7º Encontro Associação Brasileira de Relações Internacionais Atores e Agendas: Interconexões, Desafios e Oportunidades

De 23 a 26 de julho de 2019, Belo Horizonte – MG

Área temática: Análise de Política Externa

TRAJETÓRIAS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS DOS MINISTROS DAS RELAÇÕES EXTERIORES NA NOVA REPÚBLICA (1985-2019): A RELAÇÃO ENTRE DIPLOMACIA E POLÍTICA

Solange Pastana de Góes Universidade Veiga de Almeida - UVA Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais PPGRI - UERJ

Resumo

O padrão de nomeação dos ministros das Relações Exteriores ainda não é suficientemente estudado. Aparentemente, as nomeações para o MRE não decorrem de arranjos político-partidários e são feiras apenas a partir das habilidades específicas ou da qualificação técnica dos escolhidos. O presente trabalho analisa a trajetória dos ministros das Relações Exteriores (1985-2019) a partir de três fatores escolaridade, filiação partidária e cargos ocupados. O objetivo é o de, a partir dos resultados, discutir o conceito de insulamento burocrático e identificar se há padrões de nomeação, de perfil e de envolvimento político dos ministros das Relações Exteriores. Parte-se do pressuposto de que as trajetórias sócio educacionais e políticas definem os instrumentos à disposição dos atores políticos, dando parâmetros do que podem ou devem fazer. Ademais, a nomeação ministerial é um dos principais recursos da Presidência da República para compor as demandas das coalizões. Nesse sentido, a identificação de quem são os membros dos grupos decisórios contribui para o desvendamento da mítica em torno da autonomia do MRE, autonomia essa que ganha impulso com a criação do Instituto Rio Branco em 1945. São dois os métodos utilizados: 1) Teoria do campo, em particular os escritos de Pierre Bourdieu e 2) prosopográfico para mapear o perfil dos ministros das Relações Exteriores para entender as relações estabelecidas entre os campos diplomático e político.

Palavras-chave: Insulamento burocrático; MRE; trajetória sócio-educacional e política; campo diplomático

2 INTRODUÇÃO

A história do Ministério das Relações Exteriores do Brasil1 remonta ao Brasil colônia, através do decreto de 11 de março de 1808, o qual instituiu a criação do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Guerra para atender os negócios da corte de Portugal, então instalada na ainda colônia Brasil em decorrência das invasões napoleônicas na Península Ibérica. Com a declaração de independência, o decreto de 13 de novembro de 1823 outorgou ao antigo Ministério de 1808 a autonomia compatível com suas novas funções: a de Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros do Império do Brasil. Após a proclamação da República, o Ministério passou a chamar-se Secretaria de Estado das Relações Exteriores, e a partir da Lei Nº 23, de 30 de outubro de 1891, uma nova alteração designou-o de Ministério das Relações Exteriores (MRE). Essa cronologia institucional do MRE, argumentam Cheibub (1985) e Castro (2009), que remonta a 1823, vincula o MRE à fundação da comunidade política brasileira, e ao novo status do Brasil no sistema internacional2. Porém, foi no início do período republicano que os primeiros óbices a esse novo regime se apresentaram cruamente através das disputas de fronteiras, tendo sido definitiva, nos primeiros anos do século XX, para uma nova orientação da política externa do país cujo eixo deslocou- se da Europa para as Américas, sob a liderança do Barão do Rio Branco, que imprime uma novo simbolismo profissional aos diplomatas brasileiros. Já, a partir da década de 1930, há um novo tipo de inserção dos diplomatas definido pelo saber especializado que começa a se desenhar desde as reformas propostas nos primeiros anos do Governo Vargas que tinham a pretensão de “modernizar” todo o aparato burocrático a partir da criação de “burocracias profissionais e meritocráticas” do Estado. Um dos símbolos desse processo foi a criação, em 1938, do Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP, que serviu principalmente para centralizar a organização do funcionamento do serviço público federal. O DASP passaria a ser o responsável pelos concursos públicos para seleção de entrada nas carreiras federais, incluindo a carreira diplomática. Em meados do século XX, no entanto, após sua participação em duas guerras mundiais, o Brasil cresce em visibilidade e prestígio internacional conquistando nova inserção no sistema internacional de Estados soberanos. No plano interno, o MRE intensifica sua associação a essa imagem internacional do país, à participação do Brasil nos dois principais foros internacionais, a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas, sem descuidar da memorabilia dos sucessos do Barão do Rio Branco, sobretudo no que tange à conclusão das negociações de demarcação das fronteiras nacionais,

