UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA DOUTORADO EM MÚSICA

Do Tejo ao Rio de Janeiro: uma história de fados

ALBERTO BOSCARINO JUNIOR

RIO DE JANEIRO, 2011

Do Tejo ao Rio de Janeiro: uma história de fados

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ALBERTO BOSCARINO JUNIOR

Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor, sob a orientação da Professora Dra. Martha Tupinambá de Ulhôa e co-orientação da Professora Dra. Icléia Thiesen

Rio de Janeiro, 2011

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Dedico este trabalho a minha esposa Cristina e ao meu filho Rafael.

Aos meus avós Manuel Mendes e Maria Benedicta dos Reis, o encontro de Portugal e África na construção de nossa identidade cultural.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a orientação da Professora Doutora Martha Tupinambá de Ulhôa pela objetividade, precisão e clareza de sua orientação neste projeto, por sua erudição e por seus sábios ensinamentos, e sobretudo por sua serenidade diante das dúvidas suscitadas no decorrer deste estudo.

Agradeço o acolhimento generoso da Professora Icléia Thiesen, as indicações bibliográficas e metodológicas e a concordância em atuar como co-orientadora da tese.

Aos amigos Alexandre Geraldo, Luiz Carlos Brendler, Lelia Brazil, Mario Louro, Claudia Waite, Julio Giannini, Jane Rodrigues do Santos, Bartolomeu Wiese, Márcia Carnaval, Helenice Cunha, Luiz Carlos Chaves da Silva, Maria de Fátima Chaves de Carvalho, Maria Isabel Chaves de Carvalho Nabuco, Irene Chaves da Silva, presentes nos momentos importantes de minha vida, e que me fazem compreender toda a dimensão da palavra irmandade.

Aos Professores Silvio Mehry, Luiz Paulo Sampaio, Roberto Gnattali, Carole Gubernikoff, e a todos os professores do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Estado do Rio Janeiro UNIRIO, pela seriedade e aplicação que conferem aos seus alunos.

Ao amigo Jorge Chaves, sábio livreiro de nossa universidade.

Aos professores Mônica Duarte, Luiz Otávio Braga e Elizabeth Travassos, que elevam com suas ações a qualidade de conhecimento musical, inclusive no tocante ao desenvolvimento do estudo da música popular, e que participaram da avaliação dos ensaios e da qualificação desta pesquisa.

Aos professores que compõem a banca de defesa desta tese, Icléia Thiesen, Heloisa Valente, Luiz Otávio Braga, Regina Meireles e Mônica Duarte.

A todos os funcionários da UNIRIO, com um agradecimento especial direcionado ao Sr. Aristides Antonio D. Filho e a Cristina do PPGM, pela presteza e boa vontade na resolução de nossos conflitos burocráticos.

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A Thais Matarazzo, Claudia Tulimoschi e Ricardo Oliveira, pelas informações reveladas e por sua resistência em prol da manutenção das práticas culturais do fado no Brasil.

A todos os fadistas, músicos e artistas que motivaram esta tese de doutorado, com grande admiração ao trabalho de Maria Alcina e Adélia Pedrosa, personalidades que tive a oportunidade de conhecer e de aprender mais sobre a cultura portuguesa.

A todos os portugueses imigrantes estabelecidos no Rio de Janeiro.

Aos amigos e familiares, e aos meus pais Alberto e Lourdes, com grande admiração.

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BOSCARINO JR., Alberto. Do Tejo ao Rio de Janeiro: uma história de fados. 2011. Tese de Doutorado (Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Estudo da trajetória do fado no Brasil como canção popular portuguesa e de sua relação com os imigrantes portugueses estabelecidos no Rio de Janeiro no decorrer do século XX. O fado é analisado, assim como os meios de difusão utilizados pelos colonos portugueses estabelecidos na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970, quando estes organizavam eventos sociais a fim de preservar sua memória cultural. O conceito de mundo artístico, de Howard Becker, auxilia na interpretação das práticas musicais e sociais em torno do fado português, incluindo a análise das predisposições interiorizadas, do espaço artístico, das relações existentes entre as redes sociais e a forma de cooperação dos atores sociais. Os espaços de memória do fado são analisados segundo o conceito de Maurice Halbwachs, e a memória coletiva que integra a sua rede social é considerada a partir da contribuição teórica de Michael Pollak. O conceito de habitus de Pierre Bourdieu é referência para a compreensão dos significados apreendidos pelos diversos grupos culturais que integram essa rede social. Além do suporte teórico adotado, são consultadas fontes documentais e colhidos depoimentos orais de artistas, ouvintes e demais agentes sociais. Toda a pesquisa visa contribuir com a reconstrução de uma parte da história musical do fado, investigando o mundo artístico que envolve esse gênero musical em sua relação com os imigrantes portugueses na cidade do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: 1. Fado 2. Imigração Portuguesa 3. Mundo Artístico 4. História Oral 5. Memória Coletiva.

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BOSCARINO JR., Alberto. From Tejo to Rio de Janeiro: a history of fados. 2011. Doctoral Thesis (Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

This is a study of the trajectory of fado in Brazil as Portuguese popular music and of its relationship with the Portuguese immigrants established in Rio de Janeiro during the 20th century. Fado will be analysed, as well as its means of diffusion used by the Portuguese colonies established in the city of Rio de Janeiro during the 1950s and the 1970s, when these people organized social events in order to preserve their cultural memory. The concept of art world of Howard Becker helps in the interpretation of the musical and social practices around the Portuguese fado, including the analysis of the internalized predispositions, of the artistic space, of the existent relationships between the social networks and the way of cooperation of the social actors. The spaces of memory of fado will be analysed based on the concept of Maurice Halbwachs, and the collective memory which integrates its social network will be considered from the theoretical contribution of Michel Pollak. Pierre Bourdieu’s concept is reference for the understanding of the meanings apprehended by several cultural groups which are part of this social network. Besides the adopted theoretical support, documental sources are consulted and oral depositions of artists, listeners and other social agents are collected. The research as a whole aims to contribute with the recovering of one part of the musical history of fado, investigating the art world which involves this musical genre in its relation with the Portuguese immigrants in the city of Rio de Janeiro. Keywords: 1. Fado 2. Portuguese Immigration 3. Art World 4. Oral History 5. Collectiv Memory.

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BOSCARINO JR., Alberto. Tejo - Rio de Janeiro: une histoire du fado. 2011. Thèse de doctorat (Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RÉSUMÉ

Étude la trajectoire du fado au Brésil comme une chanson populaire portugaise et ses relations avec les immigrants portugais établis à Rio de Janeiro au cours du XX e siècle. Le fado sera discuté ainsi que les moyens de diffusion utilisés par les colons portugais pendant les années 1950 et 1970 à la ville de Rio de Janeiro, quand ils organisent des activités sociales afin de préserver leur mémoire culturelle. Le concept du monde de l'art, Howard Becker, aide à l'interprétation des pratiques sociales et musicales autour du fado portugais, y compris l'analyse des prédispositions personnelles, l'espace d'art, la relation entre les réseaux sociaux et la forme de la coopération des acteurs sociaux. Les espaces de la mémoire du fado seront analysés selon le concept de Maurice Halbwachs et l'idée de la mémoire collective et de l'intégration de leur réseau social sera considérée comme provenant de la contribution théorique de Michael Pollak. Cette recherche utilise aussi le concept d'habitus de référence de Pierre Bourdieu pour comprendre la signification perçue par les différents groupes culturels au sein de ce réseau social. En plus du soutien théorique adoptée, sont consultés sources documentaires et des témoignages oraux recueillis par des artistes, des auditeurs et d'autres agents sociaux. Toutes les recherches vise à contribuer à la rescousse d'une partie de l'histoire de la musique fado, d'enquêter sur le monde artistique qui entoure ce genre dans ses relations avec les immigrants portugais dans la ville de Rio de Janeiro.

Mots clés: 1. Fado 2. L'Immigration portugais 3. Art monde 4. L'histoire orale 5. La mémoire collective.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 1

CAPÍTULO 1 – A DERIVA DOS IMIGRANTES LUSITANOS ...... 9 1.1 A imigração portuguesa no Brasil ...... 10 1.2 A imigração portuguesa no Rio de Janeiro: ocupação e expansão do território..22 1.3 Os imigrantes portugueses, entre empresários e operários: a indústria têxtil no Rio de Janeiro ...... 30 1.4 Os portugueses e os espaços de divulgação do fado ...... 38 1.4.1 A Opereta e o teatro de revista...... 38 1.4.2 Casas regionais, associações culturais e filantrópicas ...... 50 1.4.3 Gravações pioneiras do fado ...... 53

CAPÍTULO 2 – O FADO EM PORTUGAL ...... 62

2.1 O fado, canção popular portuguesa ...... 62 2.2 Símbolos de construção e sustentação do fado português ...... 71 2.3 O fado como gênero musical: o fado castiço e o fado-canção ...... 76 2.4 A interpretação vocal do fado ...... 86 2.5 Instrumentação e acompanhamento do fado ...... 89 2.6 As casas de fado em Lisboa ...... 91 2.7 Principais artistas do fado em Portugal ...... 96 2.8 Primeiras gravações do gênero em Portugal ...... 97

CAPÍTULO 3 – PONTE LUSÓFONA: O FADO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO ENTRE AS DÉCADAS DE 1950 e 1970...... 99

3.1 O fado no Rio de Janeiro: mundo artístico e memória social ...... 99 3.2 Os espaços de memória do fado na cidade: público, fadistas, radialistas e músicos ...... 106 3.3 Blogueiros: a manutenção da memória do fado no Brasil ...... 134 3.4 As casas de fado na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970...... 138 3.5 Programas radiofônicos e televisivos ...... 142 3.6 A discografia registrada entre as décadas de 1950 e 1970 ...... 153

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 176

REFERÊNCIAS ...... 186

ANEXOS ...... 197

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LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

Exemplo 1 - “Cateretê”. Orpheo na Roça. Composição de Manoel Joaquim Maria e Francisco Correa Vasquez. Partitura para canto e piano...... 40

Exemplo 2 - “Fadinho Final”. Composição de Abdon Milanez. Trecho da partitura para piano...... 41

Exemplo 3 - “Fado de Vimioso”. Anônimo. Trecho de partitura para piano...... 55

Exemplo 4 - “Saudades da terra”. Composição de Baiano. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 56

Exemplo 5 - “Fado brasileiro”. Composição de Baiano. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 59

Exemplo 6 - “O leilão da Mariquinhas”. Composição de João Linhares Barbosa e Alfredo Marceneiro”. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 79

Exemplo 7 - “Fado Menor”. Composição de Linhares Barbosa e Santos Moreira. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 80

Exemplo 8 - “Fado Mouraria”. Anônimo. Transcrição de José Lúcio Ribeiro Almeida...... 81

Exemplo 9 - “Gaivota”. Composição de Alexandre O’Neill e Alain Oulman. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 85

Exemplo 10 - “Guitarra Portuguesa”. Afinação tradicional do fado...... 90

Exemplo 11 - Viola-baixo: afinação...... 90

Exemplo 12 - Fragmento de “Rosinha dos Limões”. Fado de Artur Ribeiro. Transcrição de José Lúcio Ribeiro de Almeida...... 91

Exemplo 13 - “Moreninha de Lisboa”. Composição de Irani de Oliveira e William Duba. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 160 Exemplo 14 - “O fado é bom pra xuxu”. Composição de Frederico Valério e Amadeu do Vale. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 164

Exemplo 15 - “Olhos Castanhos”. Composição de Francisco José e Alves Coelho. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 166

Exemplo 16 – “ O fado subiu o morro”. Composição de Manuel Taveira. Fragmento da gravação transcrito por Alberto Boscarino Junior...... 173

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INTRODUÇÃO

O tema da imigração portuguesa no Brasil entrelaça o objeto de pesquisa da tese de doutorado com minha história familiar. Da mesma forma que milhares de portugueses que aqui chegaram naquele período, meu avô materno imigrou para o

Brasil na década de 1910, oriundo da província de Amarante, norte de Portugal, em busca de melhores perspectivas para sua família. Como outros patrícios, deixou sua família (mulher e dois filhos) em sua terra natal e desembarcou sozinho no Rio de

Janeiro, almejando trabalho a fim de constituir uma base segura que possibilitasse a vinda de seus familiares. Em sua bagagem, poucos pertences, alguma soma de dinheiro e uma guitarra portuguesa, que lhe dava suporte harmônico para entoar fados, chulas e outras cantigas populares portuguesas.

Com o passar dos anos, meu avô constituiu uma família nova e repassou aos seus descendentes brasileiros parte da cultura lusitana, que compreendia a culinária, os costumes, os princípios religiosos e a música, esta repleta de fados que evocavam a pátria cada vez mais distante em sua memória. Esses fados podiam ser apreciados através de programas radiofônicos ou cantarolados por meu avô no cotidiano doméstico.

Durante a minha infância no Rio de Janeiro pude presenciar em meu núcleo familiar o exercício de diversos costumes e características pertencentes à cultura afro- brasileira, portuguesa e italiana (ancestralidade paterna), hábitos que não representavam contrastes, mas sim coexistência de culturas, e eram absorvidos de forma espontânea e natural. As reminiscências da infância rondam o universo cultural português e me estimularam a investigar, na condição pesquisador e musicólogo 2 brasileiro, aspectos da música popular portuguesa na cidade do Rio de Janeiro e suas formas de produção e recepção, destacando o fado português como objeto de pesquisa.

O tema abordado nesta tese surgiu a partir de uma conversa descontraída com amigos residentes na Espanha sobre a música da Península Ibérica, na qual era descrito um panorama sobre o Flamenco e Fado no contexto musical das mídias contemporâneas. Posteriormente, refleti sobre o assunto e elaborei um levantamento bibliográfico acerca das fontes do fado no Rio de Janeiro, quando constatei que não dispúnhamos de qualquer informação de sua história na cidade, como discografia, bibliografia ou uma análise de comportamento entre seus agentes. Assim, considerei a relação entre a música do fado e as redes sociais nela inseridas, verificando que se trata de um tema original no universo acadêmico e editorial.

A ideia inicial era realizar uma pesquisa que evidenciasse a diferença entre o fadinho brasileiro e o fado castiço português, utilizando como fontes de consulta as partituras impressas, as obras teatrais, as obras literárias, os cancioneiros editados no

Brasil e em Portugal e as gravações fonográficas realizadas nas três primeiras décadas do século XX. Mas, no decorrer da pesquisa, houve uma mudança de foco, pois o interesse voltou-se para a investigação sobre a cultura do fado na cidade do Rio de

Janeiro, em virtude dos primeiros contatos em trabalho de campo, quando delimitamos o nosso objeto de estudo no período situado entre as décadas de 1950 a 1970.

O modo de organização da tese e a abordagem do tema selecionado para o seu desenvolvimento parte principalmente do estabelecimento do imigrante português na cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, fez-se necessário avaliar o processo de integração do imigrante português em sua comunidade e na sociedade carioca e investigar a questão da resistência em prol da preservação da identidade nacional no além mar.

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Numa revisão histórica, foi destacada a função das instituições culturais portuguesas a fim de compreendermos o papel das entidades sócio-culturais portuguesas e os seus aspectos simbólicos, em que a cultura atua no sentido de sinalizar a identidade cultural dos grupos. Desse modo, procuro interrogar as formas de sociabilidade e os processos de construção da memória e da identidade social através da vivência musical do povo lusitano no Rio de Janeiro e sua relação com o fado. O objeto de estudo será delimitado a partir das relações sociais decorrentes da prática interpretativa dos fadistas e da fruição da colônia portuguesa carioca.

Após a consulta de fontes primárias e secundárias, o trabalho de campo vem acrescentar informações novas acerca da história desses imigrantes portugueses, as quais foram de suma importância para a construção da tese. A memória coletiva dos sujeitos foi considerada como um elemento fundamental para a compreensão das relações sociais e para a articulação com o mundo do fado no período referido. Assim, foram recolhidos depoimentos orais de fadistas, músicos, radialistas e público, e o resultado desses relatos é reunido aos dados históricos citados anteriormente para a configuração de uma análise do objeto da tese.

As fontes de consulta sobre o estudo do fado no Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970 podem ser encontradas em livros e fontes secundárias diversas: em teses de doutorado acerca da imigração portuguesa no Brasil; em fonogramas gravados no período; em levantamento da discografia do período; em folhetos publicados especificamente como programas para apresentação do fado; em fotografias e fontes iconográficas; em sítios da Internet e blogues que visam à divulgação do fado no Brasil e no mundo; na audição de programas radiofônicos atuais que apresentam em sua programação o repertório da época; em relatos e

4 depoimentos dos sujeitos que participaram da implementação e difusão do gênero na cidade, compreendendo-se músicos, produtores, radialistas e o público.

Considerando-se todas as fontes indicadas, merecem destaque os relatos obtidos através de entrevistas semi-estruturadas, as quais podem fornecer um panorama do universo musical vivido à época. Nesse sentido, a história oral se constitui como metodologia relevante em nosso estudo, em que os depoimentos individuais colhidos através de entrevistas configuram-se também como fontes documentais. Embora algumas vezes imbuídos de um caráter contraditório, esses relatos podem revelar biografias, tendências morais, regras sociais, além de construírem em geral um relato épico acerca da jornada do entrevistado, permeado de experiências pessoais que carregam em si as vicissitudes decorrentes da diáspora. São histórias que recuperam vestígios de acontecimentos passados, apesar de não apresentarem verdades incontestáveis. Portanto, deve ser assinalada a percepção do indivíduo acerca da sua história e a de outros portugueses que migraram no mesmo período, ou seja, a “percepção social dos fatos”, de acordo com Paul Thompson

(1992). A construção da memória coletiva acerca de um fato pode abranger depoimentos antagônicos entre sujeitos oriundos da mesma prática social. As considerações de Verena Alberti (2005) sobre a história oral vem colaborar com o levantamento e a organização das principais fontes orais desta pesquisa. Outros conceitos utilizados são o de memória coletiva e identidade social, de Michael Pollak

(1992), visando avaliar o processo de integração do imigrante português no Rio de

Janeiro e a articulação com o gênero musical fado, considerando-se a recuperação de suas histórias de vida através da memória no além mar.

O conceitos de Howard Becker (1977) são identificados a partir da sua visão de

“mundo artístico” e compreendem a ação dos artistas integrados na rede social em que

5 estão envolvidos. Através da trajetória dos artistas de fado, procurei compreender o papel da música na conformação das sensibilidades junto ao público luso-brasileiro e examinar a influência dos recursos de difusão da música portuguesa no Brasil por intermédio da mídia. A diversidade dos significados apreendidos pelos diversos grupos culturais que integram essa comunidade servirá como referência para uma análise fundamentada nos conceitos de campo1 e habitus de Pierre Bourdieu (2000).

Maurice Halbwachs destaca a relação do sujeito com o outro, considerando a ação do indivíduo em relação ao seu grupo, e o modo como o sujeito vê e é visto pelo grupo. Jean Duvignaud, em prefacio ao livro Memória Coletiva, de Halbwachs (1990) afirma:

Maurice Halbwachs evoca o depoimento que não tem sentido senão em relação ao grupo do qual faz parte, pois supõe um acontecimento real outrora vivido em comum e, por isso, depende do quadro de referência no qual evolui presentemente o grupo e o indivíduo que o atesta. Isto quer dizer que o ‘eu’ e sua duração situam-se no ponto de encontro de duas séries diferentes e por vezes divergentes: aquela que se atém aos aspectos vivos e materiais da lembrança, aquela que reconstrói aquilo que não é mais senão do passado. Que seria desse ‘eu’, se não fizesse parte de uma ‘comunidade afetiva’ de um ‘meio efervescente’, do qual tenta se afastar no momento em que ele se ‘recorda’? (HALBWACHS, 1990: 13-14).

A tese se encontra estruturada de forma a apresentar, no primeiro capítulo, um panorama da imigração portuguesa no Brasil e especificamente na cidade do Rio de

Janeiro, dirigido a uma análise da diáspora portuguesa a partir das obras de autores como Eulália Maria Lahmeyer Lobo (2001), Renato Pinto Venâncio (2000),

Abdelmalek Sayad (1998), Maria Beatriz Nizza da Silva (1992), Lucia Lippi Oliveira

(2001), entre outros. Os registros históricos sobre a ocupação da cidade pelos portugueses e a expansão do território para as áreas rurais sinalizam os marcos

1 Para Bourdieu (2000), o conceito de campo compreende o espaço onde ocorrem relações entre indivíduos ou grupos sociais, movido por leis próprias e dinâmicas, cujo objetivo principal deve revelar o êxito dos sujeitos envolvidos nas disputas de poder. O conceito de campo encontra-se associado ao conceito de habitus, que opera como um código de conduta exercido de forma inconsciente e que legitima e ordena o comportamento social dos agentes.

6 simbólicos lusitanos existentes até a presente data. A presença portuguesa na área empresarial é assinalada através da organização das indústrias têxteis do final do século XIX, que deram origem às vilas operárias e, por extensão, a toda uma rede de relações sociais decorrente do cotidiano dos operários nos seus bairros de moradia.

Ainda neste capítulo, iniciamos a investigação sobre a presença do fado na cidade, apresentando uma retrospectiva histórica acerca dos espaços de divulgação do gênero entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ressalto aqui a importância do teatro musicado brasileiro para a divulgação do gênero, assim como as associações culturais e filantrópicas, as casas regionais e os primeiros programas radiofônicos dirigidos para a comunidade luso-carioca. Encerrando o capítulo, comento a importância das gravações fonográficas registradas entre 1902 e

1935, e o pioneirismo de músicos e intérpretes que iniciaram a divulgação do fado na cidade do Rio de Janeiro, colaborando para a afirmação da identidade cultural da colônia portuguesa através dos símbolos pátrios que eram apresentados nos textos das canções.

No segundo capítulo, é realizada uma síntese do fado como gênero musical em

Portugal. Aí são discutidos os símbolos de sustentação do fado português, que orientam a construção simbólica do gênero musical como canção popular e manifestação cultural: temáticas, lendas, objetos, conceitos. Musicalmente são descritos e comentados os estilos do fado castiço e fado-canção. Outro fator a ser destacado é a forma de interpretação vocal do fado, composta de uma performance que articula gestos, expressão facial, timbre de voz, ambientação local e ornamentos diversos. A instrumentação típica e a forma de acompanhamento do fado são repassadas, além dos aspectos que contribuíram para o surgimento das casas de fado em Lisboa, considerando toda a sua simbologia. O capítulo se encerra com uma breve

7 indicação dos principais fadistas portugueses do século XX e com uma referência às primeiras gravações fonográficas do gênero em Portugal.

O terceiro capítulo se constitui como cerne da tese de doutorado, e investiga as fontes do fado português no Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970. Após uma contextualização histórica e estrutural do fado como canção popular portuguesa e o universo peculiar da mitologia fadista, fundamentada pelas obras de José Ramos

Tinhorão (1994), Salwa Castelo-Branco (1994) e Pinto de Carvalho (2003), passo a discutir a relação existente entre a colônia luso-carioca e os fadistas que interpretavam suas canções nos espaços disponíveis para a divulgação de tal música. Essa discussão acontece através das fontes documentais extraídas dos relatos de artistas, radialistas e público do gênero fado, e devem ser articuladas de acordo com as teorias de Becker

(1977) e de Pollak (1992).

A diáspora portuguesa ocorrida no século XX fixou colônias em todos os continentes, difundindo e misturando aspectos de sua cultura entre os habitantes nativos das terras novas em que passariam a viver. Nesse período, se forem observados os elementos que conduziram o imigrante português ao deslocamento e à fixação em um território novo, será compreendido que as imigrações foram incentivadas por articulações políticas bilaterais que fomentaram tal trânsito, embora muitos portugueses tenham optado por esse processo por desconhecer toda a engrenagem política em que se encontravam envolvidos à época. Assim, uma análise da imigração portuguesa no Brasil pode ser elaborada a partir do exame dos dados estatísticos que envolvem a geografia e a demografia local, sem deixar de lado os aspectos históricos.

O fado é um gênero musical português que traz consigo a melancolia e a saudade, sentimentos que o povo lusitano parece cultuar em Portugal e no seio de cada

8 colônia portuguesa existente no mundo. No Brasil, especificamente na cidade do Rio de Janeiro, teve o seu apogeu de popularidade entre as décadas de 1950 e 1970, período em que surgiram vários programas radiofônicos dirigidos à comunidade portuguesa local, além de casas de fado, restaurantes típicos, casas regionais, programas televisivos, entre outros espaços de divulgação. Portanto, o fado partiu da cidade de Lisboa, navegou rios e mares, e veio desembarcar na cidade do Rio de

Janeiro, unificando esses espaços de memória. Essa imagem de travessia entre “rios” – margens que se aproximam através dos fados com suas semelhanças e diferenças - dá título a esta tese: “Do Tejo ao Rio de Janeiro: uma história de fados”.

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CAPÍTULO 1

A DERIVA DOS IMIGRANTES LUSITANOS

A Europa jaz, posta nos cotovelos:

De Oriente a Ocidente jaz, fitando,

E toldam-lhe românticos cabelos

Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;

O direito é em ângulo disposto.

Aquele diz Itália onde é pousado;

Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se apóia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,

O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

Fernando Pessoa, Mensagem2

2 PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: DIFEL, 1986, p. 9.

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1.1 A imigração Portuguesa no Brasil

O poema em epígrafe faz uma descrição do mapa da Europa cuja metáfora é a figura de uma mulher reclinada com o olhar a contemplar o oceano. O poeta revela que os olhos dela são “gregos” porque trazem a lembrança da herança cultural européia, e enfatiza o olhar “esfíngico e fatal”, o qual fita o mar. A metáfora utilizada

é apropriada para definir esse povo cuja história é marcada pela expansão marítima, remete aos portugueses que nasceram voltados para o mar e que partiram de sua terra para enfrentar o desconhecido. Para Pessoa, o ocidente é esse “futuro do passado", representado pelo mar, porque o imaginário português não apagou a era das descobertas as quais delinearam seu futuro. Desse modo, a visão para o ocidente pode ser articulada à diáspora dos portugueses, ao percurso que fizeram por mares desconhecidos no período da expansão ultramarina, pois saíram em busca de terras novas, vogando por “mares nunca de antes navegados”. 3

Partimos, portanto, dessa imagem, numa tentativa de decifrar esse olhar

“esfíngico e fatal” do povo lusitano para o mar, enigma que buscaremos desvendar através de um histórico da imigração dos portugueses de Portugal para o Brasil:

Portugal é esse rosto que fita o mar e o seu olhar parece movido pelo desejo de se lançar do Tejo ao Rio de Janeiro.

3 Como diz o poeta Camões no início de sua epopéia Os Lusíadas (Canto I, 1), em que enaltece o valor de seus heróis, chamados pelo poeta de “barões assinalados” os quais viajaram por “mares nunca de antes navegados”. “As armas e os barões assinalados/ Que da Ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana,/ E entre gente remota edificaram/ Novo Reino, que tanto sublimaram.” In: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto Editora, 1978, p. 9.

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A diáspora portuguesa ocorrida no século XX fixou colônias em todos os continentes, difundindo e misturando aspectos de sua cultura entre os habitantes nativos das novas terras em que passariam a viver. Nesse período, ao observarmos os aspectos que conduziram o imigrante português ao deslocamento e à fixação em um novo território, compreendemos que as imigrações foram incentivadas através de articulações políticas bilaterais que fomentaram tal trânsito, mas muitos portugueses optaram por tal processo por desconhecer toda a engrenagem política a que se encontravam envolvidos. Inicialmente, uma análise da imigração portuguesa no Brasil pode ser elaborada a partir do exame dos dados estatísticos que envolvem a geografia e a demografia local, sem deixar de lado os aspectos históricos. Porém, o processo de imigração é um evento de interesse científico, que envolve aspectos políticos, sociais, econômicos, culturais, como adequadamente nos aponta Abdelmalek Sayad (1998):

[...] o espaço de deslocamento não é apenas um espaço físico, ele é também um espaço qualificado em muitos sentidos, socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente (sobretudo através das duas realizações culturais que são a língua e a religião) etc. Cada uma dessas especificações e cada uma das variações dessas mesmas especificações podem ser objeto de uma ciência particular. (SAYAD,1998: 15). Os traços culturais característicos dos portugueses adentraram paulatinamente no território brasileiro em cinco séculos de ocupação e imigração, e marcaram o cotidiano de nossas famílias durante a maior parte do século XX. É impossível pensar o Brasil do século passado sem lembrar-se dos folguedos, da Festa Junina, das cantigas infantis da Península Ibérica, do botequim “pé-sujo” do “Seu Manel”, da padaria do “Seu Zé”, ou do bacalhau e do vinho servidos na ceia natalina (além de nozes, castanhas, rabanadas, etc.).

Como acontece em qualquer processo imigratório, o ato de deslocamento acarreta ao indivíduo sonhar um futuro em que vislumbre possibilidades de melhoria econômica e bem estar social. Mas há aqueles que alimentam já no embarque o desejo

12 do retorno à pátria e o reconhecimento de seus pares pelo sucesso do seu empreendimento, que deve ser recompensado pela riqueza, pelo prestígio e pelo poder.

Durante o percurso de estabelecimento em uma nova região, de um lado, o imigrante passa a visualizar os poucos objetos pessoais trazidos na viagem como signos de identidade cultural. Estes oferecem conforto e segurança, ou seja, os objetos imprimem no imigrante a certeza de pertencer a um coletivo organizado sob normas comuns e a de compartilhar suas crenças e elementos culturais, de outro lado, assimila diversas influências da nova sociedade na qual se insere.

Muitos remontam no novo lar marcas trazidas da casa de origem: retratos de família, imagens religiosas, tapetes, objetos de decoração, tudo aquilo que possa fazer lembrar o lugar de origem. Quase todos têm o sonho de retorno, de preferência vitoriosos, mas muitos não conseguem realizá-lo. Entre os vitoriosos estão aqueles que voltam à terra natal, mas apenas para exibir os traços do êxito alcançado. (OLIVEIRA, 2001: 12). A figura do imigrante universal está vinculada a aspectos geopolíticos e definida pela força de trabalho que o indivíduo pode oferecer. O imigrante português fadista, artista e representante além-mar da cultura lusitana, geralmente exerce outra atividade profissional para a manutenção de sua família, cumprindo uma dupla função social dentro de sua comunidade. São pescadores, operários, comerciantes e empresários que dão continuidade ao princípio de retidão moral e social do povo português, ao tempo que cultuam os símbolos pátrios através da música popular do fado, cujas letras fazem evocar aos seus ouvintes a recordação da pátria distante.

Encontramos em Sayad (1998) uma definição para a relação imigrante-trabalho:

Qual será então essa definição? Afinal, o que é um imigrante? Um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio, um trabalhador imigrante (sendo que trabalhador e imigrante são, neste caso, quase um pleonasmo), mesmo se nasce para a vida (e para a imigração) na imigração, mesmo se é chamado a trabalhar (como imigrante) durante toda a sua vida no país, mesmo se está destinado a morrer (na imigração), como imigrante, continua sendo um trabalhador definido e tratado como provisório, ou seja, revogável a qualquer momento. A estadia autorizada ao

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imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única razão de ser que lhe é reconhecida: ser como imigrante, primeiro, mas também como homem – sua qualidade de homem estando subordinada a sua condição de imigrante. Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o fez existir; é ele, quando termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação ou que o empurra para o não-ser. (SAYAD, 1998: 54-55). A fim de traçar um panorama histórico acerca da imigração portuguesa no

Brasil, tomamos como fonte relevante o estudo de Eulália Maria Lahmeyer Lobo, denominado Imigração Portuguesa no Brasil, editado em 2001, que analisa o fluxo migratório português para o Brasil entre o final do século XIX e a década de 1940.

Outro livro de referência foi editado pelo IBGE e se denomina Brasil: 500 anos de povoamento (2000), lançado em comemoração aos 500 anos de descobrimento do

Brasil. Esse livro contém um artigo de Renato Pinto Venâncio, intitulado “Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes”, e propõe uma compreensão do processo imigratório português para o Brasil a partir da divisão de quatro períodos históricos.

Tais períodos correspondem à imigração restrita (1500-1700), à imigração de transição

(1701-1850), à imigração de massa (1851-1960) e à imigração de declínio (1961-

1991).4

A presença portuguesa no Brasil começa em 1500, acentuando-se de maneira gradativa no momento em que surgem notícias referentes às jazidas de ouro descobertas pelos espanhóis nas colônias americanas. A maior parte dos portugueses que se transferiram para o Brasil no período inicial era composta de degredados, cristãos-novos, ciganos e homens ricos. Esses portugueses ocuparam o litoral brasileiro, dedicando-se ao cultivo de produtos primários e às atividades de exploração. Posteriormente, promoveram a escavação de minas na região de Minas

4 A história da imigração portuguesa no Brasil pode ser conhecida através de estudos, livros, biografias, teses de doutorado e estatísticas oficiais. Embora alguns historiadores brasileiros utilizem como referência principal as fontes oficiais do IBGE, diferem em suas análises no que diz respeito às datas de início, ápice e declínio das fases do fluxo migratório português para o Brasil.

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Gerais para extração de ouro e pedras preciosas. De acordo com fontes do IBGE, estima-se que cerca de 100.000 portugueses imigraram para o Brasil entre os anos de

1500 e 1700, fase que pode ser classificada como período de “imigração restrita”.5

Entre 1701 e 1850, período denominado de “transição”, registra-se um acréscimo de 600.000 imigrantes portugueses que ingressaram oficialmente no Brasil através dos principais portos brasileiros. Em 1808, com a chegada da Família Real

Portuguesa, houve uma mudança no panorama social da cidade do Rio de Janeiro, pois membros da nobreza e profissionais liberais acompanharam a corte, assim como portugueses oriundos de classes menos privilegiadas. Naquele ano, o Brasil contava com dois terços de sua população constituída de negros, mestiços e mulatos, mas com o fim do tráfico de escravos, em 1850, o fluxo migratório português para o Brasil passou a registrar um acréscimo numérico progressivo.

A partir da segunda metade do século XIX, vislumbra-se uma alteração no perfil social do imigrante, que é composto de um grande número de trabalhadores de origem pobre, de mulheres e de crianças menores de 14 anos, muitas delas órfãs ou abandonadas por seus pais. Essas crianças chegaram a representar 20% do total de emigrados (VENÂNCIO, 2000). Esse contexto histórico foi classificado como

“imigração de massa” (1851-1960), assim denominado por apresentar um aumento expressivo da população de imigrantes portugueses nas principais cidades brasileiras.

A introdução do sistema de exploração capitalista nas áreas rurais portuguesas, principalmente nas regiões do Alentejo e do Ribatejo, a partir de 1850, contribuiu bastante para o aumento do fluxo migratório português para as colônias. Foram constituídas grandes companhias para a exploração agrícola - que substituíram a mão-

5 Consideram-se esses números como estimativa por não existirem ferramentas precisas para a coleta de dados relativos ao respectivo período. Fonte disponível em: . Acesso em: 22 out. 2009.

15 de-obra coletiva do campesino pelo trabalho mecanizado na lavoura -, fato que trouxe como consequência um número considerável de trabalhadores desempregados. A abolição dos vínculos feudais sobre as possessões rurais, ocorrida em 1863, e a restrição à livre utilização dos pastos comuns e baldios (embasada em um artigo do código civil de 1867) favoreceram também o avanço da exploração capitalista no campo e o êxodo de seus habitantes. (LOBO, 2001).

O Brasil, nesse período, pertenceu ao imaginário popular da nação portuguesa, pois se apresentara como uma terra farta e com diversas oportunidades de enriquecimento, que poderiam ser alcançadas também através do trabalho. Entretanto, outros fatores favoreceram à imigração portuguesa no período chamado de “imigração de massa”, tais como a crise ocorrida nas vinícolas do norte de Portugal (1886-1888), a abolição dos escravos em 1888 e a política da república brasileira de substituição de mão-de-obra escrava. Além disso, o serviço militar obrigatório, em Portugal, serviu também de estímulo à imigração, uma vez que os jovens burlaram a exigência da convocação, imigrando para o Brasil.

A última década do século XIX foi marcada pelo início do processo de industrialização no Brasil, fomentado pela instalação de fábricas nas principais capitais que produziam manufaturas variadas, sobretudo, de tecidos. O setor foi beneficiado pelo protecionismo alfandegário, que proporcionou a substituição dos armarinhos ingleses por estabelecimentos portugueses. Consequentemente, houve um desenvolvimento do proletariado, que passou a reivindicar melhores condições sociais.

(LOBO, 2001).

A história registra que houve uma participação intensa de portugueses na organização da indústria, do comércio e do sistema financeiro e imobiliário no Brasil

16 entre o final do século XIX e a década de 1930. Em 1905 já contávamos com 110 fábricas de tecidos no país, sendo 21 localizadas no Rio de Janeiro - entre elas a

Fábrica Aliança, estabelecida no bairro de Laranjeiras e a Companhia de Fiação e

Tecidos Confiança Industrial, localizada entre os bairros Andaraí e Vila Isabel. Essas fábricas absorviam a mão-de-obra de uma parte considerável da colônia portuguesa como força de trabalho propulsora do setor secundário da economia brasileira.

No quadro econômico brasileiro, o imigrante português se fez representar também em outros setores. No Rio de Janeiro, entre 1949 e 1958, grande parte dos produtos hortifrutigranjeiros era fornecida por chácaras administradas por portugueses, que se encarregavam da produção, do transporte e da comercialização dos produtos em barracas de feira livre, exercendo, assim, a hegemonia nesse setor. Além do emprego de mão-de-obra nos setores primários e secundários da economia, a força de trabalho do imigrante português foi empregada no setor de serviços, cujos trabalhadores ocupavam cargos de carpinteiro, ferreiro, puxador de carrinho de alimentos, condutor de bonde, motorneiro, fiscal, caixeiro-viajante, etc. (LOBO, 2001).

A “imigração de declínio” abarca três décadas da segunda metade do século

XX, fixada entre os anos de 1961 e 1991, ainda que as evidências da redução do fluxo imigratório já pudessem ser percebidas desde a década de 1930. Segundo dados do

IBGE, entre 1929 e 1931 houve uma redução desse fluxo (de 38.779 para 8.152 imigrantes) em consequência da crise financeira de 1929, e em 1943, durante a

Segunda Guerra Mundial, o Brasil registrou a entrada de apenas 146 portugueses. Em síntese, o enfraquecimento do fluxo imigratório foi ocasionado ainda por outros fatores, como por exemplo: a suspensão das viagens atlânticas em função da segunda grande guerra; o desenvolvimento da indústria em Portugal, que gerou novos postos de

17 trabalho; a ampliação do mercado de trabalho na Europa e o protecionismo fomentado pelo governo brasileiro no mercado de trabalho entre 1929 e 1931.

Ressalta-se que durante esse período de declínio houve um aumento do fluxo de entrada de imigrantes portugueses no início da década de 1970, influenciados pelos ares da modernidade no país e pelas promessas de prosperidade decorrente do

“milagre econômico brasileiro”. Esses fatos alteraram a estatística de imigrantes portugueses de 247 mil para 410 mil habitantes entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970. Os anos posteriores projetaram o fluxo migratório português para países europeus como a França e a Bélgica. Entre 1981 e 1991, fatores como o processo de integração de Portugal na Comunidade Européia, aliados ao estado de envelhecimento da população portuguesa, reduziram consideravelmente a entrada de imigrantes portugueses no Brasil. Dava-se assim o fim do período imigratório português e o início de uma emigração de retorno. (VENÂNCIO, 2000).

Em Documentos para a história da imigração portuguesa no Brasil, 1850-

1890 (1992), a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva contribui com o estudo da imigração portuguesa no Brasil. Nesse livro, ao comentar sobre a possibilidade de opção de naturalização brasileira do imigrante português, a autora faz referência a três aspectos da política de emigração do Governo Português. Para Portugal, era oportuno que o emigrante português consumisse no Brasil produtos de origem portuguesa

(azeite, vinho, etc), fomentando o vínculo comercial e as exportações de gêneros alimentícios e produtos manufaturados para o Brasil. Outro aspecto diz respeito ao retorno do emigrante à sua terra natal, gerando filhos e dando continuidade à integração da nação portuguesa, e, talvez o mais importante para os portugueses naquele momento, seria que o emigrante enviasse periodicamente remessas de dinheiro aos seus parentes em Portugal. Por vezes, o imigrante não tinha uma

18 alternativa melhor, a não ser optar pela naturalização brasileira, pois sua permanência no mercado de trabalho estaria condicionada à apresentação de documentos que atestassem a nacionalidade brasileira e a devida autorização de trabalho em território nacional. Em alguns casos a adesão à nacionalidade acontecia de forma espontânea e por motivos diversos (por exemplo, a constituição familiar), indicando que “a opção pela naturalização, quando não encarada como uma simples decisão oportunista, significa o profundo enraizamento e integração do imigrante na sociedade brasileira e, portanto, o fim do retorno à pátria.” (SILVA, 1992: 69).

A migração de portugueses para o Brasil é fomentada por uma política imigratória, que se estendeu entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, e que atendeu aos interesses econômicos de cada país em momentos históricos distintos. A política portuguesa de imigração do início do século

XIX tinha como objetivo a ocupação dos espaços demográficos desabitados e a expansão do processo de colonização. A partir de 1808, por força de uma lei imperial, os estrangeiros já podiam adquirir propriedades rurais no Brasil e promover o estabelecimento de colônias agrícolas com a subvenção da Coroa Portuguesa.

(OLIVEIRA, 2002).

Nas duas décadas seguintes à Independência do Brasil (1822), o fluxo imigratório português se acentuou, mas a partir de 1850 o fim do tráfico negreiro impôs uma nova conjuntura para a organização do trabalho, procurando substituir a força de trabalho escravo pela mão-de-obra imigrante e alterando a política de subvenção:

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Com o fim do tráfico de escravos, em 1850, altera-se também a legislação referente à propriedade da terra. A política de colonização do Império, que cedia terras de graça a estrangeiros, é então alterada e nova lei passa a proibir a posse de terra que não fosse comprada. E é o fim do tráfico negreiro que começa a colocar na ordem do dia a necessidade de substituição da mão-de-obra por imigrantes. (OLIVEIRA, 2002:14). A partir da década de 1880, o ingresso de imigrantes no país foi promovido por duas instituições, a Sociedade Central de Imigração (1883-1891), no Rio de Janeiro, e a Sociedade Promotora de Imigração (1886-1895), em São Paulo, que era uma entidade fundada por eminentes fazendeiros paulistas produtores de café. Essas sociedades atuavam com propósitos diferentes, pois, para o Rio de Janeiro, era elaborada uma campanha que pretendia a ocupação de pequenas propriedades de monocultura, enquanto que, em São Paulo, o objetivo era a substituição da mão-de- obra escrava pelo trabalho assalariado do imigrante europeu, voltado para a manutenção da produção cafeeira. A imigração foi um fator crucial para a economia paulista do período, e em 1871 o estado já contava com outra entidade promotora de imigração, a Associação Auxiliadora da Colonização e Imigração para a Província de

São Paulo. Portanto, as sociedades atuaram com agentes que difundiram o Brasil na

Europa como um país que apresentava a possibilidade de enriquecimento através do trabalho, e atraíram imigrantes que cruzavam o Oceano Atlântico para aqui constatar a improcedência de tal propaganda.

