UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes

LUIZ CARLOS ANDREGHETTO

GESTOS PICTÓRICO-ENSAÍSTICOS: A CÂMERA-PINCEL DE

CAMPINAS 2018

LUIZ CARLOS ANDREGHETTO

GESTOS PICTÓRICO-ENSAÍSTICOS: A CÂMERA-PINCEL DE DEREK JARMAN

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Multimeios.

ORIENTADOR: PROF. DR. FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA.

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO LUIZ CARLOS ANDREGHETTO, E ORIENTADA PELO PROF. DR. FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA.

CAMPINAS 2018

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

LUIZ CARLOS ANDREGHETTO

ORIENTADOR: PROF. DR. FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA

MEMBROS:

1. PROF. DR. FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA

2. PROF. DR. MAURICIUS MARTINS FARINA

3. PROF. DR. GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO

4. PROF(A). DR(A). CECÍLIA ANTAKLY DE MELLO

5. PROF. DR. CRISTIAN DA SILVA BORGES

Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da Comissão Examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 29.08.2018

Aos meus pais, pelo constante apoio.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço ao meu orientador, prof. Francisco Elinaldo Teixeira, pela inestimável oportunidade de aprendizagem, pela tranquilidade na condução desse longo processo e pela confiança na minha capacidade de realizá- lo. Aos professores, Gilberto Alexandre Sobrinho e Pedro Maciel Guimãraes, pela participação na banca de qualificação, contribuindo com valiosos comentários que ampliaram minha percepção em relação ao objeto central dessa pesquisa. Aos professores Mauricius Martins Farina e Marta Strambi, por terem plantado a sementinha dessa pesquisa, iniciada, guardando as devidas proporções, à partir do curso de extensão em Artes Visuais, Intermeios e Educação, no Instituto de Artes dessa instituição. À todos os meus amigos que, direta ou indiretamente, contribuíram com essa pesquisa, seja de maneira acadêmica ou apenas emocional, em especial Paula Cabral e Fernando de Tacca, por todos os momentos de suporte que me fizeram olhar para algumas certezas quando as dúvidas pareciam me dominar. Ao produtor James Mackay pela atenção com que se dedicou a responder algumas perguntas sobre o Jarman e pela disponibilização de alguns filmes dele que, até então, eu não tinha acesso. Ao meu irmão Adriano Andreghetto pela ajuda nas traduções em língua inglesa. Enfim, agradeço a todos que estiveram presentes nesta jornada e que contribuíram de forma profícua, mesmo que alguns não tenham se dado conta disso, fazendo com que esse processo tenha sido um lugar de encontros, trocas e afetos, acima de tudo.

RESUMO

Com um estilo visual singular - ao qual misturava passado e presente; teatro, pintura, poesia, artes performáticas e abstrações visuais; sexo e política – o pintor-cineasta Derek Jarman (1942-1994), realizou um cinema de características poéticas-experimentais, com fortes marcas autorais, todo calcado na polêmica e na provocação ao establishment existente na época (Inglaterra, anos de 1980, então governo da primeira ministra Margaret Thatcher). Percebe-se em Jarman, um contínuo deslocamento do pictórico para o audiovisual e vice-versa. Jarman opera nessas idas e vindas entre esses dois campos, produzindo uma intertextualidade ímpar entre eles. Seu processo criativo se estabelece à partir de uma multiplicidade de gestualidades ao redor dessa relação entre cinema e pintura, uma relação que parte da pintura e vai ao encontro do audiovisual (o Super 8) e retorna à pintura quando essa produção fílmica adentra-se em obras mais experimentais. Suas obras eram frequentemente (re)organizadas, (re)ordenadas e (re)ssignificadas, transformando-se em peças fundamentais para a construção de uma imagética apoiada na autorreflexão e na subjetividade ou, como foi tratado a partir dos anos de 1980, um “cinema do eu” e/ou um “cinema em primeira pessoa”. Nessa “apreensão de si mesmo” Jarman se insere nesse domínio do ensaísmo através de uma subjetividade pensante, empregando diferentes materiais e recursos (found footage, home movies, intervenções do próprio autor), com um discurso fragmentado, incompleto, pessoal e dinâmico.

Palavras-Chave: Derek Jarman, Experimental, Cinema britânico, Filme-ensaio, Found-footage.

ABSTRACT

With a unique style – to which it was mixed past and future; theater, painting, performance arts and visual abstraction; and politics – the painter- filmmaker Derek Jarman (1942-1994) performed a feature cinema with poetic- experimental characteristics with strong authorial marks, all based on controversy and the provocation of the British establishment of that age (England, 1980’s, then the government of Prime Minister Margaret Thatcher). One can see in Jarman, a continuous displacement of the pictorial to the audiovisual and vice versa. Jarman operates in these comings and goings between these two fields, producing an odd intertextuality between them. His creative process is based on a multiplicity of gestures around this relationship between cinema and painting, a relationship that starts with the painting and goes to the audiovisual (Super 8) and returns to the painting when this filmic production enters into more experimental works. His works were often (re) organized, (re) ordered and (re) signified, becoming fundamental pieces for the construction of an imagery based on self-reflection and subjectivity or, as treated from the 1980s, a "self cinema" and / or a "cinema in the first person". In this "self-apprehension" Jarman enters this domain of essayism through a thinking subjectivity, employing different materials and resources (found footage, home movies, the author's own interventions), with a fragmented, incomplete, personal and dynamic discourse.

Key word: Derek Jarman, Experimental, British Cinema, Film-essay, Found- footage.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Ford Madox Brown, “The Last of England”, 1885. Tinta a óleo em painel de madeira. 82,5 × 74,9 cm. Figura 2: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 3: David Hockney, “The Last of England?”, 1961. Óleo sobre tela com montagem em ouro. 50.5 x 50.5 cm. Figura 4: David Hockney, “Illustrations for Fourteen Poems from C. P. Cavafy”, 1966. Gravura e aquatinta em papel. 34,5 x 22,3 cm. Figura 5: Derek Jarman, “Irresistible Grace”, 1982. Óleo sobre tela. 137 x 183 cm. Figura 6: À esquerda – capa de uma edição da revista Physique Pictorial, por volta de 1966. À direita – Derek Jarman, “Untitled (The Archer)”, 1983. Óleo sobre tela. 35,5 x 46,25 cm. Figura 7: William Blake, “Newton”, 1795-1805. Aquarela e tinta. 46 x 60 cm. Figura 8: David Hockney - em sentido horário – 1. “Portrait of an artist (Pool with two figures)”, 1972. Acrílico sobre tela. 214 x 305 cm. 2. “A large diver (Paper Pool 27)”, 1978. Polpa de papel colorido e prensado. 198.4 x 458.5 cm. 3. “A Bigger Splash”, 1967. Acrílico sobre tela. 242,5 x 243,9 cm. 4. “Peter getting out of Nick’s Pool”, 1966. Acrílico sobre tela. 152 x 152 cm. 5. “Portrait of Nick Wilder”, 1966. Acrílico sobre tela. 182.9 x 182.9 cm. Figura 9: Stills do filme “Sebastiane”, 1976, direção Derek Jarman. Figura 10: À esquerda - Guido Reni, “Saint Sebastian”, 1617-1619. Óleo sobre tela. 170 x 133 cm. À direita: Guido Reni, “Saint Sebastian”, 1616. Óleo sobre tela. 129 x 98 cm. Figura 11: À esquerda – Yukio Mishima como São Sebastião (autorretrato). À direita – Still do filme “Sebastiane”, 1976, direção Derek Jarman. Figura 12: Robert Rauschenberg, “Bed”, 1955. Óleo e pincel no travesseiro, colcha e lençol em suporte de madeira. 191,1 x 80 cm. Figura 13: Derek Jarman, “Bed”. Sem dados. Figura 14: Derek Jarman, “Black & Gold Paintings”. Primeira fileira – “Work Ethic”, 1986, sem dados. “INRI”, 1988, óleo e mídia mista sobre tela, 31,7 x 27 cm. “Prospect”, 1990, óleo e mídia mista sobre tela, 48,4 x 30,8 cm. Segunda fileira – “Untitled”, sem dados. “Untitled”, sem dados. “Untitled (Wired Glass)”, 1990, óleo e mídia mista sobre tela, 48,4 x 41 cm. Terceira fileira – “Untitled (Legs)”, 1987, óleo e mídia mista sobre tela, 51,2 x 41 cm. “Untitled”, sem dados. “Pinxit”, 1987, óleo e mídia mista sobre tela, 31 x 26 cm. Figura 15: Derek Jarman, “Black & Gold Paintings”. Primeira fileira – “Untitled”, sem dados. “This instant”, 1987, óleo e mídia mista sobre tela. “T.B. or not T. B. that is the question”, 1990, óleo e mídia mista sobre tela, 46 x 40,75 cm. Segunda fileira – “This precious stone”, 1986, óleo e mídia mista sobre tela. “Those Thoughts”, 1988, mídia mista, 50,2 x 50,2 cm. “The Mistake”, 1987, mídia mista, 25,4 x 30,5 cm. Terceira fileira – “Untitled”, sem dados. Figura 16: Robert Rauschenberg, “Black Paintings”, 1951-53. Primeira fileira – “Untitled (glossy black four-panel painting)”, 1951, óleo e jornal sobre tela, 221 x 434,3 cm. Segunda fileira – “Untitled (glossy black painting)”, 1951, óleo e papel sobre tela, 181,6 x 134 cm. “Untitled (black painting with portal form)”, 1952-53,

óleo e jornal sobre tela, 129,9 x 137,8 cm. “Untitled (small vertical black painting)”, 1951, óleo e jornal sobre tela, 61,3 x 45,6 cm. Terceira fileira – “Untitled (matte black painting with Asheville citizen)”, 1952, óleo e jornal em duas telas esticadas e unidas separadamente, 183,5 x 72,4 cm. “Untitled (black painting on paper)”, 1952, tinta, esmalte e guache sobre papel vegetal e jornal no cartão, 68,3 x 53,7 cm. “Untitled (black painting on paper)”, 1952, tinta em ouro, cobre e esmalte e jornal em papel, 55,2 x 42,5 cm. Figura 17: Robert Rauschenberg, “Gold Paintings”, 1953/1955-56/1965). Primeira fileira – “Untitled (Gold painting)”, 1965, folha de ouro em tecido, colagem de papel em masonite com percevejo em madeira e moldura de vidro, 35,6 x 30,5 cm. “Untitled (Gold painting)”, 1965, folha de ouro em tecido, jornal e cola sobre tela, em moldura de madeira e vidro. 34,9 x 33,7 cm. “Untitled (Gold painting)”, 1953, folha de ouro e prata em tecido, jornal, tinta, madeira, papel, cola e unhas em madeira em moldura de madeira e vidro, 26,7 x 29,2 cm. Segunda fileira – “Gold Painting”, 1953, folha de ouro sobre tela, 27 x 25,7 cm. “Untitled (Gold painting)”, 1953, folha de ouro em tecido, jornal, madeira, papel e cola sobre tela, 50,2 x 50,2 cm. “Untitled (Gold painting)”, 1953, folha de ouro em tecido em cola em masonite em moldura de madeira e vidro, 31,1 x 32,1 cm. Figura 18: Robert Rauschenberg, “Red Paintings”, 1953-54. Primeira fileira – “Red Painting”, 1954, óleo e colagem sobre tela, 194,3 x 129,5 cm. “Untitled”, 1954, óleo, tecido e jornal sobre tela, 179,7 x 121,6 cm. “Yoicks”, 1954, óleo, tecido e jornal em duas telas, 243,8 x 182,9 cm. Segunda fileira – “Red Import”, 1954, óleo, tecido, jornal e madeira sobre tela, 45,7 x 45,7 cm. “Untitled (Red Painting)”, 1953- 54, óleo, tecido, jornal e giz de cera sobre tela e cartão, 37,5 x 29,8 cm. “Untitled (Red Painting)”, 1953, óleo, tecido e jornal sobre tela com madeira, 200,7 x 84,1 cm. Figura 19: Derek Jarman, “Smashing Times”, 1987. Óleo e mídia mista sobre tela. 30,7 x 30, 7 cm. Figura 20: Derek Jarman, “Silence”, 1986. Óleo, vidro, lâmpada, etc, sobre tela, 51 x 40,5 cm. Figura 21: Derek Jarman, “Sleep”, 1987. Óleo e mídia mista sobre tela, 36 x 26,1 cm. Figura 22: Derek Jarman, “Eyes”, 1986. Óleo e mídia mista sobre tela, 36,3 x 26,7 cm. Figura 23: Derek Jarman, “Spread the Plague”, 1992. Óleo em fotocópias sobre tela, 149 x 251,5 cm. Figura 24: Derek Jarman, “Queer”, 1992. Óleo sobre tela, 179 x 251 cm. Figura 25: Derek Jarman, “Sightless”, 1993. Óleo em fotocópias coloridas sobre tela. 213,5 x 213,5 cm. Figura 26: Derek Jarman, “Blood”, 1992. Óleo em fotocópias sobre tela. Figura 27: Derek Jarman, “Infection”, 1993. Óleo em fotocópia sobre tela. 251 x 179 cm. Figura 28: Derek Jarman, “Fuck me blind”, 1993. Óleo sobre tela. 251 x 179 cm. Figura 29: Derek Jarman, “Ataxia – Aids is Fun”, 1993. Óleo sobre tela. 251 x 179 cm. Figura 30: Robert Rauschenberg, “Should love come first?”, 1952. Óleo, papel impresso e grafite sobre tela. 61,6 x 76,2 cm.

Figura 31: Robert Rauschenberg, “Untitled (Hotel Bilbao)”, 1952. Colagem: gravuras, papel impresso, papel, tecido, grafite e cola em papel montado em papelão. 25,7 x 28,3 cm. Figura 32: Robert Rauschenberg, “Untitled (Pictographs and feathers)”, 1952. Colagem: gravação, papel, tecido cortado, papel de seda, lápis e cola sobre papel montado em papelão, papel dobrado não acoplado com reprodução impressa e cola. Figura 33: Derek Jarman, “Letter to the Minister”, 1992. Óleo em fotocópias sobre tela. 251,5 x 149 cm. Figura 34: Derek Jarman, “Morphine”, 1992. Óleo sobre tela. 251,5 x 179 cm. Figura 35: Imagens do livro “Jenny lives with Eric and Martin”, 1983. Figura 36: Marcel Duchamp, “The Fountain”, 1917. Cerâmica esmaltada. 23,5 x 18 cm. Figura 37: Robert Rauschenberg, “First Landing Jump”, 1961. Pano, metal, couro, dispositivo elétrico, cabo e tinta a óleo na placa de composição, com pneu de automóvel e prancha de madeira. 226,3 x 182,8 cm. Figura 38: Marcel Duchamp, “Bicycle Wheel”, 1951. Roda de metal montada em madeira pintada. 129,5 cm x 63,5 x 41,9 cm. Figura 39: Robert Rauschenberg, “Untitled (Scatole Personali)”, 1952. Tábua de madeira com roda de triciclo, ponta de ferro de pontas quadradas, peças de metal, chave, fio de cobre, fita, corda, unhas, caco de vidro, concha, noz e penas. 73,7 x 35,6 cm. Figura 40: Robert Rauschenberg, “Untitled (Elemental Sculpture)”, 1953/1959. À esquerda – “Untitled (Elemental Sculpture), 1953, Caixa de madeira com abertura e pedra desimpedida, 9,8 x 45,4 x 14,9 cm. À direita – “Untitled (Elemental Sculpture)”, 1953, Flange articulada de aço, cinta de aço dobrada, parafuso e pedra, 34,6 x 46,4 x 23,2 cm. Figura 41: Robert Rauschenberg, “Allegory”, 1956/1960. Combine: óleo, papel, tecido, papel impresso, madeira e guarda-chuva sobre tela e metal, areia e cola no painel espelhado. 182,9 x 304,8 cm. Figura 42: Jackson Pollack, “Convergence”, 1952. Óleo sobre tela. 393,7 x 237,5 cm. Figura 43: Robert Rauschenberg, “Night Blooming”, 1951. Da esquerda para à direita: “Untitled (Night Blooming)”, 1951, óleo, asfalto e cascalho sobre tela, 222,9 x 65,4 cm. “Untitled (Night Blooming)”, 1951, óleo, asfalto e cascalho sobre tela, 158,1 x 80 cm. “Untitled (Night Blooming)”, 1951, óleo, asfalto e cascalho sobre tela, 209,6 x 97,5 cm. Figura 44: Derek Jarman, “Do Lalley”, 1993. Óleo sobre tela. 213,5 x 213,5 cm. Figura 45: Derek Jarman, “Dipsy do (Sinister)”, 1993. Óleo sobre tela. 213,5 x 213,5 cm. Figura 46: Yves Klein, “Untitled (Blue Monochrome)”, 1957. Pigmento azul seco sobre tela. 78 x 55 cm. Figura 47: Still do filme “Blue”, 1993, direção Derek Jarman. Figura 48: Yves Klein, “Saut dans le vide (Salto no Vazio)”, 1960, fotografia de Harry Shunk. Figura 49: À direita - Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman. À esquerda, de cima para baixo, obras de Michelangelo Merisi da Caravaggio: “São

João Batista”, 1605, óleo sobre tela, 159 x 124,5 cm. “São Jerônimo”, 1605-06, óleo sobre tela, 112 x 157 cm. “O concerto”, 1594-95, óleo sobre tela, 92,1 x 118,4 cm. Figura 50: Michelangelo Merisi da Caravaggio, “Amor Vitorioso (Amor Vincit Omnia)”, 1602. Óleo sobre tela, 156 x 113 cm. Figura 51: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman. Figura 52: Michelangelo Merisi da Caravaggio, “São Mateus e o anjo”, 1602. Óleo sobre tela. 223 x 183 cm. Figura 53: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman. Figura 54: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman. Figura 55: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman. Figura 56: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman. Figura 57: Derek Jarman, “The Caravaggio Suite”, 1986. Sem dados. Figura 58: Michelangelo Merisi da Caravaggio, “O Martírio de São Mateus”, 1599- 1600. Óleo sobre tela. 323 x 343 cm. Figura 59: Michelangelo Merisi da Caravaggio, “David com a cabeça de Golias”, 1610. Óleo sobre tela. 125 x 101 cm. Figura 60: Still de Derek Jarman no filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 61: Still de Derek Jarman no filme “The Garden”, 1990, direção Derek Jarman. Figura 62: Stills do filme “Studio Bankside”, 1972, direção Derek Jarman. Figura 63: Stills do filme “Sloane Square – a room of one’s own”, 1979, direção Derek Jarman e Guy Ford. Figura 64: Andrew Logan no “Alternative Miss World” de 1972. Figura 65: Stills do filme “A Bigger Splash”, 1973, direção Jack Hazan. Figura 66: À esquerda – Derek Jarman como Miss Crêpe Suzette, 1975. À direita – Marcel Duchamp como Rrose Sélavy, 1920. Figura 67: Prospect Cottage, Dungeness, Inglaterra. Figura 68: Stills do filme “Jordan’s Dance”, 1977, direção Derek Jarman. Figura 69: Stills do filme “Pirate Tape”, 1982, direção Derek Jarman. Figura 70: Stills do filme “Journey to Avebury”, 1973, direção Derek Jarman. Figura 71: Robert Smithson, “Spiral Jetty”, 1970. Escultura em espiral feito de pedras basálticas e terra que adentra o mar. 4,6 x 460 m. Figura 72: Michael Heizer, “Duplo Negativo”, 1969. Arenito e riólito. 15 x 9 x 457 m. Figura 73: Richard Long, “A line made by walking”, 1967. Fotografia, impressão em gelatina em papel e grafite. Figura 74: Didier Morin, “Carnac”, 1981-1989. Série de 27 fotografias. Figura 75: Derek Jarman, “Untitled Drawing”, 1962. Carvão. 76,2 x 55,9 cm. Figura 76: Derek Jarman, “Cool Waters”, 1966-1967. Óleo sobre tela com torneira e toalheiro. 245 x 183,5 cm. Figura 77: Derek Jarman, “Landscape with a blue pool”, 1967. Óleo sobre tela. 151,8 x 202,6 cm. Figura 78: Derek Jarman, pintura não identificada, possivelmente “The Shore”, 1968. Óleo e colagem sobre tela. Figura 79: Derek Jarman, “Landscape”, sem dados.

Figura 80: Derek Jarman, “Landscape II”, sem dados. Figura 81: Paul Nash, “Equivalents for the Megaliths”, 1935. Óleo sobre tela. 45,7 x 66 cm. Figura 82: Derek Jarman, “Archeologies”, 1977. Ardósia gravada. 19 x 13,75 cm. Figura 83: Derek Jarman, “Avebury Series”, sem dados. Figura 84: Thomas Gainsborough, “Wooded landscape with a peasant resting”, 1747. Óleo sobre tela. Figura 85: John Constable, “Hampstead Heath with bathers”, 1821-22. Óleo sobre tela. 24,4 x 39,1 cm. Figura 86: Joseph Mallord Wiilliam Turner, “Tempestade de neve: vapor ao largo do porto”, 1842. Óleo sobre tela. 91 x 122 cm. Figura 87: Stills do filme “Ashden’s walk on Mon”, 1973, direção Derek Jarman. Figura 88: Stills do filme “Imagining October”, 1984, direção Derek Jarman. Figura 89: Stills do filme “Garden of Luxor”, 1973, direção Derek Jarman. Figura 90: Stills do filme “The art of mirror”, 1973, direção Derek Jarman. Figura 91: À esquerda – Michelangelo Merisi da Caravaggio, “Narciso”, 1594- 1596, óleo sobre tela, 110 x 94 cm. À direita – Still do filme “Sebastiane”, 1975, direção Derek Jarman. Figura 92: Stills do filme “In the shadow of the sun”, 1981, direção Derek Jarman. Figura 93: Stills do filme “Tarot (The Magician)”, 1973, direção Derek Jarman. Figura 94: Stills do filme “Fire Island”, 1974, direção Derek Jarman. Figura 95: Stills do filme “Glitterbug”, 1994, direção Derek Jarman. Figura 96: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 97: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 98: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 99: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 100: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 101: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 102: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 103: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 104: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 105: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 106: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 107: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 108: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 109: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 110: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 111: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 112: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman. Figura 113: Stills do videoclipe “Dance Hall Days”, 1983, direção Derek Jarman. Figura 114: Stills do videoclipe “Every time we say goodbye”, 1990, direção de Ed Lachlan. Figura 115: Pablo Picasso, “Dora Maar au chat”, 1941. Óleo sobre tela. 128 x 95 cm. Figura 116: Andy Warhol, “Marilyn Monroe”, 1967. Serigrafia sobre papel. 91 x 91 cm.

Figura 117: Cindy Sherman, “Untitled Film Still #21”, 1978. Impressão. 19,1 x 24,1 cm. Figura 118: Francis Bacon, “Three Studies for a Self-Portrait”, 1979-1980. Óleo sobre tela. 37,5 x 31,8 cm. Figura 119: Christian Boltanski, “The 62 members of the Mickey Mouse Club”, 1972. Sem dados. Figura 120: Thomas Gainsborough, “The Blue Boy”, 1779. Óleo sobre tela. 177,8 x 112,1 cm. Figura 121: Stills do filme “A paixão de JL”, 2015, direção Carlos Nader. Figura 122: Stills da videoarte “Prelúdio de uma morte anunciada”, 1991, direção de Rafael França. Figura 123: Exibição do filme “Blue”, 1993, na Tate Galley. Figura 124: “Derek Jarman: Brutal Beauty”, 2008, Serpentine Gallery, Londres, Inglaterra. Figura 125: “Derek Jarman: Super 8”, 2010-2011, Julia Stoschek Foundation, Düsseldorf, Alemanha. Figura 126: “The Last of England: Derek Jarman”, 2017, Wilkinson Gallery, Londres, Inglaterra.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 17

1. UM PINTOR-CINEASTA E A CÂMERA-PINCEL...... 22 1.1. David Hockney...... 26 1.2. Robert Rauschenberg...... 36 1.3. Yves Klein...... 47 1.4. Michelangelo Merisi da Caravaggio...... 51

2. DA PINTURA PARA O SUPER 8: UM PERCURSO AO CINEMA EXPERIMENTAL...... 116 2.1. Super 8: um suporte de experimentações...... 121 2.2. Home movies: uma “festa” entre amigos...... 127 2.2.1. Filme-diário...... 137 2.2.2. Retratos...... 146 2.3. Jarman no cinema experimental britânico ou avant-garde britânica...152

3. DO SUPER 8 PARA A PINTURA: UM RETORNO À PAISAGEM...... 168 3.1. Paisagem Inglesa...... 169 3.2. Paisagem de Viagem...... 187 3.3. Paisagem mística dos rituais alquímicos...... 195

4. IMAGENS RECICLADAS...... 219 4.1. O found footage em In the Shadow of the Sun...... 230 4.2. A imagem arquivo em Glitterbug...... 236 4.3. Os filmes de família em The Last of England...... 242

5. BLUE: UM AUTORRETRATO ENSAÍSTICO E/OU UM ANTIRRETRATO PICTÓRICO...... 265 5.1. Ensaio em uma imagem única…………………………………………..271 5.2. Deambular de uma imagem-pensamento………………………………287 5.3. O azul entre a caixa preta e o cubo branco…………………………….321

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 339

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 343

FILMOGRAFIA...... 358

ANEXO...... 361

17

INTRODUÇÃO Com um estilo visual singular - ao qual misturava passado e presente; teatro, pintura, poesia, artes performáticas e abstrações visuais; sexo e política – o pintor- cineasta Derek Jarman (1942-1994), realizou um cinema de características poética-experimentais, com fortes marcas autorais, todo calcado na polêmica e na provocação ao establishment existente na época (Inglaterra, anos de 1980, então governo da primeira ministra Margaret Thatcher). “Su estilo se podría caracterizar, a grandes rasgos, como una combinación de experimentación formal y rechazo del sistema narrativo clásico, y las referencias a la tradición cultural británica” (KESKA, 2007) que incluem William Shakespeare (1564-1616), Christopher Marlowe (1564-1593), John Dee (1527-1608), William Blake (1757-1827), Ford Maddox Brown (1821-1893), Benjamin Britten (1913-1976), entre outros. Vários autores partem da conexão entre sexo e sexualidade com dados biográficos de Jarman para uma leitura do seu trabalho, na maioria das vezes associados a uma perspectiva do que se convencionou chamar, pós anos de 1990, de uma teoria queer1 e do New Queer Cinema2, o que não é o caso dessa tese. Ainda que alguns autores que discutem os filmes de Jarman sob essa ótica

1 Queer: gíria inglesa que significa “estranho”, começou a ser usada pelos homossexuais ingleses em uma sobreposição com a palavra “queen” (rainha), para designar homossexuais masculinos bem afeminados. Teoria queer é uma teoria que analisa as diferenças de gênero (masculino x feminino), aprofundando os estudos em relação às minorias sexuais (gays, lésbicas, transgêneros), especificamente em relação à orientação e identidade sexual. “No longer an issue of sexual orientation, object-choices, lacking desires and gender combinations, one dares to think body and (homo)sexuality essentially: that is, by defining their being through their capacity for becoming, in terms of a productive desire (…)” (CHRYSANTHI, STORR (Ed) in Deleuze and queer theory, 2009, p. 6). De acordo com Deleuze, queer é sempre uma resposta a uma matriz heterossexual dominante: uma força reativa de re-significações, “desrespeitando” o poder das normas “a force (that) denies all that it is not and makes this negation its own essence and the principle of its existence”. Para Deleuze não existe uma identidade homossexual. Como é o caso de outras minorias, essa “identidade gay” é estabelecida em conexão com a maioria, tentando estabilizar o que tem que ser radicalmente desestabilizado. “Queer then is conceived of as solely a transformation from within, as the parody of the two genders without which, however, we fail to be/do queer” (idem, p. 9). 2 New Queer Cinema é um termo criado pela crítica de cinema e feminista norte-america B. Ruby Rich, em um artigo publicado em 1992 na revista britânica Sight & Sound, no qual propunha um “mapeamento” de uma temática gay em produções cinematográficas que surgiram no cinema independente a partir dos anos de 1990. Alguns dos filmes que marcaram presença nesta nova configuração foram Young Soul Rebels (1991, Isaac Julien – que posteriormente seria o diretor do documentário Derek, uma biografia sobre a “persona” pública e privada de Jarman), Veneno (1990, Todd Haynes), Eduardo II (1992, Derek Jarman) e Swoon – Colapso do Desejo (1992, Tom Kalin). Esses filmes tratavam abertamente e, algumas vezes, agressivamente a questão da identidade sexual, problematizando a relação entre corpo e gênero. Filmes e diretores inseridos nesse NQC apresentavam sexualidades que não eram fixas e nem convencionais, desafiando o status quo da heteronormativa e promovendo imagens positivas dos gays e lésbicas, que vinham sendo defendidas pelo movimento de liberação gay desde os anos 70. Para Robert Stam, em Introdução à teoria do cinema (2000, p. 289), isso foi possível pois, ao final dos anos 70 e inícios dos anos 80, “o campo dos estudos de gênero (gender studies), surgido juntamente com os estudos feministas (women’s studies), também abriu caminho para os estudos gay e lésbicos (posteriormente, “estudos queer”).

18 político-sexual ou de identidade sexual, como Niall Richardson, Rowland Wymer, Jim Ellis, Martin Quinn-Meyler, David Gardner, possam ser utilizados, o intuito é sempre colocar a reflexão em torno dos aspectos formais que, por diversas vezes, foram preteridos em relação às controvérsias nas quais Jarman estava envolvido. Michael O’Pray, alguns textos de Roland Wymer, Chris Lippard & Guy Johnson, Lawrence Driscoll, David Hawkes, Peter Wollen, Steve Dillon, Martin Frey, Tony Peake, Michael Charlesworth, entre outros, são autores que se utilizam de elementos biográficos para entender algumas escolhas estéticas de Jarman, mas sem dar uma ênfase maior na teoria queer ou em identidades sexuais, sendo, portanto, com essas reflexões estéticas e formais do material fílmico de Jarman que essa tese mais se aproxima. Percebe-se, em Jarman, uma trajetória que privilegia, desde seus primeiros curtas-metragens realizados em Super 8, o domínio do cine-ensaio, sendo que podemos considerar essa produção superoitista, repleta de experimentações formais e visuais, como os proto-ensaios3 do que viria a se desenvolver na mise en scene jarmaniana. Tudo o que acontece em suas obras de longas-metragens já havia acontecido nos seus curtas em Super 8, que eram frequentemente (re)organizados, (re)ordenados e (re)ssignificados, transformando-se em peças fundamentais para a construção de uma imagética apoiada na autorreflexão e na subjetividade ou, como foi tratado a partir dos anos de 1980, um “cinema do eu” e/ou um “cinema em primeira pessoa”. “Para Jarman, vida e obra representava uma unidade indivisível que imediatamente se manifestou diretamente em todas as áreas de sua obra como artista, por meio de elementos autobiográficos e pontos de referência” (FREY, 2016, p.10)4. Nessa “apreensão de si mesmo” Jarman se insere nesse domínio do ensaísmo através de uma subjetividade pensante, empregando diferentes materiais e recursos (found footage, home movies, intervenções do próprio autor),

3 Tal ambivalência, tão inerente aos movimentos e processos de pensamento e, portanto, constituindo uma linha mestra de formas de arrazoamento do ensaio fílmico, também pode reter e sintetizar um pouco do que foi a relação do cinema moderno com o ensaio. Daí a proposição de tomá-lo como um momento de formação de um “proto-ensaio”, de uma primeira manifestação dele, [...]. (TEIXEIRA, 2015, p. 195) 4 For Jarman, life and work represented an indivisible unity that immediately and directly manifested itself in every area of his work as an artist, by way of autobiographical elements and points of reference. Tradução do autor.

19

“una búsqueda que tiene como objetivo descobrir lo que uno piensa sobre algo” (LOPATE, 2007, p. 67), com um discurso fragmentado, incompleto, pessoal e dinâmico. Portanto, pretende-se nessa tese, uma arguição do processo criativo de Jarman e como a posterior produção, que passa por esse processo, muitas vezes mais próximo de um artista visual do que propriamente de um diretor cinematográfico, está intrinsicamente ligada dentro das proposições pictórico- ensaísticas. Seus primeiros trabalhos em Super 8, que são iniciados através dos “filmes caseiros” (home movie), passando para um universo amador e experimental, que poderíamos chamar de proto-ensaísticos, possuem características que serão constantemente esmiuçadas em sua filmografia de longas-mestragens. Jarman adere a uma produção imagética que ultrapassa, mistura e borra as fronteiras que separam documentário e ficção, experimental e mainstream, narrativo e não-narrativo, autobiografia e autorretrato, etc. A presente tese está dividida em cinco capítulos que possibilitam uma melhor apreensão do universo da produção pictórico-ensaística do cineasta britânico, propondo com isso um percurso de sua imagética amparada nessa relação que perpassa o cinema experimental e ensaístico. O primeiro capítulo aborda uma reflexão do por que chamo (assim como alguns outros teóricos) Jarman de um pintor-cineasta e não o contrário, um cineasta-pintor. Esse capítulo se dedica a buscar as relações de Jarman com o pictórico e como essa relação é dada com suas principais referências do universo da pintura (Hockney, Rauschenberg, Klein e Caravaggio), que são desenvolvidas durante seu processo criativo, tanto na pintura quanto na imagem audiovisual. O segundo capítulo faz o percurso que Jarman empreende quando sente um esvaziamento no seu processo criativo na pintura e começa a utilizar uma câmera Super 8 para dar continuidade a esse processo, através da imagem em movimento. Jarman se aproxima da imagem audiovisual fazendo pequenos curtas em Super 8 dos acontecimentos aparentemente “banais” que o rodeiam (amigos, festas, seu dia-a-dia, etc), que remontam a uma produção de filmes caseiros (os home movies), com os quais Jarman havia crescido em uma relação de grande

20 proximidade: os home movies de seu avô (feito nos anos de 1920) e os home movies de seu pai (feitos em torno dos anos de 1940), que “documentam” um período significativo da infância de Jarman e imagens de sua mãe quando criança. O capítulo três trata de um “retorno” de Jarman, de forma mais contundente, às indagações advindas da pintura, levando-as cada vez mais para o seu processo cinematográfico, fazendo com que ele transforme sua câmera em uma extensão do seu pincel e dos seus procedimentos pictóricos, com diversas experimentações formais e visuais com a imagem cinematográfica (sobreposições, filtros, slow down, single frame, etc). A paisagem, sendo aqui uma paisagem do imaginário britânico e toda a gama de referências de uma longa tradição na história da arte das paisagem inglesas, sempre fora uma preocupação constante nas pinturas de Jarman, que saem desse universo do pictórico e vão ao encontro de proposições cada vez mais próximas à um cinema experimental- ensaístico. No capítulo quatro será discutida a aproximação que Jarman faz com a (re)utilização de imagens próprias e de terceiros (seu pai e seu avô), dentro de um expediente próximo ao cinema experimental e/ou avant-garde: o found footage, filmes feitos a partir de imagens “encontradas” que são retiradas do seu contexto inicial e inseridas em outras obras; ora mantendo suas características e significados, ora transformando-os completamente. Para finalizar, o capítulo cinco constrói uma aproximação maior entre a questão do cinema ensaístico e do autorretrato ou antirretrato pictórico, inserindo essa imagética “jarmaniana” nos domínios do filme-ensaio, que adentra o contemporâneo com uma força avassaladora, assim como o cinema produzido por ele. Ainda que gravemente debilitado pela doença que o haveria de acometer em 1994, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), Jarman realiza o filme Blue, deixando com ele seu “testamento” cinematográfico, mantendo sempre acesa a controvérsia em sua obra, pelos tabus que paulatinamente ia desconstruindo frente a uma sociedade inglesa repressora e preconceituosa. Em Jarman, a fronteira que separa vida pública e vida privada é extremamente tênue,

21 uma não se desvencilha da outra, mas corrobora suas práticas artísticas e/ou ensaísticas.

22

1. UM PINTOR-CINEASTA E A CÂMERA-PINCEL. Típico membro da geração do pós-guerra britânico, Derek Jarman atingiu a maioridade nos libertários anos de 1960, tornando-se uma testemunha do posterior processo do colapso inglês – o liberalismo falido como conjunto de valores e a instabilidade econômica – o que veio a permear seus filmes de um agudo senso de nostalgia e, paradoxalmente, um desejo urgente de inovar e chocar, assim “Jarman criou uma visão poética que expressa essa crise de identidade”5. (O’PRAY, 1996, p. 8) Mesmo sendo essa figura tão controversa, anti-establishment e anti- canônica, paradoxalmente, Jarman era imbuído de um enorme apego às antigas tradiçoes britânicas, sempre em busca das grandes paisagens românticas inglesas de outrora e de figuras que servissem para referenciar e reverenciar esse passado mítico inglês. Para Lawrence Driscoll essa imagem de controverso não era por sua iconoclastia pelos valores e pelas sagradas instituições britânicas:

[...] mas porque ele escolheu falar por uma tradição britânica muito antiga, colocando sua fé em valores culturais que são principalmente estéticos e históricos. Jarman é percebido como radical porque trabalhou em um ambiente no qual essa tradição britânica em particular foi corroída tanto pela Esquerda quanto pela Direita. (DRISCOLL, 1996, p. 65)6.

Portanto, o intuito do projeto de Jarman era:

[…] proporcionar à Grã-Bretanha uma oportunidade de restabelecer um senso de comunidade, história e cultura, Jarman retorna a uma tradição mais antiga, alinhando-se com uma linha de crítica cultural evidente na literatura medieval, bem como em Shakespeare, Blake, Ruskin e Larkin. Jarman esforçou-se por recriar uma base cultural viável que moveria a Grã-Bretanha para além do impasse cultural, social e político que o país enfrentava. (DRISCOLL, 1996, p. 65)7.

5 Jarman created a poetic vision which expressed that crisis of identity. Tradução do autor. 6 […] but because he has chosen to speak for a very old British tradition, placing his faith in cultural values that are primarily aesthetic and historical. Jarman is perceived as radical because he worked in an environment in which this particular British tradition has been eroded both by the Left and by the Right. Tradução do autor. 7 […] provide Britain with an opportunity to re-establish a sense of community, history and culture, he returns to an older tradition, aligning himself with a strain of cultural criticism evident in medieval literature, as well as in Shakespeare, Blake, Ruskin and Larkin. Jarman strove to re-created a viable cultural base which would move Britain beyond the cultural, social and political impasse which the country confronted. . Tradução do autor.

23

Os filmes de Jarman nunca foram reconstruções históricas precisas do período a que pertenciam, seu olhar estava mais preocupado com uma reflexão particular sobre um determinado período e de como esse período trazia suas idiossincrasias para o tempo atual, transportando seus significados para o presente, através de um discurso histórico imbuído de uma crítica feroz à política cultural e social do governo Thatcher. Esse senso político e ativista fortemente demarcado, fez com que Jarman fosse um dos primeiros diretores europeus a se proclamar publicamente pelos direitos dos homossexuais, em filmes com grande carga homoerótica, principalmente como pode ser visto em sua estréia nos longa- metragens com Sebastiane (1976). Sexo e morte, misturados à política e a arte, dão a tônica de alguns temas dominantes na filmografia de Jarman, assim como autorretrar-se sempre fora um dos principais leitmotiv de suas produções, “autobiografia serve para ele como um material de origem ou um ponto de partida para certas explorações, nunca realmente como o objeto de interesse em si” (ELLIS, 2009, p. 26)8. Para Jarman, filmar sempre foi uma continuidade do seu processo artístico- pictórico. Quando percebeu um esvaziamento criativo em relação a este processo, sentiu-se impelido a prolongar suas experimentações artísticas em um outro suporte, principalmente ao ganhar uma câmera Super 8, ampliando assim temas que, até então, só faziam parte das suas pinturas. Ao tentar libertar-se de algumas convenções impostas pela pintura, é nessa câmera de fácil manuseio que Jarman encontra um aliado para que não haja obstrução em seu processo criativo.

Assim, as imagens de seus primeiros filmes em Super 8 deslocaram as superfícies impessoais e geométricas de suas pinturas. Sua câmera (uma Nizo S480) tornou-se seu pincel, a luz tomou o lugar da tinta e a tela foi substituída pelo material do filme Super 8. Jarman começou rigorosamente o desenvolvimento dessa estética do olhar privado inerente à imagem do Super 8, testando técnicas de filmagem não convencionais, o uso deliberado do processo de preparação e pós-produção [...]. (FREY, 2016, p. 122)9.

8 Autobiography serves for him as a source material or a strating point for certain explorations, never really as the object of interest itself. Tradução do autor. 9 Thus the images of his first Super 8 films displaced the impersonal, geometrical surfaces of his paintings. His camera (a Nizo S 480) became his brush, light took the place of paint and the canvas was replaced by the Super 8 film material. Jarman began to rigorously continue his development of that aesthetic of the private

24

Martin Frey, em Derek Jarman: Moving Pictures of a Painter (2016), afirma que Jarman nunca viu a si mesmo como um cineasta e um pintor; primeiramente sempre foi um pintor que filmava, utilizando sua câmera como um pincel: “Jarman já via a câmera como um pincel durante seu trabalho com o Super 8” (FREY, 2016, p. 82)10. James Mackay, produtor de vários filmes do Jarman, é enfático ao afirmar: “Derek era um pintor que usava uma câmera”11. E completa, quando perguntado sobre os curtas-metragens em Super 8 de Jarman: “Derek não fez “curtas- metragens”; como um pintor não diferencia a pintura pelo tamanho da tela, um cineasta como Derek não dividiu seus filmes em curtas-metragens e longas- metragens”12. Por isso, a importância do pintor que sempre precede o cineasta em suas obras fílmicas, um pintor-cineasta e não o contrário, pois é através da pintura que Jarman impõe suas referências e práticas discursivas nas imagens captadas em uma câmera Super 8 (posteriormente também filmaria com 16mm, 35mm e vídeo, mas o Super 8 sempre foi uma constante em suas produções, tanto de curta quanto de longa-metragem, ainda que Mackay não goste dessa divisão ao se referir à obra de Jarman).

A pintura era seu meio de expressão mais importante e direto, seu “modo de viver”. Enquanto ele se tornava conhecido para um público mais amplo, sobretudo através do meio cinematográfico, nunca viu a si mesmo como um cineasta e pintor, mas sempre, principalmente, como um pintor (FREY, 2016, p. 40)13.

Em 1963, Jarman iniciou seus estudos na Slade School of Fine Arts, University College of (UCL), prosseguindo seu envolvimento com a pintura

gaze inherent to the Super 8 image by trying out unconventional shooting techniques, the deliberate use of staging and post-production processing [...]. Tradução do autor. 10 Jarman had already viewed the camera as a brush during his work with Super 8. Tradução do autor. 11 Derek was a painter who used a camera. Tradução do autor. (Entrevista concedida em janeiro de 2018 para essa tese). 12 Derek didn’t make ‘shorts’ as a painter doesn’t differentiate between painting through the size of the canvas a film-maker such as Derek who didn’t divide his films up shorts and features. Tradução do autor. (Entrevista concedida em janeiro de 2018 para essa tese). 13 Painting was his most important and direct medium of expression, his “lifeline”. While he would later become known to a broader public above all through the medium of film, he nonetheless never saw himself as both a film-maker and also a painter, but instead always as primarily a painter. Tradução do autor.

25 ao mesmo tempo em que realizava diversos trabalhos como set designer para o teatro, culminando em sua estréia no cinema com o cineasta Ken Russell, em 1971, no filme The Devils14. É em sua passagem pela Slade que Jarman se envolve no movimento da contracultura e adentra na cena artística através das amizades com os pintores Patrick Procktor15 e David Hockney16 e o fashion designer Ossie Clarke. Sua predileção por um tema que remonta a grande tradição britânica, a paisagem, lentamente cedeu espaço para algumas influências contemporâneas, principalmente com as obras de Robert Rauschenberg, artista com passagem pela Pop-art. Esse movimento estilístico, até então, era criticado por Jarman, especialmente após seu desapontamento com a mudança de Hockney para os Estados Unidos e sua dependência do mercado artístico (JARMAN, 1991, p. 12), sendo que Hockney era um dos grandes expoentes da Pop-art em solo inglês.

Eu estava pintando paisagens, nos prados, perto da terra vermelha do norte de Somerset, as flores, as borboletas. Minhas influências? Os tachos e panelas de William Scott, Paul Nash e os megalíticos. Era Impossível pintar essas paisagens na Slade em 1964; todos tinham uma inclinação pela pop art, estávamos focados em Manhattan. A “nova” arte era uma arte urbana, a arte da mesa de café de vidro com arranjos de flores em cima, as histórias em quadrinhos, o cartaz: um se mediu contra isso. Havia outras “vertentes”: as grandes abstrações coloridas, Morris Louis, Richard Smith. Adorei as obras de Ron Kitaj, mas sua grave preocupação foi invadida. [...] Eu não podia suportar essas piadas dos anos 60, essa cumplicidade com o lixo, mas achei que eu mesmo era mais do que adepto desse jogo de lixo. (JARMAN, 1996, p. 41)17.

14 The Devils (Os Demônios, 1971), Direção: Ken Russell, 1h51min. Produção: Roy Baird, Ken Russell e Robert H. Solo. 15 Em 1987 Jarman faz uma pequena ponta no filme O amor não tem sexo (Prick up your ears), de Stephen Frears, baseado na peça de Joe Orton, interpretando Procktor. 16 Jarman aparece de relance no filme feito por Hockney, A Bigger Splash (1973), dirigido por Jack Hazan. Jarman está travestido de mulher em um dos concursos de Andrew Logan, o Alternative Miss World, no qual, naquele ano, Hockney havia participado como jurado. 17 I was painting landscapes, close to the red earth of north Somerset, the flowers, butterflies, in the meadows. My influences? William Scott’s pots and pans, Paul Nash and the megaliths. It was impossible to paint these landscapes at the Slade in 1964; everyone was falling over themselves for pop-art, we were focussed on Manhattan. The “new” art was an urban art, the art of the glass-topped coffee table with the flower arrangement on it, the comic, the poster: one measured oneself against that. There were other “strands”: the large coloured abstracts, Morris Louis, Richard Smith. I loved Ron Kitaj’s work, but his serious concern was invaded. [...] I couldn’t stomach the jokiness of the ‘60s, that complicity with rubbish, but i found that i myself was more than adept at this rubbish game. Tradução do autor.

26

Nesse contexto das artes visuais Jarman tem todo um repertório de influências das primeiras vanguardas do século XX (principalmente o Surrealismo, o Cubismo, o Dadaísmo e o Futurismo), com o Expressionismo abstrato e a Action painting, sem nunca ter se associado a um movimento específico. Em seus trabalhos, ainda que pese essa urgência da arte contemporânea, Jarman é paradoxal ao mergulhar suas obras em um clima extremamente romântico, renascentista e barroco (por mais que tudo isso possa parecer um pouco contraditório). Em relação à forma das suas obras, nelas consiste a apreensão de técnicas da arte vanguardista, enquanto o conteúdo delas emerge de (re)leituras de autores (teatrólogos, pintores, alquimistas, escritores, músicos, etc) que remontam à grande tradição britânica. Individualmente, essas influências, conforme percebidas por Martin Frey, podem ser associadas a David Hockney (1937), Robert Rauschenberg (1925-2008) e Yven Klein (1928-1962). Frey, traz um capítulo muito bem articulado no qual explora as conexões entre Jarman e os três artistas-pintores acima citados, mas deixa de lado, em sua análise, um artista extremamente importante para se entender muito da produção da estética jarmaniana, o pintor do barroco italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571- 1610), o qual acrescento a essa análise, não obstante da omissão de Frey.

1.1. David Hockney Para Frey, a aproximação de Jarman com Hockney se dá mais em um nível de influências pessoais, pois ambos faziam parte do mesmo círculo de amigos e eram próximos, do que propriamente em relação às técnicas artísticas empreendidas por Hockney.

O foco principal nas obras de Hockney não é em relação ao seu estilo e técnicas de trabalho, mas sobre sua vida e seu estilo de vida, que estão repetidamente presentes em seu trabalho, ocupam o centro das atenções e também apareceram para Jarman como algo não insignificante de importância. As declarações de Hockney, que eram extraordinariamente corajosas naquela época, fornecem um modelo para uma geração inteira (FREY, 2016, p. 70)18.

18 The primary focus in Hockney’s work is not on styles and techniques of working but on his life and lifestyle, which are repeatedly present in his work, occupy the centre of attention and also appeared to Jarman as

27

Ao ingressar na Slade School, com a influência desse grupo de amigos, Hockney, Procktor, Clarke, entre outros, Jarman experimenta uma liberdade que, até então, parecia inalcançável, assumindo sua homossexualidade e afirmando o quanto Hockney foi o catalisador dessas escolhas. Claro que o contexto cultural da urgência e das experimentações dos anos de 1960 e o início da contracultura contribuem para essa pequena abertura na quebra de alguns padrões sexuais, fazendo com que Jarman sinta-se mais à vontade para exercer sua sexualidade.

Jarman repetidamente aponta para o poder libertador e a influência que o estilo de vida aberto de Hockney e suas obras exerceram muito além dos domínios da arte, estendendo-se até o surgimento do Movimento de Libertação Gay no final dos anos 60 (FREY, 2016, p. 70)19.

A maneira com que Hockney coloca os temas de suas obras diretamente ligados à sua vida, à sua sexualidade e ao espaço da sua privacidade, causa em Jarman uma grande vontade de exercer a sua sexualidade e a sua arte da mesma forma. Hockney, “[...] ignorou deliberadamente os tabus tradicionais e criou trabalhos de corporalidade e sexualidade gay de forma gradual e cada vez mais imediata e direta” (FREY, 2016, p. 71)20. Talvez, para Jarman, isso não venha de forma tão direta e imediata, mas com o decorrer do tempo e do seu envolvimento em questões políticas favoráveis às minorias sexuais. Percebe-se em Jarman essa ruptura das fronteiras entre a vida pública e a vida privada, na qual uma não se desvencilha da outra, mas corrobora suas práticas artísticas. Um exemplo dessa relação de Jarman e Hockney, que surgirá anos depois de forma quase inconsciente, será a utilização da obra The Last of England (1855), de Ford Madox Brown (Figura 1), da qual Jarman se apropria do tema e do

sometthing of not insignificant importance. Hockney’s statements, which were extraordinarily courageous at that time, provide a model for a whole generation. Tradução do autor. 19 Jarman repeatedly points to the liberating power and the influence that Hockney’s open lifestyle and his works exercised far beyond the boundaries of the realm of art, extending all the way to the emergence of the Gay Liberation Movement in the late sixties. Tradução do autor. 20 […] deliberately ignired traditional taboos and thematised corporality and gay sexuality in his works in a way that gradually became more and more immediate and direct. Tradução do autor.

28 título no seu filme The Last of England21, de 1987 (Figura 2). Hockney, em um projeto estudantil de 1961, refez a pintura de Brown, mantendo a forma circular e colocando ao seu redor uma espécie de moldura amarelo-dourada, utilizando um código onde associava as letras do alfabeto com números (A=1, B=2, em diante) para inserir mensagens na tela. Colocou uma interrogação no título, The Last of England? (Figura 3), ressignificando a forma poética do título original, assinando sua obra como uma transcrição (transcribed) e não “cópia” da obra original. Para Jarman, a pintura de Brown era algo que sempre estave ligada a ele e ao filme que estava fazendo, mas apenas se deu conta disso no final das filmagens, quando procurava um título para a obra, conforme descreve em Kicking the pricks:

Ford Madox Brown veio tardiamente. Eu, originalmente, chamei o filme de “Valores Vitorianos”, mas foi-me dito que havia um excesso de jogos com o título. Então veio “O Mar Morto” sugerindo Boeclin atravessando as águas para a Ilha dos Mortos; nós decidimos que isso era muito poético. [...] De repente, um dia eu me lembrei da pintura dos emigrantes deixando as falésias brancas para trás para uma vida no novo mundo. Meus bisavôs haviam feito isso. Deixaram sua fazenda em Middle Combe, Uplowman, Devon, para ir para a Nova Zelândia. Eu tenho uma fotografia extraordinária deles feita na época de 1850. Eu decidi por The last of England (JARMAN, 1996, p. 190)22.

E continua afirmando que mesmo o título vindo depois das filmagens, estranhas coincidências estão “[...] na sequência com os refugiados no cais. Há uma garota com lenço xadrez que ressoa na menina com um xale na foto. [...] a couve-flor que ressoa nas couves da pintura” (JARMAN, 1996, p. 193)23, entre outros. Os figurinos em The Last também não deixam evidente em que época da história nos encontramos, podendo tanto ser um passado distante quanto um futuro que se aproxima.

21 Utilizarei nessa tese todos os títulos dos filmes de Jarman, aqui comentados, em sua forma original, na língua inglesa, sem recorrer à tradução que alguns deles receberam no Brasil. 22 Ford Madox Brown came late. I originally called the film “Victorian Values”, but i was told there was a glut of plays with the title. Then came “The Dead Sea” suggesting Boeclin crossing the Waters to the Isle of the Dead; we decided this was too poetic [...] Suddenly one day I remembered the painting of the emigrants leaving the White cliffs behind for a life in the new world. My great-grandparents had done that. Left their farm in Middle Combe, Uplowman, Devon, to go to New Zealand. I have an extraordinary Picture of them taken in the 1850s. I decided on The Last of England. Tradução do autor. 23 [...] in the sequence with the refugees at the quayside. There is a girl with a plaid scarf who echoes the girl with a shawl in the picture. […] the cauliflower which echoes the cabbages in the painting. Tradução do autor.

29

Jarman se surpreende muito com a maneira com que Hockney mostra a nudez do corpo masculino, sem nenhum tipo de idealização. Nas gravuras da série intitulada Cavafy (Figura 4), que ilustram os poemas do escritor grego Constantine P. Cavafy, “[...] visualiza as impressões pessoais e extremamente íntimas de Hockney em um naturalismo que foi diretamente provocador na época: em seu desinteresse estético, não procura mais embelezar, esconder ou eufemizar nada.” (FREY, 2016, p. 71)24. Nessa não-idealização, Jarman pressente o quão diferente das figuras idealizadas de Jean Cocteau (um dos grandes cineastas admirados por ele) estavam presentes nessa produção de Hockney (FREY, 2016). Essa “influência”, associada às fotografias e desenhos publicados nos anos de 1950 e de 1960 na revista americana Physique Pictorial25, que reproduzia imagens de uma “masculinidade atlética”, serviram de background para algumas pinturas e, principalmente, quando Jarman realiza o seu primeiro longa- metragem, co-dirigido com Paul Humfress, Sebastiane (1976). Uma constante dessa revista, Physique Pictorial, era as imagens de cenas de banho e de luta livre, que são retomadas tanto por Hockney em Cavafy, quanto por Jarman em Sebastiane e em outras obras. Esse exercício do poder, essa violência inerente ao universo masculino é comumente usada por Jarman e associada ao desejo do amor não correspondido ou do toque que, se não pode ser carinhoso, vai ser feito através da luta/violência. O desejo de possuir envolve- se em relações que beiram o sadismo. Na pintura Irresistible Grace, de 1982 (Figura 5), Jarman nos mostra um homem doente, morto ou dormindo, com duas figuras logo abaixo, uma em perfil e uma outra que é apenas um crânio, com um homem em tensão sexual na parte de cima, com a sua genitália ocupando o centro da pintura, sendo que a palavra “grace” evoca algo do divino. Há nessa pintura uma grande carga alquímica e sexual, talvez uma influência direta dos Cavafy de Hockney, que podem ser vistos

24 [...] visualises Hockney’s personal and extremely intimate impressions in a naturalism that was directly provocative at the time: in its aesthetic disinterest it no longer seeks to beautify, conceal or euphemise anything. Tradução do autor. 25 Criada em 1945 por Bob Mizer, a revista Physique Pictorial fazia parte das chamadas “beefcake magazines”, revistas norte-americanas que circularam de 1930 a 1960, trazendo fotos de homens musculosos em poses atléticas, geralmente associadas a uma vida saudável, dada através dos exercícios demonstrados em suas páginas. Em 1999, um filme dirigido por Thom Fitzgerald, Beefcake, reconta a história de Bob Mizer e as publicações da Athletic Model Guild, em especial da Physique Pictorial.

30 nessa constituição do corpo que não nos é dado através de uma definição próxima do real, estando mais próximo dos esboços de um desenho que poderá ser configurado em algo mais realista, posteriormente.

O ovo dos filósofos flutua no ar acima, contendo a semente do renascimento espiritual que levará à criação de ouro ou sabedoria. Ele contrabalança um crânio de putrefação física (um prelúdio necessário para o renascimento espiritual) no canto inferior esquerdo. A figura principal é equilibrada entre estes dois estados (CHARLESWORTH, 2011, p. 88)26.

Em Untitled (The Archer), também de 1982, temos um arqueiro mascarado e uma cabeça gigante mirando-o, estando muito mais próxima das fotografias da Physique Pictorial, praticamente reproduzindo uma delas na posição em que o arqueiro se encontra (Figura 6). Ambas as imagens também possuem uma forte carga mística e alquímica que remonta aos trabalhos de William Blake (1757-1827), poeta, tipógrafo e pintor inglês a quem Jarman tanto admirava. Blake possuía um revolucionário método de pintura, que podemos claramente ver em uma de suas obras mais famosas, Newton (1795), conforme explica Richard Humphreys (Figura 7):

Pensa-se que, usando uma mistura estranha de pigmento e cola de carpinteiro, ele pintou o desenho em um pedaço de papelão, que foi colocado em uma grande prensa e da qual ele tirou duas ou três impressões. Estes foram então, individualmente, acabados com aquarela, caneta e tinta. Os efeitos do processo são visíveis na granulação “minuciosamente particular” da matéria botânica na rocha e na superfície global deslumbrante de cores ricas e inovação técnica profunda, devendo algo para a estética da mancha de tinta de um contemporâneo de Blake, Alexander Cozens, mas também ansioso pelos processos que só seriam desenvolvidos no século XX (HUMPHREYS, 2001, p. 85)27.

26 The egg of the philosophers floats in the air above, containing the seed of spiritual rebirth that will lead to the creation of gold, or wisdom. It counterbalances a skull of physical putrefaction (a necessary prelude to spiritual rebirth) in the bottom left-hand corner. The main figure is poised between these two states. Tradução do autor. 27 It is thought that, using a strange misture of pigment and carpenter’s glue, he painted the design on a piece of millboard, which was placed in his large press and from which he took two or three impressions. These were then individually finished with watercolour, pen and ink. The effects of the process are visible in the ‘minutely particular’ granulation of the botanical matter on the rock and the overall stunning surface of rich colour and

31

Para Humphreys, a arte de Blake é uma forma de reintegração da fragmentação do “eu”, “Blake não tinha dúvidas de que ele estava trabalhando sob a graça, daí as muitas histórias de suas visões extáticas de anjos e figuras históricas e bíblicas que seus seguidores e detratores nos deixaram” (HUMPHREYS, 2001, p. 85)28. Ainda que vivesse em um período histórico marcado pelo Iluminismo e pela Revolução Industrial inglesa, Blake era um romântico, dando forma visual à sua crítica ante a miopía imposta pelo racionalismo e materialismo (HUMPHREYS, 2001). “Blake é uma das primeiras figuras da contracultura na arte britânica, e suas ideias sobre as condições da humanidade sob o capitalismo e a ideologia da modernidade progressiva ainda inspiram radicais até os dias atuais” (HUMPHREYS, 2001, p. 87)29. Michael O’Pray é mais direto ao traçar um paralelo entre esses dois artistas, dois poetas30 radicais e visionários, cada um à sua maneira.

Jarman e Blake “saquearam” a cabala, a alquimia e as filosofias ocultas, encontrando nelas um veículo simbólico para simpatias antirracionalistas e anti-materialistas. Em um nível mais pessoal, Jarman fez ornamentações, diários feitos a mão, cadernos e roteiros ao estilo de Blake. Ele também era uma figura carismática, vivendo frugalmente, expondo visões radicais, incluindo o amor livre. Não mais do que em The last of England, vemos o espírito de Blake expresso (O’PRAY, 1996, p. 12)31.

deep technical innovation, owing something to the ink-blot aesthetic of Blake’s contemporary Alexander Cozens but also looking forward to processes developed in the twentieth century. Tradução do autor. 28 Blake had no doubt he was working under grace, hence the many stories of his ecstatic visions of angels and biblical and historical figures that his supporters, and detractors, have left us. Tradução do autor. 29 Blake is one of the first conter-culture figures in British art, and his insights into the conditions of humanity under capitalism and the ideology of progressive modernity still inspire radicals today. Tradução do autor. 30 Steve Dillon, sem seu livro Derek Jarman and the lyric film – the mirror and the sea (2004), coloca Jarman na “categoria” de um cinema lírico e/ou poético, composto através do uso de imagens audiovisuais associadas a um texto poético. “For Jarman’s poetry is in some ways atraighforwardly equated with this mysterious artist figure, the first of mny such figures with whom Jarman potentialy aligns himself” (p. 37). Para Jarman, a poesia é de certa forma compatível com essa misteriosa figura do artista, o primeiro de tais figuras com quem Jarman se alinha de forma potencial. Tradução do autor. 31 Both Jarman and Blake plundered the cabala, alchemy and the occult philosophies, finding in them a symbolic vehicle for anti-rationalists and anti-materialist sympathies. On a more personal level, Jarman made ornate, hand-made diaries, notebooks and scripts in a Blakean fashion. He too was a charismatic figure, living frugally, expounding radical views, including free love. No more than in The Last of England do we see his Blakean spirit expressed. Tradução do autor.

32

Enquanto Hockney transformava essa tradição clássica em relação à nudez masculina a partir de suas pinturas de 1960, feitas nas piscinas de Los Angeles (Figura 8), Jarman continuaria essa tradição de Hockney com a nudez masculina no Mediterrâneo, em seu filme Sebastiane (1976) (Figura 9). Em seu primeiro longa-metragem, Jarman filma a vida de São Sebastião, um santo do cristianismo, de uma perspectiva homoerótica, com diálogos em latim. O latim falado em Sebastiane é a língua das ruas, agressiva, lasciva, bem adaptada à luxúria e à raiva, não encontrando nenhum paralelo com os tons solenes de uma missa em latim. Em Roma, 303 D.C., Sebastian32 é um soldado do exército romano, recém- convertido ao catolicismo, rebaixado pelo imperador Dioclesiano por interceder em favor de um cristão condenado à morte, para servir em uma remota região do litoral italiano. Visto com suspeita por seus colegas, Sebastian desperta o desejo de Severus, comandante da tropa, que se apaixona obsessivamente pelo novo soldado. Percebe-se em Sebastiane a importância de temas que já faziam parte do repertório artístico de Jarman e que seriam uma constante em toda sua filmografia: a idealização do amor homossexual; sadismo; o establishment como poder de repressão, seja sexual, social ou artística; a celebração do corpo masculino; a força cultural histórica; sexo e morte. Sebastiane foi um grande sucesso na Inglaterra, Espanha, Itália e classificado como filme pornográfico nos Estados Unidos. Rejeitado no Festival Internacional de Cinema de Cannes, na França, foi apresentado no Festival de Locarno, na Suiça, onde o público, chocado, exigiu a demissão do diretor do festival. Ainda que se perceba em obras posteriores essa desarticulação na idealização do corpo masculino, em Sebastiane Jarman não consegue fugir desse ideário de um corpo clássico que remete às esculturas gregas e a uma estética pré-rafaelita, fazendo com que esses corpos, em algumas cenas, se movimentem em câmera lenta para demonstrar o prazer quase sexual do toque entre esses homens e para o prazer visual de quem os assiste.

32 O título escolhido, Sebastiane, corresponde a uma forma de evocativo em latim que não fica muito clara na intenção do filme. Trata-se de um apelo a Sebastiane? De um chamado à realidade? De lamentação? Jarman preferia o título Sebastian, mas cedeu às pressões dos produtores e manteve Sebastiane.

33

Sobre este mártir pouco mais que justamente seu martírio pode ser provado. No “Depositio Martyrum”, de 354, menciona-se que Sebastião foi enterrado na Via Appia. Santo Ambrósio (salmo CXVIII, sermão XX) declara que ele veio de Milão e na época já o veneravam. No início do século V, documentos (erroneamente atribuídos a Ambrósio) relatavam que Sebastião foi um oficial na escolta imperial e que cometera secretamente muitos atos de amor e caridade em relação a seus irmãos de fé. Quando, em 286, finalmente descobriram que era um cristão, Sebastião foi entregue aos arqueiros mauritanos, que o perfuraram de flechas (ROSA, 2003, p. 1)

Muitas são as representações iconográficas de São Sebastião, que é cultuado desde os tempos primitivos. A mais antiga dessas representações parece datar de 682, mostrando o santo em sua fase mais madura, como um homem barbado, muitas vezes associado à cura de doenças, sem nenhum sinal de flechas ou flechadas. A imagem que tanto associamos a São Sebastião - um jovem adolescente, amarrado a um tronco com o corpo trespassado por flechas, o martírio de São Sebastião – foi criada a partir do Renascimento, provavelmente por Fra Bartolomeo (1473-1517). O afresco feito por ele precisou ser retirado das paredes da igreja, pois induzia a proliferação de pensamentos e desejos pecaminosos nos fiéis, que os admitiam durante a confissão. O Renascimento, por ser um retorno às características estéticas da arte grega (o neo-platonismo), com a representação do nu masculino associado à beleza e ao prazer, favoreceu essa alteração estética na iconografia de São Sebastião. Com isso, ganhou uma nova “roupagem” e passou a ser associado sempre à sua juventude, no momento em que as flechas o penetram, tendo em Guido Reni (1575-1642) (Figura 10), o expoente máximo da proliferação dessa imagem de um “jovem anêmico, lânguido e letárgico, que dissimula o gozo tilintando na dor” (ROSA, 2003, p. 1). Muitos são os pintores que, de alguma maneira, retrataram esse santo e seu martírio, desde a antiguidade até os dias atuais, o que seria uma lista interminável; para ficar em apenas alguns exemplos, citamos: Tintoretto, Mantegna, Tiziano, Giorgone, Perugino, Boticelli, Giovanni Antonio Bazzi, Carracci, Redon, Gustave Moreau, Frida Kahlo, David Wojnarowicz, entre tantos

34 outros. Portanto, Jarman tem todo um universo de representação para que possa construir sua iconografia, partindo, principalmente, da ambiguidade de Reni para a dor sadomasoquista apresentada nas fotografias criadas pelo escritor japonês Mishima. Yuko Mishima (1925-1970), juntamente com o fotográfo Kishin Shinoyama, realizaram uma sessão fotográfica na qual, entre várias imagens posadas, temos Mishima na clássica pose de São Sebastião do quadro de Reni (Figura 11). Obcecado por esse quadro que o perseguia desde tenra idade, Mishima confessou que sua primeira “experiência sexual” foi justamente ao se deparar com essa imagem de São Sebastião feita por Guido Reni.

O masoquista masculino domina o cinema de Jarman. De Sebastian a Caravaggio, do Rei Edward a Wittgenstein, Jarman criou heróis não convencionais que não só parecem andar a passos lentos sem rumo ao longo dos seus dias, mas derivam de um prazer masoquista de suas torturas. No entanto, esta representação não é simplesmente o erotismo codificado – a chance de mostrar corpos masculinos prostrados e submissos - mas um exame da própria questão do masoquismo em si e da maneira como ele está culturalmente ligado à submissão, passividade e feminilidade. Os heróis masoquistas de Jarman não só questionam o conceito de masoquismo como “feminino”, mas expõem o conflito entre vergonha sexual, orgulho e sua relação com o masoquismo (RICHARDSON, 2009, p. 101)33.

No cinema de Jarman o corpo fetichizado é sempre o corpo masculino. Sebastiane talvez seja a potência máxima desse expediente, onde os corpos servem ao prazer voyeurístico dos personagens entre si (Severus em relação a Sebastian e ambos quando estão “assistindo” Antônio e Adriano se banhando no rio) e da audiência que não escapa desse prazer ao qual Jarman quer proporcional. Jarman subverte a lógica de um cinema onde o homem é o protagonista e a objetificação do corpo se dá no universo feminino. Não há mulheres em Sebastiane, portanto esses corpos masculinos são objetificados à

33 The male masochist dominates Jarman’s cinema. From Sebastian to Caravaggio, to King Edward to Wittgenstein, Jarman has created unconventional heroes who not only seem to amble aimlessly through their days but derive a masochistic pleasure from their tortures. Yet this representation is not simply coded eroticism – a chance to show prostrate, submissive male bodies – but a examination of the very issue of masochism itself and the way it is culturally linked to submission, passivity and femininity. Jarman’s masochistic heroes not only question the concept of masochism as “feminine” but expose the conflict between sexual shame, pride and its relation to masochism. Tradução do autor.

35 exaustão. Em seu canônico texto sobre a representação do desejo no cinema hollywoodiano, “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, Laura Mulvey argumenta que esse cinema opera em uma relação binária heterossexual de oposição, onde o “ideal do ego masculino ativo” faz a narrativa avançar enquanto a passividade feminina retarda esse avanço. Mulvey propõe “detectar mecanismos de construção do que ele denomina como ‘prazer visual’ nas relações entre os olhares da câmera, do espectador e dos personagens, para, ao final, reivindicar por uma nova estética feminista” (SOBRINHO e MELLO, 2015, p. 206), no caso de Jarman, poderíamos dizer que essa reivindicação se dá por uma “estética gay” (que, posteriormente, será chamado de um cinema queer). Em um retorno a esse ensaio, Mulvey, em “Afterthoughts on ‘visual pleasure and narrative cinema’ inspired by King Vidor’s Duel in the Sun” (1946), continua sua argumentação, dizendo que esses papéis entre atividade e passividade não precisam ser propostos de acordo com o sexo biológico de seus personagens, não há razão para que o homem seja sempre o protagonista e a mulher esteja sempre na figura fetichizada de uma espectadora que congela o fluxo da narrativa nos momentos de contemplação erótica.

Nos filmes de Jarman, o espetáculo reaparece do underground para interromper e complicar os pressupostos do realismo narrativo e, ao fazê-lo, desafia o desenvolvimento da sexualidade e dos estilos de gêneros que definiram o cinema clássico (HAWKES, 1996, p. 105)34.

E, nas palavras de Jarman:

Sebastian não apresentou a homossexualidade como um problema e foi isso que o diferiu de todos os filmes britânicos que o precederam. Também era homoerótico. O filme era historicamente importante; nenhum longa-metragem havia se aventurado até ali. Havia filmes underground, Un Chant

34 In Jarman’s films, the spectacle re-emerges from the underground to disrupt and complicate the assumptions of narrative realism, and, in doing so, it challenges the deffinition of sexuality and gender rooles which have defined classical cinema. Tradução do autor.