1 Doravante denominado pela abreviação MRE ou Itamaraty, nome do palácio que sediou o MRE entre 1889 a 1970, no . 2 Anteriormente, por exemplo, o Ministério ocupava-se dos assuntos coloniais do Reino de Portugal. 3 festejadas como marco da unidade nacional. Institucionalmente, o Ministério que já havia passado por inúmeras reformas em sua organização interna (SILVA ET. AL, 2010) e reagiu à perda de controle da seleção dos diplomatas com a criação do Instituto Rio Branco (IRBr), em 1945. O Instituto instituiu a obrigatoriedade, sob sua exclusiva responsabilidade, da formação, treinamento e aperfeiçoamento técnico do corpo diplomático. A mítica em torno da autonomia ou “insulamento burocrático” do MRE ganha, assim, impulso e, desde a criação do IRBr, passa a ser não somente associado à unidade nacional e ao desenvolvimento econômico nacional, mas também ao ideal de modernidade e meritocracia. O corpo diplomático passa a ser percebido, interna e internacionalmente, como altamente especializado e representante legítimo dos interesses nacionais e o MRE, adquire especificidade e institucionalidade para reivindicar o status de uma carreira de Estado cuja formação e hierarquia3 somente seria equivalente à dos militares e, em alguma medida, a do judiciário. Segundo Edson Nunes (2010 [1997]), o “insulamento burocrático” promovido no Brasil acenava para um processo de rompimento com os setores que representavam o modelo de clientelismo que atrapalhavam a criação do moderno Estado meritocrático que as reformas varguistas propunham4. O insulamento burocrático seria uma forma de proteger “o núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias (NUNES, 2010, p. 54-55)”. Afastavam-se, assim, as agências do jogo político pelo qual interesses e demandas populares se apresentavam, resguardando estas organizações contra tradicionais demandas burocráticas ou redistributivas. Nessas condições, argumenta Nunes (2010): [...] a informação é fortemente valorizada, e a coalizão formada com atores externos selecionados é vital para garantir tanto os recursos adicionais para a realização das metas como para solidificar a proteção do núcleo técnico contra ruídos originados no mundo externo (NUNES, 2010, p.55)”.

3 De acordo com o Decreto Nº 6.559, de 8 de setembro de 2008, a promoção do diplomata obedece a seguinte ordem promoção: por merecimento, ministro de Primeira Classe, ministro de Segunda Classe, Conselheiro e Primeiro-Secretário. Por promoção a Segundo-Secretário, obedecida a antiguidade na classe e a ordem de classificação no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD). Para se chegar ao grau máximo é preciso que o candidato esteja há 20 anos no exercício da função, sendo dez exercidos no exterior e três em função de chefia na Secretaria de Estado ou no exterior. Para que seja promovido, o diplomata deverá permanecer no mínimo três anos em cada função. Segundo o presente Decreto, para efeitos de promoção por merecimento para as classes de ministro de Primeira Classe, ministro de Segunda Classe, Conselheiro e Primeiro-Secretário, o desempenho do diplomata na carreira e, em particular, durante sua permanência na classe, será considerado pela Comissão de Promoções do Ministério das Relações Exteriores. 4 Segundo Nunes, o clientelismo brasileiro perdura ao longo de toda história republicana e está baseado em uma série de redes personalistas estabelecidas entre políticos e burocracias e que envolvem toda a sociedade. “As elites políticas nacionais contam com uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões até a localidade...As instituições formais do Estado ficaram altamente impregnadas por esse processo de troca de favores... (2010, p.53).” 4 Desse modo: [...] ao contrário da retórica de seus patrocinadores, o insulamento burocrático não é de forma nenhuma um processo técnico e apolítico: agências e grupos competem entre si pela alocação de valores alternativos; coalizões políticas são firmadas com grupos e atores fora da arena administrativa, com o objetivo de garantir a exequibilidade dos projetos; partidos políticos são bajulados para proteger projetos no Congresso (NUNES, 2010, p. 56).

A profissionalização dos diplomatas não significa, portanto, o afastamento do campo do poder ou da atividade política. Em que pese o Ministério das Relações Exteriores (MRE) ser de fato uma burocracia especializada, com forte proeminência quando se trata de formulação e execução da polÍtica externa brasileira, a relação da diplomacia com a política é permanente. O “insulamento do Itamaraty”, fruto de um processo histórico de construção do campo, concede autonomia relativa do Ministério, já que as disputas extrapolam as fronteiras do campo diplomático e estão condicionadas aos capitais político, cultural e simbólico da elite da diplomacia e do campo político. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é discutir, a partir de evidências empíricas, as relações dos diplomatas com a política em geral e com o Estado, em particular, a partir do conceito de campo de poder. Serão utilizados dados sobre a atuação política dos ministros das Relações Exteriores na Nova República5 como forma de compreender o trânsito desses agentes entre a diplomacia e a política. À prosopografia de grupos da elite diplomática brasileiras serão acrescidas análises de trajetórias individuais dos ministros das Relações Exteriores. A escolha pelo período histórico da Nova República (1985-2019) deve-se à necessidade percebida de melhor esclarecer o padrão de nomeação dos ministros das Relações Exteriores no período da redemocratização, assim como de entender a relação do campo diplomático com a política após a redemocratização. Além disso, o período da redemocratização é apresentado por vários autores como o momento de “desencapsulamento” do Itamaraty e de horizontalização das decisões envolvendo a política externa brasileira. Portanto, vale investigar com dados empíricos sobre os ministros das Relações Exteriores para compreender como se configura e se há o “desinsulamento burocrático” do campo diplomático em relação à política stricto senso nesse período.