Promulgada sob o ardor federativo da recém-proclamada República, a constituição de 1891 assegurava a nacionalização do estrangeiro residente no Brasil que não se declarasse contrário a tal ato em um prazo de seis meses a contar do início de vigência da lei. O início do século XX registrou o aparecimento de movimentos nacionalistas que eram contrários ao ingresso de imigrantes no Brasil, e que justificavam essa atitude em defesa do trabalhador brasileiro. As reservas impostas à

20 entrada de imigrantes no país passaram a integrar o texto da Constituição Federal de

1934 e 1937:

Restrições à entrada de imigrantes aparecem nas Constituições de 1934 e de 1937. Passa-se à defesa do trabalhador nacional com a reserva de 2/3 dos empregos para os brasileiros. Os debates na Assembléia Nacional Constituinte em 1933 dão sinais dos novos tempos em que se discutem os limites à imigração no Brasil. A Constituição de 1934 estabelece um sistema de cotas de 2% sobre o total dos respectivos estrangeiros fixados no Brasil durante os últimos 50 anos, além de proibir sua concentração. (OLIVEIRA, 2002: 19-20). Do outro lado do Oceano Atlântico, o estado português regulamentou as bases para o fluxo imigratório, elaborou estatísticas e inseriu na Constituição de 1838 alguns princípios da liberdade migratória. Depois de optar pela emigração para o Brasil, o cidadão português se deparou com muitos obstáculos para efetivar a sua transferência, pois a emissão do passaporte dependia de autorizações da família e de órgãos governamentais. Apesar do entrave burocrático exigido para a legalização da viagem, o governo português também adotou medidas de proteção ao emigrante, como a vinculação do contrato de trabalho para a expedição do respectivo passaporte:

Foram muito discutidos nos anos [18]50 os casos de pessoas que aceitaram passagem para o Brasil endividando-se perante os comandantes das embarcações, que no Rio de Janeiro negociavam os contratos dos passageiros com novos patrões. Os abusos nascidos dessas situações levaram a que os candidatos à obtenção do passaporte devessem apresentar um contrato de trabalho válido ou provar que tinham pago a viagem. (LEITE, 2000: 179). A certificação do cumprimento do serviço militar foi uma constante preocupação do governo português, e era exigida para a legalização da viagem do emigrante. Para os menores de idade, entre 14 e 21 anos, era imposto o depósito de uma fiança de valor elevado, que poderia superar inclusive o valor da passagem para o

Brasil, ou a nomeação de um fiador. Essa exigência incentivou o fluxo migratório clandestino e a remessa, para o Brasil, de jovens portugueses de idade inferior a 14 anos de idade. Essa política de emigração, salvo algumas modificações, foi sustentada

21 pelo governo português entre as décadas de 1850 e 1920. Apesar das restrições administrativas, o fluxo migratório acentuou-se no eixo 1855-1914, impulsionado pela informação e por meios de transporte de massa modernos, como por exemplo o navio a vapor.

Os portugueses que se estabeleceram no Brasil, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro durante o período de imigração de massa (1851-1960), contribuíram para o ingresso do Brasil na modernidade e para a formação do homem nacional, preservando ao mesmo tempo elementos culturais identitários do povo lusitano, cujas características podem ser percebidas na expressão da música do fado português, tema que deverá ser analisado no capítulo dois.

Neste capítulo, levamos em conta a história da imigração portuguesa através da recuperação de dados, de documentação e de registros históricos. Consideramos, portanto, os dados colhidos nos livros e em estudos sobre a imigração dos portugueses no Brasil como ponto de partida para a construção da tese. Mas, de acordo com as reflexões dispostas no capítulo três, o que procuramos foi privilegiar a memória individual e coletiva dos portugueses que chegaram ao Rio de Janeiro no período entre

1950-1970, em virtude da associação da pesquisa de campo realizada com fadistas e pessoas envolvidas com o mundo do fado à memória individual e coletiva dos portugueses. De acordo com o sociólogo Maurice Halbwachs, a história é capaz de ver um grupo “de fora” e analisa longos períodos, enquanto que a memória coletiva se comporta de outro modo:

A memória coletiva, ao contrário, é o grupo visto de dentro e durante um período que não ultrapassa a duração média da vida humana, que lhe é, freqüentemente, bem inferior. Ela apresenta ao grupo um quadro de si mesmo, que, sem dúvida, se desenrola no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas. A memória coletiva é um quadro de analogias, e é natural que ela se convença que o grupo permanece, e permaneceu o mesmo

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porque ela fixa sua atenção sobre o grupo, e o que mudou, foram as relações ou contatos do grupo com os outros. Uma vez que o grupo é sempre o mesmo, é preciso que as mudanças sejam aparentes: as mudanças, isto é, os acontecimentos que se produziram dentro do grupo, se resolvem elas mesmas em similitudes, já que parecem ter como papel desenvolver sob diversos aspectos um conteúdo idêntico, quer dizer, os diversos traços fundamentais do próprio grupo. (HALBWACHS, 1990: 88). Entendemos que a atuação do grupo imigrante na cidade do Rio de Janeiro tem um valor incomensurável para o universo musical luso-brasileiro e, por isso, vamos focalizar relatos e testemunhos de imigrantes portugueses a fim de investigar “de dentro” de que maneira o fado conquistou o seu espaço nesta cidade. Por ora, continuamos a revisão de dados e de fontes documentais a fim de dar início ao processo de construção da história do fado na cidade do Rio de Janeiro no período antes assinalado.

1.2 A imigração portuguesa no Rio de Janeiro: ocupação e expansão do território

A presença dos portugueses no Rio de Janeiro pode ser observada sob óticas distintas, considerando o período de conquista, a fundação da cidade (1565) e a expansão territorial urbana, a chegada da Família Real (1808), a Independência

(1822), a República (1889) e imigração em massa (Séc. XIX-XX).

De acordo com os dados do IBGE, a população da cidade do Rio de Janeiro passou de 274.972 habitantes para 522.651 entre os anos de 1872 e 1890 e, nesse

último ano, os portugueses e seus descendentes representavam a parcela de 267.664 habitantes. Em 1920, a população da cidade contava com 1.157.973 habitantes, sendo

172.338 portugueses, ou seja, 14% da população local. Segundo estudo elaborado por

Nuno Simões, verifica-se a predominância da concentração portuguesa nos estados do

Rio de Janeiro, seguido de São Paulo, com 303.865 e 281.418 imigrantes lusitanos respectivamente, conforme o quadro 1:

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Quadro 1: Distribuição da população portuguesa no Brasil por estados (1929)

Localidade Total

Distrito Federal [RJ] 272338 Rio de Janeiro 31527 São Paulo 281418 Mato Grosso 1572 Goiás 334 Minas Gerais 20050 Santa Catarina 556 Paraná 1998 Espírito Santo 1900

Bahia 3697 Sergipe 137 Alagoas 260 Pernambuco 5289 Paraíba 144 Rio Grande do Norte 89 Ceará 325 Piauí 72 Maranhão 687 Pará 15631 Amazonas 8376

Fonte: SIMÕES, Nuno. O Brasil e a Emigração portuguesa. Notas para um estudo. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1934, p. 34.

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O fluxo demográfico da cidade do Rio de Janeiro ampliou-se em dois períodos importantes na História do Brasil: o primeiro, com a chegada da Família Real em

1808, ocasionando um aumento demográfico repentino; o segundo, marcado pelas reformas promovidas pelo prefeito Pereira Passos, as quais provocaram o deslocamento da população até então estabelecida no núcleo da cidade para outras

áreas, estas mais afastadas do centro (ROEDEL, 2002).

A transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, realizada em 1808, trouxe mais de dez mil portugueses para , obrigando ao remanejamento de muitas famílias residentes na região central, e a construção de residências novas. No decorrer dos 13 anos de estadia da Família Real no Brasil, houve um aumento de práticas e manifestações musicais na cidade do Rio de Janeiro. A música cultivada pela corte reproduziu os cânones da aristocracia européia, paralelamente, negros e pardos ocuparam postos como músicos nas manifestações religiosas e populares, o que garantiu a contribuição deles nos primórdios da história da música brasileira.

As medidas adotadas por D. João VI procederam à abertura dos portos, à manufatura de metais e tecelagem, o livre comércio, a criação da Imprensa Régia e a

Real Junta de Comércio, à fundação do Banco do Brasil e, entre outros avanços, a instituição de uma estrutura cosmopolita na cidade do Rio de Janeiro, dando maior

ênfase às práticas sócio-culturais. Nesse contexto, a história da cidade registra o estabelecimento de uma classe social abastada, formada principalmente por portugueses que acompanhavam os membros da Corte e por “espanhóis, franceses, ingleses, que viriam a formar uma classe média de profissionais e artesãos qualificados.” (FAUSTO, 2001: 69).

Após a independência do Brasil, o Rio de Janeiro continuou acolhendo os imigrantes portugueses que se decidiram transferir para o país, “estimulados pelo

25 contraste entre a crise econômico-política metropolitana e o dinamismo do Brasil com a expansão cafeeira.” (LESSA, 2002: 27). O panorama musical brasileiro avançou com a organização de sociedades musicais beneficentes e a fundação do Conservatório

Nacional de Música em meados do século XIX.

Desse modo, é a partir da segunda metade do século XIX que se inicia o processo de expansão física do espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro, o que veio determinar a configuração da densidade demográfica de seus bairros com a fixação da população (negros, pardos, imigrantes), de serviços, de espaços de lazer, de indústrias e do comércio. O movimento comercial da zona portuária contribuiu também para a concentração de parte da colônia portuguesa, dando origem ao grêmio esportivo lusitano mais tradicional da cidade, o Clube de Regatas Vasco da Gama:

A grande concentração de portugueses existentes no bairro da Gamboa, Saúde e Santo Cristo deu origem, no final do século XIX, ao Clube Dramático Filhos de Telma, na Rua do Propósito. A partir deste, originou- se o Clube de Regatas Vasco da Gama, na Rua da Saúde, no. 283 (ROEDEL, 2002: 127).

Em função das reformas do prefeito Pereira Passos houve deslocamento de membros da colônia portuguesa para diversas regiões da cidade. Nesses locais, podem ser encontrados símbolos, marcas da ocupação e da vivência de imigrantes portugueses como, por exemplo, o Clube de Regatas Guanabara, sediado no bairro de

Botafogo em 1899, resultado de uma dissidência do Clube de Regatas Vasco da Gama.

No atual bairro da Tijuca, a presença lusitana se evidencia através de espaços culturais e religiosos. A Ilha do Governador é também outro pólo de permanência de portugueses, como pode assinalar a Associação Atlética Portuguesa no bairro da

Portuguesa. O bairro de São Cristovão se configura como português por excelência, porque abrigou a residência oficial da Família Real e a sede do Clube de Regatas

Vasco da Gama. Encontramos ainda o registro da presença portuguesa em outros

26 bairros como Centro, Lapa, Santa Tereza, Bairro de Fátima, percebida notadamente por sua arquitetura.

No estudo de Roedel verificamos que, a princípio, não houve interesse imediato pela comunidade portuguesa na ocupação de terrenos – resultado do loteamento de chácaras e fazendas - nos subúrbios da Estrada de Ferro Central do

Brasil, Leopoldina e Zona Oeste “ressalva feita ao Méier, à Penha, e à Regional X”

(ROEDEL, 2002: 132). A Décima Região Administrativa compreende os bairros de

Olaria, Ramos, Bonsucesso, e Manguinhos, que podem ser ligados a São Cristovão pelo bairro de Benfica, sede da CADEG, centro comercial de gêneros alimentícios, de predominância empresarial portuguesa, espaço a que voltaremos a partir da incursão de elementos recolhidos em trabalho de campo, conforme analisado no capítulo terceiro desta tese.

Em relação à ocupação de terrenos no bairro da Penha, o autor justifica esse fluxo em virtude de aspectos religiosos, assim, a Igreja da Penha veio a ser um “fator de aglutinação dado o forte simbolismo exercido sobre a comunidade local”

(ROEDEL, 2002: 132). Os portugueses, em romaria, se dirigiram para o bairro a fim de se confraternizarem em uma festa organizada em devoção à santa, popularmente denominada de “Festa da Penha”.

Sabemos que desde o século XIX, a emigração de milhares de portugueses ao

Brasil concentrou, nas principais capitais brasileiras, numerosos trabalhadores que, com suas famílias, constituíram imensas colônias lusitanas. Ao se incorporar ao modo de vida de nosso país, o português transmitiu e atualizou hábitos e costumes de seu povo, influenciando a cultura brasileira com estes elementos novos, inclusive as nossas festas.

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Entre o século XIX e o século XX, a Festa da Penha foi considerada a festividade religiosa e popular mais tradicional da cidade do Rio de Janeiro.

Conquistando a atenção de romeiros desde o século XVIII, a ermida edificada no alto de um penhasco do bairro da Penha, subúrbio da Leopoldina, contou com a presença majoritária do emigrante português e de seus descendentes até o final do século XIX, quando a festa passou a representar um espaço para a divulgação do samba e das músicas de carnaval da época. Ao final do século XIX, a festividade já preenchia todos os domingos do mês de outubro, contando com a presença de mais de cem mil romeiros.

Ana Lucia Carvalho (2005)6 apurou em suas fontes a data de início da festividade, que indica o ano de 1728 e o predomínio da presença portuguesa na festa da Penha. A partir de 1890, a festa passou a ser frequentada também pela população negra e mestiça, mas a partir de 1930 a comunidade portuguesa voltou a assumir a primazia entre os romeiros celebrantes.

A confraternização popular da festa religiosa acontecia no sopé do morro onde se encontra erigida a igreja, na atual zona da Leopoldina, e seus devotos chegavam ao local a pé, em cavalos, burros, carroças e carros de boi, em embarcações que navegavam até a praia de Maria Angu e, no século XX, de trem, bonde, automóvel e

ônibus. Segundo Melo Moraes Filho (1979), até a segunda metade do século XIX o português se apresentou como elemento predominante nas festividades de Nossa

Senhora da Penha, seguindo uma prática cultural oriunda da antiga metrópole. Nesse contexto, eram compartilhadas a culinária, a música, a dança, além de outros aspectos característicos da cultura lusitana que amenizavam a saudade de sua terra natal:

6 Essas informações relativas às festividades na Penha podem ser encontradas na dissertação de mestrado de Ana Lucia Carvalho (2005) denominada Cultura e história na Festa da Penha.

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Encostados às vendas e às barracas, foliões que apeavam das andorinhas e muitos dos que lá se achavam, preludiavam as suas toadas, suas danças nacionais, pulando logo após no caminho. E a cana-verde, a chama-rita, o fadinho, o vai-de-roda ferviam sapateados, não sendo dispensados os desafios graciosos e brejeiros. O mulherio saracoteava, batia palmas a compasso, pinoteava com seus pares, alguns dos quais, um tanto chumbados, esfregavam as primas da viola, davam breu nas cordas da rabeca, palheteavam os cavaquinhos, recomeçando trovas e dançados, emendando a roda: Chama-rita de meu peito, Quem quer bem tem outro jeito... (MORAIS FILHO, 1979).

No artigo “Festa da Penha: Resistência e Interpenetração Cultural (1890-

1920)”, a pesquisadora Rachel Soihet (2002) comenta a estrutura da festividade religiosa cujo ápice apresentava as missas solenes que eram acompanhadas pelos devotos, que compareciam adornados com flores de papel e chapéus. Após a cerimônia religiosa, os romeiros se integravam à parte popular do evento, jogando, cantando, tocando instrumentos musicais e consumindo comidas típicas, vinho e cerveja.

Podemos observar na crônica de Raul Pompéia (escrita em 1888) a presença da colônia portuguesa na Festa da Penha, cuja descrição de aspectos da romaria e da cerimônia do Te-Deum procedem à pausa para o almoço, em que cerca de vinte mil pessoas “organizam-se em banquete” para posteriormente seguirem a festividade:

“Depois da refeição, vêm as danças e os cantos. Um delírio de samba e fados, modinhas portuguesas, tiranas do norte.” (BANDEIRA, 1965).

Além das referências bibliográficas existentes sobre a Festa da Penha, há o registro da presença da cultura portuguesa no curta-metragem As Festas da Penha, produzido por Paschoal Segreto em outubro de 1900 e catalogado pela cinemateca brasileira (ANCINE), onde se vê (ainda que não possamos ouvir, pois se trata de um documentário desprovido de áudio) “obrigatoriamente portugueses tocando guitarras”

(TINHORÃO, 1972: 273).

29

A presença portuguesa no bairro da Penha pode ser observada ainda hoje na arquitetura local de algumas residências, através de fachadas que apresentam brasões do império português ou de azulejos que imprimem a estampa de seus santos devotos, como Nossa Senhora da Penha, Nossa Senhora de Fátima e o Sagrado Coração de

Jesus. Grande parte das residências do bairro surgiu no entorno do Curtume Carioca, empresa de capital português instalada no bairro na década de 1920, que chegou a ser a maior indústria de curtição de couro das Américas no decorrer da década de 1950.

As ruas adjacentes ao complexo industrial foram projetadas com residências destinadas aos operários, fato que reuniu uma grande parcela de imigrantes portugueses que ocupara um posto na fábrica. O Curtume Carioca encerrou as suas atividades na década de 1990.

Outro espaço importante para a colônia portuguesa é o Mercado São Sebastião, que funciona nas proximidades da Avenida Brasil desde 1960, abrigando a Bolsa de

Gêneros Alimentícios da cidade. O mercado é constituído majoritariamente de comerciantes portugueses, e empregou uma grande massa de imigrantes portugueses que trabalhavam em serviços auxiliares do comércio, como motoristas, estoquistas, ajudantes, carroceiros, empilhadores, etc.

Ao lado do bairro da Penha, o bairro da Penha Circular é outro local importante para a história dos imigrantes lusitanos na cidade. Ali se encontra a sede da Casa do

Viseu, e suas ruas registram a passagem de moradores ilustres como a fadista Maria

Alcina, entre outros. As ruas do bairro são designadas com os nomes de artistas, regiões e cidades portuguesas, como Av. Camões, Rua Cintra, Av. Lisboa, Rua Braga,

Rua Coimbra, Rua Ourique, Rua Cascais, Rua Castelo Branco, Rua Setubal, Rua

Santarém, Rua Timboim, Praça Almeida Garrett. A Penha Circular, assim como o

30 bairro da Penha, abriga na atualidade um grande contingente de famílias de imigrantes portugueses e seus descendentes.

1.3 Os imigrantes portugueses, entre empresários e operários: a indústria têxtil

no Rio de Janeiro

O estudo sobre a imigração portuguesa no Rio de Janeiro acompanha o período de industrialização da cidade, e deve contemplar a história dos operários que atuaram nas fábricas de manufaturas diversas, assim como a de seus dirigentes. O desenvolvimento do parque industrial brasileiro se inicia no século XIX e seu estudo compreende a organização de vários setores de manufaturados, como a indústria têxtil e as indústrias de chapéu, calçado, fósforo, cerveja, garrafa de vidro, vestuário, moagem de trigo, vela e sabão, entre outros. De acordo com Wilson Suzigan (2000), esse desenvolvimento ocorreu como parte de um processo de acumulação do capital resultante da expansão da economia de exportação. O crescimento da indústria de transformação7 no período envolve muitos aspectos, como a demanda por produtos manufaturados (por exemplo, a produção de tecidos grosseiros para serem utilizados como vestimenta dos trabalhadores ou mesmo como sacos de juta para a agricultura, ou a produção de maquinarias para a indústria); o emprego de matéria-prima nacional ou importada nas manufaturas, e a força motriz utilizada na indústria, que se abastecia em maior parte de energia a vapor, ainda que também utilizasse a energia hidráulica.

(SUZIGAN, 2000).

Em muitos casos, especialmente nas indústrias têxteis, esses trabalhadores ‘livres’ consistiam, na maioria, de mulheres e crianças: as crianças viviam normalmente nas fábricas e eram aí alimentadas, educadas e treinadas. O salário monetário desses trabalhadores era certamente muito baixo. No entanto, a indústria de transformação contribuiu em certa medida para uma transição antecipada para o trabalho livre. Mais tarde, no fim do século

7 O termo “indústria de transformação” designa o tipo de indústria que transforma a matéria-prima em produto comercial para ser consumido.

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XIX e início do século XX, a indústria de transformação beneficiou-se da imigração promovida pelos cafeicultores e pelo governo. De fato, diversas indústrias tiveram grande participação de operários e técnicos imigrantes, como as indústrias têxtil, de chapéus, calçados, cerveja, fósforos e moagem de trigo. (SUZIGAN, 2000:126).

Dentre todas as indústrias, a têxtil representou até o ano de 1939 o setor mais importante da economia industrial de transformação de manufaturados no Brasil, e, de acordo com os dados recolhidos por Suzigan (2000), durante o ano de 1907 essa indústria “empregou 34,2% dos trabalhadores na indústria de transformação, tinha

40,2% do total da força motriz instalada e 40,4% do total do capital investido”.

(SUZIGAN, 2000: 129). No Rio de Janeiro, a indústria de tecidos se apresentou de forma majoritária na economia da virada do século XIX e XX, empregando em sua força de trabalho homens livres, mulheres e crianças, sendo parte desses trabalhadores associados à comunidade imigrante de portugueses. As primeiras fábricas têxteis de algodão foram instaladas na cidade na década de 1840, sendo a primeira fábrica denominada “Andaraí Pequeno”, no bairro do Andaraí:

A primeira [fábrica], em 1841, foi a “Andaraí Pequeno”, que operava novecentos fusos e produzia fios de algodão para pavios de vela e tecido grosseiro de algodão. Foi desmontada em 1865, e suas máquinas deram origem na cidade de Parati à fábrica “Santa Teresa”, que operava ainda em 1882. Em 1852, a “Hartley”, com 76 teares e uma máquina a vapor de 30 H.P.; a fábrica “Santo Aleixo” em 1849, com 50 teares, 2.012 fusos e 50 H.P. de energia elétrica. (SUZIGAN, 2000:141).

Entretanto, o pleno desenvolvimento da indústria têxtil fluminense aconteceu na década de 1870, com destaque para as fábricas “Brasil Industrial”, “Pau Grande”, no município de Magé, a “São Pedro de Alcântara” e a “Petropolitana” na região de

Petrópolis, quatro das maiores fábricas de tecido de algodão estabelecidas no período.

Essas empresas contavam em seu quadro societário com comerciantes e importadores de nacionalidade portuguesa.

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Foi a partir de 1870 que a indústria têxtil de algodão desenvolveu-se na cidade e província do Rio de Janeiro. Por volta de 1884, dez fábricas haviam sido instaladas. A maior era a “Fábrica Brasil Industrial”, instalada em 1872 em Macacos; a “Fábrica São Pedro de Alcântara” e a “Fábrica Petropolitana”, em Petrópolis. A “Fábrica Pau Grande” (que mais tarde seria expandida e transformada em sociedade anônima, a “Cia. América Fabril”) e a “Fábrica Aliança”. Com esses investimentos, a cidade e a província do Rio de Janeiro tornaram-se o principal centro da indústria têxtil de algodão do Brasil. (SUZIGAN, 2000: 142).

Em ensaio intitulado “A colônia portuguesa na composição empresarial da cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do XX”, Almir Pita Freitas

Filho (2002) ressalta que o desenvolvimento da indústria no Rio de Janeiro é realizado através da ação e do investimento de imigrantes portugueses destacados.

Uma pequena parte dos portugueses residentes na cidade integrou a cúpula diretiva das indústrias locais, como o empresário Souza Cruz, que era dirigente de uma fábrica de cigarros, e outros, como Sotto Maior e Domingos Bebiano. Como vimos anteriormente, as fábricas instaladas na cidade nesse período empregaram todo o tipo de trabalhadores livres disponíveis em suas linhas de produção (por vezes famílias inteiras), acarretando o surgimento de vilas operárias residenciais nos arredores das respectivas fábricas, construídas por iniciativa dos empresários fabris. As vilas operárias foram projetadas e beneficiadas com a pavimentação de ruas, a construção de galerias subterrâneas de esgoto e a organização de espaços de educação e lazer, etc.

A vila operária, com suas casas e sua rede de serviços (capela, escola, armazém, clube social, farmácia, cemitério, etc.), paradoxalmente, apresentava benefícios sociais para o operariado têxtil ao mesmo tempo em que era constituída de elementos legitimadores da dominação do patronato fabril. Contudo, os operários têxteis se apropriaram destes aparatos institucionais, atribuindo significado e valor às relações e ao modo de vida que foi construído cotidianamente no interior das capelas, nas salas de aula das escolas e nas diversas formas de lazer. (KELLER, 2006: 7).

As vilas operárias são uma forma de dominação capitalista, pois, idealizadas e construídas pelos industriais nas cercanias das fábricas, apresentam o propósito de envolver os operários em uma rede sócio-econômico-cultural dependente do patronato, gerando assim uma “hierarquia da fábrica”, que se “sobrepõe e organiza o mundo da

33 vila operária, dando o sentido de sistema ao conjunto das relações entre o mundo da fábrica (espaço de produção) e o mundo da vila operária (espaço de reprodução)”.

(KELLER, 2006: 2). Os empresários são os proprietários das residências de seus operários e da estrutura de serviços que se apresentam no entorno da vila, como a escola, a igreja, o mercado, o clube esportivo, a banda musical, o rancho carnavalesco, entre outros. A hierarquia patronal tenta estender o seu domínio para as práticas sócio-culturais, pois a manutenção do emprego e a residência do trabalhador e sua família na vila operária estariam condicionadas a uma postura adequada que se enquadrasse nas aspirações de conduta do patronato. Porém, segundo Keller (2006), os operários se apropriaram dos aparatos institucionais formulados pelo complexo fabril e souberam impor os seus valores sociais, resguardando a inviolabilidade do lar, construindo cotidianamente “relações de amizade e de ajuda mútua, que não se confundiam com o paternalismo fabril”. (KELLER, 2006: 11).

Essas relações consolidam a rede social luso-brasileira que implementam o mundo artístico associado ao fado. Esse tipo de organização social reproduz hábitos e costumes ligados à tradição portuguesa, vindo revitalizar também a música regional e o fado como uma das manifestações artísticas cultivadas pelos portugueses na cidade do Rio de Janeiro, conforme os relatos colhidos em campo e as entrevistas aos fadistas, analisados no capítulo três da tese. Assim, o fado é cultuado no período 1950-

1970 e pode ser considerado um elemento de resistência da cultura portuguesa nesta cidade. Segundo Halbwachs, a resistência não se caracteriza como uma ação individual: “um grupo, ao contrário, não se contenta em manifestar que sofre, em indignar-se e protestar na hora. Resiste com todas as forças de suas tradições, e essa resistência não permanece sem efeito. Procura e tenta, em parte, encontrar o seu equilíbrio antigo sob novas tradições” (HALBWACHS, 1990: 137).

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A indústria têxtil de algodão representou o setor de maior importância econômica do Rio de Janeiro, tanto como pólo produtor de tecidos quanto como centro de distribuição, atendendo a demanda de produtos têxteis em todo o país. Em 1878 foi fundada no bairro de São Cristovão a Cia. São Lázaro, que fabricava “roupas de meia e algodão” (FREITAS FILHO, 2002: 180), sob a responsabilidade do empresário português José Maria Teixeira de Azevedo.

A próxima indústria têxtil a surgir no Rio de Janeiro foi a “Cia. de Tecidos

Aliança”, fundada em 1880, e sua fábrica foi instalada no bairro de Laranjeiras, contando com os dirigentes portugueses José Augusto Laranja e Joaquim de Carvalho, além do sócio inglês Henrique Wittaker, que se retirou da sociedade dois anos após a fundação.8 A Fábrica Aliança participou das feiras de exposição industrial realizadas no Rio de Janeiro em duas edições, no ano de 1881 e 1895, e neste último ano, apresentou números que garantiam a sua relevância frente às outras empresas do setor no Rio de Janeiro:

Na exposição de 1895, [a Fábrica Aliança] já era apontada como a mais importante da cidade do Rio de Janeiro, um exemplo da capacidade industrial e empresarial do país. Sua produção anual já alcançava 8.220.000 metros de algodão; dispondo de 334 teares para fiação e 914 para tecidos; 7.886 fusos de fiar e 46.986 para tecer, e empregando 1.625 operários, dentre homens, mulheres e crianças de ambos os sexos; o capital era de 10 mil contos de réis. (FREITAS FILHO, 2002: 183).

Essa fábrica fomentou o florescimento do comércio local e a construção de residências novas. Em seu quadro de operários constavam trabalhadores brasileiros, portugueses e italianos, que compartilhavam sem conflitos os espaços de convívio social. Além disso, a fábrica ofereceu possibilidades de lazer e cultura aos seus

8 No final do século XIX, o bairro do Jardim Botânico era considerado um bairro operário, e recebeu em 1894 a instalação da “Fábrica de Fiação e Tecidos Corcovado”, tendo como administradores os portugueses Candido da Cunha Sotto Maior e o Visconde de Figueiredo. Em 1915, contava com 26.320 fusos, 1.224 teares e 1.200 operários (FREITAS FILHO, 2002: 187). Ao encerrar as suas atividades na metade da década de 1930, a Fábrica Corcovado teve a sua área convertida para a construção de um parque residencial, batizado de “Jardim Corcovado”.

35 trabalhadores, abriu uma escola para as crianças, um clube social, exibições de cinema e teatro.9

A convivência dos operários da Fábrica Aliança no bairro de Laranjeiras ocasionou o surgimento de manifestações culturais diversas, entre elas a organização dos ranchos carnavalescos “União da Aliança” e “Arrepiados”, e o time de futebol

“Estudantina”, que após transferir a sua sede da Rua das Laranjeiras para a Praça

Tiradentes, no centro da cidade, transformou-se em uma das mais populares gafieiras cariocas, mantida em funcionamento até hoje. O rancho “União Aliança” reunia a maior parte de operários da comunidade portuguesa, enquanto que o “Arrepiados” agregava os demais trabalhadores da Fábrica Aliança.

O compositor Angenor de Oliveira, conhecido popularmente como “Cartola”, participou do rancho “Arrepiados” durante a sua infância, pois seu pai era operário da

Fábrica Aliança e sua família residiu em Laranjeiras em uma das casas da vila operária. Em monografia editada em 1983, sobre a vida e a obra do compositor

Cartola, verificamos que as cores verde e rosa, representativas da Escola de Samba

Estação Primeira da Mangueira, foram trazidas por Cartola do rancho “Arrepiados”:

Cartola afirmava que o União da Aliança era um clube de portugueses, que escolheram as cores encarnado, verde e branco inspirados na bandeira de Portugal. Já o Arrepiados [... adotou como cores] o verde e rosa, que anos depois Cartola iria transportar para a estação Primeira da Mangueira, quando da sua fundação. (SILVA & OLIVEIRA FILHO, 1983: 27-28).

Em depoimento registrado na biografia citada, Cartola afirmou ter participado do carnaval e desfilado no rancho “Arrepiados” com toda a sua família na “Ala do

Satanás”, e destacou que seu pai tocava cavaquinho profissionalmente no rancho. Esse evento marcou a primeira vez que Cartola vestiu uma fantasia carnavalesca.

9 A Fábrica Aliança fechou as suas portas no ano de 1937 e, no ano seguinte, suas instalações foram demolidas para que, em seu lugar, fosse construído um complexo habitacional de edifícios denominado “Jardim Laranjeiras”, existente na atualidade ao largo da Rua General Glicério.

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A participação do empresariado português no setor industrial têxtil ainda pode ser notada na organização da “Companhia América Fabril”, sucessora da “Companhia

Pau Grande”, de Magé, em 1890. Em expansão para a cidade do Rio de Janeiro, a

América Fabril já contava com quatro fábricas no ano de 1915, e em 1927, já era considerada a “primeira empresa têxtil do país”. (FREITAS FILHO, 2002: 188). O diretor-gerente da fase inicial dessa fábrica foi o português Domingos Alves Bebiano, que permaneceu no cargo até o ano de 1914. A forte presença do capital comercial português na origem das indústrias têxteis estabelecidas na cidade do Rio de Janeiro pode ser observada no quadro 2:

Quadro 2: Estabelecimentos têxteis fundados no Rio de Janeiro entre 1878-1915. Estabelecimento Época de Proprietário Fundação Fábrica de Tecidos São Lázaro 1877 José Maria Teixeira de Azevedo Fábrica de Tecidos Pau Grande 1878 Santos, Peixoto & Cia. Fábrica de Tecidos Rink 1879 Frederico Glette Fábrica de Fiação, Tecidos e 1880 Laranjeira, Silva & Whittaker Tinturaria Alliança Fábrica Bonfim 1882 Marques da Costa & Cia. Fábrica Carioca 1884 Bandeira, Steele & Cia. Fábrica São João 1886 (?) Hall & Bellamy Cia. Fábrica de Tecidos São 1888 Silva & Lowdes Cristóvão Cia. de Fiação e Tecelagem 1887 Manuel de Salgado Zenha e Confiança Industrial Francisco Tavares Bastos Cia. Progresso Industrial do Brasil 1893 Banco Rural e Hipotecário e Banco Internacional do Brasil Cia. de Fiação e Tecidos Corcovado 1889 Visconde de Figueiredo e Candido da Cunha Sotto Maior Cia. de Fiação e Tecidos São Félix 1891 Alfonso de Lamase

Fonte: MONTEIRO, Ana Maria F. da Costa. Empreendedores e investidores em indústria têxtil no Rio de Janeiro: 1878-1895. Uma contribuição para o estudo do capitalismo no Brasil. Dissertação de mestrado, UFF, 1985, p.96.

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Segundo o artigo de Freitas Filho (2002), a atividade empresarial de liderança portuguesa do período alcançou ainda outros setores, como a “Fábrica de Cerveja

União e Ultramarina”, organizada no centro da cidade em 1903; a “Companhia

Moinho de Ouro”, dedicada ao fabrico de café e chocolate, fundada em 1899; e a metalúrgica “Fundição Progresso”, fundada em 1881, inicialmente estabelecida no centro da cidade, na Rua da Conceição, e posteriormente, transferindo-se para o bairro da Lapa na rua dos Arcos em 1910. (FREITAS FILHO, 2002).10

A partir da segunda metade do século XIX, a participação do empresariado português na indústria têxtil do Rio de Janeiro demonstrou a importância do investimento de capital estrangeiro para o início do desenvolvimento industrial nacional, absorvendo a mão-de-obra de brasileiros e imigrantes de várias nacionalidades, inclusive uma massa de proletários portugueses. O êxito alcançado por esses empresários incentivou outros portugueses a investirem em diversos setores da economia brasileira. Assim, a presença portuguesa empresarial foi ampliada no comércio já existente, em quitandas, secos e molhados, padarias e etc., estabelecimentos que contribuíram para a organização da rede de supermercados que se vinha estruturar no decorrer do século XX.

Para além de qualquer processo de modernização, o comércio carioca permaneceria germinando à sombra do antigo monopólio português, o que viria a explicar, por exemplo, por que eram portugueses aqueles que se colocaram à frente dos supermercados Merci, Disco, Rainha, Guanabara, Continente, Dallas, Mar e Terra, Casas da Banha e Casas Gaio Marti, alguns recém-chegados ao Brasil, atraídos, em última instância, pelas

10 Ressaltamos ainda a existência de outras fábricas têxteis no período, que, embora não tivessem em seu quadro de acionistas uma maioria de investidores portugueses, empregavam como mão-de-obra a força de trabalho do imigrante lusitano, como por exemplo, a Companhia de Fiação e Tecidos Confiança Industrial, fundada em 1885 no bairro de Vila Isabel; a Companhia de Fiação e Tecelagem Carioca, fundada em 1886 no bairro do Jardim Botânico; a Companhia Progresso Industrial do Brasil, que operou a partir de 1889 no bairro de Bangu; a Fábrica Aurora, de 1895, localizada no município de Niterói e transferida em 1901 para o Bairro de Botafogo, à Rua Real Grandeza; a Companhia Tijuca, fundada em1900 no bairro homônimo; a Companhia de Tecidos de Linho, estruturada em 1906 no bairro de Sapopemba, atual bairro de Deodoro; a Fábrica de Tecidos Botafogo, fundada em 1907 no bairro de Botafogo, entre outras instituições.

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vitórias alcançadas pelo conterrâneo Manuel Antonio Sendas. (MENEZES, 2000: 179).

Essa atividade portuguesa voltada para a organização da indústria e do comércio do Rio de Janeiro é notória, e em sua base estrutural encontramos um lugar comum de ação para empresários e trabalhadores lusitanos, que, apesar de se encontrarem em posições econômicas e sociais opostas, se uniram em prol da manutenção da cultura e dos costumes portugueses. As bandas musicais, organizadas pelos operários das fábricas, evocavam a cultura lusitana através da música, afirmando a identidade portuguesa e auxiliando o imigrante no processo de integração do indivíduo ao meio social carioca. Essas bandas musicais se organizavam também em torno da cultura portuguesa e, além de apresentarem um repertório de música popular brasileira, incluíram em seu processo de atuação, a música regional portuguesa.

A fábrica Bangu constituiu a sua banda em 1892, e foi dirigida e organizada pelo mestre-pedreiro José Pedro de Andrade. Em 1895, já contava com 36 músicos, e a partir de 1904 teve como regente o maestro Anacleto de Medeiros. (DINIZ, 2007:

68). A banda de música da Fábrica de Tecidos Confiança também foi organizada por

Anacleto de Medeiros e contou com a participação de músicos como Albertino

Pimentel, o “Carramona”, e o flautista Pedro Galdino. A banda da Fábrica Aliança foi organizada por José Resende de Almeida, e foi ali que o violonista Quincas

Laranjeiras teve a sua iniciação musical na flauta, pois era operário desse estabelecimento fabril desde os 11 anos de idade.

1.4 Os portugueses e os espaços de divulgação do fado

1.4.1 A Opereta e o teatro de revista

O ingresso da Opereta como espetáculo popular no Brasil começou em 1865 com a apresentação de Orphée aux Enfers (Orfeu nos Infernos), com música de

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Jacques Offenbach no Café-Concerto carioca Alcazar Lyrique. Essa Opereta fazia referência ao mito grego de Orfeu, e em função do êxito alcançado junto à elite local, o Alcazar Lyrique passou a promover outras montagens de Companhias Francesas. A partir de 1868, a Opereta passou a integrar o catálogo de obras cênicas nacionais, com a estréia da Opereta-Paródia Orfeu na Roça, de Francisco Correa Vasques. Encenada no Teatro Fênix Dramática do Rio de Janeiro, Orfeu na Roça apresentava uma paródia da opereta de autoria de Offenbach, Orphée aux Enfers. A música da referida paródia ficou a cargo do compositor Manoel Joaquim Maria, que, entre os números executados, apresentou a obra musical “Cateretê”, indicando-a na partitura como fado brasileiro. Podemos observar no exemplo musical 1 que o ritmo básico do acompanhamento do “Cateretê” não obedece ao padrão característico do fado castiço português, que será descrito no capítulo 2. A letra da música alude à dança do fado, confirmando a classificação dessa obra como integrante do conjunto de danças do fado brasileiro:

Quebra, quebra, bem quebrado

O fadinho brasileiro

Numa roda deste fado

Tudo fica prisioneiro

Tomara achar quem me diga

Quem é que pode aguentar

A mocinha brasileira

No fadinho a requebrar

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Exemplo musical 1: “Cateretê”. Orpheo na Roça. Partitura para canto e piano. Transcrição de Alberto Boscarino de cópia original impressa. Fonte: Biblioteca Nacional.

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Verificamos que o ritmo notado nos dois primeiros compassos da obra e indicado para a execução da mão esquerda do pianista corresponde ao padrão rítmico da habanera (colcheia pontuada/semicolcheia, colcheia/colcheia), gênero musical de origem cubano que fazia sucesso no Brasil no final do século XIX. A partir do quarto compasso o ritmo se estabiliza próximo ao tango brasileiro, e a harmonia se estrutura sobre os acordes de tônica e dominante na tonalidade de sol maior. O “Cateretê” de

Manoel Joaquim Maria, ao ser comparado com o “Fadinho Final”11 do compositor

Abdon Milanez (exemplo musical 2) pode nos indicar semelhanças entre as duas obras. A tonalidade é maior (Mi Bemol), o compasso é binário simples, a harmonia se encontra estruturada entre a tônica e a dominante, e o ritmo de acompanhamento obedece ao padrão da habanera. Não há determinação de andamento para as duas obras, mas a indicação como número “final” na Revista Mercúrio sugere uma peça de caráter alegre, possivelmente próximo ao andamento allegro.

Exemplo musical 2. Trecho da partitura para piano de “Fadinho Final”, composição de Abdon Milanez para a Revista Mercúrio (1886) de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio. Cópia da partitura original impressa por Narciso e Arthur Napoleão, s/d, número de matriz 3093.

11 O “Fadinho Final” é uma obra de autoria de Abdon Milanez, a qual integra a Revista Mercúrio de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, encenada no Teatro Lucinda do Rio de Janeiro em 1886.

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Segundo Neyde Veneziano (2008), logo em seguida ao êxito das Operetas, o público do Rio de Janeiro passou a perceber o teatro de revista como forma de entretenimento, e “após as primeiras mal-sucedidas tentativas, instalou-se pelas hábeis mãos de Arthur Azevedo em 1870. Desde então, o Rio de Janeiro distinguiu-se como a

Capital do Teatro Musical Brasileiro.” (VENEZIANO, 2008: 1). O teatro musical brasileiro foi absorvendo elementos próprios da Ópera, como duetos e tercetos, canções e árias que indicavam entradas e saídas, apresentação cantada dos personagens, e apontou em direção ao carnaval carioca como tema de referência, conforme afirma Veneziano (2008):

Quando a revista empurrou a opereta para zonas periféricas, os procedimentos provenientes do teatro lírico já se haviam transmutado em meio aos populares ritmos e melodias afro-brasileiros. O edifício dramatúrgico-revisteiro permaneceu de pé e imutável por mais tempo, arregimentando tipos, assuntos e sons genuinamente brasileiros. Nesta linha, a melhor e mais significativa expressão deu-se entre as décadas de 1920 e 1950. Durante este período, o teatro de revista foi, indubitavelmente, o gênero que melhor representou a idéia que o Brasil tinha de si, dentro da tríade ideológica: mulher, malandragem e carnaval, signos da pátria convertidos em padrão de representação teatral. (VENEZIANO, 2008: 1).

A formação do Teatro de Revista no Brasil recebeu uma forte contribuição do

Teatro de Revista Português. Esse gênero teatral era originário da França, e segundo

Múcio da Paixão (s/d), é através da popularização da Revista na França que o Brasil absorve o gosto por Operetas e logo depois por Revistas. Segundo o autor, as companhias portuguesas de Teatro de Revista chegaram ao Rio de Janeiro em 1892, estreando no dia 07 de Julho no Teatro Lucinda. A Revista encenada intitulava-se O

Burro do Senhor Alcaide, de João da Câmara e Gervásio Lobato, e foi montada pelo empresário português Souza Bastos.

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A Revista pode ser compreendida como um gênero teatral de variedades, com números de dança, música e canto além de paródias políticas e sociais. Entre os séculos XIX e XX, era denominada “revista de ano”, pois o seu enredo se inspirava no resumo dos acontecimentos políticos e sociais ocorridos durante o ano anterior, e era apresentado por duas personagens características do teatro francês, o compère e a commère (compadre e comadre). O Teatro de Revista se modificou no Brasil a partir da década de 1920 com a redução das obras em dois atos, o desaparecimento das duas personagens que apresentavam o enredo e o aumento dos números de música e de dança. (VENEZIANO, 1991). De acordo com Veneziano (2006), podemos observar o universo da crônica social que era tecida nas revistas de ano encenadas no Rio de

Janeiro:

As revistas de ano pareciam procurar fixar teatral e satiricamente os instantâneos da cidade. Pelas revistas de ano passeavam personagens-tipo que encarnavam o perfil acabado do carioca, às vezes malandro, às vezes cômico. Também imigrantes portugueses, ingênuos sertanejos pasmados diante do progresso, mulheres fatais, doutores e uma galeria sem fim de caricaturas ofereceram um panorama tão ou mais fiel para a história do que a comédia de costumes. As doenças, os problemas financeiros e a imprensa surgiam, neste painel anual, em forma de alegorias. (VENEZIANO, 2006: 266). A primeira Revista foi encenada em 1859 no Teatro Ginásio, intitulada As surpresas do senhor José da Piedade, de Figueiredo de Moraes. Encontramos registros de uma presença significativa da música e da cultura portuguesa nesse teatro musical de variedades, uma vez que o Brasil recebeu forte influência lusitana durante o segundo reinado. Portanto, as repercussões “se estendiam às artes e à formação de um gosto do público peculiar” (VENEZIANO,1991: 28). No cenário desse teatro vemos a configuração de um tipo de português tosco e portador de vastos bigodes, introduzido pela Revista O Bilontra (1886), de Arthur Azevedo, caracterizando de forma humorística o personagem lusitano. Notamos que, na época, as Revistas nacionais e portuguesas “disputavam a cena”, porque havia no elenco “sempre uma

44 mistura de portugueses e brasileiros. E as platéias também. A convivência era ótima”.

(VENEZIANO,1991: 134).

