UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CARLOS VINICIUS SILVA DOS SANTOS

“SOBRE DECADÊNCIA E REDENÇÃO: a representação cultural e política no Cinema de Hollywood das décadas de 1960 e 1970”

RIO DE JANEIRO 2018 CARLOS VINICIUS SILVA DOS SANTOS

“SOBRE DECADÊNCIA E REDENÇÃO: a representação cultural e política no Cinema de Hollywood das décadas de 1960 e 1970”

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História Comparada, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em História.

Orientador: Prof. Dr. José Costa D’Assunção Barros.

Rio de Janeiro 2018 RESUMO

SANTOS, Carlos Vinicius Silva dos. SOBRE DECADÊNCIA E REDENÇÃO: a representação cultural e política no Cinema de Hollywood das décadas de 1960 e 1970. Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

A presente tese realiza um estudo sobre a representação cinematográfica dos principais movimentos culturais e acontecimentos políticos que tiveram curso nos Estados Unidos, nas décadas de 1960 e 1970. O recorte temporal em questão singularizou-se pela efervescência das transformações observadas, em um contexto no qual variadas demandas sociais ganharam destaque no cotidiano da nação, configurando-se temáticas em disputa dentre os distintos agrupamentos que compunham a sociedade dos Estados Unidos, naqueles anos. Em consonância, o âmbito cultural ofereceu novas perspectivas de consideração da realidade social através de modos de vida que questionavam muitos dos princípios que tradicionalmente integraram o ethos nacional. Paralelamente, o cenário político ganhou importância central na vida da população do país, conforme os governos eram instados a atuar em prol de setores específicos daquela sociedade, além das consequências do engajamento militar na Guerra do Vietnã, da crise econômica que se estabelece ao longo da década de 1970 e dos escândalos políticos que levaram, de modo dramático, à renúncia de um Presidente. Assim, o corpus documental é composto por produções cinematográficas de grande circuito, realizadas pelos principais estúdios de Hollywood, durante o período em análise. A seleção das fontes obedeceu, portanto, a critérios que objetivaram destacar a construção de representações das inúmeras temáticas em debate naquela sociedade em alguns dos principais filmes realizados durante as décadas em apreço, nos Estados Unidos.

Palavras-chave: Cinema; Estados Unidos da América; Década de 1960; Década de 1970.

ABSTRACT

SANTOS, Carlos Vinicius Silva dos. SOBRE DECADÊNCIA E REDENÇÃO: a representação cultural e política no Cinema de Hollywood das décadas de 1960 e 1970. Thesis (Doctoral Degree in Comparative History) – Institute of History, Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

This work examines the cinematic representations of the main cultural movements and political developments that took place in the United States, during the sixties and the seventies. This period was singularized by the briskness of the sighted transformations, in a context in wich various social demands obtained prominence in the quotidian of the nation, configuring controversial issues between distincts groups in the society of the United States. In consonance, cultural range offered new perspectives of social reality by means of ways of life that challenged some of the principles that traditionaly had embodied the national ethos. In addition, the political landscape gained importance in the inhabitants lives in the way governments acted in accordance to specific groups of the society, besides the consequences of participation in the Vietnan War, of economic crises that deepens during the seventies and the political scandals that dramaticaly leaded to the renunciation of the President. Therefore, the research corpus is compounded by cinematic productions of Hollywood studios realized during the analized period. The process of selection of the movies intended to emphasize the building of representations of the various issues disputed in the society in some of foremost movies of the sixties and seventies, in the United States.

Key words: Cinema; United States; Sixties; Seventies. SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 06

1 O CINEMA DE HOLLYWOOD DO PÓS-GUERRA ÀS DÉCADAS DE 1960 E 1970...... 23 1.1 O ESTABELECIMENTO DA CRISE...... 23 1.2 O RENASCIMENTO DE HOLLYWOOD...... 33

2 TRANSFORMAÇÕES SOCIOCULTURAIS...... 41 2.1 A JUVENTUDE...... 41 2.1.1 “A Primeira Noite de Um Homem” (1967)...... 43 2.1.2 “Os Selvagens da Noite” (1979)...... 52 2.1.3 As Juventudes de Nichols e Hill...... 64 2.2 BRANCOS E NEGROS NO CINEMA...... 67 2.2.1 “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” (1967)...... 69 2.2.2 “Vivendo na Corda Bamba” (1978)...... 78 2.2.3 As Relações Raciais na Costa Oeste Abastada dos Anos 1960 e no Norte Assalariado dos Anos 1970...... 89 2.3 A CONTRACULTURA...... 91 2.3.1 “Sem Destino” (1969)...... 94 2.3.2 “Hair” (1979)...... 104 2.3.3 A Contracultura no Fim dos 1960 e Uma Década Depois...... 116

3 VICISSITUDES POLÍTICO-ECONÔMICAS...... 119 3.1 O CIDADÃO DIANTE DO ESTADO...... 119 3.1.1 “Dias de Fogo” (1969)...... 121 3.1.2 “Todos os Homens do Presidente” (1976)...... 132 3.1.3 O Cidadão, a Imprensa, o Estado...... 143 3.2 O ENGAJAMENTO POLÍTICO JUVENIL...... 145 3.2.1 “Zabriskie Point” (1970)...... 147 3.2.2 “Guerra nas Estrelas” (1977)...... 159 3.2.3 Os Limites da Ação Política...... 170 3.3 A CRIMINALIDADE URBANA...... 174 3.3.1 “Meu Nome É Coogan” (1968)...... 176 3.3.2 “Taxi Driver – Motorista de Táxi” (1976)...... 185 3.3.3 A Nova Iorque do Crime e do Desamparo Social...... 195

3.4 A AFLUÊNCIA E A CRISE ECONÔMICA...... 197 3.4.1 “Loucuras de Verão” (1973)...... 199 3.4.2 “Os Embalos de Sábado à Noite” (1977)...... 209 3.4.3 A Afluência Nostálgica e a Crise Presente...... 220

4 OS EUA ENQUANTO ATOR GLOBAL...... 223 4.1 A GUERRA FRIA...... 223 4.1.1 “Dr. Fantástico” (1964)...... 225 4.1.2 “Três Dias do Condor” (1975)...... 235 4.1.3 A Guerra Fria dos Anos 1960 e 1970...... 245 4.2 A GUERRA DO VIETNÃ...... 248 4.2.1 “Os Boinas Verdes” (1968)...... 250 4.2.2 “O Franco Atirador” (1978)...... 262 4.2.3 O Vietnã Antes e Depois da Derrota...... 273 4.3 FUTUROS DISTÓPICOS...... 275 4.3.1 “THX 1138” (1971)...... 277 4.3.2 “Blade Runner: O Caçador de Androides” (1982)...... 286 4.3.3 As Distopias Diante das Expectativas de Futuro...... 297

CONCLUSÃO...... 300

ANEXOS...... 307

REFERÊNCIAS...... 318

6

INTRODUÇÃO

As décadas de 1960 e 1970 demarcam um período no qual os Estados Unidos da América vivenciaram profundas e intensas transformações. Fortalecida pela prosperidade atingida no pós-Segunda Guerra Mundial, a nação se depara, nos anos em questão, com um turbilhão de acontecimentos que vieram a abalar muitos de seus fundamentos. Assim, o cotidiano modifica-se em meio às demandas sociais e aos acontecimentos políticos, constituindo-se uma época singular na história recente do país, com significativos desdobramentos ao longo das décadas seguintes, e consequências fazendo-se presentes na atualidade. No recorte em apreço, os anos 1960 tornaram-se icônicos pela atuação de movimentos que, cada qual à sua maneira, almejaram liberdade. Acontecimentos como a luta pelos direitos civis; o surgimento de novas organizações políticas dentre os jovens, que vieram a animar a politização dos campi universitários; o feminismo; o ambientalismo; a contracultura e, desta, o movimento hippie, com seu misticismo e uso de entorpecentes proporcionando “viagens” alucinógenas em busca de novas percepções da realidade; a Guerra do Vietnã e o antibelicismo; a Great Society do Presidente Lyndon Johnson e sua plataforma social; a prosperidade e posterior crise econômica, tudo isso constitui um amálgama de mudanças que subvertem as bases tradicionais da sociedade, desafiando os valores da família, do patriotismo, da religião e da comunidade. Divergindo dessa primeira conjuntura, os anos 1970 parecem caracterizar-se pelo retorno ao conservadorismo não apenas político, porém igualmente exposto em uma retórica social voltada ao restabelecimento da ordem. Antes mesmo do fim da década de 1960, a recessão econômica, o fracasso do programa social do Presidente Johnson, a escalada do conflito asiático, bem como a eleição de Richard Nixon, sublinharam o desvio em direção a um posicionamento político que se opunha ao liberalismo dos anos anteriores. A posterior derrota e retirada do Vietnã, o aprofundamento das dificuldades financeiras e os variados escândalos políticos que compuseram o caso Watergate fragilizaram o ethos americano. Desprestigiada externamente, a nação entrou em crise de identidade. O presente trabalho embasa-se no exame de fontes cinematográficas produzidas naquele país entre meados da década de1960 e o fim da década seguinte. Para além da identificação das forças sociais e políticas envolvidas no processo e de sua presença na produção fílmica selecionada, almeja-se considerar a importância representacional do cinema enquanto meio produtor de significados, veiculando as demandas das diversas vozes em 7

atuação naquela sociedade. Observar-se-á o cinema enquanto um produto cultural que, em contato com outros produtos e meios, dá vazão às tensões do momento, colaborando para a construção identitária dos atores sociais. A primeira metade da década de 1960 consiste no período de maior prosperidade vivenciado pelos Estados Unidos em sua história. Observada em perspectiva, a afluência torna-se ainda mais clara se comparada aos anos 1930 e aos iniciais da década de 1940, quando os efeitos da crise estabelecida em 1929 e a Segunda Guerra Mundial impuseram a escassez sobre a população americana. Se os anos do pós-guerra marcam já uma substancial retomada da prosperidade econômica, nos anos 1960 a abundância propicia uma atmosfera de otimismo na qual a nova geração pôde acreditar na possibilidade de realização de seus desejos e anseios. Segundo David Farber: “...muitos acreditavam que as velhas regras da escassez e os valores tradicionais da economia e da gratificação retardada não mais operavam.” 1 Assim, a onda de confiança que se estabelece permite à geração dos baby boomers2 buscar uma sociedade mais progressista. De acordo com James Patterson, instaura-se um contexto de grandes expectativas promovido, em ampla medida, pela afluência dos anos 1960:

Pessoalmente poupados da Depressão ou da Segunda Guerra Mundial, os boomers amadureceram em um mundo muito diferente das gerações anteriores, mais desprivilegiadas. [..] Muitos acreditaram que eles tinham o conhecimento e os recursos para criar uma sociedade mais avançada e progressista, como nenhuma antes na história da humanidade. [...] Sua certeza em “poder-fazer” estimulou grandes expectativas sobre a capacidade do governo em solucionar os problemas sociais. [...] O governo, muitos grupos argumentavam, deveria agir para garantir seus “direitos”.3

Todd Gitlin, por sua vez, afirma que as transformações operadas não podem ser explicadas através de um único fator, como o desenvolvimento econômico, porém como um produto da estrutura social e da conjuntura internacional do período. Para o autor:

[A ascensão dos jovens americanos] foi parcialmente um produto da estrutura social – deveria haver uma massa crítica de estudantes e excedente econômico suficiente para apoiá-los – mas ainda, o surgimento foi realizado pelos vívidos elementos de um contexto histórico único, sob as asas do Zeitgeist.4

1 FARBER, David. The Sixties: from memory to history. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1994. p.01. 2 Parcela da população nascida nos anos posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial e que, desta forma, foram poupados dos revezes econômicos das décadas anteriores, tendo crescido em meio à prosperidade das décadas de 1950 e 1960. Os jovens que impulsionariam parte significativa dos movimentos dos anos 1960 e 1970 eram partícipes deste grupo social. 3 PATTERSON, James. Grand Expectations – The United States 1945 – 1974. New York: Oxford University Press, 1996. pp. 451-452. 4 GITLIN, Todd. The Sixties - Years of Hope, Days of Rage. New York: Bantam Book, 1987. p.13. 8

Nesta pesquisa, considero que os inúmeros movimentos e acontecimentos que se concretizam no recorte em estudo fundamentam-se tendo como esteio o desenvolvimento econômico observado nos Estados Unidos do pós-guerra, bem como o consequente avanço no padrão de vida de parcelas da população. Entretanto, apesar da relevância do cenário econômico, elementos de ordem histórica, social, cultural e política igualmente corroboram o estabelecimento da atmosfera de transformações percebida, como atesta um breve exame dos principais movimentos. O movimento pelos direitos civis tem suas bases no contexto da Segunda Guerra5, quando a segregação nas forças armadas é questionada. Na década seguinte, o caso Brown VS. Board of Education (1954), referente à inconstitucionalidade da segregação nas escolas, e o boicote aos ônibus na cidade de Montgomery, Alabama (1955), contra a segregação racial do serviço público de transportes, impulsionam a constituição do clima de contestação que oportuniza a retórica da não violência do Reverendo Martin Luther King Jr. como meio de luta por uma sociedade mais justa. O início da década de 1960 traz o fortalecimento do movimento. Em fevereiro de 1960, quatro estudantes de uma escola negra da Carolina do Norte iniciam a tática dos sit-ins, que consistia na ocupação não violenta de lanchonetes e outros estabelecimentos comerciais que se negassem a servir negros. Nestes episódios, afro-americanos ocupavam o lugar de clientes, negando-se a sair até que seus pedidos fossem atendidos. Apesar de insultados e agredidos, mantinham a dignidade através de resoluta persistência. Durante os próximos meses, centenas de milhares de pessoas tomam parte nos sit-ins em todo o sul.6 Desta experiência surge o SNCC – Student Nonviolent Coordinating Committee (Coordenação do Comitê Estudantil pela Não violência) que, conjuntamente à SCLC – Southern Christian Leadership Conference (Conferência da Liderança Cristã do Sul), de Luther King Jr., propaga a noção da não violência como forma de protesto. Nos anos seguintes inúmeras organizações elaboram estratégias visando destacar a distinção racial existente nos EUA. Diante da forte oposição oferecida pela população branca e pelas forças políticas segregacionistas do sul, o governo federal passa a intervir, o que culmina na promulgação do Civil Rights Act (Lei dos Direitos Civis), de 1964, e do Voting Rights Act (Lei do Direito de Voto), de 1965. As leis, no entanto, não são suficientes para

5 Refiro-me à conjuntura de busca por direitos que caracteriza a luta da população negra americana nas décadas de 1950 e 1960, principalmente. Outras iniciativas de defesa desta parcela populacional são notadas ao longo da história dos Estados Unidos. 6 FARBER, David; BAILEY, Beth. The Columbia Guide to America in the 1960s. New York: Columbia University Press, 2001. p. 16. 9

combater a segregação. A luta pelos direitos civis se radicaliza com grupos abandonando a retórica da não violência, e alguns defendendo medidas revolucionárias como única forma de assegurar os direitos da população negra. O nacionalismo negro de Malcolm X e o Partido dos Panteras Negras pela Autodefesa figuram como os principais exemplos. Enquanto a população negra buscava a ampliação de seus direitos, jovens instituíam, nas universidades, novas perspectivas políticas. A New Left colocava-se como um movimento político de base estudantil que buscava a democracia participativa, além de justiça social, através de novos padrões econômicos. Distanciando-se de ambos os tradicionais partidos políticos da nação, a New Left opunha-se à velha esquerda pela rejeição à ideologia comunista soviética. Sua principal organização, a SDS - Students for a Democratic Society (Estudantes por uma Sociedade Democrática), surge em 1960, na Universidade de Michigan. Apesar de ser numericamente discreta nos primeiros anos de existência, a SDS atingiria algumas dezenas de milhares de filiados ao longo da década, contando com diretórios nas principais universidades americanas. Paralelamente, na Universidade de Berkeley, Califórnia, estudantes expressam suas próprias demandas políticas. Tradicionalmente ligados aos movimentos de contestação, parte dos estudantes levantam-se quando a direção da universidade decide, em outubro de 1964, proibir a atuação política no campus. Defendendo a liberdade de expressão, os estudantes instituem o que foi denominado Free Speech Movement (Movimento do Livre Discurso) em uma ação que, ao longo das semanas seguintes, passa a criticar o que eles chamaram “sistema de desumanização da educação”. Inspirados no movimento pelos direitos civis, os jovens universitários pretendiam estabelecer uma sociedade mais justa e harmônica. Conforme a Guerra do Vietnã transformava-se em um conflito de grandes proporções, com a escalada da participação direta dos Estados Unidos, em meados da década, a fala dos jovens da nova esquerda passou a fazer sentido para parte significativa dos estudantes universitários. Dessa maneira, esses movimentos contestatórios foram convertidos em veículo da insatisfação com a prática política tradicional. A participação americana na questão do Vietnã inicia-se ainda na administração Truman com o suprimento de equipamentos militares aos franceses, antigos colonizadores, na tentativa de recuperar a colônia perdida durante a Segunda Guerra. Temia-se que o estabelecimento de uma nação comunista no sudeste asiático levasse toda a região à égide 10

soviética ou chinesa7. Ao longo das próximas administrações americanas, a instabilidade política do Vietnã, em guerra civil, mantém-se como um tópico sensível. Caberia ao Presidente Johnson dar início à definitiva entrada do país no conflito. Ao final de seu governo, em 1968, mais de 500.000 americanos encontravam-se em serviço no Vietnã. O aumento do número de baixas e feridos, assim como a cobertura midiática do conflito, fez com que cada vez mais americanos se opusessem à permanência dos Estados Unidos naquele país. Apesar de a maioria da população se opor ao movimento antibelicista8, apoiando a participação americana até sua retirada, a oposição ao conflito gerou a polarização da sociedade em torno do tema, polarização esta que, ademais, se fazia sentir em outros temas. Internamente, Johnson intentou a realização de um vasto plano de inclusão social. A agenda da Great Society (Grande Sociedade) era composta por programas voltados à saúde, à educação, aos problemas urbanos, à habitação, ao meio ambiente, à regulação da prática empresarial, visando à integração social de todos os cidadãos. Sua principal plataforma foi denominada War on Poverty (Guerra à Pobreza), e buscava erradicar tanto a discriminação racial quanto a pobreza. Considerando que o governo federal deveria assumir uma postura ativa sobre estas matérias, Johnson pretendia oferecer arcabouço educacional e profissional às classes baixas, de forma que pudessem atingir um nível mínimo de segurança financeira, concretizando um aumento significativo do padrão de vida de toda a população americana. Dentro da War on Poverty, programas voltados ao desenvolvimento da educação pré- escolar, elementar e secundária foram firmados. Além desses, no campo habitacional, efetivou-se programa que permitia grande participação das pessoas de bairros degradados na melhoria de suas próprias vizinhanças. O salário mínimo foi elevado, enquanto novas oportunidades de treinamento profissional foram oferecidas. Programas médicos para os pobres e idosos foram, igualmente, implementados, assim como programas alimentares e de distribuição de casas populares. Pela amplitude das mudanças propostas, a Great Society sofreu forte oposição. Enquanto o empresariado debatia os entraves colocados pela nova legislação ambiental ao

7 A chamada “Teoria do efeito Dominó” foi uma doutrina da política externa dos Estados Unidos, atribuída a John Foster Dulles. Segundo a teoria, que foi enunciada, em 1954, pelo Presidente Dwight Eisenhower, caso uma nação estabelecesse um regime comunista, as nações vizinhas não tardariam a seguir o exemplo. Temendo a hipótese, os Estados Unidos voltaram sua atenção ao sudeste asiático devido à formação do regime comunista chinês. 8 Segundo Farber e Bailey, no início de 1968 pesquisas mostravam que 56 por cento dos americanos acreditavam que os EUA deveriam manter ou aumentar seu envolvimento no Vietnã, com apenas 28 por cento defendendo a retirada do país da guerra. FARBER, David; BAILEY, Beth. The Columbia Guide to America in the 1960s. New York: Columbia University Press, 2001. pp 41-42. 11

processo produtivo, os governos locais questionavam a intervenção federal. Para as classes médias, os programas representavam um gasto inadequado de dinheiro público, enquanto algumas minorias afirmavam que as ações não atingiam o objetivo de melhorar sua realidade social e econômica. O plano de uma nação social e economicamente harmônica acabou por se revelar politicamente ineficiente junto ao eleitorado. Aliado à ruidosa oposição à Guerra do Vietnã, o programa de Johnson termina por significar a ruína de sua carreira política. Os anos 1960 foram um período onde diversos interesses entraram em choque, um momento de questionamentos e desobediência civil, quando as políticas do Estado não atendiam as exigências básicas de parcelas representativas da sociedade. A diversificação cultural percebida é, em parte, resultado da afirmação de grupos em busca de liberdade e espaço de fala. Marcada pela afluência, a década propicia o avanço do consumo da classe média branca, sobretudo. Esta cultura do consumo torna-se prejudicial aos valores e ao espírito original do povo americano. Assim, enquanto alguns usufruem do conforto propiciado pelo maior acesso aos bens de consumo, outros se tornam críticos ao materialismo resultante, buscando modos de vida voltados à busca de engrandecimento espiritual9. A contracultura10, e sua faceta hippie, mais lembrada, representou a escolha daqueles que decidiram abandonar os prazeres e confortos do consumo para assumir uma existência voltada a princípios filosóficos e reflexivos referentes ao indivíduo e a relação do homem com o mundo, a vida e as demais pessoas. A vida em comunidade, as experimentações alucinógenas e sexuais, e a abnegação tornaram-se características desta maneira de viver. Entretanto, para além daqueles que a experimentavam mais intensamente, a contracultura seria assumida como estilo de vestimenta e de comportamento, sendo transformada em produto e consumida por amplas camadas da população, sobretudo os jovens. Este fenômeno de ressignificação através da indústria do consumo ocorreria similarmente com a cultura negra. No contexto de radicalização da luta pelos direitos civis, a revalorização das raízes culturais negras assumiu grande importância. O Black Power torna-se modelo de afirmação

9 A crítica ao consumismo não se inicia nos anos 1960, com os hippies. O movimento da Geração Beat, nos anos 1950, por exemplo, figura como um importante precursor da contracultura. 10 A contracultura costuma ser mais frequentemente caracterizada que conceitualizada. Para uma abordagem da contracultura nos Estados Unidos, ver GAIR, Christopher. The American Counterculture. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2007. Para um exame da contracultura realizada no momento do recorte considerado, o fim dos anos 1960, conferir ROSZAK, Theodore. The Making of a Counter Culture – Reflections on the Technocratic Society and Its Youthful Opposition. New York: Anchor Books, 1969. Já Douglas Brode, em uma interessante perspectiva de análise, argumenta que as produções Disney colaboraram para a formação do jovem contracultural do final dos anos 1960. Cf. BRODE, Douglas. From Walt to Woodstock – How Disney Created the Counterculture. Austin: University os Texas Press, 2004. 12

do orgulho e da força da população historicamente oprimida através do abandono de parâmetros de beleza ligados ao fenótipo branco. A adoção de roupas e adornos etnicamente representativos compõe, ainda, essa mudança de comportamento cultural. O mercado, entretanto, perceberia o potencial comercial da estética Black, despindo-a de sua profundidade política. Já no fim da década, a eleição de Richard Nixon nas eleições de 1968 significou a reprovação popular do liberalismo de Kennedy e Johnson11. A Guerra do Vietnã, as polêmicas envolvendo as legislações de direitos civis, as inúmeras revoltas ocorridas em bairros negros, dentre outros acontecimentos, fundamentam a sensação de insegurança que permitiu à retórica da “lei e ordem” de Nixon angariar votos. Dois eram os objetivos do novo presidente: internamente, reduzir a polarização em torno das reformas sociais e, externamente, diminuir a participação direta dos EUA no Vietnã. Contrariando as expectativas, Nixon desenvolve as políticas sociais iniciadas por seu antecessor. Tradicional opositor do regime soviético, ele surpreenderia ao instituir a política de atenuação das animosidades entre os dois principais atores internacionais através da Détente. A aproximação diplomática com a China e a URSS abre novas possibilidades para a presença americana na Ásia. Sendo bem-sucedido em sua atuação política, Nixon consegue a reeleição em 1972, com ampla maioria de votos. Entretanto, o aprofundamento da recessão econômica, a derrota no Vietnã e, principalmente, a avalanche de denúncias e acusações relativas ao caso Watergate levantaram sérias dúvidas quanto aos pressupostos éticos do presidente, terminando por instituir uma crise de legitimidade que abala a confiança do cidadão no governo12. A renúncia de Nixon, em 1974, sinaliza o período de enfraquecimento moral atravessado pelo país em meados da década de 1970. No restante da década, a crise econômica caracteriza os governos de Gerald Ford e Jimmy Carter, que se mostram incapazes de recuperar tanto a economia quanto a autoestima

11 A consideração de um caráter predominantemente liberal nos governos de Kennedy e Johnson merece cuidadosa relativização. No âmbito da política interna, algumas ações implementadas podem ser avaliadas como liberais, por sua faceta social. Ainda assim, Kennedy foi notadamente mais reticente que Johnson ao atender as demandas dos movimentos negros, singularmente atuantes durante seu curto período na Casa Branca. Quanto ao âmbito externo, ambos os governos desempenharam papéis repressivos que incluíram o apoio a regimes ditatoriais, a tentativa de invasão a Cuba no episódio da Baía dos Porcos, e a escalada, com Johnson, da participação direta dos EUA no Vietnã. O governo de Johnson tornou-se o de maior ambiguidade, abarcando o projeto da Great Society, internamente, enquanto realizou longas operações bélicas no Vietnã, com inestimável custo de vidas. 12 Se, em 1958, apenas 28 por cento dos americanos não confiavam em seu governo, no final de 1973, e, portanto, após a retirada do Vietnã e em meio às investigações do caso Watergate, esse número atinge os 57 por cento. Cf. FARBER; BAILEY, 2001. p.67. 13

do país. Os movimentos sociais e a demanda por direitos que definiu a década anterior persistem nos anos 1970, especialmente nas organizações feministas, gays e de outras minorias étnicas além dos negros, como os descendentes de mexicanos e povos indígenas. Destes, o movimento feminista alcançou maior representatividade, assegurando vitórias em direitos para as mulheres. Em sua maioria, as ativistas possuíam ampla experiência conquistada nos movimentos por direitos civis, antibelicistas e da nova esquerda da década de 1960, dos quais fizeram parte. Sua atuação, entretanto, tornou-se o principal mote para o desenvolvimento de grupos conservadores de cunho religioso que acusavam a contracultura e os movimentos feministas e gays, de atentarem contra os valores tradicionais da família, da cristandade, da comunidade e da nação. Diante da rigorosa oposição de parcelas da sociedade e do retorno ao conservadorismo político, muitas das conquistas sociais obtidas ao longo destas duas turbulentas décadas seriam perdidas durante os governos republicanos dos anos 1980. Como demonstrado pelo breve exame dos principais movimentos e acontecimentos que compõem o horizonte da pesquisa, as décadas em apreço não se colocam em incontestável oposição. Apesar de o recorte proposto constituir-se em duas décadas subsequentes, não se afirma, na pesquisa, qualquer espécie de ruptura cultural ou política na passagem de uma década a outra. As demandas e questionamentos defendidos pelos movimentos sociais da década de 1960 continuam presentes, com modificações de maior ou menor profundidade, na década seguinte, da mesma forma que as reações aos movimentos deste período inicial são percebidas já nos anos finais da década de 1960, ganhando escopo e presença política nos anos 1970, porém não se iniciando nesta década. Pode-se, em certa perspectiva, argumentar uma divisão de ordem ideológica. Nesta, os anos 1960 seriam eminentemente progressistas na retórica que embasa os atos dos atores sociais que pretendem, através dos movimentos nos quais tomam parte, alterar a realidade que os cerca. A década seguinte, por outro lado, apresentar-se-ia preponderantemente reacionária, através do retorno a uma retórica política conservadora e do aumento da oposição aos movimentos sociais. Esta interpretação é percebida, mais ou menos diretamente, em parte dos trabalhos que se debruçaram sobre a análise do período. Entretanto, deve-se evitar diligentemente a tendência à simplificação do recorte estudado. Momento de ebulição cultural e de turbulência política, os anos 1960/1970 serviram de cenário para uma ampla gama de acontecimentos nos quais grupos de todos os matizes políticos, ideológicos e de agrupamentos sociais heterogêneos se envolveram. Assim, apesar 14

de algumas destas vozes merecerem, em certos episódios, posição de destaque, não usufruíram de unanimidade. Não é possível, igualmente, fundamentar o exame em termos dicotômicos, uma vez que tanto as transformações observadas nos variados movimentos sociais e culturais existentes, quanto no cenário político e no contexto econômico, não obedecem a uma linha coesa e inequívoca de desenvolvimento. Além disso, o contato, aproximações e distanciamentos ocorridos entre os movimentos e outras instâncias da sociedade dos Estados Unidos não foram uniformes, de modo a inviabilizar determinações por demais esquemáticas na investigação. A pesquisa contempla, portanto, a coexistência de tendências e posicionamentos distintos, considerando as décadas em questão como um momento de disputa por espaço, visibilidade e primazia entre grupos que possuíam programas dessemelhantes, e por vezes inconciliáveis, para o futuro da nação. Desta forma, considerando-se tanto a pluralidade dos grupos sociais envolvidos nas vicissitudes do período estudado quanto a utilização do cinema como fonte histórica, a questão das representações operadas nos filmes torna-se fundamental. O conceito de representação é detalhadamente desenvolvido por Roger Chartier, no âmbito de suas reflexões concernentes à história cultural. Em sua obra A História Cultural: entre práticas e representações, assim Chartier caracteriza a história cultural:

A história cultural (...) tem por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler. (...) As percepções do social não são, de forma alguma, discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados (...) Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação.13 Desta forma, a história cultural volta-se aos mecanismos de formulação da realidade social, tendo-se em mente que esse âmbito é composto através de uma rede de tensões na qual concorrem tendências e posicionamentos diversos. Seria, pois, através de embates e conflitos, lutas de representação, que a realidade social seria materializada. Este conceito, representação, é privilegiado pelo autor no horizonte epistemológico da história cultural. Segundo Chartier:

Mais do que o conceito de mentalidade, ela [a noção de representação] permite articular três modalidades da relação com o mundo social: em primeiro lugar, o

13 CHARTIER. Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002. pp.16-17. 15

trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objectivadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade.14 Talvez por Chartier apresentar o conceito de ‘representação’ de uma maneira ampliada, desdobrando-o em contextos representacionais diversos, são inúmeros os trabalhos que passaram a instrumentalizar, no trato com as fontes fílmicas e cinematográficas, a conceitualização proposta. Nas páginas presentes, o conceito é apreciado tendo-se em mente que a representação social é um processo dinâmico para o qual convergem tendências singulares e, por vezes, bastante dissonantes, presentes numa dada sociedade, num dado momento. Pretende-se, assim, refletir sobre o procedimento através do qual se constituíram, na produção cinematográfica selecionada, as representações das tensões, dos movimentos e dos grupos sociais em atuação nos Estados Unidos, no recorte considerado. Buscando fundamentar suas asserções, Roger Chartier recupera a noção de ‘representação coletiva’ presente nos trabalhos de Marcel Mauss e Émile Durkheim. Este, introdutor do conceito, pretendia investigar manifestações que são experienciadas pelos mais diversos agrupamentos sociais, devendo ser observadas pela perspectiva coletiva15. Assim, Chartier afirma ser possível pensar a noção de representação pela relação dos elementos interiores, individuais, com aqueles oriundos da coletividade:

A noção de ‘representação coletiva’, entendida no sentido que lhe atribuíam, permite conciliar as imagens mentais claras (...) com os esquemas interiorizados, as categorias incorporadas, que as gerem e estruturam. Aquela noção obriga igualmente a remeter a modelação destes esquemas e categorias, não para processos psicológicos, sejam eles singulares ou partilhados, mas para as próprias divisões do mundo social. Desta forma, pode pensar-se uma história cultural do social que tome por objecto a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos actores sociais, traduzem as suas posições e interesses objectivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.16 Seria desta ideia de representação coletiva que, no campo da psicologia social, surgiria o conceito de representação social. Este conceito, para Ciro Flamarion Cardoso, é de

14 CHARTIER. Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002. p. 23. 15 Durkheim tinha em mente, por exemplo, as manifestações religiosas. Outro importante autor que, contemporaneamente a Durkheim, buscou refletir sobre questões ligadas aos fenômenos sociais coletivos, apesar de trabalhar em outra chave de pensamento, foi Sigmund Freud. Tanto em Totem e Tabu (1913), quanto em Moisés e o Monoteísmo (1939), Freud pretendeu explorar os mecanismos psíquicos envolvidos na fé. 16 CHARTIER. Op. cit., p. 19. 16

grande valia para a solução dos impasses verificados no trabalho historiográfico do conceito de representação. Segundo este autor, os historiadores têm, mais comumente, se voltado para a noção de habitus, como proposta por Pierre Bourdieu. Entretanto, esta seria elitista, segundo sua argumentação, o mesmo não ocorrendo com a noção de representação social oriunda da psicologia social. Além disso, esta noção permitiria aos historiadores “elucidar as motivações dos agentes” ao estudarem as programações sociais dos comportamentos. Segundo ele, sobre os parâmetros que regem o comportamento social:

Um grande avanço das ciências sociais no século XX foi o descobrimento da existência de múltiplas e onipresentes programações sociais do comportamento. O que as pessoas fazem está, em sua maior parte, programado pela sociedade à qual pertençam. Isto inclui muitas das ações normalmente consideradas casuais, livres, espontâneas ou privadas. Nenhum comportamento pode ser compreendido, ou identificado como pertencente a alguma modalidade reconhecível de ação, se não estiver previsto em uma codificação socialmente difundida.17

Para a definição das representações sociais, Cardoso considera as caracterizações de Serge Moscovici e Denise Jodelet. Citando Moscovici, afirma que as representações sociais são

... conjuntos dinâmicos [...], teorias ou ciências coletivas sui generis, destinadas a interpretar e dar forma ao real. [Elas remetem a] [...] um corpus de temas e princípios que apresentam uma unidade e se aplicam a zonas particulares de existência e de atividade... Elas determinam o campo das comunicações possíveis, dos valores ou das ideias presentes nas visões partilhadas pelos grupos e regulam, por conseguinte, as condutas duráveis ou admitidas.18

Cardoso ainda salienta que, para Moscovici, as representações sociais possuem um duplo caráter, sendo concomitantemente produto e atividade. Sendo um produto, possuem direta relação com a realidade, constituindo-se através de um conteúdo; sendo uma atividade, formulam-se enquanto um processo, abrindo espaço para o poder de agência do indivíduo, envolvendo apropriações e ressignificações. Assim, lembra que representar algo não é apenas “duplicá-lo, repeti-lo, reproduzi-lo, é também reconstituí-lo, retocá-lo, mudar-lhe a constituição num sentido que seja funcional para determinados grupos e seus interesses.” Neste sentido, o caráter duplo das representações sociais, sublinhado por Moscovici, parece se aproximar da noção de consumo cultural de massas definida por Michel de Certeau.19

17 CARDOSO, Ciro Flamarion. “O uso, em história, da noção de representações sociais desenvolvida na psicologia social: um recurso metodológico possível.” Psicologia e Saber Social. Rio de Janeiro, V.1, n.1, p. 40- 52, 2012. pp. 40-41. 18 MOSCOVICI, apud., CARDOSO, op. cit., p. 43. 19 “A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de 17

Quanto à posição de Denise Jodelet, definindo as representações sociais:

Trata-se de uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, possuidor de uma intenção prática, que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente chamada de “saber ingênuo” ou “natural”, esta forma de conhecimento [...] distingue-se, entre outras, do conhecimento científico. [...] Reconhece-se geralmente que as representações sociais, na qualidade de sistema de elaboração que rege nossa relação com o mundo e com os outros, orientam e organizam as condutas e as comunicações sociais [...], a difusão de conhecimentos, o desenvolvimento intelectual e coletivo, a definição das identidades pessoais e sociais, a expressão dos grupos e as transformações sociais.20

Observando-se os apontamentos de Cardoso, bem como as definições de Moscovici e Jodelet por ele apresentadas, pode-se delimitar alguns aspetos daquilo que é possível se compreender como representação social. Essencialmente, o comportamento dos indivíduos é, em grande parte, determinado socialmente, isto é, estando diretamente relacionado à sociedade da qual um indivíduo faz parte. Desta maneira, certo comportamento apenas se torna inteligível diante de valores e códigos socialmente reconhecíveis. Sendo conjuntos dinâmicos, as representações sociais determinam o campo do real, adequando os comportamentos aceitáveis dentro de um determinado grupo. Assim, regendo a relação dos indivíduos entre eles e com o mundo, colaboram para a definição das identidades pessoais e de grupo, em contato com a realidade social, num processo contínuo de formulações, apropriações e ressignificações do conjunto de conhecimentos que compõem as bases fundamentais das representações possíveis. Finalmente, segundo Cardoso, referindo-se ao processo de construção das representações sociais, a objetivação e a ancoragem são os dois processos que orientam a formulação de uma representação social, com a primeira efetivamente construindo, para a segunda reificar a representação num agrupamento social. A objetivação divide-se em três fases: seleção; formação de um esquema figurativo; e naturalização. Na primeira fase, o conjunto de conhecimentos referentes a um objeto a ser representado passa por escolhas mediante as intervenções do indivíduo ou grupos que procedem à representação. Em seguida, uma imagem coerente e tangível do objeto é produzida, através do ordenamento do material selecionado. Então, na naturalização, o processo de construção é silenciado, convertendo-se a representação social na própria realidade. Finalizando, a ancoragem permite a consolidação da representação em termos coletivos, tornando-a apta a ser utilizada no espaço social.

empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante.” CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 39. 20 JODELET, apud., CARDOSO, op. cit., p. 43. 18

O autor lembra que estes processos ocorrem paralelamente e em contexto, sendo sua separação puramente analítica, metodologicamente necessária. Porém, apesar de parecer demasiadamente diagramática, a descrição do mecanismo de formulação da representação social através da objetivação e da ancoragem conta com o mérito de permitir a visualização panorâmica do complexo transcurso de formação da representação social, propiciando sua melhor compreensão. O cinema e, mais propriamente, o filme, enquanto produto de uma indústria e construído mediante os códigos e signos operativos em uma sociedade, insere-se no debate da constituição das representações sociais. Surgido como uma invenção técnica nos anos finais do século XIX21, o cinema marcaria o século seguinte como uma nova categoria de arte. Progressivamente ganharia espaço no mundo do entretenimento, vindo a veicular uma forma original de linguagem que provocaria alterações na maneira como os indivíduos percebem o cotidiano. Entretanto, apesar de seu sucesso cultural, as sombras e luzes da tela grande fariam um longo percurso até ingressar no campo de interesses dos pesquisadores do social.22 Passadas as décadas de descrédito, porém, o cinema passou a ser explorado em diversas perspectivas, servindo ora como fonte, ora como objeto das análises dos investigadores. Diante das muitas possibilidades de trabalho historiográfico com fontes cinematográficas, considera-se aqui o cinema como veículo de representação social, bem como sua capacidade de colocar em movimento tendências presentes numa dada sociedade, figurando como agente de construções representacionais. Segundo José D’Assunção Barros, versando sobre a relação cinema-história e o uso do cinema pelos historiadores:

A partir de uma fonte fílmica, e a partir da análise dos discursos e práticas cinematográficas relacionados aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX e da contemporaneidade. De igual maneira (...) os historiadores políticos e

21 Apesar de o nascimento do cinema ser delimitado no fim do século XIX, sendo usualmente creditado ao cinematógrafo construído pelos irmãos Lumière, os conhecimentos tecnológicos que permitiram o registro e reprodução de imagens em movimento remontam a períodos bem anteriores, sendo seus fundamentos encontrados em estudos de ótica, sobretudo, aprofundados ao longo de séculos. Um exame detalhado a respeito do surgimento do cinema, entretanto, não faz parte dos objetivos do texto. 22 Inicialmente, o cinema foi considerado uma espécie de entretenimento barato, voltado ao público desprovido dos códigos de compreensão das artes julgadas eruditas, de maior tradição. Essa posição equivocada, fundada num preconceito de classe, atrasou a percepção das potencialidades do cinema para as pesquisas das ciências humanas e sociais. Desta forma, apenas alguns esforços extemporâneos foram realizados na primeira metade do século XX. Especificamente no campo historiográfico, Marc Ferro foi o primeiro a considerar o uso do cinema enquanto documento, em suas implicações teórico-metodológicas. Cinema e História é sua obra mais conhecida no tema, lançada já nos anos de 1970. 19

culturais podem examinar os diversos usos, recepções e apropriações dos discursos, práticas e obras cinematográficas.23

Desta forma, o cinema se apresenta enquanto fonte singular para o estudo das representações por permitir o acesso a determinados constructos operados nos e através dos filmes. Ainda segundo Barros:

Para além do fato mais evidente de que o cinema – enquanto ‘forma de expressão cultural’ especificamente contemporânea – fornece fontes extraordinariamente significativas para os estudos históricos sobre a própria época em que foi e está sendo produzido, uma outra relação fulcral entre História e Cinema pode aparecer através da dimensão deste último como ‘representação’. O Cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas também um ‘meio de representação’. Através de um filme representa-se algo, seja uma realidade percebida e interpretada, seja um mundo imaginário livremente criado pelos autores de um filme.24 Explicitando uma relação menos harmônica e recuperando as considerações realizadas anteriormente quanto aos processos de formulação das representações sociais, o cinema consiste numa produção multifacetada. Nele concorrem vozes distintas, mesmo opostas, oriundas de grupos sociais diversificados, além de ser construído mediante a apropriação de elementos presentes em variados âmbitos da sociedade.25 Paralelamente à Barros, Michèle Lagny realiza algumas observações quanto à utilização do cinema no trabalho do historiador, tecendo reflexões referentes às aproximações entre a linguagem cinematográfica e a escrita historiográfica. Para Lagny, apesar de o cinema ser pensado enquanto um produto comercializável e, em geral, não almejar o estatuto de documento histórico, assume esta função uma vez que conserva vestígios do tempo e do lugar no qual cada produção é realizada. Afirma a autora que as imagens cinematográficas evidenciam muito mais sobre a percepção que se tem da realidade do que sobre a realidade propriamente dita. Assim, a utilização de fontes fílmicas seria notadamente profícua no que se refere às reflexões concernentes à noção de representação, possibilitando a análise privilegiada do imaginário social, bem como da noção de identidade cultural. Tratando da representação fílmica, salienta:

O cinema, de ficção em particular, parece muito produtivo para refletir a noção de representação. Muito frequentemente é no mínimo conservador, na medida em que

23 BARROS, José D’Assunção. “Cinema e história: entre expressões e representações”. In: NÓVOA, Jorge; BARROS, José D’Assunção. Cinema-História – teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 43. 24 Ibid., p. 43-44. 25 Quanto à presença de variadas vozes sociais na obra cinematográfica, o próprio Ferro já havia salientado a potencialidade do filme para veicular as posições de grupos sociais subalternos. Sua noção de contra-análise da sociedade fundamenta-se nesta questão. Cf. FERRO, Marc. “O filme: uma contra-análise da sociedade?”. In: Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 20

as imagens se alimentam menos das inovações que dos modelos de longa duração. (...) Porém, e como sintoma de nostalgias, os filmes podem também ser portadores de desejos novos e às vezes contrariados.26 Ainda refletindo sobre a capacidade do cinema em permitir o acesso do observador competente ao processo de constituição da representação social operada, salienta Lagny:

Se suas imagens não dizem grande coisa sobre a realidade dos fatos, elas testemunham, entretanto, sobre a percepção que dela temos, ou que queremos ou podemos lhes dar, em um momento preciso, datado e localizado.27 O cinema, assim, figura como uma construção que, ao invés de documentar a realidade, mais efetivamente transmite representações que constroem realidade através das inúmeras possibilidades de consumo disponíveis aos grupos sociais. Desta forma, considerando-se as reflexões acerca do conceito de representação, bem como a aplicação deste ao exame do cinema enquanto fonte histórica, e tendo como esteio as ponderações dos autores acima citados, a pesquisa analisa a sociedade dos Estados Unidos voltando-se ao contexto de transformações das décadas de 1960 e 1970. Busca-se, neste intento, esclarecer alguns aspectos referentes ao processo de representação midiática dos movimentos e grupos sociais mais emblemáticos do período, além de interpretar as implicações daquela atmosfera de mudanças para a sociedade americana. Observando-se a condição polissêmica de qualquer filme, o exame das fontes busca evitar uma perspectiva analítica unidimensional, considerando as diversas vozes sociais presentes nas obras. Deste modo, pretende-se sublinhar as disputas em atuação nos Estados Unidos do período em detrimento de um suposto posicionamento retórico ou ideológico nas produções, ainda que estas questões não deixem de figurar nas análises das fontes quando demonstrarem relevância. Ressalta-se que o corpus documental selecionado atende aos anos finais da década de 1960 e toda a década de 1970. Assim procedeu-se por ter sido apenas a partir de meados daquela década que a indústria cinematográfica voltou-se às transformações em curso nos Estados Unidos. Contudo, esta peculiaridade do corpus não impede que o exame contemple os anos iniciais da década de 1960, ou mesmo a década de 1980, quando houver pertinência. Tendo sido pormenorizada a pesquisa, esclarecem-se algumas ressalvas importantes: o recorte proposto já foi anteriormente explorado, especialmente nos Estados Unidos, sendo o cinema considerado como fonte privilegiada por alguns pesquisadores. O presente trabalho de

26 LAGNY, Michèle. “O cinema como fonte de história”. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador, São Paulo: EDUFBA/Editora UNESP, 2009. p. 105. 27 Ibid., p.102. 21

pesquisa, portanto, pretende constituir-se enquanto uma colaboração para a compreensão da dinâmica dos acontecimentos que marcaram a sociedade dos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970, suas demandas, embates, rupturas e continuidades. A relevância observa-se, singularmente, para a área de estudos sobre os Estados Unidos no Brasil, visto a exiguidade de pesquisas no campo, ainda pouco considerado pela academia brasileira. Apesar das produções cinematográficas elencadas terem sido produzidas em um momento ímpar da indústria do cinema dos EUA, o período de florescimento da Nova Hollywood, o leitor deve estar atento ao fato de que o presente trabalho não consiste em um ensaio sobre a história do cinema e, portanto, não será realizada uma análise detida e aprofundada do cinema hollywoodiano. Contudo, o primeiro capítulo traz um panorama referente aos desenvolvimentos da indústria do cinema dos Estados Unidos entre os anos 1940 e 1970. Além disso, algumas observações pontuais sobre essa indústria, bem como referentes às características dos gêneros e tendências dos filmes estão presentes ao longo do texto, quando se configuraram informações significativas para determinadas análises e reflexões concernentes às películas e suas aproximações ao contexto de produção e do fazer cinematográfico. Optou-se, na formulação do corpus documental, por títulos que circularam no grande circuito de distribuição de filmes, tendo sido assistidos por um número expressivo de pessoas. Este procedimento explica-se por considerar o sucesso de bilheteria de uma determinada produção como indício de seu diálogo com as demandas presentes na sociedade. Obras independentes ou voltadas a um nicho de mercado específico não compõem, portanto, o corpus, o que não implica a desconsideração de suas qualidades intrínsecas, nem um juízo de valor. No entanto, alguns títulos que não alcançaram sucesso no lançamento, porém tornaram- se memoráveis nos anos seguintes, mereceram apreciação. Apesar da singularidade da produção da Nova Hollywood, o conjunto de películas selecionado destaca-se pela heterogeneidade, ao invés de constituir-se apenas mediante títulos partícipes dessa tendência do cinema dos Estados Unidos no período. Além de os filmes eleitos para exame representarem variados gêneros cinematográficos, tanto filmes de retórica mais intelectualizada quanto enredos populares foram considerados. E ainda, a pontual recorrência de roteiristas, atores ou diretores nas produções examinadas não se deve às preferências cinematográficas do autor, mas à relevância dos títulos para os temas observados. Obviamente, o leitor não deve presumir que o corpus documental selecionado encerre o universo da produção cinematográfica de Hollywood no período, uma indústria reconhecida por sua profusão. Assim, apesar de existirem outros títulos e temas que permitam 22

a observação das transformações ocorridas na sociedade dos Estados Unidos no recorte proposto, os temas e respectivas obras selecionadas possibilitam o exame das principais questões em debate no país, sem prejuízo da investigação. Portanto, voltando-se o texto à análise de filmes representativos das décadas de 1960 e 1970, produzidos nos Estados Unidos, concede-se ao leitor uma perspectiva de observação da efervescência do período. Possibilita-se, assim, a reflexão sobre as idiossincrasias dos acontecimentos e a apreensão da importância daquele momento para aquela sociedade, nas décadas subsequentes, e com desdobramentos na atualidade.

23

1 O CINEMA DE HOLLYWOOD DO PÓS-GUERRA ÀS DÉCADAS DE 1960 E 1970

1.1 O ESTABELECIMENTO DA CRISE Para compreendermos as mudanças ocorridas no negócio do cinema da Califórnia, e sua posição de destaque no processo de representação e midiatização das tensões socioculturais dos anos 1960-70, é preciso observar os revezes atravessados pelos grandes estúdios a partir do fim dos anos 1940. Em meados dessa década, Hollywood havia se tornado o berço de um dos mais importantes nichos industriais dos Estados Unidos. Referindo-se a esse momento, Leonard Quart e Albert Auster afirmam:

Os oito maiores estúdios [estavam] produzindo 99 por cento de todos os filmes apresentados na América do Norte e quase 60 por cento dos filmes exibidos na Europa. Além disso, havia quase 90 milhões de ingressos vendidos a cada semana nos EUA. De fato, a indústria cinematográfica era a sexta mais importante indústria nos Estados Unidos em 1945.28 No entanto, contrariando o quadro de prosperidade, os anos finais da década de 1940 trariam o primeiro forte elemento detonador da crise que, na década de 1960, decretaria o fim do outrora rentável sistema de estúdios hollywoodiano. Em 1947, a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou ilegal a prática longamente instituída de os estúdios controlarem os diversos estágios da produção cinematográfica, além da distribuição e exibição dos filmes29. De acordo com os juristas norte-americanos, a prática configurava reserva de mercado em benefício dos grandes estúdios, os quais foram intimados a abrirem mão da propriedade de suas cadeias de salas de exibição, bem como de parte da distribuição.30 Quando, em 1954, o prazo concedido pela ação antitruste chegou ao fim, a medida judicial representou uma sensível queda nos lucros obtidos. Além desse duro golpe, a esta altura, outras questões colocavam igualmente em risco a posição privilegiada da qual até então o cinema desfrutara no negócio do entretenimento nos Estados Unidos.

28 QUART, L.; AUSTER, A. “Hollywood Dreaming: Postwar American Film”. In: HENDIN, Josephine G. (ed.). A Concise Companion to Postwar American Literature and Culture. Oxford: Blackwell, 2004. p. 151. 29 O processo antitruste ficou conhecido como “Caso Paramount”, por ter sido através da investigação das práticas empresariais desse estúdio que a questão se estabeleceu. 30 Produzindo os filmes, os estúdios também controlavam a distribuição das películas, bem como possuíam a propriedade de grandes redes de salas de exibição. Após 1947, além de os estúdios terem de se desfazer da propriedade das salas, foram impedidos de participar do nascente negócio televisivo. Essas ações não apenas significaram grandes perdas de rentabilidade antes assegurada, mas igualmente o impedimento de entrar em uma nova e potencial possibilidade de lucros. 24

No início dos anos 1950, a indústria hollywoodiana enfrentou os obstáculos políticos erguidos pela histeria anticomunista do macarthismo31, a qual representou sérias limitações às possibilidades de produção. Além disso, teve de lidar com o surgimento da forte concorrência televisiva que, conjuntamente à proliferação dos bairros suburbanos, portanto distantes dos centros onde se localizavam as salas de exibição, foi responsável pelo sensível esvaziamento destas. Portanto, a lei antitruste representou uma perda financeira para toda a indústria32, bem como o início do desmantelamento do controle dos grandes estúdios. No entanto, os contextos político e sociocultural dos anos do pós-guerra configuraram-se enquanto fontes de problemas ainda mais graves para a produção cinematográfica californiana a qual, além da drástica redução de suas receitas, teve que se adaptar à onda de conservadorismo político que se erguera em Washington, além de dar conta das novas demandas socioculturais surgidas no fluxo do rápido desenvolvimento econômico operado. Essas transformações dialogam com a conjuntura sociocultural estudada na medida em que as distintas pressões sofridas pela indústria cinematográfica, entre o fim dos anos 1940 e os anos iniciais da década seguinte, têm importância no esclarecimento da maneira pela qual as transformações culturais foram absorvidas pelos estúdios hollywoodianos. Na

31No início da década de 1950, o até então desconhecido Senador Joseph McCarthy foi o principal articulador de uma ruidosa busca por simpatizantes do comunismo em variados âmbitos da sociedade dos Estados Unidos. Segundo William Leuchtenburg, o termo macarthismo foi criado pelo cartunista Herbert Block (Herblock), do Washington Post, cerca de um mês depois do discurso ao Clube das Mulheres Republicanas, onde McCarthy inicia sua ofensiva, tendo sido usado pela primeira vez sobre o desenho de um barril cheio de lama. (LEUCHTENBURG. William E. (org.). O Século Inacabado – A América Desde 1900. Vol. II. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 731.). Como explicado por Robert Divine: “a técnica básica de McCarthy era a das inverdades múltiplas. Jogava uma série de acusações de atividades que poderiam ser consideradas como traição no governo. Enquanto os funcionários estavam contestando suas acusações iniciais, ele lançava uma série de novas acusações, de forma que as acusações nunca acabavam.” (DIVINE, Robert A. Et alii. América: Passado e Presente. Rio de Janeiro: Nórdica, 1992. p. 641.). As suspeitas, normalmente infundadas, levantadas contra cidadãos americanos e estrangeiros residentes acusados de simpatizar com a ideologia soviética, deixariam marcas profundas na política, nas artes, na intelectualidade, na educação e em outras esferas da vida americana, vários anos após as ações do congressista. Note-se que o macarthismo surge e se desenvolve em relação direta ao cenário psicológico em curso na nação. É apenas a existência palpável da ideia de um perigo iminente de invasão e contaminação, representada pela ameaça da ideologia soviética, que torna esse fato inteligível. A “caça às bruxas” de McCarthy somente encontra seu fim quando o senador passa a acusar membros do próprio exército norte-americano de conspiração e liberação de segredos técnicos ligados à construção de bombas nucleares aos soviéticos. Tendo suas ameaças perdido as bases de sustentação, o senador deixa as páginas dos jornais, retornando à obscuridade. 32 Em realidade, esta perda se fez sentir, principalmente, nos caixas dos cinco maiores estúdios. Aos outros três, apesar da instabilidade do momento, a redução do controle dos grandes estúdios representava oportunidades de inserção em fatias de mercado antes fechadas. Para a , em especial, e para pequenos produtores independentes, possibilitava a obtenção de maiores receitas através de melhor distribuição e exibição de suas produções, o que implicaria captação de fundos para a realização de projetos futuros ainda mais ousados. 25

continuidade desse processo, os reflexos das mudanças que começam a ocorrer nessa conjuntura são percebidos nas décadas de 1960 e 1970. A escalada das animosidades entre as duas principais nações vitoriosas da Segunda Guerra Mundial, EUA e URSS, teve como consequência política o estabelecimento de um novo contexto de intensa oposição à ideologia comunista nos Estados Unidos. Harmonizando- se com a nova política de Estado apresentada na Doutrina Truman33, o Comitê de Atividades Antiamericanas (HUAC – House Un-American Activities Committee) começa a atuar sobre a produção cinematográfica já no ano de 1947. Esse órgão, formado em 1938, e que apenas havia sido instituído como parte do Congresso em 1945, vinha monitorando a influência de indivíduos ligados ideológica ou partidariamente ao comunismo desde 1943. Em 1947, a busca do Congresso por simpatizantes do comunismo empregados na indústria de Hollywood levou ao interrogatório de um grupo de produtores, atores e, principalmente, roteiristas dos quais a maior parte mostrou-se colaborativa aos trabalhos do Comitê, em especial no testemunho de acontecimentos e na acusação de indivíduos suspeitos de serem simpatizantes do regime soviético. No entanto, um pequeno grupo de dez pessoas, posteriormente conhecidos como “os dez não colaborativos” (The Ten Unfriendly), composto principalmente por roteiristas, decidiu pela não colaboração, apoiando-se legalmente nos princípios expostos na Primeira Emenda Constitucional, a qual, dentre outras determinações, assegura a liberdade de assembleia e expressão. Após três anos de processos e recursos, todos os integrantes do grupo foram sentenciados à prisão. Em 1951, o Comitê, agora imerso na atmosfera de acusações do macarthismo, realiza nova e mais intensa investida sobre Hollywood, da qual resulta uma lista de nomes de colaboradores da indústria cinematográfica que seriam simpatizantes ou defensores do comunismo. Ter o nome incluído na referida lista, denominada Hollywood Blacklist, implicava a perda do emprego e o ostracismo.34

33 Harry S. Truman foi o 33º Presidente dos Estados Unidos. Sua Doutrina determinou as linhas gerais da política externa americana no que se referia à relação com a União Soviética, estabelecendo substancialmente a geopolítica característica da Guerra Fria em seus primeiros anos. 34 Importante salientar que as ações contrárias às atividades políticas de esquerda não emanavam simplesmente de Washington. Desde 1944, a organização “Motion Picture Alliance for the Preservation of the American Ideals” (em tradução livre, Aliança Cinematográfica para a Preservação dos Ideais Americanos) assumia postura claramente anticomunista em Hollywood. Walt Disney e John Wayne são duas das figuras ilustres filiadas à organização. Para análises detalhadas sobre a atmosfera existente na indústria do cinema de Hollywood nos anos finais da década de 1940 e os iniciais da década seguinte, ver: ROSS, Steven J. Movies and American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002 (em especial o capítulo 7). Sobre a conjuntura politico- ideológica do anticomunismo, ver: WHITFIELD, Stephen J. The Culture of the Cold War. London: The Johns Hopkins University Press, 1991. Quanto às ações do HUAC, conferir: PEIXOTO, Fernando. Hollywood: episódios da histeria anticomunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 26

Tal atmosfera, marcada por acusações, intimações, listas negras e, na prática, expulsão de profissionais de seu meio de trabalho, criou um clima de delação e desconfiança que se refletia no funcionamento industrial dos estúdios. As consequências para a produção cinematográfica não foram unicamente econômicas, fazendo-se igualmente presentes nas abordagens temáticas das películas, bem como no grau de dificuldade envolvido na consecução de determinados projetos. Diante das investidas patrióticas sobre sua produção, os estúdios assumem uma postura defensiva. Sobre a realidade na qual passou a se resumir o trabalho na área, o diretor Elia Kazan afirma, em 1952: “atores têm medo de atuar, escritores têm medo de escrever e produtores têm medo de produzir”.35 Além das adversidades propiciadas pela retórica anticomunista, o surgimento da televisão configura-se como outro impasse a ser enfrentado por Hollywood. O conflito mundial deflagrado entre os anos de 1939 e 1945 teve como uma de suas muitas consequências o gigantesco desenvolvimento tecnológico observado em áreas distintas do conhecimento científico e da prática cotidiana. Para atender às necessidades das nações beligerantes, novos tipos de armamentos, mais leves, práticos e mortais, foram desenvolvidos. Veículos foram aprimorados, permitindo que praticamente todo tipo de terreno se convertesse em campo de batalha, notadamente o ar (mais do que nunca) e os oceanos, na superfície e no espaço submarino. E, para tornar viável o avanço dos conflitos por regiões tão vastas e tão distantes, os meios de comunicação. Assim, a eletrônica conhece, como efeito do conflito mundial, seu primeiro grande impulso tecnológico. Terminado o enfrentamento bélico, parte do avanço obtido na tecnologia eletrônica durante os anos de guerra começa a ser aplicada em uso civil. Desta forma, um equipamento já existente antes do conflito, porém comercialmente pouco estabelecido, a televisão, se desenvolve. Privilegiada economicamente pela guerra, a nação norte-americana oferecia o mercado ideal para a implantação e desenvolvimento desse novo equipamento doméstico, o que se deu prontamente. Segundo Peter Lev, tratando sobre o vertiginoso desenvolvimento do sistema de transmissão televisiva nos EUA da década de 1950, bem como do expressivo aumento do número de aparelhos televisivos comercializados:

35 “Kazan Warns Fear Hurts Film Industry”, New York Times, 15 de maio de 1952. In: LEV, Peter. The Fifties – Transforming the Screen (1950-1959). New York: Charles Scribner's Sons & Thomson Corporation, 2003. p.11. Kazan é um caso singular. Tornando-se famoso como diretor no final da década de 1940, testemunha ao Comitê de Atividades Antiamericanas, seguindo na tentativa de realizar projetos algo independentes, apesar da conjuntura nada favorável. O filme “Sindicato de Ladrões” (On The Waterfront - 1954), por ele dirigido, insere- se claramente na realidade de delações que fazia parte da Hollywood de então. O roteiro ambienta-se em um corrupto sindicato de estivadores onde a delação de companheiros de trabalho insatisfeitos com a direção sindical é estimulada e premiada. 27

Em 1º de abril de 1948, apenas vinte estações comerciais de televisão estavam transmitindo nos Estados Unidos. Não havia transmissão de sinal televisivo nos estados sulistas, e muito pouco a oeste do Mississipi. Apenas 300.000 aparelhos de televisão tinham sido vendidos. Fortune estimou que “90 por cento da população ainda não havia visto um programa de televisão”.36 Nos anos seguintes esse quadro se inverteria rapidamente. Segundo o mesmo autor:

Em 1º de janeiro de 1950 havia 98 estações comerciais de televisão VHF nos Estados Unidos, em 1954 havia 233, em 1960 havia 440. (...) Em 1950 mais de 7.3 milhões de aparelhos de televisão foram vendidos nos Estados Unidos, e as vendas de aparelhos de TV nos EUA nunca foram menores que 5 milhões por ano, de 1950 à 1959.37 Desta forma, a pronta aceitação da televisão no lar americano como bem de consumo desejado pela classe média em ascensão, signo de status, tornando-se o mais recente meio de entretenimento familiar e merecendo lugar de destaque na sala de visitas, representou um elemento central na redução da audiência frequentadora das salas de cinema ao longo da década. À indústria cinematográfica já em crise econômica e política, o surgimento desse novo utensílio doméstico consolidou um cenário de concorrência que apenas agravaria a frágil situação na qual os estúdios da Califórnia se encontravam. Buscando fazer frente às transformações do mercado de consumo do entretenimento ocasionadas, em especial38, pela introdução da televisão na intimidade familiar norte- americana, os estúdios cinematográficos decidem apelar para novidades ligadas à tecnologia de captação e de exibição das imagens. As duas principais estratégias colocadas em prática pelos estúdios nesse sentido foram o uso ostensivo de coloração de películas na produção dos filmes e o desenvolvimento de lentes cinematográficas que permitiam a exibição de tela no formato widescreen.39 A possibilidade de coloração de imagens já existia desde a primeira década do século XX, no entanto, por significar um aumento nos custos de produção, os filmes continuaram a ser produzidos predominantemente em preto-e-branco, mesmo nos gigantescos estúdios de Hollywood. Como a televisão disponível nos anos 1950 não permitia a transmissão de imagens a cores, a indústria cinematográfica percebeu aí um meio de firmar a diferenciação entre cinema e televisão de uma forma visível a qualquer tipo de audiência. Assim, técnicas

36 LEV, Peter. The Fifties – Transforming the Screen (1950-1959). New York: Charles Scribner's Sons & Thomson Corporation, 2003. p. 09. 37 Ibid., p.09. 38 Apesar de a televisão ter lugar de destaque nessa transformação, a década de 1950 presenciaria, ainda, o desenvolvimento do mercado fonográfico, notadamente seu nicho juvenil, o que implicou em uma nova forma de consumo deste bem cultural, a música, além do aumento no acesso a viagens de lazer, ambos elementos que, igualmente, contribuíram para a evasão dos espectadores das salas de cinema. 39 Outra tecnologia de exibição empregada foi a do cinema 3D. Utilizada primeiramente na produção cinematográfica estatal do regime nazista, cairia rapidamente em desuso devido ao alto custo de realização. 28

de coloração de imagens, como as das empresas Technicolor e Eastmancolor, passaram a ser amplamente utilizadas. Paralelamente, desenvolve-se um novo formato de tela, permitindo uma área visual maior, de largura acentuada e, alega-se, mais condizente com o campo visual humano. Esse novo formato apresentava uma imagem panorâmica, possibilitando, principalmente, um melhor uso de tomadas de longos cenários e paisagens. Diferentes estúdios desenvolvem técnicas distintas de captação de imagens em formato widescreen. A principal dessas técnicas e a mais utilizada foi a desenvolvida pelos estúdios Fox, denominada CinemaScope e licenciada em 1953. O CinemaScope foi rapidamente licenciado por outros estúdios hollywoodianos, contando com a concorrência do Vistavision, da Paramount.40 Paul Buhle e Dave Wagner assim descrevem a première de “O Manto Sagrado” (The Robe, dir.: Henry Koster – 1953), primeiro filme a ser produzido em CinemaScope:

A estrela principal foi o CinemaScope. Como um dos críticos de cinema de Londres afirmou, o filme prometia “trazer os milhões desaparecidos de volta aos cinemas.” The Robe (“O Manto Sagrado”), observou Bosley Crowther, era “ uma vasta apresentação de locações e figurinos coloridos em uma escala pictórica singular”, romantizando os cristãos “em meio a suntuosos e abrangentes cenários.” Ele era, simplesmente, a Maior História Jamais Contada “na maior tela de cinema jamais usada”. 41 Vale salientar que o desenvolvimento de tecnologias que possibilitassem a disponibilidade de características similares para os aparelhos de televisão apenas surgiriam anos depois, com a TV em cores entrando em comercialização nos anos 196042 e o formato de tela widescreen somente na primeira década do século XXI. Desta forma, a indústria cinematográfica conseguiu apresentar inovações que, na década de 1950, puderam reduzir a perda de mercado consequente da concorrência da nascente indústria televisiva. Os percalços gerados pelo surgimento da TV não constituíam, no entanto, o simples empecilho de uma nova forma de concorrência. O desenvolvimento da indústria televisiva no início dos anos 1950 insere-se no cenário de transformações socioculturais ocorridas no seio da sociedade americana, diante do acelerado crescimento da economia dos Estados Unidos. Nesse contexto, o tradicional American Way of Life sofreria alterações diante do aumento do

40 Quanto às inovações tecnológicas operadas na produção cinematográfica dos anos 1950, confira: QUART, L.; AUSTER, A. “Eisenhower’s America: prosperity and problems in the 1950s”. In: ROSS, S. Movies and American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002. 41 BUHLE, Paul; WAGNER, Dave. Hide in Plain Sight – The Hollywood Blacklistees in Film and Television, 1950- 2002. New York: Palgrave MacMillan, 2005. p.127. 42 Mais precisamente, o primeiro televisor a cores foi lançado no mercado americano em abril de 1954, sendo o modelo CT-100 Color Television, produzido pela RCA. No entanto, seria apenas nos anos 1960 que os aparelhos televisivos a cores tornar-se-iam populares. Cf. VALIN. A. B. Imagens Vigiadas: uma História social do Cinema no alvorecer da Guerra Fria: 1945 – 1954. Rio de Janeiro: UFF, 2006. Tese de doutorado. 29

consumo, das mudanças habitacionais observadas, do reposicionamento de homens e mulheres no que se refere aos seus papéis sociais, do surgimento do movimento dos direitos civis e, principalmente, do desenvolvimento cultural ocorrido, especialmente naquilo que concerne ao estabelecimento da cultura jovem. Desta forma, observa-se a materialização de novas demandas socioculturais que iniciariam um sistemático processo de pressão sobre o arraigado tradicionalismo da nação norte-americana, eclodindo futuramente nos diversos movimentos culturais e políticos que tomariam corpo nas décadas seguintes.43 Diante das mudanças culturais, os estúdios começam a realizar transformações na ordem do enredo, das temáticas abordadas, bem como da construção dos personagens. Assim, os anos 1950 presenciam o aumento da frequência com que assuntos controversos eram retratados na tela dos cinemas. Dramas voltados à mulher, aos casamentos problemáticos e à delinquência juvenil passam a fazer parte dos gêneros cinematográficos explorados por Hollywood. Nesse sentido, um novo tipo de herói masculino é formado. Distanciando-se do herói incorruptível do cinema clássico, capaz de exercer sua integridade diante de todos os infortúnios, o novo herói demonstrava sua fragilidade emocional, frente a uma realidade coercitiva que muitas vezes parecia não compreender. Desta maneira, alguns dos títulos da década conseguiram se aproximar das questões sociais em debate nos EUA, dialogando com o surgimento de novas relações maritais, do papel exercido tanto por homens quanto por mulheres no cotidiano familiar. James Dean e Marlon Brando são atores que repetidamente interpretaram personagens nesse viés. Segundo Steven Ross, referindo-se aos papéis encenados por Dean:

(...) eram sensíveis, sensuais, e geralmente jovens angustiados buscando descobrir e definir suas identidades. No processo eles levantaram dúvidas sobre os valores e comportamento que dominavam a cultura e a sociedade americanas, e indiretamente expressaram algumas das tendências da insatisfação que existiu durante a década.44

Financeiramente, a indústria cinematográfica californiana encontrou no mercado exterior a fonte de lucros que asseguraria a manutenção do negócio até a década de 1960, quando a redução das receitas e a profundidade das mudanças culturais terminam por decretar o fim dos grandes estúdios. A guerra de 1939 teve um forte impacto negativo na produção e distribuição de filmes. Boa parte dos mercados foi fechada para os estúdios de Hollywood, enquanto as indústrias nacionais dos países europeus eram desmanteladas. Passado o conflito, no entanto, abrem-se potenciais mercados para os Estados Unidos, primeiramente, devido à

43 Cf. DIGGINS, John Patrick. The Proud Decade: America in War and in Peace. New York: W. W. Norton & Company, 1989. 44 ROSS, S. Movies and American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002. p.231. 30

falta de concorrência europeia e, em segundo lugar, por existir um grande estoque de produções americanas realizadas durante os anos de guerra que não haviam sido exibidas na Europa. Para as nações europeias, que tiveram suas reservas liquidadas durante o conflito, a enxurrada de produções americanas sendo exibidas em suas salas significaria a perda de importantes receitas através da repatriação de capital aos Estados Unidos. Buscando minimizar a questão, alguns tratados foram assinados definindo a porcentagem das receitas que deveriam ficar bloqueadas em um fundo para serem utilizadas exclusivamente naquele determinado país. Segundo Thomas Guback:

(...) o Acordo Cinematográfico Anglo-Americano, de 1948, permitia às companhias americanas retirar apenas 17 milhões de dólares de seus ganhos, anualmente (deixando mais de 40 milhões, por ano, acumulados em contas bloqueadas) (...) termos similares apareceram no Acordo Cinematográfico Franco-Americano, de 1948, que permitia às firmas americanas retirar 3.6 milhões de dólares em ganhos anualmente, deixando cerca de 10 milhões bloqueados por ano. Esses fundos congelados poderiam ser gastos [em ambos os casos] em coproduções com companhias nacionais, construções de novos estúdios, aquisição e distribuição de direitos autorais, etc.45

Além disso, na nova conjuntura geopolítica característica da Guerra Fria, as películas passam a ocupar posição de destaque enquanto veículos publicitários dos valores americanos e da suposta superioridade do American Way of Life diante da realidade social dos países soviéticos. De acordo com Guback:

Assumindo o papel de polícia do mundo, os Estados Unidos instituíram medidas vigorosas para prevenir o desvio à esquerda de muitos países insatisfeitos com o capitalismo. Por exemplo, o Plano Marshall proveu fundos para dinamizar as economias da Europa Ocidental e estimular a produção e a reconstrução. A exportação do material midiático americano era considerada essencial aos esforços do governo, pois representavam favoravelmente o sistema americano. (...) Assim, o MPEA (Associação para Exportação de Filmes) lançou sua campanha de distribuição no pós-guerra com as bênçãos e, inclusive, o apoio do governo.46

No mercado dos Estados Unidos, a lei antitruste acima mencionada, ao determinar que os estúdios deveriam dissociar seus negócios de produção-distribuição da exibição dos filmes, ocasionou a drástica redução do número de películas produzidas. Como consequência, as cadeias de exibição tiveram de enfrentar a falta de material para compor sua programação, questão que foi solucionada com a importação de “filmes de arte” produzidos na Europa. Conforme o negócio do cinema era reestruturado em países como Itália e França, películas

45 GUBACK. Thomas H. “Hollywood’s international market”. In: BALIO, Tino. (org.). The American Film Industry. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1976. p. 397. 46 Ibid., p. 396. 31

integrantes do Neorrealismo Italiano e, mais para o fim da década de 1950 e início da seguinte, da Nouvelle Vague Francesa, tornaram-se familiares ao público americano. Essas escolas cinematográficas traziam filmes calcados em parâmetros de produção muito distintos dos utilizados por Hollywood. Produções particularmente artesanais, abordando temas sociais raramente tratados pelas produções americanas (ainda submetidas ao moralismo do Código Hays47 de autocensura), o cinema europeu atinge boa recepção, traduzida em ganhos de bilheteria. Em decorrência, Hollywood começa a parecer ultrapassada e distanciada das demandas presentes na sociedade dos EUA, aos olhos dos próprios espectadores desse país. Com apelo sexual inexistente nas congêneres americanas, as produções europeias passam a ser importadas e distribuídas por subsidiárias dos grandes estúdios da Califórnia, além de forçar a renovação estilística do cinema hollywoodiano, ainda produzido dentro dos parâmetros clássicos.48 Através da importância que as empresas dos EUA passam a ocupar na distribuição dos filmes americanos e europeus dos dois lados do Atlântico, consolida-se a aproximação

47 Tendo-se em vista o tradicional conservadorismo moral da sociedade norte-americana, o cinema não tardou a se tornar alvo de grupos que intentavam assegurar aquilo que consideravam como o padrão moralista ideal a ser apresentado na tela grande. Diante das investidas de diversas organizações, tanto religiosas quanto governamentais de distintos níveis, a indústria cinematográfica cria um código de autocensura como forma de evitar os empecilhos causados pela atuação das mesmas. O PCA (Production Code Administration) representou um consenso firmado entre estúdios e produtores no qual um conjunto de regras básicas referentes ao que poderia e ao que não poderia ser veiculado na tela de cinema procurava normatizar moralmente a produção. Personificado na figura de Will Hays, a ponto de o código de produção ficar conhecido como “Código Hays”, e atuando com íntima colaboração da organização moralista católica denominada Legião da Decência, a autocensura atuou de fins da década de 1920 até a década de 1960, momento no qual as novas demandas sociais tornaram o código inaplicável. De qualquer forma, entre as décadas de 1930 e 1950, configurou-se enquanto importante instrumento de defesa da indústria cinematográfica aos perigos da censura externa. Cf. LEV, Peter. “Censorship and Self-Regulation”. In: LEV, Peter. The Fifties – Transforming the Screen (1950-1959). New York: Charles Scribner's Sons & Thomson Corporation, 2003. 48 Após os primeiros anos de desenvolvimento do registro mecânico de imagens em movimento, marcado por uma série de experiências voltadas à forma de capitação e difusão das imagens, a segunda década do século XX viu nascer, nos EUA, uma linguagem cinematográfica peculiarmente próxima da literatura romântica praticada ao longo do século XIX. Essa proximidade fundamentava-se, especialmente, no uso de uma estrutura narrativa linear, na qual uma história com início, meio e fim claramente delimitados era apresentada ao público. Birth of a Nation (1915), de David Llewelyn Wark Griffith, é comumente apontada como a primeira película a exemplificar essa maneira de se fazer cinema. A linguagem cinematográfica utilizada na obra, e que viria a se consolidar enquanto a estrutura narrativa hollywoodiana, é caracterizada pelo uso de estratégias técnicas como a movimentação da câmera, até então inseparavelmente fixada em seu tripé, o que representava grande limitação ao movimento do cinegrafista, vindo a impedir uma série de aplicabilidades do instrumento; pela presença do close, buscando oferecer dramaticidade à uma determinada sequência, aumentando o suspense instigado na audiência; bem como, com o mesmo objetivo, a montagem paralela, que se constitui pela alternância de duas ou mais linhas de ação, que ocorrem em um mesmo momento, porém em locais diferentes. Essas inovações estariam indissociavelmente presentes na narrativa clássica hollywoodiana. Ver: FABE, Marilyn. “The Beginning of Film Narrative: D. W. Griffith’s The Birth of a Nation”. In: Closely Watched Films: an introduction of the art of narrative film technique. : University of Press, 2004 e BORDWELL, David. “O Cinema Clássico Hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. In: RAMOS, Fernão. (org.). Teoria Contemporânea do Cinema. Vol.II: Documentário e Narratividade Ficcional. São Paulo: Ed. SENAC, 2004. 32

entre a indústria de cinema americana e os produtores europeus. Conforme os governos de alguns países da Europa Ocidental instituem políticas de subsidio e fomento aos cinemas nacionais, os estúdios americanos e suas subsidiárias manobram para receber parte desse montante. Além disso, Hollywood passa a investir os recursos bloqueados na produção de filmes na Itália, França e, sobretudo, Inglaterra. Inicialmente, as filmagens buscavam locações mais realistas para as produções. Entretanto, filmar fora dos Estados Unidos logo passou a significar uma redução dos custos de produção devido à mão de obra mais barata dos técnicos europeus. Como resultado, no início dos anos 1960, o mercado de trabalho na indústria do cinema da Califórnia sofre uma considerável retração, o que leva os sindicatos a buscarem apoio do governo.

Interesses americanos realizaram 183 produções no exterior em 1969 a um custo estimado de 234.7 milhões de dólares, enquanto 142 foram produzidas domesticamente ao custo estimado de 228.3 milhões. (...) Dados liberados pela indústria italiana revelaram que na década concluída em 1967, companhias americanas tinham gasto uma média anual em torno de 35 milhões de dólares para adquirir e financiar produções italianas e para fazer seus próprios filmes na Itália. No Reino Unido, dados da década encerrada em 1971, incluindo esse ano, mostram que de 489 filmes produzidos ou coproduzidos na Grã-Bretanha, exibidos nos dois maiores circuitos de exibição, cerca de dois terços foram financiados parcial ou integralmente por interesses americanos.49

Mesmo redirecionando seus negócios, no início dos anos 1960 a crise que havia sido iniciada no fim da década de 1940 mostrava seus desdobramentos. Ainda segundo Guback, os ganhos líquidos mundiais dos grandes estúdios americanos haviam sido de apenas 4 por cento, no período compreendido entre 1963 e 1974, devido à pequena expansão nos Estados Unidos.50 Assim, considerando-se as transformações atravessadas pelo negócio do cinema dos grandes estúdios californianos nos vinte anos seguintes ao fim da Segunda Guerra, tanto no mercado doméstico quanto em seus principais mercados no exterior, a realidade dessa indústria em meados da década de 1960 divergia enormemente da época de sua hegemonia. Nesse momento, os outrora rentáveis estúdios haviam orientado seus negócios da produção para, principalmente, a distribuição, além de ter transferido boa parte de seus investimentos para países europeus. O tempo dos poderosos chefes de estúdio, que detinham a palavra final em quase todos os âmbitos da produção das películas, tendo diretores e atores sob seu comando, havia chegado ao fim.

49 GUBACK. Thomas H. “Hollywood’s international market”. In: BALIO, Tino. (org.). The American Film Industry. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1976. p. 401. 50 Ibid., pp. 403-4. 33

Em 1962, a Universal Studios foi adquirida pela MCA (Music Corporation of America) uma empresa do ramo do entretenimento que havia iniciado seus negócios no meio musical e que, naquele momento, expandia-se para o cinema e a televisão; em 1966, a Paramount Pictures foi comprada pela Gulf & Western Industries, gigante do petróleo, tornando-se parte da Leisure Time Group, subdivisão de entretenimento daquela; em 1967, a United Artists se tornou uma subsidiária da Transamerica Corporation, empresa do ramo financeiro, de seguros e aluguéis de automóveis. Nos anos seguintes, os estúdios restantes passariam a integrar grandes corporações de mídia. Como parte de enormes conglomerados, os estúdios respondem por não mais que pequenas porcentagens da receita total desses empreendimentos. As transformações na ordem financeira da indústria refletiram-se em uma reestruturação da forma de se pensar a produção de filmes. A partir de meados dos anos 1960, a direção dos estúdios passou para as mãos de jovens executivos, usualmente com formação voltada para os negócios, que guiavam os estúdios mais como empresas que como produtores de material cultural. Diante disso, as mudanças que causaram a crise e decretaram o fim do negócio nos moldes sobre os quais havia se estabelecido e prosperado nas décadas de 1920 a 1940 seriam abordadas sob uma nova perspectiva.

1.2 O RENASCIMENTO DE HOLLYWOOD Distante das demandas e discussões socioculturais presentes nos Estados Unidos, o cinema perdera público. Visando sanar a questão, os estúdios passaram a incentivar enredos que dialogassem com a efervescência cultural em curso nos anos 1960. Para tanto, Hollywood tornou-se aberta às características do cinema moderno europeu. No velho continente, os anos do pós-guerra trouxeram o estabelecimento de escolas cinematográficas de cunho social e político, que buscavam responder às indagações das sociedades europeias diante da profunda reorganização e dos vestígios da guerra. Dentre essas escolas destacam-se o Neorrealismo Italiano e a Nouvelle Vague Francesa. No entanto, pode- se citar o Free Cinema e o Novo Cinema Britânico, a Nouvelle Vague Tcheca, o Novo Cinema Alemão, além de outros cinemas nacionais de menor relevância. Essas escolas partilhavam a busca por uma nova forma narrativa para o cinema, próxima à realidade e distanciando-se da linguagem de cinema de estúdio, excessivamente plástica51, segundo os

51 A crítica à plasticidade dos filmes (que foi recorrente, por exemplo, nos artigos escritos por François Truffaut para a revista Cahiers Du Cinéma, nos anos 1950), refere-se ao resultado estético artificial que os filmes 34

críticos. Dessa maneira, exploravam temáticas relativas ao cotidiano dos países de origem, além de lidar com as mudanças culturais percebidas, por vezes similares a algumas das tensões presentes na sociedade dos Estados Unidos. Assim, descortina-se em Hollywood a oportunidade para novos produtores e diretores realizarem experiências no campo do fazer cinematográfico. Propondo um cinema que realizava a junção de elementos típicos do cinema clássico americano, com os traços mais definidores da identidade do cinema moderno europeu, essa leva de novos talentos fundamentou o que veio a ser chamado Nova Hollywood, ou Cinema de Arte Americano.52 Segundo Peter Biskind, em uma afirmação não despida de nostalgia, o período

foi a última vez [em] que Hollywood produziu um bloco de filmes arriscados e de alta qualidade - em vez de uma rara e solitária obra-prima -, que eram impulsionados por seus personagens e não pela trama, que desafiavam as convenções tradicionais de narrativa, que desafiavam a tirania da correção técnica, que quebravam os tabus da linguagem e do comportamento, que ousavam ter finais infelizes. Eram filmes frequentemente sem heróis, sem romance, sem – para usar o jargão esportivo, que se tornou onipresente em Hollywood – alguém “por quem torcer”. (...) Os 13 anos entre “Bonnie e Clyde”, em 1967, e “O portal do paraíso”, em 1980, marcam a última vez em que foi realmente empolgante fazer cinema em Hollywood, a última vez em que as pessoas puderam, consistentemente, ter orgulho dos filmes que faziam, a última vez em que a comunidade como um todo encorajou a excelência e a última vez em que houve uma plateia disposta a apoiá-la integralmente.53

Apesar de inovador, este impulso presente no cinema americano do período não chegou a estabelecer uma escola artística ou cinematográfica, atendo-se à proposição de novas práticas, temas, estéticas, porém sem instaurar uma ruptura concreta em relação ao modo de se pensar o cinema naquela indústria. Atentando-se para os parâmetros sugeridos por Michel Marie, uma escola cinematográfica deve possuir um corpus de doutrina crítica mínima; um programa estético que suponha uma estratégia; um manifesto publicado; um conjunto de artistas; um suporte editorial que veicule as posições do grupo; uma estratégia promocional;

produzidos nos estúdios demonstravam. O excesso de zelo pela qualidade técnica do resultado final acabava por retirar da obra a sua espontaneidade artística, além de impedir o uso do potencial social do cinema. 52 Transformações na ordem do enredo, da temática e da construção das personagens já vinham sendo propostas desde a década de 1950, sendo dois dos principais nomes os diretores Elia Kazan e Nicholas Ray. Abordando questões referentes ao cenário político dos EUA e às tensões culturais observadas, ambos trouxeram a problematização social para as telas. Dentre seus títulos, destacam-se Johnny Guitar (1954) e “Juventude Transviada” (Rebels Without a Cause) (1955), no caso de Ray, e “Uma Rua Chamada Pecado” (A Streetcar Named Desire) (1951), Viva Zapata! (1952), “Sindicato de Ladrões” (On The Waterfront) (1954) e “Vidas Amargas” (East of Eden) (1955), dirigidos por Kazan. No entanto, a indústria permaneceu, no geral, afeita aos seus parâmetros tradicionais. 53 BISKIND, Peter. Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock’n’Roll Salvou Hollywood: Easy Riders, Raging Bulls. Trad. Ana Maria Bahiana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009. pp. 15-16. 35

um líder ou teórico; e adversários, “já que toda escola se afirma contra o que a precedeu ou lhe é coexistente”54. Mesmo que não se considere necessária a presença de todos esses parâmetros para a constituição de uma escola, no caso da Nova Hollywood muitos deles não são observados. A despeito da existência de um grupo coerente de diretores, atores e técnicos, bem como da partilha de posições temáticas e estéticas, um manifesto não chegou a ser publicado, não existindo, igualmente, um efetivo corpus doutrinário. Finalmente, mesmo os profissionais mais diretamente ligados a essa empreitada não chegaram a assumir uma postura retórica de constante afirmação de um pretenso movimento em formação. Assim, parece mais acertado considerar a Nova Hollywood como um período no qual um conjunto de fatores de variadas ordens (econômicas, culturais, técnicas, estéticas) coadunou-se, permitindo a instauração de uma atmosfera criativa marcada pela inventividade e inovação, porém sem se opor radicalmente à tradição do cinema americano, tampouco à indústria. O termo Nova Hollywood gera debates e diversificadas perspectivas analíticas e interpretativas. Em linhas gerais, os autores concordam com a existência de coesão formal e temática dentre os títulos, divergindo quanto aos ciclos, quanto às implicações ideológicas e, significativamente, quanto aos níveis de ruptura e continuidade relativas ao Cinema Clássico Hollywoodiano55. No presente texto, considera-se a Nova Hollywood como tendência do cinema de arte americano. Segundo David Bordwell, o cinema de arte tem como premissas básicas o realismo e a expressividade autoral. Como características do realismo, suas personagens não possuem objetivos claramente estabelecidos, sendo levados pela sequência de acontecimentos sem que atuem diretamente sobre eles56. No que concerne à expressividade autoral, os diretores utilizam-se de “recorrentes violações da norma clássica” do fazer

54 MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa A. Ribeiro, Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus, 2011. p. 31. Marie seleciona os parâmetros pensando no caso da Nouvelle Vague enquanto escola cinematográfica, porém estes se mostram pertinentes para a consideração da Nova Hollywood ou de qualquer outro conjunto coeso de produções cinematográficas, igualmente. 55 Para uma melhor compreensão dos debates, conferir, inicialmente, o capítulo 13 – “Cinema hollywoodiano contemporâneo”, de Fernando Mascarello, no História do Cinema Mundial, organizado pelo mesmo autor. Aprofundando-se na questão, considerar The Last Great American Picture Show, de Thomas Elsaesser, principalmente seu artigo “The pathos of failure: american films in the 1970s”, e The Classical Hollywood Cinema: film style and mode of production to 1960, de autoria de D. Bordwell, J. Staiger e K. Thompson. Para a caracterização do Cinema Clássico de Hollywood, conferir esta última obra e A Certain Tendency of the Hollywood Cinema, 1930-1980, de Robert B. Ray. 56 Considerar o realismo como premissa básica do cinema de arte merece ponderação. Algumas importantes iniciativas cinematográficas estiveram ligadas a escolas artísticas não realistas como, por exemplo, o expressionismo alemão ou experiências inseridas nas vanguardas da década de 1920 (cinema surrealista, impressionista, cubista, dadaísta, dentre outros). Porém, no caso da Nova Hollywood, essa consideração é coerente ao conjunto de produções. 36

cinematográfico próprio de Hollywood, buscando esclarecer ao espectador a existência de uma série de práticas subjetivas que compõem a narrativa que ele está assistindo.57 Apesar de esteticamente e tecnicamente demarcados pela influência do cinema de arte moderno europeu da década de 1950 e dos anos iniciais da década de 1960, a particularidade mais relevante dos filmes da Nova Hollywood é a construção psicológica de seus protagonistas. Configurando-se indivíduos apenas tenuemente ligados aos seus laços familiares e comunitários, essas personagens demonstram ter pouco controle sobre a realidade que os cerca, sendo por vezes confusos, incongruentes, angustiados em sua falta de perspectivas. Nesse sentido, da construção das personagens da Nova Hollywood, dois são os ciclos de produção que se observam: o ciclo contracultural, do final dos anos 1960, e o ciclo pós-traumático, do início dos anos 70. Segundo Christian Keathley:

Enquanto que, nos anos 1960, a energia estimulante dos protestos estudantis refletiu- se no ciclo contracultural, no início dos anos 1970, o trauma sofrido pelos soldados no Vietnã, e pela nação como um todo, foi refletido no segundo ciclo de filmes cujos heróis, como os heróis do Vietnã, são manipulados, explorados, e deixados paralisados pela compreensão de sua impotência em face de um sistema corrupto. Os sentimentos desanimadores de insatisfação, alienação e desmoralização que permeiam esses filmes são, em certa perspectiva, uma repetição deslocada do intenso trauma sofrido pela geração do Vietnã.58

A Nova Hollywood é aqui observada, principalmente, porém não exclusivamente, através de sua relação com os inúmeros movimentos sociais do período. Desta forma, importa a maneira pela qual as produções integrantes desse conjunto de filmes absorveram e gestaram as tensões existentes na sociedade, dialogando com a cultura popular naquele contexto histórico. Para Alexander Horwath, as especificidades da Nova Hollywood residem em suas implicações políticas, estéticas e econômicas:

(...) politicamente, erguendo tópicos e considerações tabus (em filmes variando de “Mediun cool” a “Chinatown”); esteticamente, lutando para substituir uma norma de representação realista aparentemente transparente e natural pela auto-reflexividade (de “David Holzman’s Diary” a “The last movie”); e, finalmente, em termos econômicos, tentando se livrar do processo de produção tradicional da indústria cinematográfica através da formação de grupos e do cultivo da personalidade de autor (de John Cassavetes e da American Zoetrope de Francis Ford Coppola, ao

57 BORDWELL, David. “The art cinema as a mode of film practice,” Film Criticism Vol. IV, N. 1, 1979. 58 KEATHLEY. Christian. “Trapped in the Affection Image: Hollywood’s Post-traumatic Cycle (1970-1976)” In: ELSAESSER, T; HORWATH, A. & KING, N. The Last Great American Picture Show – New Hollywood Cinema in the 1970s. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2004. p. 296. 37

grupo da BBS, que produziu filmes como “Drive, he Said” ou “The king of Marvin gardens, pela Columbia).59

No entanto, ainda segundo o autor, esse cinema não conseguiu propor alternativas para as tensões sociais com as quais lidava:

[A Nova Hollywood] forjou alegoricamente as derrotas e recuos desse “tempo de renovação” e inconscientemente se colocou em uma posição insustentável: politicamente, por mais ou menos falhar – como a sociedade americana – em desenvolver uma alternativa para a crise (como manifestado em filmes de “Easy rider” a “All the President’s men”); esteticamente, por buscar reconciliar seus objetivos “modernistas” com as demandas de um cinema de entretenimento prontamente acessível (de “Bonnie and Clyde” a “Taxi driver”); e economicamente, por inteiramente não compreender a disposição de uma indústria fílmica – temporariamente enfraquecida por reviravoltas econômicas – em fazer concessões.60

De qualquer modo, os filmes da Nova Hollywood conseguiram expor as contradições da cultura americana de um modo ainda desconcertante décadas após esse período da produção da indústria ter se exaurido. Por fim, Horwarth afirma que esses filmes não se constituíram apenas como uma questão de enredos relacionados com a atmosfera do período, nem de uma transferência de energia do político para o cultural, mas como uma questão de mudança nos modos de percepção. Assim, sublinha que a Nova Hollywood também foi, como outras experiências culturais, absorvida pela lógica de mercado. Porém, a forma como a cultura popular registrou esse discurso, nos anos 1960 e 1970, marcaria a diferença. Diante da complexidade acima exposta na formação dessa experiência cinematográfica, a sua realidade comercial, como produto de mercado, apesar de cultural, deve ser considerada. No entanto, para além dessa perspectiva analítica, algumas questões se impõem: a temática da Nova Hollywood era um sintoma de todo o contexto de mudanças atravessado pela sociedade americana e presente no horizonte de diretores, produtores e atores, ou, por outro lado, a absorção comercial desse mesmo contexto? Qual era o grau da relação cultural/ideológica entre a audiência que sustentava essas produções e o posicionamento retórico presente nos enredos? E finalmente, os espectadores dos filmes da Nova Hollywood se furtavam a assistir a produções ainda ligadas ao formato clássico de narrativa cinematográfica ou igualmente compravam ingressos para as sessões de filmes que propagavam valores mais tradicionais da sociedade dos EUA e, em certa medida, opostos à proposta da Nova Hollywood?