5 A proposta inicial para o 7º Encontro da ABRI abarcava o período pós- Constituição de 1988 e envolvia a análise prosopografia de ministros das Relações Exteriores e secretários -gerias do Itamaraty. Entretanto, com a pesquisa ainda em curso, mostrou-se necessário um ajuste no recorte do objeto e esse trabalho concentra-se, assim apenas na análise dos Ministros das Relações Exteriores e a partir da Nova República. 5 A TEORIA SOCIAL DO CAMPO

A teoria do campo tem como um de maiores seus expoentes na área da sociologia Pierre Bourdieu. O autor, em seus escritos, a partir do final da década de 1960, demostra a existências de diversos domínios da atividade humana que com a modernização das sociedades levam a criação de diferentes espaços sociais com funções e legitimidades próprias. Ou seja, a estruturação do comportamento humano é fruto de relações sociais estabelecidas dentro de distintos campos sociais, que na realidade moderna ocidental, são moldados através de processos de diferenciação. Para compreender os diversos campos sociais é necessário investigar com se dão as relações de poder dentro e entre os campos (HILGERS, MANGEZ, 2015). Para Bourdieu, o campo social baseia-se na ideia de que a sociedade não é uma pura soma de indivíduos, mas o resultado de suas relações recíprocas. Segundo Bourdieu, o campo também pressupõe confronto, tomada de posição, luta, tensão e poder, entre os agentes, indivíduos ou instituições, que o integram e buscam manter ou alcançar determinadas posições (BOURDIEU, 2008, p. 22-23). Os campos sociais possuem autonomia relativa, pois estão inseridos em um espaço social maior, geral, ou seja, é formado a partir das relações estabelecidas dentro do campo e com os outros campos que compõem esse espaço social maior. Desse modo, pensar a partir do conceito de campo é pensar de forma relacional. É conceber o objeto ou fenômeno em constante relação e movimento. De acordo com Bourdieu os diversos campos na sociedade estão ligados por cadeias de relações assimétricas, hierarquicamente situadas e historicamente construídas. Essas posições são obtidas pela disputa de capitais específicos, valorizados de acordo com as características de cada campo. Os capitais são possuídos em maior ou menor grau pelos agentes que compõem os campos, diferenças essas responsáveis pelas posições hierárquicas que tais agentes. No interior dos campos existem lutas por controle e legitimação dos bens produzidos, assim como também são estabelecidas diferentes relações e assumidas variadas posturas pelos agentes que os compõem (BOURDIEU, 1983; 1989; 2008). O conceito “campo” carga consigo outros dois conceitos o de habitus e o de capital. A relação entre campo, habitus e capital é explicitada por Bourdieu e emerge em variados textos do autor. Como palco de lutas e relações de poder, além de microcosmo social dotado de leis específicas, cada campo está ligado a determinados capitais, tais como o capital simbólico e o capital cultural, que são movimentados, valorizados, legitimados dentro e, muitas vezes, fora do campo. Assim, de acordo com as características e finalidades de um determinado campo, um ou outro capital terá maior valor e importância (BOURDIEU, 1983; 1989; 2008). Pensar o conceito de capital é também fundamental se o objetivo for a compreensão mais alargada do que é um campo. Movimentados nos campos, os capitais definidos por Bourdieu parecem relacionar-se a uma forma ampliada de ver a realidade, a qual 6 concebe outras dimensões além do aspecto econômico, comumente atribuído ao que se convencionou denominar capital. Bourdieu concebe o simbolismo do capital inerente as trocas, o que chamou se “capital simbólico”. O capital simbólico está presente nas disputas dos agentes pela posição de dominação do campo em que se relacionam. Os instrumentos disponíveis para os agentes disputarem o campo, os capitais dos agentes, são de diversos tipos, como mencionado anteriormente: capital econômico, capital social, capital cultural, capital escolar, capital de força física, etc. O capital simbólico é a forma que qualquer um desses tipos de capital assume no momento em que é percebido pelos agentes do campo, a ponto de os agentes reconhecerem e atribuírem a isso o valor. Cada campo tem seu tipo específico de capital simbólico, determinado pelas características e lógicas de funcionamento do próprio campo. As alterações nas dinâmicas dos campos acontecem de acordo com a trajetória histórica de lutas e disputas internas. Para Bourdieu, “o capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital, físico, econômico, cultural, etc), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de percepção são tais que eles podem entende-las) percebê-las e reconhece-las, , atribuindo-lhe valor (BOURDIEU, 1008, P.107).” É também no campo que podem ser situados o habitus. Falando sobre a gênese do conceito, Bourdieu explica que o habitus manifesta a “recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo”, possibilitando que se rompesse “com o paradigma estruturalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciência” (BOURDIEU, 1989, p. 61). De acordo com o autor: [...] eu desejava pôr em evidência as capacidades "criadoras", activas, inventivas, do habitus e do agente (que a palavra hábito não diz), embora chamando a atenção para a ideia de que este poder gerador não é o de um espírito universal, de uma natureza ou de uma razão humana, [...] o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (BOURDIEU, 1989, p. 61).