Como as Revistas apresentavam variedades e modismos musicais da época, o

Fado passou a integrar o repertório de algumas Revistas que eram dirigidas ao público de origem portuguesa. Uma referência à música do fado pode ser encontrada na peça A

Fantasia (1896), de Arthur Azevedo, fado cantado pelo personagem D. Jaime. A interpretação dessa canção em cena causou mal-estar à colônia portuguesa porque a letra fazia alusão à obra “D. Jayme” do poeta português Tomás Ribeiro

(VENEZIANO,1991: 134-5):

As vozes de um fado nosso

Me põem o peito a saltar!

Eu confesso que não posso

Ver defunto sem chorar

Quando eu for por Deus chamado

Desta vida sem ventura,

Peço que me cantem o Fado

Sobre a minha sepultura. Na tentativa de apurarmos a ocorrência do fado como música integrante no enredo das Revistas encenadas no Brasil, outras obras foram consultadas diretamente na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT, e destacamos dentre elas a peça

O Ditoso Fado, comédia original em um ato de Manoel Roussado. A obra não é datada, mas há uma indicação a lápis que indica o ano de 1935, provavelmente o ano em que a obra foi registrada no Brasil. De acordo com Tinhorão (1994), O Ditoso

Fado foi estreada em 1869 no Teatro Trindade em Portugal. A peça se desenrola em um único ato e conta com apenas dois personagens em seu elenco: o Doutor Saraiva e a Dona Violante. Há uma indicação expressa na obra onde o autor pede que a

45 orquestra comece a tocar ao levantarem a cortina, “alguns compassos antes da entrada do Dr. Saraiva”. A obra trata do enlace matrimonial entre os personagens. Violante, no início da cena VI, faz alusão ao fado corrido, a “marselhesa nacional” e, ao declarar a sua preferência pela guitarra, em detrimento ao som do piano, canta o fado:

Vem chorar junto ao meu peito

O adorado instrumento

Quem me dera, ai! Quem me dera

Apagar o meu tormento

Quando pego na guitarra

Sinto logo-o quer que é

Que me fala ao coração

E me faz pular de pé

(O Ditoso Fado, Roussado, cena VI, 1935) O começo da cena VII também exige a interpretação de um fado por Saraiva, que, ao ouvir Violante na cena anterior, sente o desejo de executar a dança do

“sapateadinho”. A peça culmina ao som de um fado de duas quadras, e em dueto no final.

Mais duas obras nos servem de suporte para o estudo do gênero, a primeira é intitulada Fado e Maxixe, revista em 3 atos de João Poncho e André Brum, s/d; a segunda, Como Nasceu um Fado: quadro-episódico e musical em 5 fases, de

Humberto Cunha, musicado pelo maestro Antonio M. Lopes em junho de 1949, inspirado no romance A Severa12, de Julio Dantas.

12 Trata-se de uma novela lançada em 1901 pelo escritor português Julio Dantas que descreve a sociedade portuguesa de 1848 e seus hábitos populares, tendo como personagens centrais o Conde de Marialva e a cigana fadista Severa, que vivem um romance condenado pela sociedade da época. A novela de Dantas foi levada ao teatro e inspirou o primeiro filme sonoro português, dirigido por José Leitão de Barros e estreado em 1931.

46

O enredo da revista Fado e Maxixe engendra em sua trama a visita do personagem Fado, procedente de Lisboa, ao Rio de Janeiro, onde é recepcionado pelos personagens Maxixe e Avenida (Central) na então capital da República. Ao longo da trama, é a vez do Maxixe atravessar o Atlântico e desembarcar na capital portuguesa e, depois de ter sido bem acolhido em Portugal, retornou ao Brasil ovacionado pelo Zé

Pereira e pelo próprio Rei Momo. Os autores da peça criaram vários personagens para esta obra: a 1ª. Avenida, a Rotunda, o Chalet e o Coreto; a Costureira, a Ama de Leite, o Galucho, o Caixeiro, a Menina Pires, o Estudante, a Canção e o Fado (em Lisboa); a

Avenida (alusão à Avenida Central na cidade do Rio de Janeiro), a Capital (Federal),

Sebastião, o Maxixe, o Creado, a República, o Brasil e alguns Estados (Bahia,

Pernambuco, São Paulo, Ceará). Portanto, a obra Fado e Maxixe encena o maxixe brasileiro e o fado português como personagens representativos dos gêneros musicais expressivos de cada povo e reflete o intercâmbio cultural luso-brasileiro.

Foram obtidas cópias das peças citadas anteriormente, faltando o exame de

Uma História do Fado, de José Silvino Fernandes, Embaixada do Fado, de Alberto

Reis, e Como Nasceu um Fado, de Louis Pericand Benet, porque essas obras não foram localizadas pelo setor de arquivo da SBAT. No Brasil, o registro do termo fado na música pode indicar dois gêneros diferentes, o fado português e o fadinho brasileiro. A pesquisa revelou a existência de algumas obras do Teatro de Revista que, apesar da referência ao termo fado, expressam a manifestação do fadinho brasileiro, integrado por música e dança.

A peça O Juiz de Paz na Roça (1837), de Martins Pena, é considerada pela crítica especializada a nossa primeira comédia de costumes, e tece uma crítica aos hábitos, instituições e membros da sociedade brasileira da primeira metade do século

XIX. O tema da obra remete à Revolução Farroupilha de 1834, por isso, o personagem

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José se vê obrigado a contrair núpcias com Aninha, como uma tentativa de escapar ao recrutamento militar. A estrutura da peça é constituída por um único ato composto de vinte e três cenas e com os demais personagens envolvidos, como Manoel João, o Juiz de Paz, O Escrivão, Maria Rosa e os Lavradores.

Na peça de teatro referida a música do fado aparece mencionada na última cena, quando o Magistrado convoca os personagens a dançar um fado em obséquio ao

Sr. Manoel João que acabava de casar a sua filha. O juiz pede ao escrivão que vá buscar a viola, e em seguida, que se organize a roda para o baile “Um fado bem rasgadinho... bem choradinho...”. Um dos atores empunha a viola para o baile, e o autor registra a existência de uma homologia entre o fado e a tirana, mas entendemos que a representação desse ato final deixa transparecer as características do fadinho brasileiro: “Bravo, minha gente! Toque, toque! Um dos atores toca a tirana na viola; os outros batem palmas e caquinhos, e os mais dançam.” (PENA, 1997).

O desfecho da peça se dá com a alternância de tocador e coro entoando os versos do fado ora anunciado:

Ganinha, minha senhora, Da maior veneração; Passarinho foi-se embora. Me deixou penas na mão.

Se me dás que comê, Se me dás que bebê, Se me pagas as casas, Vou morar com você. (Dançam.)

JUIZ - Assim, meu povo! Esquenta, esquenta!...

MANUEL JOÃO - Aferventa!

Tocador,

cantando -

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Em cima daquele morro Há um pé de ananás; Não há homem neste mundo Como o nosso juiz de paz.

Todos -

Se me dás que comê, Se me dás que bebê, Se me pagas as casas, Vou morar com você.

JUIZ - Aferventa, aferventa!...

As peças citadas de Martins Pena e Francisco Corrêa Vasques apresentam a dança característica do fadinho brasileiro como atração, e essa fórmula será repetida na Opereta de costumes A Corte na Roça, de Palhares Ribeiro, com música da compositora Chiquinha Gonzaga. A obra teve sua estréia no Teatro Príncipe Imperial do Rio de Janeiro em 17 de janeiro de 1885, montada pela Companhia Portuguesa

Souza Bastos.

Na portada da cópia elaborada e assinada por Ernesto Rocha em 1914, lê-se o título e a designação do gênero “Opereta em 1 acto”. A trama se passa na Fazenda das

Cebolas, região de Queimados, e a obra remete aos costumes do povo residente no interior do país. A crítica do Jornal do Commercio (1885) comentou que as obras musicais da peça demonstravam um “cunho característico da música de estilo brasileiro”, e classificava a música final como um lundu, fazendo a associação desse gênero com o habitante das áreas rurais (homem da roça).

A Corte na Roça, composta de quadros de música e dança, é iniciada com uma quadrilha, depois apresenta uma valsa e termina com uma dança brasileira de características híbridas que oscila entre lundu, polca e tango, dança que Edinha Diniz classificou como maxixe (DINIZ, 1999: 118). No texto original, a indicação do gênero

é assinalada como fadinho brasileiro, conforme podemos observar:

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JUCA, CELINA E TODOS OS OUTROS PERSONAGENS (ENTRANDO)

Ao Fado! Ao Fado!

Abram! Abram! (tocam o Fado e dançam)

CORONEL (dando uma viola a Celina) (canta)

Quem é gente lá da roça

Puxe bem suas fieiras

Quem não dança é gente mole

Não serve pra brincadeira

TODOS

Quebra quebra gente boa

Quebra quebra até morrê

Quem não dança é gente a toa

Isto é só pra (ilegível)

CHICO BENTO

Caia primeiro no Fado

A comadre que és segura

Não fique assim socegado (sic)

Quem não tem a perna dura

(A Corte Na Roça, cópia de 1914)

A dança final foi liberada pela censura com a condição de não ser repetida e, apesar do fervoroso apelo do público que assistiu à estréia, os atores não puderam fazer o bis “diante da imediata resolução da autoridade presente que mandou baixar o pano” (DINIZ, 1999: 118). A Corte na Roça é mais uma obra que se apropria do fado

(fadinho) brasileiro, pois, segundo fontes encontradas até a atualidade, existe a hipótese de o gênero de canção popular portuguesa denominado fado somente ter integrado o repertório de nosso teatro de revistas a partir de 1896 com a peça A

Fantasia, de Arthur Azevedo.

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A cantora Araci Cortes é conhecida como intérprete de destaque no teatro de revista brasileiro e, dentre outros gêneros musicais, dedicou-se também ao fado. Em

1929, a artista lançou o fado “Tibe”, na revista Pátria Amada, e em 1933 cantou o fado-marcha “Feno de Portugal”, na revista Arraial, de autoria de Mario Marques e

Cruz e Souza, encenada em Lisboa (RUIZ, 1984). As fontes relativas ao teatro de revista brasileiro são compostas principalmente pelo roteiro da peça teatral, ficando a parte musical passível de uma reconstituição musicológica a partir de outras fontes como partituras ou gravações fonográficas relacionadas à literatura e à história do teatro brasileiro. Conforme observamos nesse tópico da pesquisa, a referência ao termo fado nas obras do teatro musicado brasileiro pode confundir os estudiosos do tema em um primeiro momento, pois há de se considerar a diferença entre o fado castiço português e o fadinho brasileiro, assim como a distinção de outros gêneros similares como o cateretê e o maxixe, músicas associadas à modernidade social de cada período.

A transformação que ocorreu no fado durante o século XX é decorrente da inserção desse gênero musical no teatro de revista, processo que se iniciou ao final do século XIX, gerando assim um estilo novo denominado fado-canção. A inclusão desse tipo de canção nos espetáculos do teatro de revista foi bem aceita pela comunidade portuguesa e passou integrar o seu imaginário, projetando o fado para outros espaços de divulgação como as casas regionais, associações filantrópicas e etc.

1.4.2 Casas regionais, associações culturais e filantrópicas

Como visto anteriormente, a fundação das casas regionais e de algumas associações culturais portuguesas nos servem como referência para o estudo da ocupação e da distribuição dos imigrantes portugueses nos bairros da cidade do Rio de

51

Janeiro. O caráter associativo foi uma das características da imigração portuguesa no

Brasil, responsável pela fundação de associações culturais, filantrópicas e casas regionais em diversos estados brasileiros, e por conseguinte, na cidade do Rio de

Janeiro.

As entidades filantrópicas tinham o objetivo de auxiliar o imigrante na obtenção de um posto de trabalho, no socorro aos enfermos e no auxílio funeral de seus compatriotas menos favorecidos, além de promover ações educacionais para a formação de crianças e jovens junto à comunidade. (SILVA, 1992).

A música popular portuguesa no Brasil também pode ser compreendida através das atividades culturais promovidas pelas diversas associações portuguesas e luso- brasileiras existentes no Estado do Rio de Janeiro. Em uma lista atualizada fornecida pela Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras, enumeramos 53 entidades filiadas distribuídas pelo Estado do Rio de Janeiro, concentrando-se a maior parte delas na cidade do Rio de Janeiro. A capital do Estado conta com 41 instituições que operam com atividades diversas, como academias literárias, bibliotecas, teatros, associações esportivas, bandas musicais, grupos folclóricos, casas regionais, hospitais e obras de assistência.

Além das entidades filantrópicas, recreativas e culturais fundadas pelos portugueses na cidade do Rio de Janeiro, cabe destacar a importância das sociedades de socorro mútuo, promotoras de um grande movimento associativista na década de

1880. Essas entidades eram formadas por trabalhadores portugueses e representaram uma alternativa de organização da comunidade lusitana na cidade, na busca de melhores condições de vida, principalmente em relação aos serviços sociais básicos como saúde e educação. A precariedade das condições de vida imposta aos imigrantes no Brasil, acarretou na adesão da comunidade portuguesa ao mutualismo, ao ponto de

52 a população proletária lusitana “não querer mais sujeitar-se à caridade e pretender precaver-se contra a doença, a invalidez e a morte mediante uma cotização tirada do salário do trabalhador e que depois iria beneficiar a sua família.” (SILVA, 1992:95).

Dentre as entidades de caráter cultural lusitano, o Real Gabinete Português de

Leitura13 figura como a primeira associação portuguesa fundada no Rio de Janeiro em

14/05/1837. Essa instituição possui o maior acervo de obras de autores portugueses fora de Portugal, oferece o acesso para consulta através de sua biblioteca pública, além de promover cursos sobre arte, história, antropologia e literatura. Outra associação de destaque, a Real Sociedade Clube Ginástico Português14 é uma instituição luso- brasileira centenária, fundada em 31 de Outubro de 1868 por João José Ferreira da

Costa e Antonio José Ferreira da Costa. A sede atual está localizada no centro da cidade na Av. Graça Aranha e foi inaugurada em 1938, e a entidade possui o objetivo de “dinamizar as atividades esportivas, artísticas, culturais e sociais, promovendo a integração da Comunidade Luso-Brasileira”. Além dessas, há outras entidades e associações lusitanas que constam do anexo desta tese, como o Liceu Literário

Português, a Banda Portugal do Rio de Janeiro, os Ranchos Folclóricos e as Casas

Regionais.

Na cidade do Rio de Janeiro, há vários ranchos folclóricos em atividade que difundem a música, a dança e a cultura popular portuguesa. Os ranchos são constituídos por imigrantes portugueses e seus descendentes, e se apresentam em espaços públicos com trajes típicos de cada região de Portugal, dançando, cantando e executando instrumentos musicais típicos, como o cavaquinho, a viola e a concertina.

13 Fonte: Real Gabinete Português de Leitura. Disponível em: . Acesso: em 12 fev. 2009. 14 Fonte: Clube Ginástico Português. Disponível em: . Acesso em: 22 fev. 2009.

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Esses grupos folclóricos se organizam através das danças regionais ambientadas ao som de canções populares como a cana-verde, a chula, o vira e o fado. Os principais ranchos em atividade no Rio de Janeiro são relacionados no anexo A (p. 199).

As Casas Regionais Portuguesas são associações culturais que assinalam a distribuição territorial da colônia portuguesa no Rio de Janeiro, com representações de ordem regional e nacional. Cada Casa Regional se encontra fundamentada sob os aspectos sócio-culturais de determinada região ou Concelho de Portugal, e situada em um entorno geográfico representativo das famílias dos imigrantes. Tem por objetivo a divulgação da cultura portuguesa através de eventos que envolvem música, culinária, dança folclórica e outras atividades sociais como excursões, palestras, sessões de cinema, etc. Essas agremiações surgiram no decorrer do século XX, e, embora representem as características culturais de cada região, não se desenvolvem como um movimento de ordem separatista, e sim como parte integrante da identidade nacional lusitana. Relacionamos no anexo A algumas das principais Casas Regionais estabelecidas na cidade do Rio de Janeiro.

1.5 Gravações pioneiras do fado

A primeira gravação de um fado no Brasil é registrada em 1902 (ano em que são realizadas as primeiras gravações fonográficas no Brasil), gravada pelo cantor

Baiano com o título de “Fado Português”15. O mesmo intérprete registra em seguida as gravações de “Fado de Hilário”, Zon-o-phone 10038, e “Fado do Soldado”, Zon-o- phone 1515, e embora não haja indicação sobre a data de gravação, a numeração de série indica o ano de 1902. Após um levantamento dirigido às gravações realizadas entre os anos de 1902 e 1935, encontramos o registro 314 de fonogramas, que podem

15 Baiano. Fado Português, Zon-o-Phone, disco 10.009, lançado em 1902.

54 ser classificados em duas fases: a primeira com 134 fonogramas, entre 1902 e 1927, e a segunda, com 180 fonogramas, a partir de 1928, quando se inicia no Brasil o sistema de gravação elétrica. O foco de nossa pesquisa encontra-se centrado entre as décadas de 1950 e 1970, mas, em um primeiro momento, decidimos observar as gravações realizadas até 1935, ano representativo por conter numerosas gravações dos cantores

Manoel Monteiro, Joaquim Pimentel e José Lemos. Essas gravações nos ajudaram a compreender o processo de fixação e divulgação do gênero musical no Brasil, e podemos destacar os principais cantores que registraram a sua voz na interpretação dos fados na primeira fase (gravações mecânicas): Baiano, com onze gravações (11);

Cadete, duas (2); Mario Pinheiro, quatro (4); Eduardo das Neves, quatro (4); Almeida

Cruz, vinte e cinco (25); Delfina Victor, quatorze (14); Risoleta, cinco (5); Joaquim

Ramos, sete (7); Artur Castro, sete (7) e Vicente Celestino, duas (2). A segunda fase

(gravações elétricas) compreende principalmente as gravações dos cantores Manoel

Monteiro, que possui trinta e seis (36) fonogramas; Isalinda Seramota, doze (12); José

Lemos, treze (13); Augusto Lopes, nove (9) e Almirante e o Bando de Tangarás, com uma gravação. A discografia referida pode ser observada em tabela inserida no anexo

C e disponibilizada em Cd digital fixado na contracapa final desta tese.

O Instituto Moreira Sales disponibilizou para escuta em seu site

(http://acervos.ims.uol.com.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/) 182 gravações de fado que integram a coleção pessoal dos pesquisadores Humberto Franceschi e José Ramos

Tinhorão. Esse acervo guarda fonogramas dos principais fados gravados no Brasil entre 1902 e 1960, com gravações de Cadete, Mario Pinheiro, Baiano, Delfina Victor,

Os Geraldos, entre outros, constituindo-se em uma fonte importante para pesquisa do fado produzido em nosso país.

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Outra fonte da discografia do fado brasileiro pode ser encontrada no levantamento organizado por Gracio Barbalho, Alcino Santos, M.A de Azevedo

(Nirez) e Jairo Severiano denominado A Discografia Brasileira 78 rpm – 1902-1964, pesquisa editada pela Funarte em 1982 em 05 volumes, os quais registram mais de 700 gravações do gênero realizadas no Brasil. Esse catálogo reúne informações básicas acerca dos fonogramas gravados, indicando título da canção, gênero, autores, intérprete, ano de gravação, número de registro do fonograma, gravadora, etc.

A análise musical de uma das gravações realizadas pelo cantor Baiano, nas primeiras décadas do século passado, pode revelar uma similaridade com o castiço

“Fado de Vimioso” (exemplo musical 3), recolhido e registrado em notação musical em um cancioneiro português de 189316.

Exemplo musical 3. “Fado de Vimioso”. Transcrição de Alberto Boscarino do Cancioneiro de Músicas Populares de César das Neves. Porto, vol. 3, 1898, p. 128-129.

Realizamos uma transcrição da gravação de Baiano “Saudade da terra”

(exemplo musical 4) para verificar se havia elementos comuns nas duas obras. Quanto

16 Cancioneiro de Músicas Populares. Collecção recolhida e escrupulosamente trasladada para canto e piano por Cesar A. das Neves; coord. a parte poetica por Gualdino de Campos; pref. pelo Exmo Sr. Dr. Teophilo Braga. - V. 1, fasc. 1 (1893)-V. 3, (1898). - Porto: Typ. Occidental, 1898-1899.

56 aos elementos musicais, foi possível observar uma semelhança estrutural nas obras analisadas, a saber:

. Harmonia em tonalidade menor (Lá menor), alternando a tônica e a dominante; . Melodia elaborada em graus conjuntos (na gravação, com trinados característicos); . O ritmo melódico tende à síncope; . Temática fadista: saudades da terra portuguesa e saudade da Severa;

. Acompanhamento instrumental organizado na forma de arpejos.

Exemplo musical 4: Fragmento de “Saudades da Terra”, Odeon, 108714, entre o ano de 1907- 12, Fado. Transcrição de Alberto Boscarino. Não há uma indicação precisa do ano de gravação deste fonograma, considera- se uma data provável para essa série situada entre os anos de 1907 e 1912. O cantor

Baiano gravou outra versão de “Saudades da Terra”, para a Odeon em 191217, sob o número 10321, excluindo a última quadra e a frase declamada ao final como desabafo.

Apesar da má qualidade técnica da gravação, uma escuta atenta das duas versões gravadas revela-nos que o instrumento empregado para o acompanhamento do fado é a guitarra portuguesa. A princípio, o timbre do instrumento nos remete ao som do violão, mas os arpejos da região aguda e a técnica de ponteio dos bordões com dedeira tornam patente a execução atribuída à guitarra portuguesa. Essa constatação

17 Baiano. “Saudades da Terra”. Fado. Odeon, 78 rpm, disco 10321, 1912. Fonte: arquivo Humberto Franceschi. Disponível em: < http://acervos.ims.uol.com.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/>. Acesso em: 14 mar. 2009.

57 pode sugerir que o cantor Baiano estivesse instruído na técnica da guitarra portuguesa, além da habilidade com o violão, ampliando desse modo suas possibilidades como intérprete.

Alguns aspectos relacionados à interpretação, acompanhamento e composição do fado serão desenvolvidos conforme o conceito de artista integrado proposto por

Becker (1977) que envolve a prática referida ao cantor Baiano. Esses artistas conservam elementos de cada cultura (portuguesa e brasileira) em um único mundo artístico, como se exibissem uma interseção desses mundos, vivenciando experiências musicais compartilhadas. Os conceitos de Becker (1977) serão apresentados no capítulo 3 desta tese.

Os versos da canção estão organizados em quadras de sete sílabas que se repetem, obedecendo ao princípio da redondilha maior (padrão métrico característico de canções tradicionais) e expressando o lamento do imigrante português saudoso de sua terra natal. O intérprete acompanha o canto de sua voz “bizarra” ao som da guitarra portuguesa, e confessa as suas saudades (da terra, da família, da infância, das noites de calma). No final da canção ele declara certo arrependimento por estar em solo estrangeiro, situação que pode ser percebida na frase “Isso é diabo quando a gente vive no país dos outros... É pior do que cachorro leproso!”.

Segue a letra na íntegra:

Nos tristes versos singelos/ao som da minha guitarra

Nos tristes versos singelos/ao som da minha guitarra

Eu vou cantar um fadinho/ na minha voz que é bizarra

Eu vou cantar um fadinho/ na minha voz que é bizarra

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Começo pela saudade/ que o meu princípio ente encerra

Começo pela saudade/ que o meu princípio ente encerra

Nos dias da minha infância/ saudades da minha terra

Nos dias da minha infância/ saudades da minha terra

Oh, dias meus venturosos/ Oh, minhas noites de calma

Oh, dias meus venturosos/ Oh, minhas noites de calma

Que dor eu trago em meu peito/ que mágoa eu sinto in’ai alma

Que dor eu trago em meu peito/ que mágoa eu sinto in’ai alma

Professo a Deus por um dia/ a minha vida “poupaire”

Professo a Deus por um dia/ a minha vida “poupaire”

Pois quero ver minha terra/ e a minha mãe “abraçaire”

Pois quero ver minha terra/ e a minha mãe “abraçaire”

Se tudo que eu digo eu fico/ só digo que são verdades

Se tudo que eu digo eu fico/ só digo que são verdades

Coração que é “sensitiva”/ não pode cantar saudades

Coração que é “sensitiva”/ não pode cantar saudades

E lá se vão cinco anos/que a minha pátria eu não vejo

E lá se vão cinco anos/que a minha pátria eu não vejo

Nem mãe nem mais “irmanzitas”/ nem mais em quem dar um beijo

Nem mãe nem mais “irmanzitas”/ nem mais em quem dar um beijo

Isso é diabo quando a gente vive no país dos outros... É pior do que cachorro leproso!

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Em seguida, procedemos à transcrição de outro fado, o “Fado Brasileiro”18, interpretado pelo mesmo cantor e transcrito no exemplo musical 5. Nesse fado, destacam-se o título “Fado brasileiro” e a designação do gênero musical, indicado no disco como lundu. O motivo dessa canção escapa à temática fadista, pois a letra se refere com muito humor ao “jogo do bicho” e, se comparada à gravação do fado

“Saudades da terra”, percebemos que o sotaque português dá lugar à entonação típica carioca. Verificamos que tanto a estrutura melódica quanto a harmônica se assemelham a da obra anterior, a forma dos versos também se repete, tendo o mesmo andamento, assim como a instrumentação adotada (acompanhamento de acordes arpejados ao violão).

“Fado brasileiro”

Não pode presentemente

nesse Rio de Janeiro

não pode presentemente

nesse Rio de Janeiro

o cidadão livremente

ter o ofício de bicheiro

o cidadão livremente

ter o ofício de bicheiro.

Exemplo musical 5: fragmento de “Fado Brasileiro” gravado pelo cantor Baiano. Fado. Odeon, 120172. 78 rpm, 1912. Transcrição de Alberto Boscarino.

18 Odeon, 120172. 78 rpm, 1912.

60

Outras obras relativas ao mesmo período foram confrontadas e apresentaram uma estrutura semelhante em sua constituição formal, compreendendo harmonia, ritmo e concepção melódica, podendo ser citados como referência os fados “Vá

Saindo”19, “Fado Liró”20 , “Fado Português”21 e “Fado do Coração”22.

As produções discográficas do fado realizadas entre 1902 e 1935 no Brasil apontam para um mercado consumidor do gênero, voltado diretamente para a colônia portuguesa. O registro e a comercialização dos fonogramas auxiliaram a difusão do gênero musical no país e pôs em evidência cantores brasileiros e portugueses que

àquela época gozavam de prestígio junto à comunidade lusitana. Assim, compreendemos que a popularização e a distribuição dos fonogramas estão relacionadas com os programas radiofônicos e as apresentações de fadistas realizadas nas casas típicas regionais que aconteceriam nas décadas seguintes, simbolizando materialmente a história do fado no Brasil. Entendemos que os conceitos estabelecidos por Howard Becker (1977) podem contribuir para uma análise das redes sociais constituídas nessas relações de fruição, consumo e fazer artístico.

As gravações desse período auxiliaram na construção de um ambiente propício para a divulgação do gênero na cidade entre as décadas de 1950 e 1970, em que observamos o ápice e a decadência do gênero fado como música de consumo da colônia portuguesa no Rio de Janeiro. Essas três décadas registram na cidade do Rio de Janeiro a abertura e o fechamento de restaurantes portugueses e casas noturnas organizadas à semelhança das casas de fado de Lisboa, motivo que será analisado no capítulo 3 desta tese.

19 Odeon, 108505, 78 rpm. 1907/1912. Gravação de Cadete. 20 Odeon, 108246, 78 rpm. 1907/1912. Gravação de Os Geraldos. 21 Odeon, 10045, 78 rpm. 1907/1913. Gravação de Pepa Delgado. 22 Odeon, 120225, 78 rpm. 1912/1913.Gravação de Eduardo das Neves

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No próximo capítulo, apresentamos uma síntese do fado como gênero musical realizado em Portugal. Serão discutidos e apresentados os símbolos de construção e sustentação do fado português; uma análise do fado como gênero musical, exemplificando os estilos castiço e canção; algumas características inerentes à interpretação vocal do fado; a instrumentação típica e a forma de acompanhamento do fado; o surgimento e a construção simbólica das casas de fado em Lisboa; os principais fadistas em Lisboa durante o século XX e as primeiras gravações fonográficas do gênero em Portugal. Portanto, o próximo capítulo servirá de base para compor o quadro da imigração portuguesa, do fado em Portugal e, por fim, deverá alicerçar a análise e associação dos relatos extraídos das entrevistas em trabalho de campo (expostas no capítulo 3) acerca do fado no Rio de Janeiro, além de outras fontes consideradas.

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CAPÍTULO 2

O FADO EM PORTUGAL

Eis aqui, quase cume da cabeça De Europa toda, o Reino Lusitano, Onde a terra se acaba e o mar começa E onde Febo repousa no Oceano.

Luís de Camões, Os Lusíadas23

2.1 O Fado, canção popular portuguesa

É a partir da primeira metade do século XIX que os primeiros gêneros de música popular urbana se consolidam no Brasil com a difusão do lundu e da modinha que, segundo o consenso de musicólogos e historiadores, remontam suas origens em referências apontadas no século anterior. O lundu surge inicialmente como dança dos negros escravos africanos introduzidos no Brasil, transformando-se mais tarde em canção acompanhada e música instrumental. A modinha brasileira é uma canção lírica acompanhada ao som da viola (ou violão), já definida como gênero musical no final do século XVIII, como variante da moda24 portuguesa.

Surge também em Portugal, na primeira metade do século XIX, a forma de canção popular urbana que será reconhecida como a expressão musical do povo lusitano: o fado. Existem muitas hipóteses que tentam esclarecer a origem do fado como canção popular portuguesa, como as seguintes: o fado pode ter sido oriundo dos cânticos dos mouros que habitaram a região Lusitânia inclusive após a reconquista

23 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. (Canto III, 20). Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto Editora, 1978, p. 132.

24 Segundo Mozart Araújo (1963), o termo moda portuguesa servia para designar qualquer tipo de canção popular em meados do século XVIII, sendo difundida nos salões aristocráticos de Lisboa.

63 cristã; pode ter derivado do lundu brasileiro, introduzido por marinheiros portugueses em Lisboa no início da década de 1820, ou mesmo por membros da Corte Portuguesa que regressavam em 1821 (TINHORÃO, 1994); pode ser considerado uma variante das Cantigas de Amigo ou das Cantigas de Sátira da Idade Média; e pode também ser procedente da suíte de danças de origem brasileira denominada fado que, embora apresentasse traços coreográficos semelhantes, diferia do lundu. Por esse motivo, as duas danças foram por vezes confundidas pelos cronistas ou historiadores da época.

Podemos encontrar na atualidade uma expressão do que podemos considerar como uma reminiscência da dança do fado no Município de Quissamã, região norte- fluminense do Estado do Rio de Janeiro. A região, que ao final do século XIX apresentou grande opulência econômica, em consequência do plantio da cana-de- açúcar, conserva a dança do fado como tradição iniciada nesta mesma época, manifestação que pode ser classificada como “um conjunto de danças encadeadas, conhecida também como suíte, dançada ao som de viola e adufe, hoje substituído pelo pandeiro. Assemelha-se [o fado de Quissamã] a uma quadrilha européia e é conduzido por repentistas. Uma série de pequenos rituais compõe o baile.” (MATTOSO, 2003).

Como nos esclarece a antropóloga Elizabeth Travassos em um estudo publicado sobre o fado de Quissamã, o “fado fluminense – uma suíte dançada ao som de viola e pandeiro – nada tem em comum com a canção portuguesa de mesmo nome”.

(TRAVASSOS, 1991:166).

A hipótese de transformação do fado-canção a partir do lundu (ou do fado- dança) brasileiro pode ser compreendida em três etapas: em 1822, com o surgimento do lundu em Portugal e a manutenção da dança; a partir de 1840, período em que o canto passa a ter mais importância do que a dança, incorporando o acompanhamento da guitarra portuguesa em substituição da viola, e uma terceira fase, a partir de 1908,

64 com a disseminação e o acolhimento do fado como canção popular por grande parte da nação portuguesa. Segundo Carvalho (1982), o fado se fez notar nas ruas de Lisboa somente a partir de 1840. O fado português possui variantes nas três principais regiões do país e sua interpretação denota características diferentes no Porto e em Coimbra, se comparado ao estilo de Lisboa.

O antropólogo português Joaquim Pais de Brito (1994), assim como Pinto de

Carvalho (1982), sugere uma organização em quatro etapas para o processo de transformação do fado: a partir da década de 1830, disseminado e acolhido de forma popular entre a população marginal lisboeta (prostitutas, malandros, desocupados, bandidos, etc.); no último quartel do século XIX, com a adesão da classe dominante de

Lisboa, “esboçando-se uma linha de apropriação social deste [do fado] por uma aristocracia que progressivamente se separa de formas de sociabilidade em território eminentemente popular.” (BRITO, 1994: 24); entre o final do século XIX e a década de 1920, como gênero musical popular assimilado pelo teatro de revista; a partir da década de 1930, delineia-se um novo contexto no mundo do fado: a profissionalização do cantor de fados e dos demais músicos e a censura imposta às canções de fado pelo

Estado Novo português.

Em consequência da invasão francesa em Portugal (1808), a Corte Portuguesa se transferiu para o Brasil e instalou-se na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de fortalecer o sistema monárquico e configurar uma unidade atlântica imperial luso- brasileira. Com a vinda para o Brasil – ao tentar se proteger dos ideais revolucionários franceses –, a monarquia portuguesa deu início a reformas que inseriram o Brasil no conjunto das civilizações ocidentais.

As medidas adotadas por D. João VI procederam à abertura dos portos (1808),

à manufatura de metais e tecelagem, o livre comércio, a criação da Imprensa Régia e a

65

Real Junta de Comércio, à fundação do Banco do Brasil, e entre outros avanços, a instituição de uma estrutura cosmopolita na cidade do Rio de Janeiro, dando maior

ênfase às práticas sócio-culturais. A revolução liberal ocorrida no Porto, em 1820, determina o regresso de D. João VI e sua corte para Portugal em 1821.

Uma hipótese aponta para a possibilidade de o fado brasileiro ter sido levado por esses marinheiros a Portugal, na ocasião do regresso da Corte Portuguesa, e sua afirmação como gênero musical autônomo português pode estar vinculada à transformação ocorrida ainda nesta viagem, conforme afirma Pinto de Carvalho em seu livro História do fado25 (1982):

Para nós, o fado tem uma origem marítima, origem que se lhe vislumbra no seu ritmo onduloso como os movimentos cadenciados da vaga, balanceante como jogar de bombordo e estibordo nos navios sobre a toalha líquida florida de fosforescências fugitivas ou como o vaivém das ondas batendo no costado, ofeguento como o arfar do Grande Azul desfazendo a sua túnica franjada de rendas espumosas, triste como as lamentações fluctívogas [que voga sobre as ondas do mar] do Atlântico que se convulsa glauco [tom verde-azulado] com babas de prata, saudoso como a indefinível nostalgia da pátria ausente. [...] O fado nasceu a bordo, aos ritmos infinitos do mar, nas convulsões dessa alma do mundo, na embriaguez murmurante dessa eternidade da água. (CARVALHO, 1982: 42).

A origem do fado como gênero de canção popular a partir da assimilação do lundu brasileiro é uma tese defendida por Tinhorão (1994), em que demonstra a semelhança entre o lundu e outra dança brasileira em voga no início do século XIX, que se denominava também fado. O fado-dança se constituía em uma suíte de danças com coreografia parecida a do lundu, e sua descrição pode ser encontrada no romance

25 História do fado é um livro publicado em 1903 pelo memorialista português Pinto de Carvalho, conhecido pelo apelido de Tinop, e reúne uma série de informações sobre o fado no século XIX, resgatando, na mesma linha do brasileiro Alexandre Gonçalves Pinto (O Choro, Funarte, 1978), histórias, personagens, músicos, intérpretes, letras e impressões do fado português.

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Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.26 De acordo com Tinhorão,

[...] levadas para Portugal, como acontecera, em meados do século XVIII, com a fofa e o lundu, as danças do fado - acrescidas da contribuição melódica-sentimental das cantigas de ‘pensamento verdadeiramente poético’ citadas por Manuel Antônio de Almeida - iam percorrer caminho próprio entre as camadas baixas de Lisboa, onde os brancos as tomariam dos pretos e mestiços para transformar-lhes a parte cantada em canção urbana a partir da segunda metade do século XIX. (TINHORÃO, 1988: 67).

Mário de Andrade (1955) refletia, à época, acerca da procedência do fado- canção português a partir do fado-dança brasileiro (ou lundu), citando, entre várias fontes, o estudo de Luiz de Freitas Branco (1929):

Após o regresso de D. João VI do Brasil, este canto dançado (o Lundum) foi invadindo as diversas camadas da sociedade portuguesa, fixando-se nas mais baixas e imorais, onde se transformou no canto dorido e na dança duvidosa a que se chama Fado e bater o Fado. (ANDRADE, 1955: 4).

Vem ao encontro dessa hipótese a descrição do verbete Fado no Dicionário do

Folclore Brasileiro. Trata-se de “Canção popular portuguesa, especialmente cantada em Lisboa e Coimbra, de origem brasileira, vinda do lundu, já divulgada entre o povo, quando a corte portuguesa se estabeleceu no Brasil em 1808.” (CASCUDO, 381: s/d).

De acordo com o verbete da Enciclopédia da Música em Portugal no século XX, o

26 ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ática, 1997. “Todos sabem o que é fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o efeito. O fado tem diversas formas, cada qual mais original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulher, dança no meio da casa por algum tempo, fazendo passos os mais dificultosos, tomando as mais airosas posições, acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos, e vai depois pouco e pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe diante algumas negaças e vira voltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer que a escolheu para substituir o seu lugar. Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado. Outras vezes um homem e uma mulher dançam juntos; seguindo com a maior certeza o compasso da música, ora acompanham-se a passos lentos, ora apressados, depois repelem-se, depois juntam-se; o homem às vezes busca a mulher com passos ligeiros, enquanto ela, fazendo um pequeno movimento com o corpo e com os braços, recua vagarosamente, outras vezes é ela quem procura o homem, que recua por seu turno, até que enfim acompanham-se de novo. Há também a roda em que dançam muitas pessoas, interrompendo certos compassos com palmas e com um sapateado às vezes estrondoso e prolongado, às vezes mais brando e mais breve, porém sempre igual e a um só tempo. Além destas há ainda outras formas de que não falamos. A música é diferente para cada uma, porém sempre tocada em viola. Muitas vezes o tocador canta em certos compassos uma cantiga às vezes de pensamento verdadeiramente poético.” (ALMEIDA, 1997: 28-29).

67 fado é “um género de canção popular urbana desenvolvido em Lisboa a partir do segundo terço do séc. XIX.” (EMPSXX, 2010: 433). Na mesma página, esse verbete alerta para o fato de que “o estudo científico deste género está ainda hoje, em grande parte, por fazer”. Em seguida à definição do fado, há uma enumeração de vários aspectos possíveis apresentados como causa para que o gênero não tenha sido investigado com a devida profundidade:

O estigma de marginalidade social que esteve durante muito tempo associado à sua prática e a consequente relutância do meio acadêmico institucional em abordar este tema; a emergência recente de estudos antropológicos e etnomusicológicos de práticas musicais em contextos urbanos em Portugal e a preferência que estes demonstraram pela abordagem das tradições musicais rurais em desfavor das práticas urbanas; a instrumentalização política do fado por sectores do regime salazarista, suscitando reacções de hostilidade por parte dos círculos intelectuais oposicionistas; a própria resistência do meio socioprofissional fadista a qualquer intervenção analítica ou historiográfica exterior ao seu circuito interno. (EMPSXX, 2010: 433-434).

Uma fonte importante de referência do fado português no século XIX é o

Cancioneiro de Músicas Populares, o primeiro cancioneiro editado em Portugal que registrou em notação musical algumas obras que são indicadas como fado quanto ao gênero musical. A coleção foi organizada por Cesar das Neves, editada no Porto em três volumes sob a coordenação poética de Gualdino de Campos e prefácio de

Teóphilo Braga, contendo letras e músicas em notação musical para canto e piano. Os exemplares reúnem canções populares diversas, como fados, modinhas, lundus, serenatas, chulas, descantes, romances, entre outros gêneros. O volume I foi organizado em 1893, o volume II em 1895 e o volume III em 1898, apresentando músicas de gêneros variados. Nesse cancioneiro, podemos observar uma organização gráfica e didática que, além de indicar as partituras de piano com letra, contém um prefácio e uma introdução comentada com exemplos notados acerca da música popular portuguesa. Os fados registrados são todos de origem portuguesa e se enquadram na estética do fado castiço, como veremos adiante.

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Selecionamos para análise duas obras inseridas nesse cancioneiro, “o Fado da

Severa” e o “Fado de Vimioso”. O “Fado da Severa” está notado na tonalidade de lá menor em uma única parte de 15 compassos, que serve de base para nove estrofes de verso. A harmonia obedece ao padrão tônica-dominante, e há uma indicação de andamento no início da partitura que sugere o Allegretto como referência. O acompanhamento indicado para a mão esquerda se organiza com arpejos dos acordes de tônica e dominante, estruturados sobre a divisão rítmica de quatro colcheias por compasso. A letra faz referência ao aniversário de morte da fadista Severa, e conta a história aos ouvintes na primeira estrofe. O “Fado da Severa” traz uma nota explicativa relativa ao ritmo, ao movimento e ao estilo de interpretação do fado. Tal informação salienta que esse tipo de fado foi feito para ser ouvido e não para ser dançado. Podemos considerar a hipótese de que a citação se refere ao momento histórico em que surge em Portugal o fado que deixa de ser dançado para assumir a forma de “canção”, verificando-se uma alteração na estrutura rítmica da dança, o que leva a obra a adquirir um caráter de lamento:

Este fado, que data dos meados do presente século, é o typo primordial dos fados populares lamentosos, mais para ser ouvido como romance do que para ser dançado, pois lhe falta o rythmo e movimento característico. A lettra foi recolhida pelo Exmo. Snr. Dr. Theophilo Braga. A lenda principiana neste fado completa-se no de Vimioso. O “Fado de Vimioso” organizado em dezoito estrofes, complementa a tragédia descrita no “Fado da Severa”. O “Fado de Vimioso” é notado na tonalidade de lá menor, e sua harmonia obedece ao encadeamento das funções tônica – dominante. A estrutura formal desse fado é composta em uma única parte, dividida em duas seções: a primeira, com doze compassos, servindo de base para as estrofes do tema, e a segunda, com oito compassos, em forma de arpejos instrumentais dos acordes, atuando como ponte de retorno às estrofes. O andamento indicado é o Andantino, e o

69 acompanhamento está estruturado no arpejo dos acordes de tônica e dominante, reunindo dois grupos de quatro semicolcheias em cada compasso. As quadras apresentam nas primeiras oito estrofes a exaltação à figura de Severa por parte do

Conde de Vimioso, e em seguida, um profundo lamento ao relembrar a sua morte.

Mas que digo! Oh desgraçado!

Que delírio é este meu?!

Como vir ao meu reclame

A Severa que já morreu. Todos os demais fados relacionados nos três volumes do cancioneiro português obedecem geralmente aos princípios básicos de estruturação apontados nos dois exemplos ora examinados.

O terceiro volume do Cancioneiro de Cesar das Neves apresenta alguns exemplos de fados recolhidos por volta de 1850, os quais mantêm ritmos sincopados e sugerem a raiz afro-brasileira. Esses fados são indicados em andamentos mais lentos e contêm indicações de rubato e fermatas, elementos que não faziam parte da estrutura do fado. Essas transformações sutis foram ampliadas por influência da canção popular portuguesa, estruturando o fado castiço:

Esta tendência sugere, assim, que a matriz do fado dançado dos negros brasileiros se terá entretanto fundido com outras tradições poético-musicais populares autóctones de carácter mais dolente, quer próprias da região de Lisboa quer originárias de outras regiões do país onde se verificaram movimentos migratórios significativos para a capital para dar progressivamente origem àquilo que passou a constituir o fado de Lisboa propriamente dito. (EMPSXX, 2010: 435).

O ingresso do fado no teatro musicado em Portugal se intensificou durante a década de 1920, com destaque para as Operetas Mouraria (1926), Bairro Alto (1927) e

História do fado (1931), sendo esta canção executada por fadistas profissionais como

Ercília Costa ou Hermínia Silva. “Será neste contexto teatral, em particular, por influência dos demais gêneros urbanos utilizados nos palcos, que tenderá a

70 desenvolver-se o novo gênero do ‘fado-canção’, já com alternância entre coplas e refrão”. (EMPSXX, 2010: 438). Assim,

[...] por todas essas razões, é que o processo de evolução do gênero em Portugal ao longo do séc. XIX é profundamente dinâmico, e se caracteriza, logo desde as suas origens, por novas sínteses constantes, com o fado a registar a cada momento mudanças estéticas significativas à medida que o seu próprio âmbito social se vai alargando e faz interferir na sua prática grupos sociais com perfis distintos. (EMPSXX, 2010: 435-436).