59 HORWATH, A. “The Impure Cinema: New Hollywood 1967 – 1976”. In: ELSAESSER, T.; HORWATH, A. & KING N. The Last Great American Picture Show – New Hollywood Cinema in the 1970s. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2004. p. 12. 60 Ibid., pp.12-13. 38

Uma análise comprometida com as representações sociais operadas nessas obras deve evitar uma abordagem ingênua das idiossincrasias do período. Apesar da liberdade artística permitida aos realizadores, pouco usual tanto antes quanto após esse momento na história da indústria do cinema da Califórnia, os profissionais envolvidos na empreitada ainda precisavam lidar com as exigências mercadológicas dos estúdios, agora integrantes de conglomerados. Ademais, convém não supervalorizar o impacto da Nova Hollywood na sociedade dos Estados Unidos como um todo já que, provavelmente, seus enredos dialogavam com parcelas específicas da população daquela nação, iniciadas nos códigos artísticos da linguagem cinematográfica e conscientes da profundidade das implicações do contexto atravessado pelo país. Além disso, é errônea a consideração de uma ruptura no modo de produção do cinema dos Estados Unidos. Como citado anteriormente, a Nova Hollywood não propõe o completo abandono das características do Cinema Clássico de Hollywood, mas uma revisão, uma composição com as tendências do cinema moderno. De mesmo modo, quando esse período é transposto pelo surgimento de um novo modo de produção de filmes, os blockbusters, responsável pelo fim do longo período de crise do negócio do cinema, as inovações propostas pelos diretores da Nova Hollywood não são totalmente abandonadas. Suas contribuições são percebidas em alguns dos títulos produzidos nas décadas seguintes. Ainda enquanto a Nova Hollywood propunha filmes que pretendiam lidar com o cenário político e social dos EUA, em meados dos anos 1970, a indústria descobre uma nova maneira de explorar comercialmente o cinema. Adaptando técnicas de marketing anteriormente utilizadas pelo cinema denominado exploitation, os estúdios conseguiram estabelecer um modo de exploração econômica do negócio capaz de multiplicar os ganhos de uma forma aparentemente ilimitada. O termo exploitation refere-se a um cinema “B”, ou de segunda categoria, produzido por produtores independentes, de baixo orçamento e voltados para nichos específicos da audiência. Esses filmes, normalmente de baixa qualidade técnica, eram lançados acompanhados de forte campanha publicitária visando atingir lucros na primeira semana de exibição, antes que os comentários negativos por parte do próprio público comprometessem o retorno financeiro. Buscando potencializar os ganhos, a indústria experimenta estratégias de distribuição e de marketing adaptadas do cinema exploitation para seus principais projetos. Assim, longas campanhas publicitárias passaram a fazer parte do lançamento de títulos escolhidos pela sua possibilidade de aceitação perante o público. 39

Nesse sentido, e dialogando com o fato de, àquela altura, os estúdios fazerem parte de conglomerados proprietários de outras empresas de mídia, alguns projetos envolviam o lançamento anterior de discos com a trilha sonora e livros relativos à trama. Campanhas com comerciais de televisão e rádio eram lançadas semanas antes do dia de lançamento de uma grande produção, de modo a obter a saturação do mercado. Quando o dia de estreia do filme finalmente chegava, este era lançado simultaneamente em centenas de salas de exibição, em todo o território dos Estados Unidos61. Os filmes eram, dessa maneira, vendidos como atrações especiais. Segundo David Begelman, presidente da , em 1974:

Nós sentimos que deveríamos propor os filmes como eventos especiais porque ninguém mais ia ao cinema regularmente. Se ir ao cinema havia se tornado menos uma questão de hábito do que de escolha discricionária, então cada filme precisava ser vendido como um blockbuster – um grande evento que deveria ter o status de experiência única – e vendido em escala global.62

Conforme essas novas estratégias de venda e distribuição foram sendo praticadas, os lucros dos principais títulos foram aumentando exponencialmente. Se, em 1972, “O Poderoso Chefão” (The Godfather, dir.: Francis Ford Coppola) quebra os recordes de bilheteria, três anos depois “Tubarão” (Jaws, dir.: Steven Spielberg) alcança ainda maior bilheteria, apenas para ser ultrapassado, em 1977, por “Guerra nas Estrelas” (Star Wars, dir.: George Lucas), a mais lucrativa empreitada cinematográfica da década de 1970. Vendidos como um novo produto cultural, os filmes provocam uma nova forma de consumo social. Diante da prosperidade que saciou a indústria após décadas de crise, a retórica social da Nova Hollywood, que havia marcado a segunda metade da década de 1960 e a primeira da seguinte, paulatinamente deixa de interessar aos executivos dos estúdios. Quanto à sociedade americana, a efervescência cultural dos anos 1960 e o desalento causado pela crise econômica, pela derrota no Vietnã e pelo caso Watergate, nos 1970, constituíam-se como um cenário incômodo que precisava ser superado. A temática dos blockbusters, usualmente voltada para o cinema de ação, onde o protagonista heroicamente salva a nação (ou, ao menos, sua família, seu grupo), permite a recuperação dos valores tradicionais dos Estados Unidos. Para além dos filmes da Nova Hollywood, consumidos por nichos de mercado limitados, os blockbusters apelam para

61 Segundo COOK, apesar de a saturação de salas no lançamento ter sido historicamente utilizada para assegurar os lucros de títulos considerados de baixa qualidade, passou a se configurar como um modo de a indústria demarcar a importância de um filme para o público espectador em potencial. COOK, D. Lost Illusions – American Cinema in the shadown of Watergate and Vietnan 1970-1979. New York: Charles Scribner’s Sons, 2000. p. 42. 62 Ibid., p. 26. 40

audiências muito mais extensas e diversificadas. Se o cinema, como um todo, já se configurava como um fenômeno cultural, agora havia filmes específicos que, por si só, eram fenômenos culturais. No que diz respeito ao negócio, a Nova Hollywood permitira o florescimento de estúdios independentes, os quais dividiam os custos de produção com os grandes estúdios, receosos em assumir todo o risco daquele novo cinema. A mentalidade do blockbuster, opostamente, volta a fortalecer estes últimos, únicas empresas capazes de sustentar os elevados custos de produção, marketing e distribuição envolvidos nos filmes-evento. Por fim, enquanto “Tubarão” estabelece as regras gerais da nova forma de exploração, “Guerra nas Estrelas” define os parâmetros da indústria atuantes nas décadas seguintes. Primeira produção cinematográfica a se tornar uma franquia, com o épico moderno de George Lucas os produtos conexos passaram a vender o filme, ao invés do contrário. Nos anos 1990, todos os grandes estúdios iriam operar importantes divisões voltadas aos produtos de consumo relativos às suas franquias.63 As produções da Nova Hollywood e os blockbusters compõem parte relevante do corpus documental deste trabalho. Assim, as vicissitudes da indústria do cinema dos Estados Unidos, especialmente a partir do pós-guerra, tornam-se significativas para o exame dos filmes. Deste modo, a confluência de fatores político-econômicos e socioculturais que estão nas bases das transformações ocorridas no negócio do cinema, responsáveis pelo surgimento de ambos os fenômenos, sejam criativos ou empresariais, figuram como elementos importantes na compreensão de como as demandas da sociedade americana foram gestadas pelo cinema.

63 COOK, D. Lost Illusions – American Cinema in the shadown of Watergate and Vietnan 1970-1979. New York: Charles Scribner’s Sons, 2000. p. 47 e seguintes. 41

2 TRANSFORMAÇÕES SOCIOCULTURAIS

2.1 A JUVENTUDE Marcada pelo impulso ao novo, pela busca de uma sociedade mais justa e harmônica, a efervescência dos anos 1960 é comumente relacionada à juventude. Essa parcela da população havia alcançado sua afirmação cultural nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, tornando-se a cultura jovem elemento habitual no horizonte da sociedade dos Estados Unidos ao longo da década de 1950. A presença consolida-se na década seguinte, quando a juventude concretiza-se enquanto ator político portador de demandas variadas, por vezes intrínsecas às suas idiossincrasias, por outras em diálogo com as vicissitudes sociais de maior vulto. Assim, seguir os indícios das ações realizadas pelos jovens, e suas consequências no âmbito político e cultural, apresenta-se como um caminho profícuo no exame das décadas estimadas, ainda que as tensões e estímulos à mudança não sejam resultado exclusivo da dinâmica juvenil. Paralelamente à ascensão cultural dos jovens no âmbito adolescente64, porém em diálogo com esse fenômeno, o surgimento do movimento literário posteriormente conhecido como Geração Beat, nos anos 1950, veiculava alguns dos elementos culturais a serem apropriados pela juventude da década seguinte. Rejeição ao consumismo, exploração de religiões orientais e de novos modos de espiritualidade, uso de drogas e liberalidade do comportamento sexual são algumas das características do grupo. Segundo Leerom Medovoi65, a Geração Beat propunha a busca individual pela identidade, fato responsável pela identificação da juventude com o movimento. O conceito de geração, utilizado na denominação dos beats, tende a sublinhar o pertencimento de um determinado grupo de pessoas de mesma faixa etária a um conjunto de acontecimentos históricos e sociais que fundamentariam sua forma de representação da realidade. Entretanto, para Medovoi, as variáveis sociais são tão numerosas (regionais, religiosas, raciais, étnicas, de gênero, sexuais, de classe, etc.) que tornam difícil a redução do termo a uma única raiz. De qualquer forma,

(...) o trabalho ideológico de um nome geracional é precisamente fazer isso significar alguma coisa, narrar um destino comum como compartilhado por todas as pessoas demograficamente definidas naquele momento como jovens. Como outras

64 Cita-se esse recorte etário pelo fato de ter sido a adolescência o período da vida juvenil que foi mais explorado midiaticamente nos anos 1950, tanto no cinema quanto na música. 65 MEDOVOI, Leerom. Rebels – Youth and the Cold War Origins of Identity. Durham, London: Duke University Press, 2005. 42

coletividades, a geração só pode ser produzida via a homogeneização do ato de representação. Podemos dizer, então, que uma geração torna-se existente se, e apenas se, um grupo histórico suficientemente poderoso e influente reconhece a si mesmo – e começa a agir através de – uma representação geracional.66

As considerações expostas acima são aplicáveis tanto para a juventude da década de 1950 quanto para os jovens politicamente engajados e culturalmente ativos do período seguinte. Na década de 1960, a participação do jovem nos principais temas em debate e nos acontecimentos mais candentes da nação tornava-se lugar comum. O movimento pelos direitos civis, a politização da vida universitária e, nos anos finais da década, a oposição organizada à Guerra do Vietnã, foram facetas da ruidosa atuação juvenil. De acordo com Eric Foner, referindo-se aos programas das duas principais organizações políticas universitárias do período, a YAF (Young Americans for Freedom), de direita, e a SDS (Students for a Democratic Society), de esquerda, ambos os manifestos “retratavam os Estados Unidos confrontando uma crise e a juventude como a vanguarda de um novo radicalismo, e ambos afirmavam oferecer o caminho para maior liberdade.”67 A década de 1970, opostamente, mostra um recuo da presença pública da juventude. Fatores como o fim do conflito no Vietnã, que havia congregado boa parte das atividades políticas dos jovens, bem como as mudanças do cenário político interno, colaboram para tanto. Ainda assim, movimentos como o ambientalista e as organizações feministas e gays continuam a contar com o apoio dos jovens. No que se refere ao cinema, dentro das transformações empresarias e criativas características da Nova Hollywood, a juventude consiste no elemento de destaque, uma vez que tanto os principais profissionais envolvidos quanto o público alvo das produções eram eminentemente jovens. Assim, segundo a perspectiva dos executivos dos estúdios, isso significava possuir a predisposição para um cinema comprometido com a abordagem das questões caras a esse grupo. Quando o blockbuster se impõe como realidade da produção hollywoodiana, a partir de meados dos anos 1970, a importância dos jovens como principal parcela populacional a compor a audiência dos filmes apenas se intensifica. Desta maneira, as produções do final da década de 1960 e início da seguinte que abordaram a juventude normalmente enfatizaram as transformações culturais do momento, amalgamadas ao redor do que foi denominado pelo termo contracultura68. Além desses, outros filmes buscaram dialogar com os jovens sublinhando seus dilemas pessoais e o contato com a

66 MEDOVOI, Leerom. Rebels – Youth and the Cold War Origins of Identity. Durham, London: Duke University Press, 2005. p. 216. 67 FONER, Eric. The Story of American Freedom. New York: Norton, 1999. p. 312. 68 Alguns desses títulos serão considerados a seguir, na subseção referente à contracultura. 43

realidade social imediata, sem destacar diretamente os elementos arquetípicos da contracultura69. Como exemplos destes últimos, pode-se citar “Rebeldia Indomável” (Cool Hand Luke, dir.: Stuart Rosemberg – 1967), “Ensina-me a Viver” (Harold and Maude, dir.: Hal Ashby – 1971), “A Última Sessão de Cinema” (The Last Picture Show, dir.: Peter Bogdanovich – 1971), “Corrida Sem Fim” (Two-lane Blacktop, dir.: Monte Hellman – 1971) e “Terra de Ninguém” (Badlands, dir.: Terrence Malick – 1973). A seguir, examinam-se duas produções cinematográficas que veicularam representações juvenis nas décadas em questão, selecionando-se “A Primeira Noite de Um Homem” (The Graduate, dir.: Mike Nichols – 1967) e “Os Selvagens da Noite” (The Warriors, dir.: Walter Hill – 1979). Enquanto o primeiro título volta-se às dúvidas e anseios de um jovem de classe média alta da Califórnia, o segundo baseia seu enredo em uma Nova Iorque tomada por gangues de rua. Pretende-se, ao analisarem-se os títulos citados, observar os elementos formadores de duas abordagens da juventude que não se resumiram a questões culturais ou políticas, diretamente, mas direcionaram o olhar para a relação entre os jovens e seus respectivos meios sociais.

2.1.1 “A Primeira Noite de Um Homem” (1967) “A Primeira Noite de um Homem” é dirigido por Mike Nichols (1931 – 2014). Nascido na Alemanha, e de origem judia, Nichols migrou ainda na infância para os Estados Unidos, em companhia de sua família, com o início dos conflitos da Segunda Guerra Mundial. De família relativamente abastada, Nichols pôde obter educação de alto nível, chegando a estudar no prestigiado Actors Studio. Ao longo da década de 1950, desenvolve seus estudos na atuação, tornando-se ator e, posteriormente, diretor de teatro, função na qual ganha notoriedade nos anos 1960. De talento reconhecido no campo teatral, estreia como diretor de cinema com o aclamado “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?” (Who Is Afraid of Virginia Woolf? – 1966), pela Warner Bros. Após o sucesso do título, dirige “A Primeira Noite de Um Homem”.

69 Considero arquetípicos por terem comumente caracterizado o contexto cultural juvenil do período, midiaticamente. Como qualquer caracterização que erige uma construção modelar, o estereótipo de contracultura elege um conjunto de elementos que se tornam definidores, simplificando a cultura jovem e ignorando outros aspectos. Usualmente, o uso de entorpecentes, a sexualidade livre, a vida comunal, a relação de proximidade com a natureza e uma religiosidade mística são os principais elementos que compõem o arquétipo dos partícipes da contracultura. Entretanto, presumivelmente, uma parcela considerável dos jovens do período viveram intensamente as transformações culturais em curso sem terem partilhado essas características ou comportamentos. 44

Nichols continuou a dirigir peças e filmes ao longo das décadas seguintes, recebendo inúmeras premiações pelo seu trabalho. O enredo de “A Primeira Noite de Um Homem” narra as desventuras de Benjamin Braddock (Dustin Hoffman), um jovem prestes a completar 21 anos que acaba de se graduar na universidade. De família abastada residente em Pasadena, subúrbio de Los Angeles, Benjamin não tem absoluta ideia do que esperar de seu futuro, sendo absorvido pela incerteza. Apesar da insegurança pessoal, os familiares e amigos comemoram seu retorno, parabenizando-o pelo término dos estudos. Pela perspectiva deles, o rapaz está vivenciando os melhores anos de sua vida: jovem, graduado e proprietário de um carro esporte italiano que ganhara do pai (William Daniels) como presente de formatura, Ben tem todos os motivos para fazer muito sucesso com o sexo oposto e deve se aproveitar disso, segundo um dos convidados. Na festa, o desconforto de Benjamin é visível. Após propor ao pai ficar em seu quarto abrigado dos convidados, desce as escadas, porém apenas para se esquivar de todas as tentativas de interação social. A apresentação de suas realizações acadêmicas, entusiasticamente proferidas pela mãe, leva-o a retirar-se mais uma vez para o quarto. Lá, é surpreendido pela entrada da Sra. Robinson (Anne Bancroft), esposa do sócio de seu pai que, desacompanhada do marido, pede a Benjamin que a leve para casa. Uma vez em casa, a Sra. Robinson solicita a Benjamin que a acompanhe, sob o pretexto de temer entrar em casa no escuro. Benjamin relutantemente aceita. Ao longo da cena, ela se aproveita do constrangimento do rapaz e tenta seduzi-lo. Oferece-lhe bebida e, dizendo que vai mostrar-lhe a foto de sua filha Elaine (Katharine Ross), antiga colega de escola de Benjamin, leva-o ao quarto da jovem. Após algumas evasivas do protagonista, a Sra. Robinson consegue trancar a porta do quarto. Já totalmente nua, oferece-se a Ben, dizendo que ele pode procurá-la quando quiser. Neste momento, o Sr. Robinson (Murray Hamilton) chega, porém não suspeita da nada. Benjamin conversa com ele por alguns minutos e, assustado, vai embora. Dias depois, Benjamin decide aceitar as investidas, marcando um encontro em um hotel. Inicia-se, assim, um caso entre os dois. O jovem, que antes se mostrava ansioso quanto ao seu futuro, torna-se tranquilo, passando os dias de verão na piscina da casa dos pais e as noites em encontros furtivos com sua, agora, amante. Apesar de aparentemente agradar a Benjamin, os encontros são exclusivamente sexuais, com sua parceira evitando qualquer outro tipo de interação. Em um dado momento, Benjamin força uma conversa, descobrindo que a Sra. Robinson não vive maritalmente com seu marido, dormindo em quarto separado. Além 45

disso, abandonou seus estudos universitários depois que engravidou de sua filha e teve de se casar. Quando Benjamin comenta sobre Elaine, sua amante o agride e o faz prometer que jamais irá se encontrar com a moça. Entretanto, Elaine volta de seus estudos em Berkeley, e o Sr. Robinson encoraja um encontro entre os jovens. Os pais de Benjamin insistem, igualmente, para que Ben a convide para sair. Benjamin, considerando inconveniente sair com a filha de sua amante, reluta. Porém acaba tendo que ceder à pressão dos pais. Assim, procura fazer com que o encontro seja extremamente desagradável à jovem, com o objetivo de levá-la a não mais sair com ele. Dirige perigosamente, caminha rapidamente pelas ruas, deixando-a para trás, e acaba por levá-la a uma boate de strip tease. Sentindo-se humilhada, Elaine começa a chorar silenciosamente, o que faz Benjamin mudar de atitude, se desculpar e explicar que se sentiu forçado a sair com ela. Eles se beijam e vão a uma lanchonete. Benjamin começa a gostar da companhia da moça, confessando-lhe suas angústias com relação ao futuro. Desta forma, e apesar da proibição da Sra. Robinson, inicia-se uma aproximação afetiva entre os dois. No dia seguinte, chegando a casa dos Robinsons para um novo encontro com Elaine, Benjamin é abordado pela mãe da jovem, que ameaça contar de seu envolvimento com ele, caso saia novamente com a filha. Desesperado, Ben decide contar primeiro toda a verdade. Diante da revelação, Elaine expulsa Ben de casa, retornando para Berkeley dias depois, sem voltar a encontrá-lo. Ficar com Elaine torna-se o objetivo de Ben, que se muda para Berkeley para poder se reaproximar de sua amada e convencê-la a aceitá-lo de volta. Entretanto, após abordá-la, descobre que Elaine está saindo com um colega de faculdade, Carl. No dia seguinte, Elaine vai ao quarto onde Ben mora e o questiona sobre o motivo de estar em Berkeley depois de ter estuprado sua mãe enquanto estava bêbada. Atônito, Benjamin conta a Elaine que foi sua mãe que o seduziu. Apesar de preferir não acreditar na versão do rapaz, Elaine volta ao seu quarto na noite seguinte e o beija. Eles iniciam uma espécie de namoro, enquanto Benjamin tenta insistentemente convencê-la a se casar com ele. Relutante, ela o informa que havia prometido se casar com Carl. Enquanto isso, o Sr. Robinson descobre do caso de Ben e sua esposa, vai ao encontro dele, ameaça processá-lo e força Elaine a sair da faculdade para se casar com Carl. Benjamin recebe um bilhete dela, informando que o ama, mas que não pode se casar com ele. Diante deste fato, Benjamin volta a Pasadena na esperança de encontrar Elaine na casa dos pais. No imóvel, depara-se com a Sra. Robinson que, enquanto chama a polícia, ironicamente o informa ser impossível conseguir impedir o casamento. Ben foge e volta para Berkeley a fim 46

de descobrir o paradeiro de Carl. Na fraternidade da qual o estudante faz parte, descobre que o casamento será naquela mesma manhã, em Santa Barbara. Benjamin parte velozmente para aquela cidade a fim de impedir o matrimônio. O combustível de seu carro, porém, acaba a uns poucos quarteirões da igreja, fazendo com que Benjamin tenha que correr para alcançar seu intento. Quando finalmente consegue chegar, os noivos estão prestes a se beijar. Pensando ser tarde demais, Benjamin bate vigorosamente nos vidros do salão da igreja, gritando “Elaine!” repetidas vezes, chamando a atenção de todos e impedindo o beijo. Elaine hesita por um instante, mas termina por corresponder ao chamado, gritando “Ben!”. Surpresos, todos tentam impedir a aproximação dos dois, com a Sra. Robinson dizendo à filha ser tarde demais, para o que ela responde não ser. Ben afasta os agressores usando uma cruz que retirou da parede como arma de defesa. A mesma cruz serve para trancar a porta da igreja por fora, permitindo que o casal fuja. Elaine e Benjamin conseguem embarcar em um providencial ônibus que passava, sentando-se no banco de trás. Após um breve momento de comemoração pela vitória alcançada, Elaine olha afetuosamente para Ben, porém o sorriso dele havia se transformado em uma enigmática expressão neutra. A mesma expressão toma o semblante da jovem, enquanto o ônibus os guia para um futuro em aberto. Desde os primeiros minutos de projeção, fica evidente ao espectador o distanciamento existente entre Benjamin e o mundo à sua volta. Para sublinhar essa patente sensação de isolamento, que logo se desdobra em um sentimento de estranhamento quando o protagonista precisa interagir com o círculo social que cerca seus pais, Mike Nichols recorre a tomadas que veiculam o personagem em meio a pessoas que não possuem um laço realmente próximo com ele. As interações entre Benjamin e os amigos de seus pais são confusas, verborrágicas, marcadas por diálogos nos quais as falas dos indivíduos parecem não se complementar, chegando mesmo a ocorrer a sobreposição das conversações, já que todos falam a todo o tempo, de maneira descontrolada. Benjamin, por sua vez, se omite da interação com o mundo através da economia que faz do uso das palavras. Logo na cena de abertura, quando acompanhamos os minutos finais de seu voo e, em seguida, sua passagem pelo aeroporto, a música extra-diegética “The Sound of Silence”, de Simon & Garfunkel, mergulha o espectador no contexto cultural de produção da película, enquanto aprofunda o isolamento reflexivo do personagem. A expressão presente na face de Benjamin é significativa do ânimo que o move. Pensativo, dá a impressão de estar em um estado de quase dormência, absorto nos problemas que acredita enfrentar, representados pela 47

incerteza quanto ao futuro que o cerca. A música, de estilo folk rock, colabora para direcionar o espectador à circunstância na qual Ben se encontra:

Hello darkness, my old friend I've come to talk with you again Because a vision softly creeping Left its seeds while I was sleeping And the vision that was planted in my brain Still remains within the sound of silence

In restless dreams I walked alone Narrow streets of cobblestone 'Neath the halo of a street lamp I turned my collar to the cold and damp

When my eyes were stabbed By the flash of a neon light That split the night And touched the sound of silence

And in the naked light I saw Ten thousand people, maybe more People talking without speaking People hearing without listening

People writing songs That voices never share And no one dare Disturb the sound of silence

Fools, said I, you do not know Silence like a cancer grows Hear my words that I might teach you Take my arms that I might reach to you But my words like silent raindrops fell And echoed in the wells of silence

And the people bowed and prayed To the neon God they made And the sign flashed out it's warning And the words that it was forming

And the sign said: The words of the prophets Are written on the subway walls And tenement halls And whispered in the sound of silence70

“The Sound of Silence” é utilizada em outra cena, após pouco mais de 30 minutos de projeção. Nesta sequência do filme, de duração de cerca de 6 minutos, Nichols nos apresenta o estado de espírito de Benjamin durante o período no qual mantém o caso com Sra. Robinson. Deliberadamente desrespeitando as convenções cinematográficas clássicas de tempo e espaço, a cena se inicia tendo o jovem imóvel sobre um colchão inflável que flutua

70 SIMON, Paul. The Sound of Silence. Intérpretes: Paul Simon e Art Garfunkel. In: SIMON, Paul; GARFUNKEL, Art. Sounds of Silence. Nova Iorque: Columbia Studios, 1966. A tradução da letra encontra-se no anexo nº 01. 48

na piscina de seus pais. Partindo deste núcleo, o diretor opera uma forma de montagem que traz à tela os encontros entre os amantes, momentos antes ou depois de se relacionarem, através da sobreposição de quartos impessoais de hotel. Confundindo a orientação espacial do espectador, Benjamin abre uma porta na casa de seus pais e adentra o quarto de hotel onde Sra. Robinson o espera, já parcialmente despida. Logo após, fecha a porta da sala de jantar onde seus pais se encontram à mesa, com o cômodo no qual se situa revelando ser mais um quarto de hotel. Assim como a noção de espaço é subvertida pela montagem, não fica claro por quanto tempo se manteve o caso entre o casal em questão. Dias, semanas, o tempo não parece ter influência sobre Benjamin, que se mantém em estado letárgico, distante da realidade. A relação não ultrapassa o contato físico, sendo Benjamin “consumido” por sua amante, que espera dele satisfação sexual e nada mais. Concluindo a sequência de montagem, Benjamin ainda se encontra na cama, deitado sobre sua amante, quando ouve a voz do pai, que faz com que retornemos à piscina. Fotografado em contra-plongée e tendo o sol por detrás de si, o que ofusca a visão de Benjamin (e através deste, a do espectador), seu pai é representado como uma figura divina, que questiona a falta de objetivos de Ben. Após o pai interpelá-lo quanto ao rumo que deve tomar na vida, sua mãe e o casal Robinson aproximam-se, ocupando a mesma posição divinificada. O recurso da alienação através da água, mais especificamente, do silêncio ao qual o indivíduo se submete quando submerso, é explorado em mais duas oportunidades. Primeiramente, após os créditos na cena de abertura, procede-se um corte, com a próxima tomada fotografando o rosto de Ben, em primeiro plano, com um aquário por detrás de sua cabeça. Neste, vê-se peixes, bolhas d’água e um pequeno mergulhador praticando pesca submarina. A fala de Benjamin, propondo ao pai permanecer em seu quarto, demonstra a busca do jovem por reclusão, sendo o quarto seu aquário. Questionado pelo pai, diante da angústia que demonstra, e sem esclarecer exatamente o que espera da vida, Benjamin apenas diz que deseja um futuro diferente. 49

Fotograma 1- Benjamin pensativo em seu quarto (03min.13seg.). O ângulo de tomada sobrepõe o personagem ao aquário atrás dele, com este objeto ocupando todo o campo visual. O pequeno mergulhador que pratica pesca submarina mira contra a cabeça de Ben. Alusão ao estado de espírito do rapaz. Em um segundo momento, durante a pequena reunião em comemoração ao seu aniversário, Benjamin contrariadamente traja uma roupa completa de mergulho, presente de seu pai, que o faz mergulhar na piscina portando um arpão pronto para a prática de pesca submarina (assemelhando-se ao personagem de seu aquário). A máscara, que limita tanto o campo visual quanto auditivo, inviabiliza qualquer interação com seus pais e convidados. Ao tentar sair da piscina, seus pais o empurram novamente para a água. Desta forma, Benjamin permanece isolado no fundo, sem ver ou ouvir ninguém. Sua vestimenta e arpão sublinham tanto a inadequação da situação quanto seu profundo isolamento, uma vez que apesar de voltar a morar na mesma casa que seus pais, e do esforço destes por se manterem próximos, não existe uma relação de cumplicidade. O filme de Nichols não realiza uma caracterização aprofundada de todas as personagens, questão exemplificada pelo fato de não serem informados os primeiros nomes nem dos pais de Benjamin, tampouco dos de Elaine. Este procedimento destaca o distanciamento entre as gerações. Assim, além do protagonista, apenas a Sra. Robinson merece maior atenção do enredo. Mulher de meia idade, e ainda atraente, a Sra. Robinson surge em sua primeira tomada sentada em uma cadeira, no plano de fundo, observando Benjamin enquanto se esquiva dos convidados de sua festa de boas-vindas. Sem contar com a companhia do marido, aparenta ser triste e solitária, possuindo uma espécie de dignidade patética, decadente. Apesar de refinada, mantêm-se distante dos demais convidados. Em sua estratégia de aproximação do atrapalhado e confuso Benjamin, demonstra segurança e controle, porém a insistência e exposição física da investida permite concluirmos sua necessidade de atenção. 50

Fotograma 2 - Benjamin em trajes de pesca submarina, no fundo da piscina de seus pais (24min.36seg.). No silêncio e na solidão, isolado de todos, seus problemas parecem gerar ainda mais angústia. Quando Benjamin decide aceitar a proposta e a convida para um encontro, a Sra. Robinson mantém-se no controle da situação, o que é facilitado pelos inúmeros equívocos e gafes cometidas por Ben. Entretanto, apesar de seu estado de solidão e de ansiar pela aproximação com o rapaz, seus objetivos são exclusivamente sexuais, não envolvendo qualquer tipo de afeto. A Sra. Robinson prefere mesmo evitar o desenvolvimento de um laço mais sério, prevenindo-se inclusive de conversar com Benjamin. Sua demanda por controle torna-se clara na cena em que agride o amante por ter comentado sobre sua filha, ordenando-lhe a prometer que não se encontraria com a moça. Após o encontro acontecer, tenta frustrar a aproximação do casal, ameaçando contar sobre o caso que mantiveram. Quando, diante da ameaça, Ben toma a iniciativa e confessa o caso à Elaine, Sra. Robinson assume posição de vitimização, com a câmera enquadrando-a, em plano de fundo, acuada contra a parede em um canto da casa onde mora. O surgimento de Elaine torna-se o fato que traz novo objetivo à vida de Benjamin. Apesar de, inicialmente, evitar um encontro e de tentar arruiná-lo quando este acontece, Ben descobre na jovem a pessoa com quem pode dividir seus anseios e dúvidas quanto ao futuro. Desta maneira, rapidamente surge um laço afetivo entre os dois. Se, no início da narrativa, Ben intenta se refugiar da realidade e encontra apoio no caso que sustenta com a Sra. Robinson, é Elaine quem o faz voltar a se interessar pelas possibilidades que a vida pode lhe oferecer. 51

Fotograma 3 – A Sra. Robinson acuada contra a parede de sua casa, momentos após Elaine descobrir o seu caso com Benjamin (01h.10min.28seg.). A tomada, tendo Sra. Robinson em plano de fundo e Benjamin em primeiríssimo plano, cria uma profundidade de campo que salienta a redução daquela diante do rapaz. O figurino escuro em contraposição à parede clara colabora, ainda, para a reprovação moral da personagem, já sublinhada pela redução. Assim, existe marcada diferença entre a postura do protagonista na primeira e na segunda metade da projeção, quando tem de lutar pelo amor da jovem. Agora que Benjamin já sabe qual futuro deseja para si, informando aos pais que vai se casar com Elaine, ainda que ela não saiba disso, sente-se livre para perseguir seu intento, mesmo que para tanto precise desrespeitar uma série de convenções sociais, atitude improvável de ser seguida pelo Ben do início da narrativa. Neste sentido, “A Primeira Noite de Um Homem” constitui uma alegoria da juventude de meados da década de 1960. Apesar de inicialmente constrangida entre os valores da geração de seus pais e as responsabilidades da vida adulta, a juventude decide questionar esses mesmos valores, demonstrando a incongruência com o futuro, a vida e a sociedade que vislumbra. Neste esteio, princípios tradicionalmente aceitos pela sociedade dos Estados Unidos, como a família, o matrimônio e a religião, são desconstruídos pelo filme. Expressivamente, logo nos créditos iniciais, lê-se “use outra porta” por onde Benjamin sai do saguão do aeroporto. Desde o início a instituição familiar e a do casamento são relativizadas pela película de Nichols, uma vez que, se por um lado, os pais de Benjamin materializam uma relação marital feliz, os Robinsons mantêm um casamento de fachada. A Sra. Robinson salienta ter se casado com um homem que não amava por falta de escolha, já que havia engravidado. 52

Fotograma 4 - Benjamin saindo do saguão do aeroporto, no final da cena dos créditos iniciais (03min.06seg.). Na porta a frase “Use other door” (use outra porta) alude à necessidade do rapaz de buscar outro caminho para a sua vida. No plano de fundo é possível perceber setas que apontam em direções diferentes, mesmo opostas, uma vermelha para a esquerda, outra igualmente vermelha para cima e, por último, uma preta para a direita. Apesar do rapaz ainda não saber, seu futuro está em aberto, cabendo-lhe escolher o caminho que desejar. Quanto à importância dos preceitos religiosos para a felicidade dos jovens, é desconstruída na cena final. A despeito de já ter sido pronunciado o “sim” característico da união do casal perante Deus, isso não se torna impedimento para que Benjamin e Elaine enfrentem a todos para conseguirem ficar juntos. O uso da cruz, símbolo maior do cristianismo, como arma de defesa e obstáculo que fecha a porta da igreja mantendo todos os que defendiam o matrimônio em realização dentro do templo e permitindo a fuga do novo casal, explicita a inutilidade da instituição cristã, bem como do matrimônio realizado sob sua égide. Por fim, a incerteza quanto ao futuro, que retorna tão logo o objetivo de Ben é alcançado, sublinha todas as possibilidades em jogo no período, momento no qual os rumos da nação pareciam igualmente incertos.

2.1.2 “Os Selvagens da Noite” (1979) Walter Hill dirige a película que traz às telas a Nova Iorque de um futuro próximo, onde gangues juvenis defendem o controle de seus territórios. Nascido na Califórnia, em 1942, Hill estudou artes na Universidad de Las Americas, na Cidade do México e se graduou em História, pela Michigan State University. Seu primeiro trabalho no cinema foi como pesquisador para documentários históricos. A partir do fim dos anos 1960, trabalha como assistente de direção em séries de televisão e em alguns filmes, escrevendo seus próprios roteiros, paralelamente. 53

Dirige seu primeiro filme, “Lutador de Rua” (Hard Times), em 1975, sendo “Os Selvagens da Noite” a terceira produção a dirigir. Atua, ainda, como produtor desde meados da década de 1970, tendo produzido sucessos de bilheteria, como os filmes da franquia “Alien”. Foi, ainda, indicado à Palma de Ouro por “Cavalgada dos Proscritos” (The Long Riders – 1980). O enredo de “Os Selvagens da Noite” inicia-se ao anoitecer, com a preparação dos Warriors, uma gangue de Coney Island, rumo ao Van Cortlandt Park, no Bronx. Segundo o líder Cleon (Dorsey Wright), Cyrus (Roger Hill), chefe da gangue mais poderosa da cidade, os Gramercy Riffs, conclamou os cem principais grupos de Nova Iorque a enviar nove de seus membros cada, desarmados, para uma reunião. Cleon informa que todos referem-se a Cyrus como “o primeiro e único” e que os Warriors devem verificar isso com os próprios olhos. Chegando ao conclave, os Warriors colocam-se em meio à multidão de delinquentes oriundos dos mais variados bairros da cidade para ouvir o que Cyrus tem a dizer. Enquanto isso, a polícia cerca silenciosamente o lugar. Surgindo no centro da multidão, o líder dos Riffs inicia um discurso carismático onde instiga os ouvintes a abandonarem as rixas e formarem uma única gangue, sob seu comando. Segundo ele, assim seria possível formar um exército de 60.000 homens, enquanto a força policial de Nova Iorque não contaria com mais do que 20.000. Em superioridade numérica, a gangue formada tomaria o controle total da cidade. Enquanto é ovacionado pelos presentes, Cyrus é mortalmente baleado. O autor do disparo, Luther (David Patrick Kelley), é o psicótico líder dos Rogues. Após um momento de espanto, inicia-se uma confusão com todos os presentes tentando fugir. Entretanto, Fox (Thomas G. Waites), um dos Warriors, testemunha o assassinato. Ao perceber o fato, Luther mira seu revólver contra Fox, mas é cegado pelos faróis dos policiais antes de poder disparar. Os Warriors conseguem escapar do cerco, porém Cleon é falsamente acusado por Luther e por outro Rogue de ter atirado contra Cyrus, o que leva ao seu espancamento e provável morte por um grupo de Riffs. Agora sob o comando de Swan (Michael Beck), os Warriors precisam chegar ao metrô para assim voltarem para casa, no outro lado da cidade. Porém, o novo líder dos Riffs, Massai (Edward Sewer), ordena a todos os integrantes de gangues para caçarem os Warriors e, se possível, trazê-los vivos, por acreditar serem eles os responsáveis pela morte de Cyrus. Sem saber da acusação, os rapazes de Coney Island enfrentarão a violência dos outros delinquentes enquanto tentam desesperadamente encontrar o caminho de volta. 54

Simultaneamente, Luther inicia sua busca pessoal, objetivando matá-los como meio de manter o sigilo sobre seu ato homicida. Após escaparem de um grupo de skinheads e embarcarem no metrô, os Warriors precisam descer devido a um incêndio propagado nos trilhos. Forçados a seguir a pé, atravessam a área dos Orphans, gangue de menor importância que não havia sido convidada para a reunião. Apesar de negociar sua passagem com o líder dos Orphans (Paul Greco), Mercy (Deborah Van Valkenburgh), namorada deste, critica a falta de postura adotada, o que provoca uma disputa entre as gangues. Os Warriors conseguem escapar da situação, sendo acompanhados por Mercy. De volta ao metrô, os jovens são perseguidos por um policial, o que separa o grupo. Fox entra em luta corporal com o agente, terminando por ser lançado nos trilhos momentos antes da passagem de um trem. Sua morte não é presenciada por nenhum dos seus companheiros. Divididos em dois grupos, Vermin (Terry Michos), Cochise (David Harris), e Rembrandt (Marcelino Sanchez) conseguem pegar um trem para a estação Union Square, ponto de encontro anteriormente combinado. Chegando lá, encontram as Lizzies, gangue de mulheres que propõem companhia aos rapazes. Acreditando conseguir sexo fácil, aceitam a aproximação apenas para descobrirem tratar-se de uma armadilha. Afirmando serem eles os assassinos de Cyrus, as garotas tentam matá-los a tiros, com os rapazes conseguindo escapar por pouco. Apesar do perigo, o episódio os informa do que estão sendo acusados e que estão sendo caçados por todos. Enquanto isso, Swan, Ajax (James Remar), Snow (Brian Tyler), and Cowboy (Tom Mckitterick), haviam escapado da estação para a rua, defrontando-se com os Baseball Furies, mais uma gangue que pretende acabar com eles. Vestindo uniformes de jogadores de baseball e manuseando bastões, o grupo inicia uma perseguição aos Warriors, que conseguem debelá- los, armando-se com seus bastões. Após a vitória, Ajax acaba preso por uma policial disfarçada, a qual o engana em um parque. Swan segue sozinho de volta à estação, onde reencontra Mercy. Chegando à Union Square, os Warriors remanescentes se reorganizam, tendo mais uma batalha com outra gangue que tenta detê-los. Desta vez, Mercy apoia os rapazes de Coney Island, integrando-se ao grupo. Enquanto isso, Massai, líder dos Riffs, descobre a verdade sobre o assassinato. Amanhece e os Warriors finalmente chegam a seu território. Entretanto, Luther e seus comparsas já os aguardam. Na praia, Luther tenta atirar em Swan, sendo desarmado por 55

ele. Subitamente, os Riffs surgem em grande número. Massai informa a Swan que já sabe a verdade sobre a morte de Cyrus, parabeniza os Warriors pela valentia e deixa-os ir. Luther, por sua vez, encontra o fim nas mãos da gangue mais poderosa da cidade. Quanto aos Warriors restantes, caminham pela praia, com Mercy e Swan de mãos dadas. Apesar do alívio de estarem em casa após tantos perigos, os jovens sabem que continuam no mesmo lugar de onde saíram, no limite da cidade de Nova Iorque, cercados pela pobreza, sem qualquer perspectiva. O enredo de “Os Selvagens da Noite” é localizado em um futuro próximo, porém não especificado. Sua história é centrada nas gangues juvenis da cidade de Nova Iorque, tendo como protagonista uma dessas gangues, os Warriors. Assim, a representação da juventude operada no filme é referente a uma parcela específica de jovens, integrantes de grupos delinquentes, dedicados à realização de atos criminosos, envolvendo variados graus de violência. Ao recortar a trama para a realidade das gangues, o diretor constrói uma caracterização sombria do futuro da cidade de Nova Iorque. Ao longo da projeção, nada se vê da afluência ou das imagens icônicas que comumente representaram Manhattan nas telas de cinema71. Inexistem, de mesmo modo, personagens exteriores ao mundo das gangues. Assim, o posicionamento retórico da narrativa coaduna-se com as críticas existentes no momento de produção do filme, o final da década de 1970. Nesses anos, a maior região metropolitana dos Estados Unidos era lembrada pela violência e desordem urbana, enquanto a juventude politizada da década anterior dava lugar, na mídia, aos jovens pobres dos guetos urbanos, comumente relacionados nos jornais à criminalidade. Condizendo com essa representação, o enredo desenrola-se quase que exclusivamente à noite, o que confere uma atmosfera de suspense e insegurança para a narrativa. Essa economia de iluminação permite ao diretor utilizar-se de focos de luz e cores vivas, para sublinhar os perigos que aguardam os Warriors em seu caminho de volta a casa. O metrô internamente iluminado, que serpenteia os trilhos envolto em escuridão, constitui-se como a salvação, única saída do território hostil no qual toda a cidade de Nova Iorque se transformou para o grupo.

71 Na década de 1970, alguns títulos cujos enredos se desenrolam em Nova Iorque constroem uma representação negativa da cidade destacando a violência, os altos índices de criminalidade de rua, a sujeira e, desse modo, a decadência social e urbana. “Taxi Driver – Motorista de Taxi” (Taxi Driver, dir.: Martin Scorsese – 1976) e “Desejo de Matar” (Death Wish, dir.: Michael Winner – 1974) podem ser apontados como exemplos dessa perspectiva. 56

Fotograma 5 - O metrô como a salvação na escuridão (02min.03seg.).

Desta maneira, o espectador é convidado a desenvolver um sentimento de empatia para com esta gangue em particular. Tirando o fato de possuir um código moral diferenciado e determinação para alcançar seu objetivo de voltar para casa, os Warriors não se distanciam das outras gangues. Como a capacidade para vencer as lutas comprova, os rapazes de Coney Island são tão propensos à violência quanto os demais. Igualmente, a tendência a praticar estupros, demonstrada por Ajax, sublinha a conduta reprovável do grupo. O motivo que faz com que os Warriors atravessem toda Nova Iorque, deixando a segurança da vizinhança que dominam para ir até o limite norte do Bronx, é o conclave marcado por Cyrus. Líder da gangue mais poderosa da cidade, Cyrus parece exercer sobre os outros marginais a influência de um líder messiânico. Seu poder sobre a horda de delinquentes nova-iorquinos torna possível para ele conclamar uma reunião com representantes das cem gangues mais importantes da cidade, exigir que os grupos dirijam-se ao Van Cortlandt Park desarmados e determinar uma trégua, sendo prontamente atendido. A afirmação de Cleon sobre Cyrus, para todos “o primeiro e único”, demonstra a reverência oferecida. Mesmo sua vestimenta, uma túnica, investe a aura de um líder religioso, o provável sacerdote supremo de uma “religião” partilhada pelos delinquentes. A posição na qual surge para falar aos seus seguidores, no alto e no centro, reforça sua superioridade. 57

Fotograma 6 - Cyrus diante da multidão. Como um líder religioso, a notícia de que Cyrus tem algo a dizer incita os delinquentes a irem à reunião marcada. Exercendo tamanha posição de domínio, Cyrus decide atuar politicamente. Seu discurso carismático pretende convencer os presentes de que a união de todas as gangues em torno de sua liderança pode possibilitar o domínio total de Nova Iorque pelos marginais. Segundo ele:

Cyrus: - Vocês sabem contar, otários? - Eu digo que o futuro é nosso, se vocês souberem contar. Voz na multidão: - Vamos, Cyrus, estamos com você! Vai em frente, mano! Cyrus: - Agora, vejam o que temos aqui. Temos os Sarracenos sentados ao lado dos Jones Street Boys. Temos os Moon Runners, junto dos Van Cortlandt Rangers. Ninguém está matando ninguém. Isso é um milagre. E milagres “é” o modo como as coisas devem ser. Voz na multidão: - Eu ouvi! Cyrus: - Entre vocês, há nove delegados de cem gangues. E há mais outras cem. São vinte mil membros ativos. Quarenta mil, contando os aliados. E mais vinte mil desorganizados, mas prontos para a luta. Sessenta mil soldados. Na cidade toda não tem mais do que vinte mil tiras. Vocês estão me entendendo? Vocês estão me entendendo? Vocês estão me en-ten-den-do? Multidão: - SIM! Cyrus: - Agora, vamos ao que interessa. Uma gangue poderia dominar a cidade. Uma gangue! Nada se moveria sem a nossa permissão. Cobraríamos taxas do crime organizado e da polícia. Porque as ruas são nossas, otários. Vocês estão me entendendo? Multidão: - SIM! Cyrus: - O problema, antigamente, eram os tiras nos jogando uns contra os outros. Não conseguíamos ver a verdade porque lutávamos por três metros quadrados de chão. Nosso pedaço, nossa pequena parte de território. Isso é lixo, mano. O território é nosso por direito, porque essa é a nossa vez. Tudo o que temos a fazer é manter a trégua geral. Tomaremos um bairro por vez. Manteremos nosso território. Manteremos nosso pedaço, porque, agora, tudo é nosso território.72

72 O referido discurso inicia-se em 08min.59seg. e se encerra em 12min.46seg. 58

O discurso de Cyrus é imediatamente seguido por uma enorme ovação, o que confirma o sucesso de sua proposta. Entretanto, em meio aos aplausos e gritos, a câmera capta o revólver passando pelas mãos dos Rogues, até ser empunhado e disparado por Luther. O motivo do homicídio não é claro no enredo. Apesar de Luther afirmar a Swan, na cena final, que matou Cyrus apenas porque desejou fazê-lo, o fato de o revólver passar pelas mãos dos seus comparsas implica a participação de todos. Os Rogues talvez tenham discordado da oferta de Cyrus. A fala do líder dos Riffs ecoa a retórica dos movimentos da década de 1960, na mesma medida em que os subverte. Seu argumento assenta-se em dois dos elementos utilizados pelos ativistas do início da citada década: a união e a paz. Cyrus propõe aos representantes das gangues que se unam e que convivam em paz para atingirem seus propósitos. O fato de esse propósito ser criminoso não inviabiliza o uso desses elementos retóricos como premissa de sua reflexão. Opostamente, a formação de uma única e poderosa gangue, capaz de controlar toda a cidade, sobrepondo-se tanto à força institucionalizada do Estado, a polícia, quanto ao crime organizado tradicional, as máfias, cria uma dicotomia na sociedade. De um lado, haveria os membros da gangue, do outro, todo o restante do corpo social. Assim, a exposição de Cyrus retoma a posição separatista melhor representada pelo nacionalismo negro. Além disso, sua frase “- O território é nosso por direito, porque essa é a nossa vez”, veicula a noção de poder negro, característica dos anos anteriores. A rebelião das gangues é moralmente justificada pela consideração de que algo que os pertence não é por eles usufruído. Desse modo, a única gangue a se formar estaria em união, harmonia e paz, internamente, porém em flagrante oposição a todo o restante da sociedade. Como as gangues são oriundas dos mais distintos territórios da cidade, o grupo que ouve atentamente os dizeres de Cyrus é marcado pela heterogeneidade. Nesse grande grupo encontram-se, lado a lado, indivíduos de diferentes origens étnicas, já que os laços de fraternidade constituintes das gangues são costumeiramente estabelecidos através do reconhecimento de origens familiares, étnicas e culturais comuns. Assim, os grupos representam não apenas territórios diferentes, mas agrupamentos sociais igualmente distintos. Nesse sentido, os Warriors tornam-se exceção, já que seus integrantes são brancos, negros e latinos. Diante disso, o aspecto que os aproxima é a localização de todos na base da pirâmide social dos Estados Unidos. É nesse ponto que a fala de Cyrus se estabelece. 59

Fotograma 7 - A heterogeneidade étnica dos integrantes das gangues (11min.20seg.). Apesar de as gangues, com a exceção dos Warriors, serem formadas dentro de uma determinada origem étnica, a reunião das diversas gangues dá mostra da diversidade da população pobre de Nova Iorque. Em “Os Selvagens da Noite”, as gangues são formadas por jovens excluídos da afluência e do consumo. São marginais na medida em que não se reconhecem como parte integrante da sociedade. Nessa circunstância, Cyrus encontra seu lugar de fala. E por compartilhar dessa condição, o líder dos Riffs possui autoridade e legitimidade para exprimir seu discurso. Por serem excluídos, esses jovens das periferias da cidade de Nova Iorque se reúnem em grupos criminosos73. E, exatamente por isso, a proposta de Cyrus figura como a única perspectiva de mudança em suas vidas. Daí a efusiva resposta da multidão, que rompe em reação apaixonada a cada momento em que a frase “Vocês estão me entendendo?”74 é proferida. Desta maneira, se a intenção de Cyrus conseguisse se concretizar, as gangues reunidas em torno de sua figura realizariam o que os variados movimentos sociais e políticos da juventude da década de 1960 foram incapazes de alcançar plenamente. Unidos, aqueles jovens retomariam o que acreditam lhes pertencer por direito e que tinha sido historicamente negado pelo Estado e pela estrutura social dos Estados Unidos. No entanto, como as principais figuras que buscaram a união e a mudança, Cyrus acaba sendo assassinado, alvejado por um disparo.

73 Os Furies constituem-se como a exceção, pois são de Manhattan. 74 No idioma original: “- Can you dig it?”. 60

Fotograma 8 - Cyrus é baleado diante do público (13min.44seg.). A morte explícita do líder no momento em que recebe o apoio da multidão de delinquentes demarca uma ruptura. O plano interrompido através da morte remete aos assassinatos políticos dos irmãos Kennedy, de Luther King Jr. e de Malcolm X, na década anterior, mesmo que, nesse caso, trate-se de um plano criminoso. A morte de Cyrus não é a única a acontecer durante a projeção. Logo em seguida, o líder dos Warriors, Cleon, é linchado e provavelmente assassinado por integrantes dos Riffs que acreditam ter sido ele o atirador. Algumas cenas à frente, Fox cai nos trilhos do metrô instantes antes da passagem de uma composição. Por fim, Luther é morto pelos Riffs, na praia de Coney Island. No entanto, diferenciando-se da morte de Cyrus, que é apresentada de maneira impactante, todas as outras fatalidades são apenas sugeridas, não sendo presenciadas pelos outros personagens, tampouco pelo espectador. Coadunando-se a isso, os Warriors não aparentam preocupação pelo desaparecimento dos companheiros, não conjecturando o que possa ter acontecido a eles. Essa forma indireta de representação da morte despe o filme da violência que sua temática parece prometer. Assim, as mortes de Cleon, Fox e Luther tornam- se prosaicas, meras casualidades, reduzidas em importância diante do assassinato de Cyrus. A cena do homicídio em questão, por sinal, pretende provocar uma relação catártica na audiência. Cyrus encontra-se de braços abertos, sendo glorificado pela aclamação que recebe após o discurso. Os instantes antes do disparo representam seu triunfo. Quando, em seguida, Luther empunha o revólver, mira em direção à câmera, que o fotografa em primeiro plano. Nesse ângulo, o espectador vê-se sob a mira de um assassino, que puxa o gatilho. Em 1979, ano de produção da película, a sociedade americana ainda preserva na memória o contexto de ruptura social que marcara a década anterior, quando figuras de destaque nacional foram assassinadas com tiros à queima roupa. Veicular, na tela grande, um enorme grupo de 61

delinquentes planejando dominar a cidade de Nova Iorque reverbera o medo estabelecido em parte da sociedade americana da hipotética eclosão de uma convulsão social em meio a suas camadas mais desprivilegiadas.

Fotograma 9 - O tiro em direção à Cyrus (13min.43seg.). Pelo ângulo de fotografia, Luther mira contra o espectador e, por conseguinte, contra a sociedade. Por outro lado, Cyrus havia terminado de propor a constituição de uma liga criminosa que controlaria a cidade de Nova Iorque. Diante disso, Walter Hill retira da plateia a possibilidade de identificação, de empatia, seja com relação à vítima, seja com relação ao homicida. Como citado anteriormente, mesmo o processo de empatia para com os Warriors só é construído ignorando-se o fato de serem eles também uma gangue. Procedendo assim, talvez Hill tenha objetivado dialogar com o contexto social e político dos Estados Unidos do período, no fim de uma década marcada pela crise econômica e pelos escândalos políticos, quando faltava ao cidadão americano algo com que se identificar. A falta de expectativas, por sinal, está presente no horizonte de todos os personagens do filme, já que as gangues são formadas por indivíduos excluídos dos benefícios oferecidos pelo Estado americano aos seus cidadãos. Na cena em que Mercy e Swan caminham pelo túnel do metrô, a jovem explica ao rapaz os motivos de seu comportamento promíscuo, após ser reprovada e rejeitada por ele. No diálogo:

Mercy: - Seja mais bacana, nem sei o seu nome. Swan: - Meu nome é Swan. Por que liga tanto para nomes? Mercy: - Gosto de contar às amigas se tenho alguém especial. Sabe o que quero dizer? Swan: - Por que não amarra um colchão nas costas? Não liga onde seja, não é? (acende-se um semáforo vermelho que os ilumina) 62

Mercy: - O que você tem contra mim? Implicou comigo a noite toda. Swan: - Quer saber a verdade? Mercy: - Claro, vá em frente. Swan: - Não gosto do jeito que vive. Mercy: - Do jeito que eu vivo? Swan: - Sim. Tenho esperanças de que vou encontrar coisa melhor. Mercy: - Que besteira é essa? Você não é melhor do que eu. (eles saem da iluminação vermelha) Swan: - Eu acho que você gosta do jeito que as coisas vão para você. Mercy: - Talvez eu goste. As noites de sexta são bem legais. As de sábado, melhores. Swan: - Não acho que você se lembre com quem sai nas sextas e sábados. Acho que você nem se lembra de como eles são. Mercy: - Às vezes, lembro, às vezes, não. Quem liga? Vejo o que acontece no vizinho e no quarteirão todo. Barriga caída, cinco filhos, baratas nos armários. Te digo o que eu quero, quero algo já. Essa é a vida que me resta. Tá me entendendo? Sacou, Warrior? (Beijo) Mercy: - Que tal, gostou? (Outro beijo) Mercy: - Qual é? Qual o problema? Swan: - Apenas vamos chegar à próxima estação, tá? Mercy: - Não. Por favor. Swan: - Você é parte do que está acontecendo hoje: só coisa ruim. Volta para o lugar de onde veio.75

O diálogo termina com Swan a abandonando no túnel do metrô. Apesar de procurar se distanciar da jovem, Swan sabe que não é melhor do que ela, socialmente. Quando, por fim, conseguem embarcar no metrô que irá levá-los a Coney Island, a dupla se depara com dois casais vindos de um baile estudantil. As roupas e o comportamento destes contrastam fortemente com a aparência de Swan e Mercy, mal-vestidos e sujos, devido às aventuras pelas quais passaram. O visível distanciamento social é especialmente sentido por Mercy, que percebe nas moças aquilo que ela não é. Compreendendo o mal-estar da jovem do Bronx, Swan a apoia, aproximando-se. Quando o trem finalmente chega a Coney Island, Swan observa a vista de prédios simples e questiona: “- Lutamos a noite toda para voltar para isso? Acho que vou me mandar.” Sua constatação destaca a completa falta de expectativas do grupo. O território dominado pelos Warriors não representa verdadeiramente nada, mesmo para o novo líder da gangue.

75 O diálogo inicia-se em 1h03min.58seg. e termina em 1h06min.53seg. 63

Fotogramas 10 e 11 - O abismo social entre Mercy, Swan e os casais no metrô (1h19min.32seg.).

“Os Selvagens da Noite” opta por abordar uma juventude específica dentro do tecido social dos Estados Unidos: jovens de classe baixa habitantes da maior cidade do país. Inexiste, na representação, qualquer menção às atividades dos jovens para além de sua irmandade nas gangues. Mesmo os integrantes dos Warriors não merecem nenhum aprofundamento em suas vidas pessoais, não havendo comentários sobre suas famílias, estudos ou empregos. Assim, os delinquentes da trama de Hill estão desprovidos de qualquer cidadania e buscam alguma inserção colocando-se em flagrante oposição aos valores predominantes na sociedade, sendo percebidos através da delinquência. Significativamente, já na saída para o encontro, Cleon confere se Rembrandt, o “artista” da gangue, leva consigo a lata de tinta spray e o adverte para pintar a marca dos Warriors em todos os lugares possíveis, para que saibam da passagem do grupo. Apesar da falta de perspectivas, a linha geral de desenvolvimento do enredo envolve a imersão dos Warriors nos perigos da noite e sua redenção diante do nascer do sol. Após sobreviverem à epopeia de atravessar toda a cidade de Nova Iorque, do norte do Bronx ao sul do Brooklyn, o último confronto acontece na praia de Coney Island, com o grupo sendo iluminado pelos primeiros raios de sol. Portanto, estando finalmente em segurança, a 64

caminhada na praia pela manhã pode sugerir aos Warriors um futuro melhor que o descrito por Mercy.

Fotograma 12 - Os Warriors a salvo (1h30min.50seg.). Após lutarem por suas vidas durante toda a madrugada, os rapazes chegam a sua vizinhança em segurança. No entanto, permaneceram vivos apenas para continuar a experimentar a mesma ausência de futuro na qual sempre se resumiu suas vidas. Diante da representação juvenil operada, é possível se questionar o que teria restado das lutas políticas e da efervescência cultural da juventude dos anos finais da década de 1960 e dos iniciais da década seguinte. A retórica da trama não traz considerações diretas das transformações sociais e culturais ocorridas, tampouco dos variados movimentos juvenis. Após o período de eclosão das lutas por direitos, os jovens de “Os Selvagens da Noite” encontram-se imersos em uma realidade social muito aquém daquilo que foi sonhado e buscado por seus congêneres da geração anterior. Os embates dos anos 1960 parecem, assim, terem sido diluídos no desalento da década de 1970.

2.1.3 As Juventudes de Nichols e de Hill “A Primeira Noite de Um Homem” e “Os Selvagens da Noite” inserem-se em contextos históricos bastante divergentes, tendo sido produzidos em um intervalo de 12 anos. Em 1967, ano de produção do primeiro filme, a sociedade dos Estados Unidos lidava com a revolução cultural que ajudou a caracterizar o período. Além disso, o recrudescimento da violência racial e política, tanto nos movimentos negros, que passavam a substituir a retórica pacifista do início da década, quanto nos desdobramentos políticos nas universidades, que se aproximavam do discurso revolucionário, ocupavam os jornais. Além disso, a escalada da 65

Guerra do Vietnã, que demandava cada vez maiores investimentos, bem como o envio de contingentes cada vez mais numerosos, evidenciava o fracasso da empreitada e abria um acirrado campo de disputas ideológicas no cenário interno da nação. Em 1979, quando o segundo título é realizado, os Estados Unidos encontravam-se no final de uma década na qual um contexto de crise econômica persistente, aliado à derrota militar na Ásia e aos escândalos políticos no primeiro escalão do poder executivo, somaram-se, criando uma atmosfera de reavaliação da identidade nacional. Os filmes acima examinados constroem representações de juventude em relação com os meios sociais determinados. Ao invés de optar por uma abordagem ampla dos jovens do momento, ambos os filmes operam um recorte dentro dessa parcela social, elegendo, no caso de “A Primeira Noite de Um Homem”, dois jovens de classe média alta da Califórnia e, em “Os Selvagens da Noite”, um grupo de classe baixa, habitantes de uma zona empobrecida da periferia da cidade de Nova Iorque. Ao designar uma fração dentro da parcela social juvenil como objeto de representação, os enredos selecionam um conjunto de características definidoras da juventude, porém em observância à classe social da qual fazem parte os personagens da narrativa. Enquanto Benjamin e Elaine enfatizam as idiossincrasias de um casal de jovens educados, esclarecidos e perfeitamente integrados aos confortos do consumo, Swan, Mercy e os outros realçam os dilemas da juventude desprivilegiada dos centros urbanos, que não puderam contar com acesso à educação formal, não possuem perspectivas de melhora de seus padrões de vida, sentem-se excluídos da sociedade e, portanto, são apartados de sua cidadania, sem possibilidade de romper com o ciclo de pobreza do qual fazem parte. Estudantes universitários, sendo Elaine de Berkeley, principal instituição a expressar a atuação política juvenil, é de se presumir que o casal estivesse inserido, ainda que não diretamente, nessa atmosfera. No entanto, a voz juvenil universitária do período era, sobretudo, constituída por indivíduos de classe alta, o que colabora para que a trama ignore questões de maior vulto, localizando-se em uma Califórnia afluente. Os Warriors e demais delinquentes, por outro lado, distanciam-se daquele casal não apenas espacialmente, por estarem no extremo oposto do país, e temporalmente, pela trama se passar em um futuro próximo, à frente do ano de 1979. As divergências sociais são as que melhor demarcam a separação. Entretanto, também o último título limita-se aos anseios de um extrato da juventude. Na Nova Iorque retratada inexiste espaço para qualquer outra representação além dos delinquentes e da madrugada. 66

A escolha das locações de filmagem é, igualmente, significativa da relação das películas com o contexto cultural do momento no qual tais realizações foram produzidas. Os polos da efervescência cultural e política da segunda metade da década de 1960 foram, em variados aspectos, as regiões metropolitanas da Califórnia. É na cidade de São Francisco que o estilo de vida contracultural melhor se estabelece, com o distrito de Haight-Ashbury tornando-se o epicentro da revolução hippie. Do mesmo modo, o campus de Berkeley da Universidade da Califórnia, já citada, ocupa lugar de destaque no movimento político universitário do período. Assim, o fato da trama do filme dirigido por Nichols se dividir entre o subúrbio afluente de Pasadena e Berkeley é coerente tanto com as circunstâncias históricas quanto com o posicionamento de classe dos protagonistas e suas famílias. Na película de Hill, a designação da cidade de Nova Iorque, especialmente de suas periferias, para ambientar a madrugada de enfrentamentos violentos entre gangues de rua, coaduna-se com a decadência das cidades do nordeste dos Estados Unidos ao longo dos anos 1970. No período, as mudanças econômicas em curso levaram inúmeras empresas longamente instituídas a transferirem seus negócios para o sul do país, quando não para outras nações, colaborando para a redução da importância financeira da região. A cidade de Nova Iorque, especificamente, experimentava o empobrecimento de sua periferia, com o abandono de algumas áreas industriais. Além disso, a criminalidade nos centros urbanos, que ocupava boa parte da imprensa cotidiana, tinha a cidade como paradigma. Assim, se a trama de “A Primeira Noite de Um Homem” é formulada como a imagem, em linhas gerais, da reação às transformações culturais que delineavam novas perspectivas para a juventude do final dos 1960, “Os Selvagens da Noite” veiculam, através do ponto de vista do final da década seguinte, a falência dos planos traçados pelos variados movimentos da década de 1960. A Nova Iorque futura prestes a ser tomada por gangues de delinquentes juvenis desvela, portanto, as expectativas frustradas daqueles jovens que haviam lutado por justiça, direitos e igualdade. Por fim, o desfecho dos filmes relativiza o otimismo dos personagens. Apesar de, em ambos os enredos, os protagonistas alcançarem seus objetivos ao final das narrativas e após enfrentarem numerosas peripécias, não é claro para Ben e Elaine, nem para os Warriors e Mercy, tampouco para o espectador, se o futuro a eles reservado irá fazer as aventuras terem valido a pena. Logo em seguida a conseguir ficar com Elaine, a expressão facial incógnita de Benjamin revela o retorno de suas dúvidas originais quanto a que caminho seguir em sua vida. Nesse sentido, a película executa um desenvolvimento circular, deixando Benjamin praticamente no mesmo ponto em que o encontrou, a despeito de todas as suas façanhas. A 67

mesma circularidade pode ser observada ao final de “Os Selvagens da Noite”. Mesmo tendo enfrentado todos os perigos, os Warriors terminam onde haviam iniciado sua trajetória. Entretanto, em um prisma mais negativo que o filme anterior, alguns dos personagens não atingem êxito, encontrando a prisão ou pior, a morte, no caminho para casa.

2.2 BRANCOS E NEGROS NO CINEMA Durante as décadas em apreço, o cinema de grande circuito produzido pelos estúdios hollywoodianos evitou abordar as questões relacionadas à população afro-americana. A princípio, essa circunstância apenas mantém a postura tradicionalmente observada nas produções dos estúdios da Califórnia ao longo de sua história, uma vez que o negro, seja como personagem ou como temática, costumeiramente esteve ausente das produções dessas empresas. A trajetória da parcela negra da sociedade dos Estados Unidos, desde sua inserção no território, como população escravizada, passando por sua participação durante os momentos- chave da história da nação, como a Guerra pela Independência ou a Secessão, chegando à posição social dos negros no século XX, não havia merecido, até os anos 1960, maiores considerações por parte dos enredos cinematográficos. Assim, a presença apenas pontual dos negros e dos temas que lhe são referentes nos títulos dos grandes estúdios, durante as décadas de 1960 e 1970, não se configura como excepcionalidade. No entanto, a década de 1960 presenciou a expansão dos movimentos sociais negros em ordem exponencial, com a ampliação da presença midiática, conquistas jurídicas e legislativas e a multiplicação das organizações que lutavam pela melhoria das condições de vida. Dessa forma, a recusa de Hollywood em tratar da temática negra mostra-se, ao menos, questionável. Apesar de os estúdios, após tornarem-se subsidiários de conglomerados, buscarem a aproximação de seus enredos com a conjuntura de transformações existente nos Estados Unidos, voltaram-se especialmente à temática juvenil, relegando ao segundo plano importantes lutas que convulsionavam o cotidiano do país no período, sendo a principal delas o movimento negro. Nos anos 1960, as produções que eventualmente tratavam de temáticas negras operavam tramas que não lidavam diretamente com os movimentos negros, tampouco com os acontecimentos que vinham surpreendendo a sociedade americana, como as manifestações, marchas, levantes nos guetos ou o surgimento do Black Power. Geralmente, os personagens negros nesses filmes não representavam qualquer perigo iminente à estrutura social estabelecida, sendo inofensivos nesse sentido. Pelo contrário, os negros protagonistas em 68

filmes rodados durante essa década são indivíduos integrados ao status quo. O ator negro de maior destaque no cinema desse período foi Sidney Poitier, porém, apesar do sucesso e reconhecimento profissional, participava de enredos que não objetivavam problematizar abertamente as rupturas da sociedade americana. Na década seguinte, a estereotipia que ligava o negro à criminalidade comum continua sendo seguida pelos estúdios na maioria de suas produções. Quando cabia ao negro o protagonismo, esse ocorria através do papel de assalariado, de trabalhador braçal, normalmente da indústria de bens de consumo. Essa representação do negro localizava-o no grupo que sofria os maiores reveses da longa recessão econômica atravessada pelos Estados Unidos nos anos 1970. Ainda assim, nos filmes de grande circuito, rotineiramente cabia aos negros papéis secundários, quando não figurativos, com frequência vivenciando tipos à margem da sociedade como assaltantes, traficantes e prostitutas. Se a Hollywood das grandes produções se eximia de se aprofundar no tema, coube ao cinema do gênero blaxploitation propor enredos que explicitamente abordavam os desdobramentos sociais e culturais dos variados movimentos negros em atuação no país. Dirigidos e protagonizados por negros, esses filmes traziam personagens negros em posição de poder, usualmente envoltos em contextos violentos. “Shaft” (dir. Gordon Parks – 1971) foi o filme que alcançou maior popularidade, tendo sido orçado pela MGM. No entanto, a maioria dos títulos era direcionada a uma plateia negra urbana, não atingindo ampla audiência.76 A importância dos filmes blaxploitation em debater as relações de gênero, todavia, é polêmica. Enquanto, por um lado, os filmes traziam o empoderamento negro, por outro, ventilavam tradicionais estereótipos brancos sobre a população negra, como a tendência à violência e ao comportamento sexual libidinoso. Assim, o gênero dura menos de uma década, sofrendo a oposição de várias organizações que advogavam pelos direitos dos negros. Sendo, em sua maioria, voltado para um nicho de mercado específico e contando com baixa distribuição, a relevância dessas películas na representação social é questionável. Buscando considerar comparativamente a representação do negro no cinema e o contato com o contexto social imediato, examinam-se, a seguir, as produções

76 Entre as décadas de 1910 e 1950, o cinema racial (race film) foi outra experiência de produção cinematográfica voltada ao público negro. Distanciando-se do blaxploitation, questões como a pobreza, o crime, a decadência social, a vida nos guetos, a injustiça social ou as relações raciais não costumavam ser tratadas pelos race films, que se fundamentavam sobre valores urbanos burgueses. Apesar de esse cinema ser, muitas vezes, produzido e dirigido por brancos, Oscar Micheaux foi um dos principais produtores negros, dirigindo inúmeros títulos desse cinema. 69

cinematográficas “Adivinhe Quem Vem Para Jantar?” (Guess Who’s Coming for Dinner?, dir.: Stanley Kramer – 1967) e “Vivendo na Corda Bamba” (Blue Collar, dir.: Paul Schrader – 1978). Enquanto o primeiro título traz Sidney Poitier como um médico bem-sucedido que pretende se casar com uma jovem branca da alta classe, o segundo aborda a realidade economicamente desfavorável de trabalhadores da indústria automobilística.

2.2.1 “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” (1967) “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” foi produzido e dirigido por Stanley Kramer (1913 – 2001). Kramer nasceu em Manhattan e foi criado no bairro denominado Hell’s Kitchen (Cozinha do Diabo), conhecido pela violência das gangues. Tendo se formado na Universidade de Nova Iorque, Kramer planejava tornar-se advogado, porém, após receber uma bolsa para trabalhar no departamento de redação da Fox, muda-se para Hollywood. Começa na roteirização nessa companhia, trabalhando, posteriormente, em outros estúdios. Após servir na Segunda Guerra Mundial, atuando na produção de filmes educativos para as tropas, retorna para Hollywood e funda uma produtora independente. Essa iniciativa lhe permitiu produzir sem se submeter ao controle dos grandes estúdios. Ao longo dos anos 1950, Kramer produziu filmes que atingiram sucesso de público e critica, podendo citar-se “Matar ou Morrer” (High Noon – 1952), western no qual aborda o McCarthismo, e “O Selvagem” (The Wild One – 1953), onde debate a delinquência juvenil. Tornando-se diretor, manteve sua propensão pelos temas usualmente evitados pelos estúdios, realizando títulos como “Acorrentados” (The Defiant Ones – 1958), título no qual já aborda a questão racial, “A Hora Final” (On The Beach – 1959), tendo como tema as consequências desastrosas de uma guerra nuclear, “O Vento Será Tua Herança” (Inherit The Wind – 1960), sobre a disputa criacionismo/evolucionismo nas escolas, “O Julgamento de Nuremberg” (Judgment at Nuremberg – 1961), abordando os desdobramentos desumanos dos regimes totalitários e “A Nau dos Insensatos” (Ship of Fools – 1965), quando trata do contexto que possibilitou a ascensão do regime nacional socialista na Alemanha. Portanto, ao realizar “Adivinhe Quem Vem Para o Jantar”, Kramer já era reconhecido no meio cinematográfico por sua qualidade e inclinação para abordar temas de cunho social. O filme narra um dia na vida de dois jovens, Dr. John Prentice (Sidney Poitier) e Joanna “Joey” Drayton (Katharine Houghton). Joanna conheceu o Dr. Prentice durante uma viagem ao Hawaii, onde ele se encontrava para uma palestra na universidade. Tendo se apaixonado quase que instantaneamente, decidem se casar. Entretanto, o fato de Prentice ser negro pode se tornar um obstáculo à felicidade do casal. 70

A película inicia-se com a chegada do novo casal ao aeroporto de São Francisco, cidade de moradia de Joanna. Apesar da visível alegria de ambos, logo no taxi a caminho para a casa dos pais de Joey, o Dr. Prentice a informa de suas reservas quanto à possível reação dos pais da jovem. Ela, radiante, parece confiar na personalidade progressista deles. Entretanto, o olhar do taxista branco pelo retrovisor interno diante do beijo inter-racial prefigura a oposição que o casal pode vir a enfrentar. Antes de se dirigir à residência, Joanna decide fazer uma visita à galeria de arte de propriedade de sua mãe, Christina Drayton (Katharine Hepburn), na esperança de lá encontrá- la. No local, é recebida pela gerente do estabelecimento, Hilary (Virginia Christine), que, na ausência da mãe de Joanna, não se furta a exibir uma reação preconceituosa diante das características físicas do namorado da jovem. Chegando a casa é a vez da empregada, Tillie (Isabell Sanford), que possui uma forte relação afetiva com Joanna, por esta correspondida, demonstrar abertamente sua surpresa e oposição fazendo críticas diretas ao convidado. Na primeira oportunidade de ter uma conversa privada com a moça, a empregada reprova a decisão em se envolver amorosamente com um homem negro, a que Joanna rebate com veemência, mostrando surpresa pela reação da empregada, igualmente negra. Segundo Joanna, que a conhece desde a infância, ela o ama da mesma forma que ama Tillie, negra como ele. Enquanto Prentice se encontra no escritório telefonando para os pais, no qual confessa ter conhecido uma mulher, porém sem informar ser ela branca, a Sra. Drayton chega a casa pensando haver algum problema com a filha, já que tinha sido advertida por Hilary de que algo tinha ocorrido. Joey conta que conheceu um homem e que está apaixonada por ele, tendo decidido se casar dentro de poucos dias. Entretanto, antes que a jovem pudesse esclarecer o fato de ser seu pretendente negro, Prentice surge na sala, para surpresa da Sra. Drayton. Esforçando-se em lidar com a situação de uma maneira razoável e educada, a Sra. Drayton não consegue esconder a perplexidade. Momentos depois, o pai de Joanna, Matt Drayton (Spencer Tracy), chega, sendo imediatamente advertido pela empregada de que havia algo de muito errado ocorrendo na casa. Tendo citado a presença de sua filha e de um doutor, o Sr. Drayton acredita que algo ocorreu com uma de suas familiares, engano que logo se desfaz. Ao ser apresentado ao Dr. Prentice, o Sr. Drayton não compreende o laço afetivo existente entre este e sua filha, tratando-o apenas como um novo amigo e convidado da jovem. Quando entende o motivo para a presença daquele homem em sua casa, fica atônito. Dono e editor de um jornal liberal de importância reconhecida na cidade, o Sr. Drayton retira-se ao seu escritório, faz uma 71

ligação e pede para levantarem informações sobre o acompanhante da filha. Para sua surpresa, o Dr. Prentice é um médico relevante em seu meio profissional, tendo estudado e lecionado em boas universidades, sido autor de livros e artigos, prestado serviço humanitário na África e sendo diretor da Organização Mundial da Saúde. Observando a interação do casal, a Sra. Drayton se refaz do susto inicial e começa a considerar que nunca havia visto a filha tão feliz. O Sr. Drayton mantém-se com reservas. A situação torna-se ainda mais delicada com a afirmação feita por Prentice aos pais de sua namorada de que, apesar de ela crer que o casamento estaria definido, ele apenas contrairia matrimônio diante da aprovação irrestrita do casal. Para ele, Joanna tinha uma relação muito forte com seus pais e contrariar uma vontade deles lhe traria a infelicidade, o que ele não aceitaria causar. Matt Drayton sente-se pressionado, dizendo se tratar de um ultimato, ao que Prentice nega. A chegada do Monsenhor Ryan (Cecil Kellaway) colabora para reduzir a atmosfera de estranhamento presente no ambiente. Apesar de clérigo católico, Ryan, que é o amigo mais íntimo da família, mostra-se bastante aberto às transformações em curso na sociedade dos Estados Unidos, rapidamente demonstrando aprovação e apoio ao plano de casamento do casal. Diante das reticências do Sr. Drayton, ironiza-o, sugerindo ser convidado para o jantar que os Draytons teriam logo naquela noite com Dr. Prentice. Enquanto isso, Joanna maneja convidar os pais de seu namorado para o jantar, sob oposição do próprio Prentice, que não os havia informado da realidade inter-racial do relacionamento. Visivelmente em estado de felicidade, Joanna sai com Prentice para tomar um drink com um casal de amigos. Estes, aprovando incondicionalmente a união, incentivam Joey a partir imediatamente com Prentice para Genebra, onde ele iria trabalhar. A ideia original era de que Joanna o encontrasse dentro de alguns dias. Essa mudança de planos torna a situação, já precipitada, ainda mais abrupta para o Sr. Drayton. Enquanto isso, o Sr. e a Sra. Drayton saem para se distrair dos acontecimentos. Após tomar um sorvete em uma lanchonete drive- in, o Sr. Drayton bate no carro de um homem negro. Trajando roupas que o caracterizam dentro do ambiente contracultural do período, o homem se enfurece e ofende o Sr. Drayton, que paga o prejuízo e vai embora, enquanto o homem negro é aplaudido pelos presentes. No aeroporto, Prentice recebe seus pais enquanto Joanna fala com a mãe ao telefone. Inseguro e sem conseguir revelar a pertinente questão racial, acaba por permitir que Joana apresente-se diretamente a eles, para a consternação do Sr. (Roy Glenn) e da Sra. (Beah Richards) Prentice. No carro, em direção a casa de Joanna, os pais do doutor revelam sua surpresa, com o pai demonstrando reprovação. 72

Sentindo-se mais e mais pressionado, o Sr. Drayton afirma à sua esposa que não irá consentir o matrimônio, o que ele sabe que, diante da regra estabelecida pelo Dr. Prentice, inviabiliza os planos da filha. Sendo informado da decisão do amigo, o Monsenhor Ryan decide intervir, tentando convencê-lo a mudar de posição. De qualquer forma, com a chegada dos Prentices, fica evidente a combinação de posturas de ambos os pais, fortemente contrários, enquanto as mães, apesar de apreensivas, apoiam a decisão dos filhos. Demandando sensatez do Sr. Drayton, o Sr. Prentice pede que este mantenha sua oposição. Em seguida, tem uma conversa dura com o filho, que, em resposta, afirma que não iria permitir que o pai decidisse sua vida em seu lugar. A Sra. Prentice, por sua vez, apela para o sentimentalismo do Sr. Drayton, na esperança de convencê-lo a aceitar o matrimônio. Em meio a tendências opostas, e percebendo que a felicidade da filha repousava sobre suas mãos, Sr. Drayton decide consentir a união, proferindo, na cena final, um discurso conciliador e condizente com as mudanças culturais vigentes nos EUA dos anos 1960. A união do casal e das famílias é selada com o jantar. A produção de Kramer cerca sua temática de maneira direta e intensiva, quase didática, sendo o filme desenvolvido através de um uso da linguagem cinematográfica bastante padronizado. Assim, “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” apresenta-se como uma produção com mensagem de fácil absorção por parte do espectador. Mesmo esteticamente, é possível perceber o modelo tradicional das tomadas, com fotografia, enquadramentos, e movimentos de câmera pouco imaginativos, sem um uso semântico nestes âmbitos. O filme é quase que exclusivamente rodado em estúdio, com as cenas desenroladas dentro de automóveis obedecendo à antiga estratégia de se fotografar os personagens através do para-brisa, com um filme de uma rua ou estrada sendo projetado em uma tela localizada atrás do mesmo, simulando seu deslocamento. Igualmente, a produção ainda conta com a deslumbrante vista da cidade de São Francisco, a qual se observa do jardim da confortável casa dos Drayton, sendo pintada em mural, ou seja, igualmente simulada em estúdio. 73

Fotograma 13 - Vista da casa dos Draytons sobre a cidade de São Francisco, reproduzida em estúdio, dentro da técnica e da estética cinematográficas tradicionais (1h04min.32seg.). A proximidade da película com os parâmetros do cinema clássico também pode ser percebida na narrativa. Na cena em questão, o enquadramento realizado por detrás da Sr. Drayton demarca sua reflexão. Ao observar a cidade ao por do sol, Sr. Drayton, uma senhora com experiência de vida, igualmente observa um mundo cujos valores se transformam diante dos seus olhos. A trama assenta-se em uma problemática fundamental: o rapaz e a moça se conhecem, se gostam intensamente, não se separam mais e decidem se casar. A moça é branca, o rapaz é negro, nos Estados Unidos do movimento pelos direitos civis. Este simples fato, este acontecimento pontual, ainda que de grande significado na vida dos protagonistas - eles se conhecerem - desencadeia toda a história, enredando os demais personagens. Nada de profundas reflexões psicológicas ou filosóficas, na obra de Kramer os problemas são realistas e demandam uma abordagem pragmática para serem solucionados. Assim, tanto a narrativa quanto os personagens são despidos de questões paralelas que pudessem causar desvios ou complexificarem a solução, o que faz com que a trama seja centrada no tema social que foi escolhido para ser abordado. Desta maneira, o personagem de Poitier, o Dr. Prentice, é formulado de uma maneira idealizada. Ainda jovem, apesar de mais velho que Joanna, conta com uma formação exemplar. Assim, estudou em boas universidades e lecionou em outras instituições de qualidade reconhecida. Tendo trabalhado no exterior e participado de projetos de saúde internacionais, é diretor da Organização Mundial da Saúde, o que o faz ter atingido alta posição profissional já com 37 anos de idade. De origem familiar humilde, progrediu através de seu próprio talento e esforço, sendo um self-made man, condição culturalmente valorizada na sociedade em questão. Educado e culto, possui hábitos e comportamento refinados, estando apto a frequentar os 74

ambientes provavelmente habituais à família de sua namorada. E, apesar da oferta da moça, se negou a manter com ela relações sexuais pré-maritais. Desta forma, o Dr. Prentice torna-se o pretendente ideal para Joanna, excetuando-se o fato de ser um homem negro. Sublinha-se, portanto, o objeto de restrição. Como forma de agravar a questão, a trama inclui o fato de o casal ter se conhecido há apenas 10 dias, configurando a resolução pelo matrimônio em medida precipitada, aos olhos dos pais da jovem. Joanna é filha de uma família de valores liberais e, dessa maneira, o enredo justifica seu comportamento singular, considerando-se os padrões culturais vigentes nos EUA do período. Assim, a moça demonstra completa desconsideração pelas clivagens raciais historicamente existentes naquele país, importando-se apenas com o fato de se sentir atraída pelo homem com quem decidiu estabelecer compromisso. Sendo caracterizada pelo próprio Prentice como excessivamente otimista, a personagem não apresenta qualquer ponderação concernente às implicações sociais de se firmar um relacionamento inter-racial no contexto no qual se insere. Seu encantamento pelo doutor parece ser o único elemento considerado em suas resoluções, como destacado por muitas de suas falas, por exemplo, quando afirma: “Tudo sobre ele é interessante”. Fica evidenciada uma aparente ingenuidade no comportamento de Joanna que, ademais, pode disfarçar uma determinação sutil, a certeza da retidão do caminho que decidiu seguir. A determinação, saliente-se, consiste no principal traço da personalidade da jovem. Apesar de mais velho, cultivado, seguro e mais vivido que Joanna, Prentice acaba se submetendo às decisões da moça, que o leva a conhecer o Sr. e a Sra. Drayton e convida os pais dele para o jantar, contra a sua vontade. Além disso, Joanna claramente afirma aos pais que, apesar de se importar com a aprovação deles, nada a levaria a desistir do matrimônio. Voltando-se ao Sr. Drayton, ainda espantado com a novidade da qual havia acabado de ser informado, diz que não voltaria atrás “- Nem que você fosse o Governador do Alabama”77. Baseando a abordagem de um tema socialmente delicado nas reações dos personagens, a trama evita lugares-comuns, permitindo que Tillie, empregada negra da família, assuma a posição mais veementemente contrária ao Dr. Prentice. Desde sua primeira cena, e ao longo de toda a projeção, Tillie não aceita a presença de Prentice. Segundo suas

77 No caso, o político George Corley Wallace, Jr. Segregacionista, Wallace foi um dos mais contundentes opositores aos avanços buscados, e alcançados, pelo Movimento pelos Direitos Civis na década de 1960. Sua estratégia de se colocar à frente da entrada da Universidade do Alabama para impedir a entrada de estudantes negros, após decisão favorável da Suprema Corte dos Estados Unidos, bem como sua declaração de que se manteria firme em prol da segregação, “segregação agora, segregação amanhã e segregação para sempre”, exemplificam sua retórica política agressiva e inflexível. 75

palavras, ela não gosta de ver seu povo tentando se passar pelo o que não é. Nesta personagem mantém-se a representação corrente no cinema americano da trabalhadora doméstica negra, integrada a casa, possuindo relação afetiva com a família, mas passivamente submetida aos ditames raciais. Sua postura de desconfiança, portanto, alicerça-se numa questão social, além das barreiras raciais as quais ela parece reconhecer e obedecer sem ressalvas. O que a incomoda em Prentice não é apenas o fato de ser negro, porém a combinação de sê-lo e, ainda assim, usufruir de uma vida condizente àquela que ela reconhece como pertencente a um homem branco. Em certo sentido, o Dr. Prentice torna-se branco diante de Tillie, tamanho é o distanciamento social que separa os dois personagens. Sua trajetória de sucesso profissional, e provavelmente financeiro, seu refinamento e, especialmente, o fato de pretender se casar com uma jovem mulher branca de alta classe, atestam sua distinção. Por isso, a empregada da casa faz questão de lembrá-lo a todo instante de sua realidade étnica, a qual, pela perspectiva dela, ele aparenta ter esquecido. Esta questão, do distanciamento de Prentice daquilo que culturalmente se reconhece como pertencente a um homem negro, e de sua posição quanto a não validade destes parâmetros, é sublinhada na discussão travada com seu pai. Nesta, indignado pela tentativa do pai de influir em sua decisão matrimonial, a qual julga errada, afirma que a diferença entre eles consiste no fato de que o pai pensa em si como um homem negro, enquanto ele pensa em si como um homem, apenas. Por outro lado, diante do flerte entre outra empregada negra e o entregador do açougue, um rapaz branco, Tillie não faz oposição relevante. A miscigenação parece, assim, mais aceitável na classe baixa talvez por estar o homem branco pobre socialmente mais próximo de uma mulher negra do que, em contrapartida, o homem negro bem sucedido de uma mulher branca. Tillie, aliás, demonstra se opor às transformações defendidas pelo movimento dos direitos civis, como revelado por algumas de suas falas. Por exemplo, na chegada de Sr. Drayton a casa, afirma que “o mundo está desabando”; momentos antes do jantar que selaria a união do casal, demanda a Sra. Drayton que “pare esta tolice sem sentido” e, diante da negativa da dona da casa, informa que da forma que ela (Sra. Drayton) fala, não entende mais nada. Na cena em que a oposição de Tillie tanto à presença de Dr. Prentice quanto aos avanços no campo dos direitos civis dos negros torna-se mais patente, a empregada invade o quarto no qual Prentice troca de roupa e o ameaça contundentemente. Em suas palavras: Tillie: “-Tenho umas coisas pra te falar, garoto. O que está tentando fazer aqui?” 76

Prentice: “- Não estava tentando fazer nada. Apenas procurava encontrar uma esposa.” Tillie: “- É mesmo? Quer me responder uma coisa? Que tipo de médico você pensa que é?” (...) Deixe-me lhe dizer uma coisa. Você acha que engana essas pessoas, mas você não me engana. Pensa que não sei que tipo é você? É um desses negros fala mansa, fazedores de piadas, com essa de poder negro, causadores de problemas. Eu criei aquela menina desde bebê e ninguém vai fazer mal a ela enquanto eu estiver aqui. E, enquanto você estiver aqui, estarei observando. Entendeu garoto? Um só problema e vai ver o que poder negro realmente significa. E para terminar, você nem é tão bonito assim!”.78

Fotograma 14 - Tillie ameaça Dr. Prentice (58min.24seg.). A fala na cena expõe sua opinião acerca dos movimentos por direitos da população negra. A câmera levemente inclinada à esquerda leva a atenção da audiência quase que exclusivamente à empregada, apesar dos dois personagens dividirem o plano igualmente. Além disso, o ângulo colabora para colocar Tillie em posição ofensiva. Esse papel tradicional da personagem Tillie é relativizado na cena final, onde o Sr. Drayton profere o discurso no qual consente a união. Antes de iniciar a fala, o dono da casa lembra-se de chamar a empregada para que possa participar, junto da família e dos convidados, do acontecimento extraordinário. Em seguida, apresenta-a ao casal Prentice, proferindo seu nome completo, Srta. Matilda Binks, e informando se tratar de um membro da família há 22 anos. Longe de se configurar em detalhe de menor importância, até o momento havia cabido à empregada apenas seu apelido, através do qual é afetivamente tratada pela família. No cinema americano, aos personagens negros couberam, tradicionalmente, apenas apelidos, o que fazia com que fossem privados de uma identidade completa, ao mesmo tempo em que os colocava em posição inferior, por vezes de submissão, diante dos personagens brancos. Em uma troca de olhares, tanto Tillie quanto o Sr. e a Sra. Prentice reconhecem a

78 A cena inicia-se em 57min37s. e termina em 58min48s. 77

excepcionalidade da situação. De qualquer forma, logo adiante, o Sr. Drayton afirma que ela “hoje fez muita confusão” e, ao longo de todo o discurso, a câmera não fotografa a personagem novamente, o que evidencia a irrelevância de sua opinião no caso, apesar de membro da família. Ainda que aborde diretamente um tema social grave e delicado para o período, “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” não propõe uma transformação nem nos costumes, tampouco na abordagem cinematográfica do contexto cultural. Coadunando-se com as tendências mais progressistas do momento, não as problematiza, nem propõe desdobramentos em nenhum sentido. Prova isso o comportamento sexista dos personagens, pontuado no filme. Logo após chegar à casa dos Drayton, Prentice vê a jovem Dorothy, ajudante negra da empregada, e não se furta a lançar-lhe olhares lascivos e fazer comentários pouco discretos sobre sua beleza para a própria Joanna, que ademais não parece se importar. Em seguida, quando conversa com seu pai e informa que Joey tem apenas 23 anos, o Sr. Prentice aprova enfaticamente, comentando ser a diferença de idade ideal, já que as mulheres envelhecem mais rápido, com sua esposa ouvindo este comentário. Em outra passagem, quando o casal Drayton encontra-se na lanchonete, o Sr. Drayton observa o corpo da jovem garçonete que lhe atendera, quando esta se vira de costas. A Sra. Drayton, embora perceba, não demonstra oposição. Finalmente, a Sra. Drayton diz que o trabalho desempenhado por Prentice é importante e que Joey poderá ajudá-lo, sendo ajudar o marido a melhor coisa que uma mulher pode fazer. O comportamento sexista, portanto, é representado como corriqueiro e aceitável. Por não se tratar de informações necessárias para o desenvolvimento do enredo, a inclusão destas cenas pode significar o apontamento de outra questão discriminatória presente na cultura daquela nação, até então ignorada. Ainda assim, a abordagem do sexismo não vai além de uma crítica bastante suave. Não obstante a trama centre-se na matéria do racismo, sua abordagem estende-se para uma ruptura geracional, mais que propriamente para as consequências da luta por igualdade e liberdade, mote dos movimentos do período. Desse modo, vemos os jovens do filme sendo favoráveis à união inter-racial, enquanto a geração anterior se opõe. O que aparenta ser uma exceção, o apoio incondicional de Monsenhor Ryan, não o é verdadeiramente, pois como diz Sra. Drayton sobre o velho amigo, ele parece estar mais jovem a cada dia. A questão da ruptura geracional é destacada na discussão entre Prentice e seu pai, sendo exatamente por pertencer à outra geração que o Sr. Prentice não consegue aceitar a união do filho com uma mulher branca. Segundo John, seu pai não o entende e nunca conseguirá entender. 78

É significativo que os dois personagens que resolutamente se opõem à união, o Sr. Prentice e Tillie, sejam negros. Caso a expectativa da audiência fosse que os pais brancos de alta classe de Joanna se opusessem, esta não se confirmaria, pois, passada a surpresa inicial, Sra. Drayton apoia integralmente a filha, destacando a felicidade da jovem na companhia do Dr. Prentice. Quanto ao Sr. Drayton, o enredo assenta sua oposição não na raça de John Prentice, a quem ele respeita e mesmo admira, porém na celeridade da situação, pelo casal ter se conhecido há apenas 10 dias e, especialmente, por ter-lhe sido dado nada além de algumas horas para decidir se consente ou não. De qualquer forma, para o Monsenhor Ryan, a situação coloca em questão os princípios do Sr. Drayton, tendo potencial para evidenciar que talvez não seja ele tão liberal quanto acreditava ser. Por fim, se claramente o Dr. John Prentice não representa o homem negro mediano dos Estados Unidos, a família Drayton tampouco representa a família branca mediana daquele país. De poder aquisitivo elevado, a Sra. Drayton possui uma galeria de arte na qual se percebe a proeminência da arte contemporânea, enquanto o Sr. Drayton possui um relevante jornal liberal da cidade, no qual ele “nunca deixou de expressar uma opinião”. Apesar de não serem católicos, cultivam a sincera amizade de um monsenhor, tendo criado sua filha única dentro de um conjunto de valores que assegura a igualdade de todos, independentemente da raça ou posição social. “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” possui o mérito de examinar o tema social mais delicado do momento, em um período no qual o cinema hollywoodiano não se mostrava aberto à análise de questões sociais ou políticas em disputa. Como salientado anteriormente, a abordagem do tema deve-se muito às características profissionais de seu realizador. Entretanto, o tópico foi gestado de forma a tornar-se minimamente palatável à audiência. Tanto que se optou por tratar do ambiente de transformações raciais sem trazer os movimentos responsáveis por estas transformações à tela. E ainda, a produção realiza-se no período no qual a radicalização da retórica da busca por direitos se iniciava. Nos anos seguintes, tornar-se-ia cada vez mais improvável a representação da questão racial em termos tão leves e positivos no cinema de grande circuito dos Estados Unidos.