36

D’Amour e Fireworks, mas Sebastian estava em um espaço público (JARMAN, 1992, p. 83)35.

1.2. Robert Rauschenberg Percebe-se em Jarman uma pré-disposição a pensar a sua arte por um viés mais próximo ao Expressionista abstrato (De Kooning, Rothko, Reinhardt), utilizando-se de técnicas da action painting (Pollock), assim como o “uso de materiais nada ortodoxos para protestar contra as tradições da arte elevada” (DEMPSEY, 2010, p. 202), próprio dos neodadás (Rauschenberg, Johns).

Assim como os expressionistas, eles (os expressionistas abstratos) sentiam que o verdadeiro tema da arte eram as emoções interiores do homem, seus tumultos e, assim sendo, exploraram os aspectos fundamentais do processo pictórico – gesto, cor, forma, textura – por seu potencial simbólico e expressivo. [...] eles compartilhavam uma visão romântica do artista como alguém alienado da sociedade dominante, uma figura moralmente obrigada a criar um novo tipo de arte que pudesse enfrentar um mundo absurdo e irracional (DEMPSEY, 2010, p. 188).

Em 1954, Rauschenberg cria o nome combine para se referir às suas obras que possuíam aspectos tanto da pintura quanto da escultura, sendo Bed (1955), a mais conhecida desse período (Figura 12).

A famosa Cama, de Rauschenberg, é uma cama de verdade, desarrumada e suja, emporcalhada de tintas que aumentam a desagradável evidência da coisa apresentada como um quadro. Na verdade, é algo intermediário entre um quadro e uma cama: a pintura se transforma à vista na coisa evocada, porém sem que se note a transição. [...] Uma pintura-coisa tende a se ligar às outras coisas e a apropriar-se delas: um balde, uma cadeira, um pneu, ainda que materialmente colocados fora do quadro, passam a fazer parte de seu contexto de maior força (ARGAN, 1992, p. 575).

35 Sebastian didn’t present homosexuality as a problem and this was what it different from all the British films that had preceded it. It was also homoerotic. The film was historically important; no feature film had ventured here. There had been underground films, Un Chant d’Amour and Fireworks, but Sebastian was in a public space. Tradução do autor.

37

Muitos dos trabalhos de Jarman, pós anos de 1980, estão dentro desse lugar da pintura-coisa, chegando a fazer sua própia versão da cama “rauschenbergiana”, em sua obra também intitulada Bed (Figura 13). Sua apropriação de objetos ao redor, de técnicas de combine e de action painting encontram-se em suas séries mais contundentes e expressivas. As pinturas iniciais de Jarman ainda se enquadram em uma continuidade da tradição britânica das paisagens, percebendo um retorno a elas em obras dos anos de 1990, mas que não mais são o centro de sua pesquisa pictórica ainda que continue uma constante em sua produção cinematográfica. O abstracionismo, as combines de Rauschenberg, o uso de elementos e de diversos materiais não pictóricos, as diferentes técnicas e estilos, são integrados aos trabalhos de Jarman. “Esses aspectos também são encontrados anos depois no trabalho de Jarman, de uma maneira que é formalmente, ás vezes, surpreendentemente semelhante, embora tenham sido modificadas e alteradas, em novos contextos” (FREY, 2016, p. 58)36. Frey constrói, em seu texto, uma série de comparações e assimilações entre o trabalho de Jarman e Rauschenberg, no qual se percebe a influência direta que esse artista teve em Jarman, principalmente nas pinturas da série Black & Gold Paintings (Figuras 14 e 15) que refletem alguns trabalhos de Rauschenberg, as Black Paintings (1951-1953) (Figura 16), as Gold Paintings (1953) (Figura 17) e as Red Paintings (1953-1954) (Figura 18), série de obras sem título que, geralmente, exibem uma surperfície repleta de texturas e a incorporação de materiais adicionais, como objetos encontrados, jornais, ouro, crucifixo, etc. Fundamentado em Frey, ponderarei algumas categorias, dividindo essas obras de acordo com suas características principais, dentro de um universo de uma análise relacionada à materialidade que as permeiam:

- Preto e ouro - As cores preto e ouro, bem como a aplicação de elementos como betume/alcatrão, folha de ouro e pó de ouro, em séries onde a textura é o componente indicial dessas obras. Em Rauschenberg, vemos esse procedimento

36 These facets are also found years later in Jarman’s work in a manner that is formally sometimes astonishingly similar, though they have been modified and are in altered, new contexts. Tradução do autor

38 nas Black Paintings e nas Gold Paintings e em Jarman, na série, que não é mera coincidência, chamada de Black & Gold Paintings, radicalizando um pouco o procedimento de Rauschenberg com a utilização de assemblage e combines (que serão explicadas no decorrer das categorias aqui expostas).

- Texto – Caracteres autônomos, frases, palavras inscritas na superfície pintada da tela. Jarman utiliza-se muito desse expediente como um gesto de fúria contra a sociedade inglesa conservadora, principalmente após descobrir-se HIV positivo. Em uma de suas telas da série Black & Gold Paintings, Smashing Times (1987) (Figura 19), temos uma tela em folha de ouro, com uma espécie de betume preto por cima, com um preservativo na parte inferior, que fica por debaixo de um vidro trincado. Em cima desse vidro, temos um crucifixo e um tubo de um gel lubrificante, retorcido e enroscado aos pés da cruz. Escrita em letras bem finas, com a caligrafia de Jarman, vemos a frase “AIDS the heterosexist prayer”37 e as palavras “Smashing Times”38 (título da obra) e “Virus”. Michael Charlesworth sugere que essa disposição de palavras e frases bem contundentes, que Jarman costumeiramente usa, produz um impacto visual imediato que muito contribui para o entendimento da obra, deixando claro o tipo de “mensagem” que ele quer passar. Para Charlesworth, pode-se dizer que são, praticamente, uma espécie de poesia concreta.

Os resultados começam a se assemelhar a um poema concreto, onde a disposição espacial das palavras dá um impacto visual imediato e, assim, contribui para os possíveis significados do poema. Nessas obras de Derek, o vidro, empurrado com a tinta, tende a ter achatado as ondas de tinta abaixo dele em uma zona paralela, de modo que as obras contenham três áreas: tinta preta em ondulações, área de vidro/tinta achatados sobre os quais as palavras são distribuídas, e a área preenchida por qualquer objeto incorporado. Com suas palavras, a área plana de tinta/vidro começa a se sentir como um espaço pensado ou contemplativo, espalhando-se em um contexto (ou mesmo em uma paisagem) (CHARLESWORTH, 2011, p. 129)39.

37 Aids a oração heterosexista. Tradução do autor. 38 Esmagando o tempo. Tradução do autor. 39 The results begins to resemble a concrete poem, where the spatial disposition of the words gives an immediate visual impact and thus contributes to the possible meanings of the poem. In these works of Derek's the glass, pushed into the paint, tends to have flattened the waves of paint beneath it into an even matt zone,

39

Outras obras também são utilizadas para esse expediente, com mensagens inscritas em seu interior e que também são destacadas em seus títulos, como, por exemplo: Silence (1986) (Figura 20), Sleep (1986) (Figura 21), Eyes (1986) (Figura 22), Spread the plague (1992) (Figura 23), Queer (1992) (Figura 24), Sightless (1993) (Figura 25), Blood (1992) (Figura 26), Infection (1993) (Figura 27), Fuck me blind (1993) (Figura 28), Ataxia - Aids is fun (1993) (Figura 29), entre tantas outras.

- Collages – Consiste no uso de diversos materiais que são colados ou sobrepostos na tela, criando uma imagem, um motivo ou uma composição. Técnica antiga que foi inicialmente utilizada como um procedimento artístico- plástico pelo Cubismo, mais especificamente pelos pintores Georges Braque e Pablo Picasso. Rauschenberg utiliza jornais inteiros ou fragmentos, cards, reprodução impressa, entre outras coisas em algumas de suas obras, como por exemplo, Should love come first? (1951) (Figura 30), uma de suas primeiras colagens, com tinta a óleo, papel impresso e grafite, Untitled (Hotel Bilbao) (1952) (Figura 31), uma colagem de gravuras, papel impresso, tecido, grafite e cola em papel montado em papelão e Untitled (Pictographs and feathers) (1952) (Figura 32), papel impresso, tecido, penas e cola em papel montado em cartão com dois painéis articulados centrais, entre tantas outras obras da série North African collages and scatole personali (1952). O procedimento de colagem em Jarman se dá através do uso de jornal, como em Queer, Infection, Blood, Letter to the Minister (1992) (Figura 33) ou fotografia em Sightless. Martin Frey coloca essa integração do jornal com as pinturas de duas formas distintas: a primeira com o jornal fixado no suporte e pintado por cima de sua superfície, praticamente desaparecendo debaixo dessa tinta, o que não seria uma colagem em seu sentido inicial, pois o jornal se torna invisível e só aparece na obra na forma de uma superfície ondulada, e a segunda é quando o jornal é integrado à obra, deixando entrever partes/fragmentos de suas

so that the works contain three areas: black paint in ripples, the area of glass/flattened paint over which words are distributed, and the area filled by whatever object is incorporated. With its words, the area of flat paint/glass begins to feel like a space thought or contemplation, spreading in a context (or even across a landscape). Tradução do autor.

40 notícias/imagens (muitas vezes através de fotocópias, para que seja repetidamente organizado). O primeiro procedimento se aplica, por exemplo, a Queer e Infection, o jornal some completamente sob a camada de tinta colocada na tela, deixando apenas um rastro através da textura que se cria, potencializada pelas camadas de tinta e, em Spread the Plague, onde conseguimos visualizar apenas uma pequena palavra (“even”) em meio às várias camadas de tinta, de cores diferentes, com palavras escritas a mão. O segundo procedimento se aplica às obras Letter to the Minister, Blood e Morphine (1992) (Figura 34), onde as notícias das páginas dos jornais são utilizadas como parte da narrativa da obra. Geralmente, esses jornais, são sensacionalistas e homofóbicos, fazendo com que Jarman sinta-se impelido à “[...] alertar os telespectadores para as mentiras e fanatismo purgados pelos jornais britânicos e o duplo padrão de jornalistas e editores” (MORGAN, 1996, p. 113)40. Em Letter to the Minister, temos uma fotocópia da capa do The Sun41 repetida vinte e cinco vezes, cobrindo toda a superfície da tela. Mesmo com a tinta amarela (cor propositadamente escolhida para uma alusão ao sol do título do jornal – The Sun), colocada por cima, em camadas bem finas e espassadas, conseguimos visualizar toda a manchete do jornal “Vile Book in School”42, em destaque, como chamada principal e em letras menores, do lado direito, abaixo do título e ao lado da imagem principal da capa, os dizeres: “Pupils see pictures of gay lovers”43. Em 1983, o livro Jenny lives with Eric and Martin (Figura 35), criado pela autora dinamarquesa Susanne Bosche, fora lançado para facilitar a reflexão sobre a homossexualidade com as crianças. Para a mídia britânica, em especial o The Sun, o livro não passava de uma propaganda para “recrutar” crianças às práticas homossexuais. A celeuma maior era referente a uma foto em que a criança (uma menina) estava na cama brincando com um dos homens, enquanto o outro permanecia ao lado, deitado, descansando. Com isso, o The Sun encabeçou uma

40 [...] alert his viewers to the lies and bigotry purveyed by British newspapers and to the double standards of journalists and editors. Tradução do autor. 41 Jornal diário em forma de tablóide veiculado no Reino Unido e na Irlanda. 42 Livro vil na escola. Tradução do autor. 43 Alunos veêm fotos de amantes homossexuais. Tradução do autor.

41 campanha, colocando em sua primeira página, a notícia acima citada, dizendo que os livros estavam disponíveis nas bibliotecas de todas as escolas, sendo de fácil manuseio para qualquer criança. Claro que o The Sun não “checou” a fonte, preferindo dar a notícia em tom alarmante sem se ater aos fatos concretos. O livro estava apenas disponível no Centro de Educação de Londres para professores que quisessem se informar mais sobre famílias nas quais os pais/mães eram homossexuais. Verdade ou não, a histeria já havia sido acionada pelo jornal que acabou culminando na criação da Cláusula 28 (Section 28 ou Clause 28) que proibia as autoridades locais de “promover” a homossexualidade. Jarman coloca um texto, escrito por ele, sobre a camada amarela de tinta (e algumas pinceladas laranja-avermelhadas) onde, como diz o título, seria uma carta com cópia “enviada” ao Ministro da Cultura, escrita para William Shakespeare, famoso teatrólogo inglês cuja pretensa homossexualidade é amplamente discutida, na qual fala das suas experiências e referências de uma criança/adolescente gay:

Cópias enviadas ao Ministro das Artes Caro William Shakespeare Tenho 14 anos e eu sou Queer como você, eu estou aprendendo Arte Eu quero ser um artista Queer Como Leonardo ou Michelangelo Mas eu gosto mais de Francis Bacon Eu leio Allen Ginsberg, Rimbaud Eu amo Tchaikovsky se eu fizer filme Eu os farei como Einsenstein, Murnau Pasolini, Visconti com amor Derek44

44 Copies Sent to the Arts Minister / Dear William Shakespeare / I am 14 years old and I’m / Queer like you I’m learning / Art I want to be a queer artist / Like Leonardo or Michelangelo / But I like Francis Bacon best / I read Allen Ginsberg Rimbaud / I love Tchaikovsky if I make films / I will make them like Eisenstein Murnau / Pasolini Visconti love from Derek. Tradução do autor.

42

Jarman é extremamente irônico ao citar diversos escritores, pintores, um músico e cineastas que são reconhecidamente homossexuais em contraponto a proibição do livro Jenny lives with Eric and Martin e a hipocrisia conservadora britânica que criava a infame Cláusula 28. Em Morphine, temos novamente a reprodução de várias cópias da mesma página de um jornal, dessa vez o Daily Star, onde a manchete é sobre um ator da televisão que havia assumido sua orientação sexual. A chamada é: “FILTH”45 (em letras grandes e chamativas, como título principal da matéria), acima dessa palavra, em letras menores, “Storm over East Ender Rent boy”46, e em uma área com fundro preto, abaixo e a esquerda de Filth uma ordem, “Get this garbage off tv”47. A tinta aplicada é espessa, basicamente preto e vermelho em camadas grossas que cobrem praticamente toda a superfície da tela, junto com o jornal. Na parte superior, Jarman deixa entrever essa manchete, principalmente nas imagens colocadas do lado esquerdo da tela. Voltamos a ver algumas partes desse jornal na base inferior da tela, com algumas pequenas brechas brancas deixadas pela tinta, e, bem na parte inferior, quase quando a tela termina, em sua metade esquerda, Jarman deixa de forma bem sutil a foto desse ator, que constava no jornal. Na parte central da obra, ocupando todo o quadro, da esquerda para a direita, temos duas palavras escritas/marcadas na tela: “Morphin” e “Morphine”. Morphin é uma espécie de gíria para uma mudança de forma, enquanto morphine é um analgésico usado para aliviar dores severas.

A tinta de Derek eliminou os detalhes do ódio do jornal. Claro, a situação não é assim tão simples. Ainda podemos ver o que aconteceu em termos gerais: a homofobia ainda está em circulação. No final da obra – tanto quanto possível da manchete – Derek permite que apareça uma pequena fotografia do retrato do jovem martirizado por este relatório particular, como se fosse por respeito à sua humanidade e compaixão por sua dificuldade. Em obras como

45 Sujeira. Tradução do autor. 46 Algo como: Tempestade sobre o East End Garoto de Aluguel. Tradução do autor. 47 Deixe esse lixo fora da televisão. Tradução do ator.

43

esta, a estética de Derek tornou-se uma ética (CHARLESWORTH, 2011, p. 155)48.

Em Blood, Jarman emerge o The Sun, e suas mensagens fantasiosas de um tablóide comprometido com a perseguição aos homossexuais, metaforicamente, em sangue “contaminado”, como se as pessoas com Aids fossem potencialmente transmissoras de uma praga infecciosa a qualquer momento. Nessa obra, ele repete o esquema das várias cópias da capa de um jornal, aqui com os dizeres: “Aids blood in M&S Pies”49 em letras enormes que praticamente ocupam metade da página do jornal. Coloca, por cima, uma tinta vermelha em camadas leves para que consigamos ver a reprodução do jornal em toda a obra e escreve por cima, arranhando a tela, a palavra “blood” repetida à exaustão, em várias linhas, da esquerda para a direita, da parte superior até a inferior da tela, como se fosse uma lousa, onde o aluno que errou foi castigado a repetir seu erro em todo o quadro. Ironicamente, Jarman dá ao público do The Sun aquilo que eles mais temiam: o sangue, escrito repetidamente para que não seja esquecido e com a cor vermelha mergulhando o jornal naquilo que talvez ele quisesse causar com sua perseguição - mais morte aos homossexuais. Ainda que o jornal seja seu expediente mais utilizado em colagens, principalmente por causa das mensagens que podiam ser diretamente utilizadas na narrativa de cada obra, Jarman também utiliza fotografias. Em Sightless, ele coloca cópias de uma fotografia da própria retina, logo após ter ficado cego por alguns meses. Essa imagem é repetida na superfície da tela e Jarman derrama tinta sobre elas “simbolizando aqueles pontos e manchas que começaram a interferir com a visão dele e que, no final de sua vida, a obscureciam completamente” (MORGAN, 1996, p.119)50.

48 Derek’s paint has obliterated the specifics of the newspaper’s hate. Of course, the situation is not as simple as this. We can still see what has happened in general terms: homophobia is still in circulation. At the bottom of the work – as far as possible from the headline – Derek allows to appear a small portrait photograph of the young man martyred by this particular report, as if out of respect for his humanity and fellow-feeling for his predicament. In works such as this, Derek’s aesthetic became an ethics. Tradução do autor. 49 Sangue com Aids nas tortas M&S. Tradução do autor. 50 Symbolizing those dots and splotches which had begun by interfering with his sight and which, by the end of his life, had totally obscured it. Tradução do autor.

44

- Assemblages e/ou Objets trouvés (Objetos encontrados): Uso de objetos que podem ser encontrados no dia-a-dia, como produtos têxteis, metálicos, vidros, brinquedos, etc. Materiais que não são feitos para serem utilizados no universo artístico, mas que acabam tendo sua função inicial alterada, tornando-se parte efetiva de uma obra de arte. Um desenvolvimento adicional das combinações de colagem que resultará no que posteriormente viria a ser chamado de ready-made, com o famoso exemplo de Marcel Duchamp e a utilização de uma privada (colocada ao contrário), na obra intitulada The Fountain (A Fonte, de 1917) (Figura 36). Rauschenberg prefere chamar suas assemblages de combines, termo criado por ele para descrever uma série de trabalhos que combinem aspectos da pintura e da escultura, eliminando as distinções entre essas suas categorias. Essas combines podem ser penduradas na parede ou ser independentes, utilizando uma gama de objetos do dia-a-dia e os reconfigurando em seu fazer artístico, muito próximo dos ready-mades duchampianos. Em First Landing Jump (1961) (Figura 37), Rauschenberg faz uma alusão a Bicycle Wheel (1951) (Figura 38), de Duchamp, mas utiliza o pneu de uma forma mais urbana. São assemblages feitas com objetos utilitários, Untitled (Scatole Personali) (1952) (Figura 39); metal e pedra na série Untitled (Elemental Sculpture) (1953) (Figura 40); e integrando objetos em “pinturas de cavalete”, como Bed (1955) e Allegory (1959/60) (Figura 41). Em Jarman, podemos ver esses procedimentos, basicamente, em todas as obras da série Black & Gold Paintings e nas esculturas que ele faz em seu jardim em Prospect Cottage, em Dungeness.

- Action paiting – São pinturas onde se pode observar o gesto pictórico, também conhecida como pintura gestual ou gestualismo, tendo seu representante máximo na figura de Jackson Pollock (1912-1956) (Figura 42).

A action paiting americana não representa nem exprime uma realidade objetiva ou subjetiva: descarrega uma tensão que se acumulou no artista. É ação não-projetada numa sociedade em que

45

tudo é projetado; é a reação violenta do artista-intelectual contra o artista-técnico, o desenhista industrial que se integrou ao sistema e dedica-se a tornar os produtos de consumo mais apetecíveis (ARGAN, 1992, p. 622).

Essa tensão que o artista descarrega pode ser vista na maneira que a tinta é colocada sobre a tela, com o pincel, com a mão, através de gotas, ou jogando uma quantidade maior de tinta para ver o que acontece quando ela entra em contato com a tela. Para Argan a ação de Pollock é “não projetada e não garantida contra o risco” (ARGAN, 1992, p. 622), chamando essa técnica de uma anti- técnica, pois não expõe a pintura à casualidade e sim “ao comportamento coordenado do artista e seus materiais” (ARGAN, 1992, p. 622). As ações e reações durante o processo da pintura é o que dão a tônica de sua feitura e sua posterior forma acabada. Rauschenberg utiliza-se dessa técnica na série Night Blooming (1951) (Figura 43) que consiste em telas grandes, predominantemente pretas, nas quais coloca cascalho ou sujeira prensada junto ao pigmento da tinta a óleo. Ainda que Rauschenberg utilize-se dessa técnica e tenha uma grande influência sobre Jarman, sendo que Martin Frey os coloque juntos nessa prática, discordo que existam fortes semelhanças entre essa série de Rauschenberg com a série Queer ou Evil Queen de Jarman. Nessas séries, as obras possuem uma ironia com a morte e a Aids, em cores variadas (onde se sobressai o vermelho sangue), guardando uma aproximação maior com as action paitings de Pollock do que propriamente com Rauschenberg. Ataxia – Aids is fun (1993), uma das pinturas da série Evil Queen, é uma grande tela composta de linhas grossas de tinta à óleo – principalmente nas cores azul, amarelo, verde e branco, em um fundo vermelho – colocadas ali de forma frenética, jogadas aleatoriamente ou pintadas de uma maneira pré-estabelecida. Temos quatro textos que foram inscritos na superfície da tela, se misturando ao caos das cores e formas – “Blind Fail”51, “Ataxia”52, “Aids is Fun”53 e “Lets Fuck”54.

51 Cegueira Falha. Tradução do autor. 52 Condição neurológica que causa perda de equilíbrio e de coordenação. 53 Aids é divertida. Tradução do autor. 54 Vamos Foder. Tradução do autor.

46

Essas frases não são imediatamente perceptíveis e demoram a se manifestar. A palavra Ataxia ocorre com uma ênfase horizontal enfática em tinta subjacente a suas formas triangulares irregulares. Um detalhe mostra que a palavra foi prevista e preparada, muito cedo, no processo de pintura. As palavras também são fundamentais para o esquema geral de cores, pois o malva é empregado somente em torno das letras, não ocorrendo em nenhum outro lugar (CHARLESWORTH, 2011, p. 171)55.

Podemos também perceber essa gestualidade associadas a frases/palavras nas obras Letter to the Minister, Fuck me Blind (1993), Spread the Plague (1992), Do Lalley (1993) (Figura 44), Dipsy Do (Sinister) (1993) (Figura 45), entre outras. Percebe-se que a utilização dessa ação gestual da action painting se torna mais frequente nas últimas séries/obras de Jarman. A tinta é derramada, jogada, salpicada na tela, juntamente com arranhões e raspagens, tudo empreendido fisicamente e visceralmente. Isso aparece de uma maneira mais discreta na série Queer, que tem “um significado cultural, como se o assunto residisse na resposta cultural ao vírus” (CHARLESWORTH, 2011, p. 164)56 e de uma maneira mais efetiva em sua última série/obras, Evil Queen, de 1993, que não é mais um ataque cultural, sendo mais pessoal e subjetiva, como a performatividade de um protesto contra a desinformação que a propaganda trazia em relação a Aids e aos direitos humanos (MORGAN, 1996, p. 117). Jarman precisou de assistentes para que conseguisse terminar essas pinturas, a doença já o havia fragilizado a um ponto que não mais havia retorno, portanto, essas obras, associadas ao filme Blue, trazem a última expressão de um artista que fez da sua vida uma grande obra de arte. Nessa confluência de similaridades que Frey enxerga em ambos os trabalhos, tanto em Jarman quanto em Rauschenberg, ainda é cauteloso ao alertar, ressaltando, que existe uma diferença fundamental em ambos os artistas: “Onde Rauschenberg tenta – como ele diz – fazer “da lacuna entre arte e vida” sua esfera de ação, Jarman fecha essa lacuna: ambas as áreas se sobrepõem e se

55 These phrases are not immediately perceptible and take time to manifest themselves. The word Ataxia occurs with an emphatic horizontal emphasis in paint underpinning its triangular jagged forms. A detail shows that the word has been envisaged, and prepared for, very early on in the painting process. The words are also fundamental to the overall colour scheme, as mauve is only employed around the letters, ocurring nowhere else. Tradução do autor. 56 A cultural significance, as if the subject-matter lies in the cultural response to the vírus. Tradução do autor.

47 tornam um único campo de ação compartilhado” (FREY, 2016, p. 60)57. E continua dizendo que, enquanto em Rauschenberg a experimentação com materiais e a abstração que evitam mensagens são o foco principal do seu trabalho, em Jarman essa experimentação e utilização de materiais diversos servem a uma mensagem de intenção social e política, mesmo que seu conteúdo seja colocado de forma subjetiva.

No caso das obras de Rauschenberg, os espectadores são obrigados a se tornar ativos através da ausência de qualquer mensagem direta. Eles devem primeiro posicionar os elementos individuais dentro de um contexto (semântico) e, nesses quadros, eles podem formar os significados desejados. Com Jarman, por outro lado, eles são forçados a reagir: as declarações pretendidas nas obras de Jarman exigem reações. No entanto, os espectadores não recebem o papel de um recipiente passivo aqui, em vez disso – por meio de sua reação – eles encontram sua própria posição pessoal para “ler” subjetivamente e completar as mensagens e declarações (FREY, 2016, p. 60)58.

Essas “mensagens” as quais Frey cita são os elementos ideológicos que, constantemente, fazem parte do trabalho de Jarman, elevados a um novo patamar quando estão em seus filmes – defesa dos direitos das minorias sexuais; críticas ao governo Thatcher; pacifismo; assumindo publicamente ser portador do vírus da Aids numa época que sê-lo é uma sentença de morte - imbuídos de uma carga emocional que corrobora essa influência da arte de identidade e do ativismo tão característicos dos anos de 1980.

1.3. Yves Klein Jarman, há tempos, nutria uma predileção pelo pintor francês Yves Klein, resolvendo se aproximar diversas vezes de sua obra para, de alguma maneira, levá-la ao cinema. Em uma de suas exibições do filme The Garden, Jarman

57 Where Rauschenberg attempts – as he puts it – to make “the gap between art and life” his sphere of action, Jarman closes this gap: both areas overlap and become a single shared field of action. Tradução do autor. 58 In the case of Rauschenberg’s Works, viewers are forced to become active through the absence of any direct message. They have to first position the individual elements within a (semantic) context, and within this framework they can form any meanings they want. With Jarman, on the other hand, they are forced to react: the intended statements in Jarman’s Works demand reactions. However, viewers are not assigned the role of a passive recipient here either, instead – through their reaction – they find their own personal position for subjectively “reading” and completing the messages and statements. Tradução do autor.

48 colocou junto às imagens apresentadas a Symphonie Monotone de Yves Klein, tocada ao vivo. Klein compôs essa sinfonia como um “silêncio audível”: originada através de um único tom vibrante e constante, em um contínuo som e silêncio, sendo que Klein sempre fora reconhecido por um estilo monocromático, com quadros de uma única cor. Entre 1947/1948, Klein realizou seus primeiros experimentos monocromáticos, cuminando com a criação do International Blue Klein (IBK) em 1956 (um azul ultramar intenso e brilhante, a “expressão perfeita do azul”) e sua posterior “época azul” (Figura 46) com a exposição de 1957. Para Yves Klein, a cor azul sempre significou associações com o mar e o céu, onde a natureza é mais viva e palpável e pode ser pensada de forma mais abstrata (WEITEMEIER, 2001).

El azul no tiene dimensiones. “Está” más allá de las dimensiones que forman parte de los otros colores. Y este “está” como dimensión inspiradora del arte, término filosófico para mostrar que existe y no existe, se convertirá en el reto de su próxima etapa. Yves Klein, en calidad de pintor del espacio cósmico, aspiraba a un espacio sin límites ni en el tiempo ni en el espacio. “Y seamos sinceros”, afirmaría después, “para pintar el espacio tengo que situarme en el lugar preciso, en ese mismo espacio” (WEITEMEIER, 2001, p. 28).

El azul es el color del cielo, de la lejanía, de la nostalgia, de la imensidad. “Este color ejerce sobre el ojo un efecto singular casi inefable”. Como color es una energía…Hay algo de contradictorio en su apariencia, de excitación y quietud a un tiempo. Del mismo modo que vemos azul el alto cielo o las montañas lejanas, así parece como si una superficie azul retrocediera delante de nosotros. Del mismo modo que nos gusta perseguir un objecto agradable que huye ante nosotros, así nos gusta ver el azul no porque penetra en nosotros, sino porque nos atrae (GOETHE, 1810, apud WEITEMEIER, 2001, p. 16).

Jarman realizou seu último filme, Blue (Figura 47), em 1993, todo ele feito de uma única imagem, uma tela azul, o azul IKB de Klein, com sons cotidianos intercalados com uma trilha sonora e narração em off dos atores John Gielgud, Nigel Terry, Tilda Swinton e do próprio Jarman, os quais recitam/leem partes dos

49 diários e das poesias de Jarman, entre suas idas e vindas ao hospital em decorrência da Aids. Para Jacques Aumont, existem três traços que são salientados como questões relacionadas à pintura: o impalpável, o irrepresentável e o fugidio (AUMONT, 2004, p. 35), questões estas definidas em termos gerais por Klein como a “sensibilização pictórica, a energia poética ou energia pura” (WEITEMEIER, 2001, p. 15). Klein desiste da linha, da forma e da figuração, utilizando apenas uma cor como forma pura de expressão, para que não estivessem limitadas ou aprisionadas em pensamentos formais e psicológicos frente às percepções espirituais (WEITEMEIER, 2001, p. 8). Essa força poética e espiritual que emana do IKB leva Jarman a construir sua última obra audiovisual através da utilização dessa cor como instrumento de reflexão às suas indagações em um momento de urgência, pois, Jarman, soropositivo, sabia que lhe restava pouco tempo de vida, falecendo oito meses após a estreia de Blue. Mas Blue não é um filme depressivo, de alguém que lamenta a vida ou as escolhas que fez, pelo contrário, dele emana uma forte carga dramática ampliada em questões que vão além de um mero testamento de alguém que percebe a finitude da vida e a vê pouco a pouco se esvaindo. Blue, o filme, imagem única em uma tela azul, nos convida a olhar, sentir e pensar o vazio. Mas não se trata de um vazio, assim como diria Klein, de um “espaço vácuo”, e sim uma qualidade do espaço de energia, livre e invisível (WEITEMEIER, 2001, p. 34). O vazio também é presença, pois é capaz de atravessar todas as coisas, transportando-as. Jarman nos convida a esse “mergulho” em um vazio azulado, tal como Klein mergulha ao encontro do chão em sua obra fotográfica Salto no vazio (Saut dans le vide) (Figura 48). Jarman nos leva em um mergulho a essas emoções extáticas e que, espontaneamente, nos são transmitidas ora de forma calma e contemplativa, ora envoltas em um turbilhão de medos e angústias. Jarman nos leva em uma jornada, nos colocando frente a fragmentos de “pensamentos” expressos através de um personagem/autor (algumas vezes narrando através de sua voz, outras vezes nas vozes de outros atores). Esse conflito fragmentado perpassa questões

50 reais como a falta de visão, excesso de medicamentos, o abandono, a perda de amigos, mas também perpassa relações de cunho mais poético/existencial como a complexa relação que ele urde com o tempo, a memória e a arte. Jarman opera sob a égide da morte: morte física, morte de suas memórias, morte como ritual de (re) nascimento. Reconhece seu lugar de mero espectador frente aos seus últimos dias de vida, almeja contemplar o pouco que lhe resta dentro da transitoriedade em que se encontra. As certezas se dissipam e caem nos versos poéticos que imprimem/exprimem em seu texto e em todos os sons/ruídos que estão ao seu redor. Blue não é um filme ficcional, não apresenta personagens e nem um enredo claramente identificável e linear, fixa-se a maior parte do tempo em banalidades e lembranças. Existem atores e um texto, mas ainda assim não estamos no âmbito da ficção. Também não podemos dizer que Blue seja um documentário, no sentido literal que esse gênero possui, pois como já dissemos anteriormente, existem atores e um roteiro para ser lido/interpretado em uma sequência pré-estabelecida. Jarman cria um discurso que não é nem representação de uma ficção, nem a busca por uma realidade documentada. Jarman amplia a forma de pensar seu cinema e sua vida através dos “domínios” de um autorretrato ensaístico, de um filme-ensaio, moderno em sua essência, que permite a fragmentação, a reflexão e a não linearidade de suas imagens. Antonio Weinrichter o define como um “conceito fugidio”, algo que não pode possuir demarcações rígidas, mas ainda assim elenca algumas condições para que uma obra audiovisual possa ser chamada de ensaística: propor uma reflexão sobre o mundo histórico, privilegiar a subjetividade e utilizar uma mistura de imagens (imagens de arquivo, intervenções do autor, comentários, etc.) em uma forma própria (mais sobre essa relação entre Blue e o autorretrato ensaístico/antirretrato pictórico será visto com maior ênfase no capítulo cinco desse texto). Blue é quase como um diário que, ao invés de ser escrito com palavras, é escrito com imagem e som, uma espécie de um cine-diário, uma busca incessante pela autorreflexão, um texto audiovisual que se aproxima do pensamento.

51

Tanto Klein quanto Jarman são artistas que buscam refletir sobre a transitoriedade entre corporeidade e espiritualidade através de diferentes dispositivos (audiovisual/pintura/música/performance) nos quais exprimem uma extrema sensibilidade pictórica, sensibilidade essa que Klein descreve como:

Esta sensibilidade pictórica existe más allá de nosotros y pertenece todavía a nuestra esfera. Nosotros no detentamos ningún derecho de posesión sobre la vida misma. Sólamente mediante nuestra toma de poseisón de la sensibilidad podemos adquirir la vida. La sensibilidad que nos permite perseguir la vida al nivel de sus manifestaciones materiales de base, en los cambios y el trueque que son el universo del espacio, de la totalidad inmensa de la naturaliza. ¡La imaginacion es el vehículo de la sensibilidad! Transportados por la imaginación tocamos la vida, esa misma vida que es el arte absoluto en sí mismo (WEITEMEIER, 2001, p. 52).

Jarman faleceu em 19 de fevereiro de 1994 e suas cinzas foram misturadas a um pigmento preto e colocados em uma tela que ele mesmo já havia preparado anteriormente, dando a entender qual era a sua verdadeira atividade artística (KESKA, 2009, p. 37).

[...] ele sempre foi um pintor que fez filmes e não o contrário. O sucesso de suas pinturas talvez significasse mais para ele, a longo prazo, do que o de seus filmes, embora fossem os filmes que preenchiam a vida que ele vivia (O’PRAY, 1996, p. 207)59.

1.4. Michelangelo Merisi da Caravaggio Ao retratar o pintor barroco do século XVII, polêmico, bissexual, violento e envolvido com a marginalidade da época (bêbados, drogados, prostitutas e ladrões), em seu filme Caravaggio (1986), Jarman, na verdade, está falando de si mesmo: pintor, cineasta, homossexual, contestador e participante ativo do underground londrino, cuja estética cinematográfica muito se compara aos resquícios da imagem barroca (ou neobarroca, a partir dos estudos de Sarduy, Calabrese e outros), em uma obra mais influenciada pela história da arte, pelas tintas e pelos pincéis, do que pelas teorias cinematográficas. Caravaggio, o filme,

59 [...] he had always been a painter who made films rather than the other way around. The sucess of his paintings perhaps meant more to him in the long run than that of his films, though it was the films that filled the life he lived. Tradução do autor.

52 incorpora técnicas do chiaroscuro60 na paleta de cores do filme, assim como na direção de arte e na profusão de tableaux vivants61 que recriam várias obras do artista barroco (Figura 49).

Caravaggio é um filme sobre a pintura como um modo de representação, que é pessoal e historicamente colocado. É desinteressado na biografia do pintor – o que aprendemos sobre a sua infância, por exemplo, serve apenas para estabelecer a sua sexualidade e sua relação com a sua arte e o poder. Na verdade, são as interconexões entre arte, poder e sexualidade que o filme explora, em particular as atrações mútuas entre Caravaggio, Lena e Ranuccio enrolados em dinheiro e sexo e da estrutura de poder e corrupção dentro da qual estão inseridos. O filme de Jarman conecta o pessoal com o político, usando o fazer artístico como foco (O’PRAY, 1996, p. 149)62.

Através de Caravaggio, Jarman faz uma releitura do seu tempo e das obsessões artísticas, tanto as dele próprio quanto às do pintor. A predileção pela polêmica e ousadia em suas obras, faz com que ambos os artistas transformem a vivência errante em material para se tentar entender um pouco o sentido da marginalidade que perpassa ambas as criações. “Quando eu filmei a vida de Caravaggio, concentrei-me nas pinturas e não nas opiniões relatadas e nas fofocas dos biógrafos. As pinturas eram sua vida, minha vida agora são meus filmes”. (JARMAN, 1996, p. 193)63. Caravaggio, na concepção de vários críticos, é um dos primeiros pintores modernos que surgiram. Suas obras, feitas para serem exibidas em igrejas,

60 Palavra italiana que significa luz e sombra, ou mais literalmente claro-escuro. Na pintura é definido pelo contraste entre luz e sombra na composição da imagem pictórica, criando assim um efeito tridimensional. Técnica inovadora da pintura utilizada por Leonardo Da Vinci, sendo que a radicalização desse efeito dá início a uma escola da pintura italiana: o tenebrismo. 61 Tableau vivant (no plural tableaux vivants) é um termo francês para “pinturas vivas”. Descreve um grupo de atores ou modelos, cuidadosamente colocados e teatralmente iluminados. Durante a duração da exibição, eles não se mexem ou falam. Muitas vezes são utilizados para enfatizar momentos dramáticos. No cinema, esse recurso já foi explorado por diretores como Peter Greenaway, Gus Van Sant, Jean-Luc Godard e Michael Haneke, entre outros. 62 Caravaggio is a film about painting as a mode of representation that is both personal and historically placed. It is uninterested in the painter’s biography – what we learn about his early life, for instance, serves only to establish his sexuality and its relationship to his art and to power. Indeed, it is the interconnections between art, power and sexuality that the film explores, in particular the mutual attractions between Caravaggio, Lena and Ranuccio sieved through money and sex and the structure of power and corruption within which they are located. Jarman’s film connects the personal with the political, using the making of art as a focal point. Tradução do autor. 63 When I made Caravaggio’s life I concentrated on the paintings, not the reported opinions and gossip of the biographers. The paintings were his life, my life is now my films. Tradução do autor.

53 mostravam passagens bíblicas e utilizava como modelos, na realização desses quadros, pessoas do cotidiano do qual fazia parte. Mas não eram simplesmente pessoas comuns escolhidas a esmo. Caravaggio usava prostitutas, ladrões, cafetões, marinheiros, bêbados e toda a combinação de degredados que encontrava em suas andanças. Fugia dos padrões impostos pela arte da época, não queria retratar santos e figuras religiosas de acordo com a beleza “clássica” que predominava: figuras idealizadas e virginais. Queria retratá-las como pessoas do povo, sujas, feias, mais próximas do humano e do real, do que do santificado. Com o uso desses modelos nada ortodoxos para a época, chamou atenção da Igreja Católica que, na maioria das vezes, era quem bancava suas produções, recusando e proibindo algumas de suas obras, acusando-as de sacrilégio.

Caravaggio [...] dejó de lado la iconografía tradicional para situar los hechos sagrados en el contexto del mundo cotidiano. Al mismo tempo, creó una profunda poesía a partir del tratamiento simbólico que dio a la luz y a la oscuridad. [...] sus figuras presentan una agresividad plebeya: los pies sucios que los verdugos de san Pedro muestram al espectador y el caballo de san Pablo, que vuelve su inmensa grupa a la Asunción de la Virgen, como si se tratara de una protesta contra el arte idealista de Carraci (LANGDON, 2010, p. 225).

As pinturas de Caravaggio se opunham ao sistema de representação da figura humana do Renascimento, que tinha seu expoente máximo, naquele período, nas obras do pintor Annibale Carracci (1560-1609), herdeiro da grande tradição de Michelangelo di Buonarroti (1475-1564) e Rafael Sanzio (1483-1520), e contemporâneo de Caravaggio. Ambos eram muito comparados, sendo que, na maioria das vezes, essa comparação se realizava em detrimento de Caravaggio, com a exaltação de Carracci. Nos quadros de Caravaggio, as pinceladas são densas, escuras, predominando os ambientes internos. Jarman optou por pensar a direção de fotografia (realizada por Gabriel Beristain) e o design de set (realizado pelo amigo Christopher Hobbs) de seu filme amparados nessa imagem pictórica, recriada a partir das obras do pintor: os interiores são (des)construídos a partir das sombras, com incidência de uma iluminação que ressalta o chiaroscuro da imagem, com

54 sons que mostram que existe um mundo externo, mas que nunca é visto, criando assim, ao mesmo tempo, uma atmosfera claustrofóbica e sedutora. Envolvido em uma acusação de assassinato, Caravaggio fugiu de Roma, vindo a falecer aos 39 anos de idade, em Porto Ercole, na Toscana. Seu legado artístico ultrapassou fronteiras, fazendo com que a modernidade reconhecesse sua genialidade. Jarman (assim como seu conterrâneo e contemporâneo Peter Greenaway) acabou sendo fortemente associado a esse período da história da arte, o barroco, como um cineasta que produz imagens dentro dessa estética dos anos de 1700. Na verdade, podemos falar sobre um neobarroco que, segundo Omar Calabrese, é a característica principal da cultura atual, mas adverte que não se trata de uma volta ao barroco em seu sentido histórico, sendo que essa característica também não se refere a totalidade das manifestações estéticas contemporâneas (CALABRESE, 1987). Existe uma “reinvenção” desse barroco, em um diálogo fecundo com a produção cultural, que consiste na busca de formas e sua valorização, em meio “à perda da integridade, da globalidade, da sistematicidade ordenada em troca da instabilidade, da polidimensionalidade, da mutualidade” (CALABRESE, 1987, p. 10).

O neobarroco é simplesmente um “ar do tempo” que alastra muitos fenômenos culturais de hoje, em todos os campos do saber, tornando-os parentes uns dos outros, e que, ao mesmo tempo, os faz digerir de todos os outros fenômenos de cultura de um passado mais ou menos recente (CALABRESE, 1987, p. 10).

Ainda em Calabrese, essa identificação da imagem barroca se dá através do emprego da montagem que fragmenta a ação em planos de curta duração, com predomínio do movimento; uso de enquadramentos rebuscados; manipulação da imagem mediante o uso de ângulos forçados; filtros e efeitos cromáticos/especiais e o uso de trilha sonora ambiental/natural. Calabrese também especifica uma série de princípios que definem o neobarroco: o policentrismo; a irregularidade; o gosto pelo pastiche; o uso de citações de diferentes fontes e sua distorção, explorando os limites dos gêneros, sejam eles

55 cinematográficos ou literários; o excesso; a presença da sexualidade e da violência no cinema contemporâneo (KESKA, 2004). De um modo geral, podemos dizer que a confluência entre o carnal e a sexualidade, principalmente o homoerotismo, se encontram como a força motriz da filmografia de Jarman, com personagens que estão à beira das perversões sexuais, geralmente de caráter dúbio e/ou dissimulado, nos quais essa sexualidade exacerbada pode vir a terminar em uma explosão de violência, contra um outro ou contra si mesmo. Além de criar uma relação intertextual entre si e o seu biografado, no caso específico do pintor Caravaggio, ainda que sejam costumeiras em Jarman essas “biografias” que ele realiza onde se fala muito mais de um “eu” do que um “ele”, vide Edward II e Wittgenstein, “não é indiferente o narrador projetar-se no enunciado ou alhear-se dele; [...] enunciar um “eu” sob a forma de um “ele” (FIORIN, 1999, p. 54), Jarman também utiliza uma obra desse pintor em The Last of England. The Last é o filme feito logo após Caravaggio, que foi sua obra mais mainstream, filmada em 35mm e com a qual Jarman ocupou vários anos da sua vida, deixando-o profundamente frustrado sob o peso de uma produção maior do que costumeiramente realizava. Portanto, é sintomático que prefira retornar a uma produção menor e mais experimental como The Last. Jarman se volta para o Super 8, que nunca o havia abandonado de vez em sua filmografia, utilizando em The Last uma cópia do quadro Amor Vitorioso64 (ou Amor Vincit Omnia, no original em Latim) (Figura 50), de Caravaggio (feita por Christopher Hobbs), em uma cena onde a imagem é agredida e pisoteada, terminando com a personagem deitando- se sobre ela em uma simulação de gestos que remetem a uma cópula sexual ou a um ato masturbatório. Amor Vitorioso mostra um jovem cupido desnudo, como se estivesse descendo de uma espécie de mesa, com alguns instrumentos atrás dele espalhados pelo chão - violino, alaúde, bússola, um tipo de manuscrito, caneta, partituras, etc.

64 Diverge-se um pouco no título em português desse quadro. Para o tradutor de Simon Schama, em O poder da arte, seria O amor tudo vence, mas a edição mantém o nome em latim, Amor vincit omnia, na legenda da imagem. Em Sebastian Schutze, Caravaggio – Obras Completas, prefere-se a tradução para Amor Vitorioso. Em Robert Longhi, Caravaggio, a tradução opta por Amor vencedor. Ficaremos aqui com a tradução de Schutze.

56

O título deve-se ao célebre verso de um poema de Virgílio que diz: "Omnia Vincit Amor et nos cedamus amori"65. Essa mesma pintura também aparece no filme Caravaggio, em uma situação que difere bastante da apresentada em The Last. Caravaggio havia sido contratado para fazer três pinturas para a Capela de Contareli, na Igreja de São Luís dos Franceses, em Roma. Uma das telas, Mateus e o Anjo, desagradou a igreja, que pediu sua reformulação. Caravaggio que, nessa época já mantinha relações com personalidades importantes do cenário político e cultural de Roma, teve a ajuda do marquês Vincenzo Giustiniani para se livrar dessa contenda gerada com o Cardeal Del Monte, o responsável pela Capela Contarelli e encomendador da série de São Mateus. Giustiniani comprou o quadro recusado, São Mateus e o Anjo (a primeira versão) e encomendou um novo quadro a Caravaggio, esse com um tema mais pagão ou pré-cristão: Amor Vitorioso.

[...] elaborou um Cupido em nu frontal que nunca se tinha visto até então – pelo menos em uma tela. Eros pertence ao mundo dos deuses, mas será que alguma vez se mostrou tão concreto? O quadro o retrata como um moleque de rua, um menino púbere de cabelo revolto, lábios suculentos e um sorriso maroto, como se soubesse que os atributos divinos – as asas postiças e as flechas de mentira – foram alugadas por um dia (como ele?) (SCHAMA, 2010, p. 57).

No filme Caravaggio, de Jarman, esse quadro pode ser visto logo após uma sequência de diálogo entre o marquês Giustiniani e o Cardeal Del Monte (Figura 51), onde ele cita este pequeno contratempo da recusa da pintura de São Mateus (Figura 52): - “O seu São Mateus fica tão bem na galeria. Foi um presente divino os clérigos de San Luigi o odiarem tanto. Eu o encarreguei de algo bem diferente agora. Amor profano (Profane Love, como a tela também é conhecida em inglês). Um tema perfeito para o nosso gênio”66.

65 "O amor vence tudo, vamos todos ceder ao amor!". 66 Texto retirado das legendas traduzidas no dvd lançado pela Spectra Nova no Brasil.

57

Há um corte na cena que nos leva diretamente para o personagem Caravaggio, deitado de forma lânguida no chão olhando para o quadro Amor Vitorioso terminado e a modelo, que provavelmente posou para a obra, se espreguiçando e fazendo alguns exercícios de relaxamento num cenário que conta com um par de asas colocadas em uma haste, um pequeno banco e uma espécie de globo terrestre todo azulado, com grandes estrelas douradas. O quadro, quando a cena é mostrada em um plano aberto/conjunto, permanece sempre em primeiro plano na imagem (Figura 53). Enquanto em Caravaggio a contemplação do quadro Amor Vitorioso se dá de forma silênciosa entre os personagens, através de olhares, mas com uma trilha de flamenco de El niño de Almaden, Serenata, em The Last essa apresentação é colocada de uma forma violenta, passional e sexualizada, com uma câmera nervosa, que se mexe tão ou mais freneticamente do que o ator/personagem em cena. Essa cena acontece em quatro momentos alternados no início do filme, enquanto mostra um personagem (o próprio Jarman), numa espécie de atêlie, escrevendo em um livro, enquanto ouvimos uma narração (feita pelo ator Nigel Terry) do que aparentemente é o que está sendo colocado no livro, escrito à mão. A primavera vez que vemos a imagem dessa pintura é aos 2 minutos e 19 segundos, rapidamente, com um take de 2 segundos, com o texto narrado: “Sinal de um profético olhos de gato”67, enquanto a câmera passa de forma frenética sobre ela. A segunda vez que retorna à essa imagem é aos 2 minutos e 54 segundos, com o texto: “Lá fora, com o cair do granizo, o canto do poeta acaba de forma sincopada. Uma geada negra controla os olhos pela garganta. Puxamos as cortinas em direção à porta e nos arrepiamos com nossas tumbas vazias. A casa de Deus ruiu? Ninguém se lembra de tal conquista. Filhotinhos e nigelas-dos- trigos foram esquecidas por aqui, como os garotos que morreram em Flandres. Seus nomes apagados pela geada iluminada, e marcados nas cruzes da vila. A primavera envolveu os campos de Arsene Green. Os carvalhos morreram esse ano. Em todo morro esverdeado a lamentação para e chora pelos últimos da

67 Texto retirado da tradução das legendas do dvd lançado no Brasil pela Magnus Opus, em 2006, com o título Crepúsculo do Caos.

58

Inglaterra”. Nessa sequência mais longa (em torno de um minuto) vemos mais claramente o personagem Johnny arremessando uma espécie de bastão de encontro à tela e depois pisoteando-a e chutando-a, com gestos violentos (Figura 54). O terceiro momento em que ela aparece é aos 4 minutos e 8 segundos (com a duração de 20 segundos), sem texto, apenas com a trilha sonora, com o personagem Johnny rolando em cima da imagem, se contorcendo e se esfregando nela, até cansar e permanecer deitado e parado sobre a imagem (Figura 55). A última vez que vemos Johnny com o quadro é aos 7 minutos e 57 segundos (com duração de 48 segundos), ele continua pisoteando a imagem até deitar-se e começar a esfregar-se no quadro como se o estivesse penetrando ou se masturbando. O texto narrado que se segue é: “Os cidadãos ficavam calados, vendo suas crianças devorando seus carrinhos e tudo que você fez no desespero foi celebrar os Windsor mais uma vez. Vacas velhas levadas aos matadouros para deixar os bois excitados” (Figura 56). Há um corte brusco no final da cena para mostrar em seguida uma imagem de Jarman criança, dos filmes familiares feitos pelo pai de Jarman em Super 8, continuando com imagens dele e da irmã em um jardim (mais sobre a utilização dos filmes caseiros feitos pelo pai e pelo avô de Jarman encontram-se nos capítulos subsequentes).

Spring (nome do ator do filme The Last of England) chuta a pintura e se masturba sobre ela. É um relacionamento amor/ódio. Enquanto isso, estou filmando e esta não é uma câmera passiva, mas uma foda cinematográfica, minha sombra cai sobre ele. É uma análise muito verdadeira do trabalho, de fato muito mais próximo do que eu consegui com Caravaggio, onde isso tinha que ser falsificado (JARMAN, 1996, p. 190)68.

Há um componente sexual e político nessa sequência. Johnny é um personagem auto-destrutivo, está se drogando no início do filme, antes e depois da cena com o quadro. Johnny é mostrado de forma objetificada, seu torso desnudo contrasta com a nudez total do cupido pintado por Caravaggio, uma

68 Spring kicks the painting and masturbates over it. It's a love/hate relationship. Meanwhile I'm filming and this is not a passive camera but cinematic fuck, my shadow falls across him. It is a very true analysis of the work, in fact much nearer than i got with Caravaggio where that had to be fudged [...]. Tradução do autor.

59 figura auto-destrutiva por excelência, com grandes arroubos de cólera. Johnny, que está se “destruindo”, destrói a pintura em forma de um duplo reflexo: destruo aquilo que me olha e me diz quem sou. Seria Johnny também um cupido que a todos seduz? Jarman estava seduzido pelo ator (Spring) e o coloca como o personagem que se relaciona com a tela. A ironia desse “cupido”, do amor vitorioso, é que em nada parece ter alguma vitória no filme de Jarman, no qual o caótico e o apocalíptico prevalecem. Caravaggio despertava paixões profanas com suas pinturas, o cupido pode ser destrutivo, Johnny é uma espécie de “cupido” em transe erótico destruindo Caravaggio: a destruição é destruída. Ao colocar essa obra para ser pisoteada, Jarman observou:

[...] um abraço até a morte, chutando cegamente, destruindo sem propósito é endêmico de nossa cultura, um progresso santificado. Negando o valor a qualquer coisa que não possa ser consumida...Caravaggio...está mostrando essa destruição. Criando este anjo perverso, um sorriso em todo o rosto; ele é catalisador, como Terence Stamp no Teorema de Pasolini que perturba um mundo ordenado. Spring, que espelha este cupido, rejeitou a torre de marfim dos meus filmes, ele ama anúncios e fast food, a sopa Campbells, Dallas, James Dean posando em torno daquele filme infinitamente maçante, Giant. (JARMAN, 1996, p. 196)69.

E termina essa sequência com uma crítica feroz à dinastia inglesa, representada pelos Windsor e pelo povo que tudo aceita cordialmente, “como vacas sendo levadas para deixarem os bois excitados”.

The Last of England não é tão manipulador como um recurso convencional; você sabe – salte aqui, fique assustado aqui, ria...Além de estar preso com meu filme por 85 minutos, meu público tem uma liberdade muito maior para interpretar o que está vendo, e por causa do ritmo, para pensar sobre isso. Eu tenho minhas próprias ideias, mas elas não são o começo ou o fim...Eu estudo uma quantidade imensa do público. Eu posso ir para trás e para frente em uma cena 30 vezes e depois ver o filme mais 20 ou 30 vezes e ainda não perceber muita coisa. Para mim, a voz do público

69 [...] an embrace to death, kicking blindly, destroying without purpose is endemic to our culture, sanctified progress. Denying value to anything that can't be consumed.... Caravaggio... [is] showing this destruction. Creating this wicked angel, a grin all over his face; he's a catalyst, like Terence Stamp in Pasolini's Theorem who disrupts an ordered world. Spring, who mirrors this cupid, rejected the ivory tower of my films, he loved adverts and fast food, Campbells soup, Dallas, James Dean posing around in that endlessly dull film Giant. Tradução do autor.

60

é interpretativa, ensinando-me o que fiz. Eu não trabalho para uma audiência passiva, eu quero um público ativo...Em qualquer caso, o público é muito mais aventureiro do que lhe é dado crédito... (JARMAN, 1996, p. 193)70.

Essa fúria em The Last, na profanação de uma pintura famosa e de grande valor dentro da história da Arte, assim como as influências que as pinceladas e as cores de Caravaggio acometem o trabalho pictórico de Jarman, podem ser vistas com mais clareza a partir dos anos de 1990. Jarman, quando faz Caravaggio não queria se concentrar na biografia acerca dessa personalidade, seu interesse são suas pinturas que, após a feitura desse filme, impregnam de forma abundante os quadros por ele realizados, principalmente em pinturas da série Queer e Evil Queen e, em uma referência direta, na série The Caravaggio Suite (1986). Em Queer e Evil Queen, em algumas telas, as pinceladas são fortes, com fundo escuro e predominância do vermelho em primeiro plano, que evidencia também o momento pelo qual Jarman estava passando, quando se descobre HIV positivo durante as filmagens de The Last of England. Com isso, o vermelho (sangue), as questões políticas referentes aos portadores da Aids e o descaso com o que governo inglês e mundial tratavam a doença, que neste ponto representa uma sentença de morte, se tornam urgentes nas pinturas de Jarman no período. Em The Caravaggio Suite (Figura 57), temos nove obras, com tinta preta e betume juntamente com objetos aplicados no mesmo estilo das Black Paintings, as quais já havia começado a desenvolver antes do início das filmagens de Caravaggio. Vários objetos do filme ou encontrados durante as fimagens são inseridos nessas obras, como uma faca, uma caveira, um controle remoto de uma televisão, velas, entre outros. Outra forma contundente de aproximação entre esses dois artistas é a necessidade de se retratarem em suas obras, em forma de “autorretratos”. Podemos citar esse expediente utilizado por Caravaggio, como por exemplo, em

70 The Last of England is not as manipulative as a conventional feature; you know – jump here, be frightened here, laugh.... Apart from being stuck with my film for 85 minutes, my audiences have much greater freedom to interpret what they are seeing, and because of the pace, to think about it. I have my own ideas but they are not the beginning or the end.... I learn an immense amount from audiences. I can go backwards and forwards across a shot 30 times and then see the film another 20 or 30 times and still miss things. For me the voice of the audience is interpretive, teaching me what I have done. I don't work for a passive audience, I want an active audience.... In any case audiences are much more adventurous than is given credit...Tradução do autor.

61 duas de suas obras, no quadro O Martírio de São Mateus (1599-1600) (Figura 58) e David com a cabeça de Golias (1609) (Figura 59). São Mateus foi um dos doze apóstolos de Cristo e escreveu um dos evangelhos que fazem parte do Novo Testamento da Bíblia Sagrada. Provavelmente nasceu na Galiléia e trabalhou como coletor de impostos antes de Cristo chamá-lo para seguí-lo. Mateus tinha fama de pecador e sua vocação para com Cristo redimiu seus pecados. Acredita-se que tenha morrido de morte natural, porém, tanto a Igreja Católica quanto a Ortodoxa, sustentam que sua morte tenha sido de forma trágica, por causa da sua fé religiosa e que tenha morrido como um mártir. Caravaggio, ao pintar o quadro, rejeitou a ideia de um fundo arquitetônico, colocando as personagens saindo da escuridão, com o foco de luz direcionado para São Mateus, criando ao redor deste uma atmosfera ameaçadora. São Mateus está no centro da pintura, deitado, com cenas que acontecem em seu entorno, de forma cíclica. O quadro tem uma composição em uma imagem triangular centralizada, iniciando na figura do carrasco e usando como outros dois vértices dessa triangulação a imagem de três homens semi desnudos, um à esquerda e dois à direita dele. No centro desse triângulo temos São Mateus caído ao chão, com todas as demais figuras do quadro olhando ou apontando para esta cena, que mantém o nosso olhar em primeiro plano. O local onde a cena acontece lembra uma igreja, com partes de um altar e uma cruz que pode ser vista na nuvem atrás do anjo, o que leva a suspeitar que os homens semi-desnudos aguardavam o momento de ser batizados. O carrasco, que também se encontra semi-desnudo, poderia estar entre aqueles homens, antes de revelar seu verdadeiro propósito. Chama atenção também a forte carga dramática da figura do menino à direita e seu grito desesperador. Seu rosto é o único que assume a frontalidade na composição do quadro. Vemos a direita algumas pessoas bem vestidas que se preparam para fugir ante o horror da cena apresentada, deixando São Mateus nas mãos de seu carrasco. Bem ao fundo, quase saindo, olhando por cima dos ombros, vemos um autorretrato de Caravaggio, que se coloca na obra como testemunha desse ato vil

62 e desumano, sobre o qual não pretende fazer nada para mudá-lo, pois sua atitude também é de covardia. O quadro é caracterizado pelo dinamismo de sua composição, mostrando várias atitudes em relação à morte: a ajuda divina, representada pelo anjo; a passividade e covardia mostradas pelo grupo que se prepara para fugir e o horror demonstrado na fisionomia do menino. Davi com a cabeça de Golias, pintado no final da vida de Caravaggio, difere um pouco da tradicional representação dessa história bíblica, que mostra um Davi triunfante com a morte de Golias. Com uma aparência entre triste e orgulhoso, Davi segura na mão direita a espada com a qual acabara de desferir o golpe fatal em Golias, cuja cabeça sustenta na mão esquerda, olhando-a melancolicamente. Em um primeiro plano, à direita, temos a cabeça decepada de Golias, com o sangue escorrendo e os olhos abertos e vidrados como se um último fio de vida estivesse se esvaindo. Golias é um autorretrato de Caravaggio, que, sintomaticamente, não se coloca no lugar do herói e sim no lugar do vilão da história, que paga por seus atos de orgulho e pecado. Caravaggio havia fugido de Roma após ter matado um homem, exilando-se em Nápoles, Sicília e Malta. Desesperado por conseguir o perdão do cardeal Scipione Borghese, podendo com isso retornar a Roma, Caravaggio lhe envia essa pintura como um misto de arrependimento e pedido de perdão, mas morreu em 1610, em Porto Ercole (região da Toscana, Itália), antes de conseguir realizar seu intento. A espada que Davi segura tem a inscrição em latim “humilitas occedit superbiam” que significa: a humildade conquista o orgulho. Caravaggio faz dessa pintura seu mea culpa, sabe de seus pecados e crimes, por isso se coloca na figura de Golias, ao mesmo tempo em que procura ser perdoado. Jarman também se coloca em vários filmes realizados por ele. Em Caravaggio faz uma pequena participação, não creditada, como Papal Aide, mas as participações mais significativas e marcantes são em The Last of England (Figura 60), The Garden (Figura 61) e Blue. Em The Last, Jarman é uma espécie de figura Shakespereana que escreve um livro a mão no início no filme e vemos

63 ele filmando com sua câmera Super 8 em outro determinado momento. Na quarta e última sequência da cena com a pintura de Caravaggio é possível ver a sombra de Jarman sobre a personagem Johnny, enquanto ele estava filmando. Em The Garden, Jarman encontra-se numa espécie de ateliê, em uma mesa, com livros e vários objetos em torno de si (o mesmo tipo de cenário é usado em The Last, com a diferença que lá é menos realista que aqui), posteriormente vemos Jarman deitado em uma cama, na praia, com quatro pessoas (dois homens e duas mulheres), com longas saias e o torso nu, rodeando-o, com uma espécie de luz nas mãos. The Garden é praticamento todo filmado nas imediações do seu jardim e de sua casa em Prospect Cottage, no litoral de Dungeness. Em Blue, não vemos a presença física de Jarman, mas ouvimos sua voz em partes da narração que ele divide com outros atores-amigos. Em Blue, essa relação com o autorretrato é mais direta, pois Jarman coloca sua voz a serviço de um texto que são suas memórias, poesias e/ou anotações de um diário escrito por ele. Essa presença física do diretor (seja através do corpo ou através da voz) confere aos filmes um deslocamento temporal que os circunscreve na jornada pessoal e política de Jarman. É sintomático que essas “aparições” se deem justamente em suas obras mais íntimas e pessoais: The Last é a primeira vez que Jarman utiliza em suas obras cinematográficas imagens em Super 8 de quando ele era criança, filmadas por seu pai ou cenas antes dele ter nascido, filmadas por seu avô; em The Garden as filmagens acontecem a partir do seu jardim em Prospect Cottage, com várias cenas das paisagens no entorno desse jardim, na casa e na praia de Dungeness, com amigos ajudando Jarman nos momentos que a doença o deixava debilitado demais para filmar (Jarman diretamente apresenta essa situação, deitado em uma cama, numa espécie de sonho ou dor, na maioria das cenas em que aparece); em Blue, Jarman, próximo ao final da vida, praticamente cego, realiza um filme de uma única imagem, uma tela toda azul (repetindo o padrão de cor do Internacional Blue Klein), forçando os espectadores a “verem” como ele estava vendo, pois diz que a cegueira fazia-o “enxergar” apenas um tom azulado.

64

Portanto, também não será aleatório que Jarman procure Caravaggio e retire dele os emaranhados de uma construção visual amparada no pictórico, e nem que Caravaggio sirva tão facilmente aos propósitos “jarmanianos”. Do mesmo modo que Caravaggio rompe com a arte produzida em sua época, o Renascimento, propondo uma nova utilização de luz e sombra e na maneira de retratar passagens bíblicas, Jarman inicia também uma ruptura com o cinema produzido até então na Grã Bretanha, propondo um “(...) esforço incessante para produzir imagens, para escapar ao domínio da linguagem, para levar o máximo possível o cinema para a esfera do visual, da visualidade” (AUMONT, 2004, p. 219), ao mesmo tempo em que se opõe ao establishment e o status quo de sua época.

65

Figura 1: Ford Madox Brown (1821-1893), “The Last Of England”, 1885.

66

Figura 2: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

67

Figura 3: David Hockney, “The Last of England?”, 1961.

68

Figura 4: David Hockney, “Illustrations for Fourteen Poems from C. P. Cavafy”, 1966.

69

Figura 5: Derek Jarman, “Irresistible Grace”, 1982.

70

Figura 6: À esquerda – capa de uma edição da revista Physique Pictorial, por volta de 1966. À direita – Derek Jarman, “Untitled (The Archer)”, 1983.

Figura 7: William Blake, “Newton”, 1795-1805.

71

Figura 8: David Hockney - em sentido horário – 1. “Portrait of an artist (Pool with two figures)”2. “A large diver (Paper Pool 27)”, 1978. “A Bigger Splash”, 1967. “Peter getting out of Nick’s Pool”, 1966. “Portrait of Nick Wilder”, 1966.

Figura 9: Stills do filme “Sebastiane”, 1976, direção Derek Jarman.

72

Figura 10: À esquerda - Guido Reni, “Saint Sebastian”, 1617-1619. À direita: Guido Reni, “Saint Sebastian”, 1616.

Figura 11: À esquerda – Yukio Mishima como São Sebastião (autorretrato). À direita – Still do filme “Sebastiane”, 1976, direção Derek Jarman.

73

Figura 12: Robert Rauschenberg, “Bed”, 1955.

Figura 13: Derek Jarman, “Bed”. Sem dados.

74

Figura 14: Derek Jarman, “Black & Gold Paintings”. Primeira fileira – “Work Ethic”, 1986, sem dados. “INRI”, 1988. “Prospect”, 1990. Segunda fileira – “Untitled”, sem dados. “Untitled”, sem dados. “Untitled (Wired Glass)”, 1990. Terceira fileira – “Untitled (Legs)”, 1987. “Untitled”, sem dados. “Pinxit”, 1987.

75

Figura 15: Derek Jarman, “Black & Gold Paintings”. Primeira fileira – “Untitled”, sem dados. “This instant”, 1987. “T.B. or not T. B. that is the question”, 1990. Segunda fileira – “This precious stone”, 1986. “Those Thoughts”, 1988. “The Mistake”, 1987. Terceira fileira – “Untitled”, sem dados.

76

Figura 16: Robert Rauschenberg, “Black Paintings”, 1951-53. Primeira fileira – “Untitled (glossy black four-panel painting)”, 1951. Segunda fileira – “Untitled (glossy black painting)”, 1951. “Untitled (black painting with portal form)”, 1952-53. “Untitled (small vertical black painting)”, 1951. Terceira fileira – “Untitled (matte black painting with Asheville citizen)”, 1952. “Untitled (black painting on paper)”, 1952. “Untitled (black painting on paper)”, 1952.

77

Figura 17: Robert Rauschenberg, “Gold Paintings”, 1953/1955-56/1965). Primeira fileira – “Untitled (Gold painting)”, 1965. “Untitled (Gold painting)”, 1965. “Untitled (Gold painting)”, 1953. Segunda fileira – “Gold Painting”, 1953. “Untitled (Gold painting)”, 1953. “Untitled (Gold painting)”, 1953.

78

Figura 18: Robert Rauschenberg, “Red Paintings”, 1953-54. Primeira fileira – “Red Painting”, 1954. “Untitled”, 1954. “Yoicks”, 1954. Segunda fileira – “Red Import”, 1954. “Untitled (Red Painting)”, 1953-54. “Untitled (Red Painting)”, 1953.

79

Figura 19: Derek Jarman, “Smashing Times”, 1987.

80

Figura 20: Derek Jarman, “Silence”, 1986.

81

Figura 21: Derek Jarman, “Sleep”, 1987.

82

Figura 22: Derek Jarman, “Eyes”, 1986.

83

Figura 23: Derek Jarman, “Spread the Plague”, 1992.

84

Figura 24: Derek Jarman, “Queer”, 1992.

85

Figura 25: Derek Jarman, “Sightless”, 1993.

86

Figura 26: Derek Jarman, “Blood”, 19922.

87

Figura 27: Derek Jarman, “Infection”, 1993.

88

Figura 28: Derek Jarman, “Fuck me blind”, 1993.

89

Figura 29: Derek Jarman, “Ataxia – Aids is Fun”, 1993.

90

Figura 30: Robert Rauschenberg, “Should love come first?”, 1952.

91

Figura 31: Robert Rauschenberg, “Untitled (Hotel Bilbao)”, 1952.

92

Figura 32: Robert Rauschenberg, “Untitled (Pictographs and feathers)”, 1952.

93

Figura 33: Derek Jarman, “Letter to the Minister”, 1992.

94

Figura 34: Derek Jarman, “Morphine”, 1992.

95

Figura 35: Imagens do livro “Jenny lives with Eric and Martin”, 1983.

Figura 36: Marcel Duchamp, “The Fountain”, 1917.

96

Figura 37: Robert Rauschenberg, “First Landing Jump”, 1961.

Figura 38: Marcel Duchamp, “Bicycle Wheel”, 1951.

97

Figura 39: Robert Rauschenberg, “Untitled (Scatole Personali)”, 1952.

98

Figura 40: Robert Rauschenberg, “Untitled (Elemental Sculpture)”, 1953/1959. À esquerda – “Untitled (Elemental Sculpture), 1953. À direita – “Untitled (Elemental Sculpture)”, 1953.

Figura 41: Robert Rauschenberg, “Allegory”, 1956/1960.

99

Figura 42: Jackson Pollack, “Convergence”, 1952.

100

Figura 43: Robert Rauschenberg, “Night Blooming”, 1951. Da esquerda para à direita: “Untitled (Night Blooming)”, 1951. “Untitled (Night Blooming)”, 1951. “Untitled (Night Blooming)”, 1951.

101

Figura 44: Derek Jarman, “Do Lalley”, 1993.

