UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ANA JUDITE DE OLIVEIRA MEDEIROS

O SERTÃO IMAGINADO NAS BACHIANAS BRASILEIRAS DE HEITOR VILLA LOBOS

NATAL-RN 2020

ANA JUDITE DE OLIVEIRA MEDEIROS

O SERTÃO IMAGINADO NAS BACHIANAS BRASILEIRAS DE HEITOR VILLA LOBOS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção de título de doutora. Orientadora: Professora Doutora Maria Lúcia Bastos Alves Coorientador: Professor Doutor Eduardo Lopes

NATAL-RN 2020

O SERTÃO IMAGINADO NAS BACHIANAS BRASILEIRAS DE HEITOR VILLA LOBOS

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para obtenção do título de doutora.

Tese apresentada e aprovada em ____/____/2020. BANCA EXAMINADORA

______Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves – Orientadora Universidade Federal do Rio Grande do Norte

______Prof. Dr. Eduardo Lopes – Coorientador Universidade de Évora

______Prof. Dr. Alessandro Dozena – Examinador externo Universidade Federal do Rio Grande do Norte

______Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima – Examinador externo Universidade Estadual do Ceará

______Prof. Dr. Gilmar Santana – Examinador interno Universidade Federal do Rio Grande do Norte

______Prof. Dr. Danilo César Guanais de Oliveira – Examinador externo Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Medeiros, Ana Judite de Oliveira. O Sertão imaginado nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa- Lobos / Ana Judite de Oliveira Medeiros. - Natal, 2020. 196f.: il. color. Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves. Coorientador: Prof. Dr. Eduardo Lopes. 1. Sertão - Tese. 2. Bachianas Brasileiras - Tese. 3. Heitor Villa-Lobos - Tese. I. Alves, Maria Lúcia Bastos. II. Lopes, Eduardo. III. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 316:78 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

À minha mãe, Noemi, que me mostrou o mundo e a música.

AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, que manteve minha mente cativa àquilo que realmente interessava, aos valores éticos e morais que me fizeram ser quem sou. E que, apesar de transitar em campos tão vastos e complexos do conhecimento, conduziu-me a olhar sempre para o Alvo, o qual não me deixou outra saída, a não ser seguir em frente. Assim, senti-me fortalecida a dedicar-me à pesquisa e à produção científica. Para isso, agradeço à Professora Doutora Maria Lúcia Bastos Alves, que me aceitou para os quatro anos de doutorado nas Ciências Sociais. Sabendo que a minha formação era em Música, e minha personalidade tão poética, incentivou-me ao diálogo entre as áreas com sua “alma musical”, como assim fora desde o mestrado. A Professora Maria Lúcia falou comigo nas horas certas, e quando não falou, confiou em mim naquilo que me propus a fazer, dando-me autonomia e liberdade para seguir. O que reconheço nesse percurso é o seu olhar atento para o meu voo. Também tive o privilégio de ter um coorientador, o Professor Doutor Eduardo Lopes, da Universidade de Évora, Portugal, que me acolheu no período de doutoramento sanduíche, com toda simpatia e incentivo, caminhando lado a lado na construção da tese, um trabalho que tomava forma e liberdade. O Professor Eduardo encorajou-me a produzir e a divulgar esta pesquisa em eventos e periódicos, de modo que desenvolvemos uma parceria e amizade. Nesse período e processo, vi minha escrita tornar-se mais criteriosa e progressista, ele me trouxe o foco da Musicologia e me fez olhar para o século XXI, para o meu tempo. Esse foi um tempo de determinação e ousadia, de momentos alegres e outros nem tanto, de entusiasmo e de um desgaste mental, emocional e físico, de ajuntamento e de largos momentos de solidão, que me ajudaram na concentração, mas também, por vezes, me assaltaram o ânimo. Mas, fazer doutorado é permitir-se a mudanças. Sendo esse um caminho difícil a ser percorrido, reconheço que nunca estive realmente só, mesmo que aparentemente estivesse. Agradeço aos meus familiares, Dagmar Júnior, Laura Fabíola, Daniel Vinícius e João Gabriel, que estiveram comigo, em todos os momentos, perto e também a distância de um oceano. Às minhas amigas, que enquanto vivia em Portugal, estiveram à minha disposição por horas on-line, como Adriana Bezerra, Adriana Lóssio, Yunga Fernandes e Bárbara Semensato, que conheci em Évora e nos tornamos “amigas de infância”. Todas me ajudaram na tese e na vida pessoal.

Em especial, a Andrea Diniz, que me acompanhou desde o início do meu deslocamento do Brasil para Portugal, e comigo esteve lá por alguns dias, um conforto. O produto de uma tese é também o resultado de muitas pessoas que nos cercam, não apenas de teóricos e dados tabulados mas também de histórias particulares, vividas, somadas, que não descartam a arte de ouvir e de sentir empatia, porque tudo o que fazemos sempre será para todos. Agradeço aos meus colegas de doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Marcelo Henrique e Andrezza Medeiros, nesse processo, avançamos juntos e torcemos por cada vitória alcançada. Às minhas amigas de Portugal, Edilaine Mattos, Inês Aranha, Rosângela Dutra e Christiane Atta, que nunca me negaram atenção e afeto. Aos amigos da Universidade de Évora, Ana Margarida Pinto e Celso Bastos, uma vez que, juntos, dividimos nossas inquietudes em longas e divertidas conversas. Muito bom contar com eles, especiais mesmo. Reconheço, nunca estive só. Esse também foi um período em que pude olhar para dentro e reorganizar os planos, refazer a vida, mudar de cidade, de país, ter duas casas, uma Natal e outra em Évora. Assim, conhecer de perto o jeito “português de ser”, em especial alentejano, de tradição moura. E esse “jeito” me forneceu pistas para a pesquisa, com proximidades culturais com o sertanejo do Nordeste, de fortes influências ibéricas, considerando as afinidades e as diferenças. Foi um momento de ver outras paisagens, conhecer outras pessoas, sair do lugar comum, do conforto das minhas referências e das ações previsíveis. Mas nunca sair do foco. Nesses anos, aprendi a “estar mais pronta para ouvir e mais tardia para falar”1, a recuar quando necessário, e também a posicionar-me com mais ousadia, quando oportuno fosse. Nesse tempo, eu me permiti viver sentimentos inesperados, a que comparo ao madrigal Zefiro torna de Monteverdi. Vivê-los faz parte da vida, de quem se lança com coragem de ser imperfeito e de demonstrar afeição sem medo. Esses anos foram de profundo aprendizado acadêmico, pessoal e espiritual, de mudanças significativas na vida. Mas a realização da pesquisa que resultou nesta tese só foi possível porque tive do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte o financiamento e afastamento total das minhas atividades acadêmicas e artísticas, com tranquilidade para desenvolver meus estudos e minha capacitação. Por isso, meu especial agradecimento ao IFRN, no Campus Natal Central.

1 Tiago 1:19

Aos colegas de trabalho e aos meus alunos, que me apoiaram nesse período de ausência, sempre com palavras de estímulo e otimismo. Sobretudo, aos colegas professores de Música, que aplicaram a atividade experimental de análise musical com seus alunos, a partir da qual recolhi os dados da pesquisa. No IFRN, tenho quase uma vida, tenho muitos dos meus melhores anos, foi o meu primeiro e único emprego a que dediquei minha juventude e energia, e que a ele volto, não mais tão jovem, mas com a mesma alegria e entusiasmo do início. A todos, meu reconhecimento e minha gratidão.

RESUMO

A considerar a influência da música popular e folclórica na Série Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), a tese traz uma perspectiva reflexiva sobre o Sertão nordestino. A Série Bachianas é uma obra musical, que em sua estrutura, remete à música (1685-1750), por isso “bachianas”, e nela, cada suíte funde-se de maneira própria com a música folclórica e popular brasileira, especialmente o estilo do choro e a musicalidade sertaneja (NÓBREGA, 1971; KIEFER, 1997; CALDAS, 2010). A pesquisa traz um exame de quatro peças da Série: a Introdução Embolada, a Dança Lembrança do Sertão, o Coral Canto do Sertão e a Ária Cantiga, denominadas de Bachianas Sertanejas. A partir dessas peças, investiga a influência histórica e cultural (HOLANDA, 1982; ORTIZ, 2006; ALBUQUERQUE, 2011) que levaram o compositor a inserir ritmos e melodias característicos da região, como o baião e a canção popular “Ó mana deix’eu ir...”, a fim de compreender sua elaboração imaginária da região. Considerando a problemática da nordestinidade e da regionalidade (ANDRADE, 1989; CASCUDO, 2000) presentes na obra, a pesquisa busca desenvolver as abordagens da linguagem em si, como linguagem das coisas e do homem (BENJAMIM, 2011) e o exercício sociológico (MILLS, 1996) de “olhar” ou “ouvir” uma obra musical e suas possibilidades e conexões sociais. Ademais, sob uma perspectiva musicológica, considera como a internalização das características externas e como elas adquirem outros significados na interpretação, como conduzem o tema ou como se transformam a partir dele (KERMAN, 2011; LOPES, 2014). Dessa forma, a análise das peças da Série Bachianas Brasileiras tem por objetivo suscitar reflexões sobre outro olhar para a região através da linguagem musical.

Palavras-chave: Sertão; Bachianas Brasileiras; Villa-Lobos.

ABSTRACT

Considering the influence of popular and folk music in the Bachianas Brasileiras Series by Heitor Villa-Lobos (1887-1959), the thesis brings a reflective perspective on the northeastern Sertão. The Bachianas Series is a musical work, which in its structure, refers to the music Johann Sebastian Bach (1685-1750), therefore ‘bachianas’. In it, each suite merges in its own way with Brazilian folk and popular music, especially the Choro style and country music (NÓBREGA, 1971; KIEFER, 1997; CALDAS, 2010). For the research, four pieces of the Series were examined: Introduction Embolada, Dance Lembrança do Sertão, Choir Canto do Sertão and Aria Cantiga, called Bachianas Sertanejas. From them, we investigated the historical and cultural influence (HOLANDA, 1982; ORTIZ, 2006; ALBUQUERQUE, 2011), which led the composer to insert rhythms and melodies characteristic of the region, such as Baião and the popular song “Ó mana deix’eu ir…”, in order to understand his imaginary elaboration of the region. And, considering the problem of northeasternity and regionality (ANDRADE, 1989; CASCUDO, 2000) present in the work, the research was developed under the approaches of language itself, as language of things and man (BENJAMIM, 2011) and exercise sociological (MILLS, 1996), to ‘look’ or ‘listen’ to a musical work and its possibilities and social connections. And also, from a musicological perspective, which considers how external characteristics are internalized and acquire other meanings in the interpretation, either as it leads or as it transforms (KERMAN, 2011; LOPES, 2014). Thus, the pieces of the Bachianas Brasileiras Series were analyzed in order to raise reflections on another look at the region through musical language.

Keywords: Sertão; Bachianas Brasileiras; Villa-Lobos.

RÉSUMÉ

Compte tenu de l'influence de la musique populaire et folklorique dans la série Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), la thèse apporte une perspective réflexive sur le Sertão nord-est. La série Bachianas est une œuvre musicale qui, dans sa structure, fait référence à la musique de Johann Sebastian Bach (1685-1750), donc «bachianas». Chaque suite y fusionne à sa manière avec la musique folklorique et populaire brésilienne, en particulier le style choro et la musique populaire (NÓBREGA, 1971; KIEFER, 1997; CALDAS, 2010). Pour la recherche, quatre pièces de la série ont été examinées: Introduction Embolada, Danse Lembrança do Sertão, le Chœur Canto do Sertão et Aria Cantiga, appelée Bachianas Sertanejas. À partir d'eux, nous avons étudié l'influence historique et culturelle (HOLANDA, 1982; ORTIZ, 2006; ALBUQUERQUE, 2011), qui a conduit le compositeur à insérer des rythmes et des mélodies caractéristiques de la région, comme le Baião et la chanson populaire «Ó mana deix’eu ir...», afin de comprendre son élaboration imaginaire de la région. Et, considérant le problème de la nord-est et de la régionalité (ANDRADE, 1989; CASCUDO, 2000) présent dans l'ouvrage, la recherche a été développée sous les approches du langage lui-même, comme langage des choses et de l'homme (BENJAMIN, 2011) et de l'exercice sociologique (MILLS, 1996), pour ‘regarder’ ou ‘écouter’ une œuvre musicale et ses possibilités et liens sociaux. Et aussi d'un point de vue musicologique, qui considère comment les caractéristiques externes sont intériorisées et acquièrent d'autres significations dans l'interprétation, soit en tant qu'elle conduit ou qu'elle se transforme (KERMAN, 2011; LOPES, 2014). Ainsi, les pièces de la série Bachianas Brasileiras ont été analysées afin de susciter des réflexions sur un autre regard sur la région à travers le langage musical.

Mots-clés: Sertão; Bachianas Brasileiras; Villa-Lobos.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 –Modelo de organização musical que deu origem à escala nordestina

Figura 1 – Estrutura do estudo ...... 27 Figura 2 – Direcionalidade de narrativas para o conhecimento musical ...... 30 Figura 3 – Alegoria “O ouvido”, fatores que auxiliam na compreensão da obra musical ...... 31 Figura 4 – Ritmo do cateretê, caruru e calango (próximos ao baião) ...... 63 Figura 5 – Modos gregos que deram origem à escala nordestina ...... 66 Figura 6 – Base do ritmo de baião ...... 67 Figura 7 – Variações rítmicas do Forró ...... 68 Figura 8 – Variações rítmicas do xote e do xaxado ...... 69 Figura 9 – Ritmo de Coco próximo ao Baião – Ritmo da Embolada ...... 71 Figura 10 – Fragmento de “Luar do Sertão” ...... 77 Figura 11 – Fragmento do canto “Bendito” ...... 78 Figura 12 – Fragmento do canto em aboio ...... 79 Figura 13 – Finalizações para a musicalidade nordestina ...... 87 Figura 14 – Fragmento – “Baião” (Luiz Gonzaga) ...... 87 Figura 15 – Fragmento do Coral Canto do Sertão (em ostinato) ...... 94 Figura 16 – Melodia da canção sertaneja (em acordes) ...... 95 Figura 17 – Melodia da canção sertaneja (redução) ...... 95 Figura 18 – Introdução Embolada – primeira parte ...... 113 Figura 19 – Introdução Embolada – segunda parte ...... 114 Figura 20 – Trecho da Dança Lembrança do Sertão – tema em toada ...... 116 Figura 21 – Trecho da Dança Lembrança do Sertão – na toada para piano ...... 116 Figura 22 – Coral “Canto do Sertão” (primeira parte) ...... 118 Figura 23 – Tema da Oferenda Musical de J. S. Bach (à direita). Tema no Prelúdio (à esquerda) ...... 119 Figura 24 – Temas presentes no Coral Canto do Sertão ...... 120 Figura 25 – Coral Canto do Sertão. Seção A. Ostinato (nota Si bemol)...... 121 Figura 26 – Canto da Araponga em ostinato duplicado ...... 122 Figura 27 – Canto da Araponga em ostinato triplicado ...... 122 Figura 28 – Canto da Araponga em ostinato quadriplicado ...... 123 Figura 29 – Canto da Araponga em ostinato quadriplicado ...... 124 Figura 30 – Diferentes recursos sonoros para ressonância ...... 125 Figura 31 – Cadência final – Tirata ...... 127 Figura 32 – Ária Cantiga (tema da canção popular) ...... 128 Figura 33 – Ária Cantiga – Introdução Motivo germinal 3ª menor descendente e 2ª maior ascendente ...... 130 Figura 34 – Pedal ...... 131 Figura 35 – Ária Cantiga – parte B (com o tema do baião) ...... 132 Figura 36 – Ária “Cantiga” – parte B (transformação textural do baião) ...... 133 Figura 37 – Seção com o ritmo acentuado do baião sob o tema da Cantiga ...... 134 Figura 38 – Oitavas repetidas em ênfase ao tema da canção popular, em paranomasia e gradatio ...... 135 Figura 39 – Variação do tema Cantiga ...... 135 Figura 40 – Cadência final, repetição do tema ...... 136 Figura 41 – Aspectos uni e multidimensionais do som ...... 148 Figura 42 – Valência e Atividade ...... 151 Figura 43 – O significado da música para o ouvinte ...... 153

Figura 44 – O modelo de emoção – afeto musical evocada: Imagination, Tension, Prediction, Reaction and Appraisal, de Huron ...... 154 Gráfico 1 – Respostas obtidas do Campus Natal Central ...... 141 Gráfico 2 – Respostas obtidas do Campus Zona Norte ...... 141 Gráfico 3 – Respostas obtidas do Campus João Câmara ...... 142 Gráfico 4 – Respostas obtidas do Campus Santa Cruz ...... 142 Gráfico 5 – Respostas obtidas do Campus Parnamirim ...... 143 Gráfico 6 – Respostas obtidas do Canguaretama ...... 143 Gráfico 7 – Percepção sonora, identificação e classificação de instrumentos e grupos ...... 156 Gráfico 8 – Campus Natal Central: cognição, identificação de melodias e ritmos ...... 157 Gráfico 9 – Campus Zona Norte: cognição, identificação de melodias e ritmos ...... 157 Gráfico 10 – Campus João Câmara: cognição, identificação de melodias e ritmos ...... 158 Gráfico 11 – Campus Santa Cruz: cognição, identificação de melodias e ritmos ...... 158 Gráfico 12 – Campus Parnamirim: cognição, identificação de melodias e ritmos ...... 159 Gráfico 13 – Campus Canguaretama: cognição, identificação de melodias e ritmos ...... 159 Gráfico 14 – Afeto I – Valência ...... 160 Gráfico 15 – Afeto I – Atividade ...... 160 Gráfico 16 – Afeto II – Imaginação ...... 161 Gráfico 17 – Afeto II – Constatação ...... 161 Gráfico 18 – Assimilação da Introdução Embolada ...... 163 Gráfico 19 – Assimilação da Dança Lembrança do Sertão ...... 164 Gráfico 20 – Assimilação do Coral Canto do Sertão ...... 165 Gráfico 21 – Assimilação da Ária Cantiga ...... 166 Partitura 1 – Ária Cantiga – Bachiana nº 4 ...... 53 Partitura 2 – Lundu da Marqueza de Santos – Villa-Lobos ...... 73 Partitura 3 – Asa Branca – Luiz Gonzaga ...... 73 Partitura 4 – Vida de Viajante – Luiz Gonzaga ...... 80 Partitura 5 – Vem Morena (em ritmo de Coco/ Embolada) – Luiz Gonzaga e Zé Dantas ...... 81 Quadro 1 – Cartografia da Introdução Embolada ...... 163 Quadro 2 – Cartografia da Dança Lembrança do Sertão ...... 164 Quadro 3 – Cartografia do Coral Canto do Sertão ...... 165 Quadro 4 – Cartografia da Ária Cantiga ...... 166

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO: NOTA SOBRE A TESE ...... 16 1.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS (MODERATO) ...... 16 1.2 A MOTIVAÇÃO DA PESQUISA ...... 18 1.3 A QUESTÃO DE INVESTIGAÇÃO E SEUS ENCAMINHAMENTOS TEÓRICOS 20 1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...... 25 1.5 A OBRA E O OUVINTE ...... 27 2 PRELÚDIO: O TEMA DO SERTÃO NA PESQUISA ...... 33 2.1 O SERTÃO IMAGINADO ...... 37 2.2 O RETORNO À CULTURA POPULAR E O FOLCLORE NA MÚSICA BRASILEIRA ...... 41 2.2.1 Sua influência na composição das Bachianas Brasileiras ...... 48 2.4 VILLA-LOBOS, QUEBRANDO ESTEREÓTIPOS DO COMPOSITOR ...... 54 3 PRELÚDIO: O SERTÃO DAS BACHIANAS ...... 63 3.1 ASPECTOS MUSICAIS DA REGIÃO ENCONTRADOS NAS BACHIANAS BRASILEIRAS ...... 63 3.2 O BAIÃO E OUTROS GÊNEROS MUSICAIS PRESENTES NAS PEÇAS (ALLEGRETO) ...... 76 4 PRELÚDIO: O SERTÃO NAS BACHIANAS BRASILEIRAS (LARGO) ...... 82 4.1 AS BACHIANAS EM ATO, A LINGUAGEM DA MÚSICA EM SI MESMA ...... 82 4.1.1 A Topics Theory à musicalidade brasileira e nordestina ...... 83 4.1.2 As Bachianas como “objeto” virtual ...... 90 4.2 BACHIANAS EM POTENCIAL, PARA UM “OUVIR” SOCIAL ...... 92 4.2.1 As Bachianas entre o poema e a narrativa ...... 97 5 FUGA: AS BACHIANAS SERTANEJAS (PUNCTO) ...... 112 5.1 INTRODUÇÃO EMBOLADA – BACHIANA Nº 1 ...... 112 5.2 DANÇA LEMBRANÇA DO SERTÃO, DA BACHIANA Nº 2 ...... 115 5.3 CORAL CANTO DO SERTÃO, DA BACHIANA Nº 4 ...... 117 5.4 ÁRIA “CANTIGA”, DA BACHIANA Nº 4 ...... 127 6 FUGA: AS BACHIANAS SERTANEJAS, UMA ATIVIDADE EXPERIMENTAL (CONTRAPUNCTUS) ...... 138 6.1 O ALUNO OUVINTE DO INSTITUTO FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ...... 138 6.2 ATIVIDADE EXPERIMENTAL DE AUDIÇÃO E ANÁLISE MUSICAL ...... 140 6.3 TRÊS ASPECTOS OBSERVADOS NA ATIVIDADE EXPERIMENTAL ...... 146 6.3.1 Percepção sonora ...... 147 6.3.2 Cognição musical ...... 149 6.3.3 Evocação de afetos musicais ...... 150

6.4 ANÁLISE DAS BACHIANAS SERTANEJAS NA ATIVIDADE EXPERIMENTAL ...... 155 6.5 RESULTADOS ...... 166 6.6 DISCUSSÃO ...... 169 7 CODA E CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 177 7.1 POSLÚDIO ...... 182 REFERÊNCIAS ...... 184

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1 INTRODUÇÃO: NOTA SOBRE A TESE

Para ouvir as Bachianas na contemporaneidade, em sua estrutura afetiva, textual e histórica (autoria própria).

A escrita desta tese, que foi pensada musicalmente, segue sob a estrutura de Introdução, Prelúdio e Fuga. Esse é o modelo encontrado na Série Bachianas Brasileiras, de Heitor Villa-Lobos, proveniente de O Cravo Bem Temperado, de Johann Sebastian Bach2. A Introdução, como Abertura de uma obra, está voltada à apresentação do objeto de estudo; à questão de investigação e seus encaminhamentos teóricos; ao delineamento da pesquisa e seu construto. O Prelúdio, como peça que antecede o tema principal, divide-se nesta tese nas seções 2, 3 e 4. Na seção 2, constam aspectos físicos e sociais do Sertão, que inspiraram as peças musicais. A seção 3 aponta as características culturais e musicais da região, presentes nas Bachianas. Já a seção 4 mostra os aspectos teórico-metodológicos que guiaram a pesquisa. Dando sequência, temos a Fuga, como parte polifônica e dialética dessa estrutura, que se divide nas seções 5 e 6. Delas constam o estudo do objeto sob “duas vozes”; sendo a seção 5 voltada à análise da obra escrita (puncto); e a seção 6, à análise da opinião do ouvinte a partir da apreciação da obra (contrapunctus). Ambos, em Fuga, são fundamentais para a compreensão e a reflexão da temática. Por fim, temos a Coda e as considerações finais, além do Poslúdio, a fim de trazer conclusões sobre este estudo.

1.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS (MODERATO)

A presente tese, que traz o tema do Sertão nordestino, propõe-se a estudar quatro peças musicais da Série Bachianas Brasileiras, de Heitor Villa-Lobos, com o objetivo de compreender como o tema foi trazido nessa obra pelo compositor. Estudar a música de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), em especial a Série Bachianas Brasileiras (1930-1945), foi um dos desafios encontrados na pesquisa: primeiro, por ser essa uma obra estudada e comentada desde a década de 1970 (NÓBREGA, 1971; KIEFER, 1986); segundo, por trazer contribuição composicional, de forma inovadora e inclusiva, que alia influências românticas e modernas com a música popular e folclórica (MARIZ, 1989; ANDRADE, 1989).

2 O Cravo Bem Temperado, escrito de 1722 a 1744, é uma coleção de música para cravo solo, composta por Johann Sebastian Bach em dois volumes. A obra foi inicialmente escrita para prelúdios e fugas, tendo por base os 24 tons (12 maiores e 12 menores), o temperamento da música em tons e semitons. 17

A Série Bachianas Brasileiras consiste em uma obra sequenciada em nove suítes compostas para diversos grupos instrumentais e vocais. Sua estrutura remete diretamente à música de Johann Sebastian Bach (1685-1750), por isso “bachianas”. Cada suíte funde-se de maneira própria com a música folclórica e popular brasileira, especialmente o estilo do choro e a musicalidade sertaneja, com traços do impressionismo francês e do romantismo alemão (NÓBREGA, 1971; MARIZ, 1989; KIEFER, 1986). A Série Bachianas tornou-se uma síntese entre a matriz musical brasileira e a linguagem de Bach como “um fundo folclórico de todas as nações” (CHATEUBRIAND 2006, p. 134), sendo observada como uma concepção universalista e profundamente eurocentrada (APPLEGATE, 1998). Dessa forma, orientou Heitor Villa-Lobos a olhar para o folclore musical, dando-lhe um tratamento “bachiano”, a fim de elevá-lo ao patamar universal, sendo, igualmente, parte do pensamento modernista de Mário de Andrade sobre a música nacional (KIEFER, 1986). Apesar de a Série Bachianas Brasileiras não ostentar a mesma visibilidade no cenário musical que o Ciclo dos Choros (1919)3, nela, encerram suítes que se tornaram obras primas da música brasileira. As mais populares são a Toccata O Trenzinho do Caipira e a Ária Cantilena, que seguem o esquema A-B-A, sendo originalmente a primeira mais desenvolvida. A “harmonia utilizada é de fundo clássico, ‘temperada com sal’ de 7ªs, 6ªs e 4ªs ajuntadas aos acordes e por frequentes notas de passagem e retardos” (NÓBREGA, 1971, p. 19). A expressão “temperada com sal”, usada com frequência por Nóbrega, é trazida nesta tese a fim de lembrar os seguintes aspectos: o primeiro, sobre o “temperamento” da escala diatônica, de inspiração em O Cravo Bem Temperado, de Bach; e o segundo, referente ao “sabor” acentuado brasileiro, contido na fonte musical colhida, que serviu de inspiração para as peças. Dessa forma, foi-lhe atribuído um título duplo, um de denominação tradicional e outro da fonte brasileira, por isso Bachianas Brasileiras. Ao longo da sequência das Bachianas, algumas peças apresentam, de forma mais viva, a feição brasileira, como a Introdução Embolada (1930) e a Giga Quadrilha Caipira (1942). Mas há, também, aquelas peças de andamento mais lento, que aparentemente sugerem uma versão mais tradicional “bachiana” e menos nacional. Elas deixam aparecer a feição brasileira, sem a expectativa rítmica e enérgica, mas na disposição dos temas de viola, dos

3 O Ciclo dos Choros consiste em um conjunto de composições para as mais diversas formações, passando por grupos camerísticos até grandes massas sinfônicas, com inspiração direta na música urbana do Rio de Janeiro da virada do século. Disponível em: www.museuvillalobos.org.br. Acesso em: 12 out. 2019. 18

cantos sertanejos, da melancolia interiorana das toadas, como no Prelúdio Introdução (1931), da Bachiana nº 4; e na Ária Cantilena (1938), da Bachiana nº 5 (PIEDADE, 2007). Para a pesquisa, foram estudadas as seguintes peças da Série Bachianas Brasileiras: a Introdução Embolada; a Dança Lembrança do Sertão; o Coral Canto do Sertão; e a Ária Cantiga, as quais denominamos de Bachianas Sertanejas. Nelas, observamos como o compositor inseriu estrategicamente elementos rítmicos e melódicos, por exemplo, o baião e temas de canções populares, permitindo, assim, a construção de um imaginário da região. E, dessa forma, apresentar o valor da música nas ciências sociais como criadora de imagens e metáforas que contribuem para a elaboração crítica da realidade.

1.2 A MOTIVAÇÃO DA PESQUISA

A partir da visibilidade dada por Heitor Villa-Lobos, a escolha dessas peças deu-se por dois motivos distintos. Primeiro, porque nelas se encontram características musicais mais salientes da região; como na Introdução Embolada, que faz alusão às emboladas e aos desafios4 de cantadores das feiras livres; e na Dança Lembrança do Sertão, que traz a melodia principal em toada com características do ponteio da viola sertaneja; também no Coral Canto do Sertão, pode-se observar a alusão à temática da seca, sendo intermeado por uma canção católica de romaria e a referência musical em ostinato ao Canto da Araponga; seguido da Ária Cantiga, com um tema central da canção popular Ó mana deix’eu ir pr’o Sertão do Caicó e o ritmo acentuado do baião. Reconhecidas as características musicais e físicas da região, o segundo motivo deu- se, porque, das quatro peças selecionadas, duas delas, o Coral e Ária, foram compostas originalmente para piano solo, instrumento de execução desta pesquisadora. Por conseguinte, temos mais proximidade com sua escrita, possibilitando debruçar-nos em uma análise mais acurada e no exame das peças. Como professora de música, pianista e regente de coral, atuante desde o final da década de 1990, a obra de Heitor Villa-Lobos sempre permeou nosso campo de trabalho, sobretudo ao observar como o compositor trouxe para a literatura musical temas do folclore

4 A embolada e o desafio são ritmos, também gêneros musicais, como o baião, o xote e o xaxado e os ritmos de coco, são também chamados de coco de improviso ou coco de repente, que no Sertão tomam amplitude com a arte do improviso, composta por uma dupla de cantadores, que ao som enérgico e batucante do pandeiro, monta versos com métrica precisa, de sons rápidos e improvisados. Esses parceiros estabelecem um desafio para quem der a resposta mais rápida e ritmada, por isso, também ser chamado de desafio de cantadores com pandeiro ou viola. 19

brasileiro, aliados a uma rebuscada técnica, seguindo tendências de sua época5. Em sua obra, para piano e coral, mais voltada à educação musical, vemos como é possível salientar a beleza e a simplicidade da tonalidade e dos desenhos rítmicos, em meio aos atonalismos e polirritmos presentes no modernismo após a década de 1920. Em nossa experiência, esse foi um dos pontos de referência de brasilidade que tanto considera o passado, como também se abre ao presente, sendo esse o motivo que nos levou a pesquisar a peça. Nisso, vemos que, apesar do reconhecimento singular de sua obra, essa ainda tem despertado interesse no século XXI, em plena era tecnológica, como uma “novidade”, em tempos de reducionismo musical comercial (PIEDADE, 1997; LOQUE, 2010). Para a pesquisa, provocam reações as discussões sobre definições regionais, tornando o tema cada vez mais vivo e presente nos dias de hoje. Somos de uma época de livros contados em discos de vinil coloridos, com contos e fábulas musicadas6, que acompanharam paralelamente a educação musical, desde a infância. Essa experiência muito contribuiu para uma escuta acurada e curiosa, senão, imaginária das histórias que ouvíamos. Passados muitos anos, como professora de música, decidimos compartilhar nas aulas tais experiências, a fim de desenvolver esse espírito musical crítico, imaginativo, e dele elaborar outras percepções. Era o interesse em ouvir a música para além dela mesma, para além do que a partitura e a execução instrumental poderiam proporcionar. Foi então que surgiu a iniciativa de elaborar uma atividade de análise informal da música. Um exercício de audição e apreciação musical, por vezes, fechado, objetivo, para identificar instrumentos e linhas melódicas e rítmicas; mas também aberto, subjetivo, para suscitar no aluno sua capacidade interpretativa através dos sons. Dessa atividade, redirecionamos, com seus devidos recortes, para a pesquisa doutoral que será mais detalhada nas seções a seguir. Sobre a escolha do tema do Sertão, esse surgiu em continuidade ao estudo realizado durante o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Na então pesquisa, foram trabalhadas a relação entre temas da música popular de tradição oral e a música contemporânea brasileira, o que resultou numa

5 A música no resgate da cultura popular e folclore, assim como fez Zóltan Kodály, na Hungria; e Tchaikovsky, na Rússia, segmentos do romantismo nacionalista, acentuado no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. 6 Pedro e o Lobo, de Sergei Prokofiev. Coleção Disquinho. Disponível em: https://youtu.be/vW9mZv8yqMU 20

dissertação sobre a Missa de Alcaçus7 e as aproximações melódicas com os romances medievais ibéricos (MEDEIROS, 2014). A utilização de temas populares e folclóricos na música clássica brasileira tem sido objeto de estudos sociais e artísticos, oriundos dos movimentos romântico e moderno de finais do século XIX a meados do XX, provenientes dos estudos sobre indianismo, folclore e identidade nacional (KIEFER, 1997; ORTIZ, 2006; VOLPE, 2001; ANDRADE, 2015). Apoiada nesses estudos, a presente pesquisa não foge desse direcionamento, suscitando-nos a curiosidade e o interesse em ampliá-la na investigação de peças da Série Bachianas Brasileiras. Apesar de o tema do Sertão ter sido amplamente explorado na música de Heitor Villa-Lobos, buscamos trabalhá-lo nesta obra, sob a perspectiva da sua escrita e de sua reação auditiva como construção do imaginário da região. O tema do Sertão, que inicialmente não fazia parte desta pesquisa, surgiu fruto do encontro entre o que viria aproximar a obra clássica da cultura popular e o exercício de um “olhar” ou “ouvir” sociológico (MILLS, 1996). No que diz respeito ao Sertão sonoro e imaginado, esse será escrito em letra maiúscula, como importância dada à região, que de tema periférico assumirá, por vezes, o tema central nesta tese. Nisso, vemos como a pesquisa é um campo aberto a descobertas, compondo o trabalho e conduzindo a linha de investigação.

1.3 A QUESTÃO DE INVESTIGAÇÃO E SEUS ENCAMINHAMENTOS TEÓRICOS

A questão de investigação que propomos no estudo das Bachianas Brasileiras, em especial, as Sertanejas, desdobrou-se nas seguintes perguntas: como a música apresenta a mesma região para além das definições construídas sobre ela? Como é possível “ouvir” o Sertão para além das canções populares e dos ritmos característicos, e que outras interpretações são possíveis de se obter da região? O que implica alterar esse “ouvir” ou “olhar” através da música? Quem daria as pistas para o reconhecimento dessa mudança? E ainda, que importância isso teria nos dias de hoje? Essas perguntas se seguiram durante a pesquisa sem perder de vista sua articulação contemporânea, o que nos oportunizou a acatar o tema e a direção que estava a ser tomada. A partir delas, trabalhamos as peças como linguagem musical que fala por si mesma (HARNONCOURT, 1998; WISNIK, 1989). Desse modo, pode-se elaborar uma reflexão

7 A Missa de Alcaçus, composta por Danilo Guanais, em 1996, consiste numa obra para solistas, coro e orquestra, escrita para o Madrigal da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ocasião das festividades da Semana da Música. 21

sobre o que transmite sua notação, em relação à região observada. No estudo das peças, a proposição foi de percebê-las e as identificar sob diferentes perspectivas, não apenas a de apresentar uma descrição da região mas também a de fazer um exercício de intenção musicológica, em que se considera como são internalizadas as características externas, e como as peças adquirem outros significados na interpretação, seja como conduz o tema, seja como o transforma (KERMAN, 2010). O enquadramento musicológico buscou estabelecer um diálogo entre o período em que foi composta a obra, nos anos 1930, e a contemporaneidade, o século XXI, para, assim, compreender esse Sertão imaginado na Série. Em observação e identificação das características musicais da região, essas foram classificadas e nomeadas a partir de como se movem e que significados guardam em relação ao tema. Os pontos de identificação, chamados de tropos; e as frases, de tópicas (RATNER, 1980; AGAWU, 1991; KERMAN, 2010), foram trabalhados como os elementos da fala no discurso (BAKHTIN, 1986). Em ajuste musicológico e foco no tema, a pesquisa desenvolve- se paralelamente sob essa perspectiva, a qual relaciona a música com a vida social, provocando reflexões de como se dá o fenômeno na sociedade e como ele é internalizado, podendo adquirir outros significados e outra interpretação (KERMAN, 2010; LOPES, 2014). Esse enquadramento permite-nos mover a pesquisa de outra forma, não apenas a concentrar- se no século XX, nos anos 1930, período em que foram compostas as Bachianas Brasileiras, a rever aquilo que já é identificável, como o nacionalismo romantizado da obra, mas também a direcionar ao século XXI, naquilo que ainda não é identificável, possibilitando compreender a obra e seu tema sob diferentes perspectivas e contextos. Para a pesquisa, foram aplicados os princípios de uma nova musicologia, com posicionamento a partir de um pensamento crítico, uma vez que essa ciência, que estuda a música em todos os aspectos, esteve ao longo do século XX no Brasil em um direcionamento mais voltado ao exame de documentos musicais do que propriamente a uma elaboração crítica (ANDRADE, 2015). Portanto, ao trazer a pesquisa nessa perspectiva, buscamos uma reflexão sobre aquilo que venha contribuir para a superação de ideias que ainda reproduzem o “mito do Nordeste”. Dessa forma, buscamos, na crítica historiográfica, a ampliação das dimensões de sua análise musical. Essa seria, portanto, a compreensão de que uma composição não é apenas um objeto autônomo mas ainda um registro do pensamento humano ou o reflexo de uma época. O primeiro desafio da pesquisa foi o exame das partituras, simultaneamente com todos os aspectos musicalmente possíveis: a teoria musical, sua análise e as considerações sobre o contexto histórico. O segundo foi investigar as peças das Bachianas Sertanejas como 22

um “objeto” virtual (LOPES, 2014), isto é, a objetivação que fazemos da música, a dizer que tem profundidade, tem altura que “sobe” e “desce”, sendo essas construções, do ponto de vista cognitivo, um objeto em três dimensões – com altura, profundidade e textura –, metáforas que utilizamos para compreendê-la (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Essa objetivação afirma que as metáforas não são somente utilizadas na linguagem poética mas também fazem parte da comunicação cotidiana, do sistema cognitivo humano, estando, dessa forma, no pensamento, e não apenas na linguagem. Ao trazermos metáforas à música, essas se destinam à comunicação mais ampla e de conexões com outras ideias em que há uma projeção de dois domínios conceituais: um cognitivo, de natureza concreta e experiencial; e o outro, sensorial, de caráter mais abstrato, em que ambos permitem compreender o domínio- alvo, o alcance da ideia musical, não necessariamente aquilo que é real mas também imaginado. O terceiro desafio é, a partir dos dois anteriores, trazer a importância de ouvir uma obra do passado nos dias de hoje, não apenas como apreciação estética mas ainda a partir daquilo que ainda traz para a contemporaneidade, e como “fala” de uma região. É trazer à superfície como o compositor direcionou os sons e os diferentes sentidos em sua obra, permitindo ao ouvinte o desejo de incidir o olhar do outro para o Sertão. Porque, considerando a música como linguagem, essa virtualidade acontece no tempo (kronos), é feita por pessoas e não vive para além de quem a ouve. Mas, como conhecimento, faz sentido no seu tempo (kairós), tanto no passado como no presente, indo além do tempo físico, tornando-se valorativa e singular, podendo adquirir diferentes significados (LOPES, 2014). Sendo, portanto, essa a forma como trazemos as peças das Bachianas Sertanejas, a fim de proporcionar um novo “olhar” e uma escuta sonora, seja de forma objetiva, concreta em sua notação; seja subjetiva, em sua interpretação. Com a intenção de elucidar a questão de investigação já apresentada, quiçá responder-lhe ou apontar direções, recorremos a duas abordagens teórico-metodológicas como suporte ao argumento. Uma, em como a obra pode ser trabalhada em ato, isto é, em análise musical; e outra, trabalhada em potencial, naquilo que pode ser ou se transformar. A primeira abordagem, para a análise da obra em ato, recorremos às Topics Theory (RATNER, 1980; AGAWU, 1991) redirecionadas às tópicas brasileiras, e essas, por sua vez, às tópicas nordestinas (PIEDADE, 2013). Trata-se de um estudo voltado à compreensão da música e de seus nexos culturais, com base na análise musicológica e na interpretação de pontos expressivos no texto musical. A análise musical, a partir dessa teoria, concentra-se na esfera melódica (temas, frases, motivos) e na rítmica, como forma (organização das estruturas 23

musicais no tempo). A importância e a amplitude desse tipo de análise, como a obra em ato, ocorrem porque essa é uma ferramenta que dá luz ao texto musical propriamente dito, permitindo que a música fale por si mesma. Na segunda abordagem, a análise da obra em potencial, buscamos compreender esse imaginário do Sertão a partir de um exercício sociológico, que se dá na pesquisa sob dois aspectos. O primeiro, do olhar natural em olhar social (MILLS, 1996), quando se refere ao desenvolvimento dos sentidos de esse “olhar” ou “ouvir” artístico. Esse movimento não se dá apenas na forma biológica como ainda em sua transformação social, constituindo-se em conhecimento que busca ir além da escuta, aprofundando a compreensão de sua essência, a construção de afetos, de identificações. Dessa forma, dá a oportunidade de tanto o olhar quanto o ouvir tornarem-se humanos; como também o objeto musical se tornar objeto social. No segundo aspecto, trazemos a linguagem da arte na condição de linguagem das coisas (BENJAMIN, 2011), no que se refere à nomeação dada a como as coisas animadas e inanimadas podem comunicar, trazer em si mesmas seus significados. Essa abordagem compara a audição da obra com a literatura, intermeada pelo tema em discussão, a fim reavaliar a necessidade de a imaginação humana não estar distante da científica, consequentemente, trazendo o construto extraído das Bachianas Brasileiras como objeto musical vivo e aberto. Ambas as abordagens teóricas ainda são intermeadas pela discussão sobre definições do Nordeste (HOLANDA, 1982; ORTIZ, 2006; ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011), e, em particular, sobre sua cultura musical localizada no Sertão (ANDRADE, 1989; KIEFER, 1997; CASCUDO, 2001; CALDAS, 2010). Nesse processo, analisamos o exame da notação musical e sua amplitude musicológica, e ainda tratamos o tema considerando os diferentes sentidos que dá ao espaço e à região. Esse exame partiu de como a música, como linguagem, pode dar visibilidade a identidades que se fizeram e refizeram na região (ORTIZ, 2006; HOLANDA, 1982); considerando sua apreensão por parte de quem a produz e de quem a recebe (BENJAMIN, 2011). Na abordagem do Sertão na Série Bachianas, trazemos as influências modernistas e nacionalistas do contexto em que foi composta a obra, observando como as características históricas e sociais que as cercam podem apontar diferentes aspectos sobre imaginar e identificar o Sertão nordestino. Porque, ao trazermos o tema, temos a consciência da diversidade “temperada” de nacionalismo e neoclassicismo, em que foi possível identificar em seu solo epistemológico uma influência de formação discursiva nacional-popular (ANDERSON, 2011). Essa influência apresenta-se na pesquisa com o objetivo de 24

compreender os caminhos pelos quais o compositor delimitou o imaginário de Sertão, como sub-região definida por sua cultura musical (CALDAS, 2010; CRAVO, 2005). Discutiremos algumas dessas definições elaboradas sobre a região, como a que começa a ter visibilidade no país a partir do fenômeno das secas (HOLANDA, 1982; ORTIZ, 2006) e também a que é reconhecida por sua influência ibérica, sobretudo de mouros e judeus (CASCUDO, 2001; CALDAS, 2010). Trataremos, ainda, do apego à cultura popular e ao folclore de forma museológica, de simplicidade quase rústica, de sotaques nasalados, de organização familiar e social com fortes traços ibéricos, entre mouros e judeus. Dessa forma, salientamos uma região economicamente mais atrasada em relação à modernidade industrial das regiões Sudeste e Sul (HOLANDA, 1982; CUNHA, 1987; CASCUDO, 2001), e, portanto, distante dos poderes centrais do país, que, no século XXI, ainda são sustentados pela literatura, música e mídia em geral. Considerando a abrangência da obra de Villa-Lobos e seu enfoque sobre a música popular e folclórica brasileira, encontramos nessas peças – tropos e tópicas – as pistas de como são flutuantes e possíveis outras definições da região na contemporaneidade. Apesar das considerações construídas anteriormente, aprisionadas ao fenômeno das secas e do êxodo rural, consideramos haver definições que apresentam uma historicidade dos anos de 1940 e 50, de uma região mais amena e lúdica, com representatividade no movimento armorial dos anos de 1970. Essas definições traçam um paralelo com o medievalismo ibérico cavaleiresco, com movimentos artísticos inspirados na cultura popular, como os encontrados na literatura de Ariano Suassuna e na arte de Francisco Brennand. Nessa direção, foram os estereótipos reproduzidos durante o século XX que nos chamaram a atenção no intuito de verificar se eles ainda subsistem no século XXI, e como a música de Heitor Villa-Lobos os apresenta ou não. Dessa feita, verificamos se as peças das Bachianas Brasileiras possibilitam outra ou nova percepção da região, observando como esse espaço pode ser interpretado e compreendido por diferentes sujeitos, como é pensado e percebido na contemporaneidade, em sua estrutura afetiva, textual, histórica e de contribuições sociais. Trazer uma observação temática a partir de uma obra musical levou-nos a investigar como a música, como linguagem em si mesma, racionalizada (WEBER, 1995), é capaz de reproduzir ou apresentar características de uma cultura, de uma região por meio de sua escrita, de sua técnica. A partir das perguntas que fomentaram a pesquisa, desenvolvemos uma reflexão sobre a importância do ouvir as Bachianas Brasileiras, buscando identificar outros aspectos contidos na região, apontando como alguns se mantêm e como se transformam, 25

sendo esse um olhar para a região através da música, e um ouvir a música para além dela mesma, sem, portanto, dela se perder.