2.2.2 “Vivendo na Corda Bamba” (1978) O filme é dirigido por Paul Schrader. Apesar de ser identificado com a geração dos Movie Brats (Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, George Lucas, Steven Spielberg, dentre outros), sua formação inicial é singular. Nascido em Michigan, em 1946, a família de Schrader era calvinista, o que levou a uma educação rígida, dentro dos estritos preceitos 79

religiosos seguidos por seus pais. Dessa forma, Schrader apenas pôde assistir a seu primeiro filme aos 17 anos de idade, devido à proibição dos pais. Entretanto, após se graduar em teologia, Schrader faz mestrado em estudos fílmicos, na Universidade da Califórnia, o que permitiu que compensasse a infância e adolescência distantes das salas de cinema. Torna-se crítico cinematográfico e, posteriormente, roteirista. Seu roteiro de Taxi Driver (dir.: Martin Scorsese – 1976) recebe reconhecimento da crítica, o que lhe permite iniciar-se na direção pouco tempo depois. “Vivendo na Corda Bamba” consiste no primeiro título que dirige, tendo continuado ativo, tanto na direção quanto na roteirização, ao longo das décadas seguintes. A película em análise retrata o cotidiano de três trabalhadores da indústria automobilística de Detroit. O trio é formado por dois trabalhadores negros, Zeke Brown (Richard Prior) e Smokey James (Yaphet Kotto), além do branco Jerry Bartowski (Harvey Keitel). Esses metalúrgicos possuem laços de amizade que ultrapassam a dura rotina de trabalho. O filme se inicia com imagens da linha de produção, enquanto os créditos iniciais são apresentados. A fábrica é retratada como um ambiente sujo e barulhento, no qual o trabalho perigoso é realizado com atenção. Durante a abertura ouve-se um blues. Passados os créditos, a cena continua na linha de montagem retratando o supervisor “Dogshit”79 Miller (Borah Silver), que pressiona todos os trabalhadores utilizando-se de linguagem ofensiva para manter alto o índice de produtividade. Na reunião local do sindicato, realizada na própria sede da empresa, Zeke indispõe- se com Clarence Hill (Lane Smith), representante sindical dos trabalhadores daquela unidade. Apesar de se referir às condições de trabalho desfavoráveis, o mote principal da reclamação de Zeke consiste na porta de seu armário, enguiçada há seis meses e que machuca seu dedo sempre que precisa abri-la. Em sua fala exaltada, Zeke afirma que, quando for representante, defenderá os interesses de todos, sublinhando a ineficiência de Hill. Quando o turno de trabalho se encerra, os trabalhadores se reúnem no bar Little Jo’s. Apesar da convivência entre brancos e negros nesse local ser pacífica, as ofensas de cunho racista são usuais. Quanto a essa questão, o próprio trio de amigos é inter-racial e as tensões de raça não transparecem com frequência. Enquanto o trio bebe no bar, são entrevistados por um homem que se identifica como professor universitário realizando uma pesquisa sobre o sindicato. Smokey logo o desmascara, afirmando ser um investigador do FBI, o que se confirma.

79 Em tradução literal, “cocô de cachorro”. Apelido provavelmente criado pelos funcionários supervisionados por Miller. 80

A vida dos amigos enfrenta reveses econômicos, uma vez que apesar de empregados, os salários que recebem não são o suficiente para pagar o sustento das famílias de Zeke e Jerry, tampouco o estilo de vida de Smokey, envolvido com jogo e agiotas. Nesse sentido, quando um agente da receita federal visita a casa de Zeke inquirindo a ele a verdade sobre a declaração ao fisco de ser pai de seis filhos, sua esposa tenta ludibriá-lo, utilizando-se dos filhos dos vizinhos. Jerry, por sua vez, e apesar de possuir dois empregos, não pode pagar pelo aparelho odontológico da filha. Motivado pelo armário defeituoso, Zeke vai à sede do sindicato fazer uma reclamação da conduta de Hill. Enquanto aguarda, observa que existe na sede um grande cofre guardado apenas por um vigia idoso. Sendo recebido pelo diretor do sindicato, o Sr. Johnson (Harry Bellaver), protesta sobre a diferença do tratamento oferecido por Hill às demandas dos trabalhadores brancos e negros, ao que o Sr. Johnson rebate, lembrando que se existem trabalhadores negros na indústria automobilística isso se deveria à atuação do sindicato. Após uma orgia na casa de Smokey, os amigos reclamam de seus problemas financeiros e conversam sobre roubar o cofre. Passada alguma hesitação, o trio inicia os preparativos para o assalto. No momento em que entram na sede, no entanto, deparam-se com o cofre aberto e vazio, levando apenas uma caderneta como fruto do roubo. Apesar de parecer desimportante, logo Zeke percebe se tratar de anotações que podem incriminar os diretores do sindicato. Enquanto Zeke pretende denunciá-los para conseguir melhorias, Smokey propõe chantagear a direção para obter alguma vantagem. Os amigos optam pela segunda opção. A partir daí, inicia-se um jogo perigoso no qual o trio tenta levar a chantagem à frente, enquanto os dirigentes tentam neutralizá-los. Paralelamente, a polícia descobre a existência da caderneta. Para a cúpula do sindicato, Zeke é ambicioso e pode ser cooptado pelo oferecimento de um cargo, já Jerry não é sindicalizado e pode ser calado pela coerção e ameaça à segurança de sua família. Quanto a Smokey, já foi preso e pode oferecer um risco contínuo aos negócios do sindicato. Assim, capangas são enviados à casa de Jerry. Porém, Smokey os espera, oferecendo resistência. Ao saber do ocorrido, Jerry fica assustado, conversando com Zeke. Em reunião com o Sr. Johnson, na qual recebe a oferta do cargo de representante sindical, Zeke pede pela segurança de Jerry e Smokey, além de exigir ter tanto poder quanto o Sr. Johnson tem, sendo- lhe permitido realizar mudanças nas relações de trabalho. Entretanto, Smokey é morto em um acidente suspeito na linha de produção, fato que mostra a Zeke a realidade da qual ele está tomando parte. Diante do questionamento de Jerry 81

sobre a morte de Smokey, Zeke o informa de ser o novo representante e que pretende realizar mudanças a partir de dentro do sindicato. Após Jerry recusar um emprego sindical oferecido por Zeke, este informa como as coisas funcionam e critica Jerry por estar, segundo ele, pensando como um branco. Zeke acredita que não terá outras oportunidades de avançar na hierarquia social por ser negro e que deve aceitar essa oportunidade, para sua segurança e de sua família. Após sofrer um atentado, Jerry decide colaborar com o FBI, o que merece a oposição de seus antigos colegas de fábrica. Retornando à empresa em companhia de agentes policiais para pegar seus pertences, Jerry discute com Zeke, agora representante sindical, trocando ofensas racistas. Na cena final, colocam-se em posição de enfrentamento físico, com a cena sendo congelada e desaparecendo em um fade-out vermelho que traz os créditos finais. Em “Vivendo na Corda Bamba”, Schrader constrói um enredo que se fundamenta na realidade do trabalhador da indústria automobilística. Localizada no norte do país, na região de industrialização antiga, essa indústria enfrentava um período de crise no final da década de 1970. Essa região80, outrora a economicamente mais desenvolvida do país e que recebera a denominação de manufacturing belt (cinturão da indústria), começava a ser conhecida à época como rust belt (cinturão da ferrugem), devido à descontinuidade da indústria do aço e de suas correlatas. Diante da concorrência da indústria de automóveis da Alemanha e do Japão, as montadoras dos Estados Unidos diminuíram a produção em suas fábricas originais, transferindo parte de suas operações para outras regiões do país e para o exterior. Essa conjuntura provocava o aumento do desemprego e o achatamento dos salários, com a consequente queda do padrão de vida dos trabalhadores. Nesse cenário, o filme aborda a vida cotidiana do assalariado americano, examinando as relações sociais e de trabalho dentro da classe baixa, adicionando o elemento da interação entre brancos e negros. Assim, Schrader seleciona um trio composto por dois homens negros e um branco como protagonistas da trama. Esses homens possuem um forte laço de amizade o qual transcende as questões culturais e sociais que poderiam se desdobrar nas clivagens raciais presentes na sociedade americana. Desse modo, apesar de surgirem debates referentes ao racismo no mercado de trabalho do norte industrializado, a existência do laço de amizade inter-racial minimiza as possibilidades do enredo quanto ao tratamento do tema.

80 Trata-se da maior e mais antiga área industrializada dos Estados Unidos, na qual se estabeleceram os principais ramos da indústria pesada e de bens de consumo duráveis devido à proximidade com as fontes de matéria prima, em torno dos Grandes Lagos, e do Oceano Atlântico, que facilitava a exportação da produção. Chicago, Detroit, Buffalo, Milwaukee, Pittsburgh e Cleveland são algumas das principais cidades. 82

Desde o início da projeção, as muitas cenas rodadas no chão de fábrica da linha de montagem esclarecem que os trabalhos mais estafantes são realizados tanto por brancos quanto por negros. Sendo as tarefas executadas em comunhão, a película não veicula atritos raciais graves entre os trabalhadores. Por outro lado, os integrantes da administração são todos brancos, partindo do supervisor Miller, que está apenas um degrau hierárquico acima da massa de empregados da fábrica. Essa divisão racial na verticalidade das relações de trabalho é igualmente percebida ao se observarem os quadros do sindicato que representa os funcionários daquela indústria. Do representante Hill ao diretor sindical Johnson, todos são brancos, excetuando-se a secretária do sindicato e, na reunião, o redator da ata, o vigia e a senhora que prepara o café, negros. Ou seja, tanto dentro da estrutura de trabalho da fábrica quanto na organização de administração do sindicato, cabe aos negros apenas posições subalternas, paralelas, apesar de nestas contarem com a companhia dos brancos não especializados.

Fotogramas 15 (12min.33seg.) e 16 (01h06min.27seg.) - Brancos e negros partilham as posições de trabalho nas funções menos qualificadas, enquanto que a supervisão da fábrica e a direção do sindicato são exclusivamente brancas. A consonância entre os trabalhadores também é sublinhada nos momentos de lazer usufruído após cada jornada de trabalho. Com o fim do turno, negros e brancos refugiam-se no mesmo bar, onde bebem e se distraem conversando amenidades. Os comentários jocosos 83

feitos por Zeke no bar, no entanto, demonstram o equilíbrio instável das relações raciais e culturais estabelecidas. Em uma das vezes em que o trio de amigos adentra o bar, Zeke comenta: “- Temos que procurar um outro bar. Tem negros aqui”, logo após apertar a mão de um homem negro. Em outra oportunidade, quando um branco admirador do gênero musical country coloca uma música na jukebox, Zeke o reprova, ocorrendo o seguinte diálogo:

Zeke: “- Hank, cara. Já chega de música country.” Hank: “- É o meu dinheiro e gasto como quero. É disso que gosto no sul.” Zeke: “- Hank. Acreditava que me queria.” Zeke (olhando para os seus companheiros): “-Não suporto esse filho da puta.”81

Apesar disso, a amizade entre os protagonistas ignora os possíveis desdobramentos provocados pela diferença racial. Dessa forma, a proximidade existente entre Zeke e Jerry faz com que suas famílias confraternizem, participando de uma partida de boliche na qual rivalizam amigavelmente. As relações familiares de ambos são, por sinal, bastante similares. Tanto Zeke quanto Jerry enfrentam problemas em assegurar o sustento digno da casa. Assim, se Zeke mente para a receita federal e faz bicos como pintor a fim de aumentar os ganhos, Jerry trabalha no turno da noite como frentista em um posto de combustíveis. Nenhum desses esforços, no entanto, é suficiente para melhorar as condições financeiras da dupla.

Fotograma 17 - As famílias de Zeke e Jerry confraternizam, sem que exista qualquer diferença de cunho racial (54min.23seg.). Apesar de Smokey não possuir família, sua inserção na vida dos companheiros se dá além da realidade cotidiana do trabalho através dos prazeres que proporciona aos amigos. No

81 O diálogo inicia-se em 09min.00seg. e conclui-se em 09min14seg. 84

enredo de Schrader, a orgia organizada por Smokey em seu apartamento figura como o alívio de Zeke e Jerry das privações que a vida familiar representa. Além disso, a festa particular consiste em mais uma oportunidade da suposta afinidade racial ser explorada pela película, já que o grupo de mulheres convidado por Smokey é formado por duas mulheres brancas e duas negras, com Jerry relacionando-se sexualmente com uma das últimas. Por sua vez, a participação feminina no filme é pouco desenvolvida, já que a trama volta-se ao trabalho em uma indústria automobilística, ambiente predominantemente masculino. Assim, as mulheres que aparecem na tela são retratadas, quase que exclusivamente, no papel da esposa portadora das dificuldades familiares ou como objeto de satisfação sexual. Schrader, desse modo, furta-se a oferecer às mulheres qualquer poder de agência no mundo do trabalho da classe baixa americana. As poucas mulheres trabalhadoras representadas são, dessa forma, figurativas. A contiguidade de classe proposta na película concretiza-se, ainda, através da partilha do consumo cultural das famílias de Zeke e Jerry. Apesar das raízes étnicas negras, no caso daquela, e da origem branca, no caso desta, ambas as famílias desfrutam de boa parte do exíguo tempo livre de que dispõem assistindo a séries televisivas de comédias estreladas por negros. Estes sitcoms consistem em um popular gênero de comédia de situação, no qual uma família, usualmente de classe média, enfrenta inúmeras peripécias todas as semanas. Enquanto as mulheres se distraem com o entretenimento de nenhuma profundidade, Jerry ignora o programa, enquanto Zeke tece críticas quanto à representação de negritude construída e difundida pela série que, segundo ele, ridiculariza os negros. Momentos antes de sua crítica, porém, uma senhora idosa, personagem do sitcom em questão, afirma: “- Sempre tentando ser algo que não é.” Parece que, segundo a linha narrativa da película, é Zeke quem insiste em buscar ser algo que não lhe cabe, por não aceitar se submeter às condições decepcionantes que lhe são disponibilizadas pelo mercado de trabalho. Desta maneira, a trama alude à postura dócil esperada do trabalhador pela estrutura de produção. Zeke talvez devesse ser grato pelas conquistas alcançadas no campo da equiparação das condições de trabalho e emprego entre brancos e negros. Insatisfeito, termina por conseguir uma posição dentro da hierarquia sindical, o que significa ultrapassar os limites que a vida de trabalhador braçal lhe impunha. Reforçando essa retórica, cara aos administradores do sindicato, a sala de reuniões dos trabalhadores na fábrica é adornada por grandes fotografias que celebram a comunhão entre brancos e negros na conquista de uma melhor realidade de trabalho. Vê-se, assim, uma montagem de John Kennedy e Martin Luther King Jr., lado a lado, além de uma fotografia de 85

trabalhadores de ambas as raças enfrentando a polícia em um piquete. As vitórias dos trabalhadores, segundo os sindicalistas, apenas foram alcançadas através da conciliação de brancos e negros em busca de um objetivo comum.

Fotograma 18 - Na sala de reuniões sindicais, fotografias exaltam a comunhão entre brancos e negros, com destaque para a imagem de John Kennedy e Martin Luther King Jr (01h05min57seg.). Diante das adversidades a que os baixos salários os submetem, os amigos decidem roubar o cofre do sindicato. Depois da orgia, e recuperados do torpor causado pelo álcool e pelas drogas que experimentaram, o trio esclarece qual a motivação para cometerem o crime:

Jerry: “- Sempre que entro na coca penso que não voltarei para a fábrica. Não sei por que faço isso.” Smokey: “- Porque o banco precisa do seu pagamento.” Jerry: “- Isso é a única coisa que a empresa te dá. Tenho uma casa, uma geladeira, uma lava-louças, uma lavadora secadora, uma TV, um aparelho de som, uma moto, um carro... Você compra uma merda, compra outra merda, e fica com um monte de merda. Nem sequer são suas. Não pode devolver porque já estão velhas.” Zeke: “- Às vezes fico bastante deprimido. Começo a pensar nas coisas que prometi a Caroline e nunca poderei dar. E sei que um homem deve cuidar da sua família.” Jerry: “- Jesus!” Zeke: “- Nunca dei sorte em ganhar dinheiro. Nunca tenho um dólar. Não sei mais o que fazer. E Deus sabe o quanto tento. Se não fosse por Smokey estaríamos numa puta merda.” Jerry: “- Jurei este ano que não trabalharia nas férias.” Zeke: “- De onde vou tirar 3.000 contos? Não posso foder com esses credores porque logo fodem com a sua família.” Smokey: “- Então roube o cofre de que você tanto fala.”82

Enquanto fazem as reflexões acima, os amigos encontram-se sentados lado a lado em um sofá junto de uma janela através da qual é possível se visualizar um outdoor ocupado por

82 O diálogo inicia-se em 32min50seg. e termina em 35min30seg. 86

uma publicidade da indústria automobilística, conforme o dia amanhece. O Pontiac Phoenix, fotografado no outdoor pela dianteira, é representado em um fundo escuro envolto por raios de luz vermelha que surgem de sua traseira, uma representação condizente com o mito da ave de mesmo nome, que morre através do fogo autoinfligido e ressurge de suas próprias cinzas. Essa citação da ave mitológica no momento em que os amigos cogitam seriamente roubar o cofre do sindicato exprime uma tentativa de se defender da realidade opressora na qual vivem83. No entanto, a referência inicial ocorre através da correlação da indústria (e do consumo) com a ave. Sendo o consumismo a principal instância do capitalismo a ser criticada pelo trio na cena, o Pontiac Phoenix representa a particularidade desse sistema econômico em se manter, mesmo diante dos contextos de crise. Desenvolvendo-se em instabilidade, esse modo de produção faz como a ave mitológica, destruindo-se e renascendo através da constante oferta de novos bens de consumo, em suma similares àqueles que foram relegados à obsolescência pela própria substituição do velho pelo novo.

Fotograma 19 - Enquanto os amigos lamentam as condições financeiras desfavoráveis, percebe-se pela janela um outdoor com a propaganda de um automóvel, principal símbolo do consumo na sociedade dos Estados Unidos (33min.12seg.). Ainda em relação ao consumo como domínio responsável pela perda da riqueza gerada através do trabalho, e da ausência de defesa dos trabalhadores diante dessa esfera do capital, compreende-se a postura de Zeke que, apesar de reprovar o programa televisivo que assiste, faz questão de manter o aparelho de televisão ligado por ter levado três anos para quitar a compra. Igualmente significativo é o fato de Jerry vestir uma camiseta branca com a

83 O próprio uso de entorpecentes durante a festa pode significar a tentativa de alienação, ainda que passageira, da realidade desfavorável que enfrentam. 87

marca registrada da cadeia internacional de fastfood McDonald’s e na qual se lê a conhecida descrição do Big Mac84, principal produto da empresa. Na cena, Jerry afirma à esposa que o casal compraria o aparelho odontológico da filha no dia seguinte, imediatamente se lembrando de não possuir dinheiro para tanto. A jovem havia se ferido tentando construir um por conta própria. Desse modo, Schrader aborda o consumismo propagado no sistema capitalista como um dos causadores das condições adversas de vida e das relações de trabalho desfavoráveis para os trabalhadores, porém não oferece destaque ao tema. Alguns minutos à frente na projeção, os companheiros, já preparados para praticar o roubo, estacionam em frente ao sindicato. Com a iminência do crime, Zeke diz que deveriam roubar uma loja de bebidas, a que Jerry responde dizendo ser incapaz de praticar um roubo de verdade. Sendo questionado da veracidade do roubo que estão prestes a realizar, Jerry afirma não se tratar de um roubo, mas de vingança. O enredo, porém, não deixa claro contra que instituição a vingança seria direcionada. Seria contra o sindicato, representado como corrupto e incompetente para atender às demandas dos trabalhadores, que o trio pretende se vingar invadindo sua sede? Ou a vingança volta-se contra a fábrica e as condições de trabalho exploratórias que representa, sendo o roubo uma forma de compensação pelo trabalho realizado e mal remunerado? Nesse último sentido, a vingança poderia se desdobrar contra a exploração através do capital e a consequente situação econômica adversa, evidente para os três, porém especialmente para Zeke e Jerry, que não coseguem prover suas famílias com a segurança mínima necessária. Apesar de não propor uma análise aprofundada das relações de trabalho, tampouco raciais, realizando apenas uma abordagem superficial desses temas, o filme de Schrader se distancia da maioria dos títulos hollywoodianos do período por trazer homens negros representados como trabalhadores, ao invés de limitá-los ao estereótipo do criminoso comum. No entanto, o roubo ao cofre aproxima os amigos dessa caracterização da qual são resguardados apenas pela retórica que aponta o roubo como uma vingança social. A personalidade de Zeke é o elemento responsável por sublinhar os ruídos presentes na aparente harmonia racial da classe trabalhadora retratada em “Vivendo na Corda Bamba”. Logo no início do enredo, durante a reunião sindical, Zeke afirma todos saberem que plant, do inglês, “fábrica”, em realidade significa o diminutivo de plantation, antiga forma de produção

84 "Two all-beef patties, special sauce, lettuce, cheese, pickles, onions, on a sesame seed bun." Na versão brasileira: “dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola e picles, num pão com gergelim. É o Big Mac.” 88

agrícola predominante no período de utilização da mão de obra escrava negra, na maioria das colônias, e, posteriormente, Estados independentes do continente americano. O trabalhador não deixa de ir à sede sindical com o objetivo de reclamar da maneira como é tratado pelo seu representante, garantindo existirem diferenças entre o tratamento dispensado a negros e brancos. Assim, sua postura determinada leva o Sr. Johnson a propor- lhe um cargo no sindicato, quando precisa neutralizá-lo diante da descoberta da caderneta com anotações financeiras comprometedoras. E seria na chave interpretativa da discrepância de oportunidades que Zeke justificaria a Jerry ter aceitado a oferta, informando que, por ser negro, não poderia abrir mão dessa possibilidade de melhoria de seu padrão de vida. Diante da oposição de Jerry, Zeke acusa o amigo de estar “pensando como um branco”. Mesmo a morte suspeita de Smokey não abala a resolução de Zeke em ingressar na carreira sindical.

Fotograma 20 - Zeke, novo representante sindical, e Jerry, delator para o FBI das irregularidades do sindicato, enfrentam-se na cena final (01h45min.59seg.). Diante da agressão prestes a ocorrer, todos os trabalhadores da linha de produção, brancos e negros, tentam apartá-los. Quando, na cena final, Zeke, então o novo representante sindical, desentende-se com Jerry, agora informante do FBI quanto às atividades do sindicato, as acusações de traição logo dão lugar a uma série de ofensas de cunho racista, proferidas por ambos. Esses xingamentos, porém, podem significar a tentativa mais fácil de insultar um ao outro, ao invés de esclarecer uma verdadeira postura racista partilhada pelos dois. No momento em que a hostilidade alcança as vias de fato, e a imagem é congelada, repete-se uma fala de Smokey, pronunciada no início da projeção. Segundo Smokey: “É exatamente o que a companhia quer (...). Os de 89

sempre contra os novos, os velhos contra os jovens, negros contra brancos. Tudo para nos manter no nosso lugar.” Encerrando desse modo a película, Schrader sustenta a linha geral sobre a qual se assenta a abordagem das relações raciais implementada em seu filme. Apesar dos comentários racistas pontuais, por vezes irônicos ou cômicos, e mesmo Zeke tendo reclamações quanto ao tratamento oferecido aos negros por seu representante sindical, a linha de produção é a prova do trabalho racialmente integrado e das relações equânimes firmadas entre os trabalhadores. Na representação da classe baixa operada, torna-se mais emblemática sua proximidade de classe do que suas diferenças raciais, em âmbito social e histórico, como as condições de vida similares e o consumo cultural semelhante demonstram. Assim, os trabalhadores teriam a tendência ao convívio pacífico, sendo os atritos raciais alimentados por uma superestrutura econômica que se beneficiaria com a falta de unidade das classes populares.

2.2.3 As Relações Raciais na Costa Oeste Abastada dos Anos 1960 e no Norte Assalariado dos Anos 1970 As locações dos filmes acima examinados aproximam os enredos às atmosferas de seus respectivos períodos de produção. Realizado no final da década de 1960, “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” é rodado em São Francisco, uma das cidades onde as principais transformações culturais do período foram mais expressivas. Assim, a história da jovem oriunda de uma família rica e de princípios progressistas que se apaixona por um homem negro e bem-sucedido profissionalmente é estabelecida em uma realidade extradiegética que oferece à trama os alicerces para seu principal argumento. O amor de John Prentice e Joanna Drayton seria ainda menos verossímil se localizado em um dos estados segregacionistas do sul. De mesmo modo, “Vivendo na Corda Bamba” lida com as dificuldades do mercado de trabalho na classe baixa, na conjuntura de crise econômica do final da década de 1970. Logo, a história tem como cenário a indústria automobilística do norte do país. Por um lado, essa foi a região que mais intensamente sofrera as consequências da recessão interna e das mudanças do mercado internacional. Por outro, as montadoras de automóveis compunham o ramo empresarial que enfrentara diretamente os desdobramentos das crises do petróleo que ocorreram naquela década. Paralelamente, a busca por direitos para os negros havia se voltado para a realidade urbana dos estados do norte dos Estados Unidos, após ganhos significativos serem alcançados no que se refere ao acesso ao direito de voto da população negra e na 90

desconstrução da segregação no sul. Dessa maneira, Detroit oferece espaço para o enredo abordar as relações de trabalho e raciais nas bases da pirâmide social do país. Quanto aos personagens, o filme de Kramer delimita a aceitação da relação inter- racial a pessoas instruídas, esclarecidas e de alto poder aquisitivo. Dentro dos marcos da narrativa, indivíduos das demais classes sociais, ou menos instruídos, apresentam sérias reservas quanto à aceitabilidade cultural e social da relação entre uma mulher branca e um homem negro. Assim, tanto Tillie quanto os pais de Prentice apresentam ressalvas, cada qual a sua maneira, à aproximação de Joanna e Prentice. Hilary, de classe média, ridiculariza a presença de Prentice por possuir uma posição unicamente racista, sem demonstrar qualquer argumento que fundamente sua opinião, argumentos que não faltam a Tillie. Se as mães aceitam a união de seus filhos, o fazem por entender estar em jogo a felicidade de ambos. Já a produção de Schrader elege a classe média baixa como lócus da convivência entre brancos e negros, no norte industrializado do final da década de 1970, sem veicular qualquer personagem de classes sociais superiores. Desse modo, inexiste no filme a comparação entre classes sociais quanto à postura diante das relações entre indivíduos de raças diferentes. Mesmo no que concerne aos operários e seus familiares, a película não realiza um debate detalhado de como as diferenças históricas referentes à raça se estabelecem no cotidiano. Em “Adivinhe Quem Vem Para Jantar”, a aproximação definitiva do casal depende da aprovação irrestrita dos pais da jovem, e diante da rápida aceitação da mãe, logo passa a depender exclusivamente da aprovação do pai. Essa questão torna a validação do matrimônio um acontecimento paternalista. Assim, a relação inter-racial é encarada com ressalvas, chegando a ganhar conotações de estar o Sr. Drayton agindo de maneira “politicamente correta” a fim de manter a coerência com seus valores liberais, publicamente conhecidos. Como “Vivendo na Corda Bamba” baseia seu enredo no companheirismo de um trio de operários formado por dois negros e um branco, a representação da relação entre as raças é construída de maneira naturalizada. De alguma forma, apesar das diferenças históricas, dos acontecimentos da década anterior e do mercado de trabalho desfavorável aos negros, quase inexistem citações a essas questões. A amizade do trio parece ignorar esses elementos. Assim, considerando os posicionamentos retóricos de ambas as produções, as relações sociais e afetivas entre negros e brancos têm pouco contato com os contextos históricos nos quais os filmes foram realizados. A comemoração do laço afetivo entre John e Joanna, no ambiente de alta classe que se coloca, não permite qualquer espaço para a realidade de radicalização dos movimentos negros nos Estados Unidos de 1967. Nada é 91

debatido a respeito dos ganhos obtidos pelo movimento dos direitos civis, tampouco sobre o rompimento em violência de inúmeros bairros negros pelo país, naquele mesmo ano. Se a possibilidade de matrimônio entre um negro e uma branca pode figurar como consequência das transformações culturais concernentes à inserção do negro na sociedade americana, a pessoa de John Prentice encontra-se tão afastada do cidadão negro mediano dos Estados Unidos do final dos anos 1960 que minimiza esse desdobramento. A camaradagem do trio de metalúrgicos, por sua vez, faz parecer que após o contexto da busca por direitos, intensificado a partir da década de 1950, bem como das distintas fases da luta dos negros, nos anos 1960 e 1970, o laço de amizade pode ser considerado como perfeitamente integrado à realidade do trabalho nas indústrias do norte. Dessa forma, o enredo desproblematiza a questão da relação racial, deixando a impressão de que os pontos nevrálgicos já haviam sido solucionados. Assim, os xingamentos racistas trocados entre Zeke e Jerry na cena final são colocados como a maneira mais fácil de ofenderem-se mutuamente, despidos de sua real profundidade étnica. Finalmente, a trama do final da década de 1960 opta por estabelecer o triunfo da conciliação e da comunhão do casal inter-racial, o que pode ser desdobrado alegoricamente para o nível da harmonia social, do prevalecimento do caráter coletivo na sociedade. Opostamente, o filme do final da década seguinte determina o rompimento, afirmando o individualismo através da defesa da família e de um melhor padrão de vida, já que é através desses argumentos que os amigos assumem posicionamentos opostos.

2.3 A CONTRACULTURA No âmbito cultural, a oposição dos jovens aos valores constituintes da sociedade dos Estados Unidos levou à formação de comunidades que buscavam novos modos de vida. Essa parcela da juventude85 distinguia-se pela experimentação: ansiavam por outra espiritualidade, capaz de compensar o materialismo e o consumismo cotidiano. Nesse sentido, aproximaram- se das religiões orientais e do xamanismo dos índios americanos; defenderam o uso de substâncias psicotrópicas, a fim de expandir a capacidade de sentir o mundo, entrando, assim, em “viagens” alucinógenas de autoconhecimento; entregaram-se a novas formas de vivenciar a sexualidade, acreditando ultrapassar, desse modo, a repressão individual imposta pelos valores ocidentais. Caracterizando o acontecimento:

85 Apesar da proeminência da juventude na constituição do movimento hippie, que melhor encerra as características da contracultura, é preciso salientar que não apenas essa parcela da população abraçou as transformações advindas desse acontecimento. Ademais, alguns dos elementos que arquetipicamente representam a contracultura já haviam estado presentes em movimentos culturais anteriores. 92

Em meados da década de 1960, durante os mesmos anos em que a violência estava sacudindo o país, surgiu aquela notável concatenação de fenômenos a que os analistas sociais deram o nome de “contracultura”. A juventude branca de classe média superior, e alguns mais velhos, postularam ideias e conduziram-se de modos que iam “contra” muito do que era apreciado não só pela América de Eisenhower, mas também pelo liberalismo de Kennedy-Johnson: a abundância, o crescimento econômico, a tecnologia e as instituições e sistemas de valores associados à ética protestante de espírito de sacrifício e de repressão sexual, além das premissas mais modernas da cultura de consumo e da meritocracia.86

Nesse contexto, os jovens se colocaram em oposição não apenas ao consumo, mas igualmente ao conhecimento científico, inclusive médico, e da tecnologia, em todas as suas formas, sob a argumentação de que a ciência trazia, em seu aparente progresso, a degeneração dos valores espirituais. Além disso, qualquer forma de autoridade, fosse institucional ou pessoal, foi desconsiderada. Fundamentava-se, dessa maneira, a postura anti establishment do movimento hippie. Enquanto fenômeno social, a contracultura se desconstrói quando seus valores são reapropriados pela cultura de consumo, aquela cuja oposição se encontrava nas bases do movimento, por um lado, e diante do problema social gerado a partir do momento em que inúmeros jovens encontraram em suas “viagens” alucinógenas não um caminho para a expansão individual e o autoconhecimento, mas um atalho para a autodestruição, por outro. Passado o período de maior turbulência cultural e política juvenil, os anos 1970 iniciam-se com a contracultura em franca decadência, mesmo em Nova Iorque e São Francisco, cidades nas quais os hippies haviam se apropriado de bairros inteiros. A busca por uma sociedade mais justa continuava, agora, através do movimento feminista, principalmente, além dos movimentos gay e étnicos. Dos acontecimentos culturais mais marcantes ocorridos nas décadas em consideração, a contracultura foi aquele que mereceu maior atenção por parte da produção cinematográfica dos grandes estúdios.87 Desse modo, alguns dos títulos do cinema americano da segunda metade da década de 1960 fundamentaram-se em enredos nos quais personagens jovens colocavam-se em posição de ruptura aos valores tradicionais daquela sociedade, ecoando os debates sociais do momento. Assim, os estúdios construíram representações que tanto enaltecem a busca por uma sociedade mais justa quanto sublinham a ausência de efetividade dos anseios da juventude.

86 LEUCHTENBURG. William E. (org.). O Século Inacabado – A América Desde 1900. Vol. II. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 885. 87 Dois outros acontecimentos bastante explorados cinematograficamente foram os escândalos políticos que levaram à renúncia do Presidente Nixon e, especialmente, a Guerra do Vietnã. Entretanto, esses contextos não se constituíram como fenômenos culturais, porém fatos políticos dos quais se desdobraram consequências no âmbito cultural. 93

“Bonnie e Clyde: uma rajada de balas” (Bonnie and Clyde, dir.: Arthur Penn, 1967) foi o primeiro filme do período a trazer às telas valores relativos à retórica dos movimentos juvenis. Através da romantização dos históricos ladrões de bancos, Penn atualiza a narrativa do inimigo público, relacionando-a ao contexto da luta dos jovens por direitos. A recusa a se submeter a um Estado incapaz de prover seus cidadãos com os direitos básicos de sobrevivência e de dignidade, e as consequências fatais decorrentes da oposição a essa instituição, são a tônica da trama. Logo em sequência, “A Primeira Noite de Um Homem” (The Graduate, dir.: Mike Nichols – 1967), anteriormente analisado, apresenta os indícios das transformações culturais através das dúvidas e anseios enfrentados por um jovem universitário de classe média alta, enquanto “Sem Destino” (Easy Rider, dir.: Dennis Hopper – 1969) elege uma dupla de motociclistas como personificações da contracultura. A viagem que estes últimos empreendem através dos Estados Unidos torna-se o ícone cinematográfico da inquietação da época. Outro título que se volta aos valores culturais característicos da juventude do fim dos anos 1960 é “Zabriskie Point” (dir.: Michelangelo Antonioni – 1970). Nesta obra, Antonioni problematiza as possibilidades de concretização das demandas juvenis por uma sociedade harmônica, sublinhando a falta de programa dos movimentos políticos universitário e negro, ao mesmo tempo em que relativiza os ganhos das novas experiências culturais. Apesar da decidida oposição aos parâmetros sociais e políticos estabelecidos, a determinação pela mudança não parece suficiente, segundo o enredo, para que os objetivos sejam alcançados. Na década de 1970, as representações cinematográficas juvenis afastam-se da temática da contracultura, em prol de um ciclo no qual os enredos retornam ao início dos anos 1960. Em “Loucuras de Verão” (American Graffiti, dir.: George Lucas – 1973), esse momento anterior ao cenário de transformações culturais e políticas foi tratado como um período de simplicidade ingênua e salutar, no qual os supostos benéficos valores tradicionais ainda eram capazes de assegurar a paz social. Já em “Clube dos Cafajestes” (National Lampoon’s Animal House, dir.: John Landis – 1978), a vida universitária limita-se às disputas e brincadeiras dos membros de irmandades estudantis, no ano de 1962, em uma representação desprovida de profundidade política. Assim, a retórica juvenil característica da década anterior é diluída em representações que parecem encerrar o fim dos anos 1960 em um breve recorte fora do desenvolvimento contínuo da sociedade americana. Como exceção, pode-se citar “Hair” (dir.: Milos Forman – 1979), que remonta à cultura jovem daquele período. 94

A seguir, examina-se a produção “Sem Destino” (Easy Rider, dir.: Dennis Hopper – 1969) e o musical “Hair” (dir.: Milos Forman – 1979), duas das representações cinematográficas da contracultura que receberam maior reconhecimento. Se “Sem Destino” baseia-se em uma avaliação pessimista dos resultados da efervescência cultural, fazendo um exame desanimador da sociedade dos Estados Unidos, “Hair” reabilita a alegria dos jovens contraculturais do final dos anos 1960, uma década após o acontecimento ter alcançado seu apogeu.

2.3.1 “Sem Destino” (1969) “Sem Destino” é dirigido por Dennis Hopper (1936 – 2010). Nascido no Kansas, Hopper começou a atuar ainda criança. Na adolescência, participa de séries televisivas e filmes. Apesar de representar papéis menores no cinema, participou de películas que foram bem-sucedidas no lançamento e se tornaram relevantes, posteriormente, como Johnny Guitar (1954) e “Juventude Transviada” (Rebels Without a Cause – 1955), dirigidos por Nicholas Ray, e “Assim Caminha a Humanidade” (Giant – 1956), de George Stevens. Ao longo dos anos 1960, participa de algumas produções, sem protagonizá-las, até que, no final da década, escreve o roteiro de “Sem Destino”, em companhia de Peter Fonda e Terry Southern. O filme alcança sucesso de público e crítica, lançando Hopper ao estrelato internacional. Entretanto, seu próximo projeto cinematográfico, “O Último Filme” (The Last Movie – 1971), fracassa, e até o final da década Hopper apenas participaria de algumas produções europeias. Posteriormente, Hopper confessaria ter desenvolvido profunda dependência por drogas lícitas e ilícitas ao longo dos anos 1970, fato que comprometeu a qualidade de seu trabalho. Seu papel em Apocalypse Now (Francis Ford Coppola – 1979) reabilita-o, reabrindo as portas de Hollywood. Nas décadas seguintes Hopper colaborou em projetos significativos, destacando-se em enredos com temáticas desafiadoras, como “O Selvagem da Motocicleta” (Rumble Fish – 1983), também dirigido por Coppola, e “Veludo Azul” (Blue Velvet – 1986), de David Lynch. Além de ator e diretor, Hopper era fotógrafo e pintor, tendo exposto suas obras em galerias dos Estados Unidos e de outros países. A película narra a viagem feita por dois motociclistas, Wyatt ou “Capitão América” (Peter Fonda), e Billy (Dennis Hopper). A dupla de amigos tem como objetivo chegar à cidade de Nova Orleans em tempo de acompanhar o Mardi Gras, partindo de Los Angeles. O filme se inicia com os protagonistas no México, adquirindo certa quantidade de cocaína que é contrabandeada para a Califórnia e vendida como forma de levantar uma soma significativa de dinheiro capaz de, segundo eles, assegurar-lhes riqueza e liberdade. Após venderem o 95

entorpecente, um corte na projeção traz Wyatt e Billy já no deserto. Tendo escondido a soma em um tubo plástico dentro do tanque de combustível da moto de Wyatt, a dupla parte para a jornada. A viagem é pontuada pelas pessoas com as quais os amigos travam contato. Logo no início, um pneu furado os leva a buscar ajuda em um rancho habitado por uma família numerosa. Neste lugar, o modo de vida ainda se assemelha àquele tradicionalmente reconhecido como a vida rural do oeste. O rancheiro sublinha a origem católica de sua mulher, que possui traços mestiços, para justificar o número de filhos. Wyatt o parabeniza pelo que possui, podendo viver de sua propriedade, trabalhando naquilo que lhe pertence, obedecendo ao seu próprio ritmo. Partindo do rancho, os dois motociclistas aceitam dar carona a um estranho (Luke Askew), de trajes visivelmente hippies, e levá-lo até a comunidade onde reside. Chegando ao local, encontram um grupo de pessoas, oriundas das cidades, que decidiram buscar um novo modo de vida, mais simples e ligado à natureza. Permanecendo lá por um dia, percebem que a vida na comunidade é difícil, já que as pessoas tentam semear um solo árido, em uma região de poucas chuvas e fora do período correto do ano para o plantio. Apesar da pouca comida, o grupo se mantém, contando com a presença de crianças. O uso de entorpecentes e a prática sexual livre estão presentes na comunidade. Apesar de possuírem pouco, as pessoas passam os dias realizando atividades artísticas e esperando que a natureza recompense o árduo trabalho no campo. Antes de partirem, o caroneiro, que figura como líder do grupo, oferece LSD a Wyatt, dizendo para repartir a substância com as pessoas certas, no lugar certo. Seguindo na estrada, a dupla invade uma parada municipal, sendo presos sob a alegação de desfilarem sem autorização. Na cadeia, conhecem o advogado George Hanson (Jack Nicholson), que afirma já ter advogado para a ACLU88. Pelo tratamento cuidadoso que recebe dos guardas da delegacia, que o chamam pelo nome e, inclusive, trazem aspirina à cela, percebe-se que Hanson faz parte de uma família importante da região. Por seu comportamento e comentários dos policiais, entende-se que Hanson é alcoólatra e frequentador constante da prisão. De qualquer forma, livra a dupla de motociclistas da cadeia, rapidamente fazendo amizade com eles e partindo na companhia dos dois para Nova Orleans. Hanson confessa ter planejado inúmeras vezes esta viagem, mostrando o cartão de um prostíbulo da cidade, entregue a ele pelo governador da Louisiana.

88 ACLU - American Civil Liberty Union (União Americana pelas Liberdades Civis). Fundada em 1920, a ACLU é uma organização não governamental que tem como objetivo defender as liberdades individuais garantidas pela Constituição e pelas leis dos Estados Unidos. No contexto do final dos anos 1960, retratado em “Sem Destino”, a organização foi bastante ativa na defesa das liberdades civis. 96

Naquela noite, enquanto pernoitam no campo, Wyatt oferece maconha a George, que primeiramente recusa, sob a alegação de que o entorpecente levaria a drogas mais potentes, além de fazer mal à saúde. Apesar do silêncio de Wyatt, que não encoraja o novo companheiro a experimentar, George decide provar, dando início a um diálogo inusitado com Billy. No dia seguinte, param em um restaurante de estrada no interior da Louisiana. No lugar são hostilizados pelo xerife e demais homens, que fazem observações preconceituosas e homofóbicas a respeito da aparência dos viajantes. Agravando a situação, o trio é cortejado por um grupo de meninas adolescentes, o que faz com que decidam ir embora sem se alimentar. À noite, enquanto acampam, são violentamente atacados. Billy saca uma faca e consegue afugentar os agressores. Wyatt e ele sofrem ferimentos superficiais, porém George é mortalmente ferido no pescoço, por uma machadinha. Os amigos envolvem o cadáver no saco de dormir, prometendo enviar seus pertences à família. Seguindo viagem, alcançam seu objetivo, Nova Orleans no Mardi Grass. Em memória a George, decidem visitar o bordel citado pelo amigo. No local, conhecem duas prostitutas, Karen (Karen Black) e Mary (Toni Basil). Na companhia das garotas, Wyatt propõe saírem pela cidade para conhecerem a festa popular. A sequência é gravada em estilo documental, demonstrando a heterogeneidade da festividade, seus desfiles, músicos e a sujeira presente nas ruas. O passeio termina em um cemitério da cidade, onde Wyatt decide repartir o LSD com o qual havia sido presenteado pelo caroneiro. O efeito da droga os leva a experimentar um estado de entorpecimento no qual lembranças do passado, referências à religião católica, nudez e sexo constroem uma viagem psicodélica resultante de uma bad trip89. No dia seguinte, saem da cidade rumo à Flórida, onde pretendem se “aposentar”. Na estrada, porém, são abordados por dois indivíduos em uma caminhonete. Um deles exibe uma espingarda a Billy, ofendendo-o. Diante da resposta de Billy, que mostra o dedo médio ao ofensor, este puxa o gatilho, derrubando o motociclista ao lado da estrada. Wyatt, que guiava à frente, retorna para resgatar o amigo, já bastante ensanguentado. Protegendo-o com sua jaqueta adornada pela bandeira americana, Wyatt decide ir atrás da caminhonete que, neste momento, já retorna na estrada com o objetivo de não deixar testemunhas do crime. Deparando-se com Wyatt, a espingarda dispara pela segunda vez, atingindo o tanque de combustível onde o dinheiro da dupla havia sido armazenado, que explode, destruindo a

89 Em tradução literal, “viagem ruim”. Termo que se refere a uma experiência desagradável resultante do uso de substâncias entorpecentes. 97

motocicleta. Uma tomada aérea fotografa os restos do veículo em chamas à beira da estrada deserta, próximo ao corpo inanimado de Wyatt. É o desfecho trágico da jornada em busca de liberdade. O roteiro de “Sem Destino” oferece poucas informações a respeito dos protagonistas. Nada sabemos sobre a origem de Wyatt e Billy, suas histórias familiares, seu arcabouço cultural, a classe social à qual pertencem, sequer como se conheceram e firmaram amizade. Apenas nos é permitido supor que, devido a sua filosofia de vida, devam possuir algum grau de instrução, pois dialogam com grupos culturais específicos presentes nos Estados Unidos do período, estes usualmente formados por jovens oriundos das classes médias e escolarizadas daquela sociedade. A produção mergulha no ambiente contracultural do final da década de 1960 pretendendo problematizar a sociedade americana através das relações existentes entre distintos grupos sociais, especialmente nas regiões interioranas do sul dos EUA. Desta maneira, sublinha as tensões entre velho e novo, valores tradicionais e progressistas. Considerando-se serem essas as intenções do enredo, a trilha musical assume clara importância semântica para a narrativa, chegando a figurar como um resumo musical da trama, exortando à busca incessante por liberdade. Assim, enquanto os créditos iniciais são apresentados, durante os quais o espectador assiste aos motociclistas guiando tranquilamente, a música Born To Be Wild, tema do filme, compõe a cena. Considerada a primeira composição do estilo heavy metal, com forte marcação de bateria e presença de solo de guitarra elétrica, sua letra realiza uma junção entre o enredo e o contexto cultural com o qual este dialoga, bem como os personagens e acontecimentos que irão se desenrolar ao longo da projeção:

Get your motor runnin' Head out on the highway Looking for adventure In whatever comes our way

Yeah, darlin' Gonna make it happen Take the world in a love embrace Fire all of your guns at once And explode into space

I like smoke and lightnin' Heavy Metal thunder Racing in the wind And the feeling that I'm under

Yeah, darlin' Gonna make it happen 98

Take the world in a love embrace Fire all of your guns at once And explode into space

Like a true nature's child We were born Born to be wild We can climb so high I never wanna die

Born to be wild Born to be wild90 Tendo seu lugar de fala na contracultura, “Sem Destino” assume uma clara postura ideológica. Considerando-se os tipos humanos com os quais os amigos travam contato, é evidente o processo de positivação dos indivíduos partícipes de um modo de vida mais livre, voltado à busca de uma existência distante do impulso ao consumo. Por outro lado, a América W.A.S.P91 é representada pelo viés da intolerância e da violência. Em suas motocicletas estilo chopper, típicas da Califórnia dos anos 1960, e peculiarmente trajados, os amigos não conseguem se estabelecer nos hotéis ou motéis de estrada por gerarem desconfiança nos funcionários dos estabelecimentos. Dessa forma, pernoitam ao relento, à beira da estrada, ou em ruínas que encontram pelo caminho. Seus trajes evocam personagens típicos do imaginário americano: enquanto Wyatt veste uma jaqueta adornada com a bandeira dos Estados Unidos, bandeira que igualmente figura na pintura de seu capacete e de sua motocicleta, o que o faz parecer uma versão motorizada e contracultural do Tio Sam, a indumentária de Billy faz alusão tanto aos cowboys do velho oeste, quanto aos índios nativos dos Estados Unidos, usando jaqueta de couro cru, com franjas e chapéu de abas largas. A referência ao ilustre criminoso, “Billy the Kid”, está registrada em seu epíteto. O enredo de Hopper constitui-se como um “filme de estrada”92, no qual os protagonistas se deslocam tendo como destino um objetivo apenas pontual. Característico

90 BONFIRE, Mars. Born To Be Wild. Intérpretes: Steppenwolf. In: Steppenwolf. Single. ____: Dunhill – RCA, 1968. A tradução da letra encontra-se no anexo nº 02. 91 Sigla de “white, anglo-saxan, protestant” (branco, anglo-saxão, protestante) que se refere aos princípios e valores considerados típicos da elite branca e tradicional dos Estados Unidos, com origens familiares e culturais inglesas. Como qualquer arquétipo social, a denominação não dá conta das especificidades do grupo que identifica ou daqueles que com ela se identificam. No enredo de “Sem Destino”, são os pobres brancos que se identificam com a sigla. 92 Como exemplos deste tipo de narrativa cinematográfica, pode-se citar a trilogia de Wim Wenders composta por “Alice nas Cidades” (Alice in den Städten – 1974), “Movimento em Falso” (Falsche Bewegung – 1975) e “No Decurso do Tempo” (Im Lauf Der Zeit – 1976), além dos “Diários de Motocicleta” (Diarios de Motocicleta – 2004) e “Na Estrada” (On the Road – 2012), de Walter Salles. 99

desse gênero ou subgênero cinematográfico93, as reflexões e descobertas que a viagem possibilita são notadamente mais significativas que a chegada ao destino inicialmente traçado, com os personagens usualmente deixando atrás de si a vida que levavam, experienciando modificações íntimas, de seu “eu”. Nessas narrativas, a estrada figura como um “não-lugar”, um território de passagem, que parte de um ponto determinado com vistas a possibilitar a chegada a outro, estes sim, lugares.

Fotograma 21 - A dupla de motociclistas na estrada, o não-lugar (53min.04seg.). Dando grande relevância para as tomadas panorâmicas, “Sem Destino” demarca a importância semântica da viagem no enredo. Além disso, a presença das paisagens dos Estados Unidos refere-se à busca pelos valores originais da nação. Objetivamente, a estrada materializa-se como uma personagem nos “filmes de estrada”. Nestes, assim como em “Sem Destino”, ela interage com os outros personagens, na medida em que delimita suas ações, suas experiências, bem como as relações firmadas ao longo do enredo. A estrada chega mesmo a guiar o desenrolar da trama. Dessa maneira, possui algo de onisciente, já que tudo acontece nela ou em suas margens. Como um observador privilegiado, a estrada poderia narrar a história. Por conseguinte, coloca-se em uma posição excepcional diante dos demais personagens. Nesta estrada, Wyatt e Billy realizam o inverso da histórica e mítica trajetória da América rumo ao oeste. Este movimento de expansão territorial, ponto central na narrativa de constituição da grandiosidade da nação, é amargamente criticado pelo enredo uma vez que, ao se viajar rumo ao leste, num exercício de revisão daquela jornada, os amigos descortinam uma

93 Para aprofundamentos quanto aos gêneros cinematográficos, conceitualizações e divisões existentes, conferir NEALE, Steve. Genre and Hollywood. Londres: Routledge, 2000 e LANGFORD, Barry. Film Genre - Hollywood and Beyond. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2005. 100

América muito divergente da que se fazia presente no discurso tradicional. Seus trajes, evocando personagens caras ao imaginário nacional, sublinham o sentido histórico da viagem, da trama.

Fotograma 22 - Os trajes de Wyatt e Billy, juntamente com suas motocicletas, referindo-se a personagens icônicas do imaginário nacional americano (12min.14seg.). A viagem rumo ao Mardi Gras consiste em uma jornada de descobertas dos verdadeiros valores da nação americana. Ao longo do caminho, o percurso de Wyatt e Billy vai clarificando a América, derrubando estereótipos e relativizando muitas das certezas que se encontram nas bases do ser americano. Os variados tipos com os quais os protagonistas travam contato dão mostras da heterogeneidade da nação, tanto nos padrões étnicos quanto nos valores culturais e morais. Assim, a narrativa da película harmoniza-se com apurado grau de sensibilidade ao quadro contracultural do fim da década, estando repleta das questões que embalavam tanto os debates quanto os estilos de vida defendidos pela cultura que eclodia no momento. Efetivamente, Wyatt e Billy realizam uma viagem de autoconhecimento, além da busca por uma América que lhes parece distante, mais propriamente que o simples deslocamento rumo a Nova Orleans. Pontuada pelo uso constante de cigarros de maconha, a trajetória não é pautada por um itinerário rígido, tampouco pela real observância do tempo a se levar até o destino final, permitindo alguns desvios e atrasos. Esta questão é sublinhada logo no início da projeção, na cena em que Wyatt lança seu relógio de pulso ao solo. Longe de se constituir um detalhe menor, a negativa em se submeter aos ditames do tempo do relógio afasta ainda mais os protagonistas do modelo vigente de cidadão. Desfazendo-se do 101

relógio, a dupla afasta-se da especificidade do tempo marcado por este artefato, o tempo do trabalho nos moldes capitalistas, o tempo da produção.

Fotogramas 23 (07min.05seg.) e 24 (07min.07seg.) - Momentos antes de iniciar a viagem, Wyatt se desfaz do relógio de pulso. Despe-se, assim, do tempo do trabalho que caracteriza a norma social vigente da qual a dupla se distancia. Apesar de comercializarem entorpecentes em troca de dinheiro, seus ganhos tencionam financiar a viagem e seu sustento, não a busca incessante do lucro, da acumulação. Prova isso o fato de contrabandearem apenas uma vez, ficando a impressão de se tratar de uma entrega encomendada, com comprador previamente acertado. Na cena seguinte à entrega do produto, em que Wyatt esconde o lucro da negociação no tanque de combustível de sua moto, significativamente adornado com a bandeira da nação, ouve-se The Pusher, música de autoria da mesma banda da música tema, que advoga o fim dos traficantes que comercializam entorpecentes apenas por dinheiro. Apesar de libertários, chegando ao ápice de traficarem cocaína, Wyatt e Billy não são perigosos ou violentos, ainda que estejam absolutamente distantes do conjunto de valores presentes nos alicerces tradicionais da sociedade americana. Assim, mesmo sendo avessos àquilo que, segundo sua ótica, degenerou a nação, não intentam qualquer ação que possa se voltar ativamente contra os valores ainda dominantes. Perceba-se que, embora existentes no 102

período, não há alusão na película a movimentos de retórica revolucionária, buscando todos os personagens partícipes do arquétipo da contracultura uma existência pacífica, distanciando- se dos valores pelos quais não pretendem se pautar.

Fotograma 25 - A comunidade hippie representada em seu cotidiano (31min.38seg.). Segundo o líder do grupo, pessoas “da cidade” que decidiram buscar uma existência simples. O modo de vida da dupla de amigos suscita declarada oposição das camadas tradicionais da sociedade, o que os coloca em situações delicadas ou de perigo, ao longo do enredo. É principalmente pela aparência denotada por suas vestimentas que Wyatt e Billy são presos na pequena cidade sulista, sendo inúmeras as citações à rejeição que seus cabelos compridos geram. Por fim, seria exclusivamente pelo que aquele modo de vida representa que os três viajantes sofreriam a agressão que vitimaria fatalmente George. Em um dos diálogos mais reveladores das tensões sociais existentes no período de produção do filme, o advogado reflete sobre a questão da busca pessoal por liberdade e da hostilidade que pode ser encontrada. Acampando após terem sido ofendidos e ameaçados no restaurante de beira de estrada no qual pararam, conversam George e Billy:

George: “-Sabem, este país já foi muito bom. Não entendo o que está acontecendo com ele.” Billy: “-Todos viraram covardes, é isso. Nós nem pudemos ficar num hotel de segunda. Aliás, num motel! O cara achou que a gente fosse matá-lo. Eles têm medo.” George: “-Não têm medo de vocês, mas do que vocês representam.” Billy: “-Cara, pra eles só representamos alguém que deveria cortar o cabelo!” George: “-Não. Para eles vocês representam a liberdade.” Billy: “-E qual o problema? Liberdade é legal!” George: “-É verdade, é legal mesmo. Mas falar dela e vivê-la são duas coisas diferentes. É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado. Mas 103

nunca diga a alguém que ele não é livre porque ele vai tratar de matar e aleijar pra provar que é. Eles falam sem parar de liberdade individual, mas quando veem um indivíduo livre, ficam com medo.” Billy: “-Eu não boto ninguém pra correr de medo.” George: “-Não. Você é quem corre perigo.”94

Fotograma 26 - Tragicamente, George morre ao receber um golpe de machadinha desferido em seu pescoço por um dos homens que haviam insultado o trio de viajantes (01h12min57seg.). A cena se encerra com a brutal agressão física, iniciada com um golpe de machadinha no pescoço de George. Assim, na linha retórica do filme, aquele que através da palavra demonstrou a verdade dos fatos encontra a morte com uma lâmina destruindo sua garganta. É sugestivo que a mais clara demonstração de sensatez e sagacidade venha do personagem caracterizado como fora dos parâmetros socialmente aceitáveis, uma vez que alcoólatra. Filho de família tradicional em sua região, aparentando riqueza e influência, a dependência química de George Hanson denota sua incongruência com a realidade da qual faz parte. Discordando da forma como as coisas são, porém incapaz de mudá-las, Hanson se entrega ao vício. Além disso, a ponderação de George é reveladora do destino fatídico que a dupla de amigos encontraria. Vivenciando intensivamente a liberdade, Wyatt e Billy desafiam alguns dos padrões fundamentais daquela sociedade. Alusões à morte são, por sinal, encontradas em passagens distribuídas por toda a projeção: a aridez da paisagem cortada pela estrada; o cachorro morto na sarjeta e já em avançado estado de putrefação, e que suscita uma espécie de empatia mórbida em Wyatt a ponto de este tocá-lo com espanto e horror; um flash da motocicleta de Wyatt em chamas à beira da estrada deserta; o cemitério no qual a dupla e as

94 O diálogo é iniciado em 01h09min49seg. e é encerrado em 01h11min16seg. 104

prostitutas experimentam a epifania causada pela mistura de álcool e LSD. Por todos esses indícios, o espectador atento não chega a ser surpreendido pelo desfecho dos protagonistas. Ainda assim, o desenlace do enredo não deixa de ser deprimente e angustiante, em um momento no qual algumas das expectativas dos movimentos dos anos 1960 começavam a encontrar os limites de sua realização.

2.3.2 “Hair” (1979) Quando dirige “Hair”, Milos Forman era um diretor consagrado e reconhecido mundialmente. Por seu trabalho anterior, “Um Estranho no Ninho” (One Flew Over the Cuckoo’s Nest – 1975), havia sido agraciado com o Oscar, o Globo de Ouro, o BAFTA e o Prêmio do Sindicato de Diretores dos Estados Unidos. Nascido na Tchecoslováquia, em 1932, teve os pais mortos em campos de concentração durante a Segunda Guerra, tornando-se órfão muito cedo. Após estudar roteirização na Academia de Cinema de Praga, inicia-se na direção nos anos 1960. Em 1968, diante da invasão das forças do Pacto de Varsóvia para conter o clamor popular por liberdade conhecido como “Primavera de Praga”, migra para os Estados Unidos, onde se estabelece. “Hair” é baseado no bem sucedido musical homônimo da Broadway95, montado no final dos anos 1960. O filme ambienta-se no mesmo período, apesar de ter sido rodado uma década depois. A narrativa inicia-se com Claude Bukowski (John Savage), jovem morador de uma fazenda em Oklahoma, prestes a embarcar no ônibus rumo à cidade de Nova Iorque, onde deve se apresentar para iniciar o treinamento que antecede o envio de combatentes ao Vietnã. A cena é rodada no início de uma manhã enevoada, o que confere dramaticidade à despedida entre o rapaz e seu pai. Chegando a Nova Iorque, Claude é surpreendido por um grupo de hippies que dançam enquanto cantam a música “Age of Aquarius”, no Central Park. A sensação de estranhamento experimentada por Claude é reforçada pela mise em scène e pelo colorido das vestimentas dos dançarinos, que compõem uma realidade muito distante daquela em que fora criado e estava inserido, no interior de Oklahoma. Em meio ao número musical, Claude vê um trio de mulheres de alta classe a cavalo, dentre as quais percebe Sheila Franklin (Beverly D’Angelo), que cativa sua atenção. Fazendo amizade com o grupo de hippies, Claude é iniciado no uso de maconha, enquanto aprende sobre as questões de raça e classe em debate nos anos de 1960. Passada a

95 Especificamente, o título original do musical da Broadway é “Hair: The American Tribal Love-Rock Musical”, escrito por James Rado e Gerome Ragni, também letristas das músicas compostas por Galt MacDermot. 105

noite, George Berger (Treat Williams), líder dos hippies, encontra uma página de jornal onde se encontra uma fotografia da amazona por quem Claude havia demonstrado interesse. A matéria no jornal, de uma coluna social, informa sobre uma festa em comemoração ao aniversário dela. O grupo, então, decide ir até o local e invadir a festa privativa. Apesar da oposição de todos, Sheila discretamente demonstra gostar da subversão das regras do ambiente onde vive. A aventura acaba com a detenção do grupo. Diante disso, Claude usa todo o dinheiro que lhe foi entregue pelo pai para pagar a fiança de George de modo que este possa levantar a quantia necessária para tirar o restante do grupo da cadeia. Após receber a negativa de Sheila, George recorre a seus pais. Apesar da oposição do pai ao seu estilo de vida, sua mãe oferece a quantia necessária, mesmo sem conhecer o objetivo do filho. Uma vez livres, os jovens retornam ao Central Park e participam de uma festa onde Claude experimenta ácido. Em sua viagem alucinógena, reflete sobre que caminho seguir na vida, sua origem rural em Oklahoma, a alta sociedade nova-iorquina representada por Sheila ou o modo de vida livre dos hippies. Passada a festa e os efeitos do entorpecente, Claude e Sheila decidem tomar banho em um lago do parque. Diante da oportunidade, os hippies escondem suas roupas, o que faz com que Sheila discuta com Claude e precise tomar um taxi seminua. O rapaz de Oklahoma reprova o ato e se separa do grupo. Voltando ao seu objetivo original quando chegara à Nova Iorque, apresenta-se ao serviço militar. Como consequência, é enviado para um campo de treinamento em Nevada. Quando Claude escreve para Sheila narrando sua vida na base militar, a jovem procura o grupo de hippies para contar as novidades. Os amigos, então, decidem viajar até Nevada para se encontrar com Claude. Tendo o acesso à base negado, o grupo cria um plano para conseguir falar com o rapaz. Nesse intuito, Sheila seduz um oficial em um bar próximo, levando-o a uma estrada no meio do deserto onde consegue roubar seu carro e suas roupas. Trajado de oficial e dirigindo o carro do militar, George, agora livre de seus longos cabelos hippies, ingressa na base e encontra Claude. Como a base estava em estado de alerta, Claude se recusa a acompanhar George com receio de não responder a algum chamado e ser considerado ausente sem permissão. Diante da negativa, George propõe ficar em seu lugar, trocando de roupas com ele. Assim, Claude deixa a base e reencontra o grupo com o qual divide uma refeição no deserto. No entanto, a base, que se encontrava em alerta, inicia o embarque dos soldados ao Vietnã e George, confuso, acaba assumindo o lugar do amigo como combatente. Assim, o líder dos hippies, que se opunha à guerra e que havia queimado seu cartão de convocação, 106

segue rumo ao conflito no Sudeste Asiático. Na cena final, meses depois, o grupo de amigos se encontra no Cemitério de Arlington diante da lápide de George, morto em combate. Ao som de “Let the Sunshine In”, a montagem corta para um grande protesto pela paz, diante da Casa Branca, em Washington. “Hair” é produzido mais de uma década após os hippies, e o movimento contracultural que representavam, terem alcançado notoriedade nos Estados Unidos e em boa parte do mundo. Assim, o filme é lançado em um contexto cultural -e político- muito divergente daquele no qual a peça homônima se inseria. O filme de Forman, portanto, retomava um período histórico que, apesar de próximo, poderia parecer distante diante dos revezes que a derrota no Vietnã, a crise econômica e os escândalos políticos dos anos 1970 representaram para a identidade nacional. O enredo centra-se nas vidas de dois jovens: o ingênuo e interiorano Claude, representante da cultura rural e tradicional, e George, habitante de Nova Iorque que abraçara a cultura hippie e todos os desdobramentos políticos implicados. Esses dois personagens dividem entre si o protagonismo da história. Desse modo, a relação entre os rapazes compõe a principal linha de desenvolvimento da trama, apesar de, inicialmente, o filme explorar a típica formação de um casal heterossexual nas pessoas de Claude e Sheila. Através do contato que firma com George e o restante do grupo de hippies, o rapaz de Oklahoma ultrapassa os limites impostos por sua vida no campo, percebendo a diversidade do mundo à sua volta. A cena inicial, na qual Claude se despede de seu pai diante do ônibus que o levaria à cidade de Nova Iorque para o alistamento militar e posterior embarque ao Vietnã, é expressiva da vida simples e do isolamento do jovem, alheio aos acontecimentos políticos e culturais que sacudiam o país. Ainda cedo, a câmera enquadra uma estrada deserta e desprovida de construções ao redor, enquanto o ônibus surge em meio à névoa, no plano de fundo, até alcançar pai e filho. A baixa iluminação e a ausência de elementos na composição do quadro sublinham o estado de espírito de ambos, um pai que se despede do filho que vai à guerra e um rapaz do interior que acredita ser seu dever patriótico atender ao chamado de engajamento militar recebido. O constante movimento de pernas de Claude acentua sua ansiedade. A fala do pai “- Bom, filho, não se preocupe muito. Apenas os inteligentes devem se preocupar. Deus olha pelos ignorantes, está ouvindo?”96, mostra a gravidade da situação, ainda que de maneira jocosa.

96 A fala inicia-se em 03min01s. e encerra-se em 03min17s. 107

Fotograma 27 - A estrada deserta e tomada pela névoa na qual Claude espera o ônibus para Nova Iorque com seu pai denota a gravidade da despedida (02min.26seg.). O estilo de vida e as convicções de Claude são relativizados logo na cena de apresentação do grupo dos jovens do Central Park. Em um dos túneis do parque, no escuro, George queima seu cartão de convocação enquanto lê, com escárnio, as penalidades legais para o ato. Ao longo da película, cabe a George mostrar para Claude a complexidade do momento no qual vive, problematizando a relação deste com seu país e como ele poderia ser socialmente útil. O enredo constrói, assim, a oposição entre o antigo e o novo, entre os valores tradicionais que formam os fundamentos morais e éticos de Claude e os valores comunais dos hippies, voltados a uma existência que transcende as amarras do patriotismo ou da ética protestante de sacrifício e recompensa adiada. Esse posicionamento retórico do enredo poderia se mostrar problemático considerando-se a avaliação negativa de parte da população americana à contracultura do fim dos anos 1960, especialmente na conjuntura de defesa da lei e da ordem estabelecida a partir da chegada de Nixon à Casa Branca. Entretanto, o fato ainda incômodo da derrota no Vietnã sinalizava que havia alguma pertinência na perspectiva de observação dos hippies e na recusa de tomar parte no conflito. No final da década de 1970, o patriotismo poderia já não implicar, necessariamente, o atendimento às demandas militares da nação. Enquanto que Claude representa a tradição rural dos Estados Unidos, e o grupo de George a contracultura, o ambiente familiar de Sheila exprime os valores constitutivos da alta classe burguesa da costa leste. Em “Hair”, o enredo opta por estabelecer uma contraposição 108

entre a contracultura e a classe burguesa, além das distinções levantadas entre o arcabouço cultural de Claude e o modo de vida dos novos amigos que encontra em Nova Iorque. Apesar de perfeitamente inserida em seu meio social, Sheila demonstra, na forma de se comportar, a inclinação para romper com as normas que lhe são impostas. Assim, interessa- se por Claude, rapaz totalmente excluído de sua realidade, desde o primeiro momento que o vê. Além disso, fuma maconha e revela-se disposta a fazer parte do estilo de vida dos hippies. Se tem pouco interesse em assumir seu papel social na festa patrocinada pelos pais, Sheila vai ao parque a fim de participar do encontro hippie. Por sinal, tratando-se o filme de um musical, é através das músicas e das festas que Forman sublinha a distinção entre os mundos da contracultura e da alta burguesia.

Fotogramas 28 (25min.39seg.) e 29 (49min.56seg.) - A distinção entre as festas da alta burguesia nova-iorquina e dos hippies no Central Park sublinha a diferença de valores existentes. Sheila, no entanto, participa de ambas, o que expõe sua capacidade de transição. As músicas da película constituem-se como o principal veículo para o enredo explorar as características distintivas do modo de vida levado pelo grupo de jovens do Central Park e, assim, abordar a contracultura do final dos 1960. Através das letras das canções, temas como uma nova forma de viver em comunhão com o outro e com a natureza, a sexualidade livre das amarras da vida burguesa e do modelo da família nuclear, a interferência da eletrônica na vida cotidiana e os desdobramentos dessa tecnologia, a relação entre negros e 109

brancos, o homossexualismo e, especialmente, a oposição à Guerra do Vietnã, são tratados. A canção de abertura, “Age of Aquarius”, celebra o início de uma era de paz e concordância entre os povos, além de esclarecer o posicionamento retórico da produção cinematográfica:

When the moon is in the Seventh House And Jupiter aligns with Mars Then peace will guide the planets And love will steer the stars

This is the dawning of the age of Aquarius The age of Aquarius Aquarius! Aquarius!

Harmony and understanding Sympathy and trust abounding No more falsehoods or derisions Golden living dreams of visions Mystic crystal revelation And the mind's true liberation Aquarius! Aquarius!97 Como enaltecido pela canção, o enredo de “Hair” opta por uma perspectiva analítica da contracultura que sublinha o otimismo dos partícipes desse modo de vida. Assim, as críticas de outras parcelas sociais não chegam a ter destaque na narrativa. Ainda que os pais de George reprovem seu estilo, a oposição deles se traduz em uma preocupação paternal quanto ao futuro do filho, e, de todo modo, a mãe lhe entrega dinheiro sem questionar a finalidade. Quanto à elite burguesa, o estranhamento se coloca, porém sem que sejam apresentados argumentos. O único elemento problematizador do modo de vida hippie refere-se à relação dos jovens com seus filhos. Enquanto Jeannie (Annie Golden) alega não saber qual dos amigos é responsável por sua gravidez, Hud (Dorsey Wright), um dos possíveis pais, abandonou sua noiva (Cheryl Barnes) e seu filho (Rahsaan Curry) para abraçar a cultura hippie. Com a chegada de ambos, os próprios amigos o convencem a assumir as responsabilidades paternais. Apesar de celebrar a transformação e o novo, “Hair” oferece espaço para as temáticas em debate na sociedade dos Estados Unidos. Assim, o dilema que se coloca diante de Claude, entre sua origem, seus princípios, e os valores aos quais é apresentado pelos amigos, desdobra-se para a oposição entre individual e coletivo. De acordo com seus fundamentos éticos, embarcar rumo ao Vietnã significa assumir suas responsabilidades

97 Todas as músicas do filme foram originalmente compostas para o musical “Hair: The American Tribal Love- Rock Musical”. As composições são de Galt MacDermot e as letras de James Rado e Gerome Ragni. A tradução da letra encontra-se no anexo nº 03. 110

patrióticas com a coletividade, servindo ao seu país e, consequentemente, aos seus concidadãos. Desse modo, a postura evasiva de George, que queima seu cartão de convocação, equivale, para Claude, em se negar a assumir suas responsabilidades com a sociedade. Por outro lado, quando o grupo é preso, diante da proposta de George para ter sua fiança paga por Claude e assim levantar o montante necessário para a fiança de todos, o rapaz de Oklahoma, em uma postura absolutamente individualista, afirma: “-Meu dinheiro, minha fiança!”. Ainda nesse sentido, quando os amigos tentam, pela última vez, demovê-lo do objetivo de se alistar, ele acusa George de ser “ridículo” em seu comportamento e ética. Pela sua perspectiva, era o líder dos hippies que tinha um comportamento individualista, negando- se a ir à guerra para manter-se a salvo, apesar do discurso social e politicamente consciente que possuía. A Guerra do Vietnã consiste no elemento mais explorado pela trama na construção do contexto do final dos anos de 1960. Desta maneira, enquanto a primeira parte da narrativa trata da descoberta de Claude de uma realidade diferente da que ele conhecera em sua vida rural, a segunda metade é voltada ao seu alistamento e à viagem empreendida pelos amigos para encontrá-lo no campo de treinamento. Assim, “Hair” estabelece-se como uma produção antibelicista em um período no qual a derrota naquele conflito era ainda uma lembrança recente. Em uma das cenas em que se demarca a oposição à guerra, um general inicia um discurso de incentivo à tropa da qual Claude faz parte e que, em breve, embarcaria para o Sudeste Asiático. Enaltecendo a força e a determinação do exército americano, o general é ouvido atentamente pelos soldados, que se encontram perfilados à sua frente. Subitamente, os alto falantes do campo começam a reproduzir uma canção contra a guerra, na qual se descreve os horrores do combate. A música, que inicia subvertendo uma marcha militar através dos sons destorcidos da guitarra elétrica, tem a seguinte letra:

Ripped open by metal explosion Caught in barbed wire fireball Bullet shock Bayonet Electricity Shrapnel Throbbing meat Electronic data processing Black uniforms Bare feet, carbines Mail-order rifles Shoot the muscles 256 Viet Cong captured 111

256 Viet Cong captured

Prisoners in Niggertown It’s a dirty little war Three Five Zero Zero Take weapons up and begin to kill Watch the long long armies drifting home98 Enquanto a música é executada, opera-se uma montagem paralela entre os soldados na base tentando interrompê-la e uma apresentação teatral em uma manifestação pela paz em Washington. Esta é composta por homens vestidos com fardas pretas e mulheres caracterizadas como cadáveres dançando conforme cantam a canção. A música é interrompida após os alto-falantes do campo de treinamento serem metralhados por uma tropa, para deleite do general, que acredita ter sua autoridade restabelecida. Os soldados, surpresos, voltam às suas posições.

Fotograma 30 - Os alto-falantes do campo de treinamento são metralhados como último artifício para silenciá- los, o que implica o poder de persuasão da música antibelicista que era ouvida pelos soldados através deles (01h.32min.08seg.). O embarque enganado de George, em substituição a Claude, é o motivo para a mais contundente cena de crítica à desumanização do militarismo e ao conflito em questão. De início, George sorri, divertindo-se com a situação em meio aos outros recrutas, no dormitório, e com sua própria esperteza em conseguir enganar o aparato militar dos Estados Unidos. Então, suboficiais entram no local, informam aos soldados que o embarque será imediato e iniciam a chamada para apresentação. Atônito, George responde ao chamado: “-Claude Bukowski!”. Nem mesmo os soldados, que sabem não se tratar de Claude, se opõem, afinal a

98 A tradução da letra encontra-se no anexo nº 04. 112

estrutura militar já os havia atomizado. Efetivamente, pouco importa ser ou não Claude, basta que seja mais um homem a ocupar a linha de combate. Tomando o lugar do amigo na tarefa contra a qual se rebelara, George marcha em meio à coluna de soldados que se dirigem, determinados, ao avião. Toda a sequência se desenvolve tendo a canção a seguir como elemento de continuidade. A primeira parte da música é cantada por dois soldados anônimos que marcham junto a George. A segunda parte cabe ao próprio hippie, que involuntariamente foi transformado em combatente. A terceira parte é entoada pelos amigos diante de seu túmulo, meses depois, no Cemitério de Arlington, sendo acompanhados, na quarta parte, pela multidão que se manifesta alegremente.

I. We starve-look At one another Short of breath Walking proudly in our winter coats Wearing smells from laboratories Facing a dying nation Of moving paper fantasies Listening for the new told lies With supreme visions of lonely tunes Somewhere Inside something there is a rush of Greatness Who knows what stands in front of Our lives I fashion my future on films in space Silence Tells me secretly Everything Everything

II. Manchester England England Manchester England England Across the Atlantic Sea And I'm a genius genius I believe in God And I believe that God believes in Claude That's me, that's me, that's me The rest is silence The rest is silence The rest is silence

III. We starve-look At one another Short of breath Walking proudly in our winter coats Wearing smells from laboratories Facing a dying nation Of moving paper fantasies Listening for the new told lies 113

With supreme visions of lonely tunes Singing our space songs on a spider web sitar Life is around you and in you Answer for Timothy Leary, dearie Let the sunshine Let the sunshine in The sunshine in

IV. Let the sunshine Let the sunshine in The sunshine in Oh, why don’t you let the sunshine Just let the sunshine in The sunshine in Let de sunshine You oughta let the sunshine in The sunshine in Why don’t you let the sunshine Let the sunshine in...99

99 A tradução da letra encontra-se no anexo nº 05. 114

115

Fotogramas 31 (01h52min29seg.) a 50 (01h57min07seg.) - Sequência de montagem da cena final de “Hair”. Na cena, que é estruturada em montagem paralela, após George recuar abraçando-se à sua mochila, ocupa o lugar de Claude na marcha rumo ao avião e, por conseguinte, ao Vietnã (fotograma 31). A coluna de soldados atravessa a pista de pouso, cientes de sua sorte (fotograma 32). Enquanto isso, Claude depara-se com o dormitório vazio e corre para salvar o amigo (fotogramas 33 e 34). A montagem integra o espectador à coluna, com o ângulo de câmera oferecendo-lhe o olhar de um soldado que marcha rumo à porta traseira do volumoso avião. Conforme os soldados (e o espectador) marcham, são tomados pela escuridão do interior da máquina (fotogramas 35 a 37). Em seguida, o espectador-soldado observa George de dentro do avião. O hippie canta a plenos pulmões acreditar em Deus, olhando para o céu. Então, conforme inicia a subida da rampa da aeronave, coloca a mão sobre o peito e exclama o verso: “-That’s me!” (“-Este sou eu!”). Vozes o respondem: “-The rest is silence” (“-O resto é silêncio”). George desaparece na escuridão, perdendo sua identidade e transformando-se definitivamente em um soldado. Seu destino fatídico está selado (fotogramas 38 a 40). Claude corre pela pista de pouso da base, porém não consegue alcançar o avião, que vê decolar enquanto grita o nome do amigo com a face tomada pelo horror (fotogramas 41 a 44). À medida que os hippies e Claude observam a lápide de George, o enquadramento faz com que os inúmeros túmulos dos soldados mortos em todas as guerras travadas por aquela nação pareçam infinitos (fotogramas 45 e 46). Repetindo o verso “Let the sunshine in” 116

(“Deixe o brilho do sol entrar”), a multidão toma a frente da Casa Branca, clama à paz e comemora a vida harmoniosamente (fotogramas 47 a 50). A edição do som e a montagem das imagens colaboraram para criar a carga dramática mais forte do filme. Porém, evitando o amargor das inúmeras mortes em combate, a cena estabelece o sentimento de empatia diante da dor e dissolve o sofrimento na alegria efusiva e livre dos manifestantes. A película se encerra em apoteose.

2.3.3 A Contracultura no Fim dos 1960 e Uma Década Depois Como afirmado anteriormente, a contracultura consiste no acontecimento integrante do universo juvenil do final da década de 1960 que mais foi absorvido pelo cinema de grande circuito dos Estados Unidos. Assim, as características desse fenômeno que, em seus diversos âmbitos, não se circunscreveu apenas à cultura, porém desdobrou-se social e politicamente, estiveram presentes em muitas das produções cinematográficas integrantes do conjunto de realizações da Nova Hollywood. Logo em seu lançamento, “Sem Destino” tornou-se o título que melhor expressava aquela atmosfera de transformações relacionadas à parcela jovem da sociedade, sendo alçado a ícone cinematográfico da contracultura ao longo das décadas seguintes. “Hair”, por outro lado, recupera a temática hippie e sublinha a importância da contracultura para a história recente do país em um período no qual as lutas dos anos 1960 pareciam descoladas do cotidiano nacional. O ano de lançamento de “Sem Destino” conclui uma década de efervescência cultural, convulsões sociais, assassinatos políticos e novos horizontes tecnológicos. Os anos 1960 encerram, em uma única década, as transformações culturais representativas da revolução sexual e de costumes; os conflitos raciais entre negros e brancos em prol dos direitos civis; a morte de um presidente, de um candidato à Presidência e do mais destacado ativista negro; o estabelecimento da eletrônica e, mais impressionante, os feitos atingidos durante a corrida espacial. Apesar de muitas das linhas mestras características do período terem fundamento em décadas anteriores, seria nos anos 1960 que toda essa tensão se coaduna, criando um amálgama dos desejos da sociedade americana. Em 1969, “Sem Destino” se insere nos momentos finais de uma década que muito prometeu, porém que deixava bastante por realizar. Em 1979, “Hair” dialoga com uma conjuntura diametralmente oposta daquela do fim da década anterior. Seja socioculturalmente ou no âmbito político e econômico, o final dos anos 1970 colocava para a sociedade dos EUA questões que se ligavam apenas tenuemente 117

aos debates da década anterior. Uma crise econômica persistente, e a ausência de um executivo capaz de personificar a determinação esperada pelos americanos, mantinham baixa a autoestima da nação. Entre “Sem Destino” e “Hair”, a sociedade percebera que todo o barulho da década de 1960 não havia sido suficiente para que as expectativas de avanço social fossem plenamente alcançadas. Pelo contrário, para parte dos americanos, foram os ruidosos acontecimentos dos anos 1960 os responsáveis pelas desventuras atravessadas pela nação na década seguinte. A dupla de motociclistas de “Sem Destino” não partilha do modo de vida hippie, prova isso o fato de passarem por uma das típicas comunidades jovens do período e optarem por seguir viagem. Entretanto, são contraculturais em sua busca por liberdade e a falta de comprometimento com os valores tradicionais como, por exemplo, a recompensa através do trabalho árduo. Admiradores da vida no campo, buscam uma antiga América, que descobrem inexistente, em sua viagem rumo a Nova Orleans. Conforme cumprem sua trajetória em direção ao leste, vão desbravando as entranhas daquele país. Fazem isso objetivando encontrar os resquícios afetivos mais fundamentais, formadores do que a América havia se tornado, miticamente. Ao invés disso, encontram a intolerância, finalmente representada sob a mira de uma arma de fogo. Apesar de reprovarem aquilo no que sua sociedade se tornou, não identificam na contracultura uma alternativa efetiva para a formulação de uma nova sociedade. E continuam a ser patriotas, afinal Wyatt ainda exibe a bandeira nacional em suas roupas e na pintura de sua motocicleta. Adentrando o interior dos Estados Unidos, a viagem dos amigos assume, igualmente, o caráter de uma busca psicológica, uma análise dos alicerces psíquicos da nação. Examinando os EUA do fim da década, o enredo de “Sem Destino” tem como horizonte o momento de radicalização política dos movimentos negros e políticos universitários, a chegada de Nixon à Casa Branca e o auge do engajamento militar do país no conflito do Sudeste Asiático. Mesmo que opte por não abordar diretamente essas questões, a trama erige uma visão pessimista dos resultados atingidos. Assim, Wyatt declara a Billy, após ter consumido LSD: “-Estragamos tudo.” Se, primeiramente, a frase parece se referir ao fracasso de sua busca individual por liberdade espiritual, seu significado se amplia para o malogro de toda a sociedade, mas, especialmente, para aqueles que acreditaram na possibilidade de um projeto de harmonia social. A morte da dupla encerra, no cinema, a frustração daquela geração antes mesmo que esse sentimento houvesse se tornado suficientemente claro. Os acontecimentos dos anos seguintes comprovariam a perspectiva derrotista do enredo. 118

Os hippies do Central Park, por outro lado, ainda acreditam honestamente que uma melhor sociedade é possível através da busca sincera do entendimento mútuo e do convívio pacífico de todos. Politicamente conscientes, preferem, no entanto, se manifestar artisticamente através de músicas e apresentações teatrais, ao invés de propor um movimento delimitado por programas e propostas. Dessa forma, trazem a Claude, rapaz do interior que nada conhece dos assuntos mais urgentes de seu país e que fora selecionado pelo maquinário militar, os grandes temas em debate. Encarnado na figura do jovem de Oklahoma coloca-se o dilema do filme: apesar do valor dos princípios originais daquela nação, conseguirão os Estados Unidos atingir desenvolvimento social e elevação espiritual através da aceitação do novo? Ao mesmo tempo em que “Hair” rememora aquela atmosfera de esperanças e expectativas que marcara a década anterior, a película proporciona um desfecho, o encerramento de um longo período marcado pela crise econômica, pela derrota e pelo desalento político. Ao explodir em alegria diante da Casa Branca, a multidão inunda a tela com o otimismo que a contracultura e o movimento hippie outrora representaram. Entoando “Let the Sunshine In” em frente ao símbolo máximo do poder político dos Estados Unidos, os manifestantes bradam por novos ares.