102

Figura 45: Derek Jarman, “Dipsy do (Sinister)”, 1993.

103

Figura 46: Yves Klein, “Untitled (Blue Monochrome)”, 1957.

104

Figura 47: Still do filme “Blue”, 1993, direção Derek Jarman.

105

Figura 48: Yves Klein, “Saut dans le vide (Salto no Vazio)”, 1960, fotografia de Harry Shunk.

106

Figura 49: À direita - Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman. À esquerda, de cima para baixo, obras de Michelangelo Merisi da Caravaggio: “São João Batista”, 1605. “São Jerônimo”, 1605-06. “O concerto”, 1594-95.

107

Figura 50: Michelangelo Merisi da Caravaggio, “Amor Vitorioso (Amor Vincit Omnia)”, 1602.

108

Figura 51: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman.

Figura 52: Michelangelo Merisi da Caravaggio, “São Mateus e o anjo”, 1602.

109

Figura 53: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman.

110

Figura 54: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman.

111

Figura 55: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman.

112

Figura 56: Stills do filme “Caravaggio”, 1986, direção Derek Jarman.

113

Figura 57: Derek Jarman, “The Caravaggio Suite”, 1986. Sem dados.

Figura 58: Michelangelo Merisi da Caravaggio, “O Martírio de São Mateus”, 1599-1600.

114

Figura 59: Michelangelo Merisi da Caravaggio, “David com a cabeça de Golias”, 1610.

115

Figura 60: Still de Derek Jarman no filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 61: Still de Derek Jarman no filme “The Garden”, 1990, direção Derek Jarman.

116

2. DA PINTURA PARA O SUPER 8: UM PERCURSO AO CINEMA EXPERIMENTAL. Algo que sempre acompanhou Jarman em suas experimentações audiovisuais foi sua paixão pela pintura e pela história da arte. Jarman era um pintor que filmava e transformava os “quadros” fílmicos em uma extensão de seu processo artístico-pictórico.

Este método cumulativo de trabalho é mais parecido com o processo artístico de um pintor ou escultor do que um cineasta - uma formação contínua, rejeitando e remodelando trabalhos do passado e do presente. É um processo que Jarman nunca descartou, mesmo quando utilizava roteiros, e, nessa medida ele é um cineasta que constrói grande parte do seu imaginário na pós- filmagem – na edição (O’PRAY, 1996, p. 74)71.

Logo de início já nos deparamos com um paradoxo na relação entre esses dois campos visuais: o cinema e a pintura. Não é possível ao cinema, imagem audiovisual em movimento, ser pictórico ou que a pintura, pertencente ao terreno das aparências plásticas (AUMONT, 2004) seja uma imagem cinematográfica. Para o cinema, se existe uma aproximação mais pertinente às suas idiossincrasias, seria com a imagem fotográfica. Não há tradução possível que faça a câmera equivaler ao pincel, o filme ao quadro: “(...) só há equivalências eventuais na parte mais implícita da arte, que a relação entre cinema e pintura não é nem a ‘correspondência’ nem a filiação cara às estéticas clássicas” (O’PRAY, 1996, p. 243). O que se tenta é estabelecer os aspectos de como a pintura está presente no cinema, para que possamos “(...) ver de que modo se parece ou se diferencia seu tratamento na pintura e no cinema: o dispositivo, a moldura e o quadro, a representação e a cena, a luz e a cor” (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 39). Para Aumont, o cinema não contém a pintura, mas ele a cinde, a explode e a radicaliza (2004).

71 This cumulative method of working is more akin to the artistic process for a painter or sculptor than a film- maker – a continual shaping, rejecting and reshaping of past and present work. It is a process Jarman never jettisoned, even when using scripts, and to this extent he is a film-maker who constructs much of his imagery post-filming – on the edit bench. Tradução do autor.

117

Portanto, é nesse terreno fértil de uma “apreensão” do pictórico que Jarman se manifesta. Os filmes, que fazem suas construções poéticas e visuais próximas do que seriam, na maioria das vezes, questões pictóricas, procuram “poner en evidencia el artificio, la construcción, planteando un juego metalingüístico entre el cine y la pintura” (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 188), na verdade um jogo e uma reflexão sobre a representação, seja ela audiovisual ou pictórica. Nesse jogo de representações, podemos vir a pensar na relação entre a câmera-pincel de Jarman, a partir de Astruc, com um cinema ensaístico. No final dos anos de 1940, Alexandre Astruc, em o “Nascimento de uma nova vanguarda: câmera-stylo” (texto publicado na L’écran français n° 144, em 30 de março de 1948), conclama os artistas a uma nova forma de arte comparável ao ensaio (posteriormente pensado como um ensaio audiovisual):

[...] uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir seu pensamento, por mais que este seja abstrato, ou traduzir suas obsessões do mesmo modo como hoje se faz com o ensaio ou o romance. É por isso que eu chamo a esta nova era do cinema a Caméra stylo (ASTRUC, 2009, p. 1).

Para que isso aconteça, prossegue dizendo que “a encenação não é mais um meio para ilustrar ou apresentar uma cena, mas uma escrita autêntica. O autor escreve com a sua câmera da mesma forma que o escritor escreve com uma caneta” (ASTRUC, 2009, p. 1) ou, como prefiro argumentar aqui, o autor pode pintar com a câmera assim como pinta com os seus pincéis. Astruc associa a constituição do pensamento no espaço fílmico à uma relação direta com a escrita, exprimir o que se pensa, escrevendo. Jarman exprime seus pensamentos como se os tivesse pintando, transforma sua câmera em um pincel, ao invés de uma caneta. Quer, a todo custo, continuar, alargar as fronteiras de suas práticas pictóricas junto ao limite da imagem cinematográfica. Seu processo artístico torna- se indefectível quando perpassa ambas as produções. Para Jarman, assim como para Astruc, o cinema deveria se livrar “gradualmente da tirania do que é visual”, dessa imagem gratuita que não nos leva à nenhuma reflexão, “da imagem pela

118 imagem, das imediatas e concretas demandas da narrativa, para se transformar num meio tão flexível e sutil como a linguagem escrita” (ASTRUC, 2009, p. 1) ou pintada por uma câmera-pincel. Ainda que não esteja falando de filmes específicos que existissem naquele momento, Astruc já estava preconizando o que posteriormente viria a ser a Nouvelle Vague francesa e o cinema de autor. Esse desejo de um cinema no qual o diretor/autor filma/escreve/pinta, manifesta-se em ideias/pensamentos que são inseridos nas imagens captadas. Astruc deixa isso patente ao proferir que espera que o cinema “se torne uma linguagem tão rigorosa que o pensamento possa ser escrito diretamente sobre a película” (ASTRUC, 2009, p. 1), não mais, simplesmente, fazendo associações entre imagens, “a expressão do pensamento é o problema fundamental do cinema” (ASTRUC, 2009, p. 1). Por isso se refere a um nascimento de uma nova vanguarda, “há vanguarda toda vez que acontece algo de novo” (ASTRUC, 2009, p. 1), mas adverte que mesmo que o termo nos faça pensar nas primeiras vanguardas dos anos de 1920, criticando-as como uma “retaguarda” que:

[...] procurava criar um domínio próprio para o cinema; nós procuramos, ao contrário, entendê-lo e fazer dele a linguagem mais vasta e mais transparente possível. Problemas como a tradução dos tempos dos verbos, como as ligações lógicas, interessam-nos muito mais do que a criação de uma arte visual e estática sonhada pelo surrealismo, que, aliás, não fazia mais do que adaptar para o cinema as pesquisas da pintura e da poesia (ASTRUC, 2009, p. 1).

Mas, são nessas vanguardas que, num primeiro momento, essas relações entre cinema e pintura se entrelaçaram com mais afinco e afinidade. Dentro dos movimentos das artes plásticas, como o dadaísmo, o futurismo, o surrealismo e outros, alguns pintores se aventuraram além do cavalete, fazendo experimentações fotográficas e também com uma arte que até então tinha pouco tempo de existência: o cinema.

Estas manifestaciones se produjeron de diferentes maneras: mediante una afirmación del color y sus valores subjetivos, el fauvismo; descomponiendo el espacio de carácter renacentista

119

mediante la introducción del factor tiempo, el cubismo; negando el estatuto artístico tradicional de la obra de arte, el dadaísmo; en una exploración de la mente y el comportamiento humano, el expresionismo; o resaltando la velocidad y la importancia de los condicionantes de la vida moderna, el futurismo [...] Sin olvidar tampoco el movimiento surrealista, un poco más tardío (período de entreguerras), heredero del dadaísmo con un fuerte componente subjetivo en la ideia artística de partida (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 92).

Todas essas manifestações nasceram da necessidade de ruptura, não só estéticas, mas de diversos valores socioculturais que afligiam os artistas. A busca por experimentalismo se converteu na busca por novos atos artísticos, sendo que a maioria desses artistas passou a empregar em suas produções todos os suportes que até então haviam disponíveis. A busca por novos materiais e novas maneiras de se trabalhar o pictórico fizeram com que esses artistas, que viveram esse fenômeno cinematográfico do início do século, buscassem o campo do experimental para trabalhar com as possibilidades de uma nova linguagem. “En general, todos ellos llegaron al cine desde los procesos de desmaterialización y descomposición del objeto artístico, atraídos seguramente por las infinitas posibilidades que ante ellos extendía el cinematógrafo” (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 95). Para Aumont, é na luz, em seu tratamento, seus contrastes e na falta desses (as sombras), que residem as principais diferenças entre o cinema e a pintura. A pintura utiliza a luz para fazer dela um material plástico, portanto trabalha com uma luz que não é real, é uma impressão; no cinema essa luz é muito fácil de ser conseguida, mas, ao mesmo tempo, é muito difícil de ser adquirida e colocada de forma realista na película, sem atrapalhar o enquadramento e a movimentação da câmera. A pintura, ainda citando Aumont, possui meios mais rápidos de chegar à emoção através de seus elementos pictóricos: a cor, os valores, os contrastes e as nuances, o campo da plasticidade (AUMONT, 2004, p. 167). Com isso o cinema, apesar de sua natureza fotográfica tenta igualar-se à pintura:

Querendo fazer tudo da pintura, e fazê-lo melhor do que ela, o cinema provocou, ao longo de sua história, incessantes paralelos entre um vocabulário formal do material pictórico, formas e cores,

120

valores e superfícies, e um vocabulário – sempre a ser forjado – do “material” fílmico. O fílmico quis absorver também o pictórico (AUMONT, 2004, p. 168).

É através desse apreço pelo pictórico e pelas experimentações decorrentes da vontade de levá-lo para a imagem em movimento, expandindo da tela e do cavalete para o suporte audiovisual, que Jarman cria, a partir de 1972, seus primeiros curtas em Super 8, nos quais podemos vislumbrar o início de um “estilo”, de uma mise en scene que será frequentemente reapropriada em seus longas- metragens. Nesse processo de encontro de uma “linguagem”, Jarman “no início dos anos setenta, quando tentou se libertar das convenções impostas pela pintura do período, a câmera Super 8 parecia-lhe o meio ideal para fazer isso” (FREY, 2016, p. 11)72. Essas reflexões em relação à arte acabam levando Jarman a uma opinião extremamente crítica relacionada à sua produção pictórica. Jarman sente um esgotamento em seu processo criativo com os pincéis, tintas e tela, levando essa inquietude que, até então predominava em suas pinturas, para a sua produção em Super 8. A câmera se torna o pincel de Jarman, fazendo com que ele continue seu processo pictórico, mas, desta vez, através da imagem audiovisual.

Enquanto isso, minhas pinturas, ao contrário do meu trabalho de teatro, ficaram cada vez mais vazias; seus títulos contam a história: "Terreno Pedregoso", "Águas Frescas". Minha imagem final da década foi chamada "Desertos". Então eu peguei uma câmera Super 8 em 1970 e comecei a preencher essas imagens aborrecidas com os meus amigos [...] (JARMAN, 1996, p. 54)73.

O início dessa produção é realizada de forma despretensiosa, com Jarman filmando seus amigos, seu ateliê e as coisas que estavam ao seu redor naquele momento. Mas, esse início aparentemente tímido, logo cede espaço para construções mais elaboradas, nas quais Jarman começa a sedimentar

72 in the early seventies, when he attempted to liberate himself from the outwardly imposed conventions of painting in the period, the Super 8 camera seemed to him like the ideal means to do. Tradução do autor. 73 Meanwhile my paintings, unlike my theatre work, became emptier and emptier; their titles tell the story: “Stony Ground”, “Cool Waters”. My final picture of the decade was called “Deserts”. Then I picked up a Super 8 camera in 1970 and started to populate these dreary pictures with my friends [...]Tradução do autor.

121 características que seriam exploradas durante seu trabalho com a imagem audiovisual e faz com que ele seja reconhecido como um expoente de uma nova vanguarda que se articula dentro do cinema experimental inglês, a margem da vanguarda estrutural, que era a que dominava o discurso conceitual de uma produção voltada às experimentações estilísticas daquele momento.

2.1. Super 8: um suporte de experimentações. A película Super 8 foi lançada pela Kodak em 1965, com uma largura de 8 milímetros. O Super 8 diferenciava-se do 8mm lançado anteriormente pois tinha maior área de exposição, o que dotava a imagem de uma melhor qualidade. Esse aperfeiçoamento do 8mm que o Super 8 propunha era mais simples de ser utilizado: com um cartucho de pressão, era colocado na câmera e não precisava ser virado. O filme em Super 8 não tinha um negativo, tratava-se de um filme reversível (o original é positivo), portanto não possuía cópias (o custo para se fazer uma cópia de uma gravação em Super 8 era muito elevado), dessa maneira o filme tornava-se único, passível de perda e de não recuperação, sendo que a sua projeção só poderia ser dada em um lugar por vez. Com um caráter doméstico de gravação, nos anos de 1960 e 1970, o Super 8 passa a ser muito utilizado por cineastas amadores e de vanguarda e/ou artistas plásticos, pois favorecia imensamente as experimentações, de forma quase marginal. O Super 8 também propiciava uma relação mais íntima com a câmera e com a filmagem em si, pois não necessitava de quase nenhuma equipe técnica para a confecção dos filmes propostos, tendo o cineasta ou qualquer pessoa que se aventurasse por esse caminho, liberdade total na criação de seus projetos. O que antes tinha sido lançado apenas com o intuito de produção de filmes caseiros/domésticos tornou-se um produto popular, acessível à classe média e que, através da qualidade dessa película, colocou essa técnica à serviço de vários cineastas. Após uma experiência bem-sucedida como set designer do diretor britânico Ken Russell no filme The Devils (1971) Jarman procede sua parceria com Russell em O Messias Selvagem (Savage Messiah, 1972), percebendo que o estilo

122 megalomaníaco e histérico do diretor não combinava com a maneira que ele entendia uma produção audiovisual. Cansado do rigor burocrático que demandava essas grandes produções, Jarman retorna à pintura e, ao ganhar uma câmera Super 8, lança-se em uma carreira cinematográfica extremamente autoral, fazendo com que a pintura, sua primeira paixão, se tornasse uma constante entre as idas e vindas nesses dois campos de produção de imagens. Essa produção em Super 8 se constituiu na maior parte da criação cinematográfica de Jarman. Em apenas quatro anos, de 1972 a 1975, antes da estreia de Jarman na produção de um longa-metragem, que ocorreu em 1976, foram realizados em torno de cinquenta curtas-metragens, num montante de quase oitenta, que foram feitos no decorrer de um período de dez anos. O ápice dessa efervescência produtiva encontra-se, especificamente, em torno dos anos de 1970, diminuindo consideravelmente nos anos de 1980 quando Jarman envolve-se de forma mais contundente com a produção de longas-metragens e com o declínio de sua saúde em decorrência dos efeitos do vírus HIV. A produção desses curtas se distingue das produções de longas-metragens por um caráter maior de improvisação, geralmente “não-narrativos”, repletos de simbolismos e com uma maior ênfase na forma material do que propriamente na qualidade das imagens, mas sempre mantendo um profícuo diálogo com a história da arte, “tirando” a pintura da tela e “levando-a” para o Super 8, “de certo modo ele parece estar pintando de modo íntimo com a sua Super 8” (SOBRINHO e MELLO, 2015, p. 213), principalmente por esse suporte estar muito “mais afinado com o caráter privado e solitário do ofício de pintar” (SOBRINHO e MELLO, 2015, p. 210). Encontramos nesses trabalhos em Super 8 várias características, algumas delas dada pelo suporte em si, as quais Jarman se apropria de forma criativa, colocando-as em sintonia com a sua mise en scene. Essas características são:

- Não-narrativo – as narrativas são abertas, às vezes aproximando-se de um cinema “não-narrativo”, com as filmagens sendo feitas sem roteiro ou qualquer tipo de script pré-estabelecido. Esse cinema “não-narrativo” (entre aspas mesmo, conforme estabelecido por Elinaldo Teixeira no título do seu livro Cinemas “não-

123 narrativos” – experimental e documentário – passagens) é uma denominação surgida a partir do pós-guerra para definir um cinema “de feição mais próxima do experimental” (TEIXEIRA, 2012, p. 17), mas que ainda “atravessa os outros dois domínios” (TEIXEIRA, 2012, p. 17), tanto na ficção quanto no documentário. Essa associação do cinema com a narratividade, com o contar histórias, é uma herança do cinema clássico hollywoodiano, imbuído de uma linguagem clássica que permitiu ao cinema “passar da mera técnica de registro visual anterior à sua consistência artística” (TEIXEIRA, 2012, p. 17). Portanto, o cinema “não-narrativo” era aquele que fugia completamente da norma vigente da fabulação.

Fora desse parâmetro, um outro cinema, ou seja, o cinema experimental, de vanguarda, mas também grande parcela de documentários que se afastava de uma lógica narrativa institucionalizada, oficial, foi tomado ou dado como não-narrativo (TEIXEIRA, 2012, p. 17).

Teixeira finaliza dizendo que todo esse cinema está alicerçado em nos dar “devires mais do que histórias” (TEIXEIRA, 2012, p. 17). Ao filmar sem se ater ao relato apenas na narratividade, Jarman filma de acordo com a proposição que Teixeira enxerga no cinema em quase sua totalidade: “nem puramente visual, nem puramente narrativo, o cinema se constitui como uma “modulação” de elementos diversos, de uma combinatória de materiais e modos de composição em variação permamente” (TEIXEIRA, 2012, p. 18). Jarman capta, nesses devires, imagens dos amigos e das coisas que acontecem ao seu redor de forma espontânea e fragmentada, preferindo um modo subjetivo de expressão.

Um cinema subjetivo, portanto, orquestrado pela mão de ferro do cineasta, mas cujo protagonismo é o de um amplo espectro de visões intercedidas, fragmentárias e contraditórias, sob o recurso de um discurso acentrado de consistência inteiramente indireta livre (TEIXEIRA, 2012, p. 134).

Jarman compreende essa subjetividade de uma forma autoral, sendo que “pessoal” não significa um fechamento sobre si mesmo (TEIXEIRA, 2012, p. 134),

124 e que a experiência e/ou experimentação é a base de um cinema autoral (narrativo ou “não-narrativo”). “A batalha por um cinema que cresce e usa as experiências diretas do autor como qualquer outra forma de arte, e que resiste aos órgãos de comissionamento e declara que a experiência é a base para o trabalho sério” (JARMAN, 1996, p. 167)74.

- Multicamadas ou intertextualidade – não existe fronteira nas obras de Jarman, há, em contrapartida, uma intensa comunicação entre seus filmes, suas pinturas, seus livros e, até mesmo, em seu jardim, num processo de confluência entre esses suportes/lugares/dispositivos.

- Efeito dreamlike – utilização de diferentes velocidades. O single frame na filmagem e o slow down na exibição. O single frame (stop frame, stop motion, time lapse), antes de tudo pode ser considerado pelo seu efeito de economia (FREY, 2016, p. 125). Jarman gravava durante quase vinte minutos em um cartucho de Super 8, que tinha como duração padrão de três minutos, através dessa técnica do single frame.

Com sua Nizo 480, Jarman filmou imagens individuais em modo single-frame a uma velocidade de 3-6 quadros por segundo (fps) em vez dos 24 quadros por segundo (fps) usuais. Em um filme feito dessa maneira, projetados na velocidade padrão, o resultado seria um efeito de movimento rápido: a progressão das imagens pareceria substancialmente acelerada (por um fator de cerca de seis a oito). No entanto, um projetor Bolex especial tornou possível que esses filmes Super 8, filmados em movimento rápido, sejam projetados em modo lento até uma velocidade de projeção reduzida de cerca de 3 quadros por segundo (fps), em vez de 24 quadros por segundo (fps) (FREY, 2016, p. 125)75.

74 The battle for a cinema which grows up and uses the direct experiences of the author like any other art form, and which stands up to the commissioning bodies and declares that experience is the basis for serious work. Tradução do autor. 75 With his Nizo 480, Jarman filmed individual images in single-frame mode at a speed of 3-6 fps (frames per second) instead of the usual 24 fps. In a film shot in this way were projected at standard speed, the result would be a fast-motion effects: the progression of images would appear substantially accelerated (by a fator of around six to eight). However, a special Bolex projector made it possible for these Super 8 films shot in fast motion to be projected in slow-down mode at a reduced projection speed of around 3 fps, instead 24 fps. Tradução do autor.

125

Portanto, com essa combinação do single frame no momento da filmagem e com o slow down no momento da exibição, se conseguem essas imagens quase etéreas, lentas, que parecem deslizar sob a tela, em um ritmo de contemplação, o chamado efeito dreamlike, um convite a imagens lânguidas e oníricas.

- Refilmagem – Jarman projetava as imagens gravadas por ele e as refilmava, num primeiro momento com uma outra câmera Super 8 e, posteriormente, também começou a utilizar uma câmera de vídeo. Esse processo acabava interferindo na aparência do filme, deixando a imagem mais granulada, ganhando, com isso, a aparência de uma imagem praticamente pintada e não filmada. Quando alguns desses filmes começaram a ser transferidos para 16mm, para exibição pública, essa granulação ganhava uma textura mais visível.

- Texturas – Ao alterar a velocidade tanto da gravação quanto da reprodução, Jarman gostava de deixar suas imagens com uma “textura” quase pálpavel. Essas imagens, quase abstratas, quase “borradas”, “escorriam” pela tela como uma estética que propiciava esse quase apagamento da imagem, deixando- as mais próximas de uma imagem pictórica do que, propriamente, de uma imagem audiovisual – “[…] com suas texturas granuladas, elas são um pouco remanescentes das pinturas românticas Impressionistas ou do Pontilhismo” (FREY, 2016, p. 126)76.

- Filtros coloridos – Eram colocados em frente à lente da câmera no momento da filmagem, para a criação de variedades de cores na imagem. Jarman também utilizava papel colorido e transparente como filtro, mais especificamente, quando estava refilmando as imagens projetadas.

76 […] with their grainy textures, they are somewhat reminiscent of romanticising Impressionist or Pointllist paintings. Tradução do autor.

126

- Luz e cor – Jarman experimentava com diversos efeitos de luz e cor, “A luz tomou o lugar da tinta que havia sido aplicada na tela” (FREY, 2016, p. 124)77. A imprevisibilidade da luz e sua influência na exposição do filme, faziam com que Jarman experimentasse com o reflexo de espelhos virados diretamente para o espectador, assim como a luz do sol e os reflexos que incidiam nas coisas, lugares e pessoas.

- Fragmentação – Pedaços, partes, porções de cenas e imagens que Jarman gravava e ficava trabalhando constantemente em relação a elas. Suas imagens não possuiam uma lineariedade completa, seus filmes se explicam pelos fragmentos que são colocados na “narrativa”, isso quando possui uma narrativa específica. Essa “narratividade” era vista com mais frequência em sua produção de longa-metragens, ao contrário das produções em curtas-metragens, que abusavam da fragmentação para dar conta das experimentações estéticas e formais de Jarman na película Super 8.

- Dupla e múltipla exposição – Fotografar e/ou filmar duas imagens juntas, sobrepostas. Essa junção de imagens, dessa dupla exposição, que no princípio da fotografia poderia parecer um erro, foi utilizada de forma artística por vários fotográfos. No cinema isso se dá na exibição de duas imagens sobrepostas e sua posterior (re)filmagem, criando assim, uma terceira imagem, tirando as duas primeiras do seu contexto original e alterando completamente sua forma inicial. Jarman se valeu desse expediente para (re)organizar imagens de alguns curtas em outras obras produzidas posteriormente.

Para uma melhor apreensão desse enorme “corpus” de produção de curtas- metragens em Super 8 feitos por Jarman, proponho a divisão em três grandes categorias, com algumas subdivisões. A primeira grande categoria é pensada em relação à estilística dos filmes caseiros (home movies), na qual será abordada a produção dos curtas com

77 Light took the place of the paint that had been applied to the canvas. Tradução do autor.

127 temáticas centradas no filme-diário e nos retratos. São curtas espontâneos, que geralmente mostravam a intimidade de Jarman e seus amigos, feitos sem a intenção de uma apresentação pública. A segunda categoria está relacionada com o momento em que essa produção de Super 8 ganha um caráter mais experimental, com imagens encenadas e pensadas para a câmera, deixando de ser meramente um registro dos amigos, das festas, dos lugares visitados por Jarman, etc. Há também um retorno aos temas relacionados à sua produção pictórica, principalmente à paisagem e ao misticismo. Com isso, propõem-se questões estéticas advindas de uma aproximação sintomática com a pintura, uma continuidade de seus procedimentos artísticos-plásticos para a imagem audiovisual. A terceira e última categoria se propõe a analisar a quantidade de imagens captadas por Jarman e como essas imagens são constantemente reaproveitadas dentro do seu processo criativo. Jarman as reorganizava, as reeditava, as transformava, ressignificando-as, deixando nesse contexto algumas obras inacabadas e algumas outras com mais de uma versão, colocando-as, posteriormente, em exibições públicas, com trilha sonora de alguns amigos músicos, como Throbbing Gristle, Cyclope, Coil, PTV e Simon Fisher Turner. Temos, nesse corpus, imagens filmadas por ele e (re)organizadas em diferentes ocasiões e necessidades e imagens filmadas por outras pessoas (seu pai e seu avô) e inseridas por Jarman em suas obras, trazendo com isso um diálogo fértil com as teorias do found footage e dos filmes de arquivo.

2.2. Home movies: uma “festa entre amigos”. Os home movies (ou filmes caseiros, ou filmes de família) englobam toda a produção jarmaniana relacionada ao seu entorno, seu ateliê/casa (primeiro em Bankside, depois em Buttler’s Wharf), retratos de amigos e apresentações artísticas das quais ele participava. São locais íntimos, onde as experiências afetivas ganhavam uma construção familiar, “mapeando” o dia-a-dia de uma vida queer que pulsava na Inglaterra dos anos de 1970 e 1980.

128

Os home movies também foram uma forte corrente do cinema de vanguarda (avant-garde), iniciado na Europa, no começo dos anos de 1920, com nomes como Jean Cocteau, Man Ray, Luís Buñuel, influenciando, posteriormente, Maya Deren, Kenneth Anger, entre outros, nos Estados Unidos dos anos de 1940, que se valiam da utilização de amigos como atores e de suas casas como locações e o emprego de imagens de cunho pessoal e privado na realização de curtas- metragens. Dentro dessas características dos home movies, podemos dividí-los em duas subcategorias que me parecem pertinentes dentro da filmografia de Jarman: o filme-diário e os retratos. Claro que essas subcategorias acabam, de alguma maneira se contaminando com as demais que virão a posteriori. Mas, aqui, a ênfase, são nos filmes que não possuem uma preocupação formal e estética mais elaborada, são obras nas quais Jarman estava se divertindo e experimentando com a câmera Super 8, principalmente ao lado dos amigos e habituais colaboradores de suas obras. Esse início de produção é marcado por um “processo de trabalho, que ele repetidamente chamou de ‘festa com amigos’, era realmente o seu foco principal enquanto o resultado era secundário” (FREY, 2016, p. 52)78, como uma extensão aos filmes domésticos feitos por seu avô (final da década de 1920 a meados de 1930) e por seu pai (a partir de 1939). Essa relação com o Super 8 se deu de forma inicialmente indireta com Jarman. Uma das primeiras imagens de Jarman, ainda bebê, no colo de sua mãe, foi filmada por seu pai, imagem esta utilizada no final de The Last of England, filme produzido em 1986, assim como várias outras imagens captadas por seu pai e avô, dando uma nova ênfase a um material íntimo e pessoal, desdobrando-o em várias camadas na narrativa desse filme. Essa produção de filmes familiares/domésticos com a “família” que Jarman escolheu pra si, em uma vida intensa “documentada” com os amigos em Bankside e Buttler’s Wharf, trazia a diferença de que Jarman não estava apenas gravando cenas familiares (JARMAN, 1996, p. 54), mesmo que a maioria desses Super 8 sejam sobre essa “família” de amigos, Jarman também vai enveredar por uma

78 Working process, which he repeatedly referred to as ‘a party with friends’, was absolutely the primary focus for him and the result was secondary. Tradução do autor.

129 produção mais substanciosa e criativa, as quais serão abordadas com mais detalhes nos próximos capítulos. Mas, antes de adentrar especificamente nessas categorias, cabe discutir e especificar um pouco o que são esses filmes caseiros/domésticos/familiares e sua relação com a produção amadora. Quando se fala em home movies estamos em dois universos de produção: do cinema amador e do cinema familiar. Em um primeiro momento, assim que utilizamos esses dois espaços de captação de imagem, do amador e do familiar, já estamos fazendo uma relação desse cinema e desse procedimento de captação com o cinema comercial e/ou profissional, geralmente definindo-os como um cinema não-profissional, desencadeando assim uma oposição relacionada ao orçamento utilizado, ao status adquirido pelos realizadores, ao formato utilizado (sendo o Super 8 o mais amador dessa escala, seguido pelo 16mm, enquanto o 35mm é o formato profissional por excelência), ao tempo de trabalho, a formação do realizador, etc. Roger Odin salienta que o sujeito amador é um apaixonado pelo que faz, não apenas alguém que faz algo amadoristicamente, mas adverte que esse campo denominado amador é abrangente, possuindo fronteiras incertas e flexíveis, sendo também um campo extremamente heterogêneo, compreendendo diversas formas de manifestação audiovisual.

A contabilização do cinema amador supõe aceitar esta heterogeneidade e labilidade: são constitutivos de um campo que existe apenas através do sistema de oposições externas (amador vs. profissional) e interno (os diferentes espaços são definidos por relação com os outros) que em um ponto o caracteriza; um sistema em evolução perpétua (ODIN, 2001, p. 3)79.

Odin divide o amador, para um melhor entendimento do termo e da maneira com que ele escapa de um significado totalizante, em três categorias relacionadas ao espaço onde é concretizado: o espaço familiar, o espaço amador (dos clubes,

79 Rendre compte du cinéma amateur suppose d'accepter cette hétérogénéité et cette labilité: elles sont constitutives d'un champ qui n'existe que par le système d'oppositions externes (amateur vs professionnel) et internes (les différents espaces se définissent les uns par rapport aux autres) qui à un moment donné le caractérise; un système en perpétuelle évolution. Tradução do autor.

130 cineclubes, etc) e o espaço do cinema independente (que ele chama de “um outro cinema”). No espaço familiar (dos filmes de família, dos filmes caseiros), temos um típico cineasta amador: alguém que não trabalha com cinema, que geralmente possui um trabalho fixo, que tem apenas um hobby paralelo feito nos tempos livres ou em festas/encontros familiares e não recebe nada por isso, pelo contrário, acaba gastando dinheiro para adquirir equipamentos e fazer esses “filmes”, mesmo não possuindo formação na área audiovisual e filmando, muitas vezes, com material barato e formato reduzido. Essas produções são vistas dentro de um ambiente familiar, em exibições privadas, sendo que esses filmes, geralmente, são sobre eventos como casamentos, nascimentos, comemorações, viagens, etc. Jarman, em seus filmes caseiros, reconfigura essa ideia do ambiente familiar pois transforma esses lugares onde habita em seu “lar”, dividindo-o com os amigos que fazem parte dessa “família” criada por ele. Jarman comporta-se como esse cineasta amador ao filmar e exibir de forma privada esses curtas, apenas para os que também estavam participando das filmagens. O cineasta familiar é sempre o centro da ação, tudo converge a ele, que está manipulando a câmera, apontando-a para as pessoas ao seu redor. A câmera, para um cineasta familiar, é um catalisador, um intermediário, cuja função é reunir o grupo familiar (ODIN, 1999). O cineasta familiar, que não se comporta e nem quer se comportar como um cineasta, pois isso seria excluir-se/afastar-se da família, deixando de ser esse agente centralizador (ODIN, 1999), interage com os “atores” de seu filme, quebrando a quarta parede, pois o cineasta chama essas pessoas para direcionarem seu olhar para a câmera e interagir com ela/ele. Essa interação é dada através de uma quantidade enorme de sorrisos e aparente felicidade, conversas e brincadeiras com o cineasta/câmera, sendo que nessa relação entre o filmado e o que filma existe um risco: pessoas que fogem da câmera, fazem caretas ou se sentem desconfortáveis quando são interpeladas. No filme familiar, atores, cineasta e público pertencem ao mesmo entorno social/familiar que se reúnem em ocasiões festivas por grau de parentesco ou amizade. O filme doméstico/familiar não termina em sua filmagem, pois o mesmo

131 público que o assiste é quem está “atuando” nele, sendo que os comentários e discussões que a apresentação desse filme suscita fazem parte de uma “trilha sonora” ao vivo, construída durante a sua projeção (CUEVAS, 2003). Efrén Cuevas, em seu texto “Imágenes familiares: del cine doméstico al diário cinematográfico” (2003), enumera algumas características dessa imagem amadora/familiar que está sempre convencionada a uma divergência com a construção da imagem do cinema profissional/comercial: - espontaneidade – não há um planejamento naquilo que vai ser filmado, a produção é feita de forma aleatória e fragmentada; - ausência de uma montagem posterior – a “montagem” é feita na câmera durante o processo de filmagem, que provoca uma fragmentação no discurso fílmico; - escassez de primeiros planos ou planos detalhes, variando entre os planos gerais e plano conjunto; - instabilidade da câmera (principalmente nas diversas panorâmicas realizadas), geralmente trêmula, embaçada, sem foco, etc; - uma mínima construção narrativa, as cenas seguem os acontecimentos durante o evento. Acrescento a essas características estilísticas a falta de demarcação (“clausuras”) nessas produções familiares pois, o início e o fim, são, na maioria das vezes, abruptos e inconclusivos, conforme ressaltado por Odin (ODIN, 2010). Muitos desses filmes se comportam como álbuns de família, são uma sucessão de imagens em movimento que mais parecem fotografias animadas, as pessoas/grupo de pessoas literalmente posam para o cineasta-fotógrafo com o olhar direcionado à câmera. Ser mal feito, sem uma construção de discurso, com a menor manipulação possível das imagens, se adequa perfeitamente à necessidade de um filme que vai sendo construído no interím de sua projeção, sendo que para Odin, quanto mais editado, mais encenado e mais construído for, pode ocorrer algum tipo de conflito com a memória dos eventos vividos por essa família, “[...] montar um filme

132 de família é tomar para o si o poder sobre sua família e, daí, bloquear a possibilidade de uma construção coletiva consensual” (ODIN, 1995, p. 35)80.

Os filmes caseiros não pretendem, obviamente, oferecer um estudo sistemático da vida cotidiana, porque geralmente evitam os aspectos sombrios da vida familiar. No entanto, apesar de sua parcialidade, eles realmente conseguem mostrar a vida cotidiana de um modo que nenhum outro formato visual, seja ficção ou documentário, tenha conseguido (CUEVAS, 2014, p. 142)81.

Para que um cineasta saia do espaço de produção familiar e adentre um espaço de produção amadora é necessário que ele faça algum tipo de distinção entre esses dois tipos de espaços de produção nos filmes que realiza. Para Odin, o filme familiar é a categoria mais desvalorizada dentro do espaço amador e para que um cineasta familiar se torne verdadeiramente um cineasta amador é preciso empreender uma ruptura radical com o espaço familiar. No caso de Jarman essa ruptura já é naturalmente dada, pois o espaço que se propõe familiar nada mais é que um espaço de pessoas que se juntam em uma “comunidade” de amigos por se sentirem excluídas devido a orientação sexual. Com isso, as experimentações advindas desse processo de entendimento do espaço que o rodeia e das possibilidades artísticas desse novo instrumento de trabalho – a câmera Super 8 – faz com que Jarman opte, cada vez mais, por formas de captação de imagem bem distantes do cinema familiar e do cinema amador. Um cineasta familiar utiliza a câmera de modo descompromissado, como se fosse um brinquedo novo, sem saber para que servem todos os botões nela existentes. O cineasta amador conhece a câmera intimamente, sabendo para que servem cada uma das ferramentas que a câmera pode lhe proporcionar na melhor captação de imagens. Portanto, essa passagem se dá, conforme Odin preconiza, de uma passagem do saber filmar para conhecimentos técnicos mais específicos, com a utilização de outro tipo de material (passa do 8mm para o 16mm e assim

80 [...] monter un film de famille, c’est prendre le pouvoir sur la famille et donc bloquer de la sorte la possibilité d’une construction collective consensuelle. Tradução do autor. 81 Home movies do not intend, obviously, to offer a systematic study of everyday life, because they usually avoid the grim aspects of family life. Yet despite their partiality, they truly succeed in the showing the everyday life in a way no other visual format, either fiction or documentary, has managed. Tradução do autor.

133 por diante), com uma montagem que agrega significado às imagens captadas, fazendo filmes mais fluídos e flexíveis dentro de uma linguagem cinematográfica.

Além desses critérios técnicos e gramaticais, a estética "amadora" é caracterizada por um gosto pronunciado pela natureza idealizada, a natureza antes da industrialização. Uma bela paisagem, por exemplo, não deve mostrar postes ou fios elétricos, ou aqueles galpões cobertos com ferro ondulado que "desfiguram" cada vez mais nosso belo campo. Geralmente, o cineasta "amador" procura reconstruir o espaço cinematográfico em sua forma antiga [...] (ODIN, 1999, p. 61)82.

O cineasta amador também não vai se definir apenas como uma oposição ao cinema familiar, pelo contrário, sua vontade de rivalização é com o cinema profissional, com o qual ele quer se colocar em sistema de igualdade, sendo que ser reconhecido como o filme “de fulano” é o reconhecimento máximo nesse espaço, sendo essa uma grande diferença em relação ao filme familiar. No cinema amador existe uma expectativa de que seu nome seja conhecido e se torne publicidade do filme em si, reivindicando o lugar de um grande “autor”. Em relação ao espaço do cinema independente, Odin distingue três tendências que o dominam, chamando-as de correntes: - Corrente formalista – representada por um cinema experimental (abstrato) e por algumas produções de videoarte (essencialmente preocupadas com a trucagem e extremamente sofisticadas) e cujo cineastas querem se encaixar no campo da arte, sendo artistas em primeiro lugar; - Corrente dos filmes militantes ou cinema engajado – um cinema social e militante que fala da realidade do nosso tempo e que é dividido em duas tendências: os que vêem esses filmes como um meio de comunicação para propagar ideias e mensagens e aqueles que querem inovar a linguagem através da passagem de ideias;

82 En dehors de ces critères techniques et grammaticaux, l'esthétique "amateur" est caractérisée par un goût prononcé pour la nature idéalisée, la nature d'avant l'industrialisation. Un beau paysage, par exemple, ne doit pas laisser voir de poteaux ou de fils électriques, ni ces hangars recouverts de tôle ondulée qui "défigurent" de plus en plus notre belle campagne. Plus généralement, le cinéaste "amateur" cherche à reconstruire filmiquement l'espace dans sa forme ancienne [...]. Tradução do autor.

134

- Corrente pessoal – cinema e vídeo do eu, filme diário, autobiografia, autorretrato, um cinema em primeira pessoa. O ponto essencial dessas correntes consiste em uma dupla rejeição: rejeição ao cinema amador, que consiste em um termo pejorativo que significa sem competência, inexperiente, pobre de inspiração e rejeição ao cinema profissional como praticado pelos profissionais do meio. Esses cineastas estão dispostos a romper com a ordem pré-estabelecida, seja nos aspectos formais, morais, sociais, artísticos e/ou políticos. Jarman, como cineasta, passa por todo esse processo, inicia-se na prática audiovisual sem nenhum tipo de conhecimento prévio, filmando o entorno “familiar” com os amigos que o cercam, adquirindo um controle maior da ferramenta de trabalho – a câmera – e, com isso, ao dominar efeitos que ela pode lhe proporcionar, começa alterando cores, texturas e velocidade de gravação, assim como velocidade de exibição desses curtas em Super 8. O que antes era dado apenas em exibições privadas, para um pequeno grupo de amigos, acaba tornando-se público a partir do momento que Jarman se coloca nesse universo amador dos cineclubes e mostras de Super 8, exibindo ele mesmo as suas obras. Essa prática vai culminar com a primeira produção em longa-metragem, com o filme Sebastiane, com o qual Jarman rompe o universo do amador para se tornar um cineasta independente. As produções desse espaço implicam em grandes riscos para os seus realizadores. Podem ser eles: financeiros (investindo todas as suas economias em um projeto), psíquicos (podem sofrer agressão dependendendo de onde realiza essas filmagens ou o tema que querem abordar), judiciais (podem ser processados por utilizar nome de pessoas reais em algum documentário ou basear-se na vida de alguém, mesmo que não faça um filme biográfico), pessoais (pode ter a sua vida ou da família expostas) ou mesmo privados (filmar a morte de um familiar) (ODIN, 1999), “a conclusão é que o próprio espaço independente existe, dura, vive, porque talvez seja aí que as coisas mais importantes acontecem para filmes e vídeos (amadores ou profissionais)” (ODIN, 1999, p. 74)83.

83 Mais l'essentiel est que l'espace indépendant lui-même existe, perdure, vive, car c'est peut-être là que se passent les choses plus importantes pour le cinéma et la vidéo (amateurs ou professionnels, peu importe). Tradução do autor.

135

Para Laurence Alllard, essa corrente pessoal indicada por Odin, se dá entre a junção do filme de família com o filme experimental, surgindo uma espécie de cinema pessoal. Para Allard o filme familiar mostra eventos relacionados à vida doméstica daquelas pessoas/família, enquanto o cinema pessoal demonstra a intimidade do próprio diretor, indo além das práticas recreativas e festivas dos filmes de família. São filmes que, a partir dessas práticas familiares, são uma fonte de inspiração para os artistas de vanguarda se apropriarem de várias características desse espaço familiar e amador, levando-as a um cinema experimental, rejeitando o modo de representação advindo do cinema comercial, principalmente o hollywoodiano. Esses cineastas amadores que se proclamam independentes pretendem escapar do gueto do filme de família para afirmarem as suas pretensões artísticas (ALLARD, 1995). Odin, quase na conclusão de seu texto “La question de l’amateur dans trois espaces de réalisation et de difusion”, nos demonstra que há um transbordamento entre esses espaços que ele tão bem definiu. O espaço familiar está contaminado pelo cinema independente enquanto essa relação também se dá pelo cinema independente atual que está diretamente ancorado no cinema de família e/ou familiar. As produções familiares têm se tornado cada vez mais próximas às produções de corrente pessoal do espaço independente como, por exemplo: um cineasta que desenha seu rosto em primeiro plano por um segundo a cada dia, desde os dezoito anos e promete continuar até a morte; uma menina de dezesseis anos conta suas impressões para a câmera após cada relação sexual; um pai filma a longa agonia de seus dois filhos com Aids após a terem contraído em uma transfusão de sangue (ODIN, 1999, p. 77), etc. Essas produções são contrárias a um filme de família, elas mostram assuntos íntimos e privados que os filmes de família evitam para não causar conflitos familiares. Enquanto isso, as produções do espaço independente estão cada vez mais se tornando produções de um espaço familiar, pois levam a família e o familiar, como um espaço de experimentação.

136

Dentro desse espaço de experimentação Jarman teve uma forte influência do cinema underground norte-americano mais do que da cena experimental e estruturalista que se formava na Grã-Bretanha dos anos de 1960.

No mundo do cinema, havia um grande interesse em cinema underground americano que inspirou artistas jovens radicais como David Curtis. Para Jarman, os diretores americanos Maya Deren e Kenneth Anger foram especialmente influentes - quando viu filmes gays dos anos 40 em Camberwell Art School, "esperávamos uma batida policial" (O’PRAY, 1996, p.48)84.

Ainda que não fosse um membro do London Film-Maker’s Co-op, Jarman certamente estava em contato com o surgimento de um cinema experimental britânico desde os anos de 1960, de cineastas como Malcolm Le Grice, Peter Gidal e David Larcher e com as produções sem orçamento realizadas dentro de um contexto mais artístico. Mas as influências de Jarman não estavam ao seu redor, dentro do que era produzido em solo inglês, e sim em um Novo Cinema Americano (também denominado de Cinema Underground) de artistas como Maya Deren, Jonas Mekas e, principalmente, Kenneth Anger e Andy Warhol. Esse Cinema Underground ou Novo Cinema Americano emergiu no final dos anos de 1950 e começo dos anos de 1960, “motivado basicamente pela frustração com a falta de oportunidades e com um sistema de produção que preconizava uniformidade de conteúdo e estilo” (SUPPIA, PIEDADE, FERRARAZ, 2008, p. 237). A difusão de aparelhos tecnológicos mais simples e práticos (8mm, 16mm, Super 8, etc.) facilitavam ainda mais essas experimentações e ruptura com o cinema que até então estava sendo feito. Eram fortemente influenciados pelas pesquisas formais e narrativas dos cineastas avant-garde dos anos de 1920/1930 e com as novas propostas idealizadas pela política dos autores da nouvelle vague francesa.

84 In the world of film, it was an interest in American underground cinema that inspired young art radicals such as David Curtis. For Jarman, American film-makers Maya Deren and Kenneth Anger were especially influential – when he saw the latter’s gay films from the 40’s at Camberwell Art School, ‘we expected a police raid’. Tradução do autor.

137

Seguindo o exemplo da geração beatnik, os filmes underground, na sua maioria, eram sobre estilos alternativos de vida, drogas, comportamentos sexuais “excêntricos”, como, por exemplo, as obras de Jack Smith, Ron Rice, Andy Warhol e Kenneth Anger (sendo esses dois últimos uma grande influência para Jarman).

Cinema underground foi o espaço em que o cinema gay poderia surgir, naquele momento ... Filme gay poderia ser feito naquele espaço, em parte devido a sobreposições da avant-garde e dos ambientes gays e da importância do imaginário homossexual que se formou no underground (Freud, o romance de alienação, arte camp e da arte pop), mas acima de tudo por causa da definição de cinema underground como um cinema “pessoal” (DYER, 1990, p. 172)85.

É esse sentido de cinema pessoal que Derek Jarman desejava explorar. Seus curtas inicias em Super 8 podem ser divididos em imagens imediatas que documentavam seu cotidiano e as coisas que estavam ao seu redor ou tentativas imaginadas de experimentações formais. Uma forma não exclui a outra, Jarman realizava experimentações autobiográficas, com situações improvisadas e fluídas, espontâneas e as sensações de descobertas que isso implicava (O’PRAY, 1996, pág. 78), investindo numa relação orgânica entre o viver, o filmar e o pintar. Sua vida passa a ser o leitmotiv de suas produções em Super 8, fato esse que nunca o abandonaria, mesmo em uma carreira profissional, na produção de longas- metragens. Jarman, em sua filmografia, possui um único personagem que quer escrutinar até a exaustão: ele mesmo.

2.2.1. Filme-diário Um dos mais proeminentes diretores da prática do filme-diário foi o lituano Jonas Mekas que imigrou para os Estados Unidos em 1949, construindo ali sua carreira fílmica dentro do que, posteriormente, seria chamado de um Novo Cinema Americano, legitimando essa prática audiovisual em obras como Walden: diários, notas, esboços (1969) - em uma das primeiras falas do filme Mekas é categórico

85 Underground film was the space in which gay cinema could emerge, at the time...Gay film could be made in that space, partly because of the overlaps of avant-garde and gay milieux and the importance of homosexual imagery in what informed the underground (Freudianismm the novel of alienation, camp and pop art) but above all because of underground cinema’s definition of cinema as ‘personal’. Tradução do autor.

138 ao afirmar que: “Faço home movies – logo vivo. Vivo – logo faço home movies”-, Reminiscências de uma viagem para a Lituânia (1972) e Lost, Lost, Lost (1976). Mekas examinava exaustivamente sua condição de imigrante, reconfigurando a prática do diário escrito, transformando-o numa constante captação de imagens do seu entorno.

No começo pensei que houvesse uma diferença básica entre o diário escrito que alguém escreve à noite, e que é um processo reflexivo, e o diário filmado. Em meu diário em filme, pensei, eu estava fazendo algo diferente: estava capturando a vida, pedaços dela, enquanto ela passa. Mas percebi bem cedo que não era tão diferente, afinal. Quando filmo, também estou refletindo. Eu pensava que só estivesse reagindo à realidade. Não tenho muito controle sobre ela e tudo é determinado pela minha memória, meu passado. De forma que esse filmar “direto” também se torna um modo de reflexão. Da mesma maneira, vim a perceber que escrever um diário não é meramente refletir, olhar para trás. Seu dia, quando volta para você no momento da escrita, é mensurado, escolhido, aceito, recusado e reavaliado pelo que e como se está no momento em que se escreve. Tudo está acontecendo de novo, e o escrito é mais fiel ao que se é quando se escreve do que aos eventos e emoções do dia que se foram. Portanto, não vejo mais diferenças tão grandes entre um diário escrito e um diário filmado no que se diz respeito ao processo (MEKAS, 2013, p. 133).

David E. James analisa a obra de Mekas relacionando-a a duas práticas que ele descreve de acordo com o processo de captação de imagens: o diário em filme e o filme-diário. Filmar sons e imagens, diariamente, através dos anos, de forma bruta, sem nenhum tipo de intervenção, caracteriza um diário em filme, existindo nesse aparato uma recusa radical tanto no seu uso industrial quanto vanguardista (JAMES, 2013, p. 168). Quando se decide agrupar essas imagens, ordenando-as através da montagem, transformando-as em um filme, temos um filme-diário. “O filme-diário devolveu tal prática privada a um contexto público e à produção de um produto, uma obra de arte esteticamente autônoma” (JAMES, 2013, p. 168). O que antes fora feito para um uso privado, acaba se tornando público, ressignificando essas imagens para espectadores que outrora não tenham participado ou eram próximos ao realizador do filme.

139

Fazer um diário em filme (registrado pela câmera) é reagir (com a câmera) imediatamente, agora, neste instante: ou fazemos o registro agora, ou não fazemos nunca mais. Voltar e fazer a filmagem posteriormente exigiria uma reencenação, seja dos acontecimentos ou dos sentimentos (JAMES, 2013, p. 177).

A prática do diário em filme é transformada através da montagem que substitui a filmagem, os fragmentos que substituem a textura visual “da vida cotidiana como objeto privilegiado do olhar” (JAMES, 2013), a inscrição da subjetividade como forma, implicando na criação de um espectador para o que vem a ser um filme-diário.

[...] para Mekas, o passado é preservado em fragmentos de filme que não podem ser modificados internamente nem tornados contínuos pela revisão presente dos mesmos. Se o diário em filme vivia no presente da percepção imediata, em seu presente o filme- diário confronta as ruínas de um tempo agora irrecuperavelmente perdido (JAMES, 2013, p. 189).

O diário em filme registra aquilo que é presente enquanto o filme-diário confronta o passado que é retratado nele. Portanto os filmes-diário são a respeito daquilo que está ausente, daquilo que foi perdido e do qual sobraram apenas lembranças e/ou ruínas. Os fragmentos que vemos em Jarman, principalmente nos curtas Studio Bankside e Sloane Square são as ruínas de um tempo idílico que não volta mais. A construção dos afetos dessas imagens se perde naquilo que lhe falta: a família. O pertencimento criado por Jarman, ao captar essas imagens, constrói uma reconfiguração do que seria um “lar” e um “ambiente familiar”, em uma comunidade de pessoas em busca de uma aceitação que, até então, só seria possível entre os seus iguais. Uma das primeiras produções de Jarman com o Super 8, que nesse momento vinha como um substituto aos pincéis e tintas utilizados em suas pinturas, foi Studio Bankside (1972, colorido/pb, 6’47 – curta que também pode ser encontrado na abertura do filme Glitterbug, obra póstuma de Jarman) (Figura 62), uma seleção de fotografias e imagens em movimento com o qual Jarman mostrava de forma idílica e poética o lugar/ateliê onde vivia e por onde seus

140 amigos mais íntimos passavam. O Super 8 servia a Jarman como uma nova forma de experimentação, pois a pintura não mais estava satisfazendo as suas inquietações. Com um olhar rico para os detalhes, Bankside inicia uma série de home movies com os quais Jarman mostrava seus amigos, seu cotidiano de artista em uma Londres recém-saída da agitação contracultural dos anos 60 e do burburinho estético-social da “swinging London”. Bankside é um distrito de Londres, localizado ao sul do Rio Tâmisa, onde Jarman passou boa parte dos anos de 1970, recebendo os amigos, um grupo de artistas que faziam parte dessa “comunidade”. Esse primeiro filme é composto de imagens estáticas/fotográficas com imagens em movimento, filmadas dentro e fora desse apartamento. As imagens internas mostram o dia-a-dia de Jarman (tomando café da manhã, dormindo na rede, etc) e as externas mostram os arredores do apartamento de Bankside, principalmente a vida em torno do Rio Tâmisa. Desde o início, nada era convencional na vida de Jarman: nesse estúdio em Bankside existia um banheiro sem divisórias e Jarman dormia em uma rede no meio da sala. Jarman transformou sua intimidade num ato político de resistência, principalmente ao documentar esse lugar no qual as pessoas ao seu redor, inclusive ele, poderiam ser quem realmente eram. São imagens de puro afeto na qual percebemos que Jarman almejava uma reconfiguração do que poderia ser uma família, sendo que tanto Bankside quanto, posteriormente, Sloane Square, se tornam o que ele chamaria de lar, um lugar de proteção contra um período de políticas públicas tacanhas impostas pelo conservadorismo da “Era Thatcher”. O curta foi filmado em dois períodos distintos: um no início dos anos de 1970 (os três minutos iniciais) e, posteriormente, em 1972 (os três próximos minutos), poucos dias antes da demolição que ocorreu na região. Há uma proliferação dos detalhes daquele ambiente, Jarman possuia inegavelmente um olhar de um pintor, atento a tudo que estava em seu entorno, captando o ordinário e dando-lhe uma conotação de importância dentro da configuração daquele espaço. São pequenas “naturezas mortas”, como vasos de flores, livros, velas acessas, um óculos ao lado de uma embalagem de gel lubrificante, etc.

141

Intercalando com essas imagens em preto e branco e coloridas de Bankside temos em repetidos planos os detalhes de um filamento de uma lâmpada, que muito se assemelha a algo pegando fogo, uma espécie de “hieróglifo” incandescente. Esse “filamento flamejante” é colocado, de forma rápida, várias vezes, contrastando com a aparente calmaria das demais imagens. As cores vivas dessa imagem (preto, vermelho e amarelo) e as imagens em tons azulados do exterior de Bankside e do Tâmisa já iniciam uma relação que muito se encontra presente nas obras posteriores de Jarman: fogo e água, que são constantemente introduzidas de forma imagética em suas obras. Para Frey, “as imagens privadas dos filmes caseiros sugerem uma sensação de lembrar o que é agora no passado, mesmo quando a criação dos motivos e seus contextos são desconhecidos para o espectador” (FREY, 2016, p. 121)86. Essa relação do cinema com o tempo, já dita por Bazin na capacidade de embalsamento do tempo, ganha uma reflexão pertinente nas palavras de Jarman: “A única coisa real que eu gosto nos meus filmes é que é possível ver meus amigos mortos e moribundos em todos os cantos e recantos, e eu gosto disso. É maravilhoso” (FREY, 2016, p. 120)87. José Luís Guerin, em uma entrevista dada a Antonio Weinrichter confirma essa estranheza do embalsamento do tempo nas imagens familiares:

El cine de la industria trabaja para ocultar esa idea: le resulta revulsiva la idea de lo efímero. Sin embargo en las viejas escenas de una película familiar, íntima, por torpe que sea, la idea de que son personas desaparecidas está muy presente. Nace espontáneamente esa idea que son personas que no están y que los muertos en cine se mueven con la misma naturalidad que los vivos, en una suerte de indiferencia extrañísima (WEINRICHTER, 2009, p. 98).

Para Jarman, os home movies falam muito mais sobre a época e as pessoas que estão “congeladas” em suas imagens do que qualquer filme feito em estúdio e indaga - “Como as vítimas se prepararam para sua breve imortalidade? Quem

86 The images of private home movies suggest a sense of remembering what is now in the past, even when the motifs’ creation and their contexts are unknown to the viewer. Tradução do autor. 87 The only real thing I like about my films is that it is possible to see my dead and dying friends in all the nooks and crannies, and I like that. It’s wonderful. Tradução do autor.

142 sorri quando eles são informados? De quem é escovado o cabelo?”88 - e acrescenta que todos os seus filmes são uma continuidade desses filmes caseiros (JARMAN, 1996, p. 54). Alexandre Figueirôa salienta as questões afetivas que impregnam essas imagens íntimas e privadas que, num primeiro momento, não serviriam a uma exibição pública.

Filmes domésticos, assim como fotografias, em geral são imagens congeladas e mortas (lembrando Barthes) de um momento que não existe mais a não ser pelas impressões gravadas em algum dispositivo. Do ponto de vista estético elas carecem de elaboração e sofisticação. Em geral são tomadas espontâneas que não seguem um rigor formal a não ser o desejo de quem filma em apontar o seu olhar/lente da câmera para o objeto/objetos do seu desejo (FIGUEIRÔA, 2016, p. 89).

Sloane Square é o próximo endereço onde Jarman vai residir. O apartamento havia sido alugado por Anthony Harwood e Jarman foi convidado a morar com ele, em um local repleto de dívidas. Com a morte de Harwood, Jarman é despejado desse lugar e como despedida organiza uma festa que é retratada na segunda parte do curta Sloane Square: a room of one’s own (1974-1976, pb, 8’19, co-dirigido com Guy Ford) (Figura 63). Já no título, Jarman brinca com a ironia de estar sendo expulso de um lugar que seria “um teto todo seu” (a room of one’s one), sendo que esse sarcasmo continua na pichação feita pela casa, praticamente vandalizando o apartamento antes de deixá-lo. Sloane possui imagens dos anos vividos nesse lugar, juntamente com imagens dessa festa de despedida. Jarman utiliza aqui o contraste entre o single frame e o slow down. Divido em três partes, Sloane mostra imagens criadas no início de 1975, um ano antes dele se mudar, na primeira parte; a segunda é colorida e feita em 1976, logo após a morte de Harwood; e a terceira, também colorida, é feita em ritmo acelerado mostrando as pichações e a festa. Nessa utilização de imagens aceleradas (um quase time-lapse), as pessoas somem e aparecem de forma instantânea, fazendo o percurso de horas ou dias

88 How have the victims prepared themselves for their brief immortality? Who smiles when they are told? Whose hair is brushed? Tradução do autor.

143 nas imagens. Esse frenesi da agitada vida que emanava dessa moradia de Jarman retorna como efeito de passagem de tempo no decorrer da festa, o que ressalta o quão fugidio era esse tempo de alegria e as pessoas que estavam ali, principalmente ao lembrarmos que a Aids causou um efeito de “desaparecimento” brutal nessas relações de amizade, tanto nas de Jarman, quanto nas de várias outras pessoas, em um período de descoberta do vírus. Mas ainda são filmes que pouco concretizam de forma veemente o universo homossexual no qual Jarman estava inserido. Assim como em Kenneth Anger e Andy Warhol, as questões sexuais nesses curtas eram atenuadas, de forma a serem entendidas ou captadas nas entrelinhas, o que seria completamente diferente em seus longas-metragens, desde a estréia com Sebastiane.

Curiosamente, os primeiros super-8s de Jarman, assim como os trabalhos de Anger e Warhol, não exploravam a experiência pessoal de ser gay. [...] Os grandes excessos de Anger são peneirados através de ritual e artifício enquanto os filmes de Warhol são representações muitas vezes sombrias de "personalidades" exageradas penduradas na Factory. Os mais ambiciosos super-8s de Jarman dos anos 70 compartilham dessas características. Em ambos, Anger e Warhol, como no underground, em geral, há um forte sentido dos "filmes caseiros", da produção pessoal de imagens e ideias (O’PRAY, 1996, p. 62)89.

Mas, ainda assim, Jarman documenta o universo dessas festas entre amigos, em um curta que antecipa muito das questões de um cinema queer ao qual sua obra seria exaustivamente associada. Em Miss World (1973, pb, 28’6) e em sua versão final, menor que a anterior e filmada através de um filtro pink, Miss World Pink Version Final (1974, colorido, 5’43) temos um concurso de Miss Mundo, o Alternative Miss World, realizado pelo amigo Andrew Logan (Figura 64). A festa foi criada no ano de 1972, mas não seria uma festa sobre a beleza, mas

89 Interestingly, Jarman’s early super-8s, like the work of Anger and Warhol, do not explore the personal experience of being gay. […] Anger’s high camp theatricals are sieved through ritual and artifice while Warhol’s films are often bleak depictions of the camp ‘personalities’ who hung out at the Factory. Jarman’s own most ambitious super-8s of the 70s share these characteristics. In both Anger and Warhol, as in the underground in general, there is a strong sense of the ‘home movies’, the personal production of images and ideas. Tradução do autor.

144 sobre transformação. Homens e mulheres poderiam ser julgados em pé de igualdade, demonstrando as várias facetas que existem na sexualidade. O primeiro evento aconteceu no apartamento de Logan, sendo que a festa se expandiu para diversos outros lugares, existindo até a atualidade (a próxima festa está marcada para outubro de 2018). Jack Hazan filmou uma sequência de cenas dessa festa e a utilizou em seu filme A Bigger Splash (1973) (Figura 65), sobre David Hockney, que foi um dos jurados do concurso juntamente com Jarman, que se tornou a Alternative Miss World de 1975 com a sua personagem Miss Crêpe Suzette (Figura 66). Infelizmente não foi possível localizar esse curta, assim como vários outros que permanecem inéditos ou perdidos ou sendo restaurados pela Luma Foundation e pelo produtor James Mackay, detentor dos direitos autorais da obra cinematográfica de Jarman. Mas, ainda que não tenha tido acesso a esse curta, podemos “vê-lo” através de várias fotos desses concursos, assim como Jarman em sua persona Crêpe Suzette (guardando uma leve influencia da Rrose Selavy de Duchamp), tudo isso reunido em um site (http://www.alternativemissworld.co.uk/) que explora essa “competição” alternativa ao famoso concurso de beleza. No site, podemos encontrar todas as festas e os temas de cada ano (1972 – Party, 1973 – Andrew Logan’s Miss World, 1975 – Wild, 1978 – Circus, 1981 – Royal Imperial, 1985 – Water, 1986 – Earth, 1991 – Air, 1995 – Fire, 1998 – Void, 2004 – Universe, 2009 – Elements, 2014 – Neon Numbers, 2018 – Psychedelic Peace), assim como o nome dos participantes, vencedores, jurados e fotos da festa. São nesses pequenos espaços afetivos e de resistência que encontramos a produção desses filmes-diários. Vemos nessas imagens pequenos fragmentos do cotidiano de Jarman, suas brincadeiras com os amigos, a intimidade de um universo que funcionava de forma idílica frente a uma sociedade repressora na qual, pessoas, lugares e eventos, faziam parte desse universo familiar ao qual Jarman havia escolhido pra si, como também pode ser visto nos curtas Picnic at

145

Rae’s aka90 Lunch at Rae’s (1974, colorido, 9’15), Here We Are aka He We Are at Sloane Square dec 74 (1974, colorido, 3’46), Ulla’s Fete (1976, pb, 8’54), etc. Podemos ver e/ou refletir nessa produção de home movies, como um grande filme-diário, como uma coleção de imagens independentes, filmadas de forma livre, sem obedecer a nenhum critério pré-estabelecido. O espontâneo era o grande propulsor desses experimentos com os quais Jarman organizava essa grande celebração das amizades e do seu viver. Celebração de um tempo fugidio, de um presente que sempre passa e se torna passado ao mesmo tempo em que ainda é presente. Essa filiação ao filme-diário de Jarman se dá de forma muito próxima a Jonas Mekas que, em uma conferência de 1972, intitulada The diary film, pronunciou: “Claro, o que eu enfrentava era o velho problema de todos os artistas: fundir a Realidade e o Eu, e produzir uma terceira coisa (third thing)” (SITNEY apud WEINRICHTER, 2015, p. 79) Ao contrário de Mekas, ainda operando de forma improvisada, as obras de Jarman mantêm uma atitude mais formalista e mais controlada, principalmente perante a obras tão “privadas e vacilantes”, como se Mekas estivesse pensando tudo o que diz no decorrer da filmagem. “Um diário não é, necessariamente, um ensaio, tampouco uma autobiografia, mas Mekas os escreve de uma forma eminentemente ensaística, com sua tendência à digressão, à dispersão, à incerteza e à fragmentação” (WEINRICHTER, 2015, p. 79) Nesse lugar de afetos vividos e partilhados, Jarman propõe uma continuidade aos filmes familiares feitos por seu avô e seu pai.

Os lugares, pessoas e eventos filmados carregam em si uma carinhosa relação vivenciada pelo cineasta. O loft que o abrigou por um tempo não é um simples espaço de moradia, o apartamento que se tornou seu estúdio não é apenas um lugar de trabalho. O mesmo é válido para as ruas tortuosas de Londres com prédios antigos abandonados ou a paisagem de Avebury e as locações do filme Sebastiane. Todos os espaços são locais de encontro, de

90 Aka ou a.k.a. é a abreviação para “Also Known As”, uma expressão em inglês que significa “também conhecido como”, é usado para dar um significado ou nome mais conhecido a uma palavra ou pessoa.

146

experiências afetivas e de liberdade criativa. Espaços simbólicos e oficinas da imaginação (FIGUERÔA, 2016, p. 89).

Essa constância em transformar os ambientes nos quais vivia em material e locações de seus filmes vai continuar até a sua morte. Prospect Cottage (Figura 67), sua última morada, uma casa de pescadores na praia de Dungeness, servirá de locação para The Garden (1990), filmado em seu jardim e nas imediações dessa residência, sendo que esse jardim também se torna tema de algumas pinturas e esculturas.

2.2.2. Retratos Outra constante nessa produção em Super 8 de Jarman, são os retratos que ele fez de seus amigos, amantes e/ou personalidades, como Andrew Logan, Gerald Incandela, Duggie Fields, William Burroughs, etc. Um dos gêneros mais conhecidos da história da arte (e posteriormente da fotografia), o retrato nunca saiu de moda, principalmente com o advento das novas tecnologias que permitem a facilidade de podermos fotografar ou filmar outras pessoas ou a nós mesmos a qualquer momento. Jarman, em meio aos home movies descontraídos que fazia com os amigos, em determinado momento começou a filmá-los de forma isolada (ainda que continuasse utilizando-os em seus curtas/longas-metragens), aqui a maneira de captação dessas imagens era centrada na figura dessas pessoas e a relação que elas tinham com o seu entorno e, algumas vezes, com o próprio Jarman. Para exemplificar essa relação empreendida pela câmera de Jarman com os seus retratados, utilizarei aqui dois exemplos: um curta sobre uma amiga, icône do movimento punk dos anos de 1970, Jordan’s Dance (1977, colorido, 16’29) (Figura 68) que posteriormente será inserido no longa-metragem Jubilee (1978) e um outro de uma celebridade da qual Jarman era um enorme devoto, o escritor beatnik William S. Burroughs, em Pirate Tape (1982, colorido, 9’58) (Figura 69). Após os escândalos suscitados em Sebastiane, Jarman voltou aos sets de filmagens com outra obra polêmica: Jubilee, fortemente influenciado pela cultura do movimento punk, que perdurava até então na Inglaterra. Nesse universo do

147 faça-você-mesmo (do-it-yourself), estética que ecoa desde as primeiras experiências em Super 8 de Jarman, ele encontrou seu lugar, “sentindo-se em casa” nessa geração.

Punk transformou uma cena musical inglesa apolítica e decadente em uma enraigada experiência contemporânea associada ao alto desemprego e inflação e ao colapso do liberalismo e da afluência dos anos 60. As letras estavam no vernáculo da classe trabalhadora inglesa, não nos pseudo-americanismos de muita música pop britânica. Havia também um ecletismo de estilos que apelava enormemente à Jarman, bem como o fato de que as roupas e os estilos eram representados de uma maneira que não era nem naturalista nem dependente de associações convencionais. Tanto em Jubilee quanto em The Tempest, Jarman usou este ecletismo com grande vantagem. Consideravelmente, através do punk, ele encontrou um dispositivo pelo qual o presente, o passado e o futuro poderiam ser misturados (O’PRAY, 1996, p. 94)91.

Jubilee é sobre a Inglaterra em declínio. Em um passado distante, a Rainha Elizabeth I pede a seu astrólogo que evoque um anjo que possa lhe mostrar os desdobramentos de seu reinado, transportando-a à Inglaterra do futuro. Numa Inglaterra sem lei, corrompida entre a desordem e o caos, a Rainha observa uma gangue dominada por mulheres, na qual a violência e a sexualidade são absolvidas de qualquer contexto moral ou ético, “[…] uma cultura punk de recusa da ordem social por meio da representação (não exaltação) da violência” (CALABRESE, 1987, p. 75). Em Jubilee, Jarman utiliza o curta-metragem Jordan’s Dance, feito em 1977, em Super 8, com a amiga Jordan, que também será uma das protagonistas desse filme. Jarman conheceu Jordan Mooney (nascida Pamela Rooke) por volta de 1974/1975 e ficou impressionado com o modo com que ela se vestia e se maquiava. Jordan era o símbolo de uma época de rebeldia e rejeição a tudo o que

91 Punk transformed a decadent apolitical music scene into one rooted in the contemporary English experience of high unemployment and inflation and the collapse of 60s liberalism and affluence. The lyrics were in the English working-class vernacular, not the pseudo-Americanisms of much British pop music. There was also an eclecticism of styles which appealed to Jarman enormously, as well as the fact that costume and style were represented in a way that was neither naturalistic nor reliant on conventional associations. In both Jubilee and The Tempest Jarman used this eclecticism to great advantage. Importantly, through punk he found a device by which the present, past and future could be mingled. Tradução do autor.

148 representava o status quo, ela que se descrevia como “uma obra de arte viva”92, buscando se expresser o mais livremente e artisticamente possível.