1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O estudo foi realizado em três etapas. Na primeira, há a análise da obra em ato, na qual foram destacados trechos, tropos e as frases, tópicas, observando como se movem, identificam e localizam as características observáveis da cultura musical do Sertão. As quatro peças das Bachianas Sertanejas foram analisadas e sinalizadas, de modo a apontar onde e como se encontram os tropos nos elementos melódicos e rítmicos, sendo essa uma análise formal, ou em ato das obras, na perspectiva musicológica. Inicialmente, o que identificamos é como foram posicionados estrategicamente os ritmos e melodias característicos da região a fim de construir uma retórica musical. Depois, como a obra apresenta-se para além de estigmas e pressupostos regionalistas, mas como música brasileira, deixando nichos de valor e possibilidades de discutir a região. Nas Bachianas Sertanejas selecionadas, foram identificados temas de canções religiosas e profanas, como também aspectos físicos e históricos da região, que são articulados durante a apreciação e a análise, entre o contexto em que foram escritas, os anos 1930, e a percepção contemporânea que se tem delas. Na segunda etapa do estudo, foi realizada a atividade experimental de audição e apreciação musical com as Bachianas Sertanejas, a análise da obra em potencial. Nesse caso, mesmo que elas sejam percebidas de forma mais superficial, alguns aspectos serviram de parâmetros para observar como se deu a apreciação/compreensão da obra, como ela foi notada e explorada na experiência. Nessa atividade, foram destacados três aspectos: a percepção musical, a cognição como compreensão do fenômeno e a produção de possíveis afetos musicais (FORNARI, 2010), referentes às identificações, às reações e à formulação de imagens a respeito do tema apresentado. Nessa etapa, foi aplicada uma atividade experimental de audição e análise musical com estudantes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte. A atividade foi realizada a fim de recolher informações, dados, e de observar como esse público reage ao ouvir a obra, como interpreta e elabora um imaginário do Sertão. Na atividade, foram considerados, em suas respostas, o local da aplicação, o contexto desses estudantes, suas referências culturais em geral e musical, sua faixa etária, elementos importantes que envolvem o fenômeno. 26

Ao direcionarmos a pesquisa ao aluno-ouvinte do Instituto Federal, reconhecemos a necessidade de identificarmos em relação a esse público em formação como ouvem, interpretam e atribuem juízos de valor e como expressam os gostos pessoais. Desse modo, observamos como a música, na condição de linguagem e conhecimento, possibilita um campo vasto de associações, que, por natureza ambivalente, está simultaneamente dentro do mundo e também fora dele (BARENBOIM, 2009; COOK; EVERIST, 2001). Na terceira etapa do estudo, após a análise da obra em ato e em potencial, foram utilizados instrumentos e técnicas para o recolhimento de dados que possibilitarão responder à pergunta de investigação para a resolução do problema que moveu a pesquisa, alcançando, assim, o objetivo pretendido. Primeiro, foi feito o recolhimento dos dados da atividade experimental em relatório, com a catalogação e a devida porcentagem obtida; segundo, com observação e análise, os dados foram tabulados em gráficos, trazidos em exposição autoexplicativa para interpretação dos resultados obtidos e discussão sobre o tema. O recolhimento dos dados-resposta deu-se pelos seguintes instrumentos: a atividade realizada em classe sob orientação e supervisão do professor de Música; e o relatório com o número respostas fechadas e abertas, totalizando as informações, sejam as declaradas, sejam as não declaradas. Essas respostas, transformadas em dados informativos, foram tabuladas em quadros estatísticos, tornando-se quantitativos, apesar de elas poderem ser interpretadas qualitativamente e expostas em cartografia simbólica (SANTOS, 2000). A escolha da cartografia simbólica como instrumento de apresentação dos dados deu-se por ser esse um recurso que auxilia no tratamento e na interpretação desses dados. A cartografia simbólica pressupõe o conhecimento prévio dos princípios que precedem à produção e ao uso de mapas-quadros, para recorrer à ciência e à arte que estudam de modo sistemático a cartografia. Além de reunir os instrumentos analíticos requeridos pela argumentação a que nos propomos, a principal característica da cartografia simbólica reside em que, para desempenhar adequadamente suas funções, tem de, inevitavelmente, distorcer a realidade, porque não pode coincidir ponto a ponto com ela. No entanto, a distorção da realidade que isso implica, não significa automaticamente a distorção da verdade do dado que foi colhido, isso se os mecanismos de distorção da realidade forem conhecidos e puderem ser controlados. Os mapas-quadros distorcem a realidade a partir de três mecanismos principais: a escala, a projeção e a simbolização, que são autônomos, envolvem procedimentos distintos e exigem decisões específicas. Mas também são interdependentes, porque a escala influencia a quantidade de detalhes que podem ser mostrados e determina se um dado simbólico é ou não eficaz (SANTOS, 2000). 27

O método adotado na pesquisa foi utilizado como ferramenta para a elaboração do imaginário do Sertão, o qual se apresenta em mapas que ajudam, de forma processual, a pensar nas conexões em singularidades e multiplicidades. Portanto, o estudo do fenômeno musical torna-se inacabado e inesgotável. Ao trazermos o tema às Bachianas Brasileiras, isso possibilitou conexões e pontos de intercessões que favoreceram a coexistência de elementos sonoros na produção musical, tornando a obra aberta e contemporânea.

1.5 A OBRA E O OUVINTE

O interesse do estudo traz direcionamento à obra e ao ouvinte, conforme estrutura apresentada na Figura 1. Deu-se pela importância de escrita e também pela amplitude na interpretação a partir do ouvinte. As Bachianas Brasileiras, na condição de partitura, é um documento capaz de ser analisado e compreendido sob seus parâmetros teóricos (WEBER, 1995), considerando simultaneamente o contexto histórico, filosófico e artístico em que foi escrito.

Figura 2 – Estrutura do estudo

Obra Sertão Ouvinte

Fonte: autoria própria

Na obra, em documento e em execução, também são observáveis traços, os tropos, que sugerem imagens e descrições físicas. Informações essas que auxiliam na elaboração do imaginário da região, trazido pela objetivação musical. Nessa perspectiva, consideramos que a música, apesar de todos os fatores exteriores contribuintes, é uma linguagem autônoma, sob seu status de arte e simultaneamente de técnica, que possibilita parâmetros identificáveis ao ouvinte. 28

O interesse voltado ao ouvinte deu-se por ser esse o agente musical por excelência, a partir do qual buscamos, ao longo desta pesquisa, elaborar uma reflexão sobre as possíveis definições atribuídas ao Sertão nordestino com base na experiência estética dele. Esse ouvinte, o “aluno-ouvinte” do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, contribuiu em sua particular percepção e interpretação musical, dando “voz” e opinião à temática da obra. Observamos que sua contribuição esteve como resultado daquilo que anteriormente existe e já foi transformado (Gestalt). Isso permite que sua percepção seja alterada por inúmeros fatores que o cercam: o contexto histórico, as relações interpessoais, o acesso à obra como capital cultural em seu contato com a arte (BOURDIEU, 2007), tornando a construção do pensamento ligada a todos esses fatores. Como resposta, sua reação veio interferir na interpretação do ver e do ouvir sob novos e diferentes prismas, não sendo atribuída a essas interpretações uma única verdade sobre as peças, mas múltiplas e contextualizadas. Se pensarmos no modernismo, período da composição das Bachianas Brasileiras, o ouvinte em geral, frequentador de espaços como teatros e salas de concertos, na condição de público relativamente culto, manteve-se numa posição de receptor, apreciador, considerando o processo de construção artística. Nesse sentido, apesar de uma aparente passividade, o público manifestou-se ao ser apresentado ao novo, como nos relatos da Semana de Arte Moderna de 1922, com a rejeição aos concertos e exposições da arte8. Entre outros eventos durante o modernismo, relembramos as primeiras exposições impressionistas de Claude Monet e o esvaziamento das salas de concerto de Claude Debussy. Durante a história Ocidental, a música esteve à disposição para a realização do intérprete, do compositor e do ouvinte, todos à mercê do que o som lhes oferecia, sendo a música compreendida como organização com intenção de ser ouvida. Em princípio, ela estava associada ao mito e ao rito, depois passou a ser vista como techné, como no teatro grego, reproduzida na disposição espacial da arquitetura, em orquestra, palco e plateia, definindo, assim, os espaços daqueles que a produziam e a recebiam (CANDÉ, 1995). Nesse cenário, o século XVI, com o advento da imprensa, e o século XVII, com cada vez mais especialização da partitura como documento racionalizado, fizeram com que a música fosse compreendida por meio do compositor e do intérprete, que, por vezes, eram a mesma pessoa. A partitura definia-se como o documento que “continha” a música, enquanto o ouvinte posicionava-se como o receptor desse processo. Se é difícil definir como se dá esse contato, sua função social e seu modus operandi, compreendemos que esse movimento liga-se

8 Semana de Arte Moderna de 1922. Disponível em: www.guiadoestudante.abril.com.br>estudo>veja-4- curiosidades-sobre-a-semana-de-arte-moderna. Acesso em: 20 out. 2019. 29

à percepção do sentido musical, isto é, “quanto mais funcional for a música (no sentido lato), mais bem compreendida será” (CANDÉ, 1995, p. 15). A partir do primado visual, o auditivo foi substituído gradativamente na sociedade Ocidental, e assim tomou privilegiada situação na cultura e na vida cotidiana. Isso resultou, no decorrer dos séculos, em uma diminuição progressiva da sensibilidade aos fenômenos sonoros, e em particular, à música.

Os povos do Ocidente tornam-se “anacústicos”, se me permitem esse neologismo, com exceção de uma pequena proporção de iniciados. O próprio ensino confia cada vez mais na vista da criança (livros ilustrados, objetos exemplares, desenhos, quadros, gestos demonstrativos) e cada vez menos em seu ouvido, declínio do ensino oral (CANDÉ, 1995, p. 16).

Na sociedade industrial, esse declínio tornou-se ainda mais agudo. Isso porque o olho é atento, laborioso, preciso, escolhe e controla o objeto e sua função. Diferentemente do que ocorre com o ouvido, que não se abre nem fecha à nossa vontade, recebe e mistura todos os objetos sonoros que estão ao seu alcance. O ouvido escolhe com dificuldade, é pouco atento, e não é naturalmente laborioso. Por essa razão, o exercício de ouvir é tão importante como função mental e social. Na modernidade, o desenvolvimento da música esteve ligado à sua função na sociedade (ELIAS, 1995; WEBER, 1995). Até o século XVIII, por circunstâncias da vida pública e privada, o trabalho artístico resultou em obras que representavam esse cotidiano. É a partir do século XIX que o compositor romântico, em uma nova concepção de arte, de música, redireciona sua musicalidade para teoria dos afetos, a fim de buscar uma música “pura”, porém, distanciada da opinião de quem apreciava. Na contramão, a música cada vez mais especializada depende mais do público nos seus espaços “consagrados”: teatros e salas de concerto. A música passa a depender desse público (BOURDIEU, 2007), de seu comportamento, das pressões que ele exerce, das consequências psicossociológicas, históricas, políticas. Na medida em que se dirige ao público, seja ele especializado ou não, os compositores veem a necessidade de direcioná-la ao ouvinte. De fato, é o século XX, e em crescente o XXI, que coloca o ouvinte não somente como aquele que recebe mas também como parte no processo de compreensão, como aquele que realiza, interpreta, divulga e promove a música (Figura 2).

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Figura 3 – Direcionalidade de narrativas para o conhecimento musical

Compositor Partitura Intérprete Som Ouvinte

Musicólogo

Fonte: Lopes (2019)

Segundo Lopes (2019, p. 2), a considerar a sociologia contemporânea, o ouvinte é

Compositor Partitura Intérprete Som Ouvinte parte integrante de todo o processo musical, e “não existe música sem esta ser percecionada e descodificada individualmente por quem ouve”. Por isso, foi-nos causado o interesse em investigar a música a partir de quem ouve, da influência do compositor e de como ela chega até o ouvinte, sendo a música analisada pelo musicólogo, pelo cientista social.

Ao nos posicionarmos nos dias de hoje, o ouvinte no século XXI tem uma posição daquele que também realiza e compreende a música. Porque a música, como “objeto” virtual, que acontece no tempo (kronos), permite a cada indivíduo ver as coisas do mundo de forma diferente, cumprindo diferentes funções sociais (LOPES, 2014). Essa é uma construção individual e não vive para além de quem ouve. Para tanto, é importante a opinião do outro, apesar de todo o individualismo contemporâneo, porque falar sobre música é falar sobre reações humanas e tentar estabelecer relações entre o seu conteúdo e o conteúdo inexprimível da vida. Portanto, essa é a importância de refazer e desenvolver novas ou outras capacidades de compreendê-la socialmente. Considerando a obra e o ouvinte na contemporaneidade, não é possível se distanciar de toda uma teoria elaborada anteriormente para explicar ou apontar parâmetros musicais. Uma teoria deve ser construída consoante uma explicação e um posicionamento do contexto histórico em que foi inserida. Trazer a figura do ouvinte alia-se à construção teórica e possibilita a percepção musical em seu alcance mais amplo e complexo, o que une a obra, sua teoria, o contexto e o ouvinte, como fatores interligados, como mostra a Figura 3.

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Figura 4 – Alegoria “O ouvido”, fatores que auxiliam na compreensão da obra musical

Fonte: autoria própria

O século XX produziu um rico e conceitual vocabulário para entender a música Ocidental. A partir de pesquisas experimentais, surgiram dados perceptuais e cognitivos como relatos de vários de aspectos da prática musical e da experiência. Em alguns casos, a teoria tradicional e a percepção cientificamente inspirada na experimentação produziram pontos convergentes, como tonalidade, harmonia, escala, consonância, ritmo, confirmando a explicação empírica. Entretanto, em outros casos, vários conceitos teóricos não se aplicaram como efeitos perceptuais ou cognitivos presumidos (COOK; EVERIST, 2001). O que se teve, em investigações empíricas, foram respostas em que os ouvintes participantes da pesquisa não ouvem hierarquicamente os elementos musicais, nem apreendem quando os trabalhos retornam à clave original, porque sua percepção é mais complexa, há nela diferentes fatores que interferem. Desse modo, buscar a voz do ouvinte em uma pesquisa experimental é também admitir que é possível que a música seja percebida de forma mais superficial ou que suas respostas não ultrapassem o senso comum, mas também que delas surjam outras ou novas percepções. Nesse sentido, apesar de a obra musical ter sua linguagem própria, ela chega de diferentes formas e assim é interpretada. O que nos chama a atenção é a percepção correlata e significativa de vários conceitos estruturais da teoria musical, em que aqueles que a fazem, praticam, convencem-se de que é assim que resulta no fazer, no compreender musical, sendo amparados pelo discurso moderno da teoria musical. Nesse processo, os conceitos musicais podem abrir-se na contemporaneidade, e por mais contribuição que deixaram, é abrir-se à imaginação, à metáfora (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Por sua vez, a metáfora não seria apenas algo distante do cotidiano, como um artifício utilizado quando se precisa recorrer à linguagem, 32

mas, sobretudo, uma metáfora conceitual, que busca significação nos sentidos do “olhar” e do “ouvir”. Para a construção do imaginário do Sertão nas Bachianas, porque o ouvir como escuta musicológica é um termo distinto do “ouvido musical”, podemos trazer os fenômenos que envolvem a música e o que permite interpretá-la. É essa escuta, seja comparativa, seja metafórica, que auxilia no desenvolvimento do sentimento artístico, ou melhor, na sua compreensão. Nesse sentido, este estudo passa por um exercício de transformar o “olhar” ou o “ouvir” natural em social, a fim de dar objetividade à música e considerar a subjetividade do ouvinte, admitindo tanto os recursos trazidos na própria música como a interpretação do ouvinte. Dessa forma, trouxemos a temática do Sertão nas Bachianas Brasileiras, sob a perspectiva da obra e do ouvinte, sem nos determos demasiadamente em termos técnicos de análise, para que não seja distanciado o foco histórico e crítico em questão. Ademais, por termos reduzido o número de peças analisadas, buscamos dar a amplitude necessária para sua investigação. 33

2 PRELÚDIO: O TEMA DO SERTÃO NA PESQUISA

Embrenhou-se nos sertões daqueles estados, passou temporadas em engenhos e fazendas do interior (MARIZ, 1977, p. 39)

O Sertão descrito ou imaginado nas Bachianas Brasileiras tem origem na palavra latina sertanus, que significa área deserta ou desabitada, derivada de sertum, sinônimo de bosque. Também foi denominado pelos portugueses no século XVI de “desertão”, pois, quando saírem do litoral e se interiorizaram Brasil adentro, perceberam a grande diferença de paisagem, clima e vegetação. As definições de Sertão também se trata das terras e povoações do interior do país. A associação entre o Sertão e semiárido nordestino é salientada pelas diferentes condições físicas e, sobretudo, pela captura do conceito a partir do discurso regionalista (ALBUQUERQUE, 2011). Mas, a considerar os diferentes sertões brasileiros, tratamos especificamente do Sertão nordestino. A essas versões sobre a sub-região localizada no Nordeste, ainda se acrescentam aspectos da convivência de usos e costumes brasileiros após o primeiro processo de interiorização (RIBEIRO, 1995; CASCUDO, 2001). Cascudo relembra que no Sertão do Rio Grande do Norte, em que viveu, era notória a influência de mouros e judeus, trazida com a presença portuguesa. Essa influência pode ser encontrada em temas de canções infantis, no tabu do sangue, na repugnância às carnes de animais encontrados mortos, no balançar do corpo na oração, na bênção com a mão na cabeça, no horror à blasfêmia, no respeito ao cadáver, até no pavor aos mistérios da noite, da lua nova e das estrelas cadentes. Tudo fazia parte de um “orientalismo diluído no leite materno das amas-pretas, acalentadoras das minhas impaciências infantis” (CASCUDO, 2001, p. 13). Sob olhos contemporâneos, a presença de diferentes povos aviva as reminiscências da história do Sertão nordestino, sustentada por uma imensa literatura oral. Apesar de ser há tantos anos investigada, ainda é possível identificar nela traços estrangeiros, considerando a distância de cinco séculos. “A Provença veio para as terras sertanejas através da influência galaico-portuguesa, mesmo que não diretamente, e outros semiesquecidos da Península Ibérica, que ganharam vitalidade no Brasil” (CASCUDO, 2001, p. 14). Da miscigenação com povos indígenas ampliou-se a atividade do pastoreio, com a criação de gado, abrindo caminho de boiadas e o intercâmbio entre o litoral e o interior, o que possibilitou o desbravamento dos sertões, assim chamado por pertencer a vários estados (RIBEIRO, 1995). Em relação à atividade pecuária, desenvolveu-se uma peculiar cultura 34

festiva com o maracatu rural, as emboladas, os desafios e as festas de São João, diferenciadas do Litoral com a cultura do jangadeiro9 (GURGEL, 1996). Dessas manifestações, identificamos melodias e ritmos em peças das Bachianas Brasileiras, como na Introdução Embolada, da Bachiana nº 1; na Toccata Desafio e na Giga Quadrilha, ambas da Bachiana nº 7. Historicamente, o Nordeste foi o berço da colonização portuguesa no Brasil, e posterior colonização exploratória, que consistia na extração de pau-brasil e em seu comércio. Com a criação das capitanias hereditárias, a fundação da Vila de Olinda e a construção da cidade de Salvador, em 1549, a região tornou-se o centro financeiro do país até o século XVIII. Mas foi com a Capitania de Pernambuco, como o principal centro produtivo da colônia, e Recife, a cidade de maior importância econômica por causa do cultivo da cana-de- açúcar, o “ouro doce”, que se atenuou o interesse pelo Nordeste (FREYRE, 1985). Dada a importância histórica da região, foi a sua diversidade musical que serviu de inspiração em considerável parte da obra de Heitor Villa-Lobos, principalmente na composição das Bachianas Brasileiras (NÓBREGA, 1971; MARIZ, 1989; MAIA, 2000). “Ele embrenhou-se Brasil adentro com um caderno de anotações e os instrumentos que o ajudaria a ganhar algum dinheiro e sustentar sua aventura em conhecer o país. [...]. Era para aliviar sua inquietude e a saudade de casa” (MARIZ, 1977, p. 37). O compositor Heitor Villa-Lobos, em visita aos estados da Bahia e de Pernambuco, extasiou-se diante da riqueza folclórica, quando em busca do populário local, “embrenhou-se nos sertões daqueles estados, passou temporadas em engenhos e fazendas do interior” (MARIZ, 1977, p. 39). Do material musical recolhido nessa experiência, compôs obras buscando aproximar, o máximo possível, a afinação dos cantadores de seus instrumentos, quando percebido como “desafinação”. Para ele, a empostação (ou desempostação) do canto nos aboios dos vaqueiros, nos autos e nas danças mais dramáticas, como também os desafios, “tudo o interessou e despertou-lhe o sentido de brasilidade que trazia no sangue” (MARIZ, 1977, p. 40). A região Nordeste chamou-lhe a atenção pela variedade musical, apesar de não haver comprovações de sua visita em todos os estados que cita. Desde a primeira viagem ao Norte e Nordeste, Villa-Lobos aproveitou-se de sua habilidade auditiva para reconhecer e transcrever temas e canções populares. “Utilizou do método da taquigrafia, com sinais representativos da unidade de movimento rítmico, e quando anotado o que desejava, pedia para o cantador repetir o trecho e assim colocar as notas”

9 Jangadeiro, arquétipo do pescador cearense, o sertanejo meridional, sem litoral. 35

(MARIZ, 1989, p. 40). Tal experiência rendeu-lhe o recolhimento de mais de mil temas folclóricos, catalogados no Guia Prático10. O Sertão localizado entre o Meio Norte e o Agreste da região Nordeste dispõe de características específicas, como a vegetação típica da caatinga – em tupi ka’a (mata) tinga (branca) para diferenciar da mata escura silvícola – e o clima semiárido. O Sertão chega a alcançar o litoral dos estados do Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte, e mais ao sul, na divisa entre Bahia e Minas Gerais. De situação climática dramática, as chuvas na sub-região são irregulares e escassas, ocorrendo constantes períodos de estiagem, mas que não se caracteriza como uma grande área de deserto, por conter zonas úmidas e lençóis de água no subterrâneo (BOLIGIAN; MARTINEZ; GARCIA; ALVES, 2005). O clima tropical semiárido sertanejo é quente e seco, com temperaturas médias elevadas, ultrapassando aos 42 graus Celsius e duas estações bem definidas – uma chuvosa e a outra seca –, sendo o menor índice pluviométrico de todo o país. A escassez e a distribuição irregular de suas chuvas devem-se à dinâmica das massas de ar e à influência do relevo. Seu mecanismo de pluviosidade é proveniente da umidade da Amazônia, que, sob a influência da zona de convergência intertropical e as frentes frias, provoca instabilidades sobre o Sertão. O período chuvoso depende crucialmente da temperatura no Oceano Atlântico e dos fenômenos “El Niño” e “El Niña”, que apresentam menor pluviosidade nas áreas localizadas no Vale do São Francisco, entre os estados da Bahia e Pernambuco, e nas escarpas do planalto da Borborema, no estado da Paraíba (COSTA, 1988). A ocorrência das secas está diretamente relacionada ao fenômeno do aquecimento das águas do Oceano Pacífico, nas proximidades da costa oeste da América do Sul. Esse aquecimento ocorre em períodos irregulares de três a sete anos, interferindo na circulação dos ventos em escala global, e, consequentemente, na distribuição das chuvas no Sertão nordestino. Esse fenômeno acarreta grandes prejuízos rurais, a perda da lavoura e de criações, como também à população em geral, que sofre com a falta de alimentos e de água potável. A sub-região do Sertão – para localizá-la na Geografia, como ambiente ávido por explorações, seja na literatura, seja na música, seja nas artes em geral – foi e continua sendo alvo da ação política, principalmente por suas condições físicas ou por concentrar baixa condição de subsistência, o que contribui para o estereótipo de que “as multiplicidades e as diferenças individuais são apagadas, em nome de semelhanças superficiais do grupo”

10 Guia Prático é uma coletânea de 137 arranjos criados por Heitor Villa-Lobos, nos anos 1930, para a música folclórica brasileira. Em 2009, a Academia Brasileira de Música, com o apoio do Ministério da Cultura do Brasil, publicou uma edição especial do Guia Prático em 4 cadernos. Disponível em: http://www.funarte.gov.br/portal/2009/12/14/lancamento-edicoes-funarte-2009. Acesso em: 13 abr. 2019. 36

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 30). No processo identitário, quando as diferenças são apagadas, a região e seu povo são generalizados, apesar de sua múltipla expressão cultural. A considerar a particular realidade cultural da região, em meio a sucessivas crises econômicas e sociais, a arte tornou-se sua máxima, como pendão e orgulho. Em uma declaração, o então governador do Estado de Pernambuco, Roberto Magalhães, traz uma reflexão sobre a região, quando diz ser essa uma face da desolação, do sofrimento, da pobreza do atraso econômico e social, na síntese de sua poesia (MAGALHÃES apud PENNA, 1992).

É no lamento do baião, na magia multicolorida do maracatu rural, ou na débil voz política de quem aparentemente sempre teve mais o que pedir do que oferecer à grandeza do país, uma outra face amena. Essa face é do trópico sedutor que amolece e exacerba os sentidos, um Nordeste paradisíaco, como estação de férias, numa terra de desempregados que se retempera para sobreviver (PENNA, 1992, p. 17).

O que se tem assistido é uma referência ao Nordeste que se estende ao Sertão, de forma a localizá-lo e o aprisionar em outro lugar, buscando desfazer noções que cristalizam a região, situada hierarquicamente entre o Norte e o Sul do país. Por vezes, essas noções deixam a desejar as especificidades do espaço, valendo-se de estereótipos e suas multiplicidades. Assim, as diferenças individuais são apagadas, em nome de semelhanças superficiais de um grupo dominante. Na realidade, tem-se uma região e uma população tão expressivas que ultrapassam as invenções formuladas sobre elas, como relações de poder e do saber delas correspondente. Os arquétipos são muitos em torno de uma ou de tantas realidades dessa região, passando por condições de uma política exploratória, que atravessou um século em busca de mostrar a terra da caatinga. Foram definições de um Nordeste, e em particular do Sertão, que surgiram em finais do século XIX, e se seguiram no século XX, sendo permeadas e divulgadas amplamente na literatura, seja com a terra das secas, exposta em O Quinze (1930), de Raquel de Queiroz e Vidas Secas (1973), de Graciliano Ramos; seja de natureza incorrigível, como em Os Sertões (1987), de Euclides da Cunha; seja do fanatismo religioso, como em Fogo Morto (1943), de José Lins do Rego, entre tantos outros. Se demarcações geopolíticas do regionalismo são determinadas pelas condições sócio-históricas, isso traz um significado peculiar à região, reafirmando-se como um referencial de identificação, que inclui não apenas questões físicas e econômicas mas também um plano simbólico na institucionalização de um espaço ideológico cultural, que significa também uma representatividade política que especifica uma região “construída”, “imaginada”, fruto de um trabalho de construção e sustentação de determinados significados 37

sociais (COSTA, 1988). Já no discurso da história, a formulação de um Nordeste, e especificamente de um Sertão, ocorre a partir do agrupamento conceitual de uma série de experiências, erigida como característica desse espaço e de uma identidade regional, por meio do discurso que, muitas vezes, deixa de fora a essência, os diferentes traços definidores que se articulam em experiências cotidianas, como fragmentos de memórias, que são tomados como prenunciadores de definição do lugar. Entretanto, a região é muito maior que seu território e suas construções sociais. Ela nasce onde se encontram o poder e a linguagem (BENJAMIN, 2011), onde se dá a produção do imaginário, do textual, do musical e da espacialização das relações culturais. Nisso percebemos que as espacialidades habitam esses campos, como o da música e se relacionam com as forças que as instituem. Dessa forma, relembramos que o regionalismo presente pode ser considerado um processo que se torna cada vez mais significativo, como experiência, devendo ser captado onde existe e é visto pelos homens, distinguindo-se de representações de estranhos ou estrangeiros à região (COSTA, 1988). Para isso, entendemos que seja preciso romper com as transparências naturalistas, com acúmulo de camadas discursivas, que fixam ou promovem o mesmo discurso, como objeto histórico que, em nome de sua pureza, mantém-se reproduzido. Buscamos repensar esse direcionamento de determinações naturais, de região mais carente de condições físicas, como se isso fosse determinante para sua condição cultural, em que o tempo dá ao espaço sua variabilidade, seu valor explicativo, e ainda, seus efeitos de “verdade”.

2.1 O SERTÃO IMAGINADO

Além dos aspectos físicos e sociais, as artes, em geral – como a literatura, a pintura e o cinema do início a meados do século XX –, contribuíram para a construção de um Sertão imaginado. Vimos isso principalmente em algumas obras como Grande Sertão: Veredas (1986), de Guimarães Rosa; na série pictórica Os Retirantes11, de Cândido Portinari; e no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Em todas essas obras, é possível identificar, em suas diferentes narrativas, como ampliam o olhar para a região a partir de uma visão exógena, em sua maioria, e de conceitos previamente estabelecidos, contribuindo para as definições de um “lugar irremediável”.

11 Os Retirantes é uma pintura de Candido Portinari, pintada na cidade de Petrópolis no ano de 1944, período do expressionismo, sob a técnica de óleo sobre tela. A obra faz parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo. 38

São as condições físicas e sociais que despertaram o interesse e a curiosidade pelo Sertão, como área potencialmente explorável. Por estar localizado por trás das terras altas, em boa parte do planalto da Borborema, o Sertão é considerado o Nordeste “profundo” (ORTIZ, 2006; HOLANDA, 1982), no entanto, não estático em sua condição, mas dinâmico e profuso. Em Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa, como um dos intérpretes do Brasil no século XX, faz um retrato realista da vida social e política do país na Velha República. Apesar de a obra ser escrita em um período em que o rádio e o cinema contribuíram para a afirmação de uma nova identidade nacional, ela também reflete o desenvolvimento getulista e as transformações econômicas e institucionais que ocorreram (ROCARI, 2002). O olhar de Guimarães Rosa para o Sertão confere seu caráter universal dado à realidade brasileira, que se funde entre o contexto no qual as esferas políticas e privadas formam ordens distintas de fatos, que, em sua obra, recebem tratamentos diferenciados. É visto como o Brasil profundo e real, retratado pelo romancista e cujos ecos persistem na realidade contemporânea. O Sertão mapeado pelo autor tem o propósito de apresentar um vasto lugar de ficção, que, incorporado à sua escrita, foi transmitido oralmente. Sua descrição toma parte dos sertões que abrangem desde o estado de Minas Gerais até o Nordeste. Esse se constitui um dos registros passados pela voz e pela experiência de viajantes estrangeiros, principalmente europeus, durante o século XIX, os quais além de documentarem a flora e a fauna, construíam histórias e estórias sobre a paisagem da região. Ainda tomando como exemplo a construção do seu imaginário, Guimarães Rosa retrata o Sertão do ponto de vista do homem daquele lugar, e não do interlocutor, nem do estrangeiro. Apesar de ser esse um retrato alegórico do país, teve sua importância em apresentar uma região ao visitante que veio de fora para conhecê-lo, baseado no esforço de rememoração e na história oral. Ele adverte: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arroio de autoridade” (ROSA, 1986, p. 7). Na contribuição desse Sertão imaginado, não irreal, outros temas permeiam essa construção. Em O Quinze, Raquel de Queiroz (1930) expõe os dramas e desafios de sobreviver em meio à paisagem da seca; em São Bernardo, Graciliano Ramos (1936) relata os tempos vividos de coronelismo, entre proprietários e trabalhadores na luta pela sobrevivência. O autor apresenta a região em momento da falta de oportunidade decorrente da seca, que resultou no êxodo rural e, consequentemente, no inchaço das grandes cidades. Explorado em riqueza de detalhes, o romance Vidas Secas (RAMOS, 1938) traz o tema do cangaço, 39

abordando os bandos armados rebelados contra um sistema precário de ascensão social no Nordeste. Face ao exposto, a literatura não poupou detalhes e criatividade em apresentar uma emergência social. Dessa forma, o Sertão foi ainda ricamente imaginado como uma “vasta região ensolarada, cheia de vida, de calor humano e de musicalidade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 13). Trata-se de um espaço sociopolítico diferenciado e contrastante, carente e pesado, mas vivo e em mudança nem sempre observável. A referência à região, seja na literatura, seja na descrição naturalista, como interesse nacional de um momento histórico, o enquadramento dado o localiza como um lugar nem sempre vantajoso. Inclusive, durante a história política, desenham-se sofisticados enunciados discursivos estrategicamente construídos e agenciados (PRADO, 1928; HOLANDA, 1982), nos quais são conferidos um imaginário, como um campo fixo e irrecuperável da natureza; bem como aspectos físicos, além de ser atribuídos inúmeros mecanismos culturais. Parafraseando Euclides da Cunha (1987, p. 83), “apesar das agruras do tempo, da terra e do homem”, o Nordeste e, em particular o Sertão, tem resistido também por sua arte como representação simbólica e forma singular de ver o mundo. Sendo esse, provavelmente, um dos motivos ou interesses de se visualizar a região. Apesar de ser essa uma ênfase subjetiva, traz consigo indicações que apontam para um regionalismo socialmente visível, trata-se de um dis-cursus de tramas e redes de imagens e falas tecidas nas relações sociais, criando-lhe uma forma de representação difundida e aceita, seja cientificamente, seja na literatura e na arte, que chega até o século XXI, com ações e práticas inseparáveis, inscritas e divulgadas que pressupõem sua legitimação. O que se vê ser construído é que esse dis-cursus regionalista não é emitido pela objetividade da região, mas a partir da leitura que se tem dela, que a demarcou como espaço fadado a ser como é. A problemática da identidade regional presente nesse contexto como construção mental se estabelece sob conceitos sintéticos e abstratos que procuram generalizar uma enorme variedade cultural e artística. É a construção desse Sertão imaginado que subjetiva a região por meio da educação, dos contatos sociais, dos hábitos, da arte, da música, que contribuem a pensar o real como totalização abstrata. É com base nesses diversos discursos desse Sertão imaginado que se tem a ideia individualizada da região, sempre vista de fora dela. Vimos que o discurso regionalista assegurou, desde meados do século XIX, um apego a questões locais com separatismos claros num Brasil dividido entre o Norte e o Sul. A ideia de região não nasce apenas na mudança de sensibilidade em relação ao espaço mas 40

também na disposição de saberes sobre o lugar, de um novo olhar para o objeto, aberto a outros que igualmente surjam. É nessa disposição de saberes que estão nas Bachianas Brasileiras, como forma alternativo-discursiva de propor um novo/outro olhar para a região. Na obra, essa ação apresenta-se por uma disposição de temas, em que esses, necessariamente, não estão aprisionados ao que estava anteriormente estabelecido. Apesar de considerar as obras literárias e artísticas em geral, entre outras que tomam o tema, vimos como a Série Bachianas Brasileiras vem contribuir ou apresentar outro Sertão imaginado. É nesse contexto, histórico, político e cultural que o compositor Heitor Villa- Lobos, como “alguém de fora” desse processo, deparou-se com a música de cantadores cearenses que o inspiraram à reflexão sobre aquele lugar. Muito mais que uma definição de regionalidade, uma diferente “brasilidade” o atraía, desde o acorde maior – que não precisava ser perfeito, mas um pouco frouxo na sua afinação para poder soar “local” – até a paisagem dramática e diversa. O resultado desse olhar é o que trouxe para sua música, como ele mesmo explica: “não escrevo para parecer moderno, de maneira nenhuma. O que escrevo é a consequência cósmica dos estudos que fiz, da síntese a que cheguei para espelhar uma natureza como a do Brasil” (MAIA, 2000, p. 15). Ao trazermos o tema do Sertão nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos, como obra musical de diversificada brasilidade, “temperada” de nacionalismo e neoclassicismo, identificamos que seu solo epistemológico se abre a novos conceitos de formação discursiva nacional-popular. Dessa identificação, reforçamos a importância em como construir uma retórica musical sobre o Sertão sem necessariamente estigmatizá-lo sob um antigo regionalismo, mas como música brasileira. Com base nesse perfil, não descartamos um antigo regionalismo inscrito no interior da formação discursiva, entretanto, ele não permanece fechado em relação às descrições da natureza, das variações do clima e da vegetação como fonte para explicar suas diferenças. Para as Bachianas Sertanejas, buscamos apontar possíveis aspectos além dos que já se determinam, e que se sustentam politicamente. Considerando os aspectos anteriores, como o regionalismo, um dado construído e também abstrato, tratar as Bachianas Sertanejas como um reflexo desse regionalismo significa percebê-las como “objeto” musical que é entendido cognitivamente, ao trazer luz a aspectos da região, do compositor, do contexto, por meio do seu status de arte. Isso não significa apresentar a sua “verdade”, mas sua interpretação, que não precisa ser exatamente regionalista, mas, sobretudo, artística e livre de estereótipos. 41

Nesse processo, o que se almeja, e que provavelmente aparece na obra, são traços de uma região, não mais entre recortes naturalistas, mas com fisionomia aberta a interpretações, com ritmo e harmonia próprios. O Sertão proposto, ou imaginado nesta pesquisa, aparece em sua expressão cultural, não como um reflexo do meio, das raças ali representadas, ou das relações sociais, mas uma região como um ente cultural, uma personalidade, um ethos (FREYRE,1985). É a partir desse outro (ou novo) olhar que a investigação se debruça em acurada audição e observação de peças das Bachianas Brasileiras.

2.2 O RETORNO À CULTURA POPULAR E O FOLCLORE NA MÚSICA BRASILEIRA

Para compreender o Sertão nas Bachianas Brasileiras e a inclusão que teve a cultura popular de tradição oral, retomamos brevemente ao movimento de retorno a essa cultura no século XVIII. A cultura popular, que se definiu em oposição à cultura erudita, reaparece sob interesses intelectuais a partir de uma preocupação inicial com a poesia, considerada “da natureza”. Sendo anteriormente investigada pelos irmãos Grimm, foi também compreendida como “divina” por Herder (BURKE, 1995). Assim, esteve posteriormente recolhida na forma de literatura, com contos, lendas e narrativas mitológicas, consideradas de “antiguidades populares” ou “literatura popular” (ANDRADE, 1989). Na Alemanha, em resgate de sua Kultur naturalista, os irmãos Grimm e Herder tiveram particular importância nesse resgate, pela atenção atraída a tudo o que resultava das práticas populares, no âmbito da literatura popular, que diziam conter ou traduzir o “espírito do povo”, de que falara Herder. A iniciativa nesse campo resulta no clássico Contos para a infância e domésticos (Kinder – und Hausmärchen), cuja primeira edição é publicada em 181212. Pela primeira vez, com essa publicação, as tradições populares são confrontadas com o saber filosófico e histórico, disciplinas até então voltadas à Antiguidade. É na poesia, nas canções e nos contos que esse “espírito do povo”, ou sua natureza, aparece. Nesse caso, os autores classificam essa escrita como “poesia natural”, nativa ou tradicional, diferenciando-a da “poesia artística”, romântica e individual13.

12 Sobre a importância dos irmãos Grimm para o imaginário popular, ver VIEIRA DA MATA, Giulle. A torre de Babilônia: uma interpretação para um Zweibrüdermärchen. Lusorama, Zeitschrift für Lusitanistik, v. 53, p. 5-28, 2003. Para uma catalogação, ver AARNE, Antii; THOPSON, Stith. Los ipos del cuento folklorico. Una clasificación. Helsinki: Academia Scientiarum Fennica, 1995. (tipo 303). 13 É com os irmãos Grimm, e sob a intervenção de Wilhelm, que foram incorporados os cantos populares alemães e difundidos no mundo. ROHRICH, Lutz. Märchen und Wirklichkeit. Wiesbaden: Steiner, 1974. p. 182- 199. 42

Nesse movimento, são incluídos temas de: festas; práticas religiosas; música vocal e instrumental; usos e costumes do povo, que foram definidos como populares por estar em oposição à cultura legitimada, demarcada pelos critérios da verdade, o conhecimento falso versus o conhecimento verdadeiro; racionalidade, a contraposição de práticas aceitáveis e coerentes na sociedade estabelecida, e; convenção, o código social determinando o que era legítimo ou não. Sob esses critérios, percebe-se o objetivo de normatizar conforme os modelos de cultura adquirida e o conceito de civilização da tradição francesa (ANDRADE, 1989). Diferentemente de como ocorreu em países como Espanha, Finlândia, Romênia, Alemanha e Estados Unidos, no Brasil, negou-se, durante décadas no século XIX, a reconhecer a importância do trabalho voltado à cultura popular e ao folclore, tendo em vista o seu caráter não sistemático, não metódico, nem teórico, que, em suma de diletantismos, excluía a cultura popular e o folclore como conhecimento formal ou folclorístico (BENDIX, 1995)14. Em direção contrária, no Brasil, alarga-se o estabelecimento de Instituições de Arte e Conservatórios de Música no Rio de Janeiro, seguido pelas demais capitais brasileiras, no fomento da música clássica, a fim de expandir-se sob o interesse de modernizar a música nacional. Porém, apesar de seus esforços, as instituições e suas iniciativas deixaram uma lacuna nessa expansão artística, que foi o folclore e as canções populares. Isso porque a corrente popular oriunda da tradição oral parecia estar em contraste com o crescente movimento de modernização artística no país. Nesse contexto, está o wagnerismo como expressão de nacionalismo, referente ao compositor Richard Wagner (1813-1883)15 e sua linguagem musical de cromatismos e dramaticidade, marcado pelo uso de temas musicais associados ao caráter individual, de lugares e ideias (VOLPE, 2009). Sob essa influência, mesmo com a contribuição que trouxe à música brasileira, prezava-se uma cultura musical que pouco se assemelhava às tradições do seu povo, distanciando-se de suas origens que carecia de entendimento e espaço no cenário nacional.

14 Não é usual, no Brasil e mesmo nos países de língua inglesa, diferenciar terminologicamente o objeto “folclore” da disciplina que se dedica ao seu estudo. Em alemão, empregam-se os termos Volkskunde, Folkloristik e, nos anos recentes, Europäische Ethnologie. A renomada pesquisadora norte-americana, Regina Bendix, é de opinião que o termo folklore deve designar o objeto, e fokloristics a ciência. Cf. BENDIX, Regina. Amerikanische Folkloristik. Eine Einführung. Berlin: Dietrich Reimer, 1995. p. 22-29. 15 Richard Wagner (1813-1883), compositor alemão que trouxe uma nova concepção de música romântica nacionalista. Foi pioneiro em avanços da linguagem musical, uso de cromatismo extremo e rápida mudança dos centros tonais. Influenciou no desenvolvimento da música erudita europeia. Sua extensa obra sobre música, drama e política tem atraído comentários, em recentes décadas, especialmente onde existe o conteúdo antissemita, amores turbulentos, pobreza e fuga de seus credores. O impacto de suas ideias pode ser sentido em muitas artes ao longo de todo o século XX. Larousse, Dicionário de Música, v. 2. p. 1997, 1996. 43

Apesar desse movimento, paralelamente ou bem próximo ao wagnerismo, estiveram os estudos sobre o indianismo e o folclore, em que se assistiu a um retorno à cultura popular, tendo seu ponto alto, ou inovador, na formação do pensamento social brasileiro até o movimento modernista. Os estudos voltados à cultura popular, e, em particular, ao folclore, foram liderados, principalmente, por Celso Magalhães (1849-1879), Sílvio Romero (1851- 1914) e João Ribeiro (1860-1934), seguidos por Mário de Andrade (1893-1945) e Renato Almeida (1903-1949). Neles, residia o interesse pela poesia popular, pela literatura e pelos aspectos da vida social como também pelos produtos artesanais e instrumentos musicais. Além disso, observavam as formas de execução, as coreografias e os componentes rituais. Na concepção de Renato Almeida (1974, p. 23), o entendimento do folclore é considerado a partir “do comportamento do grupo social onde existe e as formas que revestem o fato”. A concepção do autor teve o apoio e a corroboração de Mário de Andrade, quando, em 1946, a Comissão Nacional do Folclore, criada por Almeida, lidera o movimento no Brasil, que registra a definição do fato folclórico como conceito estabelecido a partir de uma posição consensual dos folcloristas brasileiros (VOLPE, 2008). Mas foi já no fim do século XIX que Friedrich von Martius16 insistia, em Como se deve escrever a História do Brasil (1847), sobre a importância de se levar em conta as lendas, os contos e as fábulas populares na análise histórica. Apesar de estar familiarizado com as direções dos mitos populares – sua inserção e proximidade em descrever a realidade, ou o “espírito do povo” –, também havia a consciência dos limites e do predomínio da história política ao longo do século XIX. Ademais, com relativa estreiteza de horizontes da própria história cultural, etnológica e do folclore (MATA; MATA, 2006)17, Martius não se posicionava como revolucionário, mas

16 Friedrich von Martius (1794-1868) veio para o Brasil em 1817, convidado pelo rei Maximiliano, da Baviera, como integrante da comitiva da arquiduquesa Maria Leopoldina, por ocasião de seu casamento com Dom Pedro I, na chamada Missão Austríaca. Entre 1817 e 1820, ao lado de Johann Baptist von Spix e do artista Thomas Ender, investigou a flora brasileira, numa viagem que percorreu as províncias do Rio de Janeiro ao Amazonas. O material coletado no Brasil resultou em importantes obras científicas como Reise in Brasilien, em coautoria com Johann von Spix, publicada em três volumes (1823, 1828 e 1831); Nova genera et species plantarum brasiliensiun (1823-1832), também em três volumes; Historia naturalis palmarum (1823-1850), em 3 volumes e com 135 ilustrações; Icones selectae plantarum cryptogamicarum brasiliensiun (1827) e Systema materiae medicae vegetabilis brasiliensis (1843). Foi nomeado membro adjunto da Academia Real de Ciências de Munique em 1816. Sócio honorário do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, recebeu prêmio em concurso instituído pelo trabalho sobre Como se deve escrever a História do Brasil (1847). GUIMARÃES, Manoel L. Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Disponível em: https://goo.gl/tm9H5h. Acesso em: 27 out. 2019. 17 O ensaio crítico mais próximo da história cultural escrito no século XIX é do Gothein, reconhecido pela identidade entre o trabalho de Jacob Grimm e o dos historiadores culturais como autores identificados com a Kulturgeschichte (Burckhardt, Freytag, Lamprecht, Breysig), embora se mostrando mais conservadores, o que destacamos em Martius é uma atitude mais progressista Cf. GOTHEIN, Eberhard. Die Aufgaben der Kulturgeschichte. Leipzig: Duncker & Humblot, 1889. p. 47. 44

em relação aos rumos que os estudos sobre o folclore estavam tomando, ele admitia a valiosa parceria da história, que não poderia ficar de fora. Desse modo, o estudo do folclore, com esse parceiro e potencial histórico, tinha de ser considerado mais que uma ciência “auxiliar”. Apesar do silêncio sobre o tema folclore e cultura popular no século XIX, ele subsistiu não apenas como uma negativa de desfavorável hierarquia nos campos disciplinares mas, sobretudo, como um sinal de alerta à realidade que deveria e estaria na eminência de estar em evidência. Nesse cenário, Simmel (1904) denominou esse estudo de “ciências da realidade”, sendo que a sociologia e a antropologia se ocuparam de suas premissas como centro das discussões sociais, como fenômeno folclórico, de classe, de região, presente na sociedade. Nesse diálogo com o folclore, Florestan Fernandes faz uma crítica ao amadorismo predominante que permaneceu na marginalização durante o século XIX, com reflexos no século XX (MATA, 2006). Para Fernandes, o folclore é um campo de estudos e não apenas uma disciplina autônoma que se configura como uma disciplina humanística e não uma ciência (FERNANDES, 2003; VILHENA, 1997; ALMEIDA, 1974). Esse retorno trouxe o desafio de lançar um novo conceito para a música brasileira, que mesmo com o neoclassicismo presente, deveria adaptar-se às condições sociais, históricas e climáticas do Brasil, “era a necessidade de delinear identidades culturais e políticas, representando uma força ativa, não mero registro de acontecimentos” (MOREL; BARROS, 2003, p. 8-9). A retomada desses estudos foi de tamanha importância que, a partir deles, motivou artistas a não mais os ocultar em suas obras. Porque, no Brasil, essa tendência estava em vias de ser ocultada, considerando que o que se produzia estava nos moldes “parasitados”, sendo uma de suas consequências a rejeição às tradições populares, que eram vistas como sinônimo de simplicidade e atraso (ORTIZ, 2006). Nesse período, assistiu-se ao interesse intelectual e artístico pelo tema, preconizado por músicos como Alberto Nepomuceno e Ernesto Nazareth18. Ambos experimentaram a politonalidade em composições para o piano, e em particular, Nazareth, foi um dos primeiros pianistas a compor em ritmo de maxixe e choro de forma inovadora na música brasileira. Esses artistas foram os precursores de um nacionalismo musical que buscava a rica e

