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TELEVISUALIDADES DA MATRIZ RELIGIOSA ESPÍRITA NA BRASILEIRA

[ ARTIGO ]

Marcos Vinicius Meigre e Silva Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Comunicação Social Marcos Vinicius Meigre e Silva Televisualidades da matriz religiosa espírita na telenovela brasileira 99  

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Este trabalho busca investigar quais marcas televisuais estão presentes na conformação das chamadas espíritas e quais fatores socioculturais justificam tais cons- truções. Sustentados nos estudos visuais e no estilo televisivo, identificamos produções que reverberam aspectos como reencarnação, pluralidade das existências, condição espiritual dos seres e atuação sobre médiuns como categorias fundamentais e em po- roso diálogo com o imaginário nacional acerca da espiritualidade. Buscamos entender a especificidade do meio televisivo ao tratar de uma mediação tão arraigada em nossas sociedades latinas: a religiosidade.

Palavras-chave: Estilo Televisivo. Espiritualidade. Telenovelas.

This study seeks to investigate which television brands are present in the conforma- tion of the so-called spiritist soap operas and which sociocultural factors justify such constructions. Based on visual studies and television style, we identify productions that reverberate aspects such as reincarnation, plurality of existences, spiritual condition of beings and acting on mediums as fundamental categories and porous dialogue with the national imaginary about spirituality. We seek to understand the specificity of the television medium when dealing with a mediation so deeply rooted in our Latin societies: religiosity.

Keywords: Television Style. Spirituality. Soap operas.

Este trabajo busca investigar qué marcas televisivas están presentes en la conformación de las llamadas telenovelas espíritas y cuáles factores socioculturales justifican tales construcciones. Basándose en los estudios visuales y en el estilo televisivo, identifica- mos las producciones que reverberan aspectos como la reencarnación, la pluralidad de las existencias, la condición espiritual de los seres y la actuación sobre médiums como categorías fundamentales y en diálogo poroso con el imaginario nacional acerca de la espiritualidad. Buscamos entender la especificidad del medio televisivo al tratar de una mediación tan arraigada en nuestras sociedades latinas: la religiosidad.

Palabras clave: Estilo Televisivo. Espiritualidad. Telenovelas.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2018.150469

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Introdução gênero permeia os investimentos das emis- soras, bem como o imaginário e as memó- rias sociais, dado o proeminente sucesso A inextrincável relação entre mídia televi- alcançado pelas obras ficcionais, a ponto siva e matrizes religiosas perpassa a cons- de se internacionalizarem sem, no entanto, tituição da sociedade brasileira desde que perderem a capacidade de diálogo poroso esse aparelho eletrônico aportou em nos- com as culturas locais/regionais para as sas terras, na década de 1950. De lá para quais são produzidas (MARTÍN-BARBERO; cá, as religiões ocuparam lugar de notorie- REY, 2001). dade nos palanques da TV, regando de mis- ticismo, crendices e esperanças a audiência Aliado à visibilidade atingida pela TV popular-massiva. Programas de auditório no contexto cultural brasileiro, tendo na promovendo curas espirituais, telejornais telenovela uma expressão singular desta enfatizando o poder de mobilização das empreitada, investiga-se aqui a inserção do peregrinações religiosas e enfrentamentos espiritismo em obras ficcionais produzidas político-religiosos alçados ao centro dos de- pela dramaturgia nacional, evidenciando bates jornalísticos são alguns dos exemplos marcas televisuais de problematização canônicos de como a religião é inserida na da doutrina espírita na telenovela. A televisão em imbricação direta com as cul- prerrogativa de cunho sócio-histórico é turas nacionais. o elemento norteador da pesquisa, pois, com base num recuo cronológico, foram Porém, em termos de aceitação crí- identificadas diversas produções sustenta- tica, a mídia televisiva sofreu e permanece das em preceitos do espiritismo. O corpus enfrentando grandiosos embates para se empírico deste artigo contempla eventos posicionar como objeto cultural de relevân- narrativos de telenovelas produzidas e cia no cenário nacional (BARBOSA, 2010). exibidas nas últimas décadas, ressaltando Nessa envergadura, distanciando-se das as seguintes: , , Alma correntes reducionistas que negligenciam gêmea, , Escrito nas estre- as potencialidades do meio televisivo, este las, e Além do tempo. O recorte trabalho não apenas intenciona romper com de obras sinaliza a recorrente evocação do tais posturas arcaicas sobre os processos espiritismo na TV brasileira, atrelando-se comunicacionais como também pretende ao já consolidado melodrama as marcas de avançar num importante passo para esse uma matriz religiosa significativamente campo: tornar evidente a dimensão formal relevante para a realidade sociocultural dos textos televisivos para estudar os aspec- de nosso país: a crença no espiritualismo. tos socioculturais em jogo na conformação Os críticos de TV e as audiências em geral dos produtos midiáticos. Para esse investi- vêm denominando as telenovelas ante- mento específico, debruçamo-nos sobre um riormente citadas de “novelas espíritas”, dos gêneros televisivos de maior vitalidade, sinalizando a emergência de um possível capacidade de reinvenção e adaptação, ado- subgênero. ção de aparatos tecnológicos e incorporação de temáticas sociais: a telenovela. Desde Diante desse esboço inicial, esclareço os primórdios da televisão no Brasil, esse que o intento da pesquisa não é abarcar