“Eu vi Jordan pela primeira vez fora da Victorian Stattion em 1974 ou 1975”, ele me disse. “Ela era apenas uma imagem muito surpreendente, mais do que qualquer coisa que eu já vi. Ela estava usando saltos altos brancos e uma minissaia muito curta com um plástico, quase à frente, uma camiseta e um penteado de ‘colméia’. Muito loira. Eu acho que era maquiagem egípcia na época, e ela parecia deslumbrante” (SAVAGE, 2010, p. 21)93.

No Super 8 filmado por Jarman, Jordan veste um collant branco e um tutu também branco. Com essa aparência de bailarina, Jordan ensaia alguns passos (ás vezes um pouco desordenados, que lembram O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky) ao redor de uma fogueira. Ao lado dela um homem de cabelo comprido, vestindo uma blusa preta, joga livros para serem queimados nessa fogueira, em uma clara alusão à Inquisição e ao nazismo e à queima de livros feita nesses períodos. Percebe-se que Jordan não é uma bailarina profissional, por mais que seus gestos tentem emular uma bailarina, ela mais parece estar em um transe, uma dança ritualística do que propriamente fazendo uma coreografia específica de algum ballet. O homem continua jogando livros na fogueira e dentro dela podemos ver uma imagem-símbolo (talvez a Bandeira ou um escudo) do Império Britânico (a Union Jack) sendo queimada. Ao fundo, atrás da fogueira, aparece uma outra figura, dessa vez enigmática, com um capuz branco, também usando roupas pretas. A esquerda da fogueira vemos duas pessoas sentadas usando máscaras: um homem nu, com uma máscara no rosto da escultura do David de Michelangelo e, ao seu lado, uma pessoa (não dá para identificar o gênero) com uma máscara de uma caveira, com camiseta branca e uma blusa preta por cima.

92 Uma das raras entrevistas de Jordan, cedida a Katie Baron, que pode ser encontrada no site: http://www.dazeddigital.com/fashion/article/32470/1/a-rare-interview-with-jordan-punk-s-enigmatic-frontwoman 93 ‘I first saw Jordan outside Victorian Station in ’74 or ‘75’, he told me. ‘She was just a very startling image, more than anything I’d ever seen. She was wearing white patent high heels and a very short miniskirt with a plastic, almost see-through front, and a t-shirt, and a bee-hivish hairstyle. Very blonde. I think it was Egyptian makeup at the time, and she looked stunning’. Tradução do autor.

149

Jordan dança ininterruptamente em torno dessas figuras que, em alguns momentos, apenas a contempla. O ambiente é desolado, abandonado, sem ques e consiga identificar quaquer presença de outras figuras humanas. No final do curta, o homem de cabelo comprido, de costas para tela, começa a cortar o cabelo com uma tesoura. Para Michael Charlesworth, esse curta é a representação de um sacrifício apresentado para os dois mascarados, a Arte e a Morte, “talvez o sacrifício seja realizado para eles, comemorado pela dança de Jordan” (CHARLESWORTH, 2011, p. 61)94 e continua acrescentando que a fogueira representa a purificação, enquanto o homem com o capuz na cabeça seria o conhecimento esotérico. Steven Dillon prefere analisar essa sequência dentro de uma discussão mais voltada ao universo da arte, principalmente através das duas figuras mascaradas e a performance dada tanto por Jordan quanto pelo homem que corta o cabelo. Dillon se pergunta se as piruetas e a performance de Jordan ao redor da fogueira com uma música “romântica” não seriam uma representação do fim do classicismo, como se essa fosse a ultima dança na Terra, em um futuro apocalíptico (DILLON, 2004, p. 80). Mas no fundo ele está mais interessado em discutir a relação de Jarman com a escultura e com a arte performática.

Talvez haja dois tipos de arte. Talvez possamos sentir um contraste entre a passividade e a quietude da arte clássica, escultura e morte, e uma arte de movimento e vida. Ou, podemos dizer, um contraste entre arte monumental e arte performática. Uma vez que uma das figuras que assistem "Jordan's Dance" é o David de Michelangelo, devemos aproveitar esta oportunidade para refletir por mais um momento na escultura em Jarman. A escultura contemporânea está, de fato, intimamente ligada às idéias sobre arte performática, uma vez que, cada vez mais, a escultura executa – se recusa a ser instalada silenciosamente nas galerias, recusa a monumentalidade (CHARLESWORTH, 2011, p. 81)95.

94 Perhaps the sacrifice is being performed for them, celebrated by Jordan’s dance. Tradução do autor. 95 Perhaps there are two kinds of art. Perhaps we are to sense a contrast between the passivity and stillness of classical art, sculpture, and death, and an art of movement and life. Or, we might say, a contrast between monumental art e performance art. Since one of the figures watching “Jordan’s Dance” is Michelangelo’s David, we should take this opportunity to meditate for a further moment on sculpture in Jarman. Contemporary sculpture is, in fact, intimately linked to ideas about performance art, since, more and more, sculpture performs – refuses to be installed quietly in galleries, refuses monumentality. Tradução do autor.

150

Enquanto o David de Michelangelo, ao lado da “morte”, representa essa escultura estática que não mais se conecta a uma escultura moderna, Jordan, por sua vez, é a “nova escultura”, que recusa o estado estático, ocupando o espaço, que não é mais monumental, através de uma performance na qual o corpo e a gestualidade incorporam esse diálogo do performativo com a monumentalidade, seja através do tamanho físico ou da ocupação do espaço que perfaz. Em 1981, Jarman retorna a essa figura tão peculiar para filmá-la em seu casamento, em Jordan’s Wedding, mais próximo dos filmes de família que documentavam festas e viagens do que propriamente de um retrato do que anteriormente teria sido um grande icône do cenário do punk-rock britânico dos anos de 1970. Pirate Tape é uma obra mais experimental nessa relação com o seu retratado, em alguns momentos se tornando quase um filme com imagens abstratas. Em setembro de 1982, o escritor beatnik norte-americano William S. Burroughs vai a Londres para um evento organizado pela B2 Gallery. Jarman filma a ida de Burroughs de táxi do aeroporto até a galeria de arte onde aconteceria esse evento, ficando do lado de fora à sua espera. Para Frey há uma grande diferença nesse “retrato” de Burroughs em relação aos amigos retratados em outros curtas.

Por um lado, ao contrário de (Andrew) Logan ou (Duggie) Fields, Burroughs não fazia parte do círculo mais próximo de amigos de Jarman e, em vez disso, era admirado por ele por causa desses trabalhos literários. Por outro lado, Pirate Tape é mais uma vez filmada com a estética característica de Jarman, caracterizada por imagens que se fundem lenta e gradualmente entre si (FREY, 2016, p. 150)96.

Pirate Tape inicia com um táxi chegando e Burroughs descendo dele. Junto com a trilha sonora de Genesis P-Orridge (Psychic TV) ouvimos uma narração em looping com as palavras “Boys, school-showers and swimming-pools full of then”97. Burroughs desce do carro, acena para a câmera e segue até a entrada da galeria.

96 On the one hand, unlike (Andrew) Logan or (Duggie) Fields, Burroughs was not a part of Jarman’s closer circle of friends and was instead admired by Jarman because of this literary works. On the other hand, Pirate Tape is once again shot with Jarman’s characteristic home-movie aesthetic, featuring images that slowly and gradually merge into one another. Tradução do autor. 97 Garotos, chuveiros da escola e piscinas cheias deles. Tradução do autor.

151

Jarman permanece do lado de fora com planos bem aproximados de alguns rapazes na rua e parados em frente à galeria, toda envidraçada. Algumas imagens se tornam extremamente próximas, até que não possamos distinguir mais o que está posto em cena. Conseguimos ver alguns fragmentos de Burroughs através da vidraça, dentro da galeria, em relances quase apagados pela movimentação da câmera. Rua e interior se misturam, se tornando quase a mesma coisa. É um “retratista” que segue o seu retratado, que o observa à espreita, nos dando pequenos momentos da captação dessa pessoa. Na rua, a atenção de Jarman se volta para alguns transeuntes do sexo masculino, que são integrados à cena e desintegrados pela textura e cores às quais Jarman submete essas imagens. Quando Burroughs sai da galeria, conseguimos ter um vislumbre maior dessa persona, que parece meio perdida enquanto autografa um livro de algum de seus fãs. Vemos uma movimentação mais realista do escritor, que termina o autógrafo e segue até a rua para atravessá-la, enquanto Jarman cola a câmera no rosto de Burroughs, que parece um pouco incomodado com essa situação de ser filmado.

Esta maneira muito pessoal de compreender melhor Burroughs e a aura misteriosa e enigmática que ele havia construído e mantido habilmente ao longo dos anos também se encontra em uma forma matizada nos outros filmes de retrato de Jarman: nunca são concretamente biográficos e factuais, mas sim, sempre difusamente fragmentados e pessoais (FREY, 2016, p. 151)98.

Mesmo quando mostra seus retratados de maneira mais realista, ainda assim Jarman procura uma nuance para caracterizá-los em relação aquilo que esteja filmando, seu olhar em relação a essas pessoas nunca é óbvio ou simples. Jarman, como em toda sua obra, fala mais de si mesmo do que propriamente do seus retratados ou biografados, como ocorre em filmes como Sebastiane, Caravaggio, Edward II e Wittgenstein, todos baseados em personagens reais. Os amigos que o circundam são retratados em vários curtas que Jarman faz durante os anos de 1970 e 1980, como Andrew Logan Kisses the Glitterati (1973,

98 This very personal way of more closely grasping Burroughs and the mysterious and enigmatic aura that he had skillfully built and maintained over the years is also be found in a nuanced form in Jarman’s other portrait films: they are never concretely biographical and factual but, instead, always diffusely fragmentary and personal. Tradução do autor.

152 colorido, 9’26), Andrew (1973, colorido, 8’34), Miss Gaby aka All Our Yesterdays (1973, colorido, 3’8), Gerald Plants a Flower (1973, pb, 1’35), Gerald Takes a Photo (1973, pb, 2’10), Kevin Whitney (1973, colorido, 2’34 ), Fred Ashton Fashion Show (1974, colorido, 67’55), Bill Gibb’s Show (1974, colorido, 15’50), Duggie Fields at Home aka Duggie Fields (1974, colorido, 2’50), Ken Hicks (1975, colorido, 9’28), Karl at Home (1975, pb, 17’44), Gerald’s Film (1975, colorido, 17’28), Steve and Mark (1982, colorido, 15’2), Ken’s First Film (1982, colorido, 9’54).

2.3. Jarman no cinema experimental britânico ou avant-garde britânica De forma geral, a “busca” do cinema experimental, avant-garde, underground, ou qualquer outra nomenclatura que possa vir a ser aplicada à essa produção fora do mainstream, é justamente uma rejeição às convenções do cinema comercial e/ou hollywoodiano, uma propensão ao “não-narrativo” ou a novas formas de narratividade, culminando, muitas vezes, em um abstracionismo formal. Peter Wollen simplifica as inquietudes desses cineastas vanguardistas, dividindo-os entre os partidários da estética e os defensores da política, sem se atentar ao valor que supõem sugerir os discursos ideológicos através de uma prática assumidamente formalista (WOLLEN, 1976). Francisco Elinaldo Teixeira adverte que, mesmo que seja tentador colocar o cinema experimental ou a experimentação no cinema em categorias estanques, rígidas e homogêneas, suas concepções são múltiplas e em constantes atualizações.

Por mais que se tente conceber a experimentação no cinema como algo monolítico, ou segundo dicotomizações que repartem o campo em cinema experimental e o “outro” cinema, do ponto de vista histórico o experimental jamais se compôs como unidade lógica ou totalidade orgânica. Ao contrário, das primeiras vanguardas, das vanguardas do pós-guerra às pós-vanguardas, são múltiplas as concepções que não param de atualizar tal domínio do cinema (TEIXEIRA, 2012, p. 119).

153

Esse cinema se afasta da produção comercial/industrial para se colocar mais próximo dos métodos de criação do fazer artístico, do pictórico e do fotográfico, propondo uma forma experimental e intertextual nessas apropriações. Nos Estados Unidos, esse cinema experimental dos anos sessenta é denominado New American Cinema, partilhando dos pressupostos da teoria do autor das novas cinematografias européias, posteriormente utilizando o termo underground film para designar filmes mais radicais e pessoais, ampliando a liberdade na forma e no modo de se fazer cinema.

Ambos os termos ("cinema de poesia" e "cinema experimental") caíram em desuso no final dos anos cinquenta. Em seu lugar surgiu o "New American Cinema" no modelo da Nouvelle Vague francesa, e o filme "underground", em resposta a um maior empenho social por parte de certos cineastas emergentes (SITNEY, 1979, p. 8)99.

Malcom Le Grice em seu texto “The History We Need” rejeita qualquer filme que apresente uma base simbólica ou narrativa como experimental, eliminando com isso vários filmes das vanguardas artísticas dos anos de 1920, como O Cão Andaluz, de Luís Buñuel e Salvador Dalí e tantos outros que sedimentaram o cinema underground americano, definindo essas questões do não-narrativo e do não-simbólico:

O que é designado forma ou estrutura no filme está essencialmente relacionado com o padrão de sua construção temporal. Cada trabalho é uma instância específica de padrão temporal, tendo semelhanças e diferenças de outras instâncias da forma. Isto, como a imagem, está sujeito aos mecanismos de associação e significado, pelas suas instâncias de diferença. Rejeição das práticas simbolistas/surrealistas não eliminam os problemas de significação do cinema "formal", mas pode encorajar uma suposição falsa na prática que ele faz (LE GRICE, 1979, p. 113)100.

99 Both terms (“film poems” and “experimental cinema”) fell out of use in the late fifties. In their places arose the “New American Cinema” on the model of the French Nouvelle Vague, and the “underground” film, in response to an increased social commitment on the part of certain newly emerging film-makers. Tradução do autor. 100 What is designated form or structure in film is primarily related to the pattern of its temporal construction. Each work is a particular instance of temporal pattern, having likenesses to, and diferences from, other instances of form. It, like the image, is subject to the mechanisms of association and, by its instances of difference, signifies. Rejection of symbolist/surrealist practice does not eliminate the issues of signification from “formal” cinema but may encourage a false assumption in the practice that it does. Tradução do autor.

154

Inspirados pela iniciativa do cinema underground americano, com a criação da New York Co-op em 1962, uma cooperativa para produção, distribuição e exibição de cineastas à margem do cinema mainstream, na sua maioria envolvidos com uma produção experimental e/ou poética, surge em Londres, a partir dos anos de 1966, a LFMC, London Filmmaker’s Co-op, responsável por seguir esse modelo americano, sem o qual, nas palavras de Peter Gidal, não seria possível a existência de nenhum filme experimental britânico desde 1966 (GIDAL, 1989). Michael O’Pray prefere localizar a inspiração principal dos cineastas membros da LFMC como “uma mistura de formas e ideias anarquistas da contracultura, derivadas a partir do grupo Fluxus e do conceitualismo americano” (O’PRAY, 1996, p. 70)101. Essa efervescência experimental britânica ganhou relevância com a junção da contracultura que tomou conta de Londres nos idos dos anos de 1960, com uma maior visibilidade e troca de experiências com os precursores do cinema underground americano e com uma necessidade cada vez maior de se opor ao cinema comercial do período, fazendo com que esses artistas enveredassem, cada vez mais, por experimentações formais, beirando o abstracionismo. O crítico P. Addams Sitney, em seu texto Structural Films, publicado em 1969, identificou novas abordagens formais no cinema experimental desse período, diferente daquelas poéticas, visionárias e pessoais relacionadas à produção das décadas de 1940 e 1950. Sitney demonstrou quatro características formais comuns nesse “cinema estrutural”, mas salientava que não era possível encontrar as quatro em apenas um filme, são elas: câmera fixa, efeito de flicagem (luz estroboscópica intermitente), imagem em looping e refilmagem da tela. “No cinema estrutural, forma e estrutura são elementos essenciais na equação iconoclasta-construtivista das operações mentais e sensoriais da percepção fílmica” (ROSA, 2003, p. 3). Em contrapartida, na Grã-Bretanha, Malcolm Le Grice e Peter Gidal, cineastas e teóricos, se tornaram uma voz assertiva nas práticas da LFMC, influenciando consideravelmente a década de 1970 com suas posições teóricas

101 A mixture of anarchistic conter-culture forms and ideas derived from the Fluxus group and American conceptualism. Tradução do autor.

155 relacionadas às experimentações do que eles vão chamar de Structural/Materialist film, opondo-se ao artigo Structural Films de Sitney.

Gidal acrescentou a palavra "materialista" para filme "estrutural", em meados dos anos 70, para sinalizar a sua revisão marxista da definição primordialmente estética de Sitney. Sua obra é um ataque político e cultural sobre a representação em suas formas variadas ideológicas, sociais, econômicas e sexuais. Neste contexto, o cinema exemplifica um consumo passivo (REES, 1999, p. 82)102.

O’Pray localiza o início dessa produção da LFMC, com a avant-garde britânica, sendo impossível se distanciar das questões políticas sintetizadas por Gidal e Le Grice em torno dessas produções.

[...] começou como uma coleção eclética de cineastas, artistas e músicos que tiveram que se tornar, no início dos anos 70, uma tentativa mais consciente de si mesmos, para construir um cinema com objetivos modernistas acompanhados de uma política que considerava o cinema narrativo mainstream como uma ferramenta ideológica para o capitalismo ocidental (O’PRAY, 1996, p. 70)103

Para Gidal, o termo Structural/Materialist film defendia uma ruptura com o ilusionismo cinematográfico e com a presença física do próprio material fílmico. “Structuralist/Materialist filme tenta ser não-ilusionista. No processo de fazer filmes há um ‘acordo’ com dispositivos que resultam em desmistificação ou uma tentativa de desmistificação do processo do filme” (GIDAL, 1976, p. 1)104, afirmando “uma tentativa contínua para destruir a ilusão necessária” (GIDAL, 1976, p. 1)105. A consolidação desse discurso das práticas experimentais de um “cinema estruturalista”, com foco nas influências estruturais e materiais, fez com que alguns diretores que não faziam parte das produções da LFMC ou que praticavam

102 Gidal added the word “materialist” to “structural” film in the mid-70s to signal his Marxist revision of Sitney’s primarily aesthetic definition. His work is a political and cultural attack on representation in its varied ideological, social, economic and sexual forms. In this context, cinema exemplifies passive consumption. Tradução do autor. 103 [...] began as an eclectic collection of film-makers, artists and musicians had by the early 70s become a more self-conscious attempt to construct a cinema with modernist aims coupled with a politics which regarded mainstream narrative cinema as an ideological tool for Western capitalism. Tradução do autor. 104 Structuralist/Materialist film attempts to be non-illusionist. The process of the film’s making deals with devices that result in demystification or attempted demystification of the film process. Tradução do autor. 105 A continual attempt to destroy the illusion is necessary. Tradução do autor.

156 um cinema mais “pessoal”, acabassem sendo relegados a um segundo plano em meio à efervescência dessa produção. Margaret Tait, David Larcher, Jeff Keen e Derek Jarman são alguns exemplos desses cineastas envolvidos em experimentações poéticas-formais que demonstravam a diversidade dessa produção, mesmo que ainda fosse dominada pelo discurso do “cinema estrutural”. Para Peter Wollen essa história do cinema e do vídeo experimental na Grã- Bretanha não é muito extensa e nem muito complexa, podendo ser resumida em algumas sentenças:

Após o trabalho disperso de alguns pioneiros, muitas vezes associados, paradoxalmente, com o movimento do documentário (Len Lye, Norman McLaren), produções alternativas de filmes ressurgirram nos anos 60 e sua história contemporânea começou com a consolidação dos cineastas das cooperativas de produção, duas décadas atrás (WOLLEN, 1990, p. 1).106

Gidal e Le Grice, juntamente com Laura Mulvey e Peter Wollen, teóricos e realizadores cinematográficos, pregavam uma maior reflexibilidade do espectador, desafiando as estruturas narrativas através de uma abordagem anti-ilusionista, anti-representação e negação da imagem. Com isso, formou-se um grupo de cineastas, a partir dos anos de 1970, geralmente a parte da LFMC, relacionados a uma maior representação, simbólica ou metafórica, do uso da imagem, servindo, possivelmente, a um propósito narrativo, e que seriam chamados de New Romantics.

Algumas das “bestas negras” (uma pessoa ou coisa que alguém não gosta muito) da teoria de vanguarda do ano anterior - incluindo a narrativa e a autobiografia - foram reformuladas em uma série de filmes excelentes, feitos de um modo menos "formalista" do que os dos anos 70 e anteriores ... Também tem havido uma safra de trabalho Neo-Romântico, promovido pelo energético grupo B2 (Wapping e Parque Diorama do Regent). Seus expoentes incluem John Maybury, Cerith Wyn Evans e Julia Hotspur Percy, trabalhando em bitola barata e, ocasionalmente, “desagradável”. O conjunto do empreendimento sugere uma memória popular de Jack Smith e

106 After the scattered work of a few pioneers, often associated paradoxically with the documentar movement (Len Lye, Norman McLaren), alternative film-making resurfaced in the 60s and its contemporary history began with the consolidation of the Film-makers Co-op two decades ago. Tradução do autor.

157

pode provar o sucesso do excesso - ou tão rapidamente desaparecer em um mercado cada vez maior para estilo, brilho e pose (REES, 1983, p. 288)107

Michael O’Pray também identifica esse “retorno” ao romantismo através de uma aproximação das questões temáticas que perpassavam o mitológico, o sonho, o simbólico, a sexualidade e o subconsciente. Para O’Pray a grande influência desses New Romantics, especificamente Maybury e Wyn Evans era Derek Jarman que, junto com outros cineastas fora do círculo do LFMC, mantinha um contínuo interesse no romantismo. Jarman era um entusiasta de Morris e Blake - “Eu acho William Morris ótimo e gosto de Blake. Blake conduzindo sua utopia privada com sua esposa sentada nua no jardim brincando de Adão e Eva é uma imagem maravilhosa. Eu tenho certeza que Morris era assim também. Tem tudo a ver com envolvimento” (FIELD e O’PRAY, 2016, p. 79) – assim como Rimbaud e Shakespeare, também foram uma grande inspiração. Os “novos românticos” romperam com o rigoroso formalismo do “cinema estrutural”, adentrando pela extravagância e pelo excesso, próximos à estética camp, marcando uma virada radical na avant-garde britânica, ao abranger aspectos da cultura popular nessas produções em contrapartida às produções intelectualizadas e herméticas dos estruturalistas. Mas ainda assim esses filmes e realizadores pagaram um imenso tributo ao “cinema estrutural”, sem o qual esses cineastas New Romantics não existiriam, conforme a reflexão de Barbara Meter:

[...] olhando de novo para o avant-garde britânico, após 15 anos, é como se eu tivesse mergulhado em uma orgia de imagens românticas, cores granuladas, humor negro e decadente e evocações pessoais. O que é uma reação contra o ascetismo do filme formal e estrutural que reinava na época que eu estava por perto. Uma reação previsível é claro - e uma que é altamente devedora com o movimento formal. Eu acho que todos os filmes

107 Some of the bêtes noires of avant-garde theory in previous year – including narrative and autobiography – have been reworked in a number of excelent films made in a less “formalist” mode than those of the earlier 70s...There has also been a crop of Neo-Romantic work, promoted by the energetic B2 group (Wapping and the Regent’s Park Diorama). Its exponents include John Maybury, Cerith Wyn Evans and Julia Hotspur Percy, working on cheap and occasionally nasty low-gauge tape and film. The whole enterprise suggests a folk memory of Jack Smith and might prove the success of excess – or just as quickly disappear into an ever- growing market for style, glitter and pose. Tradução do autor.

158

experimentais britânicos pagam um tributo ao movimento estrutural (mesmo quando sendo veementemente o oposto, como o trabalho de Cerith Wyn Evans, Derek Jarman, Anna Thew, etc.) (METER, 1990, p. 28).108

Em seu livro A History of Artists’ Film and Video in Britain, David Curtis, coloca os “novos românticos” no capítulo dedicado às políticas e identidade, relacionando esse momento do cinema experimental, ou como ele prefere, dos filmes e vídeos de artistas, com a liberação sexual, o feminismo, o corpo, os espaços sociais e as políticas de identidade. Mas, quando fala especificamente dos New Romantics é em Jarman que Curtis vai se referenciar, continuamente com dois dos seus grandes “protegidos”: Mayburry e Wyn Evans.

Seu endosso público de um cinema do faça-você-mesmo foi muito influente entre uma geração de artistas jovens que não tinham desejo de gravar e desenvolver seus próprios filmes, e lamentavam a concessão de dependência de seus tutores universitários mais velhos, e também forneceram um inesperado, mas bem-vindo, impulso para alguns entusiastas de cabelos grisalhos de bitolas menores - como o galerista Victor Musgrave e o escritor Gray Watson, no contemporâneo London Super 8 Group (CURTIS, 2007, p. 263).109

A influência desses “novos românticos”, de Jarman até seus protegidos, estava mais imbuída de uma visão do cinema clássico underground, “os filmes iniciais de Warhol, Kenneth Anger e Jean Cocteau, ícones de bom gosto e estilo para jovens cineastas gays” (CURTIS, 2007, p. 263)110 do que propriamente com o cinema estrutural feito nas escolas de arte, onde Le Grice e Gidal eram professores: “Entre os cineastas que surgiram na Inglaterra no final da década de

108 [...] looking again at the British avant-garde after 15 years is as if i have plunged into an orgy of romantic images, grainy colours, decadent and dark moods and personal evocations. What a reaction against the asceticismo of the formal and structural film which reigned at the time i was around. A predictable reaction of course – and one which is highly indebted to just that formal movement. I think that all of British experimental film pays a tribute to the structural movement (even when being vehemently the opposite, like the work of Cerith Wyn Evans, Derek Jarman, Anna Thew, etc.). Tradução do autor. 109 His very public endorsement of this do-it-yourself cinema was highly influential among a generation of young artists who had no desire to print and process their own films, and pitied the grant-dependency of their college tutors and seniors, and it also provided an unexpected but welcome boost to some grey-haired narrow- gauge enthusiasts – such as the gallerist Victor Musgrave and writer Gray Watson, on the contemporary London Super 8 Group. Tradução do autor. 110 The earlier films of Warhol, Kenneth Anger and Jean Cocteau, icons of taste and style to young gay film- makers. Tradução do autor.

159

1970, a maioria tinha sido estudante de Gidal (na RCA) ou de Le Grice (em St.

Martin)” (REES, 1999, p. 85)111. No momento em que essa produção experimental ganhava contornos de maior visibilidade, através de festivais, mostras e exibições/instalações em exposições e museus, Jarman, ainda que de forma quase marginal, se envolve nesse cenário cultural

[...] com sua ênfase na forma e no "processo", parecia longe de sua estética simbolista. Mas Jarman compartilhava com a vanguarda um desejo de experimentar e em particular um interesse em multi- cameras, um trabalho expandido, sem dúvida por causa do poder do cinema expandido a submergir durante toda sua escala e potencial para justapor filmes diferentes (O’PRAY, 1996, p. 70).112

Influenciados pelo trabalho em Super 8 de Jarman, Mayburry e Wyn Evans “fizeram filmes de cor exuberante, música e ritmo lânguido, celebrando o corpo masculino (contra-Gidal), ornamentação e excessos visuais” (CURTIS, 2007, p. 263)113, sendo que a produção de home movies e retratos são os temas centrais desses trabalhos – “imagens de contemporâneos e amantes, vagamente entrelaçadas com imagens simbólicas” (CURTIS, 2007, p. 263)114. Wyn Evans é o mais cerebral, utilizando uma mistura de recursos visuais e sonoros em suas obras “incluindo citações filosóficas em voz-over e, às vezes, páginas de texto exibidas na tela” (CURTIS, 2007, p. 263)115, enquanto Maybury (que trabalhou com Jarman em Jubilee, War Requiem e The Last of England), “pareceu herdar o envolvimento mais empenhado e apaixonado de Jarman com a imagem, adicionando seu próprio compromisso com a subcultura gay de Londres” (CURTIS, 2007, p. 264)116.

111 Among the film-makers who emerged in England in the later 1970s, most had been students of Gidal (at the RCA) or Le Grice (at St Martin’s). Tradução do autor. 112 [...] with its emphasis on form and “process”, it seemed far from his symbolist aesthetic. But Jarman shared with the avant-garde a desire to experiment and in particular an interests in multi-screen, expanded work, no doubt because of expanded cinema’s power to overwhelm throught its scale and potential for juxtaposing different films”. Tradução do autor. 113 Made films of lush colour and music and languorous pace, celebrating the (male) body (contra-Gidal), decor, and visual excess. Tradução do autor. 114 Images of contemporaries and lovers, loosely interwoven with symbolic imagery. Tradução do autor. 115 Including philosophical quotations in voice-over and sometimes pages of text shown on screen. Tradução do autor. 116 Seemed to inherit Jarman’s more engaged and passionate involvement with the image, adding his own commitment to London’s gay subculture. Tradução do autor.

160

Rees cita a programadora da ICA and Fillmmakers Co-op e também cineasta, Cordelia Swann que, durante o ano de 1984, foi responsável por várias mostras que deram visibilidade à emergência dos New Romantics e sua fuga em relação ao Structural Films.

Os "Novos Românticos" de Swann representou um retorno do reprimido na forma do barroco pós-Cocteau, mesmo que ele tenha se visto como um grupo de artistas e não tinha objetivos comerciais diretos. O provocativo epíteto "Romântico" sugere isso, assim como a persistência de vanguardismo no termo "Novo". Mas esta não era uma guerra de palavras, exceto no sentido de que os cineastas anti- estruturais rebelaram-se contra a teoria e a linguagem (REES, 1999, p. 97)117.

Com o rompimento de um “movimento” coerente entre os cineastas estruturalistas, “uma nova onda de cineastas mais jovens cresceu para além das suas margens, aproximadamente entre final de 1970 e final de 1980” (REES, 1999, p. 98)118, cruzando a fronteira de um cinema de avant-garde restrito a poucos “iniciados” para uma projeção maior dentro de um cinema de “arte independente” britânico, culminando com visibilidade internacional de, por exemplo, Derek Jarman e Peter Greenaway. São diretores que, ao mesmo tempo em que partilham algumas características em comum, são completamente diferentes um do outro e assumindo caminhos bem distintos em suas produções audiovisuais, o que colocou Greenaway em grande evidência no mercado internacional com filmes labirínticos e de excessos visuais (O Cozinheiro, o Ladrão, Sua mulher e o Amante, 1989, A Última Tempestade, 1991, O Livro de Cabeceira, 1996, entre outros) enquanto Jarman ganhou maior visibilidade dentro da Grã-Bretanha com seus arroubos cinematográficos contrários ao governo Thatcher através do seu ativismo político e, principalmente, devido às suas experimentações formais/estéticas de grande subjetividade.

117 Swann’s “New Romantics” similarly represented a return of the repressed in the form of the post-Cocteau baroque, even though it saw itself as an artists’ group and had no direct commercial goals. The provocative epithet “Romantic” suggests this, as does the persistence of avant-gardism in the term “New”. But this was not a war of words, except in the sense that anti-structural film-makers rebelled against theory and language. Tradução do autor. 118 A new wave of younger film-makers grew beyond its margins, roughly between the late 1970s and the late 1980s. Tradução do autor.

161

Por isso, continua a ser uma questão de saber por que, no final, dois cineastas com a mesma experiência com a vanguarda inglesa "clássica" tenham quebrado tão livremente como aparenta, aos olhos de muitos dos seus apoiadores e audiência, para habitar um espaço diferente dela e não ser atingido pelas queixas tradicionais sobre o obscurantismo da vanguarda ao mesmo tempo em que permaneceram desafiadoramente "artísticos" e anti-populistas. Nem eles dividiram este novo público em facções, no entanto são profundas as diferenças entre eles - apesar de, por exemplo, a implacável política gay de um e uma masculinidade heterossexual (misantropo) do outro. Durante grande parte da década de 1980, Jarman e Greenaway pareciam ser dois lados iguais de uma mesma moeda nova, o cinema de arte britânico [...]. (REES, 1999, p. 99).119

Com isso, Jarman e Greenaway se tornam a grande vitrine de um “novo cinema inglês”, colocando em evidência muitas experimentações em suas composições estéticas, todas elas advindas da convivência que esses cineastas tiveram com as vanguardas artísticas/experimentais iniciadas a partir dos anos de 1960 na Grã-Bretanha.

119 So it remains a question as to why, in the end, two film-makers from the same background as the “classic” English avant-garde have broken so free of it as to appear, in the eyes of many of their supporters and audiences, to inhabit a different space from it and to be untinged by the traditional complaints about avant- garde obscurantism even as they remained defiantly “arty” and anti-populist. Neither did they split this new audience into divided factions, however deep the differences between them – despite, for example, the relentless gay politics of the one and the heterosexual (if misanthropic) masculinity of the another. For much of the 1980s Jarman-and-Greenaway appeared to be two equal sides of the same new coin, British Art Cinema [...]. Tradução do autor.

162

Figura 62: Stills do filme “Studio Bankside”, 1972, direção Derek Jarman.

163

Figura 63: Stills do filme “Sloane Square – a room of one’s own”, 1979, direção Derek Jarman e Guy Ford.

164

Figura 64: Andrew Logan no “Alternative Miss World” de 1972.

Figura 65: Stills do filme “A Bigger Splash”, 1973, direção Jack Hazan.

165

Figura 66: À esquerda – Derek Jarman como Miss Crêpe Suzette, 1975. À direita – Marcel Duchamp como Rrose Sélavy, 1920.

Figura 67: Prospect Cottage, Dungeness, Inglaterra.

166

Figura 68: Stills do filme “Jordan’s Dance”, 1977, direção Derek Jarman.

167

Figura 69: Stills do filme “Pirate Tape”, 1982, direção Derek Jarman.

168

3. DO SUPER 8 PARA A PINTURA: UM RETORNO À PAISAGEM. Esse apreço pelo pictórico e pelas experimentações, decorrentes dessa vontade de levar o pictórico para a imagem em movimento, expandido da tela e do cavalete para o suporte audiovisual, faz com que Jarman crie, a partir de 1973, seus primeiros curtas, nos quais podemos vislumbrar o início de um “estilo”, de uma mise en scene que seria frequentemente reapropriada em seus longas- metragens. Nesse processo de encontro de uma “linguagem”, Jarman retorna à tradição dos grandes paisagistas ingleses e dos experimentos alquímicos. Talvez, seja esse o momento em que Jarman passe de um cineasta “familiar”, deixando de se relacionar à vida doméstica e à sua intimidade, para um cineasta amador/experimental. Conforme explicitado por Odin (2001), essa relação com o amador se dá na mudança de algumas características que já davam sinais desde seu “cinema familiar”, os home-movies: - Ato de filmagem – o diretor/autor continua filmando sozinho; - A temática – ainda continuam sendo trabalhadas as questões pessoais e/ou que estão em torno desse diretor; - A forma - os traços “mal feitos” do filme familiar (a câmera trêmula, o desfoque, as rupturas múltiplas, a ausência de estruturação narrativa) tornam-se figuras estilísticas que respondem à uma intenção estética nesse cinema amador/experimental; - Modo de difusão - do mesmo modo que os filmes familiares são vistos por um grupo restrito, que participa desses curtas ou conhece as pessoas que nele estão, os filmes do grupo amador/experimental também são vistos por um grupo seleto de pessoas; essas pessoas podem ter um “pré-entendimento” estatutário dessa “linguagem” experimental, podendo, na maioria das vezes, terem participado na realização desses curtas, sendo que esses filmes são apresentados em galerias, cafés, cineclubes e afins, fugindo do âmbito familiar-privado.

É verdade que, no campo cinematográfico mais do que em qualquer outro campo artístico, a prática de "amador" é estigmatizada e filmes amadores julgados pelos especialistas indignos de qualquer interesse estético. Então, quando se observa como os próprios cineastas amadores gostam de se qualificar, alguns deles,

169

buscando distinguir-se da massa de cineastas amadores que filmam sua família em férias, e exibindo ambições artísticas, reivindicam a categorização de cineasta "independente" (ALLARD, 1995, p. 119)120.

Em contrapartida, alguns outros cineastas fazem o caminho inverso: recusam o rótulo de independentes, por ser genérico demais e por se aproximar de práticas que ano após ano estão cada vez mais próximas ao cinema comercial, preferindo serem chamados de amadores. Um exemplo disso é o cineasta norte-americano Stan Brakhage, que chegou a publicar um ensaio em defesa dessa prática: In defense of amateur, onde argumenta que o título “amador”, usado na maioria das vezes como algo depreciativo, comum e “sem valor” é, em vez disso, algo em uma posição que denota “amor” e “viver a vida” (no latim a palavra amador significa amante), qualidades superiores em todo os aspectos da vida. É essa paixão pelo que se faz que diferencia um artista que apenas segue regras em busca de uma imagem “perfeita” dentro dos padrões ditos profissionais. Para Brakhage, esses padrões aprisionam e deixam entrever uma artificialidade nos profissionais que buscam reconhecimento através dessa “profissionalização”, enquanto o amador está sempre trabalhando sozinho e medindo seu sucesso através dos cuidados e da qualidade que colocam em seus filmes, independente do reconhecimento externo.

3.1. Paisagem Inglesa No início dos anos de 1970, Jarman empreendeu uma viagem ao interior inglês, especificamente à cidade de Avebury (em torno de 130km de distância de Londres), na qual existem grandes círculos de pedras neolíticas que, além de serem uma atração turística, são mais antigas do que o conhecido Stonehenge (que fica bem próximo a Avebury), datadas de 5.000 anos atrás.

120 Il est vrai que, dans le champ cinématographique plus que dans tout autre domaine artistique, la pratique en “amateur” est stigmatisée et les films amateur jugés par les experts indignes de tout intérêt esthétique. Ainsi lorsque l’on s’intéresse à la manière dont les cinéastes amateurs eux-mêmes aiment à se qualifier, certains d’entre eux, cherchant à se distinguer de la masse des cinéastes amateur filmant leur petite famille en vacances at affichant des velléités artistiques, revendiquent la catégorisation de cinéaste “indépendant”. Tradução do autor.

170

É nessa cidade, em meio a essas pedras e à paisagem do campo inglês, que Jarman filma o seu curta Journey to Avebury (1973, colorido, 10’18) (Figura 70), feito de imagens praticamente estáticas, com apenas um movimento de câmera, utilizando um filtro amarelo, que as deixa com uma aparência saturada entre o laranja e o dourado. Uma paisagem que, a príncipio, denota uma imagem idílica e melancólica, mas que se torna, com o passar do tempo e das imagens apresentadas, uma espécie de paisagem, ora antiga, ora atual ou praticamente vinda do futuro. O que vemos, poderia ser a Avebury da época Neolítica, assim como em um futuro qualquer, desprovida da presença humana. Jarman faz com que essas imagens adquiram um tom “sombrio” na maneira com que manipula a velocidade da filmagem em Super 8 (single frame e slow down), fazendo com que elas se desvaneçam, se tornando quase “borrões” na tela, criando uma aura mística, de acordo com as tradições seculares às quais as pedras neolíticas estão intimamente ligadas. É como se essas pedras/paisagem ocultassem algum segredo, que está a espreita, pronto para ser revelado, apenas à espera do próximo enquadramento que Jarman fará com a sua câmera. A primeira versão do curta contava com uma trilha de Maurice Ravel (Pavane pour une infante défunte), que foi substituída posteriormente, em 1995, por uma trilha sonora da banda Coil (versão facilmente encontrada no YouTube). Avebury, assim como outros curtas aqui apresentados, em um primeiro momento poderia ter sido colocado no capítulo destinado aos home-movies, erroneamente identificados como um diário de viagem, mas Avebury está muito além de ser apenas isso. Acompanhamos essa jornada/viagem pelos campos de Avebury através dessas pedras neolíticas (ou, em outros curtas, pela Dinamarca, Estados Unidos, Rússia, etc). Mas, as questões pictóricas relacionadas à estética, que Jarman sobrepõe em detrimento de uma “não-narrativa”, são muito mais fortes e pertinentes em relação à discussão aqui proposta, do que simplesmente a um filme de viagem. Essa captura de uma paisagem que quase se transforma em “borrões” – o efeito dreamlike -, feita de forma quase minimalista, é uma viagem única, que não poderá ser repetida, pois faz parte de uma percepção afetiva, em um momento

171 específico da vida de Jarman. Com a utilização de filtros que potencializam as cores dessa paisagem de forma quase hiper-realista, Jarman nos obriga a enxergar as cores/paisagem de uma maneira incomum. Esse lugar, que faz parte das memórias ou dos sonhos de Jarman, faz com que ele não esteja ali apenas para uma simples caminhada, juntamente com todos aqueles que já estiveram ali, contemplando o poder e a magnitude dessa paisagem/cores/pedras que há milhões de anos são visitadas, numa espécie de ritual. As paisagens nem sempre precisam ser descobertas, elas podem ser criadas, reproduzidas ou até mesmo inventadas, “[...] paisagens criadas em grande parte na imaginação de pintores ou cineastas, muitas vezes iniciam respostas semelhantes às paisagens descobertas ou registradas do mundo real” (HARPER e RAYNER, 2010, p. 16)121. A partir de uma paisagem existente, Jarman, através da sua câmera Super 8, recria, inventa uma nova paisagem, com esse olhar mediado por um instrumento tecnológico que propicia uma representação simbólica desse lugar, que pode ser vários lugares ao mesmo tempo. Harper e Rayner definem essa noção de paisagem como:

A paisagem envolve o isolamento de certa extensão espacial e comprimento temporal. Ou seja, todas as noções de paisagem são produzidas por interpretação humana que, simplesmente, devido à fisiologia humana ou devido à viés político ou cultural, é seletiva. Os tratamentos estéticos subsequentes da paisagem, seja na pintura, na fotografia ou no cinema, envolvem mais seleção, interpretação e omissão, seja por um indivíduo ou grupo. As paisagens podem ser reconfortantes ou assustadoras, desafiadoras ou duradouras (HARPER e RAYNER, 2010, p. 16).122

E também demonstram uma diferença essencial, relacionada ao movimento, que vai diferenciar a paisagem em uma obra pictórica em relação a uma obra audiovisual:

121 [...] landscapes created largely in the imagination of painters or filmmakers, often initiale similar responses to the discovered or recorded landscapes of the real world. Tradução do Autor 122 Landscape involves isolation of a certain spatial extent and certain temporal lenght. That is, all notions of landscape are produced by human interpretation which, simpley due to human physiology or due to political or cultural bias, is selective. Subsequent aesthetic treatments of landscape, whether in painting, photography or film, involve further selection, interpretation and omission, whether by an individual or group. Landscapes can be comforting or daunting, challenging or ressuring. Tradução do autor.

172

O papel de enquadrar no cinema, usando a câmera para gravar ou selecionar cenários, é diferente, no entanto, do papel do quadro na pintura, na parte interna do quadro cinematográfico, o movimento é mais freqüentemente um dos indicadores substantivos de significado. O quadro, na maioria das vezes, é um contribuinte para o movimento (ou seja, é conhecido por ser uma parte de um continuum); muitas vezes contém movimento, mas sugere que esse movimento ultrapasse seus limites (HARPER e RAYNER, 2010, p. 18).123

Jarman cria com Avebury essa tensão entre a imagem audiovisual e a imagem pictórica, fazendo com que os “movimentos” nessas imagens quase estáticas sejam “filmados” como partes de uma pintura, solicitando assim, através dos limites do seu enquadramento, o que está porvir ou o que não nos é dado a enxergar. Podemos atribuir a essa produção e aos caminhos estéticos e formais engendrados por Jarman, quatro tipos de “percursos” que muito estão ligados com referências e/ou reflexões advindas da história da arte: um percurso físico, um percurso que nos é dado a ser visto, um percuro que não nos é dado a ser visto e um percurso de retorno às tradições inglesas.

a) Um percurso físico: o primeiro percurso empreendido por Jarman é um percurso no qual o movimento do corpo dele pela paisagem faz com que essa obra seja construída, através de uma caminhada pré-determinada ou não. Jarman precisou se deslocar no espaço físico dos neolíticos de Avebury para captar as imagens retratadas em seu curta. Sabendo que a câmera de Super 8 possuia algumas características que já foram comentadas (filmar em sequência, editar na própria câmera, mudar a velocidade da filmagem, etc), é bem provável que Jarman tenha ido filmando aquilo que lhe interessava enquanto caminhava entre as pedras neolíticas e a paisagem ao redor, de forma sequenciada. Mesmo que pequenas alterações tenham sido feitas através de uma edição (Jarman nunca

123 The role of framing in the cinema, using the camera to record or select scenery, is different, however, to the role of the frame in painting in that within the cinematic frame movement is most often one of the substantive indicators of meaning. The frame, most often, is a contributor to movement (that is, it is known to be one portion of a continuum); it often contains movement, but suggests that this movement goes beyond its limits. Tradução do autor.

173 estava satisfeito com as suas obras fílmicas, (re)editando e (re)filmando essas imagens à exaustão), não estamos falando de uma produção na qual existe um roteiro e uma decupagem pré-estabelecidos para que as imagens/cenas sejam filmadas de acordo com a logística de uma pré-produção. Quem determinou essa filmagem foi a caminhada de Jarman, o seu percurso foi o catalisador das imagens captadas; sem esse movimento físico de Jarman não existiria o curta, portanto, podemos dizer, que esse seu expediente criativo muito se assemelha ao processo artísticos dos artistas da land art. A land art surgiu nos anos de 1960, tendo como seu expoente inicial o artista Robert Smithson e sua obra Spiral Jetty (Figura 71) assim como Robert Morris, Walter de Maria, Michael Heizer e James Turrell. Esses artistas criaram as primeiras manifestações artísticas fora das galerias de arte indo ao encontro (ou retornando) a natureza, procurando lugares distantes e remotos, longe da civilizaçao, para criar obras que alterassem essas paisagens em escala sobre- humana. Claro que Jarman não propõe nenhum tipo de alteração física enquanto está filmando, mas seu percurso encontra características que muito o aproximam desses artistas, ainda que não o coloque como um herdeiro legítimo dessas tradições. Sua atitude está mais próxima de um romântico que entende o andar/caminhar como uma experiência estética existencial, como um retorno à natureza, uma negação das grandes cidades e a efervescência cultural do pós- swing London dos anos de 1960, do que propriamente a de um artista da land art. Jarman estava à procura de uma paisagem mística, pré-histórica, que, por mais que tenha sido “tocada” pelo homem, ainda permanecia alheia a qualquer movimento da modernidade e as pedras neolíticas de Avebury serviram à perfeição a esse movimento empreendido por ele. Os artistas da land art também promoviam esse retorno à natureza, principalmente para negar o espaço expositivo das galerias e museus, como um movimento de rechaço ao sistema econômico da arte, mas, ainda assim, produzindo formas plásticas para que existisse um enfrentamento do espectador frente a transformação estética dessas paisagens. Portando, em Avebury, Jarman transforma a paisagem vista/filmada colocando nela uma finalidade estética

174 atemporal, imprimindo na tela a relação que o artista teve ao caminhar por esse lugar. Mas ele não interfere diretamente na paisagem, sua interferência se dá no suporte audiovisual, no qual Jarman manipula sua velocidade, suas cores, propondo uma relação/interferência do humano com a natureza ao seu redor, mostrando o quanto nossa presença é efêmera diante de uma paisagem que está alí há milhões de anos, algo muito presente na imensidão das obras propostas pelos artistas da land art (apenas para ficarmos em dois exemplos mais conhecidos: Spiral Jetty de Smithson só dava para ser vista por completo se sobrevoássemos a área onde estava colocado; em Heizer na obra Duplo Negativo, 1969, - Figura 72 - são duas fendas escavadas no deserto, de lados opostos, em um grande vale, quase impossível de serem percorridas). O artista britânico Richard Long, nascido em 1945, portanto contemporâneo de Jarman, é alguém que fez do ato/prática de caminhar a estrutura de todos seus trabalhos artísticos, sendo também um artista inserido nesse movimento da land art. Long propõe em seus trabalhos algumas práticas pré-estabelecidas: andar em uma linha reta, durante um determinado tempo, pegando e/ou organizando objetos em seu caminho, etc. Seu corpo, assim como o de Jarman, é o que impulsiona a obra, sem o corpo do artista a obra não existe, pois, essa caminhada, é realizada por ele e não por uma outra pessoa qualquer. É Richard Long quem caminha em linha reta. É Long quem demora determinado tempo para ir de um lugar ao outro. É Long quem recolhe os objetos no caminho. Essa relação dada do corpo do artista com o tempo e espaço em que ele está inserido reverbera também em Journey to Avebury. É Jarman quem está com a câmera Super 8 em suas mãos, são seus movimentos que determinam o que é e o que não é mostrado no quadro fílmico. É o seu “olhar” que enquadra o nosso “olhar”. São suas escolhas estéticas que nos fazem vislumbrar essa paisagem. Esse percurso só existe uma vez, pois todas as demais vezes que tentar fazê-lo será diferente. É um percurso único que se dá a ser visto naquele instante, o corpo de Jarman faz parte da obra, sendo indissociável dela. Em A line made by walking (1967) (Figura 73), um dos primeiros trabalhos de Long, ele andou em linha reta, indo e voltando, até que suas marcas físicas

175 ficassem marcadas na paisagem, se tornando visível tanto o seu trajeto quanto a sua presença naquele lugar. O paradoxal dessa obra é que nessa “presença”, vista através das marcas, deixa-se notar, de forma mais contundente ainda uma ausência física do realizador de tais marcas. Ao colocar seu envolvimento físico com esse espaço natural, Long deixa entrever, através dessa ausência, o quanto estar presente ou deixar marcas pode ser extremamente efêmero, pois o tempo pode apagá-las (nesse caso a grama irá crescer novamente e logo perderemos o referencial primeiro da sua obra). Por mais presente que Jarman esteja em Avebury, é a sua ausência que nos é dada de forma mais contundente, ausência essa não apenas de sua figura humana, mas como a de qualquer outro ser humano naquela paisagem. É a experiência física do olhar de Jarman que vemos na tela e é a partir dela que construímos nossas impressões/experiências em Avebury. As marcas de sua ausência/presença são vistas em cada plano escolhido, é sentida em cada pedra, cada árvore, cada estrada mostrada. São lugares que, apenas poderão ser vistos, daquela maneira mostrada na tela, apenas uma vez: Jarman só viu/sentiu aquela paisagem, como nos mostra, apenas uma vez, assim como cada vez que assistirmos Avebury será uma paisagem completamente diferente da primeira vez que a vimos mediada pelo olhar de Jarman. Jarman filma uma paisagem “ideal”, a paisagem que poderia ter sido ou que será, nunca uma paisagem do dia-a-dia. A paisagem se sente esvaziada mais nunca vazia. Cadê as pessoas que ali habitam? Quais são as marcas deixadas por elas? Nesse clima quase pastoral e pitoresco da tradição pictórica inglesa, cria-se uma tensão entre quem filma e quem assiste. Depois de quase oito minutos somos apresentados às pedras neolíticas. Imponentes, com sombras, ora próximas, ora distantes da câmera, essas esculturas naturais se apresentam de forma inquietante. Há uma rudeza quase palpável nessa demonstração de poder das rochas fincadas no solo, mas que parecem estar em movimento devido ao leve flou que a imagem adquire na velocidade filmada por Jarman. Essa presença, por vezes enigmática, que esses neolíticos apresentam, também pode ser encontrada no trabalho do artista Didier

176

Morin, na série Carnac (1981-1989) (Figura 74), onde o corpo é a referência primeira do seu processo criativo.

A partir de 1985, depois de muitos testes, continuei com um método: contando meus passos, coloquei-me a cerca de quatro metros de um menhir, a câmara fotográfica em posição vertical e descansando no meu peito, o obturador aberto, eu desencadeei um flash no final de cada inalação e cada expiração, por um pouco mais de um minuto. Meu golpe, minha respiração, determinou a gravação, impregnou a pedra. Em contraste com um instantâneo que, na minha opinião, corresponde a este pequeno momento, a esta parada localizada entre a inspiração e a expiração (MORIN, 2003)124.

A foto de Morin, se faz entre a sua inspiração e a sua expiração. Sua relação com esse lugar, Carnac (nome também dessa produção de 27 fotografias tiradas entre 1981-1989) é mediada pelo seu corpo, enquanto Jarman e Long caminham, Morin se afasta apenas quatro metros e capta uma imagem com disparo de dois flashes entre a sua inspiração/expiração, fazendo dessa produção fotográfica uma experiência física. Esses monumentos pré-históricos de pedra (megalíticos/neolíticos) se apresentam tremidos/borrados nas fotos de Morin, com uma espécie de aura ao redor, assim como o leve flou apresentado nos Super 8 de Jarman, ganhando, com isso, uma densidade subjetiva e sensorial. O lugar se impõe a Jarman, Long ou Morin, é ele que delimita ou expande a percepção desses agentes corpóreos no fluxo dessa interrelação. Só de corpo presente se resolve o enigma proposto por esses lugares e/ou essa natureza; corpo e lugar são indissociáveis. Avebury, o local-paisagem, também faz com que Jarman dê prosseguimento as suas pinturas de paisagens que já estavam sendo feitas desde o final dos anos de 1960, enquanto graduando na Slade School.

124 A partir de 1985, après beaucoup d’essais, je m’en suis tenu à une méthode: en comptant mes pas, je me plaçais environ à quatre mètres d’un menhir, la chambre photographique en position verticale et appuyée sur ma poitrine, son obturateur ouvert, je déclenchais un éclair de flash à la fin de chaque inspiration et de chaque expiration, cela pendant un peu plus d’une minute. Mon souffle, ma respiration, déterminait l’enregistrement, il imprégnait la pierre. A l’inverse d’un instantané qui, selon moi, correspond à ce temps infime, à cet arrêt situé entre l’inspiration et l’expiration. Tradução do autor.

177

Em seu livro Kicking the pricks, publicado em 1987 e escrito durante as filmagens de The Last of England, Jarman comenta um pouco o quanto esteve envolvido com a pintura desde os quatro anos de idade – “Eu estava pintando aos quatro anos de idade; antes que eu pudesse conversar. Minha pintura foi coerente como minha conversa. Eu estava pintando seriamente” (JARMAN, 1996, p. 40)125 - e de como se deu o amadurecimento do seu processo criativo.

O processo é uma luta, o produto sempre me incomoda, é desnecessário. É tudo sobre o processo, eu quero que as pessoas percebam bastante bem os pintores dos anos 60 que queriam que suas pinturas caíssem em pedaços, não era como se os 500 anos que pudessem ter durado fossem muito longos. Tudo cai no chão como folhas mortas, fazendo um composto abundante, estátuas gregas são pulverizadas pelo visgo, pinturas de parede romanas se deterioram e fertilizam, outras crescem fora delas. A imagem é pré- consciente (JARMAN, 1996, p. 40)126.

A paisagem sempre foi uma preocupação constante na produção artística de Jarman, desde suas produções pictóricas iniciais. Enquanto era aluno da Slade School desenvolveu obras não figurativas, lineares, abstratas, em um estilo esquemático para representar lugares/paisagens criados a partir da sua observação de um mundo real.

A paisagem culminou no final da década de 1970 em uma série que foi gravada tardiamente. No final de sua vida, ele retornou ao assunto com várias pequenas paisagens de Dungeness usando um impasto grosso e uma variedade de cores brilhantes e primárias. A mudança da paisagem inicial monocromática, usando a pintura aplicada de forma fina, para as paisagens tardias grossas e multicoloridas é, em parte, devido ao uso que Jarman fez do piche no final da década de 1980, quando ele estabeleceu os objetos encontrados e uma variedade de miudezas em uma superfície alcatroada e em parte à deterioração em sua visão causada pela Aids e suas complicações (WOLLEN, 1996, p. 16)127.

125 I was painting at the age of four; before I could talk. My painting was a coherent as my conversation. I was painting seriously. Tradução do autor. 126 The process is a struggle, the product always annoys me, it’s unnecessary. It’s all about process, i want people to notice quite understand the ‘60s painters who wanted their paintings to fall to pieces, it wasn’t as if the 500 years they could have lasted was a very long. Everything falls to the ground like dead leaves, making a rich compost, Greek statues are pulverised for lime, Roman wall paintings decay and fertilise, others grow out of them. Imaging is pre-conscious. Tradução do autor. 127 The landscape culminated in the late 1970s in a series which were etched ons late. Towards the end of his life, he returned to the subject with many small Dungeness landscapes using a thick impasto and a range of

178

Quase nenhuma das pinturas de Jarman era naturalista. Elas não capturavam nenhuma paisagem específica, nos mostrando paisagens surreais, inventadas. Também não era nenhum tipo de geografia de fácil reconhecimento, mas uma série de lugares entre o real e o irreal. Essas pinturas de paisagem, dos anos de 1960-1970, são quase monocromáticas, com tons de verde, branco e vermelho bem acentuados, com formas geométricas, com o humano ou a passagem do homem pela paisagem em uma escala reduzida, quase minúscula ou completamente ausente, como podemos ver em Untitled Drawing (1962) (Figura 75), Cool Waters (1966-1967) (Figura 76), Landscape with a blue pool (1967) (Figura 77), em uma pintura não identificada, possivelmente The Shore (1968) (Figura 78) e em outras duas não datadas, Landscape (Figura 79) e Landscape II (Figura 80). Essas paisagens não convencionais acabaram sendo redimensionadas no jardim que ele criou em Prospect Cottage, em Dungeness. A “imaterialidade” dos lugares “inexistentes” dessas paisagens inventadas tornam-se reais em Dungeness, culminando com Jarman envolto nesse habitat, que sai da pintura, vai até o mundo real (seu jardim) e volta para as suas pinturas/esculturas. Jarman utilizou esse jardim que tanto cuidava como tema e/ou inspiração nos trabalhos artísticos posteriores, culminando em utilizá-lo como locação do filme The Garden, todo filmado em Prospect Cottage e arredores. Roger Wollen sugere uma similiaridade entre Jarman e o pintor Paul Nash, tanto artisticamente quanto biograficamente: ambos amavam a área de Wiltshire- Dorset; tinham casa na costa de Kent; morreram prematuramente; a preocupação que tinham com paisagens, megalíticos, história e arqueologia; interesse pelo surrealismo; e a combinação de pintura com fotografia, no caso de Nash e audiovisual, no caso de Jarman (1996). Percebe-se uma influência direta de Nash em algumas paisagens das obras iniciais, especialmente entre The Equivalents for the Megaliths (1935) (Figura 81), de Nash, com Archeologies (1977) (Figura 82),

bright, primary colours. The change from the monochrome early landscape using thinly applied paint the thick, multicolour late lanscapes is partly due to Jarman’s use of pitch in the late 1980s, when he set objets trouvés and a variety of bric-à-brac in a tarred surface, and partly to the deterioration in his eyesight caused by Aids and its complications. Tradução do autor.

179 de Jarman, assim como em Avebury Series (Figura 83), derivada das imagens audiovisuais do curta Journey to Avebury. Nos anos de 1990, as paisagens pintadas por Jarman ganham uma realização mais próxima ao Expressionismo Abstrato, sem qualquer tipo de geometrismo dos seus trabalhos inicias, ganhando o genérico título de Landscape, sem necessidade de que elas sejam identificadas separadamente. Com essa produção inicial de paisagens e a “não aceitação” desse tipo de pintura no momento em que Jarman as estava realizando, faz com que ele seja um crítico severo à Pop-Art e às obras produzidas enquanto esteve na Slade School, na qual não havia lugar para seu interesse por paisagens. Paralela à realização desse curta-metragem, Journey to Avebury, Jarman produziu algumas pinturas intituladas Avebury Series. Assim como várias pinturas dos anos de 1960 e 1970, Jarman opta por formas geométricas em imagens repletas de um vazio quase simbólico, interrompido por linhas verticais e horizonais, que atravessam o espaço como se quisessem aplacar esse vazio e se fazer presentes. Para Frey, as imagens captadas em Super 8 diferem muito da pintura dessa série, pois, naquele momento, Jarman estava à procura de “encontrar uma expressão adequada do seu anseio por um passado irremediavelmente perdido e harmonioso” (FREY, 2016, p. 139)128, em busca de uma natureza intocada pelo homem, sendo que o suporte pictórico não lhe dava a gama de opções que o audiovisual lhe proporcionava para traduzir esses anseios em imagens;

b) Um percurso que nos é dado a ser visto: Jarman delimita o nosso olhar através de suas escolhas de enquadramentos e movimentos de câmera. O percurso que nos é dado a ser visto é o percurso que Jarman quer que a gente veja. As imagens são mediadas por escolhas estéticas e técnicas do momento da filmagem. Isso remonta, claramente, a um expediente da relação entre cinema e pintura: a questão do quadro/moldura na pintura e do quadro/enquadramento/plano na imagem cinematográfica.

128 Finding a adequate expression of his yearning for a irretrievably lost, harmonious past. Tradução do autor.

180

Esse espaço da representação visual delimita um marco, uma porção da imagem que percebemos (ORTIZ e PIQUERAS, 2003), seja ela pictórica ou audiovisual. Esse quadro fílmico é a primeira instância de trabalho de um cineasta, no qual o equilíbrio e a expressividade da composição (AUMONT, 1995) remetem à pintura, muitas vezes não devendo nada à ela.

Mesmo fazendo uma análise minuciosa, e supondo, sensatamente, que “quadro” substitui “plano”, ao menos em parte, resta uma ideia, indefinida, mas sugestiva, do quadro como quadro temporal, que exclui todo pensamento do quadro como janela, como limite ou como composição, em prol de uma concepção do enquadramento como gesto, como gesto unitário, atribuído ao mestre, cuja arte ele revelaria” (AUMONT, 2004, p. 223).

O “quadro” cinematográfico ou plano não é uma imagem fixa (como uma fotografia ou uma tela pintada), dentro de cada plano/fotograma que se sucede um após o outro através do movimento da montagem, também possui seu movimento interno de composição (da câmera, dos personagens) criando espaços com profundidade de campo e perspectiva, sendo a nitidez da imagem um forte componente na ilusão dessa profundidade.

Em pintura, o problema é relativamente simples: embora o pintor seja mais ou menos obrigado a respeitar uma certa lei perspectiva, ele brinca com liberdade com os diversos graus de nitidez da imagem; sobretudo na pintura, o flou, em particular tem um valor expressivo que se pode usar à vontade (AUMONT, 1995, p. 33).

No cinema, isso não acontece. A câmera trabalha com a nitidez de uma forma mais mecânica: o objeto regula a nitidez de acordo com a quantidade de luz e a distância do objeto, sendo que isso pode variar dependendo da câmera e de como ela é colocada em relação ao objeto. Para Áurea Ortiz e María Jesús Piqueras, esta profundidade de campo contradiz a percepção do real, “es evidente que no percibimos con la misma nitidez los objetos en la distancia y que nuestro ojo realiza un continuo e inevitable ejercicio de focalización (de la que la escala de planos es una transposición)” (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 35).

181

Portanto, esse percurso escancarado por Jarman, nos é dado em partes, pois uma parte, talvez sua maior, nos fica escondida, apenas pertencendo a memória daquele que filmou;

c) Um percurso que NÃO nos é dado a ser visto: A pintura tradicional, feita no suporte tela, delimita-se através das bordas do quadro onde está inserida. No cinema, o extra-quadro possui um poder de presença em sua ausência, que, em muitos casos, é até mais arrebatadora do que aquilo que está no quadro fílmico. Talvez seja esse um dos grandes diferencias entre cinema e pintura: o fora de quadro.

El fuera de campo en la pintura es siempre imaginario, el espectador nunca podrá verlo, aunque la representación lo construya: el resto del espacio y las figuras que violentamente corta Degas, lo que miran los personajes del Paseo Matinal (1785), de Gainsborough, o los de El balcón (1868), de Manet, el barco que divisan los supervivientes del Naufragio de la Medusa (1819), de Géricault, etc” (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 35).

Ao contrário, no cinema, o fora de campo existe, ele é concreto e pode ser visto, vivido ou sentido com apenas um simples deslizar da câmera. O crítico francês André Bazin argumenta que a imagem pictórica é centrípeta, suas representações permanecem dentro do limite do quadro/moldura, enquanto a imagem cinematográfica é centrífuga, os seus fragmentos possuem uma relação extrínseca com o espaço exterior, se prolongam além da borda da imagem.

Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada por uma inevitável subjetividade. Diante da imagem uma dúvida persistia, por causa da presença do homem. Assim, o fenômeno essencial na passagem da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento material [...] mas num fato psicológico: a satisfação completa do nosso afã de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído (BAZIN, 1991, p. 21).

A ausência de Jarman no quadro fílmico nos é dada através de sua presença no extra-quadro. Sabemos que Jarman está ali, nos conduzindo através da paisagem, nos deixando com a sensação que existe algo a espreita e que, tudo

182 aquilo que ele nos deixa ver, não corresponde à imensidão daquilo que não conseguimos ver, nos resta apenas sentir e deixar que nosso olhar crie esses elementos que faltam para uma construção totalizante da imagem. Jarman compreende tão bem esse poder do extra-quadro, daquilo que não é mostrado, mas que pode ser sugerido ou ouvido, que o mantém na construção de várias obras, principalmente em seus longas-metragens. O extra-quadro se impõe como uma força narrativa que impregna as imagens escolhidas para serem mostradas, que são contaminadas por aquilo que não é visto ou por aquilo que é apenas ouvido. Em Avebury, o que está fora do quadro, o que nos é “escondido”, muitas vezes nos causa mais interesse, do que aquilo que propriamente está sendo mostrado. A potência do não visto é o que constrói o clima de “mistério” envolto nessa obra;

d) Um percurso de retorno às tradições paisagísticas inglesas: Avebury é lento, contemplativo, quase etéreo, deslocando a noção temporal de uma paisagem, que remonta claramente à tradição das pinturas paisagísticas inglesas. Jarman evoca, em Avebury, obras de vários artistas, de diferentes épocas, do século XVIII ao século XX, entre clássicos, românticos, pré-rafaelitas, impressionistas e modernistas, que tão bem retrataram as paisagens inglesas. “Jarman sempre se definiu não como um artista moderno e sim como um neorromântico” (SOBRINHO e MELLO, 2015, p. 209), “visitando e rejeitando as tentações da era vitoriana, retornando com certo prazer às suas memórias de infância” (SOBRINHO e MELLO, 2015, p. 210), fazendo de Avebury “uma fascinação pelo passado místico do Reino Unido” (SOBRINHO e MELLO, 2015, p. 214). A paisagem na arte britânica tem sua origem como pano de fundo dos retratos, principalmente após a proibição de imagens religiosas nas pinturas com a Reforma Protestante no século XVI. Posteriormente, os mapas e imagens topográficas do século XVII, praticamente se tornam os antecessores diretos dessa pintura de paisagem. Com isso, a partir do século XVIII, essa predileção por temas paisagísticos cresce de tal forma que se firmam como “uma tendência nas

183 artes visuais Britânicas” (HUMPHREYS, 2015, p. 13) e um dos gêneros mais reconhecidos da história da pintura, antecipando outros movimentos outrora tão famosos quanto, como o Impressionismo e até mesmo a abstração (SEROTA, 2015).

As razões da predominância da arte de paisagem dentro da cultura visual nacional da Grã-Bretanha são muitas e das mais variadas: a extraordinária diversidade de paisagem física em um espaço geográfico relativamente pequeno, das Highlands escocesas às colinas de giz dos condados do sul da Inglaterra; o forte sentimento de perda de um mundo ideal, pastoral e rural, resultado de uma rápida industrialização nos séculos XVIII e XIX; a identificação da pequena nobreza rural com a cultura clássica, em particular com a paisagem da Campânia romana; o enorme impacto das ciências naturais e uma crença concomitante de que uma observação minuciosa revelava as verdades espirituais e morais por detrás das aparências (SEROTA, 2015, p. 9).

É a partir do século XVIII que a experiência com a paisagem é colocada em relação ao belo (clássico), ao sublime e ao pitoresco. Na pintura clássica existe uma harmonia entre o homem e a natureza, ambos estão colocados de forma igualitária na imagem, sendo essa noção do “belo” derivada das composições clássicas idealizadas do francês Claude Lorrain (1600-1682), uma das influências de um dos primeiros grandes pintores ingleses do gênero da paisagem: Richard Wilson (1713-1782), que molda os panoramas clássicos da paisagem com um visão caracteristicamente britânica. É através da paixão dos ingleses pelas pinturas de Lorrain e Nicolas Poussin (1594-1665) que cresce a popularidade dessa temática da contemplação do belo (conceito derivado dos gregos e persas) para a paisagem pastoral, uma espécie de derivação dessa contemplação em paisagens tranquilas, bucólicas, onde a presença da água é frequente. Para Richard Humphreys, esse classicismo é dado “na crença do poder estético e moral da paisagem e na centralidade do homem em meio ao ambiente natural” (HUMPHREYS, 2015, p. 17), sendo a paisagem clássica “uma forma de paisagem soberanamente teatral, com seus repoussoirs, planos espaciais sobrepostos e fortes elementos narrativos” (HUMPHREYS, 2015, p. 17).

184

A palavra sublime, derivada do filósofo e político Edmund Burke (1729- 1797), propõe que o sublime “como uma experiência natural e uma estética - uma sensação de estar intimidado por forças naturais vastas, escuras e ameaçadoras que poderiam ser sentidas diante de uma tempestade ou montanha real ou diante da representação de tal objeto” (HUMPHREYS, 2001, p. 118)129. Os artistas vão ao ar livre para pintar, sendo que “descobrir as sutilezas da visão e da sensação vão se tornando preocupações centrais” (HUMPHREYS, 2015, p. 21) das obras propostas por eles. O artista como testemunha, que se coloca in loco para a realização dessas obras, reflete “o desejo de uma experiência autêntica tanto do eu quanto da natureza” (HUMPHREYS, 2015, p. 21). Burke ainda opunha essa idéia de sublime “ao prazer tranquilo proporcionado pelo belo, definindo o primeiro como uma percepção do terrível poder destrutivo da natureza e da vulnerabilidade da psique humana” (HUMPHREYS, 2015, p. 93). No sublime, as montanhas, os céus noturnos e a vida selvagem passam a ser temas frequentes das pinturas de paisagem. No pitoresco, a ênfase estava mais na forma dessas paisagens do que propriamente na função que elas representavam, sendo admiradas pelo que eram e não pela capacidade de gerar emoções. O pitoresco “valorizava o prazer das formas irregulares e texturas ásperas, a apreciação melancólica das ruínas e rejeição de quaisquer teorias artísticas ou políticas grandiosas” (HUMPHREYS, 2015, p. 93). Podemos citar vários pintores que, de maneira direta ou indireta, possam ter influenciado o olhar de Jarman na construção de várias obras e de Avebury em especial: do século XVIII - Richard Wilson, George Stubbs, Philiph James de Loutherbourg, Francis Towne, Thomas Girtin; do século XVX - John Sell Cotmann, Richard Parkes Bonington, John Martin, Samuel Palmer, William Dyce, John Everett Millais, William Holman Hunt, James Abbott McNeill Whistler, John Singer Sargent; do século XX: Augustus John, Paul Nash, David Bomberg, CRW Nevinson, Richard Long.