119

3 VICISSITUDES POLITICO-ECONÔMICAS

3.1 O CIDADÃO DIANTE DO ESTADO As décadas estudadas são comumente demarcadas, dentre outros fatores, como o período no qual a sociedade dos Estados Unidos trouxe para o debate público uma série de temas centrais para o futuro daquela nação. Desse modo, uma variedade de discursos tomou de assalto o cotidiano do país, disputando lugares de fala e predominância, por vezes dando ensejo a disputas violentas baseadas em argumentos furiosamente defendidos. Assim, a conjuntura social que se estabeleceu entre a segunda metade da década de 1960 e toda a década seguinte impôs uma nova forma de relação entre o cidadão e o Estado que, em teoria, o representava. Baseados nesse princípio, da representação mediante as instituições estatais, os diversos grupos sociais em disputa avocaram-se o direito de exigir do governo o atendimento integral de suas demandas. Portanto, coube aos governos do período lidar com reivindicações divergentes, que chegavam a atingir polos opostos no âmbito social, de forma cada vez mais evidente. Assim, na mesma medida em que os governos atendiam a determinadas demandas representativas de certo agrupamento social, opunham-se aos questionamentos contrários de outra parcela da população. Nesse processo, a confiança no Estado como garantidor de direitos, cara ao imaginário político dos cidadãos americanos, foi colocada em risco. No início dos anos 1970, a divulgação dos “Papéis do Pentágono”100 demonstrou ao povo dos Estados Unidos que o governo era capaz de, e parecia estar disposto a, ludibriar seus cidadãos a fim de atingir objetivos que talvez fossem contrários aos interesses do país. Por fim, os escândalos políticos ao redor de Richard Nixon durante seu segundo mandato evidenciavam à população que seu presidente era propenso à mentira e à manipulação. Sua renúncia, às vésperas de sofrer um processo de impeachment, consolidava o sentimento de descrença nas instituições. O Estado que, acreditava-se, deveria servir à população, tornara-se fonte de temor. O jornalismo impresso possuía, já nos Estados Unidos dos anos 1960, uma longa tradição no papel de averiguador das ações do Estado, sendo a liberdade de imprensa um dos

100 Nome jornalístico do documento secreto denunciado pelo The New York Times e pelo The Washington Post. Produzido a pedido do Secretário de Defesa Robert McNamara, em 1967, o documento, cujo título original era United States–Vietnam Relations, 1945–1967: A Study Prepared by the Department of Defense (Estados Unidos – Relações com o Vietnã, 1945-1967: Um Estudo Preparado pelo Departamento de Defesa) consistia em um longo estudo sobre a política do país quanto à participação no Vietnã. Após batalha judicial, na qual Nixon tentou impedir a publicação dos artigos, a Suprema Corte assegurou o direito de publicação dos periódicos. 120

princípios sobre os quais se assenta a Constituição. A isso se somou a televisão, que surgia como um novo meio através do qual o jornalismo presentificava, com o uso impactante das imagens, os acontecimentos mais chocantes que acometiam a nação. Graças à mídia televisiva, a população tinha acesso quase instantâneo aos motins que eclodiam em diversas cidades americanas, aos assassinatos políticos, às manifestações e à repressão policial subsequente, aos horrores da guerra e às decisões políticas tomadas assepticamente nas casas parlamentares. Assim, por meio da imagem jornalística, o distanciamento entre as determinações do Estado e as demandas da população ampliou-se, no período citado. Essa disposição de parte do povo para duvidar das boas intenções de seu governo, e da decência e integridade dos políticos, transformou-se em uma temática que foi experimentada por alguns títulos na conjuntura de produção da Nova Hollywood. Além dos filmes que são analisados a seguir, “A Conversação” (The Conversation, dir.: Francis Ford Coppola – 1974) e “A Trama” (The Parallax View, dir.: Alan J. Pakula – 1974) podem ser citados como duas das produções a lidar diretamente com o tema. Ambos os filmes trazem personagens que são subjugados por enredos misteriosos nos quais acontecimentos suspeitos começam a ocorrer em seu redor. O fato de os protagonistas não conseguirem compartilhar suas impressões sobre os fatos, ou de aqueles que lhes dão ouvidos terminarem mortos, aumenta gradativamente a sensação de isolamento enquanto lutam por desmascarar uma organização que mesmo eles não compreendem. As produções selecionadas para exame, “Dias de Fogo” (Medium Cool, dir.: Haskell Wexler – 1969) e “Todos os Homens do Presidente” (All The President’s Men, dir.: Alan J. Pakula – 1976), são exemplos significativos da relação Estado – sociedade no momento de maior turbulência do final da década de 1960 e no período posterior aos escândalos da presidência de Nixon, respectivamente. “Dias de Fogo” pretende combinar cinema ficcional e documental tendo como pano de fundo os protestos durante a Convenção Nacional do Partido Democrata, na cidade de Chicago, em 1968. Além de problematizar os limites, conexões e sobreposições desses dois modelos de realização cinematográfica, propõe a reflexão sobre o papel da mídia televisiva na representação dos acontecimentos. “Todos os Homens do Presidente”, por sua vez, retrata a dedicação e intrepidez dos dois jornalistas do The Washington Post responsáveis por desmascarar os inúmeros atos ilegais de Nixon, iniciando o que se tornaria o Caso Watergate. O enredo destaca a importância da imprensa como instância de vigilância do poder estatal em defesa dos interesses da sociedade.

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3.1.1 “Dias de Fogo” (1969) Haskell Wexler (1922 – 2015), escritor e diretor do filme, é mais notoriamente conhecido como cinegrafista e documentarista. De origem judia, Wexler nasceu na cidade de Chicago. Após cursar o primeiro ano na Universidade da Califórnia, ingressa na Marinha Mercante, em 1941, dentro dos preparativos para a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. Em 1942, seu navio foi torpedeado por um submarino alemão e Wexler passou 10 dias em um bote inflável próximo à costa da África do Sul, até ser resgatado. Depois da dispensa do serviço militar, o jovem retorna a Chicago para trabalhar com o pai e funda uma pequena produtora de cinema. Após o negócio falir, Wexler filia-se ao Sindicato dos Cinegrafistas (International Photographers Guild) e se torna assistente de câmera. Ao longo dos anos 1950, Haskell dedica-se aos documentários e comerciais de televisão. Em 1963, participa como diretor de fotografia em “Terra de Um Sonho Distante” (America, America, dir.: Elia Kazan). Posteriormente, assume a mesma posição em “Quem Tem Medo de Virginia Woolf” (Who’s Afraid of Virginia Woolf?, dir.: Mike Nichols – 1966), produção que lhe trouxe o último Oscar de Melhor Fotografia em Preto-e-Branco oferecido pela Academia. Sua carreira é marcada pela grande inventividade técnica, o que fez com que fosse considerado um dos 10 cinegrafistas mais influentes pelo International Photographers Guild, além do interesse pelas temáticas sociais e políticas nos projetos que dirigia. “Dias de Fogo” narra a trajetória de despertar político e social de John Cassellis (Robert Forster), um repórter cameraman de um canal de televisão de Chicago. Cassellis não parece muito preocupado com os desdobramentos humanos dos acontecimentos que capta através das lentes de sua câmera e que ajuda a apresentar nos telejornais da rede televisiva. Seus objetivos pessoais resumem-se a conseguir maior audiência para as matérias das quais participa e, assim, obter visibilidade para seu trabalho. Além disso, Cassellis é solteiro e não procura qualquer tipo de compromisso em sua vida particular, relacionando-se apenas superficialmente com as mulheres que conhece. Na cena de abertura, Cassellis encontra um carro seriamente acidentado no acesso de uma rodovia. Diante do acidente, para e filma os destroços e os ocupantes inertes do veículo, na companhia de seu ajudante, Gus (Peter Bonerz). Apenas após captar as imagens que lhe pareceram úteis para uma possível matéria jornalística, e de informar à TV sobre o material que conseguira, Cassellis sugere que as autoridades sejam informadas do ocorrido e que seja enviado resgate. Em seguida, abandona o lugar do acidente sem procurar oferecer qualquer tipo de ajuda. 122

Posteriormente à cena inicial, o filme retrata uma reunião social entre profissionais da imprensa onde são discutidos temas referentes às implicações éticas do trabalho jornalístico. Dentre as questões levantadas, debate-se até que ponto é válido ao jornalismo explorar temas de desamparo social e humano com o alegado objetivo de salvar vidas. O uso da violência como espetáculo, o racismo, os atritos de classe e os variados descontentamentos políticos e sociais pontuam os diálogos. Cassellis procura por matérias capazes de gerar apelo afetivo na audiência. Assim, quando descobre a história de um taxista negro que devolveu uma significativa soma de dinheiro que encontrara em seu táxi, o cameraman vai até o endereço do homem em busca da matéria. Em uma área empobrecida e periférica da cidade, o protagonista e seu ajudante são hostilizados, chegando a serem ameaçados caso não deixem o bairro. Enquanto isso, no endereço do taxista, dois homens reprovam sua atitude em devolver o dinheiro encontrado, alegando que aquela soma poderia comprar armas para o grupo. Assim, o enredo sugere tratar-se de indivíduos partícipes de alguma organização política clandestina. Chegando ao apartamento, Cassellis tenta convencer o taxista a participar de uma matéria sobre seu ato de integridade moral, a que ele se opõe, enquanto seus companheiros sentem-se insultados com a perspectiva pensada pelo cameraman para a matéria. Valendo-se da vulnerabilidade de Gus naquele ambiente, os homens agem agressivamente com o único intuito de assustá-lo. Após Gus, assustado, se retirar, uma mulher jovem inicia uma conversa com Cassellis na qual ela se opõe à intenção da reportagem proposta e, ao mesmo tempo, tenta insistentemente convencer o protagonista a levá-la ao canal de televisão onde trabalha para que tenha uma chance como atriz. Ao referir-se a moça pelo termo “querida”, Cassellis é reprovado por um dos homens, que se interpõe e inicia uma discussão. O desentendimento começa a sair de controle e é interrompido pelos outros homens, que apresentam ao cameraman os elementos que gostariam de ver nas representações que a televisão constrói sobre os negros. Cassellis capta os depoimentos de dois dos homens do apartamento. Posteriormente, Cassellis persegue um menino que mexia no carro da TV em um estacionamento. Interpelado pela reação, Cassellis diz que não é o possível dano ao carro que importa, mas o princípio do fato. Perseguido, o garoto deixa cair uma gaiola de madeira onde levava um pombo, que é apanhada pelo cinegrafista. A postura do protagonista muda quando ele descobre que o canal de televisão para o qual trabalha está fornecendo o material jornalístico produzido para o FBI, que utiliza as 123

matérias como dados de investigação. Cassellis se enfurece, opondo-se ruidosamente. Diante disso, a empresa encontra uma desculpa para demiti-lo, fato que não o afeta. Pouco tempo depois, o cameraman consegue um trabalho como free-lancer na Convenção do Partido Democrata, que irá ocorrer nos próximos dias. Pretendendo devolver a gaiola e o pássaro ao menino, de nome Harold (Harold Blankenship), Cassellis vai até uma das regiões periféricas da cidade. Lá, conhece a mãe do garoto, Eileen (Verna Bloom), uma imigrante de West Virginia. Branca e pobre, como toda a sua vizinhança, Eillen conta ao cameraman ser professora, porém que não consegue encontrar trabalho na profissão por não atender às exigências das escolas de Chicago. Cassellis começa a desenvolver um interesse afetivo pela mulher e, após a demissão, passa bastante tempo na companhia dos dois, conseguindo a aceitação de Harold. O clímax do filme acontece durante os protestos referentes à Convenção Nacional do Partido Democrata. Em meio aos tumultos ocasionados pelos manifestantes e pela reação opressora da Polícia de Chicago e da Guarda Nacional, Eileen procura pelo filho, que desapareceu. A jovem mulher tenta encontrar Cassellis para pedir ajuda, porém não consegue uma vez que ele está dentro do prédio onde ocorre a Convenção. Caminhando pelas ruas em busca do filho, Eileen atravessa os grupos de manifestantes e de agentes do Estado observando o avanço do aparato de segurança que deverá ser utilizado, na verdade, como equipamentos repressores: armamentos, gás lacrimogênio, cassetetes, blindados. A professora termina por encontrar Cassellis, porém o casal não consegue localizar Harold. Na cena seguinte, Cassellis dirige em uma estrada rodeada por árvores, com Eileen sentada ao seu lado. Subitamente, o protagonista perde o controle do veículo colidindo-se com violência em uma das árvores. O acidente leva Eileen ao óbito e o deixa gravemente ferido. Numa alusão à primeira cena, um automóvel se aproxima do acidente, para e um dos ocupantes tira uma fotografia, seguindo caminho logo após. O carro acidentado começa a incendiar e é enquadrado por uma câmera distante, que vira para a direita e capta a imagem de Haskell Wexler operando outra câmera. O diretor volta sua câmera em direção a primeira e, por conseguinte, ao espectador. O enquadramento fecha sobre a lente da câmera de Wexler, resultando em um fade-out que encerra a película. Em “Dias de Fogo”, Wexler beneficia-se do contexto de produção da Nova Hollywood para produzir um filme contrário aos parâmetros característicos do cinema clássico. Apesar de existir um enredo onde subsistem personagens, de haver uma narrativa e, inclusive, suscitar-se um relacionamento amoroso, a película fundamenta-se na combinação 124

do cinema de ficção e do documental em sua concepção. As técnicas do cinéma vérité101 destacam-se em boa parte da projeção, sublinhando a especificidade de “Dias de Fogo” mesmo se comparado aos outros títulos da Nova Hollywood do final daquela década. Além disso, como a atividade principal de Wexler era a profissão de cinegrafista, e não a de diretor de cinema, seu filme é pensado mais em termos imagéticos que em termos narrativos. Essa questão evidencia-se em muitas das passagens da obra. Devido à combinação entre ficção e documento, “Dias de Fogo” oferece distintos níveis de inteligibilidade: existe a história ficcional de John Cassellis, de Eileen e de Harold; o material documental das manifestações e distúrbios; as situações que simulam a realidade; personagens ficcionais imersos em acontecimentos reais; personagens reais em ocorrências ficcionais102. Desse modo, os limites entre ficção e realidade tornam-se pouco precisos, o que insere o filme no debate da representação dos acontecimentos através da mídia televisiva. O próprio título original, Medium Cool, relaciona-se com os trabalhos de Marshall McLuhan nos quais o autor discute os efeitos sociais dos meios de comunicação103. Através da frase “o meio é a mensagem” (the medium is the message), McLuhan defende que cada mídia transmite a mensagem através de suas particularidades, o que torna a mídia (meio) mais importante que o conteúdo em si. Através de Cassellis, Wexler pretende questionar a importância da câmera na transmissão daquilo que é captado. A cena de abertura veicula a problemática central do filme. Nela, Cassellis e Gus gravam, em áudio e vídeo, o resultado de um grave acidente automobilístico instantes após a ocorrência. Buscando oferecer maior intensidade ao material jornalístico que estava produzindo, Cassellis friamente varia os ângulos de tomada da mulher acidentada e possivelmente morta. Filmando em diversas distâncias, o cameraman chega a “pular” sobre o corpo desfalecido para conseguir o close-up desejado. Mais que o conteúdo da notícia, o formato e estilo da captação das imagens assumiram preponderância.

101 Criado por Jean Rouch, baseado na noção do kino-pravda, de Dziga Vertov, esse estilo de documentário costuma valer-se da improvisação no uso da câmera, usualmente lidando com temáticas de cunho social. O diretor ou cinegrafista participa diretamente dos fatos captados pela câmera, por vezes provocando situações. A ausência de narrador em off é uma das características mais marcantes do estilo, que tem como principal objetivo expor a verdade dos fatos captados pelas lentes. 102 Conferir a crítica de Roger Ebert, de 21/09/1969. 103 Os dois principais trabalhos de McLuhan que tratam da temática são Understanding Media: the extensions of man (1964) e The Medium is The Massage (1967). 125

Fotograma 51 - Cassellis e Gus filmam o acidente que coincidentemente encontraram na estrada (01min.06seg.). Reconhecendo o potencial jornalístico, a dupla importa-se em criar a matéria. Só depois de captadas as imagens, chamam socorro. Na cena posterior aos créditos, o close-up em uma taça de champagne na mão de um jornalista abre-se para enquadrar um debate informal sobre as implicações éticas do tratamento jornalístico de questões sociais. Discutindo as responsabilidades e perigos da profissão, os participantes problematizam o uso das imagens e a efetividade da contribuição para os conflitos presentes na sociedade. O interesse do público pela violência dos fatos, sem o devido aprofundamento, é igualmente debatido. Cassellis lembra que os jornalistas lidam com uma realidade dinâmica e precisam negociar com a violência, já que a audiência não se interessa pela notícia estática. O distanciamento possibilitado pela televisão surge como explicação por essa predileção pela violência, que é mediada. Por outro lado, a demanda dos editores por material desse tipo é apontada como um dos principais fatores a margear o trabalho dos jornalistas. No entanto, e significativamente, em uma passagem posterior, o editor de Cassellis exclama: “- Não fabricamos notícias!”. Toda a cena é captada simulando a realização de um documentário ao estilo cinéma vérité. Assim, os diálogos são tomados de maneira confusa, não linear, enquanto a câmera na mão do cinegrafista evidencia o improviso. Desrespeitando a linha lógica de desenvolvimento da narrativa, que até esse ponto ainda não havia sido apresentada ao espectador, Eileen participa da cena, chegando a dialogar com Gus. Como a jovem veste o mesmo vestido amarelo que traja na sequência das cenas finais da película, o debate deveria se localizar em algum momento posterior da história, caso um desenvolvimento cronológico e coerente fosse a intenção de Wexler. 126

Eileen é a principal personagem a permitir a aproximação da narrativa às questões sociais em debate na temporalidade em que o filme se localiza. Esse momento é apresentado logo no primeiro quadro da película, quando em um fundo preto aparece o nome da cidade de Chicago, seguido do ano de 1968. Os caracteres lembram as letras de uma máquina de escrever, enquanto os algarismos são lentamente datilografados. 1968 era ano de eleição presidencial nos Estados Unidos. Naquele mesmo ano, as forças militares do país sofriam as maiores perdas no Vietnã. Diante da repercussão negativa da guerra, Lyndon Johnson desiste de concorrer à reeleição e informa sua decisão através de um pronunciamento televisivo para toda a nação. Em abril, Martin Luther King Jr. era assassinado, o que levou a uma onda de levantes em muitas das maiores cidades americanas. Em junho, durante as primárias na Califórnia, Robert Kennedy era igualmente assassinado. Muitos dos que ansiavam por uma guinada para o social na política do país viram-se órfãos de esperanças após sua morte. Esse é o contexto no qual a Convenção Nacional do Partido Democrata ocorre para decidir que candidato representaria o partido nas eleições, alguém que daria continuidade à política belicista ou, opostamente, que encerraria a participação americana no conflito e intensificaria os esforços pela justiça social. Eileen é uma imigrante de West Virgínia. O estado localiza-se integralmente na região cultural denominada Appalachia. Historicamente, o espaço, que se estende da fronteira com o Canadá até o norte do Alabama, Mississippi e Georgia, foi marcado pela pobreza de sua população e o baixo desenvolvimento econômico. Por longo período, seus habitantes foram representados através de um estereótipo que os retratava como iletrados e propensos à violência. Nos anos 1960, a região enfrentava os efeitos de uma recessão econômica, sem obter benefícios de suas típicas indústrias de mineração e extração de madeira. Uptown, o distrito de Chicago no qual Eileen se estabelece na companhia de seu filho, consistia em uma vizinhança pobre ocupada, à época do filme, sobretudo por brancos. A situação econômica desfavorável do lugar levou a SDS (Students for a Democratic Society) a iniciar um projeto de organização comunitária com a participação dos residentes, em 1963. Ao escolher o distrito como local de residência de uma professora que não leciona e seu filho, Wexler cria um vínculo entre a narrativa e os grupos sociais que compunham os manifestantes reais, protestando em torno da Convenção. Além disso, os habitantes de Uptown, com destaque para as inúmeras crianças nas ruas, exemplificam a parcela da população que mais tinha seu futuro implicado nos rumos políticos do país. 127

Fotograma 52 - Cassellis observa o prédio onde Eileen e Harold residem (38min.30seg.). O estado envelhecido da construção, entulhos e lixo espalhado esclarecem tratar-se de um gueto, enquanto as inúmeras crianças que brincam em frente ao prédio denotam a falta de perspectivas sociais do lugar. Além disso, o ângulo de fotografia faz com que o imóvel ocupe praticamente todo o frame. Apenas o céu é visto, mesmo assim em um pequeno espaço da tela, no centro e no alto. Um corredor tomado pela escuridão, apesar do dia ensolarado, divide a imagem. Igualmente escuras são as entradas dos apartamentos simples. O contato com a realidade de Eileen é determinante para a conscientização social de Cassellis. Conforme se aproxima romanticamente da jovem, e faz amizade com seu filho, o cameraman passa a compreender os desdobramentos individuais das situações que antes captava com sua câmera apenas pelo potencial midiático do material. Sua experiência na vizinhança negra, quando procura o taxista para realizar uma matéria de “apelo humano”, igualmente o coloca em diálogo com uma realidade que, para ele, possuía apenas utilidade pontual. Após os atritos raciais iniciais, Cassellis capta dois depoimentos sobre a situação dos negros e a forma como são retratados pela mídia: Depoimento 1: - Quando você vem e diz que veio para fazer algo de interesse humano, faz a pessoa pensar se você vai fazer algo que interesse a outros humanos ou se você considera a pessoa humana, só em quem está interessado. Você tem que entender isso também. Não pode chegar com toda a sua arrogância e esperar que as coisas sejam como são porque quando você entrou, trouxe La Salle Street104 com você, a prefeitura e todos os meios de comunicação de massa. E vocês são os exploradores. São vocês que distorcem, ridicularizam e nos castram, e isso não é legal. Depoimento 2: -Vocês não querem saber, cara. Não conhecem as pessoas. Vocês não mostram as pessoas. Aqui há um cara que está à vontade, entendeu? Ele é um zé-ninguém, então diz ao seu velho: ‘- Não sou ninguém. Vou morrer e ninguém vai saber que eu vivi’, entendeu? Então o cara encontra um tijolo e joga na vidraça do Charlie ou ele pega uma arma e atira. Então, o cara vive, cara. Ele realmente vive, entendeu? Um milhão de pessoas veem o cara na TV. Eles dizem: ‘- O antigo homem invisível vive’. Todos sabem onde foi à escola, sobre sua esposa e filhos,

104 Principal rua do centro financeiro de Chicago. 128

tudo, está entendendo? Porque a televisão é vida, cara. Vida. Você faz dele um Emmy, cara. Você faz dele estrela da TV da hora, nos noticiários das 06h, das 10h e do meio-dia. Porque o que o cara tá falando é verdade, cara. Por que não descobre como são as coisas? Por que tem que esperar até que alguém seja morto? Porque alguém será morto.105

O enquadramento utilizado nos depoimentos acima permite que os atores encarem a câmera em primeiro plano. Essa configuração simula as técnicas de captação de imagens típicas do cinéma vérité, trazendo forte carga dramática e oferecendo autoridade às falas. Ao olharem diretamente para o aparelho cinematográfico, os atores também olham diretamente para o espectador, que se sente inquirido a participar e endossar o argumento, concordando com sua relevância. Imediatamente após a última frase proferida, um corte leva a outro enquadramento em primeiro plano onde uma senhora branca empunha uma arma, mira e atira contra a câmera e, por conseguinte, contra o espectador. Essa sequência de montagem consegue criar empatia na audiência, pois, primeiramente, leva o espectador a concordar com o argumento defendido para, em seguida, tornar-se alvo e ser baleado. Desse modo, cada membro da audiência tornou-se alvo como consequência à sua empatia ao argumento. A senhora que atira, por sinal, é caracterizada arquetipicamente como uma pessoa de prováveis valores conservadores, como seus trajes permitem supor e, sendo branca, avessa aos argumentos apresentados nos depoimentos, possivelmente.

105 Os depoimentos iniciam-se aos 53min16seg. e encerram-se aos 55min. 129

Fotogramas 53 (54min.18seg.) e 54 (54min.56seg.) - Um dos homens a oferecer seu depoimento simula uma arma em certa passagem do discurso. Na parede, a foto de Martin Luther King Jr., de mãos abertas, parece apelar para a reflexão. Em seguida, uma senhora atira em um estande de tiro, em companhia de outras mulheres. Segundo o instrutor do estande: “-Se uma pessoa tem uma carteira de habilitação, ela tem que saber dirigir. Se a pessoa compra uma arma, ela tem que saber usá-la. Como ela a usa ou para o quê usa, é um direito pessoal.”106

No filme de Wexler, o antagonismo de classe recebe o mesmo nível de atenção que a questão racial. Em uma passagem, Cassellis e Gus vão a uma piscina frequentada exclusivamente por pessoas idosas brancas e entrevistam uma senhora. A cena, que se abre focalizando a palavra “banco” em reluzentes letras metálicas na fachada de um prédio distante, explicita se tratar de um ambiente exclusivo da alta classe da cidade. Cassellis: - Quais são seus planos para o verão, este, que será um verão muito politizado e, provavelmente, muito quente? Senhora: - Oh, bem, por agora não vamos falar em política. Bem, nós sempre vamos para nossa casa, em Ontário, no Canadá. É um lugar chamado Desbras. É D-E-S... é francês, não é como o nome de uma garota. E bem, nesta época do ano, sempre esperamos nos livrarmos da cidade, das multidões e do calor. É bem primitivo, lá em cima. E penso que, algumas vezes, é bom para a alma escapar da civilização, não acha?107

A entrevista é captada como os depoimentos citados acima, fotografando-se a entrevistada em primeiro plano, simulando a técnica documental. Logo em seguida à citação sobre “escapar” da civilização, um corte traz uma panorâmica da vizinhança onde habitam Eileen e Harold. Um prédio velho e sem conservação é tomado por lixo e detritos em sua frente, o que denota a pobreza e a ausência de serviços públicos básicos. A cena prossegue com o surgimento de uma assistente social que entrevista Harold: Harold: - Olá. Assistente social: - Olá. Sua mãe está em casa? Harold: - Sim. Não. Assistente social: - Não? Ela está trabalhando? Harold: - Sim. Assistente social: - A que horas estará em casa? Harold: - Ao meio-dia. Assistente social: - Entendo. Agora, há quanto tempo vivem aqui? Harold: - Não sei.

106 Fala proferida em 56min32seg. 107 A fala inicia-se em 27min59seg. e encerra-se em 28min45seg. 130

Assistente social: - Você não sabe? Harold: - Não. Assistente social: - Pode me dizer onde morou antes de se mudar para cá? Harold: - Sim. Assistente social: - Onde? Harold: - West Virginia. Assistente social: - Entendo. Agora, quantos quartos têm aqui? Harold: - Não. Sim. Quatro. Assistente social: - Quatro quartos. Tem um aparelho de TV? Harold: - Sim. Assistente social: - Tem um som? Harold: - Sim. Assistente social: - E quantos irmãos e irmãs você tem? Harold: - Nenhum. Assistente social: - Você é filho único? Harold: - Sim. Assistente social: - E quantos anos têm? Harold: - Treze. Assistente social: - Treze, realmente? E você vai à Igreja? Harold: - Sim. Assistente social: - Você é um bom menino. Agora, como é o nome de seu pai? Harold: - Buddy. Assistente social: - Como? Harold: - Buddy. Assistente social: - Ele mora aqui, com você? Harold: - Não. Assistente social: - Pode me dizer onde eu poderia encontrá-lo? Harold: - No Vietnã.”108

À sensação de limpeza e frescor transmitida pelo movimento da água da piscina, que é vista ao fundo durante a entrevista da senhora, contrasta a sujeira do bairro de Harold. O próprio menino está visivelmente sujo. A montagem sequencial das duas entrevistas esclarece o abismo social existente entre as classes de Chicago. É evidente que Eileen e Harold não vão passar o verão no Canadá. Segundo Wexler, coadunando-se ao uso da linguagem do cinema documental no filme, o garoto escolhido para interpretar o papel de Harold era realmente um imigrante dos Appalachia. Como o Harold da ficção, o Harold da vida real (já que ator e personagem dividem o mesmo nome) também era uma criança de origem pobre. Essa opção foi feita com o objetivo de aumentar a autenticidade da interpretação do menino, já que ele representaria uma realidade com a qual possuía vivência. O diretor confessa que Harold Blankenship não sabia ler e que, na cena em que o jovem lê um livro sobre criação de pombos, ele memorizara a fala para simular a leitura. Além disso, a cena na qual Harold toma banho consiste na primeira vez em sua vida em que o menino banhava-se em um chuveiro. Utilizando-se dessas estratégias, Wexler pretendeu apresentar o contexto político e social repleto de discrepâncias

108 Diálogo entre 29min08seg. e 30min21seg. 131

dos Estados Unidos naquele final de década que, segundo ele, não recebia atenção da indústria do cinema.109 A película busca sensibilizar o espectador para a importância e profundidade do contexto que a nação atravessava. E, sendo dirigida por um experiente diretor de fotografia, faz uso especial da imagem para atingir tal objetivo. Desse modo, logo na cena de abertura, um homem observa do alto de um viaduto o acidente, com indiferença, em uma alegoria à passividade cotidiana do cidadão comum. Em outro exemplo, quando Cassellis treina boxe socando um saco de pancada, o ângulo de câmera coincide com aquele que seria o ângulo de observação do saco. Assim, constrói-se a impressão de que Cassellis soca a audiência, que não tem meios de defesa. Ou, já durante os distúrbios do final da projeção, é possível ler a palavra “equitable” (justo) em um letreiro iluminado em vermelho no alto de um prédio, enquanto os manifestantes são alvos da violência policial. Em outra cena, quando Cassellis e Eileen têm um encontro romântico em uma boate, a frase “America is wonderful” (A América é maravilhosa), em vermelho, branco e azul surge em flash, enquanto a palavra “wonderful” (maravilhosa) é lida diversas vezes. Finalmente, a cena que representa o assassinato de Robert Kennedy é rodada da cozinha, sem que a figura do candidato fosse vista, porém permitindo ouvirem-se suas falas. A decisão de se construir a cena dessa perspectiva apoia-se, obviamente, na certeza de que a audiência conhecia amplamente o episódio e poderia identificá-lo com clareza, mesmo sendo tratado de forma indireta. A cena final, quando Eileen encontra Cassellis e pede ajuda após vagar em meio aos distúrbios por horas em busca de Harold, não pretende encerrar a narrativa que, em “Dias de fogo”, não é o elemento mais importante. O acidente que o casal sofre na estrada deserta é repentino, como são efetivamente os acidentes. No entanto, momentos antes da batida, o rádio do carro noticia um desastre automobilístico com características surpreendentemente similares ao que logo ocorreria com o casal protagonista. A inversão da notícia antes do acidente problematiza o lugar da mídia como uma instância superior, que simultaneamente narra e constrói o acontecimento. Então, fechando ciclicamente o enredo em um âmbito bem mais amplo que a simples história romântica do casal, ou a exposição do confronto entre manifestantes e policiais durante a Convenção do Partido Democrata, o ocupante do carro que passa e fotografa o acidente torna-se uma reminiscência da abertura da película, quando o próprio Cassellis

109 Ver o documentário Look Out Haskell, It’s Real: the making of ‘Medium Cool’, dirigido por Paul Cronin, de 2001. 132

captara imagens de um acidente automobilístico. Ampliando ainda mais o debate sobre a mídia, a tomada final enquadra o próprio Wexler e sua câmera, que, em reação, enquadra aquele que o observa, o espectador. Como em um jogo de espelhos, não é possível saber qual olhar se submeterá ao outro.

Fotograma 55 - No encerramento da película, a câmera enquadra Wexler, que revida enquadrando-a (01h49min25seg.). O espectador observa a mídia enquanto é observado por ela. Nessa dialética entre mídia e audiência, a tomada não é capaz de esclarecer se existe preponderância de um dos polos, que delimitaria e construiria o outro.

3.1.2 “Todos os Homens do Presidente” (1976) Alan J. Pakula (1928 – 1998) nasceu no Bronx, Nova Iorque. Formou-se em Drama na Universidade de Yale, iniciando sua carreira em Hollywood como assistente no departamento de desenhos animados da Warner Brothers. No final dos anos 1950, realiza o primeiro trabalho como produtor, na Paramount. Torna-se diretor em 1969, com “Os Anos Verdes” (The Sterile Cuckoo). Nos anos 1970, dirige o que é informalmente considerado sua “Trilogia da Paranoia”, um conjunto de três filmes onde os personagens são absorvidos por tramas nas quais não compreendem claramente as forças envolvidas, tampouco os perigos existentes. Compõem a trilogia: “Klute – O Passado Condena” (Klute – 1971), “A Trama” (The Parallax View – 1974) e “Todos os Homens do Presidente” (All The President’s Men – 1976). Os títulos citados foram sucesso de público e crítica, o que permitiu ao diretor ganhar notoriedade dentro da indústria do cinema. Posteriormente, Pakula dirige outros sucessos, 133

dentre eles “A Escolha de Sofia” (Sophie’s Choice – 1982), “Acima de Qualquer Suspeita” (Presumed Innocent – 1990) e “O Dossiê Pelicano” (The Pelican Brief – 1993). “Todos os Homens do Presidente” inicia-se com uma imagem de arquivo na qual Richard Nixon aterrissa a bordo do helicóptero presidencial a caminho de seu pronunciamento no Congresso. O Presidente é ovacionado e, apesar de ter acabado de chegar de uma de suas longas viagens internacionais, sorri abertamente. Demonstrando vivacidade, segurança e determinação, o poder do qual usufrui parece ilimitado. Enquanto isso, no complexo de edifícios Watergate, um grupo invade a Sede Nacional do Partido Democrata. Um vigia em ronda percebe algo suspeito, chama a polícia e os homens são presos. Na manhã seguinte, os editores do The Washington Post, Harry Rosenfeld (Jack Warden) e Howard Simons (Martin Balsam), discutem a história e consideram-na “pequena”. Apesar de Carl Bernstein (Dustin Hoffman), um jornalista experiente, pedir para ficar com o caso, eles o oferecem ao inexperiente Bob Woodward (Robert Redford). Chegando à audiência dos presos, Woodward surpreende-se pelo fato dos homens serem representados por advogados integrantes de importantes bancas, sem sequer terem dado um telefonema após a prisão. De volta ao jornal, Woodward, Rosenfeld e Bernstein discutem sobre o caso e descobrem o envolvimento de um dos presos com a CIA, apesar de o órgão governamental negar. Algumas anotações encontradas com os detidos citavam o nome “Howard Hunt” e “W. House” (Casa Branca). Diante disso, Woodward liga para a Casa Branca e pede informações sobre Hunt, descobrindo que ele é ligado ao escritório de Charles Colson, Conselheiro Especial do Presidente. Quando pergunta sobre Hunt, as respostas são evasivas. Continuando a investigação, Woodward recebe uma nota negando o envolvimento de Colson no caso do arrombamento antes que houvesse feito qualquer questionamento nesse sentido. Reconhecendo a importância da história, os editores colocam Bernstein no caso junto a Woodward. Bernstein começa suas investigações conversando com uma empregada do escritório de Colson. Ela confirma que Hunt estava investigando o Senador Edward Kennedy em nome da Casa Branca, tendo feito extensas pesquisas na biblioteca da sede do poder executivo. Diante da informação, Bernstein contata a bibliotecária, que confirma toda a narrativa da moça. Porém, segundos após, a funcionária volta atrás de tudo o que confirmara, chegando ao ponto de negar conhecer Hunt. Woodward telefona para o Diretor Substituto de Comunicações da Casa Branca, Ken Clawson, que nega a existência da conversa entre a 134

bibliotecária e Bernstein. Os repórteres decidem, então, pesquisar sobre as atividades de Hunt na Biblioteca do Congresso, porém não encontram nada. Como a história não possui confirmação, os editores retiram a matéria sobre Watergate da primeira página. Sem alternativas para prosseguir a investigação, Woodward telefona para uma de suas fontes no governo, porém o homem se nega a comentar o caso. No dia seguinte, uma anotação em sua cópia do The New York Times diz para colocar uma pequena bandeira na varanda de seu apartamento caso queira entrar em contato. Naquela madrugada, Woodward pega uma série de táxis até chegar a uma garagem subterrânea onde um homem misterioso e protegido pelas sombras ouve toda a história e o aconselha a “seguir o dinheiro”. Alguns dias depois, The New York Times também noticia detalhes sobre Watergate. Bernstein viaja para Miami, onde o Procurador do Estado, Dardis (Ned Beatty), fez um levantamento das ligações telefônicas e movimentações bancárias de Bernard Barker (Henry Calvert), um dos invasores de Watergate. Dentre os dados de Dardis há um cheque emitido para Kenneth H. Dahlberg no valor de $25.000. Woodward, então, contata Dahlberg, um dos integrantes do Comitê de Reeleição do Presidente, que informa ter entregado o cheque a Maurice Stan, Chefe de Finanças do Comitê que, por sua vez, repassou para Barker. No Post, os editores divergem sobre a solidez da investigação, que é defendida por Rosenfeld. Na reunião seguinte, os repórteres informam aos editores que um fundo secreto contendo centenas de milhares de dólares foi descoberto nas contas do Comitê de Reeleição. A fonte de Woodward, identificada pelo codinome “Garganta Profunda” (Hal Holbrook), diz que o dinheiro é a chave da investigação. Mesmo diante do descrédito dos editores, Woodward e Bernstein conseguem uma lista de empregados do Comitê e decidem entrevistá- los. Apesar das semanas de dedicação, ninguém aceita falar e a dupla desconfia de que os empregados estejam sendo ameaçados. No entanto, uma contadora (Jane Alexander) confirma conhecer a existência do fundo e aceita citar as iniciais, ao invés dos nomes, dos envolvidos. Baseando-se nas iniciais obtidas, os repórteres conseguem descobrir os nomes dos cinco controladores do fundo, estando dentre eles figuras próximas ao Presidente, como o Ministro da Justiça, John Mitchell. Ao visitar novamente a contadora, são informados de que estão sendo observados. Woodward e Bernstein decidem encontrar o tesoureiro do comitê, Hugh Sloan (Stephen Collins), que havia pedido demissão por motivos morais. Sloan revela que todas as ações do Comitê contavam com o conhecimento e apoio da Casa Branca. Os repórteres, então, contam aos editores das ações de Mitchell. Ao telefonar ao Ministro para informar-lhe da matéria que seria publicada na manhã seguinte, e oferecer-lhe a oportunidade 135

de comentar, Bernstein é ofendido e ameaçado por Mitchell, que emite uma declaração opondo-se à história, porém sem negá-la. Bernstein vai a Los Angeles conversar com Donald Segretti (Robert Walden), advogado que, sob as ordens do Comitê, agia para sabotar os presidenciáveis do Partido Democrata. Garganta Profunda informa Woodward de que o Departamento de Estado sabia das sabotagens. Caminhando de volta para casa, Woodward tem a impressão de estar sendo seguido e corre assustado, apesar de não haver ninguém. Uma fonte do FBI diz a Woodward que Segretti era pago pelo fundo do Comitê através do Chefe de Pessoal da Casa Branca, H. R. Haldeman, o que lhe sugere ser este o último nome que faltava ser confirmado no grupo que controlava o fundo. Apesar de a informação ser confirmada por Sloan e pela fonte de Bernstein no FBI, na manhã seguinte o primeiro não cita Haldeman no depoimento para o qual fora convocado. Assim, a administração Nixon faz duras críticas ao jornal. De qualquer forma, o editor executivo, Ben Bradlee (Jason Robards), apoia os repórteres. Garganta Profunda confirma para Woodward que Haldeman coordenava a operação e que Mitchell tinha todo o serviço de inteligência envolvido em operações secretas. Ele também diz a Woodward que a dupla de repórteres corre risco de vida. Woodward e Bernstein contam a descoberta a Bradlee, que, apesar do baixo interesse do público no caso Watergate, reconhece que o futuro da nação depende dessa investigação. Na cena final, Woodward e Bernstein continuam datilografando suas máquinas de escrever com determinação, enquanto um aparelho de televisão transmite imagens da posse de Nixon para seu segundo mandato. Algum tempo depois, os teletipos110 do The Washington Post registram notícias da condenação dos envolvidos no caso Watergate e da renúncia do Presidente. Ao tratar de um tema caro ao passado recente da nação, e que havia sido amplamente explorado pela mídia, Pakula lida com o desafio de narrar uma história da qual a audiência já conhecia o final. Como forma de ultrapassar essa questão, o enredo de “Todos os Homens do Presidente” não aborda diretamente o caso Watergate, muito menos toda a investigação que resultou na renúncia do Presidente Richard Nixon. Apesar de, a princípio, a trama parecer se voltar para a problemática do arrombamento no edifício do Complexo Watergate, o filme examina, mais propriamente, o processo investigativo colocado em curso pela dupla de jornalistas do The Washington Post.

110 Espécie de máquina de escrever automática que datilografava informações recebidas via linha telefônica. O teletipo tornou-se obsoleto com o surgimento de outros meios de comunicação. 136

Desse modo, os espectadores são levados a acompanhar as minúcias do trabalho investigativo que esteve nas bases das denúncias jornalísticas publicadas. Presenciando todas as fases da investigação e o empenho dos repórteres, o espectador participa das dificuldades enfrentadas por Woodward e Bernstein na tentativa de desmascarar as ações ilegais perpetradas por altos funcionários do poder executivo dos Estados Unidos. Portanto, “Todos os Homens do Presidente” cria uma atmosfera sombria caracterizada pela suspeita, riscos e silêncios, na qual os protagonistas são obrigados a adentrar em busca da verdade. A cena de abertura da película apresenta para a audiência o contexto histórico da política do país no final do primeiro mandato de Nixon. No entanto, o faz pontualmente. Ao invés de enumerar ou rememorar os principais acontecimentos daquele mandato, como a descontinuação da participação dos EUA no Vietnã, e a aproximação diplomática do país com a URSS e com a China, o clima político é lembrado através do uso de uma imagem televisiva de arquivo. Nessa imagem, o Presidente retorna de uma de suas viagens diplomáticas e dirige- se ao Congresso para expressar-se ao povo americano, diante dos congressistas, membros da Suprema Corte e corpos diplomáticos de Washington. Todo o acontecimento é narrado por um jornalista em tom quase documental. A reverência devida ao cargo parece extravasar em direção à pessoa de Nixon, pelo modo com que o jornalista se refere ao presidente. O salão interno do Parlamento é enquadrado através de uma tomada alta, como se a câmera televisiva estivesse localizada em uma galeria. O lugar está completamente tomado pelas principais autoridades do país quando Nixon é introduzido por um parlamentar. A pronúncia de seu nome provoca uma entusiasmada salva de palmas, sob a qual Nixon adentra o salão. Diante da plateia, o sorriso que toma o semblante do presidente transmite serenidade e segurança, enquanto Nixon profere a palavra “obrigado” perante toda a nação. 137

Fotograma 56 - A representação de Nixon que abre o filme dá conta de um Presidente anterior aos escândalos que denegriram sua imagem: popular, seguro e gozando de todo o poder que o alto cargo lhe conferia (02min09seg.). A recuperação desse registro televisivo e a opção por montá-lo como a primeira cena do filme destaca a imagem inicial que a produção espera que a audiência nutra do ex- presidente. A primeira impressão de Nixon dá conta de um chefe do Executivo seguro, integrado ao jogo de poder parlamentar e aceito pelos políticos de Washington, em suma, um presidente popular e influente. Note-se que a tomada inicial dessa primeira cena consiste em um fundo cinza claro que, após alguns segundos, transforma-se em uma folha de papel na qual os tipos de uma máquina de escrever violenta e ruidosamente imprimem a data “1º de junho de 1972”. Enquanto a data localiza a cerimônia, os tipos da máquina sublinham a importância da imprensa no caso. Por sinal, o som característico da datilografia vai ser ouvido em muitas passagens do filme, não apenas por boa parte das cenas desenrolarem-se na redação do jornal, mas como forma de demarcar o trabalho incansável dos repórteres. Quanto à impressão positiva de Nixon, esta destoa flagrantemente da consideração que a população guardava a respeito do ex-presidente em 1976, ano de lançamento da película. Desse modo, a relação entre imprensa e busca da verdade fica estabelecida como o pressuposto sobre o qual se assenta o enredo, uma vez que é através da insistência investigativa de Bernstein e Woodward que os atos criminosos dissimulados através daquele sorriso são desvelados. No ano de 1976 ocorria o processo eleitoral seguinte à renúncia de Nixon. A disputa foi travada entre os candidatos Gerald Ford, republicano, e Jimmy Carter, democrata. O fato 138

de Ford ter ocupado o cargo de vice-presidente de Richard Nixon, após a renúncia de Spiro Agnew, além de ter perdoado os crimes do Ex-presidente logo após tomar posse no principal cargo do Executivo federal, em decorrência da renúncia de Nixon, eram fatores que pesavam contra sua candidatura. Quanto a Carter, tinha a seu favor o fato de não ser um político com a imagem diretamente ligada a Washington, o que, diante do contexto de descrença política pós Watergate, o colocava em vantagem. Foi durante essa corrida presidencial que “Todos os Homens do Presidente” teve seu lançamento. Assim, ao expor os desdobramentos investigativos ligados ao Caso Watergate, reavivando um acontecimento político recente e profundamente negativo para o Partido Republicano, o filme de Pakula inseria-se na conjuntura política do momento. Desse modo, é possível conjecturar a preponderância de uma tendência ou orientação político-partidária no enredo do filme. Ao longo da projeção, são inúmeras as citações referentes às principais figuras políticas da história então recente do país. Para além da citação, o modo como as imagens dessas pessoas são utilizadas torna-se significativo dentro do contexto eleitoral daquele momento. Dessa maneira, na cena em que o grupo de invasores adentra a Sede do Partido Democrata com o objetivo de instalar escutas no ambiente, existe uma fotografia de John Kennedy na parede111. A imagem do ex-presidente os observa enquanto preparam os equipamentos para o ato criminoso. Assim, todo o capital moral e afetivo existente ao redor da memória daquele político está presente na cena. Conforme a autoridade imaginada de Kennedy, presentificada através de sua imagem, os reprova, a película reafirma o caráter execrável das ações ilegais realizadas pela administração Nixon.

111 A sala de Bradlee também é ornada com uma foto de Kennedy. 139

Fotograma 57 - Diante dos invasores, a imagem de John Kennedy olha em direção ao espectador, buscando apoio e empatia (04min46seg.). Momentos antes, o homem de camisa clara havia lhe encarado para, logo em seguida, virar-lhe as costas. Outro exemplo: a cena final marca a conclusão da narrativa proposta pelo filme, porém não o término das investigações. Desse modo, no último enquadramento da película, Woodward e Bernstein perseveram em seu trabalho de desmascarar os crimes do presidente, datilografando em suas máquinas de escrever na redação do jornal, enquanto dois televisores transmitem as imagens da posse de Nixon em seu segundo mandato. Os aparelhos são dispostos nas duas extremidades do enquadramento, com os repórteres ao centro, absorvidos pelos textos que escrevem. Nessa disposição espacial, a imagem duplicada de Nixon parece cercá-los, como se o Presidente pudesse observá-los e controlá-los. Naquele ponto da narrativa, as descobertas dos dois jornalistas haviam sido desmentidas pela Casa Branca, o jornal sofria severas críticas e a reportagem apenas não havia sido encerrada pela insistência de Bradlee, que defendera a dupla. O poder do presidente é capaz de torná-lo onipresente, e a aparente fragilidade dos repórteres é traduzida pelo tamanho diminuto que suas imagens apresentam na tela. As cenas acima citadas dialogam com a construção contextual operada em “Todos os Homens do Presidente”. A Washington representada no filme de Pakula consiste em uma cidade onde os rumos da nação encontram-se nas mãos de homens dispostos a utilizar-se de meios escusos para alcançar seus objetivos pessoais. Sem citar as disputas partidárias no Congresso, o ambiente político é retratado pelo predomínio do Partido Republicano, que se resume ao grupo de Nixon e suas táticas ilegais. As matérias escritas por Woodward e 140

Bernstein notabilizam-se como o único foco de oposição, como se o poder alcançado pelo chefe do Executivo fosse amplo a ponto de confundir-se com o próprio Estado. Portanto, a película explora a decepção social existente em torno daquela presidência, ainda muito presente na sociedade americana em 1976. Ao desalento político, soma-se a impressão de que o Estado é mais poderoso do que deveria, burocraticamente dispondo do destino dos cidadãos como uma instância superior.

Fotograma 58 - Praticamente toda a redação do The Washington Post interrompe o trabalho para assistir, pela TV, a posse de Nixon em seu segundo mandato (02h14min54seg.). Compenetrados no trabalho, Woodward e Bernstein ignoram o acontecimento, porém são observados pelo presidente, que acabara de jurar solenemente proteger e respeitar as leis de seu país. Como salientado acima, notem-se os dois aparelhos de televisão nas extremidades laterais do enquadramento, um à esquerda e em primeiro plano, o outro à direita e em plano de fundo. Os repórteres estão cercados por Nixon. No entanto, a máquina de escrever branca, ao lado da TV e no centro da imagem, destaca o papel da imprensa. Desse modo, a fotografia do filme opera algumas estratégias que pretendem acentuar a vulnerabilidade do cidadão comum. Nesse sentido, algumas cenas enfatizam a fragilidade dos protagonistas enquanto lutam para desmascarar uma história que recebe o descrédito de todos, exceto de Bradlee. É assim que o carro dos repórteres vai desaparecendo em meio à cidade, conforme discutem os detalhes da investigação. Na cena, a câmera foi provavelmente montada em um helicóptero para realizar uma tomada aérea. A captação da imagem do automóvel lentamente se transforma em uma panorâmica do centro de Washington, reduzindo as dimensões do carro até que seja impossível localizá-lo em meio às ruas, avenidas e edificações. Em seguida, a mesma panorâmica testemunha o cair da noite. Envolta na escuridão, as grandes dimensões da cidade fazem com que ela parece ainda mais ameaçadora. 141

Da mesma maneira, na cena em que Woodward e Bernstein decidem verificar as centenas de registros de consultas da Casa Branca na Biblioteca do Congresso, uma tomada em plongée fotografa os repórteres no salão de leitura da instituição. Progressivamente, o enquadramento é ampliado fazendo com que a dupla torne-se cada vez menor até o ponto em que se torna difícil identificá-los. O padrão existente no piso do salão, com um círculo e retas que se encontram em seu centro, e as mesas de consulta dispostas ao redor desse centro, colabora para a representação do Estado enquanto máquina burocrática, cujas engrenagens e poder seriam capazes de sujeitá-los.

Fotograma 59 - Woodward e Bernstein praticamente desaparecem no amplo salão de leitura da Biblioteca do Congresso (30min28seg.). A disposição e o tamanho do espaço destacam a fragilidade da dupla (e do cidadão) diante da burocracia do Estado e do poder do governo. O padrão imagético conseguido através do ângulo de tomada da câmera lembra uma engrenagem, coadunando-se com a ideia do Estado enquanto mecanismo. A economia de iluminação igualmente contribui para a criação da atmosfera de desconfiança e suspeita a prevalecer no filme. Assim, algumas das cenas nas quais Woodward e Bernstein mergulham na descoberta dos atos ilícitos que investigam são rodadas com pouca e, por vezes, quase nenhuma iluminação. Por outro lado, as tomadas realizadas na redação são amplamente iluminadas. Os tons claros a prevalecer no Post sugerem a retidão do jornal, que é reafirmada pela decência com que os repórteres buscam conseguir as informações de que precisam. Garganta Profunda é o personagem mais significativo desse uso semântico da iluminação. Ao mesmo tempo em que esse homem é um funcionário do executivo a ocupar um cargo importante, já que tem acesso a informações sigilosas, também é o informante de Woodward. O lugar e o horário escolhidos por ele para os encontros, uma garagem 142

subterrânea durante a madrugada, destaca a anormalidade de sua posição. Nas primeiras aparições, a identidade de Garganta Profunda permanece completamente protegida pela escuridão. Conforme a relevância das informações de que dispõe vai aumentando, sua face ganha contornos até que, no momento em que aceita revelar o que sabe a Woodward, seu rosto torna-se visível em detalhes. No entanto, o informante nunca será visto fora da penumbra da garagem. Conhecedor dos crimes da Administração, Garganta Profunda permanece no ambiente que denota a baixeza e a sordidez daqueles fatos. O próprio meio pelo qual Woodward desce até aquele lugar, uma escada de concreto que circunda uma coluna, suscita implicações sombrias no ato do protagonista. A estrutura lembra uma garganta, enquanto sua descida parece colocá-lo mais próximo das profundezas. Além do jornalista e seu insidioso informante, ninguém jamais é visto naquele local.

Fotograma 60 - A escada que leva Woodward ao subterrâneo onde se encontra, nas sombras, com Garganta Profunda (36min56seg.). Em busca da verdade, o protagonista desce rumo ao pior da política americana. A questão da vulnerabilidade do cidadão diante da burocracia e do Estado coloca-se mais uma vez na trama quando Bernstein e Woodward decidem entrevistar os funcionários do comitê de reeleição de Nixon. Conforme a dupla bate à porta dos trabalhadores, as negativas se multiplicam. Enquanto alguns simplesmente negam-se a responder qualquer pergunta, outros choram ou alegam sentirem-se ameaçados. Mesmo aqueles que, por questões de consciência, decidem colaborar, apenas o fazem indiretamente, respondendo aos questionamentos de maneira tangencial, nunca abordando diretamente a verdade dos fatos que presenciaram. O medo das consequências que podem vir a enfrentar por terem desafiado um governo disposto a atos de intimidação é o motivo para tal comportamento. 143

Ainda assim, durante a conversa com Sloan, Woodward afirma ser republicano, o que gera surpresa e espanto no olhar de Bernstein. Em outra passagem, uma das funcionárias procuradas recebe os repórteres rispidamente, lembrando-lhes o valor da lealdade que ela nutria por membros do governo. E, apesar do apoio do editor, os textos dos repórteres sobre Watergate não costumavam receber destaque no The Washington Post. Bradlee os informa, já no fim da narrativa, de que a maior parte da população dos EUA sequer havia ouvido falar do caso, permanecendo a corrida eleitoral como o principal assunto político daqueles meses. Desse modo, apesar de “Todos os Homens do Presidente” se inserir no contexto político de seu lançamento, e de ser possível considerar a existência de alguma tendência partidária na maneira como o enredo foi desenvolvido, talvez seja mais pertinente examinar o filme como uma obra em diálogo com a conjuntura política polarizada dos Estados Unidos de 1976, bem como fundamentada nos desdobramentos traumáticos dos recentes acontecimentos políticos daquela nação, sem assumir peremptoriamente um posicionamento partidário.

3.1.3 O Cidadão, a Imprensa, o Estado Os títulos acima analisados, “Dias de Fogo” e “Todos os Homens do Presidente”, examinam o papel intermediador ocupado pelo jornalismo entre o cidadão e o Estado. Privilegiando a mídia televisiva, no caso do primeiro filme, e a mídia impressa, no caso do segundo, ambas as produções problematizam o papel da imprensa como garantidora de direitos e fiscalizadora das ações governamentais. Entretanto, a perspectiva através da qual os enredos localizam o papel social do jornalismo permite espaço para que conjecturas específicas sejam levantadas em cada um dos filmes. Ao propor abordar os acontecimentos ocorridos em torno da Convenção do Partido Democrata de 1968, Haskell Wexler optou por sublinhar a cobertura televisiva do fato. Aquele episódio foi amplamente noticiado pela TV, que transmitiu imagens ao vivo dos embates entre manifestantes e policiais, evidenciando o que foi considerado abuso de poder por parte das forças de segurança envolvidas no evento. O dinamismo do acontecimento a ser abordado pela película tornava a televisão o veículo de mídia mais indicado, por sua capacidade de noticiar, em áudio, vídeo e instantaneamente, as ocorrências. Desse modo, o filme articulava variadas linguagens cinematográficas, com imagens jornalísticas de arquivo e simulações de realidade, fundamentadas em um enredo cujo protagonista era um cameraman, profissão partilhada pelo diretor e escritor de “Dias de Fogo”. De certo modo, John Cassellis é o próprio Wexler, que expõe parte de suas experiências como cinegrafista, seus 144

questionamentos ético-profissionais, além de suas reflexões sociais, através do protagonista que construíra. Em “Todos os Homens do Presidente”, cabe à imprensa a representação tradicional dessa instância social como o quarto poder, integrante indireto da balança de forças institucionais que compõem o sistema democrático moderno. Assim, a investigação colocada em curso por Woodward e Bernstein assegura à representação da imprensa executada no filme seu típico lugar social. Considerando-se o contexto político desanimador atravessado pelos Estados Unidos no ano de lançamento, 1976, bem como o descrédito de boa parte da população em relação tanto às instituições democráticas quanto às ações dos homens públicos, as matérias assinadas pelos repórteres e publicadas pelo The Washington Post configuram-se como um depositório de decência e integridade. Nas páginas daquele jornal, os valores caros à nação encontram esteio e segurança. Desse modo, não há espaço na produção de Pakula para um debate concernente às implicações éticas da imprensa nos moldes do realizado por Wexler, em “Dias de Fogo”. Enquanto que, neste título, a relação entre imprensa, audiência e desdobramentos político- sociais é problematizada, em “Todos os Homens do Presidente” cabe à imprensa uma posição cuja nobreza obstaculiza qualquer relativização. Saliente-se que esse caráter notório cabe à mídia impressa. Quanto à televisão, resta noticiar os momentos positivos de Nixon, além dos detalhes da corrida presidencial. Quando a TV finalmente cita as investigações referentes ao círculo político do Presidente, o faz de modo pontual, sendo a matéria de interesse nacional seguida por uma notícia referente a um evento de líderes de torcida. A banalidade da notícia que segue o tema de primeira importância denota, por um lado, as eventuais implicações políticas do canal de televisão, e por outro, as demandas e especificidades da mídia televisiva, divergente da mídia impressa. Por tratar de acontecimentos políticos bem localizados na história recente do país, a temporalidade torna-se uma questão de singular importância para ambas as produções. Esse fato é evidenciado pela similaridade com que as tramas são iniciadas. As duas narrativas abrem-se com a apresentação de uma data que determina o início do desenvolvimento do enredo, ainda que, no caso de “Dias de Fogo”, constitua-se uma narrativa distante do modelo clássico e, a princípio, avessa a determinações dessa espécie. Os tipos datilográficos que imprimem as datas na tela o fazem com vigor, especialmente em “Todos os Homens do Presidente”, quando o som do impacto de cada um dos tipos contra o papel assemelha-se ao ruído de um disparo de arma de fogo. Assim, para o observador atento, o papel combativo da imprensa é determinado já na primeira tomada de cada um dos filmes. 145

Saliente-se que, enquanto os dois filmes desenrolam-se em meio a campanhas presidenciais que fazem parte de suas diegeses, outra campanha do mesmo caráter compõe o cenário do lançamento de “Todos os Homens do Presidente”. Talvez por esta questão, ambos os filmes chegam ao seu desfecho sem que todas as facetas da narrativa sejam concluídas. Enquanto que o primeiro título não resolve o debate proposto, da relação mídia/audiência, encerrando-se na escuridão enigmática da lente de Wexler, o segundo conclui-se na derrota momentânea dos protagonistas e, dentro dos marcos maniqueístas da trama, sem que o bem prevaleça. A singularidade teleológica do filme de Pakula, uma vez que tanto os produtores e atores quanto a audiência já conhecem o final da história narrada, permite esse corte abrupto na narrativa. De qualquer modo, desta vez os tipos imprimem no papel o destino dos principais envolvidos. Mesmo diante das especificidades de cada uma das produções, os filmes propuseram à audiência a reflexão a respeito do modo como a política era conduzida na nação e as consequências éticas e sociais envolvidas. Em “Dias de Fogo”, a frase dos manifestantes “All the world is watching” (O mundo inteiro está assistindo) é repetida durante os créditos finais, enquanto um homem de negócios dá o depoimento de sua tomada de consciência política diante da violência do Estado. Já em “Todos os Homens do Presidente”, é um jovem negro e de visual black power, funcionário subalterno da Biblioteca do Congresso, que cede os registros da atividade de pesquisa da Casa Branca aos repórteres, após seu chefe branco, e melhor posicionado no establishment, negar arrogantemente tal acesso. Utilizando-se de estratégias cinematográficas diversificadas, tanto Wexler quanto Pakula instam o espectador a desenvolver uma consciência crítica e questionadora diante de momentos decisórios da política do país. Apenas a ação determinada dos cidadãos é capaz de assegurar o funcionamento saudável do Estado.

3.2 O ENGAJAMENTO POLÍTICO JUVENIL Apesar de a presença da juventude no cinema de Hollywood ter ganhado força durante a década de 1950 e de essa parcela da população merecer destaque nas produções dos estúdios durante as décadas seguintes, a representação do jovem enquanto ator propriamente político é um tema quase inexistente nas salas de cinema do país. Mesmo durante o período de maior efervescência da cultura jovem, no final dos anos 1960, fenômeno que foi acompanhado pelo ressonante engajamento político dos jovens nos variados movimentos sociais e debates que tiveram curso na sociedade, a produção cinematográfica dos estúdios da Califórnia evitou retratar essa faceta da ação juvenil do período. 146

Este fato surpreende sob duas diferentes perspectivas. Primeiramente, era inegável a participação dos jovens de diferentes camadas sociais, formações educacionais e heranças culturais nos acontecimentos políticos do período. Pelo contrário, a autoafirmação do jovem enquanto ator político ativo consistiu em uma das características marcantes daquele momento histórico. Em segundo lugar, os jovens, sua cultura, seu comportamento, suas ações, em suma, os novos valores que eram (acertadamente ou não) apontados como típicos da parcela libertária da juventude, foram alvo de enorme midiatização nas décadas estudadas. Assim sendo, o silêncio de Hollywood a respeito do caráter político daquela juventude torna-se, no mínimo, curioso, já que seria mais um elemento a enriquecer os enredos da indústria cinematográfica então em crise. Ademais, as décadas de 1960 e 1970 acalentaram um forte processo de politização da vida cotidiana. Nesse processo, diversos assuntos antes restritos ao foro íntimo ou considerados concernentes à família, e, em certa perspectiva, ausentes de desdobramentos políticos, foram colocados no centro dos debates que corporificavam demandas há muito reprimidas. Dessa forma, questões referentes à sexualidade, aos direitos civis, aos direitos das mulheres e dos homossexuais, à religiosidade, ao direito ao acesso à saúde, à alimentação, à moradia, que não mereciam maiores desdobramentos políticos, foram fortalecidas nesse aspecto. Em todas essas áreas a participação juvenil foi relevante, quando não essencial, para a conversão das tensões em impulso transformador. Alguns títulos do cinema chegaram a citar o caráter político dos jovens, porém, em sua maioria, o fizeram de forma indireta, sem oferecer destaque à questão nas tramas. Além disso, a disposição política dos jovens era, usualmente, retratada de maneira não problematizada, o que fazia com que os diversos desdobramentos sociais que poderiam ser elencados pelo enredo sequer fossem indicados na narrativa. Dos títulos que ensaiaram uma retórica crítica voltada ao contexto político dos Estados Unidos, ora diversas questões eram levantadas sem que ocorresse o devido aprofundamento, levando a certa confusão na linha narrativa, ora o personagem protagonista tornava-se veículo para a corporificação de determinadas demandas, o que envolvia o risco da particularização e individualização de um tema que dizia respeito ao conjunto da sociedade. Assim sendo, nos filmes produzidos na década de 1960 e nos anos iniciais da década seguinte, e que voltaram o enredo para a juventude retratando temas que lhe eram caros ou personagens jovens, a contracultura e os dilemas do início da vida adulta tornavam-se pontos de apoio para o desenvolvimento da narrativa. Já nas películas realizadas a partir de meados dos anos de 1970, o retrato constituía uma juventude abandonada à própria violência ou sem 147

saída, diante de um contexto social e econômico que não lhe permitia acesso às oportunidades necessárias para ascender rumo a uma vida melhor. Essa construção condiz com o momento no qual as consequências sociais da recessão econômica eram evidentes e, além disso, quando a euforia da década anterior havia dado lugar à desilusão devido à não realização de muitos dos anseios por justiça social e liberdade. Alguns dos filmes analisados ao longo dos capítulos do presente texto podem exemplificar ambas as perspectivas representacionais. Visando examinar a caracterização cinematográfica da juventude enquanto ator político no final dos anos 1960 e no fim da década seguinte, analisam-se, a seguir, os filmes Zabriskie Point (Michelangelo Antonioni – 1970) e Guerra nas Estrelas (Star Wars, dir.: George Lucas – 1977). Enquanto a primeira película elabora uma conceitualização pessimista da tendência à ação política dos jovens universitários, o segundo heroiciza a rebelião contra o poder instituído, porém sob parâmetros bastante peculiares.

3.2.1 “Zabriskie Point” (1970) Michelangelo Antonioni (1912 – 2007) nasceu no norte da Itália, filho de uma família de classe-média. Após estudar Economia, na Universidade de Bolonha, muda-se, em 1939, para Roma e torna-se escritor da revista oficial do regime fascista Cinema. Através desse emprego, conhece personalidades ligadas à produção de cinema. O reconhecimento internacional é alcançado pela “trilogia da modernidade e seus descontentes”, composta por “A Aventura” (L’Avventura – 1960), “A Noite” (La Notte – 1961) e “O Eclipse” (L’Eclipse – 1962). Quando dirigiu “Zabriskie Point”, Michelangelo Antonioni já era, portanto, um diretor experiente com mais de duas décadas de atuação. Avesso aos modelos narrativos tradicionais112, suas obras desafiam os parâmetros convencionais do cinema, propondo maneiras originais de desenvolvimento dos enredos. Opondo-se ao cinema de ação, oferece grande atenção à construção estética do filme, explorando as varias possibilidades de expressão disponibilizadas pela linguagem cinematográfica. Desta maneira, seu cinema torna- se contemplativo e reflexivo, em detrimento da trama e das personagens. Trata-se de um cinema da sensação, ou sentimento, da atmosfera, onde proliferam os signos tanto imagéticos quanto textuais, escritos ou falados. Essa especificidade torna-se presente na análise da película selecionada.

112 Refiro-me aos modelos narrativos utilizados por algumas escolas artísticas de cinema, sobretudo pelo cinema clássico hollywoodiano, nos quais se observa a preponderância do desenvolvimento linear da trama. 148

O filme inicia-se com uma reunião estudantil em uma universidade. O protagonista, Mark (Mark Frechette), assiste ao encontro, porém sem participar ativamente. Quando se pronuncia, o faz para demonstrar, ironicamente, sua desaprovação ao debate em curso, para ele inútil. Sua saída repentina provoca a rejeição de todos que, apesar de discordarem dos pontos em discussão, concordam quanto à necessidade da participação política em grupos. A cena termina com a condenação de seu comportamento, considerado individualismo burguês. Após a saída de Mark, procede-se um corte que nos leva à entrada de um moderno edifício comercial, onde Daria (Daria Halprin) pede ao segurança permissão para subir ao terraço e buscar um livro que havia esquecido lá, durante o almoço. O segurança nega a entrada e a questiona pelo motivo de não almoçar no refeitório com os outros funcionários. Sendo perguntado por Daria a respeito de quem poderia dar-lhe a permissão, o segurança aponta para o principal executivo do empreendimento, Lee Allen (Rod Taylor). Este, que vinha saindo do elevador, visivelmente se interessa pela aparência jovem e contracultural de Daria, iniciando uma conversa. Neste momento, a narrativa volta a acompanhar Mark, agora ao volante de uma velha caminhonete vermelha e em companhia do amigo que o levou à reunião. Na rua existe um longo e colorido mural onde se vê uma cena de fazenda, com homens alimentando porcos negros. Virando-se a esquina, o mural torna-se mórbido, mostrando uma cena de matança. Na curva, os pneus da caminhonete “cantam”, produzindo um som agudo que se assemelha ao ruído produzido por aquele animal quando ferido no abate. Conforme a caminhonete se desloca, expõe-se uma série de fachadas de empresas, com seus respectivos nomes e logotipos. Esta apresentação se dá de maneira quase violenta, a imagem sendo montada através de cortes rápidos, acompanhada do som de máquinas. Ao passar por uma dupla de policiais motociclistas, Mark chama a atenção para si fazendo com a mão o sinal da paz para, imediatamente após a passagem da dupla, e ainda sabendo-se sob observação, levantar o dedo do meio. Esta postura do protagonista, buscando ser notado, se repete ao longo da película. Neste momento, esclarece-se que Mark leva o amigo para um protesto. Tendo o companheiro sido preso, vai à delegacia a fim de pagar sua fiança. No local, demonstra completo desrespeito à autoridade policial, sendo igualmente detido. Ao ter seu nome questionado para o preenchimento da ficha, informa chamar-se Karl Marx, o que é aceito pelo policial, para o deleite dos detidos. É fichado “Carl” Marx. A cena da detenção é seguida pela ida de Mark e outro amigo à loja de armas. Apesar de contrário à legislação, os dois conseguem adquirir o armamento que desejam 149

imediatamente, sem problemas. A aquisição do material realça a intenção de partir para uma ação drástica, caso seja necessário. No edifício executivo, o espectador percebe se tratar de um empreendimento imobiliário que pretende criar uma grande área habitacional no deserto, denominada Sunnydunes. Na cena, os principais executivos assistem a uma peça publicitária do que será o bairro residencial suburbano. Produzido exclusivamente com o uso de manequins, o comercial apresenta uma residência nos moldes dos subúrbios típicos da década de 1950, na qual uma família nuclear composta por marido, esposa e filho usufrui das benesses de uma vida longe da agitação da cidade de Los Angeles. Mark ouve no rádio notícias sobre complicações na manifestação na universidade e decide ir até lá. No local, presencia o cerco à biblioteca, onde manifestantes negros haviam se abrigado. Apesar da afirmação da polícia sobre os militantes estarem armados, em nenhum momento se vê qualquer arma nas mãos destes. Diante do tiro de um dos policiais contra um dos manifestantes, Mark saca seu revólver, porém não tem a oportunidade de alvejar o policial, sendo este baleado por alguma outra pessoa. Assustado, Mark foge. Momentos depois, o rapaz salta de um ônibus em outra parte da cidade e, ao avistar um pequeno avião e perceber que está próximo a um aeroclube, vai até o local e decide roubar um dos monomotores. Decola sem dificuldades, partindo para o deserto. Segue-se uma tomada aérea de um cruzamento no deserto onde Daria estuda um mapa procurando se localizar. Telefonando de um bar, conversa com Lee, agora seu patrão. Sabemos que ela deve se encontrar com ele nas próximas horas para uma reunião em Phoenix, porém que aproveitou a viagem para visitar um lugar para meditação onde vive um de seus amigos. Descobre do dono do bar que seu amigo trouxe crianças de Los Angeles, mas que as mesmas tornaram-se um problema. Após ser atacada por um grupo de garotos, Daria foge. Em um longuíssimo plano, o espectador vê a sombra do avião de Mark cruzar com o carro de Daria. Consiste no primeiro encontro do casal. Por diversão, Mark faz voos rasantes sobre o veículo da jovem, que estaciona para interagir com o piloto. Minutos depois, Daria encontra o avião aterrissado e decide parar e conversar com Mark. Este pede uma carona para comprar combustível para a aeronave, o que a jovem aceita fazer. No caminho, encontram Zabriskie Point, ancestral leito de rio transformado em conjunto de colinas pela ação geológica. No lugar, falam sobre seus planos e anseios, suas impressões sobre a vida. Daria oferece um cigarro de maconha, que Mark recusa. O casal acaba se relacionando sexualmente, em uma cena que envolve a fantasia de inúmeros jovens casais abertamente se relacionando ao redor deles. A cena se encerra em meio a uma tempestade de areia. 150

Saindo das colinas, o casal se depara com uma família de turistas em seu trailer, curiosamente semelhantes aos manequins do comercial da Sunnydunes. Em seguida, Mark percebe a aproximação de uma viatura policial, escondendo-se em um banheiro portátil. Daria distrai o policial que opta por não se ocupar com a jovem. Entretanto, quando o agente entra na viatura para partir, Daria percebe que Mark lhe aponta um revólver. Buscando evitar o pior, ela se coloca entre os dois, obstruindo a visão do rapaz. Surpresa, a moça o questiona sobre ter sido ele a matar um policial na universidade, como o rádio noticiara. Ele informa ter pensado em fazê-lo, porém não ter feito. Mark enterra as balas no solo arenoso, as quais são imediatamente recuperadas por Daria para que ele possa provar sua inocência, o que o rapaz pretende não tentar. De volta ao campo onde Mark aterrissara, o casal, com a ajuda de um velho pintor residente nas proximidades, pinta a aeronave por inteiro, utilizando-a como suporte para artisticamente veicular uma série de mensagens anti-establishment. Daria, inutilmente, tenta convencê-lo a não voltar para devolver o avião, por ser muito arriscado. Os jovens se despedem enquanto Mark decola rumo a Los Angeles. Daria volta à estrada em direção à reunião em Phoenix. No aeroporto a polícia e a imprensa aguardam pelo retorno de Mark que, ao aterrissar, é cercado pelas viaturas. Tentando fugir, termina sendo baleado e morto. Parada à beira da estrada, de pé ao lado do carro, Daria ouve no rádio a notícia da morte de Mark. Desconsolada, ameaça voltar à Los Angeles, porém desiste e segue para Phoenix. Chegando ao endereço, depara-se com uma mansão no alto de um morro rochoso. Após estacionar, ouve vozes e se aproxima de uma piscina onde três mulheres em trajes de banho mantêm uma conversa fútil sobre outra pessoa. Daria sequer é notada pelo trio. Chorando por um instante, a jovem se recompõe e vê Lee reunido com outros homens em uma sala, onde tenta convencê-los do potencial econômico de seu empreendimento. Percebendo Daria, Lee indica-lhe o quarto onde vai ficar hospedada e retorna à reunião. A jovem observa o ambiente da casa, as pessoas e suas intenções aparentes. Sentindo-se deslocada, decide partir. Na saída da mansão, porém, para seu automóvel, salta, volta-se para trás e imagina todo o imóvel sendo consumido em uma espetacular explosão. Sorri discreta e brevemente, embarca no carro e parte, já ao pôr do sol. O filme de Antonioni retrata alguns momentos na vida de dois jovens americanos objetivando refletir sobre a juventude daquela nação, no contexto dos anos finais da década de 1960. Dada a concepção própria do diretor a respeito daquilo em que consiste o cinema, “Zabriskie Point” não lida diretamente com a conjuntura política do momento, porém dialoga 151

com ela, fazendo referências mais ou menos explícitas. Em entrevista oferecida a Roger Ebert ainda durante as filmagens, Antonioni esclarece algumas de suas motivações e dos caminhos escolhidos na realização da obra. É interessante atentar para seus comentários quanto às suas impressões sobre o cinema, a função dos personagens e a natureza de seu filme. Segundo ele, tratando da motivação da produção: “Talvez o filme seja apenas uma disposição de espírito, ou uma afirmação sobre um estilo de vida. Talvez não exista trama, na forma como se usa a palavra. (...) Em algum grau, eu estou fazendo um filme sobre a juventude na America, tomando dois jovens americanos e fazendo um filme sobre eles”113. Explica-se, assim, o fato de os atores protagonistas preservarem seus nomes em seus personagens. Ainda sobre os atores, afirma: “O que acontece com eles no filme não é importante. Eu poderia tê-los feito fazer uma coisa ou outra coisa. As pessoas pensam que os eventos no filme são sobre o que o filme é. Isso não é verdade. (...) O filme é sobre os personagens, sobre mudanças que acontecem dentro deles. As experiências que eles têm no desenrolar do filme são simplesmente coisas que ‘acabam acontecendo’ aos personagens, os quais não iniciam nem acabam com o filme”114. Quanto à inserção de “Zabriskie Point” no ambiente político do momento de produção, Antonioni defende que seus filmes são políticos, porém não sobre política. Informa: “Eles são políticos em sua abordagem; são feitos de um ponto de vista definitivo. E devem ser políticos no efeito que têm sobre as pessoas”115. O diretor sublinha, ainda, a importância que a convenção democrática em Chicago teve sobre ele semanas antes de iniciar as gravações. “O que vi lá – o comportamento da polícia, o espírito dos jovens – me impressionou mais profundamente do que qualquer outra coisa que eu tenha visto na América. Em algum grau, ‘Zabriskie Point’ é influenciado pelo que aconteceu nas ruas de Chicago. Não diretamente, você entende. O filme não é sobre Chicago. Porém minhas ideias sobre os jovens americanos foram formuladas pelo o que aconteceu em Chicago, e isso de alguma forma deve estar expresso no filme.”116 Antonioni aborda mais diretamente o contexto político logo na cena de abertura da película. Nesta, ocorre uma reunião estudantil onde se debate o que constitui um revolucionário e como os estudantes presentes devem agir. Um casal de jovens negros possui proeminência na cena, fazendo afirmações contundentes nas quais argumentam que o

113 Entrevista a Roger Ebert, 19 de junho de 1969. Acessado em: http://www.michelangeloantonioni.info/2013/08/22/interview-with-michelangelo-antonioni-by-roger-ebert- june-19-1969/, à 16/06/2016. 114 Ibid. 115 Ibid. 116 Ibid. 152

protagonismo da revolução pertence à população negra, devido à violência da qual foi historicamente vítima. Segundo a fala do ativista negro: “um radical branco é uma mistura de lenga-lenga com papo furado”117. A reunião, que acontece em uma sala da universidade, é composta majoritariamente por estudantes brancos os quais, apesar das discordâncias pontuais, apoiam os ativistas negros. As colocações são compostas por elementos que caracterizam estereotipicamente a retórica do movimento estudantil de esquerda: citações à Lenin, Fidel Castro, ao Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung, greves, oposição ao recrutamento militar no auge da Guerra do Vietnã. Debatem-se estratégias de enfrentamento das forças policiais, além de formas de ocupação total dos campi universitários. Diante da especificidade da reunião, notadamente mais teórica que prática, Mark se retira “para não morrer de tédio”. As considerações proferidas por Antonioni na entrevista anteriormente citada, porém, tornam interessante um exame menos imediato da cena. Enquanto os créditos iniciais se desenrolam, a abertura do filme é construída através de cortes rápidos, com tomadas em close-up, por vezes fora de foco e movimentos de câmera laterais. Estas imagens são acompanhadas por uma banda sonora onde trilhas distintas são sobrepostas, permitindo ouvir- se uma batida compassada semelhante aos batimentos cardíacos, alguns instrumentos musicais, falas desconexas, dando a impressão de mudanças repentinas de estações de rádio. Quando o título do filme surge na tela, vemos um close de um rosto em perfil aparentando pertencer ao protagonista.

117 03 min29 segs. 153

Fotograma 61 - A reunião estudantil que compõe a primeira cena do filme, representação da juventude universitária de fins da década de 1960 (03min.33seg.). Primeiro plano de conjunto, a tomada refere-se ao ângulo de visão da militante negra que detém o protagonismo na reunião. A plateia é composta, sobretudo, por jovens brancos de classe média. Alguns minutos da projeção se passam até que uma tomada de plano permita ao espectador ter uma noção espacial do cenário, captando o que está acontecendo e quantas pessoas estão participando. Assim, tanto os créditos quanto o desenvolvimento posterior da cena, onde os ativistas debatem, são marcados pela confusão, pela falta de clareza do que está ocorrendo. Apesar da oposição entre brancos e negros quanto àquilo que constitui um revolucionário, os atritos raciais não parecem ser o motivo da cena. Antonioni não pretende se ocupar de questões pontuais. Qual seria, então, a motivação desta abertura? Buscando uma representação da juventude americana do período, conforme salientado pelo próprio cineasta, a cena presume a falta de objetividade daqueles jovens que, a despeito da insatisfação com a sociedade da qual fazem parte e de objetivarem transformar sua realidade, não possuem um plano efetivo de ação que lhes permita canalizar toda a energia que possuem. A ironia de Mark explicita este aspecto. Desta maneira, a cena também tem como função a apresentação do protagonista através de seu principal traço de personalidade. Mark é inconformado, não apenas no que concerne aos valores tradicionais presentes na sociedade, mas, além disso, aos parâmetros de luta propostos pelas organizações políticas juvenis. A primeira fala a emitir, de que aceitaria morrer pelo movimento, dá conta da tendência suicida que irá exibir em outras passagens da narrativa. Ademais, na cena em que os militantes negros realizam o ato que planejaram na reunião, ocupando o prédio da biblioteca da universidade, a tomada de câmera do salão de leitura exibe uma placa com o aviso “a sala de leitura é para aqueles que querem estudar.” Evidencia-se, assim, a ineficiência do movimento político radical juvenil. 154

Fotograma 62 - O salão de leitura da biblioteca da universidade ocupada pelos militantes negros (27min07seg.). Com o chão coberto pelo que parece serem panfletos políticos, a placa afirma a correta função do espaço. O uso simbólico de outdoors e murais possui, igualmente, função política na produção do realizador italiano. É através da profusão de slogans e fachadas de instalações comerciais/industriais que Antonioni explora o âmbito do consumo na sociedade dos Estados Unidos. Utilizando-se de outdoors, uma peça eminentemente publicitária, o consumismo e a desvirtuação de valores caros à nação são destacados, sendo inúmeros os anúncios referindo- se a bancos e instituições financeiras. Em “Zabriskie Point”, os sinais do consumo consomem a tela. Além disso, a crítica à uniformidade típica do mercado de consumo fica expressa na caricatura dos porcos, todos iguais, esperando por serem alimentados. Literalmente, virando- se a esquina é o abate que os aguarda. O consumismo é, ainda, explorado na publicidade do empreendimento imobiliário Sunnydunes. Nesse, que é avaliado pelos executivos da companhia, manequins ocupam os lugares de atores em um ambiente residencial artificialmente construído, que visa simular um lar do futuro subúrbio a ser erguido no deserto. Os personagens da família nuclear representada, que esteticamente se assemelham aos traços das bonecas infantis Barbie, aproveitam o alegado conforto da vida no Death Valley. A casa com piscina privativa, jardim e cozinha repleta de eletrodomésticos é considerada motivo suficiente para as famílias abandonarem os problemas típicos de cidade grande de Los Angeles e se estabelecerem no Deserto de Mojave, próximo à cidade. Atrelado ao consumismo, os valores tradicionais da família nuclear heterossexual, da posição do homem como chefe da casa e da submissão da mulher, compõem o quadro. 155

Enquanto o homem caça leões da montanha, uma referência aos ativistas negros do Partido dos Panteras Negras, e rega o jardim numa sutil conotação sexual, a mulher trabalha na cozinha para alimentar marido e filho. Neste momento, o corte para a face da única executiva mulher que assiste ao comercial sublinha o papel feminino que ainda prevalece culturalmente. Para além das críticas, os outdoors adequam-se como suportes para a veiculação de informações e referências. Segundo Antonioni, na entrevista anteriormente citada, ao pintar murais e se utilizar de outdoors, ele tem por objetivo realizar uma compressão, ou seja, transmitir mais dados em um menor número de tomadas. Assim, em “Zabriskie Point”, muito da complexidade da linguagem imagética, recheada de detalhes, encontra-se nestas estruturas publicitárias. Significativo que, quando Mark e Daria encontram-se frente a frente no deserto, exista no campo onde o avião foi aterrissado dois velhos outdoors vazios. O estado de degradação das estruturas denota que as mesmas não são utilizadas para seu fim original há muito tempo. Esta ausência talvez demarque a passagem, no deserto, não para a falta de linguagem, porém para a transposição a outra forma de linguagem, mais sutil, natural. Completa o sentido de passagem o fato de os referidos outdoors aparecerem enquadrados atrás do automóvel de Daria, que simplesmente passa por eles, sem sequer tomar conhecimento daqueles objetos. Assim, os outdoors e sua relação com a publicidade, com o meio urbano, ficam “para trás”. De qualquer modo, o velho homem que reside no casebre próximo de onde Mark aterrissou aparenta ser um pintor de murais ou outdoors, ajudando os jovens a transformarem o avião em uma obra de arte.

Fotograma 63 - Na cena em que Daria vai se encontrar diretamente com Mark pela primeira vez, veem-se dois outdoors vazios e envelhecidos no plano de fundo, em contraponto ao carro guiado pela jovem, em primeiro 156

plano. A tomada é registrada em tom minimalista, com poucos elementos. Valoriza-se, desse modo, a aridez do ambiente (50min27seg.). Após aproximarem-se física e psicologicamente em Zabriskie Point, Mark e Daria retornam ao avião. Talvez em consequência da experiência que tiveram, decidem transformar a aeronave em um outdoor, utilizando-a como um suporte para divulgarem suas impressões sobre a sociedade americana. Daria desenha um fósforo em chamas junto da cauda, seguido das palavras “no war” e de uma bomba dentro da qual se seguem os pronomes “she, he, it”, tudo envolto em grama. Mark constrói sua pintura tendo como imagem principal os órgãos reprodutores masculinos, figurando dentro destes o cifrão e as palavras “suck bucks”, lê-se “no words” e um discreto agradecimento ao dono da aeronave em “thankx”, além de pés de maconha. Na frente, uma cara negra animalesca lembra uma pantera extrovertida, com a língua à mostra. A transmutação conclui-se no teto da aeronave, onde se ostenta um enorme par de seios seguidos do algarismo “1”. Exibindo características femininas e masculinas, este algarismo traduz a unicidade do ser criado. Desta forma, o casal exprime os princípios da juventude do período. Entretanto, quando é avistada nas proximidades do aeroporto, a mensagem não é compreendida, sendo a linguagem classificada como despropositada. Na cidade, o manifesto vindo do deserto perde o sentido.

Fotograma 64 - O avião de nome “Lilly 7”, agora transmutada em um suporte que veicula as mensagens dos jovens, sendo preparada para a viagem de retorno de Mark (01h16min58seg.). Sendo Antonioni diretor integrante do cinema moderno europeu, a maneira como dispõe das relações de tempo e espaço em seu filme permite construir uma realidade fluida, desprendida de certas estruturas lógicas. Assim, é possível perceber que os acontecimentos 157

apresentados na trama dificilmente teriam lugar em um único dia, apesar de ser esta a impressão dada pela montagem realizada. Daria não poderia conhecer Lee e tornar-se sua funcionária e amante no mesmo dia. Da mesma forma, Mark provavelmente não iria à reunião, seria preso, compraria armas, iria à manifestação e fugiria em uma única manhã, como fica subentendido. Finalmente, Daria e Mark não se conheceriam, iriam à Zabriskie Point, fariam amor e pintariam o avião em uma única tarde, ainda a tempo dele voltar a Los Angeles e ela chegar a Phoenix antes do entardecer. Observando-se mais atentamente, são claras as elipses temporais existentes na narrativa. Além disso, a localização dos personagens no deserto nunca é certa, a não ser no momento em que estão no acidente geográfico que denomina o filme. O deserto é, por conseguinte, tratado como uma área homogênea na qual os protagonistas se deslocam a esmo. Antes de cruzar com Mark, mesmo Daria não sabia onde estava. Esta questão das elipses temporais e espaciais não chega a se tornar um empecilho para a produção, já que não significa prejuízo para a narrativa. Pelo contrário, abordando a vida de dois jovens americanos, suas dúvidas, desejos, anseios e buscas, as elipses colaboram para condensar as experiências vividas em um curto período de tempo, intensificando-as e enriquecendo-as. Ademais, a aridez física de Zabriskie Point pode refletir o vazio existencial dos protagonistas, em busca de um caminho que parece lhes escapar. Assim, a experiência vivida no Vale da Morte acaba sendo reveladora para Daria, que reavalia sua vida, possibilitando um recomeço. Quanto a Mark, resoluto, mantém o plano de voltar à cidade, onde encontra seu desfecho. Para ele, o deserto funciona como fuga momentânea, apenas, uma vez que mesmo diante do convite de Daria para acompanhá-la, decide retornar a Los Angeles. Desde o início da projeção o caráter autodestrutivo de Mark é claramente apresentado, afirmando aceitar morrer pelo movimento já em sua primeira fala. Ao volante de sua velha caminhonete, atravessa o sinal vermelho em um cruzamento, quase causando uma colisão com outros dois veículos. Em seu quarto nota-se uma bandeira dos Estados Unidos toda em vermelho, como que ensanguentada. Não perde a oportunidade de gratuitamente ofender policiais e, apesar de não ter sido detido em uma das manifestações, acaba ocasionando a própria prisão por assumir uma postura desafiadora na delegacia. Finalmente, compra armas e vai armado à manifestação no campus, a qual ele já sabia estar fora de controle com confrontos violentos entre estudantes e forças policiais. Sua oposição a qualquer indício de autoridade fica evidente inclusive em pequenos gestos, como optar por estacionar sua caminhonete diante de uma placa proibindo o estacionamento, ou no inexplicável ato de quase alvejar um policial que pede os documentos a 158

Daria. A determinação em devolver a aeronave no mesmo lugar onde a roubou sela sua tendência, desta vez suicida. Antes da decolagem afirmara a Daria que queria correr riscos. Se, no início, se recusa a lutar diante das regras do movimento estudantil, acaba se tornando um efetivo ativista, assumindo os maiores perigos. Daria não demonstra nada da instabilidade presente nos atos de Mark. Logo na cena em que é introduzida à história, a jovem é caracterizada como integrante da voga contracultural, em suas roupas, hábitos e maneirismos. O fato de ter deixado o livro no terraço do edifício, onde foi comer, preferindo ler ao invés de dividir a refeição com os demais funcionários no refeitório, demonstra sua individualidade. Importante notar que a cena vem logo em sequência ao comportamento de Mark na reunião ter sido tachado de “individualismo burguês”, como se uma característica encerrasse necessariamente a outra. Sublinha-se, na moça, um individualismo nada burguês. Daria não é militante, sequer se preocupa com os debates dos ativistas. Apesar de se afastar dos valores tradicionais presentes naquela sociedade, não é politicamente radical. Prova isso o fato de ter se aproximado amorosamente de Lee118, mandatário do empreendimento do qual se tornou secretária. Lee, por sua vez, não se reduz às características unidimensionais de um capitalista, membro da classe economicamente privilegiada e partidário de valores conservadores. A maneira como se encanta com as qualidades da jovem relativiza a gravidade do personagem. Apesar de reconhecer que suas necessidades não são atendidas dentro dos parâmetros sociais vigentes, Daria não enseja realizar qualquer ato visando colaborar para a mudança da realidade social existente. Ao invés disso, parte para o deserto em busca de engrandecimento espiritual, apesar do pretexto de ir à Phoenix. O carro que dirige, um modelo velho e emprestado, demonstra sua falta de apego material. No filme de Antonioni esta personagem parece representar o sentimento de ansiedade presente na juventude do período que, porém, não consegue identificar a origem de sua inquietação. É graças ao encontro inesperado com Mark que ela alcança meios para vislumbrar seus possíveis caminhos pessoais. A morte do rapaz, do qual sequer conheceu o nome, funciona como um ponto de reflexão para a jovem, que já possuía a disposição íntima para a transformação. Significativamente, suas últimas palavras na película são as de despedida do inusitado piloto. Após a fatídica notícia ouvida no rádio do carro, ela não interage verbalmente com mais ninguém.

