GT – 20 RITUAIS, REPRESENTAÇÕES E NARRATIVAS POLÍTICAS

Título: Disputa política, luta simbólica no PSDB Autora: Maria Auxiliadora Lemenhe

Resumo: Trato de desvendar algumas das formas de manifestação dos conflitos que emergiram entre diferentes segmentos do PSDB a propósito da indicação do candidato do partido à presidência da República nas eleições de 2002. Busco sobretudo analisar as representações construídas por cada um dos contendores sobre si mesmos e sobre o adversário. Parto da idéia de que as representações configuram-se, neste caso, como estratégias de legitimação dos sujeitos em torno dos quais se estruturam as disputas. A observação dos fenômenos políticos tomados como objeto de estudo abrange um curto período de tempo, balizado entre outubro de 2001 e fevereiro de 2002. O ponto inicial é expressivo da agudização e publicização das contendas entre Serra e Jereissati. O momento final assinala as ações implementadas pelas lideranças do PSDB tendo em vista a acomodação das dissensões internas ao partido. .

Introdução

Em 24 de fevereiro deste ano, um domingo, o PSDB promoveu em Brasília, um grande evento como há muito não fazia. Síntese de comício de campanha e de festa de confraternização, o evento tinha como finalidade consagrar, em uma pré-convenção, o senador José Serra como candidato do Partido à presidência da República. A pompa do mesmo pode ser dimensionada pela estimativa de seu custo – 60 mil reais – e pelo enorme “Cartaz do Serra”1, que cobriu quase toda a extensão de uma das paredes externas do hotel onde se realizou o evento (FSP, 25/02/2002). Registram matérias de jornal que compareceram à cerimônia 2.500 militantes, os cinco governadores vinculados ao Partido, ministros, senadores e deputados. Ausente, o Presidente da República – na ocasião em vista à Polônia – fez-se presente através de mensagem na qual apresenta seu apoio nominal ao candidato: confio em José Serra porque o tenho como amigo, um companheiro de lutas e vejo nele as qualidades indispensáveis para dirigir o país. Quanto a seu Partido, exorta-o para o dever de oferecer ao País uma nova proposta de governo que signifique continuidade sem mesmice e manifesta a esperança de que tenham todos humildade e

1 competência para manter a aliança que vem dando sustentação ao governo (O Povo, 25/02/2002). A realização de uma pré-convenção para consagrar candidatos é uma prática corriqueira tendo em vista sua institucionalização no conjunto dos processos democráticos formais no País. Mas esta, particularmente, é expressiva de algo mais: a pretendida união do PSDB em torno de uma candidatura. A este respeito, a foto ilustrativa da matéria do Jornal Folha de São Paulo (25/02/2002) que divulgou o evento, é eloqüente. Vê-se nela José Serra e Tasso Jereissati igualados em suas camisas azuis de quase mesmo tom, de mangas longas e do mesmo modo dobradas. Os braços levantados em posição de vitória, tocando um ao outro, são soldados por mãos que se entrelaçam. O contorno das bocas sugere que ambos cantam o mesmo canto. Se a imagem visual traz a idéia de uma união sem reticências, o mesmo não ocorre no plano da retórica construída por Tasso Jereissati e José Serra. O primeiro, em um curto discurso, expressa sua contrariedade com o segundo e com o presidente da República por constrangê-lo a desistir de disputar a condição de candidato do Partido às eleições presidenciais. Ainda, omite qualquer expressão que sugira seu apoio a Serra e restringe sua fala para declarar-se comprometido com a continuidade do projeto definitivo de colocação do Brasil entre os países desenvolvidos e modernos idealizado e implementado pelo PSBD, desde 1994 e hoje em perigo: nenhum projeto pessoal pode comprometer esse projeto. Serra, por sua vez, também não oculta as divergências. Falando de maneira pueril e até inusitada – tendo-se em vista o contexto e as representações correntes sobre o “estilo” do candidato (expressas pelos termos “intelectual” “formal”, “sisudo”, “antipático”) – desvenda a disputa no interior do PSDB e sua pretensa unidade. Há um ditado que diz: quando um não quer, dois não brigam. Mas no nosso caso, nós podemos dizer que, quando dois não querem, não só não brigam, como também vão andar juntos dentro da luta política e social. A linguagem pueril traz à tona marcas das dissensões travadas no interior do PSDB em tempos que precederam o ato de lançamento da pré- candidatura de José Serra à Presidência da República. Nas páginas seguintes busco desvendar algumas das formas de manifestação dos conflitos que emergiram recentemente entre diferentes segmentos do PSDB a propósito da

2 indicação do candidato que disputará a Presidência da República nas eleições de 2002. Tal objetivo envolve a identificação dos principais personagens envolvidos, o desvendamento das várias estratégias de legitimação construídas pelos adversários principais e segmentos que se constituíram em torno dos mesmos e, por fim, as estratégias mobilizadas pelo presidente da República tendo em vista promover a assim dita “unidade partidária”. Alguns esclarecimentos de ordem metodológica são necessários. A observação dos fenômenos políticos tomados como objeto de estudo abrange um curto período de tempo, balizado entre outubro de 2001 e fevereiro de 2002. O ponto inicial é expressivo da agudização e publicização das contendas entre Serra e Jereissati. O momento final assinala as ações implementadas pelas lideranças tendo em vista a acomodação das dissensões internas ao PSDB, simbolizada na convenção acima descrita. Vali-me fundamentalmente de informações veiculadas pelos jornais Folha de São Paulo e Jornal O Povo, editado em . A leitura destes dois jornais me foi útil pela abundância de notícias publicadas relativas ao tema em estudo. Recorri também a uns poucos exemplares das revistas Veja e Primeira Leitura.

Perfil dos oponentes

Traço aqui uma breve biografia de Tasso Jereissati e José Serra destacando nelas aspectos da vida de ambos que permitem caracterizá-los como personagens políticos. Um leitor atento dos jornais do período tomado como referência para esta pesquisa poderia perguntar, e não sem razão, por que estou excluindo outros candidatos que foram anunciados também concorrentes ao posto de candidato do PSDB à presidência da República. É certo que vários são mencionados pelos meios de comunicação participantes da disputa: (Ministro da Fazenda), Paulo Renato de Souza (Ministro da Educação), Dante de Oliveira (Governador de Goiás), Aécio Neves (Presidente da Câmara Federal). Sejam quais forem as razões específicas da dissolução das pretensões de um e de outro, parece-me razoável supor que esta diversidade de pretendentes resultaria menos de intenções pessoais de cada um

3 e de agrupamentos no interior do Partido, e mais do acirramento da disputa entre o Ministro da Saúde e o Governador do Ceará. São casos exemplares desta hipótese, Aécio Neves e Dante de Oliveira.

