people who have not migrated themselves but who have close relatives in countries of destination. 3. Calculated from Alguns indicadores da economia cabo-verdiana (Banco de Cabo Verde, 2008a) and Remessas de emigrantes por país de origem (Banco de Cabo Verde, 2008b).

ABSTRACTS

The transfer of money from migrants to their non-migrant relatives is a key, symbol of the quality and meaning of transnational kinship relations. This article analyses how people in Cape Verde view migrant family members’ economic obligations and it examines the concomitant moral discourse. Through a detailed ethnographic study the article explores how gender and kinship positions interplay with the moral obligation to send remittances, and it also inquires into the differences between rural and urban people’s attitudes towards monetary gifts. Moreover, the importance of the receiver’s status in the local society is discussed and the role of the personal relation between the sender and the receiver. Thus the analysis goes beyond an

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instrumental and rationalistic approach to remittances, which is common in much research, and explores the significance of this money for emotions and social relations.

Para os seus parentes não emigrantes as remessas dos emigrantes são um símbolo chave da qualidade e do significado das relações de parentesco transnacionais. Este artigo analisa como as pessoas em Cabo Verde encaram as obrigações económicas dos emigrantes membros de família e examina o discurso moral concomitante. Através de um estudo etnográfico detalhado o artigo explora como posições de género e parentesco interagem com a obrigação moral de enviar remessas e também investiga as diferenças entre as atitudes das pessoas rurais e urbanas relativamente às ofertas monetárias. Além disso, discute-se a importância do estatuto do receptor na sociedade local e o papel da relação pessoal entre remetente e receptor. Assim, a análise vai além de uma abordagem instrumental e racionalista das remessas, o que é habitual em muitas pesquisas, explorando o significado deste dinheiro em termos de emoções e relações sociais.

INDEX

Keywords: migrant remittances, Cape Verde, transnational relations, moral, country of origin Palavras-chave: Cabo Verde, Relações transnacionais, Moral, País de origem, Remessas

AUTHOR

LISA ÅKESSON Department of Global Studies - University of Gothenburg, [email protected]

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