O CASO DE ADALGISA NERY Eurídice Figueiredo (UFF/Cnpq)
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A PRIMEIRA GERAÇÃO DE ESCRITORAS NASCIDAS NO SÉCULO XX: O CASO DE ADALGISA NERY Eurídice Figueiredo (UFF/CNPq) Introdução Para pensar a posição da mulher na literatura brasileira do século XX, proponho partir da geração de mulheres nascidas nas duas primeiras décadas tais como Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), Adalgisa Nery (1905-1980), Rachel de Queiroz (1910-2003), Patrícia Galvão (Pagu) (1910-1962), Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), Zélia Gattai (1916- 2008), Clarice Lispector (1920-1977) e Lygia Fagundes Telles (1923)1. Uma primeira observação se impõe: diferente das duas últimas décadas do século XIX, essa geração deu muito mais escritoras canônicas, dentre as quais quatro chegaram à ABL.2 Algumas morreram prematuramente, outras viveram muito (Lygia continua viva). Todas tiveram importância, todas provocaram um impacto na cultura e na sociedade brasileiras, ainda que algumas estejam esquecidas enquanto outras brilham cada vez mais. Sem subestimar as autoras do século XIX, essas escritoras ainda não contavam propriamente com uma tradição literária no feminino no Brasil e seriam decisivas na formação dessa tradição à qual as gerações subsequentes seriam devedoras. Assim, para criar suas protagonistas, elas tinham como modelo os romances escritos por homens, dentre eles o romance de formação, criado no fim do século XVIII por Goethe com seu Wilhelm Meister. Partindo dessa questão, Cristina Ferreira Pinto, no livro O Bildungsroman feminino, analisou quatro romances de formação de autoras dessa geração: Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira, As três Marias, de Rachel de Queiroz, Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector e Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles. Inspirada em estudos feitos por críticas norte-americanas e francesas, a autora considera que “enquanto o herói do ‘Bildungsroman’ passa por um processo durante o qual se educa, descobre uma vocação e uma filosofia de vida e as realiza, a protagonista feminina que tentasse o mesmo caminho tornava-se uma ameaça ao status quo, colocando-se em uma posição marginal” (PINTO, 1990:13). Como o destino que era reservado à mulher na sociedade se limitava ao casamento e à maternidade, a protagonista que tentasse sair da norma seria condenada ao fracasso, à marginalidade, à alienação, quiçá ao suicídio. No melhor dos casos, o romance acaba em aberto, com uma vaga possibilidade de que a protagonista possa encontrar seu caminho, como é o caso de A ciranda de pedra e Perto do coração selvagem. 1 Deixo de lado as poetas Henriqueta Lisboa (1901-1985) e Cecília Meireles (1901-1964). Embora o nascimento de Lygia extrapole o período fixado, deixo-a porque a diferença é muito pequena. 2 São elas: Rachel, Dinah, Lygia e Zélia. A ABL é sinal de consagração ainda que não seja sinônimo de qualidade. 1 Lúcia Miguel Pereira e Rachel de Queiroz vinham de famílias importantes, tendo iniciado a carreira jornalística e literária ainda muito jovens, após concluírem o curso normal (ensino médio). Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles fizeram curso universitário (Direito), lançando-se cedo na literatura. Elas, que são hoje sobejamente conhecidas, enfrentaram a situação de serem mulheres numa época em que havia pouco espaço para elas no mundo social, cultural e político, tendo conseguido grandes feitos. Diferentemente das quatro escritoras que foram analisadas no livro da Cristina Pinto, Adalgisa Nery vinha de uma classe média com situação econômica instável, era rebelde demais, e iniciou a vida pública pelas mãos de um homem famoso. Não possuía formação intelectual sólida nem, tampouco, formação emocional que lhe assegurasse equilíbrio para lidar com as situações em que se colocou. Ismael Nery contribuiu para a introdução de Adalgisa no mundo das letras, mas a relação conjugal foi opressiva. É justamente esse período de sua vida que Adalgisa Nery retrata em A imaginária, romance publicado originalmente em 1959 e que foi relançado em 2015. A edição da José Olympio, organizada por Ramon Nunes Mello, é bem cuidada, com prefácio de Ana Arruda Callado e posfácio de Affonso Romano de Sant’Anna, além de nota biográfica sobre a escritora. Essa nova edição é uma oportunidade para ela ganhar novos leitores, pois a recoloca em circulação. Biografia Adalgisa foi casada com o pintor Ismael Nery (1900-1934), morto de tuberculose, prematuramente, aos 33 anos de idade, cuja obra só começaria a ser reconhecida a partir de 1965, quando foi incluída na Bienal de S. Paulo. Ele era também dançarino, poeta e pensador católico. Como pintor, sofreu influência do cubismo e do surrealismo. Adalgisa posou para ele em muitos de seus quadros. Ao se casar com Ismael aos 16 anos (no romance ela diminui para 15 anos), Adalgisa era uma jovem inculta, pois não tinha concluído nem o ensino