É importante ressaltar que o campo não é um conceito a priori, este conceito apenas existe se comprovado na prática de pesquisa. É um ponto de partida teórico de apreensão do mundo social a ser feito empiricamente. Por isso não existem regras pré-estabelecidas de estudos dos campos, já que cada campo apresenta sua lógica de funcionamento mais ou menos autônoma em relação aos outros. Ao longo de sua carreira, Bourdieu exemplificou em suas obras análises de diversos campos a partir tanto de suas relações internas quanto externas, por exemplo, as análises do campo artístico, campo religioso, campo acadêmico, campo econômico, campo político, etc (BOURDIEU, 1983; 1989; 2008). Nesse sentido, o presente trabalho parte de dados empíricos da existência de um campo diplomático (KORBO, 2016; TARGA, 2017), cujos agentes estão em constante disputas e são essas lutas que definem os valores compartilhados pelos diplomatas e sua visão de mundo, assim como estabelecem sua autonomia relativa aos demais campos. Desse modo, o habitus do campo, por ser 7 percebido e reconhecido também pelos “de fora”, acaba se convertendo em capital simbólico para os agentes do campo dos diplomatas usarem em suas disputas com agentes de outros campos. Nessas disputas está em jogo o privilégio exclusivo que pertence aos dominadores do campo, ou seja, o domínio do monopólio da violência simbólica do campo. O trabalho pretende investigar a relação do campo da diplomacia, formada por agentes em disputa, com a política. Nessa relação está em jogo a disputa entres os dois campos pela manutenção ou transformação de suas estruturas de funcionamento, assim como o privilégio exclusivo dos que pertencem ao campo diplomático (HILGERS, MANGEZ, 2015). Entende-se que as fronteiras entre esses dois campos são completamente fluídas, pois são formadas justamente pelas relações intensas dos agentes do campo com agentes de outros espaços sociais, as quais nos interessa aqui apenas as relações com os do campo político no período definido do recorte temporal.

A PROSOPOGRAFIA COMO MÉTODO DE ANÁLISE

Apesar de existirem diferentes definições do que seja a prosopografia , pode-se dizer que essa é uma técnica ou método específico para se fazer biografias coletivas que parte do estudo das características individuais de um grupo de pessoas que integram um ator coletivo, com o objetivo de desvendar o perfil do conjunto e seus impactos políticos e sociais em um determinado período histórico (FERRARI, 2010). Trabalhos sistemáticos sobre lista de pessoas remonta ao fim do século XIX. A técnica que era utilizada, em particular, nos estudos de história antiga e medieval, tornou-se aos poucos uma nova abordagem no estudo da história política e social. Um quadro geral das elites políticas era traçado utilizado dados biográficos reveladores dos interesses comuns e relações entre os membros do grupo político estudado. Já, a partir da segunda metade do século XX, os estudos de história política e social passaram a se preocupar com a composição de grupos políticos tais como: parlamentares, grupos administrativos e elites locais, antes e depois de acontecimentos históricos, trazendo elementos interpretativos para a análise da prosopografia, especialmente sobre mudanças sociais, culturais, ideológicas em períodos de transição política (MONTEIRO, 2014). A prosopografia, originalmente utilizada pela história como uma técnica de pesquisa, aproximou-se, nos anos 1970, das pesquisas sociológica, principalmente dos estudos de Pierre Bourdieu. Segundo Lorena Monteiro, Bourdieu e seu grupo utilizaram o método prosopográfico para verificar empiricamente as problemáticas relacionadas à produção e à reprodução dos grupos dirigentes nas distintas esferas sociais em dado contexto histórico, afastando-se de análises marxistas e estruturalistas. Ou seja, utilizavam dados biográficos do indivíduo que concentravam todas as 8 características de um grupo e possibilitavam identificar trajetos comuns ou hábitos comuns daqueles situados no mesmo grupo social (MONTEIRO, 2014). Logo, em termos de análise sociológica, a descrição das categorias sociais do grupo em questão, revela a estrutura de dominação da sociedade a qual estão inseridos ou as mudanças históricas ocorridas na seleção e reprodução dos grupos dirigentes com o processo de autonomização e institucionalização de certas esferas sociais. (MONTEIRO, 2014, p.15) Lawrence Stone (2011) diz que a prosopografia contemporânea, independente da área que a utiliza, foi fruto da busca de intelectuais pelo entendimento do funcionamento das instituições a partir, não da compreensão da maquinaria burocrática, mas do exame dos indivíduos envolvidos e das experiências a que eles estavam sujeitos. A biografia coletiva ajuda a dar sentido à ação política ao identificar a realidade social e descrever a estrutura social e os movimentos no seu interior. A prosopografia é a investigação das características comuns de um grupo de atores na história por meio de um estudo coletivo de suas vidas. O método empregado constitui-se em estabelecer um universo a ser estudado e então investigar um conjunto de questões uniformes- a respeito de nascimento, morte, casamento, família, origens sociais e posição econômica herdada, lugar de residência, educação, religião, experiência em cargos e assim por diante. Os vários tipos de informações sobre os indivíduos no universo são então justapostos, combinados e examinados em busca de variáveis significativas. Elas são testadas com o objetivo de encontrar tanto correlações internas quanto relações com outras formas de comportamento ou ação (STONE, 2011, p. 115). Nesse sentido, a prosopografia serve como ferramenta para definir, primeiramente, as origens das ações políticas, ou seja, o desvelamento dos interesses mais profundos que residem na retórica política; a análise das afiliações sociais e econômicas dos agrupamentos políticos; a revelação do funcionamento de uma máquina política e a identificação daqueles que manipulam os controles. O método também contribui nos estudos acerca do papel na sociedade, e suas mudanças ao longo do tempo, de grupos de status específico, possuidores de títulos, membros de associações profissionais, ocupantes de cargos. Indaga acerca da mobilidade social associada às origens familiares e geográficas, a posição ocupada e o significado dessa posição em uma carreira (STONE, 2011). Nesse trabalho a prosopografia é utilizada para identificar os ministros das Relações Exteriores e mapear seus percursos político e privado para tentar entender como se dá a relação entre o campo diplomático e o político. Não se pretende fazer, no entanto, o levantamento dos dados de todos os diplomatas de carreira. Pesquisas minuciosos, nesse sentido, já foram desenvolvidas por Rogério Faria e Géssica Carmo e publicadas na Revista Mundorama6.