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José Serra nasceu na cidade de São Paulo (1942) em uma família de classe média baixa2. O ingresso no curso de engenharia civil na USP (1960) enseja seu envolvimento ativo com o movimento estudantil universitário, pois é eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (1962) e participa da Ação Popular, organização de esquerda de orientação católica catalizadora da energia política juvenil deste período. O golpe militar acaba por levá-lo ao Chile (1966), onde realiza curso na Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e conclui mestrado em economia (1968) na Universidade do Chile. Entre 1973 e 1978 vive nos Estados Unidos, onde realiza cursos de pós-graduação e obtêm os título de mestre e doutor em economia na Universidade de Cornell e trabalha como pesquisador da Universidade de Princeton. Neste tempo mais distante da existência do candidato José Serra é quando tem início (e parece que se consolida) a amizade entre ele, Fernando Henrique Cardoso e sua esposa, a antropóloga Ruth Cardoso, que também residiram no Chile, onde o presidente foi professor e pesquisador na CEPAL. Regressando ao Brasil, José Serra foi professor da UNICAMP e publicou trabalhos (livros e artigos) sobre economia brasileira. Esta trajetória fundamenta sua reputação de intelectual dotado de competência superior no campo da ciência econômica, trunfo valioso na composição de seu capital político (Bourdieu, 1989). Vale dizer, oferece a Serra elementos para a auto-construção de uma imagem positiva de político capaz de exercer o cargo pretendido e ser, como tal, reconhecido no interior de seu partido e pelo eleitorado. A antiga relação de amizade que une Serra ao presidente da República (e os sentimentos via de regra mediam a amizade, tais como confiança recíproca, partilha de ideologias e valores) transposta para o campo político confere a Serra um diferencial inigualável de prestígio político e de recursos para ação como candidato a candidato dentro e fora do PSDB.

4 Observados os itens da carreira política vê-se José Serra ocupando diversos cargos não eletivos e obtendo sucessivas vitórias eleitorais, desde os anos de 1982 até hoje. Sofreu duas derrotas nas urnas, ambas quando concorreu (1988 e 1996) ao cargo de prefeito de São Paulo. Ao longo das décadas de 80 e 90 Serra foi:  Secretario de Planejamento do Estado de São Paulo;  eleito deputado federal pelo PMDB (1986);  reeleito deputado federal pelo PSDB (1990) e ocupa por dois anos a liderança do PSDB na Câmara;  eleito senador (1994) com 6,5 milhões de votos, coeficiente até então nunca atingido e até hoje não superado;  nomeado Ministro do Planejamento e Orçamento (1995);  nomeado Ministro da Saúde (1998), cargo que iria ocupar até fevereiro de 2002. Esta trajetória é sugestiva de que Serra firmou-se como um político cujas bases partidárias e eleitorais estão sediadas no estado de São Paulo. O exercício do cargo de ministro em dois mandatos sucessivos o coloca no cenário da vida pública de âmbito nacional, especialmente desde quando assume o cargo de Ministro da Saúde. Contudo, esta posição não se concretiza em intenções de votos computados em prévias eleitorais realizadas tendo em vista as eleições presidenciais de 2002. Segundo veiculam os jornais, ao longo do período aqui considerado, os percentuais de adesão à candidatura de Serra no país mantiveram-se baixos e, em vários momentos, inferiores aos alcançados por personagens como Ciro Gomes e relativamente próximo às reduzidas preferências registradas para Antony Garotinho e Tasso Jereissati. É considerável a oposição que membros das elites políticas do Nordeste3 e setores do empresariado fazem a ele. A julgar pelas manifestações no espaço do Ceará, o desprestígio de Serra na região parece ter origem na oposição que fez ao projeto de implantação no Nordeste da chamadas Zonas de Processamento de Exportação (ZPE), em 1988. De autoria do Ministério da Indústria e Comércio, em um governo sob o comando de um presidente nordestino (José Sarney), o projeto era percebido como estratégia promissora para promoção do desenvolvimento da região por governadores (dentre eles Tasso Jereissati), parlamentares e empresários. Na condição de deputado federal e

5 economista4 Serra não poupa suas energias contra o projeto. A não aprovação da ZPE traz ao opositor do mesmo o título de “inimigo do Nordeste”.

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Tasso Ribeiro Jereissati nasceu em Fortaleza5 (1949), em uma família da classe alta de origem libanesa que fez fortuna no Ceará, em geração precedente, sobretudo pelas atividades do pai – comerciante vinculado ao setor exportador/importador. Jereissati é filho de senador, vinculado ao PTB de Getúlio Vargas. Assim, foi o pai base de apoio de Vargas no Ceará,. Riqueza e representação política levam os Jereissati ao Rio de Janeiro, onde Tasso cumpriu algumas etapas de sua escolaridade, graduando-se em Administração de empresas, na Fundação Getúlio Vargas. A emergência de Tasso Jereissati na vida pública ocorre ao final dos anos 70 (1978), quando integra um grupo de empresários que se organizam em uma entidade civil de classe, o Centro de Industrias do Ceará (CIC), à época desativado. Este grupo apresentou-se como vanguarda política do empresariado do Ceará, fazendo coro às demandas dos empresários brasileiros em seus apelos por mudanças nas diretrizes da economia e da política do país. No âmbito do política local, já em meados da década de 80, os empresários organizados no CIC passam a combater a ineficiência das administrações locais e o particularismo na condução dos negócios do Estado. Tasso Jereissati foi um dos membros mais ativos e proeminentes do CIC. Presidiu a entidade entre os anos 1981/1983. Em 1986, ingressa na política no sentido estrito do termo candidatando-se ao cargo de governador do Ceará. Concorrendo pelo PMDB, elege-se com considerável número de votos, obtidos tanto na capital como no interior do estado. Esta vitória consagra Tasso Jereissati como aquele que “derrotou os coronéis” e que afastou da vida política do Ceará personagens e processos políticos arcaicos. Logrou eleger Ciro Gomes governador do Estado em 1990, candidato da coligação PSDB/PDT, dez deputados federais e 20 estaduais, dos quais 17 do PSDB. Foi consagrado governador novamente em 1994 e reeleito em 1998. Em ambos os pleitos foi vitorioso com expressiva margem de votos em relação aos adversários.