O que podemos afirmar é que, na primeira metade do século XIX, o fado- canção já era encontrado em Portugal como canção popular de caráter urbano, e no mesmo período a modinha e o lundu de salão se fixavam no Brasil como gênero musical urbano.

A emigração de portugueses esteve sempre presente na história de Portugal, sendo que o fluxo migratório se acentuou no fim do século XIX e durante o terceiro quarto do século XX. Até a primeira metade do século XIX, o governo do Brasil imperial expressava um interesse moderado em promover a imigração estrangeira, pois contava com o trabalho escravo. Entretanto, com a perspectiva do fechamento do tráfico negreiro no Atlântico, o governo brasileiro começou a considerar a possibilidade de utilizar mão-de-obra do imigrante europeu nas plantações de café, assim, é iniciada uma política de imigração subsidiada que, às vésperas da abolição da escravatura (1888), objetivava trazer trabalhadores livres do exterior a fim de substituírem os escravos.

O avanço numérico da imigração estrangeira para o Brasil pode ser avaliado através de dados reunidos para o período entre 1880 e 1900. Esses indicadores apontam a entrada de quase 1.700.000 mil imigrantes oficialmente registrados. Destes,

59% eram italianos, 20% eram portugueses e 12% eram espanhóis (SCOTT, 2001: 5).

Entre 1900 e 1945, o Brasil registrou o ingresso de 971.531 imigrantes portugueses

(LOBO, 1994).

71

Ao fazermos referência à imigração portuguesa, evidenciamos a separação física do homem português diante dos valores sócio-culturais que o ligavam a sua terra natal, e tal sensação pode ser traduzida pelo sentimento inerente ao povo lusitano: a saudade. Mas a saudade portuguesa possui peculiaridades que fogem à tragicidade ou

à nostalgia de outros povos, como observado por Lourenço (1999):

Contrariamente à lenda, o povo português, ferido como tantos outros por tragédias reais na sua vida coletiva, não é um povo trágico. Está aquém ou além da tragédia. A sua maneira espontânea de se voltar para o passado em geral, e para o seu em particular, não é nostálgica e ainda menos melancólica. É simplesmente saudosa, enraizada com uma tal intensidade no que ama, quer dizer, no que é, que um olhar para o passado no que isso supõe de verdadeiro afastamento de si, uma adesão afetiva ao presente como sua condição é mais da ordem do sonho que do real. É esse lugar de sonho, esse lugar ao abrigo do sonho, esse passado-presente, que a “alma portuguesa” não quer abandonar. (LOURENÇO, 1999: 14).

O tema do amor em relação à pátria é espelhado em canções e fados, em que os fadistas tentam recuperar o passado através da memória, trazendo ao presente essa “alma portuguesa”. Nesse sentido, o fado passa a ser uma representação do presente- passado português.

2.2 Símbolos de construção e sustentação do fado português

As letras dos fados portugueses descrevem muitos símbolos e mitos da terra lusitana e reúnem alguns motivos constantes que se agrupam sobre um eixo que dá unidade ao discurso musical, e dentre estes temas, é comum a referência à cidade de

Lisboa e aos seus bairros como Alfama, Moraria, Bairro Alto e Bica. A “casa da

Mariquinhas” é outra recorrência textual, assim como a lenda de Maria Severa, para além das touradas e os motivos religiosos portugueses. A temática fadista que evoca a história de Maria Severa e do Conde de Vimioso simboliza a essência do fado português em seu reduto marginal. Maria Severa foi cortesã, guitarrista e cantora de fados, era amante do Conde de Vimioso, e faleceu prematuramente em 1846 aos 26

72 anos de idade, representando assim a alma do universo boêmio, marginal e libertário dos primeiros fadistas.

Na transição para o séc. XX, o fado pratica-se ainda, fundamentalmente, em Lisboa, nos diversos espaços de sociabilidade popular da capital, em particular nas tabernas dos bairros mais pobres (Alcântara, Madragoa, Bica, Bairro Alto, Mouraria e Alfama) e nos chamados “retiros”, um circuito de casas de pasto da periferia imediata da capital, onde uma população de extracção proletária urbana (operários, artesãos, trabalhadores portuários, marinheiros, etc.) se cruza com sectores assumidamente marginais ligados à prostituição, ao contrabando e à pequena criminalidade urbana, bem como com as esferas secantes da tauromaquia e da boémia aristocrática e intelectual. (EMPSXX, 2010: 436).

No “Fado de Severa”, composto por Sousa do Casacão em 1847, podemos observar o culto ao mito da fadista, imortalizado posteriormente no quadro O Fado do pintor José Malhoa (Figura 1):

Chorai, fadistas, chorai que uma fadista morreu, hoje mesmo faz um ano que a Severa faleceu.

Morreu, já faz hoje um ano, das fadistas a rainha, com ela o fado perdeu o gosto que o fado tinha. (“Fado de Severa”, Sousa do Casacão, 1847)

73

Figura 1: MALHOA, José. O Fado, 1910. Óleo s/tela, 1,51x1,86 cm. Disponível em: Acesso em: 20/06/2008.

Outro mito corrente diz respeito à cidade de Lisboa e seus bairros mais populares, como Mouraria, Alfama, Madragoa, Bairro Alto e Bica, sendo a Mouraria talvez o mais cantado entre os fadistas, talvez por abrigar à vez a residência de Severa e a Casa da Mariquinhas, um lupanar popular da cidade. Podemos observar esta temática recorrente no fragmento do fado “Bairros de Lisboa”, de Carlos Conde e

Alfredo Marceneiro:

Vamos ambos pela mão De duas rimas de fado Aos bairros de tradição Na bohemia do passado

Não quero entrar em despique Mas se o quisesse fazer Seria o Campo de Ourique O primeiro a enaltecer.

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Mas o bairro de mais fama Todo fadista e marujo É a linda e velha Alfama Do Norberto de Araújo.

Lembro mais a nostalgia Embora no mesmo agrado De um resto de Mouraria Que inda tem sabor a fado. (…)

(“Bairros de Lisboa”, Carlos Conde e Alfredo Marceneiro)

As touradas também traduzem parte do espírito boêmio fadista, sendo um tema constante nas letras desta canção lusitana, pois sempre tiveram uma constante ligação: durantes as corridas, o povo exaltava os toureiros através de letras acompanhadas pela música do fado. Por fim, os vendedores de rua com seus pregões, o Tejo, bem como outros personagens populares, participam da temática fadista, retratando em verso os hábitos e costumes do povo lisbonense.

A guitarra portuguesa é um instrumento que se associa ao fado por integrar o conjunto que acompanha os cantores, mas regularmente é utilizada como símbolo ilustrativo de cartazes publicitários ou como peça decorativa nas casas de fado. A vestimenta característica é outro traço de identificação para o fadista, cabendo o traje social negro (fato) para os homens e o xale na mesma cor para as mulheres. O ambiente adequado para a apresentação do fado nas casas típicas gerou uma simbologia própria, que envolve o espectador e sua postura de respeito ao intérprete que diz: “silêncio que se vai cantar o fado!”, os garçons, que servem no salão de acordo com o desenvolvimento do espetáculo, e o artista, com gestos e expressões (por vezes exageradas), que exprimem o sentimento de ausência peculiar ao gênero musical.

Quando se começa a cantar as luzes diminuem de intensidade, impõe-se silêncio absoluto (‘Silêncio que se vai cantar o fado!’ é a fórmula que frequentemente se lê em inscrições nas paredes ou se ouve na voz de um eventual apresentador) e cessa por momentos qualquer serviço de

75

restaurante ou de bar (‘Não sirvam! Não sirvam!’, ouve-se Amália recomendar insistentemente, numa gravação ao vivo de 1955, aos criados de mesa do Café Luso quando vai iniciar uma das suas actuações). (EMPSXX, 2010: 445). O sociólogo Pierre Bourdieu, em sua obra intitulada O poder simbólico (2000), elabora o conceito de campo, o qual apresenta uma análise sobre a ação dos sujeitos dentro do campo cultural, espaço em que se desenvolvem as relações entre os indivíduos ou instituições. A relação de poder que ocorre no interior do campo cultural posiciona os objetos utilizados por seus produtores como meios estratégicos para se atingir o poder, e a identificação dos sujeitos no campo pode ser individual ou coletiva. Assim, o campo representa um espaço de conflitos e de concorrência, onde é travada uma luta pelo estabelecimento do controle do capital que domina este campo.

Bourdieu reflete sobre dois estados de ação da história, o estado objetivado e o estado incorporado. O primeiro estado, objetivado, diz respeito à história que se conserva no decorrer do tempo em bens materiais como edifícios, monumentos, livros, obras de arte, máquinas, equipamentos, bem como em bens imateriais, como teorias científicas, direitos adquiridos, uma obra musical. O segundo estado é o incorporado e se aproxima do conceito de habitus, que compreende um conjunto de ações que permite desenvolver ou mesmo conceber estratégias individuais ou coletivas. Podemos tomar como exemplo a prática musical de uma cantora de fados que se veste de negro e se adorna com seu xale da mesma cor; interpreta a canção inclinando a cabeça para trás e emprega gestos manuais que reproduzem um padrão constante em sua rede social, obedecendo a uma lei imanente que pode validar sua prática social ou cultural.

“É uma relação de pertença e de posse na qual o corpo apropriado pela história se apropria, de maneira absoluta e imediata, das coisas habitadas por essa história”.

(BOURDIEU, 2000: 83).

76

Percebemos que esses símbolos foram reproduzidos na organização do fado no

Rio de Janeiro, e sua prática sócio-cultural é relatada e discutida no capítulo 3 desta tese.

2.3 O fado como gênero musical: o fado castiço e o fado-canção

Quanto à classificação do gênero, são considerados duas categorias básicas, o fado castiço (conhecido como fado clássico, fado-fado ou fado tradicional, considerado o mais antigo e autêntico dos fados) e o fado-canção. O primeiro abarca três modalidades diferentes de fado: o fado “Corrido”, o fado “Mouraria” e o fado

“Menor”. Esses fados obedecem a um esquema rítmico e harmônico fixo, baseado na relação harmônica I-V, de modo que os dois primeiros estilos são construídos sobre o modo maior e o terceiro sobre o modo menor. Segundo Salwa Castelo-Branco (1994):

Utilizando estes padrões como base, a melodia é improvisada ou composta com várias letras numa das estruturas poéticas mais comuns, tais como quadras, quintilhas, sextilhas ou décimas. O padrão de acompanhamento, o esquema harmônico I-V e a métrica regular de 4/4 são os elementos identificadores destes fados e são fixos. Todos os outros estilos podem variar. (CASTELO-BRANCO, 1994: 134). O artigo citado indica, em notação musical, exemplos de alguns padrões de acompanhamento dos três estilos do fado castiço, além de fazer referência ao fado- canção, caracterizado por apresentar uma “estrutura poética e musical em que alternam estrofes e refrão”. (CASTELO-BRANCO, 1994: 136). No fado-canção a melodia é fixa, a improvisação vocal é limitada e a harmonia mais complexa, se compararmos esses elementos aos característicos do fado castiço.

O fado “O leilão da Mariquinhas” é apresentado como exemplo de fado

Corrido em uma gravação dos fadistas Fernando Maurício e Francisco Martinho, com letra de Linhares Barbosa. A letra original desse fado é de Silva Tavares, com o título

“Casa da Mariquinhas”, assim, é comum entre os fadistas criar letras novas para as

77 melodias populares dos fados. Essa versão foi também gravada por Alfredo

Marceneiro.

“O leilão da Mariquinhas”

Ninguém sabe dizer nada

da famosa Mariquinhas

A casa foi leiloada

venderam-lhe as tabuinhas

Ainda fresca e com gagé

encontrei na Mouraria

a antiga Rosa Maria

e o Chico do Cachené

Fui-lhes falar, já se vê

e perguntei-lhes, de entrada

p'la Mariquinhas coitada?

Respondeu-me o Chico: e vê-la

tenho querido saber dela

ninguém sabe dizer nada.

E as outras suas amigas?

A Clotilde, a Júlia, a Alda

a Inês, a Berta e Mafalda?

e as outras mais raparigas?

Aprendiam-lhe as cantigas

as mais ternas, coitadinhas

formosas como andorinhas

olhos e peitos em brasa

que pena tenho da casa

da formosa Mariquinhas

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Então o Chico apertado

com perguntas, explicou-se

a vizinhança zangou-se

Fez um abaixo assinado,

diziam que havia fado

ali até madrugada

e a pobre foi intimada,

a sair, foi posta fora

e por more duma penhora

a casa foi leiloada.

O Chico foi ao leilão

arrematou a guitarra

o espelho a colcha com barra

o cofre forte e o fogão,

como não houve gambão

porque eram coisas mesquinhas

trouxe um par de chinelinhas

o alvará e as bambinelas

e até das próprias janelas

venderam-lhe as tabuinhas.

Uma análise do exemplo musical 6 apresenta a estrutura formal de um fado

Corrido construído na tonalidade de sol maior sobre acordes de tônica e dominante. Na introdução, a guitarra portuguesa apresenta os seus arpejos característicos desse tipo de fado, que irão percorrer toda a obra como um contracanto à voz. O violão emprega um acompanhamento padrão, alternando a fundamental e a quinta do acorde em sua condução. O compasso é binário simples e o andamento, rápido, fixado em 142 bpm.

79

Os cantores entremeiam o canto cuja narrativa revela o arremate do espólio dos pertences da personagem Mariquinha.

Exemplo musical 6. Fragmento do fado Corrido “O leilão da Mariquinhas”, de João Linhares Barbosa e Alfredo Marceneiro. Interpretação de Fernando Maurício e Francisco Martinho em disco do selo FF, EAN 30103, 1 LP, faixa 1A, 1980. Transcrição de Alberto Boscarino.

80

Um segundo fado castiço é denominado de fado Menor. Além do modo da tonalidade (menor) indicado por esse gênero de fado, outra característica distintiva é o seu andamento em tempo lento. O exemplo musical 7 indica o andamento de 40 bpm em um compasso binário simples. A estrutura harmônica da obra se baseia na relação tônica menor – dominante. A guitarra portuguesa dialoga com o violão com melodias e arpejos construídos sobre essa harmonia, e o violão, além de manter o ritmo padrão de acompanhamento, acrescenta uma linha melódica cantabile de condução ao baixo, valendo-se da liberdade oferecida pelo andamento vagaroso.

Exemplo musical 7. Fragmento do “Fado Menor”, de Linhares Barbosa e Santos Moreira. Interpretação de Amália Rodrigues em Disco Columbia VC, 1962. EP 45 rpm. Transcrição de Alberto Boscarino.

81

O fado Mouraria é composto em tonalidade maior entre os andamentos andante e moderato, e sua estrutura harmônica se sustenta sobre as funções de tônica e dominante. O exemplo musical 8 foi transcrito pelo musicólogo e coronel de artilharia português José Lúcio Ribeiro de Almeida, que mantém uma página na Internet27 dedicada aos cordofones portugueses, à sua construção e ao aprendizado. O andamento indicado é de 100 bpm, e a guitarra portuguesa apresenta um desenho padrão para o acompanhamento desse tipo de fado. Outra característica indicada pode ser observada no desfecho da obra, com a cadência final realizando o movimento de dominante – tônica.

Exemplo musical 8. “Fado Mouraria”. Tradicional. Transcrição de José Lúcio Ribeiro de Almeida. Disponível em: Acesso em: 12 jan. 2011.

27 Disponível em: Acesso em: 12 jan. 2011.

82

Os fados castiços mantêm essas estruturas formais sobre melodias novas ou acrescenta outras letras que serão interpretadas pelos cantores de fado, sendo necessário ao fadista indicar para o músico a tonalidade e o tipo de fado que deseja cantar.

A consolidação do fado canção como gênero musical pode ser observada em duas fases distintas. Na primeira, a partir dos anos 1920, esse estilo de canção popular passa a ser um elemento constante e fundamental dentro do teatro de revista português

(apesar de participar desse contexto desde a década de 1880) e, na segunda fase, a partir da década de 1960, tomando como base as composições realizadas por Alain

Oulman para a interpretação da fadista Amália Rodrigues.

Em um artigo intitulado Fado: um gênero musical, Marcos Júlio Sergl (2008) resume a trajetória do fado como canção popular portuguesa, abordando aspectos como a voz do intérprete, o acompanhamento e a estrutura formal dos fados. O autor expõe uma visão sobre a matriz do fado-canção, associando a sua transformação a partir do formato castiço como consequência de uma adaptação necessária ao teatro de revista. De acordo com Sergl (2008):

Os autores de revistas privilegiam a forma de alternância entre refrão e estrofes, característica da canção teatral, em detrimento das formas castiças do fado. As melodias, justapondo tonalidades maiores e menores, são mais elaboradas e são geralmente associadas a um texto fixo. O refrão deve ser composto com um desenho melódico cativante, fácil e capaz de ser reproduzido imediatamente pelo público. O retorno ao fim de cada estrofe sem preparo para o refrão, implica em coerência interna do texto, que rompe com a dinâmica de improvisação fundada sobre o caráter repetitivo da estrutura musical. Letra e música são indissociáveis pela característica narrativa do texto, que exige melodias próprias para seu discurso. Assim surge o fado-canção moderno, que vai ser adotado como parte fundamental do repertório de grandes fadistas, em particular de Amália Rodrigues. (SERGL, 2008: 164).

83

O fado-canção “Gaivota” é uma composição de Alexandre O'Neill e Alain

Oulman, e assinala a modernidade no fado através de sua letra, construída entre a temática fadista do mar português e da liberdade. A melodia, harmonização e arranjo conferem também à canção um ar contemporâneo, equiparando a música portuguesa da década de 1960 a outras músicas modernas como o tango de Piazzola, o jazz norte- americano ou a bossa-nova brasileira. A poesia de “Gaivota” é assim declamada:

“Gaivota” Alexandre O'Neill e Alain Oulman

Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa no desenho que fizesse, nesse céu onde o olhar é uma asa que não voa, esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro, dos sete mares andarilho, fosse quem sabe o primeiro a contar-me o que inventasse, se um olhar de novo brilho no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração, etc..

Se ao dizer adeus à vida as aves todas do céu, me dessem na despedida o teu olhar derradeiro, esse olhar que era só teu, amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração, etc.

84

A transcrição de um trecho dessa música é apresentada no exemplo musical 9, indicando um andamento em torno de 100 bpm e instrumentação típica, constituída do acompanhamento da guitarra portuguesa e do violão. O início da obra se dá em tempo rubato, e o autor utiliza a aproximação cromática do acorde dominante para criar um efeito de suspensão e mistério na introdução. O diálogo da guitarra com a voz se dá de forma mais contrapontística, deixando de adotar clichês e padrões harmônicos estabelecidos pelo fado castiço. A obra se estrutura sobre um compasso quaternário simples.

85

Exemplo musical 9. Fragmento do fado-canção “Gaivota”, de Alexandre O'Neill e Alain Oulman. Gravação de Amália Rodrigues no disco “Fado corrido”, EP 45 rpm, Columbia VC, 1964. Transcrição de Alberto Boscarino.

A estrutura do fado castiço e do fado-canção foi reproduzida no Brasil pelos fadistas aqui radicados, e adotada em regravações do gênero ou em composições novas, sendo mantida a inflexão da linha melódica, a composição formal, a construção harmônica, o andamento e as temáticas que inspiram as letras. Entretanto, algumas

86 obras novas foram criadas no Brasil a partir da combinação de outros gêneros musicais com o fado, como o fado-marcha, o fado-fox, o fado-baião e o fado-samba, concedendo autenticidade a autores e intérpretes. Além disso, combinações instrumentais diversas inerentes ao universo do fado foram empregadas nos arranjos, buscando uma aproximação de padrões culturais diferentes. Alguns desses exemplos podem ser observados no capítulo 3, em que discutiremos aspectos relativos ao mundo artístico português situado na cidade do Rio de Janeiro, incluindo a análise de repertório, público e intérpretes, além de outros temas relacionados ao fado no Rio de

Janeiro.

2.4 A interpretação vocal do fado

A interpretação singular do cantor de fados vem unificar o discurso do fadista em sua rede social, classificando cada fadista em relação aos demais artistas em uma hierarquia de valores característicos do gênero. É comum ouvir-se dos espectadores:

“este fadista canta bem o fado menor; àquele, prefiro ouvir as desgarradas28; não gosto da interpretação do fado canção dessa cantora!”. Cabe notar que a interpretação do fado (como é comum em outros gêneros populares) se aprende através da oralidade, sendo desenvolvida em práticas culturais comuns ao povo português.

A voz típica do fadista de Lisboa costuma ser suave e rouca, e sua emissão é projetada para uma ressonância de cabeça. O intérprete lança mão de ornamentos, trinados, glissandos, melismas, utilizando um sistema próprio de afinação que possibilita uma improvisação sobre quartos de tom, “aspecto que distancia o fado do

28 Cantar ao estilo da “Desgarrada”, ou cantar “à Desgarrada”, modalidade alegre ou humorística do fado que conta uma história com ironia, sendo interpretada como um desafio entre dois intérpretes. Na maioria das vezes, os versos são improvisados.

87 campo da música exclusivamente tonal”. (SERGL, 2008: 165). A voz do intérprete pode oscilar de andamento, acelerar ou ralentar o ritmo durante uma obra, enquanto o conjunto mantém um andamento constante, criando um clima de expectativa para o ouvinte. A conclusão da obra é padrão para quase todos os fados, com uma suspensão realizada pelo intérprete na última estrofe. Nesse momento, o conjunto silencia, aguardando a retomada do intérprete, que encerra a canção com entonação determinada; o cantor é acompanhado de um crescendo executado pela guitarra e pelo violão. A performance do fadista é constituída de um conjunto de convenções organizado a partir da década de 1920:

Uma grande parte das convenções interpretativas que regem ainda hoje as práticas do fado tem a sua origem no período de institucionalização e regulamentação dos anos de 1920 e 1930, sob o condicionamento simultâneo do processo de profissionalização dos intérpretes, da implantação do sistema das casas de fado, da censura estatal às letras e da formatação imposta pelo disco e pela rádio. (EMPSXX, 2010: 444).

O artigo escrito por Salwa Castelo-Branco em colaboração com Ruy Vieira

Nery, intitulado Vozes e guitarras na prática interpretativa do fado (CASTELO-

BRANCO, 1994), discute a forma de interpretação do gênero. A autora expõe o universo existente entre intérprete e ouvinte, que se expande para além dos parâmetros musicais básicos de melodia, harmonia e ritmo, a fim de destacar a importância da expressão corporal na percepção da obra. De acordo com Castelo-Branco, “o fado é um gênero performativo que envolve intérpretes e públicos num processo comunicativo, utilizando formas expressivas verbais, musicais, faciais e corporais”

(CASTELO-BRANCO, 1994: 125).

A interpretação do artista/fadista pode ser observada através da temporalidade do próprio fado, em virtude da presença ou da ausência de luz nos ambientes de

88 apresentação do fado, como se houvesse uma “dissolução da consciência do tempo”, ou até mesmo uma “perda de seu controle”. Segundo Pais de Brito (1994):

De certo modo, ele existe hoje, mantém-se enquanto categoria que escapou ao tempo. Ao contrário do teatro, que tem ciclos – a Revista daquele ano ou do outro, as estréias ou as reposições – o fado não produz cronologia interna e só existe como qualquer coisa que venceu o tempo ou lhe escapou. Uma ‘imortalidade’ feita de estereótipos que poderemos designar por tradição inventada. Esta atemporalidade é reforçada pelo modo de produção nocturna do fado. A noite, sendo um tempo de ruptura, configurando a transgressão e a libertação em relação ao trabalho e a uma complexa e instituída rede de relações sociais que têm uma existência diurna, transporta consigo, pela ausência de rigidez de horários e pela própria inalterabilidade do envolvimento em penumbra, uma dissolução da consciência do tempo, uma perda do seu controle. Na casa de fados, a partir dos anos 30, espelham-se em simultâneo a evocação de um passado fundador, que constitui o fado em tradição – pela iluminação com velas, alguns elementos decorativos evocando as touradas ou aspectos dos bairros da cidade –, e um registo fora do tempo que o canto de alguma forma capturou nos módulos codificados da sua emissão. (BRITO, 1994: 34-35).

A performance do cantor de fados compreende um conjunto de práticas que ultrapassa o limite da técnica vocal. O artista agrega gestos e fatores do ambiente

(decoração típica, pouca iluminação) à sua interpretação, procurando reforçar a expressão do gênero musical e efetivar uma comunicação adequada entre os agentes da ação (cantores/músicos) e a sociedade a eles relacionada. A prática interpretativa do fadista no Brasil pode ser compreendida através do conceito de habitus de Bourdieu

(2000), exemplificada nos relatos inseridos no capítulo 3 de nossa pesquisa.

89

Figura 2. Fadistas em Lisboa. Disponível em: Acesso em: 14 Jan. 2011

2.5 Instrumentação e acompanhamento do fado

O acompanhamento instrumental do gênero torna-se uma temática importante em discussão por levar em conta os instrumentos tradicionais, as novas formações instrumentais, a formação técnica dos músicos e a hierarquia existente entre esses músicos na organização do acompanhamento harmônico e melódico do fado. O

90 acompanhamento padrão é estruturado com base em uma guitarra portuguesa e uma viola acústica (similar ao violão brasileiro), e é comum encontrarmos uma segunda guitarra e/ou uma viola-baixo (no Brasil conhecido como violão-baixo). A viola portuguesa mantém uma correspondência com o violão brasileiro, e a afinação é disposta a partir das cordas primas com as notas mi, si, sol, ré, lá, mi. A guitarra portuguesa é constituída de pares de cordas dobradas e oitavadas, e sua afinação tradicional mais utilizada é conhecida como “afinação do fado”, possuindo a seguinte sequência:

Exemplo musical 10: Guitarra portuguesa: afinação tradicional do fado (afinação do fado). Fonte: CASTELO-BRANCO, Salwa El-Shawan. Vozes e guitarras na prática interpretativa do fado. In: Fado: vozes e sombras. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia-Electa-Instituto Camões, 1994, p.132.

A ordem da disposição das cordas da viola-baixo é indicada no exemplo musical 11, e possui a mesma afinação do contrabaixo tradicional.

Exemplo musical 11: Viola-baixo: afinação.

A liderança do conjunto acompanhador dos fados é exercida geralmente pelo primeiro guitarrista e, por vezes, pelo violeiro, caso este goze de muita experiência, determinando assim uma hierarquia para a organização da base instrumental necessária para a interpretação do gênero. A viola fica responsável pela sustentação do

91 ritmo e da harmonia; a viola-baixo, como o próprio nome indica, sustenta o caminho harmônico dos baixos; a guitarra é a grande expressão instrumental do fado e se apresenta como uma espécie de coadjuvante do intérprete vocal, complementando a ambientação melancólica da música através de arpejos, trinados e solos intercalados ao canto dos fadistas. O exemplo musical 12 apresenta um modelo do acompanhamento característico da guitarra portuguesa e da viola sobre o fragmento de um fado do compositor Artur Ribeiro. A transcrição foi realizada por José Lúcio Ribeiro de

Almeida, e o acompanhamento da viola registra o ritmo padrão adotado para os demais fados.

Exemplo musical 12. Fragmento de “Rosinha dos Limões”. Fado de Artur Ribeiro. Transcrição de José Lúcio Ribeiro de Almeida. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2011.

2.6 As casas de fado em Lisboa

Conforme Pais de Brito (1994) e Carvalho (1982), o fado, em sua fase inicial de constituição como gênero musical popular, compreende, em suas duas primeiras etapas (entre 1830 e 1890), a formação, a acomodação e a aceitação do gênero na sociedade lisbonense. Nesse período, a prática do fado esteve associada aos espaços frequentados por tipos de pessoas consideradas à margem da sociedade, como

92 tabernas, ruas, prostíbulos e praças de touro. Durante as últimas décadas do século

XIX, o fado ampliou a sua prática para os salões aristocráticos, mas essa música continua sendo difundida nos espaços marginais de forma genuína sem qualquer preocupação com a imagem ou idealização moral.

Essa questão moral gerou críticas de diversos segmentos da sociedade, inclusive de intelectuais que não reconheciam no fado uma música digna de representação da cultura portuguesa, como Eça de Queiroz. O memorialista Pinto de

Carvalho (1982) descreve o ponto de vista do escritor em relação ao fado:

Eça de Queiroz, criticando o fado, os bairros pífios de Lisboa, e o faditismo, escreveu: ‘Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou? O Fado... Fatum era um deus no Olimpo; nestes bairros é uma comédia. Tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros. Está mobilada com uma enxerga [colchão grosseiro]. A cena é no hospital e na enxovia [masmorra]. O pano de fundo é uma mortalha.’ (CARVALHO, 1982: 53).

Desde o seu aparecimento em Lisboa, o fado atraiu um grupo de detratores que, em um surto de moralização, pretendiam erradicá-lo do seio da sociedade portuguesa por considerá-lo como uma chaga social. Mas havia aqueles que trabalhavam na defesa do gênero musical como parte integrante da cultura portuguesa, como o escritor Julio Dantas que, rebatendo os ataques proferidos à música do fado, declarou: “uma canção não faz degenerados; os degenerados é que podem ter uma predileção por esta ou aquela canção”. 29

O debate acerca da essência moral do fado pode ter definido esse gênero musical como expressão cultural cujos sentimentos são atemporais, em uma associação do cotidiano laboral árduo do indivíduo e da canção do marinheiro saudoso

29 DANTAS, Julio. In: A canção do Sul, Ano 1, número 7, 13 mai. 1923.

93 de sua terra. O jornal A Canção do Sul30 publicou artigos que buscaram defender o fado de seus opositores, elevando sua condição moral entre a sociedade e possibilitando que essa música pudesse ser cantada em ambientes familiares por mulheres e crianças. É durante a década de 1930 que o fado caminha para um sentido de organização profissional, pois transforma artistas marginais em profissionais e procede à abertura dos espaços legítimos de difusão e contemplação dessa música, as casas de fado. Nesse momento, o fado já não é apenas um gênero musical, mas uma forma concreta de exprimir a razão cultural do povo português.

É nesta altura que a tendência para a profissionalização e para a transformação do fado em espetáculo comercial é acompanhada por um grande impulso na abertura de casas que se especializam na sua apresentação. Estas, procurando atingir um público vasto, de modo a rentabilizarem-se, vão configurar-se em função de uma burguesia que, desde os anos 20, transformara os cafés e clubes no centro da sua atenção, desenvolvendo o gosto pelos espaços boémios, pelas danças e músicas modernas. (KLEIN; ALVES, 1994: 40). A partir dessa conformação, o fado passa a se desvincular do estigma da marginalidade para ingressar em outra dimensão, no âmbito de música portuguesa, presente nos lares, nas ruas e nos salões aristocráticos. Essa mudança de ótica em relação a esse gênero promove uma reconfiguração do fado, percebida através da decoração característica das casas de fado, que passaram a ser ornamentadas com os símbolos populares e próprios de Lisboa; signos de caráter marítimo, símbolos camponeses do catolicismo popular, além da alusão às festas de Santo Antonio, aos vasos de cravo e ao galo de Barcelos. Mesclados a esses, são utilizados elementos da simbologia fadista, como a guitarra portuguesa, fotos de fadistas ilustres como

Hermínia Silva e Marceneiro, xales negros dependurados, lanternas vermelhas e uma

30 O Jornal A Canção do Sul foi editado entre 1923 e 1949 em Lisboa. É uma publicação dedicada ao fado, que trazia biografias, letras de músicas, além de outras informações. Houve outros jornais em Portugal que mantiveram esse mesmo tipo de matéria, como a Guitarra de Portugal (1922-1947) e A voz de Portugal (1954-1959). Um resumo sobre estas edições pode ser observado no artigo intitulado “O fadista enquanto artista”, de Rita Jerônimo e Teresa Fradique. In Fado: vozes e sombras. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia-Electa-Instituto Camões, 1994, p. 92-105.

94 reprodução do quadro Fado do pintor Malhoa. Portanto, o fado se torna a representação da alma nacional, dando margem à expressão da nostalgia e à transformação do fado em tradição. A interpretação dos fados e a organização do repertório dos artistas obedecem a uma ordem específica, que determina qual o cantor que deve se apresentar e a hora de fazê-lo:

Na generalidade das ‘casas típicas’, a execução é organizada por blocos inseridos ao longo do serão, que vão alternando com serviços de restaurante, actuando em cada um deles três ou quatro fadistas cuja ordem de apresentação tende a fazer-se pelo menos experiente e terminando no de maior prestígio. Cada fadista canta três ou quatro fados, o que dá a cada bloco uma duração aproximada de quinze a vinte minutos. Num elenco que conte com uma figura particularmente destacada, esta pode não actuar logo nos primeiros blocos da noite, do mesmo modo que, quando há nele um guitarrista de especial reputação, um ou mais blocos podem incluir igualmente uma peça exclusivamente instrumental, a chamada ‘guitarrada’. (EMPSXX, 2010: 445). No final da década de 1940, as casas de fado passam a se organizar como restaurantes típicos, e tendem a consolidar um tipo de espetáculo que colabora com a afirmação da identidade cultural portuguesa em Portugal ou em qualquer outro espaço de divulgação do fado. O termo típico caracteriza a tradição nas casas de fado, impondo um critério de estabilidade do gênero (musical e social): “o fado é tão mais típico e verdadeiro quanto mais intensamente souber recriar, em condições

‘socialmente dignificantes’, as ambiências populares.” (KLEIN; ALVES, 1994: 42).

A maior parte das casas de fado se concentrou no Bairro Alto de Lisboa, e direcionou sua programação para uma clientela de turistas, acrescentando números de dança folclórica ao espetáculo. Ao final da noite, o espaço é exclusivo dos fadistas, que se apresentam para um público seleto e reduzido, pois grande parte dos turistas se retira do restaurante logo após o jantar. Segundo Marcos Sergl (2008),

95

Após o final da Segunda Guerra Mundial, as casas de fado estão no auge de suas atividades, com elencos de fadistas e guitarristas estáveis atuando em regime de exclusividade e com público cativo, atestando a consolidação de um mercado profissional. Colabora para esse crescimento o afluxo de turistas interessados nas praias do sul de Portugal e da Espanha, que buscam conhecer ‘casas típicas’ ou ‘restaurantes típicos’. No final da década de 1950, fadistas mais conhecidos realizam, nos meses de verão, turnês por cafés, teatros, auditórios e festas populares em todo o território de Portugal e por outros países nos quais as comunidades de imigrantes são mais numerosas, tornando-se conhecidos e reforçando a venda de seus discos. (SERGL, 2008: 168). Há o registro, na cidade de Lisboa, ainda na década de 1960, do surgimento de algumas casas de fado que apostam na espontaneidade de artistas amadores que ali se apresentam sem receber remuneração da casa. Esses estabelecimentos são conhecidos como próprios para a atividade do “fado vadio”, termo depreciativo adotado em oposição ao fado profissional organizado nos principais restaurantes típicos de Lisboa.

As principais casas de fado que se encontram funcionando em Lisboa na atualidade são o “Café Luso”, na Travessa Queimada, 10, no Bairro Alto, fundada em

1927; o “Faia”, na Rua da Barroca, 48, no Bairro Alto; “A Severa” , fundada em

1955, na Rua das Gáveas 55, no Bairro Alto; a “Adega Machado”, na Rua Norte 31,

Bairro Alto, fundada em 1937; a “Adega Mesquita”, na Rua Diário de Notícias, 107, no Bairro Alto, fundada em 1938, além de outra dezena de restaurantes típicos dedicados à música do fado na capital portuguesa.

Nos últimos anos, tem-se percebido o declínio da frequência de público nessas casas e muitas chegaram a encerrar suas atividades nas últimas décadas do século XX.

Segundo Klein e Alves (1994), o surgimento dos restaurantes típicos foi consequência da evolução dos padrões estéticos e ideológicos de um período histórico.

Hoje, desfazadas (sic, defasadas) dos gostos dominantes – são quase todas dos anos 50 e 60, ou mesmo anteriores, não tendo aberto nenhuma nos anos 80 e 90 -, assiste-se ao seu fechamento em cadeia; nos últimos dez anos desapareceram em Lisboa cerca de trinta restaurantes típicos. (KLEIN; ALVES, 1994: 55).

96

O histórico aqui exposto apresenta um resumo acerca da organização do fado em Portugal, e leva em conta o ápice e o declínio das casas de fado em Lisboa. Assim,

é referência básica para uma possível aproximação das casas de fado que surgem no

Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970, relacionadas e enfatizadas no próximo capítulo.

2.7 Principais artistas do fado em Portugal

A primeira geração de artistas expoentes do fado no século XX pode ser observada através da contribuição de fadistas como Ercilia Costa, Alfredo Marceneiro,

Fernando Farinha, Fernando Maurício, Hermínia Silva, Lucília do Carmo e Maria

Teresa de Noronha, entre outros adeptos do fado castiço. A figura da fadista Amália

Rodrigues é apontada como uma artista renovadora do fado, seguida por artistas como

Carlos do Carmo, Maria da Fé e Beatriz da Conceição. Além desses fadistas, destacamos a atuação de músicos como os guitarristas Carlos Paredes, Armandinho,

Raul Nery, José Nunes, Jaime Santos, entre outros. As fadistas que mais se destacaram no século XX em Portugal foram Maria Teresa de Noronha, especialista em fados castiços que manteve um programa radiofônico na Rádio Emissora Nacional

Portuguesa entre 1938 e 1958 (os fadistas Manoel Monteiro e Joaquim Pimentel atuaram no Rio de Janeiro em funções e períodos semelhantes) e Amália Rodrigues, que atuou em casas de fado, no teatro de revista, no cinema e passou a liderar o processo de renovação do fado na década de 1960, a partir das obras do compositor

Alain Oulman.

Por participarem da mesma rede social, os fadistas brasileiros seguiram a influência de diversos intérpretes do fado português, filiando o seu repertório e estilo a

97 fadistas como Alfredo Marceneiro (fado castiço) e Amália Rodrigues (fado-canção), entre outros. A constatação dessas influências estilísticas pode ser apreciada nas gravações fonográficas dos fadistas luso-brasileiros (relacionadas no capítulo 3) e nos relatos concedidos por fadistas e público.

2.8 Primeiras gravações do gênero em Portugal

O pioneirismo da primeira gravação fonográfica de um fado era creditado, até o ano de 2004, ao cantor brasileiro Baiano, ao seu fonograma intitulado “Fado

Português”, gravado em 1902. Após a descoberta de uma coleção de discos de 78 rotações de propriedade do inglês Bruce Mastin31, foi anunciada através da imprensa a existência de uma gravação de fado realizada na cidade do Porto em 1900. Segundo o governo português, essa coleção conta com aproximadamente oito mil fonogramas, a maior parte relativa a gravações de fados nas primeiras décadas do século XX, contendo o registro de gravadoras como a Columbia, Victor, His Master´s Voice e

Grammophone.

Esse acervo registra as primeiras gravações do gênero em Portugal, realizadas por artistas como Eduardo de Souza, Rodrigues Vieira, José Bastos, Almeida Cruz,

Maria Victoria, Reinaldo Varela, Isabel Costa e Delfina Victor, entre outros. Deve-se ao português José Moças o crédito de tal descoberta, e desde então o pesquisador negocia com o governo português a aquisição desse espólio musical. A partir do estudo desse acervo musical será possível comparar nos fonogramas brasileiros as principais características do fado castiço no início do século XX.

31 Fonte: Aleluia: a colecção de fado é (finalmente) nossa. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2009.

98

Como exemplo de gravações fonográficas portuguesas do início do século XX, podemos citar os fonogramas registrados pelo artista, cantor e compositor Manassés de

Lacerda32 (Manassés Ferreira de Lacerda Botelho, Sabrosa, 1885 – Brasil, 1962), realizados entre 1905 e 1907. Nessa mesma época foram publicadas três séries de edições musicais que levavam o título de “Fados e Canções Portuguesas”, cantadas por Manassés de Lacerda para cilindros e discos de máquinas falantes. Cada série continha 10 músicas com notas em partitura convencional, acrescida da letra do fado, tendo sido editada pela casa Arthur Barbedo na cidade do Porto. Ainda foram impressas duas edições posteriores contendo parte da obra de Manassés de Lacerda, em 1914, pela Casa Moreira de Sá (Porto), e em 1916, em uma edição luso-brasileira associada à promoção do Vinho do Porto Constantino Quinado.

Esse capítulo resume um breve histórico sobre as práticas culturais do fado na cidade de Lisboa, e propõe uma ligação para a discussão da representação do fado na cidade do Rio de Janeiro. Buscamos uma contextualização histórica do fado, considerando o discurso oficial de Portugal da época revisitada nesta tese. Os símbolos portugueses que constituem o mundo artístico conceituado por Becker (1977) serão revistos no capitulo seguinte, quando será tratada a representação do fado no Rio de

Janeiro fundamentada em fontes bibliográficas e em relatos dos sujeitos envolvidos nessa rede social.

32 Fonte: Guitarra de Coimbra. Disponível em: Acesso em: 20/02/2009 e Arquivos do Fado. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2009.

99

CAPÍTULO 3

PONTE LUSÓFONA: O FADO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO ENTRE AS DÉCADAS DE 1950 E 1970

És samba e jongo, xiba e fado, cujos acordes são desejos e orfandades de selvagens, cativos e marujos; e em nostalgias e paixões consistes lasciva dor, beijo de três saudades, flor amorosa de três raças tristes.

Olavo Bilac, Música brasileira33

3.1 O fado no Rio de Janeiro: mundo artístico e memória social

A epígrafe remete à música brasileira, que é composta das “três raças tristes”, e indica a possibilidade de diálogo entre esses gêneros musicais tão miscigenados como o próprio povo brasileiro, capaz de realizar a integração das músicas européia, africana e indígena. O poeta faz referência ao fado como um desses elementos de fusão cultural.

O fado é um gênero musical português que traz consigo a melancolia e a saudade, sentimentos que o povo lusitano parece cultuar em Portugal e no seio de cada colônia portuguesa existente no mundo. Para Eduardo Lourenço, em Portugal, “antes de ser pensada, a saudade foi cantada e é filha e prisioneira do lirismo que primeiro lhe deu voz” (LOURENÇO, 1999: 13). No Brasil, especificamente na cidade do Rio de

Janeiro, o ápice de popularidade desse gênero ocorreu entre as décadas de 1950 e

1970, período em que surgiram vários programas radiofônicos dirigidos à comunidade portuguesa local, além de casas de fado, restaurantes típicos, casas regionais, programas televisivos, entre outros espaços de divulgação.

33 BILAC, Olavo. Música brasileira. Poesias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 23ª. ed., 1964, p. 263.

100

Todas as reflexões elaboradas neste capítulo se fundamentam em aspectos da cultura e da diáspora portuguesa, especificamente a fixação de imigrantes portugueses na cidade do Rio de Janeiro e suas práticas musicais, tendo como referência a música do fado. As redes sociais34 que emanam das práticas culturais assinaladas podem ser observadas através do conceito de “mundos artísticos e tipos sociais”, explicitado por

Howard S. Becker em artigo publicado em 1977 no Brasil, editado no livro Arte e

Sociedade, sob a organização de Gilberto Velho. Becker discorre sobre os conceitos de

“mundo” e “mundo artístico”: o primeiro conceito afirma o conjunto de ações elaboradas por pessoas e organizações que são fundamentais para a produção de

“acontecimentos e objetos caracteristicamente produzidos por aquele mundo”

(BECKER, 1977: 9); o segundo, amplia o conceito ao mesmo mundo que organiza os seus objetos em formas artísticas, ou seja, “mundo artístico” é o que produz e conceitua a arte. (BECKER, 1977: 9). Para Becker, o mundo artístico se organiza através da rede de indivíduos e pela relação estabelecida entre esses indivíduos no fazer artístico, nele compreendendo músicos, atores, compositores, fabricantes de instrumentos musicais, público, etc, através de convenções e ações que permitem “a existência de atividades cooperadas para a elaboração de um produto” (BECKER,

1977: 11). Portanto, o centro da reflexão de Becker, em relação ao conceito de mundo artístico, prioriza a cooperação dos indivíduos que se integram para a realização de uma determinada obra, destacando que, para o autor, o processo de construção desenvolvido através das redes sociais é mais importante do que a obra de arte ou mesmo do que o artista que a produz.

