Abril 2012 Revista Adusp Le mb r a n ç a s d o c a p i t ã o qu e v i r o u g u e r r i l h e i r o e m o r r e u p o r c o n v i c ç õ e s Fausto Salvadori

Jornalista Reprodução

Homenagem a Carlos Lamarca revela que a memória do militar que virou guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) permanece incômoda para os saudosos do regime militar. E traz à luz as atrocidades da Operação Pajuçara, realizada pelas Forças Armadas em agosto e setembro de 1971 no longínquo povoado de Buriti Cristalino, no município de Brotas de Macaúbas, em pleno sertão baiano, e que resultou no assassinato de Lamarca e de seus companheiros Zequinha Barreto, Otoniel Campos Barreto e Luís Antônio Santa Bárbara

66 Revista Adusp Abril 2012 Reprodução De todos os que se le- um campo de concentra- vantaram contra a Dita- ção, com torturas e execu- dura Militar entre 1964 e ções públicas. A operação 1985, poucos nomes ainda foi comandada pelo então incomodam tanto os sau- major Nilton Cerqueira, o dosos do antigo regime mesmo que, duas décadas quanto o de Carlos Lamar- depois, tentaria censurar o ca (1937-1971), o oficial filme sobre o inimigo que que trocou o Exército pela ele matou. guerrilha. “Lamarca é uma figura Interpretado por um emblemática. Ele incomoda ator de prestígio, Paulo por denunciar a essência do Betti, o capitão rebelde regime militar, que foi a de chegou a tornar-se tema de colocar as Forças Armadas um longa-metragem, co- a serviço de uma ditadura”, mo Frei Tito, , afirmou Ivan Seixas, dire- Olga Benário, Luís Carlos tor do Núcleo de Preserva- Prestes. Dessa linha de fil- ção da Memória Política e mes, contudo, “Lamarca” do Fórum Permanente de (1994) foi o único a en- Ex-Presos e Perseguidos frentar ataques de figuras Políticos de São Paulo, na remanescentes da ditadura abertura da homenagem. — o general Nilton Cer- Material de divulgação da "Celebração dos Mártires" Para Seixas, a memória de queira tentou, sem sucesso, Lamarca obriga as Forças proibir o filme na Justiça quando Em 24 de setembro de 2011, a Armadas a encarar o fato de que os era secretário de Segurança Pública lembrança incômoda de Lamarca militares não estavam todos unidos no . foi resgatada, mais uma vez, du- em torno do projeto da repressão, Entre as reparações concedidas rante o evento “Quarenta Anos do como muitos prefeririam acreditar. pela Comissão de Anistia do Minis- Massacre de Buritis”, realizado no “Uma boa parte das Forças Arma- tério da Justiça, a decisão referen- Memorial da Resistência, no cen- das não concordava com o golpe de te a Lamarca — que concedeu ao tro de São Paulo. A homenagem 1964 e foi expurgada. Os militares antigo capitão a patente póstuma celebrou tanto Lamarca como seus se envergonham disso”, lembrou. de coronel e permitiu à sua família três companheiros assassinados no Lamarca é taxado pelo Exército receber pensão equivalente ao ven- município de Brotas de Macaúbas, como “desertor” desde que abando- cimento de um general-de-brigada no sertão baiano: Zequinha Barre- nou o 4º Regimento de Infantaria de — também foi a que mais incomo- to (1945-1971), seu irmão Otoniel Quitaúna, em Osasco, para mergu- dou os militares. Tanto que os clubes Campos Barreto (1951-1971) e Lu- lhar na clandestinidade como mili- do Exército, da Marinha e da Aero- ís Antônio Santa Bárbara (1946- tante da Vanguarda Popular Revolu- náutica uniram-se numa ação judi- 1971). Os quatro caíram em agos- cionária (VPR), em 24 de janeiro de cial que, em 2007, conseguiu suspen- to de 1971, vítimas da Operação 1969. O crime de deserção — alega- der tanto a promoção post-mortem Pajuçara, uma ação conjunta en- do pela Justiça para negar a promo- como as indenizações para a famí- volvendo as três Forças Armadas ção póstuma e a indenização para lia, por meio de uma decisão limi- que, segundo relatos de moradores, a família — não deveria se aplicar nar que, quatro anos depois, ainda transformou o povoado de Buriti a Lamarca, segundo Ivan, porque aguarda uma sentença em definitivo. Cristalino na versão sertaneja de o capitão havia se insurgido contra