18 Alberto Nepomuceno (Fortaleza, 1864 – Rio, 1920) foi um compositor, pianista, organista e regente brasileiro, considerado o “pai” no nacionalismo na música erudita brasileira. Compôs a ópera Garatuja, inacabada, baseada na obra de José de Alencar, dentre outras óperas. Seu caráter modernista ou pré-modernista experimentou a politonalidade em suas composições para piano. CORRÊA, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno; catálogo geral. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional de Música/Projeto Memória Musical Brasileira, 1985. Ernesto Nazareth (Rio, 1863 – 1934) foi um pianista e compositor brasileiro, considerado um dos grandes nomes do maxixe, atualmente, choro. É patrono da cadeira nº 28 da Academia Brasileira de Música. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ernesto_Nazareth. Acesso em: 6 abr. 2019 45

multifacetada tradição brasileira, em consonância com o pensamento modernista que se construía sobre o interesse pela cultura popular de tradição oral. Era a busca desses temas a fim de que não desaparecessem (PEREIRA, 1995; KIEFER, 1997). Nesse período, outros compositores demonstraram interesse pela cultura popular e pelas canções folclóricas em contraste com o refinamento musical do século XIX, como uma busca por elementos nacionais que se tornaram evidentes, apesar do neoclassicismo. Esse momento caracteriza-se da seguinte forma: “era uma necessidade e quase uma questão de honra não mais imitar as formas europeias, mas carregá-las de folclore em meio à tradição neoclássica” (VOLPE, 2001, p. 62). Com isso, surge também a moda de “folclorizar” as composições clássicas brasileiras inspiradas na música popular de tradição oral. O impacto do wagnerismo no Brasil afastou a cultura popular e o folclore da música erudita. Mas, a partir do interesse sobre o tema, surgem mudanças, como uma nova concepção de música nacionalista que se seguirá no século XX, diferentemente daquela cultura musical que pouco se assemelhava às tradições do povo, e se distanciava das origens de entendimento do cenário brasileiro (VOLPE, 2009). Esse fora o interesse na busca do “elemento nacional” pelo resgate do que era local, especificamente no que diz respeito ao folclore, como ruptura aos estrangeirismos (ANDRADE, 2015). A construção dessas bases passava pelo ponto interno, por um movimento de retorno que fora descartado em nome de um “refinamento” à música brasileira. Como resultado, esse movimento deixou o folclore e os temas populares invisíveis por parecerem simples demais, pobres demais e internos demais. No entanto, era a partir desses elementos que se encontrava a riqueza de sons e ritmos oriundos da cultura popular, dando à música brasileira singularidade. Em tempos de romantizar o folclore, esse motivo reaparece na música clássica como forma de descrever ou de se aproximar de uma música caracterizada pelo regionalismo, anteriormente inscrito no interior da formação discursiva. Entretanto, a música não está fechada em relação às descrições da natureza, das variações climáticas como fonte de inspiração e da explicação para manter ou reproduzir suas diferenças, que foram sustentadas cultural e politicamente. O regionalismo traz à superfície discussões históricas e culturais, desde meados do século XIX, com interesses voltados ao indianismo e ao folclore, em um apego a questões locais com separatismos claros de um Brasil dividido entre o Norte e o Sul. É a ideia de região que não nasce apenas na mudança de sensibilidade em relação ao espaço como ainda na disposição de saberes sobre o lugar, com um novo olhar para o objeto, aberto a outros que igualmente surjam. 46

Entre os discursos – musicais, regionalistas, nacionalistas –, o Sertão nordestino manteve-se como motivo de interesse na arte desde o movimento folclorista de retorno à cultura popular iniciado no final do século XIX até aos dias de hoje (MAGALHÃES, 1997). Não que sua cultura musical estivesse esquecida ou desaparecida, porque sempre esteve em ação entre os grupos que a mantêm, porém, para uma visibilidade em outros centros, estava de fora desde a Missão Artística Francesa, que apesar da valiosa contribuição que trouxe às artes no Brasil, excluiu a cultura popular e o folclore. Apesar disso, as manifestações mantiveram-se vivas em atividades independentes de uma ação de abrangência nacional. A identidade regional assegurada pelo folclore e pela cultura popular permite, por assim dizer, costurar uma memória, inventar tradições e encontrar uma origem que religa os homens do presente a um passado, ou lhes atribuir um sentido à sua existência, como uma ponte com seu tempo (HOBSBAWM, 1984). Quanto à cultura popular e folclórica coletada por Heitor Villa-Lobos em sua obra, como uma busca por fazer uma música mais brasileira, observa-se que aquilo que se tem ou se considera mais brasileiro, no Nordeste e Sertão, é também estrangeiro. É de origem ibérica, indígena e de povos africanos, como também de outros povos que se fizeram de forma adaptada, tornando-se mais “original” no Brasil. Essa influência, seja em forma, seja em estilo, construiu características sociais que nos identificam com essa cultura. No pensamento e na obra de Villa-Lobos, vê-se presente, na história, um resgate ou uma satisfação de busca de identidade. A questão da identidade nacional ou regional, há muito comentada no século XX, teve sua continuidade a partir da construção de conceitos sintéticos e abstratos que procuram generalizar uma enorme variedade cultural e artística, de maneira a subjetivar as regiões, e em particular, o Nordeste e o Sertão. Foram estereótipos construídos e reproduzidos por meio da educação, da arte, da música, dos contatos sociais, dos hábitos, que contribuíram para pensar o real como totalizações abstratas. Foram discursos criados sobre a região, mas que a individualizam, sendo vista sempre de fora dela. Desse perfil, não descartamos um antigo regionalismo inscrito no interior da formação discursiva, entretanto, ele não permanece fechado em relação às descrições da natureza, das variações do clima e da vegetação, como fonte para explicar suas diferenças. Nesse processo, entendemos que, ao permanecer ou se debruçar sobre essas questões de identidade, seria o mesmo que ainda estar à procura daquilo que já se tem, ou admitir que não se tem, ou não considerar que tem, ou ainda, rejeitar aquilo que tem. Por isso, não iremos nos deter em tais questões, por entendermos que não mais cabem nas discussões contemporâneas, 47

porque, ao nos referirmos à questão de identidade, tratamo-la como acolhida, absorvida, pois assim a percebemos na obra de Villa-Lobos, em particular, nas Bachianas Brasileiras. Por essas vias, foram-se construindo estreitas relações entre a prática musical na importância de propagação de ideias nacionalistas com a finalidade de “educar e melhorar o gosto musical do povo brasileiro” (DUARTE, 2009, p. 28). Nesse contexto, os temas da cultura popular e do folclore tornam-se mais presentes na obra de Villa-Lobos, desde as primeiras obras, como os poemas sinfônicos Amazonas (1917) e (1917) e o Ciclo dos Choros (1920), passando por obras didáticas para o Canto Orfeônico até a composição da Série Bachianas Brasileiras (1930 a 1945). Os anos de 1930 também foram vistos como um importante período. Primeiro, por concentrar-se em estudos afro-brasileiros, reunindo pesquisadores em três importantes congressos de estudos de Antropologia, Sociologia, História, Folclore, Psiquiatria e Línguas19. Segundo, foi desse período um notório interesse pela cultura afro-brasileira, que coincidiu com o auge do movimento nacionalista na música brasileira, tendo entre seus líderes Mário de Andrade, que, em 1935, fundou um arquivo discográfico de folclore musical brasileiro, criado com a finalidade de servir aos compositores, com o objetivo de incorporar o folclore e a música popular às suas próprias composições. No arquivo da Missão de Pesquisas Folclóricas (1938), de Mário de Andrade, foi possível obter uma variedade de fonogramas de temas da cultura popular e folclórica do Norte e Nordeste do Brasil, permeada pela cultura portuguesa, afro-brasileira e ameríndia, que teve um financiamento do então Departamento de Cultura, em 1938. Para uma missão que parecia útil à cultura brasileira, Mário de Andrade deparou-se com o dilema da modernidade: ao mesmo tempo que as manifestações populares corriam o risco de desaparecer com a crescente urbanização do país, o avanço tecnológico da época proporcionava meios de capturá-las em discos, fotografias e filmes. Nesse jogo ambíguo entre a ameaça de destruição do fato e a construção de referências, o projeto adquiriu um caráter urgente e o levou ao Norte e Nordeste, em dois momentos: o primeiro, na década de 1920; e o segundo, na década de 1930. Dessas viagens, ele comenta, em Turista Aprendiz (ANDRADE, 2019), a aventura existencial e intelectual que marcou sua trajetória como pesquisador de

19 O primeiro congresso foi realizado na cidade do Recife, Pernambuco, em 1934, sob a liderança do escritor Gilberto Freyre, tendo como um dos idealizadores o poeta e folclorista, Solano Trindade, militante da fundação Frente Negra Pernambucana, Centro de Cultura Afro-Brasileiro, Teatro Experimental Negro. Seguido desse congresso, aconteceu o próximo, em Salvador, Bahia, em 1937. FREYRE, Gilberto. O que foi o 1º Congresso Afro-Brasileiro do Recife. In: FREYRE, Gilberto (org.). Novos Estudos Afro-Brasileiros. v. 2. Recife: Civilização Brasileira, 1937. p. 348-352. 48

campo e o convenceu da necessidade de deslocar-se ao Brasil profundo, a lugares onde as tradições culturais ainda não teriam sucumbido ao peso da industrialização. Salientamos, porém, que os projetos de direção nacionalista, como nation-ness, podem ser compreendidos como produto cultural, os quais têm diferentes significados e origens históricas que se transformaram ao longo do tempo, acompanhados por uma legitimidade emocional profunda (ANDERSON, 2011), resquícios do romantismo do século XIX, muito presentes na época e que se repetem dialeticamente. De acordo com esse autor, o nacionalismo como estratificação do conceito de nação oferece uma definição operacional estabelecida em três paradoxos: o primeiro referente à modernidade objetiva, sob a ótica dos historiadores versus a antiguidade subjetiva dos nacionalistas; o segundo, a universalidade formal da nacionalidade como conceito sociocultural versus a particularidade das manifestações concretas; e o terceiro, o poder “político” dos nacionalismos versus a sua pobreza e até sua incoerência filosófica, com questões repensadas durante os séculos XX e XXI. O nacionalismo, diferentemente de outros “ismos”, encontra no Brasil dos anos de 1930 terreno fértil na aplicação ou modelo de “brasilidade”, que reúne consigo diferentes aspectos identitários.

2.2.1 Sua influência na composição das Bachianas Brasileiras

Diante de um cenário nacionalista, Heitor Villa-Lobos, tendo passado a Semana de Arte Moderna de 1922 e uma breve temporada em Paris em contato com artistas vanguardistas, retorna ao Brasil e organiza concertos “a fim de elevar o nível musical brasileiro” (MARIZ, 1977, p. 34). Segundo o compositor, era preciso incentivar mais práticas artísticas, “apesar de sentir-se desanimado com o cenário musical do país, cercado de horizontes curtos e descrentes de seus próprios valores” (MARIZ, 1977, p. 34). Nessa perspectiva, a acolhida de temas do folclore veio quando Villa-Lobos estava imerso num contexto fruto de uma longa e lenta transição de interesses temáticos entre o final do século XIX e início do século XX. Nesse processo, os anos de 1930, que presenciavam as mudanças da Era Vargas nos ditames do Estado Novo, trouxeram incentivos a projetos sociais e artísticos, dos quais constava o que fora apresentado por Heitor Villa-Lobos: o projeto social a partir da música. O impacto de suas ideias proporcionou ao Brasil mudanças de recepção da música e da arte em geral, que durante o século XX deu-se não apenas como modernismo mas também como uma 49

nova concepção de música brasileira, sendo sua influência um marco de novidade e “refinamento” ao retomar o interesse pela cultura popular, tão urgente e necessário. É nesse contexto de interesses que se encontram as Bachianas Brasileiras, como forma alternativa discursiva de propor um novo/outro olhar para um lugar ou uma região, a partir de uma disposição de temas, que necessariamente não está aprisionada ao anteriormente estabelecido. Esse movimento também aponta para outros regimes de enunciação, de proposta para se obter diferentes percepções da região, com independência, ou ousadia, entre o que se construiu como imagem do Sertão e aquilo que ainda pode ser construído a partir das práticas musicais vivenciadas por Heitor Villa-Lobos. A Série Bachianas traz consigo significados políticos por estar imersa no nacionalismo, como também pela influência modernista, que buscava imprimir na arte brasileira aspectos que viessem a romper com os moldes colonialistas dos séculos anteriores. Apesar do discurso antropofagista e moderno do início do século XX, eram os modelos coloniais – como os neoclássicos, românticos e impressionistas – que se mantinham na música, mesmo tomadas as composições de atonalismo e polirritmia do modernismo. Quanto à sua utilização, não tornava esses modelos menos brasileiros, mas a música se compunha em um gênero que mais se aproximava do contexto em que fora criada. Como identidade regional, o elemento popular contido na obra não assume mais uma visão estática, de “pureza”, para resguardá-la em sua autenticidade regional contra os fluxos culturais cosmopolitas. Também não se apresenta mais aprisionada à sua forma museológica, mas em complexos com outras linguagens e estruturas, como os atonalismos e polirritmos presentes. Apesar da defesa do folclore, esse não caberia em como a obra foi escrita. O compositor busca, ao trazê-lo à superfície, revelar a essência da região para além da sua reserva emocional e da afirmação conceitual, mas, sobretudo, como um parâmetro e uma referência da expressão artística e mentalidade popular. Dessa forma, não seria posicionado como elemento regional de homogeneidades, mas como abertura a novas expressões artísticas que têm nele a sua fonte. Seria um elemento de integração com o todo regional, facilitando a absorção dessa identidade, não apenas com um discurso tradicionalista baseado na perpetuação de costumes e concepções mas ainda gerador de novas percepções e novos códigos sociais capazes de construir o novo, reinventar tradições, podendo perpetuar estados de “espírito”. Ao demarcarmos a cultura popular e o folclore como elementos nacionais, lembramos do redirecionamento. Durante as missões folclóricas de Mário de Andrade e as 50

pesquisas de Câmara Cascudo, especificamente sobre a cultura musical do Nordeste “profundo”, sobre o Sertão, em busca do que fosse mais “típico” ou “original”, depararam-se com uma historiografia colonial sob moldes populares, como cantigas, festas e contos. Nessa perspectiva, a identificação com a influência ibérica, indígena e de povos africanos foi reproduzida e readequada em quase processo de hibridação, recriando outro gênero musical da região. A música que se fez no Sertão guardou características muito específicas com os povos que contribuíram com essa cultura, porque estavam presentes não apenas na música, ou em fatos isolados, mas também nas manifestações culturais, com significados de uma ação conservadora que guardava características de suas fontes. Enfim, o que se pretendia como autóctone também era estrangeiro, porém, ressignificado em diferentes contextos. Algumas dessas características podem ser observadas no Prelúdio Introdução, da Bachiana de nº 4, em que não há informação específica da fonte brasileira, diferentemente do que ocorre no Coral Canto do Sertão e da Ária Cantiga, da mesma suíte. No Prelúdio, seus indicadores musicais encontram-se no uso de arpejos em tríade, sugerindo o que viria a acontecer nas demais peças citadas. Tomado de um modernismo estrutural de harmonia que traz uma atmosfera sonora cromática e intensa, a peça também se aproxima de um romantismo tardio e de um neoclassicismo por sua versatilidade na inclusão de temas folclóricos (KIEFER, 1986). O Prelúdio Introdução posiciona-se ao apresentar o que será continuado na suíte, e sua “brasilidade” aparece no lirismo das modinhas e nas serestas presentes no cantabile da melodia, em que “a seresta se caracteriza pela melodia cantabile romântica entrecortada por frases das cordas graves do violão” (PIEDADE; MOREIRA, 2007, p. 22). Nesse caso, há o binômio villalobiano: os traços da música de Bach e a influência singela da modinha e do choro, que o tornam plural no sentido do uso de elementos nacionais neoclássicos na composição. Essas são diferentes das características habitualmente esperadas da música brasileira, como a tradição rítmica oriunda do lundu, do jongo ou do samba com toda representação de vitalidade e energia da influência de povos africanos. O Prelúdio apresenta-se numa alternância entre a moda de viola e as serestas, mais relacionado com um sentimento introspectivo e emotivo, filtrado de modo nacionalista e neoclássico, ou um “nacionalismo eclético” (BÉHAGUE, 1994). Nele, residem procedimentos melódicos, com movimentos harmônicos em síntese de elementos folclóricos, como parte do modernismo de Villa-Lobos. Sob diferente posicionamento na Bachiana de nº 4, o Prelúdio Introdução, apesar de ser uma das primeiras peças compostas da Série, e com 51

todo apelo político de sua formação, apresenta-se como moderno, romântico e colonial, e parte da síntese musical que Villa-Lobos estava a apresentar como brasileira. No tema da canção popular “Ó mana deix’eu ir...” ou ainda na versão “Ó mana deix’eu ir p’ro Sertão do Caicó”20, do Cancioneiro Nordestino21, vimos como há nesse modelo muitas composições eruditas, das quais transparecem os padrões, a estrutura e o folclore de terras (ou regiões) percorridas pelo compositor, a fim de dar-lhes notoriedade e as aproximar da realidade. Tal efeito foi deliberadamente procurado durante o século XX com o surgimento das escolas nacionalistas de música (KIEFER, 1997; VOLPE, 2001). Ao observar a Ária Cantiga, percebe-se que traz ou possibilita a aproximação de um caráter incomum do povo brasileiro, latente na região Nordeste do país, repleta de sentimentos de bravura diante das misérias materiais, talvez como uma música “encantada” (SANTOS, 2004).

Ó mana, deixa eu ir, ó mana eu vou só. Ó mana deix’eu ir p’ro sertão do Caicó Eu vou cantando c’aliança no dedo. Eu aqui só tenho medo do mestre Zé Mariano Mariazinha botou flores na janela Pensando em vestido branco, véu e flores na capela22

Nas peças, as canções populares foram recriadas, ou serviram de base rítmica a fim de perceber, sob outros prismas, novas realidades. No Brasil de meados do século XX, esse espírito de uma “música nova” encontra-se na obra Villa-Lobos como inspiração baseada no folclore e misturada às influências de Debussy, Strawinsky e Bach. Nessas obras, nota-se a presença da musicalidade folclórica, o que confere à música nacional sua dignidade, e consequentemente, sua objetividade. Ao revisar criticamente a inclusão das canções populares na obra de Villa-Lobos, por sua aproximação com a realidade, e por atender politicamente ao nacionalismo, vê-se como essa foi uma forma de somar esforços para o entendimento e a clarificação da obra sobre seu olhar para a região (DUARTE, 2009). Apesar de aparecerem lacunas deixadas pelo compositor, observa-se que, em seu todo, refere-se à região, isso porque sua obra precisa uma

20 A canção popular Itabaiana foi recolhida no Cancioneiro Nordestino, como também se encontra recolhida do Folclore por Teca Calazans e gravada por Milton Nascimento como Cantiga de Caicó, na versão (Tradicional com adaptação: Villa-Lobos – Teca Calazans – Milton Nascimento) e também por Alceu Valença em Porto da Saudade (Alceu Valença – Refrão do Folclore Nordestino). A canção ainda foi gravada pela dupla sertaneja, Pena Branca e Xavantinho, no álbum Cio da Terra, lançado em 1987, pela gravadora Continental (1.71.405. 648), na 6ª faixa, remasterizada em 2017. 21 O Cancioneiro Nordestino teve o recolhimento de temas folclóricos por Mário de Andrade, organizado e divulgado após 1938. 22 Santos (2004). Parte do texto da canção popular recolhido no Cancioneiro Nordestino por Mário de Andrade. 52

revisão e confrontação a respeito da realidade que descreve, ou imagina, porque “qualquer trabalho escrito, seja livro, jornal, revista ou um simples anúncio, antes de ser publicado tem que ser um minunciosamente revisado, mesmo em se tratando de grandes autores” (DUARTE, 2009, p. 29). No caso de Villa-Lobos, em sua busca por descrever um lugar, uma realidade, dando-lhes trações do cotidiano, o autor não admite que tenham ocorrido “erros”, mas sim um esquecimento, diz: “erro é um termo muito forte quando se trata de compositores geniais” (DUARTE, 2009, p. 30). Para a referência à canção popular e sua dimensão social, há de ter a necessidade de estudar não apenas a partitura mas também o contexto, e, assim, “poder limpar os incômodos e lapsos, sendo este o objetivo de fornecer o que viria ser mais próximo da ideia do compositor” (DUARTE, 2009, p. 40). A canção popular utilizada na Ária Cantiga (Partitura 1) está baseada em um tema sertanejo de origem indígena do estado da Paraíba, também chamado de canção Itabayana, em que há contrações e supressões de consoantes e vogais como “Deix’eu ir pr’o Sertão”, como consequência de pronúncias comuns da região. No intuito de produção do imaginário da região, o tema trazido na obra não está isolado da sua estrutura formal e harmônica a fim de aproximar ou produzir identificações e afetos com a região observada.

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Partitura 1 – Ária Cantiga – Bachiana nº 4

Fonte: Marun (2010)

A Ária Cantiga foi escrita na tonalidade de Fá menor, inicialmente para piano solo, em 1935, e transcrita para orquestra em 1943, que, em tempos nacionalistas, apresenta-se para o país como uma “redescoberta” da região Nordeste e do Sertão, como relembra “Ó mana deix’eu ir...”. A peça musical se desenvolve em diferentes andamentos e estruturas, ora Moderato a quase Lento, ora em Vivace, sem perder de vista o mesmo material temático da primeira parte. O tema está marcado na linha (Partitura 1). A saliência do tema presente na Ária Cantiga conduz não apenas a referência ao lugar mas ainda ao lugar deixado, revisitado, o lugar da saudade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011), trazido em tonalidade menor em seu ethos, como o refúgio, do encontro consigo mesmo, das relações e dos afetos. Essa é uma referência subjetiva, parte do processo cognitivo da música na construção de sua imagem e racionalizada em sua escrita. Trata-se de uma região que surge na paisagem imaginária, descrita no final da primeira década do século XX, substituindo a antiga divisão regional do país entre o Norte e Sul, fundada, assim, na saudade e na tradição. 54

Nesse espaço de “saudade”, encontra-se o tema Cantiga, que soa em quase ad libitum, com liberdade de conduzir a peça musical dividida nas partes A - B - A. O tema da canção “passeia” livremente na parte A em andamento Moderato, até que, no segundo momento, ou parte B, segue em Vivace, de modo que aparece um baião rico e enérgico mostrando o que é e por que está presente na peça. Desse modo, apesar de favorecer esse espaço de “saudade”, o Sertão está ali, nas raízes, demarcado vivamente em seu ritmo de “raiz”. É em retorno à parte A da peça, com o tema da canção popular, a tempo primo um pouco mais lento e até ritardando, trazendo à superfície o que realmente importa: ouvi-lo, ouvir sua melodia em Ária, como seu ápice, um folclore não aprisionado ao museu das memórias, mas capaz de ser trazido, modificado, (re)pensado como força erudita. Segundo Nóbrega (1971), o folclore admite essa coerência da transformação de um documento por fora da contribuição erudita. Nisso vemos que o tema nordestino abriga conhecida constância melódica do populário musical, o modo menor com alteração no 7º grau, a 7ª abaixada, uma alteração chamada de “escala nordestina”. Na versão orquestrada de 1943, na Ária Cantiga, Villa-Lobos utilizou refletidamente o solo do clarinete depois do corne inglês, doce e solene, expondo o tema em cantabile, com harmonização clássica, sendo frequente o emprego de baixos descendentes, que muda de andamento com uma agitada palpitação do ritmo de baião, em timbres festivos em staccato e pizzicati, com os flautins e violinos, fazendo lembrar as bandas de pífanos do Nordeste, que serão mais detalhados e ampliados na seção 5, em As Bachianas Sertanejas. A considerar os aspectos anteriores elencados, reconhecemos a influência do folclore na música. Mas, esse é um dado construído e também abstrato de tratar as Bachianas Brasileiras Sertanejas como um reflexo desse regionalismo. Isso significa percebê-las cognitivamente, por trazer aspectos da região, do compositor, do contexto, por meio do seu status de arte. Não significa apresentar a sua “verdade”, mas sua interpretação do Sertão, que não precisa ser exatamente regionalista, mas, sobretudo, artística e livre de estereótipos.

2.4 VILLA-LOBOS, QUEBRANDO ESTEREÓTIPOS DO COMPOSITOR

Segundo biógrafos (MARIZ, 1989; MAIA, 2000), das viagens realizadas por Villa- Lobos não lhe passaram desapercebidas as modas de viola do Espírito Santo; os jongos da Bahia; os aboios, cocos e emboladas de Pernambuco, gêneros que tomaram parte em sua obra, como percepção direta da musicalidade brasileira. Das regiões percorridas, vê-se um especial 55

material recolhido do Nordeste, cujo ambiente musical o compositor procurou reproduzir por meio de seus escritos estando este presente em Cânticos Sertanejos (1918). Após extensas viagens pelo Brasil, ele retorna ao Rio de Janeiro e não dá as costas à formação acadêmica, ainda por uma prestação de contas ao seu pai, Raul Villa-Lobos23. Entretanto, decide fazer música do seu jeito, entre o popular e erudito. Queria estudar a musicalidade diversificada do Brasil, à sua maneira, prática e direta (MARIZ, 1989; MAIA, 2000). A região Nordeste foi motivo de percurso, não apenas de “exploração sonora” mas também de turnês com um pequeno grupo instrumental na companhia de operetas, principalmente nos estados de Pernambuco e Ceará (MARIZ, 1989). O compositor, Heitor Villa-Lobos, como “estranho” nesse processo, deparou-se com a música de cantadores cearenses, que o inspiraram à reflexão sobre aquele lugar, muito mais que uma definição de regionalidade, era uma diferente “brasilidade” que o atraía. Para Villa-Lobos, o acorde maior não precisava ser perfeito, mas um pouco “frouxo” na sua afinação, para, assim, soar mais “local” diante da paisagem dramática e diversa (MARIZ, 1989; MAIA, 2000). Ele afirma que, no Ceará, cantava-se de uma maneira diferente, utilizando um quarto de tom, que parecia desafinado, diferentemente do diapasão normal a que estava habituado. No entanto, não parecia assim tão mal, porque lhe causou profundas reflexões que o inspiraram a compor o mais próximo possível do que escutava. “É por este motivo que escrevo música dissonante, não escrevo para parecer moderno [...], é a consequência dos estudos que fiz, da síntese de uma natureza como a do Brasil” (VILLA- LOBOS apud MAIA, 2000, p. 15). Essa experiência musical rendeu marcas na obra de Villa-Lobos como faces de vários “Brasis”, constituindo a essência de seu estilo. Deixou transparecer nas composições tendências naturais das diferentes influências étnicas do país, que, em algumas partes das Bachianas Brasileiras, salienta o Nordeste, e, em particular, o Sertão. Apesar de ele ter percorrido os estados de Mato Grosso, Minas Gerais e Goiás, e os estados do Sul, volta-se ao Nordeste. De suas idas e vindas, deu especial atenção ao Norte e Nordeste, por conter nessas regiões menos “resquícios europeus de colonos alemães e poloneses e o espanholismo vindo do Prata, que o deixavam confuso” (MARIZ, 1977, p. 41). Como a questão de investigação repousa sobre compreender a visão dada ao Sertão nordestino por Heitor Villa-Lobos, não é possível separá-lo de sua ação em relação aos aspectos estético e político (RINGER, 2003) como também de estereótipos dados ao

23 Raul Villa-Lobos, funcionário da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, crítico do governo de Floriano Peixoto, e músico amador. 56

compositor. Quanto ao aspecto estético, isso se refere à inclusão de temas da música popular e folclórica brasileira aliados às características técnicas de Johann Sebastian Bach na obra, já explicadas anteriormente; e às características políticas, por seu idealismo nacionalista de resgate da cultura popular desde o modernismo (1920) até a Era Vargas24 (1930). Esses dois momentos posicionam-se como pressupostos históricos da composição da obra: o primeiro, em que há uma música de intensões modernistas, pelo uso de temas do folclore brasileiro; e o segundo, em que essa música está igualmente enquadrada no nacionalismo político do governo de Getúlio Vargas. É nesse contexto que a Série Bachianas Brasileiras é composta, um período de considerável entusiasmo popular dado o avanço de leis trabalhistas no Brasil que acompanhou, em parte, a tendência do integralismo estadonovista que fortaleceu o Poder Executivo, as Forças Armadas e instalou a burocracia civil como forma de controle da sociedade. Esse formato estimulou as relações trabalhistas por meio de avanços no progresso de industrialização, basicamente atendendo às necessidades internas, antecipando e ampliando o crescimento urbano do país, em que crescia o populismo de Getúlio Vargas com a solidificação do plano de redemocratização (JARDIM, 2005; VIEIRA, 2015). Diante do contexto de integração nacional fomentado pela cultura, foram estruturados e postos em prática projetos sociais aliados a uma educação moral e cívica, incluindo o desporto e as artes. É desse contexto que faz parte Heitor Villa-Lobos, com um projeto de educação social a partir da música. A proposta do projeto consolidou-se com a divulgação do Canto Orfeônico nas escolas públicas, o que, consequentemente, favoreceu a formação de professores de música. A implementação desse projeto levou o compositor a assumir a Superintendência de Educação Musical e Artística – SEMA, com o apoio do então ministro da Educação, Gustavo Capanema, durante o governo de Getúlio Vargas. Trata-se de dois períodos históricos próximos e também opostos ideologicamente. O primeiro, os modernos anos 1920, que coincidiram com a fundação do Partido Comunista Brasileiro, sendo acatado por vários artistas, inclusive por Villa-Lobos; e segundo, o Estado Novo e a ascensão do populismo de getulista, tornando, assim, inevitável uma tensão entre as esferas política e estética, como resultado do homo politicus que vivenciou momentos extremos, buscando em ambos adequar-se com sua arte, compreender seu tempo e também ser compreendido.

24 Referente ao então Presidente do Brasil Getúlio Vargas, nos períodos de 1930 a 1945, que prossegue até 1959. 57

Na trajetória da sociologia do músico, Norbert Elias (1995) relembra, ao descrever Mozart, que almejava – em sua existência social, passando por glórias e fracassos – os significados que a vida lhe conferisse e os desejos mais profundos a ser satisfeitos, e seu encaixe social nem sempre vantajoso. Como Villa-Lobos, seu encaixe social nem sempre foi fácil nem possível, porque, na condição de homo politicus e homo ludicus, tinha em sua música duas fontes que alimentavam sua sede em compor: o amor pelo Brasil e pela educação musical como instrumento de transformação social. Por algum tempo, ele reuniu em sua obra essas aspirações, sendo que ambas ocupavam o lugar mais alto na hierarquia de seus desejos (MARIZ, 1989), passando por ajustes e encaixes nem sempre compreendidos e de bom porto. Segundo seu biógrafo mais próximo (MARIZ, 1989), há muitas razões para se crer que, em seus últimos anos, passada a composição da Série Bachianas Brasileiras, e nos anos de 1950, com obras mais sinfônicas e outras dedicadas ao cinema estadunidense, ele teria quase alcançado sua plenitude, ou compreensão de um Brasil que trazia em sua obra. Mas nem sempre foi assim, sendo construída uma longa e nem tão vitoriosa trajetória, como músico de excelência que foi. Apesar de ter sido considerado um músico popular, pela livre formação e informalidade, na pesquisa, vimos o quanto é arrojada a sua escrita. Ao trazer o tema da canção popular, contribui para desfazer o estereótipo de que era um músico mais intuitivo que erudito, que tinha pouca formação acadêmica, e que parte do sucesso de suas composições25 deveu-se a revisões e acabamentos estéticos de sua primeira esposa, Lucília Guimarães, que era pianista (PINTO, 2010). Heitor Villa-Lobos convivia entre dois mundos, dois espaços musicais distintos. Por um lado, estava com músicos na noite carioca; por outro, também tocava em orquestras, separando-se, assim, dos músicos amadores (MARIZ, 1989; MAIA, 2000). Segundo seus biógrafos, essa foi uma época em que ele apresentava grandes dificuldades na transcrição para partitura, sua liberdade harmônica e rítmica vinda da livre formação aliaram-se ao rigor da formação da esposa, que, além de dar-lhe suporte estético às composições, era considerada uma excelente intérprete (PINTO, 2010). Lucília Guimarães Villa-Lobos, como mulher, naquele contexto, não tinha direitos políticos garantidos, e adotou uma postura de coadjuvante da história com Villa-Lobos. “Juntos, desenvolveram o projeto de ensino do canto orfeônico nas escolas, e fizeram parte de

25 Composições entre 1914 e 1915, como os poemas sinfônicos Uirapuru e Amazonas. 58

uma geração de intelectuais, que buscou o apoio do Estado, para a realização dos seus principais projetos educacionais no campo musical” (PINTO, 2010, p. 5). Mas, a partir da década de 1920, durante o movimento modernista, Villa-Lobos trabalhou acirradamente em sua obra. Não se sabe ao certo se para mostrar o que realmente era capaz, e pôr em papel a sua música, ou parte do que ela representava, tornando-se um dos principais compositores do século XX, com vigorosa produção. Segundo Kiefer (1986), essa era uma consequência da vida musical do Rio de Janeiro entre 1900 a 1922, a Belle Époque carioca, com tendências do impressionismo e nacionalismo ligado a folclore, polivocalidade, atonalidade, expressionismo, serialismo, neoclassicismo, que, entre outros movimentos, tiveram em comum o “antirromantismo” mais tradicional e um romantismo tardio. A utilização do folclore como fonte de criação não era novidade, uma vez que já havia sido usada por um grande número de compositores, como fora dito anteriormente. Além do impressionismo, havia também a tendência neoclássica e o sistema dodecafônico26 usados por Igor Strawinsky (1882-1971). Esse panorama moderno vivido por artistas europeus chega ao Brasil, por suas próprias vias, e se desenvolve sob uma estética singular, tomando maior dimensão com o movimento modernista. Parte da ideia de que Heitor Villa-Lobos não tinha formação técnica, explica Salles (2017), advém do fato de ele não ter concluído estudos formais, diferentemente de outros compositores brasileiros, como Carlos Gomes (1836-1896), que teve parte de seus estudos em Milão e em Paris. No entanto, como autodidata, estudou a fundo a obra de Claude Debussy (1862-1918) e de Igor Stravinsky (1882-1971), “ao mesmo tempo que vivenciou o universo da música popular, ao tocar não apenas nas rodas de choro, mas também com seresteiros” (SALLES, 2017, p. 82). Ademais, a experiência com os músicos que tocavam choros e serestas fez parte do seu processo de aprendizagem e foi incorporada aos procedimentos de composição, combinada com o conhecimento da música clássica europeia. Um dos elementos que permite comprovar o apuro técnico de suas composições é o conceito de simetria, que aparece em diferentes trabalhos, inclusive nos quartetos de cordas e nas sinfonias. A esse respeito, Salles (2017, p. 82) afirma que: “Villa-Lobos se preocupava em criar estruturas musicais equilibradas ritmicamente e harmonicamente, da mesma forma que compositores europeus formados em conservatórios”. Aliado ao seu empenho estava o espírito nacionalista e romântico, mais que modernista, como fora considerado. Em entrevista para a Gazeta de São

26 O Dodecafonismo (doze sons) é um sistema de organização de alturas musicais criado na década de 1920 pelo compositor austríaco, Arnold Schoenberg. 59

Paulo, em 1948, Villa-Lobos não omite seu idealismo, quando revela ter sido atacado inúmeras vezes por não omitir sua opinião sobre o país.

Não entendem os meus detratores que quando eu aponto o que acho errado no Brasil, estou simplesmente colaborando para que se corrijam erros e se transforme a nossa Pátria na Terra Ideal com que todos nós, os seus filhos, ansiamos de todo o coração. Aliás, não admito que ninguém seja mais brasileiro que eu. Honro-me de ser um artista feito exclusivamente no Brasil, onde estudei e onde me fiz, não tendo mesmo nem sequer me aperfeiçoado no estrangeiro, como é de hábito entre nós. Por isso, os sucessos, ou melhor, as vitórias que porventura tenho conseguido, são sucessos do Brasil, vitórias integralmente nossas, que me dão mais e mais força para apontar os erros comuns em nossa terra (SCHIC, 1989, p. 174)27.

O compositor continua, num discurso romântico nacionalista, em 1951, na cidade de João Pessoa:

O Brasil já tem uma forma geográfica de um coração. Todo Brasileiro tem esse coração. A Música vai de uma Alma à outra. Os pássaros conversam pela Música; eles têm coração. Tudo o que se sente na vida se sente no coração. O coração é o metrônomo da vida. E há muita gente na Humanidade que se esquece disso. Justamente o que mais precisa a Humanidade é de um metrônomo. Se houvesse alguém no mundo que pudesse colocar um metrônomo no ‘cimo da Terra’, talvez estivéssemos mais próximo da Paz. Por que se desentendem, vivem descompassados Raças e Povos? Porque não se lembram do metrônomo que guardam no peito: o coração. Foi fadado por Deus justamente no Brasil possuir uma forma geométrica de coração e haver um ritmo palpitante em toda a sua Raça (MACHADO, 1987, p. 93).

Assim defendia-se o compositor, deixando para traz, com seu discurso e postura idealista, um pouco mais de crítica em relação ao seu contexto e seu trabalho, e se orgulhava:

Nunca na minha vida procurei a Cultura, a Erudição, o Saber; e mesmo a Sabedoria nos Livros, nas Doutrinas, nas Teorias, das Formas Ortodoxas… nunca! Porque o meu Livro era o Brasil. Não o Mapa do Brasil na minha frente, mas a Terra do Brasil, onde eu piso, onde eu sinto, onde eu ando, onde eu percorro (MACHADO, 1987, p. 94-95).

A citação da autora, que traz parte do discurso de Villa-Lobos, mostra o quanto ele valorizou, como pouquíssimos músicos no mundo, a música folclórica de seu país, tornando- se artista ainda mais notável (MACHADO, 1987). Como se orgulhava de ser um compositor erudito e também popular, com ritmos como o chorinho, música folclórica e caipira, e como gostava de anunciar, ele buscava captar a “alma” brasileira do povo do Sertão. Apesar de toda demonstração da cultura musical nacional, nem sempre foi assim, além de seus revisores, houve trabalho acurado para tornar-se o que é ainda nos dias de hoje. Nesse sentido, o que nos parece é que nem sempre aquilo que se diz sobre o compositor tenha sido o que realmente é.

27 De acordo com Schic (1989, p. 174), a citação de Heitor Villa-Lobos foi publicada na Gazeta de São Paulo, no dia 18 de janeiro de 1948. 60

Tomando brevemente uma estrada paralela à exposição do tema em tese, se contextualizarmos o discurso apaixonado de Villa-Lobos, pouco veríamos desse sentimento de brasilidade no século XXI, e mais recentemente na última década. Apesar do amplo acesso a toda mídia musical, ouvimos muito, mas escutamos pouco, por estar cada vez menos a nossa escuta direcionada à reflexão, e sim à fugaz ação, e consequentemente, compreendemos menos, refletimos menos. Se nos emocionamos, é pela degradação moral e pela cristalização de atitudes, visto que o brasileiro, como homem comum, menos acata para sua vida do que absorve. É uma realidade que a cada dia nos afasta do amor ao país como nação, e, consequentemente nos isola ou polariza sentimentos que em nada contribuem para uma mudança genuína. Não é mais possível aceitar que “somos assim”, como antigos ditames positivistas amparados pela medicina de Nina Rodrigues, presentes há mais de um século, e aceitar tal condenação histórica e cultural. Porque também não aceitamos modelos de governos, sobretudo nas últimas décadas, que já não nos servem mais há anos, que envergonham, e que fazem do país um lugar atrasado socialmente. Um governo que encobre a violência com justificativas, a fim de relativizar tudo e criminaliza a vítima, que vive uma pseudodemocracia. Ao chamar ao diálogo, chama ao desrespeito às posturas, não admitindo o livre trânsito das ideias, mas a perseguição delas, e discrimina as diferentes opiniões, sejam políticas, sejam religiosas. Ademais, sacraliza a liberdade e esquece que isso passa pelo cumprimento de deveres, de respeito às instituições, aos valores éticos e morais; e busca melhores condições sociais, mas fecha os olhos à corrupção que maculou o país. E nisso vemos reproduzir a antiga a expressão: “são assim mesmo os trópicos!”. Esse modelo não interessa ao futuro, não interessa às atuais e às próximas gerações. O discurso de Villa-Lobos certamente seria outro, por querer apontar os erros, não encobrir o passado nem alimentar um estereótipo, seja dele mesmo, seja do Brasil. Esse comportamento, certamente, não mais se admite, e olhar para frente sempre implica ver as coisas de frente, sem véu, o que há de se enfrentar. Ouvir, investigar aspectos múltiplos nas Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos também nos revela o que somos e ainda o que poderemos ser, não necessariamente em repetição a conceitos pré-elaborados, cristalizados, reproduzidos, sustentados e aceitos. Essa é a importância de ouvir o passado para pensar o presente e o futuro, pensar, repensar e agir com o que temos, com as boas e más heranças ibéricas, indígenas e africanas que constituem não apenas o mito das três raças mas também de muitas raças que no Brasil habitaram, de outras que se refazem na história. Para manter-se, gastam muito, muito tempo, 61

esforço, e igualmente nos desgastam. Ouvir as Bachianas Brasileiras, escritas em meados do século XX, pode nos conduzir nesses quase meados do século XXI às múltiplas narrativas culturais que fazem do Brasil uma nação, e que isso nos traga um olhar e uma atitude positiva para o futuro, o que já se constitui um grande esforço, mas, certamente, é para onde caminhamos. Buscando desfazer o estereótipo de que Villa-Lobos fora um compositor mais intuitivo que erudito, na composição das Bachianas Brasileiras, e especificamente na Ária Cantiga, observa-se o uso consciente de acordes e harmonias, entre o tema da canção popular escrita sob o modelo de Bach. Ele constrói a obra comprovando tal habilidade e destreza vistas nos quartetos de cordas na fase seguinte do compositor, inclusive com composições para o cinema norte-americano dos anos de 1950. Villa-Lobos traz o tema do Sertão com sua força regional quando salienta o baião, mas também o traz desfazendo estereótipos próprios e da região. O baião aparece com acentuações irregulares e “fora do lugar”, do 1º tempo habitual do ritmo, dando uma impressão jazzística na parte B da peça. Desse modo, ele tira o lugar comum, promovendo outro movimento ao ritmo, sem distanciar-se dele. O compositor traz o tema, aproxima-o de uma realidade observada sob seu ponto de vista. Assim, imagina sua obra de forma diferente, que não precisa ser mudada para ser vista de outro modo, mas aberta a outras formas. Trazer o tema à superfície é apresentá-lo no tempo e no espaço, que na episteme clássica eram vistos como antagônicos, mas que, na obra, encontram-se, inclusive nas espacialidades, sendo, por vezes, uma consonância ou dissonância entre o visível e o dizível da região. Ao investigar essa obra musical, não nos importa buscar uma “verdade” sobre o Sertão, ou sua verdadeira interpretação, mas perceber como sua imagética funciona, seja dentro, seja fora das fronteiras. É bem certo que a melodia da canção popular “Ó mana deix’eu ir...” ou canção Itabayana, que perpassa a Ária Cantiga da Bachiana nº 4, contribua para lançar a ideia de Sertão, e até localizá-lo entre os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte, mas também pode trazê-lo ao interior do Estado de Minas Gerais, por ter sido a canção amplamente divulgada na voz de Milton Nascimento durante o movimento mais febril da música popular brasileira, a MPB, quando do resgate de canções populares de cunho folclórico, dando-lhes o viés modernizado. Com isso, observamos que a música continua a mesma, causando ou não identificação com o lugar ou com outros lugares. A partir de seu tema, o que muda é o alcance, é a capacidade de formular ideias, imagens sobre a região. 62

Isso acontece porque a música, como arte, pode ser mudada permanecendo a mesma, com a possibilidade de ser percebida sob diferentes vieses, não contendo nela uma única verdade sobre a arte. Por ser essa uma criação humana, é passível de diferentes construções históricas e culturais, sendo necessário, para cada período, um novo ou outro fazer, ouvir e refletir. Como ciência, é descrita, calculada, mensurada, o que contribui com aquilo que interessa transmitir, ou sugerir. Apesar dos estereótipos sobre o compositor, sua escrita foi capaz de construir um imaginário sobre o Sertão, tomando diferentes conceitos regionais e a enorme variedade cultural.

63

3 PRELÚDIO: O SERTÃO DAS BACHIANAS

A cultura musical do sertão se aproxima das melopeias mouras com uma impressão indefinível de sons que se misturam com palavras faladas (CASCUDO, 2001, p.35).

A singularidade da cultura musical do Sertão deve-se, sobretudo, à contribuição da miscigenação de povos que ocuparam o espaço, como portugueses e espanhóis, com modinhas e arabescos mourísticos aliados aos cantos indígenas e ritmos africanos, fazendo nascer estilos marcantes para a região, como aboio, baião, emboladas, maracatu rural, toada, xote, xaxado, acompanhados, em sua maioria, por instrumentos e danças em festejos sazonais. Dos ritmos e práticas musicais mais características e expressivos do Sertão nordestino, estão o baião, o forró, o xaxado e a embolada.

3.1 ASPECTOS MUSICAIS DA REGIÃO ENCONTRADOS NAS BACHIANAS BRASILEIRAS

É muito provável que a dança baião (Figura 4) tenha se originado a partir da influência de danças africanas como o lundu, o calango e o batuque; e de danças de origem ameríndia, como o cateretê, em tupi, uma dança de roda (CALDAS, 2010). Similarmente, está o caruru, em tupi-guarani, uma dança de origem religiosa, também encontrada no pantanal no estado de Mato Grosso. Essa acontece em roda como um ritual, onde cantor e violeiro saúdam o divino citando versos bíblicos entre histórias populares. “As danças são acompanhadas de palmas pelo público, que seguem sugerindo temas em desafio numa disputa de versos improvisados, com regras de rima muito semelhante aos trovadores medievais” (CALDAS, 2010, p. 10).

Figura 5 – Ritmo do cateretê, caruru e calango (próximos ao baião)

Fonte: Medeiros (2014)

Apesar da influência indígena dos ritmos do cateretê, caruru e calango, foi a dança africana lundu que mais definiu o baião. Tanto no ritmo quanto na melodia, essa influência foi 64

devido à ampla miscigenação ocorrida nos séculos XVIII e XIX, provocando uma hibridação musical no país (FRYER, 2000; CALDAS, 2010). Segundo Fryer (2000) e Caldas (2010), a influência dos povos africanos enriqueceu a cultura brasileira. Nesse sentido, salientamos as danças vindas de Porto Luanda, em várias formas de lundu. A essas danças foram incorporados os ritmos indígenas, dando ao lundu uma posição de importância na música brasileira. Por formar uma base rítmica, durante o período colonial, o lundu foi chamado de “afro-brasileiro”. Se por um lado, a dança tornou-se cultura brasileira, por outro, foi vista como indecente por seus movimentos coreográficos. Gregório de Matos Guerra descreve-a como uma dança de simples de batuque negro, possuindo “algo” sutil e erótico (CALDAS, 2010).

Formou-se um círculo. O violonista sentou-se num canto e começou uma melodia simples que foi acompanhada por uma música favorita, cujo refrão foi repetido várias vezes. Um homem entrou no centro e dançou por alguns minutos, usando movimentos lascivos, até que escolheu uma mulher que então, veio para a frente e tomou a sua vez em movimentos, igualmente, indecentes. E, assim, a diversão continuou até o amanhecer (KOSTER apud FRYER, 2000, p. 120).