118 Não existe citação direta deste fato no enredo, porém pode-se subentender que tal aproximação ocorre. 159

O filme conclui-se na grande explosão da mansão onde Lee se reúne com os possíveis financiadores de seu empreendimento imobiliário. Imaginada por Daria, como forma de extravasar tanto a dor pela morte de Mark quanto a decepção com os parâmetros do dinheiro, poder e ganância, evidenciados a ela nos hábitos e negócios da alta classe, a demolição do imóvel, repetida incessantes vezes em ângulos de câmera variados, aos poucos se desenvolve para a explosão de símbolos do consumo, com a destruição de cabides repletos de roupas, dos objetos ao redor da piscina e de uma geladeira; da mídia, com a detonação de uma TV na tela da qual se vê um apresentador de telejornal; e da educação, com a aniquilação de estantes de livros. Conforme os destroços da casa e dos objetos voam pelos ares em câmera super lenta, a música “Come in Number 51, Your Time is Up”119, da banda de rock Pink Floyd, compõe a banda sonora, sendo o som das explosões reproduzido apenas no início da cena. A música em questão, desprovida de letra, inicia-se suavemente, com o compasso sendo gentilmente marcado pelos pratos de condução da bateria para, após algum tempo, expressar-se um forte sentimento de desespero e agonia, com a ruidosa entrada das guitarras e pleno uso da bateria. A música, portanto, explode da mesma forma que os objetos na cena, que consiste na crítica final da película aos padrões sociais e culturais aos quais a juventude representada se opunha. Entretanto, restabelece-se a esperança no sorriso final da protagonista, e no avermelhado pôr do sol, por sinal presente ao longo da projeção em alguns dos outdoors.120

3.2.2 “Guerra nas Estrelas” (1977) O diretor do título em questão, George Lucas, nasceu em 1944, em Modesto, Califórnia. Antes de se interessar pelo cinema, Lucas planejava tornar-se piloto de corridas, porém um grave acidente o fez mudar de planos. Após o ocorrido, Lucas frequentou a Modesto Junior College antes de se transferir para o recém-criado Curso de Cinema da Universidade da Califórnia. Enquanto estudante, realizou uma série de curtas, dentre eles THX-1138: 4EB (Electronic Labyrinth), em 1967, com o qual ganhou o Primeiro Prêmio no Festival Nacional de Cinema Estudantil. Utilizando-se de uma bolsa de estudos da Warner Brothers para acompanhar a produção de “O Caminho do Arco-Íris” (Finian’s Rainbow – 1968), conhece o diretor,

119 GILMORE, David et all. Come in Number 51, Your Time is Up. Intérprete: Pink Floyd. In: Zabriskie Point Soundtrack. ____: MGM, 1970. Lançada pela banda originalmente sob o título “Careful With That Axe, Eugene”, no lado B do single de 1968, e adaptada para o filme de Antonioni. 120 Para uma análise tomada a tomada do filme, conferir http://idyllopuspress.com/idyllopus/film/z_toc.htm. Acesso em: 16 jun. 2016. 160

Francis Ford Coppola, com quem fundaria a produtora American Zoetrope no ano seguinte. O projeto inicial da empresa foi uma versão longa-metragem do curta de Lucas, que se tornou o filme “THX – 1138”, lançado em 1971. O reconhecimento das bilheterias, porém, seria atingido em sua próxima produção, já realizada por sua própria companhia, a Lucasfilm Ldt., o semiautobiográfico “Loucuras de Verão” (American Graffiti), em 1973. Durante o desenvolvimento desse projeto, Lucas já planejava dirigir uma ficção científica espacial similar aos filmes do herói Flash Gordon, que o maravilhara na juventude. Após tentar comprar os direitos, sem sucesso, decide criar sua própria trama espacial. O roteiro que daria origem à “Guerra nas Estrelas” foi reprovado por variados estúdios por ser considerado fora dos padrões em produção, porém foi aceito pela Twentieth Century Fox. Nos primeiros instantes da produção, um texto apresenta a realidade na qual se insere a narrativa. Uma guerra civil está sendo travada. Uma nave espacial rebelde conseguiu sua primeira vitória sobre o Império Galáctico. Durante o combate, planos secretos da “Estrela da Morte”, uma estação espacial com poder bélico suficiente para destruir planetas, foram roubados e entregues à Princesa Leia (Carrie Fisher), que tenta fugir a bordo de sua espaçonave enquanto é perseguida por um destróier do Império. A perseguição termina com a nave da Princesa sendo trazida para o interior do destróier. Enquanto isso o androide protocolar C-3PO (Anthony Daniels) e o robô utilitário R2-D2 (Kenny Baker) concluem que não será possível escapar. Uma das portas da nave capturada se abre em meio à fumaça e fogo, iniciando um confronto que resulta na morte de muitos soldados rebeldes. Surge a figura de Darth Vader (David Prowse / voz: James Earl Jones), vestido em armadura e capa pretas, rosto coberto por um capacete igualmente preto. Vader interroga o capitão da nave, que alega estar em missão diplomática. Sem conseguir a sua colaboração, Vader estrangula-o e ordena que todos os passageiros sejam aprisionados com vida. Escondendo-se dos stormtroopers, a assim denominada tropa imperial, Leia grava uma mensagem de socorro na memória de R2-D2 e envia o robô, na companhia de C-3PO, para Tatooine, um planeta localizado nas proximidades. A mensagem é direcionada a Obi- Wan Kenobi, que vive recluso em um deserto naquele planeta. Enquanto os autômatos escapam a bordo de uma cápsula de fuga, as tropas imperiais não atingem o objeto por não terem detectado formas de vida em seu interior. No entanto, Vader é informado da ejeção da cápsula e conclui que Leia havia escondido os planos roubados no aparelho. A cápsula aterrissa no planeta desértico e, por divergirem constantemente sobre como proceder, os “dróides” se separam. Acabam, todavia, sendo ambos apanhados pelos 161

jawas, comerciantes de objetos usados. Enquanto isso, tropas imperiais enviadas ao planeta por Vader encontram a cápsula de fuga e seguem os rastros deixados na areia. Buscando vender seus objetos, os jawas chegam à fazenda de Owen Lars (Phil Brown), que vive em companhia de sua esposa, Beru (Shelagh Fraser), e de seu sobrinho, Luke Skywalker (Mark Hamill). Owen compra C-3PO e R2-D2 e diz para Luke limpá-los antes do jantar. Durante a limpeza, Luke descobre parte da mensagem gravada por Leia. Surpreendido pela beleza da jovem, o rapaz insiste para que R2-D2 mostre toda a mensagem, porém o robô se recusa. Durante o jantar, Luke conta da mensagem aos tios e pergunta se Obi-Wan Kenobi, o nome citado na mensagem, teria alguma relação com o velho eremita Ben Kenobi. O tio apressa-se em afirmar que Obi-Wan está morto, porém acaba revelando que este conhecera o pai de Luke, Anakin, igualmente morto há muito tempo. Luke pede informações sobre seu pai, porém o tio encerra a conversa. Retornando do jantar, Luke descobre que R2-D2 havia fugido. Na manhã seguinte, o rapaz sai em busca do “dróide” na companhia de C-3PO. R2-D2 já está muito distante da fazenda quando é encontrado. O lugar é considerado perigoso por Luke por ser dominado pelo povo da areia. Minutos depois, os três sofrem uma emboscada desse grupo e Luke desmaia após receber um golpe na cabeça. Então, uma pessoa aparece e afasta os assaltantes. Conforme Luke acorda, percebe se tratar de Ben Kenobi. Como Luke informa que R2-D2 tem uma mensagem direcionada a Obi- Wan, Ben identifica-se como o destinatário. Na casa do eremita, Luke descobre sobre seu pai e como ele foi morto por Vader. Obi-Wan ainda conta ao rapaz sobre a existência da Força e como Vader, que era seu discípulo, foi tomado pelo lado negro. Nesse momento, R2-D2 transmite a mensagem completa e Obi-Wan descobre que a Princesa Leia precisa que ele leve o robô até seu pai, no planeta Alderaan. Obi-Wan, então, pede para que Luke o acompanhe na missão, que o rapaz recusa devido ao compromisso que tem com os tios. No entanto, decide acompanhar Obi-Wan até Anchorhead, onde poderá conseguir transporte para Alderaan. No caminho, o grupo encontra os jawas mortos. Luke não compreende o motivo de matarem os comerciantes, mas Obi-Wan encontra vestígios da ação das tropas imperiais. Compreendendo que os soldados queriam os “dróides”, Luke corre para a fazenda, porém, ao chegar, encontra o lugar incendiado e os tios mortos. Diante da tragédia, decide acompanhar Obi-Wan na viagem. Desolado, Luke diz que deseja tornar-se um jedi, como seu pai um dia fora. Chegando a Anchorhead, o grupo percebe que são procurados por tropas imperiais, que vasculham a cidade. Obi-Wan entra em um bar frequentado por pilotos de cargueiros na 162

intenção de conseguir transporte. No lugar, conhece Han Solo (Harrison Ford), piloto da Millennium Falcon, e seu co-piloto, Chewbacca (Peter Mayhew), um wookiee. Visando o lucro que pode aferir, depois de perceber que os passageiros estão sendo procurados pelos soldados, Han aceita o trabalho. Luke não esconde a decepção ao se deparar com a Millennium Falcon e perceber seu tempo de uso e estado ruim de conservação. Han, no entanto, defende sua nave, enaltecendo sua capacidade. Antes que todos pudessem embarcar os soldados aparecem e iniciam uma troca de tiros. Luke, Obi-Wan e os demais conseguem embarcar e decolar. Entretanto, saindo da atmosfera de Tatooine, a Millennium é perseguida por dois destróieres imperiais, que são deixados para trás conforme Han coloca a nave na velocidade da luz. A bordo da Estrela da Morte, Leia é torturada para que revele a localização da base rebelde. Como a Princesa resistiu aos maus-tratos, Vader e os demais comandantes decidiram ameaçar destruir Alderaan caso ela não falasse. Leia, então, dá uma localização. Entretanto, para sua surpresa, Alderaan é destruído mesmo assim. Na Millennium Falcon, Obi-Wan sente o distúrbio que a destruição instantânea do planeta causara na Força. Ao chegarem à antiga localização de Alderaan, Han não encontra o corpo celeste, mas um campo de asteroides. Obi- Wan logo compreende que o planeta fora destruído. Ao perceberem um caça imperial, decidem segui-lo e destruí-lo para não terem sua localização revelada. No entanto, conforme o caça aproxima-se do que Han acredita ser uma lua, os ocupantes da Millennium descobrem tratar-se de uma estação espacial, a Estrela da Morte. Assustados, tentam fugir, em vão. Após a nave ser trazida para o interior da estação espacial bélica, Han e os outros se escondem em compartimentos secretos no piso da Millennium, o que faz com que não sejam descobertos. Vader, então, ordena que uma varredura seja feita em busca de formas de vida no interior da nave, pois sente uma forte presença ali. Quando dois soldados entram na nave para examiná-la, Han e Luke os atacam e roubam suas roupas. Disfarçados de stormtroopers, os dois caminham pelo interior da estação na companhia dos dróides, Chewbacca e Obi-Wan até chegarem a uma sala de controle. No local, R2-D2 conecta-se ao computador e descobre a localização da fonte de energia do raio trator que, sendo desligado, permitirá a fuga da Millennium. R2-D2, no entanto, descobre que Leia está presa a bordo e Luke convence Han a salvá-la. Na companhia de Chewbacca, os dois conseguem chegar à prisão e resgatar a Princesa após confrontos com os soldados. Enquanto isso, Obi-Wan consegue desligar o raio trator e Vader desconfia da presença de seu antigo mestre na nave. Quando é informado da fuga de Leia, suas suspeitas se confirmam. A fuga continua em direção a Millennium Falcon e 163

o grupo é separado. Luke e Leia combatem de um lado, enquanto Chewbacca e Han enfrentam seus próprios stormtroopers. Enquanto Obi-Wan regressava para a Millennium, deparou-se com Vader, que o desafia para uma luta final. Os velhos conhecidos enfrentam-se como se aquele fosse o último capítulo de um combate iniciado há muito tempo. Após resistir às investidas do antigo discípulo, Obi-Wan decide abandonar sua existência física, para o espanto de Vader. Presenciando o que acredita ser a morte de seu mestre, Luke grita, atraindo a atenção dos soldados que observavam a luta de sabres de luz entre Vader e Kenobi. Um tiroteio se inicia, porém os heróis conseguem fugir. A despeito da comemoração autolaudatória de Han, Leia pondera que a fuga foi fácil demais, fato que sugere estar o Império rastreando a nave para descobrir a localização da base rebelde, o que se confirma. Na base, os planos são extraídos de R2-D2 e descobre-se um ponto fraco no esquema de construção da Estrela da Morte. Uma ação de caças é planejada e a esquadra parte rumo ao confronto. Enquanto isso, a estação já se desloca para chegar à posição que permite destruir a lua onde a base está. Para a decepção de Luke e Leia, Han não demonstra interesse em se engajar na batalha, indo embora com sua recompensa. Os confrontos iniciam-se e a tarefa demonstra ser mais difícil do que os rebeldes esperavam. Vader, no entanto, percebe a existência do perigo e decola em um caça junto a seus pilotos de elite. Impedindo que os pilotos rebeldes atinjam o ponto fraco da Estrela da Morte, Vader e seus pilotos vão abatendo os caças da Aliança. Em um dado momento, cabe a Luke cumprir o plano. Tendo dificuldades com a tecnologia da nave, Luke ouve a voz de Obi-Wan, que o aconselha a sentir a Força. Luke, então, parte com determinação em direção ao ponto que deve ser atingido, enquanto a estação entra na posição de ataque. Entretanto, Vader segue em seu encalço e, no instante em que o caça de Luke seria atingido, Han surge e abate os pilotos de elite de Vader que, apesar de não ser abatido, perde o controle de seu caça, afastando-se em giros descoordenados. Luke consegue disparar no ponto certo e destruir a Estrela da Morte. Luke, Han e alguns poucos caças remanescentes retornam para a base, onde são ovacionados. Algum tempo depois, uma grande cerimônia é realizada para que Luke, Han e Chewbacca sejam premiados. A Princesa, trajando roupas que denotam sua realeza, entrega as medalhas. Diante dos premiados, vêem-se C-3PO e R2-D2, perfeitamente restaurados. Os heróis são aplaudidos pelos rebeldes. 164

“Guerra nas Estrelas” constitui-se como um conto de amizade, coragem, intrepidez e heroísmo. Transferindo a narrativa ancestral do embate entre o bem e o mal para uma realidade espacial e tecnológica, a trama fundamenta-se na disputa entre o frágil que se rebela contra o poderoso, o pequeno contra o grande, Davi diante de Golias. Além disso, resgata o mito de formação dos Estados Unidos ao colocar um pequeno grupo de combatentes erguendo-se contra um império inescrupuloso. O texto de abertura, responsável por estabelecer a realidade diegética na qual se insere a narrativa, veicula, além das linhas gerais do enredo, os parâmetros morais da história. Logo após a apresentação do título do filme, em caracteres amarelos sobrepostos à visão do espaço sideral, o texto em questão é apresentado: É um período de guerra civil. Partindo de uma base secreta, naves rebeldes atacam e conquistam sua primeira vitória contra o perverso Império Galáctico. Durante a batalha, espiões rebeldes conseguem roubar os planos secretos da arma decisiva do Império, a ESTRELA DA MORTE, uma estação espacial blindada com poder suficiente para destruir um planeta inteiro. Perseguida pelos sinistros agentes do Império, a Princesa Leia corre de volta para casa a bordo de sua nave estelar, protegendo os planos roubados que podem salvar seu povo e restaurar a liberdade na galáxia...121 Logo após esclarecer o contexto de guerra civil, as frases direcionam o espectador a avaliar maniqueisticamente as partes beligerantes. Enquanto o Império Galáctico é “perverso” e construiu uma arma capaz de destruir planetas inteiros, os rebeldes, representados pela Princesa Leia, são aqueles dispostos a defender o povo e a liberdade. Os termos “império” e “princesa” denotam o amplo alcance dos desdobramentos políticos envolvidos no caso. Não deixa de surpreender a escolha de uma princesa, título de nobreza que tradicionalmente remete a organizações estatais repressoras e antidemocráticas, como defensora da liberdade. A maneira como o texto é apresentado, em plano inclinado e subindo na tela de forma que a perspectiva do movimento faz com que as palavras afastem-se em direção à vastidão do universo, destaca a importância que a noção de movimento assume na narrativa. Por um lado, o movimento enquanto ação e velocidade de desenvolvimento da trama e, por outro, o movimento como impulso transformador da realidade. No caso, a luta por agir em prol do bem comum, que fundamenta a atividade combativa daqueles que se opõem ao Império. Nesse sentido, “Star Wars” veicula uma mensagem anti-establishment. Na cena seguinte ao texto inicial, essa mensagem é sublinhada pela diferença entre a capacidade bélica dos rivais quando a nave de Leia é perseguida e sequestrada pelo enorme destróier do Império.

121 De 38seg. a 01min53seg. “Estrela da Morte” encontra-se em destaque no texto original. 165

Fotograma 65 - A discrepância entre a capacidade bélica e tecnológica dos rebeldes e das forças militares imperiais é evidenciada logo na primeira cena, quando a nave de Leia é trazida a bordo do destróier imperial (03min.20seg.). A diferença de tamanho das duas naves é absolutamente desproporcional, com o destróier extravasando todos os quatro limites do enquadramento. Acompanhando o preâmbulo, a música-tema colabora para a construção da atmosfera fantástica estabelecida pelo enredo de Lucas. A composição, de John Williams, consiste em uma peça de música sinfônica próxima ao estilo romântico tardio, por vezes assemelhando-se às obras de Richard Strauss. Iniciada através de uma frase produzida na orquestra pela família dos metais, a música evoca a aventura heroica que estrutura a narrativa, ao invés de destacar os elementos tecnológicos típicos do gênero de ficção científica e, por sinal, abundantes em “Guerra nas Estrelas”. Além dessa composição, toda a trilha sonora faz uso intensivo de leitmotifs com a intenção de relacionar certas passagens da narrativa onde existe a presença de um mesmo sentimento, impasse, personagem ou acontecimentos que se complementam. Assim, a utilização dessa estratégia musical colabora para destacar os principais temas explorados pela trama. Lucas criou uma história na qual um jovem fazendeiro de um planeta periférico é chamado ao dever pelas circunstâncias, tendo de tomar parte em uma guerra onde um grupo de descontentes opõe-se a um Estado imperial tirânico que pretende expandir seu poder sobre o que restou de uma antiga organização republicana interplanetária. Diante desse enredo, cada um dos personagens principais encerram em si conjuntos coerentes de características. Ao longo da projeção, os valores e princípios de Luke, Princesa Leia, Han Solo, Obi-Wan Kenobi e Darth Vader transparecem em suas atitudes. Luke Skywalker vive em uma área desolada tomada pela aridez. Essa realidade ambiental do planeta onde o protagonista habita pode ser tomada como alegoria para a inexistência de oportunidades oferecidas ao jovem caso permaneça ali. Não há futuro para Luke em Tatooine. Ainda no final da adolescência, o rapaz vive com os tios sem ter 166

conhecido o pai, sobre quem lhe é negado conhecimento. Quanto à mãe, não existe qualquer citação e mesmo Luke não aparenta possuir curiosidades sobre seu respeito. Na verdade, o comportamento do tio de Luke sugere que Anakin, pai do rapaz, fez algo grave do qual Luke precisou ser protegido. O exílio de Kenobi próximo a Skywalker igualmente denota a importância do jovem. A Princesa Leia é senadora e embaixadora do planeta onde reina sua família, Alderaan. Além disso, demonstra ser um membro destacado da força rebelde, demonstrando autoridade e comando junto aos demais revoltosos. Ainda bastante jovem, Leia tem determinação suficiente para desafiar o Império e assumir os riscos decorrentes. Possuidora de princípios nobres, a princesa pauta seu comportamento na justiça e na defesa da liberdade. Significativamente, esses valores estão presentes na tradição da nação americana, em seu mito de origem. Han Solo é um contrabandista e mercenário que aceita realizar qualquer trabalho desde que a recompensa oferecida o torne lucrativo. Apenas atendendo a esses parâmetros transporta Luke, Kenobi e os “dróides” para Alderaan e, ainda pelo mesmo motivo, arrisca-se para resgatar a princesa da prisão. Seu próprio sobrenome denota a individualidade e o egocentrismo como características marcantes de sua personalidade. Entretanto, ao longo das peripécias que experimenta em companhia dos rebeldes, Han atravessa um processo de elevação pessoal que irá culminar na atenuação desses traços identitários. Han conclui o enredo sendo condecorado pelos serviços prestados em prol da causa dos rebeldes. Kenobi é um velho eremita que está escondido no deserto de Tatooine há décadas. Antigo guerreiro jedi, Kenobi foi o mestre de Anakin, sendo conhecedor de todos os acontecimentos que são ocultados de Luke. Apesar de a narrativa não esclarecer, foi provavelmente Kenobi quem colocou Luke aos cuidados dos fazendeiros, acompanhando seu desenvolvimento. Quando o dever de proteger a galáxia surge novamente, Kenobi não hesita em atender ao chamado e compreende que a hora de revelar parte da verdade a Luke chegou. Kenobi torna-se, assim, o iniciador do rapaz na Força. Darth Vader, um dos oficiais do Império, é a figura mais enigmática da película. Tendo todo o corpo escondido pela vestimenta preta, sua voz assume tom artificial devido ao equipamento existente em seu capacete, que o auxilia a respirar. Totalmente fiel ao Imperador, Vader acredita ser sua missão esmagar as forças rebeldes, extinguindo os últimos traços do regime republicano existente antes do estabelecimento do Império. Apesar de, segundo Kenobi, ter sido Vader o causador da morte dos guerreiros jedis, o comandante imperial demonstra profundo respeito pela Força e reconhecimento da grandiosidade do poder 167

nela contido. Até o despertar de Luke, Kenobi e Vader haviam sido os últimos guerreiros jedis existentes e os únicos a acreditar na velha religião mística. Além da perspectiva fantástica do enredo, “Guerra nas Estrelas” foi direcionado para o público infanto-juvenil, a despeito de todo o sucesso atingido com outras fatias do mercado consumidor. Essas características podem transmitir a impressão de que o filme consiste em uma produção apolítica. Entretanto, o observador atento percebe os desdobramentos ideológicos presentes na estrutura fundamental da trama, que subsiste paralelamente à ação constante e aos efeitos especiais que compõem plasticamente a obra. Luke, Leia e Han são jovens que tomam parte em um conflito, mesmo que suas motivações sejam divergentes. A caracterização do cenário como uma conjuntura de guerra civil destaca a seriedade da conflagração. Além disso, o fato de a disputa não ocorrer entre duas forças equilibradas, estando um grupo de (autodenominados) rebeldes enfrentando um Império, coaduna-se com o ímpeto do engajamento político do trio. No cenário em que uma tradicional instituição republicana foi descontinuada pela ascensão de forças contrárias ao diálogo que, coercitivamente, pretendem ampliar seu poder através do universo, expandindo o controle político sobre os mais variados planetas e seus habitantes, cabe a Luke, Leia e Han papel fundamental na liderança do pequeno grupo de descontentes que decidiram resistir. Assim, ainda que suas atitudes não sejam determinadas claramente por fundamentos ideológicos, a dignidade dos atos do trio é destacada pela defesa constante da justiça e da liberdade. Na fantasia de George Lucas, um grupo de jovens descontentes com a realidade política à qual estão submetidos consegue se levantar, lutar e ser bem-sucedido. Dessa maneira, o engajamento político é aceitável e, inclusive, incentivado, desde que dentro dos parâmetros enaltecidos pelo enredo. Nesse sentido, surpreende o tom militarista presente na narrativa. Enquanto que, ao longo da década, o discurso belicoso havia sido atenuado no cinema como consequência da derrota na Guerra do Vietnã, “Guerra nas Estrelas” reabilita o ethos militar presente na retórica tradicional do país. Os jovens politicamente conscientes não atuam no nível do discurso e dos debates, mas com armas nas mãos, prontos para atingir mortalmente quem quer que se interponha no caminho que decidiram seguir. A cena de ataque dos caças à Estrela da Morte constitui-se como o momento do filme onde o processo de reabilitação da ética militar é mais acentuado. O planejamento da operação, a decolagem em grupo, a formação de voo, as táticas de ataque e de evasão e as excitantes perseguições aéreas ao redor da estação espacial, tudo remete ao material cinematográfico de arquivo das batalhas aéreas da Segunda Guerra Mundial. 168

Opostamente ao conflito no Vietnã, quando a participação americana recebeu questionamentos de ordem moral, a atuação dos Estados Unidos nos teatros de guerra da Europa e do Pacífico, nos anos 1940, entrou para a memória coletiva da nação como uma atitude justa. Levantando-se contra a opressão de líderes totalitários, o país cumprira seu dever em defesa da liberdade. Esse, especificamente, é o ethos militarista resgatado por Lucas. Ao invés de se constituir uma superação do trauma representado pelo Vietnã, o que se propõe consiste na negação do acontecimento, de todo o longo e triste episódio da participação americana no conflito do Vietnã.

Fotograma 66 - Dois caças rebeldes atacam um equipamento na superfície da Estrela da Morte (01h.47min.20seg.). Tanto o enquadramento quanto a explosão provocada remetem às imagens de ataques aéreos filmados por câmeras instaladas nos próprios aviões, durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa chave analítica, a Estrela da Morte corresponde à outra realidade bélica, que é negada pela narrativa. Demonstração suprema do poderio do Império, do ponto extremo de violência que pode ser gerado caso ocorra a oposição às ações políticas dessa organização, a estação espacial remete ao desenvolvimento acelerado da tecnologia armamentista desde a Segunda Guerra, no qual os Estados Unidos haviam sido protagonistas. Além disso, a arma, cujos formato e cor fazem com que se assemelhe à Lua, e sua capacidade de destruir um planeta inteiro, evoca a retórica da aniquilação através de uma guerra nuclear. Essa questão, por sinal, havia estado distante do cinema hollywoodiano por anos em confluência ao contexto geopolítico de distensão das animosidades entre EUA e URSS representado pela détente. Porém, multiplicando o nível de destruição, o uso da Estrela da Morte resulta na completa e instantânea liquidação de um mundo, enquanto as consequências nefastas de um conflito nuclear generalizado aniquilaria a vida no planeta, porém permitindo a sua futura recuperação. Alderaan, terra natal da Princesa Leia e planeta escolhido para o teste inicial de 169

operação do novo equipamento militar, surpreende pela semelhança com a Terra. Na construção da visão espacial daquele mundo, tanto as cores azul e verde quanto a existência de uma atmosfera com nuvens colaboram na indicação imagética. Dessa forma, o debate sobre a ecologia também é explorado pela produção cinematográfica. Alderaan é descrito por Leia como pacífico e desarmado. Somando-se ao enquadramento em grande distanciamento, a fragilidade do planeta é sua característica mais pronunciada. O momento de sua explosão, que transforma todos os ecossistemas que lá existiam em um campo de destroços espalhando-se pelo espaço, opõe o discurso ambientalista àquela espécie de retórica militar exemplificada pelo Império, com grande dose de vitimização daquele. As caracterizações opostas de Tatooine, planeta desértico onde mora Luke, e Dantooine, lua na qual se localiza a base secreta dos rebeldes, igualmente explora perspectivas ambientalistas em confluência ao maniqueísmo sobre o qual se assenta a narrativa. Enquanto a aridez do lar de Luke sublinha a falta de perspectivas oferecidas ao rapaz naquela realidade, o planeta, sob controle do Império, é habitado e frequentado por seres de ética questionável. Comentando sobre o porto espacial de Mos Eisley, Kenobi informa: “ – Não existe outro lugar com tamanha concentração de escória e vilania.”122 Dantooine, por outro lado, exibe um ecossistema cuja exuberância remete às florestas equatoriais do planeta Terra. Portanto, é em um ambiente tomado pela vida que os rebeldes construíram sua base e de onde planejam defender os povos oprimidos pelo Império Galáctico.

122 Aos 42min41seg. 170

Fotogramas 67 (42min33seg.) e 68 (01h38min23seg.) - Os ecossistemas de Tatooine, acima, e Dantooine, abaixo. À aridez do primeiro opõe-se a exuberância vegetal do segundo. A perspectiva ambientalista ainda fundamenta a ideia da Força, elemento sobre o qual se estabelece toda a mitologia do universo épico criado por Lucas. Após revelar a Luke o passado de seu pai como Guerreiro Jedi, Kenobi assim explica ao rapaz em que consiste a Força: “ – É um campo de energia criado por todos os seres vivos. Ele nos envolve e penetra. É o que mantém a galáxia unida.”123 Já Darth Vader reprova a soberba de um dos comandantes do Império quanto ao poderio da estação espacial bélica: “ – Não tenha tanto orgulho desse terror tecnológico que construiu. A capacidade de destruir um planeta é insignificante perto do poder da Força.”124 No final da década de 1970, pareceu palatável à audiência essa combinação retórica belicista e ambientalista. “Guerra nas Estrelas” direciona uma mensagem de fundo moral simples para espectadores infanto-juvenis. Dessa maneira, propõe uma fantasia maniqueísta onde a heroína veste-se de branco e o vilão de preto. Resgatando elementos discursivos caros ao imaginário histórico da nação, o enredo evoca as lutas de independência ao opor a decência, integridade e senso de justiça de um grupo de rebeldes ao gigantesco poderio político e militar de um império. Ademais, o mito da origem da nação continuava a ser motivo de orgulho para os americanos, apesar dos reveses da década. No filme de Lucas, a atuação política enérgica da juventude é permitida, desde que dentro dos marcos de retomada desse espírito nacional.

3.2.3 Os Limites da Ação Política O fato de “Zabriskie Point” ter sido realizado por um diretor italiano é indicativo dos modos pelos quais o cinema dos Estados Unidos abordava a juventude da geração dos 1960. Apesar de o filme ser produzido pela Warner Brothers e, portanto, ser um produto americano, encenado por atores deste país e rodado em locações dos EUA, a ausência de um diretor dessa

123 Aos 34min43seg. 124 Aos 38min11seg. 171

nacionalidade disposto a abordar a temática do engajamento político da juventude, no final da década de 1960, surpreende. A questão torna-se ainda mais expressiva caso seja levado em conta a forte presença dessa parcela da população no cinema do período. Mesmo que seja considerado apenas o cinema produzido por estúdios e produtoras dos Estados Unidos125, a juventude havia se tornado um ponto de inflexão naquele momento histórico. Como a face jovem era a mais facilmente identificada nos variados movimentos e acontecimentos que se corporificaram ao longo da década, os enredos cinematográficos passaram a se voltar com frequência aos dilemas e anseios típicos dessa fatia da população126. Mesmo quando os temas abordados implicavam desdobramentos sociais mais amplos, ainda assim era comum a escolha de protagonistas jovens para a realização da trama. No entanto, os filmes voltavam-se mais facilmente às questões referentes às transformações culturais e, em menor escala, às implicações sociais de tais mudanças. Com frequência, a realidade da narrativa tinha como limites as fronteiras familiares, explorando os atritos surgidos nessas relações diante das mudanças culturais, que eram materializadas pelo novo comportamento juvenil. Assim, as ações políticas dos jovens, seja a nível ideológico ou político-partidário, não figuraram nos enredos dos filmes do final da década de 1960. Ainda que se possa citar alguma película que tenha abordado o tema, dificilmente terá o título fundamentado diretamente seu enredo nessa perspectiva de análise. Ademais, dentre os filmes do período que se tornaram icônicos e entraram para o imaginário coletivo, não costumam ser lembrados títulos com esse apelo. O filme de Antonioni prioriza o jovem em oposição aos valores dominantes naquela sociedade. Assim, a parcela juvenil dos Estados Unidos de finais da década de 1960 é definida pela inquietação; pela busca por maior grau de liberdade política, e principalmente, cultural; pela defesa de princípios e valores divergentes daqueles advogados pela geração de seus pais; pela aversão à autoridade; pelo anticonsumismo, em suma, pela recusa em se integrar socialmente através dos parâmetros tradicionalmente vigentes. O comportamento e, por vezes, a vestimenta, exteriorizam seu posicionamento ideológico. Não há espaço, na película, para a

125 Não é difícil sustentar-se a afirmação de que o cinema da década de 1960 é um cinema jovem a nível mundial. Para tanto, basta observarem-se os temas, os atores e boa parte dos realizadores das principais escolas do cinema moderno que se desenvolveram no decorrer da década. A Nouvelle Vague francesa e vários outros movimentos nacionais denominados de “cinema novo” (como ocorreu no Brasil) podem ser apontados como exemplificação. 126 O movimento dos estúdios em direção aos jovens já havia sido bastante relevante na década de 1950, porém, nesse período, destacando a cultura adolescente, especialmente. 172

juventude vinculada aos padrões dominantes. Pelo contrário, é a objeção a esses padrões que funciona como o mote fundamental do enredo. Desta forma, a exposição dos acontecimentos e dos movimentos políticos obedece às especificidades da representação construída. A busca por direitos e liberdade é reduzida à retórica de estudantes universitários que se julgam revolucionários, porém que não possuem meios efetivos de alcançar seus objetivos, os quais não parecem evidentes. Quanto aos protagonistas, se Mark possui o ímpeto para a ação, não sabe como agir. Já Daria precisa amadurecer espiritualmente para consolidar seu distanciamento aos valores dominantes. De linguagem cinematográfica elaborada, explorando com presteza as possibilidades comunicativas oferecidas pelo cinema para transmitir sua mensagem, o filme, entretanto, erige uma representação da juventude americana parcial e artificial. A opção por selecionar um casal de jovens para figurar como representantes de toda a juventude do país invariavelmente ocasiona essa parcialidade. Além disso, e apesar de veicular cenas documentais de manifestações estudantis, a ambientação dos movimentos políticos universitários desconsidera a pluralidade dos mesmos. Assim, a ausência de abordagens diretas dos acontecimentos aponta os limites da realização. O contexto do final da década de 1970, por outro lado, caracteriza-se pelo longo período de crise econômica e pelo desânimo quanto à classe política do país. A cascata de escândalos políticos que o caso Watergate representou ocasionou uma atmosfera de descrença na ação político-partidária que ainda estava presente quando “Guerra nas Estrelas” foi produzido. Em uma conjuntura de progressiva desmobilização dos movimentos da década anterior e quando a prolongada crise econômica colocava diante da maior parte da juventude questões mais prementes que a atuação político-partidária como meio para a defesa de direitos, o cinema voltou-se, com maior frequência, para questões sociais, porém sem desdobrá-las no nível da ação propriamente política. Assim, observando-se a produção do período, veem-se enredos que focaram jovens lutando para sobreviver a uma realidade de baixas expectativas. Nesse sentido, vale citar “Rocky: Um Lutador” (Rocky, dir.: John G. Avildsen – 1976), “Os Embalos de Sábado À Noite” (Saturday Night Fever, dir.: John Badham – 1977) e, um pouco mais à frente, “Flashdance – Em Ritmo de Embalo” (Flashdance, dir.: Adrian Lyne – 1983). Neste cenário, a fantasia estelar de George Lucas erige, em 1977, uma representação da juventude que trata com destaque da ação política. Os jovens de “Guerra nas Estrelas” não são retratados como politicamente ativos apenas no nível do discurso, mas participando de um grupo de rebeldes que se colocam em oposição à autoridade estabelecida, o Império. 173

Portanto, sua ação política é decidida, determinada e radicalizada. E, especificamente, a luta que constitui o mote do filme não pretende melhorar as condições de vida de uma minoria, mas libertar a galáxia da opressão. Tanto “Zabriskie Point” quanto “Guerra nas Estrelas” veiculam mensagens anti- establishment, no entanto sob interpretações divergentes. Enquanto a ação política juvenil, na primeira película, tem resultados funestos, com a morte de militantes e do protagonista, no segundo caso, os jovens belicosos alcançam o triunfo (ainda que o Império fosse contra- atacar, em 1980). Desse modo, a aliança firmada entre um fazendeiro, uma princesa e um contrabandista reverberou notas sensíveis para a sociedade americana do fim da década. Ainda assim, a postura anti-establishment da trama de Lucas atende a parâmetros muito específicos. O engajamento dos jovens é aceito, mas o caráter justo do empreendimento é sublinhado com clareza. A força que enfrentam constitui-se como um regime totalitário imposto sobre os povos do universo. Desse modo, o Império assemelha-se aos arquétipos dos regimes fascistas do período entreguerras, por um lado, e do regime soviético, por outro. E apesar de o tom militarista presente na obra ultrapassar as dores causadas pela derrota no Vietnã, é viável interpretar a Aliança Rebelde como um grupo de guerrilha e o poderio militar imperial como algo próximo da posição ocupada pelos EUA, geopoliticamente. Diante de todas essas possíveis perspectivas de observação, a aproximação do enredo aos elementos míticos da história dos Estados Unidos possuiu intensa conotação afetiva. Remontando ao mito de origem da nação, a trama é lançada no momento em que a sociedade dos Estados Unidos começava a superar o ethos derrotista que se estabeleceu e perdurou por toda a década de 1970. Atingida nos alicerces que historicamente fundamentaram o discurso da especificidade daquele país, a capacidade econômica, o poder bélico e a solidez das instituições democráticas, a sociedade americana esteve combalida por anos. Interessante perceber que sua recuperação ocorre primeiramente no nível cultural, e não nos âmbitos acima citados. É na produção cultural que os sinais de uma nova atmosfera, mais positiva e auspiciosa, se apresentam. O filme “Guerra nas Estrelas” já foi apontado como um dos primeiros exemplos da retórica utilizada por Ronald Reagan em sua campanha presidencial e posterior governo. Entretanto, e em sentido oposto, talvez seja mais preciso considerar a produção como sintoma da emersão dessa postura mais promissora naquela sociedade, a qual o Partido Republicano soube explorar com êxito.

174

3.3 A CRIMINALIDADE URBANA Enquanto a conjuntura de transformações dos anos 1960 alcançava seu período de maior expressividade, no final da década, os esforços políticos de Lyndon Johnson em erradicar a pobreza e tornar os EUA um país socialmente mais justo mostrava seus limites. Além disso, o término da participação americana no conflito do Vietnã parecia ainda distante. Diante desse cenário, as rupturas sociais evidenciadas pelos inúmeros movimentos começam a ser percebidas por parte da opinião pública como consequência dos questionamentos firmados por estes mesmos movimentos. Assim, facetas negativas daquela sociedade, como o início de uma crise econômica que se revelaria persistente, o aumento do desemprego e da criminalidade, a violência e a falta de perspectiva nos guetos são apontados como desdobramentos do desvio moral representado por aqueles que ansiavam por mudanças e, no processo, opunham-se a alguns dos alicerces da nação. Segundo essa perspectiva, estudantes, negros e mulheres descontentes colocavam em risco os valores fundamentais da sociedade dos Estados Unidos. A polarização social resultante é percebida rotineiramente através de temas que provocavam o posicionamento individual. No cinema, uma das temáticas melhor exploradas e que dialogava com a vida cotidiana nas grandes cidades do país foi a criminalidade urbana. Durante o período em estudo, muitos foram os filmes que abordaram o assunto e o fizeram sob duas linhas gerais, ora voltando-se ao tratamento social da questão, ora localizando na efervescência cultural e política do momento a raiz do problema. Dessa maneira, estabeleceram-se dois conjuntos de produções cinematográficas as quais reverberavam os posicionamentos retóricos referentes à criminalidade urbana, sendo alguns dos principais títulos “Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas” (Bonnie and Clyde, dir.: Arthur Penn – 1967), “Meu Nome É Coogan” (Coogan’s Bluff, dir.: – 1968), “Perseguidor Implacável” (, dir.: Don Siegel – 1971), “Serpico” (dir.: Sidney Lumet – 1973), “Desejo de Matar” (Death Wish, dir.: Michael Winner – 1974), “Um Dia de Cão” (Dog Day Afternoon, dir.: Sidney Lumet – 1975) e “Taxi Driver - Motorista de Táxi” (Taxi Driver, dir.: Martin Scorsese – 1976). Algumas obras que se dedicaram a examinar o cinema e o contexto político-cultural dos Estados Unidos do período optaram por dividir os filmes em ciclos. Nesses trabalhos, é recorrente a formulação de conjuntos de filmes que pertenceriam a um ciclo de direita ou de esquerda, sendo os ciclos pensados ideologicamente. Considerando-se, por exemplo, a forma 175

como procedem Michael Ryan e Douglas Kellner127 na composição dos ciclos, “Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas”, “Serpico” e “Um Dia de Cão” pertenceriam ao ciclo de esquerda, enquanto “Meu Nome É Coogan”, “Perseguidor Implacável”, “Desejo de Matar” e “Taxi Driver – Motorista de Táxi” constituiriam o ciclo de direita.128 Importante ressaltar, entretanto, que o fato de uma produção filiar-se a um conjunto de filmes partícipes de uma determinada posição retórica não assegura a existência de uma única tendência ou voz em seu enredo. Além disso, uma avaliação desatenta poderia levar a consideração de que as rápidas mudanças ocorridas no contexto cultural teriam ocasionado a produção, por parte da indústria do entretenimento de Hollywood, de um ciclo de filmes ideologicamente à esquerda, reflexo dos movimentos culturais dos anos 60, seguido de um ciclo de filmes à direita, resultado do retorno a uma retórica conservadora, na década seguinte. Todavia, como as datas de produção podem testemunhar, os conjuntos de filmes não são subsequentes, tendo sido produzidos concomitantemente. Ao invés de desdobramentos que se sobrepõem, essa questão suscita a turbulência do período estudado, quando a vivacidade das transformações em curso permitiram a coexistência de posições políticas e culturais opostas, representativas dos valores de agrupamentos sociais em disputa naquela sociedade. A seguir analisam-se os filmes “Meu Nome É Coogan” e “Taxi Driver – Motorista de Táxi” buscando sublinhar o tratamento oferecido ao tema da criminalidade urbana nos enredos dessas produções. Apesar de não encerrarem todas as nuances das representações cinematográficas da temática, ambas as produções são significativas do contexto social, e das vozes em disputa, no final dos anos 1960 e em meados da década de 1970.

127 RYAN, Michael; KELLNER, Douglas. “Camera Politica – the politics and ideology of contemporary Hollywood film”. Bloomington: Indiana University Press, 1988. 128 Mesmo trabalhos realizados na década de 1970 que se propuseram a pensar o cinema dos EUA e sua relação com a sociedade realizaram a divisão da produção do período em ciclos. Por exemplo, Thomas Elsaesser, no artigo “The pathos of failure: American films in the 1970s - notes on the unmotivated hero”, explicita a ruptura entre a narrativa do cinema clássico hollywoodiano e os filmes dos anos 1970. Já Christian Keathley, em um texto mais recente, “Trapped in the affection image: Hollywood’s Post-traumatic Cycle (1970- 1976)” advoga pela existência do ciclo contracultural, no final dos 1960, e traumático, nos 1970, após a derrota no Vietnã, alicerçando sua argumentação na crise da imagem-ação proposta por Gilles Deleuze nos livros “Cinema 1: a imagem-movimento” e “Cinema 2: a imagem-tempo”. Por outro lado, outros trabalhos defenderam a continuidade do modo de produção clássico nos filmes do período, como os citados pelo próprio Keathley, Classical Hollywood Cinema: Film Style and Mode of Production, de David Bordwell, Kristin Thompson e Janet Staiger, e A Certain Tendency of the Hollywood Cinema, 1930-1980, de Robert B. Ray. 176

3.3.1 “Meu Nome É Coogan” (1968) Este título é dirigido por Don Siegel (1912 – 1991), à época profissional já reconhecido na indústria do cinema por suas habilidades na direção e na produção de filmes para o cinema e séries televisivas. Siegel era de família judia de Chicago e teve sua formação na Universidade de Cambridge, Inglaterra, antes de conseguir um emprego na biblioteca da Warner Brothers. Desenvolvendo conhecimentos na montagem de películas, torna-se montador, chegando a ocupar o cargo de chefe da divisão de montagem da companhia. Após dirigir dois curtas premiados pela Academia129, Siegel se estabelece como diretor de filmes “B” ao longo dos anos 1950, tendo realizado o respeitado “Vampiros de Almas” (Invasion of the Body Snatchers – 1956). Neste roteiro, uma silenciosa invasão alienígena ocorre através da substituição dos moradores de uma pequena cidade da Califórnia por réplicas que possuíam suas características físicas e suas memórias, porém eram incapazes de expressar emoções. A produção é vista como inserida na conjuntura anticomunista do período ou, opostamente, como uma obra contra o Macarthismo. Essas possibilidades divergentes de leitura permitiram que o filme se tornasse objeto de debates nas décadas que se seguiram e fizeram de “Vampiros de Almas” uma película cultuada do gênero da ficção científica130. A partir dos anos 1960, Siegel ascende para a direção das produções de primeira linha. Seus filmes seguintes, até sua aposentadoria, são considerados como politicamente orientados à direita, centrados em protagonistas masculinos de personalidade forte e caráter determinado, com a quase ausência de personagens femininas de importância, assumindo traços misóginos, por vezes. Destacam-se em sua filmografia das décadas de 1960 e 1970 títulos dos gêneros western e policial. Nesses, singulariza-se a parceria do diretor com o ator Clint Eastwood, que estrelou cinco de seus filmes do período, sendo “Meu Nome É Coogan” o primeiro. A trama conta a história de Walt Coogan (Clint Eastwood), um xerife adjunto do Arizona que é enviado a Nova Iorque para escoltar James Ringerman (Don Stroud) como punição para seu comportamento fora das normas policiais. Na maior cidade do país, o policial cowboy enfrenta dificuldades em se adaptar aos costumes, não entendendo a realidade do trabalho policial. Deslocado e arrogante, comete um erro e permite a fuga do criminoso que tinha como missão levar sob custódia.

129 Os curtas-metragens e Hitler Lives receberam o Oscar em 1945. 130 “Vampiros de Almas” foi selecionado para preservação na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos por ser “culturalmente, historicamente ou esteticamente significante”. 177

A narrativa se inicia na paisagem árida do Arizona, onde Coogan segue o rastro de um indígena procurado por assassinar a esposa. Em meio ao deserto, apenas o jipe de Coogan e o fuzil com mira telescópica utilizado pelo índio, que havia se despido de suas roupas, demarca a ruptura com o meio natural. Graças a sua adaptação ao ambiente, Coogan consegue emboscar o assassino e prendê-lo. Com o indígena detido, o policial decide parar na casa de uma amante ocasional. Algemando-o à coluna da varanda, nega um cigarro ao prisioneiro, ato que demonstra sua completa falta de empatia. Ao encontrar Coogan na casa da amante, seu superior se enfurece e o pune enviando-o a Nova Iorque para escoltar Ringerman de volta ao Arizona, onde havia sido preso pelo próprio adjunto. Na metrópole, o policial parece um tipo exótico. Vestindo um terno típico do meio oeste, chapéu de cowboy e botas de couro e bico fino, todos acreditam ser ele originário do Texas. Já no helicóptero que o traz ao centro da cidade, Coogan demonstra seu distanciamento para com Nova Iorque ao responder as perguntas de um habitante local. Em seguida, no táxi, precisa lidar com os estereótipos evocados por sua figura enquanto esclarece novamente não ser texano. A desonestidade do motorista131, que tenta ludibriá-lo na corrida, confirma o conceito negativo que Coogan faz de tudo que diz respeito à cidade. Chegando à delegacia, percebe as atribulações do cotidiano policial, em que os agentes precisam se desdobrar para atender às inúmeras demandas da população. Nos corredores do distrito encontram-se, além de viciados e prostitutas, uma mulher latina recorrentemente agredida pelo marido. O ambiente é completado por gays, que assediam Coogan, e por uma senhora idosa que frequentemente busca a delegacia para alegar ter sido vítima de uma tentativa de estupro. Em meio a essa confusão, o Tenente McElroy (Lee J. Cobb), oficial encarregado de entregar Ringerman, informa que o detento encontra-se hospitalizado devido a uma overdose de LSD e que Coogan deve esperar os trâmites jurídicos para poder levá-lo. O fato aumenta ainda mais a angústia do xerife. Após defender a agente Julie Roth (Susan Clark), psicóloga do distrito, do assédio sexual de uma testemunha, Coogan é criticado por ela, que considera sua atitude agressiva. Apesar disso, aceita tomar um café com ele e apresenta sua abordagem psicológica do trabalho investigativo. Após levar o policial até sua casa, recusa as investidas, fazendo com que Coogan vá embora sem ter acesso a ela. Impedido de ir embora da cidade imediatamente, o xerife hospeda-se em um hotel barato onde é abordado por uma prostituta que, diante do desinteresse com o qual é tratada, ofende sua masculinidade e origem “texana”.

131 A caracterização do motorista realizada pelo enredo também é estereotipada. 178

No dia seguinte, Coogan arrogantemente decide desobedecer às regras e retirar Ringerman do hospital penitenciário onde se encontra internado. Nesse momento, o prisioneiro recebe a visita de uma de suas amantes, Linny Raven (Tisha Sterling). Encantada por Coogan, a jovem demonstra seu comportamento livre. Conseguindo sair com o detento sob custódia, o policial sofre uma emboscada planejada por Linny e termina perdendo Ringerman. A partir daí, recuperar o fugitivo torna-se seu único objetivo. O trabalho investigativo irregular, já que em Nova Iorque Coogan é um cidadão comum, coloca em risco a operação policial oficial, o que enfurece McElroy e o faz ameaçá- lo de prisão, além de pedir seu retorno ao Arizona. Ainda assim, Coogan continua em sua busca, conseguindo o paradeiro de Linny. A investigação o leva a uma boate que representa a amostra da vida noturna contracultural de Nova Iorque. Em meio à festa onde a multidão dança descontroladamente, o xerife observa todos os excessos de indivíduos relacionados ao modo de vida típico daqueles que abraçaram a contracultura: uso de drogas, nudez, homossexualismo e a violência de um amigo de Linny que tenta agredi-lo gratuitamente. A jovem somente aceita falar com Coogan em seu apartamento, onde coloca como condição de sua colaboração se relacionar sexualmente com o policial. Após a relação, Linny leva Coogan para uma segunda emboscada da qual o xerife apenas escapa devido à chegada providencial da polícia. Recuperando-se momentaneamente dos ferimentos, Coogan invade a casa de Linny agredindo-a e ameaçando-a, o que a convence a levá-lo ao esconderijo de Ringerman, no mosteiro do Parque do Forte Tryon. O embate entre os dois transforma-se em uma alucinada perseguição de motocicletas nas alamedas e caminhos do parque. Apesar de Ringerman conseguir fugir mais uma vez, a chegada da polícia o deixa encurralado, permitindo que Coogan o detenha. Tendo alcançado seu objetivo, o xerife finalmente aceita se submeter às regras do trabalho policial e aguardar a liberação judicial do preso para escoltá-lo ao Arizona. Na cena final, já no helicóptero que faz a conexão com o aeroporto, Coogan oferece um cigarro a Ringerman, sinal da mudança sutil de seu temperamento. Quando interpreta o protagonista do filme em questão, Clint Eastwood era um astro em ascensão, mundialmente conhecido por seu personagem na Trilogia do Dólar132. Portanto, o início de “Meu Nome É Coogan” apoia-se nesse histórico do ator, realizando a junção entre os gêneros western e policial. Coogan insere-se na mítica fronteira do oeste, lugar onde a

132 Denominação para a sequência de filmes do subgênero western spaghetti, de direção de Sergio Leone, sendo eles: “Por um Punhado de Dólares” (Per un Pugno di Dollari - 1964), “Por uns Dólares a Mais” (Per Qualche Dollaro in Più - 1965) e “Três Homens em Conflito” (Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo - 1966). 179

natureza impunha ao homem a determinação de caráter e a rudeza de seus modos como forma indispensável de sobrevivência133. O adjunto de xerife surge, assim, como um cowboy atualizado para a década de 1960. O modo como segue os rastros do indígena acusado de homicídio, até alcançá-lo e detê-lo, demonstra tratar-se de uma pessoa perfeitamente adaptada à aridez do deserto. O fato de seu oponente ser um índio apenas reforça essa característica. Sendo fotografado no alto do morro de onde o criminoso tentou alvejá-lo, tendo a imensidão por detrás de si, evidencia-se sua posição de domínio sobre o ambiente onde vive.

Fotograma 69 - Coogan inserido em seu ambiente (05min44seg.). A aridez, o isolamento e o longuíssimo plano de fundo destacam o perfil do personagem. Coogan é dono do ambiente, como se o deserto fosse seu domínio. Apesar da contestação e das transformações do período, Coogan ainda corporifica os valores originários da América, dos quais retira todo o seu ímpeto. Ao longo da película, sua aversão e estranhamento à Nova Iorque, além de seu completo desinteresse pela cidade, esclarecem tratar-se de um homem contrário ao novo. Nova Iorque constitui-se, no filme de Siegel, como o oposto da tradição sobre a qual se assentariam as bases da sociedade americana. Cidade cosmopolita, a metrópole exibe toda a efervescência do momento de produção de “Meu Nome É Coogan”, sendo representada como um lugar eminentemente contracultural.

133 Segundo Mary Junqueira: “Fronteira significa(va) para os norte-americanos o limite, a linha imaginária e móvel que separava o mundo civilizado dos espaços que eram considerados selvagens e chamados de wilderness [...]Era na linha da fronteira que o norte-americano se tornava um homem forte, ágil e de mente simples”. JUNQUEIRA, Mary A. “O imaginário da conquista do oeste e as representações sobre a América Latina na revista Seleções do Reader’s Digest”. Varia Historia. Belo Horizonte, nº23, jul/00, p.97-108. 180

Dessa maneira, estabelece-se uma ruptura entre o antigo e o novo, entre a tradição e os valores considerados por Coogan, por um lado, e a onda de transformações tão intensamente sentida em Nova Iorque, por outro. E como Coogan representa a Lei, sendo um agente do Estado, e Nova Iorque será relacionada ao crime, o enredo opera uma divisão maniqueísta que se desdobra na reprovação dos elementos representativos da contracultura e, por conseguinte, de todo o contexto cultural e da retórica política favorável aos avanços sociais daquele período. Assim, Nova Iorque é apresentada como a alegoria negativizada do modo de vida proposto pelos jovens contestadores dos anos 1960. No filme, tudo o que concerne à cidade ou se relaciona ao crime ou à contracultura, por vezes a ambos. E a insistência em considerar Coogan texano mostra que os nova-iorquinos nada sabem a respeito do restante do país, da “verdadeira” América. Inclusive Julie, apesar de cultivada, não consegue evitar o riso quando se imagina morando no Arizona acreditando necessitar de um saco de dormir. Sua ignorância leva Coogan a corrigi-la com ironia, informando que “o Arizona faz parte da União, agora.”134 Daí contextualiza-se o estranhamento de todos diante das vestimentas de Coogan. Mesmo sua autoridade policial não é suficiente para evitar alguns comentários cômicos a esse respeito quando se encontra em meio aos detentos na enfermaria onde Ringerman está internado: “E dizem que o velho oeste não é mais selvagem”135, aponta um dos presos. Lembre-se que Coogan é enviado para Nova Iorque como uma punição por sua insubordinação. O policial reconhece o castigo a todo instante.

134 Fala proferida em 59 min42 seg. 135 Comentário feito em 37 min31 seg. 181

Fotograma 70 - O aspecto de Coogan é motivo para os risos dos detentos (37min.36seg.). Por sinal, quase a totalidade dos detentos é formada por homens jovens e brancos, como é o caso de Ringerman. É de se surpreender que a representação de uma casa de detenção em um país conhecido pela predominância da etnia negra em sua população carcerária seja constituída por indivíduos brancos, em sua maioria. A representação proposta torna-se ainda mais insólita caso se considere a conjuntura de luta pelos direitos civis dos negros e do recrudescimento dos levantes em comunidades negras urbanas, além da constituição de movimentos nacionalistas negros, naqueles últimos anos da década. Todos esses fatos colaboraram para o aumento do encarceramento de negros no período. Do mesmo modo que o grupo de detentos, brancos também se destacam entre os adeptos da contracultura. Assim, o fenótipo e a faixa etária predominante leva o espectador a conjecturar tratarem-se os presos de jovens contraculturais que cometeram delitos. Como salientado, no filme de Siegel a cidade de Nova Iorque é construída de forma a veicular uma determinada perspectiva interpretativa da contracultura. Assim, dois ambientes se destacam: a delegacia e a vida noturna. Enquanto que no primeiro ambiente sublinha-se a correspondência entre o modo de vida arquetípico da juventude e a criminalidade, evidenciando-se a desordem urbana provocada por esse estilo de vida, no segundo enfatiza-se a presença de elementos relacionados à contracultura. O mergulho de Coogan na noite nova-iorquina o coloca em contato com uma realidade avessa à do deserto do Arizona, a qual ele não compreende. Drogas, nudez, sexualidade exacerbada, homossexualismo, arte performática, música, luzes estroboscópicas, tudo conflui de maneira a criar uma atmosfera sensorial que viola os princípios de Coogan. A 182

sensual mulher negra que, nua, “desce dos céus” dependurada em um cabo de aço diretamente nos braços do xerife explicita o atentado que a contracultura representa contra os valores tradicionais personificados no cowboy e, por conseguinte, contra a sociedade americana.

Fotograma 71 - A liberalidade contracultural em ruptura aos valores de Coogan (1h05min.02seg.). A mulher nua que “cai em seu colo” explicita o abismo existente entre o código comportamental do policial e o modo de vida dos adeptos da contracultura. Para além disso, o fato de os marginais de Nova Iorque vivenciarem esse código cultural termina por criminalizar a contracultura, que no filme torna-se responsável pela degradação social. Finalmente, o fato de Ringerman, natural de Nova Iorque, cometer seu ilícito no Arizona, concretiza os perigos que o modo de vida que representa oferece aos fundamentos morais da nação. Portanto, Siegel opta por apoiar o enredo no clima social e culturalmente conturbado daqueles anos, utilizando-se das demandas de variados agrupamentos sociais em disputa nos Estados Unidos de maneira extra-diegética. Assim, “Meu Nome É Coogan” angaria o apoio ideológico de camadas mais conservadoras dentro do escopo político do país, dispostas a concordar com a relação construída, além de configurar-se como simples entretenimento para a população em geral. De qualquer modo, a elaboração do personagem protagonista desenvolve-se para além de sua relação direta com o meio. A personalidade de Coogan tem como traço marcante sua arrogância. Ignorando os parâmetros da atividade policial, costuma seguir suas próprias regras, desobedecendo a superiores e agindo sozinho. Quando questionado por seus atos afirma: “- Normalmente tenho razão.”136. Seria exatamente sua alta dose de arrogância que o

136 Fala proferida em 1h 01min. 183

levaria a permitir a fuga de Ringerman. Coadunando-se com essa construção psicológica do personagem, Coogan exibe recorrentemente sua misoginia. Machista e mulherengo, o policial acredita que as mulheres devem se colocar no papel social tradicional, merecedoras dos cuidados masculinos. Dessa maneira, Julie assume as características femininas esperadas por Coogan. As representações femininas operadas na película fundamentam-se em alguns elementos que são repartidos nas figuras de Julie e Linny, principalmente. No entanto, apesar das personalidades divergentes, nenhuma das representações é positiva caso sejam consideradas as principais demandas feministas do período e a inserção que as mulheres vinham conseguindo na vida nacional. A primeira mulher a aparecer no filme, a amante de Coogan no Arizona, já encerra características apresentadas pela produção como negativas. A pergunta do protagonista ao encontrá-la, “- Ele ainda está em Phoenix?”137 denota ser ela casada, no entanto, aceita o papel de parceira sexual ocasional do adjunto. Além disso, não hesita em piscar para outro policial do distrito enquanto banha Coogan em sua banheira. Assim, o enredo levanta a questão da promiscuidade dessa personagem feminina da qual inclusive o xerife conhece o nome. Julie é a agente do distrito responsável por acompanhar a condicional de garotas indiciadas, utilizando-se de uma abordagem psicológica em seu trabalho. Portanto, sua perspectiva de atuação policial distancia-se enormemente do modo eleito por Coogan para lidar com os criminosos. Logo na cena em que ambos se conhecem, quando Coogan a defende do assédio, sua reprovação à truculência do policial é evidente. Em seguida, Julie expõe a um Coogan entediado e descrente o método da “autogênese psicofisiológica” sobre o qual baseia seu trabalho. Desse modo, Julie corporifica a intelectualidade completamente ausente em Coogan. Somando-se a reação quase inerte ao assédio do qual foi vítima, sua perspectiva do trabalho policial é apresentada como ingênua, descolada da realidade da criminalidade urbana com a qual precisa lidar. Assim, o enredo veicula o anti-intelectualismo de parte da sociedade dos EUA, que relacionava o meio estudantil e acadêmico às transformações culturais e políticas que convulsionavam a nação. Apesar de Julie sentir-se atraída por Coogan, aceitando suas investidas, age pudicamente, evitando maiores intimidades. Finalmente, quando convida o policial para jantar em sua casa, assume a posição arquetípica da esposa, vestindo um avental e cantando alegremente enquanto prepara a refeição. Anteriormente, Coogan havia exposto a ela o que

137 Aos 09 min25 seg. 184

esperava do comportamento de uma jovem mulher e, mesmo morando sozinha e tendo sua profissão, Julie se adequa ao modelo tradicional feminino. Por fim, apesar de o policial ter conseguido o paradeiro de Linny através dos arquivos de Julie sem o devido consentimento, e dela ter descoberto sobre a relação sexual casual entre os dois, a agente perdoa o xerife, o que reforça seu enquadramento no papel feminino esperado. Na cena final, mesmo não tendo suas esperanças afetivas atendidas, corre em direção a Coogan no instante em que este vai embarcar no helicóptero, abraça-o afetuosamente e permanece na pista sorrindo e acenando enquanto a aeronave decola.

Fotograma 72 - Apesar de profissionalmente independente, Julie se adéqua ao modelo tradicional de comportamento feminino (01h02min28seg.). A personalidade de Linny, por sua vez, é oposta à de Julie. Amante de Ringerman, a jovem não deixa de flertar com Coogan diante daquele. Além de sua liberalidade sexual, seu comportamento contracultural é revelado nas roupas que usa. Frequentadora do submundo nova-iorquino, Linny apresenta um estranho fetiche no qual se excita ao presenciar atos de violência, embora não os pratique. Assim, é ela quem planeja a operação de resgate de Ringerman e, quando Coogan cai desorientado durante a ação, é igualmente ela quem rouba o revólver do policial e entrega ao criminoso, incitando-o a executá-lo. Após ser encontrada por Coogan na casa noturna, excita-se mais uma vez ao presenciar o embate entre o policial e um de seus amigos que tenta esfaqueá-lo. É essa tendência à excitação através da violência que faz com que ela exija relacionar-se sexualmente com o agente como condição para revelar o paradeiro de Ringerman. Após ter seu desejo atendido, ao invés de levar Coogan ao criminoso, arma uma 185

nova emboscada durante a qual assiste com deleite o policial trocar socos com um grupo de marginais. No entanto, quando se torna vítima da violência de Coogan, que a agride e a ameaça para obter o paradeiro de Ringerman, seu fetiche desaparece, dando lugar ao medo que a faz levar o policial ao esconderijo.

Fotograma 73 - Linny excita-se diante da violência, incitando Ringerman a matar Coogan (41min07seg.). Apesar da antinomia existente entre Coogan e Ringerman, um agente da lei e um criminoso, o último busca estabelecer algum grau de camaradagem com o primeiro. Coogan, entretanto, mantém sua falta de empatia usual, determinado a combater o crime. Apenas após suas desventuras na cidade de Nova Iorque, um ambiente que lhe é estranho e hostil, o policial atenua o traço comportamental. Essa mudança ocorre em conjunção ao reconhecimento de Coogan da necessidade de se submeter às regras legais que delimitam o bom trabalho policial, as quais ele desrespeitava. Por fim, na realidade erigida pela película, a lei prevalece sobre o crime e, metaforicamente, a tradição prevalece sobre a contracultura, o antigo sobre o novo.

3.3.2 “Taxi Driver – Motorista de Táxi” (1976) Martin Scorsese nasceu no Queens, Nova Iorque, em 1942. De origem siciliana, considerou tornar-se padre em consonância com suas raízes familiares católicas. Após abandonar as pretensões eclesiásticas, obteve um Bacharelado em Artes na Universidade de Nova Iorque, seguido de um Mestrado, na mesma instituição. Após dirigir alguns curtas- metragens, realiza seu primeiro longa, Who’s That Knocking at My Door” (1968), com o qual obtém certa projeção. No início dos anos 1970, Scorsese conhece o grupo de jovens diretores 186

conhecido como “movie brats”: Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Steven Spielberg , George Lucas, dentre outros. As relações de amizade firmadas o ajudaram a ingressar no ambiente da produção cinematográfica da Nova Hollywood. Após trabalhar em filmes “B”, dirige “Caminhos Perigosos” (Mean Streets – 1973), que vale o reconhecimento da crítica tanto para si quanto para os atores Robert De Niro e Harvey Keitel. Em seguida, dirige “Alice Não Mora Mais Aqui” (Alice Doens’t Live Here Anymore – 1974), título que trouxe o Oscar de melhor atriz para Ellen Burstyn. Quando se envolve no próximo projeto, “Taxi Driver”, Martin Scorsese já era, portanto, um diretor reconhecido pela qualidade de seu trabalho, que trazia um estilo próprio. O filme insere-se diretamente no contexto de produção da Nova Hollywood. Tanto seu diretor quanto os principais atores haviam emergido nessa leva de produções que renovavam o cinema americano do período, sendo reconhecidos como figuras proeminentes do grupo. Robert De Niro, especialmente, havia conseguido se destacar no filme “Caminhos Perigosos” e na sequência de “O Poderoso Chefão” (The Godfather Part II, dir.: Francis Ford Coppola – 1974). “Taxi Driver” narra o cotidiano de Travis Bickle (Robert De Niro), um fuzileiro veterano do Vietnã que se torna motorista de táxi nas noites da cidade de Nova Iorque. Solitário e paranoico, Travis tem repulsa pelos tipos noturnos que habitam as calçadas das ruas pelas quais guia seu táxi. Prostitutas, homossexuais, traficantes, gigolôs, cafetões constituem, para o motorista, a escória da humanidade, o grupo de pessoas que representa a decadência moral e social de Nova Iorque e, consequentemente, do país. Travis imagina o dia em que uma chuva torrencial irá lavar a cidade, limpando-a desses indivíduos que são, para ele, abjetos. Quando não está em suas longas jornadas de serviço, que utiliza para ocupar produtivamente as noites de insônia, o taxista passa as horas de folga em obscuros cinemas pornôs ou refletindo em seu pequeno e confuso apartamento. O ambiente onde vive, um velho apartamento de dois cômodos, é marcado pelo improviso imposto pelo espaço exíguo. Ali, Travis escreve em um diário suas angústias e impressões sobre a vida na cidade. É nessas linhas que o motorista registra a visão que teve do único ser a destoar de toda a sujeira de Nova Iorque, Betsy (Cybill Shepherd), secretária do quartel general do senador presidenciável Charles Palantine (Leonard Harris). Travis passa a observá-la no trabalho. Em uma oportunidade, a espiona brincando com o colega de trabalho Tom (Albert Brooks). Em meio aos risos e piadas, Betsy percebe que é espreitada, mostrando o taxista a Tom, que o interpela. Após o fato, o motorista veste 187

sua melhor roupa, adentra o quartel general da campanha e convida Betsy para um café. Durante o breve encontro, consegue gerar interesse na jovem pelo seu comportamento e caráter misterioso, sendo bem-sucedido ao convidá-la para o cinema. Uma noite, logo após deixar um passageiro, é surpreendido quando uma jovem prostituta de aparência ainda infantil, Iris (Jodie Foster), adentra seu táxi, pedindo que siga com o carro. Seu cafetão, Sport (Harvey Keitel), logo a puxa para fora ameaçando agredi-la. Em seguida, coloca sobre o banco uma nota amassada de 20 dólares, como suborno pelo silêncio do taxista. Apesar de sua repulsa por pessoas como aquela jovem, o episódio desperta a humanidade de Travis, que se arrepende por não ter intervindo em defesa da garota. Em uma de suas corridas seguintes, transporta o Senador Palantine, com quem conversa demonstrando admiração. Questionado pelo presidenciável o que gostaria de mudar na realidade do país, sublinha o incômodo que sente com o que considera a sujeira social de Nova Iorque. Desconcertado com a visão do taxista, o senador dá uma resposta protocolar típica de um político em campanha. Na noite seguinte, Travis e Betsy encontram-se. O cinema escolhido pelo veterano para levar a jovem, entretanto, exibe filmes pornôs, o que deixa Betsy perplexa. Apesar do estranhamento, ela decide entrar na sala com Travis que alega se tratar de um filme visto por casais. Betsy, no entanto, logo se arrepende e sai. Sendo seguida por Travis, afirma serem os dois pessoas diferentes e chama um táxi. Diante da situação, o protagonista torna-se rude, segurando-a pelo braço. Betsy se desvencilha e embarca constrangida no carro. Depois do episódio, Travis tenta se reaproximar, sem sucesso. Diante da negativa da jovem, invade o escritório da campanha e a ofende, sendo expulso por Tom. A experiência aprofunda seu isolamento social. O cotidiano de Travis segue sem alteração. Numa noite, leva um passageiro (Martin Scorsese) que pede que o táxi pare diante de um prédio no qual se vê, em uma janela, uma silhueta feminina. O passageiro informa se tratar de sua ex-mulher no apartamento do namorado e afirma que irá matá-la. Travis sente-se desconfortável, porém a situação faz com que ele tenha ainda menores expectativas quanto à integridade das pessoas. No que parece ser sua última tentativa de evitar o isolamento social completo, Travis se aconselha com Wizard (Peter Boyle), colega taxista com ares filosóficos. A incapacidade de Wizard em compreendê- lo, porém, não apazigua os anseios do protagonista. A partir daí, Travis canaliza sua frustração em pensamentos cada vez mais violentos, inicia um intenso programa de exercícios e adquire armas ilegalmente. Uma obsessão por Palantine torna-se a principal ocupação de Travis, que passa a frequentar os comícios. De 188

alguma forma, Travis relaciona seu desgosto pela decadência urbana e a frustração com Betsy à pessoa do senador, o que o leva a conjecturar assassiná-lo. Coincidentemente, Travis mata um ladrão em uma loja de bairro, fato que o faz experienciar o papel de justiceiro, enredando- o ainda mais na trama psicótica que teceu. Tendo cruzado novamente com Iris, Travis decide ter um encontro com ela como possível cliente a fim de convencê-la a mudar de vida. Em um café, o taxista assume uma postura paternal demonstrando à pré-adolescente como é explorada e por que deve voltar para a casa dos pais. Sport, no entanto, consegue persuadi-la a ficar. Após deixar uma soma em dinheiro para Iris, com uma carta exortando-a a partir, e informando que não estará mais vivo no momento em que ela ler aquelas palavras, Travis surge no comício de Palantine. Seu usual casaco militar é completado por óculos escuros e o cabelo agora cortado em estilo moicano, o que lhe confere aspecto intimidador. Apesar de determinado a realizar um atentado contra o senador, tem seus planos impedidos por um agente de segurança, conseguindo fugir. Diante do fracasso, Travis decide resgatar Iris do lugar onde é prostituída a qualquer custo. Sua ação, que dá vazão a toda a violência reprimida, provoca um massacre no qual termina por matar Sport e mais dois homens, sendo gravemente ferido. A cena seguinte mostra Travis recuperado em seu apartamento lendo uma carta de agradecimento dos pais de Iris. Na parede, recortes de jornais tratam de sua ação de resgate, colocando-o na posição de herói. Na cena final, Travis conversa de maneira mais próxima e amigável com seus colegas taxistas quando uma passageira embarca em seu táxi. Iniciando a corrida, o motorista percebe se tratar de Betsy, que diz ter acompanhado o caso pela imprensa. Travis evita o epíteto de herói dizendo que os jornais exageram as histórias e, apesar de não cobrar pela corrida, despede-se da jovem que outrora havia despertado seu interesse afetivo sem corresponder à tentativa de aproximação. Conforme o táxi segue pela noite, a visão de Travis através do para-brisa suscita que sua instabilidade emocional não tardará a eclodir novamente. Título partícipe da Nova Hollywood, a cinematografia de “Taxi Driver” utiliza-se abundantemente de técnicas e estratégias características do cinema moderno. Assim, os efeitos visuais explorados pelo diretor de fotografia Michael Chapman compõem a atmosfera sombria na qual a vida de Travis se desenrola. Já nos créditos iniciais, a Nova Iorque do filme é desvelada ao espectador. À noite, em meio ao vapor d’água que se eleva de um bueiro, surge um táxi que evolui em câmera lenta. O ângulo de tomada escolhido, em câmera baixa, capta o automóvel na altura do para-choque, pela frente e seguindo pela lateral esquerda. 189

Nesse ângulo, o veículo tem suas dimensões multiplicadas, tornando-se ameaçador. Por um momento é como se o espectador fosse ser atropelado pelo enorme automóvel138. Conforme o táxi vai atravessando o enquadramento, da direita para a esquerda e sem ser acompanhado por um travelling139 da câmera, surge por detrás o título do filme, em letras vermelhas semelhantes aos letreiros em neon.

Fotograma 74 - Na abertura, o táxi surge em meio ao vapor, ocupando a tela de forma ameaçadora (00min.37seg.).

138 Considerando-se os fundamentos de produção da Nova Hollywood, bem como o interesse posteriormente manifestado por Scorsese sobre a história do cinema, pode se supor que a tomada de abertura realize uma citação de “A Chegada do Trem na Estação” (L’Arrivée d’un Train à la Ciotat), um dos primeiros filmes realizados pelos irmãos Lumière, em 1896. Trata-se de um registro breve, de apenas 50 segundos, de uma estação de trem onde as pessoas aguardam a chegada da próxima composição. O argumento compõe-se como uma cena de simplicidade cotidiana. O trem aproxima-se da estação, sendo captado pela câmera em diagonal, da direita para a esquerda. Surpreendentemente, o trem não se limita ao ângulo de tomada, extravasando o enquadramento pela esquerda. Esse fato questiona os códigos da arte pictórica até então observados, uma vez que tanto os quadros quanto as fotografias respeitavam os limites do enquadramento. Ao extravazar o campo, o trem de Ciotat implica a existência de um fora-de-campo inexistente até então. Alega-se que o desconhecimento dos códigos necessários à apreensão da novíssima linguagem cinematográfica teria levado os primeiros espectadores a acreditar que o trem os atingiria, na sala de exibição. Apesar de o público de “Taxi Driver” ser provido dos referidos códigos, o movimento similar realizado pelo táxi ainda é capaz de surpreender. O fora-de-campo colocado pelo movimento do táxi, por sua vez, implica a Nova Iorque diegética onde se localiza a narrativa. 139 Movimento de câmera no qual o equipamento desloca-se em um movimento contínuo, normalmente no plano horizontal. É comumente utilizado para apresentar um ambiente de forma panorâmica ou para acompanhar um objeto ou personagem que se desloca. 190

Em seguida, à medida que os créditos iniciais continuam a ser apresentados, a câmera capta o olhar do motorista em close-up140 e iluminado por luz vermelha. A iluminação muda de acordo com o deslocamento do carro, porém o olhar enigmático que ocupa toda a tela se mantém. O trânsito é refletido nos olhos de Travis, como se ele pudesse espreitar a cidade inteira. Logo após, o espectador partilha da visão do motorista por meio do enquadramento subjetivo, observando a rua através do para-brisa. No entanto, devido à chuva que molha o vidro, a visão da cidade torna-se difusa e distorcida, não permitindo que se veja nada além dos inúmeros pontos de luz que vagueiam no campo visual. Mesmo quando parado no semáforo, as pessoas que atravessam diante do automóvel deslocam-se em câmera lenta, desfocadas e iluminadas por tons de vermelho e azul, sendo transformadas em figuras algo fantasmagóricas, segundo a perspectiva de Travis. O destaque oferecido ao olhar do motorista demarca, para o espectador, que seria através desse olhar que a Nova Iorque da trama seria constituída. A melodia que acompanha a cena consiste no tema do protagonista. Composta por Bernard Herrmann, a música possui duas partes bastante distintas: a primeira é ocupada pelos pratos e tímpanos, o que confere suspense, enquanto a segunda conta com o embalo jazzístico de um trompete suavemente executado141. Dessa maneira, a composição permite ao espectador perceber a dubiedade da personalidade do personagem principal, que será apresentado logo depois. A produção de Scorsese é centrada em seu protagonista. Assim, o espectador acompanha o lento declínio psíquico de um homem instável, solitário, com forte tendência à violência e uma visão bastante particular do mundo que o cerca. Na cena da entrevista de emprego de Travis na frota de táxi, a ambiguidade de sua persona é esclarecida pela iluminação de apenas uma metade de sua face, permanecendo a outra no escuro. Ao longo da película, duas tendências opostas se digladiam no interior de Travis, capaz de ser gentil e atencioso com Betsy e paternal com Iris ao mesmo tempo em que demonstra profunda inadequação social e pretende assassinar o senador Palantine. Essa desordem psíquica é evidenciada no lugar onde vive. O apartamento de Travis constitui-se como a exteriorização de toda a sua desarmonia psicológica. Em um lugar de dimensões exíguas, velho e sujo, a adaptação sobressai-se. Seus móveis e objetos parecem ser provisórios e estarem ali há muito tempo, incoerentemente. Por todo lado, revistas espalhadas

140 Primeiríssimo plano utilizado para maior detalhamento do quadro, normalmente fotografando o rosto, alguma outra parte do corpo de um personagem ou um objeto relevante na trama, por exemplo, a arma de um assassino. 141 O arranjo musical da segunda parte segue uma linha melódica próxima ao estilo cool jazz. 191

e uns poucos livros empoeirados. O varal sempre estendido no que originalmente deveria servir como seu quarto e sala subverte ainda mais o uso do espaço. As paredes por pintar, e o piso coberto por retalhos de revestimentos formando um mosaico desequilibrado, completam a aspereza de sua habitação. Nesse ambiente nada convidativo, Travis se protege daquilo que denomina ser a sujeira da cidade, seus habitantes noturnos. Desse modo, no apartamento quase em ruínas, o taxista dedica-se a anotar em seu diário os acontecimentos e pessoas marcantes que cruzaram seu caminho durante a jornada de trabalho, além de registrar as mais íntimas reflexões sobre sua individualidade e a relação que trava com o mundo.

Fotograma 75 - O apartamento de Travis encerra o caráter precário de sua vida (05min29seg.). Como um profeta, Travis anseia pelo dia em que um grande dilúvio irá livrar a cidade dos habitantes indesejáveis. Em seu diário registra: “10 de maio: agradeço a Deus pela chuva que lavou a sujeira e o lixo das calçadas.”142 Logo após, diante do volante de seu táxi, caracteriza aquilo que mais lhe incomoda na cidade e devaneia “- Todos os animais saem à noite. Prostitutas, vadias, sodomitas, travestis, bichas, maconheiros, viciados. Doentio, venal. Algum dia, uma chuva de verdade vai vir e lavar toda essa escória das ruas.”143 Apesar de o enredo não trazer qualquer informação concernente às origens familiares de Travis, tampouco à sua religiosidade, seu comportamento baseia-se em fundamentos católicos. A aversão que demonstra em relação aos tipos noturnos que observa testemunha seus parâmetros morais. Além disso, noções como culpa, arrependimento e redenção, caras ao cristianismo, delimitam sua visão de mundo.

142 Citação feita aos 05min11seg. 143 Fala proferida aos 06min02seg. 192

Frequentador assíduo das salas de cinema pornô nova-iorquinas, Travis é um homem sexualmente reprimido, sendo esse hábito a única forma na qual consegue vivenciar sua sexualidade. Perceba-se que o celibato de Travis não se configura enquanto uma escolha pessoal, sendo reflexo de carência afetiva profunda. O taxista anseia pela presença feminina em sua vida, no entanto as tentativas não são frutíferas devido à sua inabilidade em seguir padrões sociais básicos. Ao avistar Betsy caminhando pela rua, torna-se obcecado por ela, observando-a enquanto trabalha. E apesar de ser bem-sucedido na aproximação, leva-a para assistir a um filme erótico já no primeiro encontro. Em sua perspectiva, aquele tipo de produção cinematográfica era tão aceitável para a ocasião como qualquer outro filme, não implicando desdobramentos morais. Assistir àqueles filmes, pelo contrário, representa para o motorista uma atividade social em meio a sua rotina solitária. A solidão, por sinal, é a característica que melhor resume o taxista e na qual ele parece apoiar sua personalidade. São inúmeras as passagens na trama onde o motorista enfatiza seu distanciamento social. No entanto, nem sempre fica claro se essa postura é planejada ou fruto de sua incapacidade de firmar laços relacionais. Se por um lado, o discurso preconceituoso fundamenta sua ruptura com relação ao mundo, por outro lado, a atração que sente por Betsy e a ternura que demonstra por Iris salientam o afeto que Travis pode oferecer. De qualquer modo, dentro da realidade que construiu para si, ele está sozinho. Observando os transeuntes enquanto dirige, afirma: “- A solidão tem me seguido pela vida inteira, em todos os lugares. Bares, carros, calçadas, lojas, todos os lugares. Não há saída. Eu sou o homem solitário de Deus.”144 Na tela, o isolamento do motorista é sublinhado através da distância física existente entre ele e os demais personagens. Nas cenas em que Travis interage com alguém sempre existe alguma barreira que impede a aproximação, seja o balcão da bilheteria do cinema, quando ele tenta iniciar uma conversa com a atendente, seja a mesa do café ou da lanchonete. Corredores vazios, momentos de silêncio entre Travis e os demais taxistas, tudo corrobora para aumentar a sensação de solidão do protagonista. Travis apenas consegue firmar um laço de proximidade quando encontra Iris, a prostituta pré-adolescente que iria salvar. A estima que desenvolve pela jovem, sem qualquer interesse sexual, coloca em questão toda a sua argumentação quanto aos tipos sociais que vê à noite. Enquanto prostituta, Iris é parte daquilo que o taxista considera a escória que gostaria de ver providencialmente levada por uma chuva torrencial. Como algo usual em seu cotidiano

144 Fala narrada aos 53min08seg. 193

pôde, então, tornar-se importante para ele? Após Travis se decepcionar com Betsy, resgatar Iris passa a representar a humanidade ainda existente no taxista.

Fotogramas 76 e 77 - Travis não consegue romper o isolamento social até conhecer Iris. No fotograma 63 (18min23seg.), percebe-se a distância física entre o protagonista e seus colegas taxistas. Travis senta-se na ponta da mesa, permanecendo só, sem interagir com a dupla. Entre eles é possível observar a divisão da vitrine da lanchonete. Essa estrutura vertical na cor preta serve para destacar seu isolamento, imageticamente. As demais pessoas no quadro permanecem de costas para Travis, que apesar de se encontrar no centro do enquadramento, permanece apartado do ambiente. Já no fotograma 64 (01h26min49seg.), nota-se a interação direta entre o protagonista e Iris. Trocando olhares enquanto conversam, não existe nenhuma barreira que se interponha entre eles. A borboleta desenhada no cenário sugere a leveza da interação. No entanto, em consonância com a ambiguidade que lhe é característica, Travis encontra na violência o senso de direção que acredita ser tudo o que precisa na vida. Em parte refletindo seu cotidiano violento nas ruas da maior cidade do país, o taxista mergulha completamente na psicose e decide realizar um atentado contra Palantine. Uma vez que os posicionamentos políticos e as propostas do candidato são desconhecidas por Travis, sua motivação para escolhê-lo como alvo não são políticas, permanecendo tão obscuras quanto sua mente. 194

No enredo, é como se toda uma existência de isolamento social, ressentimentos e amargura tivesse convergido para uma ação grandiosa, capaz de redimir Travis de seu sofrimento. Ao observar atentamente os pôsteres de Palantine que colara na parede de seu apartamento, informa Travis: “- Escutem aqui, seus merdas, seus fodidos, aqui está alguém que não aguenta mais, alguém que enfrentou a escória, os porras, os cachorros, a sujeira, a merda. Aqui está alguém que reagiu!”145.

Fotograma 78 - Em meio à desordem de seu apartamento, Travis observa os pôsteres de Palantine (01h07min13seg.). Em um deles o político teve sua boca (e sua fala) censurada. Em ambos, é o slogan de sua campanha “We are the people” (Nós somos o povo) que está censurado. Quando a tentativa de atentado falha, Travis decide resgatar Iris em uma ação tão resoluta quanto fatalista. Armado e preparado, o taxista invade o local onde a pré-adolescente é prostituída e atira em qualquer um que tente impedir seu objetivo. O massacre que executa funciona como sua redenção, sua glória. Por isso o taxista não para nem mesmo quando é baleado no pescoço por Sport. Travis está tomado pela determinação de um suicida. Quando consegue assassinar todos os que estavam no local, e é impedido de terminar com a própria vida por falta de munição, senta-se tranquilamente no sofá existente no quarto de Iris. Ensanguentado, sorri para o policial que acaba de chegar, levanta a mão esquerda perfazendo a representação de uma arma e, imaginariamente, atira três vezes contra a própria cabeça. Sua missão autoimputada fora concluída.

145 Reflexão feita em 1h07min14seg. 195

Fotograma 79 - Tendo atingido a redenção, Travis se suicida, alegoricamente (01h.42min.49seg.). A cobertura que a mídia oferece ao caso transforma Travis em um herói através da fama recebida. O taxista solitário havia se transformado em um justiceiro que salva uma jovem menina indefesa da prostituição e do vício no submundo de uma cidade degenerada. Através de seu ato espetacular, Travis alçou sua perspectiva de observação do cotidiano à posição de realidade efetiva, uma vez que a retórica midiática corroborava e reforçava a visão que o motorista nutria da cidade como um lugar degradado pelo pior que a sociedade poderia oferecer. Ao centrar a narrativa em seu protagonista, “Taxi Driver” representou uma Nova Iorque avessa aos pontos turísticos e à agitação cultural de um grande centro urbano, construindo uma cidade marcada pela criminalidade, pela violência e pela pobreza. Essa Nova Iorque é apresentada como consequência dos rumos traçados pela nação, no contexto político e social do período, segundo a ótica de um veterano da Guerra do Vietnã. Sua oposição a Palantine é também a oposição ao discurso social do candidato, completamente avesso às suas opiniões e ações, apesar de Travis não racionalizar essa questão. O final da película, com o táxi rodando noite adentro do mesmo modo que iniciara a narrativa, assegura a efetividade de sua postura, ainda que pontualmente.

3.3.3 A Nova Iorque do Crime e do Desamparo Social Os filmes acima analisados foram produzidos tendo um período de oito anos entre as datas de realização. Ambos dedicam-se ao tema da violência e da criminalidade urbana, porém, contam com sensíveis diferenças quanto à perspectiva de observação dos enredos no 196

que se refere à realidade social e política referente a cada obra. Entre 1968, ano de produção de “Meu Nome É Coogan”, e 1976, data de realização de “Taxi Driver – Motorista de Táxi”, os Estados Unidos haviam sido expostos a dois acontecimentos traumáticos para a nação: a derrota no Vietnã e os escândalos políticos envolvendo a presidência de Richard Nixon. As tramas, portanto, demonstram sua localização anterior e posterior a essa mudança de conjuntura. Voltando-se a temas sensíveis àquela sociedade, as películas elegem a mesma cidade para o desenvolvimento dos enredos: Nova Iorque. A metrópole funciona como um excerto dos Estados Unidos capaz de exemplificar as tensões sociais existentes na nação, mesmo que em “Meu Nome É Coogan” outra realidade espacial possível seja apresentada. Apesar das especificidades, ambas as representações trazem ao espectador uma cidade repleta de características negativas. Tanto para Siegel quanto para Scorsese (e especialmente para este), Nova Iorque é insalubre, violenta, perigosa, desagradável e hostil, como constatado por seus protagonistas. Enquanto Siegel formula seu personagem principal como um outsider, um indivíduo exótico e anacrônico, capaz de singularizar os valores tradicionais em oposição a uma Nova Iorque contracultural, Scorsese pensa seu protagonista não como um forasteiro, porém como alguém que permanece à parte do corpo social apesar de estar inserido em seu centro. Travis transita por toda a cidade como se fosse invisível. Seu táxi confunde-se com qualquer outro veículo da imensa frota amarela que se desloca por Nova Iorque. Assim, o motorista é absorvido em meio aos outros motoristas de táxi, integrante da enorme maioria trabalhadora que compõe a população de uma metrópole. Travis é ausente em sua presença. E apesar dos claros fundamentos religiosos em seu comportamento e visão de mundo, o veterano não representa nenhum conjunto de valores, sendo a materialização do ressentimento de uma nação que parecia ter perdido o rumo. No final da década de 1960, quando o primeiro título examinado foi produzido, o contexto do país permitia a eleição das transformações em curso como o motivo para as mazelas observadas, não obstante a pobreza e a criminalidade não terem surgido no período. Daí a opção, por parte do enredo de “Meu Nome É Coogan”, em relacionar a contracultura com a criminalidade e com a perda de princípios valiosos para o ethos nacional. Por outro lado, em meados dos anos 1970, a sociedade americana enfrentava dissabores tanto interna quanto externamente, o que estabelecia um cenário de desesperança que questionava o discurso da especificidade daquele país. O mundo já não pertenceria aos Estados Unidos em um futuro auspicioso. Agora, à convulsão social que desestabilizara a 197

sociedade na década anterior, somavam-se os descaminhos políticos e econômicos como motivação para a perda de primazia, segundo a perspectiva derrotista na qual se insere a retórica de Travis. Durante a entrevista de emprego, o veterano informara que havia sido dispensado com honras do serviço militar. Entretanto, que honra poderia haver para um combatente egresso da maior derrota militar da história da nação? Que honra poderia restar aos Estados Unidos em meados daquela década? Assim, se Coogan ainda pode se permitir ser arrogante, essa postura já não cabe a Travis, sendo esta relação válida para a sociedade em questão. Para Coogan é possível delimitar na criminalidade urbana juvenil boa parte dos problemas internos da nação. A cidade de Nova Iorque, que relutantemente visita, é capaz de lhe oferecer prazeres, apesar dos pontos negativos. Já Travis é um homem no limite de sua existência. A Nova Iorque que vê através das janelas de seu táxi degenerou ao nível de não haver mais retorno. Travis é um indivíduo amedrontado e sem saída que responde à violência, real e imaginária, com mais violência. É como se o taxista visse o que mais ninguém vê e coubesse apenas a ele se levantar contra a degradação social e moral. A alcunha “killer” que recebe dos colegas taxistas salienta o destino que acredita ser seu. Fato enfatizado quando um desses colegas frivolamente mira com a mão e simula atirar à queima roupa contra Travis, gesto que seria repetido pelo próprio protagonista, no final da chacina. Deste modo, a cidade de Nova Iorque de Coogan e, por conseguinte, a sociedade, pode se recuperar bastando que saiba acomodar as novas demandas culturais surgidas naquele período, sem desconsiderar os fundamentos mais caros à nação, que a definem. O final do filme, com a lei prevalecendo sobre o crime e o policial reconhecendo a humanidade de seu prisioneiro, atesta a possibilidade de adequação e harmonização das variadas vozes sociais. Quanto à Nova Iorque de Travis, perdida no vício e na degradação humana, uma cidade aviltada por seus habitantes, resta aguardar pela chuva profetizada pelo taxista, destino condizente com o contexto de desilusão do momento.