6 Nesta trajetória política construída exclusivamente no exercício da função de governador do Ceará, Jereissati não experimentou pessoalmente nenhuma derrota nas urnas. Mas, por outro lado, desde que exerce a liderança política no Estado, excetuando-se o caso de Ciro Gomes (eleito prefeito em 1988 numa votação aperta e envolta em suspeita de fraude), nenhum dos candidatos que disputaram a prefeitura da capital com seu apoio foi vitorioso. Um revés político conhecido refere-se ao veto que lhe antepôs Ulysses Guimarães, quando foi indicado Ministro da Fazenda pelo então presidente José Sarney. Personagem política legitimado em grande extensão em seu estado, pode se tornar nacionalmente conhecido e reconhecido no exercício do cargo de presidente do PSDB (1991/1994)6. A função, se não lhe trouxe visibilidade perante o cidadão-eleitor, ensejou a consolidação de simpatias de correligionários em vários estados do país. Os jornais consultados dão indicações dos principais apoios disponíveis para cada um dos lados da disputa. No rol dos apoiadores prestigiados e efetivos de Tasso inscrevem- se, no núcleo do poder: José Aníbal (Presidente Nacional do PSDB); Arthur Virgílio (Ministro/Secretaria Geral da Presidência); Pimenta da Veiga (Ministro das Comunicações). Acrescenta-se ainda Eduardo Azeredo (ex-governador de Minas Gerais). Ao lado de Serra estão o presidente da República e o Ministro Aloysio Nunes. Neste jogo, o peso político de três ministros de Estado não valem o de um presidente da República. No cômputo dos déficits de capital político (Bourdieu, 1989) de Jereissati há que se incluir também a desconfiança do Presidente em relação à fidelidade do governador do Ceará. Como se sabe, Ciro Gomes havia deixado o PSDB (1995) e tornara-se opositor de Fernando Henrique Cardoso – com quem disputa a presidência da República (1998) – e não perdeu o apoio de Tasso7. Este desequilíbrio de potências, que coloca Tasso como o lado mais fraco, é acrescido da circunstância de não poder contar com o apoio de Mário Covas, falecido em 2001, e que havia “lançado”, já em 2000, sua candidatura. Fazia-lhe falta também o antigo prestígio do aliado Antônio Carlos Magalhães. Enfraquecem também a postulação de Tasso os baixos índices de adesão registrados em seu nome nas prévias eleitorais.

7 Cada qual a seu modo

O acompanhamento dos passos dos dois concorrentes através das notícias dos jornais permite constatar que ambos têm um pivô retórico comum o qual pode ser assim sintetizado: muito já se fez no pais em benéfico do povo mas há muito ainda a ser feito para combater as desigualdades, formulação adequada à condição de candidatos da situação, em um país onde as desigualdades têm longa existência e são sentidas como agravadas na atualidade. As diferenças residem nas representações positivas que formulam sobre si mesmos e como tais pretendem ser reconhecidos pelo eleitores. Tanto um quanto o outro fazem de suas experiências profissionais particulares passadas e presentes, apresentadas linhas acima, um repositório de valores e atitudes consagrados no universo sócio-cultural do Brasil. De sua parte, Tasso Jereissati apresenta-se como político moderno, ético e empresário bem sucedido. José Serra, de outra, como intelectual capaz de interpretar os problemas econômicos do país, político trabalhador e administrador eficiente. Opostas – ainda que convergentes nas intenções – foram as estratégias escolhidas por ambos, num primeiro momento, para a veiculação daquelas imagens. A um político pouco conhecido fora do espaço político cearense foi considerado fundamental a Jereissati proclamar sua candidatura sem demora e participar de eventos, mais ou menos restritos, em diferentes estados brasileiros, sempre veiculados em profusão pelos jornais. Procurou irradiar para o país sua imagem a partir de São Paulo, maior colégio eleitoral do país e terra do adversário. É aí que se apresenta como candidato, ao final de outubro de 2001, a pretexto de realizar uma palestra para empresários, intelectuais e membros do PSDB. O evento foi realizado no Instituto de Engenharia de São Paulo, onde teriam comparecido aproximadamente 1500 pessoas (avaliação dos organizadores), dentre as quais o governador de São Paulo e o ministro da Educação. Organizado por membros do PSDB aliados ao governador do Ceará, o acontecimento foi anunciado como tendo sido uma iniciativa da viúva de Mario Covas e de seus dois filhos, razão pela qual foi denominada de homenagem prestada a Tasso Jereissati pela família Covas. Pelo menos dez dias antes, presente à inauguração de fábrica da Ford na , ao lado de Antônio Carlos Magalhães, Tasso já faz alusão à homenagem, dizendo: O apoio da família Covas

8 significa muito para mim, pelo que Covas representou para minha vida política e para o partido (FSP 13/10/2001). A evocação da figura de Mário Covas (e a presença de membros da família do mesmo) em um primeiro ato público realizado em São Paulo para o adversário de Serra poderia ser qualificado como um golpe de mestre publicitário, pois nele estavam subjacentes sentimentos que remetem a valores e atitudes situados à margem do campo da política – como amizade, solidariedade, dor da perda causada pela morte, etc – e como tal catalizadores de adesões/simpatias de sujeitos diversos. Deveria estar ainda viva na memória dos paulistanos a grande comoção suscitada pela doença e morte de Covas e os termos correntes para qualificar o governador morto: homem ético, corajoso, sincero. Mais ainda, muitos poderiam ainda recordar (e provavelmente foram colocados na situação de) que no ano anterior (12/2000) Covas, então desafeto de Serra, fez declaração pública na qual defende a indicação de Tasso como candidato do PSDB à presidência da República. Travestida a homenagem em Convenção de partido, Tasso se reconhece como candidato e assim se expressa em entrevista concedida dias depois: Essa homenagem no começo da semana foi um marco. É um momento que muda minha trajetória. Antes eu até estudava a possibilidade de entrar no jogo. Agora estou no jogo (Veja, 30/10/2001). A declaração acima e o acontecimento que a fez possível traziam ao presidente da República e aos “serristas” as evidências de que seus temores manifestos dias antes da homenagem – conforme pode-se ler na FSP de 18/10/2001 - não eram infundados. Temiam aqueles o lançamento da candidatura, temiam que um ato Pró-Tasso se tornasse ato anti-Serra e ainda temiam que tudo aquilo ampliasse a divisão no interior do PSDB. A exibição pública tão contundente das pretensões do governador do Ceará de fato ampliava o fosso entre os dois competidores na medida em que vinha contrariar a estratégia até então implementada por Serra para se legitimar junto ao eleitorado (e, por via de conseqüência, aos convencionais do PSDB) como candidato à presidência da República. Segundo matérias de jornal, especialmente aquelas apresentadas no jornal Folha de São Paulo em várias edições, Serra havia optado por deixar sua candidatura à sombra e fazer-se presente na vida pública do país única e exclusivamente como Ministro da Saúde. A fonte inspiradora de tal estratégia teria sido as reflexões de um analista político que, escrevendo sobre a vitória de Tony Blair, do Partido Trabalhista inglês, havia afirmado que