Desde que chegaram ao Brasil, mais de quatro milhões de povos africanos oriundos de vários reinos e monarquias tribais – da região sudanesa, os iorubas; como também da região banta – foram responsáveis por valiosa contribuição cultural para o país, especificamente por sua musicalidade (FRYER, 2000). A região sudanesa, que compreende os países localizados ao longo da costa atlântica Ocidental africana, vai do Senegal até o Golfo de Benin, na Nigéria. Da região banta, a área abaixo da linha do Equador, vieram principalmente, de Angola e do Congo, os povos bantos, cuja importância histórica se reflete nos autos populares denominados de congos e congadas (CASTRO, 2005). “Os africanos da diáspora não puderam livrar-se da influência do ambiente físico e social do lugar para onde haviam sido transportados. Sua língua e seus costumes mudaram, seus valores e objetivos transformaram-se” (HARRIS, 2010, p. 153). No Brasil, a tradição e a cultura desses povos deixaram marcas importantes para o desenvolvimento das manifestações culturais locais, “porque o povo aprende e assimila as manifestações culturais de forma natural e transmite esse aprendizado nas mais variadas formas de expressão” (CALDAS, 2010, p. 153). Tal mudança foi constatada durante os séculos XVI e XVII, quando houve uma hibridação de manifestações musicais entre africanos e portugueses. Ambos, que participavam de manifestações particulares, realizavam ações fora dos padrões impostos pelos jesuítas e pelas festas de calendário religioso (TINHORÃO, 2008). “Os africanos e crioulos também organizavam suas próprias festas em horários e dias 65

de folga, onde cantavam, tocavam seus instrumentos e dançavam, sendo estas denominadas de batuques” (TINHORÃO, 2008, p. 32). O autor descreve os “batuques” como “reuniões ruidosas que não se configurava como baile ou folguedo, mas uma diversidade de práticas religiosas, com danças, rituais e formas de lazer” (TINHORÃO, 2008, p. 55). No crescimento dessas manifestações, foram incorporados novos instrumentos, coreografias, cantos e estilos de danças que deram origem a diversos tipos de manifestações brasileiras, a saber: bumba-meu-boi, capoeira, jongo, coco, tambor de crioula, samba e variações das festas de coroação de Reis, congada e maracatu. Em algumas dessas manifestações, a umbigada era parte da coreografia dos batuques, um movimento corporal que caracterizava vários folguedos – brincadeira, divertimento, festa ou dança popular de cunho folclórico ou religioso – e rituais de negros, crioulos e mestiços.

Os dançarinos (homens e mulheres) aproximavam-se de frente um para o outro, tremelicando o corpo apenas da cintura para baixo, para culminar no tal contato “imodesto”, ante os aplausos e gritos de estímulos dos presentes. Era esse aproximar dos ventres que permitia a aplicação quase imperceptível, da umbigada, traduzida da espécie de choque elétrico simulado, ao contato dos corpos, e que leva os dançarinos a pularem para trás, em salto simultâneo (TINHORÃO, 2008, p. 67).

Para Prado Júnior (2004), a permanência desses conceitos reflete uma visão um tanto preconceituosa quando se trata de camadas sociais e etnias menos favorecidas que compõem a sociedade brasileira. Ele reafirma que foram os povos indígenas e africanos que contribuíram para a formação brasileira, e sua contribuição vai além de uma energia motriz, que chama de “quase nula”. Não que deixasse de concorrer para a cultura brasileira, mas traz consigo o cabedal da selva americana e africana. “Age mais como um fermento corruptor da outra cultura. E a esta passividade aliás das culturas negras e indígenas no Brasil que se deve o vigor que a do branco se impôs e predominou inconteste” (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 271- 272). Mário de Andrade, no seu estudo sobre a música popular e folclórica brasileira, disse que foi com base no lundu que os povos africanos deram à música brasileira o melhor de sua musicalidade, como a sistematização da síncope e o uso da 7ª abaixada, dando origem à escala nordestina (Figura 5), uma denominação popular para alguns tipos de escalas exóticas comuns no baião e no xote (ANDRADE, 1972). Visto que não se conhecem outras referências ao termo, na prática, a denominação dessa escala é proveniente de três escalas musicais distintas: duas modais, em seu formato moderno; e uma exótica.

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Figura 6 –Modelo de organização musical que deu origem à escala nordestina

Fonte: adaptado de Wikipédia28

É a característica melódica da 7ª abaixada do modo mixolídio, que se denomina a escala nordestina, como também o ritmo sincopado. Fryer (2000), ao examinar a história de vários ritmos brasileiros, liga-os às suas origens africanas numa perspectiva útil para compreender como as raízes do baião fizeram dele um gênero musical nacional e popular. Para o autor, essas considerações são fragmentos deixados de diversas fontes, inclusive da tradição oral, que dão testemunho da execução das danças lundu e baião, sendo possível entender as similaridades e as conexões entre elas. Em 1859, o botânico brasileiro François Freire Alemão (1797-1874) visitou o Ceará e viu uma dança que chamou de “baiana” (literalmente, mulher da Bahia) que era dançada numa casa com telhado de sapê e, apenas, pelos homens, todos jovens, acompanhada pelo violão. Os participantes dançavam sozinhos, ou em pares, executando passos ágeis e difíceis, com posturas, ora graciosas, ora grotescas, enquanto cantavam (CUNHA; DAMASCENO apud FRYER, 2000). Fryer (2000) formula a hipótese de que essa dança seria a versão nordestina do lundu, conhecida como lundu baiano, ou baião. Tanto no lundu como no baião, um círculo era formado pelo público e, no centro, os dançarinos formavam pares, homens com mulheres, improvisando movimentos rápidos e acrobáticos de pernas e pés, acompanhados pelo violão. A música deixava espaço para os cantores improvisarem melodias, às vezes, em forma de desafio, entre as sessões de dança, como se fossem interlúdios musicais. O baião, no início do século XX, foi bastante diversificado, tomando diferentes formas de execução instrumental. No estado de Sergipe, era acompanhado por violão e

28 Arnie: The mixolydian mode/Dominant seventh scale en Mel Bay's Encyclopedia of Scales, Modes and Melodic Patterns. Mel Bay, 2003. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Escala_nordestina. Acesso em: 28 mar. 2019. 67

pandeiro; na Paraíba, por botijão; e no Maranhão, por rabeca. Denominado igualmente como dança, o baião podia ser executado tanto por um único indivíduo como por dois, três e até um grupo maior. “A substituição dos solistas podia ser efetuada por meio da umbigada, por castanholas de dedos, por um cumprimento executado diante daqueles que deviam ser substituídos ou jogando um lenço da sorte” (FRYER, 2000, p. 130). Sobre as aproximações e semelhanças entre o lundu e o baião, apresentamos uma transcrição feita por Karl Friedrich Phillip Von Martius29 (Figura 6), na qual se notam elementos similares com transcrições das músicas de Luiz Gonzaga30, como a sequência rítmica de colcheias e semicolcheias, e na melodia a 7ª abaixada, anteriormente descrita Mário de Andrade, caracterizando uma escala de Mi mixolídio (modo): mi, fá #, sol #, lá, si, dó#, ré, mi.

Figura 7 – Base do ritmo de baião

Fonte: baião/zabumba por Von Martius. Disponível em: https://encrypted- tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRnrMTKzK_T-dSKYMzxErTOkGW6m1gEF-1bBZUoEIWs-e8OaJr4. Acesso em: 28 mar. 2019

Após adaptações instrumentais e coreográficas, o padrão rítmico que consiste no baião é a sequência de uma colcheia pontuada e uma semicolcheia, executada por três instrumentos, o “trio nordestino”, composto de triângulo, acordeon e zabumba, uma espécie de tambor rústico típico do Sertão (CALDAS, 2010). Em versões mais antigas, o pulso é mantido pelo triângulo e pela zabumba; a harmonia é feita pelo acordeon ou violão; e a melodia é tocada pelo pífaro; já em versões mais recentes, existe a variação de agogô e pandeiro. Do ponto de vista estritamente de análise duracional, e considerando a construção da análise rítmica Just in Time (LOPES, 2003, 2008), poderemos aferir que as qualidades perceptuais do ritmo base de baião (Figura 6) demonstram uma clara acentuação no 1º tempo, fundamental para a efetiva recepção da métrica binária característica.

De forma complementar, a idiossincrasia de movimento (i.e. dançável) do baião é percepcionada através do grande desiquilíbrio rítmico-métrico realizado, e expresso, pela semicolcheia na parte final do 1º tempo (ponto métrico bastante instável) e da colcheia na segunda parte do 2º tempo. Estando esta colcheia posicionada num ponto métrico relativamente instável, no entanto menos instável que a semicolcheia

29 Carl Friedrich Phillpp von Martius (1794-1868), antropólogo, botânico e pesquisador alemão que viveu no Brasil. 30 Luiz Gonzaga, denominado o “rei do baião”. 68

que a precede, ela acaba por iniciar a resolução perceptual do compasso binário, antecipando e resolvendo a instabilidade previamente iniciada e contribuindo para uma enfática resolução no 1º tempo que a sucede; estabelecendo perfeitamente assim a desejada métrica binária. Podemos então resumir que do ponto de vista da análise rítmica, o baião, através de uma funcional métrica binária, infere perceptualmente uma clara sensação de movimento a dois tempos: repouso/ação (LOPES, 2019, p. 9).

Do baião, com origem no lundu, derivou-se o forró (Figura 7), ganhando popularidade em todo o Brasil por seu apelo menos dramático e mais festivo no período das festas juninas.

Figura 8 – Variações rítmicas do Forró

Fonte: baião/zabumba. Disponível em: https://encrypted- tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRnrMTKzK_T-dSKYMzxErTOkGW6m1gEF-1bBZUoEIWs-e8OaJr4. Acesso em: 28 mar. 2019.

Com o forró, outros gêneros são cultivados, sempre associados às festas, à dança e também à poesia popular, de grande habilidade na rima e na arte de improvisar versos, como a embolada e o coco de roda. Nesses gêneros, é comum a presença de dois ou mais ritmos, como xote e baião; toada e marcha rancheira, aboio e baião, coco e embolada, não interferindo nem descaracterizando a música como um todo. 69

O xote, apesar de ter uma forma particular de ser executada no Sertão, também é encontrado no Centro-Oeste e no Sul do Brasil. Nessas regiões, também é chamado de xótis, chótis ou escocesa, e seja qual for a sua denominação, consiste num ritmo binário (2/4) e também quaternário (4/4), oriundo de uma dança de salão de origem europeia, que no Nordeste é executada como um ritmo/dança também próximo ao forró. O xote, de origem alemã, significa “escocesa”, em referência à polca; em Portugal, é conhecido como chotiça, que, ao ser levado ao Brasil e se misturar aos ritmos africanos, tornou-se apenas xote.

Figura 9 – Variações rítmicas do xote e do xaxado

Fonte: baião/zabumba. Disponível em: https://encrypted- tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRnrMTKzK_T-dSKYMzxErTOkGW6m1gEF-1bBZUoEIWs-e8OaJr4. Acesso em: 28 mar. 2019.

O xaxado, diferentemente do xote (Figura 8), não é uma dança encontrada em todo o Brasil, mas característica do Sertão. É considerada uma variação do baião, sendo uma dança mais rápida e alegre, sapateada e geralmente acompanhada de um grupo instrumental composto por zabumba, dois pífaros e uma caixa clara (CALDAS, 2010). O xaxado é um 70

ritmo e uma dança sertaneja, com evidentes características indígenas de origem nas regiões do Pajeú e de Moxotó, no Estado de Pernambuco (CALDAS, 2010; BENJAMIN, 2006). O xaxado também já era conhecido desde 1922, nas regiões do Agreste e do Sertão pernambucano. Seja qual for a sua origem, o fato é que há concordância entre os autores de que a dança foi largamente difundida pelo cangaço, um fenômeno ocorrido no Nordeste em meados do século XIX ao início do século XX. O cangaço teve suas origens em questões sociais e fundiárias da região, com ações violentas de grupos ou indivíduos isolados, que sequestravam os fazendeiros, conhecidos por coronéis, assaltavam as fazendas, saqueavam comboios e armazéns (RIBEIRO, 1995; CASCUDO, 2001). Para Cascudo (1978), o xaxado é uma dança originária do alto Sertão, sendo inclusive mais característica que o baião, que foi considerado uma adaptação, enquanto os outros ritmos têm suas origens em Portugal ou nas culturas bantas, sudanesas e de povos indígenas. O xaxado está intimamente ligado aos cangaceiros da região nordestina, ao celebrar suas vitórias. Segundo o autor, foi durante o período do cangaço que o xaxado teve visibilidade entre a população, tornando-se conhecido por ser uma dança tipicamente de homens, executada no campo ou nos “terreiros” de terra batida. Muitos autores não a consideram uma dança de salão, porque não teria a organização de pares, diferentemente do xote. A dança era executada pelos cangaceiros que viviam em grupos, que não tinham praticamente mulher em seu bando, assim, todos os homens se posicionavam em fila “indiana”, sempre com o chefe à sua frente, que puxava os versos cantados e o restante do grupo respondia em coro. No xaxado, geralmente, as letras continham insulto aos seus inimigos, ou lamentos pela morte de algum companheiro, enaltecendo suas aventuras e vitórias frente aos inimigos (CASCUDO, 2000). Para Cascudo (1978), o xaxado era uma variante do “parraxaxá”, um canto entoado pelos cangaceiros com o intuito de acirrar os ânimos entre eles e as autoridades, e geralmente executado nos intervalos das descargas dos seus fuzis contra as autoridades policiais. Nos tempos do cangaço, o xaxado era apenas um canto com quadras e refrão, com o arrastar das alpercatas ou sapatilhas e com compasso marcado pela pancada do rifle no chão e totalmente masculino. Com o passar do tempo, o xaxado acabou por incorporar um grupo musical tocado pelo pífano e uma pequena flauta transversal; a zabumba, o triângulo e a sanfona, o nome popular dado ao acordeão. Luiz Gonzaga foi um dos maiores divulgadores desse gênero musical. Como o baião, o xote e o xaxado, os ritmos de coco e a embolada são também 71

chamados de coco de improviso ou coco de repente. No Sertão, esses ritmos tomam amplitude com a arte do improviso formado por uma dupla de cantadores, que, ao som enérgico e batucante do pandeiro, montam versos com métrica precisa, de sons rápidos e improvisados. Para Alvarenga (1950), a embolada se enquadra mais como um método poético- musical que propriamente como uma forma ou um gênero. Seguindo a mesma característica está o coco, elaborado a partir da improvisação rítmica de versos com características indígenas e africanas. O coco, diz a autora, representa a fusão mais harmoniosa entre a musicalidade cabocla e africana, que traz o canto marcado por instrumentos de percussão. Nele, estão improvisos de criatividade, acompanhados de palmas, acentuando a feição coreográfica para os dançarinos, deixando transparecer a contribuição africana (ALVARENGA, 1950). O ritmo do coco, tão presente no Sertão, também é chamado no litoral de coco-de- praia; coco-de-ganzá, sendo este último apenas instrumental; coco-de-fila, apenas dança; e samba-de-coco, música e métrica. Os instrumentos usados nas formas de coco são: o ganzá, um tipo de chocalho indígena cilíndrico em folhas de flandres; o pandeiro e o surdo, e as palmas dos dançarinos. Segundo Santos (2000) e Azevedo (1944), a dança é, inicialmente, trazida dos campos de trabalho, da extração do coco nos litorais, chega até os engenhos de cana-de-açúcar e no pisar do barro para a construção das casas de pau‐a‐pique, entre outros, é caracterizada pela improvisação do canto e pelo sapateado na dança. O canto, nas várias formas de coco, é dividido em estrofes improvisadas com refrão e coro, acrescidos de outros motivos melódicos em andamento rápido e sincopado (Figura 9), sendo estas as características mais próximas ao baião: o improviso nas melodias, a síncope e o desenho rítmico executado no surdo.

Figura 10 – Ritmo de Coco próximo ao Baião – Ritmo da Embolada

Fonte: Medeiros (2014)

Em sua notação, observa-se a mesma métrica da melodia declamatória repetida com rapidez, com a sequência de colcheias e semicolcheias, em andamento movido e acentuado no 1º tempo. É inegável a presença da musicalidade africana na formação da música dessa região, como também a influência desses povos na música encontrada no Brasil. 72

Dos artistas que mais se aproximaram da realidade do Sertão nordestino, dando visibilidade à região por meio de sua música, estão Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Jackson do Pandeiro foi reconhecido em sua época como um prodigioso ritmista, cantor e compositor de baião, forró, xote, xaxado, coco e samba brasileiro, sendo acompanhado de pandeiro, foi considerado o “rei do ritmo”. Com semelhante título, Luiz Gonzaga, o “rei do baião”, foi um cantor, compositor, músico brasileiro, considerado uma das figuras mais influentes da música popular brasileira no século XX, que teve o baião como principal gênero em sua musicografia, quando lançou o primeiro evento cultural significativo com apelo de massa no Brasil31. A compreensão e a interpretação dadas por esses artistas ganharam amplitude devido à identidade e ao pertencimento que tinham do lugar, não apenas como espaço físico mas sobretudo como nascedouro de toda a sua formação cultural. Ambos não buscaram descrever um Sertão sob uma perspectiva exógena, mas como parte dela, da intervenção do individual no coletivo, tendo a referência do grupo social. A música de Luiz Gonzaga esteve diretamente ligada ao Sertão, em temas que abordavam o trabalho, o sofrimento, a religiosidade, as festas ou o cotidiano da região, nunca de forma caricata, mas a partir de uma realidade conhecida pelo artista, que remetia a uma visão cíclica entre a seca e as chuvas, entre momentos de tristeza e alegria, apresentando um discurso de saudade para o restante do país. Dos gêneros musicais mais conhecidos e divulgados por Luiz Gonzaga, destaca-se o baião, que forneceu bases rítmicas tanto para a música popular quanto para a erudita, no ritmo e na instrumentação, como em obras de Camargo Guarnieri e Villa-Lobos. Fryer (2000), ao examinar a história de vários ritmos brasileiros, liga-os às suas origens africanas numa perspectiva útil para compreender como as raízes do baião o fizeram um gênero musical nacional e popular. Para o autor, essas considerações são fragmentos deixados por diversas fontes, inclusive pela tradição oral, que dão testemunho da execução das danças como lundu e baião, sendo possível entender as similaridades e as conexões entre elas. Nas peças a seguir, o Lundu da Marqueza de Santos (Partitura 2), composto por Villa-Lobos; e Asa Branca (Partitura 3), de Luiz Gonzaga, identificam-se semelhanças rítmicas. Ambas têm a mesma fonte musical: o lundu, como base rítmica, observada nas semelhanças rítmicas (círculos) e melódicas (linhas).

31 Jackson do Pandeiro é o nome artístico de José Gomes Filho (Alagoa Grande, 1919 – Brasília, 1982). Luiz Gonzaga do Nascimento, chamado de “O Rei do Baião” ou “Gonzagão” (Exu, 1912 – Recife,1989). 73

Partitura 2 – Lundu da Marqueza de Santos – Villa-Lobos

Fonte: Partitura – Lundu, Villa-Lobos

No Lundu da Marqueza de Santos, encontra-se a sequência rítmica de uma semínima pontuada, uma colcheia ligada à semínima e uma semínima. Já em Asa Branca, em ritmo de baião, essa divisão rítmica é subdividida tornando o andamento mais rápido e movido, utilizado no arranjo (Partitura 3), que guarda o mesmo desenho rítmico.

Partitura 3 – Asa Branca – Luiz Gonzaga

74

Fonte: Partitura – Primeira parte de Asa Branca em ritmo de baião. Asa Branca, Luiz Gonzaga, 1920. Disponível em: https://www.youtube.com/watcg?v=aC4wa-LK-Q. Acesso em: 12 nov. 2018

Nesse contexto, a cultura musical do Sertão, produzida sob essas influências, transformou-se naquilo que viria ser sua característica: a relação entre o homem e sua terra, aliada aos cantos e rituais africanos, dando originalidade à região. Sobre a influência ibérica moura, essa teve forte influência na música cantada no interior dos sertões nordestinos, sobretudo, as da região do Alentejo português, observada nos cantos dos camponeses32. As que chegaram ao Sertão também se aproximam das melopeias mouras da África setentrional com uma impressão indefinível de sons que se misturam com palavras faladas (CASCUDO, 2001). A esse respeito, Cascudo (2001, p. 35) relata o som como sendo “uma voz aguda, seca e vertical, com guincho nos agudos e o ronco nos baixos, emitidos na imperturbável

32 Durante o período de doutoramento sanduíche na Universidade de Évora (2018-2019), localizada na região do Alentejo, tivemos a oportunidade de ouvir os tradicionais corais masculinos de canto alentejano. Ao ouvirmos, identificamos as semelhanças com o canto sertanejo. Ambos consistem em uma entonação lastimosa, 7ª abaixada, modulação lenta e finais com rallentandos intermináveis, comparado com os relatos de Câmara Cascudo (relato da autora). 75

nasalação comum”. Trata-se de uma disposição do desenho musical que sugere arabescos em um sucessivo encadeamento surpreendente, nostálgico como a paisagem austera e desolada do deserto, numa aproximação com a região. Essa característica era indispensável no velho canto sertanejo, considerando a entonação intencionalmente lastimosa, a modulação lenta, que fazia suspeitar um quarto de tom, com finais rallentandos intermináveis, sob um timbre nasal, infalível, natural, perfeitamente compreensível, como comenta o autor:

Todo cantador era fanhoso. Recordo meu primo Políbio Fernandes Pimenta, excelente cantor sertanejo, vindo para Natal prestar serviço militar, nosso hóspede: exigiu meses para adaptar-se ao diapasão normal. Era um oriental, afeito às neumas, livres de compasso maquinais, com o ad libitum de elevar a voz quando o motivo o empolgava ou recorrer a um surdo declamado, querendo salientar a emoção enamorada (CASCUDO, 2001, p. 35).

Não é possível conhecer-se o verdadeiro canto sertanejo pela simples leitura da solfa, que “moura” seria apenas a maneira de cantar. Um aspecto a ser mencionado é a ausência dos contracantos, comuns na música de tradição oral, como nos romances medievais ibéricos encontrados nos cantos das rendeiras de Alcaçus, no litoral do estado do Rio Grande do Norte (MEDEIROS, 2014). O tradicional canto nessa região dá-se em uníssono e o contracanto aparece como um leve fortuito, uma resposta dada pelo instrumento musical nas serenatas de festinhas familiares, os instrumentos a imitar a voz. Dessa forma, a música sertaneja foi considerada um canto com resposta de instrumento, tomando outros gêneros no momento em que a região era habitada por diferentes povos. Assim, foi-se tecendo uma diferenciada música, a partir de festas e danças que representavam o cotidiano, que, mantida pela tradição oral, teve forte característica dos ritmos do baião e das emboladas também conhecidas como “repentes”, e temas melódicos de cantigas, toadas e romances, com características ibéricas mais definidas (GURGEL, 1996). “Em Alcaçus foram encontrados os romances medievais ibéricos em canções versificadas e poemas musicados, neles são descritas ocasiões palacianas, histórias galantes de amores e intrigas da nobreza, permeadas de aventuras de cavalaria e tragédias” (GURGEL, 1996, p. 11). Segundo Gurgel (1996), esses romances estão em forma de canções de trabalho entoado por mulheres rendeiras locais, que caíram nas raízes do gosto popular. No relato das rendeiras, os cantos são transmitidos de mãe para filha pela tradição oral, sem qualquer registro de notação musical, mas guardado em sua memória individual e depois na memória coletiva durante seu ofício de “rendar na almofada”. 76

Os romances cantados e relembrados pelas rendeiras durante sua arte são elementos vivos das canções romanceadas e da tradição de literatura oral, como parte de suas lembranças de caráter afetivo, de contos da infância, sendo mantidos vivos na coletividade. “É na memória coletiva que esses romances são trazidos e alimentados pela memória individual de cada rendeira, contribuindo para manter presentes e vivos a cultura popular, com traços da canção medieval ibérica” (MEDEIROS, 2014, p. 97). Foram esses gêneros que se tornaram motivos e inspiração na (re)descoberta da cultura sertaneja (MARIZ, 1977; NÓBREGA, 1971). A cultura musical do Sertão compete com as das sub-regiões do Nordeste, como os carnavais e o maracatu rural da Zona da Mata; as festas de São João do Agreste; e, as cantigas de jangadeiro, do Litoral Semiárido. Entre todos esses ritmos, o forró, derivado do baião, posiciona-se como o mais característico (ALBIN, 2003).

3.2 O BAIÃO E OUTROS GÊNEROS MUSICAIS PRESENTES NAS PEÇAS (ALLEGRETO)

Como o baião é um dos ritmos mais característicos do Sertão, exploraremos um pouco mais esse gênero musical como também outros que estão presentes em partes das Bachianas Brasileiras. O nome baião surgiu aproximadamente nos anos de 1920, em festas e reuniões de violeiros, sendo amplamente difundido a partir da década de 1940 por Luiz Gonzaga, que trabalhou em parceria com o letrista Humberto Teixeira, advogado e músico amador. A música Asa Branca de sua autoria (Partitura 3), em ritmo de baião, tornou-se um hino do Nordeste ao expor o cotidiano e o sofrimento dos sertanejos e as dificuldades da vida em função da seca (MORAES, 2009).

Quando olhei a terra ardendo, qual fogueira de São João Eu perguntei a meu Deus do céu, ai! Por que tamanha judiação Que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação Eu lhe asseguro, não chore não, viu, Q’eu voltarei, viu, pr’o meu Sertão33.

Do baião, com origem no lundu, derivou-se o forró, ganhando popularidade em todo o Brasil por seu apelo menos dramático e mais festivo no período das festas juninas. Para

33 Asa Branca (Luiz Gonzaga). Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&ved=2ahUKEwiKj_C17rThAh WtyoUKHdoYB4kQjRx6BAgBEAU&url=https%3A%2F%2Fflashmusicpartituras.loja2.com.br%2F1584572- Asa-branca&psig=AOvVaw0nKVkV0mYdGcexhfw9Hgna&ust=1554413141251525. Acesso em: 12 abr. 2018. 77

Cascudo (1978), a palavra forró é derivada de “forrobodó”, que foi usado na corte portuguesa para definir uma festa desorganizada, bagunçada e aborrecida. No entanto, na tradição popular, é muito comum descrever o forrobodó como um evento divertido, mas quase depravado. Outra explicação para a palavra forró é que ela é derivada da expressão inglesa for all, uma vez que, no início dos anos 1939, era o termo dado às festas promovidas por soldados norte-americanos que estavam na Base Naval em Natal, Rio Grande do Norte, durante a Segunda Guerra. Com o forró, outros gêneros são cultivados na música do Sertão, associados às festas, à dança e também à poesia popular, de grande habilidade na rima e na arte de improvisar versos. Além do baião, outros gêneros são marcantes na descrição da paisagem e da fauna, presente nas músicas Luar do Sertão (Figura 10), em marcha rancheira e toada.

Figura 11 – Fragmento de “Luar do Sertão”

Fonte: Festas Juninas34

Não há, ó gente, ó não luar como esse do Sertão Não há, ó gente, ó não luar como esse do Sertão Oh! que saudade do luar da minha terra Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão Este luar cá da cidade tão escuro Não tem aquela saudade do luar lá do Sertão35

Dos gêneros musicais ligados à religiosidade estão as “Incelenças”, que são cantigas de “guarda”, benditos (Figura 11) ou cantigas de defuntos, numa expressão musical típica do Sertão do Ceará e do Rio Grande do Norte. Esses cantos confundem-se com orações, em tristes canções repetitivas “tiradas”, na tonalidade mais conveniente, por mulheres com vozes agudas e nasaladas, que acompanham o cortejo fúnebre em canto (CASCUDO, 2001, p. 26).

34Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco (Luar do Sertão). Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fpt.scribd.com%2Fdoc%2F306580015%2FLuar-Do Sertao&psig=AOvVaw2wNRCVXBil3lGRURnAFpLj&ust=1588701654499000&source=images&cd=vfe&ved =0CAIQjRxqFwoTCJDLg4flmukCFQAAAAAdAAAAABAQ 35 Fragmento de Luar do Sertão. Em marcha rancheira. Disponível em: https://youtu.be/KzR9R5-6fBk. Acesso em: 10 nov. 2018. 78

Figura 12 – Fragmento do canto “Bendito”

Fonte: Cantos sertanejos. Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.cchla.ufpb.br%2Fppgl%2Fwp- content%2Fuploads%2F2012%2F11%2Fimages_MariaLaura.pdf&psig=AOvVaw3VKa77oYTAHXoEIPrnwN9 h&ust=1588705701695000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLjfpJr0mukCFQAAAAAdAAA AABAD. Acesso em: 6 maio 2019.

O termo “Incelença” remete à ampla coletânea de pequenos cânticos executados especialmente em virtude de falecimentos, também executados em substituição da Extrema Unção na ausência do sacerdote. De acordo com a origem popular para as Incelenças, acredita-se que esses cânticos têm a propriedade de despertar nos agonizantes o remorso sobre os pecados, incitando-os ao arrependimento, sendo, por isso, muito respeitado. Doutra forma, são executados para amenizar as duras estiagens que castigam a região do semiárido (CASCUDO, 2001). Na temática do trabalho está o aboio (Figura 12), um canto típico do Nordeste, mas também comum no interior dos estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que se dá na forma de um canto sem palavras, dolente e compassado que se assemelha a um lamento do boiadeiro que tange, ordena e acalma o gado, com a mesma forma sonora e vocálica entoada pelos mouros em suas orações (CASCUDO, 2001). Segundo o autor, “misteriosamente (porque não vive noutras regiões da pastorícia brasileira) reside no Nordeste o aboio, documento impressionante do canto oriental, marcado por vogais, ondulante, intérmino de grafação em pentagrama, mas reduzível às notas melismáticas” (CASCUDO, 2001, p. 25). Esse canto ainda resiste na forma e no estilo, “longo assombroso testemunho da legítima melodia em neumas, recordando a prece da tarde, caindo do alto dos minaretes” (CASCUDO, 2001, p. 26).

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Figura 13 – Fragmento do canto em aboio

Fonte: Cantos Sertanejos. Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.cchla.ufpb.br%2Fppgl%2Fwp- content%2Fuploads%2F2012%2F11%2Fimages_MariaLaura.pdf&psig=AOvVaw3VKa77oYTAHXoEIPrnwN9 h&ust=1588705701695000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLjfpJr0mukCFQAAAAAdAAA AABAD. Acesso em: 6 maio 2019.

Tal como o baião, o xote e o xaxado, os ritmos de coco e embolada, são também chamados de coco de improviso ou coco de repente, que no Sertão tomam amplitude com a arte do improviso e a execução consiste em uma dupla de cantadores que, ao som enérgico e batucante do pandeiro, montam versos rápidos e improvisados com métrica precisa, em que os parceiros estabelecem um desafio para quem der a resposta mais precisa e ritmada, por isso também ser chamado de Desafio de cantadores com pandeiro ou viola36. A música Vida de Viajante, de Luiz Gonzaga (Partitura 4), é iniciada com um apelo de aboio, seguindo em ritmo de baião. Na música sertaneja, é comum a presença de dois ou mais ritmos próximos, como xote e baião; toada e marcha rancheira, aboio e baião, coco e embolada, não interferindo na música como um todo. Nesse caso, encontram-se os ritmos de baião e xote.

36 ENCICLOPÉDIA da música brasileira: popular, erudita e folclórica. 2. ed. São Paulo: Art Editora Publifolha, 1998. p. 846. 80

Partitura 4 – Vida de Viajante – Luiz Gonzaga

Fonte: “Vida de Viajante”, Luiz Gonzaga, 1920. Disponível em: https://www.youtube.com/watcg?v=aC4wa-LK-Q. Acesso em: 12 nov. 2018.

A embolada é um gênero musical executado tanto nos sertões como nas zonas litorâneas, seguindo uma melodia declamatória, em movimento rápido com pequenos intervalos, de texto geralmente satírico ou descritivo, composto numa sucessão de palavras ligadas apenas pelo seu valor fonético (ALVARENGA, 1950). Segundo a autora, “a embolada se enquadra mais como um método poético-musical que propriamente como uma forma ou gênero musical” (ALVARENGA, 1950, p. 278). 81

Partitura 5 – Vem Morena (em ritmo de Coco/ Embolada) – Luiz Gonzaga e Zé Dantas

Fonte: “Vem Morena”, Luiz Gonzaga, 1920. Disponível em: https://www.youtube.com/watcg?v=aC4wa-LK-Q. Acesso em: 12 nov. 2018.

Percebe-se que, ritmicamente, reproduz-se a mesma métrica da melodia declamatória repetida e com rapidez, como observado na música Vem Morena, de Luiz Gonzaga (Partitura 5), em ritmo de coco/embolada, com uma sequência de colcheias e semicolcheias, acentuando o 1º tempo. São esses ritmos e gêneros musicais, principalmente do baião e da embolada, que aparecem ora na íntegra, ora ressignificados nas partes das Bachianas Brasileiras.

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4 PRELÚDIO: O SERTÃO NAS BACHIANAS BRASILEIRAS (LARGO)

Para (escrever) e ouvir a música para além dela mesma, sem, portanto, dela se perder (autoria própria)

Como a tese foi pensada musicalmente, nesta seção em Largo, com um andamento bem mais lento, demandará uma reflexão mais cuidadosa sobre o tema e suas possibilidades de compreensão da obra em ato e em potencial, como parte do exercício sociológico.

4.1 AS BACHIANAS EM ATO, A LINGUAGEM DA MÚSICA EM SI MESMA

A compreensão das Bachianas em ato significa buscá-las a partir de sua linguagem própria, em notação musical, uma vez que a música fala por si mesma, sendo esse um exercício musicológico. O primeiro procedimento de análise que parte dessa linguagem é o exame das partituras simultaneamente com todos os aspectos musicalmente possíveis: a teoria musical, sua análise e as considerações do contexto histórico (KERMAN, 2010). Após esse procedimento, ser-lhe-á atribuída identificação de características da cultura musical do Sertão nordestino sob a abordagem da Topics Theory (RATNER, 1980; AGAWU, 1991; HATTEN, 1994), um estudo voltado à compreensão da música e seus nexos culturais, por meio da análise e da interpretação de pontos expressivos no texto musical. A Topics Theory, nesta pesquisa, foi redirecionada às tópicas brasileiras (PIEDADE, 1997), e em seguida às tópicas nordestinas (PIEDADE, 1999). Esta se utiliza de conceitos de hibridismo, fricção e fusão de musicalidade e tópicas de musicalidade brasileira a fim identificar a transformação de gêneros musicais, a permanência de elementos e as figurações que carregam nexos socioculturais e históricos. O estudo a partir das tópicas concentra-se na esfera melódica (temas, frases, motivos) e na rítmica como forma (organização das estruturas musicais no tempo), sendo essa a importância e a amplitude desse tipo de análise, que se dá como uma ferramenta que ilumina o texto musical propriamente dito, permitindo que a música fale por si mesma. Na análise das Bachianas Brasileiras em ato, são observadas e identificadas a localização de características do Sertão nordestino, descrita na própria escrita musical, sejam melodias, sejam ritmos mais salientes, sejam descrições físicas da região, para, dessa forma, buscar compreender como os temas estão inseridos e dialogam com o modelo romântico e modernista presente na obra. Esse exercício musicológico permite observar traços da região 83

por meio da linguagem musical em si, e ouvir essa linguagem para além da própria música, sem, portanto, dela se perder.

4.1.1 A Topics Theory à musicalidade brasileira e nordestina

As tópicas musicais são especificamente gestos retóricos, um conceito que teve origem na Teoria dos Afetos (MATHESON, 1991)37. Começou com Aristóteles, que acreditava que a música era uma imitação (RATNER, 1980). As tópicas são definidas como um conjunto de figuras características do discurso musical, com raiz na palavra topoï, topos, que significa lugar (MEYER, 1956). Para fins de análise da música popular, foi elaborada como proposta semiótica a partir da descrição dos gêneros musicais, compatível com a análise do mundo literário (DUCROT; TODOROV, 2001). Partindo de comparações sincrônicas entre a literatura e a música, os estilos e gêneros formaram-se e se transformaram. Esse é um elemento inovador no tratamento dos gêneros musicais como parte de um discurso, trazido em proposta de análise musical sob a abordagem de Mikhail Bakhtin (1986), de como tratar dos gêneros da fala como parte do discurso. Com efeito, a proposta das tópicas consiste em trabalhar as figuras da fala, os tropos, no universo do discurso nos moldes greco-romanos (Aristóteles e Cícero). Foi a retórica de Aristóteles e Cícero, como ideia da oratória musical, que conduziu a música poética no século XVII (BURMEISTER, 2007), que, no século XVIII, tornar-se-ia a Teoria dos Afetos (MATHESON, 1991). Essa teoria tem por fundamento a filosofia aristotélica e a noção de topoï, lugares-comuns (loci-communes). Sob essa ótica, produz silogismos retóricos e dialéticos que sugerem a visão da música como discurso. A retórica musical é, dessa forma, baseada nos topoï que formam a tópica; e a tópica ancora-se na ideia de “figura” (tropos), que identifica um lugar. Na retórica tradicional, a figura é o todo fragmentado do enunciado cuja “configuração aparente não está conforme a sua função real, resultando em uma transformação ou transgressão codificada do próprio código” (ANGENOT, 1984, p. 97). Na retórica musical, a elocutio distingue-se das figuras de palavras (tropos) com figuras de pensamento. Dessa forma, contribui na organização do conjunto do discurso, dividindo-se em adiectio, detractio e transmutatio, como pensamentos auxiliares. Essas

37 Teoria dos Afetos, Affektenlenre, uma teoria musical sistematizada e amplamente aceita pelos músicos do período barroco, propondo que recursos técnicos específicos e padronizados usados podiam despertar emoções no ouvinte igualmente específicas e comuns a todos (MATHESON, 1991). 84

figuras não são meros ornamentos adjacentes ao pensamento, mas responsáveis pela elaboração da matéria, a Inventio, como resultado de um trabalho específico sobre a própria significação (MOISÉS, 2004). É a ideia de figura e retórica musical que pressupõe uma compreensão da música como discurso, ato, e o encadeamento dessas unidades como parte do discurso musical. Sob essa lógica, a retórica musical aponta sugestões para compreensão, com convenções como: controle da expectativa, da satisfação ou da suspensão das tensões, comprovando a importância da emoção e do significado na música (MEYER, 1956) e, dessa maneira, a perspectiva de compreender a música na dimensão retórica de tópicas. A Topics Theory, que parte da linguagem musical propriamente dita, dá luz à expressividade da obra e consiste em uma teoria que analisa as figuras da retórica musical como topológicas, e dão a feição e a posição na articulação durante o discurso musical. As tópicas recompõem uma espécie de roteiro, ou esquema narrativo, que se encontra em um nível mais abstrato do que aquele do próprio motivo (MEYER, 1956) sendo essa a dimensão retórica que envolve a música como forma, expressividade e sentido (AGAWU, 1991). Essa teoria foi inicialmente estudada no universo da música europeia do período clássico, e depois ganhou amplitude em outros universos musicais, como na música popular brasileira, sendo chamadas de “tópicas musicais brasileiras”. A Topics Theory é utilizada, a princípio, a partir “do contato com o culto, com a poesia, o drama, o entretenimento, a dança, as cerimônias, o militarismo, a caça e a vida das classes mais baixas no início do século XVIII” (RATNER, 1980, p. 9), de onde se desenvolveu um catálogo “figuras características”, como o autor comenta, “que deixaram rico legado para os compositores clássicos” (RATNER, 1980, p. 9), figuras como pastoral, canção, pavanas, gigas, entre outras. Algumas dessas figuras foram associadas aos sentimentos e afetos, que ganharam destaque nas composições, sendo designadas como tópicas, ou temas para um discurso musical, tipos que surgem desenvolvidos como figuras e progressões em uma peça musical, como estilos. Apesar de as associações de fatos e cenas do cotidiano transformarem-se em tópicas, sua distinção é flexível quando se denominam minuetos e marchas, por estes representarem tipos completos de composição e também oferecerem um estilo para outras peças (RATNER, 1980). Mas a função da tópica que envolve uma hermenêutica no campo da análise musical não se limita a encontrar, interpretar ou nomear os tipos durante o discurso, mas, sobretudo, explicar como estes governam a sucessão dos afetos, identificações ou aproximações e gestos. 85

A fim de enquadrar a Topics Theory à musicalidade brasileira (PIEDADE, 1999) – com a proximidade e as características de estilos nacionais – elas são denominadas de tópicas brasileiras. Inicialmente, foram classificadas em três tipos, quais sejam: brejeira, época de ouro e nordestina, que remetem ao choro e às modinhas, entre outras classificações, como tópicas “militares” e “pastorais” (MONELLE, 2006). A tópica se destaca quando aparece num lugar incomum e provoca na audição a necessidade de uma reinterpretação do elemento disjuntivo, ou inovador na peça, que gera uma alopatia, com efeitos contraditórios ao que se sugere, sendo este um rompimento da isotopia musical, daquilo que aparentemente se confirmava. A tópica musical acrescenta um elemento inovador ou imprevisível que direciona o ouvinte a elaborar imagens e associações outras com a obra, sendo essas três primeiras tópicas abrangentes à musicalidade brasileira. A tópica brejeira, por exemplo, apresenta-se num estilo brincalhão e desafiador, exibindo audácia e virtuosismo, de forma graciosa e, principalmente, interesseira, individualista e maliciosa. Trata-se de um gesto profundo, impresso já na gênese de alguns gêneros, como o choro. O “brejeiro” como “brincalhão” difere do scherzando, por seu caráter menos infantil e mais malicioso e desafiador (DINIZ, 2003). Essa é uma expressão da brasilidade que se dá pelas variações melódicas da flauta, que desafia os acompanhantes a não se perder na música. Na melodia, seria um tipo de “ataque falso” de nota, no qual um “deslize” cromático no agudo faz crer que houve erro. No entanto, trata-se de uma transformação “brejeira”. No ritmo, a tópica se manifesta com certas “quebras” e alguns deslocamentos irregulares que parecem brincadeiras rítmicas que, desafiadoramente, para os acompanhantes e ouvintes, atravessam os tempos como que brincando, sem se deixar perder. A tópica brejeira é encontrada em composições de Pixinguinha (1897-1973), como em Um a Zero e Urubu Malandro38 e também em Ernesto Nazareth (1863-1934), como Odeon e Brejeiro39. A tópica época de ouro consiste em um estilo no qual reinam os maneirismos das antigas valsas e serestas brasileiras, em que imperam a nostalgia, a simplicidade e o lirismo, com certo “frescor” na melodia. É um pouco do mundo lusitano nas evocações do fado e na singeleza das modinhas. Manifesta-se como um Brasil mais interiorano, vindo do passado com volteios e floreios melódicos, padrões rítmicos previamente determinados, e com a escala cromática descendente atingindo a 3ª do acorde em tempo forte. As melodias apresentam-se

38 De Pixinguinha: Um a Zero, disponível em: https://youtu.be/59Q4LxrNoRk; e Urubu Malandro, disponível em: https://youtu.be/YcjrOqgzMSw . Acesso em: 23 jan. 2020. 39 De Ernesto Nazareth: Odeon, disponível em: https://youtu.be/UWtmW7tejrI; e Brejeiro, disponível em: https://youtu.be/QP6OLwb9w50 . Acesso em: 23 jan. 2020. 86

sempre em primeiro plano, estilo cantabile, como na Valsa de Esquina nº 6, de Francisco Mignone (1897-1986)40; e Quando me lembro, de Sivuca (1930-2006)41. Mas é na tópica nordestina que reside nosso interesse. Por ser presente nas peças, a musicalidade nordestina é como um recurso empregado na expressão da brasilidade (PIEDADE, 2003). Isso porque, desde cedo, o Nordeste “profundo”, o Sertão, apresentou-se musicalmente ao Brasil em diversos repertórios musicais, sob influência mais próxima dos ritmos africanos e indígenas, aliados às festas, aos folguedos e à musicalidade luso-árabe, com o modo mixolídio, também chamado de “escala nordestina”. O baião, o maracatu e as emboladas associados à escala nordestina foram amplamente usados mediante uma série de padrões, tornando-se índice da identidade brasileira. Essa tópica é identificada nas composições de Camargo Guarnieri (1907-1993), como Lundu42; e de Villa-Lobos (1897- 1959), na Ária Cantiga43 da Bachiana nº 4. Suas composições são observadas como tópicas nordestinas, quando ambos se opunham ao atonalismo, integrando-se ao movimento Música Viva dos anos 194044. Ao trazer para a compreensão das Bachianas em ato, as Topics Theory contribuem para a diminuição de fronteiras entre a música erudita e popular, sendo em particular a tópica nordestina o destaque para a busca desse Sertão imaginado nas Bachianas Brasileiras, utilizando o recurso da escala em modo dórico e mixolídio (com 4ª aumentada), chamado de “escala nordestina”, que se abre “para que essas alturas apareçam em certas figurações específicas, com tópicas e motivos conclusivos, devidamente instalados ao final de certas progressões e ajudam na remissão à musicalidade nordestina” (PIEDADE, 2013, p. 11-12). Para finalizações melódicas, escritas em Sol (Figura 13), a escala nordestina aparece com e sem variações a fim de adequar-se ao modo dórico e mixolídio.

40 De Francisco Mignone: Valsa de Esquina nº 6, disponível em: https://youtu.be/Tal5iBC8CGQ. Acesso em: 23 jan. 2020. 41 De Sivuca: Quando me lembro, disponível em: https://youtu.be/KABh7DZyyJ8. Acesso em: 23 jan. 2020. 42 De Camargo Guarnieri: Lundu, disponível em: https://youtu.be/eTpkKFsnAMc. Acesso em: 23 jan. 2020. 43 De Villa-Lobos: Ária Cantiga da Bachiana nº 4, disponível em: https://youtu.be/fCGmFsfmJxc. Acesso em: 23 jan. 2020. 44 O movimento Música Viva consistiu na primeira fase de um grupo de músicos cariocas, popular e erudito, que teve por patrono Heitor Villa-Lobos, e depois foi integrado por Claudio Santoro. O grupo organizou concertos, publicou partituras e editou o Boletim Música Viva. A partir de 1944, com a entrada de novos alunos de Koellreutter (Guerra Peixe, Eunice Catunda e Edino Krieger), o grupo foi assumindo um ar de modernidade radical, confrontando-se com as tradições estabelecidas no meio musical. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Grupo_Música_Viva. Acesso em: 23 jan. 2020. 87

Figura 14 – Finalizações para a musicalidade nordestina

Fonte: Escala nordestina. Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fseteramos.blogspot.com%2F2011%2F01%2Festudo -em-mi-sustenido- maior.html&psig=AOvVaw2jueEKlDvvqrgGklEwuPd6&ust=1588713559897000&source=images&cd=vfe&ve d=0CAIQjRxqFwoTCODnkr-Rm-kCFQAAAAAdAAAAABAD. Acesso em: 12 nov. 2018.

Além do caráter modal e das similaridades com elementos (rítmicos e melódicos) das finalizações nordestinas, há nas tópicas um contorno melódico próximo à música de Luiz Gonzaga (Figura 14). “As tópicas nordestinas são peças chave do repertório do Baião, que podem migrar para uma grande parcela de gêneros musicais brasileiros” (PIEDADE, 2009, p. 12).

Figura 15 – Fragmento – “Baião” (Luiz Gonzaga)

Fonte: Escala nordestina. Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fseteramos.blogspot.com%2F2011%2F01%2Festudo -em-mi-sustenido- maior.html&psig=AOvVaw2jueEKlDvvqrgGklEwuPd6&ust=1588713559897000&source=images&cd=vfe&ve d=0CAIQjRxqFwoTCODnkr-Rm-kCFQAAAAAdAAAAABAD. Acesso em: 12 nov. 2018.