A difusão, apreciação e consumo do fado entre as décadas de 1950 e 1970 na cidade do Rio de Janeiro revelam uma prática musical característica, organizada pelos

34 O termo “rede social” anuncia uma estrutura social composta por pessoas ou organizações, relacionada por relações diversas como a família, a religião, etc.

101 imigrantes portugueses locais, e que acontecia paralelamente à propagação de gêneros musicais brasileiros como o choro, o samba e a bossa-nova. A referida prática envolvia uma rede social específica e contava com alguns aspectos e espaços de divulgação próprios, os quais passamos a enumerar: a aquisição de instrumentos musicais típicos, como a guitarra portuguesa e o violão-baixo; o processo de aprendizagem de tais instrumentos; a hierarquia e organização dos conjuntos musicais; a relação profissional entre músicos e cantores; a forma de registrar as canções, em notação ou através da oralidade; os arranjos e as produções fonográficas organizadas para o mercado brasileiro; a relação do público com seus artistas; o reconhecimento dos artistas em sua terra natal, entre outros aspectos.

As fontes de consulta sobre o estudo do fado no Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970 podem ser encontradas em artigos publicados; em teses de doutorado acerca da imigração portuguesa no Brasil; em fonogramas gravados no período; em levantamento da discografia do período; em folhetos publicados especificamente como programas para apresentações; em fotografias e fontes iconográficas; em sítios da Internet e blogues que visam à divulgação do fado no

Brasil e no mundo; na audição de programas radiofônicos atuais que apresentam em sua programação o repertório da época; em relatos e depoimentos dos sujeitos que participaram da implementação e difusão do gênero na cidade, compreendendo-se músicos, produtores, radialistas e o público; em livros como o já citado trabalho de

Eulália Maria Lahmeyer Lobo e o artigo de Renato Pinto Venâncio.

Considerando-se todas as fontes indicadas, optamos por incluir neste capítulo uma síntese dos relatos obtidos através de entrevistas semi-estruturadas, as quais podem fornecer um panorama parcial do universo musical vivido à época. Nesse sentido, a história oral se constitui como perspectiva relevante do estudo, assim, os

102 depoimentos individuais colhidos através de entrevistas configuram-se também como fontes documentais. Embora algumas vezes imbuídos de um caráter contraditório, esses relatos podem revelar dados biográficos, tendências morais, regras sociais, além de construírem em geral um relato épico acerca da jornada do entrevistado, permeado de experiências pessoais que carregam em si as vicissitudes decorrentes da diáspora portuguesa. São histórias que recuperam vestígios de acontecimentos passados, como se trouxessem reminiscências, refletindo uma versão da verdade. Portanto, chamamos atenção para a percepção do indivíduo acerca da história, ou a “percepção social dos fatos”, de acordo com Paul Thompson (1992). Para este autor, as informações obtidas nas entrevistas revelam diversos significados sociais, e devem ser complementadas por dados de outras fontes. O pesquisador deve analisar o nível de importância dos fatos relatados pelo entrevistado, sua forma de participação no objeto pesquisado e o tempo que foi empreendido para tal tarefa. O local escolhido para a entrevista pode interferir no resultado, assim como a maneira como o entrevistador elabora e dirige as perguntas para o entrevistado. O entrevistador deve observar a subjetividade dos relatos de seu depoente, pois cada indivíduo apresenta a sua versão da história, sujeita a princípios peculiares de ordem política, moral e religiosa.

Na história oral, a entrevista gravada é que se torna a fonte para a documentação primária, e sua transcrição, apesar de já representar uma interpretação do entrevistador, é fundamental para a análise de uma “versão do passado”, sugerida através do relato subjetivo do entrevistado. Nas palavras de Thompson:

O argumento em favor de uma entrevista completamente livre em seu fluir fica mais forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações ou evidência que valham por si mesmas, mas sim fazer um registro “subjetivo” de como um homem, ou uma mulher, olha para trás e enxerga a própria vida, em sua totalidade, ou em uma de suas partes. (THOMPSON, 1992: 258).

103

Segundo Alberti (2005), ao trabalharmos com a história oral, devemos observar que existem várias fases que devem ser organizadas para a obtenção de um resultado satisfatório da pesquisa. Em primeiro lugar, é preciso definir o projeto de pesquisa em todas as suas etapas, com objetivos, hipóteses, delimitação do objeto, quadro teórico, cronograma de atividades e uma supervisão contínua de orientação. A escolha do método deve ser determinada pelo objeto de trabalho, que pode implicar o estudo prévio de fontes bibliográficas, documentos, iconografia, cruzando-se os dados com os documentos produzidos, através dos depoimentos realizados, ou mesmo, desconsiderando-se as fontes anteriormente consultadas.

A escolha dos entrevistados é outro fator importante que deve ser estruturado na pesquisa, e “não deve ser predominantemente orientada por critérios quantitativos, por uma preocupação com amostragens, e sim a partir da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência”. (ALBERTI, 2005: 31). A autora nos orienta também acerca do número de entrevistados necessários à consecução do objeto de estudo, assim como o tipo de entrevista que deve ser escolhida pelo pesquisador. Há as

“entrevistas temáticas”, que mantêm o foco de investigação na ação do entrevistado no objeto de estudo (neste caso, o tema do fado), e aquelas classificadas como “história de vida”, cuja trajetória biográfica do entrevistado se sobrepõe à importância do tema escolhido, pois nesse tipo de entrevista a “preocupação maior não é o tema e sim a trajetória do entrevistado”. (ALBERTI, 2005: 38).

A manipulação dos aparelhos de gravação de áudio e vídeo para o registro dos depoimentos orais deve ser realizada pelo pesquisador-entrevistador com amplo domínio técnico, tomando cuidado com o armazenamento das entrevistas em um banco de dados que possibilite a transcrição dos relatos e consultas posteriores. A técnica de obtenção de documentos através da história oral implica um diálogo entre o

104 depoente e seu entrevistador, “uma construção e interpretação do passado atualizado através da linguagem falada” (ALBERTI, 2005: 24), acreditando-se que, durante o ato da entrevista, o entrevistador pode contribuir com intervenções que conduzem o entrevistado a resgatar dados históricos, ou mesmo a direcionar o relato do depoente para determinados aspectos do tema.

O texto citado de Verena Alberti (2005) sobre a história oral nos auxilia no levantamento e na organização das principais fontes de nossa pesquisa, assim como os conceitos teóricos de Howard Becker (1977) definidos a partir da sua visão de “mundo artístico”. Ao par dos teóricos acima citados, os estudos do sociólogo Michael Pollak

(1989)35 podem contribuir para uma reflexão sobre memória, o que vem auxiliar na compreensão sobre a relação entre a memória dos indivíduos responsáveis pela recuperação do gênero fado e a atualização ou revitalização do fado na cidade do Rio de Janeiro. Para além da memória individual, procuramos investigar como a memória coletiva dos portugueses (artistas ou não) se afirma em nossa cidade, considerando-se o distanciamento da pátria e o encontro com novos referentes musicais em função do contato com uma cultura nova. Pollak pondera que o trabalho com a memória é fomentado pela história, afirmando, em relação à memória coletiva que:

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis. (POLLAK, 1989: 9).

35 Artigo de Michael Pollak intitulado Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, 1989. Michael Pollak (Viena, 1948; Paris, 1992) é pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques – CNRS, ligado ao Institut d'Histoire du Temps Present e ao Groupe de Sociologie Politique et Morale.

105

Os conceitos de Pollak (1992) vão ao encontro das ideias de Alberti (2005), pois aquele autor considera que há o “problema da ligação entre memória e identidade social, mais especificamente no âmbito das histórias de vida, ou daquilo que hoje, como nova área de pesquisa, se chama de história oral.” (POLLAK, 1992: 1).

Passamos a seguir a uma reflexão sobre esses conceitos, relacionando-os aos dados obtidos em entrevistas realizadas com personagens ligados ao meio artístico do fado e que atuam no Rio de Janeiro, buscando associar os pressupostos teóricos com o objeto de estudo. O quadro 3 sintetiza os agentes sociais que através de relatos contribuíram para a realização da tese.

Quadro 3. Quadro de entrevistados.

No. Nome Idade* Proce- Ano de Profissão Ligação Tipo Data da Observa- dência chegada com a Social entrevista ções ao cultura (Becker) Brasil portuguesa

01 Manuel Pinto Marques 64 anos Castro 1962 Comerci- Público 24/10/2009 Primo da Daire, ante apreciador fadista Viseu Maria Alcina

02 Ramiro Damaia 62 anos Leiria 1956 Pescador Fadista Integrado 21/01/2010

03 José Mendes Chança 76 anos Beira 1962 Empresá- Produtor e Integrado 15/03/2010 rio Radialista

04 Carlos Silva e Souza 68 anos Rio de Músico Músico de Integrado 03/11/2010 (Caçula Hilário) Janeiro Fado

05 Nelson Gonçalves 81 anos Rio de Engenhei Público 26/01/2011 Calafate Janeiro -ro apreciador

06 Maria Alcina Pinto da 72 anos Castro 1953 Empresá- Fadista Integrado 02/02/2011 Costa Duarte Daire, ria Viseu

* Ano de referência: 2011

Nessa perspectiva, passamos a relatar os dados recolhidos em depoimentos obtidos durante o trabalho de campo.

106

3.2 Os espaços de memória do fado na cidade: público, fadistas, radialistas e músicos

Os “espaços de memória” podem ser revisitados nos relatos do publico e de artistas integrados que compõem o mundo artístico do fado no Rio de Janeiro. A primeira entrevista foi realizada no dia 24 de outubro de 2009, entre 17.00 e 19.00 h, no restaurante “Cantinho das Concertinas”, situado na loja 11 da Rua 16 da CADEG

(Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara), no bairro de Benfica, na cidade do Rio de Janeiro. Esse contato teve a intenção de explorar junto à comunidade portuguesa referências acerca da música do fado e de seus espaços de fruição nesta cidade. O “Cantinho das Concertinas” é administrado pelo comerciante português

Carlos Cadavez, que promove semanalmente – aos sábados - a apresentação de músicos e cantores que divulgam a música folclórica portuguesa, e reúne um pequeno, porém, assíduo, contingente da colônia luso-brasileira. Nesse espaço podemos ouvir gêneros musicais portugueses diversos, como o “vira”, a “cana-verde” e o “desafio à desgarrada”.

Nesse trabalho de campo, estabeleci comunicação com um senhor, conhecido como Rocha, (fotógrafo oficial do jornal Portugal em Foco), naquele momento, portando uma máquina fotográfica profissional. O Senhor Rocha prestou informações de forma espontânea sobre o funcionamento daquele estabelecimento popular, e indicou alguns contatos na cidade a fim de contribuir para o avanço de nossa pesquisa.

Cruzamos o interior do pequeno restaurante, dirigindo-nos a um pátio externo com mesas e cadeiras posicionadas ao largo onde a festa acontecia, pois lá havia um pequeno palco improvisado. Nesse momento, um conjunto musical formado por três

107 concertinas36, um cavaquinho, um baixo elétrico e um bumbo embalavam a festa. Um dos músicos que tocava a concertina cantava ao microfone as canções que atraíam ao baile cerca de dez pares, cuja formação podia coincidir ou variar em gênero e idade: comadres, casais, pais e filhas, etc.

A festa, que bem lembrava um “arrasta-pé” brasileiro, terminou logo a seguir com um agradecimento dos músicos ao público. Os músicos se voltaram para uma mesa central, e o tocador de concertina mais jovem começou a acompanhar uma senhora que cantava uma canção chamada de cana-verde37. A partir daí, mais vozes foram-se juntando ao grupo, até chegar a um número aproximado de 14 cantores. A seguir, o tocador da concertina passou a acompanhar dois senhores em um “desafio à desgarrada”, gênero popular de fado que alterna um interlúdio musical da concertina ao improviso rimado de cada desafiante, lembrando, guardadas as suas particularidades, o partido-alto carioca.

Até este momento todo o processo por mim testemunhado no local se relacionava com os conceitos propostos por Howard Becker (1977) em seu “mundo artístico”, e pude vislumbrar a organização dos segmentos funcionais da rede social que ali se estabelecia. Os músicos se classificavam na categoria de artistas integrados, possuíam domínio técnico dos instrumentos e do repertório e se diferenciavam do grupo de 14 vozes que cantava uma “cana-verde”, estes inseridos na categoria de

“artistas populares”. A cooperação entre os segmentos também foi percebida pelo gesto de uma senhora que ocupava uma mesa no pátio externo e que era responsável pelo pagamento do cachê aos músicos, realizado com o discreto repasse de uma cédula

36 A concertina (acordeon diatônico) é um aerofone de palhetas, acionado por fole e que apresenta teclados e botões: a mão direita se encarrega da melodia e dos acordes no teclado diatônico, enquanto a mão esquerda exerce a função dos “baixos” nos botões. A concertina assemelha-se à sanfona no Brasil. 37 Cana-verde: dança e canção popular portuguesa, cantada em quadras.

108 de cinquenta reais que, dobrada no interior de sua mão, passava à mão do respectivo instrumentista que ali atuara. Os elos se completavam com outros sujeitos importantes para o funcionamento da festa, como os pares de dançarinos, as crianças que brincavam ao redor das mesas, os garçons e os cozinheiros, o fotógrafo que tudo registrava, os políticos ligados à comunidade portuguesa, etc.

Após o término da cantoria, conversei com um dos cantores, que é frequentador habitual desse evento, o Sr. Manuel Pinto Marques, 63 anos, natural de

Castro Daire, região do Viseu, e residente no Rio de Janeiro desde 1962. O referido senhor se apresentou como primo da cantora de fados, Maria Alcina, natural da mesma região que o Sr. Manuel Pinto. Ele informou que fixou residência no Rio de Janeiro, na Av. Brás de Pina 534, no bairro da Penha Circular, onde reside. Na atualidade, é diretor da “Casa do Viseu”, casa regional portuguesa estabelecida no mesmo bairro.

O Sr. Manuel Pinto declarou que, antes de migrar para o Brasil, o seu contato com o fado na região do Viseu se dava apenas pelo meio radiofônico, pois não havia casas de fado na região. Dentre os fadistas que ouvia, o artista que mais lhe chamava a atenção era o cantor Fernando Farinha. Após o seu estabelecimento na cidade do Rio de Janeiro, citou como referência o fadista português Antonio Mourão e o programa radiofônico de Joaquim Pimentel, denominado “Programa dos astros”, apresentado na

Rádio Vera Cruz do Rio de Janeiro em torno do ano de 1964.

O informante Manuel Pinto considera a cantora Maria Alcina a principal referência do fado no Brasil, mas diz que, embora possua um vínculo familiar com a mesma, admirou sempre o trabalho da fadista Helia Costa – que, segundo ele, interpretava fados de forma mais elaborada do que Maria Alcina. Na entrevista,

Manuel Pinto salientou que os fados interpretados por Helia Costa possuíam “uma

109 poesia antiga, porém com maior valor sentimental”. Declarou também que testemunhou a atuação de outros fadistas nesta cidade como Adélia Pedrosa, Lina

Cunha, Ester de Abreu, Antonio Campos e Lúcia dos Santos. O Sr. Manuel Pinto afirmou ainda que não gostava da interpretação do fadista Antonio Campos, pois em sua opinião ele “nunca cantou fados”. Essa fala de Manuel Pinto demonstra que ele não gostava do tipo de interpretação de Antonio Campos, o que indica um modo de expressão muito particular do Sr. Manuel como ouvinte. O fadista Antonio Campos é reconhecido por muitos membros da comunidade portuguesa como um expoente do fado no Brasil, além de ter conquistado o apreço de fadistas de renome como Maria

Alcina, Adélia Pedrosa, Helia Costa, Maria de Lourdes, entre outros artistas. Tal constatação sugere um contraste de idéias entre o relato de Manuel Pinto e o senso comum ditado pela comunidade portuguesa.

Para grande parte dessa comunidade, Antonio Campos é possuidor de uma interpretação adequada a um fadista, assim como detentor de um timbre e entonação que emocionam os ouvintes em suas gravações. Além disso, as suas composições contribuem também para a construção do seu perfil de fadista. De acordo com Alberti

(2005), a construção da memória coletiva acerca de um fato pode abranger depoimentos antagônicos entre sujeitos oriundos da mesma prática social:

Assim, não é mais fator negativo o depoente poder “distorcer” a realidade, ter “falhas” de memória ou “errar” em seu relato; o que importa agora é incluir tais ocorrências em uma reflexão mais ampla, perguntando-se por que razão o entrevistado concebe o passado de uma forma e não de outra e por que razão e em que medida sua concepção difere (ou não) das de outros depoentes. (ALBERTI, 2005: 19). Ao término do nosso primeiro contato, o cantor Manuel Pinto citou o nome de alguns participantes do evento: o seu contendente no desafio, um cantor amador, conhecido como Lino; no cavaquinho, Jorge; na concertina, citou o nome do músico

Hilário Cardinal, e elogiou um músico ausente no dia, o José Bigorrilho. Enfim,

110 declarou que, nesse evento, o fado se faz presente de forma esporádica, sendo um espaço mais apropriado para a música folclórica regional portuguesa.

O entrevistado Manuel Pinto enumerou alguns personagens relevantes na difusão do fado na cidade, que atuaram ou participaram da rede social pertencente ao fado entre as décadas de 1950 e 1970, para uma melhor compreensão do panorama cultural que envolve o mundo artístico do fado no Rio de Janeiro. A entrevista colaborou para a contextualização do fado na cidade do Rio de Janeiro desde a década de 1950, e de seus principais artistas atuantes. As impressões do depoente, expostas a partir de sua experiência, indicam a posição do entrevistado naquele grupo, assim como sua relação com a cultura portuguesa, conforme as observações de Alberti

(2005) acerca da história oral.

O engenheiro químico Nelson Gonçalves Calafate (Rio de Janeiro, 05/03/1930)

é ouvinte e apreciador do gênero fado, e concedeu o seu depoimento em 26 de janeiro de 2011. Nasceu no bairro da Ilha do Governador, e é membro da Academia Luso-

Brasileira de Letras. Quando completou dois anos de idade, Calafate se mudou com a família para Portugal, pois seus familiares são oriundos da região da Póvoa do Varzim,

Freguesia de Fão, cidade de Esposende. Retornou ao Brasil e se formou como engenheiro químico em 1954, casando-se em 1957 com a engenheira química Bettina

Alice. Sua ascendência portuguesa estreita o seu vínculo com a comunidade portuguesa local, que o conduz a participar com maior freqüência de eventos sócio- culturais luso-brasileiros. Como o seu interesse pela cultura portuguesa é amplo, o Sr.

Calafate passou a ser um ouvinte assíduo dos programas radiofônicos difundidos na cidade, e consolidou a amizade de alguns fadistas e músicos residentes no Rio de

Janeiro, como as cantoras Maria Alcina, Helia Costa e Lúcia dos Santos.

111

Em 2010, ao completar 80 anos, editou um livro de memórias com 163 crônicas e realizou um grande jantar para 80 pessoas, entre familiares e amigos da comunidade portuguesa, que na oportunidade puderam contemplar a interpretação da fadista Maria Alcina, acompanhada pelo guitarrista Victor Lopez. Em seu livro,

Calafete dedica uma crônica de louvor à fadista Amália Rodrigues, e, após relacionar o início da carreira da cantora com os fados clássicos, expressa a sua opinião acerca da estética do fado da década de 1960:

No início dos anos 60, a partir de um luso-francês – Alain Oulman, nascido em Portugal – ligando uma melodia carregada de ambiente a uma forma definida porém ampla, se permitiu que a voz de Amália se transfigurasse e transformasse, desdobrando-se nas suas incessantes improvisações, e abrangendo as formas de poesia. (CALAFATE, 2010: 371). O Sr. Calafate declarou que os artistas portugueses que mais lhe agradavam durante as décadas de 1960 e 1970 eram as fadistas Maria Alcina, Lúcia dos Santos e

Hélia Costa, e os fadistas Francisco José e Antonio Campos, e que acompanhava com fervor as apresentações destes artistas nas casas de fado da Zona Sul carioca, como o

“Fado”, o “Lisboa à Noite” e a “Desgarrada”.

Um hábito que o Sr. Calafate mantém há décadas é o de acompanhar os programas radiofônicos dedicados à comunidade portuguesa, procurando sempre estar atualizado com as notícias de Portugal e com os acontecimentos sócio-culturais da colônia portuguesa no Rio de Janeiro, além, claro, de ouvir os seus fados prediletos:

“Canoas do Tejo”, “Rua do Capelão”, “Lisboa não seja francesa” e “Nem às paredes confesso”, entre outros. Fez referência, como exemplo, ao programa de Joaquim

Pimentel e de Antonio Campos na Rádio Bandeirantes. No final da entrevista, o Sr.

Nelson Calafate concedeu uma lista contendo o nome de vários programas radiofônicos que ele acompanha na atualidade.

112

Retomamos Becker (1977) e a classificação que estabelece para os artistas, a fim de saber de que maneira os cantores de fado atuam nessa rede social, com o enfoque para o papel de cada um deles, considerando-se os seus relatos, que são constituídos a partir das entrevistas realizadas em nosso trabalho de campo. Becker

(1977) pondera sobre os tipos de artistas inseridos no mundo artístico, classificados como profissionais integrados, inconformistas, artistas ingênuos e artistas populares.

Os artistas classificados como profissionais integrados se utilizam das convenções do mundo artístico organizado e concordam com o conceito de “obra de arte canônica”, compondo geralmente a maior parte dos artistas que integram a rede de cooperação do mundo artístico em questão. (BECKER, 1977: 14). Quanto aos inconformistas, são artistas que não aceitam os padrões artísticos constituídos no mundo artístico convencional, criando a sua própria rede de colaboradores que passa a constituir e envolver um novo público para a fruição de suas obras, portanto, tendem à inovação.

Os artistas ingênuos, também denominados primitivos, são os que não possuem o conhecimento dos artistas, das regras ou dos padrões convencionais estabelecidos no interior do mundo artístico, produzindo por vezes obras semelhantes aos trabalhos idealizados por artistas integrados ou mesmo inconformistas. (BECKER, 1977: 18).

Em seguida, passamos à exposição de alguns aspectos dos relatos dos fadistas Maria

Alcina e Ramiro Damaia, artistas integrados que residem e atuam na cidade do Rio de

Janeiro.

A cantora Maria Alcina “Fadista” (Maria Alcina Pinto da Costa Duarte, Cetos,

Castro Daire, Portugal, 12/03/1939), reconhecida como a maior fadista portuguesa radicada no Brasil, chegou ao Rio de Janeiro em 1953, aos 14 anos de idade, e adotou o canto como profissão, incorporando em sua vida artística a figura da fadista tradicional. A entrevista foi concedida em 02 de fevereiro de 2011, na qual forneceu

113 dados biográficos e acrescentou depoimentos que auxiliaram na pesquisa e na revitalização da história do fado na cidade do Rio de Janeiro.

Maria Alcina relatou que na infância em Portugal não ouvia fados, pois essa música não era difundida em sua cidade natal, ouvia-se apenas a música folclórica.

Iniciou a sua carreira aos 20 anos de idade em 1959, sendo convidada pelo radialista e

Rei Momo Edson Santana para cantar no programa dele, na Rádio Vera Cruz, com uma participação de 15 minutos por programa. Após três meses de atividade na Rádio

Vera Cruz, estreou o seu próprio programa intitulado “Maria Alcina: A voz de além mar”, veiculado entre 1959 e 1964, cuja programação compreendia 30 minutos de música portuguesa e 30 minutos de música brasileira. A Rádio Vera Cruz mantinha a sua sede no centro da cidade, na Rua Buenos Aires 168, e, além do programa de Maria

Alcina e de Joaquim Pimentel, a depoente citou ainda o programa do guitarrista

Manoel Caramés, propagado aos sábados. A Rádio Vera Cruz pertencia à Igreja

Católica e foi sucedida pela Rádio América.

Em 1964, Maria Alcina atuou por sete meses na casa de fados “Lisboa Antiga”, em São Paulo, de propriedade de Adélia Pedrosa. Posteriormente, retornou ao Rio de

Janeiro como uma das atrações do restaurante “O Fado”, na Rua Pompeu Loureiro em

Copacabana, de propriedade de Antonio Mestre. Maria Alcina cantou também em outras casas de fado do Rio de Janeiro, como a “Adega do Mesquita”, o “Corridinho”, o restaurante “Galo”, o “Lisboa à Noite”, a “Casa da Mariquinhas” e o “Cantinho da

Severa”. Sua discografia compreende 3 LPs, 4 compactos e um CD editado pela gravadora Som Livre. Participou como fadista em telenovelas, mini-séries da Rede

Globo de Televisão, além de excursionar pelo Brasil e pela América do Sul. A cantora exerceu a atividade de empresária e abriu um restaurante típico português no bairro de

Ipanema, denominado “A Desgarrada”, um espaço destinado à culinária e à música

114 portuguesa que funcionou entre 1976 e 2000. Da totalidade dos frequentadores do restaurante, 90% correspondiam a membros integrantes da alta sociedade carioca, inclusive artistas ilustres como Vinícius de Moraes e Tom Jobim, além da comunidade portuguesa que frequentava igualmente o local. A casa possuía um cardápio típico português, e contava com 13 profissionais na cozinha do restaurante.

Naquele local, Maria Alcina trabalhava administrando o restaurante até às 18 horas, e após esse horário, apresentava-se como cantora, recebendo diversos artistas e autoridades como António Chainho, Amália Rodrigues, , José Maria

Nóbrega, António Mourão, Beatriz da Conceição, Lucilia do Carmo, Cidália Moreira,

Paulo de Carvalho, Sebastião Robalinho, António Campos, Sá Moraes, Lúcia dos

Santos, Mário Simões, Adélia Pedrosa, Teresinha Alves, Maria de Lourdes, Esther de

Abreu, Paula Ribas, Manoel Taveira, Sebastião Manoel, Mário Rocha, Olivinha

Carvalho, Hélia Costa, entre outros personagens do universo cultural português. Além desses artistas, Maria Alcina citou também o nome de vários músicos ligados ao fado na cidade, como os guitarristas Mario Rui, Antonio Rodrigues, Antonio Maria Velho,

Antonio Silveira, Lafayete Ramalho, José Manuel Rocha, e os violonistas Xavier

Pinheiro, Armando Nunes, Caçula Hilário e Leonel Vilar.

Em seu depoimento, Maria Alcina destacou o pioneirismo no Brasil dos artistas

Manoel Monteiro, Joaquim Pimentel, Esmeralda Ferreira, Maria Amado, Maria da

Luz, Maria Jose Vilar, Laurinda Monteiro (dona da “Casa da Mariquinhas” no bairro do Maracanã), Deolinda de Oliveira, Helia Costa, Tristão da Silva, Maria Girão (uma baiana que “cantava fados castiços como ninguém”, casada com o guitarrista Fernando

Freitas) e Francisco José. Sobre o fadista Manoel Monteiro, oriundo do Distrito do

Viseu, Maria Alcina declarou que ele era muito popular na década de 1930, e que se apresentava em circos com Orlando Silva e Silvio Caldas. Monteiro foi anunciado

115 sempre como “cabeça de cartaz”, pois sua foto ficava em evidência nos cartazes publicitários do circo, deixando os demais artistas em plano secundário. Atribui-se a

Monteiro o pioneirismo na difusão de programas radiofônicos de cultura portuguesa no Brasil, assim como a divulgação do fado em espaços públicos. A fadista Maria

Alcina ressaltou, em sua vida artística, a longa parceria com o cantor Antonio Campos, e a participação dela em programas televisivos como o Programa do Faustão, Flavio

Cavalcante, Hebe Camargo, Chacrinha, etc. Na atualidade, a cantora se apresenta com frequência nas casas regionais lusitanas e reside na cidade do Rio de Janeiro, mas se retirou da vida empresarial há alguns anos.

Durante a entrevista, enfatizamos a trajetória do fado como gênero musical.

Questionamos a existência de uma possível ruptura entre o fado castiço e o fado moderno na década de 1960, principalmente a partir da interpretação de Amália

Rodrigues sobre as canções de Alain Oulman. Maria Alcina deixou transparecer que os dois tipos de fado continuavam a coexistir nos espaços de difusão do gênero, definindo sua visão acerca do fado castiço:

O fado castiço é bom em casas de fado a partir da meia-noite; a fadista só canta bem realmente, só passa a ser fadista depois dos 40 quando já sofreu muito, porque você pra cantar o fado como deve ser, você tem que sentir o fado; e pra sentir o fado você tem que ter sofrido por amor, e quem é que não sofreu por amor? Principalmente os fadistas, né, eu digo no meu caso porque eu sofri muito também, mas foi um sofrimento que foi sempre lapidando o meu espírito. A seguir, declarou a sua admiração pela artista Amália Rodrigues, e o que pensava sobre a trajetória de Amália como fadista tradicional:

[...] Amália nunca foi uma fadista [tradicional]; ela cantava fados, mas ela era uma mulher que foi embaixadora de Portugal no mundo inteiro; ela cantava fados castiços, mas não dava aquele “castiço”, que ela nunca cantou em casa de fados... ela cantou no “Luso”, foi lançada no “Luso”, em Portugal [...] mas teve uma estrela que brilhou muito, e é inigualável o carisma dela, ninguém jamais pode igualar-se a ela, são pessoas que aparecem de 200 em 200 anos. Nunca tive vontade de imitá-la, mesmo porque minha voz é mais grave, mas [tenho grande admiração], toda

116

segunda-feira vou acender velinhas para as almas, e nunca [me] esqueço da Amália... Maria Alcina acredita que a fadista Hermínia Silva pode representar a figura da cantora de fados castiços, porque Hermínia, além de possuir um repertório tradicional, só cantava em casas de fado. Ressaltou assim a diferença existente entre o que chama de “fadistas”, que são “cançonetistas” (cantores adeptos ao fado tradicional) e aqueles que se apresentam para o grande público, são os artistas de projeção internacional que costumam interpretar gêneros musicais variados.

Durante o ano de 1974, Alcina foi convidada pela junta governativa de

Portugal para uma temporada de um mês no Cassino Estoril em Lisboa. Ao cantar nas casas de fado de Lisboa, percebia a indiferença e o preconceito dos fadistas portugueses, que assinalavam existir uma distinção entre o cantor imigrante e o fadista português, como se o fadista imigrante fosse um cantor de segunda categoria e, consequentemente, incapaz de expressar a verdadeira arte do fado. Conforme

Bourdieu (2000), esses conflitos assinalam as contradições existentes no campo e são fatos recorrentes nas relações sócio-culturais entre indivíduos de uma sociedade.

A cantora fez referência à semelhança das matrizes do fado com o samba- canção, citando as composições de Adelino Moreira (português que iniciou a sua carreira no Brasil como fadista), e as obras do compositor Lupicínio Rodrigues. Citou ainda o programa televisivo “Show da Malta”, na TV Bandeirantes, de produção de

Luzinete Mello, durante a década de 1980, o qual apresentou muitos artistas portugueses, inclusive a Amália Rodrigues.

No decorrer da entrevista, a fadista cedeu gentilmente material de vídeo para consulta, contendo um resumo biográfico e fragmentos de sua trajetória artística. O vídeo é intitulado “Portugueses Ilustres no Brasil” e está editado em DVD (reprodução

117 do original em VHS, Malta Editora Ltda.). Do vídeo, destacamos o evento ocorrido em 19/09/1993, no qual Maria Alcina recebe uma homenagem em Castro Daire, lugar em que a cantora chama de “minha aldeia”. Na ocasião, a fadista foi convidada a inaugurar uma avenida com o seu nome. Estas são as palavras de agradecimento de

Maria Alcina:

O imigrante nunca é feliz porque nós no Brasil somos portugueses, aqui somos brasileiros. A nossa saudade é imensa, a nossa saudade é interna, mas tenho certeza de que o minhoto que saiu da sua terra para imigrar e para lutar, para vencer, tem dentro da alma a força, a coragem e o amor pelas suas raízes. Eu posso ter esquecido muitos nomes, mas quero dizer a todos que aqui estão, imigrantes ou não, que a Avenida Maria Alcina não é Maria Alcina, é a realização do sonho do imigrante que de longe planta suas raízes em Castro Daire numa avenida tão bonita. (ALCINA, Maria. In: Portugueses ilustres no Brasil, DVD, 1994). O narrador do vídeo evidencia que o português “serrano” busca o futuro através da imigração, caminho que visou à realização do sonho de muitos portugueses. O filme tem início e fim na aldeia de Castro Daire, terra natal de Maria Alcina, e termina com a fadista cantando em meio a um milharal, agarrada a uma espiga de milho, como quem sente e quer demonstrar que é parte da Terra. Ela relembra a sua infância, quando cantava desde cinco anos de idade, pois “sonhava que era uma princesa num castelo”. Mais tarde, ao agradecer a homenagem referida (Avenida Maria Alcina

Fadista), volta ao tempo de infância, mas desta vez os castelos são “bem sólidos”. Em sua fala, a fadista demonstra a necessidade de reconhecimento diante dos seus pares, amigos e familiares portugueses que não deixaram a sua aldeia, como vimos no início do primeiro capítulo da tese:

Essa homenagem da avenida para mim foi outro sonho maravilhoso, imagina eu saindo de Portugal pobrezinha, sem expressão nenhuma e de repente voltar e inaugurar uma avenida em Castro Daire. Castro Daire me homenageando. Eu me senti assim, como nas nuvens [...] aquela homenagem que eu não senti minha, eu senti de todos os imigrantes que vieram de Castro Daire, de qualquer parte de Portugal, de pé descalço e hoje tem os seus castelos bem sólidos no amor à pátria, bem sólidos aqui no Brasil, nessa terra maravilhosa que nos acolheu. (ALCINA, Maria. In: Portugueses ilustres no Brasil, DVD, 1994).

118

A fadista evoca em sua fala a memória coletiva do imigrante português, pois relembra que, antes de ser reconhecida como artista trabalhou no Rio de Janeiro em diversos setores do comércio. Considerando-se esta ótica, a história pessoal de Maria

Alcina se assemelha à história de vida da maioria dos imigrantes portugueses, porém, com uma diferença: sua realização não é meramente econômica, pois o ofício de fadista sempre esteve presente em sua vida, mesmo nos momentos em que assumia a condição de empresária em seu restaurante “A Desgarrada”.

Dentre os números musicais apresentados no vídeo, destacamos o fado “Quem

sou”, cuja letra reflete imagens da diáspora portuguesa e se confunde com a temática do fado, compreendendo a saudade, as ilusões destroçadas, o infortúnio e a desilusão.

A interpretação de Maria Alcina é acompanhada pela guitarra portuguesa de Mario

Rui e pelo violão de Caçula Hilário.

“Quem sou”

Sou bruma me desfazendo

No oceano esquecido

Onde não vão alvoradas

Neste mar vou me perdendo

Num rumo desconhecido

De marés desencontradas

Neste mar de tempestade

Jogada à sorte sem sorte

Sempre sempre em descida

Vou de saudade em saudade

Para confundir a morte

Mas sinto fugir-me a vida

119

São frias as madrugadas

O sol ficou no poente

Não voltou para me aquecer

As ilusões destroçadas

Neste naufrágio inclemente

Acompanham-me ao morrer.

No final da entrevista, quando nos despedíamos no portão de saída, Alcina fez referência ao seu convívio com o compositor e instrumentista Jacob do Bandolim, pois este frequentava habitualmente os encontros musicais dos fadistas. A biografia de

Jacob (PAZ, 1997) registra uma fase inicial do instrumentista como violonista acompanhador de fados, tendo como parceiro o guitarrista Antonio Rodrigues. Em

1934, o duo Jacob-Rodrigues se apresentou no programa “Horas Luso-Brasileiras”, na

Rádio Educadora e no Clube Ginástico Português, acompanhando os fadistas Ramiro

D’Oliveira e Esmeralda Ferreira. Maria Alcina afirmou ter conhecimento de um disco de fados gravado por Jacob do Bandolim e Antonio Rodrigues naquele período, fato até agora desconhecido por biógrafos e historiadores da música popular brasileira.

O fadista Ramiro Damaia (Ramiro Jesus Damaia, Praia de Pedrógão, Distrito de Leiria, Portugal, 16/05/1949) é um cantor que divide a sua vida artística com o ofício de pescador. Chegou ao Brasil com sua família em 1956, quando contava com sete anos de idade, a bordo do navio North King, em uma viagem de aproximadamente

13 a 14 dias. Junto com seus pais e três irmãos, a família fixou residência no Rio de

Janeiro junto à praia do Caju, porque lá havia uma colônia ativa de pescadores portugueses, o que facilitou o estabelecimento familiar no país. O seu pai exercia o ofício de pescador em Portugal e esse deveria ser o futuro dele e de todos os irmãos.

120

Em entrevista concedida ao autor desta tese em 21 de janeiro de 2010, Ramiro afirmou que, na época, somente os brasileiros podiam obter licença para o trabalho de pesca no mar, motivo que obrigou tanto a ele quanto aos irmãos a naturalizarem-se como brasileiros. Como cabulava muito às aulas para brincar, seu pai o retirou da escola para que assumisse a profissão de pescador.

Ramiro Damaia relatou, recorrendo a fragmentos de memória da infância em

Portugal, que em sua aldeia não havia eventos de música, assim, ele não possui lembrança sequer das festas familiares, pois todos se dedicavam exclusivamente ao trabalho, além disso, a família não possuía rádio. Suas primeiras impressões acerca da música remontam à infância no Brasil e à colônia portuguesa do Caju, onde passou a apreciar cantores de fado através do rádio, tendo à época como preferência as interpretações do cantor português Fernando Farinha, conhecido também como o

“Miúdo da Bica”.

Assim como a cantora Adélia Pedrosa, sua vizinha de bairro, Ramiro foi revelado como cantor aos doze anos de idade no programa de Joaquim Pimentel, na

Rádio Vera Cruz. Para essa apresentação, cantou três fados: “Eterna amizade”, “Fado

Pescador” e “Menina dos pés no chão”, com acompanhamento do Sr. Ferreira à guitarra portuguesa e Leonel Villar ao violão. Embora não houvesse prêmio em dinheiro destinado aos calouros, a apresentação de Ramiro lhe assegurou o primeiro lugar entre os seus concorrentes. Ao chegar a casa, Ramiro levou uma surra da mãe, pois a família era contrária à atuação de seus filhos em meios artísticos, principalmente na rádio, um ambiente que os pais consideravam próprio de malandros,

121 prostitutas e “paneleiros”38, ou seja, pessoas colocadas de alguma forma à margem da sociedade.

Ramiro alternou a profissão de pescador com a de cantor de fados, apresentando-se posteriormente no programa “Lima de Abreu”, na rádio Rio de

Janeiro no bairro de Vila Isabel. Casou-se em 1969 com vinte anos de idade, e passou a atuar em casas de fado no Rio de Janeiro, como a casa “Tio Patinhas”, então situada na Rua Joaquim Nabuco 14 em Copacabana; no restaurante “A Desgarrada”, situado à

Rua Barão da Torre, em Ipanema, e no restaurante “Lisboa à noite”, localizado na Rua

Pompeu Loureiro em Copacabana. Relatou ainda que atuou na década de 1980 em outra casa de fados, no Jardim Guanabara, na Ilha do Governador, destacando que foi o único cantor contratado com cachê.

De suas memórias, relatou que o bairro do Caju era um reduto de fadistas, ressaltando os cantores Mario Pedrosa, Joaquim Pedrosa e Adélia Pedrosa. A atividade de pesca no bairro era exercida predominantemente por portugueses que chegavam a ocupar uma única traineira com 30 pescadores. O pescado era distribuído no Mercado do Retiro do Caju, no Mercado da Praça XV e em algumas peixarias do bairro de

Ramos, da Ilha do Governador, etc. Ramiro declarou que ao final da década de 1950 e durante a década de 1960, o comércio de peixe na cidade era um ofício próspero, e que seu pai chegou a adquirir três barcos, terrenos e uma vida estável para a sua família, trabalhando como pescador.

Adepto ao fado de estilo “castiço”, Ramiro diz haver compartilhado o palco com diversos fadistas, como Sebastião Robalinho, Antonio Campos, Maria Alice

Ferreira, Ester de Abreu, Gilda Valença, Maria Alcina, Lúcia dos Santos, Adélia

38 Em Portugal, o termo “paneleiro” designa o homossexual do gênero masculino.

122

Pedrosa, Helia Costa, Mario Simões, Sá Moraes, Maria de Lourdes, Mario Rocha,

Olivinha Carvalho e Maria José Villar, entre outros. Afirmou que o seu fadista preferido no Brasil é o cantor Mario Rocha, e em Portugal, os cantores Fernando

Maurício, Camané e Maria da Fé.

Como Adélia Pedrosa, Ramiro ressalta a importância do cantor Joaquim

Pimentel para a difusão do fado no Rio de Janeiro a partir da década de 1950, sobretudo por manter um programa radiofônico de grande audiência para a comunidade portuguesa. Disse ainda que não toca nenhum instrumento, mas tem muito “bom ouvido”, passando para os instrumentistas todas as tonalidades de seus fados. Residente no bairro de São Cristóvão, Ramiro nunca voltou a Portugal, e programa realizar uma viagem ainda neste ano a fim de reencontrar sua terra natal e divulgar o seu primeiro trabalho discográfico, gravado no Brasil em 2009. Trata-se de um CD, intitulado “Uma Vida de Mar e Fado – Ramiro Damaia – A voz da saudade”, que apresenta em sua portada a foto do cantor ao lado de seu barco, batizado como

“Filho Glorioso”; na contracapa, a imagem do cantor-pescador com as redes nas mãos.

O disco apresenta treze canções, e foi produzido por José Mendes Chança com arranjos e execução instrumental de Victor Lopes, que toca violão, violão baixo, guitarra portuguesa, gaita e teclados.

Ao ser indagado sobre os instrumentistas de fado na cidade do Rio de Janeiro,

Ramiro afirmou que, antes da década de 1960, os principais músicos que atuavam no restrito cenário musical de fados eram os guitarristas Ferreira, Rodrigo, Lafaiete e José

Manuel Rocha; os violonistas José Manuel Rocha, Armando Nunes, Silvino Pinheiro e

Leonel Villar, - hoje todos esses artistas estão falecidos. O fadista entrevistado comentou que as guitarras foram sempre encomendadas em Portugal, e que ele

123 desconhecia qualquer luthier na cidade39. Para ele, durante a década de 1960 não houve uma grande repercussão entre os fadistas da cidade acerca dos fados do LP

“Busto”, da cantora Amália Rodrigues, e que apenas a cantora Maria Alcina (uma das fadistas mais atuantes naquele período) optou por inserir em seu repertório algumas músicas cantadas por Amália. Ramiro disse que a maioria dos cantores manteve a influência dos fados tradicionais de Alfredo Marceneiro ou Fernando Maurício na composição de seus respectivos repertórios.

Ramiro Damaia acredita que a comunidade portuguesa do Rio de Janeiro nunca deu a importância devida à música do fado, pois os espaços de atuação para os cantores eram limitados, restringindo-se a quatro casas noturnas na cidade, que existiram entre a década de 1960 e 1980. Na atualidade, a apresentação fica restrita às festas nas casas regionais, com preferência à atuação dos ranchos folclóricos que, com suas concertinas, apresentam gêneros musicais diversos como o “vira” ou a “cana- verde”, excluindo o fado como gênero musical em seu repertório. Enfatiza que o único músico que conhece o acompanhamento de fados na atualidade é o Sr. Victor Lopes, chamando atenção para o fato de que não existe escola ou professor de guitarra portuguesa (ou violão) para o gênero em nossa cidade, e parece temer que o fado possa desaparecer do Rio de Janeiro caso o Sr. Victor Lopes desista do ofício de músico.