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a pluralidade das obras já assentadas nas mesmas bases racionalistas que galvani- bases doutrinárias espíritas ou espiritua- zaram a Europa e os países nortistas, com listas, mas indicar a protuberante produ- um projeto de modernidade assentado em ção televisiva de cunho espiritual, num bases não identificáveis no continente diálogo poroso entre mídia e religião como americano. Por não nos enquadrarmos na traços da conformação televisiva nacio- racionalidade técnica desenvolvimentista nal. Outras telenovelas, não contempladas europeia, as teorias nos definem como um aqui, salientam aspectos do espiritismo e ambiente de modernidade atrasada, moder- merecem destaque, mas, no recorte deste nidade tardia. Para pensadores dos estu- texto, optou-se por analisar as obras de dos culturais críticos latino-americanos, maior projeção, visibilidade, notoriedade, como Jesús Martín-Barbero (e outros, tais repercussão e citação quando o assunto como Néstor García Canclíni, Beatriz Sarlo, é a imbricação entre os campos do espi- Guillermo Orozco Gomez, Omar Rincón), ritismo e da telenovela. Assim, sustento essa concepção minimiza as mediações a ideia de investigar as tessituras que efetivamente pulsantes na nossa orga- se conformam a partir da relação entre nização social. Aspectos de nossa vida mediações religiosas de nossa cultura e cotidiana, não adequados ao modelo racio- matrizes constitutivas do melodrama tele- nal, ficariam excluídos dos processos de visivo. De modo sintético, nosso percurso entendimento da modernidade. A religião investigativo busca levantar argumentos e suas efervescentes manifestações em para tornar explícita a noção de que um nossos países latinos seriam uma destas novo subgênero estaria em conformação mediações desconsideradas do processo no segmento televisivo nacional, o das de constituição da modernidade latina. chamadas “novelas espíritas”. A religião pode ser entendida como uma mediação de expressiva relevância na atribuição de sentidos e formatação das interpretações dos sujeitos, dado que Mídia e religião: mediações o universo religioso – plural e místico – que em jogo no espaço público caracteriza o Brasil é um dos principais orientadores e agentes responsáveis pela configuração dos imaginários sociodiscursi- As mediações são um conceito vos. É nesse sentido que a articulação entre cunhado por Jesús Martín-Barbero (2013) as produções midiáticas e o campo religioso para explicar as condições de conforma- revelam uma profusão de possibilidades. ção da modernidade latino-americana, atentando-se para as especificidades do o universo religioso não deixa de estar continente no tocante às ritualidades ligado, de maneira mais ou menos direta, sociais, temporalidades e organizações ao cotidiano dos telespectadores. Temas coletivas. Segundo o autor, as peculiari- religiosos são frequentes em telenovelas. dades de estruturação da América Latina As produções trabalharam o tema de fazem do continente um lugar onde a diversas maneiras, seja abrindo espaço modernidade não pode ser entendida pelas para personagens e núcleos evangélicos,

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seja colocando alguma religião como pano ficcional, é a emergência de pluralidades de fundo da trama, como o caso do hin- religiosas na construção das narrativas, não duísmo, em Caminho das Índias (2009), o apenas evidenciando o catolicismo (matriz islamismo em (2002), ou o espi- religiosa dominante historicamente), mas ritismo em A Viagem (1994) (MARTINO, concedendo espaços para o debate e a pro- 2016, p. 63). blematização de outras correntes. Esse movimento midiático contemporâneo vem Os debates religiosos, portanto, per- demarcando intensas conversações sobre o meiam a esfera pública e assumem posi- potencial da TV de alçar religiosidades para ções centralizadoras na conformação o centro das produções, a ponto de reco- dos públicos. Esfera pública é um lugar nhecermos e enquadrarmos os sentidos de abstração constituído a partir da con- de algumas obras em função das religiões versa entre cidadãos motivados por inte- nelas trabalhadas. É o que vem nos fazendo resses comuns, ou seja, interesses de ordem pensar que novos subgêneros melodramá- pública (HABERMAS, 2003). A religião, ticos estão despontando na ficcionalidade notadamente a Igreja Católica, dominou televisiva brasileira, tais como a telenovela os debates no âmbito público e, nesse sen- bíblica (Rede Record) e a telenovela espírita tido, quando um campo domina a esfera (Rede Globo). pública, na visão de Habermas (Ibidem), seria impossível estabelecer o debate, posto Martino (Ibidem), amparado em que a eficiência do diálogo está condicio- Bourdieu e Pierucci, intitula de “dissolução nada ao envolvimento de todos os setores, do religioso” esse movimento de pulveri- em pé de igualdade, movidos pelos mesmos zação das matrizes religiosas: dissolver é direitos. Há uma ligação direta entre mídia e apreendido como eliminar algo, mas sig- religião, entendendo que ambas são campos nifica também espalhar. Nesse sentido, capazes de religar instâncias separadas (os o espiritismo e outras religiões antes não comunicantes; o sagrado e o profano). midiatizadas vêm se dissolvendo, espa- lhando-se pelas mídias nacionais – num Ao menos no Ocidente, a religião parece movimento de reflexo direto da expansão ter estado sempre ligada à comunicação. vivida por tais doutrinas no país. Essa dis- Da transmissão oral de ensinamentos solução do religioso, todavia, não está isenta na praça pública, modelo adotado, por de embates e lutas de grande projeção, ini- exemplo, no início do Cristianismo e que ciadas em séculos passados – como foi no parece ter sido um dos responsáveis pela caso da história do espiritismo no Brasil. expansão dessa doutrina, até a complexa Desse intricado contexto de lutas, embates mediação eletrônico-tecnológica utilizada e busca por espaços na esfera pública, as por várias Igrejas na atualidade, é difícil religiões foram alçando novos rumos em imaginar a religião fora dos ambientes sua história cultural brasileira, e o melo- midiáticos existentes em cada época drama televisivo – outro forte elemento (MARTINO, 2016, p. 90). caracterizador de nossa cultura – não dei- xou escapar tais relações, evidenciadas com O que se tem notado na mídia tele- proeminente vitalidade nas obras ficcionais visiva, particularmente na produção das TVs nacionais.