No fragmento da canção Baião (1930), de Luiz Gonzaga, encontra-se a escala de modo mixolídio, com a 7ª abaixada (Figura 14), emprego comum dessa linguagem difundida no início do século XX, “onde possivelmente Villa-Lobos buscou, isso porque muitos compositores nacionalistas utilizaram como fonte de inspiração esse nordeste musical, místico 88

e profundo” (PIEDADE, 2013, p. 12). Como tópica nordestina, foi encontrada nas Bachianas Sertanejas, não trazendo apenas uma localização e nomeação mas também uma interpretação durante seu discurso musical, como é capaz de produzir afetos, identificações ou aproximações, como gestos nas peças Coral Canto do Sertão e na Ária Cantiga, ambas da Bachiana nº 4, que serão examinadas na seção 5, em sua especificidade musical, sem, portanto, distanciar-se da análise crítica. É a partir desses três aspectos, sem o compromisso inicial de interpretação, que a obra é tratada em ato. Assim, nas percepções mais objetivas, à primeira vista, ou na audição, é que são construídas ideias ou imagens provocadas por essa primeira percepção, para então relacioná-las ao tema sugerido, o Sertão das Bachianas. Essa é a etapa inicial do “ouvir” social, que se dá como um deslocamento provocado a fim de sair do lugar comum, das mesmas e repetidas conceituações construídas há mais de um século sobre a região Nordeste, e, em particular, sobre o Sertão (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011), que em Villa-Lobos buscamos apresentar como um dispositivo para assumir outra posição, outro olhar para o mesmo espaço. Trazer as Bachianas em ato é apresentá-las a partir da obra musical e também da região que nasce do encontro do poder de suas características e da linguagem artística, quando é possível conceber uma produção discursiva musical, entretanto, sem esquecer que o dis- cursus é originalmente a ação de correr para todo lado com idas e vindas, articulações, imagens e falas que contribuem para essa formação imagética. O dis-cursus a seguir, ao trazer as Bachianas em potencial, não será tão diferente e distante do regionalista, que, a nosso ver, não deve desaparecer, mas sempre estará presente porque há outros discursos que aparecem nesse processo de ouvir elementos rítmicos e melódicos, os quais remetem à ideia de Sertão nordestino, exercendo, dentro de sua própria linguagem musical, e não fora dela, uma rede de poder, de saliências musicais que podem ser percebidas. Na abordagem das Bachianas em ato, como material escrito, racionalizado e comunicável (WEBER, 1995; KERMAN, 2009), a obra constitui-se em partitura, na qual se tem a teoria moderna que surge para direcionar e apontar a ideia do compositor; e da teoria em torno dessa música, sua análise, como técnica de produzir conhecimento análogo, de redução de sua linguagem e exposição do texto musical, que, sob uma clara e indispensável teoria (moderna), estuda um ou mais sistemas teoristas da arte musical Ocidental no passado e no presente. Com isso, observa-se que a teoria dá à música uma sistematização, ao chamá-la de “música”, por ser escrita em notação própria, dando ao Ocidente uma primazia ao elaborá-la e 89

considerá-la em superior condição (ADORNO, 2012; WEBER, 1995). Kerman relembra que teoristas da música têm a seu favor o aparato científico social que se posiciona em direção à Filosofia, à linguagem altamente especializada e à simbologia lógica, estando, paralelamente, alinhados à composição como interesse intelectual estrito. Entretanto, esse positivismo quase linear da teoria musical rompeu com esquemas hierárquicos e realistas presentes no neoclassicismo e no romantismo, aparecendo sob forma inovadora e “impressionista” na obra de Claude Debussy, Igor Strawinsky e Karlheinz Stockhausen; e no Brasil, com Camargo Guarnieri e Heitor Villa-Lobos, como fonte de interesse, criatividade e de propostas para a cena musical contemporânea que se desenhava. Aliado à teoria e a todo o aparato que a envolve, há de se reconhecer paralelamente o papel da análise como importante passo no avanço desse processo, por trazer a ideia detalhada de explicação internalizada da estrutura de uma composição particular, “a análise fecha associações como demonstrativo adjunto. A demonstração teórica pode legitimamente ser como um demonstrador abstrato do que é preciso para ordenar nesse ponto” (KERMAN, 2010, p. 17). Nesse processo, não apenas a teoria e sua análise mas também o contexto histórico em muito interfere para a compreensão das Bachianas em ato, quando foram escritas de 1930 a 1945. A escrita da obra traz resquícios de um regionalismo naturalista que se altera com a emergência de uma nova relação entre o espaço e o olhar proposto pelo modernismo. Isso porque a obra tem traços do classicismo e do romantismo, como simetria e equilíbrio, na forma A-B-A, e com estrutura sinfônica; e do impressionismo francês de Debussy, aliado à forma e à estrutura de Bach nas suítes e na denominação do duplo título. O modernismo presente na obra é fruto de um novo processo estético, que buscou integrar o elemento regional a uma estética nacional, que anteriormente estava voltada à descrição pormenorizada dos diferentes meios e tipos regionais de um Brasil que se constituía como uma coleção de paisagens sem síntese (KIEFER, 1997; VOLPE: 2001; ANDRADE, 2015), e esse modernismo toma os elementos regionais como signos para um novo texto, que, na música, apresenta-se com atonalismo e polirritmia intermeados de temas folclóricos, frutos do romantismo alemão de sua Kultur. Com base na história da música, muitas correntes estéticas se originaram expondo posições pessoais em relação à criação artística. Muitas delas foram apoiadas em premissas intelectuais, de origem filosófica e social, como o classicismo fruto do racionalismo; o romantismo, resultado de transformações sociais operadas pela Revolução Francesa; o dodecafonismo, como uma reação violenta contra o tonalismo; e a música de Stravinsky, 90

numa luta pelo despojamento dos compromissos literários da música (NÓBREGA, 1971). Todos com os descontos pelos exageros e distorções acarretados por generalizações. Apesar dos compromissos literários, ainda o traremos na segunda parte deste Largo, por considerarmos adequado sob a abordagem utilizada em relação à linguagem artística. No entanto, isso não implica um condicionamento ao pensamento literário, apenas um “par” nesse pensamento, o qual faremos com os devidos descontos. As Bachianas em ato, na condição de música, sempre será música e documento escrito, executada e reproduzida nas mais diferenciadas mídias. Com isso, salientamos que, no século XXI, cada vez mais a partitura deixa de ser o único meio de registro e divulgação da música, embora tenha sempre o seu lugar, porque é um documento conquistado e fruto de grande esforço de racionalização, mas é notório que a música como “objeto” acústico virtual tem amplo alcance em mídias eletrônicas, seja na divulgação, seja na performance, seja na educação musical.

4.1.2 As Bachianas como “objeto” virtual

Ao considerar as Bachianas em ato, na escrita, na estrutura de escalas, acordes e desenhos rítmicos, essa música também se constitui como objeto virtual (LOPES, 2014), o que contribui para a compreensão e a interpretação da obra. Isso nos faz trazer as Bachianas não apenas em ato mas também em potencial, e significa considerar sua essência, sua ideia, não necessariamente sujeita a alterações, porque o que muda é a percepção e a compreensão que se tem sobre a obra como “objeto” e o tema que ela aborda. Trazer a música, ou compreendê-la como um objeto virtual, tem a ver com a objetivação que fazemos dela, a dizer que tem profundidade, tem altura, que “sobe” e “desce”; que tem intensidade mais “forte” ou “fraca”; duração que pode ser mais rápida ou lenta, sendo essas construções, do ponto de vista cognitivo, que nos possibilitam compreender a música como um objeto de diferentes formas, texturas e construções mentais (LOPES, 2014). Essa é uma forma de falar metaforicamente da música, comparando-a com a arquitetura, como um objeto em três dimensões, com altura, largura, profundidade, termos utilizados para comunicar a ideia musical, que, no entanto, na realidade, não possuem dimensões reais, mas virtuais, imaginadas. A percepção da obra como objeto virtual cuja utilização está em metáforas (LAKOFF; JOHNSON, 1980) contribui para a objetivação do objeto musical e sua construção mental. O uso de metáforas, com a finalidade de objetivação da linguagem musical, vai ao 91

encontro das ideias clássicas, as quais afirmam que elas não são somente utilizadas na linguagem poética mas também fazem parte da comunicação cotidiana, como parte do sistema cognitivo humano, estando, dessa forma, no pensamento e não apenas na linguagem. Ao trazermos metáforas à música, essas se destinam à comunicação mais ampla e de conexões com outras ideias em que há uma projeção de dois domínios conceituais: um cognitivo, de natureza concreta e experiencial; e o outro sensorial, de caráter mais abstrato, em que ambos permitem compreender o domínio-alvo, o alcance da ideia musical, não necessariamente aquilo que é real como também o imaginado, a fim de elaborar e atribuir ideias sobre a imagética de uma região. Sendo a música um objeto virtual, de denominações metafóricas, também é uma linguagem temporal, isto é, que só existe no tempo em execução (kronos), tendo sentido singular para quem ouve, porque é reformulada como resultado ou produto do que anteriormente foi elaborado. Isso porque tudo o que fora formulado a respeito da música – desde seus elementos perceptíveis como altura, intensidade, duração e timbres – está sujeito a transformações, e já foi transformado (Gestalt), permitindo que a nossa percepção seja alterada por inúmeros fatores que nos cercam: o contexto histórico, o acesso à obra e até a própria percepção pessoal, tornando a construção das coisas ligadas ao processo cognitivo, com a interpretação do ver e do ouvir sob novos e diferentes prismas (LOPES, 2014). Sendo a nossa percepção constantemente alterada, isso não faz com que o “objeto” de nossa observação e investigação mude, mas que, a partir dele, abram-se possibilidades e novas interpretações, por ser essa a parte do processo cognitivo para a construção das coisas, como parte daquilo que somos, do nosso tempo, da nossa percepção da realidade. É o processo cognitivo que dá objetividade à arte, não apenas como uma reprodução do mundo, porque o que chamamos “objetivo” (por isso entre aspas) está selecionado à luz de seu significado cultural e igualmente explicado em termos históricos ou causais, visto que por mais explicativos que sejam, são incapazes de reproduzi-los em sua totalidade. Nessa perspectiva, trazemos brevemente o que se diz a respeito da unificação das ciências culturais e sociais (WEBER, 1989), apesar de não ser objeto deste estudo nos determos mais profundamente às questões apontadas pelo autor sobre a objetividade da cultura. Para Weber (1989), não há análise puramente objetiva sobre os fenômenos culturais, independentemente de perspectivas particulares, mesmo que selecionadas e diluídas. A razão disso reside no propósito cognitivo dos projetos científicos sociais. Quando se quer compreender a realidade nos aspectos característicos e o significado cultural de seus 92

fenômenos particulares em sua forma contemporânea, não há outro modo além de recorrer à historicidade (RINGER, 2004). Apesar de não ser a análise objetiva o alvo desta pesquisa, tomamos seu posicionamento e referência por assumir que não há uma análise pura dos fenômenos culturais e, principalmente, por considerar importante buscar compreender a realidade do objeto cultural, a música na contemporaneidade. Da importância trazida pela objetividade, o que se detém na pesquisa da obra é, sobretudo, sua relevância cognitiva como linguagem musical.

4.2 BACHIANAS EM POTENCIAL, PARA UM “OUVIR” SOCIAL

Para a compreensão das Bachianas em potencial, além de sua relevância cognitiva na linguagem escrita, e para um “ouvir” social, recorremos a duas abordagens teóricas, uma a partir da relação que estabelece com os sentidos do olhar e do ouvir em exercício sociológico (MILLS, 1996); e a outra, concernente à sua relevância como linguagem das coisas e do homem (BENJAMIN, 2011). Nessa segunda abordagem, comparamos a audição da obra com a literatura, apesar de ser uma referência direta, buscaremos enfocar a música dando-lhe os devidos descontos em relação à interpretação literária, por ser ambas relacionadas ao ouvir. Refletir sobre as Bachianas em potencial é trazer à superfície a ideia, a forma, a imagem, os sons, e todos os elementos externos visíveis e comparáveis, como também os elementos invisíveis, não formais, subjetivos, porém, determinantes na compreensão do todo. Nas peças, a Introdução Embolada, da Bachiana nº 1; a Dança Lembrança do Sertão, da Bachiana nº 2; o Coral Canto do Sertão e a Ária Cantiga, da Bachiana nº 4, encontramos tanto as obras em ato, em tópicas, como em potencial, como objeto virtual que elabora o imaginário do Sertão. Inicialmente, o que se pretende é que, a partir da audição musical, não sejam observados apenas os elementos perceptíveis na obra, rítmicos e melódicos, como ainda aqueles que levam para além dela, na transformação do “olhar” e do “ouvir” natural em “olhar” e “ouvir” social, visto que esses elementos são capazes de criar conexões com fatos, descrições, oportunizando, na sua interpretação, o imaginário da região. Essa seria parte de como a arte é recebida e aceita e como pode ser explorada e refletida. Esse é um exercício que promove o desenvolvimento do sentimento artístico na mudança em ver e ouvir a arte. Isso passa pela desnaturalização ou pelo estranhamento da realidade, quando suscita interesse em ir além do óbvio, dos elementos musicais perceptíveis no primeiro momento. É nesse ponto 93

que surge a transformação do “olhar” ou “ouvir” natural, ou em ato, em social, em potencial, naquilo que é capaz de ir além. Esse “olhar” ou “ouvir” não é do historiador, do geógrafo, do músico, tampouco do filósofo, trata-se de destacar as particularidades dos sentidos naturais e sua capacidade de transformarem-se em social. Então, como se dá essa transformação para aplicar ao objeto de investigação, as Bachianas Sertanejas? Primeiro pelo “estranhamento” daqueles sons, ou ainda, pelas referências rítmicas e melódicas presentes nas peças. Em seguida, deve-se relacioná-las não apenas com a região mas também com o cotidiano, com a realidade vista sob outras realidades, diferentes das que já foram compostas e definidas sobre o Sertão e o Nordeste. Essa construção faz parte do “desnaturalizar” a realidade, de estranhar o cotidiano. Para desenvolver esse “ouvir”, é preciso quebrar a forma com que se encara a realidade, e partir para aquilo que é possível ser percebido, sendo essa uma percepção exploratória no que pode extrair em potencial das peças. A atenção voltada para o ouvir em potencial se dá porque nenhum som é neutro, nem isento de observações além do que está proposto, por conter nele diferentes intensões e significados, não sendo possível, à primeira vista, ter a ideia do que ele contém. O que se propõe com esse “ouvir” é outra perspectiva, são outros “pontos de escuta”, o que está em suas prenoções, o que pode ser ressignificado a cada época, a cada cultura e a cada ouvinte. É dessa transformação que suscita outro sentimento artístico, outros afetos à música, os quais carecem de ser desenvolvidos, porque não são naturais, mas sociais. Quando Voltaire acusou Espinoza, em sua filosofia moderna e crítica bíblica, de “abusar da metafísica”, não tinha a dimensão do quanto era necessário percorrer esse caminho. Apesar da distância de seus escritos em tempos renascentistas, ao pensarmos nos dias de hoje, o caráter da metafísica é irredutível e de grande importância. Porque pensar de forma metafísica é ir além do físico, é ir além do tangível e do literal para compreender a essência das coisas e sua relação com todas as outras, em se tratando de uma comunidade, de uma região, de um sistema de governo, de um fato da história, de códigos morais e religiosos, como também de uma Fuga de Bach, enfim, de tudo o que cerca o pensamento e direciona a posição onde estamos. A importância de trazermos essa perspectiva nas Bachianas é para compreender o que se faz com a arte, com a música, na medida em que esta é um produto social capaz de transformar o olhar (ouvir) humano em social. Na continuação deste Largo, nós nos debruçaremos naquilo que está fora da música, no seu potencial, como exercício sociológico, o que dela suscita como parâmetro na formação imagética do Sertão nas Bachianas Brasileiras. Ao tratarmos a obra em seu status de arte, e compararmos às demais artes que são intermediadas pelo olhar, a música vem pelo ouvir, e 94

esse ouvir, em princípio empírico, constitui-se em conhecimento quando busca ir além do escutar a fim de compreender sua essência; e, consequentemente, emocionar-se, criar afetos. É nesse processo cognitivo e afetivo, ou de aproximações, que consistem as transformações do olhar natural em social, quando possibilita que a música, como objeto virtual, torne-se humana; e sua audição torne-se objetiva, porque tem um alvo a ser alcançado: a elaboração crítica, a reflexão, a produção imagética, e não apenas sua apreciação estética. Nesse sentido, vimos o processo dos sentidos do “olhar” ou do “ouvir” transformar-se de natural em social. Nisso, observamos que a formação dos sentidos, além da forma biológica, ocorre também de forma social a ponto de tornar o objeto de percepção em objeto social que reflete a sociedade em que foi construído. Ao trazermos as peças das Bachianas Sertanejas, vemos como sua percepção e interpretação ocorrem sob essa transformação. Na peça Coral Canto do Sertão da Bachiana nº 4, observa-se como os sons foram construídos a fim de aproximarem-se da realidade da região, além de como são construídos socialmente e são compreendidos por sua significação cultural, e, por fim, como são reproduzidos alguns sons onomatopeicos para a música. Nessa peça, tem-se o registro do Canto da Araponga, também chamado de pássaro “ferreiro”, “ave conhecida no Nordeste pelo som estridente do seu canto” (CAVALCANTE, 2012, p. 23). Na peça de gênero coral, o Canto da Araponga é representado por notas agudas, o Si bemol 4 (1935)45, que se repete em ostinato, e na versão orquestrada (1945), sendo tocado por instrumento de percussão de som agudo. Esse “é o canto triste e monótono da Araponga” (TARASTI, 1995, p. 203), retirado da nota Si bemol da voz superior na apresentação das frases que, de fato, caracteriza a articulação em martello de nota curta e aguda em ostinato, bastante semelhante à figura exposta por Villa-Lobos na peça. Esse aspecto será ampliado na seção 5, como tópica musical, em que se sugere o título do Coral Canto do Sertão (Figura 15).

Figura 16 – Fragmento do Coral Canto do Sertão (em ostinato)

Fonte: Felice (2016)

45 Si bemol 4 na escala do piano, versão escrita em 1935. 95

Figura 17 – Melodia da canção sertaneja (em acordes)

Fonte: Felice (2016, p. 55)

O ostinato presente na peça (Figura 16) foi muito utilizado no período barroco, também na música Ocidental desde o século XIII (SCHNAPPER, 2016); e a peça, por ser parte da Série Bachianas Brasileiras, leva essa característica. “O ‘canto da Araponga’ em ostinato é intermeado por uma sucessão de acordes que se movem solenemente ao modelo de Bach, em que perpassa a melodia inspirada em uma canção católica sertaneja” (TARASTI, 1995, p. 203), que se assemelha ao uso do Cantus Firmus na monodia medieval com sua finalis e confinalis (Figura 17), melodia que se repete durante a peça.

Figura 18 – Melodia da canção sertaneja (redução)

Fonte: Felice (2016, p. 56)

96

A melodia descrita na Figura 17 trata de uma evocação religiosa, que, isolada da composição, é perpassada entre acordes que serão mais detalhados na seção 5, As Bachianas Sertanejas. O que nos interessa nesta seção é abordar os sons como linguagem socialmente construída, a fim de aproximar a realidade quando a melodia de “súplica” é quebrada pelo Canto da Araponga, forte, estridente, como se anunciando que chegarão outros tempos em que cessarão as súplicas pelo temor da seca nordestina. Seu canto em ostinato, uma representação percebida pelo compositor e identificada socialmente pelo nativo da região, representa o anúncio dos tempos da chuva para a região, quando há uma migração desses pássaros da Zona da Mata para o Sertão (SILVA; ANDRADE; ROZENDO, 2014). Trazer esses elementos visíveis e também subjetivos através dos sons na obra é utilizar o material temático, marcante na obra de Villa-Lobos, significativo como ferramenta para compreender o pensamento musical do compositor, criando um repositório de informações e contribuindo para estabelecer uma linha organizacional no seu processo criativo (LOQUE, 2010). Esse recurso foi comum durante o romantismo musical do século XX, que traz os sons da natureza representados pela música e pela poesia como característica desse período, repete, não exatamente, os que foram representados na Renascença, com peças de imitação com Clément Janequin (1585-1558); como também no Barroco, com o último movimento da Sonata em Ré Maior BWV 963. Esses sons expressam a sonoridade de um mundo externo à música, e de acordo com cada contexto, sobretudo imerso no idealismo modernista nacionalista brasileiro, tomam forma e lançam luz sobre a escrita musical, “na medida em que as formas musicais se expressam em diálogo com estes textos” (LOQUE, 2010, p. 143). Em continuação à abordagem em relação à humanização dos sentidos, quando a objetivação sonora é tratada musicalmente ou tecnicamente na peça, ela busca aproximar a ideia tanto para o nativo quanto para o estrangeiro, a fim de formar as próprias impressões de acordo com sua referência cultural, e assim humanizar o ouvido. A objetivação da essência humana, quer em seu aspecto prático, quer no teórico, é necessária tanto para tornar humano os sentidos quanto para criar o sentido humano. Nesse processo, “os sentidos, seja a visão ou audição tornam-se teóricos em sua prática, e consequentemente, o homem torna-se mais objetivo quando seu objeto se torna um objeto social, tornando-se ele e a sociedade um ser” (MARX; ENGELS, 2010, p. 134). Nos sentidos, o olho se torna diferente do que é para o ouvido, pelo imediatismo do visual; enquanto o ouvido, além da escuta, conduz à ideia, ao logos, à palavra em sua força. Nesse processo, certamente, há de se considerar a peculiaridade de cada sentido e a força de 97

sua essência, sendo, portanto, o modo peculiar de sua objetivação, do ser vivo, real e objetivo que o diferencia. Isso não implica só o pensar como ainda o uso objetivo dos sentidos que afirma o homem como ser social e a existência humanizada do objeto artístico a partir dos sentidos. É possível ver ou ouvir além do que se está proposto a fim de buscar uma compreensão mais ampla e, consequentemente, o desenvolvimento dos sentidos naturais em sociais como parte da essência humana e sua aproximação e apreciação artística, não apenas estética mas sobretudo conceitual, como trazemos nas Bachianas Sertanejas. Este também é papel da arte: a iluminação além da realidade. Relembramos, a esse respeito, o que o Iluminismo prometeu iluminar, tornando cego o humano que não suporta tamanha realidade da vida, pois o real é um choque, é aquilo que não tem controle e o homem sempre lança sobre o real símbolos e conceitos para domar a realidade. “A iluminação total leva a cegueira [...]. O homem constrói uma sociedade pois a mesma constrói regularidade” (MARX; ENGELS, 2010, p. 149). A crença na transparência do real e na ideia abre caminho para elucidar reflexos daquilo que antes fora apenas signo. São as múltiplas dimensões ou narrativas sobre o objeto que o ampliam e compõem sua humanidade, tornando-o social. Para tanto, a subjetividade torna-se uma dimensão fundamental na construção das relações sociais. Nesse sentido, podem se estabelecer afetos e identificações. É nessa perspectiva que se propõe esse “olhar” ou “ouvir” para o Sertão imaginado, não real iluminado, nas Bachianas Brasileiras, esse novo ou outro cenário diante do que já existe e se propaga. Trata-se de um ouvir aguçado em seu sentido do homem social, um ouvir mais poético, ou talvez mais narrativo, para compreender e sobreviver à realidade.

4.2.1 As Bachianas entre o poema e a narrativa

Sendo a narrativa uma possibilidade, mostramos como ela se apresenta na abordagem filosófica sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem (BENJAMIN, 2011). Walter Benjamin, ao referir-se à linguagem, faz uma crítica literária a fim de evidenciar a necessidade de existir a obra de arte, do modo a apreender seu ideal a priori. Esse ideal, por sua vez, é para ele a lei fundamental do organismo artístico, que só pode ser redimido pelo reconhecimento de uma unidade estética fundamental entre a forma e a matéria. Para dizer de outra maneira, o crítico deve ter consciência de que não há forma separada de teor (Gehalt), termo chave na reflexão de Benjamin, porque anula a posição estéril entre o “conteúdo” e a “forma”. Dessa maneira, tem-se a consciência de que a forma nunca existe 98

sem teor, porque surge de um desdobramento da filosofia da linguagem desenvolvida pelo autor, o que, por sua vez, atesta a importância da reflexão sobre a linguagem estética, quando afirma que a língua é uma essência espiritual, e imediatamente aquilo que é comunicável, porque “toda língua se comunica por si mesma, no sentido mais puro, o meio Medium da comunicação” (BENJAMIN, 2011, p. 54). Trazendo ao objeto deste estudo, a música fala por si mesma, mas também por meio daquilo que representa como o Medium. Como linguagem, é ampla e articulável, não apenas para produzir uma paisagem sonora (SCHAFFER, 1999) mas também para atribuir um conceito geográfico nas relações entre agrupamentos da região observada com o espaço sintetizado pela música. Ao tratarmos a Dança Lembrança do Sertão da Bachiana nº 2, na versão escrita para piano de 1941, percebe-se que estão dispostos arpejos em oitavas numa sequência em arabescos impressionistas de Debussy, acompanhados de uma melodia em tonalidade menor, com ethos de “saudade”, em comparação ao Sertão como o lugar da saudade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). O termo Medium é uma referência ao clima, visto que evoca mais que uma paisagem sonora, e uma linguagem poetificada da região, ou seja, aquilo que preexiste a ela e nela se realiza. A Dança Lembrança do Sertão, escrita para andamento Andantino moderato, quaternário e na tonalidade de Lá menor, na versão para orquestra em 1933, inicia com pizzicati das cordas seguido de staccatos, evocando o dedilhado da viola sertaneja. Após uma breve introdução, o tema aparece em solo de trombone que expõe uma sonoridade “agreste” sem muitas ondulações com terminação na 7ª abaixada, que caracteriza a “escala nordestina”. O solo segue em diálogo com flautas, oboé e clarinetes, em escalas ascendentes, acentuando a característica nostálgica através do recurso do pizzicati, diferentemente do ambiente sonoro em Allegro que constitui a seção central da Dança. Seu ethos comunicativo se nutre no Allegro em que o compositor explora com intensidade as potencialidades rítmicas implícitas no tema, que após uma densa “fúria” rítmica estabelece um andamento mais calmo para a reexposição do tema que termina em uníssono. Por preexistir uma linguagem poetificada da região não significa que seja em fixidez, mas, a partir de superfícies rígidas – conceituadas anteriormente –, “a linguagem musical desenvolve-se para pensar as fluências desse amplo Medium, que é o ambiente onde existimos e por onde nos movemos” (INGOLD, 2011, p. 138). Segundo o autor, são interferências que compõem uma linguagem como um todo, com a descrição de ventos, chuvas, sazonalidades, enfim, do ambiente pensado e representado, considerando a criatividade do compositor. 99

Para a abordagem benjaminiana, observa-se que, nas peças das Bachianas Brasileiras Sertanejas, seja possível incluir a definição climática e não apenas pictórica sobre a região. Nesse processo, o autor direciona a abordagem filosófica da linguagem, desenvolvendo o conceito poetificado de Das Gedichtete, isto é, o poema, no ensaio de Hölderlin46. Esse filósofo, poeta lírico e romancista alemão conseguiu sintetizar na sua obra poética o espírito da Grécia antiga sobre a natureza do ponto de vista romântico e uma forma não ortodoxa de cristianismo, alinhando-se aos poetas germânicos. Sob essa ótica, Benjamin (2011, p. 48) traz o poeta alemão para designar justamente a condição do poema, ou seja, aquilo que, em certa medida, “preexiste a ele e nele se realiza”. Para Benjamim (2011), o “poetificado” revela-se como passagem da unidade funcional da vida para a do poema, de sorte que, naquilo que é poetificado, a vida se determina por meio do poema; sendo essa uma tarefa da linguagem. Para esta pesquisa, enquadramos o Sertão imaginado, “poetificado” nas Bachianas Brasileiras, porque ao referir- se à região, essa está lá, é viva e produtiva, entretanto, há nessa obra também uma linguagem musical e espiritual do compositor, que traz a superfície sob outro prisma. Para Benjamin (2011), a linguagem na qual o homem comunica sua essência espiritual é uma designadora em que acentuamos ir muito além da representação climática, e por ser a única linguagem designadora que se conhece, ela se torna interessante ao ser capaz de permitir que a essência espiritual se comunique em palavras, em sons. “Mas, mesmo que incorra no erro de fazer desta linguagem designadora a linguagem geral, perde-se a possibilidade de uma compreensão mais profunda e íntima das coisas” (BENJAMIN, 2011, p. 50). O autor ainda destaca na essência da linguagem a figura do narrador e reflete seu desaparecimento na história da civilização, ao que assemelhamos ao compositor diante da sua obra, apesar de este não haver desaparecido. Benjamin (2011) discorre sobre a importância da narrativa e traz algumas observações em que destaca a sabedoria, a informação e a experiência. Ele parte do trabalho do escritor Nikolai Leskov47, que foi um polêmico romancista russo ao tratar do tema antiniilista sobre o pensamento religioso, numa época em que o niilismo era amplamente disseminado entre os grandes escritores russos e franceses.

46 Johann Christian Friedrich Hölderlin (Lauffen am Neckar, 20 de março de 1770 — Tübingen, 7 de junho de 1843) foi um filósofo, poeta lírico e romancista alemão. É considerado, juntamente com Hegel e Schelling, um dos fundadores da corrente filosófica conhecida como idealismo alemão, cuja fundação teria se dado com a redação de O mais antigo programa do idealismo alemão. HÖLDERLIN, Friedrich. Poemas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 47 Nikolai Semyonovich Leskov, Gorokhovo, 16 de fevereiro de 1831 – São Petersburgo, 5 de março de 1895), escritor e romancista antiniilista russo. Fonte: Wikipédia, visita em 20 de julho de 2019. 100

Benjamin traz esse escritor para defender a tese de que a arte de narrar histórias está em extinção, e de como a guerra fez com que os combatentes ficassem mais pobres em experiência comunicável. Não obstante, aos nossos dias, isso se aplica também porque ouvimos muito, em guerra com os nossos próprios sentidos. Ouvimos talvez compulsivamente, mas não escutamos; e se escutamos, não compreendemos; e se compreendemos, não nos emocionamos (FORNARI, 2010). Porque se perdeu a capacidade de narrar, de experienciar, de envolver-se com o objeto em audição, em sua totalidade como objeto artístico e cognitivo. Esse parêntese na abordagem benjaminiana faz-nos lembrar das primeiras experiências numa audição reflexiva e crítica, ainda nos primeiros anos de formação musical; que se transformaram em atividade experimental de apreciação musical e análise subjetiva das Bachianas. Essas serão comentadas na seção 6, As Bachianas Sertanejas, uma atividade experimental, bem como serão discutidos os aspectos perceptuais, cognitivos e afetivos da música. Benjamim (2011, p. 198) afirma que as melhores narrativas são “as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”, isso porque esses narradores dividem-se em dois tipos: o narrador que vem de longe, que na obra de Leskov (2012) é o marinheiro comerciante; e o narrador que vive sem sair de seu país e conhece bem a tradição, na figura do camponês sedentário. Nessa comparação, está a extensão do real do reino narrativo que só pode ser compreendida se levarmos em conta a interpretação desses dois tipos, nos quais enquadramos o compositor Heitor Villa-Lobos, como um “narrador” do Sertão nordestino que necessariamente não esteve em todos os lugares, mas cita sua aventura musical pelo Brasil profundo (MARIZ, 1977); também se pode descrevê-lo como o “marinheiro” ou “camponês”. Ao falar sobre o narrador, seu ofício, sua ligação com o trabalho manual, o autor nos lembra da importância da sabedoria, e principalmente, lembra-nos do quanto esse conceito está desaparecido, “a arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção” (BENJAMIN, 2011, p. 201). Esse autor destaca dois indícios da evolução que culminarão na morte da narrativa: o romance e a informação. O romance, diferentemente da narrativa, está ligado ao livro, que não procede da tradição oral nem dela se alimenta, sua origem é o indivíduo isolado, que não recebe nem sabe dar conselhos. Já a informação, salienta o autor, ainda é mais ameaçadora e provoca uma crise no próprio romance, trazendo ao nosso tema. Desse modo, vemos como a informação sobre o Nordeste e o Sertão, e todo o conceito construído sobre a região, impede de ser visto de outra forma, 101

sendo sua conceituação reproduzida nas artes, na mídia, nos “arremedos” de sotaques e expressões, como alerta Albuquerque Júnior (2011). Voltando à narrativa, diferentemente de seu saber que vem de longe, a informação é imediata e pede uma verificação imediata também, porque esta só tem valor enquanto é nova. A esse respeito, apontamos uma inquietação: o que impede de verificar a distribuição de informação e reprodução conceitual sobre a região já tão apegada ao passado? A quem interessa manter? Ao tratar as Bachianas Brasileiras Sertanejas como uma narrativa, apontamos para uma possível outra interpretação da região, que necessariamente não precisa apagar os demais conceitos construídos, mas os redefinir, olhar para frente, para o que se tem hoje e o que poderá construir no futuro. Talvez seja cômodo alimentar-se do passado, apontar seus erros e também os acertos, mas continuar a reproduzi-los não mais cabe no presente. Há uma urgência em caminhar, porque como a erosão do tempo muda a paisagem, as pessoas mudam suas concepções, e, para mantê-las vivas, é necessário renovar a forma de ver também o passado. Um dos pontos destacados por Benjamin (2011) é a relação entre a narrativa e o trabalho manual. A narrativa é ela própria uma forma artesanal de comunicação, em que o narrador “deixa sua marca” contada, como o compositor deixa a sua, na obra que escreve. Cabe, portanto, ao século XXI, não mais apontar um estilo musical, como tínhamos com os compositores do classicismo, Mozart ou Haydn; ou no romantismo, Chopin e Liszt, mas um estilo próprio do compositor, por ser esse tão particular. Nessa narrativa tão particular, seja do autor, seja do compositor, Benjamin (2010) ainda salienta a perspectiva alterada das coisas, as quais ele compara ao surgimento das instituições higiênicas nas cidades e à percepção da morte no século XIX, quando diz: “A burguesia produziu, com as instituições higiênicas e sociais, privadas e públicas, um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte” (BENJAMIN, 2011, p. 207). Essa é uma referência aos odores de esgotos abertos, infectos, que passavam nas cidades e que o autor cita como o “cheiro da morte”. A visão do Nordeste e do Sertão também foi durante do século passado construída em torno da “morte”48, com a imagem da seca, dos imigrantes, da pobreza, da crônica escassez de alimentos, do menor nível de escolaridade, de produção de emprego, de um apego ao passado coronelista e também assistencialista das décadas mais recentes, sem contribuir significativamente para uma mudança mais efetiva.

48 Portinari, Os Retirantes, 1944. 102

Essa seria sua visão de “morte” mais contemporânea, divulgada pela informação, pelo romance, pela televisão e pelo cinema, mas também que pode apontar outra direção, como nas referidas Bachianas “Sertanejas”. Nesse sentido, trazemos outra inquietação: seriam obras como as Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos, na visão que trazemos nesta pesquisa, uma ação mais “higiênica burguesa” em negação ao “cheiro da morte”, como lembra Benjamin (2011)? Seria um “lustrar” dessa realidade? Essa alteração também vai interferir na extinção da narrativa, uma vez que a autoridade daquele que vai morrer e se recordar da vida está na origem da narrativa. O autor termina o texto retomando a importância do narrador: “O narrador figura entre os mestres e os sábios” (BENJAMIN, 2011, p. 208), como o compositor na sua função de narrador de longe. O narrador sabe dar conselhos, não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio sob seu olhar experiente ou até curioso, pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida. “Seu dom é poder contar sua vida; e sua dignidade, é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida” (BENJAMIN, 2011, p. 208). Dessa forma, Benjamin (2011) apresenta as características do narrador. Cita o distanciamento como premissa para se tentar entender a essência do narrador, aponta a carência quase total de alguém que saiba narrar nos dias de hoje e vê a faculdade de intercambiar experiências em vias de extinção. O autor ainda comenta sobre as causas da ausência de transmissores de experiências, causando um cenário de desolação, quer no mundo exterior com as experiências efêmeras, e essas, carentes de sentido; quer na economia sagaz do capitalismo sem freios, constituindo uma crônica falta de ética, que é afetada pela pobre transmissibilidade de comunicação. Isso se dá em volátil e superficial informação, que se articula, conceituando e determinando tipos e lugares, seja pela inflação, seja pela experiência da falta de ética dos governantes. Segundo Benjamin (2011), Leskov tem como ideal o homem que não se apega demasiadamente ao mundo. Essa é uma das características do narrador. Ao trazermos Villa Lobos, consideramos que teve tal atitude quando buscou outras referências musicais fora do Rio de Janeiro, sendo boêmio da Belle Époque. Ele partiu para o Brasil “profundo”, como anteriormente dito, e apesar de os lugares por ele visitados não serem todos confirmados, isso não o impediu de lhes dar sua impressão, de conferir-lhes seu histórico e igualmente participar de seus contextos, uma vez por ele investigado como força cultural (LÉVI- STRAUSS, 2008). 103

Sua experiência com a cultura sertaneja, de perto ou de longe, permitiu percebê-la como é, e a incluir em parte de sua obra. Nesse processo, a identidade na produção artística pode ser fruto de seu reconhecimento como prática social, uma espécie de foco virtual que é indispensável para o artista. Lévi-Strauss (2008, p. 369), após sua experiência com comunidades indígenas nos estados de Mato Grosso e São Paulo, reconhece que “a identidade é uma espécie de foco virtual ao qual nos é indispensável referir para explicar certo número de coisas, sem que tenha jamais uma existência real”. Para Lévi-Strauss (2008), há na existência puramente teórica um limite que não corresponde à realidade. Seu alerta é para a necessidade de descartar a identidade como uma entidade dotada de existência própria e não se pode negar que ela é na vida cotidiana. Mas também é um referencial para a percepção do social e do próprio indivíduo, como ideia ou noção, que permite perceber o mundo e como é dotado de sentido. Essa identidade com sentido estaria ligada diretamente à história e a seu contexto vivido. Para Lévi-Strauss (2008), a história não está ligada ao homem, nem a qualquer objeto em particular, mas consiste inteiramente no seu método: a experiência, que comprova o que é indispensável para a integralidade de qualquer estrutura humana. Longe, portanto, de a pesquisa da inteligibilidade resultar na história como o seu ponto de chegada, “é a história que serve de ponto de partida para a busca de inteligibilidade. Assim como se diz de certas carreiras, a história leva a tudo, mas contanto que se saia dela” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 371). Considerando a historicidade da cultura musical do Sertão nordestino e como foi incluída na música de Villa-Lobos, percebe-se que isso não depende apenas de sua vivência mas também da forma como o compositor a incorporou, no seu próprio método, considerando o nacionalismo de sua época e as influências modernistas e neoclássicas. É essa música e esse Sertão que se tornam mais presentes também por sua intensidade e representatividade brasileira, os quais o compositor buscava em suas referências. Foi um Sertão impressionista, debussyniano, cujas formas emergem entre luz e sombra, cores e imagens que se formam na retina, para lembrar Monet, e que se move entre um passado conceituado e um presente a ser (re)descoberto. Sob a lógica benjaminiana, em comparação com a literatura, o romance e a narrativa aplicam-se à música, em sua abordagem. Ele sempre volta à questão de que arte de dar conselhos está em extinção, isso porque a sabedoria repete o lado épico da verdade. Ademais, ela está em extinção, bem como a transmissibilidade das experiências devido à evolução das forças produtivas. O surgimento do romance vai culminar com a morte da narrativa. Nesse 104

caso, o narrador retira da experiência o que ele sabe, enquanto o romance não tem essa característica, não recebe nem dá conselhos. O romancista descreve o incomensurável numa vida humana até seus últimos limites, diferentemente do que ocorre na narrativa que se constrói da experiência e conduz o ouvinte a dela participar pela sua força épica. Entretanto, as transformações das forças épicas, das quais a narrativa se alimenta, passaram por transformações milenares semelhantes às da crosta terrestre, diz o autor. Mas o romance encontra na burguesia, no capitalismo, terreno propício ao seu desenvolvimento, principalmente com a imprensa, um dos seus instrumentos, como uma nova forma de comunicação. Em contraposição à narrativa está a informação, sendo plausível e incompatível com a narrativa, esta que prima em evitar explicações, porque, diferentemente da informação, na narrativa, o leitor ou ouvinte é livre para interpretar, para refletir sobre o distanciamento, devido ao tema que lhe é apresentado (BENJAMIN, 2011). A narrativa, ao contrário da informação e do romance, conserva suas forças, seu desenvolvimento; enquanto a informação, por si mesma, perde o valor ao se ter conhecimento dela. O narrador, renunciando às sutilezas psicológicas, faz do tédio o tecido da experiência, que o capacita a contar e recontar histórias, seja no ritmo do seu trabalho, seja no esquecimento de si mesmo. Nessa perspectiva, trazemos a experiência de Villa-Lobos com músicos cearenses, em especial, com o saxofonista Donizete, quando relatou que esses músicos afinavam seus instrumentos mais para baixo e cantavam como se se aproximassem do diapasão normal, mas não chegavam a ele, o que, para eles, soava “normal”. Interessou- lhe, naquele contexto, a experiência de outras referências musicais, que se lhe faziam contemporâneas também. Assim, o compositor buscou trazer essas referencias à sua obra, considerando a peculiaridade da música que havia conhecido, não em alteração ou “correção” ao diapasão normal, mas como um “narrador” nesse processo, esquecer-se um pouco de si mesmo e apresentar o outro, a novidade que viria aparecer em sua obra. Esse era o seu “trabalho manual”, a sua narrativa, reproduzido inicialmente em taquigrafia, propício ao desenvolvimento da arte de narrar, talvez rupestre e intuitivo, como ficou conhecido, mas elaborado e muito sofisticado com a arte da Bach. A narrativa não está preocupada com a pureza do que está sendo narrado, como Villa-Lobos também não estava preocupado em relação a tudo quanto escrevia. Era apenas fiel à sua imaginação, à sua narrativa de Sertão, que necessariamente não teria de ser naturalista, mas impressionista. Os narradores geralmente começam a narrativa descrevendo as circunstâncias em que apreenderam os fatos, as camadas finas do tempo e do labor que 105

entalhavam as narrativas, até as que já não existem mais. Nessa direção de narrativa, observam-se tais descrições na Dança Lembrança do Sertão da Bachiana nº 2, no Coral Canto do Sertão e na Ária Cantiga da Bachiana nº 4, em que camadas de impressões lhe são dadas através do tratamento técnico dado à obra, em termos weberianos, quando dizia respeito à escrita musical e como ela representava a ideia do compositor. Benjamim (2011) ainda compara a arte de narrar com as ideias de eternidade e morte, antes ligadas ao trabalho prolongado, à comunicabilidade da experiência da arte de narrar. A morte foi depurada dos espaços burgueses, dando espaço ao poético naquilo que os desviava da realidade. Mas a lógica do autor se desenvolve em torno da autoridade do leito de morte, que foi perdendo a significação na condição de exemplo aos vivos, sendo a origem reflexiva da narrativa. Ele traz a figura de Hebel, de modo que o narrador faz uma cronologia de uma história de amor, de uma noiva de um dos mineiros de Falum, e usa a morte de forma tão regular que nela exemplifica bem sua importância na arte de narrar, comentando a ideia da historiografia como zona criadora em relação às formas épicas. Seja cronista, seja narrador, está livre da obrigação do ônus verificável, e nisso revemos a trajetória de Villa-Lobos, como “narrador” dos Sertões que visitou, ora afirmada por seus biógrafos, ora rebatida nos estudos historiográficos sobre o compositor, em pouco confirmada e em muito trazida para sua obra. Trata-se de uma narrativa substituída pela exegese, que não se preocupa com o encadeamento de fatos determinados, apenas com a inserção deles no fluxo insondável das coisas, a que Villa Lobos está vinculado. Trata-se de uma narrativa substituída pela exegese, que não se preocupa com o encadeamento de fatos determinados, apenas com a inserção deles no fluxo insondável das coisas, porque, dialeticamente, tem as “deixas” do narrador e segue em suas concepções sobre o que lhe foi apresentado. Esse não é um caminho difícil de percorrer, porque, para Benjamin (2011), o verdadeiro narrador tem raízes no povo e com ele cria afetos, laços que o identificam. Em relação a Villa-Lobos, suas raízes estavam no povo, seja no Rio de Janeiro boêmio dos anos de 1920, com as serestas e chorões; seja no interior de São Paulo, com as cantilenas sertanejas caipiras; seja nos sertões profundos no Nordeste do Brasil, com os jongos da Bahia, os maracatus do Recife e as cantigas cearenses. É uma camada artesanal que tece a narrativa e conduz assim o ouvinte. “Porque os narradores têm a facilidade de moverem-se para cima ou para baixo, e não impõe sua verdade, mas constrói sua narrativa a partir dos elementos que dispõe” (BENJAMIN, 2011, p. 210). Sob esse prisma, lembramos a declaração de Villa-Lobos sobre ser ou não moderno e escrever música dissonante, quando esteve no Ceará e ouviu cantar de maneira diferente ao 106

seu diapasão normal, como se estivesse desafinado. Em vez de corrigir, percebe que se trata de outra afinação, que exatamente a sua não significa “perfeição”, dando-lhe curiosidade em compor a partir daquelas referências musicais. A experiência musical do compositor com outros músicos mostra-nos sua posição de narrador na lógica benjaminiana. Ele traz a voz da experiência para sua música. Nessa direção, Benjamin (2011) ao comentar A voz da natureza, de Leskov, mostra que esta se exprime menos através da voz humana, e mais pela “voz da natureza”. A esse respeito, percebemos que, na Dança Lembrança do Sertão e no Coral Canto do Sertão, ao evocar essa voz não humana, Villa Lobos dá lugar ao fato, à paisagem, ao Medium – como mediação climática para a paisagem sonora. Na observação do artista, de acordo com sua percepção mística, como trata Benjamin, os objetos iluminados perdem os seus nomes. Assim, sombras e novas claridades formam sistemas particulares, que não dependem de qualquer ciência, nem aludem a uma prática. “Mas que recebem toda a sua existência e todo seu valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a mão de uma pessoa nascida para surpreender. Tais afinidades em si mesmo para as produzir” (BENJAMIN, 2011, p. 215). Sob essa ótica, pode-se tecer o “Sertão imaginado” nas Bachianas. Para isso, tomamos todos os elementos que têm contribuído para sua construção, seja em Medium, seja em experiência com músicos locais, seja, ainda, em impressões que foram se construindo sobre a região. Benjamin (2011) lembra a figura do narrador como mestre e sábio, que sabe dar conselhos, não como os provérbios, mas, em muitos casos, pode carregar os arquivos de uma vida. Busca ele contar ou descrever sem fragmentos, sem visão exógena e preconceituosa, como adverte Albuquerque Júnior (2011), contá-la “sem deixar a luz tênue de sua narração consumir a mecha da vida [...], o narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo”. Essa certamente é uma linguagem geral, que significa ou também aponta para a linguagem do homem como homo ludicus e em contribuição à comunicação de conteúdos espirituais, que se refletem nos domínios da técnica – as Bachianas em ato –; e a arte como elemento social – em potencial. Na abordagem que trazemos, a linguagem não envolve somente a comunicação mas também todos os aspectos da vida humana, por isso, nós nos detemos nas Bachianas em potencial. Tudo o que tiver relação com o homem possui uma linguagem, o que não se trata de nenhuma novidade, mas que o autor divide em “linguagem dos homens” e “linguagem em geral” (BENJAMIN, 2011). Essa divisão ocorre porque existe a linguagem humana e a 107

linguagem das coisas. Para ele, a existência dessa linguagem estende-se não apenas a todos os domínios de manifestação espiritual como também em todos os sentidos, porque a linguagem pertence absolutamente a tudo, e não há evento, tanto na natureza animada quanto na inanimada, em que não haja uma linguagem. Ela é essencial naquilo que comunica. Dessa forma, percebe-se que a linguagem não se limita à vida humana, ela está presente em tudo o que existe na vida do homem, no restante da criação. Na concepção tradicional de linguagem, ao contrário dessa ideia, só existiria linguagem no âmbito humano. Assim, somente o ser humano tinha capacidade para manifestar linguagem, para desenvolver uma forma de se comunicar, o que ficaria incompleto, a nosso ver, sendo aquilo que falta às teorias mais modernas da linguagem. Nessa perspectiva, estamos de acordo com Benjamin (2011), em sua concepção mais ampla sobre a linguagem das coisas. Isso porque, entendemos ter a arte, a música, em particular, a sua própria linguagem. Esse pensamento leva-nos à seguinte pergunta: como as coisas se comunicam? Sobre isso, Benjamin (2010, p. 218) vai responder: “A quem se comunica a lâmpada? A quem a montanha? E a raposa? – Aqui a resposta é: ao homem. Não se trata de antropomorfismo. A verdade dessa resposta se deixa ver no conhecimento, talvez também, na arte”. Por isso, ao trazemos as Bachianas, buscamos, por essa teoria, compreender como se dá a obra como linguagem. Quando um artista observa um cavalo correndo ou o pôr-do-sol, ele capta essa imagem pelos seus sentidos. Na pintura dessa imagem, que está em sua memória, busca expressar aquilo que sentiu ao visualizá-la. A pintura pode ser considerada fruto da comunicação concebida, de modo silencioso, entre o pintor e o seu objeto. Nas Bachianas Sertanejas, as imagens que comunicam a região, na obra, são trazidas primeiro na memória do compositor e depois na do ouvinte. Walter Benjamin (2011, p. 220) ainda faz a seguinte analogia: “Se a lâmpada e a montanha e a raposa não se comunicassem ao homem, como poderia ele nomeá-las? No entanto, ele as nomeia ele se comunica ao nomeá-las”. Eis a diferença entre a linguagem humana e a dos objetos. O que não existe nos objetos, nas coisas, seria “uma linguagem nomeadora”. Dessa forma, podemos dizer que tanto o homem como as coisas são possuidores de linguagem. Assim, há linguagem tanto em Villa- Lobos como nas Bachianas, como no Sertão, uma vez que não podemos desprezar a força dessa linguagem; porque “às coisas é negado o puro princípio formal da linguagem que é o som” (BENJAMIN, 2011, p. 220). Isso significa dizer que a linguagem das coisas é silenciosa; e a linguagem dos homens, nomeadora e sonora. 108

Apesar de parecerem separadas, ambas as linguagens não estão em oposição. Elas se complementam, entre o silêncio de uma a sonoridade da outra, sem que haja necessariamente uma relação de poder, mas mútua cooperação. Há dois termos na língua alemã trazidos por Benjamin (2011) que são: Mittel, que significa “meio para determinado fim” e Medium, que significa “meio enquanto matéria, ambiente de modo de comunicação”, ambos se referem ao meio em que ocorre a linguagem. Na concepção tradicional ou “burguesa”, assim por ele chamada, é a de que “o meio [Mittel] da comunicação é a palavra; seu objeto, a coisa; seu destinatário, um ser humano” (BENJAMIN, 2010, p. 223), sendo esse meio o intermediário da comunicação, que serve para relacionar as coisas e o que se diz delas. Nesse processo, a essência do signo parece ser a de um ente mediato, isto é, algo que está por outra coisa. Esse signo seria, portanto, um instrumento, uma ferramenta utilizada para dar sentido àquilo que se procura comunicar. Mas, se aquilo que se diz das coisas não é exatamente o que elas são, tornam-se, portanto, vazias de sentido Para Benjamin:

Há outra concepção de linguagem que não conhece nem meio [Mittel], nem objeto, nem destinatário da comunicação. Ela afirma que no nome da essência espiritual do homem se comunica com Deus. [...] A essência espiritual do homem é a língua mesma, ele não pode se comunicar através dela, mas apenas dentro dela (BENJAMIN, 2011, p. 223).