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Litercínio Jr., prefeito de Brotas de Macaúba (BA), e Roque Aparecido uma ilegalidade praticada pelos seus Magoada com os ataques a La- importante que a família de Lamarca pares, “o crime de lesa-pátria que foi marca, sua viúva, Maria Pavan, e também fale tudo o que sabe sobre o golpe de 1964”. “Ele não desertou, os filhos, César e Cláudia, não qui- aquele período, para fazer o resgate mas continuou na luta como um ofi- seram participar da homenagem, da verdade histórica”, disse. cial das Forças Armadas a serviço do mantendo a postura discreta que Falar sobre Lamarca é ainda mais povo brasileiro”, diz. adotaram desde que retornaram difícil para a população de Brotas de ao Brasil, após a redemocratização, Macaúbas, onde o militar rebelado vindos de Cuba, onde passaram os passou os últimos dois meses de sua Anos de Chumbo. Em nota, porém, vida. Após deixar em Salvador sua Buriti Cristalino, um povoado a família denunciou a perseguição companheira, Iara Iavelberg (1944- à memória do combatente: “Quan- 1971), do Movimento Revolucioná- de 200 habitantes, viu-se do três clubes militares se unem rio Oito de Outubro (MR-8), La- tomado por 215 militares da contra uma brasileira de 74 anos de marca havia seguido para o povoado Operação Pajuçara. Invadiram idade para lhe suprimir um direito de Buriti Cristalino, convidado por inalienável, o direito de anistia de um outro militante do MR-8, Zequi- a casa da família Barreto, seu próprio companheiro, é por- nha Barreto. Zequinha havia atuado onde mataram Otoniel e Santa que chegamos ao caos silencioso como líder sindical em Osasco, na e à ignorância de fatos amparados Grande São Paulo, onde fora preso Bárbara. Chefe da família, na alienação do poder judiciário de e torturado, e agora estava de vol- José Barreto foi torturado alguns magistrados”. ta à sua terra natal para tentar im- Durante o evento, a opção da fa- plantar um foco de guerrilha rural, durante dias diante da mília de Lamarca de evitar manifes- com a colaboração dos seus irmãos, população, para contar onde o tações públicas foi questionada por Otoniel e Olderico, e do professor Clara Charf, viúva do guerrilheiro de adultos e crianças Luiz Antônio filho Zequinha se escondia (1911-1969) e pre- Santa Bárbara. sença certa em eventos relacionados Durante a homenagem a Lamar- a democracia e direitos humanos. “É ca, a entrada do capitão em Buri-

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Daniel Garcia Antigos militantes da VPR se reencontram na homenagem a Lamarca ti foi narrada por um emocionado da Faculdade de Medicina da USP, mem sendo torturado em praça pú- Roque Aparecido Silva, sindicalis- apontou sinais de execução. blica”, comenta Aparecido. ta e diretor do Instituto Zequinha Oito dias após a morte de Iara, Barreto, em Osasco. “Na chegada, a Operação Pajuçara, criada para em 29 de junho, ele foi recebido capturar “o inimigo número 1” da por alguns companheiros campo- Ditadura, chegava a Buriti Crista- A perseguição dos neses. Nas festas juninas, tem uma lino. De uma hora para outra, o militares acabou em 17 de tradição de soltar três rojões e para povoado de 200 habitantes viu-se cada rojão fazer um desejo. Leva- invadido por 215 homens das três setembro de 1971, quando ram três rojões para Lamarca. Ele Forças Armadas, além de policiais Lamarca e Zequinha, já soltou o primeiro e o desejo dele federais, civis e militares. Invadi- foi de que a revolução fosse vito- ram a casa da família Barreto, onde bastante debilitados, foram riosa no mundo, especialmente no mataram Otoniel e Santa Bárbara, descobertos na caatinga e Brasil. O rojão estourou. No segun- além de balear Olderico. Durante do rojão, ele pediu para que miséria dias, o chefe da família, José Bar- executados por Cerqueira se acabasse no Brasil. Estourou. No reto, foi torturado diante da popu- e sua tropa. Nos anos terceiro, que ele fosse muito feliz lação para contar onde seu filho com Iara Iavelberg. Deu xabu.” Zequinha estava escondido com seguintes, o medo provocado Em 20 de agosto, menos de um Lamarca. Zé Barreto era o “juiz pela ação militar deixou mês após Lamarca desejar a felici- de paz”, a principal autoridade mo- marcas, e ainda persiste dade para sua companheira, Iara ral do povoado. Havia construído morreria em Salvador. Oficialmente, a igreja e a escola, era em sua casa ela teria se suicidado para não ser que as noivas se vestiam para o ca- presa por agentes da repressão. Em samento e era seu Zé quem trazia E houve outras histórias de abu- 2005, uma análise pericial dos res- o padre a Buriti para celebrar as so, como a sofrida por Abel, farma- tos mortais da guerrilheira, feita pe- festas religiosas. “Imaginem o que cêutico que arrancava dentes e fa- lo médico Daniel Romero Muñoz, foi para a população ver aquele ho- zia parto na região. Como fornecia