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O melodrama e suas produto para melhor desenvolver as análi- marcas televisuais ses. A extensão das obras (que duram meses) e a longevidade do produto (há várias fai- xas de telenovelas ininterruptamente no A telenovela brasileira é um dos pro- ar há décadas) nos levam à impossibilidade dutos culturais midiáticos de maior proje- de estudá-las em sua integridade. Por isso, ção e visibilidade – tanto interna quanto no campo da comunicação, temos investido externamente. Mesmo com a capacidade empenho em atentarmo-nos às narrativas de se modernizar e de se alçar a outros ficcionais por meio de eventos narrativos países, nossas produções ficcionais per- (ROCHA; ALVES; SILVEIRA, 2013), que são maneceram assentadas em bases cultu- micro-histórias nas quais se estabelece prin- rais típicas do Brasil, gerando um forte cípio, meio e fim e colaboram na condução processo de identificação com a audiên- das obras. Assim, selecionamos aleatoria- cia (MARTÍN-BARBERO; REY, 2001). mente pequenos entrechos para nos apro- Inicialmente de frequência semanal e gra- fundarmos nas análises das obras. Pucci vada ao vivo, a telenovela foi se aperfei- Junior (2014) ressalta que não há equívoco çoando, estabelecendo novas regras para nessa seleção aleatória de conteúdos dentro o gênero e consolidando um formato que das telenovelas, dado que a potencialidade da lhe garante sucesso de crítica e de público. obra deve ser capaz de, a qualquer momento, Para tanto, as bases melodramáticas advin- revelar marcas substanciais que careçam de das do folhetim “romantinesco” europeu investigações mais detidas. (MARTÍN-BARBERO, 2013) encorpam nossas narrativas, bem como as influên- Outro aspecto é a metodologia empre- cias oriundas da radionovela cubana, do gada: as análises formais. Por vezes negligen- teleteatro e do cinema (LOPES, 2004), que ciadas, as formas televisivas são elementos conformaram as bases para telenovela diá- denotadores da organização sociocultural. ria tal qual a conhecemos e consumimos Por isso, consideramos que estudar audiovi- nos dias atuais (BRANDÃO, 2010). sual requer ponderar as formas e os elemen- tos do estilo televisivo – cenários, atuação dos Dentre as características definidoras atores, iluminação, trilhas (ROCHA, 2016) do melodrama, estão as fortes marcas dos – capazes de revelar articulações diretas arquétipos dos romances (mocinho, vilão, com aspectos da dimensão cultural. Essa herói e bufão), a clara demarcação da dico- televisualidade – formas televisivas em tomia entre interesses humanos (o bem perene imbricação com a cultura – é o foco versus o mal), facilmente identificáveis pelo de nossos estudos, buscando contemplar espectador, além da estrutura narrativa um campo em permanente defasagem nas fragmentada em blocos e capítulos disper- pesquisas em comunicação. sos ao longo de semanas que, a conta-gotas, tece enredos entremesclados que compõem Atentamo-nos aos processos cons- a complexidade narrativa das tramas. titutivos da imagem televisiva, pensando na especificidade do meio como um deli- Estudar telenovela é um esforço que mitador de suas potencialidades e das sen- demanda conhecer tais singularidades do sorialidades a ele atreladas. Assim sendo,