129 As both a natural and an aesthetic experience – a sense of being overawed by vast, dark and threatening natural forces which could be felt in the face of a real storm or mountain or before the representation of such an object. Tradução do autor.

185

Mas ficaremos aqui com apenas três artistas com os quais se percebe uma aproximação maior com a imagética jarmaniana na construção do clima místico das paisagens inglesas proposto em Avebury e em alguns outros curtas em Super 8: Thomas Gainsborough (1727-1788), John Constable (1776-1837) e, principalmente, Joseph Mallord William Turner (1775-1851). Thomas Gainsborough antes de tudo era um retratista tão conceituado que se sustentava através dessas pinturas, mas eram a natureza e as paisagens a sua grande paixão (Figura 84). Para Gainsborough, a natureza deveria ser apreciada por si mesma, tendo um significado espiritual. A paisagem é divina e acolhedora, onde o homem vive em contato amigável com ela, sem nenhum tipo de opressão. Estava interessado nas particulariedades dessas paisagens, nas suas verdadeiras cores e formação. Suas primeiras pinturas de paisagens “frequentemente descrevem um mundo natural ideal em que cavalheiros tocam instrumentos musicais, ao passo que suas obras tardias criam um paraíso completamente imaginário de pastores de vacas com seus satisfeitos rebanhos” (HUMPHREYS, 2015, p. 49). Dois dos maiores paisagistas ingleses, Constable e Turner, eram comtemporâneos, mas criaram carreiras completamente diferentes. Enquanto Turner era um obcecado pela ascensão e queda dos impérios, Constable tinha uma predileção por uma visão nostálgica da paisagem rural (HUMPHREYS, 2001) (Figura 85).

Nossa visão da arte britânica na primeira metade do século XIX é dominada pelo trabalho de dois pintores paisagistas que tanto fizeram importantes contribuições não apenas para a história da arte, mas também para a cultura nacional mais ampla - no caso de John Constable em sua criação de uma imagem que ajudou a definir um senso de paisagem tipicamente inglesa e, no caso de J. M. Turner, um tipo de gênio nativo (HUMPHREYS, 2001, p. 105)130.

130 Our view of British art in the first half of the nineteenth century is dominated by the work of two landscape painters who have both made major contribuitions not only to art history but also to the wider national culture – in the case of John Constable in his creation of an imagery that has helped to define a sense of typical English landscape an, in the case of J. M. Turner, a type of the native genius. Tradução do autor.

186

Constable estava interessado no mundo ao seu redor, suas pinturas eram criadas a partir de uma intensa observação, tentando alcançar uma equivalência maior entre a paisagem pintada e a paisagem natural à sua frente, com o céu colocado de forma bem acentuada, uma herança dos paisagistas holandeses do século XVII. Há também em Constable um senso de nostalgia que evoca “o desaparecimento de uma paisagem lembrada da infância” (HUMPHREYS, 2001, p. 107)131.

Preocupado com o fato de tais cenas de praia estarem se tornando banais, Constable, no entanto,parece ter resolvido não apenas pintar uma importante declaração visual com o céu, como sempre em sua obra "o principal órgão do sentimento", e os ricos detalhes das figuras em primeiro plano no trabalho. e em repouso, mas também para transmitir sutilmente, por uma espécie de grandeza de contraste, sua melancolia sobre o mundo do lazer moderno (HUMPHREYS, 2001, p. 109)132.

Constable e Turner estavam a par dessa mudança que estava ocorrendo no mundo e mais especificamente na Inglaterra. A transformação industrial da paisagem britânica é evocada nos produtivos campos de Constable e na energia empreendida nas obras de Turner, um misto entre uma força natural e industrial. “Turner é, acima de tudo, um dramaturgo da luz, o mais estupendo que a Inglaterra já produziu. Mas com seus jogos de luz e cor nunca visava efeitos puramente estéticos” (SCHAMA, 2010, p. 265). Em Turner, a natureza é uma força indomável, realçando essa “selvageria” através de variados temas com tempestades, seu intuito era realçar a “cor” da luz, sendo considerado um dos precursores da arte abstrata por esses experimentos entre cor e luz. Turner “raramente era abstrato em seu impulso, mas sim um visionário espiritualmente carregado de experiência empírica” (HUMPHREYS, 2001, p. 112)133.

131 A disappearing landscape remembered from boyhoodTradução do autor. 132 Concerned that such beach scenes were becoming hackneyed, Constable nevertheless seems to have resolved not only to paint a major visual statement with the sky, as ever in his work ‘the chief organ of sentiment’, and the rich details of the foreground figures at work and at rest, but also to subtly convey, by a kind of grandeur of muted contrast, his melancholy about the world of modern leisure. Tradução do autor. 133 Was rarely abstract in his impulse, but rather was a spiritually charged visionary of empirical experience. Tradução do autor.

187

Para a moderna arte abstrata, as camadas transparentes de cor que se superpõem livremente constituem o marco inaugural da pintura não figurativa, porém Turner nunca as viu desse modo. Para ele, eram experimentos com manchas, aguadas e vazadas que poderiam levá-lo a uma composição figurativa mais compexa (SCHAMA, 2010, p. 283).

Turner se voltou para uma “arte que seria a representação do que via, e não a representação do mundo físico” (SCHAMA, 2010, p. 283). Prova disso é a lenda de que para realizar a pintura Tempestade de neve: vapor ao largo do porto (1842) (Figura 86), o pintor teria se amarrado no mastro de um navio durante uma tempestade noturna apenas para conseguir transmitir visualmente aquela experiência e sensação.

Turner tinha uma teoria metafísica pessoal da luz, que era em sua imaginação um sinal tanto do poder inescrutável do sol quanto da ameaça de extinção total pela grande estrela que, tanto os cientistas quanto os bispos, acreditavam que um dia expiraria (HUMPHREYS, 2001, p. 112)134.

3.2. Paisagem de viagem Essa jornada por diferentes lugares rende a Jarman uma produção extremamente interessante acerca de elucubrações em território que não lhe pertence. Esses curtas de paisagem de viagens operam de uma forma que se tornam um híbrido de um filme-diário (de viagens) com uma estética experimental, realizados nessas suas andanças pelos Estados Unidos, Dinarmarca, Itália, Rússia, etc. Jarman faz com que algumas dessas imagens sejam carregadas de experimentações quase abstratas, como sua passagem pela ilha de Mon na Dinamarca. A partir dessa viagem, Jarman organizou as imagens captadas em setembro de 1973, no que veria a ser a primeira versão do curta Walk on Mon (1973, pb, 19’40). Logo depois reorganizou esse material em um novo curta, Space Travel, A Walk on the Island on Mon (1973, colorido, 19’50). Culminando

134 Turner had a personal metaphysical theory of light, which was in his imagination a sign both of the unfanthomable power of the sun ando f the threat of total extinction by the great star that scientists and bishops alike believed would one day expire. Tradução do autor.

188 com uma versão finalizada dessa viagem com o título de Ashden’s Walk on Mon (1973, colorido e pb, 37’38) (Figura 87), sendo que a versão utilizada para essa análise é a disponível no dvd Derek Jarman: Antologia em Super 8, Ashden’s Walk on Mon (1973, colorido e pb, 15’). O personagem/pessoa Ashden, cujo sobrenome é desconhecido e, na verdade, pouco se sabe quem seria essa figura, atravessa essa ilha dinamarquesa caminhando junto com outras pessoas, com um plano de fundo (backdrop) de uma galáxia espiralada, com filtro em tons azulados. Posteriormente, cenas em tons esverdeados são mostradas da paisagem de Mon, em um filme que é quase uma meditação transcendental através das encostas e florestas da ilha. Em Jarman, algumas experiências com o experimental se tornam radicais nessas paisagens de viagens, fazendo desse encontro experiencial com os espaços do mundo, esse “estar em outro lugar”, como uma forma de extensão do seu eu, um eu ensaístico.

Por meio desse processo de estar em outro lugar, esse eu se torna um outro e diferente eu, e o ensaio de viagens, em particular, tem sido uma prática literária e cinematográfica notável, que descobriu significação ideológica e psicológica complexa por meio da viagem, da caminhada ou da exploração (CORRIGAN, 2015, p. 105).

Jarman age como um ensaísta viajante, como se essas viagens fossem “excursões” de um eu em transformação.

Como sujeito ensaístico é um eu que está continuamente no processo de investigar-se e transformar-se, um dos encontros experienciais que testam e remoldam mais geralmente esse sujeito são, natural e culturalmente, os espaços do mundo (CORRIGAN, 2015, p. 105).

A partir da diferenciação realizada por Stella Bruzzi (apud CORRIGAN) entre “travelogues films”, termo utilizado para filmes de viagens anteriores ao documentário, geralmente centrado na figura do viajante-explorador-realizador que, simplesmente, mostrava uma crônica dos acontecimentos em determinados lugares e regiões, com os “journey films”, geralmente associados aos

189 documentários do cinema verdade e do cinema direto, que estão mais preocupados com o ato de viajar do que chegar em algum lugar específico, Corrigan adiciona uma terceira categoria a essas definições: o filme de excursão: “para designar mais precisamente as práticas do filme-ensaio, definidas por uma organização menos coerente do que a forma serial dos travelogues e sem ao menos a trêmula estabilidade dos “narradores” e viajantes coerentes de filmes de viagens recentes” (CORRIGAN, 2015, p. 112)

Uma excursão como forma de viagem sugere uma exteriorização que retorna a um ponto de partida, e a excursão ensaística, como a estrutura de News from home e como o próprio ensaio excursivo, mapeia essa viagem incompleta de uma maneira que também descreve ou sugere como a excursão alterou e desestabilizou fundamentalmente o sujeito viajante (CORRIGAN, 2015, p. 112).

Mais do que jornadas incompletas que possam alterar e desestabilizar a subjetividade do viajante, Jarman se comporta como uma espécie de flâneur baudeleriano, que anda pela cidade/mundo a fim de experimentá-lo, um observador de pequenos detalhes, de formas que o encantam e o fazem colocar essas imagens captadas a serviço de suas idiossincrasias. Imagining October (1984, colorido, 27’) (Figura 88), foi filmado em uma viagem feita em 1984 para a Rússia (na época URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), juntamente com um grupo de cineastas britânicos independentes (entre eles Sally Potter) e o crítico Peter Wollen, entre outros. Jarman usou sua câmera Nizo para fazer várias imagens em Super 8 das cidades de Moscou e Baku, filmando as ruas de Moscou, a arquitetura stalinista e a opulência dos monumentos russos e também crianças nas ruas de Baku. Ao voltar para Londres, ainda não sabia muito bem o que iria fazer com essas imagens. Algumas semanas após o seu retorno ele precisava entregar um filme para ser exibido no London Film Festival: foi assim que surgiu Imagining October. Jarman pegou essas imagens captadas em Super 8 na Rússia e as alternou na montagem com imagens feitas em vídeo do pintor John Watkiss pintando cinco jovens uniformizados como soldados ingleses, agrupados em uma bandeira vermelha. Junto a essas imagens inseriu um texto com letras vermelhas

190 em um fundo preto, às vezes irônico, às vezes raivoso, atacando a política do governo Thatcher.

Sentado na cadeira de Eisenstein Moscou 1984 Outubro 135

Em seguida, vemos imagens de Jarman em uma cadeira que teria sido do diretor russo Serguei Eisenstein, seguido de imagens de labaredas de fogo, de Moscou e do livro Dez dias que abalaram o mundo, uma cópia que havia pertencido ao diretor russo, com o nome de Trotsky apagado, sendo folheado.

Eisenstein censurado!

Trotsky apagado! 136

Os letreiros seguem ainda por alguns minutos, até o final do texto, mostrando, logo em seguida, um plano detalhe de um pincel misturando tintas. A partir daí não vemos mais textos escritos, apenas imagens de Moscou, de Baku e do pintor John Watkiss pintando um quadro, com alguns rapazes em uniforme de soldados ingleses posando para ele.

Pensamentos caseiros Enredo De repressões Polícia de choque nas ruas? Filmes censurados pela IBA? Livros apreendidos pela alfândega? Livrarias fechadas?

135 Sitting on / Eisenstein’s chair / Moscow 1984 / October. Tradução do autor. 136 Eisenstein censored! / Trotsky erased! Tradução do autor.

191

Política de regressão Através da idolatria econômica O choro da prostituta Em cada rua alta A velha Inglaterra tece Sua mortalha Avance no passado Aquilo não é Na velha terra alegre Do Foi “Divertido” “Liberdade” “Democracia” E “A regra da lei” Forças de mercado Pesquisas de opinião Classificações de audiência Melhor maneira de esmagar Expressão eficaz De consciência independente Publicitários da imagem falsa “política” Publicitários da imagem falsa “arte” Nós achamos que você vai gostar Ingleses antiquados Em uma rua inglesa Defendendo o direito Dele à batida

192

Nós achamos que você vai gostar Onde há sujeira Há latão Censura Do Capital Manipuladores Eles mesmos manipulados E na sua loucura Procuram anular Todos os valores Tudo Isso é uma merda Mas achamos que você vai gostar Tédio Inércia Esgotamento sistemático De consciência Mais cedo aniquilar milhões Com Bilhões Do que Sacrificar a diversão Do Motivo do lucro Publicitários da imagem falsa O novo cinema britânico Sucesso!! Rolar Carruagens de Fogo O Albion de Blake?

193

Sublime Gênio introspectivo Na corrida Tocando a gaita de fole Do senhor Presidente Onde há sujeira Há latão Crimes contra o gênio E a humanidade História saqueada Promovendo A pobreza do intelecto E emoção137

Junto a este texto com “slogans” e palavras de ordem, Jarman inseriu um trecho de um poema de William Blake, de 1794.

A rosa doente Ó Rosa, está doente! Um verme pela treva Voa invisivelmente O vento que uiva o leva Ao velado veludo Do fundo do teu centro:

137 Home thoughts / Scenario / Of repressions / Riot police in the streets? / Films censored by the IBA? / Books seized by customs? / Bookshops closed down? / Politics of regression / Through economic idolatry / The harlot’s cry / In each high street / Weaves old England’s / Winding sheet / Step forward into the past / That is not / Into the merrie olde land / Of / Was / “Fun” / “Freedom” / “Democracy” / And / “The rule of law” / Market Forces / Mori Polls / Audience Ratings / Best means to crush / Effective expression / Of independent conscience / Admen false imaging / “politics” / Admen false imaging / “art” / We think you’ll like it / English Bobbies / In an English street / Defend the rights / Of him they beat / We think / you’ll like it / where there’s muck / there’s brass / censorship / of / capital / Manipulators / Themselves Manipulated / And in their madness / Seek to abrogate / All values / Everything / This is shit / But we think you’ll like it / Boredom / Inertia / Systematic exhaustion / Of conscience / Sooner annihilate millions / With / Billions / Than / Sacrifice the fun / Of the / Profit motive / Admen false imaging / The new British cinema / Sucess!! / Roll on / The Chariots of Fire / Blake’s Albion? / Sublime / Introspective genius / Suborned / Into the race / To win the race / Playing the pipes / Of Mr President / Where there’s muck / There’s brass / Crimes against genius / And humanity / History ransacked / Promoting / Poverty of intellect / And emotion. Tradução do autor.

194

Seu escuro amor mudo Te rói desde dentro.138

E finaliza com:

Soluções privadas Sentado no Estúdio de Eisenstein Com uma câmera de filmes caseiros Imaginando Outubro Um cinema De

Gestos pequenos. 139

Imagining foi filmado no mês de outubro, sendo que outubro também é o título de um filme de Eisenstein, de 1928, sobre a revolução russa.

Estávamos fazendo o filme em outubro. Outubro estava à nossa volta de certa maneira. Não apenas as memórias de outubro, mas estávamos em outubro; estávamos na União Soviética. O “Imagining” ou “imaging”140 de outubro tem a ver com isto, que a palavra tivesse um tipo de clamor e tivesse a ver com imagens, imaginando e imaginação, e compreendesse seu verdadeiro caráter. Eu poderia o ter chamado de Imaging October, e em um certo momento até pensei nisto, então eu decidi mudar para imagining (FIELD e O’PRAY, 2016, p. 70).

O texto que Jarman coloca em seu filme é provocativo não só à política thatcherista e a violência que reprimia os manifestantes que se opunham a esse goveno, como também ataca o filme Carruagens de fogo (Chariots of Fire, 1982), do produtor David Puttnam, por fazer um cinema “vendido” ao poder financeiro dos

138 The Sick Rose / O rose thou art sick. / The invisible worm, / That flies in the night / In the howling storm: / Has found out thy bed / Of crimson joy: / And his dark secret love / Does thy life destroy. Tradução Augusto de Campos. 139 Private Solution / Sitting in / Eisenstein’s study / With / a home movie camera / Imagining October / A cinema / Of / Small gestures. Tradução do Autor. 140 Foneticamente semelhantes, “imagining” significa imaginando, enquanto “imaging” significa fazendo imagens. Tradução Rachel Ades.

195 norte-americanos, pois recebia os maiores investimentos para a realização desses filmes amplamente criticados pela imprensa inglesa. Jarman queria “introduzir uma disrupção nestes intertítulos para que até a pessoa que quisesse ver coisas que gostaria de ver, não as vissem exatamente da mesma maneira” (FIELD e O’PRAY, 2016, p. 74). Para Driscoll, “baseando-se no simbolismo de Blake em seu poema, ‘The Sick Rose’, podemos sugerir que Jarman e a tradição vêm representar a rosa, enquanto o thatcherismo e sua mídia se tornam a larva que "sua vida destrói” (DRISCOLL, 1996, p. 72)141. Sua afronta ao governo Thatcher sempre foi feita de forma direta. Para Jarman, Thatcher renegava as tradições inglesas, o que era inconcebível para alguém ligado a esse imaginário inglês, a essa “Arcádia cultural” britânica.

O que me interessa é que a Inglaterra elizabethana é nossa Arcadia cultural, como Shakespeare é o eixo essencial de nossa cultura. Parece realmente importante saber lidar com isso. Quase todo mundo que trabalha com artes em algum ponto acaba prestando atenção em Shakespeare. O mito total de Camelot, Blake, Tennyson – você pode passar por todos artistas ingleses – é o tal sonho de Arcadia. Nós parecemos ser a única cultura europeia que realmente tem esse pano de fundo de sonho (FIELD e O’PRAY, 2016, p. 77).

Talvez essa necessidade de um “pano de fundo de sonho” seja significativa no modo que Jarman se utiliza de efeitos de câmera que deixem suas imagens granuladas, quase étereas, como se estivessem deslizando pela tela – o efeito dreamlike.

3.3. Paisagem mística dos rituais alquímicos Com fortes influências de Kenneth Anger e seus filmes Scorpion Rising (1964), Invocation of my Demon Brother (1969) e Lucifer Rising (1972), e seu crescente interesse pelo ocultismo e pela astrologia, Jarman se envereda pela produção de curtas em Super 8 com uma estética mais sombria/simbólica e uma

141 Drawing upon Blake’s symbolism in his poem, ‘The Sick Rose’, we can suggest that Jarman and the tradition come to represent the rose, while Thatcherism and its attendant media become the maggot that ‘doth your life destroy’. Tradução do autor.

196 profusão de imagens que são, aleatoriamente, caóticas e desordenadas (PEAKE, 1999). Utilizando como referência o psiquiatra Carl Gustav Jung e seu livro Estudos Alquímicos e o astrólogo renascentista e ocultista John Dee, da corte de Elizabeth I (que, posteriormente, se tornaria um personagem em seu filme Jubilee), Jarman produz obras esteticamente mais ambiciosas, na qual percebemos uma manipulação mais confiante do suporte escolhido, o Super 8 (O’PRAY, 1996). A alquimia se torna uma fonte de reflexão à Jarman que vem ao encontro dos anseios que até então estavam tomando conta de sua vida.

A tradição alquímica era uma das que apontava para a herética, estando em oposição à criação, em particular à Igreja - algo com que Jarman instantaneamente se identificava. Era uma forma de explorar as conexões entre o terrestre e o celeste, entre os quatro elementos inferiores da terra, da água, do ar e do fogo que existem sob a lua, o quinto elemento, a quintessência, de espiritualidade pura. De acordo com a alquimia, todos os objetos no mundo natural significam algo metafísico. A ideia de que o mundo não é simplesmente materialista, mas está cheio de espíritos, com a alma e inteligência, é um anima mundi, onde cada objeto, ainda inanimado, tem propriedades especiais, foi um dos que deu a Jarman um vocabulário rico para articular a maneira como ele próprio sempre tinha apreendido seu entorno. Ele gostou do conceito alquímico do microcosmo e do macrocosmo, de um homem como um mundo em miniatura que reflete algo maior; e da dualidade: que há dois lados de tudo (claro e escuro, sol e lua, masculino e feminino, carne e espírito), e que esses opostos são encontrados em todas as pessoas, onde podem ser unidos em uma única - a conjunção alquímica (PEAKE, 1999, p. 191)142.

Garden of Luxor (1973, colorido, 8’24) (Figura 89) e The Art of Mirror, (1973, colorido, 6’) (Figura 90), inauguram o que Frey chama de primeiros Super 8 meditativos, com imagens que criam “um ambiente como uma tapeçaria de

142 The alchemical tradition was one that tended towards the heretical, standing in opposition to the establishment, in particular the Church – something with which Jarman instantly identified. It was a way of exploring connections between the terrestrial and the celestial, between the four lower elements of earth, water, air and fire that exist beneath the moon, and the fifth element, the quintessence, of pure spirituality. According to alchemy, every object in the natural world signifies something metaphysical. The idea that the world is not simply materialistic, but is filled with spirits, with soul and intelligence, is an anima mundi where every object, albeit inanimate, has special properties, was one that gave Jarman a rich vocabulary for articulating the way he himself had always apprehended his environment. He liked the alchemical concept of the microcosm and macrocosm, of a man as a miniature world reflecting the greater one; and of duality: that there are two sides of everything (light and dark, sun and moon, masculine and feminine, flesh and spirit), and that these opposites are found in all people, where they can be joined and made one – the alchemical conjunction. Tradução do autor.

197 imagens aleatórias” (FREY, 2016, p. 145)143 e “muito conscientemente procuram distanciar-se de qualquer "narrativa" - e, posteriormente, também interpretação” (FREY, 2016, p.145)144. Garden of Luxor é o primeiro filme de Jarman que trabalha com sobreposições - “Ele projetou dois filmes, um em cima do outro, em uma parede da sala de estar e refilmou o resultado. Ele usou este meio primitivo, mas perfeitamente adequado de alcançar um efeito sem o uso de uma impressora óptica145 até meados dos anos 80”146 (O’PRAY, 1996, p. 65). Constam três “versões” dessa obra na qual Jarman debruçou-se algumas vezes, sem chegar a uma versão final (A Garden in Luxor, 1973, colorido, 10’33 e Beyond the Valley of the Garden of Luxor Revisited, 1973, colorido, 58’59). Utilizarei aqui a versão de 8’58 minutos, que circula facilmente pela internet. Um homem vestido de preto (Christopher Hobbs) chicoteia algo/alguém ou a si mesmo em um jardim, na parte inferior do extraquadro. Algumas imagens de pessoas se sobressaem: um jovem deitado, pessoas comendo, alguém fumando. Sombras e formas emergem em cores avermelhadas das Pirâmides e da Esfinge, no Egito. No final temos um found footage de cenas de perseguição de algum filme antigo de aventura e/ou faroeste. Jarman utiliza dois cartões postais – das Pirâmides e de um jardim na cidade de Luxor – projeta-os juntamente com outras imagens por cima e refilma essas cenas. Com isso, Jarman cria uma atmosfera de sonho, o efeito dreamlike, que posteriormente ele vai usar em um longa-metragem, The Angelic Conversation (1985). Esses cartões postais são a base do filme de Jarman, juntamente com as imagens de found footage. É o início de uma estética que contaminará todo o trabalho artístico de Jarman, com dissolução e sobreposição de imagens, refilmagem de imagens previamente gravadas por ele, textura, slown dow e single frame, filtros com cores fortes e artificiais e criação de

143 Ambient tapestry of random images. Tradução do autor 144 Very consciously seek to distance themselves from any ‘narrative’ – and subsequently also interpretation. Tradução do autor. 145 Impressora de película utilizada na fabricação de efeitos óticos que consistia basicamente de uma câmara que fotografava a imagem com lentes especiais para aumentar, reduzir, distorcer, etc, e um projetor que transferia a imagem para a impressão, distinguida de uma impressora de contato. 146 He projected two films, one on top of the another, on his living-room wall and refilmed the result. He used this primitive but perfectly adequate means of achieving such an effect without the use of an optical printer until the mid-80s. Tradução do autor.

198 metáforas. “Em suma, ele desenvolveu uma série de técnicas que tendiam a induzir o devaneio, o desvio mental e o sonho” (CHARLESWORTH, 2011, p. 48)147. Outra produção muito manipulada por Jarman, em suas constantes (re)visões/(re)edições foi The Art of Mirrors. Sua primeira elaboração desse material foi com Burning of Pyramids aka The Art of Mirrors de 32 minutos, posteriormente Jarman aumentou essa metragem para 49’18 encurtando o título para apenas The Art of Mirrors. A versão utilizada para essa análise é a que consta no dvd Derek Jarman Antologia em Super 8148 que contém seis minutos de duração. The Art era um filme pelo qual Jarman mantinha um grande apreço, talvez por isso sua dedicação em transformá-lo, em diversas ocasiões, através da montagem.

Este é o primeiro filme que fizemos em Super 8 com o qual não há nada para comparar. Os outros Super 8 dos últimos meses ainda estão muito perto do trabalho em 16 mm; considerando que este é uma coisa que só poderia ser feita em uma câmera Super 8, com sua metragem e efeitos embutidos. Finalmente temos algo completamente novo (JARMAN, 1984, p. 208)149.

The Art possui longas tomadas estáticas, onde os amigos Luciana Martinez e Kevin Whitney caminham fazendo alguns gestos soltos e aleatórios, de forma lenta, segurando na mão um espelho com o qual fazem reflexos em direção a câmera/nosso olhar, enquanto Gerald Incandela veste uma máscara feita de saco de papel. O título do curta provavelmente foi uma alusão ao instrumento que John Dee escolhia para as adivinhações: o espelho, especialmente pelo fato de que o roteiro inicial do filme era intitulado Dr Dee The Art of Mirrors and The Summoning of Angels (Doutor Dee A Arte dos Espelhos e A Invocação dos Anjos).

147 In short, he developed na array of techniques that tended to induce reverie, mental drift and dream. Tradução do autor. 148 Derek Jarman Antologia em Super 8 – DVD Duplo – Magnus Opus, 2006. 149 This is the first film we’ve made on Super 8 with which there is nothing to compare. The other Super 8s of the last few months are still too close to 16mm work; whereas this is something which could only be done on a Super 8 camera, with its in-built meters and effects. At last we have something completely new. Tradução do autor.

199

O filme é uma tarefa difícil e não ganhava o público facilmente. Mas eram filmes como The Art of Mirrors, filmado em super-8, com uma forte estética imagética, num momento em que 16 mm era o “rigueur” no movimento cinematográfico da avant-garde britânica, que foram os inspiradores para o movimento superoitista do início dos anos 80 (O’Pray, 1996, p. 67).150

Steven Dillon, em seu livro Derek Jarman and a lyric film – the mirror and the sea, assim como o próprio título diz, afirma que todas as obras audiovisuais de Jarman operam numa relação entre o espelho e o mar (ou água em geral), amparados no mito de Narciso.

Os espelhos assinalam a replicação da identidade e modelam o desejo de um eu semelhante. […] No entanto, o espelho do mito original de Narciso é, de fato, água; natureza e arte potencialmente alternadas. O espelho que se dissolve na água já não reflete, mas absorve. O objeto não é duplicado; em vez disso, é consumido ou afogado. Semelhança e esquecimento, repetição e dissolução: estes são os extremos polares que o espelho narcisista mantém dentro dele (DILLON, 2004, p. 47)151.

Os reflexos, as imagens refletidas, sempre causaram fascínio no ser humano. Olhar-se no espelho é uma busca para ver quem somos e como somos, um fascínio ou uma reprovação pela imagem vista. O mito de Narciso, contado nas Metamorfoses de Ovídio, é sobre um belo jovem que despertava o amor em ninfas e donzelas, mas que havia escolhido viver só. Um certo dia, ao chegar próximo a uma fonte de águas cristalinas, viu uma figura que o olhava. Narciso se apaixona pela própria imagem, fica dias a contemplá-la, sem se alimentar, até morrer. Em seu lugar nasce uma flor roxa, rodeada de folhas brancas, que as ninfas chamaram de Narciso.

150 The film is a difficult one and does not win audiences easily. But it was films like The Art of Mirrors, shot on super-8 with a strong imagistic aesthetic at a time when 16mm was de rigueur in the British avant-garde film movement, that were to inspire the super-8 movement of the early 80s. Tradução do autor. 151 The mirrors signals the replication of identity and models the desire for a like self. […] Yet the mirror in the original myth of Narcisus is, in fact, water; nature and art potentially alternate. The mirror that dissolves into water no longer reflects, but absorbs. The object is not duplicated; instead, it is consumed or drowned. Sameness and oblivion, repetition and dissolution: these are the polar extremes that the narcissistic mirror holds within it. Tradução do autor.

200

O espelho indica ao homem a inacessibilidade da sua imagem, por conseguinte a ordem da divisão que está na base da relação com o outro, com a alteridade do seu princípio [...]. É a questão do espelho, porque só há imagem se houver espelho, ou qualquer outro equivalente simbólico, se houver um terceiro que nos separe para sempre de nós mesmos (JOLY, 2002, p. 133).

Há nessa busca de Narciso, nessa paixão pelo reflexo da própria imagem, uma descoberta que podemos estabelecer como uma busca pela identidade. Jarman empreende em seu cinema essa busca por uma identidade, por um lugar em um mundo controverso que atacava frontalmente sua orientação sexual. Nesse ambiente conservador, a identidade sexual de Jarman se opunha de forma feroz aos ditames políticos impostos por leis que proibiam a homossexualidade. Para Dillon, o mito de Narciso é fundamental no entendimento dessa imagética jarmaniana. Mas adverte que, desde o início, Jarman é cauteloso nessa apreensão das formas negativas que a leitura desse mito possa suscitar: egoísmo, auto-absorção, desejo pela própria imagem, etc. Em Sebastiane (Figura 91), Jarman faz uma referência direta à imagem de Narciso se admirando nos reflexos da água, assim como em outros filmes a questão do espelho e os reflexos que dele pode emanar (assim como também da água) é constante nos simbolismos criado por Jarman. Em seu último filme, Blue, o título escolhido e a única imagem que temos durante toda a projeção é a cor azul, azul das águas, onde Jarman propõe à sua audiência um “mergulho” e que se sinta “refletida” nas angústias e reflexões por ali empreendidas. Apesar de Dillon focar sua ánalise através desses dois elementos: espelho e mar, também acho pertinente acrescentar dois outros elementos bem frequentes, principalmente nesse corpus de curtas-metragens com características místicas e ritualísticas: o fogo e as máscaras. Não que o mar/água não seja algo central em sua produção, principalmente se levarmos em conta que a Grã-Bretanha é uma ilha, mas essa relação se dá de forma dual, entre os elementos água e fogo, tão caros às tradições alquímicas, juntamente com a terra e o ar. Esses quatro elementos são base de todas as coisas corpóreas.

201

Como o fogo e a água são aspectos-chave dos experimentos alquímicos e a ideia heracliteana de regeneração cíclica, e o ouro era objeto de muito trabalho alquímico, não é difícil explicar a aparência regular de fogo no trabalho de Jarman, o uso crescente de ouro com preto e depois vermelho (com ecos de fogo) nas pinturas dos anos de 1980 e a ocorrência regular de extensões de água em algumas das primeiras pinturas, os longas-metragens (Sebastiane, The Garden e The Tempest) e vários videoclipes (WOLLEN, 1996, p. 21)152.

O fogo é um agente de purificação e transformação, um dos seus principais significados alquímicos, sendo essa transformação de metais ordinários em ouro, uma alegoria para a obtenção da pedra filosofal, que alude a um ser humano transformado. Jarman acreditava em um paralelo do seu trabalho com imagens audiovisuais e o processo alquímico: “Filme é o casamento de luz e matéria - uma conjunção alquímica” (JARMAN, 1984, p. 188)153, mesmo se referindo a The Tempest nessa citação, ela cabe muito bem a The Art e In the Shadow of the Sun, entre outros filmes. Para Gray Watson, fogo é o simbolismo alquímico central nas obras de Jarman, aludindo a essa importância às suas obras pictóricas dos anos de 1980.

O fogo corre em riachos através dos meus sonhos, consome tudo em seu caminho. Em In the Shadow of the Sun, organizado em um labirinto geométrico, as rosas queimam. O mesmo labirinto se repete em Jubilee, estamos literalmente brincando de fogo. Fogo informa The Last of England, queimando, queimando e queimando. Pode haver muito fogo? Ele cintila através de Imagining October, fogo sagrado de Zoroastro. O fogo destrói o antigo, cria um lugar para o novo. Vaga-lume, cintilação, faísca, piromaníaco. "Burning of the House of Parliament" de Turner, folhas de fogo refletidas na água, rios de fogo, o coração ardente da matéria (JARMAN, 1996, p. 223)154.

152 Since fire and water are key aspects of alchemical experiments and the Heraclitean idea of cyclical regeneration, and gold was the object of much alchemical work, it is not difficult to account for the regular appearance of fire in Jarman’s work, the increasing use of gold with black and then red (with echoes of fire) in the 1980s paintings and the regular occurance of expanses of water in some of the early paintings, the feature films (Sebastiane, The Garden and The Tempest) and several music videos. Tradução do autor. 153 Film is the wedding of light and matter – an alchemical conjunction. Tradução do autor. 154 Fire runs in rivulets through my dreams, consumes everything in its path. In In the shadow of the sun, it’s organized in a geometric fire-maze, the roses burn. The same maze recurs in Jubilee, we are literally playing in fire. Fire informs The Last of England, burning, burning, burning. Can there be too much fire? It flickers across Imagining October, sacred fires of Zoroaster. Fire destroy the old, creates a place for the new. Firefly, scintilla, spark, pyromaniac. Turner’s ‘Burning of the House of Parliament’, sheets of fire reflected in the water, rivers of fire, the burning heart of matter. Tradução do autor.

202

Nas máscaras, ao esconder uma identidade, projeta-se uma outra que faz um paralelo com a que está, provisoriamente, subjugada em segundo plano. Por detrás da máscara e do espelho emerge uma busca pela verdadeira identidade. O que está escondido e o que está exposto? Quem sou eu? Eu sou o meu reflexo? Eu sou a minha máscara? Os filmes de Jarman são um reflexo de si próprio. A vida de Jarman faz parte da sua obra e vice-versa, uma não se separa da outra, portanto é factível que cada filme (ou objeto artístico) seja um reflexo fragmentado dessa personalidade tão múltipla: pintor, cineasta, escritor, poeta, jardineiro, etc.

203

Figura 70: Stills do filme “Journey to Avebury”, 1973, direção Derek Jarman.

204

Figura 71: Robert Smithson, “Spiral Jetty”, 1970.

Figura 72: Michael Heizer, “Duplo Negativo”, 1969.

205

Figura 73: Richard Long, “A line made by walking”, 1967.

206

Figura 74: Didier Morin, “Carnac”, 1981-1989. Série de 27 fotografias.

Figura 75: Derek Jarman, “Untitled Drawing”, 1962.

207

Figura 76: Derek Jarman, “Cool Waters”, 1966-1967.

Figura 77: Derek Jarman, “Landscape with a blue pool”, 1967.

208

Figura 78: Derek Jarman, pintura não identificada, possivelmente “The Shore”, 1968.

Figura 79: Derek Jarman, “Landscape”, sem dados.

209

Figura 80: Derek Jarman, “Landscape II”, sem dados.

Figura 81: Paul Nash, “Equivalents for the Megaliths”, 1935.

210

Figura 82: Derek Jarman, “Archeologies”, 1977.

211

Figura 83: Derek Jarman, “Avebury Series”, sem dados.

212

Figura 84: Thomas Gainsborough, “Wooded landscape with a peasant resting”, 1747

Figura 85: John Constable, “Hampstead Heath with bathers”, 1821-22.

213

Figura 86: Joseph Mallord Wiilliam Turner, “Tempestade de neve: vapor ao largo do porto”, 1842.

214

Figura 87: Stills do filme “Ashden’s walk on Mon”, 1973, direção Derek Jarman.

215

Figura 88: Stills do filme “Imagining October”, 1984, direção Derek Jarman.

216

Figura 89: Stills do filme “Garden of Luxor”, 1973, direção Derek Jarman.

217

Figura 90: Stills do filme “The art of mirror”, 1973, direção Derek Jarman.

218

Figura 91: À esquerda – Michelangelo Merisi da Caravaggio, “Narciso”, 1594-1596. À direita – Still do filme “Sebastiane”, 1975, direção Derek Jarman.

219

4. IMAGENS RECICLADAS Várias são as nomenclaturas utilizadas para um tipo de cinema que recicla e/ou se apropria de imagens pré-existentes, sejam elas do próprio cineasta ou de imagens “encontradas” de uma terceira pessoa: cinema de apropriação, filmes de compilação, filmes de arquivo, filmes de montagem, collage, assemblage, etc. Ficarei aqui com a terminologia utilizada em língua inglesa, cinema de found footage, que designa esses filmes feitos de material “encontrado”, ainda que essa diversidade de termos, muitas vezes, seja utilizada em diferentes formas de manifestações artísticas. O primeiro estudioso desse conceito de um cinema feito de imagens já existentes, para o qual utiliza o conceito de apropriação, foi Jay Leyda, em 1964, com a publicação de Films beget films – a study of the compilation film. Para Leyda:

Qualquer meio pelo qual o espectador é compelido a olhar para uma filmagem familiar como se ele não a tivesse visto antes, ou pelo qual a mente do espectador fica mais alerta para os significados mais amplos de materiais antigos – este é o objetivo da compilação correta (LEYDA, 1964, p. 45)155.

O termo filmes de compilação (compilation film) surgiu em contraponto ao termo francês filme de montagem (film de montage), utilizado para nomear essas práticas tanto no experimental quanto no documental. São filmes feitos a partir de uma base pré-existente, com material de arquivo, com um propósito experimental (SJÖBERG apud WEINRICHTER, 2009). Leyda acreditava que não se pode “reorganizar os elementos dentro de um pedaço de noticiário, embora você possa manipulá-los em relação a outras partes – mas somente se você tiver estudado todo o seu conteúdo. É de tal estudo e manipulação que a arte do filme de compilação pode crescer” (LEYDA, 1964, p. 22)156.

155 Any means by which the spectator is compelled to look at familiar shot as if he had not seen them before, or by which the spectator's mind is made more alert to the broader meanings of old materials - this the aim of the correct compilation. Tradução do autor. 156 Rearrange the elements within a piece of newsreel, though you can manipulate them in relation to other pieces - but only if you have studied their whole content. It is from such study and manipulation that the art of the compilation film can grow. Tradução do autor.

220

Para Antonio Wenrichter, em El metraje encontrado (2009), a intenção dessa descrição feita por Leyda é vaga e fala mais sobre o processo do que propriamente do resultado. Weinrichter prefere argumentar que existe uma grande diferença na utilização desses filmes de arquivo por esses dois domínios do cinema: no documentário utiliza-se uma prática voltada à compilação, enquanto no experimental essa prática seria o found footage. Essas práticas de recontextualização ou remontagen, vão muito além desses efeitos, cancelando, as vezes, por completo o caráter figurativo das imagens utilizadas. Eugeni Bonet afirma que a forma canônica do filme de compilação é o documental que narra – “la voz en off deviene justamente uno de sus rasgos habituales” (BONET, 2010, p. 41) – mas, com uma outra classe de compilação e cultura de arquivos “por interacción crítica con los mensajes y masajes de los media” cria-se um “sesgo antagonista y desmantelador que tiene un relieve e historial proprio en las coordenadas de las prácticas mediáticas alternativas” (BONET, 2010, p. 41). Na prática de found footage, as imagens selecionadas perdem seu sentido original, sendo modificados à procura de um novo significado, à partir da junção “narrativa” que se cria. No cinema de compilação essas imagens são utilizadas, mesmo que de forma fragmentada, sem perder o seu sentido original. O found footage opera em um alargamento, ao “liberar” essas imagens para que elas sejam o que quiserem, através de procedimentos técnicos que o diretor utiliza, em uma prática que pode levar ao abstracionismo: reedição, adição de materiais interferindo na película/imagem (colorir, inserir materiais químicos, colagem, etc), mudar o tempo de exposição, refilmá-las, fotografá-las, acelerar ou diminuir o ritmo de seus planos, movimentá-las, adicionar trilha sonora, narração, sons extra- diegéticos, textos escritos através de intertítulos ou sobrepostos à imagem, legenda, sobreposições, e tantas outras formas de manipulação que “desrespeitem” essas imagens, tirando-as de sua função estética, poética, ideológica e/ou política e criando um novo discurso em torno delas.

Não apenas por ser um “gênero” primordialmente da vanguarda, o found footage opera nos interstícios e lapsos do tempo, nas falhas e

221

dobras da memória, com os índices e os resíduos de um real que reside no passado e que pode iluminar e retroprojetar um presente (ROSA e FILHO, 2016, p. 24).

Essa prática possui uma prerrogativa muito próxima às questões das vanguardas artísticas do século XX – futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo, entre outros - principalmente em relação à collage dadaísta e aos ready-mades duchampianos. Pode-se dizer que a collage pictórica é a “semente” e/ou origem dessa prática do found footage, desde que Picasso incorporou pedaços de materiais externos à pintura, em 1912, colando-os às suas obras, extrapolando os limites da bidimensionalidade em uma técnica que começou a ser usada amplamente por outros artistas. Cortar, recortar, colar, sobrepor, montar e remontar torna-se prática corriqueira nessas manifestações artísticas, fazendo com que a união de materiais tão díspares entre si leve o espectador a uma maior reflexão da obra que vislumbra e da compreensão que esta lhe dá sobre o mundo que o cerca, extrapolando significados em uma atitude de revolução formal. Duchamp retirava do universo cotidiano e ordinário objetos de consumo, muitas vezes industrializados e os declarava como obras de arte sem mudar nada do seu aspecto original. Sua famosa fonte, que consistia em um “urinol” invertido, exemplifica esse uso artístico: ao alterar, de forma simples, sua posição, alterava imensamente o seu significado. A essa prática e a esses objetos se dá o nome de ready-mades: objetos que são retirados de sua função e contexto originais em um mundo real e transformados em um novo objeto dentro de um museu ou exposição artística, perdendo seu sentido inicial. Duchamp, ao “acoplar” esses objetos, de diversas fontes e materiais que estavam ao seu redor, podendo ser encontrados em qualquer lugar, nos insere em um discurso que podemos facilmente assemelhar à collage e ao found footage. Peter Bürger, em Teoria da Vanguarda (2008), alude que a obra de arte clássica, orgânica ou realista tem como finalidade a ruptura com o ilusionismo e a recusa da arte como representação, entre outros pressupostos. Seu interesse desloca-se para o fragmento como uma “parte independente”, tanto na união de elementos díspares quanto na origem deles, sendo que o artista não mais precisa

222 utilizar/construir suas obras a partir de suas “mãos”, mas através de objetos encontrados no mundo real ou a partir de outras obras.

Enquanto, na obra de arte orgânica, o princípio de conformação domina sobre as partes, ligando-as à unidade, na obra vanguardista as partes possuem uma autonomia substancialmente maior perante o todo; elas são destituídas de seu valor como elementos constitutivos de uma totalidade de significado e, ao mesmo tempo, valorizadas como signos relativamente autônomos. (BÜRGER, 2008, p. 149)

E é contundente ao afirmar:

Uma teoria da vanguarda deve partir do conceito de montagem sugerido pelas primeiras colagens cubistas. O que as diferencia das técnicas de composição pictórica desenvolvidas desde o Renascimento é a inserção, no quadro, de fragmentos da realidade, isto é, de materiais que não foram elaborados pelo próprio artista. (BÜRGER, 2008, p. 137)

Essa frequente prática de montagem e remontagem das primeiras vanguardas, em suas mais variadas formas e contextos, dão a matriz basilar que alimentam a estética de uma (re)montagem cinematográfica, como manifestação específica do cinema experimental e mais diretamente do cinema de found footage, pois, na maioria das vezes, o artista não produz as imagens que utiliza e, se as produz, a insere em uma prática de frequente reutilização.

Así, el found footage no surge solamente de un dispositivo proprio del medio cinematográfico (casi imposible de eludir), como es la técnica del montaje, sino que parece, por un lado, heredero de prácticas artísticas de la era de las primeras vanguardias como el collage, el fotomontaje, el radical concepto (anti)artístico de Marcel Duchamp del ready-made y la estética dadaísta del objet trouvé (de donde toma su nombre el término adoptado internacionalmente de found footage); y, por otro lado, es coetáneo de movimientos como el pop art y, posteriormente, el appropriation art. Con esta idea de filiación no queremos sugerir una dependencia o translación directa al cine de experiencias surgidas en otros medios: por supuesto, el cine de found footage aplica esta herencia a través de la lente de la práctica cultural del momento en que se produce (WEINRICHTER, 2009, p. 115).

223

O conceito de intertextualidade definido por Severo Sarduy em “O Barroco e o Neobarroco” (1979), também serve para uma alocação nas práticas de material encontrado/(re)utilizado. Sarduy, em sua grande maioria, utilizando a literatura como exemplicação de seus conceitos, alude a questão da citação e da reminiscência para melhor falar dessa intertextualidade presente em várias obras. A citação é uma incorporação de um texto externo ao texto, em forma de collage ou superposição, “sem que por isso nenhum de seus elementos se modifique, sem que sua voz se altere” (SARDUY, 1979, p. 171). A reminiscência, por sua vez, é quando o texto incorporado “se funde com o primeiro, indistinguível, sem implantar suas marcas, sua autoridade de corpo estranho na superfície, mas constituindo os estratos mais profundos do texto receptor, tingindo suas redes, modificando com suas texturas sua geologia” (SARDUY, 1979, p. 171). Essa intertextualidade também está presente em Cartografia do found footage, de Nicole Brenez e Pip Chodorov, que demarca o (re)emprego (remploi) dessas imagens em duas categorias: a intertextual e a reciclagem, tentando dar conta de toda a diversidade elaborada através da utilização dessas imagens. O reemprego intertextual, “ou seja, in re (“em espírito”)” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 2) advém do uso de um trabalho inicial imitado, ou na sua totalidade ou em algum dos seus aspectos (tema, história, etc), “refere-se não ao uso de material já filmado, mas à refilmagem de um original seguindo um simulacro quadro a quadro” (ROSA e FILHO, 2016, p. 26). A reciclagem seria a utilização da coisa em si (as imagens), “reemprego de um material mesmo, sobre o qual o cinema institui certas formas fixas e inaugura algumas outras” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 2) e para isso subdivide essa categoria em reciclagem endógena e exógena. Na reciclagem endógena são citados dois extremos: o trabalho através do trailer, “prática industrial e imediata da reciclagem” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 2) e a autossíntese, quando o cineasta utiliza suas próprias imagens de forma fragmentada para inscrevê-las em um percurso autobiográfico. Em Jarman, essa autossíntese é muito mais evidente em Glitterbug, obra que condensa as imagens que ele produziu durante vários anos de filmagens, utilizadas de forma

224 fragmentada, sem o intuito que esse percurso seja mostrado linearmente e sequenciadamente, construindo uma espécie de fragmentos da memória, ainda que não seja uma obra abertamente autobiográfica. A reciclagem exógena refere- se a diferentes formas de citação ou alusão, na qual os autores destacam três categorias: - o stock footage: utilizado principalmente nos filmes B americanos que colocam planos de outras produções ou outras filmagens, pois não possuem uma equipe de segunda unidade para filmar “planos gerais de ambientação ou cenas de ação” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 3); - o “filme de montagem”: prática mais comum nos documentários televisivos, “uso ilustrativo de imagens já filmadas” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 3), “como uma crítica das atualidades [...] ou um ensaio [...]” (ROSA e FILHO, 2016, p. 26); - found footage: “que se distingue das demais formas em pelo menos três aspectos: ele confere autonomia às imagens, privilegia a intervenção material sobre a película e se adere a novos locais (por exemplo, às camadas de emulsão) e a novas formas de montagem” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 3). In the Shadow of the Sun se enquadra nessa categoria pois, as imagens que são retiradas de outras obras fílmicas, ganham autonomia nesse reemprego de suas qualidades, enquanto Jarman concentra-se na manipulação dessas imagens (sobrepondo-as, utilizando filtros coloridos, reordenando sequências anteriormente já editadas, etc). Com isso, Brenez e Chodorov, “continuando nas subdivisões prismáticas de suas ideias (curiosa característica dessa taxonomia, como a indicar reflexos e refrações naturais do arquivo)” (ROSA e Filho, 2016, p. 26), propõe cinco usos principais do found footage: elegíaco, crítico, estrutural, materiológico e analítico. a) Uso elegíaco: fragmentar um filme e/ou imagens já existentes e “desmontá-lo de forma a conservar apenas alguns momentos privilegiados e fetichizá-los através da remontagem” (BRENEZ e CHODOROV, 2914, p. 4). Este uso muito se assemelha aos procedimentos em Glitterbug e The Last of England. Em Glitterbug Jarman fetichiza imagens próprias, separando pequenos

225 fragmentos privados de sua vida, enquanto em The Last of England essa fetichização se dá com as imagens gravadas por seu pai e seu avô, em home movies familiares dos quais ele retira momentos de alegria e descontração de um passado nem tão distante, imagens essas das quais ele participa sendo filmado quando criança. b) Uso crítico: consiste na apropriação de imagens da indústria e/ou filmes familiares e reelabora-las completamente, destruindo seu contexto inicial, é a prática mais utilizada no found footage. Novamente aqui, Brenez e Chodorov propõem algumas subdivisões, as quais Rosa e Filho chamam de operações formais: anamnese, desvio, variação/exaustão, ready-made. - anamnese: “trata-se de reunir e aproximar imagens de uma mesma natureza de modo a fazê-las significar algo diferente do que elas dizem, mas precisamente aquilo que elas mostram e que nos recusamos a ver” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 4). - desvio: manter o filme de origem intacto servindo apenas de “diálogos burlescos para conferir-lhe um sentido que ele obviamente não possuía” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 5). É a teoria e a prática do détournement da Internacional Situacionista. - variação/exaustão: “o trabalho de apropriação se concentra em um único objeto fílmico, mas trata de criar variações sobre ele, às vezes até o ponto de esgotar suas potencialidades pela introdução de um ou vários parâmetros plásticos (visuais ou sonoros)” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 5). - ready-made: muda completamente o significado sem mudar o objeto, bem ao estilo do gesto duchampiano. c) Uso estrutural: elaborar um filme obedecendo aos princípios do cinema estrutural – “elaborar um filme não a partir de uma imagem ou motivo, mas de uma proposta, de um protocolo que diz respeito, reflexivamente, ao próprio cinema” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 7). d) Uso materiológico: explorar as propriedades específicas da película - “a química da emulsão”, “decompor o fotograma em camadas e subcamadas” e um “tratado do formato pelicular” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 8).

226

e) Uso analítico: “sob o modelo de uma investigação científica capaz de ultrapassar ou subverter a racionalidade, alguns artistas elegeram um objeto ou fato fílmico e se consagraram a estudá-lo em profundidade” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 9). Com isso os autores sugerem quatro formas para esse estudo visual: glosa, montagem cruzada, variação analítica, síntese da montagem cruzada e da variação analítica. - glosa: em uma cópia de um filme de Erich Von Stroheim o diretor acrescenta uma trilha sonora com comentários que descreve a admiração que tem por Stroheim. Efeito de glosa, ao mesmo tempo radical e simples. - montagem cruzada: recorrer a outras imagens para que certas imagens possam ser entendidas e/ou apreendidas. - variação analítica: “verdadeiro tratado das formas do movimento (compreendido triplamente como trajeto objetivo, como passagem e como circulação psíquica), nas imagens e entre as imagens, nas velocidades e entre as velocidades, nos intervalos e entre os intervalos” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 10). - síntese da montagem cruzada e da variação analítica: restituição complexa e sutil da natureza histórica da imagem fílmica. “[...] a imagem não é mais um fragmento aleatório e frágil arrancado do curso da história, ela é carregada de uma necessidade que permite a cada motivo, soldado, animal, grupo, paisagem, constatar seu insubstituível ‘estive lá’ e se tornar sujeito de sua própria deserção” (BRENEZ e CHODOROV, 2014, p. 10). William C. Wees, em Recycled Images – the art and politics of found footage film (1993), tenta, de alguma maneira, também categorizar esse cinema de found footage em três categorias, de acordo com os tipos da manipulação desse material apropriado/encontrado - “Las dos primeras pertenecen al ámbito exclusivo del cine de vanguardia, la tercera es la que subraya el principio del montage, inseparable de la apropiación” (WEINRICHTER, 2009, p. 16). A primeira categoria é denominada “perfect films” em alusão ao filme de mesmo título, Perfect Film (1986), de Ken Jacobs: “Se refiere a material que se presenta sin alteraciones tal y como se ha hallado: es la aplicación literal de la

227 idea de material encontrado” (WEINRICHTER, 2009, p. 17). Essa categoria está mais próxima do cinema documental e da noção de ready-made duchampiana, pois não se altera em nada o material encontrado mesmo colocando ele em uma outra narrativa, ainda mantendo seu discurso inicial. Essa prática pode até ser encontrada fora do universo experimental, por se tratar de uma utilização que mantém na íntegra essas cenas/filmes de arquivo, sem intervenções direcionadas à montagem. O contexto original dessas imagens se mantém presente mas em uma nova construção. A segunda categoria mantém seu interesse na forma física, material do filme, ou seja, a película pode ser rasgada, pintada, perfurada, alterada quimicamente, etc, técnicas essas que de alguma maneira alteram o material físico das obras encontradas. São películas “cuyo material de base se ha visto sometido a todo tipo de intervenciones, exceptuando precisamente la operación de montage en su sentido semántico tradicional de creación de un sentido nuevo de yuxtaposición (WEINRICHTER, 2009, p. 17). A terceira categoria proposta por Wees se concentra nos filmes que apresentam uma (re)montagem nesse material encontrado/apropriado, sendo esta a prática mais frequente do found footage, por isso a ela dedica a maior parte do seu livro. Wees atesta que essas três categorias que se valem do found footage podem ser subordinadas a metodologia da compilação, da collage e da apropriação, respectivamente.

Cabe anotar la diferente relación que se establece en cada caso con el sentido histórico del material apropriado: la compilación entiende dicho sentido de manera literal; el collage (la forma cuyas virtudes quiere resaltar Wees en su estudio) lo trata de forma crítica o dialéctica; y en la apropriación posmoderna dicho sentido se pierde (WEINRICHTER, 2009, p. 18).

Mas Weinrichter pensa ser necessária uma distinção entre o documental e o experimental, pois a tradição do filme de montagem feito com filmes de arquivo foi atribuído, incialmente, ao âmbito do documental, sendo que, posteriormente, essa associação também se deu no âmbito do experimental. Com o conceito de found footage uma problemática se instaura no uso dessas imagens de arquivo que

228 regem o filme de compilação. Craig Baldwin, entrevistado por William Wees, exemplifica bem essa problemática em sua reflexão: “Você pode ir em qualquer direção. Essa é a natureza do found footage...Eu gosto dessa proliferação e multiplicação – uma abertura, e um tipo de complexidade e camadas, camadas, camadas” (WEES, 1993, p. 12)157. Continuando com Weinrichter, para ele, esses dois âmbitos de produção – o documental e o experimental – são tão diferentes que é quase impossível contar uma história da apropriação de forma a unificá-los. Mas adverte que essa separação jamais será completa pois, historicamente, ambos possuem diversas “zonas de confluência”, principalmente em torno dos anos de 1920. Portanto, ao utilizar Jarman dentro dessas práticas é o âmbito do experimental que mais me interessa na sua utilização do found footage e dos filmes de arquivo. Jarman se apropria de imagens próprias, utiliza cenas de alguns curtas em Super 8 em seus longas-metragens e em produções de videoclipe, assim como utiliza imagens de arquivo (um filme qualquer de aventura da época do cinema mudo em Garden of Luxor) e filmes domésticos/familiares feitos por seu pai e seu avô, nos quais podemos ver de forma idílica um Jarman criança em seu dia-a-dia com os familiares (as mesmas imagens são utilizadas em The Last of England e em dois videoclipes nos anos de 1980 e 1990). Jarman, constantemente, não ficava satisfeito com a montagem que realizava com as imagens captadas em Super 8, muitas vezes reorganizava esse material com estruturas diferentes, mudando o título desses curtas durante o processo de sua (re)feitura. Nos três casos aqui analisados, Jarman volta a essas imagens próprias, captadas em intervalos de dois anos (In the Shadow of the Sun), mais de uma década (Glitterbug) ou imagens familiares com mais de 30 anos (The Last of England) e as (re)utiliza em um novo contexto, se apropriando dessas imagens e (re)elaborando suas significações dentro de um outro conjunto de imagens e narratividade.

157 You can go in any direction. That's the nature of found footage...I like that proliferation and multiplication - opening out, and a kind of complexity and layering, layering, layering. Tradução do autor.

229

Esse processo criativo de Jarman, o frequente retorno às imagens por ele captadas no decorrer de sua prática cinematográfica, muito se enquadra em uma análise de Antonio Weinrichter ao citar Jonas Mekas e Chris Marker:

Há outra coisa que Mekas levanta em relação à gênese do ensaísmo com este experimento de voltar a olhar para seu baú das lembranças: descobre o incrível efeito – expressivo, emotivo, dialógico – que produz a superposição de uma narração reflexiva sobre material de arquivo originado por ele mesmo (neste caso, as imagens são suas, mas sabemos por Marker que a passagem do tempo te condena a tratar o material próprio como se fosse alheio) (WEINRICHTER, 2015, p. 80).

Ainda que Jarman não trabalhe com narração em suas obras em Super 8, deixando que as imagens falem por si só, através delas é dado o início e o final de qualquer tipo de reflexão, é nesse “baú de lembranças” que Jarman escolhe trabalhar, manipulando esse “material de arquivo”, filmado por ele mesmo, como se tivesse sido encontrado ao “acaso” e/ou filmado por outra pessoa ou, como prefere Christa Blümlinger “lidam com a histórial cultural dos arquivos e, por essa razão com a discursividade e a materialidade das imagens de cinema em uma história da memória” (BLÜMLINGER, 2013, p. 35)158. Nessa ânsia de experimentações formais e estéticas, Jarman não possui nenhum tipo de pudor ao (re)trabalhar com essas imagens que, em um primeiro momento, eram suas, mas que se tornam apenas imagens captadas, com as quais ele se dispõe a fazer o que quiser em prol do seu processo criativo. Há um jogo constante entre a criação e a destruição, que podemos visualizar na tensão que se cria com – e a partir – (d)essas imagens. O cineasta que trabalha com found footage possui uma atitude de ambivalência com essas imagens encontradas e/ou feitas por si próprio: existe uma mescla de reverência e fascinação por essas imagens que o “seduz” ao ponto de (re)trabalhá-las até a exaustão, ao mesmo tempo que cria uma atitude de desprezo através de uma vontade de desconstrução, não se apegando a essas imagens e ao que elas, em um primeiro momento, possam significar.

158 Ils traitent de l’historie culturelle des archives, et, par là, de la discursivité et de la matérialité des images de cinéma au sein d’une historie de la mémoire. Tradução do autor.

230

Percebe-se também que a utilização do found footage, pode ser um elemento central em um projeto ensaístico. Entende-se aqui como ensaio um projeto autorreflexivo e formalmente livre, mas é possível traçar algumas especificidades em torno de uma elucidação mais clara sobre esse tema (o que podemos acompanhar, com mais detalhes, no capítulo cinco).

Found footage e ensaio são dois termos que costumam aparecer unidos, embora o primeiro designe tanto uma técnica (a apropriação) como uma classe de textos – os construídos com material alheio. Evidentemente, a utilização de material de arquivo tem sempre uma deriva ensaística (ou, pelo menos, analítica), pois propõe um “voltar a olhar” que arranca a imagem de seu contexto e sentido originais, modificando, assim, seu caráter literal de representação; por isso consideramos antes o cinema de compilação como uma fonte de recursos do cine-ensaio (WEINRICHTER, 2015, p. 80).

As reminiscências audiovisuais são fontes inesgotáveis de elementos que aderem às reflexões subjetivas que tanto almejam o filme-ensaio.

4.1. O found footage em In the Shadow of the Sun. No início dos anos de 1980, Jarman se lança em busca de um projeto inusitado: através de imagens pré-existentes, num processo de reciclar imagens próprias, partindo ainda de um material já montado/editado e finalizado anteriormente em forma de curta-metragem, Jarman “transforma” essas imagens em uma nova proposta e um novo conceito (Figura 92). Jarman dá-nos (e às imagens também) uma segunda oportunidade a partir de um novo ponto de vista, nos propondo uma reflexão acerca dessas imagens, com as quais geramos novos conteúdos, muitas vezes afastando-as de seu conteúdo original. “Al desposeer a esas imágenes del sentido propósito y destino que tenían originalmente, a menudo se desvela un subtexto soterrado, se descorren connotaciones imprevistas” (BONET, 2010, p. 49). Essa reciclagem das imagens é uma das características mais marcantes do found footage, elas perdem o contexto político, ideológico e estético que teriam em seu contexto original, passando a fazer parte de um novo contexto, com novos

231 significados impostos pelo diretor que as (re)organiza. O desafio que o diretor se propõe é que essas imagens já utilizadas sirvam a um novo propósito que ele tentará alcançar através da montagem: “A capacidade de fazer com que as imagens e outras pessoas sirvam ao seu próprio propósito por meio do poder transformador da montagem” (WEES, 1993, p. 14)159. Essa “nova” montagem pode servir também como uma crítica às formas convencionais que a imagem e a montagem são tratadas na indústria, conforme apontado por Wees:

Assim, mesmo os filmes de found footage mais pictóricos e abstratos oferecem uma crítica implícita das representações convencionais padronizadas do mundo da indústria cinematográfica e, como outros tipos de found footage, interrompem a recirculação sem fim e a recepção irrefletida das imagens da mídia de massa (WEES, 1993, p. 32)160.

Geralmente, o found footage é feito através de material que pertence a uma outra pessoa, já pronto. E quando o cineasta reutiliza suas próprias imagens? E quando essas imagens já fazem parte de uma obra e o cineasta, como agente produtor dessas imagens, as desarticula do seu contexto inicial proposto e as leva a uma outra inflexão? Esse é o desafio que Jarman se propõe: olhar para as imagens já prontas de sua filmografia, separá-las em uma existência independente, colocando-as juntas em um novo lugar, fazendo-as existirem de forma nova e inédita a partir de outras obras já existentes. Com isso, In the Shadow of the Sun (1981) é, praticamente, um work in progress, um filme que demorou anos para ser filmado/editado, sendo que quando essas imagens foram captadas, Jarman nunca imaginou utilizá-las juntas em um filme. Journey to Avebury (1973), Garden of Luxor (1973), Tarot (The Magician) (1973) (Figura 93), The Art of Mirrors (1973), Fire Island (My very beatiful movie) (1974) (Figura 94), foram pensados e lançados como peças independentes, até que Jarman decidiu unificá-los em uma obra única. Mas Jarman não faz isso de

159 The ability to make others’ images serve their own purpose through the transformative power of montage. Tradução do autor. 160 Thus even the most painterly and abstract found footage films offer an implicit critique of the film industry’s conventional, standardized representations of the world, and like other kinds of found footage films, they interrupt the endless recirculation and unreflective reception of mass media images. Tradução do autor.

232 forma linear, editando um curta após o outro ou reorganizando essas imagens em uma nova edição. Essa integração se dá, na maioria das vezes, através da sobreposição das imagens desses curtas, exibindo-as em uma parede, uma em cima da outra e refilmando-as, juntamente com a utilização de filtros de diferentes cores, “[...] algumas imagens são transformadas em found footage através do recurso renovado a elas em um contexto alterado e, ao mesmo tempo, permitem que a sequência de diferentes filmes criados ao longo de vários anos seja experimentada como segmentos de um trabalho único” (MULLER, 2014, p. 143)161. Jarman cria In the Shadow com várias camadas de imagem, “uma forma de imagem que ao vislumbrá-la a partir de uma outra, através de uma outra, dentro de uma outra, por uma outra, como uma outra” (DUBOIS, 2012, p. 1), utilizando uma divisão em quatro partes que ele descreve em Dancing Ledge: a primeira parte é a viagem à Avebury, a segunda parte é uma invocação de figuras mascaradas que andam através das chamas, na terceira parte as imagens são evanescentes e na quarta parte os átomos dançam, pontuados por explosões (JARMAN, 1984, p. 129). Em sua primeira versão, In the Shadow, era apresentado com a música The Grande Messe des Morts, de Hector Berlioz. Após ser transferido para o 16mm, foi criada uma trilha sonora original composta pela banda Throbbing Gristle. A partir dessa reciclagem de imagens, que foi finalizada com o apoio do Festival de Cinema de Berlim, onde foi apresentado no ano de 1981, Jarman construiu uma obra quase ritualística, com diversas sobreposições em uma paleta de cores com variações de vermelho e dourado. A grande influência para essa obra foram as leituras alquímicas que Jarman estava fazendo na época, principalmente Os Estudos Alquímicos de Carl Gustav Jung pois, para Jarman, essa “colagem” de imagens em si, assim como a natureza própria do filme, era um processo alquímico repleto de incertezas em seu resultado.

161 [...] some images are transformed into found footage through the renewed recourse to them in an altered context, and at the same time they make it possible for the sequence of different films created over a number of years to be experienced as segments of one single work. Tradução do autor.

233

O interesse de Jarman pela alquimia também fornece uma conexão egípcia, embora tênue. Seu interesse, deve ser ressaltado, era histórico e acadêmico, não prático. [...] Por sua vez, esses interesses foram complementados por esse interesse no antigo filósofo grego Heráclito, ambos os interesses se combinaram para produzir iconografia, simbolismo, títulos, personagens e temas para muitas pinturas na décade de 1980, filmes [...], vídeos musicais e seu livro sobre a cor, Chroma. Como o fogo e a água são aspectos- chave dos experimentos alquímicos e da ideia heracleana de regeneração cíclica, e o ouro era objeto de muito trabalho alquímico, não é difícil explicar a aparência regular do fogo no trabalho de Jarman (WOLLEN, 1996, p. 20)162.

Conforme descreve Roland Wymer, o título do filme In the Shadow também foi retirado dessas leituras alquímicas, com as quais ele esteve muito envolvido nesse período:

O título de In the Shadow of the Sun foi derivado de um texto alquímico do século XVII , onde a frase " a sombra do sol" aparece como um dos muitos sinónimos de Pedra Filosofal . O gosto de Jarman para a frase , que ocorre em outros contextos em seus escritos , é , sem dúvida, por causa de sua integração dualista de luz e escuridão e também, talvez, por causa do significado edipiano de punição (WYMER, 2005, p. 29)163.

Em In the Shadow, Jarman trabalha com algumas características que seriam constantes em suas produções: misticismo, magia, performance, cor/textura, sobreposição, filtros e manipulação da película, entre outros. Mas ainda seu pensamento como diretor de uma produção audiovisual está relacionado à sua produção pictórica. Jarman pensa como pintor mesmo quando trabalha com material alheio à pintura, como o Super 8, o vídeo, o 16mm ou o 35mm. “As imagens de In the Shadow of the Sun são fundidas com escarlates, laranjas e

162 Jarman’s interest in alchemy also provides na Egyptian connection, albeit a tenuous one. His interest, it must be stressed, was historical and scholarly, not pratical. [...] In turn these interests were complemented by this interest in the early Greek philosopher Heraclitus both interests combined to produce iconography, symbolism, titles, characters and subject matter to many paintings in the 1980s, films [...], music vídeos and his book on colour, Chroma. Since fire and water are key aspects of alchemical experiments and the Heracltean idea of cyclical regeneration, and gold was the object of much alchemical work, it is not dificult to account for the regular appearance of fire in Jarman’s work. Tradução do autor. 163 The title of In the Shadow of the Sun was derived form a seventeenth-century alchemical text where the phrase “the shadow of the sun” appears as one of the many synonyms of the Philosopher’s Stone. Jarman’s fondness for the phrase, which occurs in other contexts in his writings, is doubtless because of its dualistic integration of light and darkness and also, perhaps, because of its punning Oedipal significance. Tradução do autor.

234 rosas. A degradação causada pela refilmagem de múltiplas imagens dá-lhes um mistério/energia cintilante como Monet em as "Nympheas" ou palheiros no pôr-do- sol” (JARMAN, 1984, p. 121)164. In the Shadow é uma obra extremamente ousada, com uma duração pouco comum em obras assim tão experimentais (48min), um épico ritualístico construído por ele com uma “não-narrativa” repleta de possibilidades e complexidades.

Não há dúvida de que, In Shadow of the Sun, é um filme difícil de se envolver inicialmente. As múltiplas sobreposições criadas através de uma refilmagem têm uma tendência à abstração e a falta de uma óbvia estrutura de progressão narrativa exige um tipo diferente de atenção do espectador, normalmente, para o tipo de filme com essa duração (WYMER, 2005, p. 29)165.

Jarman se apropria de imagens próprias, com um intervalo significativo de tempo, ao ponto de poder trabalhar com elas de uma maneira praticamente nova. No caso de Jarman e da apropriação que faz de suas próprias imagens, esse material “encontrado” está em posse daquele que originalmente criou essas imagens, remontando esses fragmentos, recontextualizando-os à procura da criação de um novo sentido, “casi todos los estudios del cine de compilación o, más generalmente, de la apropriación mencionan que un efecto esencial de la recontextualización del material es suscitar o imponer una nueva interpretación del material” (WEINRICHTER, 2009, p. 79). Nicole Védrès (apud WEINRICHTER, 2009, p. 80) em uma projeção do seu filme Paris 1900 no Toronto Film Society, em 1953, assume que o material deva falar por si mesmo: “no se debe explicar ni describir. Muy al contrario. Uno debe atravesar, por así decir, la aparencia externa del plano seleccionado para sentir y, sin insistencia, hacer sentir esse extraño e inesperado ‘segundo sentido’ que siempre se esconde tras su superficie”.