3.4 A AFLUÊNCIA E A CRISE ECONÔMICA Realizar uma análise historiográfica sobre os Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970 implica, dentre variadas transformações, tratar de um período no qual aquela nação experimentou um momento de significativa prosperidade econômica seguido de uma década de recessão e crise. Dentro do longo processo de desenvolvimento econômico iniciado após o fim da Segunda Guerra Mundial, os anos de 1960 caracterizaram-se pelos bons índices econômicos na produção de riqueza, nas taxas de empregabilidade e no aumento do padrão de 198

vida da população. O consumo continuou em elevação, mantendo a trajetória de ascensão da década anterior, enquanto as mulheres ingressavam no mercado de trabalho contribuindo para o desenvolvimento nacional. No campo político, as inúmeras iniciativas da Guerra à Pobreza do Presidente Johnson favoreceram, ao menos no início, o avanço econômico de regiões marcadas pela miséria, bem como na integração de populações antes alijadas da vida econômica nacional. A partir do final da década de 1960, os altos custos gerados pela participação do país no conflito no sudeste asiático, além dos custos do próprio programa de combate à pobreza, colaboraram para o fracasso das políticas econômicas de Johnson. A partir daí, e ao longo de toda a década de 1970, os Estados Unidos viram-se em meio a uma conjuntura econômica desfavorável na qual o produto nacional declinou, implicando o aumento do desemprego, a redução dos salários, a falta de crédito, em suma, as características que, em um contexto de crise, reduzem o padrão de vida da população. Além disso, a avalanche de denúncias envolvendo integrantes do alto escalão da política nacional, e os desdobramentos que culminaram na renúncia de Richard Nixon da Presidência da nação, obstaculizaram ainda mais os esforços de recuperação econômica. Assim, a crise financeira e a descrença nas instituições políticas do país combinaram-se para formar um contexto de desalento e desesperança que abalou as expectativas do cidadão comum quanto ao futuro. O cinema hollywoodiano expressou essa mudança de conjuntura econômica de maneira bastante peculiar. Ao invés de tratar diretamente do cenário de crise, problematizando suas consequências sociais, as produções cinematográficas mais comumente retrataram o aumento da criminalidade urbana e a decadência das grandes cidades, sem levantar as implicações econômicas dessas questões, como se percebe nos exames das produções acima tratadas. Entretanto, alguns títulos voltaram-se ao contexto de vida da classe baixa, explorando a falta de oportunidades daqueles que se encontravam na base da pirâmide social. Dentre estes, “Rocky, um lutador” (Rocky, dir.: John G. Avildsen – 1976) e “Os Embalos de Sábado à Noite” (Saturday Night Fever, dir.: John Badham – 1977) podem ser destacados, além de “Vivendo na Corda Bamba” (Blue Collar, dir.: Paul Schrader – 1978), anteriormente analisado. As tramas desses filmes voltam-se para pessoas comuns que buscam libertar-se do contexto desfavorável que constitui suas vidas, lutando por melhores horizontes. Por outro lado, enquanto que, nos anos 1960, Hollywood não costumou considerar a prosperidade econômica como um tema para suas produções, na década de 1970, algumas películas trataram do recorte temporal anterior ao período de contestação que marcara os anos 199

1960 como um contraponto ao cenário de crise econômica e descrédito político do presente. “Loucuras de Verão” (American Graffiti, dir.: George Lucas – 1973) tornou-se memorável por retratar uma noite na vida de jovens estudantes no ano de 1962. No enredo fica clara a nostalgia por um passado de harmonia que, apesar de recente, contrastava com a atmosfera nacional do ano da produção. O sucesso alcançado levou a uma série televisiva que igualmente beneficiava-se da memória afetiva e da nostalgia de sua audiência. A seguir, examinam-se os filmes “Loucuras de Verão” e “Os Embalos de Sábado à Noite” com o objetivo de avaliar as representações referentes ao cenário econômico no qual se inserem os respectivos enredos. Apesar de o primeiro título não ter sido produzido na década de 1960, tratava-se de uma reconstituição histórica que retornava ao último período de prosperidade econômica e alegada tranquilidade social, observando o início dos anos 1960 através das lentes de 1973 e, desse modo, compondo uma representação devedora dos desencantos e das insatisfações daquele momento.

3.4.1 “Loucuras de Verão” (1973) “Loucuras de Verão” narra as desventuras de quatro amigos durante a última noite de verão que poderão aproveitar juntos, após a conclusão do high school146. Curt Henderson (Richard Dreyfuss) acaba de ganhar uma bolsa de estudos, o que faz com que a comunidade nutra grandes expectativas quanto ao seu futuro. Steven Bolander (Ron Howard) é o melhor amigo de Curt, presidente de classe recém graduado e também namorado da irmã deste, Laurie (Cindy Williams), que ainda precisa cursar o último ano de escola. Terry “O sapo” Fields (Charles Martin Smith) é o amigo esquisito e atrapalhado que entra em confusões devido à falta de habilidades sociais, especialmente com o sexo oposto. John Milner (Paul Le Mat), também recém graduado, já trabalha como mecânico e é conhecido por dirigir um cupê amarelo da década de 1930, modificado para participar de corridas clandestinas. Alguns dizem ser o carro mais rápido da região. A trama se inicia com os amigos se encontrando no final da tarde no Mels, uma lanchonete ao estilo drive-in. Curt confidencia a Steve que não tem certeza se vai viajar em sua companhia para a faculdade na costa leste no dia seguinte, para a surpresa deste, ansioso pela própria viagem. Com a chegada de Terry em sua scooter Vespa, Steve oferece seu Chevrolet Impala, pedindo para que o amigo cuide do carro enquanto estiver na faculdade.

146 Período de formação escolar similar ao ensino médio brasileiro. 200

Maravilhado com o luxuoso presente que acabara de receber, Terry não consegue conter o entusiasmo e chora de alegria. Em seguida, Steve entra no carro de Laurie e diz a ela que acha melhor que os dois conheçam novas pessoas enquanto ele estiver na faculdade. A jovem fica consternada com a insólita proposta do namorado, porém disfarça. O grupo se separa: John vai dirigir seu cupê pelas ruas do centro, onde os jovens passam a noite passeando de carro, Terry parte com o Impala de Steve, que decide ir com Laurie e Curt à festa dos calouros na antiga escola. Enquanto John descobre que um motorista de um Chevy o procura para uma corrida, em outra rua do centro, Steve, Laurie e Curt param em um semáforo ao lado de um Thunderbird branco. A loura que dirige o carro sorri para Curt e sussurra: “– Eu te amo”. Curt é imediatamente tomado pelo acontecimento e, com insistência, pede que sigam o carro, porém a irmã e o amigo o ignoram. Logo depois, John emparelha com um automóvel cheio de garotas e pergunta se alguma delas não gostaria de dar uma volta com ele. Quando uma se voluntaria e embarca no cupê, o mecânico percebe se tratar de uma pré-adolescente. Tentando devolver a companhia, as garotas riem e saem com o carro. Carol (Mackenzie Phillips) será sua acompanhante por quase toda a noite. Steve, Laurie e Curt chegam à festa. Após o casal contar a alguns amigos sobre a proposta de Steve, as meninas acham que Laurie ficará melhor sem ele, enquanto os rapazes riem e afirmam que Steve pretende curtir a vida na faculdade. Paralelamente, Curt se aconselha com o professor Wolfe (Terence McGovern), que na juventude viajou para estudar, porém ficou apenas um semestre. Narrando suas dúvidas, Curt é incentivado pelo professor a partir e aventurar-se. Tendo parado em um semáforo, Terry é interpelado por Bob Falfa (Harrison Ford), o motorista do Chevy que procura por John. Após Falfa partir, Terry percebe uma jovem loura caminhando na calçada. Aproximando-se, inicia uma conversa e diz à moça que é conhecido como “Terry, o tigre”. Diante do interesse automobilístico da jovem, pergunta se ela não gostaria de sentir o conforto do estofamento do Impala. A loura, de nome Debbie (Candy Clark), aceita. De volta à festa, Steve e Laurie são escolhidos para liderar a dança de uma música lenta. Apesar de fingirem estar tudo bem, Laurie continua a discussão discretamente, então começa a chorar e diz para Steve “ir para o inferno”, ao som de “Smoke Gets in Your Eyes”. Curt encontra sua ex-namorada Wendy (Deby Celiz) e sai com ela. De volta a Steve e Laurie, o casal dança intimamente. O professor Kroot (Mar Anger) se interpõe, tentando separá-los. 201

Diante da recusa de Steve, ameaça suspendê-lo, o que provoca o riso do casal já que Steve se formara no fim do semestre. Steve e Laurie decidem ir para o canal para ficarem a sós. Curt passeia com Wendy e a amiga Bobbie (Lynne Marie Stewart), no Fusca conversível da menina. A ex-namorada diz que Curt deve ficar e ingressar na faculdade local com ela. Mais uma vez Curt vê o Thunderbird passar. Quando Kip Pullman (Ed Greenberg) emparelha com o Fusca, Bobbie pede para Curt puxar conversa, pois ela tem interesse no rapaz. Curt exagera e expõe os sentimentos de Bobbie, despertando a fúria da jovem e sendo expulso do Fusca. Longe dali, Debbie pede a Terry que lhe consiga alguma bebida. Apesar de menor de idade, Terry deseja impressioná-la e, para tanto, pede para um cliente da loja de bebidas comprar-lhe uma garrafa. O cliente, porém, fica com o dinheiro e foge pela porta dos fundos do estabelecimento. Sem dinheiro, Terry solicita a ajuda de Debbie e interpela outro homem para conseguir a bebida. Depois de algum tempo, o homem sai correndo da loja e joga uma garrafa de whisky em direção de Terry, que percebe se tratar de um ladrão. Conforme o dono da loja sai e atira contra o homem, Terry e Debbie entram no carro e fogem. Curt assiste à televisão de uma vitrine sentado sobre o capô de um carro estacionado. Surge, então, um grupo de rapazes integrantes da gangue “Os Faraós” e dizem que o carro pertence a um amigo. Após Curt se levantar, os membros da gangue alegam que o rapaz havia arranhado o carro e o sequestram para decidirem qual será sua punição. No banco de trás, Curt vê a loura do Thunderbird passar, seguida de Bob Falfa. O líder dos Faraós diz que Falfa procura por John e que os dias deste estão contados. Terry e Debbie chegam ao canal e começam a beber. Tentam alguma intimidade, porém como o lugar está cheio, deixam o Impala e se afastam um pouco. Enquanto isso, os Faraós levam Curt a um minigolfe onde começam a roubar o dinheiro das máquinas de pinball. Quando os donos do lugar chegam, reconhecem Curt, que consegue administrar a situação livrando os arruaceiros. Surpreso, o líder da gangue decide fazer de Curt um Faraó. De volta ao canal, Terry descobre que o carro de Steve havia sido roubado. Enquanto isso, Steve tenta maiores intimidades com Laurie, que recusa e o expulsa de seu carro, indo embora e deixando o rapaz. Desse modo, Steve acaba encontrando-se com Debbie e Terry, que evita contar sobre o roubo do Impala. Falfa finalmente encontra John e insiste em ter uma corrida. Eles correm um curto trecho entre sinais de trânsito até que John freia em um semáforo vermelho, enquanto Falfa prossegue. Carol diz que o Chevy é veloz, mas John pondera que Falfa é tão veloz quanto estúpido. Enquanto isso, os Faraós veem uma viatura policial escondida esperando por 202

corredores do tipo de John e Falfa. A gangue decide que Curt deve prender um cabo de aço no eixo traseiro do veículo, o que Curt faz. O grupo, então, provoca os policiais que arrancam para persegui-los, destruindo a viatura. No Mels Drive-In, Steve conversa com a garçonete Budda (Jana Bellan) e diz que rompeu com Laurie. Budda aproveita a oportunidade e pede para sair com Steve, porém é recusada. No entanto, Laurie observa a conversa de longe, se irrita e vai embora sem ser notada. Curt é deixado na lanchonete pelos Faraós, que planejam torná-lo um dos seus no dia seguinte. Curt não informa que talvez não esteja mais na cidade. Nesse momento, o Thunderbird passa, Curt tenta ligar seu carro para seguir a loura, porém não consegue. Falfa se aproxima de Laurie, que entra no Chevy. Entretanto, diz ao rapaz que não quer conversar. Enquanto isso, Carol finalmente informa seu endereço para John, que a leva para casa. Na despedida, a jovem pede uma lembrança e fica com a manopla da alavanca de câmbio do cupê de John. No Mels Drive-In, Curt se surpreende quando Steve conta que já não tem certeza se quer ir embora da cidade para estudar. No entanto, Curt consegue consertar seu carro e parte, deixando o amigo com suas dúvidas. Em outro lugar, Terry e Debbie deparam-se com o Impala de Steve estacionado. Tentando dar a partida, são surpreendidos pela dupla que roubara o veículo. Uma briga se inicia, porém a chegada de John afasta os ladrões. Tendo recuperado o carro do amigo, Terry segue com Debbie para o Mels. Ao chegarem, Steve havia acabado de descobrir que Laurie estava com Falfa, por isso arranca Terry do carro e parte. Debbie reprova o comportamento de Steve, porém Terry conta a verdade sobre o carro e diz a jovem que possui apenas uma Vespa. Debbie sorri, diz que aproveitou a noite e que eles vão se encontrar novamente. Enquanto isso, Curt segue para a estação de rádio ouvida por todos, localizada nos arredores da cidade, e pede ao locutor para dedicar uma música à loura do Thunderbird, informando o número da cabine telefônica do Mels Drive-In. John chega à lanchonete quando Falfa aparece e os dois marcam a corrida. Terry pede para ir com John. No local marcado, um grupo de jovens espera pela corrida. Steve descobre que Laurie está no carro de Falfa e que vai correr com ele. A corrida se inicia, Falfa perde o controle e capota. Steve corre para socorrer Laurie, que o abraça, chora e pede para que o rapaz não vá embora. Steve diz que ficará com ela. John retira Falfa de perto do carro momentos antes de se iniciar um incêndio. Então, no Mels, o telefone toca. Curt pede para a loura dizer seu nome, mas ela recusa. Diante do pedido eufórico de Curt para encontrá-la, apenas diz que vai dirigir o 203

Thunderbird novamente na noite seguinte. Curt, no entanto, insiste em vê-la imediatamente. A loura se despede e desliga. Horas depois, Curt está no aeroporto com seus amigos e familiares. Steve não o acompanhará. Conforme o avião decola, Curt vê um Thunderbird branco em uma estrada. A narrativa se encerra informando o destino dos quatro amigos: John foi morto em um acidente de trânsito provocado por um motorista bêbado; Terry foi declarado desaparecido em ação no Vietnã; Steve virou agente de seguros e continuou a viver em Modesto; Curt se tornou escritor e mora no Canadá. “Loucuras de Verão” consiste em um filme baseado em narrativas paralelas com breves pontos de contato. Nesse sentido, a montagem faz com que o espectador acompanhe trechos intercalados de cada trama conforme ocorrem os acontecimentos da noite. As narrativas de Curt e Steve ocupam posição de destaque no enredo, abordando temas de maior profundidade, enquanto as desventuras de Terry e John entremeiam os dramas daqueles, trazendo temas mais prosaicos. O filme de Lucas fundamenta-se na memorialização de um período recente do passado dos Estados Unidos, provocando e explorando o sentimento de nostalgia que a trama poderia despertar em boa parte da audiência. Assim, a cinematografia da primeira tomada da cena de abertura da película torna-se bastante significativa. Nesta, a câmera fotografa a entrada da lanchonete Mels Drive-In. Como se estivesse posicionada na calçada, a câmera enquadra o estacionamento em frente ao estabelecimento, com o prédio térreo ao centro. À direita, o volumoso letreiro vertical apresenta o lugar. Ao fundo, árvores já escurecidas ao cair da tarde ajudam a compor uma atmosfera que é determinada pelo céu com algumas nuvens iluminadas em tons róseos, contrastando com o azul predominante. Tudo colabora para transmitir uma aura de pureza. No estacionamento, vê-se apenas o Impala branco de Steve, com o rapaz de pé encostado no final da lateral esquerda do veículo. Devido à coloração utilizada na composição, além do fato de Steve ser fotografado à distância e permanecer imóvel ao longo de toda a apresentação dos créditos iniciais, a tomada lembra um quadro pós-impressionista retratando um episódio cotidiano comum. Por outro lado, a coloração púrpura refere-se aos primórdios do processo industrial de coloração cinematográfica147. Os filmes coloridos do período representado ainda traziam essa espécie de cor e de textura, o que posteriormente

147 Atente-se para a especificidade industrial do processo, uma vez que a iniciativa de colorir filmes é quase tão antiga quanto a própria captação de imagens em movimento. No entanto, a atividade de coloração, nas primeiras décadas da produção de cinema era, sobretudo, artesanal, sendo os fotogramas coloridos manualmente, um a um. 204

passou a conferir uma identidade imagética própria da película a cores dos anos 1950 e início dos 1960. A sonorização completa o processo de rememoração proposto pela tomada, embalando o início da cena ao som de “Rock Around the Clock”, um dos primeiros sucessos do rock’n’roll, nos anos 1950, e a primeira música do gênero a figurar em um filme.148

Fotograma 80 - A primeira imagem a ocupar a tela, nos momentos iniciais da projeção (00min26seg.), traz elementos que compõem a atmosfera nostálgica sobre a qual se assenta a trama. Sem provocar esse sentimento na audiência, a película de Lucas não teria fundamentação. Mesmo para aquela parte do público americano que não vivenciou o período como retratado no enredo, a construção ganha significado afetivo. Longe de representar uma passagem de menor importância na trama, toda a diegese de “Loucuras de Verão” alicerça-se na tomada inicial da abertura, acima descrita. Através da construção imagética e sonora operada nos primeiros segundos da projeção, o filme fundamenta seu papel memorialístico, histórico e afetivo diante do público. Saliente-se que a película simboliza uma cena cotidiana de um passado recente, porém já inexistente. E antes mesmo das personagens travarem suas primeiras frases de diálogo, dois ícones da cultura jovem do período caracterizado já ocupam a tela: o automóvel e o drive-in. A cultura do automóvel, tão cara à formulação do arquétipo juvenil americano do período tratado, serve de apoio ao desenvolvimento do enredo, bem como da representação realizada. Todo o desenrolar da narrativa ocorre em relação ao automóvel e ao papel central deste objeto na vida social daquela juventude. É graças aos veículos que os rapazes e moças interagem, circulando em determinadas ruas do centro da pequena cidade de Modesto, as quais formam o circuito social juvenil. É pela velocidade proporcionada pelos veículos que

148 FREEDMAN, Max; DEKNIGHT, Jimmy. Rock Around the Clock. Intérprete: Bill Halley and His Comets. In: Single. Nova Iorque: Decca, 1954. O grupo musical “Bill Haley and His Comets” alcançou a fama durante a primeira fase de desenvolvimento do gênero musical rock’n’roll, sendo “Rock Around the Clock” o primeiro dos seus sucessos, e o mais duradouro. A música foi consagrada como o primeiro rock a tornar-se parte de uma trilha sonora cinematográfica pelo filme “Sementes da Violência” (Black Board Jungle, dir.: Richard Brooks – 1955), no qual também compõe a abertura. 205

Falfa desperdiça a sua noite em busca de John. É a bordo do automóvel que os casais dirigem- se à área desabitada aos arredores da cidade que figura como o lugar da possível intimidade sexual. Entende-se, assim, a intensidade da emoção sentida por Terry quando recebe as chaves do Impala de Steve149. Dentro daquele código cultural, todos subentendem a importância social do gesto. E Curt nada sabe a respeito da loura que despertou seu desejo, além do fato de dirigir um Thunderbird branco, o que é suficiente para localizá-la. Finalmente, o ponto de encontro dos jovens, para onde eles retornam diversas vezes ao longo da história, consiste em uma lanchonete do tipo drive-in, estabelecimento adaptado para aqueles que usufruíam de um automóvel.

Fotograma 81 - Conforme a noite avança, os jovens saem ao volante de seus carros (ou dos carros de seus pais) para circularem pelas ruas do centro da cidade e, nessa prática, encontrarem-se e interagirem (10min12seg.). Caso alguém estivesse em busca de uma pessoa, bastava circular com o automóvel que invariavelmente acabaria encontrando-a. Apesar de a película de Lucas ser estruturada como uma peça memorialística pré- contracultura, sublinhando todos os pontos positivos representativos dos anos 1950 e iniciais dos 1960 no imaginário coletivo, e de constituir-se como uma reverência àquele contexto social e cultural, especialmente no que se refere aos jovens, algumas tensões emergem em meio à felicidade dos personagens. Desse modo, as primeiras conversas travadas no drive-in demonstram a existência não tão tranquila daqueles jovens. Curt, que acabara de receber uma bolsa de estudos, tem dúvidas quanto ao seu futuro e da efetividade da viagem rumo a uma universidade na costa leste. A confissão de sua insegurança a Steve provoca a reprovação contundente do amigo. Na conversa:

Curt: - Olha, eu acho que não vou mais amanhã. Steve: - O quê? Do que você tá falando?

149 Segundo Terry, ao receber as chaves: “- Amarei e protegerei este carro até que a morte nos separe.” (08min05seg.). 206

Curt: - Achei melhor esperar um ano, ir pra City (universidade local) por um tempo. Steve: - Seu bobalhão! Curt: - Espere aí! Steve: - Depois de tudo o que passamos para sermos aceitos? Finalmente estamos saindo dessa cidade fracassada e agora você quer voltar pra sua cela, não é? (John chega em seu cupê) Steve: - Você quer terminar como o John? Você simplesmente não pode ter 17 anos pra sempre. Preciso colocar isso na sua cabeça. Curt: - Eu só preciso de um tempo. (...) Steve: - Estamos partindo pela manhã, entendeu? Vamos embora pela manhã.150

Ao longo da projeção, Curt continua a nutrir dúvidas sobre que caminho deve seguir. Steve, pelo contrário, não vê a hora de abandonar sua cidade natal. Para tanto, conversa com Laurie e propõe um relacionamento aberto. Pela sua perspectiva, a cidade de Modesto não pode oferecer-lhe o futuro que aguarda e ele está disposto a sacrificar o que têm ali em nome de seus objetivos. Apenas o risco da perda do afeto da namorada faz com que o rapaz relativize sua posição. O problema que se coloca para esses dois personagens parece caro a muitos dos jovens nos Estados Unidos no momento em que concluem o high school: permanecer em sua cidade natal, em companhia dos familiares e amigos, ou partir para um dos centros urbanos do país em busca de um futuro mais promissor em uma universidade renomada. Essa questão implica determinar o que seria um futuro promissor. Para Curt, parece um equívoco “sair de casa para procurar uma nova casa, deixar sua vida para encontrar uma nova vida, dizer adeus a amigos que você ama apenas para descobrir novos amigos.”151 No fim, é Curt quem acaba se aventurando, enquanto Steve decide que seu lugar está em Modesto, ao lado de Laurie, ao menos por algum tempo. A citação a John no diálogo anterior abre outro ponto sensível no enredo. Tanto o próprio mecânico quanto os amigos consideram que suas chances futuras não são boas. Quando Curt propõe que a turma vá à festa dos calouros na antiga escola, para “relembrar os velhos tempos”, John opõe-se e desabafa: “- Você pode ir lá e relembrar os velhos tempos! Eu não vou a porcaria de universidade chique nenhuma! Vou continuar exatamente aqui, me divertindo como sempre!”152. John não quer relembrar os velhos tempos porque reconhece que para ele não haverá novos tempos. Segundo os marcos do filme, para os jovens do início dos anos 1960, a formação universitária figura como uma etapa necessária em uma vida produtiva e gratificante. Talvez não seja assim pela perspectiva de Curt. Sua dúvida relativiza essa afirmação. De qualquer

150 O diálogo é travado entre 02min38seg e 03min21seg. 151 Fala dita em 01h07min02seg. 152 Comentário realizado em 09min13seg. 207

modo, o desenlace da trama concretiza o argumento. Ainda mais enfaticamente que o caso de John, nenhuma citação é feita sobre as possibilidades de Terry. Ao amigo atrapalhado cabe desaparecer em combate no Vietnã. Mesmo que não assegurasse um futuro promissor, ser estudante universitário teria resguardado o jovem da guerra uma vez que, pelas regras de recrutamento, estudantes universitários não eram convocados. Dois outros acontecimentos do enredo colaboram para a desconstrução de uma representação idílica da sociedade americana que antecede ao afluxo de transformações dos anos 1960. Durante a festa dos calouros na escola, quando Curt encontra-se com Prof. Wolfe, este é assediado por um grupo de meninas adolescentes das quais se desvencilha com dificuldade, deixando-as decepcionadas pela evasiva. Em seguida, enquanto o professor conversa com Curt e o incentiva a encarar a vida, uma das colegas do rapaz aproxima-se, chama o professor pelo diminutivo carinhoso “Bill” e inicia uma conversa íntima com ele, no escuro, sozinhos. A relação que extravasa o caráter docente fica evidenciada, gerando certo desconforto em Curt, que sorri discretamente e se retira. Apesar de o fato ser apenas citado pela narrativa, os desdobramentos éticos e morais implicam uma revisão dos costumes tolerados naquela sociedade no momento considerado pelo filme. Além dessa passagem, os arruaceiros integrantes da gangue dos Faraós servem como lembrança dos ruídos sociais identificados ao redor da juventude ao longo de toda a década de 1950. Se a afirmação política dos jovens dos 1960 era identificada com a turbulência daqueles anos, a delinquência juvenil apontada contra os jovens dos 1950 já os colocava em posição de destaque. Ademais, os Faraós aparentam ser latinos, constituindo-se a gangue etnicamente. Se no grupo de jovens brancos formado pelos amigos de Curt nem todos terão acesso a boas oportunidades, para os latinos resta a delinquência. Quanto aos negros, estes estão completamente ausentes do retrato formulado por Lucas. Não existem negros na festa dos calouros, nem por detrás dos inúmeros volantes dos automóveis guiados pelos jovens, tampouco confraternizando no Mels. 208

Fotograma 82 - Os Faraós servem para lembrar os espectadores da heterogeneidade da juventude do período (53min05seg). Aparentemente carentes de oportunidades, os arruaceiros e seu líder já não tão jovem encenam um caráter violento que, em realidade, não possuem. De qualquer forma, prevalece em “Loucuras de Verão” a idealização de um passado recente na história dos Estados Unidos no qual a harmonia social permitia uma vida aprazível, sem grandes questões nacionais que pudessem abalar a certeza no futuro grandioso do país. Nessa época bucólica, em uma cidade pequena apresentada como típica, os jovens e os policiais reconhecem-se pelos nomes, interpretando cada qual o papel que lhe cabe, de perseguidos e perseguidores; um rapaz atrapalhado e sua acompanhante recuperam um carro roubado após uma breve altercação com os assaltantes; John e Carol vandalizam um automóvel sem qualquer reação de suas jovens ocupantes, que apenas sorriem, e Curt sonha tornar-se assistente presidencial e apertar a mão do Presidente John Kennedy. Obviamente, o idílio localiza-se antes do assassinato do presidente, morte que figura como o primeiro sinal do fim da felicidade, dentro do constructo operado pelo filme. Após um capotamento automobilístico em alta velocidade que, improvavelmente, terminou por não ferir ninguém, Steve e Laurie fazem as pazes iluminados pelo sol nascente, a primeira vez em que o astro é visto na película. Quanto aos jovens espectadores do racha, partem de volta às suas vidas, prontos para circularem pelas ruas do centro na noite seguinte. Na tomada final, a câmera enquadra o avião de Curt levando o protagonista rumo ao futuro, voando em um céu de azul impecável, isento de nuvens que lhe pudessem obstaculizar. Em contraste com aquilo que poderia parecer uma conclusão puramente feliz para uma narrativa que se assemelha a um conto de otimismo juvenil, as fotos em preto e branco dos quatro amigos projetadas no céu esclarecem que o futuro não seria igualmente complacente com todos. Para a audiência extasiada pela rememoração, “Loucuras de Verão” 209

conclui-se colocando o seguinte questionamento: em que momento e de que modo pudemos perder algo que nos era tão precioso?

3.4.2 “Os Embalos de Sábado à Noite” (1977) O filme é dirigido por John Badham, nascido na Inglaterra em 1939 e radicado nos Estados Unidos, terra natal de seu pai, um general do exército. Após o fim da Segunda Guerra, o pai de Badham retorna ao país, estabelecendo-se com a família no Alabama, quando John tinha apenas dois anos de idade. Na juventude, teve sua educação na Universidade de Yale. Badham trabalhou em produções televisivas por anos até alcançar a fama com “Os Embalos de Sábado à Noite”. Posteriormente, dirige “Jogos de Guerra” (War Games – 1983), película bem recebida cujo enredo dialoga com as tensões da Guerra Fria e os perigos de um conflito nuclear. Na narrativa, David Lightman (Matthew Broderick) é um jovem estudante do secundário que acidentalmente invade o sistema de defesa dos Estados Unidos, correndo o risco de iniciar a Terceira Guerra Mundial. O filme de Badham foi um dos primeiros a abordar a subcultura dos hackers. Em “Os Embalos de Sábado à Noite”, Badham narra a vida de Anthony “Tony” Manero (John Travolta), um jovem de 19 anos de idade morador do bairro Bay Ridge, no Brooklyn. De família da classe trabalhadora e origem italiana, Tony vive na casa de seus pais e trabalha como atendente em uma pequena loja de tintas do bairro, desde que concluiu o high school. Sua realidade enfadonha é transformada todo sábado à noite, quando Tony torna-se o rei da pista de dança na discoteca 2001 Odyssey. No lugar, Tony se destaca dentre os quatro amigos de infância: Joey (Joseph Cali), Gus (Bruce Ornstein), Double J. (Paul Pape) e Bobby C. (Barry Miller). O grupo conta com a presença de Annette (Donna Pescow), jovem do bairro apaixonada por Tony e que não mede esforços para conseguir um pouco da atenção do rapaz. No fim das noitadas, os amigos costumam se dirigir à ponte Verrazano-Narrows, que liga Long Island a Staten Island. Na ponte, os jovens se dedicam à perigosa atividade de se equilibrar nas estruturas da construção. Simbolicamente, a ligação física possibilitada pela ponte entre a Long Island da classe operária e a suburbana Staten Island refere-se ao desejo de Tony de alcançar uma vida melhor. Em uma noite, Tony descobre que a discoteca está organizando um concurso de dança e aceita Annette como sua parceira, apesar de não possuir nenhuma intenção romântica com a moça. No entanto, a felicidade da jovem dura pouco, pois Tony vê Stephanie Mangano 210

(Karen Lynn Gorney) evoluindo na pista de dança. Tony, que nunca a tinha visto, fica surpreso pela qualidade técnica da jovem e encantado por sua presença, de modo que desiste de formar dupla com Annette. Stephanie inicialmente recusa o pedido de Tony para formarem um casal para a competição, demonstrando não estar sujeita à fama tampouco ao charme do dançarino. Acaba por aceitar o parceiro, porém esclarecendo não possuir qualquer outro interesse em sua pessoa. Em casa, Tony precisa lidar com um ambiente hostil no qual não é respeitado ou estimulado. Sua mãe, profundamente católica, trata seu filho mais velho, Frank Jr. (Martin Shakar), como um homem santo por ter se tornado padre. Seu pai, trabalhador da construção civil desempregado, vive do auxílio-desemprego governamental e ainda pretende manter a autoridade patriarcal na família, ao que Tony constantemente se opõe. A casa ainda é ocupada pela irmã mais jovem de Tony e por sua avó italiana, que não compreende o idioma inglês, fato que a distancia do neto. Apesar de nutrir ciúmes do irmão pela diferença de tratamento oferecido a ambos pela mãe, Tony mantém uma sincera relação de amizade e cumplicidade com o padre, o único familiar com quem possui verdadeiros laços e que sabe poder compreendê-lo. Quando Frank Jr. decide abandonar o sacerdócio, a crise se instaura na família. Não obstante a admiração que sente pelo irmão, Tony se sente justiçado, já que não é mais o único alvo das reprovações dos familiares. Dias depois, Gus sai da mercearia e segue caminhando em direção à sua casa quando é violentamente atacado por membros de uma gangue. Sendo hospitalizado, Gus acusa a gangue dos Barracudas como os culpados pela agressão e ofensa. Os rapazes, então, planejam se vingar dos latinos, grupo étnico do qual fazem parte os Barracudas. Enquanto isso, Bobby C. descobre a gravidez da namorada católica e entra em desespero. Sem saber como solucionar a questão, procura Frank Jr. e pergunta se o Papa poderia lhe oferecer dispensa para realizar um aborto sem contrariar os preceitos da Igreja. Diante da negativa de Frank Jr., Bobby se deprime ainda mais. Paralelamente, Bobby empresta o carro a Tony, que pretende ajudar na mudança de Stephanie para Manhattan. Desejando conversar com o amigo, Bobby insistentemente pede que Tony lhe faça um telefonema à noite. Mesmo tendo prometido, Manero acaba não o procurando. Além disso, por sair do trabalho sem permissão para ajudar Stephanie, Tony é despedido. E apesar de ser readmitido quando retorna à loja para acertar suas contas, a visão de um futuro como balconista o deprime. 211

Numa noite seguinte, os amigos saem para se vingar dos Barracudas. Para tanto, invadem o lugar de encontro da gangue com o carro de Bobby e iniciam uma briga generalizada com os membros que se encontravam no lugar. Bobby C., no entanto, se assusta e foge, deixando os amigos na briga. Quando o grupo visita Gus no hospital para contar sobre o feito, este informa que talvez tenha se enganado e acusado a gangue errada, o que deixa os amigos enfurecidos. Chega a noite da competição de dança. Tony e Stephanie ganham o primeiro prêmio, porém, o protagonista considera que a dupla que ficou em segundo lugar, um casal porto- riquenho, dançou melhor e apenas não recebeu o prêmio que merecia devido ao racismo dos juízes. Assim, Tony decide entregar o primeiro prêmio nas mãos do casal oponente, parabenizando-os. Em seguida, Manero deixa a discoteca em companhia de Stephanie, que discorda de sua atitude. A jovem entra no carro de Bobby diante da insistência de Tony que, para a surpresa dela, tenta induzi-la ao sexo, usando progressivamente de violência conforme ela nega. O acontecimento transforma-se em uma tentativa de estupro, com Stephanie desvencilhando-se e indo embora. Tony está transtornado com os acontecimentos da noite quando seus amigos chegam em companhia de Annette, que se encontra visivelmente drogada. Joey afirma que a moça aceitou se relacionar sexualmente com todos os rapazes e, apesar da tentativa de Tony de levá-la para casa, a jovem decide seguir no carro com eles. Assim, enquanto Bobby dirige, Joey e Double J. relacionam-se com Annette no banco traseiro. Percebendo o descaso de Tony, a moça começa a resistir aos rapazes que continuam o ato contra sua vontade, tornando- se o sexo inicialmente consensual em um estupro. Bobby C. salta do carro sobre a Ponte Verrazano-Narrows e começa a escalar sua estrutura. Ao perceberem o descontrole do rapaz, os amigos tentam convencê-lo a descer. Nesse momento, toda a sua angústia é extravasada. Sentindo-se sozinho diante da pressão que sofre para se casar, por parte da família da namorada que engravidou, Bobby reclama com Tony por não ter lhe oferecido apoio, então escorrega e cai da ponte para uma morte certa. Profundamente transtornado com os infortúnios da noite, com o comportamento de seus amigos, sua família e com a vida sem futuro que leva,Tony viaja sozinho a bordo de vagões de metrô vazios. O dia amanhece e o rapaz decide procurar Stephanie em seu novo endereço. Encontrando a jovem, se desculpa pelo comportamento reprovável e confessa que planeja deixar o Brooklyn e tentar uma nova vida em Manhattan. Impressionada com a transformação de Manero, Stephanie firma uma relação de amizade com ele. Conforme o casal se abraça em silêncio, os créditos finais concluem o filme. 212

Do mesmo modo que os títulos anteriormente examinados, a cena inicial de “Os Embalos de Sábado à Noite” é bastante representativa dos fundamentos sobre os quais se assenta o enredo da produção, veiculando a linha geral da trama. A primeira tomada consiste em uma panorâmica, na qual a câmera focaliza a Ponte do Brooklyn, tendo Manhattan ao fundo. O centro financeiro e empresarial da cidade se destaca no enquadramento, com as antigas torres do World Trade Center e o Empire State Building aparecendo por entre os cabos de amarração da ponte. A posição de captação de imagem da tomada consiste no ângulo de visão do Brooklyn, como se Manhattan fosse observada de fora. A câmera vai se afastando, abrindo o enquadramento e deixando Manhattan cada vez mais distante. Procede- se, então, um corte, levando a uma panorâmica provavelmente captada a bordo de um helicóptero. Essa panorâmica aérea permite o enquadramento de todo o Brooklyn, com Manhattan ao fundo, mais distante que na tomada inicial. Surge, em seguida, a Ponte Verrazano-Narrows, em primeiro plano, mantendo os dois distritos ao fundo. Nesse momento, a câmera aproxima-se do Brooklyn, como em um mergulho, ocorrendo um corte para os trilhos elevados do metrô no momento em que uma composição se aproxima e passa junto à câmera.

Fotograma 83 - A Ponte do Brooklyn, com o centro financeiro da cidade de Nova Iorque ao fundo (00min17seg.). Manhattan surge já nos primeiros instantes da projeção como a possibilidade de um futuro melhor e em contraposição ao Brooklyn. Até este ponto, não existe sonorização acompanhando as imagens. Adicionam-se, então, os ruídos característicos do metrô em movimento, para, segundos depois, iniciar-se a 213

reprodução de “Staying Alive”153, do grupo musical Bee Gees. O enquadramento, a seguir, mantém-se sobre um sapato masculino em uma vitrine. Pernas masculinas aproximam-se e o homem levanta um dos pés como se imaginasse o sapato calçado. O próximo corte traz a imagem dos mesmos pés caminhando em uma calçada, ao ritmo da música citada. Sobre essa imagem surge o título do filme, reproduzindo o letreiro iluminado em vermelho de uma discoteca. A câmera vai subindo até enquadrar o rosto de Tony Manero, revelando o dono das pernas. A cena inicial prossegue com o caminhar rítmico do protagonista. Apesar de Tony estar a trabalho (havia ido à outra loja de tintas conseguir um produto para uma cliente), aproveita a oportunidade para ver as vitrines, paquerar e comer pizza. A sujeira abundante nas calçadas, revelando a pobreza e o baixo desenvolvimento social de seu bairro, não parece ser percebida pelo rapaz, que caminha tranquilamente, distraído por aquelas questões triviais. Variadas tomadas em contra-plongée captam Tony dos pés à cabeça, multiplicando sua proporção na tela e enaltecendo-o.

Fotograma 84 - Os pés e pernas do protagonista sob o título do filme (01min08seg.). A metonímia destaca a principal característica e o motivo da vida de Tony: dançar. Através dessa sequência de imagens, dos enquadramentos, ângulos, movimentos de câmera e técnicas de montagem, a cena tanto localizou diegeticamente a narrativa quanto apresentou a realidade de vida do protagonista. A relação de proximidade espacial e distanciamento social/cultural entre o Brooklyn e Manhattan é evidenciada pelo movimento

153 GIBB, Barry; GIBB, Robin; GIBB, Maurice. Staying Alive. Intérprete: Bee Gees. In: Single. ____: RSO, 1977. 214

de progressivo afastamento, por um lado, e pela existência da ponte, por outro. O caminhar de Tony, por seu turno, sublinha os temas que ocupam sua mente enquanto destaca a característica que dá sentido à sua existência, o fato de ser o principal dançarino do bairro. Daí o close-up nos pés e pernas do protagonista. A questão acima mencionada, do uso da ponte como elemento simbólico de ligação entre realidades distintas, é intensamente explorada pela trama e mostra-se presente já na tomada de abertura do filme. A narrativa é pontuada pela presença das pontes citadas, que aparecem em inúmeras cenas, seja ao fundo, compondo a imagem, seja como cenário para o desenvolvimento da ação. A Verrazano-Narrows chega a merecer o protagonismo em uma das cenas, quando as medidas monumentais e a história da construção são narradas por Tony a Stephanie. Essa usual utilização das pontes como expressão metafórica da ligação é extrapolada pela película. Ao mesmo tempo em que as estruturas podem representar a ligação e, portanto, a possibilidade de uma mudança da realidade de vida do casal protagonista, a própria existência das pontes implica uma relação de não contiguidade, a distância que levou à construção. Entenda-se o distanciamento não apenas espacial, mas principalmente social e cultural. Apesar de as pontes terem estado lá por muito tempo, e de Tony conhecê-las muito bem, ele apenas as atravessa durante a narrativa após Stephanie o levar a fazer isso, indiretamente. Até então, Tony estava satisfeito com a vida que levava em Bay Ridge, apesar do trabalho sem futuro e da desarmonia familiar. O outro lado da ponte parecia inalcançável, social e culturalmente, ao jovem da classe trabalhadora.

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Fotograma 85 - Tony e Stephanie observam a Ponte Verrazano-Narrows (01h24min14seg.). Símbolo da possibilidade de ascensão social e demarcação do distanciamento. Para transcender a realidade coercitiva na qual vive, Tony dedica-se à dança. Na 2001 Odyssey, o rapaz sente-se valorizado e respeitado. Destoando de todas as outras instâncias de seu cotidiano, no momento em que Tony assume a posição de dançarino, obtém motivação e significado para a vida, apesar de saber que sua existência não pode se encerrar na pista de dança. Ser o “rei das noites de sábado” na discoteca que frequenta representa atingir algo além das baixas expectativas que todos nutrem a seu respeito. Por isso, Tony inicia a narrativa vivendo de maneira imediatista. Quando, após ter negado um pedido de adiantamento de salário sob a alegação de que recebendo o pagamento na segunda-feira pouparia e pensaria no futuro, Tony exclama: “- Foda-se o futuro!”154. Afinal, por que deveria ele se importar com um futuro que lhe oferece tão pouco? Apesar de não problematizar a questão, Tony tem algum grau de consciência de que partindo da posição social que ocupa, e diante do cenário econômico desfavorável dos Estados Unidos do período, suas possibilidades de ascensão são bastante reduzidas. Enfatiza isso a expressão de desânimo na face do protagonista, na cena em que os amigos discutem o fato de que jamais poderão adquirir uma Mercedes ou um Cadillac. A desesperança do protagonista é reforçada diante de sua realidade familiar. O pai, após trabalhar por 25 anos na construção civil, não consegue mais emprego, tendo de se sujeitar a receber o seguro-desemprego, fato que está colocando em xeque sua autoridade enquanto chefe de família. Tony, como o próprio pai esclarece, trabalha para ajudar a sustentar a casa, enquanto a mãe se esforça para manter o padrão de consumo, cogitando começar a trabalhar fora. Assim, a dignidade familiar concentra-se na escolha eclesiástica de Frank Jr. Para a família católica que viu suas restritas possibilidades financeiras serem ainda mais reduzidas diante da crise econômica, o filho padre resta como o único motivo de alegria e algum status dentro da comunidade italiana. Para Tony, que se esforça para atingir o reconhecimento dos pais, a supervalorização do irmão acentua a desconsideração que sente. Por isso, quando Frank Jr. retorna a casa após decidir abandonar a vida clerical, Tony considera que caso o irmão não seja tão bom, talvez ele próprio não seja tão ruim. O ponto de virada da vida de Tony localiza-se no encontro fortuito que tem com Stephanie, na danceteria. Se, no início, sua aproximação com a jovem restringe-se a interesses sobretudo sexuais, o convívio com alguém diferente de seu restrito círculo social irá levá-lo a

154 Aos 05min19seg. 216

questionar o que pode esperar para seu futuro. Assim como Tony, Stephanie é natural de Bay Ridge, no entanto, tem objetivos bem mais ousados que o rapaz, sendo mais determinada. O fato de trabalhar em Manhattan expandiu os horizontes da jovem, de modo que ela tem planos muito mais amplos que a vida em sua vizinhança pode lhe oferecer. Dessa maneira, seu primeiro contato com Tony a faz avaliá-lo como um jovem sem qualquer expectativa, adaptado ao ambiente que conhece e disposto a lá permanecer. A reprovação que faz aos modos e à falta de cultura de Tony, além das constantes comparações entre sua vida e a vida do rapaz, demarcam as diferenças de perspectivas. Tony, no entanto, é menos simplório do que Stephanie a princípio pensara. E conforme a interação dos dois vai se intensificando, a moça reconhece a personalidade do rapaz. No entanto, na primeira conversa que travam, quando Tony a convida para um café, o distanciamento existente entre os dois e os esforços de Stephanie para se aproximar dos padrões sociais da alta classe de Manhattan, inclusive negando suas origens, se desvela: Stephanie: - Acho que há um imenso abismo entre nós e não apenas cronológico: emocional, cultural e físico, e a tendência desse abismo é crescer sem parar. Tony: - O que é isso? É só um café, não sexo. Stephanie: - Só um café? (...) Stephanie: - No lugar onde trabalho as pessoas são muito diferentes das de Bay Ridge. Tony: - São esnobes e não pobres. Stephanie: - O quê? Tony: - Esqueça. Bay Ridge não é a pior parte do Brooklyn. Não é um buraco. Stephanie: - Bem, não é Manhattan. No outro lado do rio, tudo é completamente diferente. É lindo! As pessoas são lindas, os escritórios também, as secretárias fazem compras na Bonwit Taylor. O horário de almoço também é lindo. Dependendo da sua função, você tem duas ou três horas! Viu “Romeu e Julieta”, do Zeffirelli? Tony: - Romeu e Julieta? Sim, eu li na escola. É Shakespeare, certo? Stephanie: - Não, é Zeffirelli, o diretor do filme. É um filme! Tony: - Nunca entendi bem “Romeu e Julieta”. Romeu tomou o veneno rápido demais. Ele poderia ter esperado mais. Stephanie: - Naquela época, era assim que tomavam veneno! Tony: - Vai comer? Eis o cardápio. Stephanie: - Quero apenas chá com limão. Aderi ao chá recentemente. É muito mais chique. Tony: - Ah é? Stephanie: - Todas as minhas colegas executivas bebem isso. Como vê, eu também. Tony: - Eu gosto de café. Eu bebo café. Stephanie: - Sim. Estou há pouco tempo nessa agência, mas já exerço funções de relações-públicas e, quando necessário, substituo os agentes. Esta semana almocei com Eric Clapton no Côte Basque e com Cat Stevens no Le Madrigal. Tony: - Demais! Stephanie: - É. Conhece esses restaurantes? Tony: Não conheço esses em particular, mas sei como são. Stephanie: - Conhece os artistas, não? Tony: - Não. Na verdade, não os conheço. Stephanie: - Por que disse “demais”? Tony: - Foi demais, não foi? Stephanie: - Bem, foi. (...) Sabe quem apareceu lá no escritório? Laurence Olivier. Tony: - Quem é esse? 217

Stephanie: - Não sabe quem é Laurence Olivier? Ele é o maior astro do mundo! Você sabe quem é! É o ator inglês dos comerciais da Polaroid. Tony: - Ah, aquele? Ele é bom, ele é bom. Stephanie: - Ele foi até lá e fiz algumas coisas pra ele e ele disse a todos que há anos não via uma pessoa tão inteligente e animada por lá. Tony: - Ele lhe daria um desconto numa câmera? Stephanie: - Não perguntei sobre câmeras! Tony: - Já tem uma, não é, espertinha? Stephanie: - Gostou da minha conversa? Tony: - Claro! Stephanie: - Não aguenta conhecer uma vida tão diferente da sua. Tony: - Melhor, não é? Stephanie: - Sim, é melhor! Estou cada vez mais longe de Bay Ridge. Vou arranjar um apartamento em Manhattan. Estou mudando como pessoa, e estou crescendo, e ninguém sabe o quanto estou crescendo. Tony: - Faça uma dieta. Stephanie: - Tudo bem. Gosto de você. Podemos dançar juntos, mas é só. Não dê em cima de mim. Tony: - Por que não? Stephanie: - Não curto mais o seu tipo: é jovem demais, não tem classe e só tem merda na cabeça! Tony: - É fácil de tirar a merda da cabeça. Basta apertar e espremer bastante com um espremedor de batatas e a merda sai. Quer saber o que faço? Stephanie: - Não é necessário. Tony: - Vou lhe contar: trabalho numa loja de tintas e recebi um aumento. Stephanie: - Loja de tintas, certo? E mora com seus pais, anda com seus amigos e vai à 2001aos sábados, certo? Tony: - Certo. Stephanie: - Você é comum. É um nada, a caminho de lugar nenhum. Tony: - E você? Está a caminho das estrelas? Stephanie: - Talvez. Estou fazendo um curso à noite e farei mais dois. Passou para alguma faculdade? Tony: - Não. Stephanie: - Já pensou em estudar em uma universidade? Tony: - Não. E você? Stephanie: - Na época, não... Tony: - Então me deixe em paz! Stephanie: - Por que nunca quis fazer faculdade? Me diz. Tony: - Jesus cristo! Não quis!155

O abismo cronológico a que se refere Stephanie como primeiro elemento de diferenciação entre ela e Tony não compreende mais que uns poucos meses. No entanto, é sugestivo da noção de superioridade que a dançarina experiencia. Apesar de natural e ainda moradora de Bay Ridge, Stephanie elegeu Manhattan como seu objetivo e diferenciar-se dos habitantes de sua vizinhança torna-se necessário como estratégia de afirmação dessa diferenciação. A empáfia e a arrogância da dançarina ficam expressas em todos os comentários que profere, nos gestos e atitudes teatralizados e na falta de individualidade que demonstra ao copiar o que julga ser o estilo do distrito vizinho e bem mais rico. No diálogo acima, a presunção e o pedantismo são consequências da tentativa de Stephanie de defender os planos de vida que nutre da realidade desfavorável da qual procura

155 O diálogo inicia-se em 41min08seg. e termina em 46min36seg. 218

escapar. Assim, apesar de se apresentar a Tony através de uma pretensa superioridade, a jovem permite ao rapaz entrever sua insinceridade por meio dos comentários imprecisos que realiza, como “Romeu e Julieta” ser um filme, ou a supervalorização que dá ao comentário feito sobre seu trabalho por um ator de cinema. Tony, em sua simplicidade e falta de perspectivas, é mais honesto e autêntico que Stephanie, ao menos quanto a assumir sua origem social e cultural. Em um diálogo, afirma à moça: “- Nunca disse isso antes, mas você fala demais. Só não sei o quanto disso é bobeira e o quanto é bobagem.” Ao que Stephanie retruca: “- Quando você descobrir, me avisa.”156. A personagem utilizada por Stephanie para interagir com o dançarino é demolida quando Tony a ajuda na mudança para Manhattan. Chegando ao apartamento, um homem de meia-idade encontra-se no local e demonstra ter intimidade com a jovem. Stephanie acreditava que ele não estaria lá, portanto, não esperava que Tony o conhecesse. No breve diálogo travado, o homem a corrige a todo o instante, reprovando seu vocabulário e a leitura que fez, em suma, seus esforços para se adequar culturalmente ao ambiente no qual anseia ingressar. Stephanie não consegue conter o constrangimento diante de Tony, que percebe as incongruências entre sua narrativa e a realidade objetiva. Momentos depois, a jovem chora ao ser questionada por Tony, confessando ter se tornado amante daquele homem por ele tê-la ajudado na adaptação ao trabalho e ao círculo social sofisticado de Manhattan. Imageticamente, os ruídos existentes na tentativa de ascensão social da jovem são expressos pela forma através da qual ela faz sua mudança. Em uma tomada aérea, o espectador vê o carro velho de Bobby C. cruzando a Ponte do Brooklyn, tendo dois colchões amarrados em seu teto, rumo ao centro financeiro da grande metrópole. Ao estacionar em frente ao novo endereço, a falta de manutenção do veículo destoa do aspecto do ambiente.

156 Dialogo em 57min07seg. 219

Fotogramas 86 (01h19min24seg.) e 87 (01h19min38seg.) - O carro velho de Bobby C. é o veículo utilizado para a mudança dos poucos objetos de Stephanie. A tomada aérea enquadra o automóvel guiado por Tony cruzando a Ponte do Brooklyn para, em seguida, ir abrindo e enquadrando o centro da metrópole. Nesse movimento, a cidade agiganta-se conforme o carro vai se tornando cada vez mais diminuto, em confluência à fragilidade do jovem casal diante da vida. Apesar das distinções superficiais, especialmente da determinação de Stephanie que é, a princípio, ausente ou mal-direcionada em Tony, o casal representa a busca por ascensão da juventude trabalhadora no contexto econômico dos Estados Unidos de meados da década em questão. Diante da falta de capital educacional, social, cultural, financeiro e político, Stephanie e Tony precisam abraçar a oportunidade que surgir, mesmo que isso implique, para a jovem, tornar-se amante de um homem mais velho e em vias de separação matrimonial. O sobrenome do homem, Langhart, ainda certifica sua etnia branca, o que, nos marcos do filme, esclarece seu pertencimento à elite nova-iorquina, ao menos culturalmente. Quanto a Tony, a proximidade com a moça funciona como o gatilho que o levará a perceber a completa falta de expectativas que encerra sua vida. Seus amigos, apesar de oferecerem amizade sincera, são racistas, homofóbicos, misóginos e vivem com ainda menor comprometimento que Tony. Nada podem contribuir para o seu engrandecimento pessoal. Sua família, apesar de constituir um seio familiar estável, não lhe proporciona o estímulo necessário para seu desenvolvimento (chegam a culpá-lo por Frank Jr. ter desistido da vida eclesiástica). Por fim, quando seu patrão o informa que ele tem futuro na loja de tintas, apontando para os funcionários mais velhos e enaltecendo os inúmeros anos de trabalho naquele pequeno estabelecimento, Tony percebe que precisa tomar o rumo de sua vida em mãos. Assim, se Stephanie pode lhe servir como exemplo, como uma possibilidade viável de ascensão social, Tony, por sua vez, pode lembrá-la de suas origens e do valor de sua individualidade, colaborando para a desconstrução da visão poética que a jovem nutre por Manhattan. 220

Finalmente, diante da morte de Bobby C. por um motivo banal, acontecimento que assume todo o peso emblemático da falta de perspectivas dos jovens de Bay Ridge, Tony vagueia pela noite. Sentado no metrô, sozinho, parece absorto em suas próprias reflexões. Então, a montagem sobrepõe seu rosto ao sol nascente na vista de Manhattan, que havia pontuado a narrativa. O deslocamento até a ilha a bordo do metrô implica seu surgimento do subterrâneo. Como o dia que nasce, e aludindo à Fênix, ave mitológica que renasce através do fogo157, um Tony renascido procura por Stephanie, e por sua nova vida.158

Fotograma 88 - Tony sobreposto ao sol nascente na paisagem urbana de Manhattan (01h52min06seg.). Do mesmo modo que o dia, Tony renasce para uma nova vida.

3.4.3 A Afluência Nostálgica e a Crise Presente As produções cinematográficas eleitas para o exame das representações dos desenvolvimentos econômicos dos Estados Unidos, “Loucuras de Verão” e “Os Embalos de Sábado à Noite”, escolhem vieses distintos para a abordagem do tema, porém uma das bases dos enredos aproxima-se de maneira curiosa. Tanto o filme de Lucas quanto o de Badham privilegiam a juventude na consideração da temática, voltando-se aos desdobramentos da realidade econômica e social na vida dos jovens.

157 A alusão cinematográfica à ave mitológica foi anteriormente citada no exame do filme “Vivendo na Corda Bamba” (Blue Collar, dir.: Paul Schrader – 1978). 158 Em Câmera Politica, Kellner e Ryan citam a tomada referida, porém a análise do filme feita no livro diverge em algumas especificidades do exame realizado por este autor. Cf. RYAN, Michael; KELLNER, Douglas. “Camera Politica – the politics and ideology of contemporary Hollywood film”. Bloomington: Indiana University Press, 1988. 221

Importante esclarecer que “Loucuras de Verão” consiste em um filme de reconstituição histórica, voltando-se a um passado recente, porém que simbolizava um período já bastante divergente da conjuntura atravessada pelos Estados Unidos no ano de produção, 1973. A trama, que retrata um grupo de amigos lidando com suas incertezas e planos para o futuro durante a última noite de verão antes da separação da turma, apenas se torna inteligível sob a perspectiva da rememoração. Caso o mesmo enredo fosse produzido no ano de 1962, quando se desenrola a história, o tom laudatório à afluência econômica da classe média careceria de embasamento. Já em 1973, momento no qual os efeitos da crise econômica estavam colocados na ordem do dia e quando os variados desdobramentos do cenário político fragilizavam alguns dos fundamentos morais da nação, retornar ao período de harmonia e contentamento (ainda que fantasioso) se justificava. “Os Embalos de Sábado à Noite”, por outro lado, problematiza a falta de perspectivas e as limitações sociais da juventude integrante de uma camada bem delimitada dentro do corpo social dos Estados Unidos: os pobres urbanos integrantes de minorias étnicas. Essa juventude sente mais diretamente a baixa qualidade da formação educacional, as barreiras à educação de ensino superior e as desvantagens no mercado de trabalho. No contexto de crise econômica, as possibilidades dos jovens do Brooklyn tornavam- se ainda mais escassas. Assim, após concluir o high school, Tony só é capaz de conseguir um trabalho sem futuro como balconista de uma loja de tintas. E apesar da arrogância, Stephanie é secretária no que parece ser uma agência de publicidade. O diferencial assenta-se no fato de a agência ser estabelecida em Manhattan, e não na função que desempenha. Paralelamente, e apesar de parecer um entretenimento leve, voltado para a rememoração, “Loucuras de Verão” traz alguns pontos sensíveis que relativizam o cenário geral de felicidade construído. Nem todos os jovens irão à universidade. John carece de expectativas e ressente-se por saber que suas melhores chances residem em permanecer no lugar onde sempre esteve. Quanto à Terry, sua falta de perspicácia para o mundo social e do trabalho parece direcioná-lo à morte no Vietnã. Apenas Curt e Steve contam com reais possibilidades de viverem o sonho americano. Sonho que, no Brooklyn, apenas é buscado por Stephanie. O entusiasmo de Tony ao receber um aumento é recebido negativamente tanto pelo patrão quanto por seu pai. Para ambos, não caberia ao rapaz o sentimento de satisfação por um acréscimo tão pequeno no contracheque. Sua euforia chega a levar o patrão a elevar o aumento dos originais U$2,50 para U$4,00, na tentativa de tornar o valor equivalente à alegria 222

do funcionário. Seu pai, desempregado e dependente do auxílio do seguro-desemprego, reprova ironicamente o diminuto acréscimo. Surpreso e decepcionado com a reprovação do que acredita ser uma boa notícia, Tony esclarece ser relevante o reconhecimento pelo seu trabalho em vez do valor recebido. Fora da pista de dança, aquela havia sido a única vez em que o jovem tinha se sentido congratulado. Desse modo, vai se tornando cada vez mais claro para Tony quão pouco cabe a ele esperar da família e do trabalho, da realidade cotidiana que compõe sua vida. O desfecho do filme, com o dançarino reconhecendo a validade dos esforços de Stephanie, é apresentado pela trama como inevitável. De qualquer maneira, mesmo Stephanie não tem certeza quanto à efetividade de suas escolhas. Sua determinação em se afastar das inúmeras carências de Bay Ridge é a motivação que a impulsiona a buscar algo melhor. Apesar de, na conclusão da narrativa, Tony pedir a ajuda da moça para encontrar um novo caminho, Stephanie não está em posição privilegiada para ajudá-lo. O casal deverá contar com o apoio um do outro nas trajetórias que escolherem. Quanto ao enredo de Lucas, sua relação com o contexto socioeconômico de 1973 se dá através da ausência e da negação. É pela demonstração do período de afluência anterior que a recessão econômica presente é constatada. O luxo dos automóveis e a luminosidade do drive-in sublinham o momento no qual a beleza não figurava como acessória, mas componente indispensável da vida cotidiana. Em oposição ao Impala reluzente de Steve, o decaído veículo de Bobby C., também um Impala e único meio de transporte do grupo, não deixa dúvidas quanto ao abismo social que separa as duas realidades.

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4 OS EUA ENQUANTO ATOR GLOBAL

4.1 A GUERRA FRIA As representações da União Soviética e do comunismo estiveram presentes no cinema de Hollywood desde os primeiros anos de implementação do regime de Moscou. Mesmo antes de o modelo político tornar-se temática central de filmes, as citações às organizações que se aproximavam ideologicamente desse modo de produção faziam-se presentes nas produções de cinema dos Estados Unidos. É célebre, por exemplo, a cena de “Tempos Modernos” (Modern Times, dir.: Charlie Chaplin – 1936) onde Carlitos é preso. Quando o ingênuo vagabundo apanha uma bandeirola de sinalização vermelha que caíra da traseira de um caminhão, e inadvertidamente adentra em uma manifestação de trabalhadores, a polícia o considera um agitador comunista. Seu período de presidiário só termina após frustrar, por acaso, uma tentativa de fuga. Durante a Segunda Guerra Mundial, a aproximação diplomática realizada entre os Estados Unidos e a União Soviética, naquele período integrantes do mesmo bloco de países beligerantes, ocasionou a revisão do modo através do qual os estúdios hollywoodianos caracterizavam a nação comunista. “Missão em Moscou” (Mission To Moscow, dir.: Michael Curtiz – 1943), “Estrela do Norte” (The North Star, dir.: Lewis Milestone – 1943), “Canção da Rússia” (Song of Russia, dir.: Gregory Ratoff – 1944), e “Quando a Neve Tornar a Cair” (Days of Glory, dir.: Jacques Tourneur – 1944) são exemplos de enredos que buscaram positivizar a imagem da União Soviética. Além desses, os documentários Our Russian Front (dir.: Lewis Milestone e Joris Ivens – 1942) e “A Batalha da Rússia” (Battle of Russia, dir.: Frank Capra – 1943), um dos capítulos da série “Por que lutamos” (Why We Fight), igualmente pretendiam apresentar as qualidades do povo russo. Poucos anos depois, durante as investigações do macarthismo, as três primeiras películas citadas seriam apontadas como exemplos dos alegados filmes de propaganda pró-soviética realizados por Hollywood. O estabelecimento da geopolítica da Guerra Fria significou uma nova guinada nas perspectivas interpretativas de Hollywood. No entanto, como essa realidade política internacional estendeu-se por décadas, acarretando transformações nas relações entre EUA e URSS, o posicionamento da indústria do cinema refletiu as mudanças ocorridas. Neste novo contexto, inúmeros títulos de retórica anticomunista foram lançados pelos estúdios da Califórnia, especialmente a partir do final da década de 1940 e durante toda a década seguinte. Além dos filmes de primeira linha, como “Traidor” (Conspirator, dir.: Victor Saville – 1949), “Nuvens da Tempestade” (The Woman on Pier 13 ou I Married a Comunist, dir.: Robert 224

Stevenson – 1949) e “Fui Comunista Para o FBI” (I Was a Comunist for the FBI, dir.: Gordon Douglas – 1951), muitos foram os filmes “B” que se basearam em roteiros que objetivavam representar negativamente o comunismo, singularmente o perigo representado para o modo de vida e os valores americanos. As consequências mortais de uma guerra nuclear, e os efeitos nefastos do uso da radiação para o meio ambiente e os seres humanos, igualmente foram temáticas recorrentes no período. Ao longo dos anos 1960, o processo de arrefecimento das animosidades foi acompanhado das transformações socioculturais em curso nos Estados Unidos. Desse modo, as representações cinematográficas operadas voltaram-se a questões de maior profundidade, debatendo as consequências da oposição entre as duas nações, ao invés de aterem-se à pura retórica anticomunista ou à exploração espetacular dos efeitos de uma hipotética guerra nuclear. Desse período, destacam-se “Sob o Domínio do Mal” (The Manchurian Candidate, dir.: John Frankenheimer – 1962), “Dr. Fantástico” (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love The Bomb, dir.: Stanley Kubrick – 1964), “Limite de Segurança” (Fail Safe, dir.: Sidney Lumet – 1964), “Cortina Rasgada” (Torn Curtain, dir.: Alfred Hitchcock – 1966), “Os Russos Estão Chegando! Os Russos Estão Chegando!” (The Russians Are Coming! The Russians Are Coming!, dir.: Norman Jewison – 1966) e “Topázio” (Topaz, dir.: Alfred Hitchcock – 1969). Na década de 1970, as consequências psicológicas da derrota no Vietnã, a aproximação diplomática com a China, a détente com a União Soviética, além dos escândalos políticos durante o governo Nixon, provocam uma nova mudança na maneira pela qual o cinema lidava com a Guerra Fria. Nesse período, os tradicionais embates entre as duas grandes potências deram lugar, nas telas, a enredos de espionagem nos quais o protagonista precisa enfrentar um ambiente hostil que não é de seu inteiro conhecimento. A Guerra Fria torna-se, portanto, o pano de fundo para a abordagem de uma problemática relacionada aos medos e inseguranças do homem frente ao Estado. Ainda que os russos não tenham deixado de oferecer perigo, o obscurantismo das ações das agências de inteligência dos próprios EUA frequentemente tornou-se um risco ainda maior. Podem-se citar “Carta ao Kremlin” (The Kremlin Letter, dir.: John Huston – 1970), “Colossus: 1980” (Colossus: The Forbin Project, dir.: Joseph Sargent – 1970) e “Três Dias do Condor” (Three Days of Condor, dir.: Sydney Pollack – 1975), como exemplos. A seguir, examinam-se os filmes “Dr. Fantástico” e “Três Dias do Condor” como exemplares das tendências que mais se destacaram na abordagem do tema Guerra Fria no cinema americano das décadas estudadas. Enquanto o primeiro título veicula uma crítica bem- 225

humorada à típica paranoia anticomunista, aos estereótipos construídos em relação aos russos e à eficiência do complexo militar dos EUA, o segundo relativiza a segurança que as agencias secretas do Estado, retoricamente implicadas naquela geopolítica, podem realmente oferecer ao cidadão.

4.1.1 “Dr. Fantástico” (1964) Stanley Kubrick (1928 – 1999) nasceu na cidade de Nova Iorque. Filho de imigrantes judeus do leste europeu, Kubrick tinha um baixo rendimento na escola, apesar de ser considerado inteligente. Com o objetivo de incentivar o desenvolvimento do filho, seu pai o presenteou com uma câmera fotográfica. A partir daí, Kubrick tornou-se um habilidoso fotógrafo, conseguindo trabalho na revista Look. O entusiasmo pela captação de imagens levou-o a aventurar-se na produção de curtas-metragens. A direção de “A Morte Passou Perto” (Killer’s Kiss – 1955) e “O Grande Golpe” (The Killing – 1956) despertou o interesse pelo trabalho de Kubrick em Hollywood e, em 1957, permitiu que dirigisse “Glória Feita de Sangue” (Paths of Glory), estrelado por . Em 1960, Douglas enfrenta desentendimentos na produção de “Spartacus” e convida Kubrick para assumir a direção do projeto. O filme consistia em uma superprodução, o que fez com que as características profissionais e artísticas do jovem diretor ganhassem maior reconhecimento e notoriedade. Insatisfeito com o ambiente cinematográfico de Hollywood, Kubrick estabelece-se na Inglaterra, onde produziria todos os seus projetos futuros. “Lolita” (1962) foi o primeiro filme produzido no Reino Unido, seguido de “Dr. Fantástico”. O sucesso de público e crítica atingido pela sátira da Guerra Fria permitiu que Kubrick desenvolve-se livremente os projetos seguintes. A partir daí, seus filmes tornaram-se cada vez mais inventivos. “2001: Uma Odisseia no Espaço” (2001: A Space Odyssey – 1968) narra a busca incessante do homem por conhecimento, sendo seguido pela violência psicótica de “Laranja Mecânica” (Clockwork Orange – 1971). O conto de ascensão e decadência social, Barry Lyndon (1975), precede a adaptação do romance de terror de Stephen King, “O Iluminado” (The Shining – 1980). “Nascido para Matar” (Full Metal Jacket – 1987) desvela a trajetória de desumanização dos jovens americanos que serviram no Vietnã, enquanto seu último filme, “De Olhos Bem Fechados” (Eyes Wide Shut – 1999), explora o mergulho paranoico e angustiante de um homem de classe média no submundo do sexo de Nova Iorque. “Dr. Fantástico” narra um acontecimento inesperado ocorrido na Base da Força Aérea dos Estados Unidos de Burpelson. Utilizando-se do “Plano ‘R’”, um dispositivo criado 226

para permitir que um general respondesse a uma ofensiva nuclear na qual o Presidente tivesse sido atingido, o Comandante da base, General Jack D. Ripper159 (Sterling Hayden) ordenou que os bombardeiros B-52 armados com ogivas nucleares sob seu comando iniciassem ataque contra alvos pré-definidos dentro da União Soviética. Adicionalmente, Ripper isolou a base, reportando um falso ataque soviético para os seus comandados e, objetivando assegurar o sucesso de seu plano, confiscou todos os rádios de modo a não permitir contato nenhum entre a base e seu exterior. Conforme o Alto Comando Militar percebe que algo incomum está ocorrendo, uma reunião de emergência é iniciada na Sala de Guerra do Pentágono, na presença do Presidente dos Estados Unidos, Sr. Merkin Muffley (Peter Sellers). General Buck Turgidson (George C. Scott) informa ao chefe do executivo sobre o ocorrido e, diante da impossibilidade de parar o ataque, defende uma retaliação em massa como modo de exterminar o inimigo. Segundo Turgidson, os EUA contam com um arsenal mais numeroso que a URSS e um ataque maciço causaria a destruição do país comunista com uma perda “aceitável” de vidas americanas na ordem de dez ou vinte milhões de pessoas. O Presidente considera as perdas inaceitáveis e, diante da oposição de Turgidson, pede a entrada do Embaixador Soviético (Peter Bull) na Sala de Guerra. Após colocar o Embaixador a par da situação, o Presidente entra em contato telefônico com o Premier Soviético, Dmitri Kissoff, a fim de passar-lhe todas as informações necessárias para abater os aviões. Kissoff está bêbado e demora a compreender a gravidade da situação. Enquanto isso, na base, o Capitão da Força Aérea Inglesa, Lionel Mandrake (Peter Sellers), oficial em intercâmbio que serve como Oficial Executivo do General Ripper, descobre que não há ataque algum ao encontrar acidentalmente um rádio portátil e ouvir a programação musical usual, ao invés de mensagens de alerta. No entanto, ao informar Ripper e pedir que cancele o ataque, o Comandante se recusa. Diante do fato, Mandrake afirma sua autoridade e exige o código para cancelamento da ordem de ataque. O General, então, mostra uma arma para Mandrake, que percebe estar trancado na sala com o superior psicótico. Tranquilamente, Ripper explica a Mandrake que a fluoretação da água não passa de um plano

159 No enredo de “Dr. Fantástico” os nomes de alguns dos personagens têm desdobramentos cômicos ou irônicos, como “Jack D. Ripper” que soa, em inglês, como “Jack, the Ripper” (Jack, o Estripador), pseudônimo do famoso assassino em série britânico, ou “Buck Turgidson”, cujo buck pode significar os animais machos veado ou coelho, e turgid, significa túrgido, pomposo, inchado. Os dois nomes do calvo Presidente dos Estados Unidos, “Merkin Muffley”, reference ao cabelo feminino, o primeiro aludindo aos pelos pubianos e o segundo a um tipo de corte de cabelo. Dessa maneira, o comportamento pacífico do presidente é apontado como falta de masculinidade. Por outro lado, o sobrenome do “Premier Kissoff”, traduz-se como alguém que pode ser desconsiderado. 227

comunista para envenenar “os preciosos fluidos corporais” da população americana. Segundo Ripper, a teoria havia lhe ocorrido durante o “ato físico de amor”, o que explicaria seu cansaço após a relação. Ao telefone, na Sala de Guerra, Premier Kissoff informa a seu Embaixador da Máquina do Juízo Final, um dispositivo ligado a uma rede de computadores que automaticamente inicia um ataque em massa caso a União Soviética seja atacada. Buscando desencorajar um eventual plano americano de ataque, o dispositivo foi concebido de maneira a não poder ser desligado. Qualquer tentativa de desligamento seria reconhecida como sabotagem e dispararia o ataque. A Máquina do Juízo Final é capaz de aniquilar toda a vida humana e animal do planeta, além de torná-lo inabitável por 93 anos, fato revelado com horror pelo Embaixador. Diante da situação catastrófica, o Presidente pede o conselho do Dr. Fantástico (Peter Sellers), Diretor do Desenvolvimento de Armas e um gênio cientista que havia integrado as fileiras nazistas. Utilizando-se de uma cadeira de rodas, Dr. Fantástico tem uma aparência excêntrica, destacando-se o fato de não possuir controle sobre sua mão direita, que eventualmente age de maneira errática, sem o seu consentimento. O cientista explica, com forte sotaque germânico, o mecanismo psicológico que fundamenta a Máquina do Juízo Final, porém aponta que, mantido em segredo, o dispositivo não tem serventia alguma. O Embaixador, constrangido, admite que o novo sistema havia sido terminado há poucos dias e que seria revelado ao mundo no Congresso do Partido Comunista, que se iniciaria na segunda-feira seguinte. O segredo se devia ao fato de o Premier “adorar surpresas”. As forças enviadas pelo Presidente para adentrar a base de Burpelson e extrair o código de Ripper entram em conflito com os soldados locais, que acreditam estar se defendendo de um ataque comunista. Após um longo tiroteio, Ripper percebe que seus comandados se renderam e, temendo ser torturado, comete suicídio. O Coronel "Bat" Guano (Keenan Wynn) entra na sala de Ripper, o encontra morto e, não reconhecendo o uniforme inglês de Mandrake, deduz se tratar do líder de um motim de “desviados pervertidos”. Mandrake consegue retirar o código para cancelamento do ataque das anotações de Ripper e convence “Bat” de que precisa repassá-lo ao Presidente a fim de que as aeronaves retornem. Finalmente, o código é informado ao Comando Aéreo Estratégico, iniciando o retorno das aeronaves. Excetuando-se as aeronaves abatidas, todas as outras retornam. No entanto, um dos B-52 havia sido avariado por um míssil soviético, porém continuara voando. O impacto 228

danificou o sistema de rádio e causou um vazamento de combustível que tanto impediam a tripulação de receber o código abortando a missão, quanto tornava impossível atingir o alvo pré-determinado. Diante do fato, o Major T. J. "King" Kong (Slim Pickens), comandante do bombardeiro, toma a iniciativa e decide voar baixo para evitar o radar e em direção ao alvo mais próximo, para lançar suas ogivas. Ao avistarem o alvo, as portas do compartimento de bombas do B-52 não abrem e “King” Kong decide ir até lá para tentar abri-las. Montado em uma das ogivas, o major religa fios danificados pelo impacto do míssil, o que faz com que o compartimento se abra e a bomba seja lançada levando “King” Kong junto. Conforme o artefato detona, a Máquina do Juízo Final entra em ação, dando início ao holocausto nuclear. De volta à Sala de Guerra, o Dr. Fantástico informa ao Presidente sobre seu plano para abrigar um seleto grupo de pessoas em minas subterrâneas, onde os efeitos da radiação não poderiam atingi-los. O cientista planeja selecionar os homens mais inteligentes e fortes, além dos políticos, para repovoar os EUA no futuro e sugere, ainda, que haja uma taxa de dez mulheres para cada homem, que seriam escolhidas de acordo com seus atributos de beleza. General Turgidson concorda, e afirma que os soviéticos vão tentar ter mais minas que os americanos e que os EUA não podem se permitir ficar atrás da URSS na quantidade de abrigos. Conforme a conversa se desenvolve, o Embaixador se afasta discretamente e começa a tirar fotos da Sala de Guerra com uma câmera escondida em um relógio de bolso. Subitamente, o Dr. Fantástico se levanta de sua cadeira de rodas e exclama: “- Mein Führer, eu posso andar!” e o filme termina com uma série de imagens de explosões atômicas acompanhadas da canção “We’ll Meet Again”160. O filme de Kubrick trata daquele que era o tema político de maior relevância nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial: o perigo de um conflito nuclear entre as superpotências. Em “Dr. Fantástico”, as animosidades entre EUA e URSS são expressas através da paranoia de um general e da incapacidade dos dirigentes dos dois países em impedir o sistema de destruição que eles mesmos mantiveram em funcionamento. Apesar de o tema já haver sido tratado em variadas produções cinematográficas, a perspectiva escolhida para o enredo, uma comédia, é responsável pela originalidade da proposta. O ano de lançamento do filme, 1964, seguia a um período de forte aprofundamento das hostilidades entre aqueles atores nacionais. A Crise dos Mísseis, episódio que melhor representou a seriedade do risco de um confronto nuclear, ocorrera há pouco mais de um ano,

160 Em tradução livre, “Nós Vamos Nos Encontrar Novamente”. 229

quando o filme já estava em produção. Soma-se ao acontecimento o assassinato de John Kennedy, em Dallas, em novembro de 1963. Considerando que a trama retrata os cômicos esforços do Presidente dos EUA no sentido de impedir o holocausto nuclear, a morte de Kennedy e toda a comoção nacional que se seguiu colaboravam para tornar a temática do filme ainda mais atual e expressiva. A sátira, fundamentada em humor negro, pode ser compreendida como a interpretação do cenário de tensões característico daquele período da Guerra Fria através do desdobramento psicológico de idiossincrasias da sexualidade masculina. Assim, elementos morais de fundo sexual estão presentes em momentos-chave de desenvolvimento da trama, especialmente o machismo referente ao militarismo e à cultura da guerra. Para além de determinar que nação prevaleceria no cenário político internacional, a constante disputa entre Estados Unidos e União Soviética resumia-se a uma mensuração de força, potência e tamanho, confundindo-se com parâmetros sexuais de definição do ethos masculino.

Fotograma 89 - Na cena de abertura, o reabastecimento, em pleno voo, de um dos bombardeiros B-52 assume conotação sexual (01min45seg.). A abertura da película já veicula uma alusão sexual pouco sutil. A cena inicia-se com uma tomada aérea sobre nuvens das quais desponta um pico montanhoso. Conforme os picos aproximam-se, uma voz em off informa da descoberta de que os soviéticos estavam empenhados na construção de um novo artefato de destruição, a Máquina do Juízo Final, que era mantida em segredo. Em seguida, um corte passa para os créditos iniciais. A imagem de fundo que compõe os créditos trata-se de um material de arquivo que mostra um avião B-52 230

sendo abastecido em voo, uma tecnologia que visava aumentar a autonomia das aeronaves, permitindo o reabastecimento sem necessidade de retorno e pouso em uma base. No entanto, a manobra é ressignificada pelo filme, transfigurando-se em uma cena de intercurso sexual devido à mangueira de ligação entre os dois aviões. A primeira tomada da sequência, que retrata o equipamento pontiagudo montado no nariz de um avião, assume significado fálico. Então, uma tomada realizada de dentro do avião tanque capta a mangueira de combustível sendo liberada em direção ao B-52, em altitude ligeiramente inferior. O equipamento acopla-se gentilmente, enquanto os movimentos suaves dos dois aviões em voo cria a sensação de uma dança lenta, tendo o lençol de nuvens abaixo das aeronaves como fundo claro. As imagens são acompanhadas pela música “Try A Little Tenderness”161, em arranjo compassado e apenas instrumental. Fotografada em preto-e- branco, como todo o filme, a cena é marcada pela luz solar que se reflete nas nuvens, em contraste ao tom metálico da fuselagem das aeronaves. Além disso, as inúmeras cenas rodadas na Sala de Guerra evocam a constante disposição de ambos os países em se sobrepor ao adversário em termos que envolvem poder e potência. A chegada do Embaixador Soviético, além de provocar a irritada oposição do General Turgidson, leva a uma briga corporal entre os dois após o último flagrar o corpulento embaixador fotografando o ambiente com uma câmera escondida em uma caixa de fósforos. Sendo repreendidos pelo Presidente, a luta se encerra com o embaixador sentado no colo do general.

161 Traduzido ao português, “Tente um Pouco de Ternura”. 231

Fotograma 90 - Na Sala de Guerra, a disputa entre o General Turgidson e o Embaixador Soviético acaba com este sentado no colo do primeiro (37min44seg.). Após serem repreendidos pelo Presidente, ambos não demonstram pressa em evitar a constrangedora situação. As animosidades entre EUA e URSS não poderiam ter uma representação menos máscula. De qualquer modo, a justificativa para a ação unilateral e anárquica do General Ripper em ordenar o ataque dos aviões sob seu comando à União Soviética, com o único objetivo de iniciar uma retaliação em massa contra aquele país, configura-se como a passagem do enredo na qual os fundamentos de ordem sexual melhor são destacados. Dentro da psicose de Ripper, um senhor aparentando cerca de 60 anos de idade, sua perda de potência sexual seria explicada através de uma conspiração comunista onde o suprimento de água dos Estados Unidos havia sido contaminado pelo artifício da fluoretação da água. Segundo ele, ao ingerir a água contaminada, seus “preciosos fluidos corporais” tinham se tornado impuros, o que o enfraquecera e levara à perda de sua essência. Assim, o contínuo clima de tensão belicosa embasada em termos psicossexuais foi levado aos limites da destruição total da humanidade e da vida na Terra por uma atitude psicótica igualmente fundamentada em termos da mesma espécie. De acordo com a trama de “Dr. Fantástico”, o equilíbrio das animosidades militares entre EUA e URSS, do qual dependia o futuro de todo o planeta, era frágil a ponto de ser perdido pela ação individual de um maníaco. Apesar da alta dose de masculinidade afirmada através de seus atos, General Ripper suicida-se covardemente, temendo ser torturado após perder o controle da base. Quando toma a decisão, o faz tendo a bandeira dos Estados Unidos por detrás de si. Além do destaque às implicações sexuais da retórica belicista da Guerra Fria, o enredo de Kubrick também questiona a validade do discurso quando aplicado ao cotidiano dos soldados, o que sublinha o distanciamento entre o posicionamento governamental, a representação usualmente operada pelo jornalismo e pela mídia, e a realidade efetiva. Desse modo, quando o espectador é levado pela primeira vez a bordo do B-52 comandado por Kong, cada membro da tripulação distrai-se do importantíssimo dever que lhes cabe de uma maneira particular. Enquanto o operador de rádio come guloseimas, um colega embaralha cartas e o outro lê um romance confortavelmente deitado em um canto da cabine. Quanto aos principais membros da equipe, o copiloto encontra-se ausente do posto, deixando o capacete sobre uma das alavancas de comando, enquanto o piloto observa a foto central de uma revista Playboy. Na foto, a modelo deitada de bruços esconde a nudez de suas nádegas com o que parece ser uma revista acadêmica sobre relações internacionais. Por sinal, fotos de mulheres nuas também encontram abrigo no lado interno da porta do cofre que guarda as instruções para execução do Plano “R”, ou seja, no compartimento mais seguro do avião. 232

Fotograma 91 - Transportando ogivas nucleares no limite aceitável de aproximação da União Soviética, Major “King” Kong distrai-se observando a foto central de uma revista Playboy (06min43seg.). Uma publicação sobre relações internacionais esconde a nudez da modelo. Ao receber a confirmação da ordem, “King” Kong abre outro cofre, cuja senha mantinha em segredo do restante da tripulação, e retira o objeto pelo qual tem maior apreço: um chapéu de cowboy. A indumentária representa essa figura mítica do imaginário americano, o desbravador do oeste que, diante das adversidades, torna-se forte e íntegro, personificando as características que, segundo a narrativa tradicional, compõem o verdadeiro americano. Apesar de não citar sua origem, os modos, o sotaque, o caminhar e os valores suscitam ser Kong um homem do oeste. Como tal, o major vai liderar sua tripulação com honradez até a realização da missão que lhe foi confiada. O discurso de encorajamento que profere à tripulação dá conta de seu ânimo moral: Major ‘King’ Kong: - Não sou dado a discursos, mas parece que tem coisa importante acontecendo. E imagino que tipo de emoções alguns de vocês devem estar sentindo. Não seriam seres humanos se não tivessem sentimentos quanto a um combate nuclear. Gostaria de lembrar uma coisa: suas famílias estão contando com vocês e não iremos decepcioná-los. E mais, se a importância disso for a metade do que imagino, poderão receber promoções quando isso acabar, independente de raça, cor ou credo. Então, vamos. Temos uma missão a cumprir.162

Todo o discurso é acompanhado da conhecida música marcial “When Johnny Comes Marching Home”. Apesar dos elementos do dever, da honradez, da família e da pátria evidenciarem-se na fala, o interesse por uma eventual promoção não deixa de ser citado pelo major. Mesmo que a civilização colapse em um holocausto nuclear, isso pode valer a

162 O discurso inicia-se aos 10min33seg. e encerra-se aos 11min35seg. 233

ascensão da tripulação na hierarquia militar. Saliente-se que a busca por ascensão social é um dos elementos de diferenciação entre os modos de vida americano e soviético. O distanciamento entre a retórica e a prática militar é, ainda, realçado através da frase pintada em diversas das paredes e placas da Base de Burpelson: “Peace is our profession” (A paz é a nossa profissão). Utilizar tal frase como lema de uma base aérea militar cuja função é manter uma esquadra de bombardeiros munidos de ogivas nucleares prontos para atacar alvos na União Soviética, o que certamente implicaria o contra-ataque e a consequente guerra nuclear, revela a perversidade da retórica do militarismo. Como se não fosse o suficiente, outra frase, “Civil defense is our business” (A defesa civil é o nosso negócio), reafirma o engodo presente nas palavras do General Turgidson, para quem dez ou vinte milhões de vidas americanas configuram uma perda aceitável.

Fotograma 92 - Enquanto os soldados americanos combatem entre si devido à ação do General Ripper, uma placa com o lema da base destaca a incongruência de todo o sistema militar (54min01seg.). Turgidson faz parte do grupo de homens para os quais cabe um lugar na Sala de Guerra. Nesse ambiente acético e tecnológico, esses homens decidem os rumos do planeta diante da mais grave crise nuclear. A farta mesa de buffet demarca a singularidade do grupo, que é comandado pelo presidente. Homem sensato, o Presidente Muffley opõe-se aos impulsos destrutivos de Turgidson, buscando o apoio dos soviéticos para contornar a crise e salvar o planeta. No entanto, o fracasso derradeiro prova que o poder atribuído pelo cargo era menor do que esperava, não sendo suficiente para impedir a capacidade destrutiva do gigantesco 234

aparato militar, sujeito a sair totalmente de controle pela ação de um único homem. Acreditando cumprir com a missão que lhe fora confiada, Major Kong leva o B-52 avariado até o seu limite e, naquele que julga ser um ato heroico, lança a ogiva em território soviético. Assumindo definitivamente sua identidade americana, Kong monta sobre a bomba e, tal qual um cowboy, sela o destino da humanidade.

Fotograma 93 - Como um verdadeiro cowboy, Major Kong monta na ogiva nuclear momentos antes do lançamento. Gritando e agitando seu chapéu, Kong parece estar sobre um touro furioso em um rodeio (01h27min21seg.). Sorrindo, acompanha até o último instante a detonação do artefato que iniciaria a guerra nuclear. Diante do inevitável, a sinistra figura de Dr. Fantástico consegue a atenção de todos quando expõe seu plano de sobrevivência ao armagedom nuclear. Enquadrado no centro do frame, o cientista tem sua face iluminada, enquanto os demais políticos e militares presentes se colocam atrás de sua cadeira de rodas. Esses homens permanecem na sombra, o que confere a suas silhuetas uma impressão fantasmagórica. Conforme explica sua proposta a um presidente desolado, sua mão direita e arredia rebela-se, faz a saudação nazista e, finalmente, tenta matá-lo por sufocamento. Significativamente, sua mão assustadora não desperta estranhamento em nenhum dos presentes. Como a criatura que se volta contra o criador, a mão do doutor é a única entidade presente a demonstrar qualquer oposição ao seu plano que, em linhas gerais, pretende manter o status quo, mesmo diante do quadro pós-apocalíptico. A canção que acompanha a cena final, enquanto imagens de arquivo de inúmeras detonações nucleares ocupam a tela, confirma a noção de continuidade. Segundo a letra: 235

We'll meet again We'll meet again, Don't know where, Don't know when But I know we'll meet again some sunny day Keep smiling through, Just like you always do Till the blue skies drive the dark clouds far away

So will you please say "Hello" To the folks that I know Tell them I won't be long They'll be happy to know That as you saw me go I was singing this song

We'll meet again, Don't know where, Don't know when But I know we'll meet again some sunny day

We'll meet again, Don't know where Don't know when. But I know we'll meet again some sunny day. Keep smiling through Just like you always do, 'Til the blue skies Drive the dark clouds far away So will you please say"Hello" To the folks that I know. Tell them I won't be long. They'll be happy to know That as you saw me go, I was singin' this song.