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considerar a imagem como ponto de partida sequências coletadas (o que ele afirma ser é permitir que o meio se expresse a partir uma “engenharia invertida”) para identi- de suas singularidades e que, a partir daí, ficar as funções que o estilo exerce (deno- se entrelacem as camadas culturais inves- tar, simbolizar, expressar, decorar, saudar/ tidas de significações. Mitchell (2005) é um interpelar, persuadir, diferenciar ou signi- dos autores dos estudos visuais a quem ficar imediatismo) ao longo das variações recorremos nesta investida para adoção de históricas consideradas. um novo procedimento de análise. Para o autor, todos os meios devem ser entendidos como meios mistos, sem haver a elevação do verbal ou do visual, um em relação ao outro. Na verdade, Mitchell (Ibidem) sugere Telenovela espírita e a formatação que usemos a grafia imagem/texto para de um subgênero melodramático nos referirmos a este procedimento que não dota de sentidos pré-determinados as imagens, não submetendo ao logos o Este trabalho investigou as princi- ícone, mas permitindo que este se mani- pais telenovelas nomeadas pela crítica e feste, tenha vida (Mitchell metaforiza as pela audiência em geral como “telenovelas imagens como seres dotados de vida, que espíritas”, dada a proeminente demarcação querem nos dizer algo sem antes serem de aspectos doutrinários no eixo central de enquadradas no discurso), para que daí se algumas obras. Tais telenovelas, já citadas, revelem os sentidos culturais que se aco- servirão aqui apenas como exemplificações plam na significação visual. para um debate que requer maiores apro- fundamentos. Temos investido em deba- Os estudos visuais nos permitem ter o espiritismo na telenovela brasileira considerar a televisão como produtora de (MEIGRE, 2017; ROCHA; MEIGRE, 2017) imagens passíveis de investigação – algo a fim de captar tais nuances, mas o que que os lugares sacralizados pela semiótica aqui se esboça é um quadro para lançar os e pela história da arte não permitiram ao pontos que justificam a categorização das meio –, entretanto não fornece bases meto- obras como vinculadas ao espiritismo. Pela dológicas para lidar com a materialidade investigação desenvolvida, observou-se televisiva. Em busca desta sustentação, que as ficções se organizam nas seguintes encontramos em Jeremy Butler (2010) os categorias, intercambiáveis e não estan- norteadores metodológicos para a análise ques: aparição e influência de espíritos; formal-cultural aqui empreendida. Butler pluralidade das existências e lembranças de (Ibidem) afirma que todo produto de TV é vidas passadas; reuniões mediúnicas e ora- dotado de estilo, que diz de uma composição dores/lideranças espirituais. A seguir, estas entre imagem e som, servindo a uma função categorias são apresentadas com eventos dentro do texto. Para ele, o estilo deve ser narrativos para solidificar o debate, numa estudado em quatro dimensões: descritiva, divisão que não privilegia ano de exibição analítica funcional, histórica e avaliativa. nem autoria, tampouco esgota uma teleno- Este trabalho não avança até a dimensão vela em si mesma, mas abre o circuito do avaliativa, mas promove as descrições das debate a partir dos estudos formal-culturais.

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Aparição e influência de espíritos para Caíque, agora já adulto, perdido no meio de uma mata. A menina é um espí- rito interessado em uni-lo à mulher de Em Alto astral, logo no primeiro capí- sua vida, Laura, que também está per- tulo da trama de Daniel Ortiz, exibida dida no local. Caíque persegue a garota, entre novembro de 2014 e maio de 2015 que corre pelo campo e atravessa árvores na faixa das 19h da Rede Globo, surgem sob um efeito sonoro que caracteriza seu as sinalizações televisuais para o mote transpassar pela matéria sem qualquer central da trama: a influência espiritual dificuldade (Figura 1b). É noite, a chuva na condução da vida dos encarnados. O prossegue intensa, até que o intento da personagem principal, o menino Caíque, menina se consagra: Laura e Caíque se sofreu um acidente de avião com a mãe encontram pela primeira vez. A trilha se e o irmão, tendo ficado preso entre os suaviza, a iluminação cênica se faz mais escombros da aeronave – sozinho, num clara e fica esbranquiçada no entorno ambiente coberto por fumaça, que quase dos personagens, amenizando a escuri- o invisibiliza. As cenas são completadas dão que até então imperava em toda a pela trilha sonora que carrega em doses sequência. Do alto da árvore, a menina de tensão e dá o tom do perigo vivido vê o feito alcançado e sorri comemorando pelo garoto. Inesperadamente, um homem a conquista, uma trilha rápida tonaliza jovem, de terno e voz mansa, aparece no sua aparição enquanto espírito, e o fim quadro visual e dialoga com a criança. da sequência é regado por outra trilha Apesar da voz suave, o tom da cena per- musical mais leve e alinhada ao tom roma- manece tenso até que ele se oferece para nesco. Dá-se, assim, o entrecho para o ajudar o menino e “dar um jeito nisso” desenrolar do melodrama (Figura 1c). (a fratura na perna que o impedia de sair do local do acidente). foi outra produção ficcional da Rede Globo que abordou o espi- O homem esfrega as duas mãos e posi- ritismo em seu plote central. De Elizabeth ciona a direita sobre a perna de Caíque, Jhin, a obra da faixa das 18h, que foi ao como se transmitisse energias ao garoto ar entre abril e setembro de 2010, conti- para ele se recuperar. Há uma coloração nha recorrentes aparições do espírito de amarelada, figurando a transmissão de Daniel (Jayme Matarazzo), que relutava em poderes curativos e energias benéficas se distanciar da amada Viviane (Nathália (Figura 1a). O gestual, tal qual fluidificação Dill), encarnada que mantinha uma relação mediúnica, é o ato responsável por desen- amorosa com o pai de Daniel. No evento cadear a cura da criança, o que foi acompa- narrativo aqui tratado, o espírito de Daniel nhado por inserções sonoras indicando o aparece enquanto Viviane está deitada e poder curativo da ação. Tão logo terminada sonolenta. Daniel é caracterizado com rou- a ocorrência, a perna estava sã e o menino pas comuns, tal qual indumentárias de um pôde se salvar. ser terreno. Sobre ele não recai qualquer efeito visual definidor de sua condição espi- Na sequência final deste mesmo ritual, apenas na exata hora em que ele se primeiro capítulo, uma menina aparece torna visível em cena (Figura 2a). O rapaz