164 The images of In the Shadow of the Sun are fused with scarlets, oranges, and pinks. The degradation caused by refilming of multiple images gives them a shimmering mystery/energy like Monet’s “Nympheas” or haystacks in the sunset. Tradução do autor. 165 There is no doubt that In the Shadow of the Sun is a difficult film to engage with initially. The multiple superimpositions created through refilming have a tendency towards abstraction and the lack of obvious narrative structure or progression demands a different kind of attention from the viewer to the sort normally given to films of this length. Tradução do autor.

235

As imagens de Jarman deslizam de forma quase aleatória e inconsciente pela tela, essas imagens sonhos, com o efeito dreamlike, elevadas à exaustão, propõe uma gama de matizes que, como Jarman viria a dizer em seu texto do filme Blue, feito doze anos após In the Shadow, um verdadeiro “pandemônio da imagem”, toda ela (re)alocada numa montagem quase lisérgica, efeito esse dado através das sobreposições, das texturas granuladas e da densidade da trilha sonora. Eugeni Bonet, alude a noção de desmontagem para a (re)utilização desse material já existente, “en la cual hallo um matiz sugerente y clarificador, algo así como un reverso de la práctica más habitual de montaje y su sentido constructivo” (BONET, 2010, p. 41). No caso de Jarman, e de In the Shadow especificamente, me parece muito pertinente esse pensamento de uma desmontagem de um material anteriormente montado. Jarman precisa “desmontar” seus curtas anteriores para que consiga trabalhar com essas imagens e, é dessa desmontagem que se dá a montagem desse mesmo material em um novo contexto. Portanto, só se consegue trabalhar com essas imagens, retirando-as de seu contexto original ao descontruí-las para, em seguida, construí-las de novo.

Nesta reelaboração, o fora de campo primeiro se encaixa com a fragmentação, acentuada pela montagem e pelo trabalho figurativo. Os saltos e rupturas do material, os riscos e os traços de alteração do suporte reforçam a impressão do espectador de enfrentar uma composição enigmática e fortuita, mas também sublinhar o caráter histórico da filmagem. Pelo tratamento das dimensões espaciais e temporais, pela câmera lenta e o expansiva, os gestos mais minuciosos [...] assumem uma dimensão simbólica (BLÜMLINGER, 2013, p. 193)166.

Ao se tratar da filmografia em Super 8 de Jarman e de seus curtas- metragens experimentais, essa é uma prática constante, que não cessa nem

166 Dans cette réélaboration, le hors champs s’inscrit d’abord par le biais de la fragmentation, accentuée par le montage et le travail figuratif. Les sauts et les ruptures dans le matériau, les rayures et les traces d’altération du support renforcent chez le spectateur l’impression d’être face à une composition énigmatique et fortuite, mais souligneant aussi le caractère historique de la prise de vues. Par le traitement des dimensions spatiales et temporelles, par le ralenti et l’agrandissement, les gestes les plus infimes [...] prennent une dimension symbolique. Tradução do autor.

236 quando ele está à beira da morte; pelo contrário, essas imagens ganham um novo impulso para ser utilizadas em uma obra póstuma: Glitterbug.

4.2. A imagem arquivo em Glitterbug. Glitterbug (1994) (Figura 95) é praticamente um filme póstumo de Jarman. Feito em 1994, originalmente para o programa Arena da BBC de Londres, Jarman não conseguiu finalizá-lo (foi necessário que o editor o terminasse), falecendo alguns meses antes de sua exibição em decorrência das complicações da Aids. Editado a partir de várias horas de imagens em Super 8 filmadas ao longo de sua vida, Jarman nos insere em um retrato prolífico de sua vivência entre os anos de 1970 e 1990, com imagens dispersas, fragmentadas, cotidianas, que não seguem uma sequência lógica ou linear/cronológica. Essas imagens deslizam à nossa frente numa sucessão de momentos que fazem parte de arquivo audiovisual composto por Jarman desde o primeiro momento em que começou a se valer de uma câmera Super 8 para transitar do processo criativo pictórico, em busca de novas perguntas e novas respostas, para o processo criativo da imagem em movimento, ainda que continuasse, efetivamente, ampliando suas reflexões relacionadas à pintura. Em Glitterbug, Jarman tenta recuperar um passado para que, através dele, possamos estabelecer uma cumplicidade com a sua vida e a sua luta (de despedida, política, ativista, etc). Não há a criação factual de uma narrativa histórica ou pessoal, são imagens que deslizam, se perfilam à nossa frente, numa sequência de emaranhados de uma vivência que procura deixar que a memória de um passado, nem tão longínquo assim, possa falar com as gerações futuras, aqueles que estão porvir. Mas, talvez, essas imagens não possuam como intuito primário representar algo, mas apenas mostrar (fazer-se-ver), com os gestos dados através das escolhas pelas quais Jarman subordina o desencadeamento sequencial da sua obra, ao nos (re)apresentar essas imagens. Claro que esse gesto de escolha demanda um espectador que participe dessa revisão (ou re-visão) dos filmes em Super 8 e do quanto essas imagens abarcam um período significativo da vida de

237

Jarman. Estaria esse espectador do futuro preocupado com o ritual arquivista e memorialístico de Jarman? A quem essas imagens se destinam no porvir? Antes de qualquer representação, o que apresentam essas imagens? O que nos mostram esses vestígios e lampejos da vida de Jarman? Nesse ato de filmagem se constrói o elo entre uma imagem de arquivo e a morte, pois o registro conserva essa vida ad infinitum, enquanto mostra-se o processo de finitude da existência: é da ordem do arquivo, ainda fazendo referência a Derrida, conservar e destruir (DERRIDA, 2001). Nessa relação entre imagem (fotográfica ou cinematográfica) vale a pena relembrar a metáfora do “complexo de múmia” proposto por André Bazin em “Ontologia da imagem fotográfica” (publicado em 1958 em O cinema – ensaios). Texto seminal sobre a natureza da imagem fotográfica retomado em algumas reflexões de Roland Barthes, no “isso foi” ou nas relações entre o fotográfico e a morte, para Bazin o “complexo da múmia” (como sabemos a mumificação era uma prática comum entre os antigos egípcios que a utilizavam para conservar o corpo enquanto o espírito não retornasse), é uma espécie de procedimento que visava ao não esquecimento, a salvaguardar a integridade deste corpo/alma para a posterioridade. Com isso, Bazin entrega um elemento fundamental da psicologia humana (e porque não da criação artística?): “a defesa contra o tempo. A morte não é senão a vitória do tempo” (BAZIN, 1991, p. 19), uma luta contra o não esquecimento, pois a imagem quando “guardada/arquivada” e/ou “reproduzida” a partir desses arquivos pode vir a ser “eternizada”. As imagens que “transitam” em Glitterbug são de diversos estilos e técnicas, não há uma preocupação com uma unidade estética em sua apresentação, o que importa são os gestos, corpos e detalhes, uma espécie de performance da memória e/ou da nostalgia. O ato do uso de imagens de arquivo, no caso de Jarman não “encontradas” mas feitas por ele mesmo, são como uma operação de autossíntese (conforme aquela proposta por Brenez e Chodorov que vimos no capítulo anterior), às quais ele constantemente retorna, fazendo um “percurso” através do re-uso, do re- emprego dessas imagens, que não tinham a finalidade de serem autobiográficas

238 no momento de sua feitura, mas que abarcam esse significado com a percepção da brevidade de sua existência. Podemos pensar o cinema como uma arte do agora, do presente, através da recuperação de material antigo, atualizando sua potência de imagem, conservando a sua forma através de um arquivo que preserva seu sentido original, mas de um tempo ido, que não volta mais. “A montagem cria um jogo entre o olho e a percepção sensível, busca a visão das coisas, a dimensão nostálgica dessas imagens sempre passado” (BLÜMLINGER, 2013, p. 196)167. Em Cinéma de seconde main, Christa Blümlinger alega um interesse maior nas formas de apropriação radicalmente subjetivas: “nascido de uma estética melancólica do efêmero (em Dietmar Brehm) ou de um colecionismo resolutamente pessoal (Matthias Müller)” (BLÜMLINGER, 2013, p. 15)168. Blumlinger alude a essa dimensão melancólica da imagem fílmica que uma série de filmes organizados a partir de imagens reutilizadas, de arquivo ou de found footage, “duplamente exposta ao desaparecimento: materialmente, como a última cópia entregue ao esquecimento e apagada na parte inferior de um arquivo; imaterialmente, na projeção de sua indefinição permanente” (BLÜMLINGER, 2013, p. 50)169 e continua “o arquivo cinematográfico talvez incorpore mais do que qualquer outro sistema abstrato que possa ser considerado “desconstrutivista”, isto é, como um processo de dissolução e recomposição” (BLÜMLINGER, 2013, p. 51)170. Glitterbug começa com Jarman despertando, se barbeando, se lavando, fazendo café, mostra seus amigos, os lugares que frequentava, a noite vemos ele se preparando para o Alternative Miss World de Andrew Logan, as festas com esses amigos, amantes, bastidores de filmes, concertos, viagens (a Nova York, Itália, Espanha, o campo inglês), uma compreensão tangível do mundo que ele viu

167 Le montage crée un jeu entre le regard et la perception sensible, cherche la vision des choses, la dimension nostalgique de ces images toujours déjà passées. Tradução do autor. 168 Qui naissent soit d’une esthétique mélancolique de l’éphémère (chez Dietmar Brehm) soit d’um collectionnisme résolument personnel (Matthias Müller)Tradução do autor. 169 Doublement exposée à as disparition: matériellement, comme ‘dernière’ copie livrée à l’oublit et à l’effacement au fond d’une archive; immatériellement, dans la projection de son insaisissabilité permamente. Tradução do autor. 170 L’archive cinématographique incarne peut-être plus que d’autres um système abstrait qui peut être considéré comme ‘déconstructiviste’, c’est-à-dire comme um procédé de dissolution et de recomposition. Tradução do autor.

239 e sentiu. É uma coleção de imagens privadas que remontam a um saudosismo inerente ao seu “desfilamento” pela tela, acompanhado por um trilha sonora de autoria de Brian Eno que reforça esse lugar das reminescências e dos vestígios. Jarman faz com Glitterbug uma espécie de álbum de fotografias (mas com imagens em movimento), guarda momentos banais mas que, com o passar do tempo, se tornam momentos de pura ternura. É como se Jarman estivesse colocando pistas sobre o tempo atual, do seu mundo, para um futuro inevitável no qual esse material se tornará um material da história. Nessa série de imagens, apresentadas como uma “mecânica da memória” (BLÜMLINGER, 2013), imbuídas nessa “estética melancólica do efêmero” (BLÜMLINGER, 2013), entre o lembrar e o esquecer, em uma reescrita do passado, a qual Omar Calabrese dá o nome de distopia do passado.

No entanto, há muitos modos de a nós fazer voltar o passado: o histórico que reconstrói, o crítico que interpreta, o divulgador que explica, e todas as coisas ao mesmo tempo. Mas o artista faz mais alguma coisa: “renova” o passado. O que significa que não o reproduz, mas antes, tirando dele como de um depósito formas e conteúdos esparsos, o torna novamente ambíguo, denso, opaco, relacionando os seus aspectos e significados com a modernidade (CALABRESE, 1987, p. 193).

Calabrese chama esse procedimento de deslocamento, pois consiste em “atribuir ao que foi desvelado do passado um significado a partir do presente, ou em proporcionar ao presente um significado a partir do que foi desvelado no passado” (CALABRESE, 1987, p. 193). Através de uma valorização do presente, da vida que se esvai aos poucos, Jarman reformula seu passado e nos dá a ver imagens de diferentes épocas que se tornam perfeitamente atuais entre si. “O seu sujeito pode ser um tempo qualquer, uma época qualquer, um estilo de sempre. Tudo é perfeitamente sincrónico. O “passado” já não existe, a não ser como forma de discurso” (CALABRESE, 1987, p. 194). Ainda que imagens de seu passado sejam o mote principal de Glitterbug, Jarman não está propondo uma obra autobiográfica, pois isso demandaria um olhar retrospectivo, estruturando períodos autônomos e dispersos que são unidos

240 através de uma sequencia cronológica, supondo uma organização do passado biográfico através de um presente que o recaptura, dotando-o de uma narratividade (LEJEUNE, 1994). O filme coloca algumas considerações sobre sua prática fílmica, sobre sua vida, sobre a passagem do tempo e a memória da família que Jarman escolheu para si, uma espécie de páginas de um álbum de família conforme mencionado por Christa Blümlinger, ao falar de um filme de Matthias Müller, intitulado, sintomaticamente, Album (2004).

Album é composto quase exclusivamente de imagens originais, extraídas dos arquivos do cineasta, de maneira tão fragmentária quanto, em outros filmes, de materiais encontrados. Se esta forma de montagem dedicada à memória encontra em Müller seu símbolo nas imagens de escombros flutuando no transbordamento da água, essa ideia não é sem relação com o conceito de “fragmentos de formas”, pelo qual Artaud estava tentando capturar a estética do cinema em relação aos processos de memória (BLÜMLINGER, 2013, p. 163)171.

Entretanto, esse olhar distanciado de Jarman em relação às suas próprias imagens de um conjunto de pessoas que habitava ao seu redor, podem ser alocados em uma prática de etnografia doméstica que, segundo Michael Renov em seu texto “Domestic ethnography and the construction of the ‘other’ self”, pode ser sim uma prática autobiográfica: “[...] a etnografia doméstica é uma espécie de prática autobiográfica suplementar; funciona como um veículo de auto-exame, um meio pelo qual se constrói o autoconhecimento através do recurso ao outro familiar” (RENOV, 1999, p. 141)172. Renov divide seu texto em três “capítulos”: Fathers and daughters, Sharing textual authority e Families we choose, sendo que este último é o que me interessa. Para Renov, o que entendemos como “doméstico” teve mudanças significativas nas últimas décadas, principalmente com o “aparecimento” das

171 Album se compose presque exclusivement d’images originales, extraites des archives du cinéaste d’une manière aussi fragmentaire que, dans d’autres films, les matériaux trouvés. Si cette forme de montage consacrée à la mémoire trouve chez Müller son symbole dans les images de débris flottant à la surface de l’eau, cette idée n’est pas sans rapport avec le concept des “lambeaux de formes”, par lequel Artaud essayait de saisir l’esthétique du cinema en relation avec les processos de mémoire. Tradução do autor. 172 [...] domestic etnography is a kind of supplementary autobiographical pratice; it functions as a vehicle of self-examination, a means through which to construct self-knowledge through recourse to the familial other. Tradução do autor.

241 famílias com casais do mesmo sexo (masculinos e femininos), reconfigurando o modelo familiar tradicional, assim como as recentes formas alternativas de estilo de vida que começaram a fazer parte oficialmente da sociedade. Renov não está falando especificamente da “família que escolhemos” de acordo com a literatura recente (adoção por casais homossexuais, casamentos gays e lésbicos, etc), mas na “ênfase de horizontalização em múltiplos conjuntos de irmãos queer que posiciona a comunidade ao lado do agrupamento biológico da família e introduz o elemento de escolha” (RENOV, 1999, p. 150)173. Prefiro utilizar a ideia que o nome “families we choose” se refere, principalmente em relação a uma família que podemos escolher, à parte de qualquer tipo de relação que seja consanguínea, de afinidades, de amizades, etc, pois é isso que vemos em Glitterbug: as pessoas que Jarman escolheu para compartilhar os momentos íntimos de forma que todos fizessem parte de uma grande família, que possuía seus “rituais” próprios, como qualquer outra família, de acordo com a convivência que era realizada entre esses membros. O doméstico, o privado, em Jarman fazem parte da sua vida pública e vice-versa, um não existe sem o outro, como atesta a profusão de imagens privadas expostas em Glitterbug. Os home movies devolvem os momentos felizes de outrora, são (re)animados e (re)arranjados frente a um mundo que parece negá-los ao redor, principalmente com a epidemia da Aids e o preconceito sofrido pelos homossexuais masculinos como “causadores” da praga gay (como a Aids era conhecida em seu surgimento). Jarman procura, através de Glitterbug, uma sensação de vida “recuperada”, mesmo diante da fugacidade dessas imagens, mas é, através delas, que Jarman reencontra seu passado em busca de forças para olhar para um futuro que estava a, cada dia, menor e mais distante. Essa passagem do tempo opera nesse espaço do home movie como um registro do tempo decorrido, que apresenta entes queridos diantes de sua fugacidade, fazendo com que eles perdurem para gerações posteriores, mas que ganha uma conotação amarga na obra de Jarman, pois não há para quem deixar essas imagens póstumas, não há herdeiros e alguns amigos que o circundam já haviam

173 Horizontalizing emphasis on multiple sets of queer siblings positions community alongside biological family grouping and introduces the element of choice. Tradução do autor.

242 morrido em decorrência da Aids ou morreriam logo após Jarman. Portanto, essas imagens, esse arquivo das memórias de Jarman, ficam à deriva, à espera de alguém que possa por elas se interessar e revê-las.

4.3. Os filmes de família em The Last of England. Logo após Caravaggio, Jarman embarca em um projeto ambicioso: The Last of England, um dos seus filmes artisticamente mais brilhantes, porém um completo desastre comercial e financeiro. The Last of England é o primeiro de três filmes de longa-metragem que a presença física do diretor é vista ou ouvida, representando ele mesmo (os outros dois seriam The Garden e Blue). O título do filme se refere ao nome de um quadro do pintor pré-rafaelita Ford Madox Brown (1821-1893), no qual um homem e uma mulher olham tristemente ao se afastar da Inglaterra, representada pelas falésias brancas de Dover, no canto superior direito da pintura. Ao contrário das filmagens de Caravaggio (todas feitas em estúdio com uma atmosfera de claustrofobia e sombras), The Last é feito todo em exteriores, na Royal Victoria Docks, no Millennium Wharf e em Liverpool, em uma profusão de imagens caóticas com personagens nus, sujos, violentos e violentados, com homens encapuzados e armas em punho, todos descontrolados à procura de um lugar que possa ser mais “seguro”. The Last é quase um filme “improvisado”, “Eu improvisei The Last of England - sem roteiros, scripts são a primeira restrição” (JARMAN, 1996, p. 163)174, sua “quase-narrativa” é construída em torno de alguns personagens que perambulam sem rumo pelas docas de Londres, em uma Inglaterra militarizada onde impera uma excessiva teatralidade e uma atmosfera de histeria. O pouco que pode existir de um “roteiro” é construído com referências à Alllen Ginsberg (o poema Uivo de 1956), T. S. Elliot, William Shakespeare, Wilfred Owen, entre outros, sendo narrado através de uma voz-over (feita pelo ator Nigel Terry), suprimindo os diálogos ou qualquer outra forma que possa dar voz a esses personagens. Dessa maneira, entre sons e imagens de intensa força poética, de uma potência quase visceral, o olhar provocativo de Jarman não deixa distinguir

174 I improvised The Last of England – no scripts, scripts are the first restraint. Tradução do autor.

243 os aspectos de uma Inglaterra de hoje ou do futuro, da ficção ou do documentário. Na definição de Jarman The Last é:

[...] um documentário. Voltei com um documento de algum lugar distante. Tudo o que eu apontava a câmera ... tinha um significado, não importa o que nós filmamos. O filme é a nossa ficção, estamos na história. Afinal, todo o filme é ficção, incluindo a notícia, ou, se você quiser reverter isso, todos os filmes são fatos. Meu filme é uma notícia factual (JARMAN 1996, p. 170)175.

A produção do filme fez-se durante dois eventos extremamente importantes e traumáticos na vida de Jarman: a morte de seu pai em novembro de 1986, com quem mantinha uma relação conturbada e, um mês depois, Jarman foi diagnosticado como HIV positivo (doença da qual viria a falecer em fevereiro de 1994). Com isso, Jarman lança-se em um frenesi produtivo, realizando, em oito anos, sete longas-metragens, vários videoclipes e a publicação de alguns livros. Muitas são as referências que emergem em The Last, mas o meu interesse específico aqui são as imagens que Jarman recicla, (re)utiliza dos home movies feitos por seu pai e seu avô - “Jarman tinha crescido com filmes caseiros, do avô e do pai, e estava ciente da sua potência” (PEAKE, 1999, p. 179)176. As imagens em preto e branco feitas pelo avô de Jarman, Harry, são do final dos anos de 1920, e são filmagens de finais de semana em família em Bexhill. As imagens coloridas são do pai de Jarman, Lancelot Elworthy Jarman, cineasta e fotógrafo amador, também piloto da RAF, que filmava tanto o cotidiano familiar – as brincadeiras, as cenas banais, com um Jarman criança descobrindo o mundo – quanto cenas da guerra e/ou bombardeios que testemunhava em suas viagens a trabalho nas bases militares de Lossiemouth, Abington e Wittan, o que fazia com que se ausentasse por longos períodos de casa e fosse muito rígido na disciplina aplicada ao filho, produzindo sequelas inevitáveis no relacionamento entre eles. Nessa convivência conturbada que sempre houve com o pai, Jarman

175 [...] a documentary. I’ve come back with a document from somewhere far away. Everything I pointed the camera at … had meaning, it didn’t matter what we filmed. The film is our fiction, we are in the story. After all, all film is fiction, including the news, or, if you want to reverse it, all film is fact. My film is as factual as the News. Tradução do autor. 176 Jarman had grown up with home movies, his grandfather’s and father’s, and was keenly aware of their potency. Tradução do autor.

244 assume a influência que essa relação teve em The Last of England: “[...] Ele criou minha aversão a toda autoridade, ao extremo patriotismo com o qual ele lutou na guerra, que se recuperou e destruiu nossa tranquilidade” (JARMAN, 1996, p. 179)177. Jarman insere, no turbilhão de imagens construídas em seu filme, essas imagens privadas, repletas de nostalgia por uma época passada e por uma Inglaterra menos assolada pelo conservadorismo do governo Thatcher. Nessa visão pessimista e apocalíptica do mundo moderno, envolto em beleza e brutalidade, sensualidade e escuridão, que emergem em uma construção fragmentada à beira da histeria, Jarman utiliza a si mesmo como “protagonista” de sua obra. O filme começa com Jarman em meio a livros em uma espécie de ateliê (resquícios da Tempestade de Shakespeare e do personagem Próspero?), escrevendo com sua caneta-câmera (ecos de Astruc?) o texto que começa a ser narrado em voz-over. Jarman se coloca na tela, utiliza imagens com as quais possui afetividade, pois além de estar nelas, são imagens feitas pelos patriarcas de sua família, que servem a ele como lembrança de um momento em que a relação com seu pai ainda era amena. Talvez, essas elucubrações tão pessimistas, retratem um pouco do momento ao qual Jarman estava exposto: a descoberta de ser portador do vírus da Aids e da morte de seu pai.

[...] el cine de material casero encontrado exhibe una cualidad reflexiva (no necesariamente autorreflexiva) más misteriosa e inefable: el hecho de que sean imágenes reales y privadas, no puestas en escena, acentúa la tenebrosa relación del cine con el tiempo, esa capacidad de embalsamamiento de que hablara Bazin [...] (WEINRICHTER 2009, p. 97).

Essas imagens familiares reverberam como um contraponto ao caos instalado em The Last, são imagens domésticas “que el paso del tiempo ha dotado de una belleza fantasmal y una inusitada carga melancólica” (WEINRICHTER, 2009, p. 98) frente a raiva que emana da edição ríspida e lisérgica de Jarman. Ao encarar a finitude da vida com a perda do pai e principalmente em relação à sua

177 He created my aversion to all authority, to the extreme patriotism with which he fought the war, which bounced back and destroyed our tranquility. Tradução do autor.

245 própria existência, levam o cineasta a uma reflexão intensa de sua condição humana a qual encara na realização de uma obra fílmica.

Son éstas imágenes íntimas, domésticas, sin intención discursiva que, frente a la historia oficial de la imagen factual tradicional, configuran, como mucho, una historia testimonial de la vida privada, Se trata de un pequeño teatro de la memoria, menos atravesado por las tensiones y las atrocidades de la Historia. (WEINRICHTER, 2009, p. 96).

Podemos dividir essas imagens privadas, utilizadas em The Last of England, em dois tipos de imagens: cenas familiares e cenas de guerra. Martin Frey faz um excelente trabalho em seu livro Derek Jarman: moving pictures of a painter (2016), descrevendo cada imagem desses home movies utilizados em The Last, com a fonte a que ela se refere (pai ou avô) e com a minutagem em que elas aparecem no filme, separando-as em três diferentes temas: família, viagens e militarismo. Prefiro aqui me apoiar em apenas dois dos temas acima citados, para entender como Jarman recicla essas imagens afetivas e nostálgicas juntamente com as imagens que ele produz, alocando-as em uma reflexão entre passado, presente e futuro.

Aqui, de uma maneira relacionada às noites de filmes caseiros de sua infância, as imagens dos fragmentos de filmes caseiros de seus pais e avós se tornam simbolicamente uma oportunidade de se retirar, para uma emigração interna, oferecendo uma visão de um passado, aparentemente pacífico, período em que havia esperança (FREY, 2016, p. 29)178.

Nas imagens familiares temos duas cenas dos home movie do avô materno de Jarman, que mostram sua mãe, Elizabeth Evelyn Puttock, conhecida como Betts, quando criança.

178 Here, in a manner related to the home-movie evenings of his childhood, the images of the home-movie fragments of his parents and grandparents symbolically become an opportunity for withdrawing, for a inner emigration, offering a view of a bygone, seemingly peaceful period in which there was still hope. Tradução do autor.

246

Minutagem Descrição 18’12 Almoço de domingo, com a mãe de Jarman ainda criança em meio aos adultos (Figura 96). 21’26 Adultos, que poderiam ser os avôs de Jarman e sua mãe criança filmada em close (Figura 97).

A mãe de Jarman faleceu de câncer em 1978, fato esse que o deixou muito devastado. Era ela quem apoiava a carreira artística do filho, muito a contragosto dos ideais paternos.

A morte de Betts deu origem a um turbilhão igual de emoções em seu filho. Em sua memória, ela permaneceu sempre sorrindo, calorosa, aberta e serena. A maneira como ela escondeu suas dificuldades com Lance (pai de Jarman); o orgulho que ela havia sentido das realizações de Jarman, a preocupação que ela sentira por seu bem-estar; [...] (PEAKE, 1999, p. 263)179.

As outras doze cenas restantes foram filmadas pelo pai de Jarman, quando Jarman e sua irmã Gaye ainda eram crianças. São cenas domésticas, intercaladas com cenas do dia-a-dia da família nas bases militares onde o pai de Jarman prestava serviço. Talvez sejam essas cenas o corpus mais interessante utilizado em The Last, em primeiro lugar porque temos o próprio Jarman criança em cena e em segundo lugar porque são utilizadas com cortes próximos ao personagem Johnny (principalmente a minutagem entre 23’09 a 24’36), intercalando essas cenas entre Jarman criança com Johnny andando por lugares devastados, culminando com um plano de Jarman adulto, em cena do filme, em seu ateliê, cheirando uma planta (Figura 98). Seriam essas memórias em Super 8 pertencentes ao personagem Johnny ou ao “personagem” feito por Jarman? Ou seriam memórias coletivas pois apresentam uma variação de banalidades cotidianas que fazem parte de uma memória maior do que apenas a uma memória individual? Temos em cena dois Jarmans reais: o Jarman criança e o Jarman

179 Betts death gave a rise to an equal maelstrom of emotions in her son. In his memory, she remained forever smiling, warm, open, serene. The way she had hiden her difficulties with Lance; the pride she had taken in Jarman’s achievements, the concern she had felt for his welfare; [...]. Tradução do autor.

247 adulto, “atuando” entre si através do poder da montagem, unindo passado e presente em uma mesma sequência.

Minutagem Descrição 7’15 A mãe de Jarman em frente a uma casa (provavelmente a casa onde viviam), colocando uma rosa em sua roupa e arrumando o cabelo e o chapéu (Figura 99). 8’46 A irmã de Jarman, Gaye, corre em direção a câmera (Figura 100). 8’57 Jarman e sua irmã Gaye brincando em um jardim. Ela está colhendo rosas (Figura 101). 23’09 Base militar, a mãe de Jarman e sua irmã brincam no jardim em frente à casa (Figura 102). 23’20 Base militar de Lossiemoth, a irmã de Jarman corre detrás do jardim, em direção a câmera, com uma bola de tênis na mão (Figura 103). 23’44 Base militar, piquenique no jardim, Jarman com a sua mãe, crianças brincam na água (Figura 104). 24’12 Jarman brincando entre os prédios da base militar (Figura 105). 24’31 Base militar, Jarman em um piquenique com a sua mãe (Figura 106). 24’48 Jarman e sua mãe entre os prédios da base militar (Figura 107). 25’09 Base militar de Abingdon, Jarman, sua mãe e sua irmã brincam com uma bola no jardim. Em vários momentos a mãe de Jarman olha cúmplice para a câmera operada pelo pai de Jarman (Figura 108). 70’15 Os pais de Jarman, em uma viagem, param para olhar as montanhas e o lago (Figura 109). 71’39 Base militar de Wittan, a mãe de Jarman o retira ainda bebê de um carrinho e brinca com ele. Talvez essa seja a primeira cena filmada de Jarman por seu pai (Figura 110).

248

As imagens escolhidas por Jarman para ser (re)utilizadas em The Last fazem parte de cenas aparentemente banais. Qual o filme de família em que não vemos crianças brincando, almoço de domingo ou algum “personagem” específico posando para a câmera como se fosse um retrato fotográfico? São imagens que já foram vistas dezenas de vezes, mas que ainda guardam um profícuo interesse, pois sabemos que são reais, que tratam-se de pessoas que, em sua grande maioria, não estão mais entre nós - “Uma imagem cinematográfica familiar, na medida em que é uma condensação, uma cristalização de centenas, milhares de imagens análogas, tem uma força extraordinária de exemplificação” (ODIN, 2001, p. 13)180. São fragmentos que sabemos fazer parte de um todo maior, sabemos qual a dinâmica da captação dessas imagens e a qual ritual familiar pertence. São imagens que, ao mesmo tempo em que nos causam um enorme distanciamento, também nos colocam junto a elas, pois são “imagens” que também fazem parte de nosssa experiência cotidiana/familiar. Nas cenas de guerra, temos imagens bem generalistas do cotidiano de uma base militar e do Paquistão, da época em que o pai de Jarman serviu naquele país. São imagens colocadas a serviço de uma crítica à militarização e à narrativa do filme, fazendo um contraponto com os “terroristas” armados que Jarman coloca vigiando as pessoas no cais. A primeira sequência (66’22), é feita com cortes rápidos e abruptos, imagens desfocadas e sobrepostas com sons de bombardeio, explosões, sirenes, na sequência mais dramática do filme, em termos de construção de montagem. A rapidez com que as imagens são mostradas, fazendo com que mal se consiga identificá-las, serve para nos inserir nesse caos que Jarman está propondo desde o início de sua narrativa.

Minutagem Descrição 66’22 São dois minutos e dezessete segundos (2’17) de cena, com 139 cortes com imagens do Paquistão, de desfiles de soldados,

180 Une image de film de famille, dans la mesure où ele est une condensation, une cristallisation de centaines, de milliers d’images analogues, possède une extraordinarie force ‘exemplificatrice’. Tradução do autor.

249

intercaladas com os “terroristas” de Jarman com armas em punho e paisagens da cidade (Figura 111). 70’37 Base militar em Lossiemouth, o cotidiano de uma base, com algumas tomadas aéreas (Figura 112).

Roger Odin fala de algumas transformações que o filme de família e o cinema amador podem passar, fazendo com que sejam transferidos para o “mundo da arte”. São filmes que saem do modo privado181 para um modo autoral182, um modo estético183 e/ou um modo artístico184. Jarman tira essas imagens privadas de família, que pertencem àqueles que as filmaram, ou a quem que, de alguma maneira acabou herdando essas imagens, e as coloca em uma prática artística, num longa-metragem experimental, fazendo com que dialoguem com um mundo para o qual elas não foram produzidas. Quando essas imagens “ganham” o mundo, saindo do privado para algumas das outras categorias citadas por Odin, faz-se um trajeto que não mais tem volta: essas imagens não conseguem mais voltar ao privado de onde saíram. Em se tratando dessas imagens de Jarman, elas ganham autonomia, sendo colocadas à serviço da publicidade e do videoclipe, subvertendo completamente sua produção inicial. Esses filmes domésticos/familiares fazem um percurso da reapropriação jarmaniana: passam de imagens privadas para um universo publicitário, alargando assim as fronteiras de sua exibição e recepção. O que antes era visto por um pequeno grupo de pessoas que mantinham afinidades entre si e que, muitas vezes, poderiam fazer parte dessas imagens, como comumente acontece nesses filmes amadores familiares, passam a ser vistas por

181 “Passage du mode de lecture privé – mobilisé dans le cadre de la famille” (ODIN, 2001, p. 10). Passagem da leitura privada – mobilizada como parte da família. Tradução do autor. 182 “Une lecture en termes d’auteur – l’art est une question de nom propre” (IDEM, p. 10). Uma leitura em termos de autor – arte é uma questão de nome próprio. Tradução do autor. 183 “Termes esthétiques (le spectateur est invité à s’intéresser en priorité au travail formel” (IBIDEM, p. 10). Termos estéticos – o espectador é convidado a se concentrar no trabalho formal. Tradução do autor. 184 “Termes artistiques – mise en relation avec les autres oeuvres de l’auteur, avec les productions d’autres artistes, avec l’histoire de l’art, les discours sur l’art, etc” (IBIDEM, p. 10). Termos artísticos – ligando-se com as outras obras do autor, com as produções de outros artistas, com a história da arte, os discursos sobre arte, etc. Tradução do autor.

250 uma infinidade de pessoas, em uma exibição pública e maciça como a televisão, para uma audiência nunca antes imaginada para essas imagens privadas. Jarman se tornou um entusiasta dos videoclipes a partir dos anos de 1980, realizando algumas obras que seriam referência nesse suporte, principalmente os trípticos que ele realizou para Marianne Faithfull e The Smiths, utilizando três músicas desses artistas e colocando-as em uma espécie de curta-metragem musical (ambos duram em torno de 13 minutos cada), Broken English – three songs by Marianne Faithfull (1979) e The Queen is Dead (1986) para os The Smiths. Logo de início, uma das primeiras experiências de Jarman com o “videoclipe” se deu durante um show ao vivo que ele gravou em 1976, em uma das primeiras imagens em Super 8 da banda , que acabou se tornando parte do filme de , The Great Rock’n’Roll Swindle (1980). Jarman valeu-se do impacto produzido pela MTV, fundada em 1981, conseguindo, através desses videoclipes, dinheiro para a produção de suas obras de longas-metragens. Ainda assim, em se tratando de uma linguagem mais comercial e moderna, Jarman leva seu “estilo” avant-garde e suas imagens experimentais para uma audiência que ele jamais teria através de suas obras cinematográficas. Mas, já em 1987, Jarman parecia um pouco esgotado com esse meio de produção, vindo a criticá-lo em seu livro Kicking the Pricks: “O vídeo musical é a única extensão da linguagem cinematográfica nesta década, mas tem sido usado para efeito rápido, e é frequentemente vistoso e superficial” (JARMAN, 1996, p. 12)185. Em 1983, Jarman dirige um videoclipe para a banda de pop e new wave inglesa Wang Chung, da música Dance Hall Days (Figura 113), que estava sendo um grande sucesso na Inglaterra. Nesse videoclipe, ele utiliza imagens dos filmes caseiros feitos por seu pai, que seriam, três anos depois, também utilizados em The Last of England. Mesmo partindo de um material que não lhe é próprio, a música e a banda, Jarman faz desse videoclipe algo intimamente bem pessoal. Ao utilizar essas imagens privadas e caseiras de sua infância, assim como algumas imagens de sua mãe, ele faz uma relação com a nostalgia que vem impregnada na música que remonta aos bons tempos das danças de salão (talvez um revival

185 Music video is the only extension of the cinematic language in this decade, but it has been used for quick effect, and it’s often showy and shallow. Tradução do autor.

251 dos anos de 1940 e 1950?). No final do videoclipe, Jarman coloca os integrantes da banda e alguns extras fantasiados como personagens do filme O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, 1939), o que não é uma escolha aleatória, pois esse é o filme preferido da infância de Jarman, com o qual ele se apaixonou pelo cinema: “Eu acho que o que eu gosto tanto no Mágico de Oz é que no final voltamos para casa, depois de perigosas aventuras. Não há lugar como o HOME-MOVIE” (JARMAN, 1996, p. 108)186, Jarman faz alusão a uma célebre frase do filme “There’s no place like home”, comparando a palavra casa com o home de home movie – filme caseiro. Em 1990, uma organização sem fins lucrativos, a Red Hot (http://redhot.org/), que se dedica a combater a Aids através da cultura pop, lança um álbum de compilações com artistas pop reinterpretando músicas de Cole Porter, utilizando o dinheiro arrecado em organizações responsáveis por ações que permitiriam mais qualidade de vida para as pessoas portadoras de HIV. Uma das músicas deste álbum, Every time we say goodbye (Figura 114), foi inserida no filme Edward II (1991), de Jarman, com a própria cantora Annie Lennox (do grupo Eurythmics) cantando em uma cena do filme. Posteriormente, a música se tornaria um videoclipe dirigido por Jarman, que na época adoeceu severamente e foi substituído pelo diretor Ed Lachlan que optou, juntamente com Lennox, em fazer uma homenagem à Jarman, utilizando cenas dos filmes caseiros de seu pai, projetadas em uma tela enquanto Annie Lennox canta “toda vez que dizemos adeus” em frente a essas imagens. Aqui, os home movies do pai de Jarman acabam sendo (re)manejados por uma terceira pessoa, que não filmou essas imagens, a quem elas não pertencem e que não está sendo filmado nessas cenas. Portanto, ainda que sejam retiradas do seu lugar de origem, ainda é à Jarman que as imagens estão conectadas, não perdendo seu sentido de origem: o dia-a-dia de uma família burguesa, onde o pai, que é o agente criador dessas imagens nunca está “presente”, assim como pouco esteve na vida de Jarman, cabendo à sua mãe apoiá-lo em suas decisões mesmo que com isso fosse necessário ficar contra o

186 I think why I like The Wizard of Oz so much is that at the end we return HOME, after hazardous adventures. There’s no place like the HOME-MOVIE”Tradução do autor.

252 marido. Essa ausência é sentida nos olhares que a mãe de Jarman lança em cumplicidade com a câmera, num momento, onde a vida parecia fluir de forma mais tranquila, sendo esse um dos sentidos que faz com que Jarman volte a perscrutar essas imagens em The last of England, após utilizá-las de forma mais amena no videoclipe da banda Wang Chung. Para Jarman:

The Last of England mudou a cara do meu cinema. Ele cresceu em si mesmo, eu sei que posso aguentar este filme mesmo que os críticos formem um pelotão de fuzilamento. O que vem a seguir dificilmente importa. Estou feliz com isso e com todas as suas falhas. Eu amo as falhas, são as falhas que o mestre japonês coloca em seu trabalho. O gesto arbitrário de estragar uma forma perfeita. Eu amo os momentos que estão fora de foco. "Eu me apaixonei pela poeira e pelos arranhões" (JARMAN, 1996, p. 173)187.

187 The Last of England has changed the face of my cinema. It’s grown into itself, i know that i can stand by this film even if the critics form a firing squad. What comes next hardly matters. I’m happy with it, and all its flaws. I love the flaws, they are the flaws that the Japanese master potter puts into his work. The arbitrary gesture to spoil a perfect shape. I love the moments which are out of focus. ‘I’ve fallen in love with the dust and scratches’. Tradução do autor.

253

Figura 92: Stills do filme “In the shadow of the sun”, 1981, direção Derek Jarman.

254

Figura 93: Stills do filme “Tarot (The Magician)”, 1973, direção Derek Jarman.

255

Figura 94: Stills do filme “Fire Island”, 1974, direção Derek Jarman.

256

Figura 95: Stills do filme “Glitterbug”, 1994, direção Derek Jarman.

257

Figura 96: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 97: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 98: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

258

Figura 99: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 100: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 101: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 102: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 103: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

259

Figura 104: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 105: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 106: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

260

Figura 107: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 108: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 109: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

261

Figura 110: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

Figura 111: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

262

Figura 112: Stills do filme “The Last of England”, 1987, direção Derek Jarman.

263

Figura 113: Stills do videoclipe “Dance Hall Days”, 1983, direção Derek Jarman.

264

Figura 114: Stills do videoclipe “Every time we say goodbye”, 1990, direção de Ed Lachlan.

265

5. BLUE: UM AUTORRETRATO ENSAÍSTICO E/OU UM ANTIRRETRATO PICTÓRICO. Me parece conveniente que, ao iniciar esse capítulo, me depare com a indiscernibilidade deste conceito do autorretrato que, muito embora venha do autobiográfico, guarde características próprias e por vezes quase contrárias, em comparação, como veremos a seguir. Há, em Jarman, uma recusa natural da narrativa clássica, dada através de uma produção audiovisual que extrapolou os limites de gêneros ou domínios pré- estabelecidos pelos estudos visuais: o domínio da ficção, do documentário e do experimental. Um quarto domínio vem se desenvolvendo na modernidade, o domínio do ensaístico, a partir dos escritos de Hans Richter, Alexandre Astruc, André Bazin, Theodor Adorno, Antonio Weinrichter, Elinaldo Teixeira, entre outros, sendo que, através de algumas aproximações e reflexões, podemos dizer que existe uma produção jarmaniana que se acerca dessas proposições ao que o ensaio se refere. Do mesmo modo que Antonio Weinrichter reflete sobre o cinema ensaio, afirmando que “no existe un acuerdo generalizado sobre lo que pueda ser un ensayo cinematográfico” (WEINRICHTER, 2007, p. 12), Josep María Català Domènech, assume que muitos autores incluem o “gênero” ensaístico no âmbito do autorretrato, por ser sempre difuso e extremamente complexo (CATALÀ, 2014, p. 6407). Para ele, trata-se de um antigênero “no tienes normas, ni parámetros, sino que su especialidad consiste en evitarlos” (CATALÀ, 2014, p. 5827). Desde os anos de 1920, o cine-ensaio “começou a inscrever seu potencial no horizonte cinematográfico [...], quando poderia desde então ter se estabelecido como uma quarta concepção ontológica do cinema, conjuntamente com as outras três que se afirmaram enquanto tais” (TEIXEIRA, 2015, p. 16), mas teve um longo percurso até se firmar, ou seja, “[...] teve que esperar a emergência do cinema moderno a partir do qual vai começar a ganhar corpo e, sobretudo, o audiovisual contemporâneo no qual vem adquirir inteira positividade” (TEIXEIRA, 2015, p. 16). Para Antonio Weinrichter esse conceito passa a ser problemático no momento em que se tem a tentação de esgarçar tanto esse conceito ao ponto de

266 que caiba em qualquer filme que se queira colocar dentro dele. Ainda que afirme ser o ensaio um conceito fugidio de difícil demarcação, Weinrichter elenca algumas condições para que uma obra audiovisual seja chamada de ensaística: propor uma reflexão sobre o mundo histórico, privilegiar a subjetividade, utilizar uma mistura de imagens (imagens de arquivo, intervenções do autor, comentários, etc) em uma forma própria. Nesse emaranhado de questões pertinentes ao domínio do ensaístico, surge uma “categoria” que nos é elucidativa em relação ao cinema de Derek Jarman, especificamente seu filme Blue (1993), filmes conhecidos como um cinema do eu, cinema em primeira pessoa, cinema subjetivo, autobiográfico, e tantos outros nomes que essa cinematografia de uma “representación o puesta en escena del sujeto por el sujeto mismo” (DUBOIS, 2013, p. 16) recebe. Timothy Corrigan, em O filme-ensaio – desde Montaigne e depois de Marker (2015), afirma que o retrato e o autorretrato são formas proeminentes e onipresentes no ensaio fílmico.

Naturalmente, nem todos os filmes-ensaio são biográficos ou autobiográficos; nem todos os filmes biográficos e autobiográficos são filmes-ensaio, já que alguns podem representar um sujeito ensaístico, mas não necessariamente mobilizam uma maneira ensaística de enxergar o sujeito. Ainda assim, a centralidade da subjetividade para o ensaístico faz da tradição biográfica e autobiográfica um sítio absolutamente primordial para a fundamentação e a intervenção ensaísticas, não como um lugar onde ensaiar as coerências frequentemente encontradas em filmes biográficos e autobiográficos, mas, em vez disso, como um lugar onde desafiar e confundir a subjetividade à medida que ela é exteriorizada em um domínio público (CORRIGAN, 2015, p. 82).

Català, por sua vez, alude a essa relação limítrofe entre o ensaio e o autorretrato, privilegiando a voz em off “porque es la que mejor se acomoda a la del sujeto enunciador del ensayo literário” (CATALÀ, 2014, p. 3047), sendo que ambos são equiparados com os registros orais, mas um se dá através de imagens mentais (o literário) e o outro através de imagens visuais (o cinema). Portanto, é a partir da teoria literária, proposta por Philippe Lejeune e Michel Beaujour, que iniciarei este capítulo, transpondo-as para questões referentes à imagem audiovisual.

267

Lejeune, em seu célebre texto O pacto autobiográfico (1994), propõe uma definição do que seria a autobiografia: um “relato retrospectivo en prosa que una persona real hace de su propria existencia, poniendo énfasis en su vida individual y, en particular, en la historia de su personalidad” (LEJEUNE, 1994, p. 50) e continua aludindo à construção de um pacto autobiográfico entre autor e leitor pois, sendo uma narrativa voltada para o passado, esse pacto implicaria três instantes: o autor, o narrador e o personagem principal (LEJEUNE, 1994), que precisam ter a mesma identidade.

El narrador y el personaje son las figuras a las cuales remiten, dentro del texto, el sujeto de la enunciación y el sujeto del enunciado; el autor, representado por su nombre, es así el referente al que remite, por el pacto autobiográfico, el sujeto de la enunciación (LEJEUNE, 1994, p. 75).

Para Lejeune, essa relação de identidade entre nome do autor, do narrador e do personagem de quem se fala, é um critério muito simples que define “al mismo tiempo que a la autobiografía, a todos los demás géneros de la literatura íntima (diario, autorretrato, ensayo)” (LEJEUNE, 1994, p. 61). A partir dessa definição de autobiografia, Lejeune propõe quatro categorias diferentes: - Forma da linguagem – narração ou em prosa; - Tema tratado – vida individual, a história de uma personalidade; - Situação do autor – identidade de um autor real e do narrador; - Posição do narrador – identidade do narrador e do personagem principal, perspectiva retrospectiva da narração. Para ele, a autobiografia cumpre todas essas etapas acima indicadas enquanto os gêneros próximos ao autobiográfico, como as memórias, a biografia, o romance pessoal, o poema autobiográfico, o diário íntimo, o autorretrato ou ensaio (ele coloca esses dois “gêneros” em uma mesma categoria), apenas cumprem algumas delas. “Resulta evidente que las diferentes categorías no constriñen de igual manera: ciertas condiciones pueden ser cumplidas en su

268 mayor parte sin serlo totalmente” (LEJEUNE, 1994, p. 51) e continua afirmando que:

[...] el texto debe ser fundamentalmente una narración, pero sabemos el lugar que ocupa el discurso en la narración autobiográfica; la perspectiva debe ser fundamentalmente retrospectiva, pero eso no excluye secciones de autorretrato, un diario de la obra o del presente contemporáneo a la redacción, y construcciones temporales muy complejas; el tema debe ser fundamentalmente la vida individual, la génesis de la personalidade; pero la crónica y la historia social o política pueden ocupar algún lugar (LEJEUNE, 1994, p. 51).

Michel Beaujour, em seu livro Miroirs d’encre – rhétorique de l’autoportrait, articula a ideia de autorretrato, ainda que esteja insatisfeito com esse conceito - “A palavra autorretrato não me satifaz” (BEAUJOUR, 1980, p. 7)188. A partir da definição negativa que Lejeune faz dos Ensaios, de Montaigne, “é claro que o texto dos Ensaios não tem nada a ver com a autobiografia como a definimos; não há narrativa ou história sistemática da personalidade. Autorretrato em vez de autobiografia... (BEAUJOUR, 1980, p. 7)189, delimitando “um gênero particular ou, pelo menos, um modo de discurso” (BELLOUR, 1997, p. 330), diferencia-o completamente da autobiografia.

O autorretrato não se “descreve” como o pintor “representa” o rosto e o corpo que ele percebe em seu espelho: ele é forçado a um desvio que pode parecer negar o projeto da “pintura em si”, desde que o autorretrato nunca nasça de tal “projeto”: X por si mesmo. Isso é improvável. O autorretrato é antes de tudo um objeto encontrado, ao qual o escritor confere um fim de autorretrato no processo de elaboração. Espécie: incompreensão, ou compromisso, indo e voltando entre generalidade e peculiaridade: o autorretrato nunca sabe com clareza para onde está indo, o que faz (BEAUJOUR, 1980, p. 10)190.

188 Le mot autoportrait ne me satisfait guère. Tradução do autor. 189 On voit bien que le texte des Essais n’a pas de rapport avec l’autobiographie telle que nous la définissons; il n’y a pas de récit suivi, ni d’histoire systématique de la personnalité. Auportrait plutôt qu’autobiographie... Tradução do autor. 190 L'autoportraitiste ne “se décrit” nullement comme le peintre “représente” le visage et le corps qu'il perçoit dans son miroir: il est forcé à un détour qui peut paraître nier le projet de “se peindre”, pour autant que l'autoportrait naisse jamais d'un tel “projet”: X par lui-même. Cela est improbable. L'autoportrait est d'abord un objet trouvé auquel l'écrivain confère une fin d'autoportrait en cours d'élaboration. Espèce: de quiproquo, ou de compromis, va-et-vient entre la généralité et la i particularité: l'autoportraitiste ne sait jamais clairement où il va, ce qu'il fait. Tradução do autor.

269

Com isso, Beaujour propõe algumas características que distanciam o autorretrato da autobiografia: ausência de uma narrativa contínua, que “está subordinada a um desdobramento lógico que se mantém graças a uma organização ou a uma bricolagem de elementos dispostos de acordo com uma série de rubricas que poderíamos designar como ‘temáticas’” (BELLOUR, 1997, p. 331); não é cronológico; está em oposição ao narrativo, situando-se entre o analógico, o metafórico, o poético; sua coerência é construída através de um sistema de lembretes, repetições, sobreposições, sendo sua principal aparência da ordem do descontínuo, da justaposição anacrônica, da montagem que se opõe à sintagmática de uma narração; o autorretrato não é totalizante, enquanto a autobiografia está presa à vida do autor; no autorretrato “eu não vou te dizer o que eu fiz, mas eu vou te dizer quem eu sou” (BEAUJOR, 1980, p. 9)191; sendo que Beaujour proclama como experiência inaugural do autorretrato o vazio e a ausência de si mesmo. A partir dessas colocações de Beaujour, Bellour vai definir o autorretrato, em cinco características principais: 1. “O autorretrato nasce do ócio, do retiro [...] é uma deriva solitária da retórica cuja herança perverte”; 2. “O sujeito do autorretrato é um sujeito de tipo enciclopédico. Ele opera um percurso de lugares (no sentido próprio e figurado) em que se constitui a cultura e por meio dos quais, ele mesmo”; 3. “O autorretratista é o herói do livro proposto como absoluto na busca de uma memória e de uma pesquisa de si mesmo”; 4. “O autorretrato, definido pelo que tem de mais pessoal, torna-se o livro do impessoal. Ele transforma o singular em geral, oscilando entre uma antropologia e uma tanatografia”; 5. “É trans-histórico. Sua exigência se conserva praticamente inalterada a partir do momento em que ele surge nas ruínas da cultura oral como um dos indícios de uma cultura da tipografia e da biblioteca” (BELLOUR, 1997, p. 331). Portanto, esse sujeito que se autorretrata é um sujeito rearranjado, em uma totalidade aberta e refratária que, ao mesmo tempo, é um tudo e um nada. Para

191 Je ne vous raconterai pas ce que j’ai fait, mais je vais vous dire qui je suis. Tradução do autor.

270

Beaujour o autorretrato se dispersa no mundo, existem vários eus ou “o eu é um outro”192. Na arte contemporânea, a prática de uma ocultação da identidade (especificamente o rosto mas, em alguns casos mais extremos, do corpo como um todo), o antirretrato, tem se tornado frequente. Há, portanto, nessa prática uma fragmentação do discurso a partir da ocultação da sua fisionomia e/ou corpo, em uma apreensão bem emblemática das subjetividades da imagem. Ernst Van Alphen, em seu artigo “The portrait’s dispersal” (2005), faz um percurso do quanto o retrato pode ser um gênero problemático a partir do século XX. Para ele “o retrato é muito apreciado como gênero porque, de acordo com a visão padrão, em um retrato de sucesso, o espectador não só se depara com a subjetividade “original”, “única” do retratista, mas também com a de um retratado” (VAN ALPHEN, 2005, p. 21)193. Em relação ao “objeto” representado “essa visão implica que a subjetividade pode ser equiparada a noções como o eu ou a individualidade” (VAN ALPHEN, 2005, p. 21)194 e completa afirmando que a subjetividade de alguém “é definida em sua singularidade e não em sua conexão social: é a essência interior de alguém e não um momento de curta duração em um processo diferencial” (VAN ALPHEN, 2005, p. 21)195. Com isso, Van Alphen faz um percurso que vai desde as pinturas cubistas de Pablo Picasso (Figura 115) que articulam uma nova concepção de subjetividade (Català insere algumas obras de Picasso como o princípio da imagem-ensaio); passando pelos retratos da pop art de Andy Warhol (Figura 116) que questionavam o importante papel dos retratos na apresentação de questões relativas à dimensão social e pública da subjetividade; até as fotos de Cindy Sherman (Untitled Film Stills) (Figura 117), que adicionam questões identitárias feministas e uma visão formativa dos meios de comunicação de massa em uma

192 Celebre frase do poeta Arthur Rimbaud, “Je est un autre”, em trecho de Lettre du Voyant/ Carta do Vidente de Rimbaud à Paul Demeny, enviada em 15 de maio de 1871. 193 The portrait is highly esteemed as a genre because, according to the standard view, in a successful portrait the viewer is not only confronted with the “original”, “unique” subjectivity of the portrayer, but also of that of a portrayed. Tradução do autor. 194 This view implies that subjectivity can be equated with notions like the self or individuality. Tradução do autor. 195 Is defined in its uniquiness rather than in its social connection: it is someone’s interior essence rather than a momento of short duration in a differential process. Tradução do autor.

271 série de fotos que remontam à imagens que fazem parte de um imaginário coletivo relacionado ao cinema clássico americano. As “cenas” dos filmes às quais ela remete não existem, mas as olhamos com uma certa “memória” de já tê-las visto anteriormente, mesmo que nunca tenham existido. São gestos e poses que mesmo sendo posados pela própria Sherman, que idealiza a mulher no glamouroso universo cinematogrático americano, ainda não é uma apreensão de sua subjetividade autorretratada. Sherman, ainda que esteja em cena, mostra-se como uma “personagem” das imagens criadas, subvertendo a lógica da ocultação no antirretrato, ao colocar-se por inteira nessas obras. “Al fin y al cabo, en el autorretrato visual, ya sea pictórico o fotográfico, abundan las miradas oblicuas del autor sobre sí mismo, bien a través de espejo [...] (CATALÀ, 2014, p. 6420). Van Alphen alude a Francis Bacon (Figura 118) para demonstrar que há retratos que são vistos como um esforço para “desestabilizar os tipos de representação do eu que mortificam qualquer auto-experiência” (VAN ALPHEN, 2005, p. 31)196 pois Bacon, ao distorcer seus retratos e autorretratos, “fala sobre seus retratos como conflitos entre a artificialidade da representação e a resistência do modelo à essa artificialidade” (VAN ALPHEN, 2005, p. 32)197, uma luta entre o sujeito e a representação. Ao inquirir sobre as obras do francês Christian Boltanski, especificamente aquelas relacionadas às imagens (re)fotografadas de crianças e jovens que ele coloca em confronto com a incapacidade delas em possuir um referente (Figura 119), Van Alphen é assertivo ao afirmar que esses retratos não significam presença, mas exatamente o seu oposto: a ausência. Boltanski evoca uma ausência, assim como essa ausência pode ser vista e/ou sentida nos antirretratos. São imagens que perdem a sua habilidade de representação, “ausência de um referente fora da imagem, bem como a ausência de “presença” na imagem” (VAN ALPHEN, 2005, p. 38)198.

5.1. Ensaio em uma imagem única.

196 Unsettle the kinds of representations of the self that mortify any self-experience. Tradução do autor. 197 Talks about his portrayals as conflicts between the artificiality of representation and the resistance of the model to that artificiality. Tradução do autor. 198 Absence of a referent outside the image, as well as absence of "presence" in the image. Tradução do autor.

272

Blue (1993) é um filme de uma única imagem, imagem essa que é sempre a mesma, mas que se torna outra a cada instante (BRASIL, 2006, p. 161), “nesse tempo distendido, nada, ou quase nada, acontece. E se quase nada acontece à imagem, é no pensamento (e no corpo) que tudo se passa” (BRASIL, 2006, p. 156). Jarman, através de uma narração em off (que, além da própria voz, também utiliza as vozes dos amigos Nigel Terry, Tilda Swinton e John Quentin), mais próxima de um monólogo interior do que propriamente de uma narração factual, nos leva a criar diversas imagens mentais que são “refletidas” no azul da tela. O azul serve para nos “confortar/confrontar” diante da construção poética das “imagens” que Jarman compartilha conosco. Somos imersos em um “mergulho” contemplativo neste azul que nos acalma, mas que mantém a desordem interior à qual Jarman estava inserido: aceitação da enfermidade e a proximidade com a morte (Jarman viria a falecer oito meses após a estreia do filme). Blue é o testamento artístico de Jarman que propõe uma abordagem íntima de suas dores e anseios. É sintomática sua opção por apenas uma cor em sua realização imagética: Jarman estava ficando praticamente cego em decorrência da doença que o acometia, sendo que apenas enxergava tons de azul. Blue origina-se após um projeto sobre o pintor Yves Klein ter sido abandonado, fazendo com que Jarman optasse por esse Internacional Azul Klein como a cor fetiche na realização de sua obra, sendo essa também uma de suas cores preferidas. O azul serve de metáfora para a vida que Jarman estava deixando (azul do Planeta Terra, da água, do céu) desse seu contato com o natural, com o terreno, principalmente na construção do seu jardim e na associação que essa cor tem com a melancolia e com a calma. Jarman nos faz compartilhar de sua cegueira, constrói um autorretrato explicitando suas mazelas, com forte convicção em deixar um legado em relação à defesa das minorias sexuais, pelas quais era um ferrenho articulador e crítico das leis propostas pelo governo “thatcheriano” que se opunha ferozmente as práticas homossexuais. Essa ousadia, concebida em Blue, talvez o coloque como um dos primeiros filmes de longa-metragem (com 75 minutos de duração) realizados com apenas uma única imagem, encontrando assim alguma equivalência em obras pertencentes ao cinema experimental, como por exemplo:

273

Zen for film (1962-1964), de Nam June Paik, A movie will be shown without the Picture (1979), de Louise Lawner e Weekend (1930), de Walter Ruttman. Jarman propõe um distanciamento acerca de si próprio, em uma presença- ausência, quando transfere seu relato de vida (trechos de seus diários são narrados) para essas outras vozes, pois não operam como recordações visuais (imagens fílmicas e/ou fotográficas). São “textos” que podem vir a criar um emaranhado de images mentais a quem se propor entrar nessa quase “meditação” em forma de um quadro-pintura/vídeo-pictórico/pintura-vídeo, fazendo com que seus relatos íntimos se tornem públicos. Jarman faz com que a imagem em “movimento” seja o texto narrado, os sons e a trilha sonora, enquanto o filme se “congela” em uma imagem estática e pictórica. Seria Blue uma refexão sobre o ato de pintar? Jarman está filmando como um pintor ou pintando como um cineasta? “Vemos” em Blue, os pensamentos de Jarman, suas anotações e devaneios impostos pela condição de uma doença em estado terminal, relatando em voz off seus afetos, suas memórias e lembranças de uma vida que começava a se esvair. Jarman constrói uma visão complexa do seu objeto de reflexão: ele mesmo e a doença que o acometia, transformando sua obra em um “ensaio, em reflexão sobre o mundo, em experiência e sistema de pensamento, assumindo, portanto, aquilo que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o mundo” (MACHADO, 2003a, p. 6), sendo que Arlindo Machado afirma que Blue é um filme “virtual”, “cuja tela vazia funcionava como um convite para o espectador “projetar” suas próprias imagens” (MACHADO, 2003b, p. 156). Cabe aqui, portanto, elucidar que, assim como as questões iniciais do autobiográfico, as concepções basilares para o ensaísmo também vêm do filosófico-literário e não do cinematográfico. É no literário o lugar primeiro no qual se inicia essa construção de uma obra ensaística. A referência central nessa sistematização, é Montaigne e seu Os Ensaios, publicado no século XVI, “suas indicações sobre como viver e morrer, pensar e trabalhar, desfrutar e penar são obra de um espírito crítico” (BENSE, 2014), pioneiro em um gênero literário que posteriormente será chamado de “ensaio”. Montaigne, quando estava escrevendo seus ensaios não fazia outra coisa além de falar de si mesmo (CATALÀ, 2014).

274

Para Jean Starobinski esse título Ensaios (do francês essais, grafado de forma isolada e em letras menores, na linha inferior abaixo do nome do autor, na publicação original), demanda uma esquiva e uma provocação:

[...] uma esquiva porque, naqueles tempos de intolerância, não seria conveniente dar ensejo, em teses demasiado afirmativas, à acusação de heresia ou de impiedade. [...] Que pretexto pode dar à censura religiosa um pensamento cujos produtos se definem, em sua pluralidade aparentemente díspar, como esboços, tentativas, fantasias, imaginações inconclusivas? Dizer que se permanece no ensaio de pensar, ou ainda: vou inquirindo e ignorando, ou ainda: Não ensino; relato, é anunciar que não se deve procurar naquele volume matéria para litígio doutrinal. A humildade, bem aparente, é mero alarde. (STAROBINSKI, 2011, p. 16)

Outro texto fundamental para vislumbrar essas discussões que se acercam ao ensaísmo é do filósofo alemão Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”, ainda que permaneça somente no universo da literatura, é profícuo ao nos propor pensar algumas aproximações entre o ensaio filosófico-literário e o ensaio audiovisual, ou cine-ensaio. Para Adorno o ensaio literário é descontinuo, “seu assunto é sempre um conflito em suspenso”, “o ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ela encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a realidade fraturada” (ADORNO, 2003, p. 35). Essa relação se caracteriza também, segundo Adorno, pela impureza, que é parte de um processo de pensamento inacabado, que se encontra entrelaçando- se constantemente. Cada texto se apresenta com um estilo próprio e o ensaio institui-se como uma forma que mostra a consolidação desses processos de escritura. Bense nos pergunta o que se torna visível através do ensaio. Enquanto Starobinski também nos questiona: “é possível definir o ensaio, uma vez admitindo o princípio de que o ensaio não se submete a regra alguma?” (STAROBINSKI, 2011, p. 13). Catalá assinala que uma das maneiras de considerar o que é um ensaio pode ser encontrada numa antologia norte-americana, The Best American Essays (2007), no prólogo escrito por R. Atwan, “los ensayos son autobiográficos, autorreflexivos, estilisticamente seductores, intrincadamente eleaborados y

275 promovidos más por presiones literárias internas que por situaciones externas” (CATALÀ, 2014, p. 168). Para Bense a essência do ensaísmo nasce da crítica do nosso espírito e que esse prazer de experimentar deriva única e exclusivamente de uma necessidade do nosso modo de ser, sendo que nesse sentido o ensaio “comporta tudo o que pertence à nossa categoria do espírito crítico: a sátira, a ironia, o cinismo, o ceticismo, a argumentação, o nivelamento, a caricatura, e assim por diante” (BENSE, 2014, p. 4). E completa dizendo que o ensaísta se situa em uma zona intermediária “entre o estado ético, de um lado, e o estado estético-criativo, de outro” (BENSE, 2014, p. 4), sendo que não pertence a nenhum dos dois, “de um ponto de vista sociológico, significa que ele se situa entre as classes e entre as épocas, que ele encontra seus confrades ali onde se preparam as revoluções (explícitas ou silenciosas), as resistências, as subversões” (BENSE, 2014, p. 4). Por outro lado, Starobinski tenta partir de uma definição etimológica da palavra ensaio (das origens), para arguir que “o ensaio seria a pesagem exigente, o exame atento, mas também o exame verbal cujo impulso se libera” (STAROBINSKI, 2011, p. 14). E prossegue afirmando que é possível vislumbrar duas vertentes do ensaio: uma objetiva e outra subjetiva, que não podem ser separadas. Essa vertente objetiva “é o campo da experiência, para Montaigne, é, em primeiro lugar, o mundo que a ele resiste: são os objetos que o mundo oferece à sua apreensão, é a fortuna que zomba dele” (STAROBINSKI, 2011, p. 7). É a “matéria experimentada”, as experiências do viver que se acumula em alguém que “manteve os olhos abertos para as desordens do mundo” a que se refere Starobinski. Ainda que esse ensaio “do mundo” seja feito “com suas mãos, com seus sentimentos [...] o mundo lhe resiste, e essa resistência ele deve inapelavelmente percebê-la em seu corpo, no ato da apreensão” (STAROBINSKI, 2011, p. 18), o que culmina nessa vertente subjetiva.

Para satisfazer plenamente à lei do ensaio é preciso que o “ensaiador” se ensaie a si mesmo. Em cada ensaio dirigido à realidade externa, ou ao seu corpo, Montaigne experimenta suas forças intelectuais próprias, em seu vigor e em sua insuficiência: eis o aspecto reflexivo, a vertente subjetiva do ensaio, em que a

276

consciência de si desperta como uma nova instância do indivíduo, instância que julga a atividade do julgamento, que observa a capacidade do observador. (STAROBINSKI, 2011, p. 19)

Portanto, essa subjetividade reflexiva é o que se torna uma das características primordiais do cine-ensaio.

A prática ensaística torna visíveis os contornos de uma coisa, os contornos de seu ser interior e exterior, os contornos do “ser-assim” do objeto. [...] O ensaísta é um combinador que cria incansavelmente novas configurações ao redor de um objeto dado. [...] Transformar a configuração em que o objeto se dá a nós, esse é o sentido do experimento ensaístico; e a razão de ser do ensaio consiste menos em encontrar uma definição reveladora do objeto e mais em adicionar contextos e configurações em que ele possa se inserir (BENSE, 2014, p. 5).

Com isso, podemos afirmar que a forma desses ensaios são de uma concretude meio fugidia, inexistindo ou faltando uma real apreensão da sua forma. O ensaio se coloca como uma dúvida, uma pergunta, um desencadeamento de imagens (imagem-pensamento) que não pode ser domesticado pela narratividade conquistada pelo cinema clássico. O ensaio é cheio de linhas de fuga, sem linearidade, fragmentado e descontínuo, apresentando imagens que são fluxos de “pensamentos”. O ensaio é o grande contraponto do cinema narrativo, ele não conta uma história, ele a “(des)constrói”. Mas não podemos confundir narrativo com apenas contar histórias, pois no cinema “não-narrativo” (forma muito utilizada pelas vanguardas artísticas e pelo cinema experimental), não ter uma “história” para contar não significa, propriamente, uma ausência de narratividade, “todo filme ensaístico é experimental, mas nem todo experimental é ensaístico” (TEIXEIRA, 2015). Assim como nem todos os filmes ensaísticos são autorretratos “pero sí que todos ellos contienen en mayor o menor medida un grado de representación de la figura del autor, a veces voluntariamente, en otras ocasiones de manera involuntaria” (CATALÀ, 2014, p. 2303). Pasolini propõe que o cinema moderno não crie mais narrativas e sim pseudo-narrativas, que comece contando algo, mas logo se disperse, parta para

277 outra história, podendo voltar logo depois à anterior, indo e vindo, criando uma forma labiríntica (cinema digressivo). Para Pasolini, parafraseando Adorno, o ensaio é um desvio, uma heresia. “É por isso que a lei formal mais profunda do ensaio é a heresia. Apenas a infração à ortodoxia do pensamento torna visível, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invisível” (ADORNO, 2003, p. 45). Pasolini, antes de perceber as proposições ensaísticas do cinema, vai delimitar a subjetividade, no que ele vai chamar de um cinema de poesia. Pasolini propõe que um cinema de prosa, “trata- se de uma prosa particular e subreptícia, porque o elemento fundamentalmente irracional do cinema é, por outro lado, ineliminável (...) enquanto lhe falta um elemento essencial da linguagem da prosa: a racionalidade” (PASOLINI, 1982, p. 141) se oponha a um cinema de poesia, fazendo com que a técnica do discurso indireto livre, da literatura, se transforme numa “subjetiva indireta livre”. “Trata-se, muito simplesmente, da imersão do autor na alma da sua personagem e da adopção, portanto, pelo autor não só da sua psicologia como da língua daquela” (PASOLINI, 1982, p. 143). Logo em seguida, Pasolini faz uma distinção entre o discurso indireto livre e o monólogo interior:

[...] o monólogo interior é um discurso revivido pelo autor através de uma personagem que é, pelo menos idealmente, da sua classe, da sua geração, da sua situação social; a língua pode ser, portanto, a mesma: a individualização psicológica e objectiva da personagem não é o efeito da língua, mas de estilo. O Discurso Indirecto Livre é mais naturalista, na medida em que é um verdadeiro Discurso Directo sem aspas, implicando, portanto, o uso da língua da personagem (PASOLINI, 1982, p. 144).

Ao fazer essa distinção entre o discurso indireto livre e o monólogo interior, Pasolini afirma que o cinema não tem a “mesma possibilidade de ‘interiorização’ e de abstração da palavra” (PASOLINI, 1982, p. 145), portanto o monólogo interior é um “monólogo interior por imagens e é tudo” (PASOLINI, 1982, p. 145), pois a subjetiva indireta livre jamais poderá corresponder de forma perfeita ao que o “monólogo interior é na literatura” (PASOLINI, 1982, p. 145). Mas, em contrapartida, o discurso indireto livre é sempre possível no cinema através da

278 subjetiva indireta livre, apesar de que, “em relação ao seu análogo literário pode ser infinitamente menos articulada e complexa” (PASOLINI, 1982, p. 145). Pasolini completa afirmando que a característica “fundamental da subjectiva indirecta livre é, pois, a de não ser linguística, mas estilística” (PASOLINI, 1982, p. 146).