O desinteresse da comunidade portuguesa na manutenção do fado no Rio de

Janeiro revela uma falta de preocupação desse segmento em manter a afirmação de sua identidade cultural, e esse tema é recorrente no discurso de Ramiro. Aliado a esse aspecto, ele ressalta a dificuldade encontrada pelos fadistas na contratação de músicos para realizarem o acompanhamento do fado em apresentações eventuais, fato

39 Observamos que, embora Ramiro tenha declarado desconhecer qualquer luthier na cidade, constatamos que, nesse período, a loja Bandolim de Ouro, proprietária da marca “Do Souto”, fabricava e comercializava guitarras portuguesas no Rio de Janeiro sob a responsabilidade do luthier Silvestre.

124 retomado em vários momentos da entrevista realizada. A fala de Ramiro demonstra uma preocupação constante com o desaparecimento do fado na cidade, pois tal fato vem acarretar em sua vida a impossibilidade da criação e expressão artística. Ao abordar aspectos da memória social, Pollack salienta a repetição de certos acontecimentos na fala dos depoentes:

Se destacamos essa característica flutuante, mutável, da memória, tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis. Todos os que já realizaram entrevistas de história de vida percebem que no decorrer de uma entrevista muito longa, em que a ordem cronológica não está sendo necessariamente obedecida, em que os entrevistados voltam várias vezes aos mesmos acontecimentos, há nessas voltas a determinados períodos da vida, ou a certos fatos, algo de invariante. (POLLAK, 1992: 201). Ramiro, embora não tenha enfatizado a sua classificação dentro de uma categoria específica - como cantor profissional de fado - pode ser considerado um artista popular de acordo com os parâmetros desenvolvidos por Becker (1977). Uma das hipóteses que apontam nessa direção é o fato de o cantor Ramiro Damaia ter atuado durante anos na “Casa Tio Patinhas”, um restaurante localizado no bairro de

Copacabana e reservado para a apresentação de fado vadio, isto é, um espaço onde se apresentavam fadistas amadores.

Becker (1977), ao comentar a arte popular como categoria, afirma que esta não se classifica em uma “comunidade artística profissional”, e que o artista popular, via de regra, não é considerado um indivíduo especial por seus pares dentro da comunidade em que habita, mas apenas “um membro que possui habilidades para o exercício de determinadas atividades”. (BECKER, 1977: 22). Logo, percebemos que o conceito de mundo artístico não obedece a um padrão rígido, mas sim flexível, pois seus artistas cooperados e respectivas obras de arte se adaptam a transformações para uma construção contínua desse mundo artístico.

125

Na pesquisa, o fado é observado através das relações e das convenções estabelecidas entre artistas integrados e populares que zelam pela difusão e manutenção de uma cultura musical tradicional de sua terra natal. Esses artistas regravam canções lusitanas e compõem novas obras no Rio de Janeiro, constituindo público e espaços de atuação e de divulgação do fado, além de terem o cuidado com a instrumentação e a estética concernente ao gênero. Todos esses aspectos propiciaram a configuração de uma rede social própria para a integração e sobrevivência da música portuguesa nesta cidade.

Considerando-se essa linha de reflexão, como pesquisador e espectador, destaco aspectos recolhidos em trabalho de campo no evento de fado organizado no

Clube da Portuguesa Carioca em 19 de junho de 2010. Tratava-se de um almoço que apresentava ao final os artistas Adélia Pedrosa e Ramiro Damaia em um show intitulado “O fado e o Mar”. Ao chegar, notei o grande salão ainda vazio, com poucas mesas ocupadas, fato que perdurou até o final do evento. O almoço teve início às 14 horas, e o show às 17 horas, com o anúncio do Sr. Oliveira Nunes sobre os músicos e os artistas participantes. Oliveira Nunes é um português radicado no Rio de Janeiro e que atua na divulgação do Fado, participando de espetáculos musicais e apresentando programas radiofônicos sobre o gênero musical, e ali atuava como apresentador e mestre de cerimônias. Após breve apresentação, ouvimos um fado interpretado pelos músicos Ricardo Araújo na guitarra portuguesa e pelo Sr. Bonfim ao violão. A seguir, o Sr. Oliveira anuncia a presença de Adélia Pedrosa, a “Princesinha do Fado”, vestida a caráter com um tradicional xale negro rendado. As músicas eram apresentadas em seu formato tradicional, com uma introdução da guitarra portuguesa e do violão, solo vocal, solo instrumental e o retorno vocal ao tema para desfecho da obra. Após interpretar algumas obras, a intérprete cantou “Cais da Ribeira” e “O Tejo”, fados que

126 a emocionaram de uma forma tão intensa (podia-se perceber que a fadista chorava) fato que a levou a perder a entrada do próximo fado, obrigando os acompanhantes a improvisarem sobre a forma da introdução até o restabelecimento de Adélia e o início da interpretação da canção seguinte, o fado “Casa da Mariquinhas”, com acompanhamento do público ao som de palmas. Adélia finalizou a sua apresentação com um fado do músico e compositor brasileiro Armando Nunes cujo trecho da letra traduz a essência emotiva do gênero fado: “amar é beber da taça da vida o amargo fel”. A obra foi anunciada como um fado brasileiro. Após ser aplaudida pelos presentes, Adélia se retirou do palco enquanto Ricardo Araújo e Bonfim interpretavam fados e outras músicas conhecidas, como o samba “Aquarela do Brasil”, tangos e boleros.

A seguir o Sr. Oliveira anunciou o outro fadista da noite, o cantor Ramiro

Damaia. Ao contrário de Adélia Pedrosa, a vestimenta de Ramiro era informal e inapropriada para um cantor de fados: bermuda, camiseta de alça, tênis e meia. Em diálogo com Ramiro antes de sua apresentação, ele disse que chegou cedo ao local para a passagem de som, mas que não pode retornar a sua casa para mudar de roupa em conseqüência de um acidente automobilístico que havia fechado a entrada do bairro da Ilha do Governador. Ramiro se desculpou pelos trajes e iniciou o seu show cantando os fados “Duas Lágrimas de Orvalho” e “Bairro Alto”, dando prosseguimento ao evento com outros fados de seu repertório. De forma idêntica à

Adélia, Ramiro também se emocionou ao iniciar a interpretação de um fado, solicitando ao conjunto mais um giro harmônico como introdução para que pudesse iniciar a canção.

Durante a apreciação do evento pude observar que algumas características escapavam à organização da performance do fado em seu formato tradicional. O

127 horário determinado para a apresentação era um destes fatores, pois, além de ser programado para um horário diurno, o show foi organizado em um palco no final do salão, com uma janela imensa ao fundo que refletia com intensidade os raios solares da tarde, impedindo a visibilidade dos artistas, identificáveis apenas em suas silhuetas.

O excesso de luz prejudicou a tomada de fotos e a gravação de imagens do evento.

Outro detalhe observado foi a ausência de símbolos que representassem a temática fadista, comuns nas casas de fado e que tem o propósito de ambientar o espectador com a cultura tradicional portuguesa. O silêncio exigido à interpretação dos fados era respeitado pelo número de ouvintes reduzido, que se constituía de um público ligado ao universo do fado e da cultura portuguesa. Entre eles, o radialista José Chança e a cantora Lúcia dos Santos. Porém, podíamos ouvir sons que chegavam da área externa do local, como os ruídos de uma partida de futebol no campo da Portuguesa (que ficava embaixo da janela do salão) e a música que era executada em uma festa realizada simultaneamente em outra sala do clube. O contraste da vestimenta dos artistas salienta a precariedade da organização do evento, mas ressalta o esforço deles para a sobrevivência e divulgação do gênero fado, pois não contam com patrocínios estatais ou empresariais, tendo que arcar com todo o processo de produção artística e musical (contrato de músicos, espaços de atuação, sonorização, divulgação, etc.).

Ao término do evento pude dialogar com os fadistas e os músicos sobre a organização do espetáculo no Rio de Janeiro, e a fadista Adélia Pedrosa afirmou que atuava com mais frequência em São Paulo, pois há ali, na atualidade, seis casas de fado com um público assíduo constante, o que permite uma divulgação básica do gênero musical na capital paulista. O guitarrista Ricardo Araújo, “discípulo” do guitarrista Manuel Marques, declarou que esses espaços de divulgação ajudam na manutenção do fado, pois é regularmente procurado por jovens músicos e pessoas

128 interessadas na aprendizagem da guitarra portuguesa, o que lhe induziu a criar e manter um blogue40 para o aprendizado do instrumento. Nesta página eletrônica,

Ricardo disponibiliza dados acerca da guitarra portuguesa (afinação, construtores, etc.), vídeos de estudos, exercícios, partituras dentre outras informações.

Outro relato a ser destacado no trabalho de campo é a entrevista com o Sr. José

Mendes Chança (Beira, Portugal, 1935), radialista e empresário, realizada em 15 de março de 2010. Proprietário de uma gráfica no bairro da Cidade Nova há mais de 30 anos, na Rua Correia Vasques 34-A, o Sr Chança divide suas atividades de empresário com o ofício de radialista. Há mais de nove anos, ele produz e apresenta um programa radiofônico denominado “Portugal Radioesporte”, que vai ao ar aos domingos entre

11.00 h e 12.00 h, nas ondas da Rádio Bandeirantes do Rio de Janeiro, em 1360 Khz.

Esse programa teve início em 05 de agosto de 2001, direcionado principalmente para a comunidade portuguesa no Rio de Janeiro, nele, o Sr. Chança apresenta informações esportivas que são intercaladas com fados de diversos artistas.

O radialista-empresário é proveniente da região portuguesa da Beira. Declarou ter chegado ao Rio de Janeiro em 1962 com a idade de 17 anos e passou a residir na casa de sua irmã, que ficava no Largo da Segunda-Feira no bairro da Tijuca. Assim como muitos imigrantes portugueses do período, ele optou pela imigração como uma alternativa que o livrasse do serviço militar português. Naquele tempo, o estado português recrutava jovens rapazes e os enviava para as linhas de frente em virtude da guerra entre Portugal e as colônias africanas.

Em Portugal, José Chança teve contato com o fado através dos programas radiofônicos. Relatou que ganhou um aparelho de rádio de seus pais somente aos 16

40 Disponível em http://guitarraportuguesa.musicblog.com.br/ Acesso em : 23 nov. 2010.

129 anos, e, apesar de apresentar grande euforia frente à novidade, pôde usufruir muito pouco do aparelho, porque não possuía dinheiro para adquirir pilhas de alimentação.

Seu primeiro contato com o fado no Rio de Janeiro aconteceu na União Portuguesa de

Estudantes, cuja sede era localizada em frente à Rádio Vera Cruz, no centro da cidade.

Ali, ele e outros estudantes se reuniam semanalmente para ouvir o programa de

Joaquim Pimentel, e por vezes cruzavam a rua para presenciar o programa ao vivo. O depoente declarou que ele e seus amigos compravam discos na única casa comercial que vendia fonogramas de música portuguesa, situada à Rua Machado Coelho, no bairro da Cidade Nova. Michael Pollak retoma o estudo de Maurice Halbwachs

(1968)41 a fim de ressaltar que “a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes.”

(POLLAK, 1992: 201).

O entrevistado afirmou não haver frequentado as casas regionais localizadas na cidade durante as décadas de 1960 e 1970 porque não possuía poder aquisitivo para tal empresa. No referido período, as casas regionais eram freqüentadas por famílias portuguesas de classe média alta, composta por comerciantes, empresários, etc. José

Chança declarou que o seu contato cultural com a colônia portuguesa acontecia nas festas populares que eram abertas ao público, citando como exemplo as Festas Juninas que aconteciam anualmente na Casa do Poveiro. José Chança acredita que o grande impulso para a divulgação do fado no Brasil aconteceu na década de 1930 com as interpretações do fadista Manoel Monteiro, e que o programa de Joaquim Pimentel, difundido pela Rádio Vera Cruz a partir de 1942, foi o responsável pelo ápice da popularidade do gênero na cidade entre as décadas de 1950 e 1970. Disse acreditar

41 HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective, Paris: PUF, 1968.

130 também que a diminuição do fluxo de imigração portuguesa para o Brasil, ocorrido durante a década de 1970, foi um fator determinante para a decadência do gênero frente à colônia residente na cidade do Rio de Janeiro.

Na atualidade, o radialista Chança encontra muita dificuldade em manter o seu programa no ar, queixa-se da falta de patrocínio de empresários e do apoio da comunidade portuguesa local. Lamenta o encerramento do “Programa Radiofônico

Joaquim Pimentel”, apresentado e produzido na Rádio Bandeirantes pelos cantores

Antonio Campos e Helia Costa desde 1978. O programa teve sua última edição no dia

28 de fevereiro de 2010, era apresentado semanalmente aos domingos entre 12.00 e

13.00 h em seguida ao programa de José Chança. O programa apresentado por

Campos e Helia Costa representava a continuação do programa original de Joaquim

Pimentel, iniciado em 17 de outubro de 1942, permanecendo no ar por 68 anos ininterruptos. Segundo Chança, a falta de patrocínio foi a principal causa de seu encerramento.

Em certo momento da entrevista, José Chança foi indagado sobre suas preferências musicais do mundo fadista. Respondeu que gosta muito do cantor

Francisco José e que teve a oportunidade de assisti-lo em apresentações realizadas no restaurante chamado “Casa Adega de Évora”, de propriedade de Francisco José, situado à Rua Santa Clara em Copacabana, e no restaurante “O Fado”, localizado também em Copacabana, de propriedade do fadista Tony de Matos. Revelou ainda sua admiração pela cantora Amália Rodrigues e por todo o seu empenho para a modernização e divulgação do fado. Dentre os cantores radicados no Rio de Janeiro, citou o fadista Mario Simões, que canta ao estilo de Francisco José; o fadista Ramiro

Damaia, influenciado por outro fadista, Alfredo Marceneiro, além dos cantores

Antonio Campos e Tony de Matos; as cantoras Maria Alcina, Helia Costa e Olivinha

131

Carvalho, e em São Paulo, Adelia Pedrosa e Maria de Lourdes. Ao final da entrevista,

José Chança citou um personagem do mundo fadista carioca, o Sr. Oliveira Nunes,

(parente da fadista portuguesa Maria da Fé), que anunciava em casas noturnas os cantores de fado em suas apresentações.

Além de cantores e público, o mundo artístico do fado contempla músicos instrumentistas que participaram da configuração dessa cultura na cidade como artistas integrados, e sua função na rede social pode ser analisada no relato seguinte.

O músico Carlos Silva e Souza (Rio de Janeiro, 25/08/1943), violonista popularmente conhecido nas rodas de choro por “Caçula”, também integrou os conjuntos de fado no Rio de Janeiro entre 1961 e 1980. Em entrevista concedida em

03 de novembro de 2010, o músico declarou que, por ser reconhecido por seus pares como um instrumentista acompanhador hábil no “Programa dos Astros” da Rádio

Vera Cruz, em que atuou, ingressou no universo dos fadistas, em 1961, a convite do violonista Silvino Pinheiro, tocando violão-baixo e depois violão, sendo chamado de

“Caçula Hilário”, em alusão ao fadista português Hilário. Inicialmente, integrou como músico de violão-baixo um trio com os músicos Ferreira à guitarra e Leonel Vilar ao

Violão. Em outra formação, atuou como baixista com os músicos Rodrigues

“Vendaval” na primeira guitarra, Silvino Pinheiro ao violão e Manuel Rocha na segunda guitarra. O depoente informou ter gravado com esse quarteto, em 1964, num disco da cantora Ester de Abreu. Gravou com Antonio Campos, Sebastião Robalinho e

Maria Alcina, além de ter acompanhando diversos fadistas como Manoel Taveira,

Antonio Maria (guitarrista) e Helio Ferreira. Suas memórias acerca do fado na cidade resgatam ainda a destreza do violonista Xavier Pinheiro, com quem atuou durante muitos anos na “Adega de Évora” no Rio de Janeiro.

132

As referências aos artistas ligados ao universo cultural do fado no Rio de

Janeiro encontram-se dispersas em arquivos de jornal, na contracapa de alguns discos e, principalmente, na memória de seus sujeitos celebrantes. A reconstituição dos dados biográficos, artísticos e discográficos dos principais artistas é um dos objetivos desta pesquisa, e, se cruzarmos os relatos e averiguarmos a consistência das fontes, poderemos reconstituir parte da história dos músicos que acompanharam os fadistas em suas apresentações.

O guitarrista Antonio Ferreira da Conceição já atuava em 1929, e gravou neste ano, em solo de guitarra portuguesa, a valsa “Saudades de Portugal” e o “Fado da

Conceição”, obras de sua autoria e com o acompanhamento de violão do músico

Henrique Xavier Pinheiro. Especialista em música portuguesa, Antonio Ferreira compôs e gravou inúmeras obras dentre fados, viras e corridinhos, além de outros gêneros musicais como valsas, fox-trotes, jotas e marchas. Em 1931, participou da gravação do fado “Canção transmontana” na voz do fadista Benício Barbosa, além de acompanhar durante vários anos os fadistas Manoel Monteiro e Joaquim Pimentel em shows e gravações. Em 1938, gravou na RCA Victor quatro músicas com o cantor

José Lemos: "Corridinho do Sul", a marcha “Amor de perdição”, o “Vira da saudade" e o fado-marcha "Duas Pátrias".

Em 1956, Antonio Ferreira teve o orgulho de ver a consagração da valsa

“Elza”, em parceria com Xavier Pinheiro, regravada por Jacob do Bandolim no LP

“Valsas evocativas”. A importância de Antonio Ferreira é grande para a história do fado no Rio de Janeiro, pois, segundo relatos de nossos informantes entrevistados, o músico continuou atuando nessa cidade até a década de 1960.

133

Outros guitarristas que atuaram entre as décadas de 1950 e 1970 foram citados por nossas fontes, como Fernando Freitas, Jorge Freitas, José Nunes, José Manuel

Rocha, Antonio Maria, Lafayete Ramalho e Antonio Rodrigues. Segundo os declarantes, a técnica da guitarra portuguesa era passada de um músico para outro através da observação e da oralidade, como se tratasse de uma tradição familiar. Não havia na época métodos eficientes editados ou instrumentos no mercado brasileiro, pois as guitarras eram importadas de Portugal.

Complementando o suporte instrumental e harmônico no acompanhamento dos intérpretes fadistas, relacionamos os principais violonistas que se destacaram no Rio de Janeiro no período em questão, como José Manuel Rocha (que também era guitarrista), os brasileiros Armando Nunes e Caçula Hilário, Silvino Pinheiro, elogiado sempre por sua musicalidade e precisão técnica, e Leonel Vilar, casado com a fadista

Maria José Vilar.

Outro violonista importante é Henrique Xavier Pinheiro, baiano de Salvador e residente no Rio de Janeiro, que também tocava guitarra portuguesa. Xavier atuou na

Rádio Vera Cruz, acompanhando fadistas e cantores portugueses, inclusive no

Programa de Joaquim Pimentel, e no início da década de 1930, formou dupla com o iniciante Luiz Gonzaga, depois reconhecido como o “Rei do Baião”. Parceiro do guitarrista Antonio Ferreira da Conceição, gravou em 1929 no selo Parlophon a valsa

“Saudades de Portugal”, o “Fado da Conceição”, a marcha “Vasco da Gama” e a valsa

“Elza”, estas duas últimas dobrando a guitarra portuguesa com Antonio Ferreira. A partir da década de 1930, Xavier Pinheiro gravou diversas obras em dueto com

Antonio Ferreira, e participou da gravação dos fados “Duas almas” e “Variações em lá menor” do fadista Carlos Campos, dentre outras músicas; gravou com Manoel

Monteiro e Joaquim Pimentel, e se fez presente no cenário musical carioca até a

134 década de 1960. Os dados biográficos de Xavier Pinheiro e de Antonio Ferreira podem ser consultados no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, nos sites

e

.

3.3 Blogueiros: a manutenção da memória do fado no Brasil

Nos dias atuais, mídia e tecnologia constituem uma alternativa de ação que atua na preservação da memória do fado no Brasil, disponibilizando através de blogues e sites especializados alguns dados biográficos dos fadistas, fotos, discografia, entre outras referências.

Os blogues são organizados por familiares de artistas ligados ao fado e pesquisadores da cultura popular, que assumem a responsabilidade de registrar e divulgar a música portuguesa sem contar com subvenção financeira oficial de qualquer espécie para a manutenção do projeto. O empreendimento de Claudia Tulimoschi, filha da fadista Adélia Pedrosa e neta do comunicador Alberto Maria Andrade (do programa “Caravela da Saudade”), envolve a organização de blogues e podcasts42, como o “Mundo Fado Brasil”43, blogue que disponibiliza informações acerca do fado no país, além de gravações, fotos e o endereço eletrônico de vários fadistas; O blogue de Adélia Pedrosa44, com fotos, gravações, dados artísticos e dados biográficos; seu site pessoal45, que também inclui informações e depoimentos que podem justificar o seu empenho no resgate histórico deste gênero musical. Por ser filha de uma renomada fadista, Claudia Tulimoschi conviveu com diversos artistas desde sua

42 Blogue ou Blog é um site eletrônico disponível na Internet que permite a postagem e a atualização de fotos e artigos, bem como a comunicação entre idealizadores e visitantes. Podcast ou Podcasting é um formato de veiculação de programas de áudio na Internet, apresentando as músicas em formato mp3. 43 Disponível em http://mundofadobrasil.blogspot.com/ > Acesso em 14 jan. 2011. 44 Disponível em < http://adeliapedrosa.blogspot.com/> Acesso em 14 jan. 2011. 45 Disponível em < http://clautulimoschi.blogspot.com/p/fado.html> Acesso em 14 jan. 2011.

135 infância, e presenciou a apresentação destes fadistas em casas de fado e reuniões familiares, testemunha ocular dos elos constituintes da rede social que conecta o universo do fado. Em seu site, registra um depoimento sobre os motivos que a conduziram ao empenho de tal tarefa:

Faço o que faço, que é pouco, muito pouco, de coração, com o mais profundo sentimento de amor e gratidão por tudo que o Fado deu a minha mãe e a mim. Me alimentou, me educou, me agasalhou. Me criou. E o mínimo que posso fazer é ser grata. (...) Quero ver o Fado de volta ao Brasil, como merece. Quero que nossos artistas emigrantes que tanto lutaram e ainda lutam, sejam reconhecidos aqui no Brasil, e principalmente em sua Pátria. Já que não canto, como minha mãe, escrevo e falo como meu avô. Essa é a minha luta. Quem quiser e quem puder que se junte a mim. Juntos podemos fazer muito. (Disponível em: < http://clautulimoschi.blogspot.com/p/fado.html> Acesso em 14 jan. 2011).

Uma referência das redes sociais relacionadas à prática interpretativa do fado pode ser observada no blogue “Mundo Fado Brasil”46, e diz respeito ao estudo da relação entre fado e imigração. Nesse site, encontramos informações sobre o prestígio do fado entre as décadas de 1960 e 1980, como a indicação de que o gênero musical gozou de ampla divulgação na mídia e de boa recepção por parte da população brasileira, e por conseguinte da colônia portuguesa no Brasil. Dentre os programas que divulgaram a música portuguesa, o site destaca os programas televisivos "Caravela da

Saudade", "Casa do Casemiro", "Portugal sob o Mesmo Céu", "Imagens de Além-

Mar", "Todos Cantam a Sua Terra". Os fadistas se apresentavam também nos programas de Flavio Cavalcanti e Hebe Camargo, entre outros. O blogue “Mundo

Fado Brasil” foi criado em 2008, e até o primeiro semestre de 2011 recebeu o acesso de mais de 12.300 visitantes.

46 Disponível em: Acesso em: 15 out. 2009.

136

Claudia Tulimoschi criou e mantém em sociedade com o radialista português

Oliveira Nunes uma rádio que transmite programas através da Internet, a “Web Rádio

Portugal” que tem como objetivo garantir

[...] a disseminação das tradições portuguesas e assegurar a divulgação do trabalho de artistas emigrantes que tanto lutaram e ainda lutam pela divulgação da cultura de sua saudosa Pátria, em especial a música, e mais especificamente o Fado. (Disponível em: < http://www.radioportugal.com.br/>. Acesso em: 12 jan. 2011).

A “Web Rádio Portugal” apresenta uma programação semanal que contém programas como “Cardápio Cultural”, “Música Portuguesa de Todos os Tempos”,

“Mundo Fado”, “Seleções Portuguesas”, “Navegar é Preciso” e “Lusitânia Expresso”.

O site se mantém no ar com o patrocínio de empresas como a distribuidora de bebidas

“Lidador” e a “MTD Transportes”.

A pesquisadora e escritora paulista Thais Matarazzo criou, em 2008, um blogue pessoal47 com informações sobre artistas portugueses e brasileiros, e disponibiliza em formato de artigos resumos biográficos de fadistas, fotos e links para vídeos postados no site You Tube48 e gravações fonográficas em formato mp3. Seu trabalho criterioso de pesquisa inclui uma monografia sobre as Irmãs Meirelles, além de entrevistas com diversos fadistas e artistas da música brasileira. A pesquisadora também mantém um programa na “Rádio Web Portugal”, em colaboração com a comunicadora Claudia Tulimoschi.

A divulgação do fado em meios digitais destaca ainda o site de Sebastião

Robalinho49, organizado por sua filha Priscila Robalinho, o blogue da fadista Maria de

Lourdes50 e o site de Manuel Taveira51, idealizado por seu filho Ruy Taveira, que

47 Disponível em: http://thmatarazzo.bloguepessoal.com/. Acesso em: 12 jan. 2011. 48 Disponível em: http://www.youtube.com/?gl=BR&hl=pt Acesso em: 12 jan. 2011. 49 Disponível em: < http://www.sebastiaorobalinho.blogspot.com/> Acesso em: 14 jan. 2011. 50 Disponível em: < http://mariadelourdesfado.blogspot.com/2009/04/blog-post.html> Acesso em: 12 jan.2011.

137 disponibilizam discografia, fotos, links para vídeos, biografias e gravações fonográficas.

Os mundos artísticos se encontram em constante movimento, e se desenvolvem de forma progressiva ou mesmo promovendo uma ruptura radical nas obras de arte produzidas e apreciadas por sua rede social. Algumas redes desaparecem ou se transformam, ocasionando o surgimento de novos mundos artísticos. Durante o século

XX, o mundo artístico do fado estava associado aos espaços de difusão do gênero musical e da cultura portuguesa, que incluía as casas de fado, os programas de rádio e televisão, os fonogramas e imagens registrados em discos de 78 rpm, LPs, Fitas K7,

Fitas de vídeo, CDs e DVDs. A partir do século XXI, o implemento de novas tecnologias amplia o campo de divulgação e a rede social associada ao fado, transformando o seu mundo artístico. Adventos como a rede digital possibilitam o acesso e o envio de arquivos de áudio em formato mp3.

Becker (1982) utiliza a metáfora da revolução para exemplificar o processo de ruptura nos padrões rotineiros de cooperação, e a metáfora da deriva para definir as transformações ocorridas em um mundo artístico organizado, e que tende a solucionar os seus problemas de forma natural e gradual. No caso do fado no Rio de Janeiro (e no

Brasil), os blogues e as tecnologias digitais assumem o papel de agentes mantenedores deste gênero musical e da cultura portuguesa, tendo em vista que não existem casas de fado ou espaços específicos de atuação na cidade, bem como cursos voltados para o ensino da música portuguesa em geral. A tecnologia digital apresenta uma nova forma de comunicação entre seus agentes, mas não pode ser considerada como um processo

51 Disponível em: < http://manueltaveira.blogspot.com/> Acesso em: 14 jan. 2011.

138 revolucionário que promova uma ruptura na rede social, pois, como nas transformações ocorridas “à deriva”, os agentes envolvidos no processo acabam aceitando e compreendendo essas transformações como um processo de desenvolvimento natural, ou seja, no mundo do fado, mesmo na era da cibernética, a

ênfase é na continuidade e no resgate do tradicional. Novos agentes (os blogueiros) surgem para manter acesa a chama do cultivo ao gênero musical.

3.4 As casas de fado da cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970

Os espaços mais comuns destinados à difusão do fado na cidade do Rio de

Janeiro são os restaurantes típicos organizados à semelhança das casas de fado de

Lisboa. Localizados em sua maioria na Zonal Sul do Rio de Janeiro, as casas de fado eram ambientadas com símbolos da cultura lusitana (cartazes de monumentos e cidades de Portugal, o Galo de Barcelos, a bandeira e o escudo de Portugal, etc.) e com elementos da temática fadista (o xale negro, a guitarra portuguesa, o quadro alusivo à fadista Severa, etc.).

Os restaurantes eram frequentados por uma parcela de portugueses residentes na cidade composta de empresários, comerciantes e diplomatas, mas segundo o depoimento da fadista Maria Alcina, proprietária do restaurante “A Desgarrada”, a maior parte dos clientes destes estabelecimentos se constituía de cariocas e turistas brasileiros, e 90% de seu público total era composto por membros integrantes da alta sociedade carioca.

Em seções noturnas, entremearam-se números folclóricos, comida e fados nos restaurantes que contaram por vezes com um elenco fixo de músicos e cantores.

Algumas destas casas pertenciam aos próprios artistas, que dividiam a sua vida entre o fazer artístico e empresarial. Durante o dia, o cuidado com o estoque de bebidas e

139 alimentos, a administração da limpeza do estabelecimento e da cozinha, o trato e a negociação com os fornecedores, a rotina fiscal de recolhimento de impostos e tributos, o processo de preparação dos pratos típicos e sobremesas, atividades próprias de qualquer empresário que se dedique a tal negócio. O turno da noite chega e o empresário cede lugar ao profissional de relações públicas, que necessita estar elegantemente preparado para receber seus músicos, artistas convidados e os primeiros clientes ilustres. Com o avançar da noite ocorre outra metamorfose, e agora é o artista que se manifesta, que se une aos músicos e canta para uma platéia silenciosa que está ali ansiosa para ouvir a voz do seu ídolo.

Figura 3. Restaurante “O Fado”, Copacabana, RJ, final da década de 1960. - Adélia Pedrosa, Tony de Matos, Mário Rocha, Antonio Rodrigues (Guitarra) e Leonel Vilar (Violão). Disponível em: Acesso em: 11 jan. 2011.

140

No Rio de Janeiro, como visto anteriormente, três casas pertenciam a fadistas reconhecidos: a “Casa Adega de Évora” na Rua Santa Clara em Copacabana, de propriedade do cantor Francisco José; o restaurante “Fado”, na Rua Barão de Ipanema

156, em Copacabana, de propriedade do cantor Tony de Matos, e o restaurante “A

Desgarrada”, na Rua Barão da Torre 667, em Ipanema, de propriedade da cantora

Maria Alcina, que funcionou neste local entre 1976 e 2000. Maria Alcina, que à época residia na parte superior do estabelecimento comenta sobre suas ocupações múltiplas:

Durante o dia, eu era a gata borralheira, fazia sobremesas, fazia compras, contactava, também a vida social artisticamente, porque freqüentava muito o [Clube] Caiçaras, tinha que fazer tudo isso porque [era] para chamar pessoas depois, né, tem que haver um convívio com inteligência, né. Era assim: durante [a preparação d]o show, até mais ou menos seis horas da tarde, a Maria Alcina de calça jeans, camiseta, arrumando, fazendo sobremesas, dando ordens, etc. depois, às nove e meia, descia a princesa, vestido longo, toda arrumada. Nossa casa era muito bem freqüentada... No Rio de Janeiro, as casas de fado possuíam um elenco fixo e acolhiam diversos artistas locais, além de artistas provenientes de outros Estados brasileiros e de

Portugal. Entre a década de 1960 e 1970, não seria incomum testemunhar a presença e a apresentação de artistas portugueses renomados nas casas de fado do Rio de Janeiro, fadistas como Carlos do Carmo ou Amália Rodrigues, conforme relata Maria Alcina:

“Ela na minha casa cantava assim... Ela [Amália] vinha pro Canecão. Acabava no

Canecão e ia lá pra casa ... e íamos até as sete da manhã, depois íamos ver nascer o sol na Urca, que é a coisa mais linda que tem...”.

As casas de fado de Lisboa são organizadas ao final da década de 1940, voltadas para a divulgação do gênero no país e para o entretenimento de turistas que visitavam Portugal e deixavam ali suas divisas. No Rio de Janeiro, as casas de fado atendiam a um público de poder aquisitivo superior que pertencia à classe média carioca, o que justifica a distribuição local da maioria destes estabelecimentos entre o bairro de Copacabana e Ipanema.

141

A seguir, como indicam os depoimentos, relacionamos um quadro dos restaurantes que funcionaram na cidade entre as décadas de 1950 e 1970:

Quadro 3: Restaurantes portugueses no Rio de Janeiro entre 1950 e 1970. DENOMINAÇÃO ANO ENDEREÇO BAIRRO PROPRIETÁRIOS Casa da Mariquinhas 1959 Desconhecido Maracanã Cantinho da Severa 1960 Rua Raul Pompéia Copacabana Restaurante “Galo” Rua Cinco de Julho, Copacabana Rua Francisco Otaviano Copacabana Lisboa à Noite 1969 Rua Pompeu Loureiro Copacabana Francisco José Sr. Saraiva Casa Adega de Évora 1968 Rua Santa Clara Copacabana Francisco José Maria da Graça O Fado 1968 Rua Pompeu Loureiro Copacabana Tony de Matos Rua Barão de Ipanema 156 Antonio Mestre Corridinho 1950 Rua Xavier da Silveira Copacabana Antonio Mestre Tio Patinhas 1969 Rua Joaquim Nabuco Copacabana A Desgarrada 1976 Rua Barão da Torre Ipanema Maria Alcina Adega do Mesquita Desconhecido Parreira do Rio Lima 1955 Rua General Bruce São Cristovão

Localizadas fora da Zona Sul da cidade, casas de fado como a “Casa da

Mariquinhas” no bairro do Maracanã e o restaurante “Parreira do Rio Lima” em São

Cristóvão atendiam a um grande número de membros da comunidade portuguesa que concentravam suas residências nesses bairros. Segundo os relatos obtidos em nossas entrevistas, o espetáculo musical se organizava de forma idêntica às outras casas da

Zona Sul, mantendo um padrão de qualidade entre público e artistas. A única casa citada fora deste contexto foi a casa “Tio Patinhas” em Copacabana, que se dedicava à apresentação do Fado Vadio52. Nas fotos anexadas nesta seção, podemos observar a ambientação temática destas casas de fado, bem como reconhecer alguns músicos e artistas da época.

As casas de fado, construídas através de convenções simbólicas na capital portuguesa, aqui se reproduziram à semelhança de suas matrizes lusitanas. Constituem

52 Fado vadio é uma designação utilizada em Portugal para descrever um fado cantado por músicos amadores que se apresentam em estabelecimentos comerciais que não possuem a organização comercial das casas de fado tradicionais. Essas casas se encontram abertas para fadistas amadores e profissionais que ali queiram se apresentar.

142 uma parte primordial da rede social que legitima o mundo artístico organizado dos fadistas no Rio de Janeiro, pois é neste espaço que o artista se manifesta como fadista, integrando-se com os vários elementos de sua cultura e os membros de sua comunidade.

3.5 Programas radiofônicos e televisivos

O pioneirismo dos programas radiofônicos é creditado aos fadistas Manoel

Monteiro e Joaquim Pimentel entre as décadas de 1930 e 1940. É, portanto, a partir da década seguinte que a relação público e artista será intensificada, em decorrência do trânsito e do estabelecimento de artistas portugueses na cidade, do acréscimo do número de fonogramas gravados e do surgimento das casas de fado em alguns pontos da Zona Sul carioca.

O fadista Manoel Monteiro (São Martinho de Cimbres, Portugal, 15/5/1909,

Rio de Janeiro, RJ, 26/11/1990) chegou ao Brasil acompanhado de seu pai em 1923, quando contava com 14 anos de idade. Iniciou a sua carreira como cantor em 1933, atuando no programa “Luso-Brasileiro” da Rádio Educadora do Brasil, tendo gravado, no mesmo ano, para o selo Odeon, os fados “O teu olhar” e “O último fado”, ambos de autoria do compositor Carlos Campos. Manoel Monteiro gravou fados, marchas, viras e obras de diversos autores brasileiros, como Vicente Paiva, Kid Pepe, Roberto

Martins, David Nasser e Osvaldo Santiago. O referido fadista se apresentou em circos na cidade do Rio de Janeiro, dividindo o espaço artístico com cantores como Orlando

Silva e Silvio Caldas. Em 1939, realizou uma turnê em Portugal, nas cidades de

Coimbra, Porto e Lisboa, acompanhado do sambista Moreira da Silva.

As atividades artísticas de Manoel Monteiro foram primordiais para a comunidade portuguesa estabelecida na cidade do Rio de Janeiro, pois ele atuou nos

143 espaços destinados à divulgação do fado, (circos, teatros, rádios, televisão) além de apresentar, a partir de 1933, um programa radiofônico de música e cultura portuguesa na Rádio Vera Cruz do Rio de Janeiro. Entre 1966 e 1968, Monteiro apresentou um programa de TV denominado “Revista do Rádio em Portugal”, divulgando o trabalho de diversos artistas brasileiros e portugueses. A comunidade luso-brasileira reconheceu a importância da trajetória artística do fadista em um evento realizado no

Teatro Carlos Gomes do Rio de Janeiro em 1949.

Como ocorreu com a fadista Maria Alcina, Manoel Monteiro foi homenageado em sua terra natal, Cimbres, emprestando o seu nome para uma rua local, além de ser reconhecido em diversas cidades brasileiras, pois há sete ruas com seu nome nelas assinalado.

Podemos fazer uma referência ao cantor Joaquim Pimentel como destaque no período focalizado frente à colônia portuguesa. Joaquim Pimentel (Freguesia do

Cedofeita, Porto, 15/07/1910, São Paulo, 15/07/1978) começou a obter êxito como cantor de fados na cidade de Lisboa. Em 1934 veio pela primeira vez ao Brasil com outros artistas portugueses, como Maria do Carmo, Maria do Carmo Torres, Filipe

Pinto, Branca Saldanha, Alberto Reis, Eugénio Salvador e Lina, e retornou posteriormente para uma temporada mais ampla entre 1939 e 1946. A partir de 1947,

Pimentel se estabeleceu definitivamente no Brasil, inicialmente no Rio de Janeiro, onde atuou como radialista, compositor, poeta, ator, fadista e apresentador de TV, divulgando e promovendo o fado como canção popular portuguesa. Gravou diversos discos de 78 rpm, em que reuniu um repertório composto de obras como “Vendaval”,

“Só nós dois”, “Mulheres há muitas”, “Malmequer”, “Confissão”, “Não penses mais em mim”, “A freira”, “Duas mortalhas”, entre outros. Suas músicas foram gravadas por diversos fadistas, inclusive pela cantora portuguesa Amália Rodrigues.

144

Figura 4: Joaquim Pimentel. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2011.

Atuou como radialista na Rádio Vera Cruz em um programa que se denominava “Programa dos Astros”, estreado em 17 de outubro de 1942. Revelou e acolheu inúmeros expoentes do fado no Brasil, como Adélia Pedrosa, Maria Alcina,

Antonio Campos, Sebastião Robalinho, entre outros músicos e artistas. Joaquim

Pimentel foi um comunicador experiente, esteve à frente de programas televisivos de cultura portuguesa, como o programa “A Casa do Casemiro”, na TV Continental do

Rio de Janeiro, em 1968, além do já mencionado “Programa dos Astros”, em que atuou continuadamente por 36 anos.

Na década de 1970, Pimentel transfere a sua residência para São Paulo e funda com Adélia Pedrosa e Terezinha Alves o restaurante “Lisboa Antiga”, que funcionou como uma das mais importantes casas de fado da capital paulista. De todas as músicas de Joaquim Pimentel, o fado “Só nós dois” pode representar bem a dimensão criativa do artista. Esse fado foi gravado e cantado por quase todos os fadistas de sua geração, assim como por cantores brasileiros como Nelson Gonçalves, Fafá de Belém e

Vanusa.

145

“Só nós dois”

Só nós dois é que sabemos

O quanto nos queremos bem

Só nós dois é que sabemos

Só nós dois e mais ninguém

Só nós dois avaliamos

Este amor, forte, profundo...

Quando o amor acontece

Não pede licença ao mundo.

Durante a década de 1950 as principais emissoras que transmitiam programas direcionados para a comunidade portuguesa eram a Rádio Tupi, a Rádio Rio de

Janeiro, a Rádio Tamoio, a Rádio Vera Cruz e a Rádio Nacional. Para os fadistas, o programa mais importante e de maior audiência na comunidade portuguesa era o

“Programa dos Astros” de Joaquim Pimentel. Apresentado ao vivo no estúdio da Rua

Buenos Aires em formato de programa de auditório, o “Programa dos Astros” foi inaugurado em 17/10/1942, e revelou grandes nomes da música portuguesa no Brasil, como Adélia Pedrosa, Sebastião Robalinho, Antonio Campos, Ramiro Damaia,

Claudia Ferreira entre outros. Inaugurado na Rádio Vera Cruz, após a morte de

Joaquim Pimentel (em 1978) o “Programa dos Astros” passou a ser apresentado na

Rádio Bandeirantes, aos domingos, pelos fadistas Antonio Campos e Helia Costa, encerrando sua difusão em fevereiro de 2010. O fim do programa radiofônico idealizado por Pimentel e a dificuldade de patrocínio encontrada pelos radialistas para a manutenção de seus programas foi tema de um artigo crítico publicado por Claudia

Tulimoschi no “Jornal Mundo Lusíada On Line” intitulado “Música portuguesa no

Brasil - O fim de uma era”, cujo trecho reproduzimos a seguir:

146

O fim do “Programa Joaquim Pimentel” é um marco lamentável, que nos mostra que a verdade é que a cultura portuguesa no Brasil está agonizando. E o pior e mais vergonhoso, o programa está acabando por falta de patrocínio, assim como também o “Programa Seleções Portuguesas - Show da Malta”, apresentado por Oliveira Nunes, e mais outros dois programas. Só no início deste ano de 2010 quatro programas terão suas transmissões encerradas e um outro terá seu horário reduzido por falta de apoio financeiro. (...) O último programa Joaquim Pimentel foi ao ar no último dia 28 de fevereiro [de 2010], às 12 horas na radio Bandeirantes AM do Rio de Janeiro. Mas ao contrário de um ser humano ele pode renascer, sempre há tempo de se fazer algo. Mexa-se quem puder e tiver o mínimo de consciência, e quem tem ou teria a obrigação de promover a cultura portuguesa no mundo. (Disponível em: . Acesso em: 09 dez. 2010).

O êxito dos apresentadores de rádio e seus artistas junto a uma determinada comunidade envolve uma reflexão acerca do processo de comunicação que interliga as duas partes. As rádios, através de sua programação musical – nesse caso, a apresentação de composições e de artistas cantores de fado -, criam uma ramificação de relações sociais porque geram uma rede de relações interpessoais que se constroem a partir de um sentimento comum e de uma experiência compartilhada. Esses programas fazem uma ponte entre a música e os ouvintes, oferecendo-lhes uma sustentação, que assim se configura em virtude da rede de relações constituída por esses espectadores e por seus comunicadores e artistas.

147

Figura 5. Adélia Pedrosa - Rádio Vera Cruz - Programa dos Astros de Joaquim Pimentel Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2011.

Os fadistas entrevistados em nossa pesquisa foram unânimes em ressaltar a importância do programa de Joaquim Pimentel para a formação deles como intérpretes e para a iniciação de suas carreiras como artistas profissionais. Ressaltamos que a maior parte desses artistas só teve contato com o fado no Rio de Janeiro, quer seja por se transferirem para o Brasil em idade infantil ou por não possuírem rádios transmissores em suas regiões de origem em Portugal. Assim aponta o depoimento de

Ramiro Damaia, e a mesma observação pode ser aplicada à fadista Adélia Pedrosa.

O programa de Joaquim Pimentel apresentava sucessos de fadistas portugueses e um programa de calouros que contava com um grande número de artistas luso- brasileiros. Cantores como Antonio Campos, Maria Alcina, Ramiro Damaia e Adélia

Pedrosa, entre outros, passaram da condição de ouvintes para a situação de intérpretes, sendo reconhecidos por conterrâneos portugueses no Brasil e, na maior parte das vezes, em Portugal. Os senhores Manoel Pinto e Nelson Calafate, na condição de

148 ouvintes e membros reconhecidos da comunidade portuguesa, declararam haver tido contato com o fado em Portugal por meio radiofônico ainda durante a infância, e que o programa de Joaquim Pimentel possibilitou a continuidade de contato com essa música, além de oferecer possibilidades novas de escuta com artistas luso-brasileiros que não eram veiculados na rádio portuguesa. Esses depoentes possuem, nos dias atuais, o hábito de acompanhar os programas radiofônicos remanescentes dirigidos à comunidade portuguesa local.