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sussurra no ouvido da mulher (Figura 2b), o encarar como entidade espiritual. Em mas ela não capta as influências advindas Escrito nas estrelas, as investidas espirituais do plano espiritual e continua proferindo do rapaz não amedrontam a mulher, mesmo algumas declarações direcionadas a ele – quando ela já está fora do corpo físico e se sem o saber tão próximo. Daniel “conversa” depara com ele. Os espíritos estão numa com Viviane durante alguns instantes, até espécie de equidade com os encarnados, ela adormecer em definitivo e, assim, ele a sem qualquer recurso audiovisual que os retira do corpo físico e a conduz para um distinga por serem seres de outra dimen- ambiente espiritual (Figura 2c). são, estando vestidos como humanos (com jeans, ternos). São espíritos, nesses casos, Nesta categoria analítica, como se humanizados, capazes de auxiliar na cura e pode notar, a aparição dos espíritos se deu na condução da vida de seus entes próximos de maneira a transparecer naturalidade e na Terra, sem atemorizar ou causar pesar. calmaria nas sequências consideradas. Em Mesmo sem indumentárias ou adereços, Alto astral, mesmo diante de um estranho, seriam uma espécie de anjo-guardião para a criança não se assusta, apesar de não seus amados.

[ Figura 1 ] Imagens que caracterizam aspectos espiritualistas na novela Alto astral: a) espírito auxilia na recuperação de criança; b) menina, em espírito, atravessa árvore; c) casal se encontra graças a influência de espírito

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Fonte: Reprodução Globoplay

[ Figura 2 ] Imagens que caracterizam aspectos espiritualistas em Escrito nas estrelas: a) aparição do espírito sob efeito visual esfumaçado; b) espírito acaricia a mulher; c) mulher se desprende do corpo físico

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Fonte: Cena do vídeo disponível em http://bit.ly/2EdMJ0U

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Pluralidade das existências e do corpo físico numa dimensão superior lembranças de vidas passadas (Figura 3a).

O espírito, livre, veste-se totalmente A novela Anjo de mim, de Walther de branco e sua aparência é esfumaçada. Negrão, veiculada na faixa das 18h entre Ao contrário do corpo físico, o semblante setembro de 1996 e março de 1997, apre- do espírito é sereno, o que fica evidente sentava como eixo central a regressão a ao esboçar um sorriso enquanto olha para vidas passadas. Floriano () o corpo inerte na cama (Figura 3b). Então tinha visões de uma existência anterior, um forte efeito luminoso desconfigura o na qual se encontrava com uma mulher espírito e todo o quadro imagético é domi- misteriosa. Na busca por solucionar essa nado por uma intensa luz branca, quando angústia e decifrar o enigma, recorre a a narrativa é conduzida para a vida pas- tratamentos psiquiátricos, além de rece- sada do personagem principal. A rememo- ber orientações de um homem ao quem ração é iniciada em preto e branco, mas ele chama de “Mestre”. No evento nar- logo as cenas se revestem de coloração. rativo considerado, Floriano está dor- As indumentárias clássicas, luvas e cha- mindo e o quarto escuro tem seu tom péus, os escravos passando, o transporte a contraposto pela luz de um abajur aceso cavalo e o casarão são alguns dos elemen- à cabeceira da cama do personagem. A tos cênicos indicativos da temporalidade trilha instrumental suave se assemelha narrativa – o século XIX. Após avistar a um canto para ninar, mas o homem a mulher amada, Floriano acorda e vai começa a se revirar na cama, até que ter uma conversa com o Mestre Quirino vemos, sob efeito sonoro, fios de luz se (Milton Gonçalves), quando pede esclare- desprendendo de seu corpo e os feixes cimentos e recebe orientações didáticas azuis e alaranjados se elevando até for- e claramente doutrinárias sobre vidas mar o espírito de Floriano, desdobrado passadas.