Sob essa ótica, o Medium da linguagem é ela própria, e o homem não pode utilizá-la para se comunicar, mas só pode se comunicar dentro dela. Os gregos antigos expressavam dessa forma a identidade do espírito e da linguagem através do logos. Benjamin (2011), por sua vez, recorre à essência espiritual como idêntica à essência linguística, na medida em que essa é comunicável. É com base na palavra humana que se expressa aquilo que está em essência do objeto, não existindo, então, identidade entre o que é dito e o seu conteúdo espiritual. Para ele, esse é um tipo de linguagem do homem, de conteúdo e identidade espiritual como sendo a linguagem em que ocorreu a criação. Para Benjamim (2011), conhecer a linguagem é tudo o que seria necessário para compreendê-la e seu julgamento atrapalha o discernimento daquele que nomeia, tornando-a, em verdade, oculta, encoberta pelo manto da arrogância. Em continuidade a seu pensamento, o autor afirma que, depois que o homem cria a palavra judicante, distancia-se do conhecimento da criação, da origem das coisas. Assim, o que nomeia passa a ser simples convenção, que pouco define ou expressa o que realmente acontece. Nesse sentido, com a perda da relação natural entre os elementos do mundo, tudo se transforma em cifra de um saber enigmático (SELIGMANN-SILVA, 1999). 109

Benjamin (2011) chama a atenção para o seguinte fato: quando o homem inventa a palavra judicante, uma das coisas que vai surgir é a abstração como signo linguístico e o distanciamento do real. É na abstração que existe uma separação entre a realidade e o pensamento. Trazendo para o objeto de investigação, as Bachianas de Villa-Lobos apresentam um Sertão de signo linguístico, e não necessariamente separam-se da realidade. Isso porque a música, como linguagem do homem e das coisas, aproxima o pensamento da realidade, não o isolando do mundo, mas estando em constante mudança com as novas percepções da realidade, como poderá ser verificado na atividade experimental comentada na seção 5, As Bachianas Sertanejas em puncto. Nesse processo, o vínculo entre o pensamento e a realidade só existe na mente daquele que pensa, sendo “sobrenomeado” com o conceito que quer dar conta do real. Assim, não esquecemos que o real é móvel, é volante, é dominado pelo Kronos. Por isso, tratamos de uma linguagem do tempo, que é significante para quem ouve e pensa sobre ela, e que por ela pode elaborar pensamento. O perigo do conceito do real é apegar-se a certas características do objeto como se fossem imutáveis. Ao conceituar algo, busca-se sua definição para tentar explicar o que as coisas são, e, muitas vezes, mantê-las como são pode ocasionar o erro de reproduzir mitos e definições desatualizadas. Isso, certamente, acompanha generalizações entre o objeto avaliado e a realidade. Isso tudo, a nosso ver, como investigação da obra Bachianas, seria apenas aproximação daquilo que realmente ocorre no mundo, nas generalizações das culturas, dos povos e de suas manifestações artísticas. Mas como cada ser e cada cultura são únicos, e como não existe uma folha igual a outra na natureza, apesar de chamá-las pelo mesmo nome, não há cultura igual, nem há concordância de pensamento, nem deve haver. Porque, para mantê-la, além de todo o esforço demandado, é necessário que haja múltiplas narrativas sobre a cultura, com o cuidado de que a comunicação não se torne algo distante do real. “Essa imediatidade na comunicação do abstrato instalou-se como judicante quando o homem, que abandonou a comunicação do concreto, isto é, o nome, e caiu no abismo do caráter mediado de toda comunicação, da palavra vã, no abismo da tagarelice” (BENJAMIN, 2010, p. 225). A verdade está na realidade, no entanto, não pode ser conhecida em sua totalidade como buscam os filósofos que tentam enquadrá-la em um sistema de valores. Não é fruto do trabalho intelectual ou filosófico, ao contrário, faz parte da essência do real, que, na origem do drama barroco, o objeto do saber como determinado pela intencionalidade do conceito não é considerado a verdade. Ademais, não possui objetivos ou finalidade, e como visa à 110

produção conceitual, ela é “não conceitual” e não intencional, porque a “verdade é a morte da intenção” (BENJAMIN, 2010, p. 225), por isso, o nome é livre de qualquer fenomenalidade. Como as Bachianas levam consigo parte do drama barroco, representam também parte da realidade, sendo essa um reflexo do contexto em que foi escrita, ou seja, como uma construção não conceitual da qual não subtraímos a intencionalidade no uso de referências de ritmos e melodias que identificam a região Nordeste, e em particular, o Sertão. Revela-se, ainda, como fruto de uma “narrativa” do compositor que conduz o ouvinte a elaborar sozinho sua imagem da região por meio da linguagem, da arte, da música, como linguagem das coisas, nem sempre apegadas e determinadas pela linguagem do homem. Ao nomeá-la, passa a fazer parte daquilo que nos aproxima, por isso, neste trabalho, são chamadas de Bachianas Sertanejas. Ao trazer o objeto desta investigação como linguagem das coisas, vimos o quanto a ciência tem sido considerada um caminho seguro para se chegar à verdade. Desse modo, é vista como instrumento útil para tal. Mas sendo a ciência uma criação humana, também não pode ser perfeita, por isso, está sempre sujeita a avaliações e reavaliações, dessa maneira, também dispomos a presente investigação. Portanto, a unidade do saber, se é que existe, consiste apenas na coerência mediada e produzida por conhecimentos parciais e, de certa forma, por seu equilíbrio, “ao passo que na essência da verdade a unidade é uma determinação direta e imediata” (BENJAMIN, 2011, p. 228). É a partir da nomeação que aparecem os aspectos fenomênicos, presentes na experiência sensível como por força da sustentação que lhes é atribuída. Ou seja, é por meio deles que se tem a oportunidade do real, e, consequentemente, a descoberta das ideias, logo, “na contemplação filosófica a ideia (sic) se libera enquanto palavra, do âmago da realidade, reivindicando de novo seus direitos de nomeação” (BENJAMIN, 2011, p. 228). Apesar de o autor desenvolver sua ideia a partir da relação espiritual e de origem teológica, redirecionamos ao objeto como portador de um nome, um conceito, uma ideia. Finalizamos esta seção com a abordagem de Walter Benjamin, em relação à linguagem geral e à linguagem dos homens, que trata a arte, e, especificamente, a música, pois consideramos sua ideia uma espécie de rememoração ou reminiscência, a percepção do nome que se expressa pelas ideias. Nesse processo, a tarefa do filósofo é restaurar a palavra em sua primazia pela representação do caráter simbólico da palavra, a fim de chegar à consciência de si, o que é oposto a qualquer comunicação dirigida apenas para o exterior. Logo, a linguagem tem a comunicação como seu principal alvo. Ela é utilizada pelo homem com o objetivo exterior ao da própria linguagem. Isso fica mais claro se entendermos 111

que a informação só passa a existir quando a comunicação do homem é dirigida para o exterior. Ou seja, ela é utilizada como simples meio Mittel, tendo também um objetivo específico, que é acrescentar algo ao seu discurso. O autor reafirma o valor da narrativa, ou melhor, da arte de narrar, que é transmitida oralmente, como uma linguagem viva, e como os narradores utilizavam a comunicação para transmitir ensinamentos construídos pela própria experiência. Desse modo, o conhecimento era passado naturalmente. A partir da origem teológica de Walter Benjamin (2011) no desenvolvimento de sua teoria sobre a linguagem, vemos pelo menos três implicações. A primeira tem a ver com o direito, vendo a si mesmo como portador do conhecimento para julgar o que é bom e o que é mau, que não poderia estar mais enganado por sua incapacidade. A segunda seria o conhecimento científico amparado pelo conceito, que não detém a verdade. E a terceira, a informação, sendo uma forma de comunicação exterior, que sozinha não traz qualquer conhecimento. O que o autor aponta é para a contemplação filosófica, que revela por si mesma, e de forma pontual, como ocorre com o brilho de uma estrela, numa “iluminação profana”. Ao fim deste Largo, ainda com um rallentando reflexivo, duas caixas foram abertas: uma sobre as Bachianas em ato, quando a música é uma linguagem em si mesma e, portanto, um “objeto” virtual; e a outra, sobre as Bachianas em potencial, naquilo que é possível extrair da obra para além da partitura e seus recursos técnicos, isto é, o contexto histórico e social em que foi desenvolvida e o que aponta como linguagem. Nessas “caixas”, conta-se com a posição ou a participação do ouvinte como elemento essencial na percepção da obra e sua contemporaneidade. Nesse processo, o ouvinte, que por muito tempo se posicionou distante da obra, torna-se ator e parte da ideia do compositor, porque ele reage aos sons, associa a outros, interpreta e os reproduz. Ele é capaz de perpetuar a obra ou contribuir para seu esquecimento, por isso, é o ouvinte, na contemporaneidade, parte integrante da obra musical. Na seção que segue Fuga: as Bachianas Sertanejas (puncto), serão examinadas as peças e sua aproximação com a região, analisando como a linguagem musical comunica e pode produzir afeto entre o que está escrito em notação e a construção, seja como Mittel, seja como Medium, do Sertão nordestino na música.

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5 FUGA: AS BACHIANAS SERTANEJAS (PUNCTO)

A música não é de ordem de conceito, mas de ação, tem-se tornando profusamente significante e historicamente interpretável na sua coletividade (RUWET, 1974, p. 765).

Nesta seção em Fuga, serão apresentadas aproximações ou identificações sertanejas presentes na obra, observando como podem ser localizadas, identificadas e interpretadas hermeneuticamente à luz da própria escrita musical. Esta seção será o puncto da Fuga, e discorrerá dialeticamente ao contrapunctus, contribuindo para a reflexão sociológica da obra. O puncto e contrapunctus, respectivamente nas seções 5 e 6, ora são condescendentes, ora discordantes e estarão dispostos nesta Fuga sem perder de vista a temática proposta: compreender a temática sertaneja trazida pelo compositor Heitor Villa-Lobos. Nas Bachianas Sertanejas, a Introdução Embolada, a Dança Lembrança do Sertão, o Coral Canto do Sertão e Ária Cantiga serão examinadas nesta seção à luz de sua notação musical e sob aplicação da Topics Theory, direcionadas às tópicas brasileiras, e essas, às tópicas nordestinas. Nesse caso, duas delas – o Coral e a Ária – serão analisadas mais acuradamente, por percebermos mais proximidade com o tema, para, assim, não nos determos excessivamente em aspectos demasiadamente técnicos. Nas peças escritas originalmente para piano – o Coral e a Aria, ambos da Bachiana nº 4 –, os aspectos formais serão analisados simultaneamente, com a estrutura da notação musical. Nesse sentido, buscaremos observar como foram manipulados os ritmos e melodias, atribuindo-lhes significados a partir das tópicas brasileiras, especificamente das nordestinas (PIEDADE, 2009; SALLES, 2009) e seu posicionamento e interpretação no interior da obra.

5.1 INTRODUÇÃO EMBOLADA – BACHIANA Nº 1

A Introdução Embolada, a primeira peça da Bachiana nº 1, foi escrita para uma orquestra de violoncelos, que pode ser constituída de oito ou dezesseis instrumentos. Esse formato rendeu críticas na época em que foi composta e apresentada a peça, em 1930. A Revista da Semana, em 11 de março de 1939, faz um breve comentário sobre a peça.

Em que o autor das Bachianas se baseou para chamar orquestra de violoncelos? Que é orquestra? Quais características de uma orquestra? Eu gostaria que o autor das Bachianas estudasse o assunto e verificasse se realmente oito violoncelos constituem uma orquestra (NÓBREGA, 1971, p. 23).

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Essa crítica faz parte do estereótipo construído sobre Villa-Lobos, que seria um compositor mais intuitivo que erudito. Essa publicação na Revista da Semana causou diferentes reações aos leitores, como também acentuou a rejeição ao compositor e à sua proposta instrumental. A formação de uma orquestra de violoncelos não era uma novidade, pois já seria utilizada por outros compositores. Ao apresentar a primeira suíte das Bachianas, a Introdução Embolada foi tomada de críticas ao ser afirmado que não era adequada à sonoridade do violoncelo. Nisso, observa-se a resistência não apenas à obra de Villa Lobos como também ao modernismo impresso em sua música. A Introdução Embolada divide-se em três movimentos, com título duplo, característico da série. No primeiro, a Introdução está em andamento Animato, na tonalidade de Dó menor, com seis compassos que estabelecem um ambiente rítmico brasileiro, valendo- se de figurações da Embolada entrecortadas por breves pausas, enquanto se alteram acordes do 4º e do 1º grau com notas ajuntadas e alterações (Figura 18).

Figura 19 – Introdução Embolada – primeira parte

Fonte: https://www.researchgate.net/project/BACHIANAS-BRASILEIRAS-N-1-Analise- Transformacional-e-Hibridismo-Cultural. Acesso em: 20 jan. 2020.

A harmonia é escrita na peça a partir do quinto compasso dado com ênfase na tonalidade de Dó menor com 7ª ajuntada. A escrita da peça proporciona um pano de fundo, ou cenário, de onde se projeta uma larga e generosa melodia de acentos. Essas são duas “pistas”, uma brasileira e a outra de espiritualidade da música de Bach, com expressões melódicas em amplos intervalos frequentemente utilizados na Bachianas (Figura 18, círculos). 114

A peça segue em obstinado fundo rítmico. Na segunda parte, sobressai-se a célula inicial da melodia citada, tornando-se cada vez mais aguda. Ela é submetida a um processo de transformação de tercinas harmonizadas por acordes de 7ª dominante, rebaixada, uma característica da escala nordestina, do modo mixolídio, sendo uma saliência da tópica nordestina. Sua função com essas alterações descendentes é caracterizar fortemente a Embolada. Nas seções a seguir da peça, encontra-se um jogo frequente em Villa-Lobos, que é o emprego do mesmo desenho melódico com tempos progressivamente mais curtos, de modo a dar a impressão de um “afrentando”, fazendo valer a feição brasileira. Nela, a melodia é repetida com imitações nas quais aparece em sucessivas entradas, tendo como outra característica o uso do pedal (Figura 19, círculo horizontal). O compositor conclui a primeira seção da Introdução Embolada com notas mais longas no início de cada frase musical. Entre a primeira e segunda parte da peça, há uma sequência de notas repetidas, uma denominação bachiana de concitato, recurso expressivo herdado do período barroco (HARNONCOURT, 1998).

Figura 20 – Introdução Embolada – segunda parte

Fonte: https://www.researchgate.net/project/BACHIANAS-BRASILEIRAS-N-1-Analise- Transformacional-e-Hibridismo-Cultural. Acesso em: 20 jan. 2020.

Na conclusão desse desenho rítmico e melódico da embolada, aparece o último motivo da imitação, como acontece na primeira parte (Figura 18), o qual aponta para um novo 115

episódio na peça, com um ritmo bem marcado. Ao longo da última parte chamada de As costureiras, o episódio de caráter eminentemente rítmico se insere com um pedal formado por obstinadas figurações de violoncelos com curtos fragmentos melódicos que se elevam e depois retornam mais graves, assim mantendo um ambiente tonal e rítmico com staccatos. Os motivos em imitação encadeiam-se com a reprise do pedal em figurações rítmicas (Figura 19), sendo completadas com arpejos e staccatos em que se estabelece a Embolada, como motivo típico desse gênero popular, finalizando com allargando.

5.2 DANÇA LEMBRANÇA DO SERTÃO, DA BACHIANA Nº 2

A Dança Lembrança do Sertão é a terceira peça da Bachiana nº 2, composta em 1930 para orquestra49 e depois para piano solo (1941). A peça é escrita em andamento Andantino moderato, quaternário e tonalidade de Lá menor. Inicia com pizzicati das cordas seguido de staccatos, evocando o dedilhado da viola sertaneja. Após uma breve introdução, o tema aparece em solo de trombone que expõe uma sonoridade “agreste” sem muitas ondulações com terminação na 7ª abaixada, que caracteriza a escala nordestina. O solo segue em diálogo com as flautas, oboé e clarinetes, em escalas ascendentes, acentuando a característica nostálgica pelo recurso do pizzicati, diferentemente do ambiente sonoro em Allegro, que constitui a seção central da Dança. Seu ethos comunicativo se nutre no Allegro em que o compositor explora com intensidade as potencialidades rítmicas implícitas no tema. Após uma densa “fúria” rítmica, estabelece um andamento mais calmo para a reexposição do tema, que termina em uníssono. A obra existe em duas versões, uma orquestral e uma camerística, como também para violoncelo e piano. De acordo com as datas oficiais, ou seja, aquelas que constam das biografias e do Catálogo do Museu Villa-Lobos (2009)50, a versão orquestral precede a camerística, que tem data de 1930. Há nessa peça, Dança Lembrança do Sertão, uma peculiaridade, que é a redução para piano solo, que foi utilizada na audição durante a atividade experimental. Essa peça possui as seguintes características: a manutenção do padrão sonoro, em imitação ao solo de trombone, e a projeção do texto musical. A primeira característica propõe

49 Orquestra para Dança Lembrança do Sertão, instrumentação: flautim e flauta, oboé, clarinete, sax tenor e barítono, fagote e contrafagote, 2 trompas, trombones, tímpanos, ganzá, chocalhos, matraca, reco-reco, tamborim, caixa, tambor, triângulo, pratos, tam-tam, bombo, celesta, piano e todo o naipe de cordas (NÓBREGA, 1971, p. 37). 50 CATÁLOGO MUSEU VILLA-LOBOS. Villa-Lobos e sua obra. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, 2009. 116

construir uma retórica melancólica com o tema em toada sertaneja (Figura 20), de forma reconhecível, em que “os acontecimentos sonoros nos permitem o acesso aos padrões sonoros” (WALTON, 2010, p. 7).

Figura 21 – Trecho da Dança Lembrança do Sertão – tema em toada

Fonte: Barrenechea, 2014

O tema é apresentado em toada (Figura 20), sob uma melodia escrita idiomaticamente para o trombone, a qual utiliza intervalos mais longos (Figura 20, círculo) desde a escolha de registro até os tipos de intervalos e uso de glissandi, que são escritos para a utilização do registro e da dinâmica desse instrumento (AREIAS, 2014).

Figura 22 – Trecho da Dança Lembrança do Sertão – na toada para piano

Fonte: Irmãos Vitale (Sonia Rubinsky ed.)51

51 VILLA-LOBOS, Heitor. III. Dança – Lembrança do Sertão (para piano). Rio de Janeiro, 1930. Partitura manuscrita. Villa-Lobos, Heitor: Piano Music – Volume 7. Heitor Villa-Lobos (Compositor). Sonia Rubinsky (Intérprete, piano). Paris, França: Naxos, 2007. Compact Disc.YOUTUBE.COM. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=GKmC9_lUbgI. Acesso em: 14 dez. 2019. Bachianas Brasileiras n. 2 for chamber orchestra (1930), III. Dança - Lembrança do Sertão. Veiculado em: 29 jun. 2019. Dur: 4m52s. YOUTUBE.COM. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=rRQIGKiBOUY. Acesso em: 15 dez. 117

Na versão para piano (Figura 21), a melodia fica a cargo da mão esquerda, que também tem de executar acordes na região grave do instrumento, alternadamente, realizando deslocamentos consideráveis no teclado para o reconhecimento da toada como elemento sertanejo. Nesse trecho, a escrita musical busca reproduzir o “acontecimento sonoro” a fim de criar uma nova concepção de melodia, sem, contudo, afastá-la de suas características. “É através dos recursos pianísticos que busca explorar outra atmosfera ao ouvinte, em que se realça a ressonância da linha melódica numa resultante harmônica com os acordes na região grave” (BARRENECHEA, 2014, p. 18).

5.3 CORAL CANTO DO SERTÃO, DA BACHIANA Nº 4

O Coral Canto do Sertão (Figura 22) é a segunda peça da Bachiana nº 4. Foi composta em 1931 para piano solo; e dedicada ao pianista e compositor, José Vieira Brandão52. Nessa peça, são identificadas e examinadas as características do Nordeste musical, místico e “profundo”, o Sertão. Em sua análise, constam marcações inscritas na própria partitura e na identificação das tópicas nordestinas, que, sob feição brasileira de evocação bucólica, caracteriza uma remota paisagem sertaneja, “Geograficamente longe e perdida no tempo, tão imersa e sutil, que nem sabemos onde verdadeiramente ela existe” (NÓBREGA, 1971, p. 68). Ao referir-se à ficção que se diz haver na sensibilidade ao ouvir Villa-Lobos, Nóbrega (1971, p. 68) acrescenta: “E ele, deitado em sua rede, na tarde modorrenta, o sertanejo ouve um canto dolorido, sem brilho e sem paixão, quase indiferente, enquanto a araponga pontilha a melodia com a sua percutida voz”. Seu comentário aponta para uma melancolia persuasiva de encanto, em Medium bucólico, sob a forma lenta em gênero coral ao estilo de Bach. A peça segue em registro grave nos acordes, com uma melodia que se desenvolve sob um tema de canção religiosa, interrompido por um Si bemol repetitivo (Figura 22).

2019. Bachianas Brasileiras n. 2 – 3o movimento com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Veiculado em: 17 ago. 2019. Dur: 5m19s. 52 A biblioteca do Museu Villa-Lobos foi batizada pelo nome de José Vieira Brandão. Ele foi membro da Academia Brasileira de Música fundada por Villa-Lobos em 1945. 118

Figura 23 – Coral “Canto do Sertão” (primeira parte)

Ostinato - “Canto da Araponga” Baixo da viola sertaneja53 Tema da canção sertaneja Fonte:https://www.google.com.br/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fmusicabrasilis.org.br%2Fpartitura s%2Fheitor-villa-lobos-bachianas-n-4-ii-coral-canto-do- sertao&psig=AOvVaw17jDOfNSBUP5poyyVh5X0d&ust=1588886976740000&source=images&cd=vfe&ved= 0CAIQjRxqFwoTCKDaubOXoOkCFQAAAAAdAAAAABAD. Acesso em: 20 jan. 2020.

A peça, ao mesmo tempo que pode trazer aspectos deterministas da paisagem sonora sertaneja, também os contradiz. Isso, porque, em princípio, essa é composta como reflexo do ambiente Medium, em que sons da natureza são trazidos por imitação a fim de descrever uma cena, um lugar, mas também não dão pistas claras sobre onde e como é esse lugar. Essa primeira contradição encontra-se na referência que se faz ao espaço geográfico, em que a

53 Piedade (2009) considera esse movimento descendente do baixo como uma tópica brasileira, a qual ele denominou como “baixaria” dentro das tópicas “época-de-ouro”. 119

música é compreendida como livre em linguagem e julgamento (KANT, 1980) e se amplia para além das descrições deterministas (HUMBOLDT, 2016). Na execução da peça, estão presentes diferentes materiais temáticos, como Canto da Araponga, os Baixos da viola sertaneja, a Canção sertaneja católica, que demonstram características regionais. Esses materiais dão pistas do pensamento musical de Villa-Lobos ao descrever a cena do Sertão. São informações que contribuem para estabelecer uma lógica no processo composicional como também na coesão com a temática. A gênese da Série Bachianas parece ter se dado, com essas características, por um processo gradual de amadurecimento da percepção do compositor para com a região. Na descrição dos temas mais salientes, encontram-se aproximações com aspectos técnicos da música de Bach, sendo proveniente de um movimento já esperado pelo renascimento dos estudos desse compositor no final do século XIX, difundidos para estudos paralelos de síntese na música brasileira (ANDRADE, 2015; KEIFER, 1989), e, assim, identificáveis nas suítes das Bachianas Brasileiras. Nessa peça, como um todo, constam outras antigas homônomas, como a Oferenda... (PIEDADE; MOREIRA, 2009), presente no Prelúdio Introdução da Bachiana nº 4, que foi desenvolvida e incorporada posteriormente à Série (Figura 23). Algumas dessas peças sofreram alterações de instrumentação, principalmente na versão para orquestra de 1941, passando por sucessivas mudanças até chegar à formatação definitiva.

Figura 24 – Tema da Oferenda Musical de J. S. Bach (à direita). Tema no Prelúdio (à esquerda)

Fonte: Piedade e Moreira (2009, p. 6)

Na Figura 23, tem-se a homologia presente entre um trecho do Prelúdio da Bachiana nº 4 e o fragmento do tema real da Oferenda Musical, composta por J. S. Bach, em 1747. A semelhança é notável pelo arpejo ascendente de tríade menor terminado por salto de 7ª menor descendente. Essas informações demonstram como Villa-Lobos elaborou e reelaborou as peças da Série Bachianas de forma lenta e gradual. Isso pode ser um indicativo de que as ideias ou imagens musicais foram se construindo a formar um vocabulário próprio das Bachianas Brasileiras. 120

Ao observar a estrutura do Coral Canto do Sertão (em redução na partitura, Figura 24), há na peça uma sequência de cinco temas melódicos, que foram inspirados em uma canção católica sertaneja nordestina (TARASTI, 1995, p. 203)54, com duas seções: seção A (compassos 33-92), com duas frases55; e a seção B com três frases, tendo a frase D repetida; e as demais frases, C e E, que se repetem por duas vezes (Figura 24, círculos). Em todas as melodias (apenas suas alturas), encontra-se o uso do Cantus Firmus à moda medieval, com sua finalis e confinalis

Figura 25 – Temas presentes no Coral Canto do Sertão

Fonte: Felice (2016, p. 55)

Na seção A, as frases A e B, nos compassos 1-8; 9-16, repetem-se em variações com andamentos diferentes dos compassos 17-24; 25-32. Essas frases têm em comum a cadência elidida56, isto é, a última nota da frase anterior é repetida na frase seguinte, e dessa forma confirma-se a tônica (Figura 24). Há uma semelhança com Bach, no que assegura também seu

54 Tarasti (1995, p. 203) não cita qual das canções, uma vez que esse movimento possui mais de uma. 55 Tarasti (1985, p. 202) não aponta os temas e as localizações na obra, menciona apenas que Villa-Lobos utilizou alguns temas da Bachianas Brasileiras n. 4 na opereta Magdalena. Ao ouvirmos e examinarmos a partitura de ambas as obras, percebemos haver reutilizado as frases A e B do Canto do Sertão na ária do barítono no Ato I ato (c. 108 da opereta) e no Ato II ato cena IV, sendo que, nesta cena, também há a participação do coro e de outros personagens (Solis e Ramon) cantando as frases citadas, como fragmentos da frase D. 56 Uma cadência elidida ocorre quando uma nova frase começa simultaneamente com a cadência, ou antes do acorde final da primeira frase. Às vezes, essa cadência também é alcançada pela sobreposição. “An elided cadence occurs when a new phrase begins simultaneously with or before the cadence chord of the first phrase. Sometimes this cadence is also achieved by overlapping” (STEIN, 1979, p. 14). 121

título de Bachiana, quando tais finalizações foram utilizadas frequentemente pelo compositor no início das fugas, com uma nota atada à nota anterior do episódio. É isso que ocorre em todas as frases nas seções A e B, exceto nas frases D e E (Figura 24, seta).

Figura 26 – Coral Canto do Sertão. Seção A. Ostinato (nota Si bemol).

Fonte: Felice (2016)

Nos compassos iniciais da peça (Figura 25), nota-se a repetição de uma nota mais aguda em ostinato, sendo esta, provavelmente, sua característica mais marcante: o Canto da Araponga. “O canto triste e monótono da Araponga” (TARASTI, 1995, p. 203), com a escrita da nota Si bemol na voz superior das frases, caracteriza-se pela articulação em martello de uma nota curta e aguda em ostinato (Figura 24, círculo). Essa é uma referência ao canto desse pássaro que migra para o Sertão em tempos mais chuvosos, o que se atribui a essa nota um caráter de tópica nordestina (TARASTI, 1995), a qual sugere o título Canto do Sertão. Esses sons expressam a sonoridade de um mundo externo à música, que, no contexto de modernização nacionalista, são utilizados como expressão da nacionalidade brasileira. Desse modo, são os textos “não musicais” que lançam luz sobre a escrita musical, na medida em que suas formas se expressem em diálogo entre o texto musical e o não musical (LOQUE, 2007). Dessa forma, segue-se na peça como sua característica mais marcante da obra, sua identificação com aspectos da região em Medium como meio para determinado fim, como o clima e a paisagem em Mittel, como meio, matéria e ambiente de modo de comunicação, ambas linguagens expressivas (BENJAMIN, 2011).

122

Figura 27 – Canto da Araponga em ostinato duplicado

Fonte: Felice (2016)

O Canto da Araponga não consiste em determinismo geográfico, mas em uma tópica musical na qual se ampliam a realidade e suas associações. O Canto da Araponga em ostinato localiza-se estrategicamente como recurso recorrente em toda a peça, apontando ser uma tópica nordestina (Figuras 26 a 29).

Figura 28 – Canto da Araponga em ostinato triplicado

Fonte: Felice (2016)

123

Figura 29 – Canto da Araponga em ostinato quadriplicado

Fonte: Felice (2016)

No trecho da Figura 28, a frase é alcançada de forma ascendente de prolongamento da frase anterior, com intensidade de fortíssimo ff e acordes em posição fechada nos dois pentagramas inferiores. O ostinato torna-se cada vez mais um elemento dramático, que progressivamente se duplica, triplica-se, contribuindo para um grande adensamento e tornando o espaço sonoro condensado, isto é, há uma fusão sonora (SALLES, 2009). Desse modo, não se pode ignorar a ambientação construída em torno do Canto da Araponga, que começa com menos intensidade emocional e ganha amplitude ao longo da peça até atingir um ponto máximo de dramaticidade, “esta ambientação iniciada é gradativa do pré-núcleo como passagem de abertura na Forma Sonata Clássica” (CAPLIN, 1998, p. 147), em que é possível adaptá-la à observação da peça. No tocante às características nordestinas, que podem compor uma tópica, atribuímos esse atributo ao ostinato no Canto da Araponga; à canção sertaneja católica que passa pelos acordes em coral; e à sucessão de baixos em imitação da viola sertaneja. Entretanto, é o Canto 124

da Araponga o mais expressivo e repetitivo em toda a peça, o que lhe conferiu o título de Canto do Sertão.

Figura 30 – Canto da Araponga em ostinato quadriplicado

Fonte: Felice (2016)

Visualmente, os acordes em ostinato dão a impressão de um aumento na massa sonora, mas o resultado acústico é o contrário do trecho anterior (Figura 29). Os elementos estão individualizados e, por isso, ocorre uma fissão sonora57. Isto é, a posição das notas nessa situação não permite que os sons sejam misturados, por haver um espaço acústico vazio. Portanto, são individualizados na sequência seguinte. O desenho rítmico da peça aparece em pontilhismo, o que demonstra a engenhosidade de Villa-Lobos em trabalhar com diferentes recursos sonoros.

57 A palavra “fissão” é emprestada do conceito da música espectral (ZUBEN, 2005, p. 149), que descreve a fissão sonora como o afastamento dos componentes e provoca uma individualização, o contrário do agrupamento que viriam a ter uma cisão. 125

Figura 31 – Diferentes recursos sonoros para ressonância

Fonte: Felice (2016)

O que se observa é que nessa frase (Figura 30) são expostas características de dois períodos da história da música: o contraponto imitativo do barroco e as técnicas modernistas utilizadas no início do século XX, como a liberação da “ressonância por simpatia”, ao pressionar as teclas do piano (Figuras 29, 30). Isso significa o uso do pedal com as mãos, “o pedal tem duas funções básicas diferentes (bem como outras subsidiárias): uma sustenta o ataque das notas, e permite que aquelas que não são atacadas, vibrem por simpatia” (ROSEN, 1995, p. 14). Ademais, esse procedimento denomina-se de “harmônico natural com toque silencioso das teclas” (ANTUNES, 2004, p. 61), pelo fato de as notas estarem escritas com “X”, podendo causar uma falsa impressão de ruído58. Como a peça foi escrita posteriormente para orquestra, os instrumentos têm mais poder de sustentação, provocando um resultado sonoro diferente da versão para piano. Com esse recurso, observa-se como a fusão sonora contribui para o aglomerado de notas ou de objetos sonoros que constroem um ambiente mais complexo e menos previsível. O núcleo do desenvolvimento normalmente projeta uma qualidade emocional de instabilidade, inquietação e dramático conflito. O nível dinâmico é geralmente forte, e a característica é frequentemente Sturm und Drang. O núcleo normalmente traz um aumento acentuado na atividade rítmica projetada por padrões de acompanhamento convencionalizados (CAPLIN, 1998, p. 142).

58 A vibração por simpatia, apesar de ser uma técnica amplamente explorada por compositores do século XX e XXI, como Schoenberg (op. 11 n. 1, Cowell – Tiger) e Lunsqui, tempo absurdo, entre outros. Rosen (1995, p. 13) ressalta que o uso do pedal de sustentação foi um dos exemplos da revolução musical do século XIX como uma das primeiras manifestações do uso do pedal antes do ataque das notas, isto é, da ressonância, sendo ainda, anteriormente, usado por Chopin no início do Noturno em Mi bemol op. 9 n. 2 (ROSEN, 1995, p. 25). 126

Na parte final (Figura 31), o Canto da Araponga aparece numa cadência autêntica confirmando a chegada da tônica em intensidade “fortissíssimo” fff, em acordo cerrado com a nota em Dó em quatro oitavas. Nessa cadência, há uma condensação de textura, em que as quatro, três e duas vozes59 anteriores são diluídas em uma única camada, fazendo movimentos descendentes com notas cromáticas. Essas partes exploram vários registros nos quais as frases aparecem como uma grande síntese final da peça, confirmando a presença do Canto da Araponga em todos os momentos. Uma das características de cadências utilizadas por Villa-Lobos é a wagneriana, em que se observa toda a agitação da obra concluída em oitavas em região grave sobre a nota Sol, como um harmônico “puro”, sendo um demonstrativo de “impossibilidade de concluir satisfatoriamente todo o processo cromático desdobrado até aquele instante” (SALLES, 2009, p. 144). Na cadência final da peça Coral Canto do Sertão (Figura 31), encontra-se uma sequência em Tirata, “uma linha melódica que possui várias notas com a mesma duração em graus conjuntos ascendentes e descendentes” (BARTEL, 1997, p. 410), terminando, assim, uma única textura em que todo o colorido cromático desaparece em uma intermitente nota Dó realçada por figuras rítmicas. Nesse trecho final (Figura 31), toda a intensidade sonora diminui, em uma refração de ostinato que aparece de forma mais sutil, em relação aos trechos anteriores e com apenas uma inflexão rítmica (Figuras 28 e 29). O ostinato ainda aparece e, nesse caso, o Canto da Araponga não é mais alternado com articulação de outros acordes, mas confirma a escolha do título.

59 Como acontece em O Cravo Bem Temperado de Bach. 127

Figura 32 – Cadência final – Tirata

Fonte: Felice (2016)

5.4 ÁRIA “CANTIGA”, DA BACHIANA Nº 4

Em continuidade às características do Nordeste musical místico e “profundo”, o Sertão, buscaremos identificar e examinar a Ária Cantiga da Bachiana nº 4 (Figura 32). A peça foi escrita em 1935 com aproveitamento do tema da canção popular “Ó mana deix’eu ir...”, do Cancioneiro Nordestino60. O tema dessa canção também foi popularizado no Brasil pelo cinema, no filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, em 1953. Ademais, em virtude do prestígio de Villa-Lobos de incluí-la em parte das Bachianas Brasileiras, difundiu-se a melodia de “Ó mana deix’eu ir...”, em desacordo com a versão corrente no seu habitat: o Nordeste. Para Nóbrega (1971), esse desacordo é referente à versão recolhida na época em que o compositor a utilizou, no final dos anos de 1920 e 30, tornando possível a divulgação da Bachiana nº 4 ser amplamente divulgada no rádio, e não é de se estranhar que o tema tenha sido reimplantado no Nordeste. A divulgação do tema possibilitou, em parte, uma reprodução da ideia de região, anteriormente tratada no início do século XX; mas também o folclore admite essa ocorrência, quando se transforma em documento por força de contribuição erudita. Por isso, deve-se

60 Na Ária Cantiga foi inserida a canção Itabayana, a qual consta do Cancioneiro Nordestino (ANDRADE, 1918) e no Ciclo de Canções Típicas Brasileiras (VILLA-LOBOS, 2009). 128

ponderar o prestígio dessa contribuição quando se apoia em Villa-Lobos, uma vez que, para remontar a antiga versão da canção Itabayana aprendida por via oral, foi necessário consultar informantes da região (NÓBREGA, 1971).

Figura 33 – Ária Cantiga (tema da canção popular)

129

Fonte: Ária “Cantiga”. https://www.google.com.br/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Feras.mundis.pt%2Findex.php%2Feras%2Farticle%2 Fdownload%2F197%2F175&psig=AOvVaw3eJ3Uz9g4cLc69UiPaQ_N&ust=1588989119415000&source=ima ges&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCIDXh_eTo-kCFQAAAAAdAAAAABAD. Acesso em: 6 maio 2020.

O tema da canção que nomeia a Ária da Bachiana nº 4 abriga conhecida constância melódica do populário musical nordestino, o modo menor com alteração no 7º grau, que corresponde ao relativo maior, a uma alteração ascendente do 4º grau. Na canção “Ó mana deix’eu ir...”, há uma segunda parte que não foi trazida para a peça com acentuações rítmicas mais marcantes, porém, mantendo o aspecto modal (Figura 32, linha). Sua inclusão na Suíte nº 4 trouxe uma carga dramática com cromatismos e motivos germinais sobre a nota Fá com pedal grave, dobrada no registro agudo. São elementos que aparecem no início da peça, nos compassos 1 a 4, e são repetidos nos compassos 116 a 119. A peça é dividida nas partes A-B- A, em que a parte A se caracteriza por uma melodia acompanha de acordes, sem, portanto, obstruir a clareza e a independência do solo que traz o tema da canção “Ó mana deix’eu ir...”, dando-lhes um perfil de construção clássica, com cadências bem definidas no final das frases (Figura 32). Na introdução da Ária Cantiga (Figura 33), o tema da canção segue em andamento Lento, com acordes conduzidos em passus duriusculus nas duas mãos, isto é, “baixos de lamento”, uma figura de retórica barroca utilizada particularmente na música vocal 130

(MONELLE, 2000)61. Essa foi trazida na bachiana como Cantiga, que desenvolve uma tessitura médio grave, a qual reforça a ideia de dor, de sofrimento, de saudade, como figura retórica, topoï. Nesse procedimento, há o uso intenso do cromatismo nas vozes internas como um ornamento das notas diatônicas e uma exposição do discurso musical. O cromatismo do contorno melódico é utilizado como notas de passagem gerando movimento dentro da peça (Figura 33).

Figura 34 – Ária Cantiga – Introdução Motivo germinal 3ª menor descendente e 2ª maior ascendente

Fonte: Felice (2016)

Esse é um embelezamento e uma intensificação das notas: através do cromatismo disfarça os motivos germinais da peça presentes da introdução. É na introdução da Ária Cantiga que Villa-Lobos apresenta os motivos germinais que irão compor o tema da canção popular, trazendo numa sequência invertida em relação a como será apresentada ao longo da peça. Trata-se de uma estrutura escondida, porém, presente na introdução. É na introdução que a Inventio oferece elementos que se caracterizam como tópica nordestina com movimentação cromática das vozes internas contidas nos acordes. Essas podem suscitar uma identificação com a tonalidade, que na peça aparece sustentada por um pedal superior à nota Fá. Apesar da flutuação da tonalidade pela presença das notas cromáticas, a base tonal permanece por meio da nota Fá, e do pedal nessa nota (na região

61 Monelle (2000, p. 68) menciona o passus duriusculus como uma quarta cromática e cita, como exemplo, a linha do baixo do lamento de Dido em “Dido e Enéias” (Purcell) – (Anexo 3). Também é associado à figura do canto o “baixo de lamento” como figuras de baixo ostinato em movimento cromático descendente englobando uma 4ª, como utilizada no século XVII, e que era peculiar ao lamento. Indica com exemplo o “Crucifixus” da Missa em Si menor de Bach (DÜRR, 2014, p. 1384). 131

mais aguda). Ambos, a base tonal e o pedal, dialogam com outra voz no extremo grave em contratempo, que começa e termina na nota Fá (Figuras 33 e 34). O passus duriusculus aparece ligando o término da primeira frase e sua repetição, confirmando a retórica dessa figura que é reforçada pela indicação “quase murmurando” (Figura 34). Esse é um procedimento que se repete em todas as repetições da parte A.

Figura 35 – Pedal

Fonte: Felice (2016)

O uso do pedal é considerado um recurso e uma característica composicional Bachiana, utilizado também em outras peças de Villa-Lobos, como o Prelúdio nº 3 para violão e no Prelúdio Ponteio da Bachiana nº 3 (LOQUE, 2007; NÓBREGA, 1971). A parte A inicia- se com uma ambientação sonora em Fá menor e com pedal na nota Fá soando, em quatro registros diferentes (Figura 34). Logo em seguida, há uma mudança brusca de andamento com indicação de Vivace, com uma dinâmica que varia do mf (meio forte) e f (forte), depois do p (piano) ao f (forte) e sfz (sforzando = esforçando). Quanto à ambientação sonora – que trará a ideia da região, com o uso da nota Fá em staccato –, esta permite ao ouvinte ficar imerso no novo perfil emocional da peça. Esse termo foi usado por Mário de Andrade ao referir-se à apreciação musical, como impossível “contar” o verso, mas poderia criar um ambiente identificável ao ouvinte (ANDRADE, 1980, p. 3). Todas essas transformações do tema “Ó mana deix’eu ir...” podem nos levar a uma ambientação baseada na dinâmica, na articulação e no ritmo, contrastando com o início da parte A, sendo esta mais intensa. 132

Figura 36 – Ária Cantiga – parte B (com o tema do baião)

Fonte: Ária “Cantiga” (parte B), com o tema do baião. https://www.google.com.br/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Feras.mundis.pt%2Findex.php%2Feras%2Farticle%2 Fdownload%2F197%2F175&psig=AOvVaw3eJ3Uz9g4cLc69UiPaQ_N&ust=1588989119415000&source=ima ges&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCIDXh_eTo-kCFQAAAAAdAAAAABAD. Acesso em 6 maio 2020.

Na articulação final da parte A, não encontramos o tenuto (acento que marca a seção anterior), e sim, novos acentos como o staccato e martellato (Figura 33 e 34). Nas linhas marcadas (Figura 35), encontram-se duas referências às tópicas brasileiras, mais especificamente nordestinas, o tema da canção popular “Ó mana deix’eu ir...” (Figura 35, linhas) e o ritmo do baião (Figura 35, círculos). 133

O tema da canção aparece sob outra estrutura, com outras variantes e com acompanhamento do baião, dando mais textura e movimento à peça. O acompanhamento não será mais coadjuvante, mas se destaca na parte B (Figura 36), como um contraponto rítmico, nota contra nota, transformando-se em um elemento de caráter expressivo, provocando agitação à peça. Nessa parte, o uso de notas repetitivas comprova sua denominação bachiana, porque esse é um recurso expressivo que a música do período clássico herdou do período barroco, o que lhe conferiu a intenção bachiana62.

