Mato Grosso Do Sul: Riqueza Histórica, Tradição E Memória Antecipando A
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MATO GROSSO DO SUL: RIQUEZA HISTÓRICA, TRADIÇÃO E MEMÓRIA ANTECIPANDO A DIVISÃO POLÍTICA DO ESTADO MAto Grosso DO SUL: HistoriCAL RICHNESS, TRADITION AND MEMOIRS ANTICIPATING THE POLITICAL DIVISION OF THE STATE Paulo Bungart Neto1 RESUMO: O artigo discute um aparente paradoxo: o fato de a autonomia política do Mato Grosso do Sul ser recente (outubro de 1977), a despeito de seu longo período de maturação histórica e cultural, na qual a ideia de divisão do estado assumiu grande relevância. Com o apoio bibliográfico de historiadores e memorialistas sul-mato-grossenses, o artigo demons- tra de que maneira episódios como a Guerra do Paraguai ou o apoio do Sul do Mato Grosso à Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1932, são indícios de manifestações cul- turais de um povo com identidade própria e que, portanto, exigia reconhecimento oficial, ocorrido apenas no final da década de 1970. Palavras-chave: História do Mato Grosso do Sul; literatura sul-mato-grossense; memórias. ABSTRACT: The article discusses an apparent paradox: the fact that the political autonomy of Mato Grosso do Sul state is very recent (October 1977), despite of its long period of cultural and historical maturation, in which the idea of the division of Mato Grosso state became stronger. With the support of a bibliography in the areas of History and Memories, the text shows the terms in which episodes like “Guerra do Paraguai” (“Paraguayan War”) or the support of the South of Mato Grosso to the “Constitutionalist Revolution” in São Paulo, in 1932, are indications of cultural manifestations in a people with their own identity and, thus, who claimed official recognition, occurred only in the late 1970’s. Keywords: Mato Grosso do Sul History; sul-mato-grossense literature; memories. “Este, que aqui aportou, / Foi por não ser existindo. / Sem existir nos bastou. / Por não ter vindo foi vindo / E nos creou”. (Fernando Pessoa, “Ulysses”, Mensagem, 1981, p. 23) “Saibamos morrer; os sobreviventes dirão o que fizemos”. (frase atribuída a José Francisco Lopes, o “Guia Lopes da Laguna”, in Senhorinha Barbosa Lopes, Samuel Xavier Medeiros, 2007, p. 127) Assim como no poema de Mensagem, de Fernando Pessoa, que utilizo como epígrafe, a res- peito do mito de ter sido Ulisses o fundador de Portugal, também Mato Grosso do Sul “foi por não ser existindo”, ou melhor, já “existia” antes de “ser”. Esta condição peculiar e praticamente única em solo brasileiro, diz respeito ao fato, aparentemente simples, mas que permite as mais variadas ressonâncias e desdobramentos, de o estado ter sido criado oficialmente em 11 de ou- tubro de 1977, através da Lei Complementar nº 31, após longo período de maturação cultural. 1 Doutor em Literatura Comparada pela UFRGS. Professor Adjunto III da UFGD, atualmente pesquisa obras de memorialistas do Mato Grosso do Sul. Raído, Dourados, MS, v. 6, n. 12, p 63 - 76, jul./dez. 2012 Universidade Federal da Grande Dourados De fato, poucas regiões brasileiras possuem uma riqueza histórica tão grande, produto, é verdade, de muito sofrimento e sangue derramado na conquista do território fronteiriço, e, justamente por isso, repleto de relatos de bravura e abnegação. Assim, tentarei mostrar de que maneira o Mato Grosso do Sul, de autonomia política recente, “foi por não ser existindo” há muitos séculos, sendo um processo de construção identitária de profundas e diversificadas raízes culturais, a compor uma mescla que teve em seu bojo inúmeras tribos nativas, que se somaram aos conquistadores ibéricos, primeiramente castelhanos e em seguida portugueses, em graves e exasperados conflitos, conforme se lê em Histórias da terra matogrossense (1983), do jornalista e historiador J. Barbosa Rodrigues, e em Taboco: Balaio de recordações (1984), de Renato Alves Ribeiro. Mais tarde, como se verá adiante, gaúchos, mineiros, nordestinos e paulistas migraram em bom número para a até então desconhecida terra. Em “Aleixo Garcia: o descobridor de Mato Grosso”, segundo capítulo da obra de Bar- bosa Rodrigues, lê-se que “espíritos aventureiros” já percorriam a região antes mesmo da co- lonização efetiva do território brasileiro, ocorrida somente a partir de 1530. Diz Rodrigues: Nem bem repercutira na Europa a notícia da descoberta da Terra de Santa Cruz e já se iniciavam as primeiras tentativas de devassamento da nova colônia, encabeçadas por espíritos aventureiros, cujos nomes principais a história conservou. [...] Assim é que, no vigésimo quarto ano da descoberta do Brasil, uma entrada já se registrava pelos então sertões do sul de Mato Grosso, chefiada pelo aventureiro português Aleixo Garcia, sobrevivente do naufrágio de uma das naus da expedição chefiada por Juan Diaz de Solís em 1515, que assim se sagrou como o primeiro a transpor uma das mais importantes regiões do interior brasileiro e merece ser tido como o descobridor de Mato Grosso (RODRIGUES, 1983, p. 19)2. Aleixo Garcia, o Ulisses sul-mato-grossense, aquele que “foi vindo