[ Figura 3 ] Imagens que caracterizam aspectos espiritualistas em Anjo de mim: a) espírito se desprende do corpo sob efeitos visuais; b) coloração esbranquiçada para figurar espírito

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Fonte: Cena do vídeo disponível em http://bit.ly/2XyAHbs

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Pouco mais de uma década após Anjo de de perigo e opressão praticada contra ela por mim, o horário das 18h apresentou Amor eterno Fernando (). O lugar é amor, da autora Elizabeth Jhin, entre março extremamente escuro, com algumas tochas e setembro de 2012. Na sequência conside- concedendo pouca luminosidade ao ambiente rada, Miriam (Letícia Persiles) procura Beatriz (Figura 4b). Aprisionada pelo homem, Miriam () para pedir ajuda e realizar se desespera, e Beatriz lhe recomenda retor- uma sessão de regressão. O evento narrativo nar ao presente. Angustiada e atônita, ela é curto: as mulheres estão no quarto da casa compartilha as impressões que captou da vida da personagem Miriam, e logo a regressão é pregressa. Não há figurações de espíritos, de efetuada: Miriam se deita, closes em seu rosto planos espirituais ou de influências, apenas demonstram a angústia das lembranças reme- o efeito de caracterização de outra tempora- moradas pela mulher (Figura 4a), enquanto a lidade para demarcar a existência anterior amiga permanece transmitindo orientações. retomada pela regressão; e a sessão ocorre Miriam é transportada a uma de suas vidas num ambiente doméstico, no quarto de uma passadas, na qual se depara com uma situação residência.

[ Figura 4 ] Imagens que caracterizam aspectos espiritualistas em Amor eterno amor: a) expressão de angústia ao figurar a regressão; b) ambientação cênica da vida passada

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Fonte: Reprodução Globoplay

Já em Além do tempo, trama apresen- havia sido tão longo. Tanto a lógica narrativa tada de julho de 2015 a janeiro de 2016, tam- quanto a composição de personagens e a bém da consagrada novelista Elizabeth Jhin construção estética foram fatores altamente para o horário das 18h da TV Globo, a orga- elogiados em Além do tempo. nização da narrativa despertou a curiosidade do público e da crítica especializada pela divi- Na segunda fase da obra de Jhin, os são da trama em duas fases: a primeira delas personagens materializavam o princípio ambientada no século XIX, e a segunda nos da pluralidade das existências, embora não dias atuais, contando com a reencarnação tenham passado por processos de regres- de todos os personagens em novas histórias são. O fenômeno mais comum durante a no século XXI. O significativo intervalo de obra eram as sensações despertadas nos tempo entre as fases foi um marco único personagens sobre suas vidas passadas, na dramaturgia nacional, pois nunca antes seja em sonho, seja diante de algum outro

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personagem com o qual se relacionaram prantos e abraçada a Pedro (Figura 5d), seu na primeira etapa da obra. Tais sensações namorado (Emílio Dantas). Tece comentários mediúnicas não caracterizavam, de fato, sobre as impressões apreendidas durante o recordações da vida pregressa, mas indi- sono, sem maior clareza quanto a lugares, cavam a influência da existência anterior pessoas envolvidas e resultados das ações. O na construção diegética dos personagens. que prevalece é apenas a angústia, figurada tanto na trilha quanto na atuação marca- O evento narrativo coletado traz Lívia damente forte da personagem, pelo choro, (Aline Moraes) adormecendo (Figura 5a) pelo tom de voz e pela fisionomia apavorada. e tendo um pesadelo com a vida anterior, rememorando o momento em que morrera Nesta seção, identificou-se a clara afogada e abraçada a Felipe (Rafael Cardoso), proeminência da performance dos atores no seu amor do passado (Figura 5b). Ela não quadro imagético como principal operador reconhece a fisionomia do rapaz, mas a cênico para figurar aspectos da regressão e angústia se instaura na personagem, que da busca por informações de vidas passadas. se agita, passando as mãos pelo rosto (Figura As fisionomias assustadas, os semblantes 5c), e os planos evidenciam seu semblante nervosos e os comportamentos agitados dos tenso. A trilha sonora reverbera a ambiên- personagens parecem, dessa forma, querer cia de angústia: muitos ruídos se sobre- sinalizar as dificuldades de se submeter a tal põem, e vozes a gritar em tom acelerado procedimento e os riscos em que se incorre ao compõem a paisagem sonora de adrenalina. receber informações sobre vidas pregressas, Lívia acorda sobressaltada, com o rosto em num misto de confusão mental e ansiedade.