9 um político no poder torna-se conhecido e reconhecido principalmente através de realizações atinentes ao cargo que ocupa. Para isto a condição de Ministro da Saúde se adequava perfeitamente. Segundo alguns, Serra teria mesmo assumido este cargo estimulado desde a primeira hora por Sergio Mota que lhe havia alertado para potencialidades eleitorais do mesmo. Segundo as evidências que um cidadão atento pode captar cotidianamente nos meios de comunicação, o ministro não desperdiçou tempo e oportunidade veiculando ações na área de saúde as quais poderiam, em princípio, lhe render reconhecimento como administrador trabalhador e dedicado à causa da saúde coletiva. Quando perguntado por sua candidatura respondia: nada de eleição, estou aqui como ministro (FSP, 04/12/2001).8 Orientado por tal estratégia encontra Serra um modo de “discursar como candidato e de criticar Tasso” (FSP, 26/10/2001), na mesma semana em que o adversário se mostra candidato em um acontecimento público em São Paulo: em Brasília, Serra recebe também uma homenagem, um jantar de confraternização, organizado por amigos tucanos e realizado no salão de festas de bloco de apartamento na SQS. Descrito em matéria nem tão discreta (FSP, 26/10/2001), o evento realizado em espaço privado assume qualidades de ato de campanha eleitoral: diante de 60 pessoas, das quais 41 deputados e 03 senadores (quantos deles seriam jornalistas?) Serra cumprimenta o “chef” trazido de São Paulo especialmente para o jantar, caminha por entre as mesas, faz humor9, fala de suas ações, discorda daqueles que o advertem para por sua campanha na rua, elogia o presidente da República e, com ironia, questiona o governador do Ceará que teria criticado o governo de Fernando Henrique Cardoso. Finalmente, o anfitrião o lança candidato. Assim, ao final de outubro de 2001, o PSDB tem dois candidatos à presidência da República fazendo campanha eleitoral. Neste contexto, as pequenas estocadas mútuas aqui e ali, pautadas pelo bom humor irônico10, pareciam corresponder às propaladas intenções de praticar uma convivência respeitosa capaz de engrandecer o partido. Segundo se noticia, na semana dos lançamentos das respectivas candidaturas, Serra e Tasso fizeram um pacto de não agressão, de uma campanha sem golpes baixos, segundo afirma o ministro Pimenta da Veiga, ao que acrescenta: Tasso e Serra estão firmemente comprometidos a apoiar um ao outro (FSP 19/10/2001). A radicalização das diferenças e o aprofundamento das

10 divergências viria contrariar as propaladas intenções de convivência harmônica e solidária.

A radicalização das diferenças

A despeito de que nessa etapa da disputa eleitoral os adversários falem pouco – relativamente ao tempo oficial de campanha e como regra geral para os vários partidos – os adversários Tasso e Serra têm como estratégia, de modo recorrente, reafirmar convergências de idéias, enunciadas na afirmativa já referida linhas acima: muito já foi realizado mas, ao futuro governo comandado pelo PSDB, resta a missão de combater as desigualdades sociais. Tasso busca trazer evidências da veracidade de seus propósitos a este respeito argumentando que, como governador de um estado pobre, conhece mais do que ninguém a problemática das desigualdades (Veja, 31/10/2001). Serra, ministro da Saúde, pode expressar sua capacidade de percepção dos malefícios da desigualdade e a intenção de combatê-la considerando, por exemplo, que cidadãos não têm dinheiro para comprar medicamentos, nem mesmo uma aspirina (FSP 24/11/2001). Se há um mote que instaura a convergência das falas, podemos nos perguntar sobre as motivações para a radicalização dos conflitos, ou, em outros termos, que condições tornam manifestos conflitos latentes e mal dissimulados, por exemplo, nas ironias? Creio que duas ordens de questões estiveram subjacentes à radicalização dos conflitos travados entre Tasso Jereissati e José Serra, nos três meses que antecedem a pré- convenção referida nas páginas iniciais deste trabalho. A primeira delas refere-se às diferentes racionalidades que presidiram as estratégias da campanha: candidatos de um mesmo partido entram em choque porque cada um quer implementar processos diversos de conquista de adesões dos eleitores. A outra refere-se à peleja pelo voto do grande eleitor, isto é, do presidente da República. Segundo já considerei aqui, Serra e Tasso pretendiam ampliar as adesões dos eleitores, captadas pelas prévias eleitorais, mobilizando processos diferentes. Analisadas as posições particulares de cada um, as possibilidades concretas de Serra para se fazer legitimado como melhor candidato eram maiores do que as de seu adversário: como vimos, o cargo de ministro lhe abria a possibilidade de veicular nacionalmente sua imagem,

11 através da propaganda oficial de governo. Tudo indica que, na perspectiva de Tasso Jereissati e seus assessores11 a peça publicitária do PSDB, programada para ser veiculada em cadeia nacional em 15/11/2001, abria a primeira oportunidade de apresentação dos candidatos em condição de igualdade. Mas, a forma de apresentação nele dos dois candidatos e o processo mesmo de produção do programa suscitaram conflitos, amplos o suficiente para inspirar a imprensa escrita a nomeá-los de “crise tucana” (FSP 06/11/2001). Aspectos mais significativos dos acontecimentos podem ser assim narrados: o candidato Serra, pretendendo que o partido implementasse no programa sua estratégia chave antes referida, opõe-se à apresentação explícita das candidaturas. Tasso Jereissati demanda o contrário e para tanto tem o apoio decisivo do presidente do PSDB. Agrava ainda mais as divergências a presença na feitura das peças (inserções e programas), além do publicitário responsável pelo conjunto dos mesmos, de um outro, contratado por Tasso, para dirigir sua participação, com quem Serra havia rompido em campanha anterior. Depois de responsabilizar o presidente do PSDB (que teria alterado decisões da Executiva sobre o formato do programa para beneficiar Tasso), Serra recusa-se a gravar sua participação nas peças publicitárias e viaja para Qatar. A tentativa de resolução do conflito envolveu a convocação de uma reunião extraordinária da Executiva Nacional do PSDB, onde deliberou-se pela apresentação dos líderes do Partido, com especial destaque para os “presidenciáveis”12 ainda que não tenham sido declaradas as candidaturas, tal como pretendia Jereissati. Conforme noticiam os jornais (FSP 08/11/2001), na perspectiva do presidente da República, a solução diplomática por ele idealizada deveria conter as insatisfações do governador do Ceará, vale dizer, conter a “crise no meio tucano”. Na perspectiva de Tasso, contudo, a decisão de não apresentar de forma declarada as candidaturas é uma demonstração de que o presidente da República tinha Serra como seu candidato. Por isto, revida mobilizando um conjunto de ações que tanto lhe servem como demonstração de indignação e força quanto lhe asseguram visibilidade política. Destaco algumas das condutas de Tasso registradas pelo jornais:  deixando à sombra a figura do presidente, queixa de deslealdade e afirma [estar] lutando de peixeira contra míssil;