médio; a vida com o artista, a estada de dois anos na Europa, as viagens à Argentina, o convívio com poetas e artistas (Murilo Mendes, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Leonel França) certamente foram seus anos de formação. Pedro Nava, que foi amigo e médico de Ismael, narra sua morte no livro de memórias O círio perfeito, publicado originalmente em 1983. Como Nava escreve quase 50 anos depois do sucedido, numa época em que já existia tratamento adequado para a tuberculose, ele reconhece com certa tristeza que os remédios que lhe ministrava eram somente paliativos. Nava conservou do velório três lembranças: do desespero da mãe, da postura de Adalgisa e da conversão de Murilo Mendes3. A citação se refere à segunda lembrança, 3 A cena de conversão de Murilo Mendes (p. 272-273) é surreal e vale a leitura para os interessados na vida e obra do poeta mineiro. 2 Da atitude exemplar de Adalgisa cuja dor era mostrada apenas pelo silêncio, pela imobilidade, pelo decorum da atitude, pelo espanto e pela palidez que a cobria (...). Pela madrugada, dia nascendo, ela reapareceu. Tinha dado ordem no seu vestuário, na sua pessoa, nos cabelos que prendera para trás. Quando ela surgiu na barra do dia, o Egon4 ficou estupefacto. Impressionou-se para sempre com a qualidade opalina e translúcida de sua pele. Tinha mais aguçado seu perfil florentino como o dos seus quadros. Sua beleza mais que humana era realçada pelo porte imperial de sua cabeça e de tudo o mais na sua pessoa – assim parada como quando se movia. E parecia luminosa (NAVA, 2004:268-269). Após a morte do marido, arrumou emprego e foi cuidar de sua vida de maneira autônoma, o mais longe possível da sogra. Segundo Ana Arruda, foi pedida em casamento por Murilo Mendes, mas não aceitou. Adalgisa publicou seu primeiro livro de poesia em 1937, três anos após a morte de Ismael Nery, incentivada por Murilo Mendes. Casou-se em 1940 com Lourival Fontes, diretor do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) na ditadura de Getúlio Vargas. Viveu no México, onde se tornou amiga de pintores como Diego Rivera, Frida Khalo, Orozco e outros. Em 1953 foi abandonada por Lourival Fontes, o que a deixou amargurada. No entanto, refez sua vida, passou a assinar a coluna “Retrato sem retoque” na Última Hora, publicou livros, elegeu-se deputada por 3 mandatos, foi cassada em 1969 pela ditadura. Morreu em 1980 (CALLADO apud NERY, 2015:17). O romance A imaginária Trata-se de um romance autobiográfico no qual ela conta sua vida até os primeiros anos de viuvez. Narrado em primeira pessoa, bem escrito e bem estruturado, o romance é centrado na protagonista, Berenice, que, desde o início, se mostra um ser sensível e rebelde, que não aceita ordens e contrariedades. Como acontece com frequência nessa geração de mulheres, o romance é introspectivo e tenta dar conta do percurso da personagem, ou seja, de sua formação. Entretanto, a narradora enfatiza mais os conflitos familiares do que a sua formação intelectual, mais os dramas do que as viagens e os aspectos positivos do casamento. Inicialmente narra uma infância atribulada devido à doença e, em seguida, à morte da mãe, quando ela tinha 8 anos de idade. O casamento do pai e os desentendimentos com a madrasta a levam a um internato, do qual sairia logo porque não aceita as regras impostas pelas freiras. Na infância a protagonista já tem um sentido poético do mundo, que lhe permite uma comunhão com a natureza: ao absorver o perfume das árvores, espera se 4 Egon é o alter ego de Pedro Nava. No trecho cortado ele afirma que Adalgisa parecia tão abalada e, ao mesmo tempo, sem reação, que teve de lhe dar um comprimido de Gardenal a fim de acalmar seus nervos. No romance ela não menciona o remédio, mas afirma que foi descansar em seu quarto algumas horas porque o ambiente teatral criado pela sogra era insuportável. 3 transformar em árvore. Cria um mundo à parte, no qual inventa palavras. Imaginativa, sonhadora, ninguém lhe dá atenção, pior, acham seu comportamento inadequado. Hoje, tenho uma enorme piedade daquela menina que descobriu o eco, daquela menina que desejou ser árvore e esperou ansiosamente pelas raízes que prenderiam o seu corpo à terra morna das tardes de verão!... Coitada! Como esta menina era magnífica, era forte, era bela!... Como foi depois desfolhada e jogada aos ventos perdidos e aos violentos temporais! (NERY, 2015:59). Sente falta do carinho e da atenção do pai, sempre ocupado com seus negócios e suas amantes. Sofre ao assistir às discussões e brigas dos pais. A mãe é frágil e triste, sucessivas gestações a levariam à doença e à morte, que se segue a um parto no qual o bebê também morre. A protagonista, ainda menina, encontra-se sozinha com a mãe e os irmãos menores quando a mãe entra em trabalho de parto. Apavorada, ela chama a vizinha e o médico. “Eu estava tão só que resolvi me abraçar. Cruzei os braços sobre o meu corpo e sentia nas minhas mãos o tremor incontido das minhas carnes” (NERY, 2015:99).