69 Abril 2012 Revista Adusp alimento para Lamarca, Reprodução ceber vacina. Tudo por Abel temia revelar al- conta do medo. guma informação caso Maria conta que foi fosse preso e torturado a Brotas, em 2008, pa- pelos militares que ocu- ra documentar “a luta pavam a cidade, e ten- de Davi e Golias” que tou se matar enfiando vinha sendo travada na o conteúdo de um fras- disputa eleitoral pela co de Aldrin no ânus. prefeitura, entre um jo- Após quatro meses in- vem político do PT e um ternado, Abel sobrevi- representante do grupo veu, mas com seqüelas, político, ligado ao car- entre elas a cegueira. E lismo, que há anos co- é assim, cego e lúcido, mandava o município. que Abel conta sua his- Ali, resolveu ir além do tória no curta Massacre documentário e engajar- de Buriti Cristalino, do- se ela própria na disputa cumentário de Maria eleitoral. Ficou surpresa Sena exibido no evento. ao ver que o candidato A perseguição dos de oposição, Litercílio militares acabou em 17 Júnior, fazia uma cam- de setembro de 1971, panha clandestina, sem quando Lamarca e Ze- comícios nem santinhos. quinha, já bastante de- “As pessoas não iam a bilitados, foram desco- comícios nem pegavam Cartaz produzido pela Ditadura Militar bertos na caatinga e exe- panfletinhos, porque ti- cutados por Cerqueira e sua tropa. tou, durante o evento, o prefeito de nham medo de ficarem marcadas Nos anos seguintes, o medo provo- Brotas de Macaúbas, Litercílio Jr., por apoiar a oposição”, conta. cado pela ação dos militares deixou do PT, que tinha dois anos na época “Ninguém queria ser identifica- marcas tão fundas que era como se da Operação Pajuçara. do como eleitor da oposição por- a população local, sem saber, tivesse Mesmo após a democratização, a que tudo no município girava em se encarregado de seguir a ordem herança do medo deixado pela pre- torno do prefeito”, afirma Litercí- baixada pela Censura Federal, em sença militar continuou a ser mani- lio. Segundo ele, quem trabalhava 22 de setembro de 1971, que proibia pulada pela elite política local. “Um na iniciativa privada temia o pre- qualquer menção ao nome de La- soldado que havia colaborado com os feito, que era dono da maior parte marca, uma vez que “qualquer refe- militares durante o cerco a Lamarca das empresas, e o mesmo acontecia rência favorecerá a criação do mito conseguiu eleger a mulher vereadora com os servidores públicos, pois, ou deturpação, propiciando imagem por vários mandatos, ameaçando: ‘Se “se um funcionário questionasse de mártir que prejudicará interesses não votarem nela, eu chamo o co- o poder local, era transferido para da segurança nacional”. mando de volta’”, contou a cineasta outro local do município de difícil “Durante quarenta anos, os mo- Maria das Graças Sena, esposa de acesso”. E dá para imaginar o que radores do município evitaram co- Roque Aparecido. Até hoje, segundo significa “difícil acesso” num muni- mentar o que tinha acontecido. Os ela, alguns moradores se recusam a cípio espalhado por 2.372 quilôme- mais novos não sabiam quem havia receber agentes de saúde em casa tros quadrados sem boa infraestru- sido Lamarca ou Zequinha”, con- e deixam de levar os filhos para re- tura de transporte público.