6 Os artigos podem ser encontrados no site https://www.mundorama.net/?s=Rogério+Faria . 9 A AUTONOMIA E A DIFERENCIAÇÃO DO CAMPO DIPLOMÁTICO

A diferenciação de um campo diplomático dos demais campos de poder se intensifica com a burocratização do Estado brasileiro, com a especialização e a profissionalização da divisão do trabalho, com a internacionalização da economia e das redes de conhecimento especializado. O insulamento baseado na existência de uma elite diplomática, com habitus e capitais específicos, obtidos historicamente, potencializa a ideia de autonomia do Itamaraty no que diz respeito à formulação da política externa, conformada sob a ótica da despolitização e continuidade nas ações externas. O método de “merecimento” de ascensão na hierarquia é feito pelo julgamento dos próprios agentes do campo por votações horizontais (pelos pares de mesma classe hierárquica) e verticais (pelos pares de hierarquias superiores). Os mais votados são os que ganham o direito de serem avaliados por comissões, formadas pelas chefias do ministério, que decidem quem serão os promovidos. A decisão final sobre os nomes dos promovidos sempre passa pela Presidência da República, que dá a palavra final sobre o assunto, ao menos institucionalmente. Há também um certo número de vagas para cada um dos três cargos mais altos da hierarquia do campo, que são preenchidas por antiguidade e todas elas são de interferência direta da Presidência da República (TARGA, 2017, pp.61-63). A nomeação para as chefias das diversas divisões internas do MRE também passa, ao menos institucionalmente, pela Presidência da República. Para a maioria delas existia, até 2019, regras institucionais de nomeação que garantem exclusividade para os cargos mais altos da hierarquia do campo, ou seja, existe a obrigatoriedade de a Presidência da República nomear diplomatas de carreira, da alta hierarquia, para as chefias internas do MRE. A exceção é o cargo mais alto da hierarquia do campo, o de Ministro de Estado das Relações Exteriores, que pode ser ocupado por não diplomatas de carreira, e de embaixadores7 não obrigatoriamente diplomatas de carreira. Apesar de a grande maioria dos ministros e todos os atuais embaixadores serem diplomatas formados no IRBr, chefias de embaixadas brasileiras pelo mundo já foram ocupadas por agentes de fora do campo dos diplomatas.

7 O título de Embaixador(a) é utilizado, tecnicamente, apenas para designar o ocupante da Chefia de Missão Diplomática Permanente (Embaixada) ou de Missão ou Delegação Permanente junto a organismo internacional (como a ONU, a OMC e a OEA, por exemplo). A regra geral, segundo o previsto no Art. 41 da Lei n. 11.440, de 29/12/06 – mais conhecida como Lei do Serviço Exterior Brasileiro–, é que os Embaixadores sejam escolhidos entre os Ministros de Primeira Classe. Isso explica porque a tradição no Itamaraty é tratar os Ministros de Primeira Classe pelo título de Embaixador(a). As duas exceções estão previstas no Art. 46 e no parágrafo único do Art. 41 da mesma Lei. De acordo com a primeira, Ministros de Segunda Classe podem ser comissionados Embaixadores em postos dos grupos C e D; Conselheiros, em postos D, desde que tenham concluído o Curso de Altos Estudos (CAE), além de contar com ao menos quinze anos de carreira, dos quais sete anos e meio no exterior. A segunda exceção é exatamente a dos embaixadores políticos. Diz o mencionado dispositivo legal: “Excepcionalmente, poderá ser designado para exercer a função de Chefe de Missão Diplomática Permanente brasileiro nato, não pertencente aos quadros do Ministério das Relações Exteriores, maior de 35 (trinta e cinco) anos, de reconhecido mérito e com relevantes serviços prestados ao País.” 10 Mesmo com a democratização, a diferenciação do campo da diplomacia em relação ao campo político permanece e pode ser verificada pelo maior número de diplomatas de carreira nomeados para o cargo de ministro em relação aos não pertencentes à carreira. Nas oito presidências empossadas na Nova República foram nomeados 10 ministros diplomatas de carreira e 8 ministros de fora da diplomacia, considerando as repetições de nomes indicados (Tabela 1). Destacam-se como políticos diplomatas que se tornaram ministros das Relações Exteriores, , Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Aloysio Nunes Ferreira Filho. Todos eles com amplo capital político (Tabela 3).