Figura 37 – Ária “Cantiga” – parte B (transformação textural do baião)

Fonte: Felice (2006)

Na parte B, o pedal na nota Fá permanece em toda a seção (Figura 37). Antes da reexposição do tema, uma nova frase é inserida, com melodia de caráter rítmico que tem sua gênese no tema da parte A. Esse consta na B, repetida com uma discreta variante, que antecede a frase seguinte, a fim de dar mais movimento ao tema.

62 As notas repetidas possuem um significado próprio. Na música anterior ao século XVII, serviam apenas para expressar ruídos e oferecer a divisão silábica do som. Esse foi um recurso utilizado por Claudio Monteverdi como identidade de cólera às notas repetidas na ópera Combttimento di Tancredi e Clorinda. A partir desse recurso, as notas repetidas passaram a expressar sentimentos agitados. Na música barroca, acontece da mesma maneira no acompanhamento do recitativo, também conhecido como concitato (HARNONCOURT, 1998, p. 163). 134

Figura 38 – Seção com o ritmo acentuado do baião sob o tema da Cantiga

Fonte: Felice (2006)

Na parte B, há ainda outra transformação textural dando-lhe mais densidade, quando o tema aparece em oitavas repetindo-se em diferentes registros (Figura 38). O acompanhamento que se transforma em parte do tema principal agrega-se aos intervalos de 2ªs maiores em ostinato. Essa repetição proposital com variantes, com dinâmica forte e fortíssimo f – ff, oferece uma sensação hipnótica ao trecho (Figura 38). Nessa parte, ainda se observa o tema em duas figuras de retórica, paranomasia (círculos horizontais superiores) e gradatio (círculos horizontais inferiores). A paranomasia reforça a melodia de onde o motivo principal da frase inicia e termina. Ele é trazido exaustivamente, “é uma repetição de uma passagem musical, com adições ou alterações, com o objetivo de dar maior ênfase” (BARTEL, 1997, p. 350). Já gradatio é quando ocorrem dois movimentos rítmicos reforçando o tema, “são duas vozes de movendo em direção paralela visando a ênfase, um clímax” (BARTEL, 1997, p. 440). Nesse sentido, ambas acentuam a tópica nordestina, presente em toda a peça, que, em andamento fluido, em uma figuração rítmica com tercinas, irá aos poucos esmorecer até voltar ao tema inicial em “canção”, em “cantiga”.

135

Figura 39 – Oitavas repetidas em ênfase ao tema da canção popular, em paranomasia e gradatio

Fonte: Felice (2006)

Na parte A final, como retorno A-B-A, antes da reexposição do tema, uma nova frase é inserida com uma melodia de caráter rítmico, que se repete. Essa frase se repete como uma variante do tema, chamada de Codetta, de Coda, do sinal do pulo para o final. Na peça, isso é tenazmente explorado, destacado pela presença de três oitavas allargando, para dar ênfase ao tema (Figura 39).

Figura 40 – Variação do tema Cantiga

Fonte: Felice (2006) 136

Após a exposição dramática e enérgica entre o tema da canção e o ritmo do baião, a textura da peça decresce e a melodia volta à superfície como na introdução da Ária. O motivo germinal, a 3ª menor descendente, passa a ser o acompanhamento e a melodia segue, 2ª maior, com notas de passagem. Dessa parte em diante, há o retorno da parte A, a textura volta a ser condensada e segue igual ao início com melodia límpida e acompanhamento harmônico (Figura 40).

Figura 41 – Cadência final, repetição do tema

Fonte: Felice (2006)

Como fechamento da peça, em reexposição da introdução e da cadência final, Villa- Lobos acrescenta a repetição da primeira frase emoldurando o final (CAPLIN, 1998). Nela, há uma extensão cadencial (Figura 40) muito usual da música do século XX, construída em 4ªs e 3ªs justas, que na Ária Cantiga sobrepõe-se à sonoridade em uma harmonia que funde o diatonismo e o cromatismo (STEIN, 1979; CAPLIN, 1998). As cadências que aparecem na peça com ressonâncias são recorrentes nas obras de Villa-Lobos, denominando-se cadência varesiana, “o acorde final é marcado pelas ressonâncias e pelos sons resultantes de diversas dissonâncias agregadas” (SALLES, 2009, p. 144). 137

Para não mais deter-nos em questões técnicas, apesar de necessárias, para argumentar o puncto da Fuga, prossigamos investigando de onde e como aparecem o tema do Sertão no Coral Canto do Sertão e na Ária Cantiga. Observamos, nessas peças, dois aspectos salientes: a escrita e o discurso. O primeiro, referente à escrita musical escolhida para as Bachianas, trouxe a ideia de Sertão sem exatamente o delinear ou reforçar como definições elaboradas no início do século XX. O segundo, sobre o discurso musical, que em princípio não precisa ser diferente ou distante do discurso regional, tampouco desaparecer, mas deixa brechas a novas reflexões sobre a região, o quanto muda e não pode mais ser vista e definida como no passado. É a linguagem musical como linguagem das coisas (BENJAMIN, 2011), que traz à superfície novos parâmetros, saliências que elucidam a ideia de Sertão. Sob uma abordagem de Walter Benjamin (2011) trazida na seção 2 “As Bachianas em ato e em potencial”, em relação à linguagem das coisas como linguagem musical, comparamo-la aos aspectos formais de análise que foram observados na escrita das peças Coral Canto do Sertão e Ária Cantiga, sendo a própria linguagem musical e a identificação das tópicas nordestinas que apontaram para a ideia de Sertão. Essa linguagem musical, na condição de Medium e Mittel, apresenta outra perspectiva de olhar a região, não apenas pela reprodução de conceitos antigos mantidos sobre a região como também por posicioná-los na contemporaneidade. Ao trazer essa abordagem, vimos que a linguagem tem como seu principal alvo a utilização daquilo que é exterior à própria linguagem, isto é, o que o outro percebe dela, como o outro encerra ou encaminha a comunicação. Logo, é a partir do ouvinte, como trazemos na pesquisa, que a informação passa a existir como linguagem do homem dirigida à arte. Assim, ela é utilizada como meio Mittel e simultaneamente promove seu discurso. É essa a linguagem responsável por recuperar, rememorar reminiscências da percepção da região sem aprisioná-la, mas livre na condição de ideia, de linguagem no caráter simbólico, seja da palavra, seja do som, que “chega à consciência de si, o que é oposto de qualquer comunicação dirigida para o exterior” (BENJAMIN, 2011, p. 229).

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6 FUGA: AS BACHIANAS SERTANEJAS, UMA ATIVIDADE EXPERIMENTAL (CONTRAPUNCTUS)

Ouvir as Bachianas para escutar; escutar para compreender; compreender para se emocionar e ouvir mais que uma música (autoria própria).

Dada a importância de ouvir a música de Heitor Villa-Lobos, composta em um passado relativamente recente, nos anos de 1930 e 1940, vemos o seu alcance na contemporaneidade, mesmo diante de todas as tecnologias e voluptuosas mudanças no acesso à percepção musical. Esse resgate, ou (re)visita à Série Bachianas Brasileiras, proporciona uma reflexão sobre a permanência de definições elaboradas e reproduzidas sobre a região Nordeste, e especificamente sobre o Sertão. Nesse sentido, o que nos chama a atenção é o porquê dessa manutenção, a quem interessa manter, e ainda, se mudar, o que isso implica. Na investigação da obra em ato e em potencial, comentada na seção 4, nota-se que dela surgem nichos de valor referentes a diferentes posturas e definições sobre a região. Dessa forma, abre-se a possibilidade de repensá-la, o que será conferido nesta seção, como contrapunctus da Fuga, que consiste em uma forma dialética de apresentar a obra sob diferentes perspectivas em que as Bachianas Sertanejas selecionadas foram apresentadas, apreciadas e interpretadas a partir da voz do aluno-ouvinte do Instituto Federal de Educação, Ciência de Tecnologia do Rio Grande do Norte. A importância da percepção do Sertão através de uma obra musical passa pela figura do ouvinte como aquele que também realiza e compreende a música. Sua compreensão pode ir além da percepção dos elementos mais objetivos – timbre, alturas, intensidade, duração – mas também dos subjetivos – cena, imagem, histórias, fatos – como novos elementos capazes de vislumbrar a realidade proposta. A importância desses elementos se dá na medida em que cada pessoa, cada ouvinte, pode formular diferentes imagens, e a realidade pode adquirir novos aspectos, sobretudo ao se tratar da música, que é uma construção singular de cada um e não vive para além de quem ouve, por isso a importância de ser refeita e compreendida socialmente.

6.1 O ALUNO OUVINTE DO INSTITUTO FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Ao trazermos a obra ao ouvinte nesta pesquisa, estamos nos referindo ao aluno- ouvinte do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, o IFRN. É ele que dá as pistas para repensar o tema na obra, que foi aplicada, colhida e analisada no contexto dessa instituição. 139

O Instituto, que faz parte de uma rede de ensino de expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica do Ministério da Educação, tem alcançado o estado do Rio Grande do Norte em todas as suas regiões: Leste, com as sub-regiões Litorânea e Litoral Norte; Agreste; Central, que compreende as Serras Centrais, Currais Novos e Caicó; e Oeste, dividida em Mossoroeste e Alto Apodi. Essa expansão teve por objetivo alcançar regiões e sub-regiões do estado que não tinham acesso à educação técnica e tecnológica, a fim de proporcionar um ensino de âmbito científico, técnico e humanístico. Trata-se de uma educação que visa à formação integral do profissional-cidadão, crítico e reflexivo, competente técnica e eticamente para atuar no mundo do trabalho, buscando nessa formação um compromisso efetivo com as transformações sociais, políticas e culturais. Com esse propósito, o Instituto Federal do Rio Grande do Norte atua igualmente na formação continuada em nível médio (secundário), abrigando em sua grade curricular disciplinas propedêuticas em que está incluída a disciplina Arte-Música63. Foi no âmbito da disciplina que se realizou a atividade experimental de audição e interpretação das Bachianas Sertanejas. Esses alunos em formação, do Ensino Médio (técnico), são provenientes de diferentes regiões do estado do Rio Grande do Norte, em faixa etária de quatorze a dezesseis anos, de perfil econômico e social heterogêneo, sendo alguns oriundos da escola pública e outros da privada64 e que participaram da atividade de audição e apreciação das Bachianas na disciplina de Música. Na atividade, foi considerado o contato de cada um com diferentes mídias musicais, e, consequentemente, o gosto musical e artístico mais voltado à música regional comercial como parte de sua contemporaneidade. A escolha em trazer o tema do Sertão nas Bachianas a esse público partiu da nossa experiência no ensino de música no Instituto Federal. A atividade utilizada nas aulas tinha por objetivo requerer do aluno respostas objetivas e subjetivas. Nas respostas objetivas, fechadas, buscava-se identificar a percepção sonora, a partir da identificação dos instrumentos e grupos, da localização e do movimento da melodia e dos ritmos na condução do tema. Já as respostas subjetivas, abertas, referiam-se à interpretação de temas, cenas e imagens que lhes eram possíveis elaborar; como também à evocação dos sentimentos, ou afetos, que a música lhes

63A Lei Nº 11.769 determina a obrigatoriedade da música na escola. Foi sancionada durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em dia 18 de agosto de 2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas de educação básica, sendo essa uma grande conquista para a área de educação musical no País. Disponível em: www.abemeducacaomusical.com.br>artsg2. Acesso em: 22 abr. 2019. 64 O perfil do aluno do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, oriundo da escola pública e da privada, tem procurado o IFRN por motivo da instituição obter níveis considerados altos na aprovação do Exame Nacional de Ensino Médio, que dá acesso às universidades públicas e privadas. Disponível em: https://www.portal.ifrn.edu.br>search>enem. Acesso em: 22 abr. 2019. 140

proporcionava, se apreciavam ou não aquela música, o que chamamos de “valência” e “atividade”65; e as características que eram possíveis de se obter do período em que foi composta. Por fim, foi também dado espaço para sugestão de outros títulos à peça ouvida e explorada. Essa atividade, elaborada em motivação de uma escuta para além da própria música, teve como objetivo obter informações mais próximas dos alunos e, consequentemente, contribuir no binômio ensino-aprendizagem, referente aos conteúdos musicais trabalhados em classe, como parte de sua formação artística e musical.

6.2 ATIVIDADE EXPERIMENTAL DE AUDIÇÃO E ANÁLISE MUSICAL

A atividade experimental utilizada nesta pesquisa foi uma readequação da atividade de análise informal da música, anteriormente relatada, e por nós elaborada. Contudo, para a pesquisa doutoral, teve por finalidade apresentar as Bachianas Sertanejas e recolher os dados- resposta que apontaram diferentes perspectivas sobre a região. A atividade foi distribuída para os onze campi do Instituto Federal do Rio Grande do Norte que oferecem a disciplina de Arte-Música em seus cursos, por isso, não foi disponibilizada a todos. Os demais campi da Rede não oferecem a disciplina por concentrarem-se na formação inicial de um público adulto, voltado à educação profissional técnica, incluindo a modalidade de educação para jovens e adultos, e na educação profissional tecnológica de graduação. Dos onze Institutos que têm o perfil do aluno-ouvinte, seis responderam favoravelmente à aplicação da atividade experimental. Desses, obtivemos um total de trezentos e oitenta e nove respostas, distribuídas por seis campi, entre duas a quatro classes por campus, com uma média de vinte a trinta alunos por classe. Essas respostas transformaram-se em dados avaliativos em pesquisa quantitativa, que apesar dos números, foram analisados qualitativamente. A atividade experimental aplicada foi enviada em formulário ao professor de Música que atendeu com presteza à nossa solicitação de pesquisa. O professor expôs cada campus, as classes, o número de respostas obtidas e as suítes mais e menos comentadas. Os Gráficos (1 a 6) a seguir demonstram, por campus, a escolha dos alunos em relação às Bachianas que foram mais apreciadas e respondidas como também as que foram menos respondidas durante a atividade experimental.

65 Valência é usada para aferir o quanto os alunos apreciam ou não a música; e Atividade, o quanto se sentem animados ou não, se demonstram interesse pela música em atividade (explicação da autora). 141

Gráfico 1 – Respostas obtidas do Campus Natal Central66 NATAL CENTRAL 50 40 30 20 10 0 Ária "Cantiga" Dança "Lembrança do Sertão" Comentaram Não Comentaram Não Souberam Não Responderam

Fonte: autoria própria

Gráfico 2 – Respostas obtidas do Campus Zona Norte67 ZONA NORTE 30 25 20 15 10 5 0 Ária "Cantiga" Dança "Lembrança do Sertão" Comentaram Não Comentaram Não Souberam Não Responderam

Fonte: autoria própria

66 No Campus Natal Central, foram coletadas 105 respostas. 67 No Campus Zona Norte foram coletadas 63 respostas. 142

Gráfico 3 – Respostas obtidas do Campus João Câmara68 JOÃO CAMARA 40 35 30 25 20 15 10 5 0 Ária "Cantiga" Dança "Lembrança do Sertão" Comentaram Não Comentaram Não Souberam Não Responderam

Fonte: autoria própria

Gráfico 4 – Respostas obtidas do Campus Santa Cruz69 SANTA CRUZ 35 30 25 20 15 10 5 0 Ária "Cantiga" Dança "Lembrança do Sertão" Comentaram Não Comentaram Não Souberam Não Responderam

Fonte: autoria própria

68 No Campus João Câmara foram coletadas 80 respostas. 69 No Campus Santa Cruz foram coletadas 45 respostas. 143

Gráfico 5 – Respostas obtidas do Campus Parnamirim70 PARNAMIRIM 25 20 15 10 5 0 Ária "Cantiga" Dança "Lembrança do Sertão" Comentaram Não Comentaram Não Souberam Não Responderam

Fonte: autoria própria

Gráfico 6 – Respostas obtidas do Canguaretama71 CANGUARETAMA 25 20 15 10 5 0 Ária "Cantiga" Dança "Lembrança do Sertão" Comentaram Não Comentaram Não Souberam Não Responderam

Fonte: autoria própria

A atividade experimental respondida por cada campus teve o interesse de comparar as informações obtidas na análise das peças e suas tópicas musicais (seção 4), com a opinião dos alunos em suas respostas (seção 6). Dessa forma, as peças das Bachianas Sertanejas foram analisadas e apreciadas, considerando as referências musicais e artísticas desse aluno-ouvinte, suas influências tecnológicas, o acesso e o contato com a obra de Villa-Lobos e, sobretudo, sua percepção contemporânea da região, o Sertão. A participação dos alunos na atividade experimental foi voluntária, sem atribuição conceitual avaliativa na disciplina de Música. Ademais, foi executada sob a orientação e a

70 No Campus Parnamirim foram coletadas 56 respostas. 71 No Campus Canguaretama foram coletadas 40 respostas. 144

supervisão dos professores de Música, que, após uma breve apresentação sobre a Série Bachianas Brasileiras, prosseguiram na aplicação da atividade com as seguintes etapas: audição, descrição e interpretação. Na primeira etapa, a audição, foram ouvidas a Introdução Embolada, com gravação para orquestra de violoncelos; a Dança Lembrança do Sertão, com gravação para piano solo72; o Coral Canto do Sertão73 e a Ária Cantiga, ambas com gravação para piano solo74. As peças foram ouvidas por duas vezes, sem indicação do título nem da obra, apenas sobre a temática do Sertão nordestino e o compositor Heitor Villa-Lobos, anteriormente estudado no programa de Música da disciplina. Na segunda etapa, a descrição, foi reservada à elaboração das respostas às audições. Desse modo, os alunos descreveram suas impressões sobre as peças e o que identificaram dos instrumentos (percepção sonora). A percepção do tema foi referente ao movimento das melodias e dos ritmos (cognição); e como se sentiam ao ouvir as peças, que sugestão de título traziam, e que descrição de cenas ou imagens podiam fazer durante a audição (evocação de afetos). E na terceira etapa, a interpretação, as peças foram reexpostas, sendo apresentados os títulos atribuídos pelo compositor. Desse modo, puderam-se confrontar as respostas obtidas e a identificação ou não com o tema do Sertão. A atividade de caráter experimental, não quantitativa, apresentou uma projeção da opinião do aluno-ouvinte e sua percepção do tema na peça. As perguntas da atividade foram elaboradas com o intuito de obter informações mais próximas ao tema do Sertão, o que viria a identificar a região e sua contemporaneidade. Também foi deixado um espaço livre para manifestação da opinião pessoal e sugestão de outros títulos à peça. Essa atividade foi conduzida como forma mais sutil de compreendê-la, com um breve comentário ou uma palavra que viesse a definir ou se aproximar da impressão dada ao tema. As perguntas elaboradas tiveram a intenção de ser analisadas sob o aspecto da percepção sonora, a que se atribui a importância de escutar a música com atenção, não apenas ouvi-la “decorativamente” mas também observar a peça musical exposta e o que poderia suscitar-se dela. Sob o aspecto de cognição, esse referente à escuta serve para compreender como podem identificar os elementos musicais (melodia e ritmo) salientes, como se movem e

72 Dança Lembrança do Sertão, Bachiana nº 2, piano solo. Disponível em: https://youtu.be/_qYLBGo2KsA. Acesso em: 2 dez. 2019. 73 Coral Canto do Sertão, Bachiana nº 4, piano solo. Disponível em: https://youtu.be/SPVH20FoVLo. Acesso em: 2 dez. 2019. 74 Ária Cantiga, Bachiana nº 4, piano solo. Disponível em: https://youtu.be/fCGmFsfmJxc. Acesso em: 2 dez. 2019. 145

o sentido que trazem à peça. Ademais, sob o aspecto da evocação de afetos musicais, buscam- se identificar as afinidades com o tema, o que a peça musical provoca quanto ao “sentimento” e à exposição da satisfação ou insatisfação ao ouvir a música. Esses aspectos trazem o “ouvir” para escutar, o escutar para compreender e o compreender para se emocionar. Para esses aspectos, foram elaboradas as seguintes perguntas: • De percepção sonora: “Que instrumentos são possíveis de identificar nessa música?”. • De cognição: “Há alguma melodia em destaque? Qual seria? E que instrumento faz essa melodia?”. • De evocação dos afetos musicais, a questão: “O que viria a parecer mais próximo com o Sertão nessa música?”; “Que título você daria a ela?”; “Dê a sua opinião em relação a se aprecia ou não essa música, e por quê”. A escolha dessas perguntas se deu porque o que nos interessa na atividade experimental é a análise informal trazida pelo aluno-ouvinte, e o chamar a essa audição perceptiva. Além disso, buscar não apenas a audição musical como ainda uma escuta perceptiva com atenção-concentração como função mental. Por isso trouxemos as perguntas sobre os instrumentos musicais e grupos: “Que instrumentos são possíveis de identificar nessa música?”. A identificação instrumental e do grupo é fundamental nesse exercício de percepção sonora, como direcionamento à escuta e não apenas à audição “decorativa”, comumente praticada. A segunda fase trouxe o seguinte grupo de questionamentos: “Há alguma melodia em destaque? Qual seria? E que instrumento faz essa melodia?”, que se refere à identificação e até a nomeação das melodias e dos ritmos presentes nas peças. Nelas, está a importância da percepção sonora, buscando observar como o aluno-ouvinte poderia desenvolver em suas respostas identificação ou não com o tema sugerido nas peças e ainda com a condução da linha melódica e da identificação de ritmos, como se movem e se localizam na música. Na atividade, a peça mais identificada foi a Ária Cantiga da Bachiana nº 4, por trazer a melodia da Canção Itabayana na primeira parte; e na segunda parte, de forma acentuada, o ritmo do baião. Quanto ao terceiro grupo de questionamentos, “O que viria parecer mais próximo ao Sertão nessa música?”; “Que título você daria a ela?”; “Dê a sua opinião em relação a se aprecia ou não essa música, e por quê”, permitiu ao aluno-ouvinte emitir suas respostas e a interpretação das peças musicais. Foram essas as perguntas que mais direcionaram o repensar sobre as definições dadas à região. Apesar de as respostas serem variadas e mais difíceis de 146

ser tratadas, foram trazidas em “valência e atividade” e “afetos”, apontando a identificação e as novas interpretações da região. As perguntas e suas respectivas respostas foram selecionadas a partir das que mais se aproximaram da temática, ou mais se identificaram entre si. Diante da expansão dos dados- respostas obtidos, a fase sucessiva buscou verificar, analisar e expor esse material. As questões respondidas foram quantificadas da seguinte forma: • “Quantos identificaram os instrumentos”; • “Quantos perceberam o solo durante a música”; • “Quantos identificaram o instrumento solista”; • “Quantos identificaram o tema do Nordeste ou Sertão”; • “Quantos gostaram da música”; • “Quantos deram outro título à música”; • “Quantos associaram a música aos dias de hoje”.

A quantificação das respostas foi apresentada nos quadros de análise da atividade experimental e exposta em cartografia simbólica autoexplicativa apontando diferenças entre a análise da obra e a análise empírica. Dessa forma, abriram-se precedentes para discussão de novas impressões da região observada pela música. Para que seja esclarecida a metodologia, utilizamos três aspectos perceptuais na apreciação e na análise musical que guiaram as questões da atividade experimental, que são: a percepção sonora; a cognição; e a evocação de afetos musicais.

6.3 TRÊS ASPECTOS OBSERVADOS NA ATIVIDADE EXPERIMENTAL

Buscamos identificar, ainda, os aspectos da percepção sonora, da cognição como compreensão do fenômeno e da produção de possíveis afetos musicais referentes às identificações, reações e à formulação de imagens a respeito do tema apresentado. Esses aspectos serviram de parâmetros para observar como se deu a apreciação e a compreensão da obra, como foram notados e explorados na experiência.

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6.3.1 Percepção sonora

O primeiro aspecto, a percepção sonora, chama-nos a atenção porque é possível ouvir sem escutar, e escutar sem compreender; e ainda, compreender sem nos emocionar, quando admitimos que a ideia trazida na música possa suscitar outras. Isso se dá porque ouvimos sons estando ou não conscientes de sua existência. Mas, se nossa atenção está voltada ao estímulo sonoro, então, podemos escutar e não somente ouvir. É possível ainda escutar sons, percebê-los, mesmo que esses não sejam provenientes de fontes sonoras físicas, como sons de música e vozes que guardamos na memória ou que sonhamos. Por isso, podemos ouvir sem escutar, escutar sem ao menos compreender (FORNARI, 2010). O que nos faz pensar sobre a natureza do som, onde ele está, como se propaga e como o ouvimos, e ainda, como ir à busca desse som quando se dá a pergunta: “onde está o som que escutamos?” Poderia estar fora de nós, no mundo externo, como ondas de variação de pressão do meio propagante que nos atinge, no ar? Ou também estaria dentro de nós, de forma subjetiva, assegurado pela memória? Porque a memória também é seletiva e histórica (HALBWACS, 2013). É esse som guardado, memorizado, que pode ser percebido, interpretado e reagido, quando a partir dele trazemos de volta o mundo externo. Assim, passando a compreendê-lo no processo fisiológico, poderíamos reconhecê-lo, entendê-lo, recordá-lo e até nos emocionarmos a partir daquilo que ouvimos? De certa forma, sim, ao considerar o som como uma informação que permeia o meio externo, isto é, o acústico, interno e subjetivo das nossas emoções (WISNIK, 1989). O som é a informação que percebemos pelo sentido da audição, compreendemos pelos processos cognitivos e que, eventualmente, pode nos causar reações afetivas pela evocação de emoções. Nessa perspectiva, o som é uma informação multidimensional, com seus aspectos unidimensionais (Figura 41) que se organizam nas categorias de percepção, cognição e afeto.

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Figura 42 – Aspectos uni e multidimensionais do som

Fonte: autoria própria

A percepção, como primeiro passo, frequentemente depende da direção em que se originam os sons e como se orientam as ações. Esse é um dos processos mentais que usamos diariamente seja para atravessar uma avenida, seja para ouvir trovoadas de uma tempestade se aproximando. Mesmo que não se saiba exatamente a origem do som, se de máquinas, se da natureza, é possível perceber suas intensidades sonoras, e suas alturas (pitch), se são ásperos ou abafados, se existe reverberação, entre outras percepções. Esses são os fatores externos, acústicos, que orientam a direção do som. Há uma série de aspectos sonoros que é percebida e que, necessariamente, não é compreendida, mas, trazê-la à atividade experimental com a audição das Bachianas Brasileiras Sertanejas é essencial na descrição das características psicoacústicas do material escutado. A percepção musical inicia-se pela audição humana, que trata de captar simultaneamente os sons pelo par de ouvidos, com sucessivas ondas de oscilações aproximadamente periódicas de compreensão e expansão do meio elástico, que é normalmente o ar, e no primeiro estágio da audição traduz a informação de oscilação mecânica e sinais elétricos pelos disparos neurológicos (o nervo vestíbulo coclear) e pelo cérebro (NARA, 1996; TODD, 2000). Esse processo ocorre continuamente em tempo real e se estende no domínio do tempo, desde a percepção de eventos sonoros rítmicos, em que eles se encontram espaçados por intervalos acima da persistência auditiva, até intervalos menores que o período equivalente ao início da percepção tonal, cerca de 50Ms ou 20 Hz. Do som é capaz de ser percebida sua localização espacial em eventos sonoros, considerando o seu limiar de localização. No entanto, não lhes é atribuída uma implicação cognitiva ou afetiva para o aspecto sonoro do sistema binaural (os dois ouvidos), o que faz com que este seja considerado como um aspecto perceptual do som (FORNARI, 2010).

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6.3.2 Cognição musical

O segundo aspecto, a cognição, diz respeito não apenas ao direcionamento e à recepção da informação sonora mas ainda à atenção que ela buscará, como função mental específica. Isso é o que ocorre quando escutamos música, e não apenas a ouvimos, tendo, dessa forma, um caráter repetitivo, razão pela qual é comumente utilizada na prática coral, quando se pede “preste atenção a este som, antes de repeti-lo”. Isto se dá porque mesmo que ainda não haja uma leitura musical fluente, pela audição, repetição e visualização da notação musical, é possível compreender a frase. Esse é um fenômeno cognitivo de repetição de um trecho musical, para que a compreensão ocorra de forma mais satisfatória. A cognição evidencia a existência de um tratamento mental ativo e sofisticado da informação sonora captada pela percepção auditiva, que privilegia certas informações enquanto desconsidera outras, de acordo com critérios dinâmicos não necessariamente voluntários. A informação sonora vinda da cóclea pelo nervo auditivo, na forma de impulsos elétricos, chega ao cérebro, chamado de “núcleo coclear”, sendo essa a primeira região conectada ao nervo auditivo. Nessa região, localiza-se o cerebelo, onde é processada a informação de localização espacial e do equilíbrio; o ouvido interno; e, em seguida, o hipocampo, que regula a memória de longa duração; e depois a amígdala, que regula a agressividade e o medo no indivíduo. Nesse caminho, processadas ao córtex auditivo estão as sofisticadas funções cognitivas, como atenção, memória, linguagem e consciência (FORNARI, 2010). A cognição permite-nos fazer uso de si na atividade experimental da audição das Bachianas, sobretudo com o aluno-ouvinte na experiência musical, apesar de haver pouco contato deste com a obra e certa dificuldade em reconhecer tanto variedades nas propriedades sonoras como saliências da melodia ou dos ritmos presentes na obra. Na música, o processo cognitivo interpreta os aspectos perceptuais sonoros como informação musical. Do repertório de informações, algumas capacidades podem ser instintivas, inatas, enquanto outras são aprendidas. Essas capacidades aprendidas são aquelas de caráter cultural, que necessitam desenvolver-se pela observação ou comunicação com os outros. Daí resulta a importância do ensino, do papel do professor nesse processo, que implica adequação social, de aprendizado como função ontogênica de evolução individual, quando há adaptação filogênica, de evolução social. Em termos de aspectos cognitivos da música, sejam intuitivos, sejam aprendidos, são eles que contribuem para o afeto musical, desfazendo em parte o que é o emocional, como 150

afeto, estimulando o cognitivo. Isso porque o processo cognitivo musical se beneficia das categorias de processamento, uma instintiva e outra aprendida, que tratam do material musical cujo significado depende do seu contexto. Este é mediado pela memória e, consequentemente, identificado por similaridades e contrastes com o material musical anteriormente vindo da escuta, e não apenas do que é ouvido. O aspecto cognitivo tem base na psicologia da forma (Gestalt), que considera o todo cognitivo como maior e mais significativo, ou seja, o significado não pode ser linearmente reduzido e representado por seus aspectos componentes. A Gestalt trata da identificação de objetos a partir do reconhecimento imediato que temos deles, de modo visual ou seu correspondente auditivo, nos eventos sonoros.

6.3.3 Evocação de afetos musicais

Sobre os aspectos das emoções evocadas pela música, ou a produção de possíveis afetos, é comum, ao se escutar uma música, ser surpreendido pela evocação de memórias episódicas de fatos, situações locais ou lembranças de pessoas. É comum sentir emoções associadas a memórias, às vezes involuntárias e inesperadas. A música, como linguagem, é eficiente em despertar emoções, o que justifica ser usada por outras artes com a finalidade de criar uma prosódia afetiva, como no cinema, em trilhas sonoras; como na canção, quando une a literatura e a música, assim ocorrendo parcerias na produção de obras religiosas, profanas, folclóricas, entre outras. Essa associação torna-se eficiente especialmente porque une a capacidade de significação semântica da linguagem com a significação afetiva da música. Isto é, de associações e identificações, principalmente quando usadas de acordo com seu ethos, o caráter moral e psicológico. O cinema desde o início, ainda mudo, era exibido com música ao vivo tocada por pianistas. Foi desse modo que Ernesto Nazareth ficou conhecido nos cinemas cariocas no início do século XX. Nos anos seguintes, houve a participação de orquestras para cada gravação e composições direcionadas ao tema. Desse processo, também participou Villa- Lobos e escreveu trilhas sonoras na década de 1950, intensificando a prosódia afetiva. Atualmente, o aspecto da afetividade musical une-se a complexas sonoplastias como construção perceptual e cognitiva. A poesia e o cinema como formas de expressão e linguagem artística, que acontecem no tempo (Kronos), apresentam uma prosódia, que, diferentemente da música, não se alteram substancialmente em seu contexto afetivo. No entanto, na música, pequenas alterações do 151

andamento podem gerar mudanças significativas na performance e na compreensão musical, sendo essas as mudanças que distinguem uma interpretação de outra, sem julgar se foi apenas satisfatória ou excelente. É a característica do afeto musical um dos fatores que contribui na eficiência no seu papel de evocar emoções, tal como no drama ou na comédia, uma vez que a precisão da prosódia do intérprete é fundamental ao efetivo significado do contexto de afetos. Em estudos mais direcionados, a psicologia e a neurociência buscam entender como a música evoca emoções (SLOBODA, 2001). Partindo da literatura, há três modelos principais de emoção musical, havendo um categórico que descreve a música em termos de emoções distintas (EKMAN, 1996; JUSLIN, 2003). O primeiro é referente ao modelo dimensional, que propõe que as emoções podem ser decompostas em básicas e ortogonais, o que significa que podem ser tratadas como variáveis independentes num sistema de coordenadas. O segundo, o modelo do processo componente (SHERER, 2001), desenvolve a constatação da emoção musical de acordo com a situação de sua ocorrência e o presente estado emocional do ouvinte. E o terceiro, o modelo bidimensional da emoção, a partir de seu aspecto reducionista, é aquele usado para mapear as emoções descritas pelo modelo categórico. Nesse caso, as duas dimensões são a “valência” e a “atividade” (Figura 42), em que uma representa a emoção de satisfação ou de insatisfação; e a outra, a emoção de excitação que se estende de “sonolento ao excitado”, emoções consideradas ortogonais pela mente humana.

Figura 43 – Valência e Atividade

Fonte: Fornari (2010)

No estudo do desenvolvimento dinâmico da emoção musical (SCHUBERT, 1999), foi utilizado o modelo circumplexo para medir, em relação ao tempo, a variação de emoção 152

musical constatada por um grupo de ouvintes sobre diversas peças do repertório clássico. As dimensões emocionais utilizadas foram as mesmas mostradas como “valência e atividade” (Figura 42). A partir delas, foram apresentados dois modelos lineares para cada peça musical: um para descrever a “valência”; e outro para “atividade”. Desses modelos, foram observadas medidas comportamentais para criar modelos mais genéricos (KORHORNEN, 2006), que apesar de esforços nessa direção não obtiveram resultados satisfatórios na previsão da “valência e atividade”. Da tentativa, foi desenvolvido um modelo com descritores de alto nível (densidade de eventos, complexidade harmônica, brilho, claridade de pulso, repetição, articulação, claridade de tonalidade e modo), o qual permitiu obter resultados mais satisfatórios (FORNARI, 2009). Desse modelo, foi possível prever adequadamente a “valência” para a peça musical, apesar de elucidar a possibilidade de predição das dimensões ligadas às constatações de emoção. Com isso, não se trata necessariamente da emoção evocada pela música, mas apenas da constatação do ouvinte em relação à intenção emotiva de uma peça musical. Os aspectos da emoção evocada estão associados às variações de sinais biológicos involuntários, também chamados de “biossinais”, tais como a variação da resistência cutânea e a variação de batimento cardíaco ou respiratório. Ressaltamos que não iremos nos deter nesse campo. Em termos de afeto musical, os “biossinais” podem ser utilizados para descrever a variação de estados emocionais evocados tanto de curta duração, affect, como de longa duração, mood. Os affects podem estar relacionados a curtos trechos musicais, ou trechos intramusicais (da mesma música), no intervalo de tempo, o “agora musical”. Os moods são geralmente criados por períodos mais longos de escuta musical, relacionados ao tamanho total de uma obra ou de uma performance musical, com duração média de uma sinfonia, ou a duração 60 a 90 minutos de duração. Seus efeitos emotivos persistem por longos períodos e podem ser verificados na análise das variações de ritmos biológicos do indivíduo. Para a música clássica (erudita) do século XX, foi justificado que as emoções evocadas aos ouvintes derivavam de um encadeamento de contextos advindos da organização de sons (HANSLICK, 1988). A partir desses sons, o ouvinte eventualmente os associava com emoções relacionadas a fatos ocorridos em sua história de vida, em sua memória. Esse conceito fundamentou a teoria estética musical opondo-se à teoria dos afetos, como extensão da teoria estética de Kant sobre a música. Para Kant (1980), que pensara no julgamento do belo, a música, em sua forma pura, sem texto, seria uma arte não representativa, e como tal, 153

pode exprimir o belo livre, ou seja, aquele que não é associado a qualquer outra representação. Em linhas gerais, a teoria dos afetos afirma que a música é uma arte que tem como propósito exprimir sentimentos pela modulação dos sons. Por sua vez, a teoria estética de Hanslick desvinculou a arte musical desse compromisso exclusivo com a expressão do belo ou da transmissão de emoções prazerosas ao ouvinte. É dessa noção estética do século XX que se amplia a criação de estruturas musicais cuja engenhosidade e complexidade ocorre em similaridade com a arquitetura, sendo esta eventualmente cógnita, isto é, percebida, compreendida e apreciada pelo ouvinte, por isso acatamos o termo “objeto” virtual (LOPES, 2014) como aquilo que objetivamos e imaginamos na estrutura musical, sua altura, profundidade, textura. A teoria estética (HANSLICK, 1988) concentra todo o significado musical da obra em si, a qual mostra que, sem a cognição, não há comunicação e a obra passa a ser uma incógnita. Isso porque o significado da música está necessariamente atrelado à sua compreensão, e essa, à comunicação efetiva dos conceitos estruturados na composição. Esses fatores são mediados pela performance e adequadamente decifrados pela percepção, pela cognição e pelos afetos evocados (Figura 43).

Figura 44 – O significado da música para o ouvinte

Cognição

Percepção Afetos

Significado da música

Fonte: autoria própria

A evocação de emoções pode ser estudada também sob uma perspectiva evolutiva, como alegria, surpresa, raiva e outras, expressões comuns aos indivíduos. Isso leva a supor que essas expressões cumprem um papel atávico na comunicação humana do estado emocional, o que explica que emoções são evocadas quando a tendência de resposta é inibida ou é interrompido o comportamento (MEYER, 1956). A emoção musical evocada de acordo com essas premissas é chamada de ITPRA, Imagination, Tension, Prediction, Reaction and Appraisal (HURON, 2006). Segundo esse modelo, algumas emoções evocadas pela música advêm de uma estratégia evolutiva de gerar 154

emoções de conforto e satisfação, que é quando o indivíduo consegue estabelecer previsões acertadas a eventos externos, como amor, alegria, admiração; bem como emoções de punição, com previsões incorretas com sensações de desconforto, como medo, raiva, tristeza. No modelo a seguir (Figura 44), apresentaremos como essas emoções acontecem no tempo cronológico, como em primeiro momento se dão, tornando-se de imediato “passado” quando sugere imaginação, e logo passando a uma tensão; seguindo a dois momentos mais rápidos do “presente”, como predição e reação; e logo após um “futuro”, com a constatação daquilo que foi imaginado anteriormente.

Figura 45 – O modelo de emoção – afeto musical evocada: Imagination, Tension, Prediction, Reaction and Appraisal, de Huron

Fonte: Huron (2006)

Esse sistema de previsões de eventos, incluindo eventos musicais, é processado simultaneamente por dois caminhos neurológicos distintos: um lento, processado pelo córtex auditivo, relacionado ao conhecimento aprendido, ao reconhecimento, à lembrança, à associação, à similaridade; e o outro caminho de ação rápida, processado pelo sistema de reações instintivas de sobrevivência como lutar, fugir, paralisar. A partir desse modelo (Figura 44), considerando a linha do tempo, analisamos como se dá o processo mental para a ocorrência de um evento musical, tendo inicialmente a imaginação, que reúne um conjunto de expectativas com relação ao evento que está por ocorrer. Ele pode ser composto de macroestruturas (gênero musical, estilo da performance, composição), e também de microestruturas (melodia, encadeamento harmônico, andamento, desenhos rítmicos). É a imaginação que estabelece as expectativas do ouvinte em relação aos eventos musicais que poderão ocorrer (futuros). Em seguida, tem-se a tensão, como uma reação anterior à ocorrência do evento que já é praticamente certo que irá ocorrer, que permite que o ouvinte se prepare, por exemplo: a repetição de um refrão ou tema musical. Nesse processo, enquanto a tensão aumenta a imaginação diminui proporcionalmente à diminuição da probabilidade da ocorrência de outros eventos inesperados durante a tensão; e na sequência do evento, a tensão desaparece subitamente. Nesse caso, há o processamento simultâneo de duas ações; a predição, 155

relacionada ao processamento lento; e a reação, com relação ao processamento rápido (Figura 44). A reação é relacionada ao processamento límbico e envolve ações automáticas, não processadas no córtex, que fomentam ações básicas e imediatas, de forma a garantir a sobrevivência do individuo. Do mesmo modo, a predição é iniciada no córtex auditivo e correlaciona o evento ocorrido com os modelos mentais esperados na imaginação, estabelecendo a similaridade entre eles, prevendo sua implicação. Na medida em que predição e reação diminuem, aumenta a constatação, que avalia o grau de acerto da predição, se ela foi correta em relação à imaginação e à tensão, bem como se a reação foi adequada ao tipo de evento musical (HURON, 2006). O modelo Imaginação, Tensão, Reação, Predição e Constatação tenta responder, por meio da psicologia das expectativas, a uma questão fundamental da música, que é saber o porquê nos sentimos bem ao ouvir música. Mesmo que as reações sejam as mais diversas, porque são vividas por diferentes indivíduos e em diferentes ambientes ruidosos, ainda continuam presentes na vida das pessoas e delas tomam parte nas suas escolhas e reações à sociedade em que vivem. É bem certo que essa é uma constatação bem empírica ainda carece de rigoroso estudo para se sustentar como teoria. Entretanto, a música pode também vir a ser utilizada como uma forma de adequar o indivíduo à sua realidade ou a uma mudança de realidade, seja de estado emocional, seja de ambiente, similar à de consolidação da memória semântica (PAYNE, 2004). A partir do modelo ITPRA, consideramos que o aspecto afetivo da música pode cumprir a função de ajudar a compreender a ideia musical, de maneira que também auxilia na regulação do estado emocional do indivíduo e em suas expectativas de apreciação musical.

6.4 ANÁLISE DAS BACHIANAS SERTANEJAS NA ATIVIDADE EXPERIMENTAL

Tomando os aspectos já discutidos como parâmetros de observação do Sertão trazido nas Bachianas Brasileiras, a atividade experimental de análise musical foi realizada em três etapas: audição, descrição e interpretação, anteriormente apresentadas (seção 6.2). Após a aplicação da atividade, foram recolhidos dados-respostas, sendo analisada a atividade com base nos seguintes aspectos: percepção sonora, cognição e evocação de afetos musicais. Para a percepção sonora, foram analisadas as respostas quanto à identificação e à classificação dos instrumentos percebidos durante a audição e os grupos a que pertenciam: 156

orquestra, pequena orquestra, quartetos, trios, duos ou solo. As respectivas respostas serão conferidas e apresentadas em porcentagens aproximadas, com referência aos campi do IFRN, tendo como foco as suítes das Bachianas apreciadas (Gráfico 7).

Gráfico 7 – Percepção sonora, identificação e classificação de instrumentos e grupos Percepção sonora, identificação e classificação de instrumentos e grupos 120% 100% 80% 60% 40% 20% 0%

Zona Norte Santa Cruz Parnamirim Natal Central João Câmara Canguaretama Introdução “Embolada” (orq. violoncelos) Dança “Lembrança do Sertão” (piano) Coral “Canto do Sertão” (orquestra) Ária “Cantiga” (orquestra)

Fonte: autoria própria

Quanto à cognição musical, foram analisadas as respostas referentes à compreensão e ao significado das saliências musicais nas peças, observando como se dá o reconhecimento de melodias e ritmos, como são possíveis de ser identificados durante a audição, sua repetição durante a peça e que sentido fazem da compreensão da temática. Nos Gráficos (8 a 13), estão apresentados os campi do IFRN que participaram da atividade; as suítes das Bachianas Sertanejas apreciadas; a porcentagem de percepção melódica e rítmica; e também as perguntas não respondidas.

157

Gráfico 8 – Campus Natal Central: cognição, identificação de melodias e ritmos NATAL CENTRAL 60%

50%

40%

30%

20%

10%

0% Percepção Percepção Não souberamSem respostas Melódica Rítmica

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

Gráfico 9 – Campus Zona Norte: cognição, identificação de melodias e ritmos ZONA NORTE 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Percepção Percepção Não souberamSem respostas Melódica Rítmica

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

158

Gráfico 10 – Campus João Câmara: cognição, identificação de melodias e ritmos JOÃO CÂMARA 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Percepção Percepção Não souberamSem respostas Melódica Rítmica

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

Gráfico 11 – Campus Santa Cruz: cognição, identificação de melodias e ritmos SANTA CRUZ 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Percepção Percepção Não souberamSem respostas Melódica Rítmica

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

159

Gráfico 12 – Campus Parnamirim: cognição, identificação de melodias e ritmos PARNAMIRIM 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Percepção Percepção Não souberamSem respostas Melódica Rítmica

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

Gráfico 13 – Campus Canguaretama: cognição, identificação de melodias e ritmos CANGUARETAMA 60%

50%

40%

30%

20%

10%

0% Percepção Percepção Não souberamSem respostas Melódica Rítmica

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

A terceira etapa é referente à evocação dos afetos musicais, desde a identificação com a temática do Sertão até a sugestão de título para as peças. Essa questão passa por uma provocação de opiniões a fim de obter respostas quanto ao “sentimento” e “gosto” musical, buscando identificar até que ponto lhes foi agradável ou desagradável, e que reações a obra trouxe durante sua audição (Gráficos 14 e 15). O primeiro aspecto analisado, Afeto I, apresenta as emoções consideradas ortogonais, que se diferenciam em valência e atividade: a primeira se estende entre “satisfeito e insatisfeito”; e a segunda se estende entre “sonolento ao animado”. Desse modo, constata-se 160

que as respostas em valência (Gráfico 14), quanto à satisfação com as peças, confirmam-se em atividade (Gráfico 15), em relação a se demonstrarem animados.

Gráfico 14 – Afeto I – Valência VA LÊN CIA 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%

Zona Norte Santa Cruz João Câmara Parnamirim Natal Central Canguaretama

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

Gráfico 15 – Afeto I – Atividade ATIVIDADE

12% 10% 8% 6% 4% 2% 0%

Zona Norte Santa Cruz João Câmara Parnamirim Natal Central Canguaretama

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

Na descrição da “valência” e da “atividade”, como modelos genéricos criados para gerar resultados satisfatórios, nem todos assim o foram. Mas, consideraram-se as diferentes opiniões-respostas obtidas, por não ser possível também desenvolver descrições mais detalhadas, como complexidade harmônica, brilho, claridade de pulso, repetição de trechos, identificação de tonalidade. Essas descrições não foram consideradas nem exploradas, por se 161

tratar de uma atividade experimental direcionada a estudantes do ensino médio e técnico, e não de escolas especializadas em música. No segundo aspecto, Afeto II, são expostas as emoções evocadas associadas às variações de sinais biológicos involuntários, o affects, de curta duração; e o moods, de longa duração. Com base nessas emoções evocadas, foram elaboradas estratégias para gerar emoções de conforto ou satisfação, que serão descritas como: imaginação, tensão, predição, reação e constatação (Gráficos 16 e 17).