[...] o recurso discursivo da subjetiva indireta livre vem, precisamente, indiscernir os dois pontos de vista anteriores, os olhares da câmera-cineasta e o da personagem. Trata-se de um mergulho do cineasta na alma da personagem, com conhecimento do seu meio e linguagem, a tal ponto que muitas vezes atinge a espessura de um monólogo interior. Daí o relevo que a dimensão estilística ganha a partir de então no cinema [...] (TEIXEIRA, 2015, p. 175)

No cinema, isso implica em uma “estilística muito articulada; ela liberta assim as possibilidades expressivas sufocadas pela tradicional convenção narrativa, numa espécie de regresso às origens: até encontrar nos meios técnicos do cinema as suas qualidades oníricas, bárbaras, irregulares, agressivas e visionárias” (PASOLINI, 1982, p. 146), instaurando, assim, que seja possível um cinema de poesia.

Tomando como exemplos três cinemas de contemporâneos seus (Antonioni, Bertolucci e Godard), ele (Pasolini, grifo do autor) expõe o quanto neles já não se sustentavam os elementos de uma narrativa clássica (a narrativa indireta objetiva, sob o ponto de vista da câmera, e a narrativa direta subjetiva, do ponto de vista do personagem), transmutando-se tais elementos numa subjetiva indireta livre em que os dois tipos de imagens se contaminam, de modo a criar uma indiscernibilidade entre o visionarismo da câmera e o do personagem. (TEIXEIRA, 2012, p. 161)

Ainda dentro desse percurso histórico, podemos dizer que as aproximações mais específicas do ensaio com o ensaio audiovisual são dadas a partir dos anos de 1940 por Hans Richter, Alexandre Astruc, Max Bense e, posteriormente, por André Bazin, nos anos de 1950 (TEIXEIRA, 2015). Antes disso, em 1927, o russo Sergei Eisenstein, em suas anotações, apropria-se do termo ensaio para definir uma adaptação que pretendia fazer da obra O Capital, de Karl Marx, projeto esse

279 nunca concretizado, mas que fica como a primeira centelha dessa conceitualização. Hans Richter, em seu texto “El ensayo fílmico, una nueva forma de la película documental”199, se acerca, como o título diz, de uma nova característica do documentário, surgida especialmente com o cineasta norte-americano Robert J. Flaherty, em seus filmes Nanook do Norte (1922) e Os Pescadores de Arán (1934), que oferece um conteúdo intelectual em contrapartida aos documentários que apenas ofereciam “películas sobre paisajes y costumbres populares, deportes de invierno y excursiones de verano, cómo se hace una rueda dentada o cómo obtener color de la brea o incluso cómo crece un embrión [...] (RICHTER, 2007, p. 187). Richter continua dizendo que existe uma categoria de documentário a qual não é possível apenas “una ilustración convincente gracias a una reproducción exacta o a la alineación cronológica de todas las etapas visibles del proceso; de hecho, para poder ser comprendidas exigen esta reproducción exacta en una fácil serie cronológica” (RICHTER, 2007, p. 187). Contrária a essa facilidade em uma reprodução exata do visível, Richter argumenta que as películas documentais possuem a árdua tarefa de visualizar conceitos intelectuais e não apenas “fotografar” um objeto, “hay que intentar mostrar la idea del assunto” (RICHTER, 2007, p. 187) e que as imagens registradas “son argumentos en una demonstración, que aspira a dar a entender generalmente problemas, pensamientos, incluso ideas” (RICHTER, 2007, p. 188). Para isso usa a definição de ensaio para essa nova forma fílmica “pues ya en la literatura la palabra ‘ensayo’ implica el tratamiento de temas difíciles de una forma comprensible para todos” (RICHTER, 2007, p. 188). Mas engana-se Richter ao salientar que essa forma ensaística seja executada para uma maior compreensão de ideias ou imagens audiovisuais. Essas experimentações formais e/ou temáticas ganham, com o decorrer do tempo, aspectos que propiciam “narrativas” herméticas que se inserem em um universo muito particular do cineasta que as propõe. Mas, em contrapartida, é

199 Publicado originalmente em Baseler Nationalzaitung (suplemento), em 25 de abril de 1940. Tradução para o espanhol de Marta Muñoz Aunion.

280 extremamente feliz ao preconizar que esses filmes ensaísticos tinham como confluência o intuito de dar forma aos pensamentos na tela.

En este esfuerzo por hacer visible el mundo invisible de los conceptos, los pensamientos y las ideas, el cine-ensayo puede echar mano de uma reserva de medios expresivos mucho más grande que la del puro cine documental. Dado que en el ensayo fílmico nos se está sujeto a la reproducción de las apariencias externas o a una serie cronológica sino que al contrario se ha de integrar material visual de variadas procedencias, se puede saltar libremente en el espacio y el tiempo: por ejemplo de la reproducción objetiva a la alegoría fantástica, de ésta a una escena interpretada; se puden representar cosas tanto muertas como vivas, tanto artificiales como naturales, se pude utilizar todo, lo que hay y lo que se invente, si sirve como argumento para hacer visible el pensamiento de base. (RICHTER, 2007, p. 188)

Alexandre Astruc, conforme já visto anteriormente, conclamava os artistas à uma nova forma de arte comparável ao ensaio: “uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir seu pensamento” (ASTRUC, 2009, p. 1). Para que isso aconteça, prossegue dizendo que “A encenação não é mais um meio para ilustrar ou apresentar uma cena, mas uma escrita autêntica. O autor escreve com a sua câmera da mesma forma que o escritor escreve com uma caneta” (ASTRUC, 2009, p. 1). Com isso, se percebe que a literatura é a grande referência para Astruc nessa confluência com o cinema, sendo que essa noção de escrita seja uma garantia para a “escrita do Eu no cinema” (BELLOUR, 1997, p. 322), onde o cineasta deve narrar ou evocar sua vida, “de circunscrever com base em sua própria experiência a questão ‘quem sou eu?’ e de colocá-la mais ou menos explicitamente, com todas as consequências que isso acarreta” (BELLOUR, 1997, p. 322). Para Astruc, o cinema deveria se livrar “gradualmente da tirania do que é visual, da imagem pela imagem, das imediatas e concretas demandas da narrativa, para se transformar num meio tão flexível e sutil como a linguagem escrita” (ASTRUC, 2009, p. 1). Em Blue, Jarman faz um apelo para se libertar das

281

imagens – “Do fundo do seu coração, ore para ser liberado da imagem”. 200 – mas, em vez de utilizar a escrita para essa “libertação”, ainda se utiliza da pintura - uma imagem única em azul - procurando criar uma “imagem” desprovida de representações diretas. Evitando que “una sociedade representada por determinada cultura visual, a su identidad formada sobre la base de esa misma cultura” (CATALÀ, 2014, p. 6268). Mas foi outro francês, André Bazin, o primeiro teórico a utilizar um filme, Cartas da Sibéria (1957), do cineasta francês Cris Marker, em um artigo publicado na France-Observateur em 1958 e compará-lo, em sua crítica, a um ensaio literário, tecendo relações entre o texto e a imagem. Para Bazin, Cartas da Sibéria não se parecia com nada feito até então, nem no domínio do documental, nem nas reportagens de viagens.

Para tentar captar de forma mais precisa sua natureza, proponho essa definição aproximada: Cartas da Sibéria é um ensaio em forma de uma reportagem cinematográfica sobre a realidade siberiana do passado e do presente. [...] um ponto de vista documentado, eu diria que é um ensaio documentado pelo filme. A palavra que importa aqui é “ensaio”, entendida no mesmo sentido que na literatura: um ensaio de uma só vez histórico e político, embora escrito por um poeta (BAZIN, 2000).

Bazin utiliza essa proposição do “ponto de vista documentado” a partir do filme A propósito de Nice (1930, de Jean Vigo), pois é através das digressões/associações livres propostas por essa estética que é possível chegar a um monólogo interior ou ao discurso indireto livre pasoliniano. A partir desse “ensaio documentado”, Bazin sublinha o que vem a chamar de montagem horizontal, contrária à montagem clássica que é dada a partir das relações entre os planos. Na montagem horizontal a imagem não se refere ao que a precede ou a segue, mas a justaposição de elementos diversos fazendo com que provoque novos sentidos à narrativa, sendo o som um grande aliado nessa proliferação de

200 From the bottom of your heart, pray to released from image. Tradução consta na legenda do DVD Blue, lançado no Brasil pela Magnus Opus, em 2008. Sempre que nos referirmos a esse texto, com essa tradução, colocaremos: DVD Legenda.

282 significações, o que Bazin chama de uma montagem que se faz do “ouvido ao olho”. Em A Imagem-Tempo, Deleuze propõe um cinema ligado aos processos do pensamento: o filósofo pensa por conceitos, enquanto o cineasta pensa por imagens. A partir de Antonin Artaud e seu termo “cinema da crueldade”, Deleuze instaura algumas proposições nesse pensar “pelas imagens”:

Trata-se, como diz Artaud, de “fundir o cinema com a realidade íntima do cérebro”, mas essa realidade íntima não é o Todo, é, ao contrário, uma fissura, uma rachadura. Se acredita no cinema, o que lhe credita não é o poder de fazer pensar o todo mas, ao contrário, uma “força dissociadora” que introduziria uma “figura do nada”, um “buraco nas aparências”. Se acredita no cinema, o que lhe credita não é o poder de retornar às imagens, e encadeá-las segundo as exigências de um monólogo interno e o ritmo das metáforas, mas sim o poder de “desencadeá-las”, segundo vozes múltiplas, diálogos internos, sempre uma voz dentro de outra voz (DELEUZE, 2007, p. 202)

Artaud, durante o curto período em que acreditou no cinema, conclama um cinema que provoque “uma subversão total de valores, uma desorganização completa da visão, da perspectiva, da lógica”, exigindo “filmes fantasmagóricos, filmes poéticos, no sentido denso, filosófico da palavra; filmes psíquicos” ARTAUD, 1970, p. 169), um cinema que “não conta uma história, mas desenvolve uma sequência de estados de espírito que se deduzem uns dos outros como o pensamento se deduz do pensamento” (ARTAUD apud DELEUZE, 2007, 210). Mas essa forma acaba se tornando um “obstáculo à apreciação do cine- ensaio, supondo que nesta forma devemos ‘ouvir’ sempre a voz ensaística, é o cinema ser sempre considerado como um meio eminentemente visual, portanto, se diz, o cineasta deve “mostrar” em vez de ‘contar’” (WEINRICHTER, 2015, p. 59). Alan Bergala, em seu texto “Qu’est-ce qu’un film-essai?”, traduzido do francês para o espanhol por Antonio Weinrichter, nos mostra de uma maneira esclarecedora essas tentativas de se apreender uma forma que, por natureza, é inapreensível e intransferível.

283

O que é um film-essai? É um filme que não obedece a nenhuma das regras que geralmente regem o cinema como instituição: gênero, duração, standard, imperativo social. É um filme “livre” no sentido de que se deve inventar, a cada vez, sua própria forma, e que somente se voltará a ela. O documentário geralmente possui um tema, é um filme “sobre”...E este tema, normalmente, preexiste como tal no imaginário coletivo da sua época. [...] O film-essai surge quando alguém ensaia pensar com suas próprias forças, sem as garantias de um saber prévio, um assunto que ele mesmo constitui como tema ao fazer o filme. Para o ensaísta cinematográfico cada tema lhe exige reconstruir a realidade. O que vemos sobre a tela, ainda que se trate de segmentos de realidade muito concretos, somente existe pelo fato de ter sido pensado por alguém” (BERGALA apud WEINRICHTER, 2015, p. 58)

Català argumenta em relação ao filme ensaio ser um guardião dos restos do passado, a partir de fragmentos que se diluem em uma multiplicidade de formas.

El film-ensayo compone, pues un territorio al que podríamos considerar la antíteses de la ruina: no tanto un objeto en decomposición que guarda los restos de pasados esplendores, como un ámbito construido fragmentariamente que apunta siempre hacia una poderosa totalidad que, curiosamente, cuando puede ser alcanzada, como ahora, se diluye en multitud de formas mestizas e híbridas (CATALÀ, 2014, p. 5827).

Essa dificuldade de “encaixá-lo” em qualquer categoria “é o que o define como categoria à parte; mas estaríamos caindo em uma definição tão atrativa (no caso, transgressora) como imprecisa e negativa: ensaio é todo aquele texto que não ‘cabe’ em outro lugar” (WEINRICHTER, 2015, p. 54). Portanto, o filme-ensaio, através de sua concepção, é de difícil filiação genérica, “porque o ensaio é uma forma herética cuja essência reside precisamente nessa sua condição fronteiriça” (WEINRICHTER, 2015, p. 54). Nora M. Alter também refuta a “teoria” de que o ensaio possa caber simplesmente em um gênero, pois se esforça por estar além da forma, voltando à ideia de heresia adorniana:

Como "heresia" no ensaio literário adorniano, o filme ensaio desrespeita as fronteiras tradicionais, é transgressivo, tanto estruturalmente e conceitualmente, é “self-reflective” e “self- reflexive”. Ele também questiona as posições de sujeito do cineasta

284

e audiência, bem como do próprio meio audiovisual - seja filme, vídeo ou meio eletrônico-digital. O filme ensaio é tão internacional quanto é interdisciplinar (ALTER, 1996, p. 171)201.

Laura Rascaroli, em “The essay film: problems, definitions, textual commitments”, também questiona essa relação de sujeito entre o cineasta e a audiência, assim como se refere Nora M. Alter. Para Rascaroli o diretor/enunciador no filme ensaio aborda de forma direta o espectador para que assim consiga estabelecer um diálogo.

O "eu" do filme ensaio sempre de forma clara e fortemente implica um "você" - e este é um aspecto fundamental das estruturas profundas dessa forma. "Você" é chamado a participar e compartilhar reflexões do enunciador. É importante compreender que este "você" não é um público genérico, mas um espectador encarnado (RASCAROLI, 2008, p. 35)202.

Para Paul Arthur, em “Essay Questions – from Alain Resnais to Michael Moore: Paul Arthurr gives a crash course in nonfiction cinema’s most rapidly evolving genre”, isso causa uma tensão pois “imagens são comumente vistas como produtos de uma terceira pessoa, observador "objetivo", enquanto o discurso contém uma ressaca subjetiva em primeira pessoa” (ARTHUR, 2003, p. 60)203. Mas é daí que parte a grande complexidade do ensaio, a relação entre palavras e imagens, entre narração e paisagem sonora e a imagem que é vista/apresentada, muitas vezes ressignificada de outros materiais (found footage), “os mecanismos pelos quais o discurso pode anotar, enfraquecem, ou de outra forma alteram o significado do que vemos - e vice-versa” (ARTHUR, 2003, p. 60)204. Rascaroli nos informa acerca de uma presença-ausência do

201 Like “heresy” in the Adornoan literary essay, the essay film disrespects traditional boundaries, is transgressive both structurally and conceptually, is self-reflective and self-reflexive. It also questions the subject positions of the filmmaker and audience as well as the audiovisual medium itself – whether film, video, or digital-eletronic. The essay film is as international as it is interdisciplinary. Tradução do autor. 202 The “I” of the essay film always clearly and strongly implicates a “you” – and this is a key aspect of the deep structures of the form. “You” is called upon to participate and share the enunciator’s reflections. It is important to understand that this “you” is not a generic audience, but an embodied spectator. Tradução do autor. 203 Images are commonly perceived as products of a third-person, “objective” observer, while speech contains a first-person subjective undertow. Tradução do autor. 204 The mechanisms by which speech can annotate, undermine, or otherwise change the signification of what we see - and vice versa. Tradução do autor.

285 enunciador/diretor/autor, que pode se realizar de duas maneiras bem distintas, de forma direta ou indireta.

A presença-ausência do enunciador é um ponto-chave do filme ensaio. A inscrição da figura autoral pode ser muito direta, por exemplo, fazendo o corpo do cineasta visível e sua voz audível. De outra maneira, pode ser mais indireta, por exemplo através do uso de um narrador/porta-voz, ou de intertítulos, ou de comentário musical, movimentos de câmera, etc (RASCAROLI, 2008, p. 38)205.

Por isso, entender esse lugar do cine-ensaio como um quarto domínio do contemporâneo (TEIXEIRA, 2015), os outros três seriam ficção, documentário e experimental, parece ser a melhor maneira de adentrar nessa problemática da não categorização, mas já categorizando-o, do ensaísmo audiovisual. “Ensaios são claramente orientados para o processo: são viagens retóricas em que nem um caminho exato nem um destino final são completamente enunciados” (ARTHUR, 2003, p. 60).206 Com isso, podemos apontar caminhos que nos levem a entender a produção cinematográfica do cineasta britânico Derek Jarman filiada às características e à uma estética ensaística. Independente do suporte que utilize ou do tipo de filme que faz, Jarman está geralmente falando de si mesmo, sendo um “ensaiador” que “se ensaie a si mesmo” (STAROBINSKI, 2011, p. 19). Mesmo quando instaura sua mise en scene a serviço de obras que tentam se aproximar de algum personagem histórico e biografá-lo, Jarman não deixa de lado o contexto social e político da época em que vive e nem o seu eu, conferindo “papel primordial ao estudo de si, à autocompreensão, como se o “proveito” buscado pela consciência fosse o de produzir clareza sobre si, para si” (STAROBINSKI, 2011, p. 19). Para Starobinski, Montaigne “se pinta olhando-se ao espelho”, enquanto podemos dizer que Jarman se filma olhando-se em um espelho, ainda que seu

205 The presence-absence of the enunciator is a key point of the essay film. The inscription of the authorial figure can be very direct, for instance by making the filmmaker’s body visible and his/her voice audible. Other times, it can be more indirect, for example through the use of a narrator/spokesperson, or of intertitles, or of musical commentary, camera movements, etc. Tradução do autor. 206 Essays are distinctly process-oriented: they are rhetorical journeys in which neither an exact route nor final destination are completely spelled out. Tradução do Autor.

286 processo criativo e de produção esteja interligado diretamente com as questões pictóricas advindas da sua formação em artes plásticas. Jarman se “pinta/filma” falando de um santo do catolicismo, mostrando a vida errante de um pintor do barroco do século XVII, de um rei que abdica do trono por amor, etc – [...] “como é inevitável, falando de outrem, de manifestar a si mesmo. [...] Todo e qualquer movimento nos revela?” (STAROBINSKI, 2011, p. 22). Para Montaigne, “o exercício da reflexão interna é inseparável da inspeção da realidade exterior. Sou eu mesmo a matéria de meu livro” (STAROBINSKI, 2011, p. 20). Jarman é quase sempre a matéria de seus filmes, a produção/captação de imagens audiovisuais geralmente estão, intrinsecamente, ligadas à sua vida, às suas experiências e experimentações de um artista homossexual, na Inglaterra dos anos de 1970/80/90, aflito pelo conservadorismo que o thatcherismo impôs. Jarman olha para o seu interior e inunda a tela com indagações desse ser ao qual ele precisa captar: ele mesmo. Mas é possível “reconhecer a contrapartida desse interesse voltado ao espaço interior: uma curiosidade infinita pelo mundo exterior, pela exuberância do real e pelos discursos contraditórios que pretendem explicá-lo” (STAROBINSKI, 2011, p. 20). Escreve ou filma ensaisticamente quem “tenta captar seu objeto por via experimental [...] o ensaio é uma peça de realidade em prosa que não perde de vista a poesia. Ensaio significa tentativa” (BENSE, 2014, p. 3). Jarman utiliza sua câmera de forma experimental, para captar imagens que se tornam uma extensão de seus pensamentos e idiossincrasias. “Assim sendo, o ensaio pode ser visto como conclusão ou origem de uma ordem de pensamentos” (BENSE, 2014, p. 3). Pensamentos esses que Jarman não se furta a explicitar publicamente, afrontando de forma direta o governo Thatcher, utilizando o reconhecimento artístico pelo qual pode fazer-se notado, para reivindicar melhorias em uma política extremamente conservadora em relação aos direitos dos homossexuais. Seu ensaísmo reverbera em filmes urgentes em meio a uma crise política e pessoal. Para Bense,

“[...] é a situação crítica, a crise da vida e do pensamento, que faz do ensaio um gênero característico do nosso tempo. Ele serve à crise e à resolução da crise ao levar o espírito a experimentar, a

287

rearranjar as coisas em novas configurações; ao fazê-lo, ele se torna mais do que simples expressão de crise” (BENSE, 2014, p. 6).

Jarman está sempre (re)organizando e (re)ordenando a produção de imagens que cria/capta, seu processo criativo é marcado pela (re)utilização de imagens de forma experimental, (re)arranjadas em um novo contexto, servindo à criação de novas narrativas à partir de narrativas pré-existentes. Esse transitar dentro de um universo ensaístico se dá, desde o início de suas produções audiovisuais, através de pequenos curtas-metragens, feitos em Super 8, que aproximam Jarman da “noção de filme-ensaio pela via da reflexividade, do risco e do improviso, por outro lado a bitola amadora parece propiciar o aparecimento de outra característica essencial ao universo ensaístico: a presença da subjetividade” (SOBRINHO e MELLO, 2015, p. 213).

5.2. Deambular de uma imagem-pensamento

Jarman deambula em Journey to Avebury, em Imagining October, também em The Last of England, praticamente em todos os filmes de paisagens; em Angelic Conversation os personagens deambulam em uma paisagem etérea, como uma ida ao mais profundo dos alicerces do planeta, da vida, ou seria do pensamento?

De esta manera, los paseos del artista por la ciudad y su actividad mental se sincronizan de manera que los resultados pueden considerarse semejantes a um autorretrato. Pasearse por la ciudad en busca de imágenes significativas equivale al deambular mental del pensador ensayista que va de idea en idea sin un rumbo fijo, pero concretando a medida que avanza una forma que, como decía Montaigne, acaba por delatarle (CATALÀ, 2014, p. 1134).

Em Blue, esse “deambular mental”, que vai de ideia a ideia, é marcado pela utilização de um discurso/narração que se misturam e se completam na imagem sonora do filme, criando uma intensa “colagem” que nos desorienta através dessas “narrativas” sobrepostas. Blue nos apresenta o autor/personagem Jarman que se “esconde” na narração de sua história, entregando-a para ser dita por

288 outras vozes e o menino-personagem Blue (grafado em maiúscula para diferenciá- lo da cor azul dos momentos poéticos em que Jarman a utiliza como metáfora de sua dor e da Aids) que deambula por aventuras “fantásticas”, são “personagens” que avançam na “narrativa” sem um rumo definido, sem um ponto específico de chegada, pois não é da ordem do ensaio, ou da imagem-ensaio, fechar-se em categorias estanques e definitivas, sendo um espaço íntimo para um sujeito que experimenta a si mesmo e o mundo que o rodeia (CATALÀ, 2014, p. 364). “Uno es siempre varias personas cuando escribe, incluso cuando uno escribe solo, incluso cuando escribe su propria vida” (LEJEUNE, 1994, p. 320). Há um discurso verbal que não é direto, em aparente disfunção com a imagem que insiste em ser a mesma, que corresponderia “a la escisión real entre el mundo y su significado, como si ambos no pudieran coincidir nunca en una misma posición” (CATALÀ, 2014, p. 6281). Nesse desencadeamento de imagens-pensamento, com o azul como uma recusa de representação, Blue pode ser dividido em três blocos que abrangem uma pluralidade de temas e estéticas advindas de uma de suas maiores preocupações em relação a esse filme: como fazer um filme autobiográfico sobre a Aids sem mostrar a si mesmo? Sem ser piegas e cair no sentimentalismo e no vitimismo? Jarman não só consegue, como se supera de forma complexa nessa sua reflexão, quase espiritual, que rompe as fronteiras de uma obra audiovisual.

a) Um sujeito que representa a si mesmo. A identidade do narrador e do personagem principal que a autobiografia assume, em grande parte é indicada pelo uso da primeira pessoa (LEJEUNE, 1994, p. 52). “El sujeto se representa a sí mismo, no a través del foco identitario que constituye la voz reflexiva, sino en el espacio visual de las imágenes de un mundo convertido em espejo” (CATALÀ, 2014, p. 6485). Jarman nos dá um espelho em azul, nos coloca frente a um quase vazio que pretende ser totalizante, um filme que não nos é visível, mas que, paradoxalmente, cria uma quantidade “inimaginável” de imagens-pensamento. Corrigan salienta que o “desafio do filme-

289 ensaio autorretratístico, portanto, é ver-se como aquilo que você parece quando ‘não está realmente olhando para o seu próprio reflexo” (CORRIGAN, 2015, p. 98). Para Català, quanto mais nos aprofundamos na estrutura ensaística (ele utiliza o termo taxonomia), “va apareciendo cada vez más el rostro escondido del sujeto, del que la forma ensayística constituye finalmente su radiografia” (CATALÀ, 2014, p. 248) ou, como proponho aqui, esse termo “radiografia” pode ser facilmente substituído por autorretrato ou antirretrato. Quanto mais se esconde, mais se embaralha o discurso, mas se dá a ver a verdadeira face desse “retratado” que retrata a si mesmo. O autor se define simultaneamente como um personagem real e um produtor de discurso (LEJEUNE, 1994, p. 61).

En el film-ensayo no existe, pues, un autor externo propriamente dicho, sino un autor interno que aparece por obra del proprio deambular retórico del ensayo, pero que no es un personaje ni un narrador, es decir, un desdoblamiento del autor como demiurgo que manobra desde fuera, sino el autor en um sentido flerte que se hace a sí mismo desde dentro a través de lo que conoce de su propria consición ilusoria (CATALÀ, 2014, p. 2355).

Jarman, na maior parte de Blue, fala em primeira pessoa, fala de um “eu” agonizante, compartilhando suas experiências em ser HIV positivo e as doenças relacionadas a essa condição física. Jarman, nesse filme que é tão “invisível” quanto os portadores da Aids, pretende reforçar uma voz própria e uma visibilidade até então negada a esses infectados - “Como somos percebidos? Na maioria das vezes somos invisíveis”207. Logo no início de Blue, temos algumas considerações acerca de jovens refugiados da Bósnia, contextualizando o momento de desintegração da ex- Iugoslávia, logo seguido de uma constação que ele, Jarman, estava com as roupas do avesso.

“Estou sentado neste bar com alguns amigos tomando café servido por jovens refugiados da Bósnia. A guerra aparece nos jornais, e nas ruínas das ruas de Sarajevo.

207 How are we perceived, if we are to be perceived at all? For the most part we are invisible. DVD Legenda.

290

Tânia me disse: “Suas roupas estão ao contrário, do lado avesso”. Estávamos sozinhos, então as tirei e coloquei da maneira certa. Estou sempre aqui, antes da porta abrir”208.

Para Corrigan, Jarman envolve “uma epidemia global por meio da perspectiva do avesso de um corpo cego, uma entre-vista com o próprio eu, que gradualmente dispersa o autorretrato desse sujeito por meio do azul individual que é o filme” (CORRIGAN, 2015, p. 99). Jarman volta a esses refugiados em apenas uma outra passagem:

“Tem uma foto no jornal desta manhã de refugiados saindo da Bósnia. Eles parecem fora do tempo. Mulheres usando lenços e vestidos escuros, saíndo em passeatas das páginas dos jornais. Uma delas perdeu seus três filhos”209.

Seu foco maior é tentar, de alguma maneira, traduzir a dor da doença que o acomete:

“O pior da doença é a incerteza. Eu recito de trás para frente, todas as horas do dia, nos últimos seis anos” 210.

“Eu não vou ganhar a batalha contra o vírus, apesar do slogan “Vivendo com Aids”. O vírus foi apoderado pelo desejo então, nós temos que viver com Aids, enquanto eles tiram a poeira da colcha infestada por traças de Ítaca contra um mar vinho escuro. O destino é muito forte Destino fadado fatal

208 I am sitting with some friends in this cafe drinking coffee served by young refugees from Bosnia. The war rages across the newspapers and through the ruined streets of Sarajevo. Tania said 'Your clothes are on back to front and inside out". Since there were only two of us there I took them off and put them right then and there. I am always here before the doors open. DVD Legenda. 209 There is a photo in the newspaper this morning of refugees leaving Bosnia. They look out of time. Peasant women with scarves and black dresses stepped from the pages of an older Europe. One of them has lost her three children. DVD Legenda. 210 The worst of the illness is uncertainty. I've played this scenario back and forth each hour of the day for the last six years.DVD Legenda.

291

Eu me conformo com o destino Destino cego A picada do soro Formou um calombo no meu braço Tira-se o soro Um choque elétrico percorre meu braço”.211

“Como posso ir embora, com um soro grudado ao meu braço?

Como posso me livrar disso?” 212

Fala dos efeitos colaterais dos medicamentos e do tratamento a que é submetido:

“O relógio marca os segundos, a força de um córrego ao longo do qual os segundos soam e se juntam ao rio que corre para o mar no oceano infinito. Os efeitos colaterais do DHPG, o nedicamento pelo qual eu preciso vir ao hospital duas vezes ao dia são: baixa contagem de glóbulos brancos, aumento do risco de infecção, baixa contagem de plaquetas, que pode aumentar o risco de sangramento, baixa contagem de glóbulos vermelhos (anemia), febre, erupção cutânea, disfunção hepática, calafrios, convulsões, edemas, inchaço do corpo, mal-estares, arritmia cardíaca, pressão baixa, hipotensão, pensamentos anormais ou sonhos, desequilíbrio, coma, confusão, vertigens, cefaleia, estados de agitação, lesão nervosa, estado psicótico, insônia, sonolência, tremores, náuseas, vômitos, perda de apetite ou anorexia, diarreia, hemorragia estomacal ou intestinal, dores abdominais, aumento de um tipo de glóbulos brancos, hipoglicemia, falta de ar, perda do cabelo ou calvíce, prurido, urticária, sangue na

211 I shall not win the battle against the virus - in spite of the slogans like "Living with AIDS". The virus was appropriated by the well - so we have to live with AIDS while they spread the quilt for the moths of Ithaca across the wine dark sea. / Fate is the strongest / Fate Fated Fatal / I resign myself to Fate / Blind Fate / The drip stings / A lump swells up in my arm / Out comes the drip / An electric shock sparks up my arm. DVD Legenda. 212 How can I walk away with a drip attached to me? / How am I going to walk away from this? DVD Legenda.

292 urina, disfunção renal, aumento da uréia no sangue, vermelhidão, inflamações, irritações, flebite” 213.

“Se você estiver preocupado sobre qualquer um dos efeitos listados acima, ou se você quiser informações adicionais, por favor, pergunte ao seu médico. Para que seja recomendado o uso da droga, você tem que assinar um documento que diz que você compreendeu que todas estas doenças são possíveis. Na realidade, eu não sei o que devo fazer. Eu posso assinar”214.

“O DHPG via oral é metabolizado no fígado, de maneira a curar a molécula do sistema. Qual o risco existente? Se eu fosse viver 40 anos cego, talvez eu pensasse duas vezes. Trate minha doença como se tratasse um carro, música, luzes brilhantes, vá, jogue-se a vida novamente. Os comprimidos são os mais difícieis, alguns são amargos, outros muito grandes. Estou tomando cerca de 30 por dia, um laboratório químico ambulante. Eu engasgo quando os engulo e eles voltam meio dissolvidos quando tusso. Minha pele envolve meu corpo como uma camisa fina. Meu rosto está irritado, como as minhas costas e pernas à noite. Viro de um lado para outro coçando, incapaz de dormir. Levanto, acendo a luz. Paro no banheiro. Talvez se eu me cansar consigo dormir”215.

213 The drip ticks out the seconds, the source of a stream along which the minutes flow, to join the river of hours, the sea of years and the timeless ocean. / The side effects of DHPG, the drug for which I have to come into hospital to be dripped twice a day, are: Low white blood cell count, increased risk of infection, low platelet count which may increase the risk of bleeding, low red blood cell count (anaemia), fever, rush, abnormal liver function, chills, swelling of the body (oedema), infections, malaise, irregular heart beat, high blood pressure (hypertension), low blood pressure (hypotension), abnormal thoughts or dreams, loss of balance (ataxia), come, confusion, dizziness, headache, nervousness, damage to nerves (peristhecia), psychosis, sleepiness (somnolence), shaking, nausea, vomiting, loss of appetite (anorexia), diarrhoea, bleeding from the stomach or intestine (intestinal haemorrhage), abdominal pain, increased number of one type of white blood cell, low blood sugar, shortness of breath, hair loss (alopecia), itching (pruritus), hives, blood in the urine, abnormal kidney functions, increased blood urea, redness (inflammation), pain or irritation (phlebitis). DVD Legenda. 214 If you are concerned about any of the above side-effects or if you would like any further information, please ask your doctor. In order to be put on the drug you have to sign a piece of paper stating you understand that all these illnesses are a possibility. I really can't see what I am to do. I am going to sign it. DVD Legenda. 215 Oral DHPG is consumed by the liver, so they have tweaked a molecule to fool the system. What risk is there? If I had to live forty years blind, I might think twice. Treat my illness like the dodgems: music, bright lights, bumps and throw yourself into life again. The pills are the most difficult, some taste bitter, others are too large. I'm taking about thirty a day, a walking chemical laboratory. I gag on them as I swallow them and they come up half dissolved in the coughing and the spluttering. My skins sits on me like the shirt of Nessus. My face irritates, as do my back and legs at night. I toss and turn, scratching, unable to sleep. I get up, turn on the light. Stagger to the bathroom. If I become so tired, maybe I'll sleep. DVD Legenda.

293

As idas e vindas ao hospital, assim como a perda da visão:

“O médico no Hospital São Bartolomeu achava que eu tinha lesões na retina. A pupila foi dilatada com beladona. A luz da lanterna me cegava” 216.

“Olhe para baixo Olhe à esquerda Olhe para cima Olhe à direita Flashe de uma câmera Brilho atômico Fotos De CMV – lua verde, e o mundo se torna magenta Minha retina É um planeta distante Um Marte vermelho Do quadrinho Boys Own Com infecção amarela Borbulhando no canto do olho Eu digo, isto parece um planeta O médico diz: “Oh! Eu acho que Parece uma pizza"217

“Ofereceram-me a oportunidade de ser paciente do Hospital ou ir duas vezes ao dia para tomar soro. Nunca mais enxergarei”218.

216 The doctor in St. Bartholomew's Hospital thought he could detect lesions in my retina - the pupils dilated with belladonna - the torch shone into them with a terrible blinding light. DVD Legenda. 217 Look left / Look down / Look up / Look right / The camera flash / Atomic bright / Photos / The CMV - a green moon then the world turns magenta / My retina / Is a distant planet / A red Mars / From a Boy's Own comic / With yellow infection / Bubbling at the corner / I said this looks like a planet / The doctor says - "Oh, I think / It looks like a pizza”. DVD Legenda. 218 I've been given the option of being an in-patient at the hospital or to coming in twice a day to be hooked to a drip. My vision will never come back. DVD Legenda.

294

“A retina foi destruída. Quando o sangramento parar o que restar da minha vista talvez melhore. Tenho que aceitar a possibilidade de ficar cego. / Se eu perder metade da visão, minha visão será também pela metade?”219

“Estou acompanhado de uma sombra do H. B. Que aparece e desaparece. Perdi a vista periférica do meu olho direito. Coloco minhas mãos à minha frente, bem devagar. A um certo ponto elas desaparecem do ângulo dos meus olhos. É assim que eu via. Agora, repito o movimento, isto é tudo que vejo”220.

“Eis-me aqui novamente na sala de espera. A sala de espera é o inferno na Terra. Aqui, você sabe que não está sob seu próprio controle, esperandoo seu nome ser chamado: “712213”. Aqui você não tem nome. Confidencialidade não existe. Onde está o 666? Eu estou sentado oposto a ele ou ela? Talvez o 666, seja a louca que está mudando o canal de tv sem parar”221.

“Parece que minha vista fechou. O Hospital está ainda mais silencioso esta manhã. Cinza. Estou com um pressentimento ruim no meu estômago. Sinto-me derrotado. Minha mente está muito lúcida, mas meu corpo está se despedaçando. Uma lâmpada descoberta num quarto arruinado. Tem morte no ar aqui. Não vou falar sobre isso. Eu sei que o silêncio poderá ser quebrado pelo som de algum visitante gritando; “Socorro, irmã. Socoro, enfermeira!” Seguido pelo som de pés correndo pelo corredor. Depois, o silêncio”222.

219 The retina is destroyed, though when the bleeding stops what is left of my sight might improve. I have to come to terms with sightlessness. If I loose my sight will my vision be halved? DVD Legenda. 220 I am accompanied by a shadow into which H.B. appears and disappears. I have lost the sight on the periphery of my right eye. I hold out my hands before me and slowly part them. At a certain moment they disappear out of the corner of my eyes. This is how I used to see. Now if I repeat the motion this is all I see. DVD Legenda. 221 Here I am again in the waiting room. Hell on Earth is a waiting room. Here you know you are not in control of yourself, waiting for your name to be called: "712213". Here you have no name, confidentiality is nameless. Where is 666? Am I sitting opposite him/her? Maybe 666 is the demented woman switching the channels on the TV. DVD Legenda. 222 My sight seems to have closed in. The hospital is even quieter this morning. Hushed. I have a sinking feeling in my stomach. I feel defeated. My mind bright as a button but my body falling apart - a naked light bulb in a dark and ruined room. There is death in the air here but we are not talking about it. But I know the silence might be broken by distraught visitors screaming, "Help, Sister! Help Nurse!" followed by the sound of feet rushing along the corridor. Then silence. DVD Legenda.

295

“A enfermeira explica o implante. Ela mistura os remédios e goteja em você uma vez por dia. Os remédios são mantidos em uma pequena geladeira que lhe dão. Já imaginou ficar andando por aí carregando aquilo? O implante de metal vai disparar o alarme do detector no aeroporto, já estou até me vendo viajando à Berlim com uma geladeira embaixo do braço”223.

“Deslocamento da retina já foi observado em pacientes antes ou depois do início da terapia. A droga causa a diminuição da produção de esperma em animais, e pode causar infertilidade em seres humanos, má formação fetal em animais. Embora não haja informações nos estudos humanos, deve ser considerado um cancerígeno potencial uma vez que causa tumores em animais”224.

“Meus olhos ardem com o colírio A infecção parou Os flashes deixam Imagens vermelhas nos vasos sanguíneos dos meus olhos” 225

“A luz branca que aparece nos olhos é muito comum quando a retina é danificada. A retina danificada começou a deslocar deixando numerosos fragmentos flutuantes, como uma revoada dançante do crepúsculo. Estou de volta ao St. Mary, para fazer uma consulta com o oftalmologista. O lugar é o mesmo, mas há funcionários novos. Como estou aliviado de não ter que fazer a operação esta manhã, de ter um buracoo feito no meu peito. Eu tenho que tentar animar o H. B. Que teve uma quinzena terrível. Na sala de espera, um

223 The nurse explains the implant. You mix the drugs and drip yourself once a day. The drugs are kept in a small fridge they give you. Can you imagine travelling around with that? The metal implant will set the bomb detector off in airports, and I can just see myself travelling to Berlin with a fridge under my arm. DVD Legenda. 224 Retinal detachments have been observed in patients both before and after initiation of therapy. The drug has caused decreased sperm production in animals and may cause infertility in humans, and birth defects in animals. Although there is no information in human studies, it should be considered a potential carcinogen since it causes tumours in animals. DVD Legenda. 225 My eyes sting from the drops / The infection has halted / The flash leaves / Scarlet after image / Of the blood vessels in my eye. DVD Legenda.

296 homenzinho de cabelos brancos está choramingando, pois tem que voltar a Sussex. Ele diz: “Estou ficando cego, não consigo ler”.226

Em meio a esse caos emocional que ele passa em relação a doença, Jarman ainda consegue tecer algumas de suas lembranças e falar um pouco do seu cotidiano com o último namorado que esteve a seu lado, Kevin Collins, que no texto ganha a alcunha de H. B. (Honey Beast).

”Estou em casa com as cortinas fechadas H. B. voltou de Newcastle Mas saiu A máquina de lavar está rugindo sem parar A geladeira está descongelando Estes são seus sons favoritos” 227

“Quando eu era adolescente, trabalhava no Instituto Real Nacional para os cegos fazendo apelos natalinos através das rádios, com a querida senhora Punch, que aos setenta anos, chegava todas as manhãs em sua Harley Davidson”228.

“Ela nos mantinha na linha. O trabalho dela de jardineira a deixava com bastante tempo livre em janeiro. A senhora Punch, mulher de couro, a primeira lésbica que conheci. Eu ainda reprimia e estava assustado com a minha sexualidade, e ela era a minha esperança. “Suba aí, vamos dar uma volta” a sua voz era parecida com a de Edith Piaf, um pardal, com uma boina na cabeça cobrindo um olho em um

226 The white flashes you are experiencing in your eyes are common when the retina is damaged. / The damaged retina has started to peel away leaving the innumerable black floaters, like a flock of starlings around in the twilight. / I am back at St Mary's to have my eyes looked at by the specialist. The place is the same, but there is new staff. How relieved I am not to have the operation this morning to have a tap put into my chest. I must try and cheer up H.B. as he has had a hell of a fortnight. In the waiting room a little grey man over the way is fretting as he has to get to Sussex. He says, "I am going blind, I cannot read any longer". DVD Legenda. 227 I am home with the blinds drawn / H.B. is back from Newcastle / But gone out - the washing / Machine is roaring away / And the fridge is defrosting / These are his favourite sounds. DVD Legenda. 228 As a teenager I used to work for the Royal National Institute for the Blind on their Christmas appeal for radios, with dear miss Punch, seventy years old, who used to arrive each morning on her Harley Davidson. DVD Legenda.

297

ângulo, ela controlava as outras garotas que voltavam ano após ano pelo prazer de sua companhia”229.

“H. B. está na cozinha Passando creme no cabelo Ele defende seu espaço Contra mim Ele o chama de seu escritório

As 9:00 iremos ao hospital” 230

“H. B. volta do departamento de olhos Todos os meus registros do hospital estão de ponta cabeça Ele diz que lá É como na Romênia Duas lâmpadas Iluminam As paredes descascadas Há uma caixa de bonecas Num canto Indescritivelmente suja O médico diz “Claro Os garotos não a vêem” E depois decide iluminar o local”231

229 She kept us on our toes. Her job as a gardener gave her time to spare in January. Miss Punch Leather Woman was the first out dyke I ever met. Closeted and frightened by my sexuality she was my hope. "Climb on, let's go for a ride." She looked like Edith Piaf, a sparrow, and wore a cock-eyed beret at a saucy angle. She bossed all the other old girls who came back year after year for her company. DVD Legenda. 230 H.B. is in the kitchen / Greasing his hair / He guards the space / Against me / He calls it his office / At nine we leave for the hospital. DVD Legenda. 231 H.B. comes back from the eye dept / Where all my notes are muddled / He says / It's like Romania in there / Two light bulbs / Grimly illuminate / The flaking walls / There is a box of dolls / In the corner / Indescribably grim / The doctor says / Well of course / The kids don't see them / There are no resources / To brighten the place up. DVD Legenda.

298

“Um filme persegue minha mente. De vez em quando, tenho um sonho tão magnífico quanto o Taj Mahal. Atravesso o sul da Índia, a terra da minha infância sonhadora! Lembranças em museus, com cores vivas pêssego e rosa, a vovó, chamada de Moselle, chamada garota, chamada May. Quase esqueci seu nome, que era Ruben. Macacos de jade, miniaturas de marfim, Mah-Jong. Ventos e bambus da China”232.

Ainda que não haja uma declaração solene, o espectador constata que a subjetividade do autor/narrador/personagem é a mesma.

He aqui de nuevo una vinculación con el filme-ensayo más genuína que la tradicional, ya que también este supone la materialización de una identidad a través de la conjunción voz-imagen, y no la expresión de un yo exterior a ese conglomerado: aparece, portanto, un yo de la escritura audiovisual en lugar de que este sea simplesmente una escritura del yo (CATALÀ, 2014, p. 3100).

Jarman também utiliza um outro personagem em seu discurso, o menino Blue, que é diferente de si mas que, ao mesmo tempo, pode ser ele também, em algum outro momento, um devir-criança. Para Lejeune, essa nomenclatura diferente entre esse personagem e esse autor exclui a possibilidade da autobiografia. Mas, como aqui estamos dentro das possibilidades de um autorretrato ensaístico, é extremamente factível que o autor fale de si mesmo através de um outro eu. Esse menino Blue, serve de metáfora e reflexão com a cor azul, sendo colocado em algumas pequenas partes bem específicas durante o texto. Na verdade, esse menino é quem inicia Blue, na primeira fala do filme:

“Você diz para o menino: “abra seus olhos” Quando ele abre os olhos ele vê a luz Que faz ele gritar. Exclamando:

232 Films chase through my mind. Once in a while I dream a dream as magnificent as the Taj Mahal. I cross southern India with a young spirit guide - India the land of my dreaming childhood. The souvenirs in Moslem's peach and grey living room. Granny called Moselle, called 'Girly', called May. An orphan who lost her name, which was Ruben. jade, monkeys, ivory miniatures, mah-jong. The winds and bamboos of China. DVD Legenda.

299

Oh azul, se aproxime! Oh azul, levante-se! Oh azul, descenda! Oh azul, entre!”233

Em alguns momentos fica difícil saber se Jarman fala realmente desse menino ou se o uso de Blue faz parte de mais uma de suas metáforas/reflexões relacionadas a cor azul. Aqui, prefiro entender que Jarman fala desse personagem e suas “viagens” fantásticas, assim como as realizadas por Marco Polo:

“O cachorro late, a caravana passa. Marco Polo cambaleia pela Montanha Azul. Marco Polo para, e senta-se em um tronco de lápis-lazúli próximo ao rio Oxus, enquanto se colocam a seu serviço os descendentes de Alexandre, o Grande. A caravana se aproxima, discussões azuis esvoaçando ao vento. Pessoas azuis do outro lado do mar, ultramarina, veem coletar o lápis-lazúli com os seus pontinhos de ouro. A estrada para a cidade de Aqua Vitae é protegida por um labirinto feito de cristal e espelhos, que à luz do sol causam uma cegueira terrível. Os espelhos refletem cada uma de suas traições, ampliando-as e te levando à loucura”234.

“Blue entra no labirinto. Exige-se um silêncio absoluto a todos os visitantes para não perturbar o poeta que está escavando. Este procedimento está muito sereno estes dias, porque o vento e a chuva destroem o que ele acha”235.

233 You say to the boy open your eyes / When he opens his eyes and sees the light / You make him cry out. / Saying / O Blue come forth / O Blue arise / O Blue ascend / O Blue come in! DVD Legenda. 234 The dog barks, the caravan passes. / Marco Polo stumbles across the Blue Mountain. / Marco Polo stops and sits on a lapis throne by the River Oxus while he is ministered to by the descendants of Alexander the Great. The caravan approaches, blue canvasses fluttering in the wind. Blue people from over the sea - ultramarine - have come to collect the lapis with its flecks of gold. / The road to the city of Aqua Vitae is protected by a labyrinth built from crystals and mirrors which in the sunlight cause terrible blindness. The mirrors reflect each of your betrayals, magnify them and drive you into madness. DVD Legenda. 235 Blue walks into the labyrinth. Absolute silence is demanded to all its visitors, so their presence does not disturb the poets who are directing the excavations. Digging can only proceed on the calmest of days as rain and wind destroy the finds. DVD Legenda.

300

“A arqueologia do som acaba de ser aperfeiçoada: um catálogo sistemático da palavra acontece de maneira perfeita. Blue observa, enquanto uma palavra ou frase se materializa em marcas cintilantes. A poesia de fogo que projeta tudo na escuridão com o esplendor do seu próprio reflexo”236.

Blue, esse personagem-cor, encontra-se preso em um sistema de irrealidade, em meio aos devaneios de Jarman com a morte, clamando à Santa Rita, santa católica das causas perdidas e pedindo para que seja libertado (e que nos libertemos também) do poder da imagem.

“O azul protege o branco da inocência O azul trilha atrás do preto O azul é a escuridão que retorna visível O azul protege o branco da inocência O azul trilha atrás do preto O azul é a escuridão que retorna visível Nas montanhas, fica o Santuário de Rita, onde todos que estão no fim da linha chegam, Rita é a santa das causas perdidas. A santa daqueles que estão loucos, encarcerados, aprisionados na realidade dos fatos do mundo. Estes fatos, deduzidos da causa, encurralaram o garoto de olhos azuis em um sistema fora da realidade. Com todos estes fatos obscuros que enganavam dissolvidos no seu suspiro final. Acostumado a acreditar em imagens, uma ideia absoluta de valores, seu mundo esqueceu de comandar a essência para não criar dentro de si qualquer imagem da sepultura, embora saiba que a tarefa seja preencher páginas vazias. No fundo do seu coração, ore para ser liberto da imagem”237.

236 The archaeology of sound has only just been perfected and the systematic cataloguing of words has until recently been undertaken in a haphazard way. Blue watched as a word or phrase materialised in scintillating sparks, a poetry of fire which casts everything into darkness with the brightness of its reflections. DVD Legenda. 237 Blue protects white from innocence / Blue drags black with it / Blue is darkness made visible / Blue protects white from innocence / Blue drags black with it / Blue is darkness made visible / Over the mountains is the shrine to Rita, where all at the end of the line call. Rita is the Saint of the Lost Cause. The saint of all who are at their wit's end, who are hedged in and trapped by the facts of the world. These facts, detached from cause, trapped the Blue Eyed Boy in a system of unreality. Would all these blurred facts that deceive dissolve in his last breath? For accustomed to believing in image, an absolute idea of value, his world had forgotten the

301

A partir do texto acima, as últimas aparições de Blue são imersas em uma proximidade maior com a morte, em devaneios que ficam cada vez mais impregnados de dor, irrealidade, em momentos febris nos quais não mais se consegue discernir entre o real e o imaginário e/ou abstrato.

“O louco Vincent senta-se na sua cadeira amarela, abraçado aos seus joelhos encostados ao peito - Bananas. Girassóis definham no vaso, ossos secos, esqueleto, as sementes negras pregadas na abóbora de Halloween. Ele não percebe Blue parado no canto. Olhos febris fitam intensamente um grão ictérico, caroços negríssimos como corvos, elevando-se do amarelo. O duende amarelo encara uma tela indesejável jogada em um canto. O suicídio enfadonho grita perversamente, agarrando-se covardemente ao medroso de olhos semicerrados”238.

“O azul luta contra o infecto medroso, cujo hálito fétido apodrece os frutos doentes das árvores. A traição é o oxigênio da sua maldade. Apunhala-o pelas costas. O medroso beija o ar com lábios amarelados, o fedor de pus cega os olhos de Blue. O demônio nada na bílis amarela. O medroso é o olho da serpente venenosa. Está por aqui, voando sobre uma maça podre como uma vespa. Veloz como um relâmpago, pica a boca de Blue. “AAAUGH!” Zumbindo e rindo baixinho em um gás sulfuroso. Mijando nas calças, descobrindo o dente pontudo manchado de nicotina. O azul se transforma em uma grelha anti-insetos elétrica, sua aura fritando o inimigo”239.

command of essence: Thou Shall Not Create Unto Thyself Any Graven Image, although you know the task is to fill the empty page. From the bottom of your heart, pray to be released from image. DVD Legenda. 238 Mad Vincent sits on his yellow chair clasping his knees to this chest – Bananas. The sunflowers wilt in the empty pot, bone dry, skeletal, the black seeds picked into the staring face of a Halloween pumpkin. He is unaware of Blue standing in the corner. Fevered eyes glare at the jaundiced corn, caw of the jet-black crows spiralling in the yellow. The lemon goblin stares from the unwanted canvasses thrown in a corner. Sourpuss suicide screams with evil - clasping cowardly Yellowbelly, slit eyed DVD Legenda. 239 Blue fights diseased Yellowbelly whose fetid breath scorches the trees yellow with ague. Betrayal is the oxygen of his devilry. He'll stab you in the back. Yellowbelly places a jaundiced kiss in the air, the stink of pubs blinds Blue's eyes. Evil swims in the yellow bile. Yellowbelly's snake eyes poison. He crawls over Eve's rotting apple wasp-like. Quick as a flash he stings Blue in the mouth - "AAAUGH!" - his hellish legion buzz and chuckle in the mustard gas. They'll piss all over you. Sharp nicotine-stained fangs bared. Blue transformed into an insectocutor, his Blue aura frying the foes. DVD Legenda.

302

“Todos nós pensávamos em suicídio Ficamos na esperança da eutanásia Faziam-nos pensar Que a morfina afasta a dor Ao invés de torná-la possível Como um desenho animado da Disney Transformando-se ele mesmo Nos piores pesadelos imagináveis”240

Se o texto é iniciado com o menino Blue, Jarman também termina com ele, anunciando a sua morte (seria a morte do próprio Jarman?), prometendo colocar sobre seu túmulo um delfínio (planta nativa do sul da Europa que também pode ser encontrada na cor azul).

“Coloco um delfínio, Blue, sobre sua tumba” 241

Em Blue, o filme-poesia, Jarman faz um ensaio do nascer ao morrer, prevendo o fim eminente que lhe parecia cada vez mais próximo, autorretratando- se através de um outro eu, que se mistura com o seu próprio eu, utilizando como referência para esse garoto Blue, um retrato famoso da história da arte.

O filme-ensaio retratístico oferece o pathos e a crise do eu como imagem em movimento, na qual a subjetividade vacila e deriva instavelmente – e às vezes cegamente – entre a expressão e a apresentação, lutando para pensar o rosto de um eu que vacila e se fratura na dianteira da história, da natureza e da sociedade (CORRIGAN, 2011, p. 91).

O garoto Blue de Jarman é uma clara alusão ao The Blue Boy (1770) (Figura 120) de Thomas Gainsborough, sendo um dos quadros mais famosos e conhecidos desse pintor. O quadro mostra o retrato de corpo inteiro de um

240 We all contemplated suicide / We hoped for eutanásia / We were lulled into believing / Morphine dispelled pain / Rather than making it tangible / Like a mad Disney cartoon / Transforming itself into / Every conceivable nightmare. DVD Legenda. 241 I place a delphinium, Blue, upon your grave. DVD Legenda.

303 menino, com trajes mais antigos do que a época da pintura, todo vestido em azul. Acredita-se que o menino em questão seja Jonathan Buttal (1752-1805), filho de um empresário de sucesso da época, mas não há nenhum documento que comprove essa hipótese. A obra de Gainsborough tornou-se inovadora pois, naquele momento, acreditava-se que a cor azul era uma cor que estragava retratos. Há nesse garoto uma pose aristocrática e altiva, o que também não era comum em retratos de crianças e jovens. Esse garoto que abre os olhos (nasce) na primeira frase do texto-fílmico, é Jarman que, mesmo de olhos abertos, não mais consegue enxergar. O garoto Blue é um amálgama de um personagem-cor, que serve de metáfora para a calma e a inocência do azul, assim como o azul se transfere também para uma tentativa de traduzir a cegueira derivada da doença e da dor que sentia a partir do excesso de medicamentos ao qual era exposto. Esse azul, historicamente patenteado pelo universo das artes, é colocado como um lugar que serve para o espectador “mergulhar” e ser conduzido pelo garoto Blue, na voz de Jarman e de seus amigos, em um texto de grande força poética, construindo relações entre o que é dito e ouvido e o que se mantém imutável e estático (mas nem por isso sem “movimento”) em uma imagem-pintura.

El film-ensayo introduce una nueva inflexión en ese reducto de las relaciones entre la voz, el autor y las imágenes, ya que, por regla general, en el mismo la voz de autor, aun estando presente, se recompone y no es ni voz distante, objetiva, ni voz directa, del autor, subjetiva (CATALÀ, 2014, p. 6725).

b) Imagem única: abstração em azul. Català, a partir de Adorno, sugere que o filme ensaio pode mostrar-se incômodo diante das abstrações, algo que ele herdou da forma geral do ensaio: “o ensaio recua, assustado, diante da violência do dogma, que atribui dignidade ontológica ao resultado da abstração, ao conceito invariável no tempo, por oposição ao individual nele subsumido” (ADORNO, 2003, p. 25). Mas isso não significa que o ensaio deva renunciar às formas abstratas pois “ya que en él las formas retóricas son de suma importancia a la hora de organizar las imágenes, y

304 es a través de estas arquitecturas retóricas como lo abstracto puede tomar cuerpo” (CATALÀ, 2014, p. 1984). A partir de uma poética associada à cor azul, que Jarman tenta desenvolver metáforas em relação a ela, e se intercala com as questões relativas à doença, propondo uma nova camada de leitura. O ensaísta fílmico se expressa através das imagens e dos sons e não a partir delas.

En el cine-ensayo, la forma está siempre al servicio de determinado proceso reflexivo, no porque quede arrinconada por este o porque suponga un excedente, sino porque cualquier trabajo formal acarrea, en esa modalidad fílmica, un concepto expreso, proposocional (CATALÀ, 2014, p. 3544).

A decisão de Jarman em utilizar apenas uma imagem de cor azul ultramarino (o IKB de Yves Klein), como uma forma pura de expressão da sensibilidade muito tem a ver com o projeto artístico de Klein, à procura de uma sensibilidade que flutua livremente no espaço (ou numa tela de cinema ou televisão como o filme de Jarman), rechaçando “toda línea o dibujo como limitación y aprisionamiento em pensamentos formales y psicológicos frente a las percepciones espirituales” (WEITEMEIER, 2001, p. 7). Nesse texto poética misturam-se devaneios, lembranças, dores, dias no hospital, a cegueira que avança, tudo isso embalado pela cor azul.

“Olhe para a esquerda Olhe para baixo Olhe para cima Olhe para a direita Flashes azuis nos meus olhos O feixe azul zune Dia sem nada para fazer Borboletas azuis Balançam entre a centáura-azul Perdidas no calor

305

Do dia azul Cantando blues Silenciosamente, devagar Azul do meu coração Azul dos meus sonhos Devagar, no amor azul Do dia de delfínio”242

“Mas, o que aconteceria Se esta fosse a última noite do mundo E ao pôr-do-sol teu amor desaparecesse Morresse ao luar Não levantasse Negando três vezes ao canto do galo Nas primeiras luzes da madrugada”243

“Eu encho este quarto com o eco de muitas vozes Que passarm por aqui Vozes destravadas do azul desta dor que já dura tanto tempo O sol vem e iinunda este quarto vazio Eu o chamo de meu quarto Meu quarto já deu boas-vindas a muitos verões Abraçou o sorriso e lágrimas Quero enchê-lo com a tua risada Cada palavra um raio de sol Espiando a luz Esta é a música do meu quarto O azul se alonga, boceja e acorda”244.

242 Look left / Look down / Look up / Look right / Blue flashes in my eyes. / Blue Bottle buzzing / Lazy days / The sky blue butterfly / Sways on the cornflower / Lost in the warmth / Of the blue heat haze / Singing the blues / Quiet and slowly / Blue of my heart / Blue of my dreams / Slow blue love / Of delphinium days. DVD Legenda. 243 But what if this presente / Were the world's last night / In the setting sun your love fades / Dies in the moonlight / Fails to rise / Thrice denied by cock crow / In the dawn's first light. DVD Legenda.

306

“Um épico do czar Ivan denuncia o Patriarca de Moscou Um rapaz com cara de lua, cospe e repetidamente Faz o sinal da cruz, enquanto ajoelha Será que a porta valiosa vai fechar na cara dos devotos?”245

“Eu andei atrás do céu O que está procurando? O azul insondável da felicidade Sejam astronauta da viagem, deixe a casa confortável que prende no seu braço de confiança. Lembre-se, ir para o céu não é eterno, afaste o medo que gera o início, o meio e o fim”246.

“Como será que meus amigos atravessaram o rio de Cobalto? Como que eles pagaram o barqueiro? Quando eles se prepararam para desembarcar embaixo deste céu extremamente escuro, alguns morreram ali mesmo com um último olhar para trás. Será que viram a morte com os cachorros do inferno puxando uma carruagem escura na ausência da luz? Será que eles ouviram o som das trombetas?”247

“Paciente internado usando sol

244 I fill this room with the echo of many voices / Who passed time here / Voices unlocked from the blue of the long dried paint / The sun comes and floods this empty room / I call it my room / My room has welcomed many summers / Embraced laughter and tears / Can it fill itself with your laughter / Each word a sunbeam / Glancing in the light / This is the song of My Room / Blue stretches, yawns and is awake. DVD Legenda. 245 An epic Czar Ivan denouncing the / Patriarch of Moscow / A moon-faced boy who spits and repeatedly / Crosses himself - as he genuflects / Will the pearly gates slam shut in / The faces of the devout? DVD Legenda. 246 I have walked behind the sky. / For what are you seeking? / The fathomless blue of Bliss. / To be an astronaut of the void, leave the comfortable house that imprisons you with reassurance. / Remember, / To be going and to have are not eternal - fight the fear that engenders the beginning, the middle and the end. DVD Legenda. 247 How did my friends cross the cobalt river, with what did they pay the ferryman? As they set out for the indigo shore under this jet-black sky - some died on their feet with a backward glance. Did they see Death with the hell hounds pulling a dark chariot, bruised blue-black growing dark in the absence of light, did they hear the blast of trumpets? DVD Legenda.

307

Queimando com muitas cores Penteando-se sem parar em frente A espelhos de banheiro Maldita fusão, moda Raios de laser esverdeados dançando Se unindo no meio dos lençóis bem esticados Vem espalhando fragmentos nucleares

Que tempo era aquele!” 248.

“A escuridão chega com a maré O ano passa no calendário O seu beijo resplandece Um fósforo é aceso na noite Brilha e morre Eu tiro uma soneca Beije-me novamente Beije-me Beije-me novamente Mais uma vez Nunca é demais Lábios ávidos Olhos de Verônica Céus azuis”249

“Todos antigos tabus de Linhagem sanguínea e banco de sangue Sangue azul e sangue ruim Nosso sangue e o seu sangue

248 Impatient youths of the sun / Burning with many colours / Flick combs through hair / In bathroom mirrors / Fucking with fusion and fashion / Dance in the beams of emerald lasers / Mating on suburban duvets / Cum splattered nuclear breeders / What a time that was! DVD Legenda. 249 The darkness comes in with the tide / The year slips on the calendar / Your kiss flares / A match struck in the night / Flares and dies / My slumber broken / Kiss me again / Kiss me / Kiss me again / And again / Never enough / Greedy lips / Speedwell eyes / Blue skies. DVD Legenda.

308

Eu sento aqui e você senta alí Enquanto eu dormia, um avião bateu contra um edifício. O avião estava quase vazio. Mas duzentas pessoas foram fritadas enquanto dormiam

A terra está morrendo, e nós não percebemos” 250.

“Um jovem frágil como um Belsen Caminha devagar ao longo do corredor Seu pijama verde-claro do hospital É muito grande para ele O silêncio está muito grande esta manhã Apenas a tosse a distância E meu olho doente bloqueia O jovem que ultrapassou Meu campo de visão. Esta doença te maltrata Enquanto te faz esquecer Um tiro na nuca Talvez seja mais simples Você sabe, pode levar mais tempo para descer ao túmulo, Do que na Segunda Guerra Mundial”251.

“Era e Eon abandonaram o quarto Explodindo na eternidade Sem entradas, ou saídas, agora Sem necessidade de obituários, ou juízo final Sabíamos que o tempo acabaria Depois de amanhã ao nascer do sol”252

250 All the old taboos of / Blood lines and blood banks / Blue blood and bad blood / Our blood and your blood / I sit here - you sit there / As I sleep a jet slammed into a tower block. The jet was almost empty but two hundred people were fried in their sleep. / The Earth is dying and we do not notice it. DVD Legenda. 251 A young man frail as Belsen / Walks slowly down the corridor / His pale green hospital pyjamas / Hanging off him / It's very quiet / Just the distant coughing / My jugs eye blots out the / Young man who has just walked past / My field of vision / This illness knocks you for six / Just as you start to forget it / A bullet in the back of my head / Might be easier / You know, you can take longer than / The second world war to get to the grave. DVD Legenda

309

“O sangue da sensibilidade é azul Eu me dediquei Para achar a mais perfeita expressão dele” 253.

Jarman queria se livrar do “pandemônio de imagens”, centrando-se unicamente em uma única cor, em uma única imagem, renunciando completamente à construção de uma representação do mundo real através da imagem fílmica, invisiblizando a montagem, característica central de uma obra cinematográfica.

“No pandemônio da imagem Eu te apresento o azul universal Azul, uma porta para a alma Uma possibilidade infinita Se tornando palpável” 254

“Do fundo do seu coração, ore para ser libertado da imagem” 255.

“A imagem é uma prisão da alma, sua herança, educação, seus vícios e aspirações, suas qualidades, seu mundo psicológico” 256.

Klein, assim como Jarman, escrevia em seus diários sobre o seu processo criativo. Duas dessas colocações escritas em seus diários, encontradas em Hannah Weitmeier, no livro Klein (2001), são extremanetes pertinentes de serem alocados no pensamento pictórico e artístico de Jarman, assim como a escolha de

252 Ages and Aeons quit the room / Exploding into timelessness / No entrances or exits now / No need for obituaries or final judgements / We knew that time would end / After tomorrow at Sunrise / We scrubbed the floors / And did the washing up / It would not catch us unawares. DVD Legenda. 253 The blood of sensibility is blue / I consecrate myself / To find its most perfect expression. DVD Legenda. 254 In the pandemonium of image / I present you with the universal Blue / Blue an open door to soul / An infinite possibility / Becoming tangible. DVD Legenda. 255 From the bottom of your heart, pray to be released from image. DVD Legenda. 256 The image is a prison of the soul, your heredity, your education, your vices and aspirations, your qualities, your psychological world. DVD Legenda

310

Klein como o último projeto de uma vida que já dava sinais próximos de finitude, não seria meramente aleátoria. Klein explica sua predileção pela monocromia aludindo a sentimentos mais do que explicações lógicas poderiam dar conta: “sentir el alma, sin explicaciones, sin palabras, y representar ese sentimento, eso es, creo yo, lo que me há llevado a la monocromía” (KLEIN apud WEITMEIER, 2001, p. 15). E continua explicando sua escolha pelo azul: “¿Qué es el azul? El azul es lo invisible haciéndose visible...El azul no tiene dimensiones. ‘Está’ más allá de las dimensiones que forman parte de los otros colores” (KLEIN apud WEITMEIER, 2001, p. 19). Para Jarman:

“Azul é o amor universal, no qual o homem emerge, é o paraíso terrestre“257

“O azul transcende a solene geografia do limite humano” 258.

“Para o Azul não há limites ou soluções” 259.

A través del color uno se siente atraído por una profundidad azul que transforma la materialidad del soporte pictórico en una substancia inmaterial de gran quietud. La libertad del espectador de ver lo que le plazca, responde al sentimiento que yace en el proyecto de la pintura. El ojo no choca nunca con un punto fijo. En la superación de la consciência de una separación entre el sujeto y el objeto de la contemplación, se pretende provocar un estado de la sensibilidad alterada (WEITMEIER, 2001, p. 19).

Klein pensava a pintura como uma espécie de alquimia, talvez por isso Jarman tenha se interessado pelo pintor, principalmente quando seu envolvimento com questões alquímicas se tornaram mais frequentes.

Creio que aqui se puede hablar de una alquimia de la pintura, nacida de la materia (materia pictórica) en la tensión de cada instante. Es la sugestión de sumergirse en un espacio que es más

257 Blue is the universal love in which man bathes - it is the terrestrial paradise. DVD Legenda. 258 Blue transcends the solemn geography of human limits. DVD Legenda. 259 For Blue there are no boundaries or solutions. DVD Legenda.

311

amplio que lo infinito. El azul es lo invisible que se está haciendo visible (KLEIN apud WEITMEIER, 2001, p. 39).

Blue opõe o material com o espiritual, aquilo que vemos e tocamos com aquilo que só podemos sentir, sem conseguir explicar; fala de um corpo que se desfaz, intrinsecamente marcado pela doença, num mergulho espritual por uma busca de serenidade que o azul pode proporcionar, uma espécie de rendição meditativa, onde o tempo e a eternidade se entrelaçam em busca de um entendimento maior sobre o viver e o morrer. Para Steven Dillon, azul é transcendência. Azul é sangue. O azul imutável é uma espécie de cegueira. O azul é uma ausência visual, um nada antes do abismo da morte. O azul é o mar infinito em torno do quarto de hospital de Jarman” (DILLON, 2004, p. 237)260. Para Jarman, “o monocromático é uma alquimia, libertação efetiva da personalidade. Articula o silêncio. É um fragmento de um imenso trabalho sem limite. O azul da paisagem da liberdade” (PEAKE, 1999, p. 515)261.

c) Ativismo, morte e sexualidade. Blue serve a Jarman como um complemento a seu ativismo político que, mesmo diante da morte, ainda é contundente ao se impor contra o tratamento que o governo britânico (e mundial) dava diante da epidemia da Aids e da invisibilidade tanto da doença quanto dos homossexuais, que só ganhavam a mídia para matérias sensacionalistas e depreciativas, ás vezes, as duas ao mesmo tempo. O azul que Klein manifesta como “lo invisible que se está haciendo visible”, também é colocado em Jarman como uma metáfora do vírus da Aids, querendo que ele (ou eles, os portadores dessa doença) seja(m) visto(s), pois essa invisibilidade é pior que a própria doença em si. “Una imagen abstracta, aparentemente vacía, le parecío una alegoria perfecta de la epidemia del sida (AIDS), ya que el vírus es invisible para el ojo humano y también sus víctimas son invisibles para la

260 Blue is transcendence. Blue is blood. Unchanging blue is a kind of blindness. Blue is a visual absence, a nothingness before tha abyss of death. Blue is the infinite sea around Jarman’s hospital room. Tradução do autor. 261 The monochrome is an alchemy, effective liberation from personality. It articulates silence. It is a fragment of an immense work without limit. The blue of the landscape of liberty. Tradução do autor.

312 sociedad” (KESKA, 2010, p. 32). Monika Keska, em seu texto “Blue de Derek Jarman: crónica de una muerte anunciada”, relembra uma passagem de uma entrevista de Jarman para o produtor escocês Jeremy Isaacs, bem elucidativa nessa relação entre o azul, essa imagem única e a Aids:

Eu queria fazer um filme sobre o HIV mas tudo era muito sentimental...Eu tive esse grande problema: eu não podia fazer um filme sobre outras pessoas; eu tinha que fazer sobre mim. [...] Eu senti que eu tinha que fazer um autorretrato no meio de tudo isso. Eu usei minhas anotações do hospital e é bem engraçado: vou te dizer, não é triste, mas eu achei que esse era um jeito de realmente fazer isso sem imagens – você conhece o vírus – mas não podemos ver o vírus (ISAACS apud KESKA, 2010, p. 33)262.

