Companheiras De Armas Agora Em Combates Que Não Ferem Nem Matam, Ex-Guerrilheiras Como Dilma Rousseff Seguem Com a Idéia Fixa De Mudar O Mundo
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Especial Companheiras de armas Agora em combates que não ferem nem matam, ex-guerrilheiras como Dilma Rousseff seguem com a idéia fixa de mudar o mundo Luiza Villaméa Nos anos de chumbo, ela foi Estela, Luiza, Maria Lúcia, Marina, Patrícia e Wanda. Chamada de “companheira de armas” pelo antecessor José Dirceu, a primeira mulher a chefiar a Casa Civil no Brasil, a ministra Dilma Rousseff, 57 anos, tem uma trajetória afinada com a história recente do País. Com apenas 19 anos, ela cerrou fileiras com as organizações clandestinas de combate à ditadura militar (1964-1985), em Belo Horizonte, cidade em que nasceu. Visada pela repressão, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde integrou o comando do Colina, o Comando de Libertação Nacional. Em meados de 1969, essa pequena organização fundiu-se à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) de Carlos Lamarca, o capitão que, à frente de um grupo de sargentos, trocou o Exército pela guerrilha, até ser assassinado em 1971. Na nova sigla, VAR-Palmares, Dilma também ocupou posto de liderança. “Ela fazia a ponte entre o comando nacional e os regionais”, lembra o braço direito de Lamarca, o sargento Darcy Rodrigues. “Era uma mulher brilhante, uma sargentona.” Na perspectiva do ex- guerrilheiro, o uso pouco convencional da patente é um elogio de primeira linha. Um contigente de 434 brasileiras atuou na resistência armada ao regime, de acordo com pesquisa realizada pelo sociólogo Marcelo Ridenti, professor da Unicamp. Hoje, muitas delas se destacam pelo papel que desempenham na sociedade. “À época, a norma era a não-participação das mulheres na política, exceto para reafirmar seus lugares de mães, esposas e donas-de-casa, como ocorreu com os movimentos femininos que apoiaram o golpe militar”, afirma Ridenti. Das 434 mulheres contabilizadas pelo sociólogo, pelo menos 43 morreram no confronto com a ditadura, a maioria sob tortura. Presa em janeiro de 1970, aos 22 anos, a atual chefe da Casa Civil ficou semanas nas mãos de torturadores até começar a cumprir pena de quase três anos no Presídio Tiradentes, em São Paulo. “Nenhum de nós que passou por isso pode deixar de avaliar o valor fundamental da democracia, o valor fundamental de poder ter posições e externá-las em ambientes que não te levem à prisão ou não te conduzam ao exílio ou à morte”, lembrou em seu discurso de posse. Dilma, na prática, jamais participou diretamente de ações armadas. O equívoco de que estava entre os 13 guerrilheiros que levaram US$ 2,5 milhões do espólio do ex- governador Adhemar de Barros foi desfeito na reportagem A verdadeira história do cofre do dr. Rui, publicada por ISTOÉ em julho de 1999. Dr. Rui, diga-se de passagem, era o codinome de Ana Benchimol Capriglione, a amante de Adhemar. “Com toda a polícia nas ruas atrás dos dólares, aqueles foram tempos de muita dureza na clandestinidade”, disse Dilma à época. “Cansei de dividir comercial (prato-feito) com o Carlos”, contou, referindo-se ao ex-marido Carlos Araújo, advogado em Porto Alegre (RS). Com ele, também partilhou posições ideológicas. Em setembro de 1969, em encontro que rachou a VAR-Palmares, ambos defenderam trocar a luta armada pelo trabalho político. Lamarca e seus seguidores ficaram no campo oposto. “A argumentação dela era muito forte”, lembra o sargento Darcy Rodrigues. “Hoje reconheço que estava certa.” Outros métodos, mesmo ideal Numa foto que correu mundo em setembro de 1969, Maria Augusta Carneiro Ribeiro, então com 22 anos, era a única mulher entre o grupo de guerrilheiros trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick, que incluía o deputado José Dirceu (na foto à esquerda, o segundo em pé a partir da esquerda). Na imagem histórica, Guta, como prefere ser chamada, não esboçava uma de suas marcas mais fortes: o sorriso franco e aberto. O momento era de extrema tensão. Naquela altura, a polícia política já havia localizado o cativeiro no qual um comando do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR-8, mantinha o embaixador, no Rio de Janeiro. Corriam rumores de que, se conseguisse resgatar o americano antes de os prisioneiros políticos chegarem ao exílio, no México, eles seriam atirados do avião em alto-mar. Outro detalhe crucial é que os belos dentes de Guta haviam sido quebrados a murros por um torturador. Guta, 58 anos, prefere não lembrar esses detalhes. Mas se emociona até as lágrimas ao contar os reflexos de seu trabalho nos grotões do País. No comando da Ouvidoria da Petrobras, ela colocou em prática uma política que prioriza os direitos humanos. “Embora com armas diferentes, continuo fazendo a mesma coisa, lutando por um Brasil melhor”, compara. A reviravolta começou na própria empresa, onde, durante 49 anos, as mulheres eram identificadas no masculino. As geólogas assinavam, portanto, como geólogos. As secretárias exibiam crachá como secretários e por aí