12  elogia a unidade e a competência que imperam no PFL, declara que pode vir a apoiar Aécio Neves ou Roseana Sarney.  ao mesmo tempo, participa de encontros com lideranças e bases do PSDB e lideranças empresariais.  os encontros maiores, como o realizado especialmente para homenageá-lo em Minas Gerais, onde estão situados seus apoiadores mais numerosos e prestigiados do PSDB, são divulgados amplamente pelos jornais. (FSP, 23/11/2001 e 24/11/2001) e (O Povo, 23/11/2001 ).  pode também ser visto e ouvido em programas de TV de grande audiência. Estas estratégias tornaram o governador onipresente fora de seu estado, ao longo de umas poucas semanas, ao final das quais produz discurso marcado pela ambigüidade (FSP 21/11/2001). Ao mesmo tempo em que afirma julgar natural o apoio de Fernando Henrique Cardoso a Serra, justificado positivamente tendo em vista as relações de amizade e confiança entre ambos, considera-se um Afeganistão defrontando-se com os Estados Unidos, nega a intenção de apoiar a governadora do Maranhão, mas, num tempo quando a aliança PSDB/PFL está em vigor, afirma que seu partido não pode ter a pretensão de ser cabeça de chapa se seu candidato não tem a preferência da maior parte dos eleitores. Ainda assim, renova seu propósito de apoiar o candidato indicado pelo PSDB, pois considera-se homem de partido. O dito é uma declaração de fidelidade: não poucas vezes, no decurso dos conflitos aqui descritos, a expressão sou homem de partido emerge nas circunstâncias em que, tendo declarado ou insinuado adesão à candidatura de Roseana Sarney é criticado por membros do partido aliados de Serra. Reclama da mídia por distorcer suas palavras e afirma ser vítima de um jogo de intrigas criado para atritá-lo com o presidente da República e apresenta sua solução para por fim às intrigas: o estabelecimento claro e imediato de critérios para a escolha do candidato do partido. A movimentação de Tasso acima descrita ofusca Serra ainda que por pouco tempo, mas sobretudo, traz à luz a extensão dos recursos de poder construídos por aquele e sua capacidade de mobilizá-los. Neste contexto, o presidente da República vai ao Ceará, a convite do governador. A visita parece ter sido pensada pelo chefe do executivo cearense como a oportunidade para dissipar mal-entendidos, dirimir conflitos e, a partir disto, quem sabe? a chance de ser

13 reconhecido em seu território de domínio candidato do PSDB à presidência da República. A visita de Fernando Henrique Cardoso iria revelar que esta foi a primeira e melhor oportunidade que teve o mesmo de expressar publicamente seu veto a Jereissati. Em matéria de página inteira do jornal O Povo (22/11/2001) pode-se ler detalhes da estada do presidente da República no sul do Ceará – no pequeno município de Araripe – com o objetivo de realizar a cerimônia de lançamento do Programa Seguro Safra. Tal como o nome sugere, trata-se de um seguro destinado a pequenos agricultores que perderam pelo menos 60% de produção (feijão, milho, arroz ou , algodão) em conseqüência da estiagem de 2000. O lançamento foi precedido de uma visita dos dirigentes e seus acompanhantes a uma fábrica empacotadora de farinha de mandioca. Fotos e textos mostram uma cidade em clima de campanha: o presidente e o governador falam para o povo em palanque e faixas pedem apoio à candidatura de Jereissati : PSDB coerente, Tasso presidente; O Ceará pede, o Brasil precisa, Tasso presidente. Registra o jornal que um grande painel com a frase Presidentasso, o Brasil que não pára, instalada fora da fábrica mencionada foi retirado antes da chegada das autoridades. As explicações para isto são vagas. Alguns alegaram razões de segurança, outros que foram obedecidas ordens de Brasília. Os discursos de ambos têm a problemática da indicação do candidato do Partido como pano de fundo. Tasso discorre sobre a redenção do homem do campo – alforria do trabalhador nordestino – propiciada pelo Seguro Safra e ao assim falar está enaltecendo realizações de Fernando Henrique e as suas também, tendo-se em vista que é o executor do Programa. O presidente refere-se a Tasso como um amigo e grande governador, mas segundo o autor da matéria “alfineta o pré-candidato ao dizer que ele roubou seu discurso e assim sendo preferia fazer um balanço de seu governo...” e assim fala sobre políticas e programas sociais implementados em seu governo. Vale dizer, no que diz respeito ao amigo e grande governador não há o que enaltecer e não há candidatura a ser mencionada, mas, quanto à Presidência da República há realizações várias em benefício do povo. A manchete em destaque na matéria citada acima sintetiza com propriedade o silêncio do presidente em relação à candidatura de Tasso.

Tasso tenta, mas não consegue arrancar apoio do presidente.

14 Detalhes do evento compõem um cenário no qual o presidente domina a cena: o painel com o sugestivo termo Presidentasso é retirado; Fernando Henrique ironiza o governador dizendo que ele roubou seu discurso e a fala do anfitrião serve apenas para enriquecer o prestígio do convidado. Em um cenário no qual tudo anuncia a candidatura de Tasso, sobre ela o “grande eleitor” silencia. Na perspectiva dos interesses do segmento “serrista”, por volta do final do mês de novembro e início de dezembro, fatos e circunstâncias orientam a mudança das estratégias de condução da campanha de Serra dentro e fora do Partido: Serra decide-se a por sua campanha na rua , isto é, concorda em declarar publicamente sua candidatura e o presidente da República assume o lugar de principal condutor da campanha, atuando ora como assessor ora como cabo eleitoral. Em um papel e outro encarna a figura do grande eleitor. Vejamos algumas das razões que motivam esta mudança de rota. Jereissati, a despeito de ter índices menores de preferência do eleitorado e de ter associado a seu nome os mais altos percentuais de desconhecimento, ao fim do mês de novembro tem, em relação a Serra, conforme divulga a Folha de São Paulo (23/11/2001), a adesão de maior número de convencionais do partido. É certo que parte desses votos potenciais têm origem mais remota – quero dizer, correspondem a vínculos formados ao tempo em que foi presidente do PSDB, parte decorre de seu prestígio em alguns estados do nordeste. Mas é provável que outra parte tenha sido conquistada já como candidato a candidato do PSDB às eleições de 2002, em decorrência da intensa campanha realizada pessoalmente por Tasso e seus apoiadores. É certo também que adesões foram constituídas graças à transferência a ele do prestigio de lideranças do Partido, sobretudo entre convencionais do estado de Minas Gerais. A contestação feita por Serra dos dados da prévia, sob a alegação de que Tasso tinha maioria apenas no Ceará e Rio Grande do Norte (FSP, 25/11/2001), não traria tranqüilidade a si e aos seus aliados. As ações aguerridas de Tasso para conquistar eleitores dentro e fora do Partido, suas críticas ao presidente da República e a seu adversário mais próximo – às vezes veladas, às vezes declaradas – e a ambivalência do discurso com o qual manifestava ora fidelidade ao PSDB, ora ao PFL trouxeram a público antigas e novas dissensões no interior do PSDB até agora ocultadas ou inexistentes. As condutas de Tasso e Serra no sentido de construir