We'll meet again, Don't know where, Don't know when But I know we'll meet again some sunny day.163

4.1.2 “Três Dias do Condor” (1975) Sidney Pollack (1934 – 2008) foi um diretor, produtor, ator e escritor de teatro, cinema e televisão, tendo dirigido e produzido mais de 40 filmes. Nascido em Indiana, toda sua origem familiar remonta a imigrantes russos judeus. Após formar-se no high school, Pollack mudou-se para Nova Iorque onde estudou atuação. Tendo iniciado sua carreira profissional no palco, começa a dirigir programas de TV no início dos anos 1960. Atuando em “Obsessão de Matar” (War Hunt, dir.: Denis Sanders – 1962), conhece Robert Redford, com quem colaboraria em diversos trabalhos. O maior sucesso dirigido por

163 PARKER, Ross; CHARLES, Hughie. We’ll Meet Again. Intérprete: Vera Lynn. In: ____. ____: ____, 1939. A tradução encontra-se no anexo nº 06. 236

Pollack e estrelado por Redford foi “Entre Dois Amores” (Out of Africa – 1985), pelo qual Pollack ganhou dois Oscars, de Melhor Diretor e de Melhor Filme. “Tootsie” (1982), comédia cujo enredo debatia temas ligados ao feminismo, também alcançou sucesso de público e crítica. Pollack recebeu, em 2000, o Prêmio John Houston, do Directors Guild of America (Sindicato dos Diretores da America) por “defender os direitos dos artistas”. “Três Dias do Condor” narra a trama de assassinatos na qual Joseph Turner (Robert Redford), um funcionário da CIA, foi envolvido. Turner, codinome “Condor”, é um pesquisador cujo trabalho consiste em ler. Assim, ele e seus colegas de trabalho leem tudo o que é publicado no mundo, livros, revistas, histórias em quadrinhos, com o objetivo de cruzar os dados com operações reais da CIA. A sessão onde o trabalho é realizado é disfarçada como “Sociedade Histórica Literária Americana” e, apesar de localizada em um endereço aparentemente comum, conta com um cuidadoso sistema de segurança. Em um dia de dezembro, o trabalho corria tranquilamente, sem que qualquer um dos funcionários percebesse a presença de um automóvel estacionado na rua. Dentro do veículo, um homem riscava seus nomes em uma lista, conforme chegavam. Turner espera receber a resposta para um relatório que enviou para o escritório central da Agência. Naquele dia, cabia a Turner buscar o almoço de todos e, como estava chovendo, Condor saiu pelos fundos para cortar caminho, o que contrariava as regras. Três homens, dentre os quais um uniformizado de carteiro, entram na repartição e assassinam todos os presentes. Retornando, Turner encontra a porta aberta e, ao entrar, descobre que todos os seus colegas de trabalho haviam sido mortos. Assustado, pega a arma escondida na gaveta da recepcionista e foge. Na rua, Turner não sabe para onde ir, nem que atitude tomar. Todos parecem suspeitos. Em um telefone público, o pesquisador liga para a CIA e informa do ocorrido. O contato indica a Turner para ir a um lugar seguro e retornar a ligação dentro de duas horas. Uma equipe de “faxineiros” é enviada ao local para confirmar a narrativa. Enquanto isso, o Diretor Higgins () pondera sobre o possível motivo para terem realizado tal carnificina e entra em contato com seu superior no Quartel General da CIA. Turner vagueia pela cidade, vai a um museu e tenta controlar a tensão. Então, lembra-se de um colega de trabalho que havia faltado e decide ir a casa dele. Chegando lá, vê a porta aberta, abre e descobre o amigo morto. Sem saber o que fazer, vai à sua própria casa. Por sorte, ao chegar, uma vizinha o informa que seus dois “amigos” o esperavam no apartamento, pois eles tinham a chave. Como não esperava por amigo algum, Turner foge. 237

Quando Condor retorna a ligação para a CIA, seus superiores indicam marcar um encontro em um beco atrás de um hotel com o Chefe de Sessão, Wicks (Michael Kane). Diante das suspeitas de Turner, informam que um velho amigo seu, Sam Barber (Walter McGinn), que trabalha no setor de estatísticas, irá junto. Turner concorda, porém, chegando ao local do encontro, vê apenas Sam. Repentinamente, Wicks sai de trás de uma parede e atira contra Turner, que revida e consegue baleá-lo na perna, para fugir em seguida. Sam sequer tem tempo de compreender o que houve, pois é baleado mortalmente por Wicks. Sem alternativa e sentindo-se caçado, Turner sequestra uma jovem de nome Kathy (Faye Dunaway). Amedrontada, Kathy obedece à ordem do sequestrador e o leva para sua casa. Turner conta a Kathy sobre seu trabalho e o que ocorreu mais cedo. Aos poucos, a jovem compreende que Turner está em perigo, porém não acredita totalmente na história que ouvira. Turner assiste ao jornal das 18 horas e percebe que a notícia sobre o tiroteio no beco não dá conta da verdade. Depois de amarrar Kathy no banheiro, vai até a casa de Sam, onde a esposa Mae (Carlin Glynn) já aguardava Turner e sua namorada para um jantar. Mae, com quem Turner havia namorado na época da faculdade, diz que recebeu uma ligação informando que Sam se atrasaria. Turner, então, leva a moça para o apartamento de vizinhos, sem informá-la do motivo. No elevador, Turner cruza com o principal assassino do grupo que matara seus amigos. Joubert (Max Von Sydow) é um homem de meia idade, de sotaque alsaciano. Turner logo desconfia de sua figura e, para sair do prédio em segurança, pede ajuda a um grupo de jovens para destrancar a porta do carro, alegando ter esquecido as chaves dentro. Do lado de fora, Joubert o esperava com uma arma de mira telescópica, porém não pode atirar devido à presença das outras pessoas. Turner entra no automóvel e foge, porém o assassino consegue ver a placa do veículo. Turner volta para o apartamento de Kathy enquanto o telefone toca. Ele faz com que a moça atenda e fale com o namorado, que a esperava para esquiar em Vermont. Utilizando-se de uma desculpa, Kathy o tranquiliza, de modo que ele não desconfie de nada. Kathy discute com Turner por tê-la amarrado. O homem diz que não foi violento e que irá embora pela manhã. Eles iniciam uma conversa íntima e Kathy, que já simpatizava com seu sequestrador, acaba relacionando-se com Turner. Na manhã seguinte, enquanto Kathy toma banho, o mesmo carteiro que havia participado dos assassinatos dos colegas de Turner bate à porta da jovem com uma encomenda. Quando Turner abre a porta para receber, o homem entra no apartamento. Condor desconfia de seus sapatos e arremessa café quente em sua direção. A metralhadora com 238

silenciador do assassino cai e os dois iniciam uma briga violenta. Kathy aparece, tenta ajudar Turner, porém não consegue. No meio da disputa, Condor pega sua pistola e mata o carteiro. Em seus bolsos, encontra uma chave e algumas anotações em uma folha de papel da organização de fachada “Five Continents Imports Inc.”. Turner ainda não sabe, porém é nessa organização que os membros mais velhos e poderosos da CIA se reúnem. Como a casa de Kathy não é mais segura, o casal foge. Turner, então, traça um plano para encontrar Higgins. Kathy simula ter uma entrevista de emprego e entra na sede da CIA. Fingindo-se perdida, identifica Higgins. No horário de almoço, segue o diretor até o restaurante e o sequestra com Turner. Interrogado, Higgins informa não saber nada além do que Turner sabe, porém inicia uma pesquisa em busca de Joubert e do carteiro, descobrindo que ambos têm ligações com a CIA. Utilizando-se da chave que encontrou em poder do carteiro e das habilidades técnicas em sistemas de comunicações que aprendera na época do serviço militar, Turner faz uma ligação para o quarto onde Joubert está hospedado. Em seguida, escuta uma ligação do alsaciano para Atwood, um dos chefes da CIA que o contratou. Diante da descoberta, Turner liga para Higgins e pergunta sobre Atwood. Higgins nada fala e Turner desliga. Um dos supervisores de Higgins, e também integrante da “Five Continents”, diz que o caso deve acabar imediatamente. Turner vai para a estação de trem para ir a Washington confrontar Atwood. Na despedida, agradece a Kathy por toda a ajuda e os dois relutantemente se separam. Na luxuosa e austera casa de Atwood, pela madrugada, Turner liga o aparelho de som do escritório e espera pelo residente. Atwood vem verificar o que está ocorrendo e depara-se com o pesquisador sentado diante de sua mesa de trabalho, empunhando a pistola. Turner exige explicações e descobre que em seu trabalho identificou um plano secreto de alguns membros da CIA para invadir países do Oriente Médio visando controlar a produção de petróleo. Nesse momento, Joubert chega e rende Turner. Acreditando estar a salvo, Atwood sorri discretamente, porém o alsaciano atira em sua tempora direita, para surpresa de Turner. Joubert, então, limpa as impressões digitais de Turner nos móveis e, com a tranquilidade e educação que lhe são características, informa que Atwood havia se tornado um problema e que, com a morte deste, o contrato que implicava a morte de Turner não tinha mais validade. Fora da casa, Joubert descreve a nova realidade da qual Turner agora faz parte. Gentilmente, mostra como, mais cedo ou mais tarde, alguém conhecido por Turner e em quem 239

ele confiará, irá matá-lo. Surpreso com a habilidade demonstrada pelo pesquisador, Joubert propõe que vá morar na Europa e que se torne um assassino freelancer como ele. Turner recusa. Condor volta à Nova Iorque, espera Higgins na rua e o confronta com a verdade. O diretor justifica as ações da CIA como necessárias. Turner discorda e, parado em frente à Sede do The New York Times, diz que contou tudo o que sabe a um repórter e que a história será publicada. Higgins reprova sua atitude e, conforme o pesquisador se afasta, questiona como pode ter certeza de que a história será publicada. A película se encerra com a imagem congelada no olhar de Turner, desolado. “Três Dias do Condor” consiste em um suspense de espionagem. O gênero remonta à produção de cinema durante a Segunda Guerra Mundial, tendo se mantido durante as décadas seguintes. A geopolítica da Guerra Fria, a noção maniqueísta do mundo sendo disputado por duas nações antagônicas e igualmente poderosas, bem como a construção cultural erigida em torno dos elementos que compunham aquele contexto político, fizeram com que o gênero se mantivesse no horizonte de interesses da indústria do cinema. Ao longo das décadas, porém, os espiões e suas tramas sofreram transformações que se coadunavam com as mudanças ocorridas na própria relação entre os países. Pollack, assim, dirige um enredo que, apesar de se localizar na atmosfera de suspeitas, de ações governamentais secretas e, por vezes, ilegais, arquetípica da conjuntura das relações internacionais do período, não localiza os inimigos em alguma nação estrangeira. Os homens que querem matar Turner são americanos como ele, e, significativamente, funcionários da mesma agência de inteligência para a qual o pesquisador trabalha. Essa mudança de foco, longe de ignorar ou de se distanciar das relações entre os Estados, insere-se naquilo que o termo “Guerra Fria” implicava em meados da década de 1970. Turner é um pesquisador que lê livros. Apesar de funcionário da Agência, ele nem sequer lembra-se de seu codinome quando precisa se identificar para a CIA, logo após o incidente em sua sessão. Do mesmo modo que Turner, seus colegas de trabalho atém-se as inúmeras leituras. Nada de armas, coletes ou encontros sigilosos com pessoas obscuras. A arma que a recepcionista possui é mantida sob alegação de defesa pessoal contra uma hipotética tentativa de estupro. O ambiente de trabalho é tranquilo e descontraído, sem qualquer citação a respeito do que ocorre na política internacional. Turner assim descreve sua função para Kathy:

Turner: - Trabalho para a CIA, mas não sou um espião. Eu só leio livros. Lemos tudo o que é publicado no mundo. Depois alimentamos a trama com truques sujos e 240

códigos em um computador, e o computador compara tudo isso com atividades reais da CIA. Eu vejo as falhas, tenho novas ideias. Lemos aventuras, romances e revistas. Eu... Quem inventaria um trabalho desses?164

A atividade, no entanto, custa a vida de todos. A partir do ocorrido, Turner precisa desconfiar de qualquer um, especialmente dos membros da organização da qual faz parte e, acreditava-se, tinha como objetivo preservar a segurança do país e de seus cidadãos. Enquanto trabalhava na American Literary Historical Society, disfarce criado para a seção, Turner não se sentia satisfeito. O fato de dever manter sigilo sobre seu trabalho o incomodava e, questionado pelo seu superior imediato, o pesquisador responde: “- É que confio em algumas pessoas, esse é o problema.”165 Nos Estados Unidos pós Watergate, o sentimento de decepção diante dos descaminhos políticos deu lugar à sensação de desconfiança. Como poderia o cidadão comum confiar no Estado, após uma das instituições mais caras àquele imaginário político, a Presidência, ter sido envolvida tão profundamente na rede criminosa que se tornou pública? De qualquer modo, Turner apenas sobrevive e consegue descobrir a verdade por confiar em Kathy. A jovem, uma fotógrafa solitária, representa o cidadão comum. Envolvida em seu trabalho e, apenas superficialmente, no relacionamento afetivo problemático que possui, Kathy não parece se preocupar com os rumos políticos dos Estados Unidos, tampouco com a inserção de seu país na política internacional e nos assuntos internos de outras nações. Apesar de ajudar com afinco aquele que era seu sequestrador, mesmo desconhecendo os acontecimentos que o cercavam, Kathy enquadra-se na descrição da população feita por Higgins, no final do filme. Para a jovem, a CIA nada mais é do que uma agência do governo e boa parte da simpatia que passou a nutrir por Turner deve-se ao charme do protagonista, não à convergência de opiniões políticas. Desde o início da projeção, por sinal, a singularidade da personalidade de Turner é sublinhada. Habituado a se deslocar em meio ao pesado trânsito nova-iorquino em uma bicicleta motorizada, apenas ele consegue dissolver os impasses literários com os quais seus colegas se deparam. Segundo sua namorada e colega de seção, Turner sempre tem uma ideia para o problema. Quando, coincidentemente, sobrevive aos assassinatos, suas habilidades pessoais tornam-se de grande valia para permanecer vivo. A partir dessa etapa da trama, seus conhecimentos diversificados e o tempo passam a ser os principais elementos com os quais precisa lidar. A cena do momento em que Turner sai pelos fundos para evitar a chuva,

164 A fala inicia-se em 41min54seg e encerra-se em 42min41seg. 165 Aos 08min50seg. 241

contrariando as ordens, sublinha o fato. Na imagem, Turner é colocado entre um antigo relógio e um busto de bronze que remete a algum pensador do passado.

Fotograma 94 - No momento em que deixa a sessão para buscar o almoço, Turner é captado entre um relógio e imagens de bustos de pensadores do passado (09min53seg.). Significativamente, este consiste em um dos últimos instantes de normalidade na vida do protagonista. Quando retorna ao trabalho, seus amigos estão mortos e sua vida definitivamente alterada. Os relógios aparecem em variadas cenas ao longo do filme, já que o tempo, para Condor, já não teria mais o mesmo significado. O relógio acima, por sinal, não marca a hora diegética da cena, informada pouco antes. A CIA que se opõe a Turner compreende uma organização dentro da própria CIA, segundo Higgins “uma outra CIA”. No entanto, conforme o diretor vai descobrindo, o fato não chega a apresentar surpresa. E a solução proposta pela CIA “oficial”, contratar Joubert para matar Atwood, coaduna-se com o modo de operação escolhido pela organização clandestina para solucionar o fato de Turner, e sua seção, ter descoberto o plano de intervenção no Oriente Médio. Assim, apesar da divergência de objetivos, as estratégias e as ações são exatamente as mesmas, utilizando-se, inclusive, o mesmo assassino contratado. Joubert, o alsaciano, fora agente da CIA no passado, porém afastou-se da Agência, tornando-se assassino freelancer. A ausência de vínculo institucional de Joubert implica seu comportamento individual dentro do contexto no qual atua. Apesar de a ideia corrente da geopolítica da Guerra Fria desdobrar-se em direção a uma realidade dicotômica, na qual se destacam os dois atores convencionais, a posição de Joubert relativiza e problematiza as ações dos Estados, coadunando-se com a conjuntura internacional da década. A conversa que trava com Turner, após assassinar Atwood, é bastante esclarecedora dos parâmetros que margeiam o mercado no qual o assassino oferece seus trabalhos. Joubert: - Quer uma carona? Turner: - Gostaria de voltar para Nova Iorque. Joubert: - Você não tem muito futuro lá. Vai acontecer da seguinte forma: você estará caminhando, talvez no primeiro dia de sol da primavera, e um carro vai se aproximar de você, uma porta vai se abrir, e alguém que você conheça, e talvez até 242

confie, vai sair do carro. Ele vai sorrir, um sorriso amigável. E com a porta do carro ainda aberta, vai te oferecer uma carona. Turner: - Você parece entender muito bem disso tudo. O que você sugere? Joubert: - Pessoalmente, prefiro a Europa. Turner: - Europa? Joubert: - Sim. De fato, o que faço não é tão ruim. Alguém está sempre disposto a pagar. Turner: - Eu acharia isso cansativo. Joubert: - Não, de forma alguma, é algo muito tranquilo. Quase pacífico. Não precisa acreditar em um lado, em nenhum lado. Não há nenhuma causa, só existe você. Tem que acreditar apenas na sua precisão. Turner: - Eu nasci nos Estados Unidos, Joubert. E sinto falta quando fico muito tempo distante. Joubert: - É uma pena. Turner: - Eu não acho.166

O pragmatismo de Joubert choca-se com o romantismo de Turner. Talvez pelo fato de o primeiro ser um homem da prática, do trabalho de campo, enquanto o segundo havia operado, até então, fora do trabalho de campo. Ao citar sua origem nacional, Turner indica ainda acreditar na existência de lados e causas pelas quais se engajar. No que diz respeito a Joubert, a eficiência profissional e a capacidade de sobrevivência testemunham sua perspicácia em se adaptar às transformações do contexto. O alsaciano sabe que o período onde valia escolher-se um lado já ficou para trás. Selando seu pragmatismo, e para o espanto de Turner, Joubert termina por devolver a pistola ao pesquisador, informando que lhe seria útil para aquele dia. Apesar de ter descoberto o motivo dos assassinatos, Turner ainda precisa confrontar Higgins com a verdade. Na película, Higgins é o maior exemplo da burocracia impessoal do governo em sua política por predominância internacional. O diretor da CIA parece um homem comum de meia idade. Nada desabona a ideia, extradiegética, uma vez que não existe menção no enredo, de que tenha família e seja um bom marido e pai. No entanto, Higgins realiza seu trabalho acriticamente, lidando com os cenários que lhe são colocados e ainda acreditando na validade das ações da Agência. Pautando sua avaliação na noção de que os fins justificam os meios, Higgins acredita atender às demandas dos cidadãos americanos. No último encontro que tem com Turner, Higgins aproxima-se com o sorriso característico que Joubert previra e, da mesma forma, oferece uma carona. Turner, entretanto, prefere caminhar. Na conversa que os dois travam, Turner busca explicações para a atuação de Atwood e para o modo como a CIA resolveu a situação. A resposta de Higgins consiste em uma exposição fria do senso prático que norteia a Agência. Turner: - Higgins! Higgins: - Turner, por que demorou? Ficamos preocupados.

166 O diálogo inicia-se em 1h48min22seg. e encerra-se em 1h50min30seg. 243

Turner: - Eu também. O carro é para mim? Higgins: - Sim, é seguro. Tem algumas horas para fazer o relatório. Turner: - Digamos que como motivo para a conversa, eu tenho uma .45 no meu bolso e você vai dar um passeio comigo, certo? Higgins: - Qual direção? Turner: - Oeste. Devagar. Fique na minha frente uns três ou quatro passos. Higgins: - Aonde estamos indo? Turner: - Mande seguirem em frente (o carro). Algum plano para invadir o Oriente Médio? Higgins: - Você está louco? Turner: - Estou? Higgins: - Olhe, Turner... Turner: - Existem esses planos? Higgins: - Não, absolutamente não. Temos jogos, só isso. Nós jogamos. Como seria feito? Quantos homens? O que seria necessário? Qual a forma mais barata para desestabilizar um regime? Somos pagos para fazer isso. Turner: - Ande. Vamos. Atwood levou o jogo a sério. Ele realmente ia fazer isso, não é? Higgins: - A operação seria vetada. Atwood não tinha poder de decisão e a CIA seria informada. Turner: - E se ela não fosse informada? Se eu não tivesse tropeçado no plano dele, ninguém saberia. Higgins: - O jogo seria diferente. Não havia nada de errado com o plano. O plano estava certo, teria funcionado. Turner: - O que há de errado com vocês? Vocês pensam que não ser pego dizendo mentira é o mesmo que dizer a verdade? Higgins: - Não. É simples economia. Hoje é petróleo, certo? Em 10 ou 15 anos, comida, plutônio, talvez até antes disso. O que acha que as pessoas vão querer que façamos, então? Turner: - Pergunte a elas. Higgins: - Não agora, então. Pergunte quando estiverem na escassez. Pergunte quando não houver mais aquecimento para as casas, quando os motores pararem. Pergunte quando aqueles que nunca tiveram fome começarem a ter. Quer saber de uma coisa? Eles não querem perguntas, querem que as coisas não faltem. Turner: - Esse é o seu argumento. Sete pessoas foram mortas. Higgins: - A Companhia não fez isso. Turner: - Atwood fez. E quem é Atwood? Ele é todos vocês. Sete pessoas foram mortas e você jogando a porra de um jogo! Higgins: - Certo. O outro lado também faz isso. Esse é o motivo pelo qual não podemos deixar você de fora. Turner: - Vá para casa, vá. Eles têm isso. Higgins: - O quê? Turner: - Olhe em volta. É daqui que eles são distribuídos. Eles têm a história toda. (Higgins percebe que estão na calçada em frente a gráfica do The New York Times) Higgins: - O que você fez? Turner: - Eu contei a eles uma história. Você joga, eu conto a eles uma história. Higgins: - Ah, seu pobre idiota, filho da puta! Está causando mais estrago do que pensa. Turner: - Espero que sim. Higgins: - Você vai ser um homem muito solitário. Não precisava acabar assim. Turner: - Claro que precisava. Higgins: - Ei, Turner! Como pode saber que eles irão publicar? Você pode fugir, mas o quão longe irá se não publicarem? Turner: - Eles vão publicar. Higgins: - Como pode saber?167

167 O diálogo ocorre entre 1h51min12seg. e 1h56min09seg. 244

Fotograma 95 - Tomada final do filme (01h.56min.19seg.). Após a conversa com Higgins, Turner se afasta. A câmera assume o ângulo de visão de Higgins, observando Turner, que olha em retorno. Por detrás da pequena banda do Exército da Salvação, que entoa uma familiar canção de Natal, o olhar do pesquisador transmite a desesperança de que sua denúncia venha a ser publicada. Como dito por Higgins, Turner está sozinho, em meio à multidão. Sem apoio, como poderá oferecer resistência aos crimes institucionalizados que descobriu? Ao fundo, os habitantes de Nova Iorque seguem com suas vidas, alheios à verdade dos fatos. Ao longo da projeção, os integrantes mais antigos da CIA, e do jogo, referem-se recorrentemente à Agência como “a Firma” ou “ a Companhia”. A alegação de Higgins, de que as justificativas para os atos da Agência são econômicas, torna essas designações coerentes. De mesmo modo, a sessão deliberativa formada pelos membros mais antigos e reconhecidos dentro da hierarquia da organização é denominada “Five Continents Imports Inc.”, nome que denota objetivos empresariais e, portanto, econômicos. Na fala de Higgins, os inimigos arquetípicos do discurso político americano referente à Guerra Fria, a União Soviética, os russos e o comunismo, estão completamente ausentes. Na conjuntura da década de 1970, as animosidades deram lugar a empreendimentos financeiros internacionais. Aliás, atesta isso o fato de a motivação central para o plano de Atwood ser o acesso a reservas de petróleo, dentro do contexto da crise de combustível do período. Ao argumentar que “o outro lado também faz isso”, mais do que buscar alguma justificativa para as ações, Higgins caracteriza os antigos inimigos políticos como adversários, concorrentes financeiros em nível global. No entanto, não fica claro no enredo quem ou o que comporia “o outro lado”. Considerando os esforços diplomáticos de aproximação da China e da União Soviética, realizados por Nixon, é possível supor serem estes os dois principais concorrentes americanos na balança de poderes internacionais da época, segundo o enredo. Expressivamente, na abertura do filme, uma das máquinas da seção da CIA onde Turner trabalha realiza a cópia da tradução de um texto em um idioma oriental. Além disso, Turner está intrigado com o 245

significado de um ideograma chinês, que ele mostra para sua namorada, de família originária daquele país. Deste modo, “Três Dias do Condor” questiona a representação usual da Guerra Fria e o papel internacional dos Estados Unidos, expondo uma realidade muito mais complexa que a pura oposição ao modelo político-econômico representado pelo comunismo. A conversa que um dos superiores de Higgins, e integrante da “Five Continents Imports Inc.”, tem com o diretor é indicativa da profundidade das transformações ocorridas. O homem, já um senhor de idade avançada, pergunta a Higgins o motivo de não ter progredido na Agência, enquanto reflete sobre a nova e a velha conjuntura. Senhor: - Por que não progrediu, senhor Higgins? Higgins: - Dentro da CIA, senhor? Senhor: - Me parece perfeito para ela. É perfeito para ela, senhor Higgins? Higgins: - Tenho tentado ser, senhor. Senhor: - Foi recrutado depois da universidade? Higgins: - Não, senhor. A CIA entrevistou alguns de nós na Coréia. Serviu com o Coronel Donovan168 no serviço secreto, não é? Senhor: - Naveguei o Adriático com uma estrela de cinema no leme. Hoje aquilo não parece com uma guerra, mas foi. Eu comecei mais cedo do que isso. Dez anos após a Grande Guerra, como a chamávamos, antes de começarem a numerá-las. Higgins: - Sente falta da ação, senhor? Senhor: - Não. Sinto falta daquele tipo de clareza.169

A falta de clareza é a característica-chave na qual se assenta o enredo de “Três Dias do Condor”. Distanciando-se das representações cinematográficas tradicionalmente operadas durante as décadas anteriores, o filme de Pollack obscurece o contexto, tornando as ações da Agência desconhecidas e, até certo ponto, incompreensíveis, inclusive para aqueles que lá trabalham. Turner inicia a narrativa afirmando que ainda confiava em algumas pessoas. No final, seu olhar expressa a decepção e a desesperança. Em meio a traições e interesses secretos, o pesquisador torna-se um clandestino por conhecer a verdade.

4.1.3 A Guerra Fria dos Anos 1960 e 1970 O exame dos dois títulos selecionados, “Dr. Fantástico” e “Três Dias do Condor”, esclarece o distanciamento existente entre as representações cinematográficas concernentes à temática da Guerra Fria, entre meados dos anos 1960 e uma década após. Entre esses dois momentos históricos, profundas mudanças sociais, culturais e políticas tomaram forma. Nessa conjuntura, acontecimentos delimitados, como a aproximação diplomática estabelecida por

168 William J. Donovan, Diretor do Escritório de Serviços Estratégicos (Office of Strategic Services – OSS) durante a Segunda Guerra Mundial. O OSS foi o órgão precursor da CIA. Donovan é considerado o pai da inteligência americana e o fundador da CIA. 169 O diálogo se dá entre 1h39min42seg. e 1h40min36seg. 246

Nixon, colaboraram para a alteração na percepção pública daquilo em que consistia o conflito entre os conhecidos adversários internacionais. Diante disso, o cinema implementa alterações quanto à perspectiva, objetivando aproximar-se do que parecia ter se tornado o conflito. “Dr. Fantástico” dialoga com um contexto no qual o medo de um conflito nuclear catastrófico, que implicaria a destruição de boa parte da vida do planeta, era vivenciado com intensidade. Além disso, o perigo representado pelo comunismo, enquanto organização político-econômica divergente da tradição dos Estados Unidos, continuava a configurar-se como um elemento singular na retórica política da nação. Antes da revolução cultural que se avizinhava, o comunismo ainda era o principal risco para a manutenção do modo de vida americano. Poucos anos depois essa visão precisaria ser matizada, o que significou incluir pressões sociais internas próprias aos EUA à lista de perigos, ao menos segundo a ótica de parcelas mais tradicionais daquela sociedade. Essa atmosfera, porém, não impediu a abordagem satírica realizada pelo enredo. Ao justificar o holocausto nuclear através da ação insana de um general psicótico, Kubrick ironizava boa parte do discurso do Departamento de Defesa do país, além de relativizar a efetividade do gigantesco aparato militar. De qualquer forma, após a detonação das inúmeras ogivas nucleares que, coadunando-se com a perspectiva sexual-psicológica da narrativa, explodem em um orgasmo atômico, as linhas gerais do embate entre URSS e EUA permanecem inalteradas. Enquanto o General Turgidson teme perder a dianteira na corrida pelas minas que serão transformadas em abrigo, o Embaixador Soviético aproveita a distração de todos para fotografar a Sala de Guerra, mesmo que o lugar já não possua relevância alguma após a catástrofe. “Três Dias do Condor” volta-se ao contexto diferenciado do pós Watergate. Em meados da década de 1970, os soviéticos haviam deixado de usufruir da exclusividade como inimigos dos americanos. Primeiramente, pela ascensão da China como ator político de relevância internacional; em segundo lugar, pela détente com os soviéticos estabelecida pela administração Nixon; e, finalmente, pelo entendimento de que os valores tradicionais do país contavam com antagonistas internos, além de qualquer ideologia política estrangeira. Esse último elemento configura-se como o ponto de inflexão da trama, que, expressivamente, não conta com nenhum personagem soviético. No filme de Pollack, é a narrativa, sobretudo os diálogos, que assumem o principal papel de transmissão das mensagens propostas pelo enredo. Cinematograficamente, “Três Dias do Condor” não propõe inovações. Assim, oferece-se destaque ao que as personagens têm a dizer. Turner inicia e conclui sua trajetória sem demonstrar convicções políticas. E, 247

apesar de acreditar em seu país, não apresenta nenhuma disposição em aceitar corporativamente o modelo de atuação da CIA, como Higgins o fez. Na parede de sua sala, Kathy expôs algumas fotografias de sua autoria, impressas em grandes medidas. As fotos, em preto-e-branco, foram tomadas em lugares comuns, campos, parques ou construções à beira de estrada, retratando objetos estáticos, sem a presença de pessoas. A iluminação mediana, típica de dias nublados, distingui-se em todas as peças. Ao observá-las e examiná-las, Turner questiona quanto à solidão predominante, a que a jovem fotógrafa responde terem as imagens sido captadas durante o inverno. Turner, então, discorda, dizendo tratar-se de fotografias realizadas durante o mês de novembro que, para o pesquisador, não representa “nem o outono, nem o inverno, mas o meio”. Essa falta de precisão e de clareza dialoga com a realidade momentânea de Condor, que se via caçado pela CIA sem compreender a motivação. Para além disso, relaciona-se com o contexto político segundo a perspectiva que o enredo procura representar, uma vez que nenhuma nação estrangeira ocupa a posição de inimigo com a obviedade que outrora coube aos soviéticos. Finalmente, ambas as películas elaboram críticas ao modelo econômico e de administração capitalista. Entretanto, essas críticas diferem em profundidade e foco de análise. “Dr. Fantástico” faz uma crítica direta e, dentro dos parâmetros do humor negro no qual se baseia o enredo, incisiva. Quando o Capitão Mandrake tenta fazer uma ligação para o Presidente Muffley visando parar o ataque e salvar o mundo, a companhia telefônica transforma-se em um obstáculo quase intransponível devido à falta de moedas para completar a chamada interurbana. Mandrake, então, ordena o Coronel “Bat” a atirar na máquina da Coca-Cola para consegui-las. Atingida, a máquina libera o dinheiro, porém “urina” um jato de refrigerante na face do coronel. Na cena, as corporações colaboram para selar o destino fatídico da humanidade, por poucas moedas. Por outro lado, apesar de “Três Dias do Condor” não efetuar a crítica ao capitalismo em si, questiona a sua atuação e as lamentáveis consequências. Ao longo da projeção, o nome empresarial da organização dos chefes da CIA, os objetivos de Atwood ligados ao controle do petróleo e, especialmente, a justificativa proposta por Higgins para os jogos planejados pela Agência, estabelecem a atuação em termos eminentemente econômicos. Pelo fato de se tratar de uma organização de inteligência governamental que tem por objetivo agir no escopo da política internacional, o fato denota estar a política a cargo dos interesses econômicos, sejam estatais ou não. Consequentemente, ao invés de o Estado desempenhar sua função social, concretizando a utilização e a distribuição justa da riqueza, assume posição de agente econômico, sobretudo. As palavras de Joubert, após assassinar 248

Atwood, esclarecem a total ausência da ideologia de outrora: “- O porquê não me interessa. Eu me importo com o ‘quando’, às vezes ‘onde’ e sempre com o ‘quanto’.”170

4.2 A GUERRA DO VIETNÃ Ainda que se considere o período estudado como um momento marcado por grandes e diversificadas transformações na sociedade dos Estados Unidos, a participação do país no conflito do Vietnã pode ser considerada um acontecimento que assumiu posição de destaque no contexto de lutas sociais e embates políticos do final da década de 1960 e início da seguinte. À medida que as disputas relativas à guerra acirravam-se, a questão foi se tornando ponto central na retórica de grupos sociais inicialmente articulados ao redor de temas que não se relacionavam diretamente com a disputa. Assim, conforme a participação do país se aprofundou, as ações do governo dos EUA quanto ao Vietnã consolidaram-se como exemplo-chave da relação do Estado com seus cidadãos em um período no qual diversos movimentos políticos e sociais buscavam influir nas políticas de Estado. Portanto, apesar de a guerra constituir-se como um fato da política internacional, acabou por provocar desdobramentos domésticos nos Estados Unidos, como elemento integrante de todo o cenário de transformações em curso. E, após a inesperada derrota americana, a Guerra do Vietnã consolidou-se como um evento traumático que influenciou na política e no imaginário social do país por toda a década de 1970, ao menos. O cinema, então, teve no Vietnã uma das principais bases de desenvolvimento de enredos. Os conflitos militares sempre estiveram presentes nas lentes de Hollywood, desde seus primórdios, sob variadas perspectivas. O conhecido “O Nascimento de Uma Nação” (1915), de Griffith, aborda o período da Reconstrução após a Guerra de Secessão. Ainda durante a Primeira Guerra Mundial, Charles Chaplin colaborou com o esforço bélico atuando em filmes-propaganda para a venda de bônus de guerra, títulos que objetivavam arrecadação para financiamento da participação dos EUA. No entanto, seria a partir da Segunda Guerra Mundial que os estúdios transformariam a temática em um gênero cinematográfico, tendo produzido filmes retratando a contenda mesmo antes de a guerra acabar. Casablanca (dir.: Michael Curtiz – 1942) é um dos exemplos mais representativos, dentre inúmeras produções que trataram ou foram ambientadas no conflito durante a primeira metade da década de 1940. Apesar da predominância de títulos voltados à Guerra da Coréia, no início dos anos 1950, a Segunda Guerra seguiu como pano de

170 Fala proferida em 1h46min17seg. 249

fundo para as mais diversas tramas, ao longo das décadas seguintes, ainda sendo uma realidade diegética ou extradiegética eventualmente presente nas telas. Apesar desse histórico, a relação de Hollywood com a Guerra do Vietnã como tema para suas produções demanda cautela. Enquanto que, durante os anos 1960, o conflito ocupou as salas de exibição apenas pontualmente, sendo uma questão evitada pelos estúdios, a partir da derrota, a participação malfadada da nação transformou a disputa em uma temática recorrentemente explorada. Nos anos finais da década de 1960 a guerra despertava rupturas na sociedade americana, sendo defendida e detratada com a mesma paixão por grupos sociais distintos. Além disso, estava presente na mídia cotidianamente como o primeiro envolvimento bélico do país a ser apresentado ao vivo, pela televisão, nos noticiários do horário nobre. Ainda assim, Hollywood a considerava com distanciamento. Significativamente, em algumas das vezes em que o conflito foi abordado, os enredos eram localizados em outra temporalidade. Por exemplo, a narrativa de MASH (dir.: Robert Altman – 1970) transcorre durante a Guerra da Coréia, apesar de a problemática levantada claramente remeter ao conflito no outro país asiático. Do mesmo modo, não obstante “Patton, Rebelde ou Herói?” (Patton, dir.: Franklin J. Schaffner – 1970) ser uma biografia do General George S. Patton, destacado oficial durante a Segunda Guerra, o ângulo de exame proposto pelo enredo dialoga com o debate sobre a pertinência da participação dos EUA no Vietnã. A partir da retirada das tropas, e do inevitável reconhecimento da derrota americana, Hollywood passou a oferecer espaço para o tema de forma mais direta. Os filmes da década de 1970 próximos à Nova Hollywood foram os que, comumente, se voltaram à reflexão sobre o conflito. Nesses, ao invés das películas trazerem às telas a representação espetacular da violência do campo de batalha, usualmente debruçavam-se sobre os desdobramentos sociais e psicológicos da guerra para os veteranos, seus familiares, amigos e a reinserção dos ex- combatentes na sociedade. Essa é a tônica de “O Franco Atirador” (The Deer Hunter, dir.: Michael Cimino – 1978). Já em Apocalypse Now (Francis Ford Coppola – 1979), a insanidade ganha destaque através da viagem que explora as entranhas das florestas daquele país. Em outros filmes da década, o histórico do protagonista como veterano do Vietnã funciona como ponto de partida e fundamentação para um comportamento psicótico e violento exacerbado, como em “Taxi Driver – Motorista de Táxi”, anteriormente analisado, ou em “A Outra Face da Violência” (Rolling Thunder, dir.: John Flynn – 1977). 250

A década de 1980 testemunha uma absoluta mudança de curso no que diz respeito à representação cinematográfica da Guerra do Vietnã. Com a retomada do ânimo nacional através do discurso que buscava valorizar a posição singular dos EUA no mundo, já a partir do final dos anos 1970, e com o estabelecimento da retórica conservadora do governo de Ronald Reagan, multiplicam-se os filmes nos quais se destaca o heroísmo dos soldados americanos imersos em um conflito perdido pelos políticos. Em variados títulos, a narrativa do “exército de um homem só” que, apesar dos inúmeros traumas, retorna ao Vietnã para resgatar prisioneiros de guerra remanescentes, torna-se o veículo para a expiação da derrota. O boina verde John Rambo171 e o Coronel James Braddock172 são dois exemplos de personagens que voltaram diversas vezes àquele país com esse intuito. Ainda assim, filmes como “Platton” (dir.: Oliver Stone – 1986), “Nascido Para Matar” (Full Metal Jacket, dir.: Stanley Kubrick – 1987) e “Nascido em 4 de Julho” (Born on the Fourth July, dir.: Oliver Stone – 1989) continuaram a problematizar a participação dos EUA no conflito, bem como suas implicações sociais. A seguir analisam-se os filmes “Os Boinas Verdes” (The Green Berets, dir.: Ray Kellogg, John Wayne – 1968) e “O Franco Atirador” (The Deer Hunter, dir.: Michael Cimino – 1978) observando-se a maneira como ambos os enredos trataram da Guerra do Vietnã enquanto tema cinematográfico. Além das implicações políticas, privilegiam-se os fundamentos das representações operadas.

4.2.1 “Os Boinas Verdes” (1968) A direção do filme é compartilhada entre Ray Kellogg (1905 – 1976) e o próprio John Wayne (1907 – 1979), que interpreta o personagem protagonista. Kellogg nasceu em 1905, no estado do Iowa. Durante a Segunda Guerra, trabalhou como cameraman para o exército, participando das filmagens dos Julgamentos de Nuremberg. Durante os anos 1950, ficou conhecido pelos efeitos especiais que realizou em produções da Twentieth Century Fox, tornando-se chefe do departamento. Além de dirigir “Os Boinas Verdes”, respondeu pela direção em filmes do gênero da ficção científica “B” típicos da década de 1950, como The

171 Protagonista da série de filmes First Blood, sendo “Rambo – Programado Para Matar” (First Blood, dir.: Ted Kotcheff – 1982), “Rambo II – A Missão” (Rambo: First Blood Part II, dir.: George P. Cosmatos – 1985), Rambo III (dir.: Peter MacDonald – 1988) e “Rambo IV” (Rambo, dir.: Sylvester Stallone – 2008). 172 Protagonista da série de filmes Missing in Action, sendo “Braddock – o Super Comando” (Missing in Action, dir.: Joseph Zito – 1984), “Braddock II – O Início da Missão” (Missing in Action 2, dir.: Lance Hool – 1985) e “Braddock III – O Resgate” (Missing in Action 3, dir.: Aaron Norris – 1988). 251

Killer Shrews (1959) e “O Monstro Gigante de Gila” (The Giant Gila Monster – 1959). Além desses títulos, dirigiu o drama familiar My Dog, Buddy (1960). John Wayne, que estrela e dirige “Os Boinas Verdes”, é amplamente conhecido pelos inúmeros trabalhos de atuação em filmes dos gêneros western e de guerra, tendo se tornado famoso pelo protagonismo em filmes dirigidos por John Ford. Nascido no Iowa, em 1907, Wayne teve sua admissão recusada na Escola Militar de Annapolis, aceitando uma bolsa como jogador de futebol americano, na Universidade da Califórnia. Antes de ser alçado à fama em “Nos Tempos das Diligências” (Stagecoach, dir.: John Ford – 1939), Wayne participou de mais de 70 westerns de baixo orçamento. De orientação política claramente à direita, Wayne fundou a Aliança Cinematográfica pela Preservação dos Ideais Americanos (Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals), em 1944, organização política conservadora, como a denominação permite concluir. Tornou-se, posteriormente, seu presidente. Sua posição política usualmente transparecia nos personagens que interpretava, sendo determinante nos filmes “O Álamo” (The Alamo – 1960) e “Os Boinas Verdes”, os quais dirigiu e co-dirigiu, respectivamente. A narrativa inicia-se no Fort Bragg, um campo de treinamento do exército, na Carolina do Norte, onde acontece a cerimônia de formação de uma turma de boinas verdes. Desse modo, os militares apresentam as habilidades adquiridas para um grupo de civis, aparentando serem seus parentes. A cerimônia transforma-se em uma palestra que pretende justificar a participação dos Estados Unidos no Vietnã, com a demonstração de armamentos apreendidos naquele país e que eram originários de variadas nações comunistas. Dentre os civis, o jornalista George Beckworth (David Janssen) questiona os militares sobre o envolvimento americano no conflito, sendo seguido por outros civis céticos da serventia de tal participação. Os boinas verdes conseguem argumentar de maneira a rebater todos os questionamentos contrários levantados, concluindo por ironizar o papel social e a idoneidade da imprensa. Terminado o debate, Beckworth volta-se ao Coronel Mike Kirby (John Wayne) e afirma que seus homens não conseguiram convencê-lo, a que o coronel rebate perguntando ao jornalista se ele já havia estado no Vietnã. Diante da negativa, Beckworth fica sem argumentos para continuar a conversa. Apercebendo-se de seu desconhecimento empírico sobre a guerra, o jornalista decide ir ao Vietnã. O Coronel Kirby segue para o Vietnã do Sul em companhia de dois grupos de boinas verdes. Um dos grupos terá a responsabilidade de substituir combatentes em uma base que está sendo construída em cooperação com forças sul-vietnamitas, enquanto o outro deve formar uma “Unidade Mike” de contraguerrilha. No momento em que Kirby vai embarcar 252

com suas forças para o campo, Beckworth propõe acompanhá-los. Apesar de o coronel julgar a ação perigosa, permite a participação do jornalista. No campo, Beckworth testemunha os esforços humanitários dos militares americanos. Além dos projetos de irrigação realizados pelas forças, o médico do grupo, Sargento Kowalski (Mike Henry), atende com atenção e eficiência a fila de moradores do vilarejo vizinho. Ao consultar as crianças, distribui doces. Apesar de Beckworth simpatizar com os habitantes do lugar, e de interagir afetuosamente com a pequena neta do líder do vilarejo, permanece cético quanto à necessidade da presença americana naquele território. O comando do campo pertence ao Capitão Nim (George Takei), integrante do Exército da República do Vietnã, força militar regular da parte sul do país. Lutando pelo governo anticomunista, Nim é obsecado em matar todos os Viet Congs que conseguir como forma de encerrar a guerra. O capitão desconfia da existência de espiões dentre seus comandados. Enquanto isso, o Sargento Petersen (Jim Hutton) faz amizade com Hamchunk (Craig Jue), um garoto órfão que reside no campo em companhia de seu cachorro. Após perder os pais, os soldados do campo tornaram-se sua única família. O laço entre o sargento e o garoto fortalece-se até Petersen tornar-se responsável pelo órfão. A construção do campo segue dentro da normalidade. Em uma noite, os militares buscam se entreter jogando cartas. Capitão Coleman (Jason Evers) realiza sua última ronda, uma vez que deve embarcar de volta aos Estados Unidos na manhã seguinte. Após se despedir de todos, Coleman retira-se para dormir. Em seguida, inicia-se um bombardeio ao campo e o dormitório onde Coleman havia acabado de entrar é destruído. Após o breve bombardeio terminar, os soldados saem para avaliar os danos e Coleman é descoberto morto pelo Sargento Provo (Luke Askew). Provo, que teme acabar denominando alguma instalação militar, como é de costume se fazer em homenagem aos soldados mortos, lembra ser aquela a última noite de Coleman no Vietnã. Durante a reconstrução dos danos causados pelo último bombardeio e a preparação para um eventual novo ataque, Sargento Muldoon (Aldo Ray) percebe que um soldado do Vietnã do Sul, sob comando de Nim, estava discretamente medindo distâncias dentro do campo. Muldoon agride o soldado e leva-o até Nim, que o interroga. Apesar de o soldado negar ser um espião, Nim encontra um isqueiro que havia pertencido a um boina verde recentemente morto em um de seus bolsos. Nim entrega o isqueiro a Kirby, que reconhece o nome do amigo gravado no objeto. Diante do fato, e com a anuência de Kirby, Nim inicia uma sessão de tortura do espião, a que Beckworth se opõe. 253

Beckworth convence-se da justeza da participação dos EUA no conflito alguns dias depois, quando acompanha Kirby e sua tropa ao vilarejo próximo. Chegando ao local, os soldados descobrem que o líder do vilarejo, além de boa parte dos homens, havia sido torturado e morto pelos Viet Congs por colaborar com os americanos. Após procurar pela neta do líder, Beckworth a encontra morta na mata. Algumas noites depois, as forças comunistas realizam um ataque massivo ao campo com centenas de combatentes. Os soldados tentam resistir até a chegada de reforços. Kirby e Muldoon voam para o local, porém o helicóptero é atingido e faz um pouso forçado. Sendo resgatados por homens das forças especiais, os dois militares montam um posto avançado para organizar os reforços. Enquanto isso, o violento ataque prossegue e Beckworth começa a lutar ao lado dos boinas verdes. Quando um sargento vietnamita é baleado, o jornalista pega seu rifle e começa a atirar contra os invasores, buscando ajudar a população do vilarejo a entrar no campo para se proteger. Os inimigos conseguem ultrapassar as barreiras e entram no campo, forçando os soldados americanos e vietnamitas, além dos civis, a recuar. Começam a ocorrer baixas do lado dos americanos e sul-vietnamitas. Sargento Provo é mortalmente ferido por Viet Congs que estavam infiltrados nas forças de Nim e haviam tomado uma casamata. O capitão, porém, tinha escondido bombas nesses locais e pôde remotamente explodir os desertores. Nim, entretanto, acaba morto pelos invasores. Ao amanhecer, Kirby ordena a evacuação do campo, deixando-o sob ocupação das forças comunistas. Então, ordena um ataque aéreo que mata a maioria dos combatentes. Mais tarde naquele dia, os Viet Congs e os soldados do Norte retiram-se devido ao enorme número de baixas. Kirby e seus homens reocupam o campo. Kirby determina o imediato início da reconstrução do campo. Conversando com o coronel, Beckworth demonstra sua mudança de posição, apoiando a participação dos EUA no conflito, porém afirma a Kirby que será despedido de seu jornal caso escreva sobre suas impressões. De qualquer forma, agradece a Kirby pela experiência e retorna junto aos reforços para a Base de Da Nang. Após a batalha, Kirby reúne-se com seu superior, Coronel Morgan (Bruce Cabot) e com Coronel Cai (Jack Soo), quando é informado sobre uma missão secreta para sequestrar o General Phan Son Ti, do Vietnã do Norte. Para tanto, Cai conta com a ajuda de sua cunhada, Lin (Irene Tsu), antiga conhecida de Ti. Kirby e seus boinas verdes descem de paraquedas nas proximidades da fazenda aonde o General Ti vai se encontrar com Lin. 254

Durante a madrugada, Kirby e seu grupo matam todos os soldados que montavam guarda ao redor da propriedade e entram sem serem percebidos pelos seguranças do interior da mansão. Após doparem Ti, colocam-no dentro do porta malas de seu carro e fogem, trocando tiros com os seguranças. Ao amanhecer, a fuga prossegue em direção a uma ponte previamente preparada pelos boinas verdes para explodir após a passagem de Kirby, impedindo a perseguição. Tendo escapado, os boinas verdes remanescentes reúnem-se em um campo onde utilizam um dispositivo que permite o içamento do General Ti por um avião sem que a aeronave precisasse pousar. Tendo concluído a missão com sucesso, os militares seguem para o ponto onde serão resgatados por helicópteros. Entretanto, no caminho, Petersen é morto em uma armadilha e os boinas verdes precisam deixar seu corpo para trás. Os helicópteros retornam a Da Nang com os sobreviventes. Na pista, Beckworth e Hamchunk esperam pelos combatentes. Assim que as aeronaves pousam, o garoto sai em busca de Petersen, sem encontrá-lo. Observando o fato, Beckworth percebe o peso dramático da guerra e decide seguir para o combate com um novo grupo de soldados que acabara de chegar ao Vietnã. Paralelamente, cabe a Kirby a difícil tarefa de informar a Hamchunk sobre a morte do amigo. Caminhando com o garoto na praia localizada ao lado da pista de pouso da base, Kirby coloca a boina de Petersen sobre a cabeça de Hamchunk, que pergunta: “- O que será de mim, agora?”. Diante do pôr do sol, Kirby segura a mão do garoto e responde: “- Deixe que me preocupe com isso, boina verde. Afinal, você é o motivo de tudo isso.” “Os Boinas Verdes” enaltece o espírito militar desde os seus primeiros minutos. Iniciando-se a narrativa já nos créditos iniciais, estes são apresentados sobre fotogramas das cenas de combate que serão exibidas ao longo da projeção. Os fotogramas são colorizados de forma a assemelharem-se a negativos, variando entre tons de verde, amarelo e laranja, conforme mudam as imagens. Neste clip de abertura, destaca-se a figura do protagonista, sendo a maioria dos fotogramas referentes a momentos nos quais o Coronel Kirby lidera seus homens em combate. A trilha sonora da cena, “The Ballad of The Green Beret”, foi uma das poucas músicas a tratar dos soldados americanos através de uma perspectiva positiva, durante o Vietnã. Sua letra narra o valor moral e os sacrifícios enfrentados pelos boinas verdes durante o rígido treinamento e, posteriormente, nos campos de batalha. 255

Fotograma 96 - O título do filme é apresentado sobre uma das cenas de combate (00min26seg.). Tendo o protagonista ao centro, sua maior proporção corporal projeta a importância do personagem. Coronel Kirby corre corajosamente em frente e, devido ao ângulo de câmera, em direção ao espectador, enquanto ouve-se a música abaixo.

Fighting soldiers from the sky Fearless men who jump and die Men who mean just what they say The brave men of the Green Beret

Silver wings upon their chests These are men, America's best One hundred men will test today But only three win the Green Beret

Trained to live off nature's land Trained in combat, hand to hand Men who fight by night and day Courage taken from the Green Beret

Silver wings upon their chests These are men, America's best Men who mean just what they say The brave men of the Green Beret

Back at home a young wife waits Her Green Beret has met his fate He has died for those oppressed Leaving her this last request

Put silver wings on my son's chest Make him one of America's best He'll be a man they'll test one day 173 Have him win the Green Beret

Em andamento de marcha militar, a música transcende aos créditos, procurando manter o espectador no espírito patriótico que a letra e o ritmo sugerem, conforme a primeira cena inicia-se. A cena em questão traz a apresentação dos novos boinas verdes, prontos para

173 SADLER, Barry; MOORE, Robin. The Ballad of the Green Berets. Intérprete: Barry Sadler. In: Ballads of the Green Berets. ____:RCA Victor, 1966. A tradução da letra encontra-se no anexo nº 07. 256

seguirem rumo ao conflito. Conforme se apresentam, os militares sublinham características que denotam o alto nível de preparação oferecido pelo exército americano. Cada um deles é especialista em alguma habilidade necessária para o trabalho que deve desempenhar, além de falar três idiomas. A plateia, composta por civis, conta com alguns jornalistas observadores que propõem a discussão a respeito da pertinência da participação dos Estados Unidos naquele conflito no Sudeste Asiático. A argumentação dos soldados baseia-se na apresentação de armas apreendidas que, por terem sido fabricadas em países de regime comunista, comprovariam um suposto plano internacional para o domínio mundial do comunismo. Além disso, a defesa da liberdade justifica o emprego de forças militares dos EUA quando o argumento anterior parece não ser suficiente. Na cena, o seguinte diálogo ocorre: Sargento Muldoon: - Sou o sargento Muldoon e esse é o sargento McGee. Já fomos ao Vietnã do Sul três vezes a serviço, o que nos torna peritos. Por isso, fomos convocados para responder às suas perguntas hoje. Hume Parkinson: - Sou Hume Parkinson. Sou jornalista. Talvez possam responder a uma pergunta de muitos dos meus leitores. Sargento Muldoon: - Vamos tentar. Hume Parkinson: - Por que os Estados Unidos estão travando essa guerra cruel? Sargento Muldoon: - Decisões de política internacional não cabem às forças armadas. Um soldado vai aonde é mandado e combate a quem ordenarem. Beckworth: - Concorda com isso, sargento McGee? Os boinas verdes não passam de robôs sem sentimentos? Sargento Muldoon: - Posso saber o seu nome, senhor? Beckworth: - George Beckworth, Chronicle-Herald. Sargento Muldoon: - Obrigado, senhor. Sybil Sutton: - Sybil Sutton, Washington Sentinel. Pode, por favor, responder à pergunta? Eles apertam um botão, vocês cumprem ordens sem sentimentos ou opiniões pessoais? Sargento McGee: - Temos sentimentos e opiniões. É difícil não tê-los lá. Sybil Sutton: - Os vietnamitas do sul estão dispostos a morrer pela causa. Sargento McGee: - Como soldados, entendemos a morte de militares, mas o extermínio de civis, a morte e a tortura de mulheres e crianças... Sybil Sutton: - Imagino que coisas horríveis aconteçam na guerra. Mas isso não significa que eles precisem ou queiram nossa presença. Sargento McGee: - Tentarei responder a essa pergunta. Vou colocá-la de um modo que todos possam entender. Se a mesma coisa acontecesse aqui nos Estados Unidos, os prefeitos de todas as cidades seriam assassinados, todos os professores que conhecem seriam torturados e mortos. Todos os professores universitários, governadores, senadores, todos os membros da câmara dos deputados seriam torturados e mortos. E um grande número sequestrado. Mas, apesar disso, sempre há alguém disposto a se levantar e ocupar o lugar dos que foram dizimados. Eles precisam de nós, Srta. Sutton. E nos querem. Gladys Cooper: - Sargento, sou Gladys Cooper, uma dona de casa. É estranho que isso nunca tenha saído nos jornais. Sargento Muldoon: - Jornais! Daria para encher volumes com o que eles não publicam. Beckworth: - Às vezes, é verdade. Mas como sabem que devemos lutar por esse governo? Eles não tiveram eleições livres. Eles não têm Constituição. Há seis meses formou-se um comitê para escrever a Constituição. Nada ainda. Sargento Muldoon: - A escola onde estudei ensinou que as 13 colônias, com lideranças instruídas, todas visando o mesmo objetivo, após a Guerra da 257

Independência, levaram de 1776 a 1787, onze anos de esforço pacífico para escrever um documento que todas as 13 colônias assinassem. Nossa atual Constituição. Beckworth: - Muito bom, sargento. Mas muitas pessoas acham que essa é uma guerra entre os vietnamitas. Deixem que eles resolvam isso. Sargento Muldoon: - Deixá-los resolver, Sr. Beckworth? Armas apreendidas. Da China vermelha, Chison IK-50. Chineses comunistas. S.IK.S., carabina soviética. Comunistas russos. Munição da Tchecoslováquia. Comunistas tchecos. Não, Sr. Beckworth, não precisa cair um peso sobre mim ou ser atingido por um tiro dessas armas para ver que se trata de dominação comunista do mundo. Senhoras e senhores, desculpem por respondermos às suas perguntas com um pouco mais do que “sim” ou “não”. Mais alguma pergunta?174

Na cena, os argumentos dos sargentos, favoráveis à participação, claramente sobrepõem-se ao posicionamento contrário dos jornalistas, que dão a impressão de não estarem capacitados para aprofundar o debate. O diálogo, que ocorre logo no início da narrativa, tem importância para a construção da trama, pois fundamenta o enredo. Além disso, relaciona-se ao debate que ocorria na sociedade dos Estados Unidos. Os argumentos levantados alicerçam-se no âmbito afetivo, citando a Constituição e o exemplo de ocorrer algo similar nos EUA; no histórico, lembrando-se das 13 colônias e da Guerra de Independência Americana; e no político, questionando o papel da imprensa e levantando a questão da dominação comunista mundial, já anacrônica naquele momento. Assim, o discurso dos sargentos assume um viés tradicionalista e, como a conversa é travada sob o olhar atento do Coronel Kirby, recebe apoio oficial. O grupo que ouve às explanações de Muldoon e McGee é composto, majoritariamente, por pessoas brancas, de meia idade ou idosas. Desse modo, longe de representar a heterogeneidade daquela sociedade, os ouvintes assemelham-se ao estereótipo das parcelas sociais mais conservadoras. Enquanto Muldoon é branco, McGee, que se utiliza intensamente do princípio da liberdade para justificar as ações militares, é negro. Desse modo, aquele grupo de pessoas ouve um negro falar sobre liberdade, em 1968, para defender uma intervenção militar. Depois de encerrado o debate, os militares são aplaudidos, enquanto os jornalistas aceitam ser silenciados.

174 O diálogo ocorre entre 06min16seg. e 10min24seg. 258

Fotograma 97 - Os civis que ouvem atentamente as explicações dos militares para a intervenção dos Estados Unidos no Vietnã (07min.43seg.). Distante da heterogeneidade étnica, etária e cultural da sociedade americana, o grupo majoritariamente branco termina por aplaudir os argumentos intervencionistas. Uma vez que, dentro dos marcos da película, a participação militar dos Estados Unidos está moral, ética, histórica e politicamente justificada, a narrativa segue para o Vietnã. Três são os locais utilizados pelo filme de Wayne para embasar a representação do país: a Base de Da Nang, o campo em construção, e a fazenda colonial francesa onde o General Phan Son Ti é sequestrado. Nestes cenários erige-se o estereótipo da sociedade vietnamita. Assim, nas ruas confusas e congestionadas da cidade próxima à base, galinhas e porcos são transportados amarrados ao bagageiro de um ônibus, enquanto os inúmeros pedestres dificultam a circulação. No que se refere ao campo, as montanhas ao redor são o lar de agricultores simples, que sequer conhecem o significado do dinheiro quando este ícone da riqueza lhes é oferecido. Uma população similar parece compor os soldados que guardam a fazenda, incapazes de identificar a ação de sequestro. A propriedade, que não apresenta qualquer tecnologia agrícola, é cercada por estradas não pavimentadas. De qualquer forma, a participação dos sul-vietnamitas nas ações militares tem destaque. Enquanto Kirby divide a autoridade na base com o Coronel Cai, o campo está sob comando do Capitão Nim, ambos integrantes do exército do Vietnã do Sul. Dessa forma, todas as atitudes que sejam moral ou eticamente questionáveis são realizadas pelos militares vietnamitas, mantendo-se seus congêneres americanos integramente dentro dos marcos aceitáveis da ação militar digna. Considerando-se esses parâmetros, a inteligibilidade da cena na qual o espião Viet Cong é descoberto assume nuances pouco ingênuas. No momento em que Nim desfere o primeiro golpe contra o homem em questão, um bofetada na face, Kirby subitamente adentra o enquadramento e segura a mão do capitão, pedindo-lhe calma. Entretanto, ao ver o isqueiro, objeto que comprova a espionagem, afasta- 259

se do local, sendo conivente com a sessão de tortura que se inicia, e provável assassinato posterior. Questionado por Beckworth, que afirma que o Viet Cong merecia um julgamento, Kirby é taxativo ao afirmar que, naquela guerra, “os julgamentos são feitos à bala”. Importante salientar que, apesar de condescender, Kirby não participa nem testemunha o acontecimento, cabendo ao militar vietnamita realizar o ato questionável. Em “Os Boinas Verdes”, todos os atos questionáveis cabem aos personagens vietnamitas. Além da arquetípica representação dos Viet Congs como combatentes vis, que desrespeitam as regras éticas do combate, atacando furtivamente e escondendo-se em túneis, sendo violentos com os agricultores dos vilarejos espalhados em meio à floresta, os próprios vietnamitas do sul são representados de modo reprovável. Desse modo, o Coronel Cai articula o sequestro do General Ti utilizando-se de sua cunhada Lin como isca. Com o objetivo de se vingar do homem que matara seu pai e irmão, a jovem aceita a incumbência, mesmo que para enganá-lo precise se deitar em sua companhia. Hipocritamente, quando Cai testemunha o ocorrido, reprova moralmente a cunhada, como se não tivesse sido ele a colocá-la naquela situação. Por outro lado, ao invés de Lin sentir-se envergonhada pela sua atitude, é a reprovação do cunhado que a constrange. No momento em que o coronel aceita guardar segredo sobre o que testemunhou, toda a angústia da jovem desaparece de seu semblante. De todo modo, a decisão de Cai, representada como benevolente, não parte dele, mas do conselho que recebeu de Kirby. Assim, tanto pela não participação na tortura, quanto por sua recorrente generosidade, o coronel boina verde é caracterizado como justo e sensato. A compreensão que demonstra sobre a realidade social do Vietnã e sobre as idiossincrasias individuais é sua principal característica. Além de soldado devotado e patriótico, Kirby é um humanista, como igualmente humanista é a justificativa dada, logo no início da projeção, para a participação dos Estados Unidos no conflito. As boas intenções dos militares americanos são sublinhadas através dos cuidados e da gentileza demonstrada na relação com a população civil do Vietnã do Sul. Em mais de uma cena, o Sargento McGee, que atua como médico do grupo de Kirby, atende generosamente os doentes dos vilarejos vizinhos utilizando-se do capô de um jeep como consultório. Em um dado momento, uma fila de agricultores aguarda enquanto McGee consulta seus filhos pequenos. Cada consulta é realizada em meio a sorrisos e brincadeiras, sendo seguida por um doce, ao final. Essa relação contrasta com a descrição das atitudes dos Viet Congs para com os civis. Sargento Muldoon serve de intérprete na conversa entre Kirby e o chefe do vilarejo, enquanto sua neta é atendida por McGee: 260

Sargento Muldoon: - Ele disse que os Viet Congs roubam arroz, porcos, frangos e forçam os jovens a lutar para eles. Ele odeia os Congs. Coronel Kirby: - Diga que, se ele trouxer seu povo para cá, terão proteção, dinheiro e comida. Sargento Muldoon: - Ele disse: ‘O que é dinheiro?’ Coronel Kirby: - Como vai responder a essa?175 Toda a assistência humanitária é observada por Beckworth que, em certo ponto, começa a atuar como ajudante de McGee. A cena desenrola-se em seguida à tortura do espião, sendo separada através de um demorado fade-out. Deste modo, o jornalista testemunha o caráter da atuação das forças militares dos Estados Unidos no Vietnã, a rigidez de tratamento devida aos inimigos de combate, por um lado, e o altruísmo oferecido aos habitantes locais, por outro. A atitude do chefe, levar sua neta ferida aos cuidados dos americanos, destaca a importância da participação militar no país e o desejo da população de que os EUA lá permaneçam. Na cena seguinte, quando Kirby e seu destacamento vão ao vilarejo para escoltar os camponeses em segurança e instalá-los no campo, o resultado da carnificina Viet Cong que presenciam conclui a construção dicotômica entre os americanos e seus opositores. Assim, a atuação militar americana na guerra é justificada através de exemplos que Beckworth não pode refutar. Finalmente, caso restasse ao jornalista alguma dúvida quanto à efetividade da participação americana em um conflito interno de outra nação, a violência do ataque noturno ao campo concorre para a sua mudança definitiva de opinião. Pegando em armas para ajudar os civis a escaparem do ataque inimigo, Beckworth luta ombro a ombro com os boinas verdes aos quais inicialmente opunha-se. Em sua cena final, já vestido em verde oliva, o jornalista coloca o saco militar com seus pertences sobre o ombro e segue ladeando a coluna de soldados que marcha rumo ao campo de batalha. Destoando dos militares, Beckworth leva a valise com a máquina de escrever na mão direita. De qualquer modo, não há em toda a projeção uma única cena em que o equipamento seja utilizado. Curiosamente, Beckworth é um enviado de guerra que não toma notas, um jornalista que não escreve.

175 Inicia-se em 01h01min31seg. e encerra-se em 01h01min54seg. 261

Fotograma 98 - A realidade adversa do Vietnã, e a crueldade dos Viet Congs, ensinaram a Beckworth que sua oposição inicial à participação americana no conflito estava equivocada. Esclarecida a verdade, o jornalista não apenas apoia a intervenção, mas torna-se um soldado pronto para a batalha (02h17min20seg.). Hamchunk, o órfão que assume o campo como casa e Petersen como pai adotivo, transforma-se em uma estratégia do enredo para, mais uma vez, sublinhar o caráter humano da presença americana no Sudeste Asiático. O garoto é bem recebido por todos os militares e, estranhamente, apesar da existência de espiões infiltrados, tem livre transito no campo, testemunhando todos os acontecimentos. Hamchunk chega a ser apontado como intérprete, função que exige grande confiança por parte do interpretado. A utilização de crianças na narrativa, especialmente Hamchunk, tem o objetivo de aliviar as tensões da construção dos personagens enquanto militares em combate, colaborando para evitar a unidimensionalidade da representação. Através da relação com Hamchunk o cotidiano dos soldados afasta-se da simples espera pelo próximo enfrentamento. Além disso, Hamchunk, assim como os camponeses, lembram à audiência da existência de uma população que, de acordo com a retórica defendida pela trama, deve ser protegida dos violentos Viet Congs. O discurso desenvolvido ao longo da projeção é concluído na cena final, quando Hamchunk representa, alegoricamente, o futuro do Vietnã. Toda a cena é pensada de maneira a sugestionar uma resposta afetiva na audiência. Cinematograficamente, tanto a escolha do cenário (uma praia que surge ao lado da Base de Da Nang sem ter sido citada em momento algum do filme), os enquadramentos, a iluminação do pôr do sol, as falas e a música que acompanha o desfecho, são elementos que dialogam intimamente com a estrutura do cinema clássico no qual John Wayne fez fama. Considerando que, no início da projeção, a dominação comunista do mundo havia sido levantada como argumento para a intervenção militar americana, a conclusão da película não implica apenas a defesa do futuro do Vietnã, na figura 262

do garoto, mas o futuro do mundo visto segundo a perspectiva conservadora dos Estados Unidos, na imagem de qualquer criança. Coadunando-se com o conflito, à época inconcluso, sobre o qual se apoia o enredo, a tomada final mostra Kirby e Hamchunk caminhando de mãos dadas na praia até saírem do enquadramento, deixando toda a tela para o pôr do sol. O futuro daquela nação repousa no modelo de liberdade e no modo de vida segundo as lentes americanas.

Fotograma 99 - A tomada final veicula Hamchunk sendo guiado pelo coronel Kirby (02h21min36seg.). Apesar do futuro incerto, a segurança da criança está garantida uma vez que ela conta com a generosidade do militar. A plenitude da cinematografia sobre a qual se constrói a cena confirma a benevolência americana.

4.2.2 “O Franco Atirador” (1978) O diretor Michael Cimino (1939 – 2016) nasceu na cidade de Nova Iorque. Pretendendo tornar-se arquiteto, estudou arquitetura e artes dramáticas, porém obteve um Bacharelado e um Mestrado em Pintura, pela Universidade de Yale. Apesar de não possuir formação voltada à arte cinematográfica, iniciou sua carreira profissional filmando comerciais e documentários, além de escrever roteiros. Sua ascensão meteórica começa quando Clint Eastwood o convida para dirigir “O Último Golpe” (Thunderbolt and Lightfoot – 1974)176. Seu próximo filme, “O Franco Atirador”, alcança sucesso junto ao público e à crítica, sendo premiado pela Academia por melhor direção e melhor filme, além de ter recebido o Globo de Ouro de Melhor Diretor e vários outros prêmios e indicações. O sucesso atingido permite a Cimino realizar livremente o projeto “O Portal do Paraíso” (Heaven’s Gate – 1980). O filme, pensado como uma gigantesca produção, fracassou, levando o estúdio que o produzira, a United Artists, à falência. O fato fez com que

176 Cimino já havia trabalhado com Eastwood quando roteirizou “Magnun 44” (Magnun Force, dir.: Ted Post – 1973), continuação de “Perseguidor Implacável” (Dirty Harry, dir.: Don Siegel – 1971), segundo filme da franquia do policial de San Francisco. 263

o diretor experimentasse uma decadência tão rápida quanto sua ascensão. A partir daí, Cimino teve as possibilidades reduzidas no negócio do cinema, apesar de se manter na indústria, como diretor e produtor. Radicando-se na França, escreveu dois romances que foram bem recebidos pelo mercado editorial do país. A história de “O Franco Atirador” desenrola-se entre o fim da década de 1960 e os anos iniciais da década seguinte, narrando a vida de amigos trabalhadores da indústria siderúrgica na cidade de Clairton, Pensilvânia. Clairton, cuja economia gira em torno da usina, conta com uma comunidade de imigrantes russos da qual os amigos fazem parte. Assim, Michael “Mike” (Robert De Niro), Steven (John Savage), Nick (Christopher Walken), Stanley “Stan” (John Cazale), John (George Dzundza) e Axel (Chuck Aspegren) vivem juntos o cotidiano, dividindo o trabalho, as horas após o expediente no bar e os fins de semana caçando veados nas montanhas da região. A trama inicia-se na ruptura dessa realidade, pois Michael, Nick e Steven devem partir para o Vietnã dentro de dois dias. Além disso, é o dia do casamento de Steven com Angela (Rutanya Alda), cuja gravidez já está se tornando aparente Essa questão, além do fato de Steven não ser o pai, é reprovada na comunidade tradicional de religião cristã ortodoxa. A festa de núpcias, além da comemoração pelo casamento, transforma-se em uma despedida para os rapazes. Dessa maneira, o salão é decorado com as cores da bandeira americana, frases patrióticas e grandes fotos dos, em breve, combatentes. Naquela manhã, Linda (Meryl Streep), jovem amiga do grupo, prepara café já trajando o vestido de madrinha do casamento. Ao levar o café para o pai, que se encontra bêbado no andar de cima, é agredida por ele, o que parece ser recorrente. Diante disso, Linda vai à casa de Michael e Nick e pede para morar no lugar enquanto os amigos estiverem a serviço na Ásia. Apesar de namorar Nick, Linda visivelmente nutre afetos por Mike. A personalidade pouco emotiva deste, porém, não permite que a moça confesse seus sentimentos. Na festa de casamento toda a comunidade celebra a união com danças e bebidas. A cena demonstra os laços de amizade e união existentes entre o grupo e sublinha o misto de sentimentos referentes à partida dos rapazes. Enquanto todos se divertem no salão de dança, Michael passa a maior parte do tempo bebendo e observando Linda ternamente, porém com distanciamento. A jovem é ciente dos sentimentos que Mike guarda em segredo. Desse modo, em um dado momento, ambos tentam se aproximar, porém sem sucesso. Assim, quando Linda pega o buquê e Nick propõe-lhe casamento para quando retornar da guerra, a moça consente. 264

No último ritual, os recém-casados devem beber vinho de uma taça dupla. Caso nada seja derramado, a tradição diz que o casal terá um futuro feliz. Todos comemoram o simbolismo, porém duas gotas da bebida caem discretamente sobre o vestido da noiva. O casal parte no Cadillac decorado de Michael, que corre junto ao veículo despindo-se completamente nas ruas escuras e vazias da cidade. Seguido por Nick, os dois acabam em uma quadra de basquete próxima à usina, onde este faz o amigo prometer que não o abandonará no Vietnã caso algo lhe aconteça. Poucas horas depois, os amigos dirigem em direção à montanha para caçar. Mike leva a atividade a sério, defendendo a teoria de que um veado deve ser abatido com apenas um tiro. Desse modo, quando Stan pede meias e botas emprestadas, por ter esquecido as suas, Michael não atende ao pedido e reprova o amigo. Anteriormente, Mike havia dito a Nick que apenas aceitava caçar em sua companhia, apesar de gostar dos outros amigos. No início do dia seguinte, a dupla sai pra caçar, demonstrando um comportamento sereno enquanto a peça “Louvai o Nome do Senhor”177, de Rachmaninoff, compõe a cena. Michael segue e abate um veado, com um único tiro. O grupo retorna à cidade já após o cair da noite e os amigos ouvem, silenciosamente, John tocar o piano que tem em seu bar178. Aquela é a última noite dos amigos juntos. Um corte direciona a narrativa para um vilarejo nas montanhas do Vietnã. Mike está caído junto a alguns mortos enquanto um soldado do Vietnã do Norte encontra camponeses escondidos e lança um morteiro no esconderijo. Uma mulher sai ferida com uma criança no colo, sendo assassinada pelo soldado. Mike, então, levanta-se e incendeia o inimigo com um lança-chamas. Nesse momento, alguns soldados desembarcam de um helicóptero, dentre eles Nick e Steven. O amigo parece não reconhecê-los antes que outro ataque se inicie. O trio é encarcerado em um casebre à beira de um rio. Lá, os Viet Congs obrigam os prisioneiros a jogar roleta russa, apostando no resultado. Quando Steven, à beira de uma síncope, puxa o gatilho, a arma dispara, porém atingindo-o sem gravidade. O rapaz é punido sendo preso em uma gaiola semissubmersa. Mike cria um plano de fuga e, com a ajuda de Nick, consegue matar todos os guardas e fugir levando Steven. Mike, Steven e Nick descem o rio até serem vistos por um helicóptero americano. No entanto, apenas Nick consegue embarcar, ficando os outros dois amigos pendurados do lado de fora da aeronave. Quando Steven cai, Mike pula para salvá-lo. O amigo havia

177 “Louvai o Nome do Senhor” (Praise the Name of The Lord) é uma composição integrante da obra “A Vigília de Toda Uma Noite” (All-Night Vigil), de Sergei Rachmaninoff, sendo seu opus 37. Consiste em um coral baseado em textos da cerimônia de vigília da Igreja Ortodoxa Russa. 178 John executa o Noturno Nº06 – em sol menor opus 15 nº3, de Frédéric Chopin. 265

quebrado a perna na queda e Mike o leva nas costas até uma estrada onde consegue assistência. Algum tempo depois, Nick se recupera em um hospital, porém apresenta instabilidade psicológica. Quando é liberado, vai até a área de prostituição de Saigon, onde encontra Julién Grinda (Pierre Segui), um apostador francês que o leva a uma casa onde homens jogam roleta russa por dinheiro. Inadvertidamente, Nick pega a arma, puxa o gatilho contra sua cabeça, sem que ocorresse o disparo, e sai em companhia do francês. Mike, que estava na plateia, o reconhece, porém não consegue segui-lo. De volta a Clairton, Michael evita a festa de boas-vindas que seus amigos haviam lhe preparado e encontra-se apenas com Linda. Apesar do afeto que nutrem um pelo outro, o casal tem dificuldades na interação. Mike descobre que Nick está desaparecido no Vietnã e que Steven está internado em um hospital militar. Antes de visitá-lo, Mike sai para caçar, porém não consegue mais abater friamente os animais. Chegando ao hospital, encontra Steven em uma cadeira de rodas, sem ambas as pernas, o braço esquerdo paralisado e decorrências psicológicas. Após conversarem um pouco, Steven mostra que vem recebendo dinheiro do Vietnã e Mike acredita ser de Nick. Após levar Steven de volta para casa contra sua vontade, Michael parte para Saigon em busca de Nick. Quando Mike desembarca, a cidade está prestes a cair nas mãos dos combatentes do Vietnã do Norte. Em meio ao caos, Mike reencontra Grinda, que o leva até Nick em um clube de roleta russa lotado de apostadores. O rapaz, no entanto, não reconhece Michael, nem aparenta lembrar-se de sua vida na Pensilvânia. Incapaz de romper a confusão mental do amigo, Mike senta-se à mesa com Nick e ambos começam a jogar roleta russa. No momento em que as palavras desesperadas de Michael aparentam levar Nick a ter uma vaga lembrança de sua vida antes da guerra, o jovem soldado encosta o cano do revólver em sua têmpora direita e puxa o gatilho, ferindo-se mortalmente. De volta aos Estados Unidos, todos os amigos comparecem ao funeral de Nick. Em seguida, o antigo grupo reúne-se no bar de John, onde brindam em nome da lembrança do amigo morto e cantam “Deus Abençoe a América”179. A composição “Cavatina”180 encerra a película, conforme os créditos finais surgem na tela. “O Franco Atirador” não é um filme sobre o Vietnã, porém, mais precisamente, sobre as consequências do conflito para a vida de um grupo de amigos da classe operária de

179 God Bless America, composição de Irvin Berlin, de 1918. 180 No caso, a peça composta por Stanley Myers, em 1970. No geral, cavatina refere-se a um modelo de composição musical simples, normalmente de curta duração e sem a existência de uma segunda melodia. Nas óperas diferencia-se das árias, mais complexas. 266

uma cidade da Pensilvânia. Desse modo, Cimino dirigiu uma película “de personagens”, cuja narrativa volta-se à construção problematizada da vida de pessoas comuns e como um evento resultou em alterações que mudaram o curso da história daquelas pessoas de uma maneira definitiva. Assim, a primeira terça parte da projeção ocupa-se em apresentar detalhadamente os personagens, suas relações interpessoais e o ambiente no qual vivem, sua realidade imediata. Assumindo uma perspectiva narrativa poética, o enredo é desenvolvido em ritmo lento, permitindo que os espectadores vivenciem a camaradagem do grupo de amigos e testemunhem aquele momento singular de suas vidas, o casamento de Steven e o embarque dos amigos rumo à guerra. A abertura do filme dá-se com os créditos sendo exibidos sobre um fundo escuro, ao acompanhamento da “Cavatina” composta por Myers. A música, um solo de violão ao estilo clássico, possui andamento lento. Enquanto as cordas do instrumento produzem as notas de forma suave e sequencial, sem sobreposições, a audiência é psicologicamente preparada para receber a narrativa de forma apaziguada. Essa estratégia talvez se deva ao fato de a participação do país no conflito ainda ser um tema sensível na sociedade dos Estados Unidos, no período. Cimino trazia para as telas um evento diante do qual boa parte da audiência já se encontrava saturada, naquele final de década. A narrativa apenas se inicia após o término dos créditos iniciais, sem que exista continuidade da banda sonora para a primeira tomada. A cena, então, abre-se com a imagem da entrada da cidade de Clairton. É o final da madrugada, o céu de inverno começa a ser iluminado pelos primeiros tons de azul e, por debaixo de um viaduto, surge a paisagem principal do lugar: a usina siderúrgica. Um caminhão tanque, que é dirigido em uma velocidade incompatível com a rua, segue em direção à fábrica. Enquanto a descarga lança fagulhas incandescentes para cima, o ruído do motor contrasta tanto com a serenidade da música de abertura quanto com a paz da pequena cidade, no fim da madrugada. Antes que os espectadores possam conhecer os personagens, o trabalho árduo e o ambiente lúgubre onde vivem é apresentado com bastante plasticidade. Enquanto as ruas por onde se desloca o caminhão são úmidas, frias e enlameadas, o interior da usina é escuro e ameaçador, com a iluminação e os vapores provenientes do metal em estado líquido ocupando o espaço. A tomada externa dá conta da indústria como um monstro de proporções colossais. 267

Fotograma 100 - Acima, a primeira tomada do filme (02min12seg.). O viaduto existente na entrada da cidade impõe ao ambiente uma atmosfera sombria que é corroborada pela paleta de cores. O preto, o cinza e o azul escuro compõem toda a tela. Ao fundo, o parque da siderúrgica ocupa completamente o horizonte, dando a impressão de não existirem alternativas em Clairton. O chão úmido e sujo sublinha o clima frio e hostil da região, além de destacar tratar-se de uma cidade do cinturão da ferrugem, antiga região industrial do país, em franca decadência no final da década de 1960, quando se inicia a narrativa. Apesar dessa caracterização, os personagens orgulham-se de sua cidade. Excetuando-se John, que possui o bar, todos os homens do grupo encontram trabalho na siderurgia. Apesar da aspereza da função, nenhum dos amigos demonstra insatisfação em relação à realidade profissional. Significativamente, apesar de todos os personagens do filme serem integrantes da classe trabalhadora, não existe qualquer referência ao desejo de ascensão social, situação recorrente nos filmes de Hollywood, especialmente naquele período de crise econômica.181 Tanto os rapazes quanto Linda, a única personagem feminina a merecer destaque, aceitam a vida que levam como algo dentro de suas expectativas. O trabalho que os sustenta, o companheirismo e a atividade de caça nas montanhas completam o que todo o grupo entende como uma vida plena. Nada da busca de um padrão de consumo de classe média como sinônimo para a felicidade está presente nessa película. Conforme os laços culturais tradicionais de famílias imigrantes russas dão forma e conteúdo à cidade de Clairton, o processo de humanização dos personagens vai sendo aprofundado. No entanto, a complexificação dos indivíduos é alcançada sem que sua intimidade seja exposta aos espectadores. Apesar de os laços de amizade existentes serem evidenciados, e mesmo detalhes da construção ética, no caso de Michael, serem explorados, a privacidade é preservada. Assim, a audiência recebe indicações do triângulo afetivo entre Nick, Linda e Michael, porém não há desenvolvimento significativo do tema. Apesar de Mike manifestar sua preferência pela amizade de Nick, o enredo não justifica o comportamento. Do

181 No que se refere à maioria dos filmes analisados ao longo do texto, dentre aqueles produzidos na segunda metade da década de 1970, a busca por ascensão social ocupou lugar de destaque no horizonte de preocupações dos personagens, o que é condizente com o arquétipo do modo de vida americano. 268

mesmo modo, a origem dos laços entre os integrantes do grupo não é apresentada em nenhuma passagem da trama, como igualmente não merece explicação o motivo que levou o trio de amigos a alistarem-se para combater no Vietnã. Sequer o esclarecimento de terem se alistado ou se foram compulsoriamente convocados é oferecido à audiência. Esta opção colabora com a naturalização das relações sociais construídas pelo enredo. Como se opera a representação das vidas de pessoas comuns que foram cruzadas e transformadas por um acontecimento específico, nem tudo é perfeitamente inteligível ou contínuo. Existem não ditos e segredos pessoais inconfessáveis, como o afeto entre Linda e Michael. Entretanto, os pontos não esclarecidos da trama nada interferem na proposta do filme, pelo contrário, enriquecem o processo de humanização dos personagens. Distanciando-se daquilo que poderia ser esperado pela audiência, ao longo do primeiro terço da projeção quando a realidade imediata dos amigos é apresentada, o fato de faltarem poucas horas para Mike, Nick e Steve partirem rumo ao Vietnã não assume destaque. Os amigos preferem beber, comemorar o casamento e irem às montanhas caçar ao invés de ocuparem esses últimos momentos com reflexões concernentes às possíveis implicações e perigos da viagem. Apenas quando Mike e Nick estão a sós compartilham suas incertezas sobre o que está prestes a lhes acontecer. No grupo, a pessoa de Michael assume posição central e esse fato é colocado desde o início da narrativa. É no carro de Mike que os amigos se deslocam e viajam. Esse mesmo veículo serve como transporte para os noivos. E, finalmente, é na casa móvel dividida por Mike e Nick que todos se reúnem. A casa simples fica localizada ao lado da usina que, pontuando toda a projeção, sublinha a realidade operária em Clairton. Finalmente, quando precisa de abrigo, é nesse mesmo imóvel que Linda se instala.

269

Fotograma 101 - O carro de Mike e a casa móvel que divide com Nick (17min18seg.). A proximidade da residência com a usina onde os amigos trabalham é evidenciada no ângulo da tomada, que faz a casa parecer estar localizada quase dentro do terreno da indústria. A simplicidade da habitação denota a realidade operária. Além de se tornar uma simples citação no meio de uma conversa sobre a teoria de caça de Michael, o Vietnã surge pontualmente nas frases patrióticas e fotografias dos amigos que adornam o salão de baile do casamento. Ainda na festa, a interação que o trio tem com um boina verde que adentra o local para beber, demonstra a distância existente entre as expectativas e a realidade que enfrentariam naquele país. Quando se apresentam ao militar, informando que logo embarcariam rumo ao conflito, recebem como resposta a palavra “- Foda-se!”, proferida repetidamente. A completa falta de empatia do soldado para com os próximos combatentes os surpreende. Logo após o fim da cerimônia, ocorre entre Nick e Mike o diálogo mais expressivo da apreensão de ambos com relação ao futuro. A conversa consiste no momento-chave do enredo. Sentados no chão de uma quadra de basquete molhada, durante a madrugada de uma noite de inverno, e tendo a sombra da usina ao fundo, Nick expressa o valor que dá à sua vida em Clairton e demonstra como confia em Mike. Michael: - Devo ter perdido a cabeça. Enlouquecido. Eu não sei. Tudo está acontecendo tão rápido. Cara. Ei, Nick, acha que vamos voltar? Nick: - Do Vietnã? Michael: - É. Nick: - Vou lhe dizer uma coisa. O que importa está bem aqui. Eu adoro esse lugar! Michael: - Você tá louco, cara? Nick: - Eu sei que soa como loucura. Se alguma coisa acontecer lá, Mike, não me deixe naquele lugar. Apenas não me deixe lá. Você precisa me prometer isso, Mike. Michael: - Ei! Nick: - Não, cara, você precisa prometer isso de verdade. Michael: - Olha, Nick... Nick: - Hum? Michael: - Eu prometo. Nick: - Promete?182

Apenas estando parcialmente bêbados e no dia anterior ao embarque rumo ao Vietnã é que os amigos têm uma conversa sincera, apesar de breve, sobre o fato. Diante da seriedade da pergunta de Mike, a resposta de Nick assume a forma de um pedido. Nick passa ao amigo a responsabilidade sobre seu futuro. Desse modo, subentende-se que Nick acredita no retorno de Michael, somente. Por outro lado, nenhum dos dois amigos sabe os motivos que os levaram a tomar parte no conflito. Se tudo o que é importante para Nick está em Clairton, por que sua ida ao Vietnã? Durante a festa do casamento, os rapazes são brindados por “servirem a seu país” e em mais de uma faixa dependurada na decoração do salão lê-se: “Servindo a Deus e ao país

182 O diálogo inicia-se em 51min16seg e encerra-se em 52min21seg. 270

orgulhosamente”.183 Seria apenas o espírito patriótico e de comprometimento social que levou os amigos a engajarem-se no conflito? O enredo não procura esclarecer a questão. De qualquer modo, a promessa feita por Michael guia o restante da trama. Contrariando seus traumas pessoais, Mike retorna ao Vietnã em busca do amigo e o traz de volta para casa, ainda que morto. A produção de Cimino foi muito criticada pela representação dos vietnamitas. Enquanto que a população sul-vietnamita é arquetipicamente apresentada ora como vítima do exército do Vietnã do Norte (os camponeses), ora como jogadores e prostitutas, em Saigon, a forma como são retratados os combatentes fundamenta-se na violência e na completa falta de humanidade tanto dos Viet Congs quanto dos soldados efetivos das forças do norte. O diretor optou por apresentar a realidade do Vietnã de modo impactante. Prova isso o corte abrupto realizado entre a cena no bar, quando John toca Chopin no piano para os amigos, e a próxima cena, a primeira a se passar no Vietnã. Nessa, a paz idílica de um vilarejo nas montanhas é destruída pelo bombardeio de helicópteros. Em seguida, um soldado do norte executa friamente mulheres e crianças, sendo incendiado por Mike. A rápida tomada de porcos famintos disputando um membro humano demarca o horror. Apesar da desumanização, Mike ainda mantém seu código ético e moral, o que o leva a atirar contra o soldado que havia incendiado, poupando-o do sofrimento. A combinação de violência e desumanização atinge seu ápice nas cenas onde se pratica roleta russa. Não apenas os combatentes submetem os prisioneiros ao jogo mortal. Em clubes obscuros no submundo de Saigon, apostadores gritam extasiados diante da mesma disputa. Estranhamente, tanto Mike quanto Nick são atraídos pela prática. Além de uma resposta psicológica ao trauma que sofreram enquanto prisioneiros, seu cotidiano em Clairton envolvia o manuseio de armas de fogo na atividade de caça. A violência, portanto, não era estranha para a dupla de amigos, apenas era praticada sob outro registro. Tanto que, quando Mike vai às montanhas acompanhado dos amigos remanescentes, sua impaciência em relação ao comportamento irresponsável de Stan o leva a submeter este à roleta russa, para o espanto dos presentes. De qualquer forma, excetuando-se a população migrante vitimizada, em “O Franco Atirador” os vietnamitas são covardes, criminosos, prostitutas e apostadores, em sua maioria. O hospital militar superlotado onde Nick recebeu tratamento atesta a violência do conflito em seus muitos feridos, mutilados e nos inúmeros caixões que o rapaz de Clairton observa serem

183 “Serving God and country proudly”. 271

despachados diante da bandeira americana. Entretanto, não existe no filme nenhuma problematização política da participação do país no conflito. O debate concernente à pertinência dessa participação, e as consequências tanto para a população do Vietnã quanto para a sociedade dos Estados Unidos não são abordadas diretamente através desse prisma.