Tabela 1 Presidência ministro das Relações Exteriores Diplomata de carreira Olavo Setúbal (1985 — 1986) NÃO

-

1989) (1985 Abreu Sodré (1986 — 1990) NÃO José Sarney José Sarney Francisco Rezek (1990 — 1992) NÃO

- 1992) Mello (1990 Collor de Fernando Fernando Celso Lafer (1992) NÃO Fernando Henrique Cardoso (1992 – 1993) NÃO

- Luiz Felipe Lampreia (1993) SIM

1994) (1993 Itamar Franco (1993 — 1995) SIM

Luiz Felipe Lampreia (1995 — 2001) SIM

- Luiz Felipe Seixas Corrêa (2001) SIM

2002) Celso Lafer (2001 — 2003) NÃO (1995 Cardoso Henrique Fernando Fernando Celso Amorim (2003 — 2011) SIM

- Silva 2010) (2003 Lula da Lula da Luiz Inácio Luiz Inácio Antônio de Aguiar Patriota (2011 — 2013) SIM

- (2013 — 2014) SIM 2016) Dilma (2011 Rousseff (2015 — 2016) SIM José Serra (2016 – 2017) NÃO

- Marcos Bezerra Abbott Galvão (2017) SIM Aloysio Nunes Ferreira Filho(2017 – 2019) NÃO 2018) Temer Temer (2016 Michel

Ernesto Araújo (2019 – atual) SIM )

- Jair (2019 Bolsonaro

11 Fonte: Ministério das Relações Exteriores (2019).

Além disso, vale notar que a maioria dos ministros advindos da diplomacia ocupou cargos de alto escalão dentro da diplomacia antes de assumirem a chancelaria (Tabela 2). Isso significa que para chegarem ao cargo de Ministro os agentes precisam utilizar-se de seu capital cultural, social e simbólico para ascenderem ao topo da hierarquia precisam ter acumulado, ao longo da carreira, além de outros tipos de capitais para reconvertê-los em capital social e simbólico, de acordo com a lógica de funcionamento do campo. O capital político é um deles já que para chegar ao cargo mais alto da carreira é de fundamental importância a aproximação do agente com a presidência da república em algum momento de sua trajetória no campo dos diplomatas (TARGO, 20017).

TABELA 2 Ministro das Trajetória no MRE Relações Exteriores diplomadas de carreira Luiz Felipe Lampreia → Embaixador em Paramaribo (Suriname), Lisboa (Portugal), Genebra (OMC e (1993) e (1995 — outros organismos internacionais) 2001) → Secretário-geral do Itamaraty Celso Amorim (1993 — → Diretor-geral para Assuntos Culturais no Ministério das Relações Exteriores 1995) e (2003 — 2011) → Representante do Brasil no Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) → Negociador chefe do Brasil na Rodada Uruguai → Chefe da Missão Permanente do Brasil nas Nações Unidas, em Nova Iorque → Embaixador no Reino Unido → Secretário-geral do Itamaraty Luiz Felipe Seixas → Chefe de Missão no México, na Espanha, na Argentina, na Delegação do Brasil Corrêa (2001) em Genebra (ONU e OMC), na Alemanha, na Santa Sé e no Consulado Geral em Nova York → Secretário-geral do Itamaraty Antônio de Aguiar → Embaixador do Brasil em Washington Patriota (2011 — → Subsecretário-geral Político do Ministério das Relações Exteriores; 2013) → Chefe de Gabinete do Ministro das Relações Exteriores →Secretário de Planejamento Diplomático do Ministério das Relações Exteriores → Subchefe da Assessoria Diplomática do Presidente Itamar Franco → Secretário-geral do Itamaraty Luiz Alberto Figueiredo → Chefe de delegações brasileiras em diversas reuniões multilaterais (2013 — 2014) → Missão do Brasil junto às Nações Unidas → Embaixador em ; Washington; Ottawa → Missão do Brasil junto à UNESCO Mauro Vieira (2015 — →Delegação brasileira junto à Associação Latino-Americana de Integração 2016) (ALADI), em Montevidéu → Assessor na Secretaria Geral do Itamaraty → Conselheiro na embaixada do Brasil no México → Chefe de gabinete na Secretaria Geral de Política Exterior → Ministro-conselheiro na embaixada brasileira em Paris