O músico Caçula Hilário tem seu nome vinculado à história do fado no Rio de

Janeiro por atuar como músico acompanhador no programa de Joaquim Pimentel e ali constituir uma rede de amigos e, assim, ingressar na rede social de artistas do gênero fado na cidade. Caçula incorpora os padrões característicos dos estilos variados do fado e se reveste de um habitus musical que lhe conferia prestígio como músico, mantendo livre trânsito entre os demais fadistas.

A relação que envolve público (ouvintes), artistas, comunidade (anunciantes) e comunicadores (radialistas) é complexa, e sua efetivação pressupõe o reconhecimento recíproco de múltiplos discursos. Os discursos são regulados pelas regras estabelecidas entre os sujeitos, e esse conjunto de regras - parte do aprendizado dos indivíduos na sociedade - é passado por herança cultural de geração em geração. A aceitação da autoridade só pode ser reconhecida e legitimada pelas partes envolvidas no discurso. Os programas dirigidos à comunidade portuguesa foram produzidos por membros integrantes da própria comunidade, herdeiros dos códigos, das regras e da cultura que assumiam a função de emissor no contrato. De outro lado, a recepção é legitimada pelos demais membros da comunidade, e a ação da rede social que opera dentro do mundo artístico pode ser observada na relação existente entre a emissão e a recepção, na condição do vínculo das partes e em seu processo de produção de sentido.

149

Figura 6. Reunidos nesta foto estão, entre amigos, todos os artistas do Programa dos Astros, de Joaquim Pimentel. Ao centro, atrás de Joaquim Pimentel, Adélia Pedrosa, ainda de tranças. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2011.

A história da televisão no Brasil se inicia em 1950 e, no ano seguinte, a TV

Tupi do Rio de Janeiro inicia as suas transmissões, procurando apresentar um formato adequado ao público brasileiro com programas de variedades, entretenimento, telejornais e “inventando” o seriado de telenovelas. 53

A música e os artistas portugueses estiveram presentes no início da história da

TV no Brasil. Esses artistas atuaram em telenovelas, em programas culturais e organizaram os seus próprios programas de cultura portuguesa, estes voltados para a comunidade luso-brasileira. A cantora Gilda Valença, por exemplo, atuou como atriz

53 A história da televisão no Brasil pode ser observada através da obra Historia da comunicação - rádio e TV no Brasil, de Maria Elvira Bonavita Federico, Petrópolis: Vozes, 1982.

150 nas telenovelas “Antonio Maria” (1968), “A Fábrica” (1971) e “O preço de um homem” (1971), todas na TV Tupi.

Os principais programas dedicados a entrevistas e divulgação da música e da cultura portuguesa eram veiculados na TV Tupi, TV Continental e TV Rio. Na TV

Tupi, o programa "Caravela da Saudade" teve início em 1964, era apresentado por

Alberto Maria de Andrade, o qual recebeu ilustres fadistas e artistas portugueses.

Hoje, existe uma versão radiofônica54 desse programa, propagada via Internet por

Claudia Tulimoschi, sua neta.

A TV Continental (Canal 9) foi a terceira emissora de televisão inaugurada no

Rio de Janeiro, e operou entre 1959 e 1972. Em 1960, a referida emissora alcançou um enorme êxito de audiência com o programa “Figura de Francisco José”, que era apresentado pelo próprio cantor e transmitido nas noites de sábado em horário nobre.

Além desse programa, a TV Continental exibiu “Domingo em Portugal”, apresentado por Olivinha Carvalho e "A Casa do Casemiro", programa produzido pelo fadista

Joaquim Pimentel, cujo cenário reproduzia o ambiente de uma adega típica portuguesa. A foto reproduzida na figura 6 fornece a dimensão da importância do programa para a comunidade luso-brasileira, cujo elenco reunia nomes de artistas reconhecidos no universo do fado no Brasil, como Adélia Pedrosa, Maria Alcina e

Antonio Campos, entre outros.

54 O programa é veiculado aos sábados às 20:00h com reapresentação aos domingos às 10:00h na Web Radio Portugal , no site .

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Figura 7. Adélia Pedrosa, Maria Alcina, Antonio Campos, Casemiro, Joaquim Pimentel, Dr. Felner da Costa, Maria Girão, Tristão da Silva, Luisa Salgado, Maria José Vilar, Leonel Vilar, Antonio Mestre, Dr. Noel de Arriaga e amigos, no Programa “A Casa do Casemiro”, na TV Continental - Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2011.

A TV Rio (Canal 13) mantinha a sua sede em Copacabana, no antigo Cassino

Atlântico, e funcionou em sua primeira fase entre os anos de 1955 e 1977. Nessa emissora, era veiculado o programa "Imagens de Além-Mar", apresentado e produzido o pelo fadista Tony de Matos.

Houve outros programas televisivos que mantiveram uma audiência regular frente à comunidade luso-brasileira, como o denominado "Revista do Rádio em

Portugal", conduzido pelo fadista Manoel Monteiro entre 1966 e 1968, além dos seguintes, “Portugal sob o mesmo Céu" e "Todos cantam sua terra".

O fado esteve presente também em programas de variedades como “Noite de

Gala”, apresentado por Flavio Cavalcanti na TV RIO (1955-1966) e, em seguida, na

TV Tupi. Esse gênero é contemplado no programa de Hebe Camargo e na Discoteca

152 do Chacrinha, programa apresentado pelo comunicador Abelardo Barbosa e que lançou em 1971 o cantor Roberto Leal como intérprete de música portuguesa.

Em uma entrevista concedida à professora Heloisa Valente pelos fadistas

Manoel Joaquim Ramos e Lídia Miguez55, artistas e radialistas radicados na cidade de

Santos em São Paulo, o rádio é apontado como um dos principais lugares de difusão do fado, acolhendo diversos intérpretes da região como os cantores Berta e Antonio

Lopes. Em Santos, a primeira emissora de rádio foi a Rádio Clube, fundada em 1926, seguida da Rádio Atlântica de Santos (década de 1930), Radio Cacique, Rádio Cultura de São Vicente, Rádio Universal, Rádio Tribuna e Rádio Guarujá, todas emissoras com programas de música dedicados à comunidade portuguesa. Em uma pesquisa de

Mônica Ferrari Nunes sobre os “processos de codificação da memória simbólica e afetiva gerados pela escuta do fado entre imigrantes portugueses na cidade de Santos”

(NUNES, 2008: 207), são analisadas algumas letras dos fados mais solicitados pelo público ouvinte do programa “Presença Portuguesa”, transmitido pela Rádio Universal

AM pelos fadistas-radialistas Lídia Miguez e Manoel Joaquim Ramos. A autora considera que o fado atua como um marcador da memória (em sua dimensão simbólica ou neurobiológica) do imigrante português radicado no Brasil, auxiliando a reafirmação de sua identidade cultural lusitana. Segundo Mônica Nunes, os locutores do programa radiofônico observado utilizam símbolos e narrativas que se referem aos espaços míticos e reais do povo português, como a religião católica e o mar, entre outros:

55 VALENTE, Heloísa de A. Duarte. Eu queria cantar-te um fado... Entrevista com Manoel Joaquim Ramos e Lídia Miguez. In: VALENTE, Heloísa (Org.). Canção d’além-mar: o fado e a cidade de Santos. São Paulo: Realejo, 2008, p.109.

153

O programa Presença Portuguesa rememora musicalidades e falas que conectam a comunidade a escutas abandonadas há tempos; atua como resistência à velocidade imposta pela tecnologia que descarta rapidamente todas as realizações midiáticas, afinal um programa que está no ar há mais de sessenta anos revela bem mais do que uma produção bem elaborada. Exibe a permanência de certas linguagens na cultura, como a linguagem do fado, e assegura ao rádio sua aptidão para conectar os sentidos, por meio da expressão de vozes recalcadas e da escuta de paisagens sonoras reinventadas pela memória. (NUNES, 2008: 226). O ensaio de Mônica Nunes trata da relação entre o imigrante português e sua memória simbólica e afetiva observada através da escuta radiofônica do fado, seja através de gravações fonográficas ou de interpretações realizadas ao vivo nos estúdios da rádio. Embora esse estudo retrate um panorama de programação-escuta dos dias atuais, podemos utilizar as mesmas referências para a relação fado-locutor-ouvinte existentes nos programas de rádio difundidos no Rio de Janeiro entre as décadas de

1950 e 1970.

Segundo Eulália Lobo, os programas radiofônicos mais importantes no Rio de

Janeiro foram transmitidos desde a década de 1950 pelas emissoras Tupi e Tamoio, e a partir de 1960, veiculados também pelas emissoras Imprensa FM, Mundial,

Metropolitana, Manchete, Nacional, Vera Cruz, perfazendo uma programação semanal de 85 horas. (LOBO, 2001: 267).

3.6 – Discografia registrada entre as décadas de 1950 e 1970.

Segundo as referências apuradas no trabalho de pesquisa organizado por

Gracio Barbalho, Alcino Santos M. A de Azevedo (Nirez) e Jairo Severiano e intitulado A Discografia Brasileira 78 rpm – 1902-1964, registram-se mais de 700 gravações do gênero fado realizadas no Brasil até o ano de 1964. O catálogo citado apresenta o registro de 242 fonogramas entre 1950 e 1964, e os artistas que aparecem com um maior número de gravações no período referido são Ester de Abreu, Gilda

154

Valença, Olivinha Carvalho, Terezinha Alves, Tony de Matos, Manoel Monteiro, além da cantora Amália Rodrigues que realizou gravações no Rio de Janeiro.

Somam-se a essas gravações mais 26 fonogramas de Sebastião Robalinho, 15 de Adélia Pedrosa e 24 de Maria Alcina, cuja discografia não está inserida no levantamento de Nirez e Severiano em A Discografia Brasileira 78 rpm – 1902-1964, perfazendo um total de 307 fonogramas observados até o presente momento. Esta discografia do fado português no Brasil está listada no anexo da tese.

Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira (1998), a discografia de Manoel

Monteiro é composta de cerca de 65 discos de 78 rpm56, compreendendo 127 fonogramas. Entre 1950 e 1959, período a que se refere nossa pesquisa, Monteiro deixou registrado 9 discos - um deles, na Odeon (1950), e os demais, na gravadora

Todamérica – que somam 26 fonogramas, com destaque para os fados “Rosinha dos limões”, “Foi Deus”, “Uma casa portuguesa” e “Nem às paredes confesso”.57

Sua projeção artística está associada tanto à cultura portuguesa quanto à cultura brasileira, posto que o cantor gravou também diversas marchinhas para o carnaval.

Assim sendo, é provável que a acepção do termo luso-brasileiro seja muito adequada para o fadista, cujo sentimento de duplo orgulho pátrio pode ser observado no “Fado

Manoel Monteiro”, gravado em disco Odeon de 78 rpm (1937), de autoria de A.

Ferreira e Gonçalves Dias:

56 O disco de 78 rpm era feito de goma-laca em forma circular e achatado, utilizado no registro de áudio durante a primeira metade do século XX. Foi manuseado a fim de reproduzir fonte sonora através de gramofones e toca-discos. 57 Esses temas foram todos gravados pelo selo Todamérica com os números da matriz a seguir: “Rosinha dos limões” (fado slow TA572/dezembro de 1953); “Foi Deus” (fado TA732/fevereiro de 1955); “Uma casa portuguesa” (canção TA532/setembro de 1953) e “Nem às paredes confesso” (fado TA864/setembro de 1955).

155

“Fado Manoel Monteiro”

Sou português e grito ao mundo inteiro Filho de gente humilde, mas honrada E se adoro o Brasil hospitaleiro Jamais esquecerei a Pátria amada.

Brasil e Portugal trago-os no peito Unidos pela amizade e pela história Se devo a Portugal o meu respeito Ao Brasil devo toda minha glória.

Sinto pela minha Pátria devoção Mas amo tanto a Pátria brasileira Amo a segunda mais do que a primeira.

E por ser do Brasil um grande amigo Sou brasileiro afirmo muita vez E sinto orgulho igual de quando sinto Nasci em Portugal, sou português.

Portugal é meu torrão natal A Pátria mãe de heróis e de guerreiros Mas se o Brasil nasceu de Portugal Eu sou portanto irmão dos brasileiros.

A letra do “Fado Manoel Monteiro” registra o orgulho do fadista em se manifestar através do fado e da cultura portuguesa, e assinala também um duplo sentimento por integrar a cultura brasileira e ser reconhecido como um irmão entre os seus pares. Monteiro representa o exemplo do artista integrado, que conhece profundamente e divulga as práticas sociais ligadas ao fado e à canção popular portuguesa, ao tempo em que colabora com a música brasileira, realizando gravações de gêneros musicais como o samba e a marcha carnavalesca e afirmando o seu discurso de amizade e irmandade entre os dois países.

A discografia da fadista Adélia Pedrosa58 compreende 7 discos com 32 fonogramas gravados entre 1950 e 1978. Segundo informações contidas no blogue

58 Conforme resumos biográficos inseridos em anexos, em que se apresentam os demais fadistas comentados nesta seção do capítulo 3.

156

“Portal do Fado”59, Adélia Pedrosa gravou o seu primeiro disco compacto com duas faixas: uma desgarrada com o fadista Sebastião Robalinho e o fado “Sou filha de um pescador”. Sua discografia inclui álbuns gravados pela Masterplay (O fado e o mar),

Parlophone (Anda ver Lisboa), Ofir (Fados de Portugal), Alvorada/Chantceller (Ellen de Lima e Adélia Pedrosa) RCA Victor (Só nós dois), Valentim de Carvalho e FF em

Portugal (Fado), além da gravadora Som Livre no Brasil (Portugal com amigos).

Entre as interpretações célebres de Adélia Pedrosa encontramos o fado “Garota da Beira-Mar”60, composta para ela por Joaquim Pimentel e José Magalhães. Este fado conta um pouco a história da fadista, filha, neta e bisneta de pescadores:

Nasci à beira do mar

criei-me junto da praia

as ondas vinham beijar

a barra da minha saia

em noites de lua cheia

ouvindo as ondas bater

o mar rolando na areia

até parecia dizer:

Ai canta, canta

garota da beira mar

o teu destino teu fado

é viver sempre a cantar...

foi o mar, sim, foi o mar

com sua voz fatalista

quem me ensinou a cantar

fez de mim uma fadista

59 Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2010. 60 Disco Parlophone, Portugal, LMEP 1281, 1964.

157

Os fados "Sou Filha de Um Pescador", "Maria do Mar" e a desgarrada "O

Fadista e a Peixeirinha" também foram escritos e dedicados a Adélia Pedrosa.

Figura 8. Adélia Pedrosa em show no Edifício Manchete. Entre outros, na foto: Juscelino Kubitschek, Roberto Marinho e Adolpho Bloch. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2011.

Segundo informações do Dicionário Cravo Albin da Música Popular

Brasileira61, a discografia de Ester de Abreu é inaugurada, no Brasil, no ano de 1950 com o fado-canção “Já não sei”, de autoria de Antonio Mestre, e o fado “Pomar da

Vida”, de Renê Bittencourt, fonogramas gravados em um disco do selo Continental.

Em 1951, a referida cantora gravou o fado-baião "Ai, ai Portugal", de Humberto

Teixeira e Luiz Gonzaga, e o baião "Carro de boi", de Humberto Teixeira e Caribé da

Rocha. No ano seguinte, gravou para o selo Sinter o fado-canção “Coimbra”, de José

Galhardo e Raul Ferrão, seguido de outros êxitos como a marcha carnavalesca "Cabral

61 Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2009.

158 no carnaval", do compositor Blackout, e a canção “Quero-te outra vez”, de Paulo

Tapajós e Jorge Henrique. Em 1954, gravou pela RCA Victor o seu primeiro LP, e em

1955, pela gravadora Sinter, outro LP com o maestro Lirio Panicali. Além desses fonogramas, sua discografia compreende ainda 30 gravações em 78 rpm, realizadas no

Brasil entre 1950 e 1962, e contém, além de fados e canções, outros gêneros musicais brasileiros como o samba e a marcha carnavalesca. Ester de Abreu atuou em filmes brasileiros, como “Um pirata do outro mundo”, sob a direção de Luiz de Barros em

1957.

Destacamos aqui a gravação da marcha-fado “Moreninha de Lisboa”, em dueto com o cantor Francisco Carlos,62 que é uma gravação do selo RCA Victor de 1955, obra composta por Irani de Oliveira e William Duba. Nessa gravação, o gênero musical parece fundir-se a partir do gênero fado e da marcha carnavalesca, deixando transparecer a colaboração ou a afirmação multicultural. A interpretação empostada de

Francisco Carlos obedece ao estilo brasileiro da época e se contrasta com a interpretação de Ester, que expõe em sua entonação a tradição lusitana. O resultado final é de complementaridade, fato que conduz o ouvinte a uma escuta linear e que imprime na obra uma sensação de naturalidade formal. A letra aborda a dualidade pátria (português/brasileiro), sugere a fusão musical (samba/vira) e instiga a junção afetiva que pode acontecer entre indivíduos de culturas diferentes (homem brasileiro/mulher portuguesa). Verificamos a letra a seguir:

“Moreninha de Lisboa”

(Francisco) Linda morena / Lá de Lisboa O meu carinho / Quero te dar (Ester) Lindo moreno / Sou toda tua Desde o dia que te vi Que eu vivo a te adorar

62 Ester de Abreu e Francisco Carlos. “Moreninha de Lisboa”. fado-marcha de Irani de Oliveira e William Duba. RCA Victor, 801466, Lado A, 78 rpm, 1955.

159

(Francisco) Linda morena / Trigueirinha de Lisboa Tu és mesmo muito boa / Quero que sejas meu par Por isso mesmo / Tenho ainda a esperança De aprender a tua dança / Para contigo bailar...

(Ester) Lindo moreno / Do Brasil lindo e fagueiro Por um samba brasileiro / O meu coração suspira Por isso mesmo / Se tu és de fato bamba Ponha a me ensinar um samba / Que eu vou te Ensinar o vira...

(Dueto) O vira que se dança lá no Minho É um passo pra cá outro pra lá (Francisco) É o samba que se dança bem juntinho Eu duvido que a morena queira um samba dançar

(Ester) E o samba só se dança agarradinho Seu maestro vira o vira Bota um samba pra tocar.

A música registra uma inovação em sua letra e estrutura musical (é uma fusão do fado português com a marcha brasileira), e pode evocar os preceitos apontados por

Becker (1982) para a inovação artística concernente a cada mundo artístico, associando mais uma vez a metáfora da deriva para justificar tal transformação. A marcha é um gênero musical pertencente às duas culturas, e as interpretações atendem a peculiaridades rítmicas e formais características de cada país. De acordo com

Becker, os mundos artísticos não consideram estas transformações como mudanças significativas, pois não envolvem alterações que obriguem às partes a resolução de problemas complexos.

Nesta canção encontramos um gênero musical fundido a partir de dois gêneros autônomos (fado e marcha), composto em um compasso quaternário. Após uma introdução apresentada pelos cantores em tempo rubato (acompanhados com acordes arpejados do violão), a canção se estabiliza no andamento allegro, em torno de 120 bpm. A instrumentação utilizada também sugere uma coexistência de culturas, pois, enquanto o violão sustenta a harmonia e os baixos para a interpretação dos cantores,

160 ouvimos um acordeão que nos remete ao típico ambiente das concertinas lusitanas, ao tempo que uma flauta intercala a obra com contrapontos que nos lembram o universo do choro carioca. Percebemos ainda o acompanhamento percussivo de um triângulo que acompanha toda a obra. O violão adota um ritmo de acompanhamento padrão como o utilizado no acompanhamento do fado corrido, mas a estrutura harmônica da obra se aproxima mais do choro, pois no início da canção a harmonia caminha para uma modulação passageira no tom vizinho da dominante, e depois para o tom homônimo menor da tonalidade principal que é Si Bemol. A obra termina com uma cadência da dominante para a tônica, semelhante às conclusões características do fado corrido.

O exemplo musical 13 destaca um fragmento da obra analisada, apresentando as partes relativas à voz principal e ao acompanhamento do violão.

Exemplo musical 13. Fragmento do fado-marcha “Moreninha de Lisboa”, de Irani de Oliveira e William Duba. RCA Victor, 801466, lado A, 78 rpm, 1955. Interpretação de Ester de Abreu e Francisco Carlos. Transcrição de Alberto Boscarino.

161

A cantora Gilda Valença realizou a sua primeira gravação em 1953 com a marcha-fado "Uma casa portuguesa", composição de V.M. Sequeira, Raul Ferreira e

Arthur Fonseca, registrada em disco Sinter, e adotou o nome artístico de Gilda

Valença para não ser confundida com a cantora Gilda de Abreu. A intérprete Gilda

Valença gravou duas músicas em 1954: o "Corridinho nº 1", dos compositores Melo

Jr. e Silva Tavares, e o "Fado de Vila Franca", do compositor João Nobre. Deixou aproximadamente 37 fonogramas gravados entre 1953 e 1969, com fados, corridinhos, marchinhas carnavalescas e sambas, além de outros gêneros portugueses e brasileiros.

Faleceu no final da década de 1980.

A fadista Olivinha Carvalho gravou o seu primeiro disco na Columbia, no ano de 1940, quando contava com nove anos, a convite do compositor Braguinha. O disco de 78 rpm registra duas faixas dos compositores Antonio Russo e Américo Morais: o vira “Folhas ao vento” e o fado “Evocação”. No ano de 1944, estréia no cinema nacional, no filme “Berlim na batucada”, de Luis de Barros. No ano seguinte, participou de mais dois filmes: “Cem garotas e um capote”, de Milton Rodrigues, e

“Pif-Paf”, de Luís de Barros. Nos anos seguintes, contracenou em outros filmes, como

“Esta é fina” de 1948, “Fogo na canjica”, no mesmo ano, e “Eu quero é movimento”, no ano de 1949, todos com direção de Luís de Barros. Gravou dezenas de discos 78 rotações e alguns LPs. Na década de 1960, Olivinha passou a apresentar um programa de TV denominado “Domingo em Portugal”, que era transmitido semanalmente na TV

Continental do Rio de Janeiro. Em decorrência do sucesso do programa, em 1968, registrou um LP denominado "Domingo em Portugal", que contou com a participação dos fadistas Antônio Campos, Maria Alcina, Mário Simões, Alexandre Correia, Lúcia dos Santos e Paulo Barcelos.

162

A música “O fado é bom para xuxu”, que é denominada também de “Fado carioca” ou “Fado xuxu”, foi gravada originalmente por Amália Rodrigues com acompanhamento de orquestra de cordas, e, durante sua estada no Rio de Janeiro em

1945, se tornou a canção culminante da revista “Boa Nova”, apresentada no Teatro

República. A versão gravada por Olivinha Carvalho63 alterou as duas estrofes iniciais64, e em relação à estrofe final, modificou a expressão “Um portuguesinho de raça” por “brasileiro sem chalaça” e “o Alfacinha de raça”. O termo “brasileiro sem chalaça” faz referência ao brasileiro residente na cidade que não é natural do Rio de

Janeiro, ou mesmo ao imigrante português de êxito que retorna com frequência a

Portugal.

“O fado é bom pra xuxu”

O fado teve destino

de ir ao cassino

ver as meninas

e até já banca o granfino

ao lado das bailarinas

Vai pra farra e pra folia

em companhia de uma baiana

que amarras um certo dia

num show de Copacabana

Com sambinhas

e modinhas

63 Disco Copacabana, número M2213. 64 O fado,/ canção bizarra / pôs a samarra / todo trecheiro / e lá foi com a guitarra / até ao Rio de Janeiro. / Fez-se um fadista atrevido / tão destemido / e de tal marca / que até já é conhecido / p'ro fadistão da Fuzarca. A Música é de Frederico Valério e a letra é de Amadeu do Vale.

163

abacate

vitamate

Guaraná

maracujá

e caruru

Com cocada

batucada para ti

abacaxi e goiabada

o fado é bom pra xuxu.

Brasileiro sem chalaça (o Alfacinha de raça)

bebe cachaça

come pipoca

e no catete até passa

por cidadão carioca.

Às vezes vai à favela calça chinela

todo se bamba...

e o fado canção singela

agora é todo do samba.

Destacamos este fado gravado por Olivinha Carvalho para ressaltar a contribuição desta artista para a inovação do fado e para a integração da comunidade luso-carioca na cultura brasileira. A gravação obedece à estrutura binária do fado, e foi registrada na tonalidade de Mi bemol maior. A introdução apresenta quase toda a instrumentação escolhida para esta versão, pois a guitarra divide o solo com órgão; o contrabaixo conduz a harmonia junto com acordes da guitarra, e a bateria alterna o bumbo na marcação e o prato no contratempo. Durante toda a obra, nota-se a sutileza

164 do acompanhamento da bateria, executada com a “vassourinha” ao invés da baqueta.

A primeira parte da obra se configura como um fado tradicional, com a acentuação da caixa da bateria nos contratempos, assumindo assim a função do violão. Nesta versão de Olivinha, o refrão assume o caráter de um samba, com mudança da condução rítmica da bateria e aceleração do andamento, retornando a seguir ao andamento original ao redor de 84 bpm.

Retomamos aqui a associação anteriormente citada ao princípio de inovação artística proposto por Becker (1982) e sua referência à metáfora da deriva. O exemplo musical 14 apresenta um fragmento da obra com transcrição de voz e bateria.

Exemplo musical 14. Fragmento do fado “O fado é bom pra xuxu”, de Frederico Valério e Amadeu do Vale. Discos Copacabana, M 2213, lado B, 78 rpm. Interpretação de Olivinha Carvalho. Transcrição de Alberto Boscarino. Em 1951, o cantor Francisco José gravou em Madrid um disco de 78 rpm com a canção “Olhos castanhos”, retornando a esta cidade no mesmo ano para gravar mais três discos que incluíam as canções "Sou doido por ti", "Deixa falar o mundo" e "Ana

Paula". Obteve enorme êxito com suas gravações e apresentações, e realizou uma

165 turnê internacional, visitando países como França, Hungria, Alemanha, Itália, Espanha e Estados Unidos, impingindo um ar de modernidade à canção romântica portuguesa.

Chegou ao Brasil em 1954, fixando residência no bairro de Copacabana no Rio de Janeiro. A estadia no Brasil redimensionou a carreira de Francisco José como cantor popular português junto à comunidade portuguesa e ao público brasileiro. Em

1960, Francisco José regravou pelo selo Sinter a canção “Olhos castanhos”, que se transformou em um grande êxito no ano seguinte, foi um fenômeno de vendas que alcançou a marca de um milhão de cópias apenas no mercado discográfico brasileiro.

A composição, em parceira com Alves Coelho, é um bolero ambientado com orquestração romântica típica do período, e a letra nos remete à temática característica das modinhas, com o bordão do amor inatingível, visto que a fixação pelo olhar da amada não deixa transparecer o ato de posse carnal do poeta. Verificamos assim a letra original:

“Olhos castanhos”

Teus olhos castanhos De encantos tamanhos São pecados meus, São estrelas fulgentes, Brilhantes, luzentes, Caídas dos céus, Teus olhos risonhos São mundos, são sonhos, São a minha cruz, Teus olhos castanhos De encantos tamanhos São raios de luz.

Olhos azuis são ciúme E nada valem para mim, Olhos negros são queixume De uma tristeza sem fim, Olhos verdes são traição São cruéis como punhais, Olhos bons com coração Os teus, castanhos leais.

166

Exemplo musical 15. “Olhos Castanhos”. Bolero de Francisco José e Alves Coelho. Discos Sinter, 1960. Interpretação de Francisco José. Transcrição de Alberto Boscarino.

É importante ressaltar que a referência da poesia portuguesa se inicia com a música através dos cancioneiros, que difundiram nos palácios a arte medieval das cantigas de amigo, amor e escárnio e mal-dizer. Citamos a professora Cleonice

Berardinelli, que discorre sobre o “eu lírico” camoniano, em que o tema do olhar é recorrente:

Nos poemas de amor (amor não correspondido) o elemento mais freqüente são os olhos, causadores da pena amorosa - os dela, porque foram vistos e não vêem; os dele, porque vêem e não são vistos, ou porque não podem ver. (BERARDINELLI, 2000: 180).

O mesmo motivo pode ser observado no soneto, incipit “Um mover d’olhos, brando e piadoso” de Luís de Camões65, em que a graça e a beleza de Circe são enumeradas de forma gradativa segundo a caracterização de gestos femininos que

65 CAMÕES, Luís de. As Rimas de Camões (1974).

167 inquietam o sujeito lírico porque tanta beleza foi capaz de transformar o seu pensamento:

Um mover d’olhos, brando e piadoso,

sem ver de quê; um riso brando e honesto,

quase forçado; um e humilde gesto,

de qualquer alegria duvidoso;

um desejo quieto e vergonhoso;

um repouso gravíssimo e modesto;

üa pura bondade, manifesto

indicio da alma, limpo e gracioso;

um escolhido ousar; üa brandura;

um medo sem ter culpa; um ar sereno;

um longo e obediente sofrimento

esta foi a celeste fermosura

da minha Circe, e o mágico veneno

que pôde transformar meu pensamento. A discografia de Francisco José compreende 24 discos com 109 fonogramas, registrados em 33, 45 e 78 rpm. Em 1961, lançou o disco "A Figura de Francisco

José". Em 1973, obteve um grande êxito em Portugal com a canção “Guitarra toca baixinho”, e regressou definitivamente ao seu país natal na década de 1980. Em 1983, lançou o seu último trabalho discográfico, que incluía a canção "As crianças não querem a guerra". Posteriormente, exerceu uma breve atividade na política nacional e retornou ao seu ofício original, ao universo do fado.

Ainda na década de 1980, concluiu o curso de Matemática e lecionou na

Universidade da Terceira Idade de Lisboa. O verbete da Enciclopédia da Música em

168

Portugal no século XX (EMPSXX) resume seus dados artísticos e biográficos, e destaca que “a principal marca do seu estilo interpretativo consiste no vibrato intenso na emissão das vogais e na clareza da enunciação do texto.” (EMPSXX, 2010: 663).

Além dos fadistas destacados nesta seção, outros artistas merecem ser mencionados, pois contribuíram para a difusão do fado na cidade do Rio de Janeiro e integram a rede social do mundo artístico em questão. Estes fadistas mantinham contato com o público através de programas radiofônicos, televisivos, de apresentações em casas de fado e por intermédio de gravações fonográficas comerciais.

O poeta e fadista Antonio Campos (Ovar, Distrito de Aveiro, Portugal

11/09/1934) chegou ao Brasil em maio de 1953 aos 19 anos de idade. O artista é autor de inúmeras obras como “Dá tempo ao tempo”, “Amor marinheiro”, “Renúncia” e

“Não acordes a minha dor”. Iniciou a sua carreira como fadista no “Programa dos

Astros” de Joaquim Pimentel, e em 1962, já atuava profissionalmente na Adega

“Lisboa Antiga”, de propriedade das cantoras Adélia Pedrosa e Terezinha Alves em

São Paulo.66

Reconhecido por sua destreza interpretativa ao estilo da “Desgarrada”, quase sempre em dueto com a fadista Maria Alcina, recebeu o título carinhoso de “Rei da

Desgarrada”, conferido por amigos de seu meio artístico. Antonio Campos produziu e apresentou em parceria com a fadista Helia Costa o “Programa Joaquim Pimentel”, veiculado semanalmente na Rádio Bandeirantes do Rio de Janeiro entre os anos de

66 Além de se apresentar no eixo Rio - São Paulo, esteve mais de vinte vezes em Portugal, atuando em várias casas de fado, como a tradicional “Faia”, e se apresentou em Buenos Aires e em La Plata, na Argentina, bem como em vários estados brasileiros. Participou de inúmeros programas de Rádio e TV no Brasil e em Portugal e gravou fonogramas de suas obras nesses dois países. Os dados biográficos de Antonio Campos foram extraídos do programa radiofônico veiculado em 15 de agosto de 2009 no site “Mundo Fado Brasil”, apresentado por Claudia Tulimoschi e disponível no blogue do “Mundo Fado Brasil” no endereço .

169

1978 e 2010. Seus fados foram gravados por artistas como Maria da Fé, Cidália

Moreira, Tony de Matos, Adélia Pedrosa, Maria Alcina, Pedro Vilar, Francisco José, entre outros. Como poeta, produziu mais de 300 poemas; artista sensível que conseguiu expressar em poucas linhas a sua condição de português e brasileiro:

De países em países, jamais saímos daqui

Ficam sempre as raízes, e há tanto de nós por aí... O fadista Tony de Matos teve uma trajetória artística de êxito no período, sendo admirado como intérprete no Brasil e em Portugal, deixando registrada uma discografia que compreende mais de uma centena de fonogramas. Gravou o seu primeiro disco em Madrid, intermediado pelo editor Manuel Simões, obtendo êxito com a canção “Cartas de amor”. A partir de 1952 passa a cantar no teatro de revista, e em 1953, atuou pela primeira vez no Brasil, na cidade de São Paulo, numa temporada de três meses.

Estabeleceu-se no Rio de Janeiro entre 1957 e 1962, atuando como cantor e empresário. Em sociedade com Maria Sidónio, passou a administrar uma casa de fados no bairro de Copacabana, o restaurante típico “O Fado”, além de trabalhar na rádio e em programas de televisão. Por vezes, participava de até sete apresentações diurnas, reservando a noite para cantar em seu próprio estabelecimento comercial. Em 1962, gravou um LP que lhe proporcionou muito êxito, e que incluía as obras “Só nós dois”,

“Procuro e não te encontro”, “Vendaval” e “Lado a lado”.

Fadista associado ao estilo de interpretação do fado castiço, Sebastião

Robalinho cantou em diversas casas de fado no Rio de Janeiro, como o restaurante

“Galo”, no “Corridinho”, no “Fado”, na “Adega de Évora”, na “Casa da Mariquinhas”, no “Lisboa à Noite”, e no “Cantinho da Severa”, entre outras.

170

Gravou o seu primeiro disco, um compacto duplo, com a fadista Adélia

Pedrosa pela gravadora Todamérica, intitulado “O Fado e o Mar”. No ano de 1968, gravou o seu primeiro LP, e até 1974 registrou mais três discos, dois LPs e um compacto duplo. Em 1979, lançou um novo trabalho discográfico, um LP com a parceria da fadista Maria Alcina, intitulado “Do fado à desgarrada”.

Transcrevemos a seguir a nota de apresentação constante na contracapa de seu

LP “O Fado na Voz Castiça de Sebastião Robalinho”, cujo texto é assinado por

Cristiano Martins. Apesar de extensa, a redação ajuda o ouvinte apreciador de fados a compreender a dimensão estilística a que o artista se encontra filiado, enaltecendo o estilo castiço em detrimento dos fados modernos em voga à época.

Muito embora os profundos golpes do chamado 'modernismo' hajam ferido, em contundente desrespeito à tradição, o imortal Fado Castiço, emprestando-lhe inclusive lascivos traços do 'bas-fond' social, o certo é que ainda tem por aí - tanto em Portugal quando no Brasil - quem não abdique do velho e tão querido Fado-Símbolo. Para mim, que já vivo há cinco décadas e há mais de três entendo o Fado como coisa imutável, o CASTIÇO é uma espécie de catecismo fadista, uma oração divinal, de doutrinação musical das massas populares lusitanas. É uma 'Ave Maria' cantada com as mãos nas algibeiras. De pé... e de 'cachenet'. Com samarra [espécie de casaca] e alamares [enfeite com cordão trançado formando alça à frente]. Com o 'tinto' em canjirões [vaso grande e com a boca larga]. Com o caldo fumegante em malgas [tijela] de barro tosco. Com o silêncio respeitoso de quem escuta, para que os lacrimosos acordes das guitarras emprestem ao CASTIÇO - em ritmo divinal - o sacramento espiritual que lhe é devido. Há três décadas - lá nos mouriscos bairros lisboetas - uma voz roufenha, mas segura deliciava a sensibilidade fadista deste modesto lusitano de Vila Nova de Gaia. Era a voz inconfundível do 'quarentão' Alfredo Marceneiro, o mais castiço dos castiços, o FADISTA-REI a cujos pés ajoelhavam fidalgos e rufiões. Hoje, nestas brasílicas plagas onde se diz haver nascido o Fado, é um conterrâneo meu - da vetusta e também invicta Vila Nova de Gaia - quem teima em se manter como arauto do Fado Castiço, pregoeiro inarredável de uma linha fadista, qua a alma lusitana jamais deixará que se pise ou que se apague. É afinal o Sebastião Robalinho - sempre ele na defesa do Velho Fado - quem representa no Brasil, qual Fadista-Legado de um 'Papa-Marceneiro', a eterna religiosidade do Fado-Símbolo.

Ajoelhemos! Ouçamos! E, com Sebastião Robalinho, rezemos o CASTIÇO!

171

O fadista Manuel Taveira (Manuel Artur dos Santos Taveira, Armamar, Viseu,

Portugal, 1939, Portugal, 20/10/2002) chegou ao Brasil em 12 de Junho de 1958.

Considerado no meio artístico como o mais afinado dos cantores portugueses radicados no Brasil, gravou canções célebres, como o fado “Saudosa Mouraria”, de

Muniz Andrada; “Casa da Mariquinhas” e “Canoas do Tejo”, sendo sua a primeira gravação desta música no Brasil. Como compositor, teve obras gravadas por Francisco

José, Hermínia Silva e Manuel Fernandes, entre outros. O fadista Manoel Taveira excursionou em turnê pelo nordeste do Brasil e na Argentina.

Destacamos em sua discografia o fonograma “O fado subiu o morro”, que provoca um diálogo entre culturas musicais:

“O fado subiu o morro”

Quando vim de Portugal

eu só cantava o fado

aqui cheguei, gostei do samba

do “caldo”

subi ao morro

estive lá passeando

e vejam só

o que eu saí cantando...

É da madrugada

ai, lá no morro do Salgueiro

vai ter cuíca e tem pandeiro

tem teco-teco e tamborim

e a batucada tem um sabor tão diferente

que suaviza a alma da gente

e não se pode mais parar

agora o fado

que para sempre hei de lembrar

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ai, mas o samba minha gente,

ai, também tem o seu lugar

A letra da música promove o intercâmbio cultural entre os dois gêneros musicais – fado e samba, pois o fadista português, que só cantava o fado, visita o morro do Salgueiro e se encanta com a batucada que “suaviza a alma da gente”. Ao final, a letra aponta uma divisão de apreço do fadista entre os dois gêneros, pois o samba “também tem o seu lugar”. Os dois gêneros musicais apresentados na obra compartilham a pulsação binária como elemento de unificação do ritmo, e a forma compreende partes com dois momentos diferenciados pelo arranjo, gênero musical, letra, andamento e interpretação. A introdução do tema é apresentada com um solo de violão de cordas metálicas que nos lembra o timbre da guitarra portuguesa, com uma escala ascendente em terças seguida de acordes que, após um crescendo e um ralentando, executa um arpejo final para o início do canto. Inicia-se o fado no andamento de 62 bpm, e o arranjo define a instrumentação com o acompanhamento de um órgão elétrico, do violão, da guitarra portuguesa e de uma bateria. Após a expressão “é da madrugada”, interpretada com melismas em tempo rubato, dá-se início ao samba, em andamento de 88 bpm. A instrumentação é a mesma, mas os músicos agora adotam uma postura mais vigorosa e animada em sua interpretação, aproximando-se do gênero samba. A acentuação do contratempo na bateria é o que garante a unidade formal da obra, ou seja, sugere um samba sem abandonar a acentuação característica do fado. O exemplo musical 16 apresenta um fragmento do fado analisado.

173

Exemplo musical 16. Fragmento do fado “O fado sobe o morro”, de Manuel Taveira. Disco Phillips, LP 832 926, lado B, 33 rpm. Interpretação de Manuel Taveira. Transcrição de Alberto Boscarino. O fadista Mario Simões, ao início de sua carreira artística, gravou no ano de

1968, pela gravadora MusicDisc, um disco compacto com quatro faixas, destacando- se a faixa “Só nós dois” de autoria de Joaquim Pimentel, e que passou a integrar a trilha sonora da telenovela “Antonio Maria” na TV Tupi. Em seguida, gravou o LP

“Meus braços te esperam”, com 12 fonogramas. Em sua trajetória artística, dividiu o palco com artistas como Miltinho, Olivinha Carvalho, Marlene, Emilinha Borba,

Jamelão, Carlos José, Elen de Lima, Carlos Galhardo, Linda Batista, entre outros.

Sua discografia inclui ainda um LP denominado “Mario Simões romântico”, gravado pelo selo Porto Cali; um CD que reúne uma coletânea de sucessos, lançado em 2006; no ano de 2008, um CD denominado “Mário Simões Amor e Saudade”, com músicas que enaltecem o imigrante e afirmam o sentimento de saudade como uma característica do povo português.

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As biografias referidas demonstram em parte a trajetória sócio-cultural de alguns artistas luso-brasileiros e o nível de inserção de cada indivíduo na rede social ligada à comunidade portuguesa do Rio de Janeiro. Suas histórias e seus depoimentos remetem ao fascínio do homem português pelo mar, percebido através das letras dos fados ou das histórias de vida do fadista-pescador Ramiro Damaia ou da fadista Adélia

Pedrosa. Ao mesmo tempo, a nostalgia por sua terra natal é profunda, e precisa ser relembrada através das letras dos fados ou das atividades promovidas por sua comunidade junto às casas regionais. Eduardo Lourenço nos lembra que o povo português sempre voltou o olhar para o mar, para as descobertas ultramarinas;

Fernando Pessoa chamou Portugal de “rosto da Europa”, rosto que serve ao continente para enxergar o ocidente, e Luís de Camões cantou em versos a força dos heróis navegantes quinhentistas.

O levantamento e a análise da discografia dos artistas citados revelou que a maior parte deles contribuiu para a história da música brasileira com gravações de gêneros musicais em moda no período estudado, como a marcha carnavalesca, o samba-canção, o baião, a bossa-nova e o samba. Dentre eles, destacamos a cantora

Olivinha Carvalho, Gilda Valença, Ester de Abreu, Manoel Monteiro, Joaquim

Pimentel, Francisco José, Manuel Taveira, Mario Simões e Maria Alcina, entre outros fadistas.

Durante o período delimitado nesta tese, a música do fado também integrou repertório discográfico de artistas brasileiros como Ângela Maria, Cauby Peixoto,

Hebe Camargo, Nelson Gonçalves, Bibi Ferreira e, na atualidade, é cultuado por cantoras como Fafá de Belém e Maria Betânia. A cantora Ângela Maria lançou, em

175

1977, um LP com doze faixas intitulado “Os mais famosos fados”67, com os títulos mais populares da história do gênero como “Foi Deus”, “Perseguição”, “Nem às paredes confesso” e “Só nós dois”, entre outros êxitos. Em 1954, a artista Hebe

Camargo gravou para o selo Odeon os fonogramas “Tudo isto é fado” e “Festa

Portuguesa”. A projeção de Hebe junto à colônia portuguesa colaborou para o seu prestígio na televisão como atriz e para a interpretação da personagem fadista Magali

Pinto na telenovela “As pupilas do Senhor Reitor”, exibida pela TV Tupi em 1970.

Ao comentar a turnê de Cauby Peixoto aos Estados Unidos, em 1956, Rodrigo

Faour (2001) relacionou algumas gravações do cantor que faziam sucesso naquele período, com destaque para as canções “Blue Gardenia” e “Canção do Rouxinol”.

Nesse mesmo ano, a gravação do fado “Lisboa Antiga” foi sucesso no Brasil e nos

Estados Unidos, chegando a ser uma das músicas mais executadas nas rádios estadunidenses:

Vale dizer que tal fado chegaria até ao top ten do hit parade americano naquele ano, na versão da orquestra de Nelson Riddle, e que, no Brasil, entre as diversas gravações que o fado recebeu, a de Cauby foi a de maior sucesso. Não era para menos. Ele parecia inteiramente à vontade no fraseado melódico português da canção. (FAOUR, 2001: 93). Outro fado que alcançou grande êxito na voz de Cauby Peixoto foi o fado “Um dia em Portugal”, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia, lançado em 1964 no disco intitulado “Cauby Interpreta”68. A representação da legitimidade do artista em sua comunidade é firmada através das centenas de fonogramas registrados no período, revelando um mercado consumidor substancial, através dos programas de rádio e televisão, além, é claro, da apresentação ao vivo dos artistas em casas regionais, teatros e casas de fado.