Desde que se descobriu HIV positivo os filmes de Jarman começam, de alguma maneira, a construir uma relação mais próxima com as questões relacionadas à doença e a morte como um todo.

En el cine de Jarman el problema del sida aparece primero bajo alusiones indirectas y la insistencia en el motivo de la muerte (War Requiem), recurrente desde que se le diagnostica la enfermedad. Sus obras anteriores eran visiblemente mucho más lúdicas: Jubilee, Sebastian o The Tempest. La sangre es otro de los motivos frecuentes, como el símbolo vital y, a la vez, un medio de contagio de la enfermedad (Edward II). En The Garden, una reinterpretación de La Pasión de Cristo, hace alusiones a su propria muerte y a la condición de los homosexuales en el Reino Unido governado por Margaret Thatcher (KESKA, 2010, p. 31).

O azul também torna-se uma aura celestial de meditação sobre a finitude da vida e a tranquilidade da aceitação do morrer. Jarman tenta, através desse azul, captar o pouco da serenidade que lhe resta, para apreender e traduzir a Aids para um mundo que a encara como uma doença associada à homossexualidade, principalmente masculina, e à promiscuidade.

262 I wanted to make a film about HIV and everything was so sentimental...I had this great problem: I couldn’t make a film about other people; I had to do it about myself. [...] I felt that I had to make a self-portrait in the middle of all of this. I used my hospital notes and it’s quite comic; I’ll tell you, it’s not to grim, but I thought this was a way of actually doing it with no images – you know the vírus – we can’t see the vírus. Tradução do autor.

313

Em Blue, quando fala da doença e de suas dores físicas, Jarman é mais direto em seu texto-poesia:

“O que eu vejo Ultrapassa os portões da consciência Ativistas invadiram a missa de domingo na Catedral“263

“Se as portas da percepção abrem bem, definitivamente serão vistas como verdadeiramente são“264.

“No jornal de hoje, três quartos das organizações de Aids não estão dando informações sobre sexo seguro. Um distrito disse que eles não tinham homossexuais na sua comunidade e que deveriam ir ver o distrito x onde eles têm um teatro”265.

“Caridade permite que aqueles que não se importam. Parecem bons e generosos, mas é terrível para aqueles que dependem dela. Caridade é um bom negócio. Bem, nós temos que viver esta situação, para que os ricos e poderosos nos fodam uma vez e continuem nos fodendo. E eles conseguem ganhar de ambos os lados. Nós sempre somos restritos, maltratados, se alguém demonstra um pouco de compaixão, nos desfazemos em agradecimentos”266.

Faz ironias com a sexualidade e o conservadorismo britânico:

“Sou viril

263 What do I see / Past the gates of conscience / Activists invading Sunday Mass / In the cathedral. DVD Legenda. 264 If the doors of perception were cleansed then everything would be seen as it is. DVD Legenda. 265 In the paper today. Three quarters of the AIDS organisations are not providing safer sex information. One district said they had no queers in their community, but you might try district X - they have a theatre. DVD Legenda. 266 Charity has allowed the uncaring to appear to care and is terrible for those dependent on it. It has become big business as the government shirks its responsibilities in these uncaring times. We go along with this, so the rich and powerful who fucked us over once fuck us over again and get it both ways. We have always been mistreated, so if anyone gives us the slightest sympathy we overreact with our thanks. DVD Legenda.

314

Mas sou rainha do prazer Com atitudes ruins Uma bicha neurótica Lambedor de cu Molestando as braguilhas da privacidade Transando com rapazes lésbicos Um demônio heterossexual pervertido Cruzando o propósito com a morte”267

“Eu sou um pederasta hetero Agindo como um lésbico Que ostenta má educação Aginsdo como um ninfomaníaco Cultivo desejos sexuais audaciosos de inversão incestuosa E terminologia incorreta

Eu não sou gay”268

Jarman coloca a estética de Blue, como um impulso emocional, querendo inscrever a morte em seu registro audiovisual, como uma “auto-observação do morrer, Blue se torna um autorretrato do corpo moribundo se voltando do interior da subjetividade para o exterior do mundo ou, talvez, impregnando e restaurando esse morrer por dentro com tudo o que está fora” (CORRIGAN, 2015, p. 100). Jarman fala de sua morte e da morte de amigos “Eu ouço as vozes de amigos mortos”269, inserindo esses rostos invisíveis que o governo teima em ocultar, dando-lhe nomes, relembrando-os.

267 I am a mannish / Muff diving / Size queen / With bad atitude / An arse licking / Psychofag / Molesting the flies of privacy / Balling lesbian boys / A perverted heterodemon / Crossing purpose with death. DVD Legenda. 268 I am a cock sucking / Straight acting / Lesbian man / With ball crushing bad manners / Laddish nymphomaniac politics / Spunky sexist desires / of incestuous inversion and / Incorrect terminology / I am a Not Gay. DVD Legenda. 269 I hear the voices of dead friends. DVD Legenda.

315

“O que eu preciso são de notícias vindas do exterior. Só o que interessa é vida ou morte. Tudo se realiza dentro de mim” 270.

“Eu ando ao longo da praia, sob um vento muito forte Um outro ano está se passando No barulho das águas Eu ouço as vozes de amigos mortos Amor é a vida que dura eternamente As memórias do meu coração voltam a vocês:

David, Howard, Graham, Terry, Paul...” 271

“O vírus enfurece-se ao extremo. Não tenho amigos que não estejam morrendo ou mortos. Como uma geada azul. No trabalho, no cinema, em marchas e praias, igrejas. Correndo, voando. Silenciosos ou gritando em protestos”272.

“Os suores à noite começaram. As glândulas incharam. O câncer negro se espalha pelo rosto. Enquanto lutam por fôlego, a tuberculose e a pneumonia tomam conta de seus pulmões, e intoxicam o cérebro. Os reflexos se misturam, o suor derrama pelo cabelo como cipós nas florestas tropicais. A pronúncia fica incompreensível. E então, estamos perdidos para sempre. A minha caneta traça esta história pelo papel, jogada em meio à tempestade”273.

“A consciência é aumentada com isto, mas uma outra coisa está perdida. Um senso de realidade, afundado como num teatro. Pensando cego, ficando cego.

270 What need of so much news from abroad while all that concerns either life or death is all transacting and at work within me. DVD Legenda. 271 I'm walking along the beach in a howling gale - / Another year is passing / In the roaring Waters / I hear the voices of dead friends / Love is life that lasts forever. / My hearts memory turns to you / David. Howard. Graham. Terry. Paul....DVD Legenda. 272 The virus rages fierce. I have no friends now who are not dead or dying. Like a blue frost it caught them. At work, at the cinema, on marches and beaches. In churches on their knees, running, flying, silent or shouting protest. DVD Legenda. 273 It started with sweats in the night and swollen glands. Then the black cancer spread across their faces - as they fought for breath TB and pneumonia hammered their lungs, and Toxo at the brain. Reflexes scrambled - sweat poured through hair matter like lianas in the tropical forest. Voices slurred - and then were lost forever. My pen chased this story across the page tossed this way and that in the storm. DVD Legenda.

316

O hospital é quieto como uma tumba. A enfermeira luta para achar uma veia no meu braço direito. E desiste depois de cinco tentativas. Você desmaiaria se alguém colocasse uma agulha no seu braço? Eu já me acostumei, mas ainda fecho os olhos”274.

“David correu até em casa, e ficou aterrorizado com alguma coisa no trem de Waterloo. Foi trazido de volta exausto e inconsciente, para morrer naquela mesma noite. Terry murmurava coisas ininteligíveis, banhado em lágrimas. Outros murcharam como flores cortados pela foice do ceifeiro do Barba Azul, ressecados pela mão do Homem que a água da vida recolheu. Howard lentamente se tornou uma pedra, petrificado dia a dia. Sua mente aprisionada em uma fortaleza de concreto até que tudo que se conseguia ouvir eram seus gemidos ao telefone”275.

“Karl se suicidou. Como ele fez isso? Nunca perguntei. Pareceu incidental. Que importa se ele bebeu cianeto ou deu um tiro no olho? Talvez ele tenha se atirado na rua de lá de cima de um edifício” 276.

“O frio de fevereiro faz bater os dentes Frio como a morte Que se mete entre os lençóis da cama Um frio dolorido Doença interminável, duro como o mármore Minha mente Congelado com remédios, se transforma em gelo Uma rajada de flocos de neve

274 Awareness is heightened by this, but something else is lost. A sense of reality drowned in theatre. / Thinking blind, becoming blind. / In the hospital it is as quiet as a tomb. The nurse fights to find a vein in my right arm. We give up after five attempts. Would you faint if someone stuck a needle into your arm? I've got used to it - but I still shut my eyes. DVD Legenda. 275 David ran home panicked on the train from Waterloo, brought back exhausted and unconscious to die that night. Terry who mumbled incoherently into his incontinent tears. Others faded like flowers cut by the scythe of the Blue Bearded Reaper, parched as the waters of life receded. Howard turned slowly to stone, petrified day by day, his mind imprisoned in a concrete fortress until all we could hear were his groans on the telephone circling the globe. DVD Legenda. 276 Karl killed himself - how did he do it? I never asked. It seemed incidental. What did it matter if he swigged prussic acid or shot himself in the eye. Maybe he dived into the streets from high up in the cloud lapped skyscrapers. DVD Legenda.

317

Lutando contra a memória Um tornado roda Na sua rota vertiginosa Uma piscadela circulando em espirais Devo? Será? Acho que não há tanto risco”277

“Eu me peguei olhando sapatos nas vitrines. Pensei em entrar e comprar um par, mas me controlei. Os sapatos que estou usando deveriam ser suficientes para eu andar para outra vida” 278.

Dois artistas brasileiros constroem expedientes que guardam algumas ressonâncias com a ousadia proporcionada por Jarman em Blue. O pintor, escultor e desenhista José Leonilson (1957-1993), dono de uma obra singular e autobiográfica, mantém uma espécie de diário íntimo, através de fitas cassetes gravadas no período de 1990 a 1993. Nessas fitas ele relata o seu cotidiano e o cotidiano do país, sua vida familiar e amorosa, assim como seus sonhos e reflexões sobre diversos outros assuntos. Esse relato torna-se mais dramático com a descoberta de Leonilson sobre ser portador do vírus HIV. Assim como Jarman, essa descoberta “contamina” as suas produções artísticas, principalmente ao colocar essa expressão artística no âmbito da urgência, em uma época em que a doença era vista como uma sentença de morte. Leonilson, que falece em 1993, mesma época do lançamento de Blue e das reflexões que Jarman propõe em relação à Aids, faz com que suas gravações tornam-se praticamente “confissões” de alguém à beira da morte, repletas de melancolia e angústia de alguém tão jovem que já sabe da brevidade da sua existência. Essas fitas são utilizadas como o material principal do documentário A Paixão de JL (2015) (Figura 121), dirigido por Carlos Nader. A partir desse material de arquivo sonoro,

277 Teeth chattering February / Cold as death / Pushes at the bedsheets / An aching cold / Interminable as marble / My mind / Frosted with drugs ices up / A drift of empty snowflakes / Whiting out memory / A blinkered twister / Circling in spirals / Cross-eyed meddlesome consciousness / Shall I? Will I? / Doodling death watch / Mind how you go. DVD Legenda. 278 I caught myself looking at shoes in a shop window. I thought of going in and buying a pair, but stopped myself. The shoes I am wearing at the moment should be sufficient to walk me out of life. DVD Legenda.

318

Nader constrói a imagética do filme que transita entre imagens poéticas, imagens de arquivo (trecho de filmes, videoclipes), fotografias pessoais, imagens das obras de Leonilson, entre outras, com a inserção das palavras ditas na tela, de forma a enfatizar o que vem do sonoro. Leonilson comenta nessas gravações o “medo da Aids” e que não estava afim de “morrer assim sofrendo, desgraçado”, sendo que logo depois realiza o teste e comenta “Eu fiz o teste mais para tirar a dúvida. Acho que eu não tenho nada, não”, um prenúncio de toda a luta que viria a seguir. Enquanto temos Jarman de forma contundente no registro sonoro de Blue, ainda que se utilize de intercessores para sua escrita, em A Paixão de JL, temos um Leonilson falando diretamente sobre a sua vida, de forma bem mais íntima e até solitária, gravando sozinho as fitas cassetes. Sua presença-ausência inunda o filme, principalmente quando suas obras são materializadas e nos dão a ver a intersecção entre as palavras ditas e as referências adquiridas pelo artista sendo traduzidas em imagens. O videoartista Rafael França (1957-1991) realiza um curta-metragem de cinco minutos, de forma mais realista e direta, sem a poesia inerente a Jarman ou a Nader. França, gaúcho de Porto Alegre, iniciou seus estudos em artes plásticas na ECA – USP, vindo a trabalhar com arte e tecnologia, gravura, xerografia, arte postal, fotografia, vídeos e vídeo-instalação. França descobre ser portador do vírus HIV em 1985 e, em 1991, faz o último vídeo antes de falecer em decorrência da Aids: Prelude to an Announced Death (Prelúdio de uma morte anunciada, 1991, 5 min.) (Figura 122). O vídeo mostra França em carícias com o namorado Geraldo Rivello, enquanto na tela, os nomes dos amigos mortos pela Aids, se inscrevem em meio a essas cenas e ao fundo o som de uma dramática interpretação de Bidu Sayão para La Traviata. Portanto, dois anos antes de Jarman, França faz seu manifesto afetivo de forma praticamente documental, com planos fechados, com os toques que não ousavam serem feitos em público, mas eram “liberados” em um ambiente privado, em frente a uma câmera, mas que seriam realocados em um ambiente público (uma exposição), para que qualquer pessoa pudesse assistí-lo. França faz de Prelude seu testamento artístico, levando consigo, para que saiam da invisibilidade, o nome de amigos que haviam morrido em decorrência da

319 doença, sabendo que o próximo seria ele. Enquanto Jarman usa da “abstração” para fugir do sentimentalismo que sua obra poderia resvalar, França não se furta a nenhuma abstração, mostrando de forma direta a carícia entre dois homens e a tragédia de uma vida que poderia ter sido diferente, mas que se perde devastada pela doença que já havia levado tantas pessoas. A imagem em França é forte e contundente, não deixando incertezas em sua proposta; enquanto Jarman tenta trazer do invisível para o visível, França opta que a visualidade/visibilidade de tantos anos e pessoas em amores não correspondidos e/ou escondidos ganhem forma nos gestos de carícias que são vistos na tela. Gestos que também remetem a uma despedida, sendo que em Jarman, essa despedida, é transformada em palavras, uma espécie de epígrafe final.

“Pescadores de pérolas Em um mar azul Águas profundas Lavando a ilha dos mortos Em baías de corais Vasos Espalham Ouro Sobre o fundo do mar imóvel Deitamos ali Abanados de velas dos navios esquecidos Arremessados pelos ventos pesarosos do fundo Garotos perdidos dormem para sempre em um abraço terno Lábios salgados tocando Em jardins submarinos

320

Dedos de um frio mortal Tocando um sorriso antigo Os sons de conchas Sussurros De um amor profundo flutuando no mergulho para sempre O cheiro dele lindo de morrer em plena beleza de verão Seus jeans escorregaram pelas pernas Jóia pura nos meus olhos fantasmagóricos Me beije nos lábios nos olhos Nossos nomes serão esquecidos Com o tempo Ninguém se lembrará do nosso trabalho Nossa vida passará como traços em uma nuvem E se dissipará nos raios do sol Lutando com o nevoeiro Porque nosso tempo é a passagem de uma sombra E nossa vida correrá como Faísca através dos erros Eu coloco um delfínio, Blue, sobre seu túmulo279.

279 Pearl fishers / In azure seas / Deep Waters / Washing the isle of the dead / In coral harbours / Amphora / Spill / Gold / Across the still seabed / We lie there / Fanned by the billowing / Sails of forgotten ships / Tossed by the mournful winds / Of the deep / Lost Boys / Sleep forever / In a dear embrace / Salt lips touching / In submarine gardens / Cool marble fingers / Touch an antique smile / Shell sounds / Whisper / Deep love drifting on the tide forever / The smell of him / Dead good looking / In beauty's summer / His blue jeans / Around his ankles / Bliss in my ghostly eye / Kiss me / On the lips / On the eyes / Our name will be forgotten / In time / No one will remember our work / Our life will pass like the traces of a cloud / And be scattered like / Mist that is chased by the / Rays of the sun / For our time is the passing of a shadow / nd our lives will run like / Sparks through the stubble. / I place a delphinium, Blue, upon your grave. DVD Legenda.

321

Klein, pouco antes de morrer, deixa escrito em seus diários que, mesmo após a morte, gostaria de seguir vivo. Jarman, ao morrer, nos deixou um legado que transborda numa complexidade ímpar de relações entre pintura, cinema, poesia, literatura e, até, jardinagem, em uma gama de reflexões que transformam o seu viver em uma jornada até Blue.

Ahora quiero ir más allá del arte – más allá de la sensibilidad – más allá de la vida. Mi vida será como mi sinfonía de 1949, un tono constante, libre de principios y fin, limitada y eterna al mismo tempo, porque no tiene ni principio ni fim...Quiero morir y entonces dirán de mí: há vivido y, por tanto, sigue vivo (KLEIN apud WEITEMEIER, 2001, p. 89).

5.3. O azul entre a caixa preta e o cubo branco. Nora Alter, em seu artigo “Translating the Essay into Film and Installation” (2007), define o ensaio em um sentido bem amplo dizendo que o filme-ensaio é um híbrido que funde documentário e ficção, duas categorias já bem estabelecidas como domínios na história do cinema (ALTER, 2007). Mas argumenta que ultrapassar esses limites é da natureza do ensaio: “Os produtores de ensaios audiovisuais incluem, assim, não apenas cineastas, documentaristas e cineastas de vanguarda, mas também artistas que produzem instalações para exposição de galerias e museus” (ALTER, 20007, p. 44)280. Norma argumenta que o ensaio transgride normas conceituais e formais, atravessando várias fronteiras, que ela chama de “fronteiras disciplinares”. Mas, talvez por ter sido escrito em 2007, Nora é um pouco conservadora em seu artigo ao sugerir que os filmes de ensaio de artistas são apresentados em espaços como museus e galerias, enquanto os filmes de cineastas que estão mais próximos da instituição cinema (acredito que ela se refira aos processos de produção e distribuição) exibem esses esses filmes em cinema de arte (ela usa o termo “repertory film houses”) ou televisão. O primeiro problema que eu vejo nessa afirmação é essa separação dicotômica entre filmes ensaios de artistas e de cineastas. Muitos desses “artistas”

280 Producers of audio-visual essays thus include not only feature filmmakers, documentarists and avant-garde filmmakers, but also artists who produce installations for gallery and museum display. Tradução do autor.

322 que produzem obras fílmicas ensaísticas, oscilam em produções entre a caixa preta (o cinema) e o cubo branco (o museu, a galeria), ou em obras (principalmente as performáticas) que extrapolam os limites desses dois lugares de “exposição”, sendo que muitas vezes, alguns, nem se consideram cineastas e estão no cinema, ou nem artistas plásticos e estão numa galeria de arte. Claro que essas relações se dão num terreno extremamamente limítrofe, portanto vou me ater mais especificamente a essa relação artística-expositiva/artística-audiovisual, quando uma produção não é pensada para o espaço expositivo de um museu e nele acaba sendo exibida. Muitos artistas saem do universo dos museus e galerias para uma produção de obras exibidas em salas de cinema, enquanto outros fazem o caminho inverso, são cineastas que intercalam trabalhos cinematográficos (aqui no sentido clássico do termo), com trabalhos expostos em museus e galerias. No primeiro caso podemos elencar vários artistas que começam seu percurso pelas artes plásticas e que, posteriormente, adentram o meio cinematográfico, como John Mayburry, Julian Schnabel, Steve McQueen, entre outros, e principalmente nas vanguardas artísticas dos anos de 1920, pois muitos artistas (pintores, escritores, fotográfos, etc) utilizavam o cinema como mais um meio de experimentação de suas práticas. No segundo caso, podemos citar alguns nomes que intercalam uma produção cinematográfica com uma produção artístico-expositiva exibida em museus e galerias, sendo que um dos mais conhecidos nessa prática é o “artista multimídia” Chris Marker, emblemático nesse trânsito por diversos suportes, sempre perpassando questões ensaísticas, assim como Agnès Varda, Harun Farocki, entre outros. Ao fazer essa dicotomia, Nora, talvez esteja pensando em artistas como os da videoarte dos anos de 1960-1980 e a relação que mantinham com a imagem em movimento inseridas dentro de um universo expositivo que se apropriava de uma linguagem cinematográfica (na maioria das vezes a negando por completo) propondo uma nova reflexão em relação a imagem audiovisual. Portanto, se for esse o caso, é compreensível que não pense propriamente em cineastas que

323 partem do universo fílmico para fazerem suas incursões dentro de museus e galerias. Jarman opera numa forma muito mais híbrida nessas relações, assim como vários outros artistas, exceções essas não muito bem representadas no texto de Nora. Mesmo sendo um pintor que filmava, e nunca o contrário, a produção jarmaniana é muito bem demarcada para o lugar que elas são produzidas. Quando filma é na caixa preta que pensa, pois quando se relaciona com a caixa branca é com pinturas que ele adentra esse ambiente de exposições. Por mais polêmico que tenha sido em suas escolhas artísticas e ativistas, Jarman ainda é um “romântico” que acredita numa separação “pura” de uma produção específica para cada lugar (cinema ou museu), sem se dar conta do quanto essas relações poderiam estar intrinsicamente conectadas e contaminadas, vindo à posteriori fazer com que o fílmico (de preferência, com questões ensaísticas) saísse da tela grande e da sala escura e adentrasse as pequenas telas das salas brancas iluminadas. As obras de Jarman não foram pensadas e/ou produzidas para o espaço expositivo de um museu ou galeria, mesmo as suas experimentações mais artísticas no campo do Super 8, do 16mm e do vídeo. Mas, o universo de curadoria, percebeu o potencial dessas imagens nesse ambiente do cubo branco e foi para lá que elas foram transferidas. Ao esgotar suas possibilidades com a pintura, Jarman procura um novo “meio” para colocar seu processo de criação, e esse meio é a imagem audiovisual, ainda que continue insistentemente pintando com ela (como vimos nos capítulos anteriores). Mesmo filmando, Jarman ainda mantém essa prática pictórica, entre idas e vindas, se dedicando de forma mais intensa após se descobrir HIV positivo, o que pode ser constatado em suas duas últimas exposições: Evil Queen e Queer. No percurso empreendido por Blue já se percebe que não estamos diante de uma obra que se esgota apenas em seu local inicial planejado para exibição: a tela do cinema. Antes mesmo da sua feitura Blue já havia sido apresentado em forma de um concerto, conforme conta o músico e compositor Simon Fisher- Turner em entrevista a Paul Schütze, em “Notes on Film”. Fisher-Turner, amigo

324 muito próximo a Jarman, compôs as trilhas sonoras de Caravaggio, The Last of England, The Garden e Blue, sendo que também musicou alguns curtas em Super 8 para uma exposição na Julia Stoschek Foundation, na Alemanha (que falaremos mais adiante). Esse concerto, continua Simon, foi todo improvisado em torno da Symphonie Monotone de Yves Klein, com a atriz Tilda Swinton e Jarman narrando alguns textos que depois se tornariam o “roteiro” de Blue, sendo que, provavelmente, tenham feito de seis a sete apresentações antes da realização do filme, conforme constatado por ele. Após a estreia do filme em uma sala de cinema em Londres e apresentações em alguns festivais, cumprindo todo o protocolo que se espera de uma obra produzida dentro de um sistema de produção audiovisual, Blue continua seu percurso criando caminhos não muito ortodoxos para uma obra cinematográfica: é transmitido em uma estação de rádio, a BBC Radio 3 e apresentado na televisão, no Channel Four, ambos em 1993, mesmo ano da exibição nos cinemas. Posteriormente o filme é adquirido pela Tate Gallery (Figura 123), fazendo parte do acervo dessa instuição museística e seu roteiro é publicado como um capítulo do livro Chroma (1994), de Jarman. Assim como Blue, os trabalhos de Jarman em Super 8 também saem da caixa preta e se acomodam em um outro lugar, a caixa branca, construindo, a partir dos curadores, exposições que levam o audiovisual para o pictórico, caminho esse inverso ao que Jarman tinha feito até então, levando o pictórico para o cinematográfico. Escolho aqui três exposições bem sintomáticas de todas essas relações descritas acima e nessa tese como um todo: a primeira vez em que as obras audiovisuais de Jarman participam de uma exposição em uma galeria, Derek Jarman: Brutal Beauty (2008) (Figura 124), na Serpentine Gallery, Londres; uma exposição apenas com uma seleção de filmes em Super 8 intitulada Derek Jarman: Super 8 (2010) (Figura 125), na Julia Stoschek Foundation, em Dusseldorf, na Alemanha; e uma terceira que colocou no mesmo ambiente obras

325 pictóricas de Jarman com as imagens captadas em Super 8, The Last of England: Derek Jarman (2017) (Figura 126), na Wilkinson Gallery, Londres. Derek Jarman: Brutal Beauty, ficou na Serpentine Gallery, de 23 de fevereiro a 13 de abril de 2008, com curadoria de Isaac Julien, artista visual e cineasta, que dirigiu nesse mesmo ano o documentário Derek (2008). Julien é responsável por essa apresentação das imagens em Super 8 de Jarman em uma galeria, ainda que a exposição, assim como a instalação do filme Blue, mantenha um pouco do universo de uma sala de cinema, com paredes escuras e pouca luz. Julien concebeu essa exposição como uma imersão no trabalho de Jarman, com vídeo-instalações, pinturas, fotografias (que documentavam o jardim e a casa de Jarman em Dungeness) e o lançamento do documentário dirigido por ele. A exposição foi dividida em três partes. Na primeira parte temos três peças da obra Bed, colchões acoplados à parede, encharcados de alcatrão com tecidos e roupas incorporados à obra juntamente com outros materiais (fotos, páginas de livros, etc). Em outra parede temos pinturas menores, também com alcatrão, às quais foram adicionados pedaços de vidro, flores secas, crucifixo, etc (algumas delas já comentadas no capítulo um, nas combines e assemblages de Rauschenberg). Temos também o trabalho fotográfico feito po Isaac Julien que mostra o interior da casa e o jardim da pedregosa praia de Dungeness, lugar onde Jarman passou seus últimos dias em vida. A segunda parte é destinada ao documentário de Isaac Julien em colaboração com os amigos Tilda Swinton e Colin MacCabe, feito a partir de uma entrevista que Jarman deu a MacCabe em 1990. Na terceira parte temos a projeção de várias telas com a exibição dos curtas em Super 8 escolhidos para essa exposição, em uma instalação, intitulado por Julien de It Happened By Chance Redux que é uma “reedição” de uma projeção ao vivo de três telas de filmes em Super 8 que Jarman fez no ICA e na Hayward Gallery no final dos anos de 1970. Nas salas que contam com a exibição de Blue e The Garden é possível deitar-se numas espécies de pufes que estão colocados no chão, para uma imersão quase sensorial nas obras do artista, algo muito semelhante as “experiências” propostas por Hélio Oiticica em seus quasi-cinemas,

326 principalmente em Cosmococas – program in progress, feito em parceira com o cineasta Neville D’Almeida. Enquanto as imagens audiovisuais ganham salas especiais, entre cinema e instalações, as pinturas continuam sendo apresentadas na forma bem tradicional de exposições de obras pictóricas. A exposição, após Londres, seguiu para o Kunsthalle Wien, em Viena, na Áustria e para o Kunsthalle Zürich, em Zurique, na Suiça. Derek Jarman: Super 8, ocorreu na Julia Stoschek Foundation, em Düsseldorf, na Alemanha, de 11 de setembro de 2010 a 26 de fevereiro de 2011, fazendo parte do Quadriennale Düsseldorf 2010, organizado pela fundação em colaboração com o produtor e amigo de Jarman, James Mackay, também detentor dos direitos autorais dessas obras. A exposição foi dividida em três andares e contemplou cerca de vinte e três curtas-metragens de Jarman em Super 8. No primeiro andar foram colocados doze curtas de um grupo de filmes que cobrem parte de sua vida social e privada (que eu nomeei nesta tese de home movies - os filmes-diários e retratos, ver capítulo dois). Junto a eles são colocados dois outros filmes sonoros, utilizados, como diz o catálogo da exposição, para “quebrar o silêncio” (STOSCHEK e FÜRNKAS, 2010, p. 8)281: TG: Psychic Rally in Heaven, uma espécie de videoclipe experimental feito para o grupo britânico de música industrial Throbbing Gristle, e do outro lado do espaço Imagining October (já comentado no capítulo três). No segundo andar havia onze curtas que se enquadram na categoria de paisagens – inglesas e ritualísticas (capítulo três), com Art of Mirrors I-III ocupando uma lateral inteira do andar. Para completar a exposição, no subsolo é exibido Blue e Simon Fisher-Turner foi o responsável (além de já ter feito a trilha sonora de Blue) por desenvolver um conceito sonoro para a exposição, que o levou a criar três paisagens sonoras atmosféricas e específicas, para cada espaço.

Desde o início, o desafio específico deste projeto consistia em encontrar uma maneira sensível de lidar com o trabalho de um artista que não está mais vivo. A pesquisa para a exposição ajudou

281 Break the silence. Tradução do autor.

327

a criar uma imagem progressivamente mais abrangente de Jarman e sua arte. Isso também provou ser uma emocionante jornada histórica na Londres dos anos 70 e início dos 80, entre música, dança, moda cinema, arte e protesto (STOSCHEK e FÜRNKAS, 2010, p. 7)282.

Aqui, ainda percebemos que o local expositivo se adapta a algumas convenções da imagem audiovisual, diminuindo a iluminação e associando até uma trilha sonora para as imagens que, em sua grande maioria, são mudas. Talvez a melhor exemplicação dessa entrada da obra de Jarman em um ambiente expositivo que não se altera para adaptar-se à imagem audiovisual seja a exposição na Wilkinson Gallery, que faz com que a imagem fílmica de Jarman seja colocada de forma expositiva como uma obra pictórica que enfrenta o cubo branco com um movimento que não lhe é característico. The Last of England: Derek Jarman, foi apresentada na Wilkinson Gallery, em Londres, de 02 de junho a 16 de julho de 2017, com curadoria de Cay-Sophie Rabinowitz e Amanda Wilkinson. Essa exposição foi realizada em conjunto com uma outra, intitulada Gretchen Bender: Living with pain, da artista Gretchen Bender (1951-2004), com Jarman no piso inferior da galeria e Bender no piso superior. No press release da exposição as curadoras argumentam pela escolha dessa exposição conjunta:

Ao justapor uma seleção muito particular de obras de ambos os artistas, esperamos rever um momento crucial em meados da década de 1980, a fim de explorar sua ressonância contínua mais de 30 anos depois. Ambos artistas estavam engajados com a política de gênero contemporânea em uma época em que ambos tinham muitos amigos que estavam morrendo de Aids. Ambos levantaram questões sobre a transmissão de imagens em várias mídias, especialmente aquelas relacionadas à guerra e às políticas do dia, em um momento em que essas imagens proliferavam como nunca antes. O uso de found footage também é fundamental para ambas as práticas (RABINOWITZ e WILKINSON, 2017, p. 1)283.

282 From the very beginning the particular challenge of this Project lay in finding a sensitive way of handling the work of an artist who is no longer alive. The research for the exhibition helped to create a progressively more comprehensive Picture of Jarman and his art. This also proved to be an exciting, historical journey into the London of the 1970s and early 1980s, amongst music, dance, fashion, film, art and protest. Tradução do autor. 283 In juxtaposing a very particular selection of works by both artists we hope to revisit a crucial moment in the mid-1980s in order to explore its continuing resonance more than 30 years later. Both artists were engaged with contemporary gender politics at a time when both had many friends who were dying from AIDS. Both raised questions about the transmission of images in various media, especially those relating to war and the

328

Temos nesse espaço expositivo as pinturas da série Black Paintings (vistas no capítulo um) juntamente com a exibição do filme The Last of England, que dá título à exposição. São imagens carregadas de uma carga dramática, onde enfatizam a violência do governo britânico e o ativismo de Jarman, contrário às medidas impostas pelo governo Thatcher às minorias sexuais. Nessa exposição, o filme é colocado no espaço expositivo lado a lado com as pinturas, como se sua tela fosse um quadro com imagens em movimento, não ganhando nenhum tratamento especial (sala e luz), diferenciando-o das pinturas que estão ao seu redor.

politics of the day, at a moment when such images where proliferating as never before. The use of found footage is also fundamental to both practices. Tradução do autor.

329

Figura 115: Pablo Picasso, “Dora Maar au chat”, 1941.

330

Figura 116: Andy Warhol, “Marilyn Monroe”, 1967.

331

Figura 117: Cindy Sherman, “Untitled Film Still #21”, 1978.

Figura 118: Francis Bacon, “Three Studies for a Self-Portrait”, 1979-1980.

332

Figura 119: Christian Boltanski, “The 62 members of the Mickey Mouse Club”, 1972.

333

Figura 120: Thomas Gainsborough, “The Blue Boy”, 1779.

334

Figura 121: Stills do filme “A paixão de JL”, 2015, direção Carlos Nader.

Figura 122: Stills da videoarte “Prelúdio de uma morte anunciada”, 1991, direção de Rafael França.

335

Figura 123: Exibição do filme “Blue”, 1993, na Tate Galley.

336

Figura 124: “Derek Jarman: Brutal Beauty”, 2008, Serpentine Gallery, Londres, Inglaterra.

337

Figura 125: “Derek Jarman: Super 8”, 2010-2011, Julia Stoschek Foundation, Düsseldorf, Alemanha.

338

Figura 126: “The Last of England: Derek Jarman”, 2017, Wilkinson Gallery, Londres, Inglaterra.

339

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebe-se em Jarman, um contínuo deslocamento do pictórico para o audiovisual e vice-versa. Jarman opera nessa ida e vinda entre esses dois campos, produzindo uma intertextualidade ímpar entre eles. Seu processo criativo se estabelece a partir de uma multiplicidade de gestualidades ao redor dessa relação entre cinema e pintura, uma relação que parte da pintura e vai ao encontro do audiovisual (o Super 8) e retorna à pintura quando essa produção fílmica adentra-se em obras mais experimentais. Philippe Dubois fala de uma prática da “citação e da ex-citação” (DUBOIS, 2004, p. 251) em relação à pintura, ao referir-se às obras do cineasta Jean-Luc Godard, sendo que essa pintura serve como “uma maneira de inscrever na ficção um efeito ao mesmo tempo de assinatura e de metalinguagem, espécie de comentário oblíquo sobre um elemento de relato” (DUBOIS, 2004, p. 253). Em Jarman, o início da busca por um “estilo”, que corrobora esse processo criativo, parte do âmbito das artes plásticas para, constantemente, retornar a ele, como se Jarman nunca tivesse deixado de ser um pintor, mesmo quando filma, quando escreve, ou quando cuida do seu jardim. Ele pinta filmando, sua câmera torna-se um substituto ao pincel, a película são suas tintas, enquanto o limite dos seus enquadramentos estão subjugados aos limites óticos proporcionados pelas lentes da câmera que utiliza. Paradoxalmente, Jarman ganha reconhecimento artístico internacional, justamente nos domínios do audiovisual. Mas Jarman nunca deixou a pintura de lado - entendendo aqui esse ato de pintar como manifestação física, com telas, tintas e pincéis -, pelo contrário, é a ela que ele retorna em diversos momentos de sua carreira, ou melhor, é da pintura que ele nunca se afasta, principalmente quando a doença avança e lhe dá pouca mobilidade física, não permitindo o desgaste inerente a longas filmagens. As obras fílmicas de Jarman, repletas de referências à história da arte europeia, é construída em “um cenário inseparável da história, da política, da cultura, da identidade e da arte britânicos” (LAWRENCE apud SOBRINHO, 2012, p. 26). Ainda que essa citação seja referente ao cineasta, também britânico, Peter Greenaway, contemporâneo de Jarman, ela também se aplica perfeitamente ao

340 tipo de cinema proposto por ele, como vimos no decorrer desta tese, pois ambos os cineastas diferem com propostas autorais ousadas em comparação aos demais cineastas britânicos do mesmo período. Jarman referencia-se a um passado mítico, um lugar das tradições do que é ser britânico e, ao mesmo tempo em que ressalta essas características, as edulcorando e as assumindo como essenciais, acaba também se tornando extremamente crítico a essas mesmas tradições. As ousadias em sua mise en scène, que são traduzidas em uma obra de forte conotação experimental, reflete um artista conservador, que valoriza toda uma Arcádia cultural britânica, ressaltando valores intrínsecos à qualidade do que é ser inglês/britânico. Mas, essa valorização do nacional, não culmina no que se convencionou qualificar como heritage films: “filmes que desenvolviam narrativas fortemente vinculadas ao patrimônio histórico da cultura britânica” (SOBRINHO, 2012, p. 106), pois Jarman está mais preocupado em subverter os padrões de uma narrativa clássica, onde a maioria desses filmes é inserida, estando mais próximo de um cinema experimental, que dos filmes que se enquadram nessa estética dos heritages. Mas, ainda assim, parece que ambos os campos não o satisfazem plenamente, conseguindo, através do ensaio, esse lugar apropriado que vem dar conta do duplo interesse (cinema e pintura), um lugar no qual ele consegue refletir através de sua própria subjetividade. Ele encara esse fenômeno ensaístico através de algumas possibilidades propostas por Català: imagens-ensaio, formas- ensaio e o filme-ensaio propriamente dito. As imagens-ensaio são “imágenes o encuadres, fijos o con evolución temporal interna” (CATALÀ, 2014, p. 1172), enquanto as formas-ensaio são “un conjunto de imágenes que se convierten en procesos reflexivos por enlace (montaje) o por contiguidad (sin efecto de montaje)” (CATALÀ, 2014, 1172). O filme-ensaio propriamente dito é aquele que utiliza as imagens-ensaio e as formas-ensaio propondo, ainda assim, uma maneira ensaística em sua totalidade. Jarman se ampara nesse domínio do ensaístico para produzir uma obra fílmica que por vez ou outra se coloca, em menor ou maior alcance, dentro dessas possibilidades permitidas pelo ensaio.

341

Para este percurso, Jarman se ampara em diversos intercessores (pintores, poetas, escritores, dramaturgos, músicos, etc), para com eles criar um diálogo profícuo, sem, em nenhum momento, deixar de lado essa subjetividade que lhe é tão peculiar. Essa trajetória que perpassa um terreno político e ético, dentro de uma especificidade sexual, atinge seu ponto máximo na obra Blue, onde podemos vislumbrar uma proposição ensaística mais intensa, a qual Jarman já vinha privilegiando em suas obras anteriores, tornando-se revelador do processo criativo desse pintor-cineasta. Jarman engendra um trabalho imagético que parte da figuração e do excesso (muitas vezes associado à uma estética neobarroca em algumas de suas obras fílmicas) à uma abstração, quase minimalista. Essa abstração, associada à cegueira de Jarman, que enxergava apenas a cor azul nos momentos derradeiros da doença que o vitimava, encontra nessa imagem única (o azul Yves Klein), não “apenas” uma imagem única, mas “a imagem”, densa, que tudo diz, intrinsicamente ligada ao vivido e ao que não mais pode ser visto, mas que tudo revela. De acordo com as proposições que Dubois se utiliza para falar de Godard, mas que aqui me aproprio para também me referir a produção jarmaniana, com Blue, essa imagem única propicia à Jarman um “mergulho num absoluto ser- imagem” (DUBOIS, 2004, p. 312), se tornando aquilo mesmo que ele é: “um corpo de imagens, um pensamento de imagens, um mundo de imagens” DUBOIS, 2004, p. 312), condensado em um “ser-imagem de todas as coisas” DUBOIS, 2004, p. 312). Inscreve esse sujeito e a imagem em uma relação complexa e recíproca: eu não estou na imagem, mas a imagem está em mim. Nessa presença-ausência articulada através de uma fragmentação do discurso, que oscila entre o poético e o realista, a ocultação do rosto (do retrato) se dá a partir de uma construção que privilegia uma subjetividade dispersa e rearranjada oscilando entre uma revelação que oculta e uma ocultação que revela. Jarman propõe um ensaio de si mesmo, feito numa tela azul ultramarina, brilhantemente “encenada” em um lugar que, ao nos retirar todas as imagens, trabalhando apenas com uma, nos faz criar uma profusão quase infinita de outras

342 imagens, como se Jarman se desdobrasse nesse ser-imagem, que pudesse “arquivar” todas as imagens existentes em apenas uma. Blue é a síntese da sua obra, é a síntese do vivido e do experimentado, mas, acima de tudo, é a síntese de uma singularidade que nunca teve medo de ser “ensaiada” à exaustão. E, ao morrer, em um último gesto de ser imagem de um ser-imagem, Jarman retorna mais uma vez à pintura para dali, literalmente, não mais sair, pedindo que suas cinzas fossem misturadas a uma tinta preta e utilizada na pintura de cinco telas: “Eu vou ser cremado e Christopher terá que misturar as cinzas com tinta preta e pintar cinco telas que eu assinarei - será minha última obra de arte. Parece ser uma maneira sensível de lidar com isso, tornar-se uma obra de arte e reter algum valor na morte” (JARMAN, 1992, p. 118)284.

284 I'll be cremated and have Christopher mix the ashes with black paint and paint five canvasses which I'll have signed - it'll be my last artwork. It seems to be a sensible way to deal with it, to become a work of art and retain some value in death. Tradução do autor.

343

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AARON, Michelle (Org.). New queer cinema: a critical reader. Estados Unidos: Rutgers University Press, 2004.

ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.

ALLARD, Laurence. “Une recontre entre film de famille et film expérimental: le cinema personnel” in ODIN, Roger (org.). Le film de famille: Usage privé, Usage public. Paris: Méridiens Klincksieck, 1995

ALTER, Nora M. “The political im/perceptible in the Essay Film: Farocki’s “Images of the World and the Inscription of War”. IN: New German Critique, nº 68, 1996.

ALTER, Nora M. “Translating the Essay into Film and Installation” IN: Journal of Visual Culture, vol. 6. Sage Publications, 2007.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 1970.

ARTHUR, Paul. “Essay Questions from Alain Resnais to Michael Moore: Paul Arthur gives a crash course in nonfiction cinema’s most rapidly evolving genre” IN: Film Comment, Jan/Fev, nº 39, 2003.

ASTRUC, Alexandre. “The birth of a new avant-garde: La camera-stylo” IN: Film and literature: an introduction and reader. New York, Prentice-Hall, 2009.

344

AUMONT, Jacques. O olho interminável. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

______. A estética do filme. Campinas, São Paulo. Papirus, 1995.

BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

______. “Lettre de Siberie”. France -Observateur, 30 de octubre de 1958. IN: MAIO, N. E.; EXPÓSITO, M. & MAURIZ, E. R. (orgs). Chris Marker: retorno a la inmemoria del cineasta. Barcelona: Ed. De la Mirada, 2000.

BEAUJOUR, Michel. Miroirs d’encre: Rhétorique de l’autoportrait. Paris: Éditions du Seuil, 1980.

BELLOUR, Raymond. Entre-imagens. Campinas, SP: Papirus, 1997.

BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. In Revista Serrote, 2014.

BLANCHARD, Simon; HARVEY, Sylvia. “The post-war independent cinema: structure and organization”. IN: CURRAN, James; PORTER, Vincent. British Cinema History. London: Weidenfeld and Nicholson, 1983.

BLÜMLINGER, Christa. Cinéma de seconde main: esthétique du remploi dans l’art du film et des nouveaux medias. Paris: Klincksieck, 2013.

______. “O atrativo de planos encontrados” IN: Devires, volume 12, número 1. Belo Horizonte, jan/jun 2015.

345

BONET, Eugeni. “Desmontaje documental” IN: LISTORTI, Leandro e TREROTOLA (org.). Cine encontrado ¿Qué es y adónde va el found footage?. Argentina: BAFICI, 2010.

BRASIL, André. “Ensaios de uma imagem só” IN: Devires, vol 3, nº 1. Belo Horizonre, 2016.

BRENEZ, Nicole e CHODOROV, Pip. “Cartografia do found footage” IN: Laika- Usp, volume 3, número 5, Junho de 2014.

BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.

CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1997.

CATALÀ, Josep M. Estética del ensayo: la forma ensayo de Montaigne a Godard. València: Universitat de València, 2014.

CHARLESWORTH, Michael. Derek Jarman. London: Reaktion Books, 2011.

CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio: desde Montaigne e depois de Marker. Campinas, SP: Papirus, 2015.

CUEVAS ÁLVAREZ, Efrén. “Change of Scale: Home Movies as Microhistory in Documentary Films” IN: RASCAROLI, Laura, YOUNG, Gwenda e MONAHAM, Barry (org.). Amateur Filmmaking: the Home Movie, the Archive, the Web. New York e London: Bloomsbury, 2014.

346

______. “Imágines familiares: del cine doméstico al diario cinematográfico” IN: Archivos de la Filmoteca, nº 45, Outubro de 2003.

CURRAN, James; PORTER, Vincent. British Cinema History. London: Weidenfeld and Nicholson, 1983.

CURTIS, David. A history of artist’s film and video in Britain. London: BFI Publishing, 2007.

D’ARCY, Chantal Cornut-Gentille. “El cine británico de la era Thatcher. Cine nacional o “nacionalista”?”. Zaragoza: Prensas Universitárias de Zaragoza, 2007.

DELEUZE, Gilles. A imagem–movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983.

______. A imagem–tempo. São Paulo: Brasiliense, 1997.

DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

DILLON, Steven. Derek Jarman and lyric film: the mirror and the sea. Austin, Texas: The University Texas Press, 2004.

DRISCOLL, Lawrence. “The rose revived”: Derek Jarman and the British tradition” IN: LIPPARD, Chris. By Angels Driven: the films of Derek Jarman. Estados Unidos: Praeger Publishers, 1996.

347

DUBOIS, Philippe. “A imagem-memória ou a Mise-en-film da fotografia no cinema autibiográfico moderno” IN: Laika-Usp, julho de 2012.

______. Fotografía & Cine. México: Ediciones Ve, 2013.

______. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

DYER, Richard. Now you see it: studies on lesbian and gay film. Londres: Routledge, 1990.

ELLIS, Jim. Derek Jarman’s Angelic Conversations. Minnesota: University of Minnesota Press, 2009.

FIGUEIRÔA, Alexandre. “Glitterbug: corpos e espaços como fragmentos da memória” IN: CASTAÑEDA, Alessandra; DIAS, Victor; FONSECA, Rafael. Derek Jarman: cinema é liberdade. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções e Caixa Cultural, 2016.

FIELD, Simon e O’PRAY, Michael. “Imaging October, Dr Dee e outros assuntos. Uma entrevista com Derek Jarman”. IN: CASTAÑEDA, Alessandra; DIAS, Victor; FONSECA, Rafael. Derek Jarman: cinema é liberdade. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções e Caixa Cultural, 2016.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1999.

FREY, Martin. Derek Jarman: moving pictures of a painter. Tennessee: Ingram Content Group, 2016.

348

GIDAL, Peter. Materialist Film. London: BFI, 1989.

______. ”Structuralist/Materialist Film: Theory and definition of structural/materialista film”. IN: Structural Film Anthology. London: BFI, 1976.

HARPER, Graeme; RAYNER, Jonathan. Cinema and Landscape. The University of Chicago Press: Intellect, 2010.

HAWKES, David. “The shadow of this time”: the Renaissance cinema of Derek “ IN: LIPPARD, Chris. By Angels Driven: the films of Derek Jarman. Estados Unidos: Praeger Publishers, 1996.

HILL, John. “Working-class realism and sexual reaction: some theses on the British “new wave”. IN: CURRAN, James; PORTER, Vincent. British Cinema History. London: Weidenfeld and Nicholson, 1983.

______. British Cinema in the 1980s. Oxford: Clarendon Press, 1999.

HUMPHREYS, Richard. Tate Britain Companion to British Art. Londres: Tate Publishing, 2001.

______. A paisagem na arte: 1690 – 1998 Artistas britânicos na coleção da Tate. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2015.

JAMES, David E. “Diário em filme/Filme-diário: prática e produto em Walden, de Jonas Mekas” IN: MOURÃO, Patrícia. Jonas Mekas. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2013.

349

JARMAN, Derek. Kicking the pricks. Londres: Vintage, 1996.

______. At your own risk: a saint’s testament. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992.

______. Dancing Ledge. Londres: London Quartet, 1984.

JOLY, Martine. A imagem e sua interpretação. Lisboa: Edições 70, 2002.

KESKA, Monika. “Blue de Derek Jarman: crónica de una muerte anunciada” IN: Arte, Individuo y sociedad, volume 22, número 1. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2010.

LANGDON, Helen. Caravaggio. Barcelona: Edhasa, 2010.

LE GRICE, Malcom. “The History we need”. IN: Film as Film: Formal experiment in film 1910-1975. London: Arts Council of Great Britain, 1979.

LEJEUNE, Philippe. El pacto autobiográfico y otros estudios. Madrid: Megazul- Endymion, 1994.

LEYDA, Jay. Films beget films. London: Ruskin House Museum Street, 1964.

LINS, Consuelo. “A voz, o ensaio, o outro”. IN: Catálogo da Retrospectiva de Agnès Varda. São Paulo, Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006.

350

LOPATE, Phillip. “A la búsqueda del centauro: el cine-ensayo”. IN: WEINRICHTER, Antonio. La forma que piensa. Tentativas en torno al cine-ensayo. Gobierno de Navarra, Pamplona, 2007.

MACHADO, Arlindo. “O Filme-Ensaio”. IN: Concinnitas, ano 4, nº 5. Rio de Janeiro, 2003a.

______. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2003b.

MACKAY, James. Derek Jarman Super 8. London: Thames & Hudson, 2014.

METTER, Barbara. “From across the channel and 15 years”. IN: Undercut, nº 19, A decade of British experimental film & video art. London, 1990.

MEKAS, Jonas. “O filme-diário (1972)”. IN: MOURÃO, Patrícia (org). Jonas Mekas. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2013.

MÜLLER, Matthias. “Magic & Loss - Selective blindness & analogue reality” IN: MACKAY, James. Derek Jarman Super 8. London: Thames & Hudson, 2014.

MORGAN, Stuart. “Borrowed Time” IN: Wollen, Roger. Derek Jarman: A Portrait. London: Thames & Hudson, 1996.

ODIN, Roger (org). Le film de famille: Usage privé, Usage public. Paris: Méridiens Klincksieck, 1995.

351

______. “La question de l’amateur dans trois espaces de realization et de diffusion” IN: Communication – Le cinema en amateur. Paris: Éditions du Seuil, 1999.

______. “Le cinema amateur” IN: EINAUDI, Giulio (org.). Storia del cinema mondiale, 2001.

______. “El cine doméstico en la instituición familiar” IN: CUEVAS ÁLVAREZ, Efrén. La Casa Abierta: el cine doméstico y sus reciclajes contemporáneas. Madrid: Ayuntamiento de Madrid, 2010.

O’PRAY, Michael. Derek Jarman: dreams of England. Londres: British Film Institute, 1996.

______. Avant-garde film: forms, themes and passions. London: Wallflower, 2003.

ORTIZ; Áurea; PIQUERAS, María Jesús. La pintura en el cine: cuestiones de representación visual. Barcelona, Espanha: Paidós, 2003.

PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herege. Lisboa: Assírio & Alvin, 1982.

PEAKE, Tony. Derek Jarman. Londres: Little, Brown & Co, 1999.

RASCAROLI, Laura. “The essay film: problems, definitions, textual commitments”. IN: Frameworks 49, Wayne University Press, Michigan, 2008.

352

REES, A.L. A history of experimental film and video. London: Palgrave Macmillan, 1999.

______. “Underground 3: Reviewing the avant-garde”. IN: Monthly Film Bulletin, vol 50, nº 597, 1983.

RENOV, Michael. “Domestic ethnography and the construction of the “other” self” IN: Collecting Visable Evidence. RENOV, Michael; GAINES, Jane. Minnesota: University of Minnesota Press, 1999.

RICHARDSON, Niall. The queer cinema of Derek Jarman. London: I.B. Tauris Co, 2009.

RICHTER, Hans. “El ensayo fílmico: una nueva forma de la película documental”. IN: WEINRICHTER, Antonio. La forma que piensa. Tentativas en torno al cine- ensayo. Gobierno de Navarra, Pamplona, 2007.

ROSA, Carlos Adriano Jerônimo de; FILHO, Claudio Marcondes de Castro. “Cinema experimental e informação: desafios para o entendimento” IN: Revista Eco Pós – Dossiê Cinema Experimental, volume 19, número 2, 2016.

SARDUY, Severo. O Barroco e o Neobarroco. IN: MORENO, César Fernández (Org.). América latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.

SAVAGE, Jon. “The Serpent lurking: Derek Jarman’s Super 8s” IN: Derek Jarman Super 8. Düsseldorf: Julia Stoschek Foundation e.V., 2010.

353

SCHAMA, Simon. O poder da arte. São Paulo: Companhia das letras, 2010.

SEROTA, Nicholas. “A paisagem na arte: 1690-1998 Artistas britânicos na coleção da Tate” IN: A paisagem na arte: 1690 – 1998 Artistas britânicos na coleção da Tate. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2015.

SITNEY, P. Adams. Visionary Film: the American avant-garde, 1943-1978. NY: Oxford Press University, 1979.

SOBRINHO, Gilberto Alexandre; MELLO, Cecília. “O filme-ensaio e a voz política na Grã-Bretanha” IN: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O ensaio no cinema: formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea. São Paulo: Hucitec Editora, 2015.

______. O autor multiplicado: um estudo sobre os filmes de Peter Greenaway. São Paulo: Alameda, 2012.

STAROBINSKI, Jean. “É possível definir o ensaio?”. IN: Remate de Males, Campinas, São Paulo, 2011.

STOSCHEK, Julia; FÜRNKÄS, Philipp. Derek Jarman Super 8. Düsseldorf: Julia Stoschek Foundation e.V., 2010.

SUPPIA, Alfredo; PIEDADE, Lúcio; FERRARAZ, Rogério. “O cinema independente americano”. IN: BAPTISTA, Mauro; MASCARELLO, Fernando (Orgs). Cinema mundial contemporâneo, Campinas, São Paulo: Papirus, 2008.

354

TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Cinemas “não-narrativos” – experimental e documentário – passagens. São Paulo. Alameda Casa Editorial, 2012.

______(org). O ensaio no cinema: formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea. São Paulo: Hucitec Editora, 2015.

VAN ALPHEN, Ernst. Art in Mind: how contemporary images shape thought. Chicago: The University of Chicago Press, 2005.

WEES, William C. Recycled Images – the art and politics of found footage film. New York: Anthology Film Archives, 1993.

WEINRICHTER, Antonio. La forma que piensa. Tentativas en torno al cine-ensayo. Gobierno de Navarra, Pamplona, 2007.

______. Metraje encontrado. La apropriación en el cine documental y experimental. Gobierno de Navarra, Pamplona, 2009.

______. “Um conceito fugidio. Notas sobre o filme-ensaio” IN: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O ensaio no cinema: formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea. São Paulo: Hucitec Editora, 2015.

WEITEMEIR, Hannah. Klein. Taschen, 2001.

WOLLEN, Peter. “Blue”. IN New Left Review 6, nov./dez. 2000, p.5.

355

______. “The last new wave: modernism in the british films of the Thatcher era”. IN: FRIEDMAN, Lester D. Fires were started – British cinema and Thatcherism. London/New York: Wallflower Press, 2006.

______. “The two avant-garde”. IN: Edinburgh 76 Magazine, nº 1. Ediinburgh Film Festival, 1976

______. “Alternative Sounds and Images”. IN: Between Imagination and Reality. London: ICA, 1990.

WOLLEN, Roger. Derek Jarman: A Portrait. London: Thames & Hudson, 1996.

WYMER, Roland. Derek Jarman. Manchester/New York: Palgrave USA, 2005.

SITES ALMEIDA, Carlos Helí de. “Jarman, a voz dissonante do cinema inglês da era Tatcher”. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2008.

BAILEY, Stephanie. “Land’s End”. 2013, Disponível em: http://artforum.com/film/id=38586. Acesso em: 13 de mai. 2016.

BONET, Eugeni. “Cinema Experimental”. Disponível em: www.iua.upf.es. Espanha/Catalunha, 1994. Acesso em: 12 abr. 2016.

356

BRAKHAGE, Stan. “In defense of amateur”. Disponível em: https://hambrecine.com/2014/05/28/ameteurbrakhage/. Acesso em: 15 mai. 2018.

KESKA, Monika. “El Cine en la Era Neobarroca: Derek Jarman”. Disponível em: . Acesso em: 21 dez. 2008.

______. “Peter Greenaway: Un Ilustrado en la Era Neobarroca”. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2008.

______. “Nueva mirada en la cultura británica: El Cine de Derek Jarman”. Disponível em: , 2007. Acesso em: 21 dez. 2008.

LINK, Daniel. “Santa Derek de los mingitorios”. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2008.

MORIN, Didier. “Carnac”. Disponível em: http://didiermorin.com/carnac. Acesso em: 20 jul. 2017.

RABINOWITZ, Cay-Sophie e WILKINSON, Amanda. “Gretchen Bender: Living with pain / Derek Jarman: The Last of England Press Release”. Disponível em: https://amandawilkinsongallery.com/usr/documents/exhibitions/press_release_url/6 5/2017_gretchen-bender-derek-jarman-press-release.pdf. Acesso em: 10 jun. 2017.

357

RICH, B. Ruby. “New queer theory”. Disponível em: , Sight & Sound, Março de 2000. Acesso em: 02 jun. 2011.

ROSA, Carlos Adriano Jerônimo de. “Um guia para as vanguardas cinematográficas”. São Paulo: Trópico, 2003. Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1611,1.shl. Acesso em: 05 jun. 2015.

SCHÜTZE, Paul. “Notes on film”. Disponível em: https://frieze.com/article/notes- film. Acesso em: 15 jan. 2017.

THE films of Derek Jarman. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2008.

358

FILMOGRAFIA

THE LAST of England. Direção: Derek Jarman. Produção: James Mackay e Dan Boyd. Roteiro: Derek Jarman. Intérpretes: Tilda Swinton; Spencer Leigh; ‘Spring’ Mark Adley; Gerrard McArthur; Nigel Terry. Anglo Internacional Films for British Screen, Channel 4 e ZDF, 1987. 87 min., son., color. e pb, super 8 e vídeo transferido para 35mm. SEBASTIANE. Direção: Derek Jarman e Paul Humfress. Produção: James Whaley e Howard Malin. Roteiro: Derek Jarman e James Whaley. Intérpretes: Leonardo Treviglio; Barney James; Neil Kennedy; Richard Warwick; Ken Hicks; Gerald Incandela. Distac, 1976. 86 min., son., color., 16mm transferido para 35mm. BLUE. Direção: Derek Jarman. Produção: James Mackay e Takashi Asai. Roteiro: Derek Jarman. Intérpretes: Nigel Terry; Tilda Swinton; John Quentin; Derek Jarman. Basilisk Communications e Uplink associadas a Channel 4, Arts Council of Great Britain, Opal e BBC Radio 3, 1993. 79 min., son., color., 35mm. CARAVAGGIO. Direção: Derek Jarman. Produção: Sarah Radclyffe. Roteiro: Derek Jarman. Intérpretes: Nigel Terry; Sean Bean; Dexter Fletcher; Spencer Leigh; Tilda Swinton. BFI associada com Channel 4 e Nicholas Ward-Jackson, 1986. 93 min., son., color., 35mm. THE GARDEN. Direção: Derek Jarman. Produção: James Mackay. Intérpretes: Tilda Swinton; Johnny Mills; Spencer Leigh; Philip MacDonald. Basilisk associada a Channel 4, British Screen, ZDF e Uplink, 1990. 92 min., son., color., super 8, vídeo e 16mm transferidos para 35mm. STUDIO Bankside. Direção: Derek Jarman. Produção: Derek Jarman. 1972. 6min.47seg.,color. e pb, super 8. SLOANE Square: a room of one’s own. Direção: Derek Jarman e Guy Ford. Produção: James Mackay. Dark Pictures, 1974-76. 8min.19seg., color. e pb, super 8 transferido para 16mm em 1981. MISS World. Direção: Derek Jarman. 1973. 28min.6seg., pb, super 8. A BIGGER Splash. Direção: Jack Hazan. Produção: Jack Hazan, Mike Kaplan e Mike Whittaker. Roteiro: Jack Hazan e David Mingay. Intérpretes: David Hockney;

359

Peter Schlesinger; Celia Birtwell; Ossie Clark; Patrick Procktor; Betty Freeman. Buzzy Enterprises e Circle Associates,1973. 106 min., son., color., 35mm. JORDAN’S Dance. Direção: Derek Jarman. 1977. 16min.29seg., color., super 8. JUBILEE. Direção: Derek Jarman. Produção: Howard Malin e James Whaley. Roteiro: Derek Jarman e James Whaley. Intérpretes: Jenny Runacre; Little Nell, Toyah Willcox; Jordan; ; Ian Charleson; Karl Johnson. Whaley-Malin Productions para Megalovision, 1978. 104 min., son., color., 16mm e super 8 transferidos para 35mm. JORDAN’S WEDDING. Direção: Derek Jarman. 1981. 4min.53seg., color., super 8. PIRATE Tape. Direção: Derek Jarman. Intérprete: William Burroughs. 1982. 9min.58seg., color., super 8 posteriormente transferido para vídeo e 16mm. JOURNEY to Avebury. Direção: Derek Jarman. 1973. 13min29seg., color., super 8. ASHDEN’S Walk on Mon. Direção: Derek Jarman. 1973. 37min38seg., color. e pb, super 8. IMAGINING October. Direção: Derek Jarman. Produção: James Mackay. Intérpretes: John Watkiss; Angus Cook; Peter Doig; Toby Mott; Steven Thrower. 1984. 27 min., color. e pb, super 8 e vídeo transferidos para 16mm. GARDEN of Luxor. Direção: Derek Jarman. Intérpretes: Alasdair McGaw; Christopher Hobbs. 1973. 8min24seg., color., super 8. THE ART of Mirror. Direção: Derek Jarman. Intépretes: Gerald Incandela; Luciana Martinez; Kevin Whitney. 1973. Color., super 8. IN THE Shadow of the sun. Direção: Derek Jarman. Produção: James Mackay. Intérpretes: Karl Bowen; Christopher Hobbs; Gerald Incandela; Luciana Martinez; Kevin Whitney; Andrew Logan. Dark Pictures associada a Freunde der Deutschen Kinemathek, 1981. 51 min., color., super 8 transferido para 16mm. TAROT (The Magician). Direção: Derek Jarman. 1973. 7min39seg., color., super 8. FIRE Island (My very beautiful movie). Direção: Derek Jarman. 1974. 28min45seg., color., super 8.

360

GLITTERBUG. Direção: Derek Jarman. Produção: James Mackay. Basilisk Communications e BBC, 1994. 60 min., color. e pb, super 8 transferido para 35mm. DANCE Hall Days. Direção: Derek Jarman. Aldabra, 1983. 3min58seg., color., vídeo e super 8. EVERY time we say goodbye. Direção: Ed Lachlan. 1990. 4min03seg., color., vídeo e super 8. A PAIXÃO de JL. Direção: Carlos Nader.Roteiro: Carlos Nader. Instituto Cultural Itaú, 2015. 82 min., son., color. PRELÚDIO de uma morte anunciada. Direção: Rafael França. 1991. 4min07seg., color., vídeo.

361

ANEXO

Entrevista realizada com o produtor James Mackay, através de e-mail, em 18 de janeiro de 2018.

Luiz Andreghetto: Como o senhor se envolveu com as produções de Jarman? Como funcionava o seu papel de produtor? James Mackay: Eu era um estudante de arte em Londres, em meados dos anos setenta, depois do qual estive ativo na London Film-maker Co-op, onde eu programava e dirigia o cinema (1978 - 80). Eu não tenho nenhum treinamento formal como produtor e só me tornei um acidentalmente. Eu conheci o Derek quando pedi a ele que fizesse um pouco do seu trabalho de Super 8 na Co-op tendo visto anteriormente alguns na Galeria ICA em 1974. Nós nos tornamos amigos. Eu tentei ajudar na conservação de seus fimes através de ampliações de 16mm (mais fáceis de serem digitalizados e você não visualiza o original). Depois de 3 anos disso (na época em que eu estava trabalhando na B2 Gallery) e da crescente frustração de Derek em angariar fundos para projetos “convencionais”, nós começamos a fazer novos trabalhos – Imagining October e The Angelic Conversation sob nossos próprios auspícios.

LA: É mencionado no IMDB que o senhor foi diretor de fotografia e segunda câmera em The Angelic Conversation e diretor de fotografia adicional em The Garden. Além da produção, o senhor também participou ativamente das filmagens? Como foi essa relação de trabalho com Jarman? JM: Eu estudei cinema e vídeo como parte da prática de arte. Eu fiz filmes na escola de arte e ainda estava gravando quando saí. Eu filmei muito em The Angelic Conversation e planejei alguns dos set-ups. Cada um de nós escolheu um ator, foi um caso por procuração. Na época do The Garden, eu tinha ficado com todas as coisas contratuais - o que eu realmente não gosto, não consigo me empolgar com os “negócios”, mas com Derek no hospital, em certo momento eu filmei uma das sequências (com os meninos ao redor de um barco na praia),

362 felizmente filmou tão bem quanto a câmera que eu estava usando (a minha tinha sido roubada alguns meses antes) estava fora no foco traseiro o que significava que a maioria das minhas imagens estavam inutilizáveis. Eu dirigi os atores.

LA: Como produtor, quais foram os maiores desafios que o senhor teve que enfrentar com um cineasta tão autoral e experimental como Jarman? JM: Nenhum.

LA: O senhor saberia dizer como era o processo criativo de Jarman? JM: Derek era um pintor que usava uma câmera. Seus roteiros e filmagens eram geralmente moldados em formato convencional por outros no caso dos filmes mais “convencionais”. Ele começava com uma ideia (não uma história) e trabalhava com as filmagens (no caso de Angelic, Jubilee, The Last of England, etc) ou colecionava cadernos e “scripts” (Caravaggio, Edward II etc.).

LA: Poderíamos dizer que Jarman não estava satisfeito com os curtas que ele fazia no Super 8, pois constantemente retornava a eles, remontando-os, remodelando-os e sobrepondo-os, ou isso fazia parte do seu processo criativo? JM: Derek não fez "curtas" como um pintor não diferencia sua pintura através do tamanho da tela, um cineasta como Derek, não dividiu seus filmes em curtas e longas. Ele ficou muito surpreso e intrigado com o motivo de haver menos interesse em In the Shadow of the Sun do que em The Tempest (ambos exibidos mais ou menos na mesma época), como ele (disse para mim) que havia colocado tanto de si em um quanto no outro. Quanto ao retrabalho e repetição de imagens, isso não é incomum na pintura. As pilhas de trigos (the Haystacks) de Monet ou os Girassóis (the Sunflowers) de Van Gogh. Os artistas muitas vezes olham para pessoas e motivos de maneiras diferentes através do seu trabalho.

363

LA: Os filmes de Jarman, especialmente os feitos Super 8, vieram de um processo mais intuitiva ou foi era extremamente organizado e planejado? JM: Tudo foi cuidadosamente planejado e muito bem organizado, então o acaso e o momento foram aproveitados.

LA: Para o teórico francês Roger Odin, os home movies são filmes feitos por algum membro da família, geralmente ligados à história desse grupo social e / ou a momentos de festa e alegria. Geralmente, quem filma, faz parte desse lugar, dessa família e, através de um olhar privilegiado sobre esses indivíduos que compõem o ambiente familiar, produz um material que normalmente só diz respeito àqueles que estão sendo retratados nele, feitos, a princípio, para uma exebição particular. No livro Derek Jarman Super 8, da Thames & Hudson, o senhor diz que Jarman "criou esse caminho social para fazer filmes" (página 16). Você acredita que esses curtas que mostram a vida social em torno de Jarman, seus amigos, festas, etc. (Studio Bankside, Sloane Square, Ulla’s Fete, I’m ready for my close up) podem ser considerados home movies, com Jarman apresentando uma espécie de extensão dos antigos home movies que seu pai e seu avô produziram, em uma nova configuração familiar? JM: Sim, até certo ponto. Eles são feitos em um ambiente familiar, mas são sérios em sua intenção.

LA: Em uma entrevista dada ao site português Ipsilon, durante o Queer Lisboa de 2016, o senhor diz que “Hoje é muito mais difícil fazer um filme como Derek os fazia”. O senhor poderia explicar melhor essa afirmação? JM: Eu acho que seria muito difícil (no Reino Unido) fazer um filme como The Last of England ou The Garden através dos atuais canais de financiamento. Algo parecido com um semblante de cinema narrativo como Wittgenstein poderia ser mais possível, mas, como teria que passar pelos muitos arcos de aprovação do roteiro, é improvável.

364

LA: Entre alguns dos argumentos que eu trabalho em minha tese, percebo que alguns curtas-metragens de Jarman estão mais próximos de questões relacionadas à pintura do que propriamente ao audiovisual, especialmente Journey to Avebury, In the Shadow of the Sun, Ashden's Walk on Mon, entre outros; onde a relevância da paisagem remonta a uma tradição de pintura britânica (como Turner, Gainsborough, Constable). Por essa perspectiva, o senhor concorda com a afirmação de que Jarman, antes de ser cineasta, era um pintor e depois um pintor que filmava? Poderíamos dizer que a câmera Super 8 substituiu os pincéis de Jarman em continuidade ao seu aprendizado em artes plásticas? JM: Ele continuou pintando (e exibindo) até a sua morte. Eu nunca pensei nele como um diretor de cinema que é um epíteto que foi dado a ele. Blue, por exemplo, foi exposto pela primeira vez na Bienal de Veneza (1993) e é visto principalmente instalado em galerias. Jarman estava muito à frente de seu tempo. Você não faria essa pergunta à Pierre Huyghe (porque a imagem em movimento agora é considerada, com razão, parte da prática artística).

LA: Eu li que It Happened by chance é uma coletânea de diversas bobinas de filmes em Super 8 do Jarman que foram divididas em volumes, com datas especificas, montado ou coordenado pelo Isaac Julien para uma exposição em um museu. O senhor poderia comentar um pouco mais sobre esse projeto? JM: Os rolos 1 a 12 da IHBC foram compilados a partir de cortes, fragmentos filmados e alguns projetos inacabados / malsucedidos. Alguns são cortados em tiras de 24 e 48 quadros e montados aleatoriamente.

LA: Qual é o grande legado que Jarman deixou para as novas gerações? JM: Coragem e um trabalho de grande beleza.