[ Figura 5 ] Imagens que caracterizam aspectos espiritualistas em Além do tempo: atuação cênica como elemento definidor das angústias da personagem

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Fonte: Reprodução Globoplay

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As distintas maneiras de recobrar A viagem foi uma telenovela escrita informações de outras encarnações devem por Ivani Ribeiro que deslindou o espi- ser esclarecidas: tais conteúdos podem advir ritismo na dramaturgia nacional, sendo tanto de um processo natural ocorrido lembrada como a precursora e mais exitosa durante o sono (desprendimento corriqueiro experiência de aproximação com os precei- do espírito – Anjo de mim e Além do tempo) tos da doutrina codificada por Allan Kardec. quanto por meio de investimentos terapêu- A obra teve duas versões: a primeira delas ticos especializados e acompanhados por foi veiculada entre outubro de 1975 e março profissionais (métodos da regressão – Amor de 1976, pela TV Tupi, enquanto a segunda eterno amor). O espiritismo, em suas bases foi produzida pela TV Globo e levada ao ar doutrinárias, não estimula o uso de pro- entre abril e outubro de 1994. Ambas as cessos regressivos ou, quando necessários, versões foram escritas pela novelista Ivani estes devem ser de suma relevância e acer- Ribeiro, que se inspirou nas obras Nosso lar cados de cuidados intensos. Já os processos e a vida continua…, psicografadas por Chico de rememoração pelo sono são altamente Xavier. O sucesso e a mobilização em torno comuns e atestados pela doutrina codificada das obras foram tamanhos que até hoje por Kardec (2007a, 2007b), de modo que são rememoradas como grandes clássicos todo e qualquer espírito encarnado, durante da teledramaturgia – a versão de 1994, por o sono, pode revisitar momentos, pessoas exemplo, foi exibida em três ocasiões dis- e lugares de outrora, bem como deslindar, tintas pela TV Globo e, mais recentemente, em circunstâncias específicas, aspectos do veiculada pelo canal pago Viva (também futuro existencial (premonições), tal qual do Grupo Globo), sendo o maior sucesso de ocorreu em algumas das novelas. audiência da faixa em que foi ao ar.

Para efeitos de análise televisual, considero uma reunião mediúnica na qual Alberto (Cláudio Cavalcanti) lidera Reuniões mediúnicas e oradores/ um grupo de pessoas em volta de uma lideranças espirituais mesa (Figura 6a), todas com roupas claras, olhos fechados, invocando a presença de Alexandre (Guilherme Fontes), um espí- Na última categoria considerada, tra- rito perturbado, visualmente caracterizado zemos duas telenovelas de extrema impor- como tal – com roupas escuras, semblante tância para a conformação do espiritismo tenso, acompanhado de trilha tensa. na televisão: A viagem e Alma gêmea. A pri- Alexandre aparece na reunião sob efeito meira delas, com duas versões produzidas imagético esbranquiçado, evidenciando em emissoras diferentes, foi o grande marco sua condição de espírito (Figura 6b), e se dramatúrgico da inserção religiosa espírita incorpora numa das médiuns (Figura 6c), na TV, enquanto a segunda representou o que passa a falar por ele. Alberto tenta começo de um novo ciclo, que se desenro- orientá-lo, mas o espírito é reticente. Toda a lou nas diversas outras tramas assentadas trilha é altamente carregada de adrenalina, no mesmo tema – dado o enorme êxito de mesmo com as falas mansas de Alberto. audiência e a repercussão alcançada. Alexandre permanece agressivo quando

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ouve falar dos “espíritos de luz” e diz não silencia até que uma melodia instrumental se arrepender de suas ações. Após orações sacra permeie a composição sonora, dando a e súplicas, Alexandre deixa o local e, tão entender que o ambiente se pacificou com logo se concretiza sua retirada, a trilha se a ausência do espírito perturbador.

[ Figura 6 ] Imagens que caracterizam aspectos espiritualistas em A viagem: a) reunião mediúnica vista em plongée; b) aparição do espírito de Alexandre; c) a incorporação do espírito na médium

a b c

Fonte: Reprodução Vivaplay

De Alma gêmea, novela de Walcyr ele já “encontrou a luz”. Está vestido com Carrasco para a faixa das 18h e maior roupas comuns, de tons escuros, e sua voz sucesso da década, levada ao ar entre não é ouvida, mas sim a voz de Alexandra junho de 2005 e março de 2006, traz-se (diferentemente de A viagem, em que a voz também uma sessão mediúnica na qual o do espírito era ouvida, mesmo estando ele espírito de Guto (Alexandre Barillari) se no corpo da médium). incorpora na médium Alexandra (Nívea Stelmann), perante uma sala com outros Em ambas as sequências vistas, a sujeitos rodeando uma mesa (Figura 7a). caracterização cenográfica foi o elemento Há uma bíblia, copos de água e velas no televisual definidor dos intentos narrativos: ambiente, numa caracterização religiosa as mesas brancas, com feixes de luz, copos para a cena. A trilha sonora é funesta e de água, livros e bíblia, buscavam demons- tonaliza a apreensão que a sequência pre- trar a seriedade das evocações, mesmo que tende transmitir. Julian (Felipe Camargo) é fossem feitas em ambientes domésticos, o líder da mesa e inquire o espírito, mani- e não em casas espíritas. Essa tonalidade festado pelo corpo de Alexandra, bem como contrastava com o aspecto dos espíritos Adelaide (Walderez de Barros), que tam- evocados, trajados de tons escuros para bém tece comentários e expressa apreensão figurar o estágio de perturbação no qual diante das revelações trazidas por Guto. O se encontravam. Nesse sentido, um dos espírito tem visualmente um semblante esquemas melodramáticos se fazia notar amargurado e é apresentado por um ao demarcar os lugares do bem e do mal recurso visual que o torna esbranquiçado, na narrativa: os espíritos maus em opo- uma espécie de vulto (Figura 7b), angus- sição aos sujeitos do bem, encarnados e tiado, apesar de os presentes afirmarem que dispostos a ajudá-los. Os espíritos são seres