12 → Chefe do gabinete do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim → Embaixador do Brasil em → Embaixador em Washington Marcos Bezerra Abbott → Assessor do secretário-geral; Galvão (2017) → Subchefe de Gabinete e porta-voz do ministro; → Adjunto da Assessoria Diplomática da Presidência da República; → Missão do Brasil junto à Organização dos Estados Americanos → Embaixador em Assunção, Paraguai → Embaixador em Londres, Reino Unido → Embaixador em Washington → Ministro-conselheiro e encarregado de negócios → Embaixador do Brasil no Japão → Representante permanente do Brasil junto à OMC e a outras organizações econômicas em Genebra → Secretário-geral do Itamaraty Ernesto Araújo (2019 – → Secretário, a Missão do Brasil junto à União Europeia em Bruxelas atual) → Responsável pelo setor econômico da Embaixada do Brasil na Alemanha → Comandou as Negociações Extra Regionais do Mercosul no Ministério das Relações Exteriores → Ministro-Conselheiro em Ottawa → Ministro-Conselheiro em Washington → Chefe de Missão nas Embaixadas do Brasil no Canadá e nos Estados Unidos; → Subchefe de gabinete do Itamaraty → Diretor do Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos Fonte: Ministério das Relações Exteriores (2019) e dados consultados na base de dados do CPDOC em 2019. Elaborado ela autora

AS PERMANÊNCIAS E OS REPOSICIONAMENTOS DO CAMPO DIPLOMÁTICO E A POLÍTICA

Considerando-se, entretanto, a posição de poder nos campos político e diplomático representada pelo ministro das Relações Exteriores, percebe-se que o capital simbolizado pela passagem por atividades políticas em sentido estrito permanece valorizado, como se vê nas trajetórias políticas dos ministros dos governos do período da redemocratização. Além de em alguns governos ter havido a preferência por indicação política de ministros, do total de 18 ministros que assumiram a chancelaria, diplomatas e não diplomatas de carreira, apenas 5 não ocuparam cargos políticos fora do MRE (tabela 3). Vale notar, entretanto, que o peso real do Ministério das Relações Exteriores nas relações de poder do campo político é variável e, muitas vezes, depende de conjunturas internacionais e internas específicas. Ademais, o MRE é um ministério cuja especialidade é a diplomacia. Essa, por sua vez é política na sua essência, e, por isso, não é de se espantar que ministros sejam escolhidos entre quadros com trajetórias políticas que permitam a acumulação de capital cultural, capital político, capital econômico e capital simbólico para o campo diplomático. Assim como, é natural que diplomatas de carreira assumam cargos em outros Ministérios, agências governamentais, autarquias e nos governos 13 subnacionais. No caso dos ministros, a ocupação de Secretarias de governo, chefias de gabinete e direção de órgãos públicos diversos é muito comum (Tabela 3). Tabela 3 ministro das Relações Exteriores Trajetória pública fora do Filiação Trajetória MRE partidária empresarial púbica/privada Olavo Setúbal (1985 — 1986) Prefeito de São Paulo ARENA, PP, Fundar da Deca (1975-1979) PMDB, PFL (indústria de louças sanitárias); Banco Itaú (acionistas, presidente do conselho, presidente executivo da holding Itaú AS) Abreu Sodré (1986 — 1990) Governador de São Paulo UDN, ARENA, Presidente da (1967- 1971); Deputado PDS, PFL Eletropaulo 1982 Estadual Francisco Rezek (1990 — 1992) Procurados da República, _ _ ministro do STF; Juiz da Corte Internacional de Justiça, Presidente do Tribunal Superior Eleitoral Celso Lafer (1992) e (2001 — ministro do _ Conselho 2003) Desenvolvimento, administrativo da Indústria e Comércio Klabin Papel e Celulose Fernando Henrique Cardoso ministro da Fazenda, MDB, PSDB _ (1992 – 1993) Senador, Presidente da República. Luiz Felipe Lampreia (1993) e Secretário de assuntos _ Conselho de (1995 — 2001) internacionais do Administração de Ministério da Ciência e várias empresas Tecnologia, ministro da (McLarty Associates, Defesa. Oxford Analytica, Partex Oil and Gas, Souza Cruz e Coca- Cola, e do banco português Caixa Geral de Depósitos) Celso Amorim (1993 — 1995) e Secretário de assuntos PMDB, PT Diretor-geral da (2003 — 2011) internacionais do Empresa Brasil de Ministério da Ciência e filmes (Embrafilme) Tecnologia, ministro da Defesa. Luiz Felipe Seixas Corrêa (2001) _ _ _ Antônio de Aguiar Patriota (2011 _ _ _ — 2013) Luiz Alberto Figueiredo (2013 — _ _ _ 2014) Mauro Vieira (2015 — 2016) _ _ _

14 José Serra (2016 – 2017) Senador-SP , Secretário de PSDB _ Planejamento SP, Deputado Estadual, ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, ministro da Saúde, Prefeito de SP, Governador de SP Marcos Bezerra Abbott Galvão Assessoria Diplomática da _ _ (2017) Presidência da República, assessor do ministro da Fazenda, chefe de gabinete do ministro do Meio Ambiente e do ministro da Fazenda , secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda Aloysio Nunes Ferreira Filho(2017 Deputado estadual SP, PCB, MDB, _ – 2019) Deputado Federal SP, PMDB, PSDB Senador SP, ministro da Justiça, Vice-governador SP, secretário de Transportes Metropolitanos do Etado de São Paulo, ministro chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República (FHC) Ernesto Araújo (2019 – atual) _ _ _