15 alianças com o PFL e o PMDB, respectivamente, além de mostrar os conflitos do PSDB por um outro ângulo, davam indícios da dissolução de uma duradoura aliança. Os altos e relativamente estáveis percentuais de adesões a Luis Inácio Lula da Silva, o crescimento das intenções de voto reveladas nas prévias para a governadora Roseana Sarney e a persistência dos baixos índices de preferência da população pesquisada pelos candidatos do PSDB, na perspectiva do segmento hegemônico, tornavam mais problemáticas a radicalização das dissensões entre Tasso e Serra. Em matérias assinadas por dois jornalistas da Folha de São Paulo de 25/11/2001 duas manchetes trazem de modo explícito as novas estratégias do segmento do PSDB pró- Serra. Uma das frases anuncia: Candidatura é ‘inevitável’, admite Serra; na outra lê-se: FHC opta por Serra e vê dificuldades para seu sucessor. O texto é ilustrado13 por uma grande foto, na qual aparecem o presidente da República e José Serra. A legenda informa: “O ministro José Serra acompanha FHC após cerimônia do Dia Mundial de Saúde, no Planalto”. O pano de fundo da foto mostra a bandeira do Brasil pendurada em um mastro e, em destaque, o presidente e o ministro caminham um ao lado do outro. Serra tem a mão esquerda pousada sobre o ombro direito do presidente. Os enunciados das manchetes e da imagem condensam de forma plena os novos rumos da campanha e, como se verá, também das dissensões. As razões da “opção de Fernando Henrique Cardoso por Serra” são formuladas no texto mediante a construção de um argumento fundado na contraposição das particulares qualidades de José Serra aos particulares defeitos de Tasso Jereissati. Segundo esclarece o articulista nas primeiras linhas do texto, o pensamento do presidente ali apresentado ao público foi dado a conhecer em espaços privados ou público restrito. Não será por outra razão que o modo condicional é dominante no texto, sempre que se refere às restrições a Tasso Jereissati – “teria dito o presidente que ...”. Vejamos os motivos da opção pró-Serra.

“FHC vê Serra como o político próximo a ele com melhor compreensão do mundo globalizado, da macroeconomia e do cotidiano administrativo”. Por tudo isto, respeita as críticas que Serra faz à sua política econômica. “Há também fatores de ordem pessoal para a opção por Serra. Além da amizade antiga, em momentos difíceis da vida privada de FHC, Serra foi exemplarmente solidário, diz o presidente. A primeira dama Ruth Cardoso [...] é defensora de Serra [...] parte da mídia, de empresários a formadores de opinião, gosta de Serra e o vê como o político da atual geração mais preparado para governar o Brasil”.

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“Tasso seria um tucano com uma visão de mundo a partir do Ceará, que não entenderia o que FHC classifica de modernização do Brasil nos seus dois mandatos. O presidente diz que o porto do Pecém , pedido por Tasso, é uma obra inútil, por estar situado em águas revoltas e que dificultam a aproximação dos navios. Pecém teria saído apenas por uma “competição regional”, fala FHC, do Ceará com Pernambuco. [...] Os termos “coronel moderno” e “líder oligárquico” aparecem nas análises privadas de FHC sobre Tasso. O governador, crê, não teria o preparo de Serra”.

Em síntese, despreparo e visão de mundo provinciana de um engrandecem as qualidades do outro – competente, amigo solidário, dotado de visão de mundo globalizada . Assim é Serra, o candidato de Fernando Henrique Cardoso14. Como assessor de campanha, o presidente aconselha José Serra a rever as diretrizes que até então orientavam as suas ações. Neste caso, algumas das estratégias mobilizadas pelo adversário Tasso são tomadas como modelo: primeiramente, deve declarar-se candidato e trabalhar para ser reconhecido como tal; deve ir a procura das lideranças estaduais do PSDB; deve evitar criar arestas com membros de seu próprio partido, com o PMDB e sobretudo como o PFL; deve

“mudar a imagem de esquerdista e intervencionista que tem junto a banqueiros e empresários nacionais, [pois] o establishment acharia charmoso um ministro que ameaça quebrar patentes de remédios, mas temeria um cidadão com esse ânimo na Presidência da República” (FSP, 25/11/2001).

Na perspectiva do assessor, competia a Serra agir pública e plenamente como faz um candidato a presidente da República que, para ser eleito, necessita conquistar adesões de sujeitos diversos – eleitor, lideranças local e nacional do Partido, de partidos aliados e, at last but not least, de lideranças empresariais nacionais e internacionais. Num enredo de conflitos no campo da vida política fatos deixados à sombra pelo narrador parecem sempre previsíveis. No momento em que o Presidente da República torna público, por vias indiretas – mas nem tanto – seu apoio a Serra o concorrente estava fora do país. Viajara para Cleveland (EEUU) acompanhado de sua família, com a finalidade de submeter-se a habituais exames cardiológicos. Vimos que ato de declaração da candidatura feita por Serra e, mais diretamente, a veiculação do apoio à mesma praticado por Fernando Henrique Cardoso ocorrem em um contexto discursivo que desqualifica o Tasso Jereissati

17 candidato à Presidência da República e o governador do Ceará. Nesta circunstância, ambos atacam com armas pesadas um o adversário à distância. Estratégia desta ordem já havia sido implementada por Tasso quando Serra viajara para o distante Qatar. Neste momento, seu concorrente ocupa os meios de comunicação para formular suas críticas de fundo acusatório (expressas nos termos deslealdade, ingratidão) claramente contra Serra e veladamente contra o presidente. Ainda que tenha recorrido a argumentos retóricos mais brandos para se contrapor às forças adversárias organizadas em torno de Serra, o ataque foi pesado o bastante para dar origem à “crise tucana”, aludida em páginas anteriores. Na luta política, ataques à distância suscitam revides à distância. Tasso Jereissati, durante a permanência nos Estados Unidos, segundo informa matéria do jornal O Povo (05/12/2001) teria dito (ou pede que se diga) que “Fernando Henrique é essencial, é o grande eleitor e terá papel fundamental. Mas ele não pode ser o único eleitor. Não pode dar ‘dedaço’. É preciso ter um ambiente de desprendimento”. Complementa a matéria a afirmativa de que o governador, em reunião com o presidente do BIRD apresenta a ele suas críticas ao atual modelo de desenvolvimento econômico:

É hora de mudar as receitas que saem de Washington, que não conseguem promover um desenvolvimento eqüitativo e a justiça social no mundo. Até o Banco Mundial sabe disto. Este processo está errado. É hora de mudar a receita (O Povo, 05/12/2001).

Nesta formulação retórica ardilosa vê-se Tasso legitimando a posição do presidente Fernando Henrique de condutor do processo sucessório, ao mesmo tempo em que o acusa de autoritário. Por outro lado, quer que o eleitor saiba que ele tem autoridade e audácia para levar ao presidente de uma instituição internacional verdades que os atuais gestores da nação brasileira não são capazes de discernir ou não tem coragem para a elas se contraporem. Compõe a artilharia remetida à distância pelo governador do Ceará, o apoio de Ciro Gomes e, mais uma vez, o da família Covas. O primeiro declara que Serra teria se manifestado contra o Plano Real – fonte de legitimação do governo do qual é parte – e invoca Tasso como testemunha (FSP, 04/12/2001). Um dia antes do regresso do governador ao Brasil, em carta dirigida às 1.500 que estiveram presentes homenagem na qual Tasso é “lançado” candidato, Dona Lila Covas e sua filha Renata agradecem à