Gráfico 16 – Afeto II – Imaginação IMAGINAÇÃO 40% 30% 20% 10% 0%

Natal… Zona… João… Santa… Parnami… Cangua…

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

Gráfico 17 – Afeto II – Constatação CONSTATAÇÃO 30% 20% 10% 0%

Zona… João… Natal… Santa… Parna… Cangu…

Introdução “Embolada” Dança “Lembrança do Sertão” Coral “Canto do Sertão” Ária “Cantiga”

Fonte: autoria própria

Nas dados-respostas, são descritas a imaginação (Gráfico 16) e a constatação (Gráfico 17), retiradas do modelo Imaginação, Tensão, Reação, Predição e Constatação. Nelas, destacamos os seguintes dados informativos: na imaginação, estão contidas expectativas em relação à cena musical, o que ela descreve, desde sua macroestrutura como composição sinfônica até sua microestrutura; e como apresenta as características musicais da região, como trechos de canções populares e o ritmo acentuado do baião e da embolada. 162

Nesse caso, foi reconhecido, nas respostas, principalmente o baião, por ser mais popular. Vimos como a imaginação estabelece expectativas entre o ouvinte e a peça musical, promovendo outras imagens sobre o que foi apresentado nas porcentagens em números reais dispostos no Quadro 15. No que diz respeito à tensão, vimos como ela permite ao ouvinte que se prepare para o evento musical, como o refrão ou um trecho que é repetido, mas, como isso não acontece claramente nas peças, sendo pouco identificada e desaparecendo subitamente, os dados não foram expostos. Nas respostas às ações de predição e reação, estas acontecem quase que de modo simultâneo, sendo a primeira mais rápida e a segunda de forma mais lenta, as quais fornecem parâmetros para a emissão de uma opinião-resposta quanto ao “apreciar”, “gostar” ou não. Por essas reações serem sutis, também não foram expostos os dados. Na constatação, confirmam-se os parâmetros trazidos nas ações anteriores, predição e reação, no momento em que foram dadas respostas com metáforas sobre o tema Sertão, associando-o a outros eventos e até a outras regiões e paisagens. Sendo a imaginação e a constatação dados em “espelho”, consideramos válido esse modelo ITPRA (Imagination, Tension, Prediction, Reaction and Appraisal) (HURON, 2006) para buscar compreender ou apontar, com base nas expectativas lançadas, o imaginário do Sertão nordestino presente nas Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos. A partir das amostragens, reunimos em gráfico e cartografia simbólica os dados-resposta para exposição e comparação com as peças das Bachianas Sertanejas, como ferramenta que auxilia no tratamento e na interpretação dos dados coletados, em exposição autoexplicativa (SANTOS, 2000). Na cartografia simbólica em quadros demonstrativos (Quadro 7 a 10) são apresentados os dados das opiniões-resposta em escala, projeção, aproximação e simbolização (Quadros 1 a 4) referentes a cada peça analisada. Na escala, como medida de informações obtidas, estará a porcentagem referente às associações entre as peças e o tema do Sertão; na projeção, constarão informações sobre a análise musical e as predefinições; na aproximação, estarão as respostas de convergem ou divergem; e na simbolização, como cada peça redefine a região e o tema proposto durante a atividade de apreciação musical.

163

Gráfico 18 – Assimilação da Introdução Embolada Entendimento a Introdução a "Embolada"

30% Assimilaram

70% Não Assimilaram

Fonte: autoria própria

Quadro 1 – Cartografia da Introdução Embolada Escala Das respostas obtidas, 70% não associaram a peça ao tema

Projeção Ø Análise musical: A peça traz elementos rítmicos da Embolada e melodia com características da escala nordestina com 7ª abaixada.

Ø Predefinições: Na região há influências ibéricas e africanas trazidas na prática das Emboladas e Desafios das feiras livres.

Aproximação Os dados simbólicos entre a análise da peça e da atividade não são convergentes Simbolização Apesar de as predefinições coincidirem com a análise musical, simbolicamente a peça é compreendida como concerto para uma orquestra de violoncelos, mas sem associação com temas populares, como o gênero musical “Embolada”, sugerido no duplo título da Introdução da Bachiana nº 1, Fonte: autoria própria

164

Gráfico 19 – Assimilação da Dança Lembrança do Sertão Entendimento a Dança "Lembrança do Sertão"

20% Assimilaram

80% Não Assimilaram

Fonte: autoria própria

Quadro 2 – Cartografia da Dança Lembrança do Sertão Escala Das respostas obtidas, 80% não associaram a peça ao tema Projeção Análise musical: a peça traz elementos rítmicos e melódicos sobre a região, como uma melodia em toada e o ponteio da viola sertaneja. Predefinições: a melancolia sertaneja associada à influência ibérica, desassociada dos ritmos de origem africana. Aproximação Os dados simbólicos entre a análise da peça e da atividade não são convergentes Simbolização Sendo coincidentes as predefinições com a análise musical, simbolicamente, a peça é compreendida como concerto para piano (foi apreciada nessa versão), mas sem associação com temas populares, como o gênero musical da toada nem o ponteio da viola sertaneja. Fonte: autoria própria

165

Gráfico 20 – Assimilação do Coral Canto do Sertão Entendimento ao Coral "Canto do Sertão"

30% Assimilaram

70% Não Assimilaram

Fonte: autoria própria

Quadro 3 – Cartografia do Coral Canto do Sertão Escala Das respostas obtidas, 70% não associaram a peça ao tema Projeção Análise musical: A peça traz elementos rítmicos e melódicos sobre o Sertão, como o ‘canto da araponga’ em ostinato e a canção católica sertaneja que permeia toda a peça. Predefinições: a região caracterizada pela seca e pela religiosidade popular Aproximação Os dados simbólicos entre a análise da peça e da atividade são convergentes com o ostinato e o cantus firmus da melodia sertaneja Simbolização Apesar de demonstrar afinidades, as predefinições e a análise musical, não estão em convergência pelo acúmulo de técnicas utilizadas na peça como tirata, pedal, ostinato, sendo, portanto, simbolicamente compreendida como “música clássica”, mas sem associação com o ‘canto da araponga’ nem com as canções sertanejas. Fonte: autoria própria

166

Gráfico 21 – Assimilação da Ária Cantiga Entendimento a Ária "Cantiga"

30% Assimilaram

70%

Não Assimilaram

Fonte: autoria própria

Quadro 4 – Cartografia da Ária Cantiga Escala Das respostas obtidas, 70% associaram a peça ao tema Projeção Análise musical: a peça traz dois elementos identificáveis que são: a melodia da canção ‘Ó mana deix’eu ir pr’o Sertão do Caicó’, também conhecida como Canção Itabayana; e o ritmo do baião presente na segunda parte da peça. Predefinições: a região é reconhecida como lugar ou ‘espaço da saudade’, convergente com o tema da canção popular escrita em Ária. Aproximação Os dados simbólicos entre a análise da peça e da atividade demonstram afinidades através pelo reconhecimento dos elementos rítmicos e melódicos, e também por fazer associação com a região do Seridó do Rio Grande do Norte. Simbolização As predefinições e análise musical convergem e trazem numa maioria de 70% uma associação à região, mas não exatamente como um lugar ou ‘espaço da saudade’, mas à região e ao ritmo do baião que dá origem ao forró (mais popular), os dados simbólicos apontam para a convergência entre as respostas da atividade e o tema da peça. Fonte: autoria própria

6.5 RESULTADOS

A partir dos quadros apresentados e expostos em cartografia simbólica (Quadro 1 a 4) observamos que, entre a análise das peças das Bachianas Sertanejas realizadas na seção 5 (puncto) e a atividade experimental na seção 6 (contrapunctus), não há convergência entre as peças e o tema. Apesar disso, não há uma total divergência, mas pontos que se sobressaem em respostas díspares com o tema, e outros que se movem a aproximar-se mais dele, como visto na Ária Cantiga da Bachiana nº 4. 167

Isso nos leva a constatar, que, apesar dos elementos rítmicos e melódicos utilizados estrategicamente pelo compositor Heitor Villa-Lobos, nem sempre eles apontaram para associações com a cultura musical da região, tampouco para definições físicas ou históricas sobre o Sertão. Sua intervenção é exógena à região, uma concepção da cultura musical sertaneja a partir de fora, das referências musicais, sociais e históricas que teve, as quais trouxe para as Bachianas Brasileiras. O mundo e o Brasil de Villa-Lobos apontavam para uma modernidade oriunda de romantismo de sua Kultur, pensamento explorado no século XIX, sobretudo com os estudos do indianismo e da cultura popular. O que vimos é que, apesar do esforço trazido e da manipulação de elementos rítmicos e melódicos nas peças, eles ainda se enquadram nas concepções de sua época, de sua construção histórica e também política. Nesse sentido, mesmo considerando o contexto, a obra musical como linguagem da arte e das “coisas” da vida, deixa nichos de valor e brechas de interpretação da região, além de estereótipos construídos historicamente sobre o Sertão. As Bachianas Sertanejas constituem mais que uma representação musical de uma região de natureza incorrigível, de consequência do fenômeno das secas, ou de tradicionalismo apegado ao passado, mas se apresenta uma região viva musicalmente e capaz de articular-se com o presente e suas mudanças. Isso foi observado durante a atividade experimental nas respostas dadas às peças. Na Introdução Embolada, da Bachiana nº 1, a atividade experimental demonstrou, a partir das respostas obtidas, que não houve aproximação do tema na peça, mas um distanciamento, sem qualquer associação do ritmo da embolada, conhecida e divulgada no Nordeste. A peça revelou-se como um concerto para instrumentos de corda, em que poucos identificaram os violoncelos, mas sem referência ao tema, apesar de trazer outras sugestões de títulos com definições para a região, como: os aguaceiros no mês de abril e julho ao ouvir os pizzicatos dos violoncelos; e a associação com as corridas de aventuras do Rally dos Sertões75. Ao trazerem tais impressões nas respostas sobre a Introdução, associamos ao movimento enérgico da primeira parte da peça, que, na descrição do aluno-ouvinte, soou dissonante e desencontrada com a segunda parte da peça. Para além de algumas dessas descrições, foram trazidas outras mais díspares sobre a região.

75 Rally dos Sertões consiste em uma competição automobilística brasileira de rali, que acontece anualmente e é amplamente divulgada na mídia, passando pelo Seridó dos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte, que movimenta as cidades vizinhas com ação social, aventura e eventos culturais. Disponível em: www.terra.com.br. Acesso em: 6 dez. 2019. 168

Na Dança Lembrança do Sertão, da Bachiana nº 2, a peça menos comentada, a atividade experimental demonstrou não haver qualquer associação da peça com o tema, mas reações contrárias tanto à obra de Villa-Lobos como à região do Sertão. Algumas respostas fizeram alusão a elementos da natureza que identificam parte da região, com a descrição do Pico do Cabugi; e outras trouxeram evocação de afetos, como “saudade”, “tristeza”, “algum desconforto” e “melancolia”. Essas reações são pouco associadas ao gênero musical regional comercial, de ritmo enérgico, ao qual o aluno-ouvinte tem acesso, sendo essa peça a que mais demonstrou distanciamento com o tema do Sertão. Em relação ao Coral Canto do Sertão, da Bachiana nº 4, uma das peças também pouco comentadas, a atividade experimental demonstrou não haver qualquer identificação e associação com o tema do Sertão. É nessa peça que dois elementos foram trazidos e manipulados estrategicamente com referência sertaneja, o Canto da Araponga, como pássaro ferreiro que anuncia o fim das secas e a canção católica sertaneja (domínio público), cantada em romarias em clamor às secas. Apesar desses dois elementos contraditórios e significativos observados e trazidos pelo compositor, a peça não demonstra esse Sertão, mas apresenta outro, de observância na paisagem, na expectativa de mudanças. Está, portanto, distante da ideia e definição trazida e reproduzida, não sendo, por isso, identificada nas respostas do aluno-ouvinte. Já na Ária Cantiga, da Bachiana nº 4, a peça mais comentada, a atividade experimental demonstrou, a partir das respostas obtidas, que não houve exatamente uma aproximação do tema na peça, mas um distanciamento por associações a outros temas que não se referiam ao Sertão. Com isso, observamos que apesar da presença do baião e da canção popular Ó mana deix’eu ir..., isso não significa que a peça traga à superfície o tema do Sertão, mas outras ideias sobre a região; ou, na obra, pode estar contida outra região. Se os procedimentos realizados ainda não elucidam especificamente a questão, ao menos apontam traços de identificação do tema, oferecendo, nesse processo, algumas questões a mais: o que a sonoridade da peça traz da região? Que aspectos podem causar identificação, aproximação e afetos com a região? Seria essa uma relação com a paisagem sonora? Ou apenas uma percepção do ambiente, a partir de sua referência climática e histórica? São essas e outras questões que se apresentam após a experiência e deixam indícios de outras interpretações sobre a região. A atividade experimental buscou na investigação empírica trazer o que aluno-ouvinte emitiu em suas opiniões e respostas a partir do que foi apreciado nas peças. Sobre o que fora observado, suas respostas não apareceram hierarquicamente com o tema do Sertão, mas 169

apenas traços dele e outras ideias advindas das Bachianas Sertanejas. Os ritmos esperados sobre o Sertão sempre foram associados ao baião e ao forró, ou ainda, a variações desses ritmos em versões de rock e pop, como readequações mais contemporâneas. Com isso, os participantes apontam em suas descrições outro lugar, outra região, possibilitando diferentes definições. Sua escuta também abarca a escuta de fontes sonoras não musicas (naturais e ou artificiais), sendo essa experiência subjetivamente apropriada a partir do ordenamento dos sons e dos ruídos no cerne de nossos padrões racionais. Isso é o que faz Villa-Lobos ser tocado pelo canto da Araponga, inserindo-o na aliteração musical em Si bemol, na peça Coral Canto do Sertão, da Bachiana nº 4. A atividade experimental apresentou a opinião do aluno-ouvinte, mesmo que ainda superficial, em que pousa o senso comum. Ainda que carecesse de mais respostas, é possível direcionar a diferentes percepções sobre a obra e seu tema, e daí, considerar outras ou novas definições sobre a região. Apesar de as respostas apareceram díspares ao tema do Sertão nas Bachianas durante a atividade, todas as respostas foram consideradas validas por refletirem a opinião do aluno- ouvinte e sua percepção com as peças, proporcionando a reflexão sobre esse outro Sertão, não mais visto como anteriormente, tão pouco, estereotipado.

6.6 DISCUSSÃO

Após a exposição dos resultados da atividade experimental realizada pelo aluno- ouvinte do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, buscaremos trazer à discussão o impacto de suas respostas e o que isso pode ser encaminhado como reflexão sobre o tema do Sertão nas peças das Bachianas. O que se observa é que há várias histórias, várias formas de falar sobre a mesma cena e procurar interpretar e organizar a lógica dessas narrativas nos conduz a compreender o imaginário do Sertão nordestino trazido pelo compositor. A partir das respostas obtidas, notamos que só vemos ou respondemos àquilo que entendemos, a partir das referências e do conhecimento que temos. Por isso a importância dada à voz do aluno-ouvinte como agente ativo nesse processo de compreensão da obra musical, capaz de entender ou trazer outra perspectiva da região Nordeste e do Sertão. A relevância dada à sua voz e opinião parte também de que as experiências musicais não sejam desperdiçadas. Elas são importantes na partilha do conhecimento e também como forma de ampliar o presente. Com base nisso, é possível aproveitar as diferentes experiências musicais, 170

como compreensão do seu tempo e do indivíduo nesse processo (MEDEIROS; LOPES, 2019). Ao aproximar esse público da obra de Villa-Lobos, nota-se o quanto é possível esta ser ressignificada, principalmente pelo trânsito bilateral entre temas da cultura popular e erudita, sem que ambos percam sua essência e estrutura. No decorrer da pesquisa algumas questões saltaram, tais como: “Por que o Sertão já tão cantado e explorado?”, “A quem interessa, nos dias de hoje, ainda reproduzir definições sobre a região?”, e também “O que implica não reconhecer o tema nas peças seria uma negação às tradições?”. Diante das respostas obtidas na atividade experimental, concentramo- nos em trazer à discussão o que levou os alunos a não reconhecerem o tema nas peças, e o que isso demonstra. A fim de explorar esse questionamento, formulamos inicialmente duas hipóteses para que isso tenha ocorrido. A primeira é que esse ouvinte tem outras referências musicais, vive sob outro contexto cultural e, portanto, aprecia outros estilos musicais, o que não significa que tenha de fechar-se apenas às suas referências. A segunda é que esse ouvinte tem pouco ou nenhum acesso à obra de Heitor Villa-Lobos, o que consideramos uma lacuna ignorada na educação musical brasileira, visto sua contribuição para a música e a educação. Explorando a primeira hipótese, é a voz, a opinião do ouvinte, sob seus diferentes referenciais, que trará uma nova perspectiva sobre a obra e o tema, sendo essa opinião construída sob outro contexto, nem sempre coincidente com o que foi sugerido, por isso, não tenha sido identificado em sua resposta. Ao analisarmos as Bachianas Sertanejas, consideramos o contexto em que foi escrita, e como os traços históricos do nacionalismo, do neoclassicismo e do modernismo se sobressaem nas peças. Esses traços são apoiados em definições regionalistas que foram reproduzidas e posteriormente estereotipadas como uma região. Isso reforça a ideia, ou o imaginário, de uma região de poucos avanços sociais, de natureza incorrigível, de espaço da saudade, de forte tradição ibérica em sua cultura musical e certo distanciamento da produção e da industrialização do restante do país. Esse posicionamento foi sustentado histórica e socialmente desde os finais do século XIX. Durante o século XX, sedimentou-se em uma tradição quase intocável, como produto de uma busca pela identidade nacional, o que acentua que, aquilo pelo qual se busca, é porque não se tem, ou ainda, não se admite que tem. É nessa busca que foram identificados, no Nordeste do Brasil, traços assim considerados mais brasileiros (RIBEIRO, 1995; ORTIZ, 2006; ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011), ou aqueles que abrigam mais claramente a 171

contribuição ibérica, indígena e de povos africanos, incluindo mouros e judeus, sobretudo no Sertão (GURGEL, 1996; CASCUDO, 2001). Esses traços são notados nos hábitos do cotidiano, no modo de falar, na organização familiar, na culinária, na devoção religiosa, e, muito especificamente, na cultura musical. É da cultura musical que destacamos determinadas características mais marcantes, que se apresentam desde a confecção de instrumentos, como a viola sertaneja; a transformação dos adufes em pandeiros, no acompanhamento da voz em rima, representado na embolada; no ritmo acentuado do baião, oriundo do lundu africano de Porto Luanda, até a sequência usual do modo mixolídio que deu origem à Escala Nordestina. Considerando todas essas características, chamamos a atenção que a região é mais que suas definições elaboradas a partir do fenômeno das secas; é mais que o resgate antropofágico sob a perspectiva modernista, de traços delineados e reproduzidos no início do século XX. Nas peças das Bachianas Sertanejas, essas características estão presentes e ainda apontam sua articulação na contemporaneidade, porque não precisam ser repetidas da mesma forma para que permaneçam. Ao repeti-las, corre-se o risco de fechá-las e guardá-las; e ainda, de cristalizar formas de pensar e agir, como procedimento de assegurar a tradição, a cultura e a identidade. Ao receber as diferentes respostas e interpretações, o que nos chamou a atenção foi que não é mais possível ouvir o passado sob os mesmos parâmetros construídos há mais de um século. Assim, avançar em novas interpretações contribui para diminuir distâncias e até a rejeição à tradição como sinônimo de atraso. A partir das diferentes respostas e interpretações e não das associações entre as peças e o tema, concordamos que a história é que nos impulsiona a seguir e a mudar. Com isso, não significa dar as costas ao passado, mas fazer dele um degrau para o presente e o futuro. A razão pela qual o ouvinte, em sua percepção musical, não tenha reconhecido o tema, abre-nos a reflexão para o entendimento de que a região pode ser vista sob outras perspectivas. Assim, é possível interagir com outras cenas musicais e outros contextos históricos. Isso não significa, necessariamente, uma descaracterização da tradição e do folclore. Mas essa tomada de decisão, ou possibilidade de mover opiniões, consiste em abrir- se a novas conceituações, não mais singulares, baseadas em determinismos estabelecidos. Essa seria, portanto, uma conceituação plural, que venha a contribuir para uma desconstrução e uma reconstrução, que avance para estreitar laços, diminuir ruídos e estabelecer uma melhor comunicação entre o passado e o presente. 172

Admitir essa possibilidade seria um caminho a ser percorrido sob a égide da contemporaneidade e se trata, ainda, de uma necessidade de sobrevivência. Nesse processo, qualquer passo dado em direção ao questionamento, ou a admitir outras possibilidades de compreensão, contrária ao que se esperava, promove uma mudança, move-se ao novo. Isso significa abrir-se a gerar novas questões, aquilo que ainda pode ser descoberto, que suscita curiosidade, como movimento natural das coisas, da vida, não permitindo que o pensamento se torne estático. Por isso, consideramos válidas e úteis as respostas colhidas na atividade experimental, em que não houve associações ao tema, sendo essas o seu contrapunctus. Salientamos que em suas respostas díspares, as coisas coexistem, e não se anulam em detrimento de outras. Porque em todas as coisas há correspondências e são as variadas percepções e interpretações que dão vida e movimento à cultura, para que essa não venha a sucumbir, mesmo que seja preciso alterá-la. Do ponto de vista sociológico, não seria viável assegurar o mesmo conceito, como se assegura um padrão museológico, mas abrir e manter a troca para entender o nosso próprio tempo, como nos posicionamos na sociedade, e como refazemos a cultura e redefinimos espaços para que continuem existindo. Nesse sentido, é a opinião e a resposta do aluno-ouvinte que são capazes de trazer outro Sertão, no qual existem algumas características históricas, mas que não mais se apega ao passado estereotipado. Nesse movimento, associa-se com o presente, porque nele vivem as pessoas do presente e seus contatos com o mundo, com outras realidades que fazem intercâmbio continuamente. Nisso, vemos que esse Sertão trazido ou imaginado nas Bachianas Brasileiras, com viés do modernismo, com polirritmias e atonalidades, sugeriu ou deixou nichos de valor com os tempos após sua composição. Não foi preciso, na composição da obra, seguir à risca regras e estruturas sinfônicas, quando a própria escrita de Villa-Lobos foi questionada como certa, ou dentro dos padrões modernistas que propunha (DUARTE, 2009), mas em sua escrita musical, trouxe a beleza da simplicidade da tonalidade exposta nos temas folclóricos, com a energia rítmica e a dinâmica melódica, quase previsível, mas que surpreendia ao utilizar a organização mixolídia, da escala nordestina, trouxe o imaginário da região.

Essa clareza esteve presente nas Bachianas Sertanejas, primeiro identificada na Introdução Embolada, na Bachiana nº 1, em que foi salientado o ambiente das feiras livres do Nordeste; em seguida, com o solo melancólico de que “tudo passa”: a feira, a festa, o trabalho, a vida. Na Bachiana nº 2, na Dança Lembrança do Sertão, está presente o ponteio 173

quase impressionista da viola sertaneja com a toada deslizando nas notas do piano, mesmo que não sejam identificados à primeira vista. Já na Bachiana nº 4, no Coral Canto do Sertão, a melodia católica sertaneja de domínio público é interrompida pelo ostinato dado sob o Canto da Araponga. Esse canto traz a ideia de que a súplica cessou, as orações em canto de romaria foram atendidas, anunciando que o tempo havia mudado, ao ouvir-se o canto frio e estridente da Araponga, o pássaro “ferreiro”, que migra da Zona da Mata para o Sertão. Por fim, temos a Ária Cantiga da Bachiana nº 4, em que aparece o ritmo acentuado do baião, intermeado pela melodia saudosa da canção popular Ó mana deix’eu ir pr’o sertão do Caicó, sendo essa a peça mais identificada e comentada nas respostas da atividade experimental, que foi comprovada pela popularidade da canção e pelo ritmo do baião. As Bachianas Sertanejas aparecem, ora coincidentes, ora discordantes, entre o tema e a obra, alterando desenhos rítmicos, provocando um deslocamento natural do primeiro tempo acentuado e já esperado; e ainda surpreendendo de forma inovadora ou até então despercebida, seja por cuidado ou precisão, seja por manter-se fiel à liberdade como linguagem artística. Essa linguagem foi capaz de mover-se dos anos de 1930, há quase um século, para que tivesse vida nos dias de hoje. Nessa perspectiva, admitimos ser válido mover e desconstruir algumas de suas previsões para que sejam geradas outras, que se comuniquem com outros tempos e assim se mantenham vivas. A segunda hipótese, quanto ao distanciamento que esse aluno-ouvinte tem da obra de Heitor Villa-Lobos, trazemos duas variáveis: a primeira pode ser relacionada ao seu interesse fechado a outros estilos musicais; e a segunda é que há uma lacuna deixada na educação musical. Na primeira variável, chama-nos a atenção que não apenas o passado mas também o presente se fecha ao passado. É uma comprovação de que há certa rejeição, como se nada do que se fora feito antes ainda pudesse contribuir, visto a velocidade da informação, das tecnologias e das descobertas. Ou ainda, como se o que viesse causar interesse e fosse válido é o que se faz hoje, sob os olhares desse tempo, uma suposta “arrogância contemporânea”, e o passado já passou, é história. Com isso, vimos que tal atitude também constrói barreiras, levanta muros intransponíveis à comunicação, ao conhecimento. Por conseguinte, cria guetos, seccionando a cultura, contribuindo para seu isolamento, sua liquidez e seu possível declínio, porque sem comunicação e ponderação entre o que foi realizado no passado e o que se realiza no presente, não se constrói o novo, não é possível avançar. Isso promove um movimento em círculo, sedimentando cada vez mais preconceitos. Essa seria, portanto, a primeira variável sobre a atitude do ouvinte quando se fecha e se distancia do passado, por admiti-lo obsoleto. 174

Por conseguinte, surge-nos a reflexão de que o retorno ao passado nem sempre é fácil. Porque, esse “olhar” e esse “ouvir” natural das coisas trazem consigo estigmas e separações, que, sob muito custo e lutas, foram ou ainda estão em processo de ser superados. São lutas pela superação da inferioridade, pela falta de acesso a melhores meios de tecnologia, a fim de evitar a repetição de padrões e estilos de vida que não mais condizem com o regionalismo separatista, e, sobretudo, por querer mudar, mesmo por via da informação rápida e da globalização, como sinônimo direto de avanço. Olhar e ouvir o local podem contribuir para o pensamento estático, diferente do global em ligação e dinâmica com o mundo. Isso também é observado como segunda variável quanto a pouca inclusão da música de Villa-Lobos na educação musical. Ao rever a construção histórica da educação artística e musical no Brasil, a presença e a contribuição do projeto de educação social da música trazida pelo compositor têm, em seu cerne, a cultura popular e o folclore. Essa proposta, apesar de trazida sob estrutura erudita, não apenas por sua notação musical, solidificou-se na capacidade de ser confrontada com a realidade, e dela suscitar outras realidades, perpassando de forma transversal na contemporaneidade. No entanto, para que ocorra tal aproximação entre a obra de Villa-Lobos e o aluno- ouvinte, é necessário rever o pensamento e as ferramentas usadas no passado. Dessa forma, é necessário considerar os vários preceitos da música Ocidental, como foram organizados e contribuíram para o acesso a que dela temos hoje; e ainda, como esses preceitos podem ser readequados para ser continuados. Ouvir a música de Villa-Lobos sob a temática do Sertão e imaginá-lo é ouvir sob duas perspectivas: a da obra, como linguagem em si; e a do aluno-ouvinte, como agente dinâmico e aquele que compreende a obra e seu tema. Ouvir as Bachianas Sertanejas a partir da obra em si é buscar compreender suas harmonias, sua estrutura, é observá-la em análise formal, como o compositor utilizou e manipulou os elementos rítmicos e melódicos. É também considerar a obra do ponto de vista histórico, de um tempo nem sempre linear, mas que se move entre o passado e o presente, construindo outras cenas e realidades. Ouvir essas Bachianas a partir do aluno-ouvinte é trazê-las do ponto de vista individual, considerando suas referências contemporâneas, apreciadas a partir daquilo que somos e nos define. É trazê-las sob aquilo que ainda não está pronto, nem definido, mas aberto a novas definições. Isso porque não só ouvimos e processamos algo como ainda, quando interpretamos, ouvimos a nós mesmos e toda a relação do nosso pensamento. Como readequamos o que ouvimos sob sua bidimensionalidade, desde os aspectos exteriores, acústicos, até os interiores, compostos pela memória seja histórica ou seletiva, isso é 175

traduzido na percepção sonora, na cognição que fazemos desses sons e na possível produção de afetos musicais (FORNARI, 2010). Também admitimos o quanto a música – como “objeto” virtual (LOPES, 2014), imaginado – pode proporcionar múltiplas interpretações sendo ela mesma, para, dessa forma, aberta e móvel, compreender o tema trazido na obra. Sob essas duas hipóteses, de fato, as Bachianas Sertanejas dão visibilidade a identidades que se fizeram na região, e que continuam processualmente a motivar identificações sobrepostas, que exigem outras percepções, imaginações da região na contemporaneidade. Nesse processo, o que implica admitir a validade do não reconhecimento do tema na obra? Seria reconstruir o imaginário do Sertão em detrimento da sua localidade e regionalidade? Certamente que não, como já argumentamos. Mas admitir mudanças é também admitir suas consequências, e sobre isso ainda não se tem o controle, porque se dá em construção e em crescente relação com o presente. Uma coisa é dada como certa: é preciso avançar para além dos muros estabelecidos, sejam de definições históricas, teóricas e de análise musical; sejam de métodos de ensino e aprendizagem musical; sejam de definições pessoais que necessitam ser vistas e revistas. Mudar é transpor montanhas, passar por vales e abismos que ainda não sabemos como são, mas certamente nos impulsiona a seguir, porque fazem parte da nossa sobrevivência. Mudar é admitir que, fora do nosso ângulo, há também outros ângulos que podem ser considerados; que a tradição e o folclore vivem porque o movemos a outras épocas, e damos visibilidade para além do seu meio. É dessa forma que se é permitido criar laços, comunicar aquilo que pensamos e trocar com os outros, mesmo que isso venha a destruir em parte o que já foi estabelecido. Nesse processo, sendo construção ou desconstrução, que sejam válidas. Porque nem sempre aquilo que aparenta ter sido destruído realmente é, e o que foi construído pode manter-se inabalável. A única certeza que temos é que não sobrevivemos, nós, a nossa cultural, a nossa música, se não nos movermos e mudarmos; e esse movimento nem sempre é linear, nem sempre compreensível, inicialmente, mas nos mantém em progressão. Assim, a música tem sobrevivido há tantos anos, épocas e sociedades por sua capacidade de mover-se, de adaptar-se em comunicação com outras músicas, com outras áreas de conhecimento, com outras histórias e culturas. Miguel de Cervantes (2009), ao apresentar a saga de Dom Quixote, mostrou um novo mundo cruel e sofrido, que o cavaleiro enfrenta com a própria existência, pondo em prova a sua fé na vida e nos ideais, em busca de outros. Nesse mundo fechado em que vivia, mesmo em meio às suas desconstruções, ele vislumbra o novo, 176

sendo necessário, para isso, sair do seu lugar comum, das suas referências previsíveis e lançar-se a outras. Ao trazermos para o compositor Heitor Villa-Lobos, vimos que ele também se moveu, contradisse o que poderia estar estabelecido como modernismo brasileiro em sua música. Ele expôs outro modernismo, com traços românticos e impressionistas, com estrutura Bachiana; uma música de caráter único, que oscila entre o solene Bach e a melancólica interiorana do Sertão nordestino, desfazendo o estereótipo que a música sertaneja é sempre enérgica e vivaz. Com isso, buscou apresentar outro Sertão e outro Brasil, em tempos de definições e integralismos nacionalistas, em que nada se integrava, porque não considerava as diferenças, mas generalizava e definia apenas como o Brasil “profundo”. Assim, foram imaginadas as Bachianas Sertanejas, do passado e também do presente, de Bach e das cantigas, das emboladas e dos baiões, da cultura regional e seu folclore, do local e também global. Identificá-las ou não certamente não as destrói, mas reconstrói, refaz não apenas a música mas também a história, a região, a sociedade, permitindo imaginar e recriar sertões, para “ser-tão” nosso e também dos outros.

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7 CODA E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Das coisas findas, muito mais do que lindas, essas ficarão (DRUMMOND, 1959, p. 59).

Esta seção chamamos de Coda (italiano), cauda (português), um termo usual da escrita musical referente à seção com que se termina uma música. Nessa parte, o compositor, ou melhor, a autora, poderá ou não utilizar ideias já apresentadas ao longo desta tese. A Coda representa um salto na leitura em retorno à ideia inicial, a fim de reforçar o que anteriormente foi apresentado, ou ainda, reapresentar, após as mudanças ocorridas durante o processo, como o tema foi exposto sob as influências e interferências trazidas. Assim, em Coda, voltamos à questão inicial sobre o Sertão imaginado nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos, como esse foi apresentado, que deduções foram tiradas quanto à mudança de olhar e ouvir a região, e o que essa mudança implica. Vimos que as Bachianas Sertanejas trouxeram características da cultura musical da região em seus temas melódicos e rítmicos, guardando algumas características ibéricas, indígenas e de povos africanos, presentes em trechos e canções de tradição oral. Essas Bachianas também acrescentaram outras características em sua linguagem musical, além das demonstradas entre o romantismo e modernismo. Sob influência estrutural em Bach, a obra conciliou os temas folclóricos, produzindo um novo estilo, não só de Villa- Lobos como ainda de uma época, a fim de criar imagens e interpretações além das sugeridas ou orientadas nos anos de 1930 e 40, mas articuláveis e críticas. Desse modo, observamos o quanto as Bachianas, como objeto de investigação, deixaram nichos de valor abertos a outras épocas e interpretação, sobretudo como posiciona sua transversalidade na contemporaneidade. A partir de sua audição crítica, foi possível traçar e apontar novas definições sobre a região, que permanece a mesma, porém, pode ser outra, quando acrescida de diferentes características e interpretada sob outros ângulos, seja do contexto de composição da obra, seja da atualidade. Quando os elementos musicais presentes na obra – como os ritmos do baião, da embolada e as cantigas – não foram de pronto reconhecidos ou foram pouco identificados durante a atividade experimental, eles também se posicionaram como complementos daquilo que se pode imaginar ou interpretar da região. Constatamos que as respostas, sejam de reconhecimento ou não, ou ainda, as de ausência de resposta, cumpriram com a ressignificação da ideia da região através da música, permitindo compreender a música para 178

além dela mesma; ou a partir dela, em sua episteme, trazer a crítica, quando a reelaborar uma imagem. Se pensarmos no Sertão como região ou sub-região, essa já sofreu alterações físicas, históricas e sociais, sobretudo nas últimas décadas, seja pela interferência da modernidade e tecnologia, seja por políticas públicas. Concordamos que problemas sociais, físicos e históricos ainda insistem em existir e outros foram superados. Mas uma coisa é certa: que as mudanças não interferem no que é e no como se apresenta a região. Porque os tempos mudam, e a história nem sempre se repete do mesmo jeito. O homem muda e a sociedade também, havendo outras preocupações e necessidades, umas mais visíveis que outras, mas sempre outras, e nunca as mesmas. Ver ou ouvir uma obra que traz de volta uma região, como o Sertão, sob definições passadas, é o mesmo que admitir que seja solidificado seu isolamento. Os resultados da atividade experimental de audição e apreciação musical realizada certamente não podem ser os mesmos. Isso nos dá certa esperança de que não é possível acentuar estereótipos em nome da tradição, nem alimentar tais concepções que foram sempre vistas de fora, e nunca a partir de como realmente é. Alterar definições é dar-lhes outras perspectivas, é admitir sua manutenção para que ela continue viva em sua tradição, mesmo que para isso seja necessário interferir nela. Nisso, reconhecemos que as tradições também foram inventadas e absorvidas de outras tradições, até serem o que são (HOBSBAWM, 1984). Como absorvemos, somos tão ibéricos, tão indígenas e africanos em suas e em nossas diversidades que as refizemos e as ressignificamos. Trazer as múltiplas interpretações à superfície é comunicar-se com outras culturas, trocando e dando visibilidade para que não venham a sucumbir em seus próprios preceitos. Como pensadores, a inovação é sempre um desafio de diversas áreas (GEERTZ, 1989), descobrindo o futuro no passado, alargando o presente (SANTOS, 2001), incluindo arte na ciência, reconhecendo a ciência na arte. Voltar-se ao presente não significa virar as costas ao passado e a tudo o que foi construído. Olhar para o presente é expandi-lo, aproveitando as diferentes narrativas e experiências a partir daquilo que foi deixado no passado (MEDEIROS; LOPES, 2019); e conduzi-lo adiante, mesmo que, para isso, seja necessário alterar elementos rítmicos e melódicos, como assim fez Villa-Lobos nas Bachianas Sertanejas. Seria esse, portanto, um distanciamento e uma negação às tradições e definições anteriormente estabelecidas? É possível que isso ocorra, como também não, mas em tempos de troca de informações e comunicação, da qual se tem cada vez mais necessidade, esse é um 179

risco que se admite passar. Porém, o não interferir seria mais prejudicial, porque significa deixar estático, fechado e cristalizado, tornando-se cada vez mais obsoletas as definições sobre o Sertão nordestino e a música de Villa-Lobos. Reconhecemos, com isso, que a pesquisa e toda investigação é invasiva. Porque, ao se descobrir, também se destrói. Ao tocar pode macular, mas macular nem sempre parecerá mau, e esse será o risco que corremos. Quando um garimpeiro busca na rocha encontrar uma pedra preciosa, tem de, para isso, ferir a rocha, adulterar o seu entorno, e, consequentemente, causar um impacto ambiental com sua invasão. Se assim não fosse, a pedra ficaria guardada na rocha, e nunca seria possível ser vista e apreciada, sequer conhecida. Portanto, desfazer é também refazer. Assim, arrematamos o tema nesta Coda. Nessas considerações finais, trazemos à reflexão o que implica: o não reconhecimento do tema do Sertão nas Bachianas Brasileiras, analisando como o ouvir da obra pôde apresentar alguns aspectos (musicológico), manter-se, e em outros (sociológico), transformar-se. Sobretudo, sob um olhar para uma região específica, observar como foi ouvir uma música para além dela mesma. Sendo essa a motivação de pesquisar a obra, naquilo que é válido ser mantido, ser revisitado e também naquilo que pode ser reinventado e reelaborado. Admitimos que trazer uma obra sob o exercício do ouvir social, em tempos cada vez mais visuais, é um desafio que enfrentamos e que nos impulsiona a seguir na pesquisa. Falar ou discorrer sobre a música é falar sobre a sociedade, sobre as pessoas que a fazem e o sentido que lhes atribui, observando como os tempos e a sociedade a influenciam e a transformam, e como a música também influencia uma época. Porque, seja na música, seja na vida, só podemos falar de fato das nossas reações estabelecendo relações entre o seu conteúdo e o conteúdo inexprimível da vida. Apesar de vivermos em uma sociedade visual, quase que exclusivamente, isso não nos aparta da influência que tem a música e as “janelas” que se abrem a partir dela. Porque, assim como é treinado o ver, o olhar, também é treinado o ouvir, sendo os sons que compõem uma música capazes de transformá-la em conhecimento e em reflexão sobre tudo o que ela representa. Isso porque a música é uma das práticas que define o ser humano, em sua capacidade racional e emocional, não necessariamente nessa ordem, sendo inerente a épocas, a diferentes contextos em que foi construída e praticada, e também sobrevive até os dias de hoje. Nesta pesquisa, salientamos a importância da audição crítica. É da música, em seus elementos mais fundamentais como o ritmo, a melodia e a harmonia, que observamos dois aspectos particulares nesta tese: o primeiro, que eles se posicionam como ferramentas de apreciação estética, que auxiliam e proporcionam a recepção 180

musical por parte do ouvinte, aproximando as referências do passado aos dias de hoje; e o segundo, sob essa audição crítica, une o intelecto à emoção, simultaneamente, visto que não estão em conflito, mas se guiam à compreensão, de modo que o intelecto determina a validade de reação intuitiva; por sua vez, o elemento emocional, fornece ao racional a dimensão do afeto, conferindo-lhe nisso a humanidade. Ao considerar que a sociologia e música, como ciência e arte, são campos científicos e artísticos complementares. São esses campos que expressam na pesquisa a possibilidade de se constituírem em experimentações que transcendem os limites das disciplinas acadêmicas formalmente estabelecidas; tornando-se campos que podem dialogar entre si de modo plural e inovador. Nesta pesquisa encontramos nas Bachianas Brasileiras, a potência das musicalidades regionais brasileiras, e o caleidoscópio nacional projetado e sistematizado, principalmente por Mário de Andrade, assim captado por Villa-Lobos. Na Série, e especificamente nas Bachianas Sertanejas encontram-se o ethos musical nordestino como ente livre a estereótipos e reinventado dando vida à região. Nisso vemos que a noção de imaginários se torna cada vez mais central nas ciências humanas e artes. Porque as artes apresentam uma enorme capacidade de reformular cenários, alterar estereótipos construídos historicamente, principalmente por dar visibilidade contemporânea ao Sertão, alterando discursos sobre o Brasil profundo o qual demonstra ser um universo musical rico e fonte de criatividade, gerando elos territoriais identitários. Dessa forma a pesquisa foi se revelando como um campo aberto a descobertas. Nesta pesquisa vimos como a música é ouvida, é pensada, é recebida. Até que ponto uma imagem contemporânea, como as que foram coletadas na atividade experimental, é reflexo de imaginário da região, como traz esse confronto, o que ela nos ensina em relação aos nossos valores, mitos, nossas bandeiras, relativizando o passado no presente. Sendo esse o seu valor que traz na discussão que provoca como partilha de conhecimento. Concluindo, apresentamos a pesquisa que teve por tema O Sertão imaginado nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos, que foi desenvolvida de acordo com as seguintes partes: a revisão bibliográfica e histórica; a relevância do tema do Sertão; o enquadramento musicológico como episteme que direcionou a pesquisa; a análise das peças Bachianas Sertanejas, a partir da Topics Theory; e a realização da atividade experimental de análise musical, que gerou dados comparativos e de reflexão ao tema apresentado. Nesse processo, alguns pontos sobressaíram-se e surpreenderam durante a pesquisa: o primeiro, quanto ao tema do Sertão, que de periférico passou a ser central, porque as peças foram sendo 181

reconhecidas como sertanejas a partir dos elementos em comum que apresentavam; o segundo, a obra musical como “objeto” virtual capaz de suscitar a imaginação e, consequentemente, tornar-se compreensível; e o terceiro, o aluno-ouvinte como agente capaz de compreender a música, manifestar sua opinião na atividade experimental, acrescentando- lhe a possibilidade de rever concepções sobre o Sertão a partir do olhar e do ouvir social- musical apresentado na obra. Considerando as demais etapas que se sobressaem na pesquisa, reconhecemos que a chave que permitiu desenvolver ou considerar a mudança foi a atividade experimental de audição das Bachianas, a partir da qual obtivemos a resposta e o posicionamento do ouvinte. Com base nos resultados obtidos e discutidos na atividade experimental, concluímos nesta tese que a música, como criadora de imagens e metáforas sobre uma região, contribuiu para trazer a ideia de Sertão nas Bachianas, sem, no entanto, enquadrar o Sertão nos padrões e definições construídos sobre a região, mas naquilo que se transforma, que se readéqua e se desconstrói. Dessa forma, foram criadas novas leituras a partir de sua retórica, construída em tropos e tópicas que sinalizam, identificam, caracterizam, mas também se apresentam móveis e comunicáveis. Nessa contribuição, vimos como o compositor Heitor Villa-Lobos conseguiu, através de sua música, criar uma identidade e uma imagem de uma cultura para além das indicações românticas, nacionalistas e modernistas. Em sua obra, foram utilizados recursos técnicos, cuja manipulação, mesmo que de forma exógena, permitiu o diálogo contemporâneo entre os anos de 1930 e os dias de hoje. Isso foi constatado a partir dos dados-resposta obtidos durante a atividade experimental, os quais, ao ser analisados e expostos na atualidade, permitiu ver até que medida, do ponto de vista sociológico, as pessoas dos dias de hoje percebem e podem tomar para si referências do passado e as reconhecer nesse sentido, mesmo lhes atribuindo outros sentidos de acordo com sua realidade e suas referências. Nisto vimos o quanto as definições e o imaginário elaborado sobre a região, um povo, uma cultura musical é transitável, comunicável, e não está preso a épocas. Isso lhes dá possibilidade de mover-se e de reinventar-se, mantendo-se viva. A tese é esta: o valor da música nas ciências sociais como criadora de imagens e metáforas que contribuem para a elaboração crítica da realidade. Enquanto as primeiras conclusões são mais de foro musicológico; as segundas são de foro sociológico. Consideramos até que ponto isso cresce hoje em dia para a sociedade, em relação a esse tipo de música, sendo capaz de mover-se entre o passado e a contemporaneidade. Com esta pesquisa, salientamos a importância da 182

análise musical e do contexto cultural na contribuição e propostas de um redirecionamento conceitual dos estudos da música nas ciências sociais.

7.1 POSLÚDIO

Havendo um Prelúdio, há também um Poslúdio, e este consiste numa peça final mais curta em sequência à obra principal. Há, em seus “acordes finais”, nuances do que fora apresentado anteriormente, porém, sob uma ótica mais particular e introspectiva, referente ao processo percorrido durante a pesquisa. Eis o Poslúdio desta tese. Foram quatro anos de leitura, escrita e reflexão, reformulando ideias, desfazendo certezas e adquirindo outras. Um processo de ajuste mental, emocional e também físico. Nestes anos de doutorado em Ciências Sociais, com pesquisa em Música, entre a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a Universidade de Évora, em Portugal, buscamos falar e escrever para além da música, sem, portanto, sair dela, de modo a tratar o objeto de investigação não apenas como um veículo a outros conhecimentos mas simultaneamente como influenciado e influenciador de nossos tempos. Buscamos pesquisar a música como conhecimento viável e transitável nas ciências humanas. Esse foi um pensamento que insistimos e perseguimos com muito custo nesses anos, a fim de contribuir para uma sociologia da música. Para tanto, foram lidos autores que incentivaram a escrita e outros que, simplesmente, deixaram-nos sem palavras. Alguns trouxeram novidades e outros desfizeram e redirecionaram a temática do Sertão nordestino, que, em princípio, posicionava-se perifericamente, tornando-se, no final, centralizado. Foi um diálogo constante entre a musicologia e a sociologia. Assim nos fortalecemos e nos alegramos ao ver finalizado o trabalho acadêmico, apesar de que, por natureza será sempre incompleto. Mas, com vislumbre de conhecimentos que surgirão, que serão revisados, para assim, tomarem sequência. Iniciamos este processo confiantes, ainda sem saber ao certo o que fazer com a música nas ciências sociais. Mas, ao percorrer este caminho, descobrimos outros caminhos que nos surpreenderam, sendo a descoberta do inesperado mais interessante e significante do que aquilo que almejávamos. A construção do conhecimento é assim, surpreendente, revelando-nos ser outra, nem sempre tão forte e feliz. Porque, nesse processo, há momentos de vulnerabilidade, o que não nos impediu de sermos mais persistentes e com certa ousadia. Afinal, ao nascer uma Tese também nasce uma Pesquisadora, com mais interesse e curiosidade, com mais respeito ao passado e de postura mais progressista. Com mais cuidado e critérios, seja em afirmar menos 183

e ponderar mais; seja em considerar inúmeras perspectivas e variáveis, com liberdade e respeito às diferentes posturas e aberta às mudanças. Porque assim é a ciência, a arte e assim é a vida.

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