afora. As mudanças mais emblemáticas, porém, acontecem nas comunidades nas quais a Petrobras atua, numa perspectiva de empresa extratora que assume responsabilidades. Tudo sob o olhar atento de Guta e o apoio de um voluntariado corporativo que reúne mais de 1.200 pessoas e envolve 66 municípios. E ela ainda encontra energia e tempo para se dedicar aos três filhos, o mais velho, 28 anos, nascido com uma lesão cerebral grave, na Suécia, nos tempos de exilada. Cafezinho e mãos ao alto A aparência frágil e os modos suaves da procuradora Maria Aparecida Costa, 60 anos, ocultam uma fortaleza. Mais conhecida como Cida, ela acabara de se formar em direito, em São Paulo, quando entrou para a Aliança Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella. Ofereceram-lhe um posto como apoio logístico. “Eu insisti em participar de forma mais efetiva”, lembra. Pouco depois, estava entre o restrito grupo de brasileiras que pegaram em armas contra a ditadura. Jamais esqueceu sua primeira “expropriação” bancária, eufemismo para designar assalto. Sem saber o que encontraria pela frente, ela entrou na agência antes dos outros. Foi recebida com um cafezinho. “Lembro até hoje da pressa, do dinheiro sendo recolhido dos caixas e do som de uma sirene de polícia.” Presa no Rio em dezembro de 1969, por um colega de faculdade que virara delegado da repressão, Cida foi libertada em junho de 1974. Perfeccionista, às vezes acha que poderia ter se preparado melhor para o embate, mas em seguida se conforma. “Fiz o que tinha de fazer, do jeito que podia fazer”, avalia. Procuradora do Estado de São Paulo, ela se especializou em direitos humanos. Embora não tenha filiação partidária, em janeiro de 2003 fez questão de levar suas duas filhas à posse de Lula e de Dilma Rousseff, sua antiga companheira de cela. “Foi o momento em que estivemos mais perto de realizar o sonho.” Direito de escolha Eleonora Menicucci, 60 anos, é uma mulher com muitos títulos e convicções. Pós-doutorada em saúde pública pela Universidade de Milão, na Itália, e professora da Universidade Federal de São Paulo, ela está em plena campanha pela legalização do aborto. “Esse é um direito histórico das mulheres”, defende, lembrando que o aborto clandestino é a quarta causa de mortalidade materna no Brasil. “As mais vulneráveis são as mulheres pobres e negras, pois quem tem recursos procura clínicas especializadas.” Mãe de dois filhos e avó de uma garota de dois anos, a própria Eleonora já passou pelo procedimento cirúrgico, durante os anos de chumbo. Ela também sobreviveu a outra experiência cruel: ver a filha de apenas um ano e dez meses, nua, nas mãos de torturadores da Operação Bandeirantes (Oban), em junho de 1971. Era um requinte de crueldade do “interrogatório” a que era submetida, entre choques elétricos, amarrada ao instrumento de tortura conhecido como cadeira-do- dragão. Dias depois, a garota foi entregue à avó materna. Hoje, Maria vive em Nova York. Egressa do movimento estudantil mineiro, Eleonora integrava a direção do Partido Operário Comunista (POC) e vivia clandestina em São Paulo, com o ex-marido Ricardo Prata (na foto), quando foi presa. Libertada em outubro de 1973, ela credita boa parte de sua formação à militância: “Tudo valeu a pena”. Estrategista condecorada Quando completou 21 anos, em 16 de junho de 1971, Amparo Araújo ganhou dois presentes de Luís, seu irmão mais velho: uma caixa de chocolate e um treinamento com armas longas. Oito dias depois, Luís entrou para a lista de desaparecidos políticos. Amparo continuou na mesma organização do irmão, a Aliança Libertadora Nacional (ALN). Na clandestinidade, andava sempre armada, mas jamais precisou disparar. Durante anos, sua especialidade foi preparar ações, fazer levantamentos, desenhar plantas, indicar caminhos. O alvo de suas pesquisas eram bancos e empresas, mas ela também levantou informações para um justiçamento, a punição por morte. “Algo que só se pode entender no contexto da época”, diz. Na guerrilha, Amparo casou-se três vezes. Ficou viúva dos três, mortos nos porões da ditadura. Hoje com 55 anos, é mãe de duas universitárias. Desde 1983 trabalha como assistente social num órgão público, no qual entrou por concurso. Mas é pela ação voluntária que ela faz a diferença em Pernambuco, onde já foi condecorada até pela Polícia Militar. Presidente do Tortura Nunca Mais do Estado, ela transformou a ONG em um megaprojeto de inclusão social. Pelo menos cinco mil pessoas já passaram por suas atividades continuadas de educação. “Até hoje, não perdi nenhum menino para o tráfico”, comemora. Por essas e outras, não consegue imaginar sua vida de outra forma: “Faria tudo de novo, exatamente igual.” Um butim para legalizar Durante as filmagens de Quase dois irmãos, em cartaz nos cinemas nacionais, a cineasta Lúcia Murat, 56 anos, vetou sem pestanejar uma proposta cenográfica que previa cabines com vidros separando presos políticos de suas visitas. “O salão para visitantes do presídio de Ilha Grande era uma bagunça”, lembra, referindo-se à prisão masculina retratada em seu quarto longa-metragem.