18 participação de cada um no evento e reafirmam que a postulação daquele materializa a vontade expressa do político cujo nome no Brasil recente tornou-se sinônimo de caráter (FSP, 06/12/2001). Desde a entrada ativa do presidente da República na condução da campanha de Serra e a expansão das ações deste – orientadas pelo primeiro, especialmente, no sentido de conquistar adesões dos membros do partido e do segundo, especialmente, as do eleitorado de todo o país – a Tasso Jereissati restou pouco mais do que recorrer a argumentos retóricos e simbólicos como meio de validar sua postulação e a de fazer chegar a público suas críticas ao presidente da República e ao adversário. Vejamos algumas das ações implementadas por José Serra entre o tempo em que declarou “inevitável” sua candidatura até o ato formal do lançamento da mesma, na pré- convenção do PSDB em 24 fevereiro de 2002:  Intensifica sua aparição em programas de televisão de grande audiência, onde ora contava com declaração de voto do(a) apresentador(a), ora com enaltecimento de sua competência como ministro da Saúde. Tais práticas são sintetizadas em manchete da Folha de São Paulo: Serra vive dublê de ministro e candidato com o aval de FHC;  Desloca-se de um estado a outro do território nacional – ao Nordeste especialmente15, de onde são originários seus maiores adversários, Tasso, Lula e Roseana – para inaugurar hospitais, lançar programas e campanhas de saúde. Na cidade do Rio de Janeiro, onde foi lançar o Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento, após discursar Serra foi saudado com tema de Senna (manchete da FSP de 12/12/2001)16.  Sempre que criticado pelos adversários tendo em vista a condição de ministro da saúde – como é caso da epidemia da dengue – ou por seu desempenho negativo como candidato a presidente da República, avaliado através dos resultados das pesquisas eleitorais, Serra revida exibindo sua capacidade de trabalhar ao mesmo tempo em que desqualifica o adversário recomendando que deixe de futrica e vá trabalhar (FSP, 07/02/2002).

19  Enquanto Tasso Jereissati se empenhou em buscar aproximação com as lideranças do PFL e com a presumível candidata do partido, Serra buscou o distanciamento. Este movimento se evidencia, sobretudo em suas tentativas de encontrar no PMDB um candidato a vice reconhecido como democrata. São múltiplas as ações do presidente da República tendo em vista assegurar a consagração do ministro da Saúde como o candidato de seu partido. Dentre as veiculadas pela impressa menciono:  buscou sistematicamente assegurar os meios para que a exposição da figura do ministro-candidato fosse permanente. Tanto assim é tenta indica profissional ligado a Serra para secretario de comunicação do governo17 (FSP, 06/12/2001);.  a despeito de recuar da intenção, incorporou progressivamente discursos de José Serra à campanha oficial do governo (FSP, 05/02/2002);  fez, pessoalmente, apelos a deputados e senadores para que “trabalhem” pela candidatura de Serra em seus estados (23/01/2002)  fez gestões e logrou conquistar para as hostes de Serra os mais importantes e devotados aliados de Tasso Jereissati. No mesmo sentidos, outros são convencidos a sair da neutralidade (FSP, 17/12/2001). Em meados de dezembro de 2001, Tasso Jereissati anuncia que desiste de concorrer em favor de Serra, na pré-convenção. Mas faz isto, contudo, não sem apresentar um desafio ao concorrente: este deverá fazer o mesmo caso não apresente viabilidade eleitoral dentro de certo tempo. Mais ainda, produz um discurso no qual deixa subentendido que poderá voltar à disputa, apoiar outro possível pretende do PSDB ou Roseana Sarney (FSP, 19/12/2001). Com tal estratégia – uma forma astuciosa de revide que deixa manifesto a persistência dos conflitos internos ao PSDB e as cisões na aliança PSDB/PFL – o governador do Ceará continuou percebido como adversário. Não será por outra razão que a apresentação formal de Serra como pré-candidato é antecipada e se cria uma ponte aérea diplomática ligando Fortaleza a Brasília. Entre os meses de janeiro e fevereiro de 2002, por obra de Fernando Henrique Cardoso, este trajeto foi percorrido pelos mais notáveis aliados

20 de Jereissati, com a finalidade de convencê-lo a comparecer à cerimônia que consagrou José pré-candidato à presidência da República.

* * *

A um ano das eleições – ponto de partida para a observação das relações a partir das quais teci o enredo aqui apresentado – as disputas pela indicação deste ou daquele personagem à condição de candidato oficial do PSDB às eleições presidenciais de 2002, à primeira vista, poderia ser considerado fato político circunscrito à economia interna do Partido. A abundância de matérias veiculadas pelos meios de comunicação tendo por foco a sucessão presidencial e seus conteúdos são, contudo, indicativas de que as disputas internas aos partidos, nesta conjuntura, transcendiam os contornos de cada um deles. Se parece pertinente pensar-se que tal constatação pode ser generalizada para muitos outros contextos eleitorais (e não só o brasileiro), para meus propósitos aqui é indispensável apontar as circunstâncias específicas do PSDB nesta conjuntura e as razões pelas quais as disputas entre os pré-candidatos do PSDB à presidência da República – e as facções instituídas a partir das postulações dos mesmos – assumiram dimensões de disputas extra- partidárias, assemelhando-se a um embate eleitoral propriamente dito. Como busquei evidenciar, a veiculação cotidiana dos personagens (discursos e imagens) em disputa tornam os fatos apresentados práticas genuínas de campanhas eleitorais. Distingo duas ordens de problemas interligados vividos pelo PSDB, partido hegemônico na condução da vida política do país há quase duas décadas. A primeira delas diz respeito às rupturas no interior da chamada “base aliada” do governo composta pelo PMDB e PFL. A ruptura dos estreitos vínculos entre as lideranças maiores do PSDB e do PFL, (respectivamente, o presidente da República e Antônio Carlos Magalhães), debilitaram as forças políticas do PFL no núcleo do poder. A segunda envolve questões de legitimidade. O escândalo em torno do caso das obras do Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual estiveram/estão envolvidos além do juiz Nicolau dos Santos, assessores da confiança da presidência; as circunstâncias que desembocam na renúncia do presidentes do Senado e da Câmara, associada a insatisfações decorrentes da percepção de carências de diversas ordens (emprego, segurança pública, energia elétrica, prevenção contra epidemias) concorrem para o abalo da legitimidade dos