Fonte: Ministério das Relações Exteriores (2019) e dados consultados na base de dados do CPDOC em 2019. Elaborado ela autora

Assim como muitos ministros das Relações Exteriores são políticos de destaque, há vinculações dos membros das elites diplomáticas com atividades políticas, ocupando cargos e funções administrativas de diversos níveis hierárquicos, não diretamente relacionados à atividade diplomática. A circulação desses ministros produz capital simbólico específico, caracterizado pela construção de redes de relações políticas, pelo aprendizado das rotinas de outras burocracias de Estado e pelo desenvolvimento vocacionais em áreas essenciais para o exercício da função de chanceler, tais como propriedade intelectual, meio ambiente, comércio exterior, educação, saúde, entre outras. Há de se destacar, a proeminente liderança dos chanceleres e diplomadas de carreira, Luiz Felipe Lampreia, a frente da Chancelaria durante grande parte dos governos Fernando Henrique Cardoso e Celso Amorim ministro das Relações exteriores ao longo dos 8 anos da presidência de Luiz

15 Inácio Lula da Silva8. Celso Amorim foi responsável por diversos o responsável pelo aumento histórico no número de representações brasileiras no exterior e o fortalecimento do campo diplomático (FARIAS, CARBO, 2015). Celso Amorim sempre participou ativamente da política nacional, tendo sido filiado ao PMDB e atualmente ao PT (SENHORAS, 2013). Por outro lado, percebe-se o pouco capital político dos ministros com pouca atuação político- burocrática fora do Itamaraty. No governo Dilma, por exemplo, o Itamaraty apresentou sinais de grande desprestígio na sua relação com a Presidência da República, culminando em ambiente de rivalidades políticas que levou ao pedido de demissão do chanceler Antônio Patriota em 2013, revelando assimetrias nas disputas entre o campo da diplomacia e da política, permeada pela disputa entre agentes políticos e diplomáticos. Elói Martins Senhoras aponta para diversas situações passa pela diplomacia brasileira na gestão Patriota. Houve o caso da crise no Paraguai em 2012, com o impeachment do presidente Fernando Lugo e a interdições temporárias do país no Mercosul e na Unasul; o caso da visita da presidenta Dilma aos EUA sem uma agenda de relações bilaterais, mesmo o chanceler tendo experiência neste país; e o caso dos contenciosos na Bolívia referentes aos torcedores corintianos detidos e da ajuda pra a saída e carro oficial do senador boliviano, Roger Molina, então asilado na embaixada brasileira em La Paz (SENHORAS, 2013). Desse modo, as disputas entre os campos políticos e diplomáticos podem criar situações particulares para a diplomacia brasileira, considerada uma das mais especializadas no mundo, uma vez que existe um ambiente de rivalidade entre campos sociais. O campo diplomático, dependendo do capital político de seus agentes, em especial de sua elite, pode fortalecer ou enfraquecer o campo diplomático, mesmo sendo o habitus e o capital simbólico, pilares constitutivos e poderosos do Itamaraty.

CONCLUSÃO

Os ministros das Relações Exteriores nomeados ao longo da Nova República variam entre diplomatas de carreira e políticos experientes. Os dados prosopográficos e as trajetórias individuais analisadas demonstram relações estruturais entre a elite diplomática e a política, caracterizada pelo deslocamento e reposicionamento dos diplomatas em função de suas expertises e pela própria existência de um campo diplomático. Se a profissionalização e a expertise diplomática são marcas da separação da carreira diplomática da política em geral, são também as condições para a alocação dos

8 Curioso notar que ambos foram chanceleres também no governo Itamar Franco, momento político delicado para o Brasil, após o impeachment do presidente Collor de Mello.

16 diplomatas em atividades políticas e burocráticas, seja na assessoria técnica de mandatários políticos, em cargos em outros Ministérios, Secretarias, autarquias e unidades subnacionais, mesmo A permanência das relações entre diplomatas e a política demostra a importância dos capitais políticos na composição da elite diplomática e de perfis de diplomatas que conciliam capitais políticos e diplomático como recurso de poder, acumulados em suas trajetórias individuais baseadas em diferentes modalidades e intensidade de inserções no campo profissional da diplomacia e na atividade política. O capital político, nesse aspecto, parece muito importante para as lutas travadas no campo diplomático. Note-se, assim, duas categorias de ministros das Relações Exteriores ao longo da Nova República: diplomatas-políticos e políticos-diplomatas com diferentes graus de capital político e diplomático. Em geral, os Ministros diplomatas de carreira possuem maior capital político e diplomático, colocando-os em posição de destaque como nos casos dos ministros Luiz Felipe Lampreia e Celso Amorim. Já, os ministros eminentemente políticos tendem a possuir mais capital político do que diplomático. Entre os ministros eminentemente diplomatas, verifica-se pouco capital político como é o caso do ministro Patriota.

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