67 Discos Copacabana, COLP 12127, 1977.

68 “Cauby Interpreta”. 1964, Discos RCA Victor, BBL 1260.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi Deus Que me pôs no peito Um rosário de penas Que vou desfiando E choro a cantar E pôs as estrelas no céu E fez o espaço sem fim Deu o luto às andorinhas Ai, e deu-me esta voz a mim.

“Foi Deus”69

A voz acima referida “chora” e canta” simultaneamente, é parte de um poema que foi gravado por muitos fadistas, inclusive pelas cantoras Maria Alcina e Adélia

Pedrosa. Essa letra representa a dor cantada pelos fadistas em seu “rosário de penas”, e a interpretação da música revela a maneira “dramática” de se cantar o fado, pois este canta a tristeza, a saudade e a dor: é através da voz que o artista expressa o seu pranto.

O objeto de nossa pesquisa está centrado no estudo do gênero musical popular português denominado Fado, e na investigação sobre a importância que esse tipo de música representou para a construção da identidade portuguesa na cidade do Rio de

Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970, período indicado por músicos e fadistas portugueses como representante do ápice e declínio das práticas musicais do gênero na cidade. Procuramos compreender a trajetória do fado no Brasil como canção popular portuguesa e sua relação com os imigrantes portugueses estabelecidos no Rio de

Janeiro no decorrer do século XX. Para tal estudo, consideramos os espaços de divulgação próprios para a execução das músicas, que são o teatro de revista, as festas familiares ou religiosas, as associações culturais, os restaurantes típicos, as casas de fado, os programas radiofônicos e a discografia do período.

69 O Fado “Foi Deus”, de autoria de Alberto Janes, foi interpretado por Maria Alcina em 2008 na Câmara de Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro em homenagem às Comunidades dos Países de Língua Portuguesa - CPLP e na Rede Globo de Televisão na Minissérie “Maysa”.

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As fontes consultadas sobre a imigração portuguesa no Brasil revelou que o ingresso do maior contingente de imigrantes lusitanos foi observado entre o período de

1851 e 1960 (considerado como imigração de massa), com uma maior concentração nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Segundo fontes do IBGE70, sabemos que entre 1884 e 1959 chegaram oficialmente ao Brasil 1.368.258 portugueses, com traços culturais característicos, que afirmavam a sua identidade frente às diferenças sociais, durante o período de estabelecimento das comunidades de origem portuguesa no país. Analisamos o processo legal estabelecido pelas políticas de emigração/imigração dos dois países e os fatores que contribuíram para a imigração de um número expressivo de trabalhadores portugueses para o Brasil entre 1851 e 1960.

Em Portugal, contribuíram para esse quadro o avanço da exploração capitalista rural, a crise ocorrida nas vinícolas da região norte e o serviço militar obrigatório. No Brasil, dentre os fatores que favoreceram a imigração portuguesa, destacamos a abolição dos escravos em 1888, e a necessidade da substituição da força de trabalho escravo pelo trabalhador europeu e asiático; o início do processo de industrialização e o desenvolvimento da indústria têxtil no Rio de Janeiro.

A organização das vilas operárias tinha como objetivo exercer um controle do trabalhador fabril, vinculando a cessão da moradia à organização do trabalho e buscando, desse modo, evitar conflitos sociais. Essa era uma maneira inteligente de o empresário exercer uma influência sobre o operário porque era exigido um perfil docilizado dos trabalhadores, embora, na prática, nem sempre fosse possível conseguir a subserviência absoluta. Alguns trabalhadores burlavam o controle patronal, gerando certos conflitos no interior desse espaço e vindo afirmar a identidade do grupo.

70 Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2009.

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As bandas de música das fábricas têxtil foram dirigidas por maestros eminentes como Anacleto de Medeiros e José Resende de Almeida, mesclando em seu repertório músicas portuguesas e brasileiras. É através da integração dos habitantes das vilas operárias que se constituíram as bandas musicais das fábricas, que deram origem a um embrião dessa rede social e que, mais tarde, foram se manifestar na ampliação do mundo artístico do fado.

Os portugueses se fixaram em diversos bairros e regiões da cidade, construindo os seus símbolos de identidade e registrando-os materialmente em casas, igrejas, associações culturais e esportivas. É comum passar por um bairro da periferia e avistar uma casa de origem portuguesa com símbolos religiosos, como azulejos com motivos de santos retratando São José e a Virgem de Fátima, ou o Galo de Barcelos no topo das casas. A afirmação da identidade dos imigrantes portugueses pode ser percebida através da reflexão de Maria Manuela Alves Maia (2008), que afirma a existência de uma identidade imigrante em oposição ao termo usual luso-brasileiro:

Os imigrantes não querem o Portugal atual e sim o que lhes ficou na memória. Por outro lado, também não se reconhecem como brasileiros. Logo, nos parece terem forjado para si mesmos uma terceira possibilidade, uma ‘identidade imigrante’, em lugar de uma identidade luso-brasileira. O contorno desta identidade é marcado pelas raízes fincadas em um tempo que não existe mais concretamente, e, sim, na imaginação e na emoção. Trazendo na mala um bem comum: a lembrança de Portugal, considerado como bem mais precioso, a identidade imigrante passa a ser uma realidade feita de saudade e estranhamento. (MAIA, 2008: 212). A investigação sobre o ingresso do fado no Teatro de Revista do século XIX demonstrou que esse espaço de entretenimento colaborou com a difusão do gênero musical no Brasil e em Portugal. A referência musical adotada em Portugal foi o fado castiço, e no Brasil, as obras de Martins Pena e Arthur Azevedo apresentaram o fadinho brasileiro como número final de canto e dança. É notória a diferença entre os gêneros, o que nos leva a deduzir que o fadinho brasileiro inserido nessas Revistas era

179 um número musical que pertencia à suíte de danças do fado brasileiro em voga durante o século XIX. Entretanto, o fado castiço português pode ser notado nas revistas brasileiras de finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.

Entre 1902 e 1935 encontramos o registro de 413 fonogramas gravados no Rio de Janeiro, os quais incluem composições do cantor Baiano, Cadete Mário Pinheiro,

Eduardo das Neves, Vicente Celestino e Manoel Monteiro, entre outros. A análise realizada de duas gravações do cantor Baiano confirma que estas são classificadas na categoria de fado castiço. A escuta atenta dessas gravações induz a uma hipótese de que o cantor Baiano executava também a guitarra portuguesa em suas canções.

No capítulo 2, demonstramos a trajetória do fado em Portugal desde a sua constituição com o objetivo de fundamentar a discussão acerca desse gênero em toda a pesquisa. Refletimos sobre gênese do fado, o símbolo de construção de identidade, a temática fadista, os instrumentos que acompanham o fado, as performances artísticas e os principais artistas que configuraram o fado em Portugal durante o século XX.

Terminamos o capítulo com um breve comentário sobre as primeiras gravações do gênero fado em Portugal, ressaltando o levantamento do espólio organizado sob a coleção de discos de 78 rotações de propriedade do inglês Bruce Mastin.

Definido o objeto de estudo, optamos por iniciar um contato em pesquisa de campo a fim de realizar um levantamento das fontes básicas necessárias para a construção e desenvolvimento da tese.

Agora, é óbvio que a coleta de representações por meio da história oral, que é também história de vida, tornou-se claramente um instrumento privilegiado para abrir novos campos de pesquisa. Por exemplo, hoje podemos abordar o problema da memória de modo muito diferente de como se fazia dez anos atrás. Temos novos instrumentos metodológicos, mas sobretudo, temos novos campos. A rigor, sem assumir o ponto de vista do positivismo ingênuo, podemos considerar que a própria história das

180

representações seria a história da reconstrução cronológica deste ou daquele período. (POLLAK, 1992: 207). A impressão do primeiro contato realizado no campo de pesquisa me remeteu diretamente ao conceito de mundo artístico de Howard Becker (1977), pois consegui visualizar, no ato de observar, a possibilidade de analisar o espaço artístico e classificar alguns integrantes da rede social que ali se estabelecia. O ingresso no local de reunião da CADEG me transportou instantaneamente do bairro de Benfica carioca para o Benfica lisboeta. O cheiro das sardinhas fritas e do bacalhau, as falas com sotaque lusitano carregado, as gargalhadas e os gestos exagerados, a música das concertinas, a dança de pares, tudo se encaixava na configuração de uma rede social da colônia portuguesa nesta cidade. Havia naquele espaço artistas integrados que atuavam conjuntamente com artistas populares, familiares que cantavam em uníssono todas as canções, outros que se manifestavam com a dança, enfim, podia perceber que todos estavam ali em comunhão, como se tivessem estabelecido regras num contrato social.

Uma parte da história da imigração portuguesa no Brasil pode ser compreendida através dos relatos orais das famílias que se estabeleceram na cidade do

Rio de Janeiro, revelando a história de seus antepassados e os sujeitos celebrantes da cultura lusitana na cidade. O espaço do fado é o espaço da cidade. Como música popular portuguesa de caráter urbano, o fado se manifesta no Brasil nos grandes centros urbanos como no Rio de Janeiro e em São Paulo. Para uma análise das relações desenvolvidas entre os seus agentes e a comunidade portuguesa, adotamos os conceitos de “mundo artístico” e de “redes sociais” propostos por Howard Becker

(1977), assim como a classificação do autor em relação aos artistas. Outros conceitos utilizados são os espaços de memória segundo Maurice Halbwachs (1990) e o de memória coletiva e identidade social, de Michael Pollak (1992), visando avaliar o

181 processo de integração do imigrante português no Rio de Janeiro, considerando-se a recuperação de suas histórias de vida através da memória no além mar.

Nesta tese, o fado é observado através das relações e das convenções estabelecidas entre artistas integrados que zelam pela difusão e manutenção de uma cultura musical tradicional de sua terra natal. Esses artistas regravaram canções lusitanas e compuseram novas obras no Rio de Janeiro, constituindo público e espaços de atuação e de divulgação do fado, além do cuidado com a instrumentação e a estética concernente ao gênero. Todos esses aspectos propiciaram a configuração de uma rede social própria para a integração e sobrevivência da música portuguesa nesta cidade.

As entrevistas realizadas com alguns agentes da rede social do mundo artístico do fado ajudaram a construir um quadro com os principais tipos sociais que transitam nesse universo, como cantores, instrumentistas, radialistas, apresentadores, comerciantes, empresários e público ouvinte. Dentre todos os depoentes consultados, a cantora Maria Alcina foi a que forneceu um maior número de detalhes acerca da história do fado naquele período, bem como uma convincente visão da condição do imigrante fadista-empresário-trabalhador, exercida em sua casa de fados popular situada no bairro de Ipanema, “A Desgarrada”. É a narrativa da história pessoal da artista que representa a história dos imigrantes portugueses na cidade:

É como se, numa história de vida individual - mas isso acontece igualmente em memórias construídas coletivamente - houvesse elementos irredutíveis, em que o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de mudanças. Em certo sentido, determinado número de elementos tornam-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificar em função dos interlocutores, ou em função do movimento da fala. (POLLAK, 1992: 201). A difusão, apreciação e “consumo” do fado nesse período na cidade do Rio de

Janeiro revelaram uma prática musical característica, organizada pelos imigrantes

182 portugueses locais, e que acontecia paralelamente à propagação de gêneros musicais brasileiros como o choro, o samba e a bossa-nova. A prática referida envolvia uma rede social específica e contava com alguns aspectos e espaços de divulgação próprios, os quais passamos a enumerar: a aquisição de instrumentos musicais típicos, como a guitarra portuguesa, trazida ou adquirida em Portugal; o processo de aprendizagem dos instrumentos, que compreende técnica e estilo; a hierarquia e a organização dos conjuntos musicais; a relação profissional entre músicos e cantores; a forma de registrar as canções, em notação ou através da oralidade; os arranjos e as produções fonográficas organizadas para o mercado brasileiro; a relação do público com seus artistas; o reconhecimento dos artistas em sua terra natal, entre outros aspectos.

As transcrições e análises inseridas no capítulo 3 demonstram dois aspectos da ação dos artistas integrados do mundo artístico na cidade do Rio de Janeiro: a manutenção dos signos ligados ao fado tradicional e o aporte de elementos novos, que fazem uma ponte entre as culturas portuguesa e brasileira. Assim, o fado se une ao baião, à marcha, ao samba, gerando leituras novas do gênero musical lusitano. Essas combinações musicais podem atuar no sentido de manter a atualização ou a subsistência do gênero musical.

O levantamento e a análise da discografia do fado produzida no Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970 demonstraram a existência de um mercado consumidor representativo na comunidade luso-brasileira, com o registro de mais de trezentos fonogramas. Foi a partir da discografia consultada que constatamos a existência de um “hibridismo musical” entre o fado e a música brasileira, que pode ser observado em alguns fonogramas assinalados e examinados na tese. O êxito obtido pela canção “Olhos castanhos”, gravada em 1960 pelo cantor português Francisco

José, representa um marco na história da indústria fonográfica brasileira, pois alcançou

183 um número expressivo de vendas com mais de um milhão de cópias distribuídas no mercado brasileiro. Quanto à definição de gênero musical, constatamos que a música referida oscila entre o fado e bolero, e o seu êxito evidencia a consolidação de um mercado consumidor organizado no interior da comunidade portuguesa no Brasil, envolvendo público e artistas. Alguns artistas brasileiros consagrados contribuíram com o registro discográfico e a divulgação do fado no Brasil e no exterior. Cantores como Ângela Maria, Hebe Camargo e Cauby Peixoto gravaram fados entre as décadas de cinquenta e setenta, e Cauby, em turnê pelos Estados Unidos em 1956, alcançou o top ten do hit parade estadunidense.

A tese ressaltou a configuração do mundo artístico associado ao fado na cidade do Rio de Janeiro, apontando os principais fadistas e músicos que atuaram no período delimitado por este estudo, com destaque para os cantores Joaquim Pimentel e Manoel

Monteiro, porque, tanto a obra quanto o desempenho artístico deles serviram de influência para os jovens fadistas que se formaram no interior da comunidade portuguesa da cidade. Nesses fadistas, nota-se a manutenção do habitus concernente ao gênero musical e à cultura portuguesa, além de contribuírem com gravações e interpretações de outros gêneros musicais, como a marcha carnavalesca e o samba.

Constatamos a inexistência de reconhecimento desses artistas pela cultura oficial portuguesa, pois a maioria de seus nomes não constam nos verbetes dos dicionários musicais de Portugal, nem mesmo nos mais atualizados, como a Enciclopédia da

Música em Portugal no Século XX (2010), organizado pela musicóloga Salwa Castelo-

Branco. Como não constam nos verbetes dos dicionários musicais brasileiros, nossos fadistas ficam à deriva da história, à espera de um reconhecimento oficial que, por justiça, permita-lhes a inserção no contexto dos demais artistas e fadistas que

184 contribuíram para a constituição, divulgação e preservação do gênero musical no mundo.

A investigação sobre os espaços de divulgação do fado na cidade contribuiu para a organização de quadro expositivo das casas de fado existentes na cidade entre as décadas de 1950 e 1970. Organizadas à semelhança das casas de fado de Lisboa, situavam-se em maior parte na Zona Sul carioca e pertenciam a fadistas renomados, como Francisco José, Tony de Matos e Maria Alcina, que alternavam suas funções entre o palco e a administração do estabelecimento comercial. Desde a década de setenta e de maneira progressiva, as onze casas existentes no período fecharam as suas portas, e hoje não contamos com nenhuma casa de fado funcionando na cidade do Rio de Janeiro, apesar da expressiva presença de imigrantes portugueses e seus descendentes que ainda residem aqui. Isso aponta para um quadro de decadência do prestígio do gênero musical na cidade, e a falta de espaços de divulgação implica na ocultação de uma prática cultural que impede às novas gerações o acesso ao seu código de expressão. Não encontramos cantores fadistas nas gerações atuais de portugueses residentes na cidade, e tampouco instrumentistas. Segundo declaração do

Fadista Ramiro Damaia, o único guitarrista remanescente é o Vitor Lopes, que reside na cidade de Maricá, e, depois, dele, talvez o fado desapareça do cenário carioca como expressão local. Tal quadro negativo explica o encerramento dos programas radiofônicos dedicados à comunidade portuguesa e a redução drástica dos programas televisivos, justificado pela falta de interesse das novas gerações de luso-brasileiros em perpetuar a sua cultura natal, talvez por esta associada a um passado que não se apresenta na mídia como cultura homogênea. Da opção das novas gerações por outras músicas e culturas midiáticas (gastronômicas, comportamentais, etc.) emerge a conformação dos antigos com o desaparecimento do gênero, como se tratasse de uma

185 condição natural, o velho sendo superado pelo novo, sem que fosse possível uma reflexão sobre tal acontecimento.

Os aspectos negativos do desaparecimento do gênero fado na cidade do Rio de

Janeiro podem ser amenizados pela ação de alguns fadistas e agentes sociais integrantes desse mundo artístico, como a cantora Maria Alcina, o radialista e produtor

José Chança, o radialista Oliveira Nunes, o ouvinte Nelson Calafate, entre outros. A resistência se dá também pela dedicação e iniciativa de pesquisadoras como Thaís

Matarazzo e Claudia Tulimoschi, que através de intenso trabalho de consulta a fontes primárias e secundárias, disponibilizam informações históricas, iconografia e arquivos de áudio (fonogramas e entrevistas) em seus blogues na Internet, atuando como um bastião em defesa da música do fado, seus artistas e de toda a cultura portuguesa.

Retomamos a voz que canta a ternura e a saudade, esse “misto de ventura”, a fim de enaltecer a música como elemento de afirmação da identidade portuguesa no

Brasil. Esse pranto cantado – expressão da tristeza, do sofrimento e da dor –, expresso na voz, no rosto, no gesto e na alma do fadista, é traduzido paradoxalmente na alegria de cantar a saudade, que é a presença da ausência da terra, do ser português que atravessa o mar, vindo desembarcar na cidade do Rio de Janeiro.

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AMÁLIA RODRIGUES. “Fado menor”. Linhares Barbosa e Santos Moreira [compositores]. Disco Columbia VC, 1962, EP 45 rpm.

______. “Gaivota”. Alexandre O’Neill & Alain Oulman [compositores]. In: Fado Corrido. Columbia VC, 1964, EP 4 rpm.

BAIANO. “Fado Português” (3 min 03 seg). Gravadora Zon-o-Phone, disco 10.009, 1902. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2009. ______. “Fado de Hilário” (3 min). Gravadora Zon-o-Phone, disco 10.038, 1902. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2009. ______. “Fado do Soldado” (3 min). Gravadora Zon-o-Phone, disco 1515, 1902. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2009. ______. “Saudades da terra”. Gravadora Odeon, disco 108714, 78 rpm, 1907-12. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2009. ______. “Fado brasileiro”. Gravadora Odeon, disco 120172, 78 rpm 1907- 12. Disponível em: Acesso em: 14 mar. 2009. CADETE. “Vá saindo”. Gravadora Odeon, disco 108505, 78 rpm, 1907-12. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2009. CAUBY PEIXOTO. “Cauby Interpreta”. 1964, discos RCA Victor, BBL 1260

EDUARDO DAS NEVES. “Fado do coração”. Gravadora Odeon, disco 120225, 78 rpm, 1912-13. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2009. ESTER DE ABREU E FRANCISCO CARLOS. “Moreninha de Lisboa”. Irani de Oliveira e William Duba [compositores]. RCA Victor, 801466, Lado A, 78 rpm, 1955.

FERNANDO MAURICO & FRANCISCO MARTINHO. “O leilão da Mariquinhas”. João Linhares Barbosa e Alfredo Marceneiro [compositores]. Lisboa: FF, EAN30103. 1 LP, faixa 1A, 1980.

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FRANCISCO JOSÉ. “Olhos Castanhos”. Francisco José e Alves Coelho [compositores]. Discos Sinter, 1960. MANUEL TAVEIRA. “O fado sobe o morro”, de Manuel Taveira. Disco Phillips, LP 832 926, lado B, 33 rpm. OLIVINHA CARVALHO. “O fado é bom pra xuxu”. Frederico Valério e Amadeu do Vale. [compositores]. Discos Copacabana, M 2213, lado B, 78 rpm. OS GERALDOS. “Fado Liró”. Gravadora Odeon, disco 108246, 78 rpm, 1907-12. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2009. PEPA DELGADO. “Fado português”. Gravadora Odeon, disco 10045, 78 rpm, 1907- 13. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2009. 3. Partituras consultadas

MARIA, Manoel Joaquim & VASQUEZ, Francisco Correa. “Cateretê”. Orpheo na Roça. Transcrição do autor de cópia original impressa. 1 partitura (4 p.). Canto e piano. MILANEZ, Abdon. “Fadinho Final”. Mercúrio (1886). Editado por Narciso e Artur Napoleão, número de matriz 3093, s/d. 1 partitura (4 p.). Piano. MILANO, Nicolino. Fado Liró. Rio de Janeiro: Nascimento Silva & Cia, s/ p.) 1 partitura (5 p.). Canto e piano. “FADO DE VIMIOSO”. Domínio Público. CANCIONEIRO DE MÚSICAS POPULARES. Cancioneiro de musicas populares contendo letra e musica de canções, serenatas, chulas, danças, descantes, cantigas dos campos e das ruas, fados, romances, hymnos nacionaes, cantos patrioticos, canticos religiosos de origem popular, canticos liturgicos popularisados, canções políticas, cantilenas, cantos maritimos, etc. e cançonetas estrangeiras vulgarizadas em Portugal / collecção recolhida e escrupulosamente trasladada para canto e piano por Cesar A. das Neves ; coord. a parte poetica por Gualdino de Campos ; pref. pelo Exmo Sr. Dr. Teophilo Braga. - V. 1, fasc. 1 (1898)-V. 3, fasc. n. 75 (1899). - Porto : Typ. Occidental, 1898- 1899. 1 partitura (2 p.). Canto e piano, p. 128-129. “FADO DA SEVERA”. Domínio Público. CANCIONEIRO DE MÚSICAS POPULARES. Cancioneiro de musicas populares contendo letra e musica de canções, serenatas, chulas, danças, descantes, cantigas dos campos e das ruas, fados, romances, hymnos nacionaes, cantos patrioticos, canticos religiosos de origem popular, canticos liturgicos popularisados, canções políticas, cantilenas, cantos maritimos, etc. e cançonetas estrangeiras vulgarizadas em Portugal / collecção recolhida e escrupulosamente trasladada para canto e piano por Cesar A. das Neves ; coord. a parte poetica por Gualdino de Campos ; pref. pelo Exmo Sr. Dr. Teophilo Braga. - V. 1, fasc. 1 (1898)-V. 3, fasc. n. 75 (1899). - Porto : Typ. Occidental, 1898- 1899. 1 partitura. Canto e piano, p. 127.

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4. Peças teatrais consultadas

Como Nasceu um Fado: quadro-episódico e musical em 5 fases, de Humberto Cunha, musicado pelo maestro Antonio M. Lopes, 1949.

Fado e Maxixe, Revista em 3 actos, de João Poncho e André Brum, s/d; Manuscrito.

O Ditoso Fado, comédia original em um acto de Manoel Roussado. 1935. Manuscrito.

O Juiz de Paz na Roça, de Martins Pena. Comédia em um ato de 23 cenas. 1837.

Orfeu na Roça, de Francisco Corrêa Vasques. Paródia da ópera cômica Orfeu dos infernos, de Offenbach, 1868.

5. Entrevistas

ALCINA, Maria. Entrevista realizada na residência de Maria Alcina no bairro do Méier em 02 fev. 2011. Rio de Janeiro, 2011. Arquivo de áudio MP3 (82 min 02 seg). CALAFATE, Nelson Gonçalves. Entrevista realizada na residência de Nelson Gonçalves Calafate no bairro da Lagoa em 26 jan. 2011. Rio de Janeiro, 2011. Arquivo de áudio MP3 (80min 01seg). CHANÇA, José Mendes. Entrevista realizada na gráfica de José Mendes Chança no bairro da Cidade Nova em 15 mar. 2010. Rio de Janeiro, 2010. Arquivo de áudio MP3 (48 min). DAMAIA, Ramiro. Entrevista realizada no centro do Rio de Janeiro em 21 jan. 2010. Rio de Janeiro, 2010. Arquivo de áudio MP3 (62 min). HILÁRIO, Caçula. Entrevista realizada com Carlos Silva e Sousa, cujo pseudônimo é Caçula Hilário, no centro do Rio de Janeiro em 03 nov. 2010. Rio de Janeiro, 2010. Arquivo de áudio MP3 (49 min). MARQUES, Manuel Pinto. Entrevista realizada no centro comercial CADEG no restaurante “Cantinho das Concertinas” no bairro de Benfica em 24 out. 2009. Rio de Janeiro, 2009. Anotações em manuscrito. PEDROSA, Adelia & DAMAIA, Ramiro. Contato e registro de campo realizado no Clube da Portuguesa Carioca no bairro da Ilha do Governador em 19 jun. 2010. Anotações em manuscrito.

6. Filmografia

MARIA ALCINA: Portugueses Ilustres no Brasil. Rio de Janeiro: Malta Editora Ltda, 1994. Um DVD (52min 39 seg), son., color.

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7. Sites consultados ADÉLIA PEDROSA. Disponível em: < http://adeliapedrosa.blogspot.com/>. Acesso em: 14 jan. 2011. ADÉLIA PEDROSA. Adélia Pedrosa. Rádio Vera Cruz . Programa dos Astros de Joaquim Pimentel. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2011.

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CLUBE GINÁSTICO PORTUGUÊS.

Disponível em: . Acesso em: 22 fev. 2009. DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Disponível em: e . Acesso em: 09 fev. 2011. ESTER DE ABREU. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2009. FADISTAS EM LISBOA. Disponível em: . Acesso em: 14 Jan. 2011. IBGE Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2009.

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ANEXOS

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ANEXO A

Casas regionais, associações culturais e filantrópicas O Clube Recreativo Português de Jacarepaguá71, fundado em 13 de abril de 1966, e seu presidente foi o Sr. Oliverio Manuel Vizeu Carvalho. Foi organizado a partir do Rancho Folclórico Tricanas de Coimbra, e durante mais de quatro décadas se dedicou a propagar a cultura e a história de Coimbra, promovendo reuniões recreativas, artísticas e bailes. A cidade do Rio de Janeiro possui outras entidades culturais de origem luso-brasileira, como o Clube Português do Rio de Janeiro, o Orfeão Portugal do Rio de Janeiro e o Orfeão Português. O Liceu Literário Português72 é uma sociedade centenária, fundada em 1868. De caráter filantrópico, possui uma biblioteca para consulta pública, um museu e três institutos que atuam na área de pesquisa e fomento da história, da cultura e da língua portuguesa. São oferecidos à comunidade em geral diversos cursos de extensão acadêmica, além de um curso de especialização em Língua Portuguesa. As entidades recreativas colaboraram mais estritamente com o processo de expansão e fixação na terra do povo português no Brasil. Por isso, damos ênfase no desenvolvimento deste tópico, relacionando as bandas musicais e os Ranchos Folclóricos. Fundada em 1921, a Banda Portugal do Rio de Janeiro congregou em seus primórdios um número majoritário de instrumentistas portugueses, mas, na atualidade, a banda conta com noventa por cento de brasileiros em sua formação, oriundos de Escolas de Música como a Faetec ou o Conservatório Villa-Lobos. Na atualidade, a Banda Portugal se apresenta sob a regência e direção musical do Maestro José Soares, incluindo em seu repertório músicas tradicionais portuguesas, além de dobrados e polcas entre outras obras. A Banda Portugal recebe o apoio do Liceu Literário Português na promoção e divulgação de eventos ligados às tradições da comunidade luso-brasileira.

O Rancho de Dança Cantares do Divino Salvador73 é um grupo folclórico representante da cultura portuguesa da região do Douro Litoral, uma das onze províncias tradicionais de Portugal, que se encontra localizada na região Norte do país, reunindo o distrito do Porto e alguns “concelhos” dos distritos do Aveiro e do Viseu. Segundo informação constante no site do rancho folclórico, o grupo se apresenta com danças e trajes típicos da região, ao som de diversas músicas do cancioneiro popular português, como “tiranas, canas-verde, rusgas, vira-rasgado, fado da reguenga e fado- batido, chula do Douro e vira serrano, além de outras músicas”. O Rancho Folclórico Maria da Fonte74 foi fundado em 18 de dezembro de 1954, já atuou em vários festivais em Portugal, e tem como objetivo divulgar a cultura minhota. É associado à Casa do Minho, funciona como restaurante e centro cultural e está localizado no bairro do

71 . Fonte: Clube Recreativo Português de Jacarepaguá. Disponível em: . Acesso em: 22 fev. 2009. 72 Fonte: Liceu Literário Português. Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2009. 73 Fonte: Rancho Divino Salvador. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2009. 74 Fonte: Casa do Minho. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2009.

199

Cosme Velho. O Rancho Folclórico Adulto da Casa de Viseu75 foi fundado em junho de 1967, com o objetivo de representar as danças típicas e a música portuguesa nas festas típicas da Casa de Viseu, agremiação cultural localizada no bairro da Vila da Penha. A fundação do rancho teve como padrinhos a cantora Olivinha Carvalho e o Sr. Lima Abreu, um grande incentivador do folclore português. O Rancho Folclórico Luiz de Camões localiza-se na cidade vizinha de Niterói e suas atividades culturais estão relacionadas ao Clube Português de Niterói. A Casa do Minho76 é presidida pelo Sr. Agostinho da Rocha F. dos Santos e desenvolve suas atividades culturais e sociais em sua sede no bairro do Cosme Velho, abrigando um conhecido restaurante português. A associação foi fundada em março de 1924, e acolhe o Rancho Folclórico Maria da Fonte. A Casa de Espinho, fundada em 07 de setembro de 1964, é outro centro de promoção da cultura portuguesa, está localizada no bairro de Irajá e é presidida pelo Sr. Manuel Fonseca. A Casa de Viseu77 é presidida pelo Sr. José Antonio Marinho Nunes, e foi fundada em 15 de Julho de 1966. A sede está localizada à Rua Carlos Chamberland no bairro da Vila da Penha. Essa entidade promove a difusão dos costumes e da cultura típica da região do Viseu através de suas danças e cantares e é considerada uma das principais associações culturais luso-brasileiras.

A cidade de Niterói representa outro ponto de concentração de imigrantes lusitanos, pois recebeu um grande contingente de descendentes portugueses a partir da década de 1920, estabelecidos inicialmente no bairro portuário da Ponta d’Areia. Naquele ano, o censo demográfico revelou que a população da cidade de Niterói contava com 1/6 de imigrantes, sendo a sua maioria composta de portugueses e seus descendentes. Segundo Ana Maria de Moura Nogueira, essa comunidade guardava os valores lusos da terra de além mar e hoje é conhecida como Portugal Pequeno (NOGUEIRA, 2000):

Situada no canto esquerdo do litoral niteroiense, do ponto de vista de quem chega pelo mar, a Ponta d’Areia lembra muito uma aldeia portuguesa [...]. O bairro é formado por um conjunto de casas que ainda resistem à beira do cais, espremidas entre o mar e o morro da Penha. Ele cresceu em função dos estaleiros que movimentaram Niterói desde a primeira metade do século passado, empregando centenas de imigrantes em torno das atividades ligadas à construção naval e à pesca. (NOGUEIRA, 2000:188- 189). A música representou um dos primeiros fatores de integração da comunidade portuguesa em Niterói. As primeiras iniciativas adotadas como suporte para a adaptação desse grupo de imigrantes no local foram a fundação da Igreja Nossa Senhora de Fátima, a abertura do Hospital Santa Cruz de Beneficência Portuguesa, a fundação da Banda de Música e do Centro Musical. A autora Ana Maria de Moura Nogueira orienta a sua pesquisa com base na organização interna da Banda de Música

75 Fonte: Rancho Folclórico Adulto da Casa de Viseu. Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2009. 76 Fonte: Casa do Minho. Disponível em: < http://www.minho.com.br/novo/.>. Acesso em: 20 fev. 2009. 77 Fonte: Casa de Viseu. Disponível em: . Acesso em: 22 fev. 2009.

200 e na disputa de poder pela direção desse grupo musical, exemplificando assim as transformações sociais ocorridas na comunidade portuguesa de Niterói. A Banda de Música foi estruturada com o intuito de promover apresentações musicais e eventos sociais da comunidade, e antecede à fundação do Centro Musical que ocorre em 1919. Esse centro foi organizado pelos comerciantes locais com o apoio do vice-cônsul de Portugal. Ana Maria Nogueira (2000) descreve as características básicas dos membros do Centro Musical:

Os primeiros artigos do Estatuto do Centro Musical procuram definir o perfil do associado: este deveria ter preferencialmente nacionalidade portuguesa ou brasileira e em casos de “outras nacionalidades”, os candidatos deveriam ser apreciados pela diretoria, que não contava com representação feminina. Vetava-se terminantemente a admissão de cidadãos “comprovadamente beberrões, de aspecto pouco recomendável ou com moléstia contagiosa”. Esta última exigência, bem como a de se usar terno e gravata em ocasiões festivas, justificava-se pela necessidade de controlar a frequência em um lugar naturalmente “movimentado” como era a Ponta d’Areia nos anos 1920 e 1930. (NOGUEIRA, 2000:195). A construção da identidade lusitana no bairro Ponta D’areia se dá nas primeiras décadas do século XX através de suas instituições beneficentes, culturais e religiosas fundadas, contribuindo para a estruturação urbana da cidade de Niterói e tendo a música desempenhado uma função primordial no assentamento desse grupo populacional.

Mais uma instituição importante para a comunidade portuguesa é o Clube Português de Niterói78, fundado em 02 de fevereiro de 1960 e presidido por Fernando Guedes de Azevedo. Oferecendo várias possibilidades de lazer ao seu associado, o clube promove as atividades do Rancho Folclórico Luiz de Camões.

78 Fonte: Clube Português de Niterói. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2009.

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ANEXO B

Resumos biográficos

A cantora Adelia Pedrosa (Praia de Pedrógão, Distrito de Leiria, Portugal, 30/11/1948) chegou ao Brasil aos doze anos de idade, fixando residência junto à colônia portuguesa estabelecida na praia do Caju no Rio de Janeiro. Iniciou sua carreira em 1959 cantando no “Programa dos Astros”, apresentado por Joaquim Pimentel na Rádio Vera Cruz do Rio de Janeiro, depois integrou o elenco de um programa de televisão (TV Continental), dirigido por Pimentel e denominado “A Casa do Casemiro”. A referida fadista divulgou o fado em programas de rádio e TV, como o programa “Portugal no Mundo”, transmitido pela TV Tupi, e “Todos cantam a sua terra”, pela TV Record sob a direção de Santos Mendes. A artista fez carreira como fadista no Brasil, além de atuar em Portugal e na Argentina. Em 1964, Adélia mudou- se para a cidade de São Paulo, tornando-se proprietária de restaurantes típicos portugueses nessa cidade, como o “Adega Lisboa Antiga” em sociedade com Joaquim Pimentel e Terezinha Alves e o restaurante “Abril em Portugal”. Na atualidade, reside em Pirassununga, interior de São Paulo, e mantém um blogue pessoal que divulga a história do fado no Brasil, encontrado no site . A fadista Ester de Abreu (Ester de Abreu Pereira, Lisboa, Portugal, 25/10/1921, Rio de Janeiro, Brasil, 24/02/1997), irmã da cantora Gilda Valença, iniciou a sua carreira numa rádio em Portugal, cantando músicas para crianças e profissionalizando-se na Rádio Nacional de Lisboa em 1940. No ano de 1948, viaja ao Brasil para se apresentar em uma temporada de dois meses no Hotel Copacabana Palace. Nesse período, integra o espetáculo “Sonho nas Berlengas" e decide estabelecer residência no Rio de Janeiro, participando posteriormente do elenco de cantores da Rádio Nacional. Gilda Valença (Ermenegilda Pereira, Lisboa, Portugal, 13/02/1926, final da década de 1980), é irmã da fadista Ester de Abreu. Com 23 anos completos, Gilda Valença desembarcou no Rio de Janeiro, em 1949, com o intuito de visitar as suas irmãs Julieta e Éster de Abreu, então residentes na cidade, e atuou em alguns programas radiofônicos de Ari barroso na Rádio Tupi. Regressou a Portugal para atuar no teatro de revistas entre 1951 e 1953, dividindo o palco com a atriz Graziela Mendes e a fadista Hermínia Silva. Retornou ao Brasil em 1953, contratada pela Companhia de Walter Pinto para atuar e cantar no teatro de revista. Gilda Valença atuou em várias revistas do teatro brasileiro, no programa “Revista do Rádio em Portugal”, de Manoel Monteiro (1966-1968). No cinema, estrelou o filme “O petróleo é nosso” (1954) e compôs o elenco de quatro filmes do ator/produtor Mazzaropi, sendo o último em 1978, intitulado “Jeca e seu filho preto”. Integrou como atriz o elenco de telenovelas da TV Tupi, como “Antonio Maria”, exibida entre julho de 1968 e abril de 1969, onde interpretava a personagem “Amália”; atriz da telenovela “A Fábrica”, entre março de 1971 e março de 1972, no papel da personagem “Maria da Graça”, e na telenovela “O preço de um homem”, em 1972.

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Descendente de portugueses, Olivinha Carvalho (Rio de Janeiro, 30/03/1930) começou a cantar ainda na infância, e aos cinco anos de idade, já se apresentava no programa Heraldo Português, na Rádio Cajuti do Rio de Janeiro. Ao completar dez anos, foi contratada pelo empresário Walter Pinto para atuar ao lado de Oscarito, Aracy Cortes, Manoel Vieira e Lurdinha Bittencourt no teatro de revista. Em 1951, foi trabalhar na Rádio Nacional levada por Victor Costa, atuando nesta emissora ao lado de inúmeros artistas, como a fadista Ester de Abreu, representando de forma emotiva a comunidade luso-brasileira. Um fato a destacar acerca da biografia de Olivinha é que a artista, embora tivesse manifestado o desejo de se apresentar em Portugal, nunca o realizou. As fontes biográficas da fadista podem ser averiguadas através das informações postadas no site da pesquisadora Thais Matarazzo, abaixo indicado. Fonte: . Francisco José Galopim de Carvalho (Évora, Portugal, 16/08/1924, Portugal, 31/07/1988), conhecido no meio artístico como Francisco José, iniciou a sua carreira de fadista e cantor romântico aos 24 anos de idade, interrompendo e abandonando a graduação em Engenharia onde cursava o terceiro ano de estudos. O artista liderou alguns programas de variedades na televisão brasileira, passando pela TV Tupi, TV Rio e Continental, e nesta última, em 1960, apresentou o programa “Figura de Francisco José”, que contribuiu para a sua popularização junto ao público brasileiro. Em 1964, em passagem por Portugal, foi protagonista de um incidente “diplomático”, ao participar de um programa de TV que era transmitido ao vivo: acusou a emissora RTP (Rádio Televisão Portuguesa) de remunerar os artistas portugueses de forma indevida porque a emissora pagava um cachê superior aos artistas estrangeiros. A transmissão do programa foi cortada e o artista foi conduzido às dependências da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado, também conhecida como Polícia Política, cujas funções mantinham semelhança com o DOPS - Departamento de Ordem Política e Social - brasileiro), foi interrogado e processado por injúria e difamação, o que lhe acarretou uma ordem para se retirar do país, voltando a cantar na televisão portuguesa apenas no ano de 1980. O artista deixou um legado considerável de obras e feitos que enalteceram tanto o gênero fado quanto a cultura popular portuguesa. Francisco José faleceu em 31/07/1988.

Antonio Campos, além de se apresentar no eixo Rio - São Paulo, esteve mais de vinte vezes em Portugal, atuando em várias casas de fado, como a tradicional “Faia”, e se apresentou em Buenos Aires e em La Plata, na Argentina, bem como em vários estados brasileiros. Participou de inúmeros programas de Rádio e TV no Brasil e em Portugal e gravou fonogramas de suas obras nesses dois países. Os dados biográficos de Antonio Campos foram extraídos do programa radiofônico veiculado em 15 de agosto de 2009 no site “Mundo Fado Brasil”, apresentado por Claudia Tulimoschi e disponível no blogue do “Mundo Fado Brasil” no endereço . Tony de Matos (António Maria de Matos, Porto, Portugal, 28/09/1924, Lisboa, Portugal, 08/06/1989) é filho da atriz Mila Graça e de António Júlio de Matos. Inicia a sua carreira artística na Companhia Rafael de Oliveira Artistas Associados, na qual atuaram sua mãe e seu padrasto, o ator Afonso de Matos. Tony de Matos cantou nos atos de variedades do Teatro Desmontável, onde o padrasto era diretor artístico. Em 1938, em uma turnê da companhia na região da Beira Alta, o jornal local registrou e destacou a interpretação do jovem de 14 anos que cantava fados de Coimbra,

203 acompanhado por músicos amadores locais. Em 1945, integrou durante um período curto o elenco de cantores da Emissora Nacional Portuguesa e, a partir de 1948, atuou por dois anos no Café Luso de Lisboa. Tony de Matos faleceu em Lisboa em 8 de Junho de 1989, deixando uma imensa discografia e uma importante colaboração para a cultura portuguesa, produzindo e atuando em obras para o cinema, televisão, teatro de revista e em shows. No Brasil, o seu restaurante “Fado”, em Copacabana, contribuiu para a divulgação do fado e da cultura portuguesa na cidade, difundindo a arte dos fadistas portugueses aqui estabelecidos.

Sebastião Robalinho (Freguesia do Sandim, Vila Nova de Gaia, Portugal, 29/02/1934, Rio de Janeiro, 17/12/2004) chegou ao Brasil com vinte anos de idade em 1º de abril de 1954, e iniciou a sua carreira no “Programa dos Astros”, de Joaquim Pimentel, na Rádio Vera Cruz. Em Portugal, ainda na adolescência, cantou no estilo castiço em noites boêmias da Ribeira, no Porto, tendo como referência o fadista Alfredo Marceneiro. Sebastião Robalinho exerceu também a função de radialista, mantendo no ar por 42 anos seguidos um programa radiofônico que se intitulava “Mensagem de Portugal”, inicialmente na Rádio Metropolitana e depois na Rádio Mundial. O fadista faleceu no Rio de Janeiro em 2004, e sua filha, Priscila Robalinho, mantém um blogue atualizado em memória de seu pai, que pode ser encontrado no site , onde podemos consultar dados biográficos, discografia, e observar alguns depoimentos acerca do fadista.

Manuel Taveira participou de duas telenovelas na TV Tupi, “Antonio Maria” (1968) e “Meu rico português” (1975), e de uma na TV Record, “As pupilas do Sr. Reitor” (1970). Foi considerado cidadão paulistano pela Câmara Municipal da Cidade de São Paulo em 1970, residindo nessa cidade por 20 anos e sendo homenageado ali com o nome de uma rua. Manoel Taveira viveu no Brasil por 44 anos, dos quais 19 anos em São Paulo e 25 no Rio de Janeiro, cidade onde faleceu em 20 de Outubro de 2002.

Mario Simões (Figueira da Foz, Portugal, 1943) chegou no Brasil em 1959, com 16 anos de idade para residir com os seus tios que já eram estabelecidos na cidade do Rio de Janeiro. Em sua infância, em Portugal, demonstrava grande admiração pelos fadistas Francisco José, Tony de Matos e Tristão da Silva, cantando suas músicas e imitando os seus estilos. No Rio de Janeiro, ao ouvir o “Programa dos Astros” da Rádio Vera Cruz, descobriu que os seus ídolos de infância eram artistas imigrantes como ele, o que o encorajou a procurar o fadista Joaquim Pimentel a fim de realizar um teste vocal e, no caso de ser aprovado, ser admitido no elenco de artistas da emissora. Sua interpretação da música “Estrela da Minha Vida” lhe garantiu a efetivação no programa e a possibilidade de se apresentar em clubes portugueses e casas regionais da cidade. Por iniciativa da vereadora Teresa Bergher, o fadista foi agraciado com o título de Cidadão Honorário do Município do Rio de Janeiro em março de 2010, prêmio por seu talento musical, motivo de fortalecimento dos laços de união entre Brasil e Portugal através do fado e da música portuguesa.