Fotograma 102 - A câmera assume o ângulo de visão de Nick que, de dentro do hospital, observa os corpos de soldados americanos mortos serem embalados e despachados de volta para os Estados Unidos (01h37min27seg.). O trabalho organizado destaca a naturalização do fato: tratava-se de uma pequena amostragem dos muitos americanos que tiveram suas vidas interrompidas. A bandeira, enquadrada no centro da tela e tremulando sobre os corpos, confere à participação americana no conflito sua dose de pesar sem, no entanto, a responsabilidade política ser problematizada. O retorno de Michael para sua cidade natal, e espera-se, para o seio de seus amigos, evidencia a transformação ocasionada pela partida do trio. Apesar dos esforços do grupo para acolher e reintegrar Michael, a maneira como o ex-soldado sente a realidade já não é condizente com sua vida de outrora. Clairton continua sendo a mesma cidade industrial, suja, úmida, com seus habitantes imigrantes ou descendentes e sua cultura eslava. Entretanto, Mike não consegue se adaptar. A resistência de Steven em abandonar o hospital e voltar para casa também se deve a esse sentimento de não adaptação. Segundo suas palavras: “- Eu não me encaixo mais.”184 Michael era a figura central do grupo. De alguma maneira, todos confiavam nele e aceitavam seu código ético, sua moral. Quando retorna do Vietnã, o enredo dá a impressão de que seus amigos preservaram seu lugar singular, entretanto, Michael não demonstra a disposição esperada para ocupar novamente aquele espaço. O fato de Steven e Nick necessitarem de sua ajuda possibilita a readaptação. Em certa medida, Mike também é resgatado quando parte em busca dos amigos, especialmente de Nick.

184 Às 02h34min05seg. 272

Fotograma 103 - Michael caçando nas montanhas (02h17min14seg.). É na natureza, sozinho, que Mike melhor exerce sua ética. Ao mesmo tempo em que os ângulos de captação das imagens criam a diminuição do indivíduo diante da natureza, a grandeza pessoal de Michael é salientada. Singularmente, quando retorna do Vietnã e tem dificuldades em sua readaptação social, sua relação com o meio natural aprofunda-se. Michael já não consegue abater o veado que se coloca diante dele e, corajosamente, o encara. Após o enterro do amigo, a cena final desenvolve-se no bar de John, com a presença de todos. Reunidos ao redor da mesa estão aqueles que foram diretamente impactados pela ida de Nick, Steven e Michael para o Vietnã. O conflito não se constitui como uma ruptura apenas para os soldados, porém para todos os que dividiam suas vidas com eles. O silêncio destaca-se na cena. Enquanto Angela faz um comentário pontual sobre o tempo, Linda tenta se ocupar ajudando John a preparar o café. Quando este lhe pede para permanecer na mesa, pois, apesar de não confessar, precisa ficar sozinho na cozinha, a jovem não sabe como agir. Diante do lapso e ruptura representados pela participação dos amigos na guerra, ninguém sabe o que fazer. Assim, o canto de “Deus Abençoe a América” constitui-se como o esforço do grupo para reatar seus laços. A música é iniciada pelo murmúrio de John, que a utiliza como estratégia para controlar o choro compulsivo do qual é acometido na cozinha. Expressivamente, o choro toma o semblante do mais alegre dos amigos. Apesar de sua característica patriótica original, a composição de versos simples, aprendida na escola e que está presente na memória afetiva de todos, serve como amálgama de suas emoções, diante da tragédia. Para o grupo, a América da canção representa Clairton e, principalmente, os laços de amizade que estão, naquele momento, esforçando-se para reconstituir.185

185 Conferir: KAMBER, Richard. “Taming The Deer Hunter: A Working Class Movie Without Middle Class Condescension”. The Cresset – a review of literature, the arts and public affairs. Vol 44, nº 01. Setembro 1980, pp. 27-30. 273

4.2.3 O Vietnã Antes e Depois da Derrota Uma década separa “Os Boinas Verdes” de “O Franco Atirador”. Entre o lançamento dos dois títulos que abordam o conflito no Vietnã, os Estados Unidos perderam a guerra. E, apesar do empenho do governo americano para assegurar uma saída honrosa, ficou evidente que o país fora derrotado. O ímpeto militarista daquela nação é parte integrante da construção de seu imaginário nacional, remontando à Guerra da Independência. Assim, a retirada das forças militares do conflito no Sudeste Asiático, após o empenho de tantos recursos, materiais e humanos, sem que a balança de forças na região tivesse pendido em prol dos interesses dos Estados Unidos, representou um duro golpe na identidade nacional. As aberturas dos filmes são relevantes para se compreender a perspectiva e o lugar de fala de cada uma das produções. O início do filme de John Wayne, quando se utiliza a combinação de fotogramas de cenas de combate do próprio filme, tendo o tema de louvor aos boinas verdes como fundo musical, não deixa dúvidas do posicionamento militarista do enredo. Dessa maneira, considerando-se o debate social existente no período a respeito da pertinência da participação americana no conflito, não é difícil para a audiência supor, desde os primeiros instantes, a tendência política que seria desenvolvida, e defendida, pelo enredo. Note-se a predominância de personagens militares na trama e a quase ausência de civis na narrativa. O civil de maior destaque, George Beckworth, tem a função de reafirmar o discurso desenvolvido pelo filme conforme sua postura de oposição vai sendo transformada em apoio irrestrito, como consequência das experiências que vivencia no combate. Saliente-se que não é a retórica dos militares que transforma suas considerações, mas seu próprio testemunho ocular da guerra e da situação social do Vietnã. Opostamente, a abertura do filme de Cimino assume uma estratégia retórica diferente, porém igualmente persuasiva, na intenção de conseguir a empatia do público com relação ao posicionamento ideológico da trama. Ao invés de utilizar-se de um conjunto de imagens figurativas ou de apresentar os créditos iniciais já tendo como fundo o começo da narrativa, a película inicia-se em fade-out. A ausência de imagens confere à composição “Cavatina” todo o potencial dramático dos primeiros minutos de projeção. Quando a imagem hostil do caminhão, surgindo da escuridão, aparece para o espectador, este já foi afetivamente preparado para a história que será contada nas próximas três horas. O fato de ambas as produções fecharem-se com as composições musicais que as iniciaram denota a circularidade pensada para as narrativas. Apesar de todas as especificidades, o mesmo artifício narratológico sobressai nos filmes. 274

Os desdobramentos políticos das produções merecem, igualmente, considerações quanto ao distanciamento existente. “Os Boinas verdes” tem fundamentação eminentemente política, inserindo-se diretamente nas discussões sobre a presença americana no conflito e defendendo essa participação sem deixar qualquer margem para o contraditório. Por outro lado, “O Franco Atirador” centra-se na abordagem indireta do conflito, iluminando as consequências sociais na vida de cidadãos americanos comuns e selecionando, para tanto, um grupo de amigos da classe trabalhadora. Apesar de a escolha dessa perspectiva não implicar a ausência de significado político na obra dirigida por Cimino, não ocorre a afirmação peremptória de um posicionamento, o que permite maiores possibilidades interpretativas à audiência. Isso se deve ao fato de o título de 1978 não objetivar a defesa, tampouco a reprovação das decisões geopolíticas dos governos americanos quanto ao Vietnã, mas, sim, aprofundar-se nos desdobramentos psicológicos e sociais de um evento marcante na vida dos indivíduos. Entretanto, se a problematização política do envio de tropas americanas ao Vietnã não é a tônica de “O Franco Atirador”, a indagação das possíveis consequências desse engajamento para a sociedade dos Estados Unidos não merece espaço em “Os Boinas Verdes”. Em 1968, ano de produção deste filme, as disputas em torno do tema estavam já bastante acirradas e ruidosas, como comprovam os acontecimentos em torno do processo eleitoral daquele ano. De qualquer maneira, essas consequências apenas frequentariam as telas de cinema das produções hollywoodianas a partir da retirada das tropas do conflito e do retorno difícil dos ex-combatentes, nos primeiros anos da década seguinte. Quando a produção de Wayne chega às telas, o Vietnã ainda era um tema incomum nas salas de exibição. Como exposto por “Dias de Fogo” (Medium Cool), anteriormente examinado, a televisão trouxe o Vietnã até os americanos muito antes e com muito mais impacto que o cinema de grande circuito do país. No que concerne à representação do Vietnã e de seu povo, o primeiro filme analisado opta por criar uma separação clara entre a população civil e os militares do Vietnã do Sul, por um lado, e os Viet Congs, por outro. Enquanto que a população camponesa é infantilizada, precisando dos cuidados e da proteção oferecida pelos militares americanos, os combatentes guerrilheiros são caracterizados como traiçoeiros e agressivos, tratando com indiscriminada violência tanto seus inimigos de guerra quanto a população civil. Quase não existindo menção ao exército regular do norte, os horrores do conflito ficam a cargo dos Viet Congs. No segundo filme abordado, a sociedade vietnamita é representada através da degeneração, excetuando-se os migrantes. A capital Saigon configura-se como o lugar onde o 275

crime prospera, aproveitando-se do mercado negro propiciado pela guerra. A representação denota que o conflito possibilitou o desenvolvimento daquilo de pior que aquela cultura poderia oferecer. Quanto aos combatentes, não existem maiores distinções entre os soldados regulares e os guerrilheiros, ambos sendo retratados através do mesmo prisma. A prática de roleta russa que, exercida pelos Viet Congs, extravasa para o submundo de Saigon, figura como o maior exemplo da desumanização perpetrada pelos vietnamitas. Para além da improbabilidade da representação, a inexistência de relatos da atividade por parte dos ex- combatentes fez com que esse elemento do enredo concentrasse as críticas recebidas pelo filme quando de seu lançamento. Em suma, mesmo levando-se em conta as especificidades dos filmes, a caracterização do Vietnã é negativa nas duas produções. Em “Os Boinas Verdes”, um dos soldados comenta que “- Seria um bom país, não fossem a guerra e as monções”, ou seja, não fossem a população e a natureza. E, enquanto no primeiro título, produzido durante a guerra, existe a promessa de um futuro auspicioso para o país com a presença paternalista dos EUA, no segundo, aquela nação mergulha no caos completo depois da retirada americana.

4.3 FUTUROS DISTÓPICOS O fim do mundo tornou-se um tema bem-sucedido no cinema de Hollywood a partir da década de 1950. O hipotético cenário de um conflito nuclear, ou as consequências da realização indiscriminada de testes e experimentos com armas nucleares, serviu de ensejo para a produção de inúmeros filmes “B” cujos enredos retratavam a destruição total da vida no planeta. Nestes enredos, por vezes, a radiação proveniente da manipulação de uma tecnologia nuclear apenas superficialmente conhecida pelos cientistas provocava alterações no meio ambiente, levando ao aparecimento de bizarras formas naturais capazes de aniquilar a vida humana. Em outras narrativas, a origem do mal não chegava a ser conhecida, apenas as consequências que, usualmente, envolviam o desaparecimento da humanidade. Nesse período da produção cinematográfica dos EUA, um dos principais títulos a retratar o contexto de um conflito nuclear que dizimaria a espécie humana foi “A Hora Final” ( On The Beach, dir.: Stanley Krammer – 1959). Na década de 1960, os perigos (reais e imaginados) de um enfrentamento nuclear continuaram a frequentar as salas de exibição, como citado no início do capítulo. Entretanto, especialmente nos últimos anos da década, a narrativa fundamentada no fim do mundo deslocou-se para o campo das distopias. Assim, conforme a ideia (e os medos) de uma guerra 276

e consequente armagedom nuclear tornavam-se menos presentes, a representação de sociedades marcadas por alguma espécie de ruptura constituía a base de um gênero cinematográfico. Entenda-se distopia como um modelo de narrativa dedicado a representar uma sociedade na qual as regras da organização política e econômica, do Estado, da produção, dos códigos jurídicos, por um lado, e socioculturais, os valores morais, os princípios éticos, a religiosidade, por outro, foram recombinadas de modo a distanciarem-se dos modelos tradicionalmente concebidos e usualmente aceitos. Essas narrativas, comumente localizadas em algum tempo futuro, articulam elementos como a coerção política, a violência, o enfraquecimento dos laços sociais, a falência econômica ou o consumismo vazio, o avanço da tecnologia em variadas instâncias do cotidiano e a catástrofe ambiental. Desse modo, constroem-se cenários que, intensificando tendências observadas no contexto histórico dos anos 1960 e 1970, permitem a reflexão sobre temas que se colocavam na sociedade. Durante os anos de 1970, as distopias tornaram-se narrativas de intenso caráter social, sugerindo que os riscos para a continuidade saudável das sociedades residiam bem além da hipotética, e já considerada fantasiosa no período, noção de um holocausto nuclear. Esses filmes aproximam-se da literatura distópica das décadas anteriores, especialmente das obras “Admirável Mundo Novo” (Brave New World), de Aldous Huxley, publicado originalmente em 1932, e “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”, de George Orwell, lançado em 1949. Outras fontes recorrentes para o cinema distópico são as ficções científicas de Isaac Asimov, além dos romances e contos de Philip K. Dick. O Estado opressor e o surgimento de gigantescas corporações, capazes de impor sua presença sobre os menores detalhes da vida cotidiana dos cidadãos, são elementos narrativos recorrentes nesse cinema, nos anos 1970 e nas décadas seguintes. A série de filmes da franquia “O Planeta dos Macacos” (Planet of the Apes), produzida entre 1968 e 1973, “2001: Uma Odisseia no Espaço” (2001: A Space Odyssey, dir.: Stanley Kubrick – 1968), “Laranja Mecânica” (Clockwork Orange, dir.: Stanley Kubrick – 1971), “A Última Esperança da Terra” (The Omega Man, dir.: Boris Sagal – 1971), “Corrida Silenciosa” (Silent Running, dir.: Douglas Trumbull – 1972), “No Mundo de 2020” (Soylent Green, dir.: Richard Fleischer – 1973) e “Fuga no Século 23” (Logan’s Run, dir.: Michael Anderson – 1976) podem ser enumerados como filmes de enredos distópicos, em graus variados. A seguir, analisam-se as produções THX 1138 (dir.: George Lucas – 1971) e “Blade Runner: o Caçador de Andróides” (Blade Runner, dir.: Ridley Scott – 1982). Os filmes 277

selecionados constroem representações de tempos futuros nos quais os indivíduos são submetidos a realidades hostis onde um Estado totalitário opressor, no caso do primeiro, e grandes corporações, no segundo, ditam os parâmetros de vida social, em um mundo marcado pela catástrofe climática.

4.3.1 “THX 1138” (1971)186 Enquanto estudou cinema na Universidade da Califórnia, Lucas dirigiu diversos curtas-metragens, documentais e ficcionais, dentre eles Electronic Labyrinth: THX 1138 4EB. O curta recebeu o prêmio do Terceiro Festival Nacional de Filmes Estudantis, em 1968, na categoria de filmes dramáticos. Em um futuro distópico, o enredo narra a fuga de THX 1138 através de corredores e espaços escuros, enquanto é observado por câmeras pelo sistema de segurança do Estado opressor no qual estava inserido. O longa-metragem em questão consiste no desenvolvimento da ideia original presente na trama do curta. O filme retrata uma sociedade futura onde quase a totalidade dos habitantes veste-se com as mesmas roupas brancas, enquanto todos, sem exceção, têm a cabeça raspada. Essa sociedade é administrada por um Estado coercitivo que detém poder suficiente para impor regras sobre variadas instâncias da vida cotidiana, inclusive nos assuntos íntimos dos indivíduos. Como são monitorados por câmeras em suas casas, inclusive nos banheiros, não existe privacidade que exclua a presença do Estado, que assume onipresença. Em ambientes assépticos, brancos e iluminados, a tecnologia substituiu todo o meio natural, sendo a cidade um espaço completamente internalizado e artificial. Assim, a homogeneização ocorre não apenas na similaridade estética das pessoas, suas cabeças invariavelmente raspadas e suas vestimentas quase sempre brancas, mas nos ambientes existentes. O Estado instituiu a utilização obrigatória de um coquetel de drogas cuja finalidade é controlar a vontade pessoal e impedir a experimentação emocional dos indivíduos. Assim, relações sexuais e reprodução são terminantemente proibidas, enquanto relações afetivas são estritamente vigiadas. A organização familiar nuclear não existe mais, tendo sido substituída

186 A análise empreendida refere-se à versão restaurada pelo diretor e lançada em 2004. Isso se deve ao fato de a versão cinematográfica de 1971, original, não ter sido relançada em DVD. A nova versão contou, apenas, com melhorias na cor e o acréscimo de cenas construídas em computador, em sua maioria abarcando tomadas panorâmicas do ambiente, o que acrescentou dois minutos ao tempo total do filme. De qualquer maneira, o enredo e o desenvolvimento da narrativa permaneceram inalterados, o que não compromete o exame observando-se os parâmetros de originalidade. 278

pela combinação de pares de indivíduos escolhidos para dividirem as habitações através de um programa de computador. Desse modo, os nomes pessoais e familiares foram banidos, sendo as pessoas identificadas por um conjunto de três letras, chamado “prefixo”, e quatro números. Cada um deve portar sua identificação todo o tempo, em uma carteira pendurada ao redor do pescoço. Além do contingente humano principal, que se veste de branco e é denominado “a massa”, existem os policiais, androides mais altos que os humanos, de cabeça de metal prateado e roupas pretas, e os sacerdotes, vestidos em túnicas monásticas marrons. As pessoas são compelidas ao consumo de bens desnecessários e não funcionais, enquanto professam a religião oficial e obrigatória. A trama focaliza a trajetória de LUH 3417 (Maggie McOmie) e THX 1138 (Robert Duvall). Companheira de quarto de THX, LUH trabalha na central de vigilância que realiza o monitoramento por câmera dos indivíduos em busca de comportamentos considerados ilegais ou alienados. Já THX é operário em uma indústria de alta tecnologia que fabrica os policiais robóticos que constituem o braço armado do Estado. THX vem experimentando sensações as quais não sabe explicar e, voltando do trabalho, decide se confessar em uma das muitas cabines de confissão existentes. Nela, uma fotografia representa a divindade OMM 0000, enquanto frases reconfortantes e compreensivas, proferidas em voz suave e gentil, são repetidas conforme THX se confessa. As sensações de THX devem-se ao fato de LUH estar substituindo suas pílulas por placebos e, consequentemente, estar levando o operário a sair do estado de letargia e controle sob o qual é mantido pelo governo. LUH já havia se libertado do controle e ansiava por oferecer o mesmo ao seu companheiro. Enquanto espera pelo efeito, observa ansiosa THX assistir aos hologramas transmitidos como entretenimento pelo Estado. Curiosamente, o homem tem predileção por material erótico e violento, onde um dos policiais é representado agredindo continuamente um dos membros da massa. Quando THX assume totalmente sua consciência e começa a experimentar emoções pela primeira vez em sua vida, o casal acaba apaixonando-se e tendo relações. Algum tempo depois, um conhecido de THX, SEN 5241 (Donald Pleasence), programador, informa ao operário que alterou as combinações de moradia para tornar-se seu novo companheiro de quarto. O fato merece a oposição de THX, que decide denunciar a conduta ilegal de SEN de modo a evitar o distanciamento de LUH. Apesar de desejar a nova realidade, THX precisa estar sob efeito das drogas para alcançar o alto nível de concentração necessário para realizar as tarefas exigidas por seu 279

trabalho. LUH o previne, informando que caso ele tome a medicação irá denunciá-la às autoridades, o que THX não acredita ser capaz de fazer. No entanto, sem o efeito das drogas, THX comete erros em sua função, o que o leva a ser investigado. De qualquer modo, a conduta ilegal do casal já estava sendo monitorada pelo sistema de vigilância e tinha sido percebida por SEN, o que provoca a detenção de ambos. No julgamento de THX, a promotoria espera a condenação à morte, chamada “destruição”, porém THX não é considerado perigoso e, assim, é condenado à prisão. A casa de detenção consiste em um gigantesco ambiente homogêneo, onde a cor branca parece alcançar o infinito. Apesar de inexistirem paredes, celas ou grades, não é possível se ver uma saída. Na ausência quase completa de expectativas, os presos mais perspicazes refletem e divagam sobre a organização social, sua realidade e modos de fuga, mesmo que não vislumbrem nenhuma possibilidade de liberdade. SEN, o programador denunciado por THX, mantém-se próximo a ele. Um dia, THX recebe a visita de LUH, também detida. Ficando a sós na imensidão branca, a jovem confessa estar grávida. Após relacionarem-se, os dois são separados por policiais e um membro da massa vestido de amarelo. A diferença de cor denota ser um integrante privilegiado daquela sociedade. Esta é a última vez que THX e LUH se encontram. THX permanece um período não especificado na detenção até que, um dia, decide fugir caminhando em direção à imensidão branca. SEN fica temeroso, porém resolve segui-lo. Depois de uma longa caminhada, os dois encontram SRT 5752 (Don Pedro Colley), o holograma masculino que estrela o entretenimento erótico. Apesar de não ser um ente físico, SRT também deseja escapar e é ele quem encontra uma porta. Ao abri-la, o trio é levado por uma multidão que caminha apressadamente, acotovelando-se, como em um desordenado tráfego de pessoas. Em meio à confusão, SEN se perde de THX e SRT. Estes são perseguidos por policiais e escondem-se em uma grande sala de controle, onde THX descobre que LUH foi “consumida” e que sua identificação agora pertence ao feto 66691, que se desenvolve em uma câmara. Desolado, THX continua sua fuga em companhia de SRT. Enquanto isso SEN chega a uma espécie de estúdio de gravação de TV, onde existe uma grande imagem de OMM 0000. Um monge aproxima-se e o repreende por estar ali. Como SEN não porta sua identificação, o monge ameaça denunciá-lo, sendo agredido por isso. O programador, então, chega a um lugar onde crianças brincam e começa a interagir com elas. Lembrando-se com nostalgia de sua infância, permanece tranquilamente sentado até ser detido por policiais. 280

THX e SRT chegam a uma garagem e roubam dois carros. SRT não faz ideia de como colocar o veículo em movimento e, assim que consegue dar partida no motor, arranca e choca-se violentamente contra uma pilastra. THX foge em alta velocidade pelos túneis, sendo seguido por dois policiais em motocicletas. Aproximando-se dos limites da cidade, THX acidenta-se com o veículo, tendo de abandoná-lo. Fugindo a pé, o operário encontra uma espécie de longa coluna vertical de ventilação e decide subir pela escada existente. Um dos policiais ainda o persegue, porém a operação é cancelada quando atinge o custo de 6% além do orçamento. Chegando ao topo, THX abre um alçapão e é tomado pela luz do sol, que nunca havia visto. O filme encerra com THX em meio a uma paisagem desértica, diante do por do sol, sem saber para onde ir. A abertura de THX 1138 é enigmática, mantendo a falta de clareza inicial do enredo. Em um fundo escuro, os créditos iniciais são apresentados em caracteres verdes, que atravessam a tela em movimento descendente. O suspense é fortalecido pela música, uma composição com pouca variação de tonalidade, baseada em vozes e instrumentos de sopro que surgem esparsamente. Quando as primeiras imagens aparecem na projeção, constituem-se como monitores em preto e branco de baixa resolução. Filmando rostos, as perguntas “– Precisa de algo mais forte?” e “– O que há de errado?”, são repetidas eletronicamente. Nesse momento não é possível ao espectador identificar a personagem, porém, mais a frente fica evidente tratar-se de LUH. Apesar de o protagonismo caber a THX, LUH é a personagem mais importante e ativa da trama, na medida em que cabe a ela se rebelar contra a realidade que lhe é imposta. Dois são os motivos que podem figurar como os causadores da mudança de postura da jovem e de sua determinação em romper com a situação na qual se encontra. Primeiramente, LUH trabalha no centro de vigilância através do qual o Estado monitora o cotidiano dos indivíduos. Nessa posição privilegiada, ela pode observar detalhadamente o funcionamento de todo o sistema de dominação executado pelo governo e, assim, desenvolver empatia pela massa observada da qual, afinal, ela faz parte. Em segundo lugar, LUH pede autorização para engravidar, sendo-lhe negada sob a insatisfatória alegação de que essa licença só é oferecida para um em cada cinco indivíduos, de acordo com a data de nascimento. Assim, ciente do aparato de dominação individual perpetrado pelo Estado, e privada de seu desejo e necessidade em atender ao instinto materno, LUH decide parar de ingerir as drogas que lhe são ofertadas. Desde o início da narrativa, LUH já não está mais sob controle do Estado, apesar de simular sua obediência e adequação às normas. O objetivo da jovem consiste em libertar seu 281

companheiro da letargia e, assim, atender aos sentimentos de atração e afeto que já começara a nutrir por ele. THX, um operário, não apresenta a menor tendência ao questionamento das regras e parâmetros que margeiam seu comportamento, adequando-se perfeitamente ao contexto no qual está inserido. O fato de THX, além de ser membro da classe operária, participar da construção dos androides que controlam a população, é bastante significativo. Na sociedade futurista representada não existe luta de classes, e a tomada de consciência por parte da massa restringe-se a uns poucos indivíduos. Deste modo, são dois os pilares sobre os quais se assenta o poder opressor daquele Estado e através do qual é mantido o controle: o consumismo e a religião oficial. Para além das drogas que provocam a obediência, o consumismo é caracterizado como o escape, o elemento que permite o alívio e a distração do homem comum de sua realidade aviltante. Expressivamente, o caminho que leva ao consumo é feito através de uma escada rolante que sobe em direção a uma brilhante e ofuscante luz branca, como se o destino não fosse o centro de consumo, mas o próprio paraíso celeste. A suave música de fundo intensifica o processo de anestesiamento. As noções de ascensão e divinificação tornam-se, dessa maneira, diretamente atreladas ao consumo.

Fotograma 104 - Um dos membros da massa subindo em direção ao consumo (08min21seg.). O movimento contínuo da escada rolante confere passividade, sendo a pessoa levada até seu destino. A luz intensa e a música suave realizam o processo de acolhimento no rumo em direção ao consumo. Apesar do constante impulso, a diferenciação marginal dos bens de consumo foi suprimida, cabendo a todos consumir os mesmos objetos geométricos coloridos, padronizados. A instância do consumo não pode ser livre sob o risco de levar à contestação por outras liberdades, de ordem social e política. Assim, quando o consumidor faz uma queixa quanto à inutilidade do bem que lhe foi oferecido e da inexistência de outro tipo daquele produto, LUH, como tarefa integrante de sua função, aperta um botão que inicia a seguinte 282

gravação: “– Para um maior prazer e eficiência, o consumo está sendo estandardizado. Sentimos muito.”187. Ao consumismo soma-se a religião de Estado, que deve ser obrigatoriamente consumida. Assim, quando THX sente-se mal devido à abstinência forçada das drogas, prefere procurar uma cabine de confissão ao invés de um médico. O confessionário, um pequeno espaço privativo com aparato eletrônico semelhante a uma cabine telefônica, é ornado pela imagem de uma divindade semelhante a Jesus Cristo, que tem sua presença fortalecida através das frases gravadas que profere. O início do ato de confissão deve ser seguido dos seguintes dizeres: “– Massas para as massas. Um por todos, todos por um. As massas são o que somos. Nós somos as massas, mas no seu todo, somos massas. Pelo Partido e por todos, massas é o que somos.”188. Ao final da cerimônia, a divindade proclama, com pequenas variações: “– Você é um verdadeiro crente. Bênçãos do Estado. Bênçãos das massas. Arte como sujeito do Divino, criado na imagem do homem pelas massas, para as massas. Que agradeçamos por termos comércio. Compre mais. Compre mais agora. Compre e seja feliz.”189 Ao longo da confissão, a divindade libera frases de conforto como “– Sim, eu compreendo”, “– Sim, bom” ou “– Excelente”, sempre de maneira gentil.

Fotograma 105 - THX 1138 em uma das muitas cabines de confissão existentes na cidade (10min.03seg.). Como em uma cabine telefônica, a relação do homem com a religião foi automatizada. Ao invés de ter contato direto com um sacerdote, o confessor deve revelar suas angústias para a máquina. A Divindade OMM 0000 é imageticamente representada pela pintura “Cristo Abençoado”, de Hans Memling, datada de 1478. Pelo destaque que a religiosidade demonstra ter na sociedade representada, o ato de LUH aproxima a jovem da personagem bíblica Eva, que por desobedecer às ordens de Deus, conquistou o afeto de Adão e causou a expulsão de ambos do Éden. Até LUH retirar as

187 Frase proferida aos 06min06seg. 188 Aos 09min40seg. 189 Aos 17min41 seg. 283

drogas, THX era um operário perfeito, que atendia aos pedidos da divindade pelo aumento da produção e aos anseios do Estado por desempenho. LUH torna-se a causa do desvio, da perda. Tanto que, após alcançar a consciência, e apesar de apreciar o afeto da companheira, THX a questiona: “– Eu era feliz. Por que me envolveu nisso?”. A jovem inclusive já possuía um plano de fuga para o casal, que é frustrado pela denúncia de SEN. O julgamento de THX, bem como o destino que cada um dos dois terá após a condenação, aponta como o comportamento da jovem fora considerado mais grave. Acusado de “evasão à droga, perversão sexual maliciosa e transgressão”, a promotoria exigia a “destruição”, sinônimo de “execução”, como punição para THX. A defensoria, no entanto, objeta. Promotora: - Destruição imediata, com base em ECO-TRX 314, desequilíbrio químico incurável com consciência socialmente depreciativa. Defesa: - Protesto. Protesto. Destruição ineficiente. Deve ser salvo. Promotora: - Não podemos deixar esses erros eróticos existirem. Defesa: - Protesto. O que a acusação está fazendo? Registros mostram que ele é de origem clínica, remotamente sujeito à alteração. Promotora: - A sociedade deve se libertar desses desviantes. Defesa: - Não se trata de um caso racial. Promotora: - Ele deve ser destruído. Não podemos continuar a consumir esses eróticos. Devemos exterminar a fonte do pecado. A economia não deve ditar situações que são obviamente religiosas.190

Fotograma 106 - Os membros que assistem ao julgamento de THX (35min48seg.). Na audiência, que se baseia mais em códigos religiosos que jurídicos, as autoridades assemelham-se mais a sacerdotes que a juízes. Os três pontos de luz sobre os três indivíduos denotam a sacralidade, sublinhada pela introspecção. O operário termina tendo sua vida assegurada, porém sendo condenado à prisão. LUH não tem a mesma sorte. Apesar de seu julgamento não ser citado, THX descobre de sua “destruição”. Os dados informam que LUH foi “consumida” e que sua denominação

190 Inicia-se aos 35min36seg. e encerra-se aos 36min16seg. 284

pertencerá a um feto que está sendo desenvolvido em laboratório. Apesar de o enredo não esclarecer tratar-se do filho do casal, como a jovem estava grávida a suposição é possível. A gravidade com que a relação sexual é encarada durante o julgamento, que se fundamenta em preceitos religiosos, permite conjecturar-se a motivação para a proibição da reprodução livre e o consequente controle das gestações permitidas. O local onde o feto se desenvolve está repleto de outros fetos, o que sugere que a gestação intrauterina já não existe mais. Ademais, qual o motivo para a morte ser denominada “destruição”? Seriam as massas totalmente humanas ou em parte seres tecnológicos, cibernéticos? Teriam THX e LUH sido gerados em laboratório? O grupo de prisioneiros no qual THX é inserido dá uma amostra dos indivíduos indesejados naquela sociedade. Além daqueles que desobedeceram as estritas regras do Estado, ali estão os indivíduos que questionaram a coerção estatal, deficientes mentais de todo tipo e os anões aos quais cabem os limites obscuros da cidade. Assim, descortinam-se as fissuras da sociedade aparentemente harmônica e homogênea. Nem todos se submetem às drogas e em uma parede da cidade lê-se: “OMM é um holograma.” SRT é igualmente um holograma e, curiosamente, tem conhecimento desse fato. A sociedade representada tinha sido, até o momento, exclusivamente branca, excetuando-se SRT e a mulher que participa com ele do show erótico holográfico, ambos negros. Apesar de ser um constructo, segundo o próprio SRT, parte de uma “realidade eletro-gerada”, sua aparência é a de um homem real, podendo acompanhar THX na fuga e, inclusive, ser fisicamente tocado. Qual a garantia, então, de que outros indivíduos não tenham sido eletricamente gerados? Talvez por existir há muito tempo, SRT, demonstra alto nível de compreensão da sociedade.

Fotograma 107 - Na sala onde THX prepara-se para o turno de trabalho, e conversa com SEN, há na parede, escrito a lápis, “OMM é um holograma” (29min49seg.). A afirmação, escrita de maneira a ser quase 285

imperceptível, coloca em questão o principal pilar a sustentar toda a estrutura de dominação daquele Estado. Localizada no meio do enquadramento, entre o ângulo de visão dos dois personagens e diante do minimalismo do ambiente, a frase assume eloquência, veiculando uma informação que subsiste abaixo do nível de controle estatal, insidiosamente. De qualquer modo, por não ter nada a perder, tudo o que resta a THX é o desconhecido. Agora que ele já não toma as drogas, sua felicidade através dos parâmetros colocados pelo Estado é impossível. Desse modo, ele empreende a fuga. Após a perseguição, a operação é cancelada pelo Estado devido a ter ultrapassado o orçamento aceitável, uma demonstração surpreendente de pragmatismo administrativo. No entanto, antes de retornar, o policial cibernético oferece a THX a última possibilidade de reintegração. Não haveria lugar para ir, nem como sobreviver. Quando THX sobe pela longa coluna de ventilação, em direção ao mundo exterior, a audiência depara-se com o fato de que toda a realidade apresentada era subterrânea. Uma cidade tecnológica, ascética e artificial, confinada no subsolo. Como o policial havia afirmado, a superfície é inóspita. Representativamente, THX surge à luz no momento em que o sol se põe. Assim, esse nascimento figurativo ocorre quando a escuridão se aproxima, ainda que temporariamente. A liberdade ansiada por LUH, cujo desejo fora transmitido a THX, coloca-se diante do operário como um desafio. THX precisara escolher entre permanecer na segurança da sociedade da qual fazia parte, continuando a ter seus impulsos humanos e naturais controlados, ou alcançar a liberdade na superfície onde poderia não conseguir sobreviver. Perdendo tudo e todos, teve a coragem de optar pela liberdade. De qualquer modo, o pássaro que passa voando sobre a linha do horizonte, e que se faz visível contra a luz do sol poente, pode representar-lhe a esperança necessária para perseverar rumo ao desconhecido.

Fotograma 108 - THX diante do sol (01h26min41seg.). Imediatamente após sair da terra, o operário depara-se com a luz, o calor e o poder do astro. Assombrado, THX tenta se defender ao mesmo tempo em que o encara. Em uma paisagem desértica, o futuro do homem é incerto. 286

4.3.2 “Blade Runner: O Caçador de Androides” (1982)191 Ridley Scott nasceu no Condado de Durham, no nordeste da Inglaterra, em 1937. Devido à carreira militar do pai, Scott intencionava ingressar no exército inglês, porém seu pai o incentivou a desenvolver seus talentos artísticos. Assim, Scott estudou no Colégio de Artes de West Hartlepool, onde se graduou em Design. Em seguida, ingressou no Real Colégio de Artes de Londres, onde obteve o título de Mestre em Design Gráfico. Com essa formação, começou a trabalhar na BBC, em 1962, como cenógrafo. Na emissora, fez um curso de direção e dirigiu episódios de famosos seriados do período. Insatisfeito com o baixo salário, Scott demitiu-se da BBC e fundou com seu irmão mais novo, Tony, uma produtora de comerciais televisivos, a RSA (Ridley Scott Associates), em 1967. Ao longo da década seguinte, Ridley Scott produziu alguns dos mais famosos comerciais da Inglaterra. Paralelamente, no início dos anos 1970, começa a trabalhar com o produtor David Puttnam em projetos para o cinema. Seu primeiro longa-metragem, “Os Duelistas” (The Duellists – 1977), ganhou o Prêmio do Júri para Melhor Primeiro Trabalho, em Cannes. Impressionado com o sucesso obtido por “Guerra nas Estrelas” naquele mesmo ano, decide aventurar-se na ficção científica e aceita o convite para dirigir “Alien – O Oitavo Passageiro” (Alien – 1979). O sucesso crítico e comercial da produção estabeleceu sua reputação mundialmente. Logo após a súbita morte de seu irmão mais velho, Frank, Ridley trabalha no projeto de “Blade Runner: O Caçador de Andróides”. Assim, os temas centrais da obra, assim como sua atmosfera, relacionam-se com o momento atravessado pelo diretor em sua vida pessoal. O filme, lançado em 1982, não atinge positivamente a audiência, tampouco a crítica, porém vai assumindo posição seminal no gênero da ficção-científica durante a década de 1980, tornando-se um título cultuado quando é relançado em 1991. Ainda no campo da publicidade, Scott dirige o comercial “1984”, para o lançamento do computador Macintosh, da Apple. A publicidade, baseada no livro “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”, de Orwell, apresenta o novo computador como o instrumento capaz de libertar a massa do domínio do “Grande Irmão”, criando uma inserção da marca no universo distópico daquela obra literária. Scott dirigiu vários outros sucessos do cinema, incluindo “Thelma e Louise” (Thelma and Louise – 1991), “Gladiador” (Gladiator – 2000) e “Falcão Negro em Perigo” (Black Hawk Down – 2001).

191 A versão examinada consiste na exibida nos cinemas dos Estados Unidos no ano de 1982. 287

“Blade Runner: O Caçador de Androides” ambienta-se na Los Angeles de 2019. O filme é iniciado por um texto que estabelece a realidade diegética da narrativa: a Corporação Tyrell fabrica seres humanos sintéticos, os “replicantes”, que são utilizados na exploração de colônias em outros planetas e considerados ilegais na Terra. Unidades especiais de polícia, “Unidades Blade Runners”, são utilizadas para perseguir e matar os transgressores, que não são considerados assassinados, porém “aposentados”. A narrativa inicia-se quando um novo empregado da Tyrell, de nome Leon Kowalski (Brion James), é entrevistado por Holden (Morgan Paull), um blade runner, através do uso de um equipamento ótico peculiar. Antes que Holden pudesse identificar que se tratava de um replicante, Leon atira contra o policial. Enquanto isso, em uma rua do centro de Los Angeles, que a chuva e a baixa iluminação noturna colaboram para tornar lúgubre, um homem aguarda junto a um quiosque de comida japonesa. Ao ser atendido, é interpelado por dois policiais, dentre eles, Gaff (Edward James Olmos), que o identificam como um blade runner e informam que seu ex-superior deseja vê-lo. Trata-se de Rick Deckard (Harrison Ford), um policial que se retirou da força. Chegando à delegacia, Deckard é recebido por Bryant (M. Emmet Walsh) e informado de que seis replicantes haviam roubado uma nave e retornado à Terra. Destes, quatro estavam à solta e desaparecidos. Apesar da relutância, Deckard é coagido por Bryant a pegar o caso, voltando à ativa. Após apresentar a ficha dos outros fugitivos, o líder Roy Batty (Rutger Hauer), Zhora (Joanna Cassidy) e Pris (Daryl Hannah), Bryant informa ao blade runner que se trata do novo modelo Nexus 6 e que essas unidades possuem um limite de vida útil de quatro anos. Bryant ainda aponta a existência de um Nexus 6 na sede da Tyrell e pede que Deckard submeta-o ao teste. Na Tyrell, Deckard é recebido por Rachael (Sean Young), uma mulher jovem e atraente. Secretária pessoal do Dr. Eldon Tyrell (Joe Turkel), Rachael demonstra elegância e refinamento. O Dr. Tyrell é cético quanto à eficiência do teste Voight-Kampf na detecção de replicantes. O teste, que consiste em perguntas que procuram provocar uma resposta emocional, foi o mesmo ao qual Holden havia submetido Leon. Dr. Tyrell pede para Deckard submeter um humano ao teste, indicando Rachael. Após muitas perguntas, Deckard percebe que a jovem é a Nexus 6 que ele deveria testar, porém não conhece sua condição. Dr. Tyrell confessa que se trata de um novo produto, no qual memórias são implantadas com o objetivo de produzir respostas emocionais mais humanas. Seguindo as pistas que possui, Deckard e Gaff vão ao quarto de hotel onde Kowalski hospedara-se e o primeiro encontra uma escama e algumas fotografias. Leon vê, do outro lado 288

da rua, os dois policiais em seu quarto e conta para Roy. Em seguida, os dois replicantes entram em uma loja chamada Eye World, cujo proprietário é um chinês de nome Hannibal Chew (James Hong), que constrói olhos por engenharia genética. Ray e Leon torturam-no para saber quanto tempo de vida lhes resta. O homem não tem a resposta, mas indica Dr. Tyrell como o detentor da informação e J. F. Sebastian (William Sanderson) como meio de se chegar a Tyrell. Enquanto isso, Deckard volta para seu apartamento e é surpreendido por Rachael. A jovem suspeita de sua condição e tenta fazer com que o investigador desminta sua desconfiança, mostrando-lhe uma foto de infância. Deckard explica que suas memórias são lembranças da sobrinha do Dr. Tyrell que lhe foram implantadas. Rachael vai embora desconsolada. Após descansar um pouco, Deckard examina uma das fotos de Leon e descobre uma pista de Zhora. Seguindo a pista, encontra a mulher em uma casa noturna em Chinatown. Deckard inventa uma história para entrar em seu camarim e quando Zhora percebe tratar-se de um blade runner, tenta matá-lo. A entrada de outras artistas a impede e ela foge pelas ruas. Após uma confusa perseguição nas ruas lotadas de Chinatown, Deckard atira contra as costas da replicante, que cai morta na calçada. Enquanto isso, em outra parte da cidade, Pris simula estar indefesa e faminta e consegue a ajuda de J. F. Sebastian. O empregado das indústrias Tyrell é um homem jovem, de 25 anos, que, no entanto, possui a sindrome de matusalém, que o faz parecer mais velho. Pris passa a noite no grande hotel abandonado e em ruínas onde Sebastian mora. Em Chinatown, Bryant informa à Deckard que Rachael havia desaparecido, cabendo a ele encontra-la e “aposentá-la”. O blade runner havia telefonado para a jovem da boate, por querer se desculpar pela forma como a havia tratado e porque começara a se sentir atraído por ela. No momento em que Bryant vai embora, Deckard vê Rachael do outro lado da rua, porém, quando tenta alcançá-la é agredido por Leon. Quando o replicante está prestes a matá- lo, Rachael pega a arma de Deckard e atinge Leon na cabeça, matando-o instantaneamente. O casal volta ao apartamento do investigador, onde se aproximam afetuosamente e relacionam- se. Na manhã seguinte, Roy chega à moradia de J. F. Sebastian que, aos poucos, desconfia da realidade sintética do casal. Roy e Pris confessam serem replicantes e dizem considerar J. F. seu único amigo humano. Observando uma partida iniciada de xadrez, Roy descobre ser o próprio Dr. Tyrell o oponente do novo amigo e pede que J. F. consiga levá-lo até o dono da corporação. 289

Os dois vão até a sede, onde Roy finalmente consegue ficar diante de seu criador. Após ter o pedido por uma extensão de seu tempo de vida negado, Roy fica profundamente decepcionado e mata seu criador. Como J. F. Sebastian testemunhou o fato, também precisa ser morto. Pouco tempo depois, Deckard está em uma viatura nas proximidades da casa de Sebastian quando recebe uma ligação de Bryant que o informa da morte dos dois homens. Ao ligar par o endereço de J. F., o blade runner é atendido por Pris, que desliga. Desconfiado, Deckard decide ir até o endereço. No apartamento, o investigador é agredido por Pris, mas consegue matá-la. Quando Roy chega e vê a companheira morta, afetuosamente beija seus lábios e começa a perseguir Deckard. O replicante pretende, mais propriamente, jogar com o blade runner em vez de matá-lo. Agora na invertida posição de perseguido, Deckard acaba no terraço do velho hotel. Ao saltar para o prédio ao lado, fica perigosamente dependurado, sendo salvo por Roy. Já sentindo o término da vida útil, Roy reflete sobre o fim de sua vida e serenamente morre diante de Deckard. Gaff chega ao telhado e parabeniza o blade runner pelo trabalho. Antes de sair, faz uma citação sobre Rachael. Chegando ao apartamento, Deckard encontra a porta aberta e teme pela vida de Rachael. A jovem apenas dormia e, ao acordar, jura amar e confiar no investigador. Minutos depois, quando o casal saía do apartamento para fugir, Deckard percebe um dos origamis feitos por Gaff e, lembrando-se de seu comentário, entende que o policial poderia ter matado Rachael, porém decidiu poupá-la. Na cena seguinte, Deckard dirige em uma região montanhosa, com Rachael ao seu lado. A natureza do lugar destoa da realidade artificial e suja de Los Angeles. Refletindo, Deckard pensa que Dr. Tyrell havia confessado que Rachael era especial, sem tempo de vida pré-determinado, o que fazia com que ele não pudesse determinar quanto tempo teria ao lado de Rachael. Para além das questões filosóficas e existenciais abordadas seriamente pela trama, “Blade Runner” impressiona pela alta qualidade imagética do universo no qual a história é inserida. Neste sentido, é importante lembrar que Ridley Scott formou-se como designer de arte e iniciou sua carreira artística como cenógrafo antes de migrar para a direção, fato que implica no cuidado do diretor na construção visual de seus filmes. A película começa com os créditos sendo apresentados em fundo escuro ao acompanhamento dos primeiros acordes da música tema composta por Vangelis. A composição inicia-se em tom sombrio, sendo pontuada por notas graves e silêncios. Em seguida à determinação espaço-temporal (Los Angeles – novembro, 2019), o texto inicial localiza a trama naquela visão de futuro. Logo após, sobre o desenvolvimento da composição 290

de Vangelis, a paisagem da Los Angeles futurística descortina-se diante dos olhos dos espectadores. À noite, o enquadramento apresenta uma megalópole cuja extensão a atmosfera enevoada não permite prever. As inúmeras luzes dos arranha-céus que se ladeiam em direção ao horizonte, ocupando todo o campo de visão, dão a ideia das proporções colossais que a cidade alcançara. Enormes torres industriais lançam gases que explodem em bolas de fogo. Em meio a esse cenário aterrador, destaca-se um par de pirâmides semelhantes às ancestrais construções maias, porém em dimensões gigantescas. Por detrás das impressionantes construções, poderosas fontes de luz iluminam o céu acinzentado pela névoa. Cortes abruptos intercalam essa visão com o super close-up de um olho humano. Aberto e estático, esse órgão observa tudo atentamente, como que extasiado, enquanto as luzes e explosões refletem nitidamente em sua retina.

Fotogramas 109 (03min52seg.) e 110 (04min06seg.) - Tomadas iniciais do filme. Enquanto o espectador é inserido instantaneamente na realidade diegética futurista, a imagem do olho destaca o fascínio e o horror provocado por aquela visão. 291

Além de iniciar a caracterização do ambiente futurístico no qual se desenvolve a trama, essa abertura já estabelece um dos principais elementos simbólicos sobre o qual se assenta a narrativa: o olho. Obviamente, não é o detalhamento biológico do órgão que importa. No filme de Scott, o olho humano indica os desdobramentos subjetivos das questões que trouxeram os fugitivos de volta à Terra, mesmo sabendo do risco envolvido nessa empreitada. Os replicantes, seres biológicos de aparência humana, porém criados e utilizados como ferramentas, passam a compartilhar das mesmas idiossincrasias que seus criadores, desenvolvendo sentimentos e expectativas, enriquecendo-se espiritualmente e, por consequência, buscando vida. Assim, ao longo da narrativa, tanto os olhos dos replicantes quanto de Deckard irão refletir a busca incessante por respostas. Em outro nível, mais cinematográfico, o super close-up do olho referencia a clássica tomada inicial de “Um Cão Andaluz” (Un Chien Andalou), filme dirigido por Luis Buñuel, em 1929. Porém, enquanto que neste caso um olho humano é seccionado por uma lâmina afiada implicando o distanciamento da realidade e o mergulho no mundo onírico explorado pelo filme, em “Blade Runner” assume-se o significado contrário. O olhar atento, e a realidade distópica refletida na retina, funcionam como uma advertência a um futuro tangível, ainda que repugnante, e um convite: venha e veja. Essa primeira amostra do futuro projetado pela película é completada pelo aspecto das ruas de Los Angeles, com a cena de apresentação do protagonista estabelecendo a realidade hostil da megalópole. Em uma noite que prevalece, uma vez que o sol jamais é visto em sua plenitude, a chuva cai ininterruptamente. As calçadas lotadas de pedestres apressados que, deseducadamente, esbarram-se portando seus guarda-chuvas iluminados, sugerem a condição superpovoada da cidade. Enquanto isso, um dirigível eletronicamente ornado com luzes e telas de publicidade divulga oportunidades de vida fora do planeta. A sujeira abunda pelas ruas de Los Angeles, como se o serviço público de limpeza fosse incapaz de resolver o problema do excesso da produção de lixo urbano. Representativamente, na manchete do jornal empunhado por Deckard informa-se: “Cultivar alimentos nos oceanos, na Lua e na Antártida”. 292

Fotograma 111 - Uma das ruas de Los Angeles (46min05seg.). A sujeira e a pobreza se destacam dentre a desorganização urbana e social provocada pela superpopulação e pelo crescimento desenfreado da cidade. Nos inúmeros letreiros em neon espalhados em frente aos estabelecimentos comerciais, evidenciam-se idiomas orientais. Boa parte da população que se acotovela nas calçadas lotadas e em meio aos automóveis engarrafados apresentam traços evidentemente asiáticos em suas faces. Além disso, o dialeto das ruas falado por Gaff tem como principais raízes idiomas orientais. Essa proliferação de referências asiáticas denota uma transformação cultural da cidade. Naquela Los Angeles, as raízes culturais tradicionais americanas perderam espaço para tendências culturais de outra parte do mundo, resultando na construção de um novo código cultural. Nesse rearranjo cultural é curioso observar a ausência da cultura negra, amplamente presente nas origens culturais dos Estados Unidos. A recombinação de elementos culturais exóticos, bastante explorada na construção sociocultural daquela cidade futurista, implica a perda de hegemonia cultural dos Estados Unidos. Essa forte presença asiática pode ser decorrente da mudança de eixo econômico do Atlântico Norte para a Ásia, naquele futuro, o que se coloca como uma resultante hipotética do longo período de estagnação econômica pelo qual os Estados Unidos haviam passado. A atmosfera lúgubre das ruas é acompanhada pelos ambientes internos presentes na narrativa. Apesar de toda a suntuosidade, a sede executiva da Corporação Tyrell, onde trabalha seu fundador, além do próprio quarto de Dr. Tyrell, são espaços escuros onde se sobressai uma palheta de cores soturna composta principalmente pelo preto, marrom e mostarda. A iluminação difusa contribui para tornar esses espaços pouco acolhedores. O apartamento de Deckard é constituído da mesma maneira desfavorável, o que reflete o estado depressivo do protagonista. Quanto à moradia de J. F. Sebastian, trata-se de um antigo hotel em ruínas, tão sujo e tomado pela chuva quanto as ruas decadentes do bairro onde está localizado. Inexiste, na Los Angeles de “Blade Runner”, um ambiente aprazível e 293

tranquilizador, o que transmite a noção de que a maior parte da população está sujeita a habitar um ambiente onde elementos básicos de civilidade foram abandonados. Representativo, porém, o fato de haver diversas camadas sociais naquelas ruas, dando conta de grande heterogeneidade econômica e, especialmente, cultural. Conforme o detalhamento acima permite perceber, a Los Angeles do filme constitui- se como uma de suas personagens. Os demais personagens precisam lidar com todas essas características negativas, tornando-se a megalópole o principal elemento a tangenciar a realidade na qual estão todos imersos. Muito daquilo em que a vida se tornou nesse futuro distópico deve-se às características assumidas pelo ambiente. Os problemas típicos das grandes cidades do final do século XX, multiplicados além dos piores prognósticos, determinaram aquele modo de vida sujo, decadente, depressivo. Em 2019, a vida não é um problema premente apenas para os replicantes. A profundidade percebida na construção da atmosfera onde a narrativa se desenvolve é continuada na formulação psicológica dos personagens. Rick Deckard é um ex-blade runner que se retirou pela insatisfação que matar lhe causava. Solteiro e solitário, aceita relutantemente o caso, o que o leva a conhecer Rachael e, assim, experimentar sentimentos capazes de retirá-lo da apatia. Se os replicantes não têm passado, pouco se esclarece da vida pregressa de Deckard. O estado depressivo denota sua inadequabilidade àquela realidade e a falta de perspectivas. Rachael descobre que tudo o que acreditou ser a sua vida não passa de um enredo criado pelos laboratórios da Corporação para torná-la uma replicante mais próxima do ser humano que ela acreditava ser. Ao descobrir a verdade, a única pessoa com quem pode interagir é um blade runner, que tem como missão profissional exterminar aqueles de seu tipo. A improvável atração desenvolvida entre essas duas pessoas será responsável por resgatá-las das angústias a que estão sujeitas. Quanto aos replicantes, foram construídos para serem utilizados como uma espécie de ferramenta, de equipamento capaz de realizar o trabalho indesejado ou impossível de ser realizado por um ser humano. No entanto, a busca incessante por uma identidade palpável, construída através de experiências, calcada em um passado e em memórias pessoais, fez com que se sentissem mais escravos que utensílios. A dura realidade de saberem possuir um prazo de vida útil os impele a uma procura desesperada por existência. Seus olhos refletem a agonia de possuírem uma vida muito breve. De volta aos olhos. O filme de Scott realiza um uso metafórico intenso dos olhos dos personagens, mais dos olhos que do olhar, detalhe bastante significativo. Em “Blade Runner”, 294

o antigo axioma de que “os olhos são a janela da alma” é aprofundado e complexificado. Ao longo da projeção, as personagens principais têm essa parte do corpo destacada, seja por uma iluminação específica, seja através de um desdobramento narrativo, sendo que o sentido da visão assume outra dimensionalidade para os replicantes. Privados da memória, pelo fato de não contarem com o tempo de crescimento e amadurecimento usuais, essas criaturas sintéticas valorizam os registros imagéticos como meio de construção de passado e, portanto, de memória. Daí a relevância das fotografias, tanto para Leon quanto para Rachael. Como se torna explícito no último caso, as fotografias colocam-se como prova de um passado, de uma origem, de uma vida. Expressivamente, a primeira pista buscada por Roy e Leon para obterem acesso ao Dr. Tyrell consiste em uma loja onde se fabricam olhos sintéticos. Diante do engenheiro genético, Roy reflete: “ – Se você pudesse ver o que eu vi com os seus olhos...”192. A faculdade da visão, novamente, fundamenta a existência. Além disso, demarca a busca de conhecimento, singularmente no caso dos replicantes, ciosos de futuro, e de Deckard, que no início da narrativa não possui objetivos de vida. Em determinadas passagens da projeção, os olhos de Roy, Deckard e Rachael foram iluminados por um foco de luz vermelho que se reflete na íris. O caráter estranho dessa iluminação profunda e artificial pode denotar o vazio existencial sofrido tanto por Deckard quanto pelos replicantes, já que as questões que impulsionam os últimos em direção ao seu criador, relacionadas à vida e à morte, são, sobretudo, humanas. Interessante que, apesar de projetados para não possuírem respostas emocionais, as atitudes de Roy e seu grupo sejam baseadas nas emoções.

192 Frase dita em 29min25seg. 295

Fotograma 112 - Os olhos de Rachael e Deckard tomados pelo brilho avermelhado (01h06min36seg.). Nesse momento da narrativa, após salvar o blade runner de ser morto por Leon, Rachael perguntara se ele a perseguiria caso ela fugisse. Quanto a Gaff, policial que fora promovido à unidade blade runner e que ambiciona ascender na carreira, seu pragmatismo reflete-se na ausência de vida que singularmente toma seu olhar. A íris quase branca contrasta-se com toda a energia presente no olhar dos replicantes. Já no que diz respeito ao Dr. Tyrell, seus olhos escondem-se por detrás de um par de óculos de lentes grandes e espessas, sendo a única personagem a utilizar um objeto que impede a visualização direta de seus olhos. A divinificação da figura de Tyrell funciona como elemento articulador de toda a religiosidade existente no comportamento dos fugitivos. Apesar de essa religiosidade não implicar o culto a uma religião, a busca dos quatro replicantes por mais vida assume contornos de sacralidade. Enquanto Dr. Tyrell representa o pai criador dos replicantes, sendo quase inalcançável, Roy é o filho pródigo, o mais inteligente e mais forte, o mais capaz, sua criação especial. Nessa chave interpretativa, ao retornar e exigir do pai mais existência, o ato de Roy torna-se sacrílego. A consciência desse fato está presente na distorção do verso de William Blake193, citado pelo replicante: “ – Incandescentes os anjos caem. Estrondosos trovões tornam em seu litoral, queimando com o fogo de Orc.”194 O encontro entre criador e criatura assume, portanto, forte densidade dramática. Após pedir por mais vida, e referir-se ao “pai” (father) como “canalha” (fucker), Roy tem seu pedido negado. Sendo momentaneamente consolado por Tyrell, que tenta fazer com que o replicante valorize todas as qualidades de que usufruiu em sua curta vida, Roy assassina seu criador com as próprias mãos. A reação passional determina que a distinção emocional apontada entre humanos e replicantes já é definitivamente inaplicável no caso de Roy. Expressivamente, o filho mata o pai esmagando seus olhos com os polegares. Assim, a importância dos olhos na narrativa é recuperada novamente. O brilho avermelhado aparece pela última vez nos olhos de Roy no momento do assassinato, enquanto a coruja sintética que acompanhava Tyrell testemunha o parricídio, com o mesmo brilho em seus olhos.

193 Poeta, pintor e editor inglês que viveu entre 1757 e 1827. 194 Fala proferida aos 27min26seg. A citação de Roy, no inglês, é: “Fiery the angels fell. Deep thunder rolled around their shores. Burning with the fires of Orc.”. Já o verso original de Blake é: “Fiery the angels rose, and as they rose, deep thunder rool’d around their shores: indignant burning with the fires of Orc.”. O citado verso consta no livro America: a prophecy, editado em 1793. 296

Fotograma 113 - Dr. Tyrell é morto por Roy tendo seus olhos esmagados (01h26min07seg.). Na narrativa, Tyrell é apontado como o gênio criador dos replicantes, o único a compreender o funcionamento de suas mentes. Aparentando possuir grande conhecimento, seus olhos nunca mostraram o brilho presente em Deckard, Rachael e Roy. A maneira como foi assassinado implica o mal que, dentro dos marcos da trama, pode se ocultar por detrás do conhecimento. Após o feito, Roy busca a redenção. A cena seguinte, na qual o replicante persegue Deckard e acaba por salvá-lo antes de morrer, utiliza-se de outro simbolismo para desenvolver ainda mais as implicações religiosas da narrativa. Como sintoma da aproximação do final de sua vida útil, a mão direita de Roy torna-se rígida. Para solucionar o problema, o replicante retira um prego enferrujado de uma viga de madeira e perfura a mão com o objeto. Evocando a crucificação, Roy transforma-se no salvador da causa de todos os replicantes. Ainda que, para punir Deckard pelas mortes de Zhora e Pris, Roy quebre dois dos dedos de sua mão direita, é com a mesma mão perfurada pelo prego que o replicante irá agarrar o pulso do blade runner no momento em que ele cairia do alto do prédio. Nos instantes finais, quando Roy alcança a redenção e a iluminação, segura na mão esquerda uma pomba branca que alça voo após a sua morte. O replicante havia retornado à Terra em busca de vida. E, apesar de não alcançar o desejado acréscimo em sua existência, ele efetivamente encontrou vida. Roy, que iniciara a história como um assassino, torna-se o salvador de seu perseguidor e responsável pela morte de seus amigos. O valor oferecido por Roy para a vida de qualquer ser, como dádiva, em seus momentos derradeiros, faz com que aceite o destino fatídico com serenidade. Enquanto Leon havia dito a frase “ – Hora de morrer” quando iria matar Deckard, Roy profere as mesmas palavras para o mesmo homem, porém com significado oposto. Enquanto profere o solilóquio de sua morte, seus olhos já estão livres daquele estranho brilho. Do mesmo modo que Roy experimenta um processo de elevação espiritual que, ao longo da projeção, desenvolve-se em crescendo, Deckard encontra as resposta para os seus 297

próprios questionamentos pessoais. Durante o avanço da investigação pelos fugitivos, as mortes que cometeu, os sentimentos intensos que passa a nutrir por uma replicante, bem como o fato de ter sido poupado por outro, oferecem ao blade runner o mote definitivo para abandonar a megalópole e o trabalho que prestava, em última instância, ao poder corporativo. A Corporação Tyrell concretiza o poder em “Blade Runner”. Naquele futuro aterrador onde a evolução tecnológica implicou o colapso natural, a instituição responsável pela resultante tecnológica mais impressionante parece ter substituído o Estado. Além do departamento de polícia, nenhuma outra instância estatal chega a merecer menção no enredo, enquanto que a construção que espetacularmente toma o horizonte da megalópole consiste na sede da empresa. Na trama, tudo o que existe de ruim e de reprovável, a decadência urbana, a superpopulação, a desumanização, a artificialização e a tecnologização da vida, a chuva constante e a noite que parece não ter fim dão a impressão de estarem relacionadas, em algum grau, com a Tyrell e a tecnologia que oferece. Em uma sociedade que não demonstra idolatrar deuses ou religiões, mas a tecnologia, a Corporação Tyrell tornou-se a religião, sua sede o templo, seu fundador uma divindade, e suas criaturas, mais fortes e inteligentes que os seres humanos, anjos caídos.

4.3.3 As Distopias Diante das Expectativas de Futuro “THX 1138” e “Blade Runner: o Caçador de Androides” lidam com projeções de futuro distópicas nas quais determinadas mudanças sociais ou tendências de transformação, sejam políticas, econômicas ou culturais, são desenvolvidas de modo a constituir uma realidade onde os problemas da existência humana foram, de alguma maneira, intensificados. Apesar da proximidade temática, os onze anos de distanciamento existentes entre a produção dos dois títulos, permite a observação sob a perspectiva das demandas sociais presentes no início das décadas de 1970 e 1980. A despeito de o último filme ter sido realizado após o final da década de 1970, a película reflete questões que estavam em debate por aqueles anos, ainda dialogando com o contexto de crise dos Estados Unidos na referida década. “THX 1138” recorre à conhecida Alegoria da Caverna, presente em A República, livro VII, de Platão. Cativos no subsolo e mantidos sob estrito controle através das drogas que são obrigados a tomar por um Estado totalitário, os indivíduos daquela sociedade satisfazem- se com a realidade na qual estão inseridos ignorando que seriam livres apenas na superfície, que desconhecem, o mundo real. Em 1971, ano de lançamento do filme de Lucas, boa parte das expectativas que animaram a segunda metade dos anos de 1960 havia dado lugar à desesperança. Por acontecimentos diversos, a busca por uma sociedade mais harmônica e 298

justa não havia se concretizado. Os movimentos políticos estudantis fracassaram, a “revolução do amor” não passou de uma estética mercantilizada nas vestimentas e na mídia, enquanto os movimentos pelos direitos dos negros tornaram-se cada vez mais radicalizados e combatidos pelo governo. Os EUA ainda permaneciam no Vietnã e o longo período de prosperidade econômica iniciado após a Segunda Guerra Mundial chegara ao fim. Assim, a visão de futuro presente na película dá conta de uma sociedade onde todas as demandas são atendidas, porém sob o custo da liberdade e do conhecimento da realidade. Dada a profundidade da ruptura, “THX 1138” parece retratar um futuro ainda distante, uma vez que os principais traços culturais e de organização social do presente estão completamente desfigurados nessa representação. Enquanto a estrutura familiar nuclear foi abolida, os indivíduos não possuem mais nomes, porém identificação numérica. Uma entidade informatizada ocupa a posição de deidade em um Estado absoluto e teocrático. A heterogeneidade social e cultural desapareceu, enquanto todos se vestem e se comportam de maneira similar. Apenas a elite religiosa pode usufruir de alguma singularidade. Desprovida de real espiritualidade, aquela sociedade transformou a instância do consumo em uma atividade sacralizada, incentivada religiosamente. Na cidade subterrânea sem nome onde LUH e THX habitam, não existe pobreza ou desemprego. Assim, os embates e problemas ocasionados pela distribuição desigual da riqueza material foram ultrapassados. Porém, toda a população é privada de outras formas de riqueza, cabendo consumir a cultura oficial do Estado. Uma vez que inclusive as relações sociais e afetivas são controladas por essa única instância de poder, mesmo o capital social foi perdido. Além de serem privados de tradição e de passado pessoal, já que inexistem laços familiares ou de parentesco, igualmente não existe história ou qualquer referência a um passado comum. Finalmente, nos espaços públicos assepticamente limpos, iluminados e brancos, não existe cidadania. Tudo o que pode conferir esse sentimento de pertencimento ao indivíduo foi desconstruído em algum momento da evolução que permitiu o surgimento daquela organização social. Logo a cidadania, instância que estava presente nas bases dos discursos de muitos movimentos sociais dos Estados Unidos da década de 1960, desaparecera. “Blade Runner” retrata um futuro bem mais próximo e palpável. Apesar da intensificação das consequências operada pelo enredo, muitos dos elementos utilizados na constituição daquela realidade não eram estranhos aos debates referentes aos rumos da nação no final dos anos 1970, tampouco no início da década seguinte. 299

A degradação da natureza era uma bandeira levantada pelos movimentos ambientalistas que surgiram no bojo dos movimentos do final dos anos 1960 e que, uma década depois, tornavam-se cada vez mais urgentes. O crescimento descontrolado das metrópoles e os desdobramentos sociais representados consistiam, igualmente, em um problema que já demandava políticas públicas imediatas, sobretudo a pobreza e o desemprego. Por outro lado, a transfiguração cultural e étnica explicitamente veiculada na tela pela produção de Scott, um diretor inglês, alarmava uma sociedade orgulhosa da riqueza cultural que havia construído e através da qual estabelecia sua identidade. Finalmente, “Blade Runner” desloca o poder delegado pelo povo ao Estado para uma corporação empresarial. No país que baseia parte de sua tradição na ideia da livre iniciativa e do livre comércio, a indústria e o empreendedorismo sempre contaram com a aceitação e o reconhecimento social de maneira quase unânime. No entanto, o lugar político e social ocupado pela Tyrell, e, simbolicamente, o destaque de sua sede no horizonte da Los Angeles de 2019, colocam sob suspeita a validade do desenvolvimento das gigantescas corporações. Note-se que, além da empresa fictícia de tecnologia, marcas como “Coca-Cola”, “Pan-Am”, “TWA”, “TDK” e “Atari”, famosas à época de lançamento da película, são citadas em algumas das tomadas aéreas da megalópole futurista. Significativamente, ambos os filmes examinados acima não obtiveram sucesso de bilheteria quando de seu lançamento, tornando-se, porém, cultuados ao longo dos anos seguintes. Sobretudo no segundo caso. Enquanto que, em 1971, a representação de um futuro onde um Estado opressor suprimira todos os níveis possíveis de liberdade do indivíduo poderia parecer indigesta para uma audiência ainda ciosa de direitos, em 1982, a Era Reagan já havia se iniciado e, com ela, o discurso dos Estados Unidos como nação forte e promissora tinha sido recuperado. A década do desalento político, da recessão econômica prolongada e da descrença social havia sido ultrapassada pelo entusiasmo de um futuro positivo. Como comprova o final feliz de Deckard e Rachael na natureza das montanhas, incluído como resposta à recepção negativa do filme nos testes de exibição195, as pessoas não desejavam distopias, mas utopias nas quais pudessem projetar seus desejos e expectativas.

195 Conferir o documentário “Dias Perigosos – Realizando Blade Runner” (Dangerous Days: Making Blade Runner, dir.: Charles de Lauzirika – 2007). A sequência final, pensada com o único objetivo de tornar a produção mais palatável à audiência e, portanto, aumentar a rentabilidade do produto, estabelece-se em oposição a toda a atmosfera urbana decadente construída pela trama como a realidade daquele futuro distópico. Ao espectador atento, fica difícil compreender o motivo das pessoas submeterem-se a viver numa megalópole suja e hostil se existiam espaços naturais vazios não tão distantes dali. Depois que a produção foi revisitada através do lançamento na TV e em VHS, tornando-se cultuada, a sequência final foi suprimida. 300

CONCLUSÃO

A presente pesquisa teve como objetivo examinar o processo de representação realizado através da produção cinematográfica dos estúdios hollywoodianos nas décadas de 1960 e 1970. Nesse recorte, como foi salientado ao longo do texto, a sociedade dos Estados Unidos atravessou um contexto de transformações em distintos níveis. Tanto cultural quanto socialmente, a nação presenciou a emersão de demandas que abalaram o conjunto de valores hegemonicamente estabelecidos, gerando tensões que questionavam alguns dos princípios constituintes do ethos nacional. Por outro lado, na política e na economia, os reveses consequentes dos escândalos políticos e a conjuntura de crise alteraram o cenário de tal modo que as expectativas nacionais foram submetidas à profunda revisão. Mesmo o papel geopolítico preponderante dos Estados Unidos na balança internacional de poderes fora, em parte, relativizado. No ambiente que se estabelecera no recorte considerado, alguns movimentos e acontecimentos destacaram-se devido ao potencial que demonstraram possuir para propor ou ocasionar mudanças, além da capacidade de acionar parcelas significativas da sociedade em torno dos debates que eram erigidos. Diante dos temas levantados com urgência por camadas sociais específicas, a população em geral respondeu de maneira dicotômica, por vezes demonstrando a mesma paixão tanto no apoio quanto na oposição. Para a indústria do cinema de grande circuito, cujo longo período de crise tornava nostálgica a lembrança dos anos de apogeu, todo o ruído social percebido implicava a necessidade de renovação das temáticas e da perspectiva de abordagem operada em suas produções, por décadas limitadas pelo código de autocensura. Além disso, poderia revelar a oportunidade para a reaproximação do produto cinematográfico da sociedade, abordando os anseios presentes nas bases das disputas sociais e políticas em curso. Entretanto, essa atualização da indústria demandava transformações de grande profundidade no negócio longamente instituído da produção de filmes e, desse modo, deveria ser realizado com cautela. O fenômeno da venda dos grandes estúdios para conglomerados ávidos por ingressar no mercado de entretenimento e mídia possibilitou a predisposição indispensável para tal empreendimento. Assim, muito das inovações que foram trazidas às telas no período, e que mereceram destaque nestas páginas, ocorreram, em grande medida, por essa confluência de acontecimentos. O surgimento da Nova Hollywood e, pouco depois, o estabelecimento da estratégia empresarial, publicitária e de produção dos blockbusters, asseguraram a mudança de rumo 301

estabelecida no negócio do grande cinema dos Estados Unidos. Dessa maneira, diante das temáticas juvenis e da enxurrada de novos profissionais nesse ramo do entretenimento (novos tanto na carreira quanto na faixa etária), o cinema do país experimentou um processo de modernização. A seleção dos temas a serem abordados ao longo dos capítulos do presente texto procurou salientar as questões mais representativas das mudanças ocorridas naquela sociedade. Assim, tanto movimentos de ordem cultural quanto acontecimentos do campo político foram privilegiados. Um elemento, porém, tornou-se recorrente na maioria das produções selecionadas: a juventude. Apesar de a pesquisa não procurar privilegiar uma determinada camada dentro do corpo social dos Estados Unidos, mas acontecimentos e movimentos organizados que tivessem sido determinantes no desenvolvimento histórico observado no recorte proposto, a parcela populacional juvenil está presente com proeminência na maioria dos subcapítulos que compõem o texto. Este fato deve-se, primeiramente, às fontes eleitas para análise. Nestas, os assuntos abordados pelos enredos eram frequentemente vivenciados por protagonistas jovens, que serviam como veículo e exemplo dos desdobramentos individuais das temáticas em debate na sociedade. No entanto, excluindo-se os subcapítulos 2.1 e 3.2, o processo de escolha do corpus documental não teve como uma de suas premissas a inserção etária dos protagonistas. Desse modo, essa especificidade da recorrência da juventude nos filmes examinados evidencia a regularidade com que os jovens habitaram as telas de cinema nas produções do país nas décadas estudadas. Mesmo quando o tema considerado em uma dada produção não se relacionava exclusivamente com o universo juvenil (os desdobramentos sociais da crise econômica, por exemplo), era a juventude a parcela populacional a ser habitualmente escolhida para representar a questão. Conforme argumentado ao longo do texto, a relevância juvenil deve-se a dois fatores principais, a saber, o destaque desse agrupamento social nos acontecimentos do período e sua midiatização, por um lado, e as transformações na produção do cinema, por outro. Dos movimentos organizados que atingiram maior ressonância na década de 1960, todos contaram com a presença destacada de ativistas jovens. Mesmo no caso da luta pelos direitos civis dos negros, que se integrava a um contexto social de lutas antigo e que contara com fases distintas nas décadas (e mesmo séculos) anteriores, a convergência dos jovens foi responsável por parte significativa do acirramento das demandas. A politização dos campi universitários, por sua vez, proveu o afluxo que alimentou a oposição à Guerra do Vietnã, especialmente, mas também fundamentou o posicionamento 302

anti-establishment observado em outros âmbitos e níveis da relação cidadão-Estado naqueles anos. Ademais, a midiatização de toda a profunda e ampla conjuntura de instabilidade social e política que, sobretudo através do jornalismo televisivo, inundava os lares americanos, colaborou para o destaque da atuação dos jovens. Diante desses acontecimentos, e da consequente elevação da juventude à posição de parcela populacional politicamente engajada e socialmente consciente, o cinema optou pela absorção. Como citado no primeiro capítulo, os jovens já haviam merecido notoriedade na produção hollywoodiana dos anos de 1950. Marlon Brando e James Dean tornaram-se ícones de um cinema voltado às idiossincrasias juvenis. No entanto, nesse contexto, foi a eclosão de uma cultura jovem de sublinhado aspecto adolescente que atraiu a atenção dos estúdios. Nas décadas seguintes, a elevação dos jovens como atores políticos de relevância, além do caráter espetacular da contracultura, eminentemente juvenil, levou o cinema a rejuvenescer suas temáticas. Como a comparação das fontes permitiu observar, a visibilidade da juventude no cinema de Hollywood transcendeu as mudanças conjunturais ao longo do recorte estudado, permanecendo os jovens presentes nas telas dos anos 1970 com a mesma intensidade que demonstraram nas películas do final da década anterior. A utilização do método comparativo na pesquisa objetivou permitir a detida observação das variações e continuidades das representações operadas no cinema diante das mudanças de contexto ao longo das décadas elencadas. Assim, a separação dos capítulos por áreas, além da divisão temática dos subcapítulos, possibilitou o exame dos temas de forma intensiva e claramente delimitada. No entanto, considerando a pluralidade da espécie de fonte utilizada, as análises não ignoraram os eventuais desvios temáticos dos enredos em prol da manutenção exclusiva da atenção ao assunto tratado, naquele momento, como objeto. A riqueza historiográfica do cinema reside, sobretudo, nessa multiplicidade de temas, perspectivas, argumentos e vozes que cada filme pode apresentar. Assim, o tratamento pormenorizado de cada fonte propicia uma amostragem do vigor da conjuntura de transformações em curso, ao desvelar as inúmeras áreas de contato dos variados temas em debate naquela sociedade. Conforme as comparações constataram, a hipótese de que os movimentos progressistas da década de 1960, além do surgimento de um cinema voltado às questões sociais em disputa naquele momento, teria direcionado a produção do cinema para uma postura à esquerda, enquanto que o enfraquecimento da retórica por justiça social e liberdade, nos anos 1970, teria possibilitado o estabelecimento de um cinema à direita, não se sustenta, precisando ser cuidadosamente matizada. Como argumentado na introdução, a análise das 303

fontes comprovou a inexistência de uma ruptura ideológica entre as décadas estudadas. Tanto na segunda metade dos anos de 1960 quanto ao longo de toda a década seguinte, produções de caráter mais progressista, e, opostamente, de tom mais conservador, coabitaram as salas de exibição dos Estados Unidos. Essa idiossincrasia da indústria cinematográfica traduz os percalços vivenciados pela própria sociedade do país ao longo dos anos considerados. Desse modo, além de construir representações que influenciaram na maneira como os espectadores avaliavam sua inserção individual na sociedade, nos temas em debate e na vida política do país, os filmes examinados dialogaram com o contexto no qual foram produzidos, sendo em ampla medida delimitados pela realidade imediata na qual se constituíram enquanto produto cultural. Filmes e sociedade estabeleceram uma relação dialética e, se essa é uma questão intrínseca ao cinema, foi experimentada no período estudado com especial intensidade. Dentre as questões levantadas para a execução da análise, alguns acontecimentos- chave demonstraram ter alcançado relevância na mudança dos parâmetros utilizados pelos estúdios para a consecução das tramas cinematográficas. Como se os limites e obstáculos que se colocaram para a realização de muitas das demandas propagadas nos anos de 1960 já não fossem o suficiente para desconstruir a atmosfera de expectativas que havia se estabelecido, os primeiros anos da década de 1970 trouxeram dois acontecimentos que não faziam parte do horizonte de possibilidades existente no imaginário político da nação: os Estados Unidos perderam a guerra e o presidente renunciou às vésperas de sofrer um processo de impeachment. A profundidade desses acontecimentos apenas pode ser esclarecida caso seja considerada a importância que o ânimo militar e a solidez das instituições democráticas possuem na narrativa de origem daquela nação. Ao longo da história de formação dos Estados Unidos, com destaque para a Guerra de Independência, esses dois elementos constituíram as bases do significado de “ser americano”. O mito de uma nação capaz de defender-se contra a tirania, fundamentada na justiça e na igualdade de oportunidades, tornava suas instituições inquestionáveis, ao menos no nível do imaginário político. Assim, a derrota no Vietnã e os desvios dos detentores dos mais altos cargos do executivo colocaram em questão a dignidade da nação. Diante da falência das instituições militares e democráticas coube à cultura, e ao cinema, tornar o trauma inteligível. Com a validade dos princípios da nação abalada, a produção cinematográfica buscou, através de inúmeras películas que abordaram a atmosfera 304

de desalento, oferecer reflexões sobre os reais valores daquela sociedade. O luto fora vivenciado através do cinema, nos anos 1970. Desse modo, como as análises demonstraram, as representações realizadas a respeito do militarismo e do papel do Estado frente ao cidadão apresentam divergências significativas entre o período anterior à derrota e à renúncia, e o momento posterior a esses acontecimentos. Se, no primeiro recorte, as películas não questionavam a unidade das instituições, apesar das divergências sociais veiculadas, no segundo, já não há integridade e a população viu-se abandonada, carente dos valores que haviam aprendido a identificar como os alicerces mais caros da nação. Outras temáticas, no entanto, mereceram menor esforço reflexivo por parte da filmografia do período. A criminalidade e a violência urbana, dentre os temas estudados, foi utilizada como argumento para a base de variados enredos, no entanto, mesmo filmes ligados ao conjunto de produções identificados com a Nova Hollywood não ofereceram a devida problematização social do tema. Tanto na segunda metade da década de 1960 quanto ao longo de toda a década de 1970, a criminalidade figurou como indício dos atritos e tensões existentes naquela sociedade, ao invés de ser considerada uma consequência da conjuntura econômica e social das grandes cidades dos Estados Unidos. Ademais, no que concerne à realidade urbana da nação, nenhuma outra grande cidade mereceu maior destaque do que Nova Iorque. Como o exame das fontes permite facilmente averiguar, a cidade da costa leste consistiu no cenário mais utilizado pelos filmes analisados. Do total de vinte películas, seis ambientaram-se em Nova Iorque. A indústria cinematográfica de Hollywood tradicionalmente utilizou-se da metrópole em suas produções. Desse modo, a recorrência da presença de Nova Iorque nos filmes do recorte proposto não é inusitada. A singularidade, porém, reside na maneira através da qual a representação da cidade foi construída e para quais temáticas Nova Iorque foi selecionada. Além disso, e expressivamente, a cidade é bem mais frequente nas produções da década de 1970 do que nos filmes dos anos de 1960. Assim, a cidade tomada pelas gangues juvenis de “Selvagens da Noite” é Nova Iorque, como igualmente é a cidade dos hippies que se opõem à guerra e enaltecem a chegada de uma nova era de amor e harmonia, em “Hair”. Quando os enredos decidiram destacar a criminalidade urbana, selecionaram Nova Iorque como paradigma da questão tanto em “Meu Nome É Coogan” como em “Taxi Driver – Motorista de Táxi”. Além disso, é no bairro operário do Brooklyn, periferia da cidade de Nova Iorque, que Tony Manero e Stephanie lutam para conquistar ascensão social em “Os Embalos de Sábado À Noite” e, finalmente, é 305

trabalhando em uma das sessões da CIA nessa mesma cidade que Condor descobre a realidade desprezível da atuação política internacional de seu país em “Três Dias do Condor”. Excetuando-se “Hair”, nos demais filmes citados a Nova Iorque representada constitui-se como o lugar do crime, da violência, da mentira, do engano, da pobreza, da prostituição, da sujeira, em suma, a cidade congrega os elementos usualmente apontados como corruptores da qualidade de vida nas grandes cidades. Se, durante seu apogeu, o cinema hollywoodiano usualmente caracterizara Nova Iorque como a terra da alegria cosmopolita, da cultura, da afluência e das oportunidades, na década de 1970, a cidade representa a decadência da nação. O declínio do maior símbolo cinematográfico da riqueza do país dialoga claramente com o tom pessimista que se estabelecera na conjuntura política e social naquela década. O espectador desavisado que esperasse visualizar as típicas tomadas da Estátua da Liberdade, do Empire State Building ou da Times Square, tantas vezes destacadas no cinema clássico, precisaria se contentar com a reiterada visão de becos sujos, usualmente sob a escuridão da madrugada de um centro urbano perigoso. Mesmo a exceção sinalizada, “Hair”, é já uma produção do ano de 1979 e, portanto, o ano final da década, em um cenário no qual as mazelas psicológicas da sociedade americana começavam a ser remediadas pelo retorno da retórica patriótica de afirmação da especificidade da nação. O caso das representações referentes à contracultura, por sinal, é significativo das inúmeras possibilidades narrativas do cinema e como essa categoria de produção artística também é capaz de veicular mensagens divergentes das interpretações correntes de seu momento e lugar de produção. Ao optar por privilegiar, no exame específico dessa temática, dois dos filmes mais icônicos quanto à representação contracultural, “Sem Destino” e “Hair”, evidenciou-se como o ambiente cultural arquetípico da segunda metade dos anos de 1960 pôde ser representado negativamente por uma produção inserida naquele momento e, opostamente, ser resgatado por uma película do final da década seguinte, após todo um processo de reprovação da efervescência cultural e política contida no termo ter sido realizado. Em dada medida, a alegria incontestável da tomada final de “Hair” constitui-se como um acerto de contas da sociedade americana com o seu passado recente. Muito além de consistir em uma forma de entretenimento que transcende delimitações etárias, de classe, de raça, de religião ou fronteiras nacionais, o cinema transgride o tempo, permitindo o acesso, ainda que mediado, a realidades passadas de uma maneira particular a qual outras fontes e produções artísticas são incapazes de possibilitar. Nada ingênuo, o cinema insere-se como um locutor parcial e interessado do contexto que não apenas narra, mas colabora por criar. Nos ruídos desse processo, deixa transparecer os 306

embates e tensões presentes em sua produção, e, valiosamente, as disputas da sociedade que lhe serve de esteio.

307

ANEXOS

ANEXO Nº 01

O SOM DO SILÊNCIO

Olá escuridão, minha velha amiga Eu vim para conversar com você novamente Porque uma visão que se aproxima suavemente Deixou suas sementes enquanto eu estava dormindo E a visão que foi plantada em meu cérebro Ainda permanece Dentro do som do silêncio

Em sonhos sem descanso eu caminhei só Ruas estreitas de paralelepípedos Sob a áurea da lâmpada de um poste Virei minha gola por causa do frio e da umidade Quando meus olhos foram esfaqueados pelo flash de uma luz de neon Que dividiu a noite E tocou o som do silêncio

E na luz nua eu enxerguei Dez mil pessoas, talvez mais Pessoas conversando sem falar Pessoas ouvindo sem escutar Pessoas escrevendo canções que vozes jamais compartilham E ninguém ousou Perturbar o som do silêncio

"Tolos" eu disse, "vocês não sabem O silêncio cresce como um câncer 308

Ouçam minhas palavras que eu posso lhes ensinar Tomem meus braços que eu posso lhes estender." Mas minhas palavras caíram como silenciosas gotas de chuva E ecoaram Nos poços do silêncio

E as pessoas se reverenciaram e rezaram Para o Deus de neon que elas criaram E o sinal faiscou o seu aviso Nas palavras que estavam se formando E o sinal disse: "As palavras dos profetas estão escritas nas paredes do metrô E nas salas dos cortiços.” E sussurraram nos sons do silêncio.

309

ANEXO Nº 02

NASCIDO PARA SER SELVAGEM

Ligue seu motor Pegue a estrada Em busca da aventura No que quer que venha em nossa direção

Sim querida, vamos fazer isso acontecer Pegue o mundo num abraço carinhoso Dispare todas as suas armas ao mesmo tempo E exploda no espaço

Eu gosto de fumaça e relâmpago O estrondo do metal Correr com o vento E o sentimento que isso provoca

Sim querida, vamos fazer isso acontecer Pegue o mundo num abraço carinhoso Dispare todas as suas armas ao mesmo tempo E exploda no espaço

Como um verdadeiro filho da natureza Nós nascemos, nascemos para ser selvagens Podemos escalar tão alto Eu nunca quero morrer Nascido para ser selvagem Nascido para ser selvagem

Ligue seu motor Pegue a estrada Em busca da aventura 310

No que quer que venha em nossa direção

Sim querida, vamos fazer isso acontecer Pegue o mundo num abraço carinhoso Dispare todas as suas armas ao mesmo tempo E exploda no espaço

Como um verdadeiro filho da natureza Nós nascemos, nascemos para ser selvagens Podemos escalar tão alto Eu nunca quero morrer Nascido para ser selvagem Nascido para ser selvagem.

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ANEXO Nº 03

ERA DE AQUÁRIO

Quando a lua estiver na sétima casa E Júpiter se alinhar com Marte Então a paz guiará os planetas E o amor dirigirá as estrelas

Este é o amanhecer da Era de Aquário A Era de Aquário Aquário! Aquário!

Harmonia e compreensão Simpatia e confiança em abundância Sem mais mentiras ou escárnio Sonhar acordado com visões douradas Revelação de cristal místico E a verdadeira libertação da mente Aquário! Aquário!

312

ANEXO Nº 04

3-5-0-0

Rasgado pela explosão metálica Preso em arame farpado Bola de fogo Impacto da bala Baioneta Eletricidade Projétil Espalhado Carne Viva Informação eletrônica processando Uniformes pretos Pés descalços, carabinas Rifles de entrega por correio Atire nos músculos 256 Viet Congs capturados 256 Viet Congs capturados

Prisioneiros na senzala É uma pequena guerra suja Três cinco zero zero Pegue em armas e comece a matar Veja os grandes, grandes, exércitos irem para casa.

313

ANEXO Nº 05

O FRACASSO DA CARNE (DEIXE O BRILHO DO SOL ENTRAR)

I. Nós olhamos esfomeados Um para o outro Sem poder respirar Caminhando orgulhosamente em nossos casacos Vestindo cheiros de laboratórios Encarando uma nação que morre De narrativas de fantasias Ouvindo as novas mentiras contadas Com supremas visões de músicas solitárias Em algum lugar Dentro de alguma coisa há um pouco de Grandeza Quem sabe o que nos espera em nossas vidas Eu baseio meu futuro em filmes no espaço O silêncio Me conta em segredo Tudo Tudo

II. Manchester Inglaterra Inglaterra Manchester Inglaterra Inglaterra Através do Oceano Atlântico E eu sou um gênio, gênio Eu acredito em Deus E acredito que Deus acredita em Claude Que sou eu, que sou eu, que sou eu O resto é silêncio O resto é silêncio 314

O resto é silêncio

III. Nós olhamos esfomeados Um para o outro Sem poder respirar Caminhando orgulhosamente em nossos casacos Vestindo cheiros de laboratórios Encarando uma nação que morre De narrativas de fantasias Ouvindo as novas mentiras contadas Com supremas visões de músicas solitárias Cantando nossas canções espaciais em uma citara de teias de aranha A vida está ao seu redor e em você Responda por Timothy Leary, ternamente Deixe o brilho do sol Deixe o brilho do sol entrar O brilho do sol entrar

IV. Deixe o brilho do sol Deixe o brilho do sol entrar O brilho do sol entrar Oh, por que você não deixa o brilho do sol Apenas deixe o brilho do sol entrar O brilho do sol entrar Deixe o brilho do sol Você deve deixar o brilho do sol entrar O brilho do sol entrar Por que você não deixa o brilho do sol Deixe o brilho do sol entrar.

315

ANEXO Nº 06

NÓS VAMOS NOS ENCONTRAR NOVAMENTE

Nós nos encontraremos novamente, Nós nos encontraremos novamente, Não sei onde Não sei quando Mas eu sei que vamos nos encontrar novamente em algum dia ensolarado Continue sorrindo completamente Assim como você sempre faz Até que os céus azuis levem as nuvens escuras para longe

Então, por favor, diga “Olá” Para as pessoas que eu conheço Diga-lhes que não irei me demorar muito Eles ficarão felizes de saber Que quando você me viu partir Eu estava cantando esta canção

Nós nos encontraremos novamente Não sei onde Não sei quando Mas eu sei que vamos nos encontrar novamente em algum dia ensolarado

Nós nos encontraremos novamente Não sei onde Não sei quando Mas eu sei que vamos nos encontrar novamente em algum dia ensolarado Continue sorrindo completamente Assim como você sempre faz Até que os céus azuis Levem as nuvens escuras para longe Então, por favor, diga “Olá” 316

Para as pessoas que eu conheço Diga-lhes que não irei me demorar muito Eles ficarão felizes de saber Que quando você me viu partir Eu estava cantando esta canção

Nós nos encontraremos novamente Não sei onde Não sei quando Mas eu sei que vamos nos encontrar novamente em algum dia ensolarado.

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ANEXO Nº 07

BALADA DOS BOINA-VERDES

Lutando soldados do céu Homens destemidos que saltam e morrem Os homens que significam exatamente o que dizem Os bravos homens da Boina Verde

Asas de prata sobre o peito Estes são os homens, os melhores da América Cem homens vão testar hoje Mas apenas três ganhar a Boina Verde

Treinados para viver na natureza Treinados em combate, mão à mão Os homens que lutam dia e noite Coragem tirada da Boina Verde

Asas de prata sobre o peito Estes são os homens, os melhores da América Os homens que significam exatamente o que dizem Os bravos homens da Boina Verde

De volta à casa uma jovem esposa espera Seu Boina-Verde encontrou seu destino Ele morreu por aqueles oprimidos Deixando-a este último pedido

Coloque asas de prata no peito do meu filho Faça dele um dos melhores da América Ele será um homem que vai testar um dia E ganhar a Boina Verde.

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REFERÊNCIAS

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