70 Revista Adusp Abril 2012 personagens. “Ninguém daqui co- Cineclube Carlos Lamarca. Come- nhecia o que havia acontecido. Era çou com poucos recursos: um pro- uma dívida que tínhamos com Ze- jetor comprado após um vaquinha Todo ano ocorre em Ipupiara quinha e Lamarca”, afirma. O even- realizada entre amigos de Salvador a “Celebração dos Mártires”, to veio se somar a uma iniciativa de e uma porção de cadeiras levadas no local onde foram mortos resgate da memória que vinha sendo pelos próprios moradores de Brotas, conduzida pela igreja católica desde que se reuniam todo sábado para as- Lamarca e Zequinha. E a 2001, a Celebração dos Mártires, um sistir a filmes da coleção pessoal de prefeitura de Brotas realizou ato ecumênico realizado anualmen- DVDs de Maria e Roque. Hoje, o te em Pintada, no município vizinho projeto conta com cadeiras e acervo um concurso de redação de Ipupiara, no local onde Lamarca fornecidos pelo Ministério da Cultu- sobre a luta de Lamarca, e Zequinha foram mortos. Em 2011, ra e leva o nome de Cinema Carlos a prefeitura realizou um concurso Lamarca — a única sala de exibição voltado aos alunos das de redação sobre a luta de Lamarca, num raio de 200 quilômetros. escolas locais, que recebeu voltado aos alunos das escolas locais, Em cada fala, os participantes que recebeu mais de mil inscrições. chamaram atenção para a necessida- mais de mil inscrições “Esse resgate é importante para de de prosseguir carregando as mes- reafirmar a liberdade, a democracia mas bandeiras que os levaram à luta e a justiça”, diz Litercílio. Nessa lu- armada, agora com outros métodos ta, a briga mais forte que enfrentou de combate. Como o ex-operário Para contornar as resistências da com os vereadores da oposição foi italiano Roberto De Fortini, que foi população, o grupo de Litercílio ado- para conseguir aprovar um projeto preso enquanto tentava construir um tou a estratégia de fazer uma cam- transformando em feriado o dia 17 foco de resistência rural da VPR no panha secreta, indo de casa em casa, de setembro, que homenageia as ví- e libertado pelo evitando aglomerações que chamas- timas da Operação Pirajuçara. Após regime após o sequestro do embai- sem atenção. As peças de propaganda virar lei, o feriado foi celebrado pela xador alemão, em 1970, e que atual- eram mostradas, não entregues. “Não primeira vez em 2009. Apesar da mente trabalha com experiências de entregávamos os folhetos para as pes- presença de autoridades, como o economia solidária, tentando encon- soas, para não deixar ninguém ‘marca- ministro da Comunicação Social, trar formas de tornar os pequenos do’, e pedíamos apenas para decorar Franklin Martins, e de secretários do produtores autossuficientes através o nosso número”, diz Litercílio. Ele governo baiano, o evento foi pouco de cooperativas. Ou o professor La- acabou eleito com 3.202 votos válidos, concorrido, conta Litercílio. Acon- dislau Dowbor, da PUC-SP, outro apenas 90 a mais do que o segundo tece que alguns dos convidados che- militante da VPR, preso na mesma colocado, pondo fim ao domínio do garam de helicóptero, veículo que época e libertado após o seqüestro carlismo no município. “A Bahia viveu a maioria dos moradores não via do embaixador suíço. uma ditadura que acabou em 2006 desde 1971. Ao ouvir o barulho do “Nós continuamos na ativa. Os [com a eleição de Jacques Wagner]. motor das hélices, muitos correram problemas sociais que nos motiva- Em Brotas de Macaúbas, a ditadura para se trancar em casa e assistiram ram a lutar permanecem até ho- acabou em 2008”, diz. à cerimônia pelas frestas da janela. je”, disse Ladislau, que hoje atua Na prefeitura, Litercílio tratou “Muitas pessoas de lá ainda sentem como consultor do Fundo das Na- de resgatar as memórias que por cólica quando vêem um helicópte- ções Unidas para a Infância (Uni- tanto tempo a cidade havia oculta- ro”, explica Litercílio. Medo não é cef). Como resumiu outro militante do. Criou um evento anual, o Fórum inimigo que se vença tão fácil. da VPR, Pedro Lobo de Oliveira: Direito à Memória e a Vida, para E o resgate continua. Maria Sena “Nossa luta hoje não é com o fuzil, relembrar os eventos de 1971 e seus participou do processo criando o é com a palavra”.

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