e nos criou” em 1524!, muito antes, por exemplo, da fundação de São Paulo pelo padre José de Anchieta (1554). Barbosa Rodrigues refere-se a crônicas antigas que afirmam ter Aleixo Garcia, co- mandando “meia dúzia de patrícios” e “grande número de índios guaranis”, transposto a bacia do rio Paraná, cruzado o planalto de Maracaju e, através do rio Miranda, chegado à foz do rio Paraguai e à “Sierra de la Plata”, movido pela cobiça do descobrimento de “fabulosos tesouros de prata” (1983, p. 19). Em bandeira saída de São Vicente, Aleixo Garcia é então o primeiro homem branco a pisar o solo do sul da província de Mato Grosso. Renato Alves Ribeiro, em Taboco3, citando um importante historiador, também se refere ao pioneirismo de Aleixo, porém, tendo partido de Santa Catarina e não do litoral de São Paulo: Conforme Vergílio Corrêa Filho afirma em “Pantanais Matogrossenses”, a primazia cronológica destas expedições nessa região cabe a Aleixo Garcia que, de Santa Catarina rumou para o oeste pelo caminho indígena, atravessou o rio Paraguai nas vizinhanças de Porto Esperança e alcançou as regiões serranas, de onde voltou carregado de despojos (RIBEIRO, 1984, p. 11). 2 De Barbosa Rodrigues, ver também Isto é Mato Grosso do Sul – Nasce um Estado (1978). 3 Taboco é o nome de uma das maiores fazendas de criação de gado de Mato Grosso no início do século XX. Localizada nos arredores de Aquidauana, foi fundada no final do século XIX pelo Coronel Jejé Alves Ribeiro, avô do engenheiro agrônomo e memorialista Renato Alves Ribeiro, que reconstitui, em Taboco – 150 anos: Balaio de recordações, a saga da família e dos empregados agregados à terra pantaneira. 64 Raído, Dourados, MS, v. 6, n. 12, jul./dez. 2012 Universidade Federal da Grande Dourados As palavras de Renato Alves Ribeiro, colhidas no estudo histórico de Vergílio Corrêa Filho, confirmam a indicação de Barbosa Rodrigues a respeito da penetração da bandeira de Aleixo nos sertões do sul de Mato Grosso, mais precisamente em Porto Esperança, hoje distrito de Corumbá. Em 1718, Paschoal Moreira Cabral Leme, à procura de ouro e se- guindo o roteiro traçado por Pires de Campos, funda Cuiabá, conforme se lê em História da literatura sul-mato-grossense, no qual José Couto Vieira Pontes aponta o roteiro previsto pela maioria das expedições, de onde se conclui que, naquela época, para se chegar a Cuiabá através do rio Paraguai, devia-se necessariamente passar por localidades hoje pertencentes ao Mato Grosso do Sul: A rota das bandeiras era a seguinte: partindo geralmente de Porto Feliz, desciam o Tietê e o Paraná, subiam o Pardo até as cabeceiras, e, atravessando o divisor de águas do Paraná com o Paraguai, na localidade de Camapuã, ganhavam o rio Paraguai, subindo até Cuiabá (PONTES, 1981, p. 22). Porto Esperança e Camapuã são, portanto, duas das primeiras localidades “descobertas” pelos exploradores na região equivalente ao atual território do Mato Grosso do Sul. A pri- meira cidade fundada, no entanto, é Corumbá, que pode se orgulhar do título de município mais antigo do estado, remetendo sua fundação ao longínquo ano de 1778. Vejamos o que escreve Vieira Pontes sobre esta informação histórica: No período governamental de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1771-1790) ocorre a fundação do Presídio de Nova Coimbra (1775) e três anos depois a do povoado de Albuquerque, futura Vila de Santa Cruz de Corumbá. A ata da fundação desta cidade foi lavrada no dia 21 de setembro de 1778 (...) (PONTES, 1981, p. 22). A partir da fundação de cidades como Cuiabá e Corumbá e do consequente apelo ao povoamento e colonização das novas terras, a região aos poucos recebe um grande número de imigrantes dispostos a ali se estabelecerem como fazendeiros e agricultores. Na obra Mato Grosso de outros tempos: pioneiros e heróis, Astúrio Monteiro de Lima esclarece que a região foi ocupada sobretudo por gaúchos (ver os capítulos “As porcentagens incompletas”, 1979, p. 46-50; “Um gaúcho sem querência”, p. 57-60; e “Não sei se brigam”, p. 153-1564), pau- listas (“Paulistas trazendo progresso”, p. 112-114) e mineiros (“Laquicho, o famoso petei- ro”, p. 89-109, e “Como vieram outros mineiros”, p. 110-111). A ocupação da região por imigrantes vindos de Minas Gerais, aliás, merece uma men- ção à parte, devido a sua intensidade e importância como pioneiros. No capítulo “Quem ergueu o primeiro rancho?” (1989, p. 15-20), o segundo da obra Camalotes e guavirais, Ulisses Serra demonstra que a cidade de Campo Grande foi fundada por dois mineiros, José Antônio Pereira e Manuel Vieira de Sousa, que, por volta de 1872, fraternalmente aceitaram dividir as terras recém descobertas tendo como limites fronteiriços os córregos Prosa e Segre- do. Antes da chegada dessas famílias a Campo Grande, em meados do século XIX a família de Antônio Francisco Lopes já havia feito a longa e penosa travessia entre as duas províncias, 4 Neste último se lê que “Remonta aos anos de 1892 a 1905, a vinda dos maiores afluxos migratórios de rio-grandenses-do-sul, procurando a região da fronteira sudoeste de Mato Grosso” (LIMA, 1979, p.