21 políticos mais fortemente presentes na cena pública nacional. A este respeito são exemplares os baixos índices de popularidade do presidente da República e até mesmo do ministro José Serra, ordinariamente presente nos meios de comunicação veiculando ações implementadas pelo Ministério da Saúde. Dados das sucessivas prévias eleitorais, tornadas públicas ao longo do período tomado como referência neste estudo, são indicativos da quebra do prestígio daqueles que mais claramente podem ser vistos pelo cidadão como “político deste atual governo”. Se os altos e relativamente estáveis percentuais de intenções de voto para Luis Inácio Lula da Silva e a crescente adesão a Roseana Sarney, até o “escândalo da Lunus”, têm suas razões e significações particulares, em conjunto podem ser tomadas como expressivas de que legitimidades previamente conquistadas por aqueles que estão situados no poder estão agora colocadas sob interrogação. É nessa perspectiva que a escolha entre as postulações de Serra e Tasso envolve problemáticas que transcendem as dissensões internas ao partido. Para os do PSDB importa, em primeira instância, ter como candidato aquele pensado capaz de derrotar no segundo turno o adversário maior – Lula – e, ao mesmo tempo, mostrar-se capaz de barrar a ascensão de Roseana Sarney (ou de qualquer outro postulante até a oficialização de todas as candidaturas). Para Serra, o primeiro adversário a vencer é assim Roseana Sarney e o PFL e não parece ser por outra razão que desde a “primeira hora” faz gestões para conquistar o PMDB18. Para Tasso, o primeiro adversário a vencer é José Serra e parece ser esta a razão que levou o governador do Ceará a tornar cada mais visível seus vínculos com políticos do PFL, seja para assegurar a adesão de alguns a sua postulação como candidato do PSDB, seja para o credenciá-lo a concorrer aliado com Roseana Sarney. É diante de tais posições que Tasso Jereissati é concorrente mais do que incômodo para José Serra no interior do PSDB. Em síntese, tendo-se em vista as pretensões de ambos e suas posições particulares no quadro mais geral da luta sucessória de 2002, as possibilidades de um ou outro ser indicado candidato do PSDB em uma pré-convenção dependia não só de contar com maior número de adesão dos convencionais mas também mostrar-se capaz de ampliar os percentuais de intenção de votos captados nas prévias eleitorais.

22 Creio que é assim que se pode entender as razões pelas quais as disputas entre José Serra e Tasso Jereissati configuram-se como conflito agudo e que as gestões de um e de outro para se impor como candidato do partido têm características de embates eleitorais típicos de eleições presidenciais. Vale dizer, demandam campanhas eleitorais que mobilizem estratégias pensadas capazes de conquistar o voto do cidadão situado nos diversos pontos do território nacional. Se as circunstâncias vividas pelo PSDB na atualidade são sintomas de que sua legitimidade de partido hegemônico está sob interrogação, o aprofundamento dos conflitos internos – que eclodem na conjuntural eleitoral de 2002 – são percebidos por suas lideranças como ameaça à reprodução política individual das mesmas e a própria reprodução da hegemonia do partido. É assim que se pode entender os esforços empreendidos para promover a unificação do PSDB ou, pelo menos, um simulacro de unidade, tal como se pode ler nas linhas iniciais deste estudo.

Notas

1 Esclarecimento: a) palavras e frases demarcadas entre aspas são transcrições dos jornais consultados; b) palavras ou frases em itálico são citações textuais de personagens envolvidos nos conflitos e c) frases marcadas simultaneamente com itálico e negrito são transcrições textuais de manchetes de jornais.

2 As datas e os fatos que compõem o perfil de Serra foram veiculados pela revista República, Ano 6, N 64, fevereiro 2002, pg 25.

3 São casos exemplares extremados Antônio Carlos Magalhães e Ciro Gomes. A este respeito é ilustrativa a afirmação do primeiro registrada pela Folha de São Paulo (12/12/2001): Antônio Carlos Magalhães declara que apoiará Lula no segundo turno contra Serra pois “Lula é nordestino e Serra detesta nordestino”. Quanto ao segundo, são incontáveis e de longa data as declarações de fundo negativo feitas por Ciro Gomes a José Serra, reproduzidas na imprensa cearense.

4 À época, Serra publica um artigo sob o título “O equívoco das ZPEs” , Novos Estudos CEBRAP N 20, março 1988, p54/64.

5 São fontes principais para perfil aqui traçado, Lemenhe (1996) e (1999).

6 A despeito da oposição feita por Mário Covas e outros, Tasso credenciou-se para o cargo porque,`aquela época (1990), apenas no Ceará o PSDB havia logrado eleger o governador e conquistar maioria na Assembléia Legislativa. Cf. Lemenhe, (1996, p. 21).

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7 É expressivo do apoio do governador Tasso a Ciro Gomes nas eleições presidenciais de 1998 a colocação de Fernando Henrique Cardoso em terceiro lugar, perdendo para Lula e Ciro Gomes, respectivamente, primeiro e segundo colocados. O presidente da República revida por ocasião das eleições municipais (2000) concedendo ao então prefeito, adversário de Tasso e candidato a reeleição, recursos para investimentos em Fortaleza.

8 Cf. registra a República (Abril 2001 – Ano 5 N.54, p.16) são amplos os meios que dispõe Serra no Ministério da Saúde para veicular as ações do mesmo: três agências de propaganda e 25 pessoas. Segundo a mesma fonte “somados os anos de 1999 e 2000, o ministro apareceu 18 vezes em cadeia de rádio e televisão ... nem o presidente mostrou tanto a cara na tevê em propaganda oficial” . Cifras apresentadas na FSP (11/11/2001) mostram que no ano de 2001 Serra apareceu na TV em 12 inserções, das quais três em cadeia nacional, uma em 17 estados e as demais em pelo menos três estados simultaneamente. Considerado o tempo de exibição, Serra esteve na tela 32 min, três vezes mais que o Presidente da República.

9 Diz durante o jantar: Todo mundo me considera um sujeito antipático. Mas esse é meu feitio. A minha mãe não acha. Pelo contrário, me acha até muito simpático.

10 Segundo voz corrente, Serra é hipocondríaco. Tasso perguntado por suas condições de saúde e que medicamentos toma responde: Eu tomava aspirina. Agora tomo remédio para colesterol e pressão. Você está igual ao Serra. Quer saber qual é o remédio, já já vai querer tomar um (Veja, 31/10/2001).

11 Os acontecimentos foram noticiados pelos jornais em profusão entre os dias situados ao longo da segunda e terceira semanas do mês de novembro.

12 A participação de Serra contou com quadros veiculados em outros contextos. Seus assessores publicitários pretendiam marcar sua presença no Programa exibindo uma cadeira vazia e a justificativa para tanto: Serra não estava ali porque estava trabalhando (FSP, 09/11/2001).

13 São eles Kennedy Alencar e Raymundo Costa, ambos da sucursal de Brasília. A foto descrita é de autoria de Beto Barbosa.

14 As declarações do presidente, apresentadas no condicional, foram desmentidas por porta- voz da Presidência (FSP 27/11/2001). O jornal O Povo (27/11/2001) registra que deputados do PSDB e de outros partidos aliados a Tasso revidaram às palavras do Presidente.

15 Jornal O Povo (09/02/2002) divulga que Serra, em menos de um mês fez oito viagens ao Nordeste.

16 A julgar pelo que registra a matéria da citada edição da Folha de São Paulo, Serra contou com seus aliados para apoios de várias ordens, até os constrangedores. Registra o jornal :

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“Na troca de elogios, o deputado federal Doutor Heleno (PSDB) disse que ‘Serra é um homem com o lado feminino muito acentuado’. Sempre fui assim, mas no sentido de ter afinidade e solidariedade com as mulheres’, disse o ministro”.

17 Contra o que se opõem Tasso Jereissati e seus aliados. A propósito deste ato do presidente, Jereissati declara que Serra é dono do segundo escalão do governo federal (FSP, 06/12/2001).

18 No período em exame e mesmo posteriormente, os jornais registram várias gestões feitas por José Serra para ter como seu vice o governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, prestigiado membro do PMDB.

Bibliografia

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