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esfumaçados (Alma gêmea) ou rodeados por se coadunam com representações já con- uma luz que os insere na narrativa (A via- sagradas no imaginário popular acerca de gem). Dessa forma, essas representações seres espirituais.

[ Figura 7 ] Imagens que caracterizam aspectos espiritualistas em Alma gêmea: a) mesa branca para caracterizar a sessão; b) o espírito, como vulto, em cena

a b

Fonte: Reprodução do link http://bit.ly/2ExpMas

Considerações finais Dessa maneira, ao tratar de seres espi- rituais, muitas das obras os revestem de uma aura de luz e de demarcações visuais Essas categorizações não definem esbranquiçadas, algumas até os contor- o arsenal das telenovelas estudadas nem nando totalmente de branco. Outras, no pretendem criar procedimentos de rígido entanto, preferiram caracterizá-los como enquadramento das obras. Assim, a cita- sujeitos comuns, numa possível tentativa de ção de um produto ficcional em “aparição humanizá-los. Outra constatação está ali- de espíritos” não impede que a obra tenha nhada ao nível da oposição melodramática, investido, ao longo de outras sequências, na pois claramente as obras demarcam o bem reprodução de processos reencarnatórios, e o mal, seja por recursos visuais, seja por na exibição de reuniões mediúnicas e na recursos sonoros (a trilha para os espíritos apresentação de casas espíritas e de orado- é tensa, enquanto a dos terrenos é amena) res/lideranças religiosas. O quadro amostral e, assim, obedecem a regras do gênero já elencado neste artigo é exemplificador do consagradas pela televisão. processo de pulverização do debate religioso espírita em torno da mídia televisiva, sem, Por fim, não se pode deixar de pon- no entanto, estancar parâmetros para o tuar que em todos os eventos analisados entendimento desse fenômeno cultural/ havia envolvimento dos personagens cen- midiático. trais nas ocorrências de cunho espiritual, o que demonstra e comprova a pujança da Pelas ponderações esboçadas, pode- matriz religiosa nas telenovelas e reverbera mos considerar que boa parte do imagi- o que a crítica e o público vêm entendendo nário televisivo acerca do espiritismo e como “telenovela espírita”. Além de inserir de seus preceitos vem se assentando em aspectos doutrinários nas obras, tal proce- bases já arraigadas na memória popular. dimento ocorre com a intencionalidade de

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referendar o melodrama – seja para apro- diversificado e sincrético por excelência. ximar o casal de amados (Alto astral, Escrito Estas razões, possivelmente, justificam o nas estrelas), seja para rememorar o passado sucesso de todas as obras aqui estudadas (Além do tempo, Amor eterno amor, Anjo de e apontam para a efetiva consagração do mim), ou ainda para solucionar problemas que começamos a pontuar como “subgê- de personagens em estado de perturbação nero melodramático telenovela espírita”. (A viagem, Alma gêmea).

Em todas as situações consideradas, o melodrama é a principal matriz referencial que norteia a produção das obras e indica como os esquemas serão tratados. O que se apreendeu, em termos estilísticos (do composto imagem/som), é resultado da combinação de técnicas de produção tele- visiva com preceitos culturais circuláveis na sociedade brasileira, em nossa esfera pública. Por isso os elementos estilísticos foram propulsores nessa incursão, e a ceno- grafia, a atuação dos atores no quadro, a trilha sonora e os efeitos visuais não com- punham as narrativas como indumentárias, mas como materialidades carregadas de significações socioculturais.

Após tais constatações, é possível levantar novas problemáticas: em socieda- des marcadamente audiovisuais como as nossas, em que predominam os exercícios do visível em partilha com o sensível, o que significa dar visibilidade, em sentido literal, à dimensão espiritual da crendice humana? O que é tornar visual o espiritual e quais implicações de sentido se fazem imbricadas nesse processo, convocando [ MARCOS VINICIUS MEIGRE E SILVA ] aspectos históricos e culturais? Parece Marcos Vinicius Meigre e Silva é doutorando e haver um processo de intensa negocia- mestre em Comunicação Social pela Universidade ção entre distintas orientações religiosas Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel a fim de condensar sincretismos na tele- em Comunicação Social/Jornalismo pela visualidade dramatúrgica brasileira. As Universidade Federal de Viçosa (UFV). Membro sinalizações trazidas dão conta de que do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em a matriz religiosa brasileira é altamente Televisualidades (COMCULT/UFMG). plural e negociável, com um repertório E-mail: [email protected]

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